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A VIDA COM AUTISMO

Luciana Mendina

Prefácio de Alfredo Jerusalinsky


A vida com autismo
Os desafios da adolescência e da vida adulta de Bernardo Martínez,
diagnosticado com autismo quando tinha um ano e onze meses

1
Dedico este livro à minha prima
Kika, exemplo de resiliência e de
superação. Para você, todo meu
respeito, admiração e carinho.

2
“Se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação
(duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida” (Carlos
Drummond de Andrade)

3
Não poderia haver pessoa mais indicada para escrever o prefácio deste

livro do que o Dr. Alfredo Jerusalinsky. O tratamento que ele e Eda

Tavares ofereceram ao meu filho foi o diferencial na sua vida. Hoje, Be

reverteu praticamente todos os sintomas do autismo e desfruta de uma

vida plena, cheia de realizações e de opções. Minha gratidão eterna a

estes dois psicanalistas.

PREFÁCIO

SEM”COTAS” PARA VIVER A VIDA

Este não é um manual de psicopatologia sobre autismo. Tampouco é

um manual de condutas ou prescrições para lograr que autistas se

comportem de acordo com o standard social. É um testemunho de como é

possível construir um ser capaz de saber e de amar ali onde seu organismo

e sua circunstância se opõem ferrenhamente a que ele aceite se relacionar

precisamente com aqueles que constituem a fonte desse saber e desse amor.

É a história de uma luta contra essa muralha de rigidez e negativa

que caracteriza o autismo. É o relato de anos de laboriosa procura de

algumas brechas ou janelas que permitam enlaçar esse ser a um campo de

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discurso onde ele possa ser sujeito capaz de dizer e defender o que ele sente

e deseja.

Assistimos, no primeiro livro de Luciana Mendina, ao relato de toda

a etapa infantil da evolução de Bernardo. Tempo em que percebíamos o

quanto, na costura de cada gesto e no enlace de cada letra com o Outro

(encarnado em sua mãe, sua irmã Maria Júlia, e seus psicanalistas), ele

demandava com seu olhar oblíquo e translúcido: “não desistam de mim”.

Nesse segundo livro, testemunha-se a aventura de viver no mundo

para alguém que tem que defender sua dignidade a cada passo. Necessidade

que emerge de insignificantes traços de estranhamento, resíduos de quem

atravessou uma dura guerra contra a mais radical solidão e contra uma

insistente ameaça de exclusão social. Essa é a razão pela qual Bernardo

recusa se amparar nas cotas de exceção para conquistar seu lugar na

Universidade, ou seja, demanda seu direito a que seu modo de pensar e

operar no mundo seja reconhecido como legítimo. Essa é também a razão

pela qual Bernardo agradece a sua mãe e sua irmã: “Obrigado por não

terem desistido de mim”.

Alfredo Jerusalinsky

Em Porto Alegre, 17 de agosto de 2020.

5
INTRODUÇÃO

I - AUTISMO

Mas o que é o autismo, afinal?


Maior incidência em meninos
O mito do retardo ou da genialidade
Epidemia de autistas?
Um jeito de ver a vida?
Os autistas também crescem

II - BERNARDO NA ADOLESCÊNCIA

Necessidade de mais amigos

Bernardo encontra um esporte pra ele

E se?

Último degrau para o Ensino Médio

Mais conquistas no Ensino Médio

Maior coração do mundo

Um menino exigente...

...e surpreendente

Ghandi e Brioche: mais responsabilidades

Mais bichos à vista

Mãe, estou namorando!

III - BE ABRE MÃO DAS COTAS PARA ENTRAR NA UNIVERSIDADE

PAS – Programa de Avaliação Seriada

Uma linguagem ainda formal

Certo X Errado

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Pronomes, concordâncias e afins

Participação em eventos sobre autismo

Outra carta de aniversário

Maria Júlia faz 19 anos

Mais um Dia das Mães

Diretor da Juventude Asperger do MOAB

IV – BERNARDO PASSA PARA UNB SEM COTAS

Despedida

Bernardo nos dá um susto

Meu filho faz 19 anos

Bernardo no Tinder

De Licenciatura para Bacharelado

Aprender a dizer não

Visita ao túmulo do meu marido

Novamente em Brasília

Paixão: imortal tricolor

Meu filho quer trabalhar e dirigir

Mais uma luta à vista

Volta para Porto Alegre

V – 2020: UM ANO QUE VAI ENTRAR PRA HISTÓRIA

Aniversário atípico: Bernardo faz 20 anos em meio à Pandemia

7
INTRODUÇÃO -

Em dezembro de 2009, em uma conversa com Dr. Alfredo


Jerusalinsky e Dra. Eda Tavares, soube que meu filho Bernardo, então com
nove anos, teria alta do tratamento de autismo. Depois de pouco mais de
sete anos de tratamento psicanalítico ininterrupto – nos primeiros três anos
as consultas eram diárias, sendo depois desse período espaçadas para três
vezes por semana e, por fim, nos últimos dois anos, passaram a ser duas
vezes por semana – meu filho não precisaria mais de nenhuma intervenção
terapêutica, nem mesmo de eventuais sessões de acompanhamento.

É verdade que aqueles sete anos de tratamento foram marcados por


altos e baixos, alguns fracassos temporários e muitas comemorações, mas o
saldo foi mais do que positivo: Bernardo estava curado do autismo. Cabe
aqui uma observação: quando digo que meu filho está curado do autismo,
eu me refiro aos sintomas incapacitantes do transtorno, que o impediriam
de ter uma vida plena de escolhas, sintomas como isolamento, inadequação
social, ecolalia, flapping, rocking e dificuldades na linguagem e na
aprendizagem. Isso tudo ficou no passado!

Diagnosticado com o transtorno pela equipe multidisciplinar do


Centro Lydia Coriat quando tinha apenas um ano e onze meses, coordenada
pelo Dr. Alfredo Jerusalinsky, o diagnóstico precoce foi essencial para sua
“cura”, assim como a inclusão social (Bernardo sempre cursou escolas
regulares de ensino) e o tratamento psicanalítico. Com essas três
ferramentas, foi criado um ambiente propício para que meu filho se
desenvolvesse psíquica e socialmente. Esse tripé – diagnóstico precoce,
tratamento clínico e inclusão social – pode ser o grande diferencial para a
obtenção ou não da cura dos principais sintomas do autismo e para uma
8
melhora significativa de suas vidas, já que o Transtorno do Espectro
Autista (TEA) abrange desde autistas leves até severos, estes últimos mais
comprometidos em muitos aspectos, o que pode impedir, mesmo com o
tratamento adequado, que alguns sintomas sejam revertidos.

Em abril de 2015, publiquei o livro O Autismo tem cura?, no qual conto a


história de Bernardo desde o nascimento até seus quatorze anos, no
penúltimo ano do ensino fundamental.

Passados mais de dez anos da alta do tratamento do Bernardo em


2009, senti necessidade de compartilhar com leitores uma fase dos autistas
pouco explorada até agora: a vida extrafamiliar daqueles que superaram o
autismo e seus desafios em busca de independência social, afetiva e
profissional.

Quando obtive o diagnóstico de autismo do meu filho, não


imaginava que ele poderia chegar tão longe e em tão pouco tempo. Apesar
de ter começado a falar somente com seis anos, ele recuperou esses anos
rapidamente, adaptando-se bem aos colégios por onde passou, fazendo
amigos, reduzindo ou revertendo totalmente alguns sintomas, aprendendo a
administrar outros sintomas e, o que é fundamental, sentindo-se livre para
falar sobre suas angústias, dúvidas e inseguranças. Aos vinte anos recém-
completados, ele é um rapaz falante, sociável, cheio de amigos.

O cenário social e educacional dos últimos anos também mudou


significativamente.

Há dezoito anos, a maioria das informações disponíveis sobre


autismo eram desanimadoras. Havia muitas notícias pessimistas, muitos
pais revoltados com tratamentos e com médicos e a crença de que o
autismo era uma sentença. Desisti de participar de qualquer grupo naquela
época. Não queria ficar me lamentando pelo fato de meu filho ser autista

9
nem tampouco travar uma briga com médicos e tratamentos. Muito pelo
contrário. Queria que a história do meu filho fosse totalmente diferente, que
os médicos acertassem nas terapias, que meu filho evoluísse no tratamento
e que ele fosse tão longe quanto pudesse. E antes de mais nada, não queria
me tornar uma pessoa amarga e descrente.

Em 29 de março de 2017, houve importante conquista para milhões


de bebês brasileiros que poderiam vir a se encontrar com obstáculos para
seu desenvolvimento e sua saúde mental, entre eles também os autistas: a
aprovação do PL 5501/13, que se tornou a Lei 13.438/17, conhecida como
“Lei da Detecção Precoce”.

Inicialmente, este projeto de lei foi uma sugestão minha para a


senadora Ângela Portela, que a aceitou de imediato e apresentou o PLS
451/11, que altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da
Criança e do Adolescente), para tornar obrigatória a adoção, pelo Sistema
Único de Saúde, de protocolo que estabeleça padrões para avaliação de
riscos para o desenvolvimento psíquico das crianças.

Depois de aprovado em duas comissões do Senado, o projeto foi para


a Câmara dos Deputados. Em fevereiro de 2017, ao iniciar meu trabalho de
assessora de imprensa com o Deputado Delegado Francischini, sugeri que
ele relatasse o projeto, o que beneficiaria, especialmente, milhões de
autistas brasileiros. Foi o que ele fez. Por ter um filho autista, o também
Bernardo, que à época tinha seis anos, o autismo também passou a ser uma
das causas de Francischini.

Aprovada por unanimidade no plenário da Câmara, esta lei pode


colocar o Brasil na vanguarda dos países que realmente se preocupam com
a saúde mental de seu povo. E sem custo significativo adicional já que

10
existe um protocolo de fácil aplicação – criado por cientistas brasileiros1 a
ser adotado pelo SUS. Inclusive, este protocolo já consta na Cartilha da
Atenção Básica ao TEA do Ministério da Saúde. São perguntas e
observações feitas durante as consultas habituais de acompanhamento
fáceis de serem respondidas, feitas pelo pediatra, o agente de saúde ou
educadores – devidamente treinados em breve curso de capacitação - desde
o nascimento do bebê até 18 meses de vida, endereçadas aos pais ou aos
cuidadores da criança.

LEI Nº 13.438, DE 26 DE ABRIL DE 2017.

Altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990


(Estatuto da Criança e do Adolescente), para
tornar obrigatória a adoção pelo Sistema
Vigência
Único de Saúde (SUS) de protocolo que
estabeleça padrões para a avaliação de riscos
para o desenvolvimento psíquico das crianças.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu p

Art. 1º O art. 14 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do


Adolescente), passa a vigorar acrescido do seguinte § 5º :

“Art. 14. ........................................................................

.............................................................................................

§ 5º É obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de


vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em
consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento
psíquico.” (NR)

Art. 2º Esta Lei entra em vigor após decorridos cento e oitenta dias de sua publicação
oficial.

Brasília, 26 de abril de 2017; 196º da Independência e 129º da República.

MICHEL TEMER
Osmar Serraglio
Luislinda Dias de Valois Santos

Este texto não substitui o publicado no DOU de 27.4.2017

1
O IRDI (Indicadores de Risco para o Desenvolvimento Infantil) construído mediante uma pesquisa que
se estendeu de 2000 até 2009, sediada na USP e apoiada e aprovada pelo CNPq, FAPUSP, Coordenada a
nível nacional pela Dra. Cristina Kupfer e tendo como coordenador científico o Dr. Alfredo Jerusalinsky.

11
I – AUTISMO
Mas o que é o autismo, afinal?
Considerado uma disfunção global do desenvolvimento, o autismo
afeta a capacidade de comunicação, de socialização e de comportamento da
criança; faz parte de um grupo de síndromes chamado transtorno global do
desenvolvimento (TGD). Dentro desta categoria, recorta-se um conjunto de
problemas psíquicos mais graves, que recebe o nome de transtornos
invasivos do desenvolvimento (TID) ou pervasive development disorder
(PDD). É dentro deste conjunto que se encontra o autismo.

Recentemente, foi adotado o termo Transtorno do Espectro Autista


(TEA, dentro do TID), que engloba o autismo clássico, a síndrome de
Asperger, a síndrome de Rett e o transtorno desintegrativo da infância. Isso
agrega um vasto e heterogêneo conjunto de sintomas que autorizam o
diagnóstico de autismo acerca do qual, hoje, há consenso de sua pouca
confiabilidade. Em uma espécie de “confissão” da pobreza conceitual de tal
metodologia diagnóstica – que impede atribuir uma condição específica a
cada tipo de autismo – costuma-se adotar, junto ao diagnóstico assim
proferido, a expressão SOE (Sem Outra Especificação).

O TEA (transtorno de espectro autista), porém, permite que o


transtorno seja graduado desde o autismo mais leve até o mais severo, cuja
cura, neste último caso, é muito difícil de ser obtida. Nos últimos vinte
anos, os critérios de inclusão de crianças dentro da categoria de autismo
diversificaram-se e ampliaram-se, causando uma espécie de epidemia
artificial, já que os critérios do TEA abrangem desde as manifestações
patológicas mais graves (autistas completamente desligados de seu entorno
e governados por automatismos e autoagressões incontroláveis) até
crianças neuróticas normais (que recusam o contato com seus semelhantes
e são irritáveis e agitadas, ou meramente crianças fóbicas).
12
Segundo a Austism Society of America (ASA), os autistas apresentam
pelo menos metade das características a seguir:

1. Dificuldade de relacionamento com outras pessoas; 2. Pouco ou


nenhum contato visual; 3. Rotação de objetos; 4. Riso
inapropriado; 5. Aparente insensibilidade à dor; 6. Preferência pela
solidão; modos arredios; 7. Ecolalia; 8. Age como se estivesse
surdo; 9. Inapropriada fixação em objetos; 10. Acessos de raiva;
11. Não faz referência social; 12. Desorganização social; 13.
Irregular habilidade motora; 14. Dificuldade em expressar
necessidades; 15. Procedimento com poses bizarras; 16. Não tem
real medo do perigo; 17. Perceptível hiperatividade ou extrema
inatividade; 18. Ausência de resposta aos métodos normais de
ensino; 19. Insistência em repetição desnecessária de assuntos,
resistência à mudança de rotina; 20. Recusa colos ou afagos.

Destes sintomas, os mais perceptíveis no Bernardo eram a dificuldade


de relacionamento com outras pessoas que não eu, o pai e a irmã (em
alguns momentos, relacionava-se com minhas irmãs, meus tios e minhas
primas); pouco ou nenhum contato visual (só olhava nos meus olhos, e de
forma fixa, sem manter qualquer contato visual com mais alguém); e o
isolamento (preferia ficar no canto do quarto ou na sala de televisão,
afastado das pessoas).

Comumente, Bernardo ficava em um canto na sala de televisão,


segurando e rodando lápis e canetas, o que configurava a rotação de
objetos; a ecolalia também era muito frequente: imitava sons, repetia frases
de desenhos animados e de propagandas na televisão (isso quando começou
a falar, o que demorou a acontecer); resistia à mudança de rotina,
preferindo ir aos mesmos lugares, comer as mesmas comidas e ficar em
casa em vez de sair.
13
Não queria dormir fora de casa de jeito nenhum, mesmo que a irmã e
eu estivéssemos com ele. No final do dia queria voltar para casa. Era muito
apegado às rotinas. Nesse sentido, houve notável melhora, mas ele continua
apegado às rotinas, só não mais a ponto de prejudicá-lo. Há mais
flexibilidade e ponderação.

Até os quatro anos, ele ria de forma estereotipada e sem nenhum


motivo aparente. De repente, soltava gargalhadas mecânicas: “ha ha ha”.
Nenhum fato engraçado. Nada justificava a risada. Era um riso fora de
lugar. Como todo o resto.

Dos sintomas listados acima, Bernardo não apresenta mais nenhum


deles, embora tenha um comportamento considerado “excêntrico” em
algumas situações; até essa excentricidade vem decrescendo ao longo dos
anos.

Era de se esperar que alguns resquícios do autismo permanecessem e,


só com o tempo, fossem completamente revertidos. O que posso garantir é
que autista meu filho não é mais. Pode ser considerado excêntrico,
diferente, raro, mas não autista. E isso, repito, incomoda os médicos que
não sabem mais como “classificá-lo”.

Maior incidência em meninos


É fato: o autismo é mais comum em meninos do que em meninas. A
incidência de autismo em meninos é quatro vezes maior do que em
meninas.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), os distúrbios


de desenvolvimento neurológico - como deficiência intelectual, distúrbio

14
específico de linguagem, transtorno de déficit de atenção, hiperatividade,
epilepsia e autismo - afetam uma em cada seis crianças em países
industrializados. Estudos mostram que há de 30% a 50% mais meninos que
sofrem destas doenças do que meninas.

Um estudo divulgado em 2014 pelo Hospital da Universidade de


Lausanne, na Suíça, apontou como causa dessa maior incidência o
funcionamento diferente do cérebro feminino, cujas alterações requerem
alterações mais extremas do que o cérebro masculino para produzir os
sintomas do autismo.

“Este foi o primeiro estudo que demonstrou uma diferença em nível


molecular entre meninos e meninas no que se refere ao desenvolvimento de
uma deficiência neurológica”, disse, em um comunicado, Sébastien
Jacquemont, pesquisador do hospital e autor do trabalho.

Ainda segundo ele e Evan Eichler, pesquisador da Universidade de


Washington, em Seattle, o estudo sugere que há um nível diferente de
robustez no desenvolvimento do cérebro, e as meninas parecem ter uma
vantagem clara.

Para compreender a diferença de gênero, o estudo comparou a


frequência de alterações genéticas em cerca de dezesseis mil crianças com
transtornos do desenvolvimento neurológico.

O resultado mostrou que as meninas diagnosticadas com alguma


disfunção do desenvolvimento neurológico ou transtorno do espectro
autista tiveram um número muito maior de mutações, o que demonstra que
o cérebro feminino requer alterações mais extremas que o masculino para
produzir os sintomas.

15
Para o psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São
Paulo (USP), Guilherme Polanczyk, é cedo para conclusões. Ele concorda
que existe sim uma questão de gênero neste assunto. “Sem dúvida há uma
questão de sexo nisto. O próprio autismo e o TDAH - transtorno do déficit
de atenção com hiperatividade- são mais comuns em meninos. Mas, após a
puberdade, distúrbios de ansiedade e depressão ficam mais comuns em
mulheres. Acho que temos um caminho aí que pode nos levar a boas
descobertas”, disse.
Polanczyk afirmou, no entanto, que embora os dados mostrem que as
meninas precisavam apresentar mais mutações para manifestarem os
sintomas dos distúrbios, o “modelo protetor” é ainda apenas uma
especulação. “Acho a explicação plausível, mas ainda é preciso fazer mais
replicações deste tipo de estudo para ter certeza”, esclareceu o psiquiatra.

O mito do retardo ou da genialidade


Faltava descobrir se Bernardo tinha algum retardo mental. Estava
alarmada com essa possibilidade. Fiquei aliviada ao ser informada pelo
Dr. Alfredo de que o QI (coeficiente de inteligência) do Bernardo é
normal. Ele não possuía nenhum tipo de retardo mental, mas também não
era nenhum gênio.
Engraçado foi perceber que, para alguns pais, é mais fácil aceitar o
autismo se o filho for diagnosticado como Asperger, já que isso
significaria que a criança é superdotada, com uma inteligência acima da
média. Felizmente, nunca considerei o meu filho gênio nem preferiria que
ele fosse Asperger.

16
Em algumas ocasiões, conhecidos e amigos chegaram a afirmar que
sua inteligência era acima da média, coisa que sempre discordei, pois sei
que meu filho é inteligente, mas sua inteligência está dentro da média.
Um QI mais alto não garante maior capacidade de ser feliz ou mais
sucesso e realizações na vida. Aliás, um QI mais alto não garante
praticamente nada e, não raro, é a causa de muitos conflitos, sejam eles
afetivos ou psíquicos.
Há uma discrepância enorme de dados quando o assunto é retardo
mental. Chegou-se a acreditar que 70% dos autistas tinham algum tipo de
retardo, o que é um absurdo. Feitas as devidas correções, hoje sabe-se que
o percentual chega no máximo a 10%, 12% e, mesmo assim, trata-se de
um leve retardo.
A origem da confusão estava na dificuldade de se separar
características “semelhantes” encontradas em crianças que tinham retardo
mental e crianças autistas, o que levou muitas crianças que tinham apenas
retardo mental a serem consideradas autistas. Daí a falácia do percentual
de 70%.
Em relação aos autistas com algum tipo de genialidade (normalmente
diagnosticados com Asperger), esse número também é bem abaixo da
crença popular, com percentual em torno de 5% a 6%.
A esmagadora maioria é formada por crianças com inteligência
dentro da média, que precisam de estímulos diários para desenvolver suas
potencialidades.

17
Epidemia de autistas?
Na década de 80, a Associação Psiquiátrica Americana tornou mais
abrangentes os parâmetros para diagnóstico do autismo e, com isso, os
EUA viveram uma campanha de informação massiva. Até então, a maioria
dos médicos americanos tinha a mesma imagem estereotipada que nós,
brasileiros, tínhamos, e cuja mudança, no nosso caso, se deu recentemente,
mais precisamente de dez a quinze anos para cá.

Antes, os médicos americanos consideravam autista apenas a pessoa


totalmente incapaz de interagir socialmente; não se falava em espectro
autista, muito menos nas graduações do autismo em leve, médio e severo.

Com as novas normas, contudo, o número de casos aumentou


consideravelmente, representando um “boom” nas estatísticas, e o autismo
passou, inclusive, a ser tratado pela Mídia como uma epidemia.

É importante frisar que esse “boom” foi resultado, basicamente, da


ampliação dos critérios usados para se estabelecer se uma criança era
autista ou não. Dessa forma, passou-se de um extremo a outro: se antes o
número de autistas não era confiável por não levar em consideração os
tipos de autismo mais leves, agora não é confiável por considerar qualquer
alteração comportamental como um indício de autismo. Passamos de um
extremo para o outro.

A flexibilização dos critérios foi a responsável pela diferença nas


estimativas internacionais e pela profusão de diagnósticos de autismo.
Logo, como ocorreu no EUA na década de 80, é a vez agora de o Brasil ter
essa sensação de epidemia.

Relevando os exageros, é louvável que haja maior conscientização da


comunidade em geral e de pais, professores e médicos, em particular, o que
viabilizará o diagnóstico precoce, amplamente defendido por mim.
18
Também merece destaque o fato de que, quanto maior a
disponibilidade de informações sobre o distúrbio, mais possibilidade de
inclusão social e de combate ao preconceito.

Outro aspecto positivo é que as pessoas entendam a importância da


terapia tanto para os casos graves da doença quanto para os casos leves,
haja vista que, sem o diagnóstico adequado, corremos o risco de considerar
apenas “esquisitas” ou “excêntricas” crianças que se beneficiariam muito
com ajuda profissional.

É provável que, nos próximos anos, haja um rearranjo, com a


divulgação de estatísticas que reproduzam, com mais precisão, qual é o
número real de autistas no mundo atualmente.

Um jeito de ver a vida?

Se há dez anos quase não tínhamos informações sobre autismo, hoje


temos em demasia, o que pode ser bom por um lado e ruim por outro. Bom
porque, finalmente, o autismo saiu do armário e ganhou espaço (merecido)
na sociedade. Com isso, podemos trocar experiências, formular políticas
públicas efetivas para nossos autistas, conhecer pessoas fantásticas que
lutam pela assistência e pelos direitos dos autistas e diminuir o preconceito
em torno do assunto.

Mas é ruim na medida em que surgem também muitas fake news e


desinformações. Com essa profusão de informações sem controle, sem um
filtro que nos garanta comprovação científica ou bom senso, pais e mães
são bombardeados constantemente com promessas de remédios milagrosos,
com terapias alternativas sem nenhuma comprovação de sucesso e, ainda
19
mais preocupante, com uma idealização ou glamourização em relação ao
transtorno.

Autismo é assunto sério. Não é um “jeito de ver a vida” como


algumas pensam tentam nos convencer. Tudo que um autista não consegue,
quando o transtorno não é tratado clinicamente, é ver a vida. Meu filho só
passou a “ver a vida” e a ter oportunidades e escolhas a partir do momento
que os sintomas incapacitantes e de isolamento do autismo foram
diminuindo e Be foi se constituindo como pessoa. Sim! Constituir-se como
pessoa, separar-se dos demais, ter uma própria identidade é algo possível e
desejável. Temos de lutar por isso.

Os autistas também crescem

Toda doença, síndrome ou transtorno crônicos ou permanentes


trazem um novo desafio por si só: a idade. Com o passar dos anos,
diferentemente de muitas doenças, ela não melhora ou não vai embora
sozinha. O autismo é um transtorno permanente, embora com o
tratamento adequado, o diagnóstico precoce e a inclusão social, ele possa
praticamente deixar de existir. É o que ocorreu com meu filho. No dia a
dia, quase nos esquecemos do seu transtorno. Bernardo vive uma vida bem
“comum”, com afazeres domésticos, estudo, vida social, idas a aniversários
e eventos, sonhos, frustrações, etc.

Quando era criança, os desafios eram de uma ordem: aquisição da


fala (linguagem), alfabetização, interação social (fazer amigos e ir a locais
públicos sem se incomodar com barulhos e sem representar um perigo para
si mesmo), independência funcional (largar as fraldas e ir ao banheiro

20
sozinho), comer com a própria mão, e por aí vai. Todos esses desafios
foram superados.

Na adolescência, surgiram outros, tais como adquirir mais


subjetividade, especialmente na escola e em suas disciplinas, e na relação
com amigos e com as pessoas em geral; variar sua alimentação, o que por
sinal foi realizado com muito sucesso pois ele come de tudo hoje em dia,
gosta de experimentar novos alimentos e não tem nenhuma frescura quanto
a isso; fazer um esporte, sendo que o esporte em que ele se destacou foi o
Judô, ganhando algumas medalhas e mantendo um bom relacionamento
com o professor e com os outros competidores; namorar ou conhecer
meninas que o interessassem, conversar sobre isso com seus amigos, sair
com eles com a finalidade de conhecerem alguém, isso também aconteceu
naturalmente e sem atropelos; terminar o Ensino Fundamental, ingressar no
Ensino Médio e, mais tarde, preparar-se para a faculdade.

Bernardo teve a tranquilidade necessária para dar esses passos. Em


alguns momentos, sentiu-se inseguro quanto ao seu desempenho, é uma
característica dele a de exigir-se demais. Em outras vezes, teve a
autoconfiança necessária para seguir em frente sem pedir ajuda. O
desempenho escolar foi muito acima do esperado por nós. Não faltava às
aulas, tirava notas altíssimas, comunicava-se muito bem com todos à sua
volta, conquistava a admiração de outros alunos e professores. Saldo mais
do que positivo.

Mas os autistas crescem, como eu já havia dito. Até este ponto em


que Bernardo chegou, terminando o colégio e ingressando no mundo
acadêmico, muitos também conseguiram chegar. Não tantos quanto
gostaríamos. O objetivo de todos nós que nos envolvemos com a causa
autista é aumentar ainda mais esse ingresso nas universidades nos próximos
dez anos.
21
Nosso foco não é apenas a criança autista. Os adultos merecem toda
nossa atenção e comprometimento. Precisamos propiciar meios de
ingressos mais justos nas universidades, no mercado de trabalho, nas
repartições do serviço público, além de sua capacitação para obterem
carteira de habilitação, para se casarem e constituírem família.

Sim! Tudo isso é possível de ser conquistado e tenho certeza de que


é o desejo deles: serem aceitos e respeitados em todas as áreas de suas
vidas. Os autistas leves têm plenas condições de obterem uma vida
praticamente “normal”; os moderados terão mais dificuldades, mas
estaremos ao lado deles para vermos até onde eles podem ir, e os severos
precisam de ações efetivas para que quando seus pais não estiverem mais
aqui, eles tenham condições de não apenas sobreviver no mundo, mas
terem uma vida de qualidade, sem maus-tratos pela parte de estranhos, sem
preconceito por parte da sociedade, sem negligência nos seus cuidados
mais básicos.

Em dezembro de 2016, o autista Isaías Costa, 18 anos, concluiu o


Ensino Médio na Unidade Escolar Gervásio Costa, escola estadual de
Teresina, Piauí. Segundo a diretora da entidade à época, Yonara Lustosa, a
educação inclusiva começou a render bons frutos na escola.

- Ele chegou na escola ainda na infância, cursou o Ensino


Fundamental e ao longo de todos esses anos se empenhou e concluiu o
ensino Médio. Isaías é muito interessado e contou com todo o apoio dos
professores, da escola e da sua família, além de um acompanhamento
especial. Essa foi uma grande conquista – finalizou.

Mas é preciso fazer mais. Só 14% das vagas no ensino superior para
alunos com deficiência foram ocupadas em 2016. No Rio Grande do
Norte, Nataly Pessoa, autista, cursa Direito no Centro Universitário do Rio

22
Grande do Norte (UNI-RN). Ela tem um blog, o “Espaço Autista”, onde
relata experiências, dificuldades e preconceitos. Nesse espaço, ela também
promove debates na luta por direitos dos autistas.

Em Santa Catarina, o Núcleo de Acessibilidade da UFSC participa


desde 2013 do Projeto de Pesquisa Acessibilidade em Rede (da Capes). O
objetivo é o mapeamento nacional em universidades federais de questões
como acesso e permanência de estudantes com deficiência. Pretende-se
com isso discutir as atuais condições de ensino e políticas públicas
brasileiras.

- Geralmente são os autistas de grau leve que chegam à


Universidade, afirmou o professor de Psicologia da UFSC, Marcos
Eduardo Lima.

Enquanto a presença de autistas no ensino superior é garantida por


lei, a inclusão de deficientes com retardo mental no Ensino Superior não é
obrigatória, mas deve ser outra meta a médio prazo. Para isso, contudo, as
universidades precisam estar prontas para acolher as diferenças e ser mais
condescendente com as dificuldades de aprendizado que, inevitavelmente,
surgirão.

Para se ter uma idéia da gravidade do assunto, dos 6 mil alunos


aprovados no vestibular da UFSC em 2014, apenas um declarou-se autista.
Isso por que os candidatos que possuem algum tipo de deficiência ou
necessidade especial podem solicitar a aplicação diferenciada do teste. No
geral, os vestibulandos da UFSC com laudo de TEA solicitam apenas uma
sala separada, de acordo com dados do Núcleo de Acessibilidade
Educacional.

Outro caso de superação é o de Eduardo Meneghel Barcellos de


Souza, autista de 15 anos. Ele conseguiu liminar da Justiça Federal para

23
que pudesse ingressar no Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes). Eduardo
participou do processo seletivo, fez prova para uma vaga em Agropecuária
Integral, no campus de Alegre, mas como o instituto não dispõe de reserva
de vaga nem de outro meio de inclusão para pessoas com deficiência
previsto no edital, ele fez o processo na ampla concorrência e obteve 170
pontos, ficando como suplente. A última candidata aprovada havia feito
220 pontos.

Quando soube da pontuação, Eduardo pensou em desistir: “Fiquei


desanimado, mas meu pai falou que ia lutar por isso, e eu me animei. Como
demorou muito, não estava achando que a gente ia conseguir. Mas a gente
conseguiu. Agora estou ansioso para estudar”.

O pai de Eduardo, Maurice Barcellos da Costa, é professor e


desabafou sobre a desvantagem que seu filho teve em relação aos demais
candidatos diante da deficiência que apresenta. “Candidatos cotistas foram
aprovados uns com 110 pontos, outros com 140 pontos. Meu filho fez 170
pontos. Ou seja, se ele tivesse acesso privilegiado de acordo com suas
peculiaridades, Eduardo certamente teria sido aprovado”.

II – BERNARDO NA ADOLESCÊNCIA

Adolescência: necessidade de mais amigos

Quando morávamos em Porto Alegre e Bernardo tinha vários


sintomas do autismo, dos dois aos nove anos de idade, ele só tinha
praticamente dois amigos: Caio e Eric. Meu filho conheceu Caio na creche
Balão Azul, quando tinha quatro anos, e em pouco tempo ficaram bem

24
grudados. Caio tinha um temperamento tranquilo, apaziguador e se tornou
intérprete do Be frente aos desafios diários. Estudaram juntos na creche e,
anos mais tarde, no 1º ano do Ensino Fundamental no Colégio Bom
Conselho.

Eric é filho de uma amiga minha, Cristiane Naiber, e também se


dava muito bem com Bernardo. Com temperamento mais agitado, um
menino curioso, Eric ia lá em casa e os dois brincavam muito,
principalmente com dinossauros e com os personagens de Star Wars. Ele
passava o dia todo lá em casa e era só diversão. Era raríssimo eles se
desentenderem.

Ao nos mudarmos para Brasília, Be precisou refazer todo seu círculo


de amizades. Seus primeiros amigos na cidade foram Eduardo Godoi e
João Felipe. Os três estudavam no Sistema Educacional Brasileiro (SEB)
Dínatos Coc. Com o tempo, aos 14 anos, Be sentia necessidade de ter mais
amigos e conversou comigo a respeito:

- Mãe, como faço para ter mais amigos?

Eu não tinha resposta para isso. Como fazer amigos é algo que
simplesmente “acontece”, algo que não existe uma fórmula para se ter
sucesso, pelo menos essa é a minha experiência, já que se você se esforçar
demais o efeito será justamente o contrário, – você será um chato querendo
agradar todo mundo – perguntei a ele se gostaria de ir a um psicanalista,
que com certeza saberia melhor do que eu para aconselhá-lo.

Ele aceitou minha sugestão, liguei para Dr. Alfredo Jerusalinsky em


busca de uma indicação de terapeutas em Brasília e ele me sugeriu a Dra.
Inês Catão que, além de psiquiatra, é psicanalista e especialista em autismo.
Be se afeiçoou rapidamente à Inês. Engraçado foi assistir a irmã tentar
arrancar algo dele depois das sessões.

25
- Be, sobre o que vocês falaram? Pode me contar, dizia ela.

Bernardo dava risada e dizia:

- Maju, eu não vou contar. É segredo nosso.

Foi bom meu filho ter um espaço de fala só para ele. Falar e ser
escutado sem nossa interferência é essencial para sua autonomia. Por ser
muito apegado a nós duas, esse distanciamento é saudável e foi incentivado
por nós.

Suas amizades no Ensino Médio não se ampliaram tanto, afinal.


Alguns novos amigos surgiram como o Gustavo e o Lucas. Antes, Eduardo
e João Felipe monopolizavam a atenção dele.

Esse assunto de fazer novas amizades deixou de incomodá-lo tanto


quando ele percebeu que, atualmente, não convivemos tanto com os amigos
quanto gostaríamos devido aos nossos afazeres domésticos e profissionais.

Também expliquei a ele que o mais importante não é a quantidade de


amigos e sim a qualidade, além do que, essencial mesmo é ter com quem
contar, seja amigo, seja familiar, seja quem for.

Bernardo encontra um esporte pra ele

Em 2013, no sétimo ano do Ensino Fundamental, Bernardo começou


a praticar judô. Foi a única modalidade esportiva que combinava com seu
temperamento e aptidões.

Com essa modalidade esportiva, Be conquistou três medalhas de


prata e duas de ouro. Antes, ele praticou basquete por alguns meses, mas

26
não gostou da experiência. Dizia que “só servia para atrapalhar os
adversários!”. A capoeira, segundo ele, também foi um desastre:

- Mãe, o professor faltava com frequência!

Ultimamente, tenho percebido um aumento significativo de autistas,


sejam crianças ou adolescentes, que praticam judô. Talvez pela questão da
disciplina, dos rituais, ele seja tão atraente para nossos filhos. Há vários
projetos nessa modalidade sendo implantados nas cidades. Fico muito feliz
que, cada vez mais, os autistas sejam incluídos na sociedade, ainda mais
com uma inclusão tão saudável como essa.

27
E se?

Havia uma época em que meu filho gostava de supor


acontecimentos, na sua maioria, completamente absurdos ou irreais, e
queria saber a minha opinião sobre eles.

- Mãe, e se..........?

Em outras situações, queria que eu escolhesse entre duas opções


indesejáveis e estapafúrdias, sendo uma pior do que a outra:

- Mãe, se você tivesse que escolher entre ser atirada em um vulcão ou ser
esmagada por um avião, o que escolheria?

- Como assim, Bernardo? Tá doido, meu filho?

- Não. É sério! Você preferia ser atacada por um urso cinzento ou por um
leão?

- Eu preferia não ser atacada por ninguém, meu filho. Aliás, nem serei, pois
ficarei bem longe desses bichos.

- Tá, mas é só uma suposição – ele insistia. Se tivesse de escolher, qual


você preferiria?

Quando eu retribuía a questão, perguntando o que ele preferia, ele


dizia que preferia ser atacado por um leão, pois este não tem a mordida tão
pesada. É de apenas 400 kg, enquanto a mordida do urso cinzento é capaz
de quebrar uma bola de boliche, segundo ele. Errata: Não sou um
biólogo. Diante disso, recomendo cautela para quem estiver lendo isso.
Seria bom se alguém especializado nesse assunto me alertasse. Eu
certamente me confundi. Não me lembro de onde minha cabeça tirou a
estimativa de força de mordida de 400 quilogramas para o leão
(Panthera leo). Até onde estou sabendo, esse não é o modo devido de se

28
estimar a força de mordida de um bicho. No que diz respeito ao urso
cinzento (Ursus arctos horribilis), fui informado por certas fontes na
Internet dessa suposta informação na época em que disse isso.
Recentemente, descobri que essa informação consta em uma página do
canal televisivo National Geograhic (eis o link:
http://www.natgeotv.com/int/expedition-wild/facts). Nela, é dito que a
força de mordida do urso cinzento é de 8 000 000 Pascais. Essa é uma
unidade de pressão. No entanto, não é dito na página o tamanho da
superfície que foi utilizada como referência para esse valor. Levando-
se em consideração a resistência que uma bola de boliche pode ter
(dependendo de sua qualidade), não consigo imaginar um urso
cinzento quebrando uma bola de boliche com a força de sua mordida.
Pelo que estou sabendo por meio de determinados artigos científicos,
em termos proporcionais, leões tem forças de mordida maiores se
comparados a ursos pardos (Ursus arctos). Para que um urso cinzento
tenha uma força de mordida maior em relação a essa espécie de felino,
ele deverá ser maior se comparado a este.

E não parava por aí:

- Mãe, se você tivesse que escolher entre ser picado por uma vespa
mandarina ou por uma vespa caçadora de tarântulas, o que você preferiria?

Sem ter a menor idéia do que responder, chutei:

- Por uma vespa mandarina!

Resposta errada para variar. Be disse que seria melhor ser picado por
uma vespa caçadora de tarântulas pois, apesar de ter a segunda picada mais
dolorosa entre todos os insetos (não me pergunte qual é a primeira), ela usa
sua picada apenas para paralisar a presa, ao contrário da vespa mandarina, e

29
não causa número significativo de mortes, tendo um comportamento mais
calmo. São mais solitárias e menos agressivas.

Em uma sexta-feira chuvosa de março de 2015, tomando chimarrão


juntos, Bernardo inicia a conversa:

- Mãe, eu sinto que minha capacidade cerebral está sendo reduzida!

Não dei muita atenção. Em outro momento, anterior a este, ele tinha
me falado que estava com problemas no seu “sistema nervoso”. Ah! Não.
Que mania de doenças.

Soube depois que Be tinha lido na Wikipedia que um dos sintomas


do autismo é retardo mental e que ficou com medo de ter esse sintoma. Eu
o tranquilizei. Ele é um menino inteligente, fora de série, e não tem
qualquer comprometimento intelectual. Às vezes, tudo que ele precisa
nesses instantes de insegurança é de reafirmação. E, nessas horas, eu estou
pronta para tranquilizá-lo.

Último degrau para o Ensino Médio

Bernardo ficou apreensivo com a proximidade do Ensino Médio. À


medida que o tempo passava, ele parecia cada vez mais preocupado com
seu desempenho escolar e demonstrava insegurança quanto ao futuro.

Seu principal medo era de que o nono ano do Ensino Fundamental


fosse muito mais difícil do que o oitavo ano tinha sido (ele nem o
considerou desafiador) e que ele não conseguisse manter as notas altas dos
anos anteriores. A irmã e eu o tranquilizamos. Até aquele dia nem
recuperação ele tinha feito. Por que todo esse medo?

30
Cada nova fase da vida de meu filho tem sido vivida e ultrapassada
com facilidade, apesar de em alguns momentos ter sido essencial a ajuda da
irmã e a minha. Sem dúvida a irmã tem sido seu ponto de apoio. Apesar da
insegurança, Bernardo não teve qualquer dificuldade para terminar o nono
ano e entrar no Ensino Médio.

Mais conquistas no Ensino Médio

Pouco antes de as aulas do Ensino Médio começarem, Bernardo


ficou ansioso e externou várias vezes preocupação em não corresponder às
expectativas e não conseguir acompanhar com facilidade essa nova etapa.

- Mãe, estou com medo de não ser bom aluno no Ensino Médio.
Estou com medo de que seja muito difícil – desabafou, quando perguntei o
que estava incomodando ele.

Apesar de eu explicar repetidamente que essa etapa não seria tão


diferente da que ele tinha vivenciado até agora – o Ensino Fundamental
também exige bastante estudo e dedicação – a ansiedade voltava de tempos
em tempos e ele me procurava para desabafar novamente.

Escutei suas dúvidas todas as vezes que elas surgiram, não queria
que ele tivesse a impressão de que eu não me importava com suas emoções,
e sugeri, por fim, que ele falasse com a irmã, que tinha entrado no Ensino
Médio há dois anos. Em muitas questões relevantes para ele, com as quais
ele tem alguma dificuldade de lidar, a irmã tem sido melhor conselheira do
que eu.

Talvez por ter uma intuição nata a respeito de tudo que o envolva ou
por ser muito observadora, talvez pela forte afinidade que existe entre eles.

31
Não é à toa que Maria Júlia está cursando o segundo ano de Psicologia na
Universidade Nacional de Brasília (UnB).

Quando eram pequenos e Bernardo nem tinha sido ainda


diagnosticado com autismo, ela já percebia que havia algo de diferente no
irmão e que ele precisava ser protegido. Por isso, embora tenha apenas um
ano mais do que ele, ela se postava na frente do carrinho dele e não deixava
nenhum estranho ter acesso a ele. Dizia:

- Esse é meu irmão! E ficava imóvel, protegendo-o. Ela tinha apenas


três anos, mas não desgrudava dele.

De qualquer forma, ela também foi extremamente paciente com ele


no momento atual e quando, finalmente, as aulas tiveram início, ele
comemorou. Era muito mais fácil do que imaginava. Só reclamou um
pouco da grande quantidade de conteúdo a ser aprendido em curto espaço
de tempo, principal diferença em relação ao Ensino Fundamental.

Surpreendentemente, suas notas foram ainda mais altas, e muito


acima da média da escola, que era 6, o que garantia um bom desconto na
mensalidade do colégio. Das 13 matérias cursadas, era comum ele tirar 10
em mais de 6 ou 7. Chegou a tirar 10 em quase todas.

Graças ao espetacular desempenho, recebeu várias vezes o prêmio de


Aluno Destaque no Ensino Fundamental e no Ensino Médio.

No 2º semestre de 2016, Be recebeu prêmio Aluno Destaque – Excelência


Acadêmica.

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Outro prêmio Aluno Destaque – Excelência Acadêmica foi concedido no 1º
semestre de 2017, quando ele estava no 2º ano do Ensino Médio.

33
No último ano do Ensino Médio, em 2018, Be recebeu três prêmios:
Aluno Destaque – Mérito Acadêmico, Ato de Elogio – Empenho
Acadêmico e Postura no Ambiente Escolar e Mérito Acadêmico. Foi
engraçada sua reação ao receber o Ato de Elogio. Ele me perguntava o que
isso significava e se era melhor ou pior do que os outros prêmios.

Confesso que também achei engraçada a denominação, mas


expliquei a ele que o que importava era a intenção e que era um
reconhecimento pelo seu desempenho escolar. Entender o que isso
significava – ato de elogio – não entendo até hoje, na verdade. Minha
dúvida diz respeito ao fato de que a coloração do Ato de Elogia era
azulada, enquanto o certificado de Mérito Acadêmico era dourado. Além
disso, percebi que alunos não tão bons quanto outros em termos de nota e
desempenho estavam recebendo o prêmio em questão.

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35
Maior coração do mundo

Meu filho tem um coração enorme, gigantesco. Como é muito


gozador, ao ler essa frase, ele disse:

- Se for verdade, eu vou ficar preocupado pois pode ser sinal de


Doença de Chagas!

Brincalhão, carinhoso, beijoqueiro, Be desenvolveu empatia pelas


pessoas bem acima do esperado até para uma pessoa que não tem autismo.
Imagine para um menino que tinha praticamente todos os sintomas do
autismo, principalmente os que se referiam à aquisição da linguagem e à
socialização.

É muito comum Be entrar esbaforido em casa e me perguntar:

- Mãe, tem um homem lá embaixo pedindo dinheiro. Posso dar?

Ou:

- Mãe, um cara me pediu comida. Posso comprar algo pra ele?

Uma vez, Be encontrou uma mãe com filhos pequenos e maltrapilhos


pedindo dinheiro na rua. Até descalços eles estavam. Ele se apiedou de tal
forma, se comoveu tanto com a situação que queria dar um chinelo para
cada um deles.

Eu o ajudei a procurar os pares das havaianas que tínhamos em casa,


havaianas antigas para doação. Eram a mãe e três crianças. Embora os
chinelos fossem grandes para a idade deles, era o que tínhamos para
oferecer.

Também separamos alguns alimentos para eles. Eu não tinha feito


supermercado e falta praticamente tudo em casa, mas conseguimos
algumas bananas e disse para meu filho que ele poderia comprar algo na
36
padaria para eles, que eles poderiam escolher entre um bolo ou pão e
manteiga e café com leite para cada um deles. Foi o que fizeram:
escolheram pão e manteiga e o café com leite. Ficaram bem felizes com a
ajuda do Be, que ficou um tempo conversando com eles.

Também é comum Be chegar com balas em casa. Como nenhum de


nós gosta de balas, sei que fez isso para ajudar alguém. Sempre tem alguém
vendendo balas no ônibus e meu filho não consegue se omitir. Ajudar, para
ele, é algo tão natural que nem comento mais isso. Sei que, às vezes, ele
volta pra casa sem um centavo, mas tudo bem. Sinto um orgulho danado
dele.

Be é caridoso, desprendido em todos os sentidos. A irmã gosta de


pegar suas roupas, cortá-las e usá-las. E ele se importa com isso? Nem um
pouco. Para ele, está tudo sempre bem. Eu tinha uma camisa do conjunto
de heavy metal Iron Maiden que o Be adorava. Dei para ele.

Mas a irmã, em pouco tempo, pegou a camisa, cortou as mangas, e


começou a usar. Qualquer irmão, diante disso, ficaria furioso. Be não. Be
não se importou. E isso que ele gostava muito da camisa.

Com as calças jeans dele é a mesma coisa. Não consigo nem


entender como Maria Júlia acha legal usar calça de homem. Mas ela
transforma as roupas dele e usa. Como sempre, ele nem se incomoda com
isso. Acha graça de tudo que a irmã faz. É sempre tolerante, compreensivo,
amoroso.

Um menino exigente...

Apesar de ser tão bondoso com os outros, às vezes, ele não é tão
condescendente consigo mesmo: ele se exige demais. E o faz em todos os
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sentidos. Seja no colégio ou em casa, o seu grau de exigência é exagerado
e, portanto, é fácil ele se frustrar quando o resultado não é aquele que ele
esperava. Ao buscá-los na escola em uma tarde depois da aula do judô do
Bernardo, assim que entrou no carro ele disse:

- Mãe, eu preciso muito de você porque minha autoestima está baixa


hoje.

Não deixei por menos.

- Pode deixar filho que eu vou ajudá-lo. Até porque quando você
entrou no carro, eu pensei: “Quem é esse homem lindo, tão alto, que está
entrando no meu carro?” Você está cada dia mais lindo, sabia?

A minha fala o comoveu, tenho certeza, mas em vez de fazê-lo rir,


como era minha intenção, fez com que seus olhos se enchessem d’água e
ele não conseguiu conter as palavras, que passaram a ter vida própria,
dominando-o completamente. Elas eram sofridas, um pedido angustiado
por ajuda:

- Mãe, eu tirei 0,5 em um resumo que valia 2,0. Eu não sou


inteligente, mãe.

Ignorei o último comentário propositalmente e disse:

- Meu filho, era uma redação ou um resumo?

- Um resumo, mãe.

- E por que você acha que tirou essa nota?

- Porque não consegui terminá-lo. Era muito pouco tempo para fazê-
lo. O professor só nos deu 45 minutos para fazê-lo, e eu demorei pensando
nas melhores palavras para escrevê-lo. Eu queria que fosse perfeito!

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- Ah! Filho, então o problema foi justamente esse: o tempo. Quando
você faz um resumo em casa, você tem todo o tempo do mundo para
terminá-lo. Nessa situação, você pode buscar as melhores palavras para
redigi-lo e, mesmo assim, acho que não precisa fazer isso. Se você fizer um
texto muito rebuscado, ele ficará pernóstico, não é assim que as pessoas
falam no dia a dia. Tem de ser mais natural. Lembre-se de que, nessas
horas, menos é mais, meu filho. O que você tem de fazer para da próxima
vez tirar uma nota melhor? Faça o seguinte: leia o texto que precisa ser
resumido, lembre-se de que você tem pouco tempo, e reescreva o que você
entendeu do que leu. Não fique procurando palavras para enfeitar o seu
texto.

- Mãe – disse Maria Júlia – deixa que eu converso depois com ele.

- Tá bem, Ju. – E mudei de assunto. Tive de parar na papelaria para


comprar mais canetas para escrever meus contos. Tenho mania de escrevê-
los primeiro à mão e só depois transcrevê-los para o computador. E detalhe:
as canetas têm de ser pretas. É uma mania da qual não abro mão.

Quando saí da papelaria, nova surpresa: Júlia, que antes estava


sentada no banco da frente, estava agora sentada no banco de trás,
juntamente com o Bernardo e os dois estavam abraçados. Ainda escutei ela
dizer, antes de se mudar para o banco da frente:

- Entendeu direitinho o que eu disse, Be?

Ele concordava com a cabeça. O certo é que ela aproveitou a minha


ausência para ter uma conversinha com ele. Ela sabe a grande influência
que tem sobre ele e não quis perder tempo: decidiu confortá-lo ali mesmo.

O “tempo” é uma questão muito importante para os autistas de um


modo geral. Eles possuem um tempo interno muito peculiar. Se forem

39
apressados, o mais provável é que fiquem confusos e se paralisem, não
conseguindo mais render o que deveriam. Se se sentirem pressionados,
podem sofrer um “completo apagão”.

É como se desse um branco em suas mentes e eles não soubessem


mais o que fazer, o próximo passo a dar. Tenho sido muito cautelosa
quanto a isso. Muitas vezes eu o apressei e a resposta foi desoladora.
Bernardo não age bem sob pressão. O melhor é deixá-lo agir em seu
próprio tempo, respeitar o tempo de que necessita para agir.

Por ele ter ficado tão frustrado com o 0,5 que tirou no resumo, pensei
em ir ao colégio para falar com a coordenadora e pedir para os professores
um tempo maior de tolerância para os trabalhos do meu filho. Mas depois
de ponderar por uns minutos, percebi que não era uma boa opção. O melhor
seria que ele se acostumasse com as exigências da realidade e procurasse se
adaptar a elas. Eu deveria ajudá-lo nessa adaptação e não tentar mudar o
“mundo” para que ele se sentisse mais confortável.

... e surpreendente...

No Carnaval de 2015, durante a visita de minha prima Patrícia, filha


de Tia Gilce, irmã de meu pai, Bernardo nos mostrou mais uma faceta de
sua personalidade. Depois de eles conversarem por mais de quinze minutos
em espanhol, Patrícia comentou:

- Que legal que você sabe falar espanhol! É a língua mais falada do
mundo, não é?

Bernardo, no entanto, a corrigiu:

40
- Não, espanhol é a segunda língua mais falada. A primeira é o
inglês. Let´s speak english a bit!* (no rodapé: Vamos conversar um pouco
em inglês)

E despejou um arsenal de frases, respondendo corretamente a todas


as perguntas feitas por ela (que é tradutora e foi professora de inglês em
vários cursos no país), dando continuidade a um diálogo que durou quase
uma hora.

Não presenciei a conversa deles. Eu estava lendo no quarto quando


minha prima me chamou (com certa urgência na voz) para eu ver o que
estava acontecendo.

- Você sabia que o Bernardo fala inglês? Ela me perguntou.

- Não, que eu saiba ele sabe bem pouco. Teve apenas algumas aulas
no colégio, e isso já faz um tempo. Atualmente ele só estuda espanhol.

- Pois ele está falando fluentemente - disse ela. E reiniciou uma


conversa com ele na minha frente que, para meu completo espanto, não só
entendia tudo que ela dizia, como ainda respondia, apropriadamente, em
inglês. Eu estava boquiaberta.

- Meu filho, onde você aprendeu a falar assim?

- Ah! Mãe, em vários lugares. Jogando videogames, assistindo a


séries americanas na TV, visualizando vídeos no Youtube e,
principalmente, pesquisando sobre Biologia na Internet.

O mais impressionante é que ele conhece muitas expressões


idiomáticas e conjuga os verbos não apenas no presente ou no passado (o
que é mais fácil de se fazer), mas também no Present Perfect, bem mais
complexo.

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- I´ve forgotten....*, disse ele. Minha prima e eu nos entreolhamos,
pasmas.

Bernardo dominava até as inversões de palavras e expressões mais


difíceis daquela língua, tais como “Can I? Did I?”, que são empregadas
nas perguntas.

Patricia, em tom de brincadeira, disse:

- Bernardo, estou com medo de você! E ele rebateu na hora:

- Why do I look scary for you?* (no rodapé: por que eu pareço
assustador para você?)

Em outro momento, quando Patricia prendeu a manga da camisa na


maçaneta da porta, ele veio ajudá-la imediatamente. Ela agradeceu,
dizendo: “como a vida, sozinha, faz coisas. Eu não fiz nada para prender a
blusa na maçaneta”.

- Exato, disse Bernardo. Você tem de estar preparada... you have to


be ready*...(no rodapé: você tem de estar preparada...)

- For what life brings to you*, ela completou. (no rodapé para o que
a vida lhe traz).

Minha prima lingüista ficou impressionada com a competência


idiomática dele, pois o que ele fez (assim como os intérpretes profissionais)
foi uma tradução idiomática, e não literal, o que necessita de mais
abstração. Ele poderia ter traduzido a frase literalmente com a expressão
“to be prepared”, mas a expressão mais usual é mesmo “to be ready”, que
foi o que ele fez.

E assim, sem mais nem menos, descubro, em uma tarde de Carnaval,


que meu filho é poliglota. Fala português, espanhol e inglês com

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desenvoltura, sendo que este último ele aprimorou por conta própria e sem
estardalhaço. Além de poliglota, é autodidata.

Outro medo que eu tinha era de que Bernardo não tivesse iniciativa
na vida e precisasse sempre de um empurrão para seguir em frente, para
enfrentar novos desafios. Esse medo, assim como tantos outros que
povoavam minha mente, acabou.

Até o segundo ano do Ensino Médio, Bernardo não teve aulas de


inglês extra-classe. Mas como a disciplina se tornou obrigatória no
currículo em 2017, ele teve de se inscrever. Fez uma prova de nivelamento
e foi aprovado para o nível 4, último nível do curso. Das 30 questões
respondidas, Bernardo acertou 28. Admirável! No entanto, como o horário
coincidia com as aulas de judô, ele optou por fazer o nível 3.

Em novembro de 2016, Bernardo concluiu o nível intermediário de


espanhol. Na formatura, fez um discurso de mais de cinco minutos em um
auditório quase lotado. Sua irmã e eu ficamos impressionadas com sua
desenvoltura.

43
Gandhi e Brioche: mais responsabilidade

Meus filhos sempre quiseram ter um cachorro. Volta e meia, apesar


das minhas constantes negativas, eles me pediam novamente. A minha
negativa era só pelo fato de morarmos em apartamento. Apesar de eles
serem muito novos para cuidar de um cachorro, eu não me importaria de
fazê-lo, desde que morássemos em uma casa. Durante toda a minha
infância, eu morei em casas.
A primeira foi uma casa térrea na Rua Uçá, na Ilha do Governador,
no Rio. Essa casa, mais tarde, tornou-se um colégio, o nosso colégio. Meus
pais eram os donos do colégio Pingo de Gente. Lá não tivemos bicho de
estimação, mas também eu era muito pequena. Vivemos nesta casa só até
os meus seis anos.
A casa para a qual nos mudamos tinha três pavimentos, sendo um
deles uma piscina, totalmente gradeada. Foi nessa casa que ganhamos
nosso primeiro cachorro: um boxer. Não por acaso essa é uma das minhas
raças preferidas.
Depois dessa experiência, tínhamos constantemente um bichinho
por perto. Tivemos até coelhinhos e pintinhos. Tivemos uma gata, a
“Chiquinha”, que durou apenas um dia. Nosso portão da garagem era
eletrônico e de subir e descer. No mesmo dia em que a ganhamos, ela
desceu junto com o portão para nunca mais. Achei esse lance de ter gatos
muito sem graça! Foi nossa primeira e última experiência com eles.
Veio, então, a “Estrelinha”, uma cachorra vira-lata que recolhemos
da rua, a “Evita Perón”, uma Lhasa Apso cor de mel, roubada por um dos
vizinhos da minha avó materna, em Santana do Livramento, onde
passávamos nossas férias (só soubemos do roubo anos depois; pensamos

44
que ela tivesse se perdido). Tivemos também a “Beija”, uma poodle
branca, que mostrava clara preferência pela minha irmã do meio, e os
poodles creme “Bella” e seu filho “Clark Gable”.
Com o passar dos anos, percebi que voltar a morar em uma casa
com os meus filhos não seria possível nem a curto nem a médio prazo. O
nosso apartamento em Porto Alegre fica no Bom Fim, um bairro que dá
acesso a tudo que precisamos: supermercados, lojas, bancos, padarias,
pontos de ônibus e de táxis, hospitais, shoppings, farmácias. Não
precisávamos de carro para nos locomovermos. Não tinha a menor
intenção de vendê-lo e mudarmos para uma casa.
A maioria dos compromissos fora de casa eu fazia a pé. Até o
colégio das crianças era perto. Menos de seis quadras de distância. Por
tudo isso, trocar esse apartamento bem localizado por uma casa em um
bairro distante, precisando de carro para ir a qualquer lugar, não estava nos
meus planos.
Com a mudança para Brasília, fomos morar, mais uma vez, em um
apartamento, o apartamento emprestado da minha tia, na Asa Norte, no
Plano Piloto. Foram dois anos e outra mudança: desta vez para um
apartamento alugado na Asa Sul.
A vantagem do apartamento da Asa Sul era que ficava em frente ao
Dínatos COC e meus filhos só precisavam atravessar a faixa de pedestre
para irem para a escola. Praticidade total! Além disso, era bem mais perto
do meu trabalho no Senado Federal. Também ficamos dois anos nesse
apartamento e nos mudamos novamente. Desta vez, para um apartamento
no Guará. Essa última mudança ocorreu em agosto de 2014.
Quinze dias depois, ainda estávamos nos acostumando com o
apartamento, quando em uma ida à Feira dos Importados, vimos vários
filhotes de cães à venda. Sabendo de antemão que eu não iria concordar

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em comprar um filhote, as crianças só pediram para vê-los. Nada além
disso.
Concordei com o pedido e caminhamos lentamente, encantados,
vendo todos os filhotes que estavam sendo expostos. Avistamos, então, um
lindo filhote de boxer. Meus filhos perceberam como eu fiquei comovida
com o cachorrinho e, em um momento de insanidade, perguntei o preço.
Não estava caro. Fiquei dividida. Queria tanto lhes proporcionar essa
alegria, tinha adiado por tanto tempo esse pedido deles!
Em um impulso, comprei o filhote de boxer. Eles ficaram eufóricos
e eu também. Teríamos, finalmente, um cachorrinho. O único senão é que
ele teria de ser buscado no dia seguinte. Tudo bem. Somente um dia de
espera.
À noite, praticamente não dormi. Perdi o sono ao imaginar aquele
filhotinho crescendo em um espaço tão pequeno. Ele cresceria muito.
Comecei a imaginá-lo mijando e cagando em todo nosso apartamento.
Imaginei também como seria pequeno o espaço para ele se movimentar
livremente.
Boxer é uma raça para grandes espaços, de preferência, uma casa
com gramado. Seria estressante para ele morar tão confinado! E tinha
mais: eu ficava fora a maior parte do dia no trabalho e meus filhos tinham
o colégio. Quem limparia a sujeira do cachorro? Onde ele dormiria? Na
sacada?
Compreendi que tinha cometido um grave erro ao comprar esse
cachorro, mas não sabia como voltar atrás, não sabia como dizer às
crianças que o sonho deles seria, mais uma vez, adiado. Não queria
desapontá-los, mas não havia outra opção. Eu teria de desfazer o negócio.
Foi quando surgiu a idéia de trocar o filhote de boxer por um
cachorro menor. Bem menor. Conversei com o vendedor e só havia à

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venda um Lhasa Apso branco, de um mês e meio, pelo qual as crianças e
eu nos apaixonamos no minuto que o vimos. Peguei-o no colo e disse:
- Já é meu.
Maria Júlia e Bernardo exultaram. E como havíamos planejado,
voltamos para casa com dois potes de comida, uma coleira e o Gandhi.
Esse foi o nome escolhido por nós em meio a muitos nomes cogitados. Eu
só estranhei a conversa do vendedor.
Ele ficava repetindo que se o Gandhi tivesse qualquer problema, por
mínimo que fosse, que eu ligasse para ele que o seu veterinário de
confiança o atenderia. Ressaltou várias vezes para eu não levar o Gandhi a
outro veterinário ou não haveria garantia para a compra do cachorro.
Insistia também para eu manter a mesma ração que ele estava dando.
Dizia que se eu trocasse de ração, com certeza o Gandhi ficaria doente.
Achei muito estranha essa conversa, mas logo, logo, ela faria sentido.
Foram quatro dias animadíssimos. Todo branco, Gandhi parecia um
coelhinho, saltitava para todos os lados, era agitado, brincalhão, um
encanto. Engraçado como nos apegamos tanto a ele em tão pouco tempo.
No quinto dia, de madrugada, ele começou a vomitar. E não parou
mais. Ele se contorcia todo. Não quis esperar. Chamei meus filhos, minha
irmã, que estava de visita em minha casa, e fomos ao plantão veterinário.
Não sem antes ligar para o vendedor. Em vão. Ele não atendeu. Eram
quase três horas da manhã.
Ainda bem que não esperei raiar o dia. No plantão, foi feito exame
de sangue, constatando que Gandhi tinha Parvovirose, uma doença fatal na
maioria das vezes. Aquela conversa fiada de doença fez sentido, afinal. Ao
vender o filhote, ele sabia que o cachorro podia estar contaminado e,
mesmo assim, ele o vendeu para mim. E eu tinha provas disso: a

47
Parvovirose tem um período de incubação de quase quinze dias e eu estava
com o Gandhi há apenas quatro dias.
Foi apenas durante a conversa com o veterinário que fui informada
de que não se pode comprar filhotes na Feira dos Importados, uma vez que
não se pode confiar na procedência dos filhotes e nas condições de higiene
em que eles vivem. O preço baixo é resultado dessa falta de cuidado.
Em menos de uma semana, Gandhi morreu. Tive de dar a notícia
para os meus filhos. Assim como eles, eu estava inconsolável. Para minha
surpresa, Bernardo foi quem consolou a Júlia. Eu pensei que seria o
contrário. Muito abalada, Júlia disse que não queria outro cachorro e eu
respeitei sua decisão.
Em junho de 2015, quase um ano depois da morte do Gandhi, ao
passar por um Pet Shop no Sudoeste, vi um filhote de Shitzu, de
aproximadamente três meses. Parecia uma bolinha de pêlos marrom. Eu
me apaixonei por ele na hora e pensei que já era tempo de esquecer a
morte do Gandhi e olhar para frente.
Foi uma surpresa para meus filhos. Liguei para a Maria Júlia, que
estava no colégio, e disse que passaria para buscá-los. Ao mesmo tempo
que queria surpreendê-los, precisava da ajuda deles para carregar o
cachorrinho no carro. Peguei uma casinha emprestada no Pet Shop, mas
ele não parava de latir.
Maria Júlia ficou tão, mas tão surpresa com a novidade que não se
deu conta de que era um cachorro. Pensou que fosse um bicho de pelúcia
ou algo parecido quando o viu.
- Olha o seu Brioche, filha.
Esse foi o nome que ela disse que colocaria se tivesse outro
cachorro. Achei por bem deixá-la escolher o nome desta vez. Na outra,
quem escolheu fui eu. Até brincávamos que o Gandhi morreu cedo pois
48
era muito “espiritualizado”, que não colocaríamos mais nomes de pessoas
de bem nos animais. Riamos que, para viver bastante, o nome deveria ser
“Hitler, Stalin, Sarney”.
Brioche trouxe mais do que alegria para nossas vidas: ele trouxe
mais responsabilidade e mais amadurecimento para o Bernardo. Embora
ele não seja exclusivamente de ninguém – Maria Júlia, brincando, afirma
que é a “sua mãe” – foi o meu filho quem chamou para si praticamente
todos os cuidados com o Brioche. Sem reclamar ou ficar de má vontade.
Está sempre disposto a alimentá-lo, a brincar com ele, a passear.
Mesmo que isso signifique vários passeios por dia. Nosso cachorrinho é,
disparado, o animal que mais vive na rua. Há dias que passeia mais de seis
vezes!
Os passeios fazem parte da sua rotina diária: Brioche nos acorda às
7 horas da manhã, às vezes até antes, para a primeira volta do dia. Como
não consegue pular em nossas camas, ele fica em pé, nas duas patinhas
traseiras, e late para chamar nossa atenção. Já levei cada susto!
Invariavelmente, quem atende ao seu chamado é o Bernardo.
Mesmo sonolento, em jejum e em férias escolares, ele levanta
prontamente, acaricia o cachorrinho e cumpre o seu dever.
Preocupado com a saúde do Brioche, ele nos impede de alimentá-lo
com qualquer coisa que não a sua ração. E insiste em nos explicar que os
bichos, independente da espécie, não devem ser alimentados com comida
para humanos. E repete, sempre que surge a oportunidade:
- Mãe, não se esqueça de que ele é um cachorro!
É muito benéfico para meu filho que ele tenha essa lucidez, essa
compreensão sobre o mundo animal e a vida. Bernardo respeita
profundamente a natureza e suas leis, e vive em harmonia com tudo que o
cerca.
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Mais bichos à vista...

Quase um ano depois de termos comprado o Brioche, adotamos um


gatinho preto de apenas dois meses, o Oliver. Maria Júlia sempre
demonstrou interesse por gatos e quando eu o vi em um pet shop na Asa
Norte, eu me encantei na hora. Sabia que seria necessária uma adaptação
entre o Brioche e ele, mas pensei que isso seria fácil.

Como eu estava errada. Talvez por ser totalmente inexperiente em


tudo que diz respeito a gatos, fiz tudo da forma mais difícil possível. A
veterinária havia me explicado que eu deveria apresentar o gatinho aos
poucos para o Brioche e foi exatamente o que fiz.

No entanto, como Brioche é muito afoito, afobado e exageradamente


amistoso, ele se aproximava rápido demais, o que assustava Oliver e o fazia
se arrepiar todo em posição de luta. Para evitar tais enfrentamentos, eu os
deixava afastados. Oliver ficava trancado no quarto de meus filhos e
Brioche reinava absoluto pelo resto da casa. Não foi uma sábia decisão.

Os dias se passavam e nada de os dois se entenderem. Quando eu


dizia que era preciso deixar os dois se enfrentarem, Bernardo concordava
comigo, mas Maria Júlia ficava histérica com a possibilidade de eles
brigarem e ao primeiro sinal de briga entre eles, gritava e pedia para eu
separá-los. Essa rotina estava virando um estresse e eu já estava
desanimada, questionando se algum dia eles poderiam ficar juntos em um
mesmo ambiente.

Já fazia quase dois meses que ele estava lá em casa e nada de os


bichos se entenderem. Foi quando levei o Oliver para tomar vacina e fui
informada por outra veterinária de que estava fazendo tudo errado. O
enfrentamento entre eles, que tanto temíamos, era inevitável e deveria já ter
ocorrido. O que mais tínhamos medo – de que Brioche machucasse Oliver
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– não aconteceria, a veterinária me garantiu, mas nós teríamos de relaxar e
botá-los juntos para que se cheirassem e, enfim, perdessem a animosidade.

Expliquei, então, para minha filha que não adiaria mais esse
enfrentamento e que, se ela não quisesse fazer parte disso, que fosse para
seu quarto. Botei os dois na sala e Bernardo e eu ficamos de mediadores,
prontos para entrar na jogada caso a briga se tornasse feia. Bernardo, como
é de se esperar, é sempre o mais tranquilo em relação aos bichos.

Quando chegamos do veterinário com o Oliver, imediatamente


deixei ele e Brioche na sala. Oliver sibilou várias vezes, afastando Brioche
e nos arranhando quando tentávamos acalmá-lo. No entanto, em pouco
tempo, eles passaram a tolerar a presença um do outro e em poucos dias,
Brioche adotou Oliver como seu “gato”.

Se tivéssemos parado por aí, teríamos apenas um cachorro e um gato.


Seria o mais coerente da minha parte já que durante anos eu disse que não
teria bichos de estimação em apartamento. Enquanto estava em Porto
Alegre, cumpri minha palavra. Mas em Brasília não foi assim. Como diz
aquele ditado popular: depois de porta arrombada não adianta tranca de
ferro; depois de abrirmos uma, duas exceções, até onde podemos ir?

Era maio de 2017 e eu trabalhava como Chefe de Comunicação no


gabinete do Deputado Francischini, do Paraná, quando Maria Júlia me
mandou uma mensagem com uma imagem. Era um gatinho lindo, de
menos de um mês, que estava para adoção. Parecia um tigrinho, uma graça
mesmo. O texto dizia: Mãe, posso ficar com ele? Ah! Mãe, deixa, por
favor! E depois, ela acrescentava: pensa com carinho sobre isso, tá?

Nem tive tempo de pensar, embora saiba que não saberia devolver
um bichinho depois que ele estivesse em nosso apartamento, convivendo
conosco. Ao chegar em casa, o gatinho já estava lá, no quarto da Júlia,

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dentro de uma caixa de papelão. Sou coração mole mesmo e não consegui
devolver o gatinho. Em poucos minutos, eu já estava escolhendo o nome
dele com meus filhos. Já que Maria Júlia o tinha trazido para casa e ela
estava cursando Psicologia, sugeri vários nomes de psiquiatras, psicólogos
e psicanalistas famosos. Piaget, Pinel, Freud, Lacan...

Lacan seria, afinal! Bernardo aprovou o nome. Novamente, teríamos


de fazer uma intermediação entre gato e cachorro. O novo gatinho, no
entanto, lidava de outra forma com a aproximação do Brioche. Enquanto
Oliver sibilava e se preparava para o ataque, Lacan apenas chorava. Isso
mesmo! Lacan era dramático. Brioche não podia sequer se aproximar que
Lacan fazia um som de choro. Riamos muito. Brioche não fazia nada,
absolutamente nada, e Lacan reagia dessa maneira.

Portanto, entre esses dois não foi difícil a aproximação. Em pouco


tempo, Lacan não dava a mínima para o Brioche e, coincidentemente,
Brioche tinha fixação era pelo Oliver mesmo, seu gatinho preto.

Quando parecia que a parceria cão e gatos estava formada, eis que
surge um novo membro. Em uma madrugada de janeiro de 2018,
madrugada extremamente quente, Júlia e eu ouvimos um miado, que vinha
do outro lado da rua, no prédio em frente ao nosso. Olhei pela janela e vi
um gatinho cinza, de mais ou menos três meses, ainda bem pequeno, no
meio da rua.

Com medo de que ele fosse atropelado, pedi para Maria Júlia descer
e levar ração para ele. Ju estava só de pijama, mas eu disse que tudo bem,
que ela não precisava trocar de roupa. Não havia ninguém na rua naquela
hora. Era para ir bem rápido, deixar a ração para o gatinho e voltar.
Todavia, apareceu outro gato, bem maior do que o primeiro, e Maria Júlia
se dividiu entre um e outro. Era só para ela botar ração para os gatinhos e

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voltar, mas ela estava demorando. Vi quando ela entrou no prédio e o
gatinho cinza a seguiu. Pensei:

- Eta, Maju vai querer ficar com esse gato.

Dito e feito! Quase cinco minutos depois de ficar esperando por ela,
decidi ver o que estava acontecendo. Moramos no 3º andar e desci as
escadas à sua procura. Ela estava sentada nas escadas do térreo, com o
gatinho no colo. Fez uma cara de expectativa ao me ver se aproximar e
disse:

- Mãe, eu não sei o que fazer. Sei que você não vai aceitar mais um
gato, então, não sei o que faço.

Eu disse:

- Vamos levá-lo pra casa, Maju. Eu já esperava por isso. Estava


pressentindo que você iria pedir para ele ficar conosco.

E assim foi! De repente, de um gato adotado passamos a ter três e um


cachorro. Só que desta vez, acreditávamos que era uma gatinha. Mais
complicado ainda.

E para escolher o nome foi outra maratona: como já tínhamos os


nomes franceses Brioche e Lacan, queríamos manter a tradição. Tínhamos
de escolher nomes femininos desta vez. Concordamos com Piaf. A cantora
francesa Edith Piaf era fantástica e merecia nossa homenagem. Piaf seria.

Era hora, então, de vacinar os gatos e o Brioche. Aliás, já tinha


passado da hora. Demorei um pouco para tomar essa atitude, mas com três
gatos em casa, ela deveria ser tomada. Chamei Isabelle, veterinária de uma
clínica da Asa Norte, para vacinar os gatos em casa. Isso quase duas
semanas depois de Piaf ter se juntado aos outros. E a surpresa foi grande:
não tínhamos uma gatinha. Era mais um gato. Desta vez, erramos feio! De
53
Piaf, nosso gatinho passou a se chamar Prince, uma homenagem a outro
cantor, mas desta vez norte-americano.

“Mãe, estou namorando”

No início de junho de 2017, Bernardo chegou em casa numa sexta-


feira à noite com uma grande novidade:

- Estou namorando!

Maria Júlia e eu ficamos em choque, sem reação por alguns


segundos, olhando uma para a outra. Por fim:

- Como assim? Disse a irmã. Me conta tudo, acrescentou ela.

Então, com toda tranquilidade do mundo, Bernardo explicou como


tudo tinha acontecido. Há cerca de uma semana, ele soube por amigos que
uma menina do 1º ano, Mallena, estava interessada nele.

Pouco tempo depois de saber disso, uma amiga dela o procurou e


perguntou se ele gostaria de conversar com ela. Ele disse que sim e, uma
semana depois, na hora do recreio, a amiga em questão procurou Bernardo
na hora do recreio e disse que Mallena gostava muito dele.

Sem perder tempo e sem fazer rodeios, ele perguntou se ela gostaria
de namorar com ele. Diante da afirmativa, eles se beijaram ali mesmo, com
direito a abraço demorado depois do beijo. Ao ouvir esse relato, eu sentia
um misto de surpresa, de felicidade, de excitação, de suspense.

Sempre tive muito medo desse dia, o dia que meu filho estivesse
interessado em alguém e tivesse de tomar a iniciativa do relacionamento.

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Sempre tive medo de que esse dia chegasse, ele precisasse da minha ajuda,
e eu não pudesse ajudá-lo, não soubesse o que dizer a ele ou dissesse algo
que só dificultasse ainda mais a aproximação dos dois.

Não queria que ele fracassasse na primeira tentativa e isso o


marcasse a partir de então, tornando mais difícil o envolvimento em futuros
relacionamentos. Talvez eu tenha imaginado sempre o pior para que,
estando preparada para ele, pudesse lidar bem com qualquer resultado um
pouco menos desfavorável. Definitivamente, não imaginei que seria tão
fácil. Isso nunca passou pela minha cabeça.

Tudo é sempre tão complicado no autismo. Tarefas corriqueiras do


dia a dia se tornam verdadeiras batalhas quando o autismo está envolvido.
Falar, comer, dormir, tomar banho, ir para a escola, brincar com os amigos,
tudo que flui naturalmente em uma criança sem autismo é motivo de
angústia, de incertezas e de muita, muita luta para que aconteça com os
autistas. Por que esse aspecto da vida do meu filho seria fácil, então?

A irmã fez várias brincadeiras a respeito do “namoro”, debochando,


inclusive, da incompetência dela nessa área:

- Be, como assim? Como você pode namorar antes de mim? Eu que
deveria estar namorando, não você!

Eu fazia coro!

- É mesmo, Bernardo, sua irmã vai a todas as festas da faculdade, sai


direto com as amigas e nada. Você, que só vai ao colégio, arruma
namorada? Como pode?

E riamos os três, comemorando mais uma conquista na vida dele


que, nitidamente, sentia-se orgulhoso e animado.

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- Viu, minha filha, do que adianta ir a tantas festas e paquerar tanto
se o seu irmão, que não sai de casa, consegue namorar? Eu insistia,
reforçando a autoestima dele.

- Vou proibi-la de ir a festas! Conclui.

Uma sensação boa, de que tudo se ajeita com o tempo, tomava conta
de mim. A verdade é que nem tudo tinha que ser custoso para meu filho.
Ainda bem!

III – BE ABRE MÃO DAS CONTAS PARA ENTRAR NA


FACULDADE

Em uma caminhada comigo e com a irmã no Parque do Sudoeste, no


início de 2017, expliquei ao Bernardo que ele poderia entrar na faculdade
por meio das cotas para deficientes. Embora eu não o considere mais
autista clássico (ele reverteu praticamente todos os sintomas e tem uma
vida cheia de escolhas e de possibilidades), essa não é a recomendação da
Organização Mundial da Saúde (OMS) e dos médicos, que consideram a
doença incurável.

Dessa forma, meu filho tem alguns direitos que, em tese, facilitariam
seu acesso aos estudos e ao mercado de trabalho. No entanto, esses direitos
surgiram há bem pouco tempo e ainda existem lacunas importantes a serem
preenchidas. Muitas vezes, a intenção é até nobre, mas falta entendimento
sobre o assunto para que a política pública realmente se torne efetiva.

Nós, pais de autistas, lutamos diariamente para que as leis para


autistas sejam cumpridas e para que haja menos preconceito em relação a

56
eles. As cotas para deficientes ingressarem no ensino superior é uma
iniciativa nobre, mas no caso dos autistas, se não houver alguém que os
oriente na hora da prova ou se o tempo de duração da prova não for flexível
(normalmente eles precisam de mais tempo para fazerem as provas) ou se
as dúvidas não forem esclarecidas, de nada adiantará esta iniciativa. Será
perda de tempo. É preciso haver adaptação entre as necessidades dos
autistas e a realização do exame. Há muito ainda a ser feito.

Como disse anteriormente, ao mencionar para meu filho o direito que


ele tinha de ingressar na universidade por meio de cotas, ele disse:

- Mãe, eu não vou entrar por cotas não. Eu sou como todo mundo.
Vou estudar e passar como todo mundo!

A irmã fixou extasiada:

- Como eu tenho orgulho de você! Disse. E o abraçou com força. E


acrescentou:

- Esse é o meu menino!

Realmente, Be nos surpreendeu. Fiquei emocionada de ver o rapaz


sensato e determinado que ele se tornou. Ele não quer tirar vantagem de
nada, não procura o jeito mais fácil das coisas, não aceita injustiças e nem
se vitimiza. É raro você encontrar, hoje em dia, alguém que prefira tomar o
caminho mais correto em vez do mais fácil. Por isso tudo, tenho imenso
orgulho do meu filho.

Confesso, no entanto, que fiquei apreensiva. E se ele não passasse?


Isso afetaria sua autoestima? Como ele encararia essa derrota? Saberia lidar
com ela ou ficaria arrasado? Como mãe, eu deveria protegê-lo e dizer que
era melhor pegar o caminho mais fácil ou deixar ele tomar suas próprias

57
decisões, até porque ele se mostrou determinado e corajoso ao abrir mão da
cota para autista?

Sei que sua atitude foi nobre e fiquei muito orgulhosa. Algumas
pessoas, antes de saberem da sua escolha, comentaram comigo que
Bernardo não deveria nem hesitar em tentar ingressar na universidade por
intermédio das cotas. Eu já pensava diferente. Claro que não iria impor
nada a ele, mas assim como ele, achava que ele tinha uma opção.

Depois que ele me comunicou sua decisão, eu o apoiei totalmente e


rezei muito para que ele fosse vitorioso. Também fiz questão de deixar
claro que, se ele não passasse, eu pagaria um cursinho pré-vestibular para
ele sem problema. E disse que, acima de tudo, ele já era um vencedor, que
ele não tinha obrigação nenhuma de passar de primeira para a faculdade.
Além do Enem, havia o PAS. Ele também poderia recorrer a essa forma de
ingresso.

PAS – Programa de Avaliação Seriada

Em Brasília, os alunos têm a opção de ingressar na universidade de


três formas: por meio do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), do
vestibular para uma universidade específica, seja esta pública ou particular,
ou pelo PAS (Programa de Avaliação Seriada), oferecido pela
Universidade Nacional de Brasília (UnB).

O Programa de Avaliação Seriada (PAS) é um processo seletivo da


Universidade de Brasília (UnB), realizado ao longo dos três anos do ensino
médio regular.

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O Processo Seletivo de Avaliação Seriada (PAS), organizado e
executado pela Diretoria de Processos Seletivos (DIPS), é uma forma de
ingresso nos cursos de graduação presenciais da UFLA, no qual o
candidato é avaliado em três etapas consecutivas, ao final de cada ano do
Ensino Médio.

Existe ainda uma outra via de acesso para alguns grupos raciais e
para os deficientes: o sistema de cotas, garantido por lei. Como os autistas
foram recentemente incluídos no rol das deficiências, e por ser o autismo
considerado um transtorno incurável, apesar de o Bernardo estar
praticamente curado, ele teria direito a essas cotas.

O capítulo IV desta Lei garante aos portadores de deficiência o


direito à educação, com garantia de maior tempo de duração das provas,
oferta de provas em formato acessível à necessidade do estudante,
atendimento prioritário na instituição de ensino, etc.

Como a Constituição Federal de 1988 prevê o ingresso dos


deficientes nas universidades brasileiras

CAPÍTULO IV

DO DIREITO À EDUCAÇÃO

Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência,


assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e
aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo
desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais,
intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e
necessidades de aprendizagem.

Parágrafo único. É dever do Estado, da família, da comunidade


escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com
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deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e
discriminação.

Art. 28. Incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver,


implementar, incentivar, acompanhar e avaliar:

I - sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades,


bem como o aprendizado ao longo de toda a vida;

II - aprimoramento dos sistemas educacionais, visando a garantir


condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio
da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as
barreiras e promovam a inclusão plena;

III - projeto pedagógico que institucionalize o atendimento


educacional especializado, assim como os demais serviços e adaptações
razoáveis, para atender às características dos estudantes com deficiência e
garantir o seu pleno acesso ao currículo em condições de igualdade,
promovendo a conquista e o exercício de sua autonomia;

IV - oferta de educação bilíngue, em Libras como primeira língua e na


modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua, em escolas
e classes bilíngues e em escolas inclusivas;

V - adoção de medidas individualizadas e coletivas em ambientes que


maximizem o desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com
deficiência, favorecendo o acesso, a permanência, a participação e a
aprendizagem em instituições de ensino;

VI - pesquisas voltadas para o desenvolvimento de novos métodos e


técnicas pedagógicas, de materiais didáticos, de equipamentos e de recursos
de tecnologia assistiva;

VII - planejamento de estudo de caso, de elaboração de plano de


atendimento educacional especializado, de organização de recursos e
serviços de acessibilidade e de disponibilização e usabilidade pedagógica
de recursos de tecnologia assistiva;

VIII - participação dos estudantes com deficiência e de suas famílias


nas diversas instâncias de atuação da comunidade escolar;

IX - adoção de medidas de apoio que favoreçam o desenvolvimento


dos aspectos linguísticos, culturais, vocacionais e profissionais, levando-se

60
em conta o talento, a criatividade, as habilidades e os interesses do
estudante com deficiência;

X - adoção de práticas pedagógicas inclusivas pelos programas de


formação inicial e continuada de professores e oferta de formação
continuada para o atendimento educacional especializado;

XI - formação e disponibilização de professores para o atendimento


educacional especializado, de tradutores e intérpretes da Libras, de guias
intérpretes e de profissionais de apoio;

XII - oferta de ensino da Libras, do Sistema Braille e de uso de


recursos de tecnologia assistiva, de forma a ampliar habilidades funcionais
dos estudantes, promovendo sua autonomia e participação;

XIII - acesso à educação superior e à educação profissional e


tecnológica em igualdade de oportunidades e condições com as demais
pessoas;

XIV - inclusão em conteúdos curriculares, em cursos de nível superior


e de educação profissional técnica e tecnológica, de temas relacionados à
pessoa com deficiência nos respectivos campos de conhecimento;

XV - acesso da pessoa com deficiência, em igualdade de condições, a


jogos e a atividades recreativas, esportivas e de lazer, no sistema escolar;

XVI - acessibilidade para todos os estudantes, trabalhadores da


educação e demais integrantes da comunidade escolar às edificações, aos
ambientes e às atividades concernentes a todas as modalidades, etapas e
níveis de ensino;

XVII - oferta de profissionais de apoio escolar;

XVIII - articulação intersetorial na implementação de políticas


públicas.

§ 1o Às instituições privadas, de qualquer nível e modalidade de


ensino, aplica-se obrigatoriamente o disposto nos incisos I, II, III, V, VII,
VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI, XVII e XVIII do caput deste
artigo, sendo vedada a cobrança de valores adicionais de qualquer natureza
em suas mensalidades, anuidades e matrículas no cumprimento dessas
determinações.

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§ 2o Na disponibilização de tradutores e intérpretes da Libras a que se
refere o inciso XI do caput deste artigo, deve-se observar o seguinte:

I - os tradutores e intérpretes da Libras atuantes na educação básica


devem, no mínimo, possuir ensino médio completo e certificado de
proficiência na Libras; (Vigência)

II - os tradutores e intérpretes da Libras, quando direcionados à tarefa


de interpretar nas salas de aula dos cursos de graduação e pós-graduação,
devem possuir nível superior, com habilitação, prioritariamente, em
Tradução e Interpretação em Libras. (Vigência)

Art. 29. (VETADO).

Art. 30. Nos processos seletivos para ingresso e permanência nos


cursos oferecidos pelas instituições de ensino superior e de educação
profissional e tecnológica, públicas e privadas, devem ser adotadas as
seguintes medidas:

I - atendimento preferencial à pessoa com deficiência nas


dependências das Instituições de Ensino Superior (IES) e nos serviços;

II - disponibilização de formulário de inscrição de exames com


campos específicos para que o candidato com deficiência informe os
recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva necessários para sua
participação;

III - disponibilização de provas em formatos acessíveis para


atendimento às necessidades específicas do candidato com deficiência;

IV - disponibilização de recursos de acessibilidade e de tecnologia


assistiva adequados, previamente solicitados e escolhidos pelo candidato
com deficiência;

V - dilação de tempo, conforme demanda apresentada pelo candidato


com deficiência, tanto na realização de exame para seleção quanto nas
atividades acadêmicas, mediante prévia solicitação e comprovação da
necessidade;

VI - adoção de critérios de avaliação das provas escritas, discursivas


ou de redação que considerem a singularidade linguística da pessoa com
deficiência, no domínio da modalidade escrita da língua portuguesa;

VII - tradução completa do edital e de suas retificações em Libras.

62
Uma linguagem ainda formal

Embora Bernardo tenha melhorado muito ao longo dos anos, sua


linguagem ainda é formal. Principalmente para um adolescente. “Exato”,
“minha progenitora”, “como queira”, “cópula”, “órgãos genitais”, “De fato
é” são palavras ou expressões que ele usa com frequência. Sim ou não é o
que ele menos diz. Prefere responder com “exato” e “de fato é”.

Essa formalidade exagerada diminuiu muito nos últimos anos. Em


casa, ela quase não existe. Percebi que ela retorna com força em alguns
momentos. Quando Bernardo participa de eventos do Movimento Orgulho
Autista Brasil (MOAB), do qual faço parte - inclusive já fui Diretora de
Relações Internacionais - no início, ele recorre à formalidade. Não acredito
que seja intencional. Muito pelo contrário. Parece mais um mecanismo de
defesa, um tatear a plateia e o que pode vir dela em termos de
receptividade.

Considero essa formalidade um dos sintomas mais difíceis de serem


revertidos no autismo: essa insistência em nomear os objetos com seus
nomes técnicos ou científicos em vez da forma coloquial usada por todo
mundo, principalmente pelos adolescentes como ele. Meu filho não se
sentia à vontade para falar seios ou peitos e preferia falar glândulas
mamárias. O mesmo acontece com qualquer termo que possua conotação
sexual, como coito. Em vez de falar transar, ter relação sexual, fazer amor,
Bernardo fala coito. Com isso, há um distanciamento da coisa toda; ele não
se apropria dela. Pelo contrário; ele consegue afastá-la ainda mais de si.

Em seus discursos, quando surgem os primeiros risos e aplausos


depois que começa a falar, ele se sente mais à vontade e também fica mais
informal. Meu filho participou de diferentes eventos e sempre foi muito
acolhido por todos. Ele encanta por seu jeito amoroso e atencioso. O

63
primeiro Desabafo Autista Asperger do qual participou, e que eu estive
presente, foi no início de 2016, em uma escola pública da Asa Sul. Estavam
presentes alguns pais e autistas adolescentes.

Suas cartas para mim refletem essa formalidade que tem diminuído
bastante ao longo dos anos, mas que ainda existe no seu jeito de se
comunicar.

No meu aniversário de 2016, recebi uma longa carta.

Minha queridíssima mãe,

É extremamente difícil para mim expressar todos os meus sentimentos por


você. De fato, tal tarefa jamais será capaz de ser executada de forma
completa, uma vez que eles são tão numerosos e violentamente intensos que
não podem ser expressos em sua totalidade. Além disso, tentar fazê-lo se
torna mais difícil para minha pessoa ao decorrer dos anos pois devo elaborar
constantemente novas formas de garantir que tua pessoa possa se sentir
revigorada ao ler minhas cartas de forma cada vez mais intensa, recordá-la
da melhor forma possível da noção que lhe forneço da grandiosidade de meu
amor por você e das características cada vez mais variadas a elas, pois um
dos maiores temores que tenho em minha vida compreende a possibilidade de
não mais ser capaz de alegrá-la, com o passar do tempo, através desses
“fragmentos industrializados de madeira” que confecciono para tua pessoa.
Por quê? A resposta é simples. Como essas cartas estão entre as únicas
coisas que eu sou capaz de lidar por ter menos de 18 anos e nenhum salário
fixo e elas representam, para mim, formas gratificantes de tentar lhe
mostrar meus sentimentos por você, seria extremamente dolorosa para mim a
incapacidade delas de significarem algo para tua pessoa. Mas o esforço em

64
impedir que isso ocorra vale infinitamente a pena. Uma pessoa como você
merece isso e muito mais em sua vida. Por isso, posso lhe garantir que cartas
como essa não terão sua produção cessada até o momento de minha morte.

Você é a melhor pessoa que eu conheço. Isso é um fato inegável.


Nunca fui nem serei capaz de conhecer uma pessoa tão amável, respeitosa,
bela, carinhosa, inteligente, sábia, sincera, altruísta, divertida, doce e
simpática quanto a tua. Sempre tentando ajudar os próximos sem desejar
nada em troca, lendo variadas obras literárias de maneira frequente,
escrevendo outras, tentando garantir a educação e a felicidade de minha
pessoa, minha irmã e nossas bolas de pêlo ambulantes e se importando com
os outros, você evidencia a todos a mulher exemplar que é. Ninguém foi nem
será um ser tão valioso e bem desenvolvido e planejado quanto o teu. Como
posso afirmar isso? Por conta de um fato extremamente simples, de fácil
compreensão, que deverá ser gravado em tua belíssima memória da forma
mais eficiente possível, minha amada: você é perfeita!! Não há mais
nenhuma mudança capaz de melhorá-la ou aperfeiçoá-la a ser efetivada.
Tua pessoa é tão boa mas tãããão boa que, por não lhe ser necessária, não
surtirá efeito algum em você. Levando isso em consideração, eu gostaria
muitíssimo que fizesse um único favor durante toda tua vida à minha
pessoa: que tenha uma vida feliz e saudável sendo você mesma e com
pessoas que ama.

Em meio a tudo isso, além de tentar expressar meus sentimentos e


pensamentos perante você nessa carta, sinto a necessidade de me desculpar
com tua pessoa. Não sou um filho tão bom quanto esperava e achava que
devia ser para uma pessoa maravilhosa como você, principalmente esse ano.

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Reduzi meus estudos em meu colégio, agi de forma impaciente com muita
frequência, expressei falácias e lhe entreguei minha carta anterior para você
incompleta, completando-a apenas alguns meses depois. Caso essa carta
também seja entregue incompleta ou atrasadamente para tua pessoa, então,
não restará dúvidas que sou um péssimo filho para você. Além disso,
também gostaria de me desculpar por ter agido como um vagabundo
anencéfalo ao faltar a dezenas de aulas letivas e gastar seu dinheiro com
avaliações de segunda chamada. Espero poder ser uma pessoa melhor nos
próximos anos, já que nunca senti tanto nojo de mim mesmo quanto esse ano
e sei que você merece o melhor filho do Cosmos.

Penso dessa forma principalmente ao me recordar do quão me


ajudastes ao decorrer de minha vida. Agradeço ao Criador pela forma como
meu nascimento ocorreu, pois em meio a ela pude conhecer as maiores obras-
primas do Cosmos: você, Maju e meu pai. Além disso, recebi a oportunidade
de conviver e aprender com vocês de forma tão intensa e gratificante.
Mesmo estando absurdamente distante da perfeição humana, tenho a
obrigação de dizer “obrigado” a Deus, pois se não fosse ele, eu não poderia
viver ao lado de pessoas tão maravilhosas quanto vocês, que servem como
exemplos de seres que atingiram uma perfeição além daquela capaz de ser
compreendida pela humanidade como um todo. Obrigado por tentarem me
tornar uma pessoa mais evoluída no sentido benéfico (já que nem toda
evolução é capaz de render muitos benefícios), por me auxiliarem quando
quis e/ou precisei disso, por tudo! Minha dívida com você é eterna, mas meu
amor por você e o prazer que viver com tua pessoa gera em mim também. Te
amo! Feliz Aniversário!!

66
Com muito amor,

Bernardo José Mendina de Souza Martínez

P.S: Sinto muito se a quantidade menor de gravuras nessa carta


perante as outras lhe incomodou. Buscarei corrigir tal situação.

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68
No Dia das Mães de 2017, recebi mais uma vez uma carta de meu filho. É
costume dele escrever para mim nessas ocasiões.

Querida mãe,

Apesar de ser extremamente difícil para mim expressar todos os meus


sentimentos por você, por amor à sua pessoa, eu tentarei fazê-lo da melhor
forma possível, além de você merecer algo assim mais que qualquer outra
pessoa nesse mundo.

Devo lhe dizer que você é a melhor coisa a existir em minha vida. Não
há nada que eu não ame nem há nada que eu seja capaz de desprezar em
você. Para mim, você é perfeita. Nunca existiu nem existirá uma pessoa
inteligente, bela, simpática, amável, honesta, sincera, determinada e sábia
quanto você: seu valor seria indefinido, caso fosse uma jóia, apesar de já tê-
lo como pessoa. Ultrapassa o de mais de um zilhão de diamantes.

O melhor dia de minha vida foi o de meu nascimento, pois pude


conhecer minha irmã, meu pai e você, que são e sempre serão as melhores
pessoas que eu já conheci. Você é a minha luz. Aquilo que me traz felicidade
quando eu estou triste, que me dá um rumo em minha vida quando me sinto
perdido, que faz com que eu me sinta bem comigo mesmo quando me
desprezo mais que tudo, que faz com que eu sinta prazer pela minha vida
quando quero me matar, que traz todas as coisas positivas dela quando ela
está um caos.

Você é uma das pouquíssimas coisas capazes de me manter vivo. Se


você morresse, eu também morreria, pois não sou capaz de viver sem sua

69
pessoa. Sem sua existência, minha vida não faria mais sentido algum. Você
e a minha irmã são as únicas coisas capazes de dar um rumo a ela. Te amo
muito. Feliz dia das mães.

Amorosamente,

Bernardo José Mendina de Souza Martínez.

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71
Certo X Errado

Apesar de eu nunca ter imposto a meus filhos uma crença religiosa,


sou católica e desde cedo eu os ensinei a rezar e a agradecer a Deus por
todas as coisas boas de suas vidas, especialmente agradecerem por suas
vidas e saúde.

Os dois foram batizados na Igreja Católica quando bebês. Era


também a religião do meu marido, cuja família era bem religiosa, embora
eu não tenha conhecido sua mãe e seu pai. Ela era velhinha e morava na
Argentina quando Hector e eu nos conhecemos e estava em processo de
demência. Ele tinha morrido há poucos anos.

Apesar do batismo dos meus filhos, eu nunca obriguei ou insisti para


que os dois frequentassem a igreja, tampouco escondi deles que essa era
minha opção, mas que eles poderiam escolher outra religião se fosse a
vontade deles. Essa era a minha opção, mas não precisava ser a deles.

Até porque eu sempre me interessei pela doutrina de várias religiões


e lia um pouco a respeito. O Espiritismo, seja o Kardecismo ou a Umbanda,
sempre atraíram minha atenção.

Sempre fui muito aberta e receptiva a outras religiões, acreditando


naquela máxima de que não há religiões ruins e sim pessoas ruins dentro
das religiões. Portanto, a tolerância religiosa sempre foi fundamental para
mim.

Ao nos religar a Deus – esse é o objetivo das religiões – todas


cumprem um papel de conforto e de esperança e de significado para a vida.
Esses sentimentos – de pertencimento e de significado – têm se mostrado
essenciais para tempos tão instáveis como os atuais, com tantas mudanças
em tão pouco tempo.

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É preciso nos adaptarmos a um novo estilo de vida, no qual há pouco
tempo para processarmos tantas mudanças. É preciso nos adaptarmos a esse
mundo tecnológico que, se por um lado nos traz agilidade, progresso e
encurta distâncias, por outro nos desumaniza sensivelmente.

Celulares, tablets, ipods estão substituindo a comunicação olho no


olho, interação indispensável para praticarmos o amor ao próximo,
essencial para conhecermos esse “outro” que se afasta cada vez mais de
nós. É nesse contexto de isolamento que a religião se torna tão importante.

Ela evita nosso embrutecimento, reafirma valores, reafirma


princípios relegados a segundo plano, dando um norte sobre o que é o certo
e o errado, especialmente em termos de convivência social.

Só com regras bem definidas sobre o que pode ou não fazer em


sociedade, sobre o respeito que devemos ter em relação ao outro e a
necessidade de um olhar para a diversidade, um olhar acolhedor frente às
diferenças é que o convívio social se torna possível.

A retidão e a preocupação com o outro sempre foram características


marcantes de meu filho. É até difícil fazê-lo entender que nem tudo na vida
é preto e branco, que cada caso é um caso e deve ser analisado com
cuidado, que é preciso ser mais flexível. Essa obsessão pelo que é certo ou
errado, bom ou ruim, honesto ou desonesto é, em certa medida, outro
sintoma do autismo.

A rigidez para analisar e repensar determinados assuntos, possuir um


código moral rígido e ter algumas “certezas” acalmam e tranquilizam meu
filho. Sentir-se seguro passa por obtenção de algumas certezas. A bem da
verdade, todos nós precisamos de algumas “certezas” para nos sentirmos
seguros. Para os autistas, elas são ainda mais necessárias.

73
Assim como na Copa do Mundo de 2014, sediada o Brasil, saber
quem era o melhor jogador, Neymar ou Messi, o tranquilizava, saber que
políticos são honestos também o deixa menos ansioso e, cada vez que um
aparecia na televisão devido aos horários políticos gratuitos, ele me
perguntava:

- Esse deputado é honesto?

Ou:

- Mãe, você conhece esse deputado? Não é corrupto, não é mesmo?

Ao que eu, muitas vezes, dizia que não conhecia o trabalho daquele
parlamentar e que não podia afirmar se ele era honesto ou não, embora
neste país seja muito raro um parlamentar honesto. É tudo muito relativo.

O próprio sistema político incentiva imoralidades e ilegalidades, já


que é muito dispendioso e cheio de brechas para interpretações. Por ter
trabalhado nos últimos sete anos como assessora parlamentar e assessora de
imprensa na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, assessorando
diretamente alguns parlamentares, Bernardo simplifica a questão, como se
eu conhecesse “todos”, como se eu fosse capaz de garantir sua honestidade.

O senador Cristovam Buarque não é exceção. Mas por ter escrito o


prefácio do meu livro ‘‘O autismo tem cura?’’, ele goza de relativa
confiança entre nós. Não escolheria um político reconhecidamente corrupto
para escrever o prefácio do meu livro e Be sabe disso.

- Já sei. O Cristovam é honesto. E por falar nisso, quando irei


conhece-lo?

Estou devendo esse encontro entre os dois.

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Mais tarde, em 2017, quando passei a trabalhar como assessora de
imprensa do Delegado Francischini, Deputado Federal do Paraná, Bernardo
se alegrou muito. Eu comentava com ele como Francischini era um
deputado sério, preocupado com o combate à corrupção e que tinha uma
pauta importante sobre segurança pública.

Algumas coincidências nos ligaram ainda mais: Francischini também


tem um filho autista e o nome dele também é Bernardo. Só que
Bernardinho, quando comecei a trabalhar no gabinete, tinha apenas seis
anos. Um menino ainda. Felizmente, seu prognóstico é animador.
Bernardinho tem tudo para ficar como meu filho: um ser humano
independente, feliz, bem aceito socialmente e cheio de possibilidades na
vida.

Como comentei na introdução de meu livro, Francischini foi o


relator, na Câmara dos Deputados, da lei que idealizei: a Lei 13.438/17, Lei
do Diagnóstico Precoce, essencial para milhões de brasileiros. Embora eu
não trabalhe mais com ele, que atualmente é Deputado Estadual no Paraná,
nossa parceria continua. Sei que posso contar com ele sempre,
especialmente no que se refere à causa autista.

75
Pronomes, concordâncias e afins

Meu filho demorou muito para falar. Foram muitos anos de angústia
até que Bernardo formulasse frases com sentido e realmente se
comunicasse conosco. Ele tinha seis anos quando isso ocorreu. Minha
principal preocupação era a de que ele não recuperasse o tempo perdido e
tivesse dificuldades de linguagem e de aprendizado. Nada poderia ser mais
longe da realidade.

A partir do momento que começou a falar, ele recuperou o tempo


perdido. Ainda de acordo com seu código rígido de conduta, que exige que
ele faça o que é certo e busque constantemente a perfeição, durante muitos
anos ele não admitia falar um palavrão sequer e escrevia e falava português
corretamente, em conformidade com as regras gramaticais.

A adolescência trouxe a liberação para falar palavrões, embora isso


só ocorra em raros episódios, principalmente em episódios de raiva,
perplexidade ou fortes emoções. Contudo, nada mudou em relação ao seu
falar, cujo português continua irretocável. O mais impressionante é que ele
não se esforça para ser assim. Não é uma atitude pretensiosa ou pedante.
Talvez por isso mesmo pareça tão natural nele, algo tão espontâneo apesar
de ele só ter 20 anos.

A primeira vez que me chamaram a atenção para seu vocabulário,


que é muito rico para sua idade, foi quando ele estava no ensino
fundamental. A diretora do Colégio Uruguai, escola pública de Porto
Alegre, onde meus filhos estudaram três anos, marcou uma entrevista
comigo.

Ela queria saber o que eu “fazia” para que o Bernardo falasse tão
bem! Ele tinha apenas oito anos e fazia a concordância verbal e nominal
sem nenhuma dificuldade.
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Usava os pronomes e preposições perfeitamente ao contrário dos
demais alunos da sua idade. Inclusive, ele não errava na colocação
pronominal, que muitas vezes pode ser trabalhosa ao definir regras bem
específicas no que se refere aos objetos diretos e indiretos. Ele dizia:

- Mãe, vamos levá-LO? Como posso ajudá-LA? Eu posso fazê-LO!

Essa colocação pronominal correta, formal, é uma característica do


seu jeito de falar. Deve contribuir, e muito, para que as pessoas o achem tão
educado.

Claro que as atitudes dele são fundamentais nesse sentido – Be é


gentil, dá lugar para as pessoas passarem, ele as abraça, beija, pergunta
como elas estão, diz “por favor”, “obrigado”, “agradeço muito” e outras
expressões parecidas. Recentemente, tenho ouvido com mais frequência
esta indagação:

- O Bernardo é estrangeiro? De onde ele é?

Ao pegarmos o 99 POP (aplicativo similar ao Uber), o motorista


reconheceu Bernardo e disse que já o tinha levado para a faculdade. Ele
também mora no Lúcio Costa, bem perto da gente, e conversamos um
pouco. No final da conversa, ele disse:

- Até pensei que ele fosse argentino por causa do sotaque.

Mais um que acha o sotaque do meu filho diferente.

Na padaria em frente do nosso prédio, que ele frequenta diariamente,


muitas vezes duas ou três vezes por dia (há lanches deliciosos lá), ele tem
um fã-clube. No início, também me perguntavam se ele era estrangeiro.
Diziam que ele era educado demais, que ele era cativante. Ele é
constantemente elogiado por todos que o conhecem. Até frequentadores da
padaria o conhecem. Be é muito popular. Ele faz questão de falar com
77
todos. Conhece-os pelo nome, se interessa pela vida deles, pergunta como
eles estão, ouve-os com atenção. Brincamos que ele será candidato a algum
cargo público algum dia. Tem muito carisma.

Participação em eventos sobre autismo

Por se expressar tão bem, Bernardo é convidado a dar seu


depoimento em eventos sobre autismo. A primeira vez que falou em
público sobre Autismo foi no lançamento do meu livro ‘‘O autismo tem
cura?’’ em setembro de 2015. De lá para cá, não parou mais.

Em 2016, além de participar de uma roda de conversa com pais de


autistas em Porto Alegre em janeiro, foi ao Desabafo Autista/Asperger do
Movimento Orgulho Autista Brasil (MOAB) em Planaltina em setembro.

Também participou da Mesa redonda “Conversa com Autistas” em


19 de setembro de 2017. Bernardo era o único adolescente. Dos cinco
participantes, era o único com menos de 21 anos. Os demais tinham entre
23 e 35 anos de idade.

No UniCEUB, Bernardo participou da Mesa Redonda “A atuação do


Psicólogo frente ao autismo”, realizado em 06 de outubro de 2017. Foi um
projeto de alunos de Psicologia da instituição para troca de conhecimentos
e experiências sobre o assunto. Foi gratificante vê-lo sentir-se tão à vontade
no meio dos universitários.

Em julho de 2018, Bernardo foi convidado a dar seu depoimento na


audiência pública Políticas Públicas para Autistas, realizada na Câmara dos
Deputados. Na ocasião, ele falou sobre a importância de se priorizar não

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somente os autistas leves como ele, mas todos os autistas do espectro,
especialmente os autistas severos, tão carentes de políticas públicas
efetivas.

Dentre outras questões abordadas, falou-se sobre a importância de se


criar um Centro de Referência do Autismo, um lugar onde os autistas dos
mais diversos graus possam passar o dia e serem estimulados
constantemente. Não é possível que os autistas severos sejam largados a
própria sorte, jogados em lugares que mais parecem depósitos, sem o
menor estímulo e cuidado.

O governador Rodrigo Rollemberg foi muito criticado por pedir de


volta a sede que havia sido emprestada para a Ama-DF, localizada no
Riacho Fundo. Além de a instituição não contar com verba para a
manutenção do local, perderia também o único espaço de atendimento
diário de autistas severos.

Eu também fui convidada a dar meu parecer sobre as políticas


públicas a serem adotadas e reforcei a fala de meu filho. Quando fomos
questionados se gostaríamos de fazer nossas declarações finais, Bernardo
improvisou. Ninguém estava esperando o que ele disse a seguir, muito
menos eu:

- Governador, se você não se importa com a causa dos autistas, pelo


menos, finja que se importa!

Olhei para ele surpresa e, na hora, eu me lembrei de uma frase


repetida inúmeras vezes pelo Deputado Federal Alberto Fraga, que dizia:

- Governador, respeita o povo!

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Deu vontade de rir! Foi uma excelente colocação do meu filho. Mais
uma prova de que ele estava ouvindo atentamente a tudo que acontecia a
nosso redor e às reivindicações dos outros palestrantes.

Quando acabou a audiência, muitas pessoas vieram cumprimenta-lo.


Ele correu para meu lado e perguntou:

- Mãe, eu vou ser processado?

- Ué, Bernardo, por que você está com medo de ser processado?

- Pelo que eu falei do governador, mãe

Aí, eu disse:

- Vamos fazer o seguinte. Vamos perguntar para meu amigo,


Vinicius Mariano, que é advogado!

- Vinicius, Be está com medo de ser processado pelo que ele disse
em relação ao governador. O que você acha?

Vinicius respondeu na lata:

- Be, você disse o que todos nós gostaríamos de falar. Você foi
maravilhoso!

Bernardo, então, ficou mais tranquilo.

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Em 23 de abril de 2017, Bernardo participou de atividades relacionadas ao
Mês da Conscientização do Autismo 2017, a pedido da coordenadora do
MOAB em Ceilândia/DF, Mell Batista.

Já em 19 de setembro do mesmo ano, Bernardo participou da mesa-redonda


“Conversa com Autistas”, no VI Fórum de Educação Profissional e
Tecnológica Inclusiva, durante o CONECTA IF.

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No UniCEUB, Centro Universitário de Brasília, participou da mesa-
redonda “A atuação do Psicólogo frente ao autismo”, realizada durante aula
da disciplina Fórum de Debates I, em 06 de outubro de 2017.

Em 28 de setembro de 2019, Bernardo participou do I Seminário


Internacional do IEPEBR e The Nora Cavaco Institute por
videoconferência. Foi uma nova experiência. Ele foi um dos primeiros a
falar no evento e, mesmo tendo falado pelo facetime, sentiu-se à vontade.

Be é muito espontâneo em suas respostas e isso cativa as pessoas.


Ele explicou que pouco se lembra do tratamento psicanalítico em si, pois
era muito pequeno: ele começou o tratamento aos 2 anos de idade e
terminou com quase 10 anos. Segundo seu psicanalista, Alfredo
Jerusalinsky, é muito comum esse esquecimento já que Bernardo mudou
tanto ao longo dos anos. Em nada lembra o menino arredio e isolado de
antigamente. Muito pelo contrário. Be tem o dom da oratória.

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Outra carta de aniversário

No meu aniversário de 46 anos, em outubro de 2017, recebi, como de


costume, uma carta de meu filho. Na capa, estava escrito: Feliz
Aniversário, mãe!! Te amo ao infinito e além!! (como diz o personagem do
brinquedo BuzzLightyear do filme ToyStory, da PixarStudios).

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Brasília, Distrito Federal, 17 de outubro de 2017.

Minha amada, preciosa e querida mãe,

Caso eu pudesse, tentaria expressar à tua pessoa, uma noção


relativamente ampla de meus sentimentos e opiniões, perante ela. No
entanto, como fiz uso de um grande espaço da capa desse fragmento
industrializado de madeira e tenham conhecimento do fato de que meus
desenhos lhe são interessantes assim como a possibilidade de que não haja
tanto sofrimento com o conteúdo, geralmente, extenso dessas cartas, em
nome da felicidade e da satisfação a ti pertencentes, tentarei arrancar
sorrisos e expressões faciais de alegria, felicidade e orgulho de teu belo e
incomparável rosto.

Você é a maior maravilha capaz de existir neste Multiverso. Um


indivíduo imperfeito e defeituoso como eu ser capaz de ter a presença de um
ser iluminado, batalhador, honesto, poderoso, gentil, amável, carinhoso,
divertido, bondoso, carismático, inteligente, sábio, altruísta, corajoso,
atencioso, humilde, belo, paciente e determinado como você, minha ilustre
mãe, é, de longe, a maior graça que um ser humano poderia receber de Deus.
Não importa quantas vezes tua pessoa tente me ludibriar com a alegação
falaciosa de que ela é imperfeita e com uma abundância de defeitos em tua
constituição material e imaterial. Para a minha, VOCÊ É E SEMPRE
SERÁ PERFEITA!!O que você afirma serem teus defeitos e imperfeições
não são nada além de excentricidades tuas.

Pode até ser que eu já deva ter expressado isso para ti em outras
cartas, porém, caso isso seja verdade, é extremamente importante que tais

84
fatos estejam gravados em tua memória por infinitas eternidades. Assim,
entenderás a razão pela qual tantas intenções boas que tivestes para mim
puderam, por ti, serem convertidas em benefícios para minha vida de forma
tão bem-sucedida e pela qual eu sofro tanto por não ser o filho que gostaria
de ter sido para tua pessoa. No que diz respeito ao primeiro questionamento,
digo que ele deve ser respondido pelo fato de que um ser perfeito, completo,
infalível como você, não é capaz de gerar nada além de graças e milagres em
minha vida; o segundo pelo fato de que, além de nunca ter conseguido me
converter no filho perfeito (nem no semi-perfeito), encontrando falhas,
defeitos, impurezas na minha constituição material e imaterial, estou seguro
de que as poucas virtudes que eu detinha apodreceram, o que pode ser
comprovado pela facilidade que estou tendo em desenhar criaturas
hediondas como demônios e pelo fato de as pessoas, em geral, preferirem
enxergar minha pessoa como pouco séria ou irritante do que gentil e dotada
de variados atributos intelectuais como antigamente. Na verdade, nem
mesmo essa carta está tão boa quanto deveria estar para ti.

Você é a melhor coisa que Deus poderia trazer para minha vida. Se há
algo que sempre me motiva a melhorar como pessoa, viver e tentar garantir
que os indivíduos ao meu redor não sofram, é a tua existência. Não posso
nem devo tentar viver sem ela. Minha alma e meu corpo hão de perecer sem
sua presença, companhia e felicidade. Você é minha inspiração. Você dá
significado à minha vida. Você é meu tudo, e por conta disso, EU TE AMO
AO INFINITO E ALÉM e BUZZ LIGHTYEAR!! FELIZ
ANIVERSÁRIO!! “Envelheço na cidade”!!

Com todo o amor que há em meu ser por ti,

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Bernardo José Mendina de Souza Martínez

P.S: Sinto-me um monstro por ter envergonhado o Gui. (explicar o que


aconteceu.........)

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Maria Júlia faz 19 anos

Maria Júlia e Bernardo são muito unidos. Repito constantemente que


Maju nasceu pronta. Ela foi a irmã que Be precisava para se inserir no
mundo com confiança e amor.

Bernardo, como não poderia deixar de ser, escreveu uma carta bem
carinhosa para a irmã, que tem sido seu referencial para quase tudo na vida,
principalmente para os estudos. Maju é extremamente focada, dedicada à
vida acadêmica e Be se espelha nela constantemente.

Na carta, ele escreveu:

Feliz Aniversário, Maju!! Eu te amo ao infinito e além!!

“Ah, Maju. Como uma entidade divina como você é capaz de existir
e de me dar tantas razões para viver? Para estar vivo e poder lembrar de sua
maravilhosa existência?” – Desconhecido, Autor.

Maju, uma musa poderosa

1º lugar (melhor irmã de toda a existênciaj)

“Yes, we can”. – Obama, Barack.

“You are beautiful”. – Blunt,, James.

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Maria Júlia também havia escrito um bilhete de aniversário para Be em 28
de julho de 2017. Ela dizia:

Be, meu irmão mais lindo mundo, Feliz Aniversário! Eu espero que você
goste desse “mini-café da manhã” que eu arrumei pra você! Nunca se
esqueça que eu te amo muuuuuito, mesmo não sendo às vezes tão carinhosa.
Você e a mãe são as coisas mais importantes da minha vida. Você me traz
muita felicidade e eu não quero nunca que você sofra, então, saiba que pode
contar comigo sempre e sempre falar dos seus problemas para mim. Você já
está fazendo 17 anos e é um menino lindo, por dentro e por fora! Tenho
muito orgulho de você e da pessoa maravilhosa que você se tornou! Espero
que você aproveite bastante esse aniversário com seus amigos. Te amo muito,
Maju.

Mais um Dia das Mães

Bernardo, como sempre, escreveu uma linda carta para mim no Dia
das Mães. No entanto, essa carta só foi entregue perto do meu aniversário,
no final de outubro. Be está no último ano do Ensino Médio, ele é
extremamente perfeccionista e demorou um longo tempo para me entregá-
la.

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A carta dizia:

Minha amada mãe,

Eu sinto muito por não ter terminado tua carta antes, mas estive tão
preocupado com a ideia dessa carta não ser boa o suficiente para que ti que
fiquei com medo de tentar sequer escrevê-la. Decidi realizar essa tentativa
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por acreditar que você merece tudo o que há de infinitamente bom nessa
vida e em outras e perceber que, em meio a essa espera, estou fazendo você
sofrer, o que é a última coisa que eu desejo nesse mundo.

Você é a melhor pessoa que eu conheço, mãe. É a mãe que eu agradeço


por ter tido a Deus, a melhor que eu conheço e, com toda certeza, existente
no universo, a melhor de todas. Tu te empenhastes em educar a mim e a
Maju, dar-nos a melhor vida que poderíamos ter e nos tornarmos pessoas
boas da melhor forma possível mesmo sem o nosso pai, com problemas
financeiros e o meu autismo. Você é uma mulher batalhadora, mãe. Você é
extremamente forte. Eu gostaria de ser corajoso e forte como você. Devo
agradecê-la por existir e trazer tantas coisas boas a minha vida. E é uma
avó muito fofa para com Brioche, Oliver, Lacan e Prince.

Eu te amo muito, mãe. Tenho muito orgulho de ter alguém como você
em minha vida. Sou tão pequeno se comparado a ti, mãe. Tão pequeno eu
sou que não importa o quanto eu me esforce, nunca consigo torna-la feliz o
suficiente para fazê-la se esquecer de seus problemas como eu gostaria ou de
ajudá-la a melhorar tua vida, e eu sinto muito por isso. Esse fato é
extremamente doloroso para mim.

Peço-lhe, mãe, que não te sintas tão ruim por não ter me dado as
condições socioeconômicas que gostarias que eu tivesse tido. O que você me
deu já é suficiente para que eu tenha uma vida muito saudável e feliz ao teu
lado. Não quero exigir mais do que as coisas maravilhosas que tenho e, se
dependesse mais de mim, comeria menos, beberia menos e até venderia
minhas roupas ou meus brinquedos velhos. No entanto, estou sabendo que

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nada disso iria te agradar ou ajudar, o que me leva a tentar ajudá-la sendo
um bom filho para ti.

Não te sintas mal pelos teus problemas, mãe. A vida não é justa e, se
fosse, por exemplo, nunca teria tido autismo. Mas isso não quer dizer que
uma pessoa linda, virtuosa, forte, inteligente, corajosa, bondosa e simpática
como você não mereça tudo de bom nessa vida, e eu sou testemunha viva
disso. Os poucos momentos de vida que eu tive ao teu lado até agora estão
sendo, de longe, os melhores de minha vida. Você é uma pessoa incrível e eu
agradeço muito por te ter como mãe. Agradeço por tudo. Feliz Dia das
Mães!

Com infinito amor,

Bernardo José Mendina de Souza Martínez.

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E no meu aniversário de 47 anos, em 19 de outubro de 2018, nova carta:

“Feliz Aniversário, mãe!! Eu te amo ao infinito e além”

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A carta dizia:

Brasília, Distrito Federal, 19 de outubro de 2018.

Minha lindíssima mãe,

Agradeço-lhe muito por existir. Tu destes a mim muitas coisas pelas


quais lutar e me esforçar em minha vida e vários motivos para viver e
desejar melhorar como pessoa e ser humano. Obrigado por me amar e se
importar comigo como muitos não o fariam. Agradeço-lhe por ser a melhor
pessoa e ser que eu conheço. Seja sempre esse ser humano maravilhoso como
você o é agora! Eu te amo muito, mãe!! Feliz Aniversário!!

Com muito amor,

Bernardo José Mendina de Souza Martínez

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No Natal desse mesmo ano, Bernardo escreveu outra carta.

“Feliz Natal, mãe!! Eu te amo!!

No balão: “Feliz Natal, minha boa menina! Eis o meu maior presente para
ti: todo amor desse Cosmos!! Hô, hô, hô!!

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Brasília, Distrito Federal, 25 de dezembro de 2018.

Minha belíssima mãe,

Escrevo-lhe esta carta com intuito de agradecer a ti por existir, ser uma
pessoa maravilhosa e trazer tantas coisas boas em minha vida. Você é quem
mais me faz feliz nessa existência e nas demais e eu espero que tenhas
apenas coisas boas em tua vida. Eu te amo muito, mãe! Feliz Natal!!

Com muito amor,

Bernardo José Mendina de Souza Martínez

P.S: Sinto muito pela demora.

Enquanto isso, em uma notória galeria de obras de arte...

Duas referências em artes visuais:

Primeiro balão: Esse é um artista digno de admiração, não é mesmo, Juán?

Segundo balão: ¡ Sí ! Para concentrar tantas virtuds y beleza en una sola


imágen, tiene que ser una persona muy hábil en el diseño y la pintura.

No quadrado: Luciana, a Musa

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Diretor da Juventude Asperger do MOAB

Apesar de eu ter repetido diversas vezes que Bernardo não é


Asperger, muitas pessoas insistem em classificá-lo como tal. Sei que para
muitos pais é mais fácil aceitar o diagnóstico de autismo se o filho for
considerado Asperger, ou seja, autista de alto rendimento, o que significaria
inteligência acima da média, do que se ele for considerado autista clássico.

Não para mim. Sei que uma inteligência acima da média é tão difícil
de se lidar quanto abaixo da média e que não é sinônimo de falta de
problemas ou de mais facilidades na vida. Muito pelo contrário. Um QI alto
pode gerar forte sentimento de exclusão, de isolamento, de falta de
identificação com os colegas. E tudo que quero evitar é que meu filho de
sinta deslocado depois de tudo que ele já passou.

Apesar de saber que meu filho não é Asperger (seu autismo é


clássico e, praticamente, superado), eu não me opus quando Fernando
Cotta, presidente do Movimento Orgulho Autista Brasil (MOAB),
movimento do qual faço parte há mais de três anos, o convidou para ser
Diretor da Juventude Asperger do MOAB.

É importante compartilhar as experiências do meu filho. Muitos pais,


curiosos, me procuram para saber mais sobre o Bernardo, como era a rotina
dele quando pequeno, como ele se alimentava, quais eram suas principais
dificuldades, suas maiores conquistas, como era seu tratamento clínico.

Conhecer o Bernardo dá esperança para muitos pais. Sei que o maior


desejo deles é o de que seus filhos se tornem futuros Bernardos, aptos a
fazerem suas escolhas, prontos para irem para faculdade, terem uma vida
cheia de oportunidades, levarem uma vida praticamente “normal”.

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Então, perguntei a meu filho se ele aceitaria esse desafio. Embora eu
queira ajudar todos que nos procuram, não posso sacrificar meu filho. Se
ele achar muito pesado seguir este caminho e dividir suas vivências com
essas pessoas, tenho de preservá-lo. Minha prioridade sempre foi e sempre
será meu filho.

Contudo, Bernardo ponderou e decidiu aceitar o convite. A maior


preocupação dele é com o outro. Quer sempre ajudar. Tem muita empatia
por tudo e por todos. Ser útil é fundamental para ele. Nessa empreitada, ele
tem encontrado pessoas fantásticas, dispostas a ajudá-lo e a protegê-lo
quando necessário. Um deles é o Fernando Cotta, já citado por mim.

IV –BERNARDO PASSA PARA UNB SEM COTAS

Em outubro de 2018, Bernardo fez o Enem. Sempre preocupado com


seu futuro, Be ficou um pouco inseguro. Ele tem medo de resultados ruins
em provas. Ele tem medo de que um resultado ruim gere outros, como se
fosse uma reação em cadeia. Mas não é assim e eu tento acalmá-lo.

No dia da prova, Be disse ter seguido o conselho do seu professor de


Matemática do SEB Dínatos COC, Rogério Basílio. O professor tinha
explicado à turma que uma vez, depois de ter estudado muito para uma
prova, sentiu dificuldades ao fazê-la.

O que ele pensou, então? Bem, se eu, que estudei tanto, tenho
dificuldades, imagine quem não estudou. O professor também afirmou
que, normalmente, quem sai mais cedo antes do tempo estipulado para a
realização da prova é quem desistiu das questões por não estar preparado
para elas.

100
Isso parece ter reconfortado meu filho. Fiquei feliz ao constatar que
ele tem seu próprio jeito de lidar com suas inseguranças. É bom perceber
que ele não depende tanto de mim para enfrentar o mundo. Ele construiu
seu próprio arsenal de crenças.

Despedida

No dia 08 de junho de 2019, peguei um avião para Porto Alegre.


Poucos dias antes, em entrevista a um deputado federal pelo PSL do RS,
combinamos que eu seria responsável por sua rede de comunicação, que
incluia entrevistas para rádios e TVs, artigos para jornais e suas redes
sociais: Facebook, Instagram e site, bem nos moldes do meu trabalho com
o Deputado Delegado Francischini em 2017.

Apesar da distância dos meus filhos – teria de deixá-los em Brasília,


pois os dois cursam faculdade na UnB (Universidade Nacional de Brasília)
– fiquei feliz com a possibilidade de assumir um novo desafio e de voltar
para Porto Alegre. Há quase dez anos, nos mudamos para Brasília. Foi logo
depois da alta do Bernardo.

101
Bernardo nos dá um susto

No dia 30 de junho, um domingo, quando estava há quase um mês


em Porto Alegre, Bernardo ficou doente. Raríssimo isso acontecer. Depois
de aquelas doenças típicas da infância: resfriados, febres sem motivo
aparente, dores de barriga, Be nunca mais teve qualquer episódio
preocupante.

O significado de seu nome é forte como um urso, bravo como um


leão. E Be é assim mesmo: saudável, determinado, destemido. Depois de
ter comido oito ovos com manteiga em um sábado, Bernardo amanheceu
com dor abdominal no domingo. Para ele, foi o resultado da refeição do dia
anterior.

A notícia veio pelo whatsapp:

- Oiiii, mãe! Como estás? Hoje está horrível. Minha barriga está ruim
e preciso terminar o trabalho para amanhã. Como estás? Estou com
problemas para sair da cama. 38,1º C é febre? Eu obtive essa temperatura
do termômetro.

Confirmei que 38 graus era febre e pedi para ele tomar remédio para
febre. Perguntei se sua irmã estava em casa e se eles tinham paracetamol
em casa.

- Certo. Ela não está aqui. Vou ver se tem paracetamol. A Maju está
na casa da Laura antiga (é assim que ele se refere a uma amiga da irmã.
Como ela tem duas amigas com o mesmo nome, uma é a antiga). Hoje é
aniversário dela. E tu? Como estás? Achei. Tomo quantos? Disse ele, se
referindo ao remédio.

- Um. Só um. Bernardo, é o comprimido de 250 mg, certo? Toma só


um.

102
- Certo. Agradeço. O Brioche quer passear. Eu te amo muito. Espero
que estejas bem.

- Toma o remédio primeiro, eu disse.

- Certo. Tomei. E agora? O Brioche quer passear.

- Tá. Passeia um pouco com o Brioche. A Maria Júlia está voltando


para casa para cuidar de você. Acabei de falar com ela. Tá bom?

- Certo. Eu te amo muito. Agradeço por tudo, disse ele.

- Ok. Dê notícias. Quero saber se está melhor. Amo você

- Eu também te amo.

E assim terminamos nossa conversa. Avisei minha irmã do meio,


Maria Amanda, madrinha do Bernardo, de que ele não estava passando
bem. No dia seguinte, ela foi busca-lo para ficar em sua casa.

Mandei um whats para ela:

- Bom dia!! Como está meu filhote?

- Está bem melhor. Dormindo o dia todo. Vou deixar ele na UnB à
noite, se ele estiver melhor. Embora achasse melhor ele não ir.

- Veja se ele precisa ir. Se não precisar, melhor ficar em casa com
você. Ele está agarradinho em você?

- Comigo não, né, Lu, que eu não sei o que ele tem. Não sei ele tem
virose ou se comeu uma coisa estragada. A Santa está cuidando bem dele.

Minha irmã tem Doença de Crown e precisa cuidar da sua


imunidade, portanto, ela não podia ficar muito perto dele sem saber a causa
da enfermidade. Como ele estava sendo cuidado pelas duas, fiquei mais

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tranquila. Só que a tranquilidade durou pouco. No outro dia de manhã cedo,
recebi essa mensagem:

- Lu. O Bernardo não está bem ainda, voltou a ter diarreia. Quando
tem médico no postinho? (Be tem cartão do posto de saúde do Lúcio Costa,
o que lhe dá direito à consulta gratuita). Precisamos saber se ele está com
infecção ou só virose, ou seja, se ele precisa tomar antibiótico ou não.
Posso levar ele para fazer hemograma no Sabin, mas preciso que ele passe
por um médico antes.

Liguei para Santa, minha irmã estava trabalhando, e expliquei os


horários do Posto de Saúde do Lúcio Costa. O atendimento era realizado de
manhã e à tarde. Elas o levaram lá. Parecia que tudo estava encaminhado
até que recebi outra mensagem no dia seguinte. Era novamente minha irmã:

- Lu, o Bernardo está muito mal. O médico disse que ele não pode
ficar perto dos gatos, que não podem dormir com ele e que eles passam
muita doença. Segundo o Be, a casa está suja, cheia de vômito de bicho,
nem comida os bichos tinham, a Santa precisou comprar. Você precisa
conversar com a Maria Júlia, não dá para deixar ele com três gatos e um
cachorro para cuidar. Amanhã, vou levar ele no posto novamente para
tomar soro e vou ver se consigo levar em um gastro.

Quando li essa mensagem, fiquei um pouco assustada, mas sei que


minha irmã exagera às vezes. Liguei para Ju na hora e ela disse que a casa
não estava imunda e que estava tudo sob controle. Também liguei para
nossa faxineira e pedi para ela ir lá em casa fazer uma faxina. Era tudo que
eu podia fazer à distância. Só que à tarde, minha irmã me mandou uma
mensagem mais assustadora:

- Você já está trabalhando? Ela me perguntou.

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- Se não está, vem pra cá ficar com ele.

Não entendi nada. Eu disse:

- Oi. Eu já estou trabalhando. Como assim? O que houve?

Ela demorou para me responder. Puxa vida, que angústia eu senti!


Recebi nova mensagem:

- Estamos esperando o médico no postinho. Não consegui marcar


com nenhum dos meus gastros. Ambos estão de férias, disse minha irmã.

Do postinho, Bernardo foi encaminhado para o Hospital do Guará.


Fez exames e ficou no soro boa parte da tarde para evitar desidratação.
Minha irmã tinha medo de que ele tivesse uma infecção viral, o que a
impediria de ficar próxima dele, embora ela já o tivesse abraçado algumas
vezes.

Ao ser informado da possibilidade de ficar internado no hospital,


Bernardo disse:

- Tia, eu não quero ficar internado aqui. Pensei que o hospital fosse
parecido com o seu. Neste daqui eu não quero ficar.

Minha irmã achou engraçado. Como ela tem plano de saúde, fica
internada em hospitais particulares em quarto amplo, privativo, com ar
condicionado e direito a acompanhante.

O cenário era bem diferente no hospital público. Be teria de dividir o


quarto com vários pacientes. Não era o que ele esperava. Ao me contar
como era a infraestrutura do hospital, disse que os pacientes ficavam com
uma canga cobrindo o corpo em vez de lençol. Ele estava estranhando tudo
aquilo.

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O alívio veio em pouco tempo. O médico disse que ele não precisaria
ficar internado. Minha irmã e ele comemoraram. Em seguida, também
informou que ele tinha uma infecção bacteriana, ou seja, não contagiosa.
Comemoraram novamente!

Meu filho faz 19 anos

No dia 28 de julho, Bernardo completou 19 anos. Tristemente, eu


não estava ao seu lado para comemorar. Mandei uma mensagem pelo
whatsapp para ele:

- Oiii, meu filho. Parabéns!!!! Você é presente de Deus na minha


vida. Eu te amo muuuuito!

- Oiiii, minha mãe. Agradeço muitíssimo por tudo. Tu que és o


presente de Deus em minha vida!! Eu te amo muito!! Ao infinito e além e
Buzzlightyear.

Minha irmã, madrinha dele, organizou uma festinha para ele. No


início, ele pensou que fosse só um almoço em família, mas ela convidou os
amigos dele e umas amigas minhas. Nem eu estava sabendo que ela faria
isso.

Fiquei muito feliz com todo esse carinho que ela deu para ele na
minha ausência. Tive muito medo de que ele se deprimisse no dia do
aniversário por eu estar longe. Falamos praticamente todos os dias. Ele é a
primeira pessoa a me dar bom dia ao acordar e a última a me dar boa noite
na hora de dormir.

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Estou tentando diminuir essa dependência que ele tem em relação a
mim, mas confesso que também sou dependente dele. É uma via de mão
dupla. É tão bom ficar ao lado dele, nós nos damos tão bem, temos tanta
afinidade, que é natural nos aproximarmos cada vez mais.

Contudo, conversei com um psicólogo (fiz terapia novamente por um


tempo) e abordamos essa dependência e o quanto ela pode ser prejudicial
para nós dois.

Não quero fazer nada que atrapalhe a vida do meu filho. Não quero
que ele deixe de investir em um relacionamento ou em um trabalho ou
estudo para ficar sempre perto de mim. Tenho me empenhado em dar mais
independência para ele, principalmente independência emocional, já que
independência física ele já tem.

Não é nada fácil essa separação. É necessária, é saudável, mas não é


fácil.

Bernardo no Tinder

Por insistência minha e da irmã, que queríamos que Be conhecesse


alguém – ele mesmo dizia que não queria ficar solteiro – Bernardo instalou
o aplicativo do Tinder no celular. Aliás, essa história do celular também é
atípica. Enquanto muitas crianças hoje têm celular com seis, sete anos de
idade – o que sou totalmente contrária – meu filho ganhou seu primeiro
celular com 18 anos.

Para mim, quanto mais distante ele estivesse de tudo que pudesse
isolá-lo, melhor. Mas não foi só com Be que agi desta forma. Maria Júlia

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ganhou o primeiro celular com 13 anos. Como é a filha mais velha e eu
precisava me comunicar com ela quando estava no trabalho, achei prudente
que ela tivesse uma forma de se contatar comigo em caso de emergência.

Não sou contra novas tecnologias. Muito pelo contrário. Acredito


que elas podem nos ajudar e muito hoje em dia, seja com novos modelos de
relacionamento, encurtando a distância entre as pessoas, seja com a difusão
de informações e de conhecimentos que podem facilitar a vida de milhões
de pessoas. No entanto, essas tecnologias, muitas vezes, não são bem
utilizadas. Critico o uso que é feito delas por mães que não sabem dar
limites para seus filhos.

Não é saudável que um bebê, uma criança assista mais de uma hora
de filmes via celular. Além de o conteúdo desses filmes não ser adequado
para a faixa etária deles, incentiva-se o isolamento em uma fase da vida que
requer justamente o oposto: a socialização do ser humano. Ser bem
adaptado socialmente é um pré-requisito para a formação de um indivíduo
saudável emocionalmente, apto a lidar com os desafios e frustrações do
mundo.

Por tudo isso, defendo o uso “controlado” das novas tecnologias,


sejam elas computadores, celulares, videogames. Muitos pais estão criando
filhos ansiosos e desligados da realidade que os cerca.

Dito isso, Bernardo ganhou seu primeiro celular aos 18 anos. Isso
talvez explique, em parte, os vários prêmios de aluno destaque e de
excelência acadêmica que recebeu, sem falar nas notas altíssimas que
tirava. Das 13 disciplinas que cursava, chegou a tirar nota 10 em 10 delas.
Isso é um feito, com certeza.

Quando o diretor me perguntou o que eu fazia para que meus filhos


fossem tão bons alunos, eu respondi que meus filhos tinham hora para

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dormir, hora para estudar, hora para brincar. Disciplina é indispensável
para quem tem objetivos na vida. E meus filhos sempre tiveram objetivos
bem definidos. Sempre disseram que fariam faculdade, que teriam um bom
trabalho, que seriam independentes. Felizmente, até para o Bernardo esse
sonho se tornou realidade.

Então, quando ele, com 18 anos, disse que não queria ficar solteiro,
achei natural indicar o Tinder para ele. Confio no meu filho. Confio nas
escolhas dele. Além do mais, a irmã também me apoiou na idéia.

As experiências não foram das melhores. Be me disse que, das sete


meninas com quem conversou, nenhuma resultou em um encontro ou em
algo mais significativo. Uma, inclusive, o assustou bastante. Be disse que
ela foi medonha. Começaram a conversar pelo whatsapp e, depois de um
tempo de conversa, ela disse para ele:

- Me conta um segredo seu que eu conto um meu.

Bernardo parou de falar com ela. Não gostou disso.

Outras apenas o deixaram no vácuo. Ele disse que elas até


conversavam numa boa, mas quando ele as convidava para sair, nem
respondiam mais.

Expliquei pra ele que isso acontece muito nesses aplicativos e que
não era nada relacionado a ele em particular. Não havia nada de errado com
ele. Antes pelo contrário. Be é um rapaz fantástico, super carinhoso e
inteligente, preocupado com os outros, romântico. Tenho certeza de que um
dia vai conhecer alguém interessante, que irá amá-lo e compreendê-lo do
jeitinho que ele é. E ele é um ser incrível.

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De Licenciatura para Bacharelado

Em julho de 2019, Bernardo trocou a Licenciatura em Ciências


Biológicas pelo Bacharelado. Ele foi aprovado em segundo lugar para o 2º
semestre na UnB. Desta vez, a seleção foi feita pelo PAS. Comemorei mais
esta conquista em tão pouco tempo.

Não que ele estivesse insatisfeito com o curso de Licenciatura, mas é


mais difícil passar para o bacharelado e, além disso, este último é de
manhã. Embora eu tentasse disfarçar para meu filho, ficava muito
preocupada com suas aulas à noite. Bernardo vai para a universidade de
ônibus. Tem de pegar dois ônibus para ir e dois para voltar. Quando tem
sorte, ele pega o ônibus que vai direito para a UnB. Mas essa linha atrasa
muito e, na maioria das vezes, ele não pode esperar ou chega atrasado para
o primeiro período de aula. Com toda essa logística de transporte, Be
chegava em casa às 23:30, raramente antes disso. Não tinha como eu não
me preocupar com sua segurança.

Quando me lembro de que eu precisava andar o tempo todo de mãos


dadas com ele quando ele era pequeno para que ele não saísse em disparada
no shopping em direção às escadas rolantes ou quando ele corria pelo meio
da rua, desembestado, e eu na sua cola, desesperada por ele não responder
aos meus chamados, parece um milagre que ele tenha uma vida totalmente
independente hoje em dia. Parece um verdadeiro milagre.

Estudar de manhã me pareceu, em tese, menos perigoso. Se é que


existe uma forma de evitar a violência em um país como o nosso. Pelo
menos, tento proteger meus filhos dentro do possível. O mais engraçado
dessa troca de curso foi o fato de eu a ter descoberto por acaso.

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Ao perguntar para Maria Júlia se o irmão não tentaria trocar de
curso, ela disse que ele não só iria trocar como também tinha passado em
segundo lugar.

- Como assim? Eu perguntei. Seu irmão passa em segundo lugar e


vocês não me falam nada? Daqui a pouco, vocês casam e nem para festa
serei convidada – brinquei.

- Ah! Mãe, pensei que você soubesse – ela disse.

Mas eu não sabia! Por um lado, fiquei extremamente feliz com a


independência dos meus filhos. Puxa! Eles estavam se virando muito bem
sem a minha presença. Por outro, gostaria de ser informada sobre suas
conquistas. Ficar longe dificulta um pouco acompanhar a vida deles. Morar
em Porto Alegre, temporariamente, foi uma escolha minha, mas gosto de
vibrar com as conquistas deles. Gosto de comemorar suas realizações.

Agora, Be precisa fazer novos amigos. No curso de Licenciatura, ele


conheceu Everton, Vitória e Marcos. Gostava quando ele me contava
histórias a respeito deles. Pena que esse vínculo durou tão pouco.

Embora eles permaneçam perto dele geograficamente, seus caminhos


tomaram um novo rumo. Os três continuam estudando à noite e Be, de
manhã. Espero que um dia eles combinem de se encontrar ou, quem sabe,
se encontrem por aí, meio sem querer, como acontece com as boas
amizades.

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Aprender a dizer não

Dizer não para o outro é um desafio para qualquer um de nós. Para


os autistas pode ser ainda pior. Bernardo é um rapaz bom, preocupado com
o bem-estar das pessoas. Talvez isso explique um pouco seu interesse nato
pelas pessoas e por tudo que as cercam.

Uma tarde, ao me mandar um whats avisando que havia chegado em


casa, meu filho disse:

- Oiiiiii. Voltei. Eu fiz uma bobagem hoje.

- O que foi? Que bobagem?

- Tinha um posto com pessoas religiosas na UnB. Depois de muito


conversar sobre assuntos bíblicos e suas relações com a atualidade, decidi
me batizar naquele lugar. Quando o batismo terminou, conversei um pouco
com um dos integrantes.

- Mas você já é batizado, Bernardo. Que doideira é essa?- questionei.

- Ele me disse que, pela Bíblia, eu não poderia comer em festividades


pagãs, citando candomblé, umbanda, macumba. O que eu faço? Eu me
ferro?

- Be, isso não significa nada – eu o tranqüilizei – você é batizado


desde pequeno!

- Eu me arrependi – ele disse.

- Isso que você fez na UnB não serve para nada.

E acrescentei:

- Deixa quieto! E pára de falar com gente maluca!

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- Certo. Eles me pediram informações e tiraram foto de mim. Acho
que seria algo como virar integrante. Eu sinto muito. Não vou mais fazer
essa merda. Estou cansado de tudo isso.

Não gosto de quando ele fala palavrão, mas meu filho já tem 19
anos. É natural desabafar desta forma. Ainda mais só para mim. Deixei
passar. E eu disse:

- Deixa pra lá! Não significa nada. Tudo bem. Passou.

Quando esse tipo de situação acontece, Be se sente mal, sente-se


trouxa, de certa forma humilhado. Não gosta de ser enganado. E foi assim
que ele se sentiu. Não dei muita atenção para o assunto para que ele não se
sentisse pior. Todos nós passamos por isso de vez em quando. Por que seria
diferente com ele?

Antes de encerrar por completo o assunto, ele me mandou um link


com informações sobre a Igreja de Deus Sociedade Missionária Mundial.
Queria que eu visse as fotos. Comentou:

- Foi nessa roubada que eu me meti.

Quando abri o link, vi fotos de orientais e fiquei com vontade de rir.


Quase brinquei: nem da sua etnia eles são, Be. Mas eu me calei. Não queria
insistir nesse assunto. Foi uma brincadeira inofensiva, mas me fez perceber
a dificuldade que nós, autistas ou não, temos de dizer não, e a vontade que
temos, em contrapartida, de agradarmos os outros.

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Visita ao túmulo do meu marido

Já estava há mais de dois meses em Porto Alegre e não tinha visitado


ainda o túmulo do meu marido. Ele foi enterrado no Jardim da Paz, um
cemitério-parque no bairro Agronomia.

Depois de comparecer ao lançamento da XXV Semana da


Deficiência do RS, na função de coordenadora estadual do Movimento
Orgulho Autista Brasil do RS (MOAB-RS), decidi ir ao cemitério. Como
trabalho na Rua General Câmara, no Centro, peguei uma lotação rumo ao
bairro Agronomia.

Ao sentar na lotação, mandei um whats para o Be perguntando se ele


gostaria de que eu dissesse alguma coisa para o seu pai.

- Vou ao cemitério visitar seu pai. Quer algum recado pra ele?

- Hein? Eu sinto saudades do pai.

- Vou dizer isso pra ele.

- Queria tê-lo conhecido melhor.

- Também vou dizer isso.

- Queria não ter tido autismo para aproveitar melhor meu tempo com
o pai.

Deu um nó na garganta. Então, eu disse:

- Não fala isso não, meu amor. Não fala isso não! Você aproveitou
seu pai e eu aproveitei muito com você mesmo quando você estava out.
Você é o amor das nossas vidas e sempre vai ser!

Ele acrescentou, rapidamente:

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- Eu queria que meu pai estivesse entre nós. Eu agradeço por ter tido
uma pessoa tão maravilhosa como pai.

- Verdade – eu disse. Vou falar tudo isso pra ele. Foi um pai
maravilhoso com certeza!

E finalizou:

- Avise-o para descansar em paz.

Comprei um buquê bem lindo de flores brancas e amarelas para


enfeitar o túmulo do Hector. Em maio de 2019, sua morte completou 15
anos, mas a saudade que sinto não diminuiu com o passar do tempo. Já não
dói tanto, mas o vazio é imenso. Queria muito que ele estivesse aqui para
compartilhar comigo tantas vitórias dos filhos.

Queria que ele estivesse aqui para ter um papo de homem com o
Bernardo. É tão complicado falar com ele sobre certos assuntos, ser a única
pessoa a quem ele pode recorrer, saber que minha opinião sobre os assuntos
tem tanto peso na vida dele. Seria bom alguém que mostrasse outra visão
do mundo para ele. Ou fosse outro tipo de apoio, com um jeito diferente de
lidar com os problemas.

Novamente em Brasília

No dia 05 de setembro de 2019, voltei para Brasília. Depois ficar


quase três meses em Porto Alegre sem ver meus filhos, foi muito bom
reencontrá-los. Não via a hora de abraçá-los e beijá-los. Nunca tinha ficado
tanto tempo longe deles.

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Os dois se saíram melhor do que o esperado. Sabia que Maria Júlia
era capaz de se virar, mas a grande surpresa ficou por conta de Be. Queria
saber o quanto ele estava preparado para minhas ausências, e a resposta foi
positiva.

Sei que ele sentiu muita saudade de mim, assim como eu também
senti dele. Mas ele amadureceu com essa experiência. Até as pequenas
desavenças que ocorreram entre ele e a irmã foram necessárias para o
crescimento deles. Aprenderam a ceder, aprenderam a ser mais pacientes e
tolerantes um com o outro, aprenderam a resolver os problemas que
surgiram no dia a dia sem a minha interferência.

Infelizmente, meu trabalho em Porto Alegre não deu certo. O tal


deputado não cumpriu nada do que prometeu e, como se isso não bastasse,
surgiram diversas denúncias contra ele: processos trabalhistas anteriores ao
mandato, denúncia de Caixa 2 na eleição, enfim, algo que eu desconhecia
por completo. Dei graças a Deus por não ter mais de trabalhar para ele.

Trabalho há mais de dez anos com parlamentares da Câmara dos


Deputados e do Senado Federal e confesso que jamais conheci um
deputado que fosse desonesto até com os seus servidores. Isso era, até
então, inédito para mim. Voltar para casa foi, naturalmente, um alívio em
todos os sentidos.

Paixão: imortal tricolor

Bernardo é gremista como eu e meu pai. Maria Júlia também é, mas


ela não se interessa tanto por futebol ou por qualquer outro esporte. Já Be e
eu fazemos questão de assistir os jogos da Copa Libertadores – Grêmio é

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tri-campeão dessa competição – e Campeão do Mundo, além de
tetracampeão da Copa do Brasil. Temos muito orgulho do nosso time.

Não somos fanáticos, no entanto. Não assistimos a todos os jogos.


Mas a Copa Libertadores é diferente. Ela nos move, nos encanta. Pela
vitória nessa competição fazemos até promessa.

A primeira promessa que fizemos foi em 2017. Quando Grêmio


passou para a semifinal da competição, enquanto assistíamos o jogo,
combinamos de ir de casa a pé, no Guará, até a casa da minha irmã, no
Sudoeste se ele se classificasse.

Grêmio passou para a final e nós cumprimos a promessa. Levamos


quase duas horas e meia para chegar ao Congresso, mas foi divertido. Era
um sábado, o trânsito estava mais tranquilo, menos gente nas ruas.
Começou a chover no meio do caminho e tivemos de nos esconder em
baixo da marquise de um prédio. Assim que a chuva deu uma diminuída –
pequena – continuamos andando, chuva batendo em nossos rostos.

Dava para perceber o quanto Bernardo estava se divertindo. Ele é


muito companheiro. Sempre está pronto para aventuras ou para qualquer
programa. Não tem preguiça para nada e é extremamente prestativo. A irmã
abusa dessa qualidade dele para quase fazê-lo de escravo. Já a adverti a
respeito disso. Não acho certo ela tratá-lo dessa forma. Pede para ele ir à
padaria comprar um salgado para ela, pede para ele ir à farmácia comprar
tinta para o cabelo, pede para ele ir à gráfica ver o preço do pen drive, pede
para ele ir ao supermercado comprar miojo pra ela, e por aí vai. Antes era
ainda pior. Ela nem sequer se levantava do sofá para pegar água. Bernardo
é que trazia para ela. Eu dizia para ele não buscar, mas ele dizia que não
tinha problema, que adorava fazer as coisas para a irmã.

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Como é parceiro para tudo, ensinei meu filho a tomar chimarrão
comigo. Nós, do RS, falamos mate em vez de chimarrão. Era um ritual que
eu tinha com meu pai, gaúcho de Santa Maria. Mesmo morando no Rio de
Janeiro, com quase 40 graus de calor, eu tomava mate com meu pai quando
ele chegava de viagem. Meu pai era piloto internacional e viajava muito.
Adorava tomar mate e assistir aos jogos do Grêmio com ele. Transmiti esse
ritual para meu filho.

Bernardo sabe até preparar o mate. Quando estou cansada, peço para
ele preparar pra gente. Tomamos juntos, conversando, assistindo jogos,
vendo séries. Be tenta me convencer a assistir programas do Animal Planet
com ele.

Às vezes, eu cedo e concordo. Noutras, o programa mostra cenas de


predatismo, quando um animal mata e come o outro. Odeio isso! Não
suporto assistir essas cenas. Be sabe e tira rápido do canal. Eu falo que o
mundo animal é terrível, cheio de sacanagem, sempre um comendo o outro.
Ele gosta dessa minha observação e ri.

Basta olharmos um para o outro para nos entendermos. Criamos um


vínculo muito forte e muito bonito, mas também muito perigoso. Tenho
lutado muito contra minha vontade de ficar sempre ao lado dele. É bom, é
prazeroso, é harmonioso, mas não é saudável. Ele precisa criar novos
vínculos afetivos. Quando estou por perto, ele desiste de ver os amigos
antigos, abre mão de fazer novos amigos, todo seu mundo fica restrito a
mim.

Ele já tem 19 anos, é um homem. Precisa criar novos laços afetivos.


Não quero ser um empecilho na vida dele. Também não quero incentivar
uma relação doentia e dependente. Já basta o fato de meus filhos não terem

118
pai. Não posso ser a mão controladora e centralizadora que os impede de
crescer e de construírem suas próprias vidas.

Minha filha sabe manter distância saudável de mim. Be, não.


Pretendo levá-lo novamente à psiquiatra para que ele trabalhe essas
questões com ela, para que ele tenha alguém com quem conversar sobre
seus planos para o futuro. Estou apenas esperando uma folga no meu
orçamento para fazer isso.

Meu filho quer trabalhar e dirigir

Desde que voltei de Porto Alegre, Be tem conversado comigo sobre a


possibilidade de arrumar um trabalho. Até hoje, considerava muito cedo ele
entrar no mercado de trabalho. Agora, acho que ele pode já estar pronto.

Uma das coisas que ele menciona que vai fazer quando começar a
trabalhar é guardar dinheiro para pagar sua carteira de motorista. Foi desta
maneira que percebi que ele quer aprender a dirigir.

No início de outubro de 2019, fomos à Agência do Trabalhador no


Guará para fazermos sua carteira de trabalho. Como o atendimento é
agendado, ficou marcado para o dia 25 de outubro à tarde. Marcamos para
Maria Júlia também. Embora ela faça estágio no Sindicato dos Bancários
há mais de seis meses, não fez ainda sua carteira de trabalho.

Bernardo se preocupa com o futuro. Quer trabalhar e fazer uma


poupança. Estou pensando em sugerir que ele pague também a Guia da
Previdência Social (GPS) como autônomo, assim ele pode começar mais
cedo a contribuir com a Previdência e também não dependerá tanto dos
valores depositados pelo empregador.

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No dia 25 de outubro, acompanhei Bernardo e Maria Júlia na Região
Administrativa do Guará para confecção de suas carteiras de trabalho. Foi
comovente fazer parte dessa nova etapa da vida dos meus filhos. Fiz
questão de sentar ao lado deles enquanto entregavam os documentos
originais, respondiam as perguntas do funcionário e tiravam foto para a
carteira.

Na minha vez de fazer minha carteira, há 30 anos, não tive a minha


mãe ao meu lado. Perdi minha mãe quando tinha 14 anos e deixei de
compartilhar vários momentos importantes com ela. Talvez seja por isso
que faço questão de estar sempre presente na vida dos meus filhos. Já disse
à minha filha que o que estou vivenciando ao lado dela é único para mim,
era algo que gostaria de ter vivido com minha mãe e não pude. Conhecer o
namorado dela, os amigos da faculdade, sair para comprarmos roupas,
irmos ao cinema juntas, conversar sobre relacionamentos e sobre a vida,
tudo isso é novidade para mim também, não só para ela.

Tive um pai maravilhoso, honesto, idealista, patriota, que me ensinou


a lutar pelo que é certo em qualquer circunstância. Ele me ensinou a não
flexibilizar meus princípios e valores e a me colocar sempre no lugar dos
outros, buscando ajuda-los sempre que possível. Gostaria de que meu pai
tivesse vivido mais tempo com os netos. Quando ele faleceu, Maria Júlia
tinha sete anos e Bernardo, cinco. Gostaria também de que minha mãe os
tivesse conhecido. Sei que teriam muito orgulho das pessoas
extraordinárias que eles se tornaram.

Gostei das fotos dos dois na carteira de trabalho. Muito melhor do


que na minha época, em que saiamos estranhos em todos os documentos
oficiais. Comecei a divagar sobre o primeiro emprego deles. Como será?
Maria Júlia faz estágio há mais de ano na faculdade. Ganha apenas uma
ajuda de custo, menos do que o salário mínimo. Mesmo assim, é
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extremamente responsável. Não falta nunca, não se atrasa, não faz corpo
mole; dedica-se com afinco ao seu ofício.

Antes mesmo de receber a carteira de trabalho, meu filho tinha prova


marcada em uma empresa que direciona alunos para estágios em várias
empresas. A prova estava marcada para as 18:30 horas do dia 31 de
outubro. Ele me avisou no dia, poucas horas antes do horário previsto.
Ajudei-o a encontrar o endereço, era no Centro de Taguatinga, bem perto
do Alameda Shopping.

Ele poderia ter ido sozinho, afinal de contas, era só um ônibus para o
Centro de Taguatinga, e era bem fácil chegar até o destino. No entanto,
resolvi ir com ele. Queria que ele se sentisse seguro em seu primeiro teste
da vida adulta. Não era mais um teste escolar. Era um teste para trabalho
agora, para seu primeiro estágio. Queria que ele estivesse calmo para fazer
a prova. Sei como é importante e reconfortante a presença familiar nesta
hora.

Eu estava sozinha quando fiz prova de admissão para o


Conservatório Nacional de Música. Tinha apenas onze anos, tocava piano
clássico e tentava uma vaga no conservatório. Ao entrar no ambiente da
prova, eu me apavorei ao ver pessoas tão mais velhas do que eu e senti o
peso daquela responsabilidade toda. O pânico foi tão grande que não
consegui nem copiar as questões da prova. Tudo ao meu redor ficou preto
e branco. Meu filho não passaria por isso. Eu estaria lá ao seu lado.

A prova do estágio consistia em 20 questões de Português,


Conhecimentos Gerais, Matemática e Informática. A correção seria feita
logo em seguida. Eu não esperava por isso. Enquanto meu filho ficava em
uma sala reservada para os testes, eu rezava na sala de esperava, pedindo a
Deus para que ele fosse bem na prova. Quanta expectativa. Eu tentava me

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acalmar relembrando suas notas no colégio e na faculdade, sua aprovação
em Licenciatura e Bacharelado na UnB. Não seria possível ele não passar
nessa prova. As estatísticas estavam a nosso favor.

Em menos de uma hora ele respondeu todas as questões e nós dois


sentamos em frente ao rapaz encarregado da realização das provas para
acompanharmos sua correção. Bernardo foi muito bem em Matemática,
Português, Conhecimentos Gerais, mas foi terrível em Informática. A
disciplina era basicamente sobre Excel e constatei, tentando levar na
esportiva, que meu filho não sabe nada sobre esse programa. Até questões
simples como colunas, linhas e planilhas ele conseguiu errar. Eu disse:

- A partir de hoje, vou te chamar de Excelino e você vai ficar a noite


toda no computador aprendendo Excel! Fala sério, meu filho!

Ele ria muito!

Mesmo errando quase tudo de Excel, ele tirou a melhor nota do dia
na prova e, por isso, foi escolhido para o estágio. Demos muita risada. A
nota mínima para aprovação era 7.0, Be tirou 6,5 e foi a melhor nota.
Imagine o resto. O rapaz nos reconfortou dizendo que o pessoal é péssimo
mesmo em Excel e em Matemática. Pelo menos Bernardo era bom nas
outras matérias, principalmente em Matemática. Foi o que o salvou.

Por ter tirado a melhor nota da prova, Bernardo foi escolhido para a
vaga do estágio em uma clínica médica em Taguatinga. Meu filho ficou
eufórico. Queria saber tudo sobre o estágio. Perguntou quanto ganharia. R$
800 reais. Perguntou que horas seria o estágio. Provavelmente à tarde, já
que ele estudava de manhã. Perguntou onde ficava a clínica. Em
Taguatinga, bem perto do local da prova. A cada informação dada, meu
filho vibrava. Estava radiante.

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Saímos de lá e fomos jantar em um Restaurante Chinês para
comemorar. Pedi um pratão de Yakisoba para ele, que comeu tudo sem
demora. Pedi arroz colorido com camarão para mim. Como já passava das
20 horas, achei mais prudente pedir um Pop do que pegar ônibus. Na volta,
dentro do veículo, Bernardo não parava de falar. Indagou se eu gostaria de
voltar para a academia que ele iria pagar. Perguntou também se a Maria
Júlia gostaria de voltar. Estava disposto a pagar academia para ela também.
Eu brinquei:

- Be, você acha que vai ficar milionário? Como vai conseguir pagar
tudo isso com R$ 800 reais? Você tá maluco?

Ele só ria. Sua alegria era contagiante.

Tão bom presenciar esse momento de conquista da sua vida. Que


venham muitos, muitos outros, é o que mais desejo. Logo, logo, novos
desafios surgirão: os primeiros dias do estágio, a carteira de motorista que
ele quer tirar, alguém que o interesse a ponto de ele querer namorar, tudo
isso vai sendo construído aos poucos, com paciência, com determinação e
com amor.

Bernardo recebeu uma proposta de Marcelo Hermes, professor da


UnB e presidente do DPL (Docentes pela Liberdade), para participar de
uma pesquisa sobre tardígrados, bichinhos microscópicos considerados,
por muitos, como muito resistentes a condições extremas de vida. Ele teria
que coletar musgos de árvores, colocar estes em recipientes contendo água
e, depois de vários minutos de espera, espremê-los para retirar seu excesso
de água e procurar esses invertebrados na água acumulada, capturando-os
com uma pipeta e armazenando-os em frasquinhos.

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Esses tardígrados seriam analisados por uma estudante veterana da
UnB para averiguar detalhes sobre as reações envolvidas na resposta deles
ao estresse oxidativo na pesquisa em questão.

No primeiro dia de trabalho, Bernardo só recebeu informações e


demonstrações do que iria ter que fazer. No segundo dia, ele conseguiu
coletar 23 tardígrados pelos procedimentos anteriormente mencionados.
Depois, no entanto, essa pesquisa foi interrompida. A estudante veterana
tinha começado suas férias e, mesmo com a volta às aulas no início de
2020, essa participação do Bernardo não foi retomada por conta da
quarentena e de sua mudança para Porto Alegre poucos meses depois.

Essa proposta veio em boa hora, já que o estágio não deu em nada.
Era para Be ter recebido uma ligação no dia seguinte confirmando a
entrevista. Ele nunca recebeu esta ligação. Cansado de esperar, Bernardo
ligou para a empresa responsável pelo teste a que se submeteu e não só o
telefone havia mudado, como não conseguimos encontrar seu endereço na
Internet ou nada semelhante.

Além da proposta para participar da pesquisa, outra boa surpresa


aconteceu na padaria mesmo, em um dia que Be e eu fomos tomar café e
comer pamonha. Gil, uma das funcionárias mais antigas da padaria, meio
sem jeito, contou para o Be que a nova funcionária da padaria, uma menina
de 19 anos, muito risonha e tímida, estava interessada nele.

Bernardo ficou feliz com a notícia e mal conseguiu disfarçar seu


contentamento na frente da menina, que o observava de longe. Também
tentei disfarçar, mas foi muito difícil. Era uma situação muito
constrangedora. Não queríamos que ela se sentisse invadida, mas também
não sabíamos como nos comportar, fingir que nada estava acontecendo.

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Gil continuou nos falando maravilhas a respeito da menina: que era
uma pessoa muito estudiosa, muito dedicada ao trabalho, focada em
melhorar de vida, enfim, uma excelente pretendente para meu filho. Gil até
nos dizia que os dois eram muito parecidos.

Dessa paquera surgiu seu segundo namoro. Bernardo se encantou


com o jeito meigo e determinado de Liliane, que é natural do Maranhão.
Foi um namoro relâmpago: durou apenas dois meses.

Os compromissos de Liliane com trabalho e estudos não permitiam


que os dois convivessem muito e o relacionamento foi esfriando. De
qualquer forma, foi uma experiência positiva. Nunca sabemos o que
resultará dos relacionamentos afetivos e só o fato de eles existirem e de
representarem bons vínculos afetivos já é um ganho enorme.

Mais uma luta à vista

Em novembro de 2019, iniciamos importante movimento pelo 13º


para os beneficiários do BPC (Benefício de Prestação Continuada),
concedido para pessoas com deficiência e idosos cuja renda é inferior a R$
260 por mês. César Achkar e eu somos um dos criadores deste momento,
que teve adesão maciça de associações de pessoas com deficiência do DF e
de todo o país.

Tudo isso começou com a edição da Medida Provisória 898/19, que


concedeu o Abono Natalino (conhecido popularmente como 13º) para os
beneficiários do Bolsa-Família. Foram apresentadas quatro emendas à essa
MP, emendas que buscavam corrigir anos de injustiça e conceder também o

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Abono Natalino para os usuários do BPC (Benefício de Prestação
Continuada).

Nada mais justo do que conceder o 13º para mais de 4,6 milhões de
pessoas com deficiência e idosos cuja renda mensal é inferior a R$ 260 por
mês (valor reajustado este ano). Por isso, abracei com todas minhas forças
esse objetivo. Bernardo esteve nessa luta o tempo todo. Eu não poderia
ficar mais orgulhosa do meu filho do que fiquei. Ele levou tudo muito a
sério, ajudando e guiando os cegos pelos corredores da Câmara e do
Senado, aprendendo a falar (um pouco) de Libras para se comunicar com
os surdos, empurrando a cadeira de roda dos cadeirantes, servindo água e
café para todos, fazendo amigos por onde passava. Be é exemplo de
solidariedade para todos que o conhecem.

Volta para Porto Alegre


No início de março deste ano, depois de dez anos em Brasília, voltei
a morar em Porto Alegre. Como Bernardo e Maria Júlia estavam fazendo
faculdade na UnB, voltei sozinha na expectativa de que meu filho viesse
em agosto depois de obtida a transferência para a Ufrgs (Universidade
Federal do Rio Grande do Sul).

Meu apartamento estava alugado e tive de ficar uns dias na casa da


minha comadre. Pretendia pedir meu apartamento apenas no final de julho
e passar essa temporada na casa de minha comadre ou de minha prima
Kika. Nunca imaginei que tudo mudaria tão rápido. Desde o início de
janeiro sabíamos da ameaça do Corona Vírus, vírus que surgiu em Wuhan,
cidade chinesa com mais de 11 milhões de habitantes, e que se espalhou
para o mundo. Contudo, até aquele momento não sabíamos como nossas
vidas ficariam marcadas por esse acontecimento para sempre.

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Poucos dias depois de chegar a Porto Alegre, a Pandemia do Corona
Vírus atingiu em cheio o Brasil. Fomos comunicados de que haveria
isolamento social em todo o país com fechamento de comércio e de lugares
públicos e abertura apenas de supermercados, mercadinhos e atividades
essenciais de saúde. As escolas foram fechadas, assim como as
universidades. A UnB suspendeu suas atividades presenciais e não havia
previsão de aulas online ou de ensino à distância.

Bernardo estava na casa de Jucinéia, mãe de João Felipe e de Heitor.


João Felipe é aquele amigo que eu já mencionei antes, que estudava com
Be no SEB Dínatos COC no Ensino Médio. Ele ficaria na casa do amigo
até o final do semestre, em junho. Só então me encontraria em Porto
Alegre. Maria Júlia, por sua vez, ficaria na casa de uma amiga, Laura, que
também faz Psicologia na UnB.

Tudo mudou de uma hora para outra. Não fazia mais sentido Be ficar
em Brasília se não teria aula. Agora, tirar o inquilino do meu apartamento
se tornara prioridade. Por isso, no final de abril, entrei com pedido junto à
imobiliária para que o inquilino desocupasse meu imóvel o quanto antes.
Precisei até isentá-lo de um mês de aluguel para facilitar essa desocupação.
No final, deu tudo certo. Além de ter voltado para meu apartamento no
final de maio, Bernardo veio para Porto Alegre para ficar comigo.

Apesar de termos vivido momentos maravilhosos em Brasília e de


termos feito grandes amigos ao longo de dez anos, voltar para Porto Alegre
se tornou necessário. O Rio Grande do Sul é o nosso lar, nosso porto
seguro. No final de 2019, decidi que Bernardo e eu voltaríamos para Porto
Alegre. Maria Júlia teria de esperar mais um pouco. Ela está no meio do
curso de Psicologia e faltam apenas 2 anos para se formar. Seria prejudicial
para ela pedir transferência para a Ufrgs (Universidade Federal do Rio
Grande do Sul) agora.
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V- 2020: UM ANO QUE ENTRARÁ PRA HISTÓRIA

Na virada do ano, no momento de agradecermos pelo ano que passou


e de fazer pedidos para o novo ano, nunca imaginaríamos que 2020 seria
um ano tão extraordinário. Não existe outra palavra para descrever este ano
desafiador. Às vezes, nosso único pensamento esperançoso é o de que ele
vai passar. Sim. Uma hora ele vai acabar. E tudo vai voltar ao normal.
Será?

Estamos vivendo uma situação para a qual ninguém estava


preparado: um isolamento social sem precedentes na história recente.
Graças a um vírus oriundo da China, o planeta literalmente parou. China,
Itália, Reino Unido, França, Espanha, EUA, Brasil, para citar só alguns
países, foram obrigados a adotar o isolamento para que o vírus fizesse
menos vítimas enquanto pouco sabemos a respeito dele e de como
combatê-lo.

O que se sabe, até o momento, é que a Cloroquina tem mostrado


bons resultados no seu combate. Dados mostram que o seu uso no início do
tratamento evita a progressão da doença e, por consequência, a morte de
milhares de pessoas. No entanto, até o remédio tem sido usado para
politizar uma questão tão séria. Lamentável. O melhor é ficarmos bem
distante desse oportunismo de alguns representantes da classe política e nos
unirmos para que essa fase acabe o quanto antes.

Para nossa família, o impacto da pandemia foi enorme. Ainda mais


por que no seu início, em março, Bernardo e a irmã ainda moravam em
Brasília como mencionei anteriormente. Acreditávamos que a Pandemia
duraria, no máximo, três meses. Infelizmente, a realidade se provou bem

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mais cruel: já estamos há cinco meses em isolamento e devemos ficar mais
um ou dois meses na mesma situação.

Aniversário atípico: Bernardo faz 20 anos em meio a


Pandemia

No dia 28 de julho deste ano, Be completou 20 anos. Fazendo rápido


retrospecto, meu filho evoluiu tanto ao longo dos anos, superou tantos
obstáculos, venceu tantos desafios, que fica até difícil lembrar de como ele
era aos dois, três anos de idade. É custoso acreditar que Bernardo tinha
tantos sintomas do autismo e de que eles poderiam ter limitado bastante sua
vida. Felizmente, meus piores medos não se concretizaram. Seus planos e
objetivos têm sido alcançados com relativa facilidade (não é muito fácil
para ninguém mesmo), com persistência, com determinação, com muita
coragem. Meu filho foi um bebê corajoso, um menino corajoso e se tornou
um homem corajoso.

Neste ano, não pudemos fazer uma festa de aniversário cheia de


amigos e de familiares como ele merece, mas oportunidade não faltará. Só
adiamos um ano essa comemoração. O mais importante é termos ele feliz,
saudável, esperançoso ao nosso lado. Ter entrado na faculdade foi uma
grande conquista e simboliza o final de uma fase e o início de outra.
Veremos, em breve, o que a vida lhe reserva. Mas aí já será outra história.
Talvez escrita por mim, talvez escrita por ele mesmo. Quem sabe?

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