Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Luciana Mendina
1
Dedico este livro à minha prima
Kika, exemplo de resiliência e de
superação. Para você, todo meu
respeito, admiração e carinho.
2
“Se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação
(duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida” (Carlos
Drummond de Andrade)
3
Não poderia haver pessoa mais indicada para escrever o prefácio deste
PREFÁCIO
possível construir um ser capaz de saber e de amar ali onde seu organismo
precisamente com aqueles que constituem a fonte desse saber e desse amor.
4
discurso onde ele possa ser sujeito capaz de dizer e defender o que ele sente
e deseja.
(encarnado em sua mãe, sua irmã Maria Júlia, e seus psicanalistas), ele
para alguém que tem que defender sua dignidade a cada passo. Necessidade
atravessou uma dura guerra contra a mais radical solidão e contra uma
pela qual Bernardo agradece a sua mãe e sua irmã: “Obrigado por não
Alfredo Jerusalinsky
5
INTRODUÇÃO
I - AUTISMO
II - BERNARDO NA ADOLESCÊNCIA
E se?
Um menino exigente...
...e surpreendente
Certo X Errado
6
Pronomes, concordâncias e afins
Despedida
Bernardo no Tinder
Novamente em Brasília
7
INTRODUÇÃO -
9
nem tampouco travar uma briga com médicos e tratamentos. Muito pelo
contrário. Queria que a história do meu filho fosse totalmente diferente, que
os médicos acertassem nas terapias, que meu filho evoluísse no tratamento
e que ele fosse tão longe quanto pudesse. E antes de mais nada, não queria
me tornar uma pessoa amarga e descrente.
10
existe um protocolo de fácil aplicação – criado por cientistas brasileiros1 a
ser adotado pelo SUS. Inclusive, este protocolo já consta na Cartilha da
Atenção Básica ao TEA do Ministério da Saúde. São perguntas e
observações feitas durante as consultas habituais de acompanhamento
fáceis de serem respondidas, feitas pelo pediatra, o agente de saúde ou
educadores – devidamente treinados em breve curso de capacitação - desde
o nascimento do bebê até 18 meses de vida, endereçadas aos pais ou aos
cuidadores da criança.
.............................................................................................
Art. 2º Esta Lei entra em vigor após decorridos cento e oitenta dias de sua publicação
oficial.
MICHEL TEMER
Osmar Serraglio
Luislinda Dias de Valois Santos
1
O IRDI (Indicadores de Risco para o Desenvolvimento Infantil) construído mediante uma pesquisa que
se estendeu de 2000 até 2009, sediada na USP e apoiada e aprovada pelo CNPq, FAPUSP, Coordenada a
nível nacional pela Dra. Cristina Kupfer e tendo como coordenador científico o Dr. Alfredo Jerusalinsky.
11
I – AUTISMO
Mas o que é o autismo, afinal?
Considerado uma disfunção global do desenvolvimento, o autismo
afeta a capacidade de comunicação, de socialização e de comportamento da
criança; faz parte de um grupo de síndromes chamado transtorno global do
desenvolvimento (TGD). Dentro desta categoria, recorta-se um conjunto de
problemas psíquicos mais graves, que recebe o nome de transtornos
invasivos do desenvolvimento (TID) ou pervasive development disorder
(PDD). É dentro deste conjunto que se encontra o autismo.
14
específico de linguagem, transtorno de déficit de atenção, hiperatividade,
epilepsia e autismo - afetam uma em cada seis crianças em países
industrializados. Estudos mostram que há de 30% a 50% mais meninos que
sofrem destas doenças do que meninas.
15
Para o psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São
Paulo (USP), Guilherme Polanczyk, é cedo para conclusões. Ele concorda
que existe sim uma questão de gênero neste assunto. “Sem dúvida há uma
questão de sexo nisto. O próprio autismo e o TDAH - transtorno do déficit
de atenção com hiperatividade- são mais comuns em meninos. Mas, após a
puberdade, distúrbios de ansiedade e depressão ficam mais comuns em
mulheres. Acho que temos um caminho aí que pode nos levar a boas
descobertas”, disse.
Polanczyk afirmou, no entanto, que embora os dados mostrem que as
meninas precisavam apresentar mais mutações para manifestarem os
sintomas dos distúrbios, o “modelo protetor” é ainda apenas uma
especulação. “Acho a explicação plausível, mas ainda é preciso fazer mais
replicações deste tipo de estudo para ter certeza”, esclareceu o psiquiatra.
16
Em algumas ocasiões, conhecidos e amigos chegaram a afirmar que
sua inteligência era acima da média, coisa que sempre discordei, pois sei
que meu filho é inteligente, mas sua inteligência está dentro da média.
Um QI mais alto não garante maior capacidade de ser feliz ou mais
sucesso e realizações na vida. Aliás, um QI mais alto não garante
praticamente nada e, não raro, é a causa de muitos conflitos, sejam eles
afetivos ou psíquicos.
Há uma discrepância enorme de dados quando o assunto é retardo
mental. Chegou-se a acreditar que 70% dos autistas tinham algum tipo de
retardo, o que é um absurdo. Feitas as devidas correções, hoje sabe-se que
o percentual chega no máximo a 10%, 12% e, mesmo assim, trata-se de
um leve retardo.
A origem da confusão estava na dificuldade de se separar
características “semelhantes” encontradas em crianças que tinham retardo
mental e crianças autistas, o que levou muitas crianças que tinham apenas
retardo mental a serem consideradas autistas. Daí a falácia do percentual
de 70%.
Em relação aos autistas com algum tipo de genialidade (normalmente
diagnosticados com Asperger), esse número também é bem abaixo da
crença popular, com percentual em torno de 5% a 6%.
A esmagadora maioria é formada por crianças com inteligência
dentro da média, que precisam de estímulos diários para desenvolver suas
potencialidades.
17
Epidemia de autistas?
Na década de 80, a Associação Psiquiátrica Americana tornou mais
abrangentes os parâmetros para diagnóstico do autismo e, com isso, os
EUA viveram uma campanha de informação massiva. Até então, a maioria
dos médicos americanos tinha a mesma imagem estereotipada que nós,
brasileiros, tínhamos, e cuja mudança, no nosso caso, se deu recentemente,
mais precisamente de dez a quinze anos para cá.
20
sozinho), comer com a própria mão, e por aí vai. Todos esses desafios
foram superados.
Mas é preciso fazer mais. Só 14% das vagas no ensino superior para
alunos com deficiência foram ocupadas em 2016. No Rio Grande do
Norte, Nataly Pessoa, autista, cursa Direito no Centro Universitário do Rio
22
Grande do Norte (UNI-RN). Ela tem um blog, o “Espaço Autista”, onde
relata experiências, dificuldades e preconceitos. Nesse espaço, ela também
promove debates na luta por direitos dos autistas.
23
que pudesse ingressar no Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes). Eduardo
participou do processo seletivo, fez prova para uma vaga em Agropecuária
Integral, no campus de Alegre, mas como o instituto não dispõe de reserva
de vaga nem de outro meio de inclusão para pessoas com deficiência
previsto no edital, ele fez o processo na ampla concorrência e obteve 170
pontos, ficando como suplente. A última candidata aprovada havia feito
220 pontos.
II – BERNARDO NA ADOLESCÊNCIA
24
grudados. Caio tinha um temperamento tranquilo, apaziguador e se tornou
intérprete do Be frente aos desafios diários. Estudaram juntos na creche e,
anos mais tarde, no 1º ano do Ensino Fundamental no Colégio Bom
Conselho.
Eu não tinha resposta para isso. Como fazer amigos é algo que
simplesmente “acontece”, algo que não existe uma fórmula para se ter
sucesso, pelo menos essa é a minha experiência, já que se você se esforçar
demais o efeito será justamente o contrário, – você será um chato querendo
agradar todo mundo – perguntei a ele se gostaria de ir a um psicanalista,
que com certeza saberia melhor do que eu para aconselhá-lo.
25
- Be, sobre o que vocês falaram? Pode me contar, dizia ela.
Foi bom meu filho ter um espaço de fala só para ele. Falar e ser
escutado sem nossa interferência é essencial para sua autonomia. Por ser
muito apegado a nós duas, esse distanciamento é saudável e foi incentivado
por nós.
26
não gostou da experiência. Dizia que “só servia para atrapalhar os
adversários!”. A capoeira, segundo ele, também foi um desastre:
27
E se?
- Mãe, e se..........?
- Mãe, se você tivesse que escolher entre ser atirada em um vulcão ou ser
esmagada por um avião, o que escolheria?
- Não. É sério! Você preferia ser atacada por um urso cinzento ou por um
leão?
- Eu preferia não ser atacada por ninguém, meu filho. Aliás, nem serei, pois
ficarei bem longe desses bichos.
28
estimar a força de mordida de um bicho. No que diz respeito ao urso
cinzento (Ursus arctos horribilis), fui informado por certas fontes na
Internet dessa suposta informação na época em que disse isso.
Recentemente, descobri que essa informação consta em uma página do
canal televisivo National Geograhic (eis o link:
http://www.natgeotv.com/int/expedition-wild/facts). Nela, é dito que a
força de mordida do urso cinzento é de 8 000 000 Pascais. Essa é uma
unidade de pressão. No entanto, não é dito na página o tamanho da
superfície que foi utilizada como referência para esse valor. Levando-
se em consideração a resistência que uma bola de boliche pode ter
(dependendo de sua qualidade), não consigo imaginar um urso
cinzento quebrando uma bola de boliche com a força de sua mordida.
Pelo que estou sabendo por meio de determinados artigos científicos,
em termos proporcionais, leões tem forças de mordida maiores se
comparados a ursos pardos (Ursus arctos). Para que um urso cinzento
tenha uma força de mordida maior em relação a essa espécie de felino,
ele deverá ser maior se comparado a este.
- Mãe, se você tivesse que escolher entre ser picado por uma vespa
mandarina ou por uma vespa caçadora de tarântulas, o que você preferiria?
Resposta errada para variar. Be disse que seria melhor ser picado por
uma vespa caçadora de tarântulas pois, apesar de ter a segunda picada mais
dolorosa entre todos os insetos (não me pergunte qual é a primeira), ela usa
sua picada apenas para paralisar a presa, ao contrário da vespa mandarina, e
29
não causa número significativo de mortes, tendo um comportamento mais
calmo. São mais solitárias e menos agressivas.
Não dei muita atenção. Em outro momento, anterior a este, ele tinha
me falado que estava com problemas no seu “sistema nervoso”. Ah! Não.
Que mania de doenças.
30
Cada nova fase da vida de meu filho tem sido vivida e ultrapassada
com facilidade, apesar de em alguns momentos ter sido essencial a ajuda da
irmã e a minha. Sem dúvida a irmã tem sido seu ponto de apoio. Apesar da
insegurança, Bernardo não teve qualquer dificuldade para terminar o nono
ano e entrar no Ensino Médio.
- Mãe, estou com medo de não ser bom aluno no Ensino Médio.
Estou com medo de que seja muito difícil – desabafou, quando perguntei o
que estava incomodando ele.
Escutei suas dúvidas todas as vezes que elas surgiram, não queria
que ele tivesse a impressão de que eu não me importava com suas emoções,
e sugeri, por fim, que ele falasse com a irmã, que tinha entrado no Ensino
Médio há dois anos. Em muitas questões relevantes para ele, com as quais
ele tem alguma dificuldade de lidar, a irmã tem sido melhor conselheira do
que eu.
Talvez por ter uma intuição nata a respeito de tudo que o envolva ou
por ser muito observadora, talvez pela forte afinidade que existe entre eles.
31
Não é à toa que Maria Júlia está cursando o segundo ano de Psicologia na
Universidade Nacional de Brasília (UnB).
32
Outro prêmio Aluno Destaque – Excelência Acadêmica foi concedido no 1º
semestre de 2017, quando ele estava no 2º ano do Ensino Médio.
33
No último ano do Ensino Médio, em 2018, Be recebeu três prêmios:
Aluno Destaque – Mérito Acadêmico, Ato de Elogio – Empenho
Acadêmico e Postura no Ambiente Escolar e Mérito Acadêmico. Foi
engraçada sua reação ao receber o Ato de Elogio. Ele me perguntava o que
isso significava e se era melhor ou pior do que os outros prêmios.
34
35
Maior coração do mundo
Ou:
Um menino exigente...
Apesar de ser tão bondoso com os outros, às vezes, ele não é tão
condescendente consigo mesmo: ele se exige demais. E o faz em todos os
37
sentidos. Seja no colégio ou em casa, o seu grau de exigência é exagerado
e, portanto, é fácil ele se frustrar quando o resultado não é aquele que ele
esperava. Ao buscá-los na escola em uma tarde depois da aula do judô do
Bernardo, assim que entrou no carro ele disse:
- Pode deixar filho que eu vou ajudá-lo. Até porque quando você
entrou no carro, eu pensei: “Quem é esse homem lindo, tão alto, que está
entrando no meu carro?” Você está cada dia mais lindo, sabia?
- Um resumo, mãe.
- Porque não consegui terminá-lo. Era muito pouco tempo para fazê-
lo. O professor só nos deu 45 minutos para fazê-lo, e eu demorei pensando
nas melhores palavras para escrevê-lo. Eu queria que fosse perfeito!
38
- Ah! Filho, então o problema foi justamente esse: o tempo. Quando
você faz um resumo em casa, você tem todo o tempo do mundo para
terminá-lo. Nessa situação, você pode buscar as melhores palavras para
redigi-lo e, mesmo assim, acho que não precisa fazer isso. Se você fizer um
texto muito rebuscado, ele ficará pernóstico, não é assim que as pessoas
falam no dia a dia. Tem de ser mais natural. Lembre-se de que, nessas
horas, menos é mais, meu filho. O que você tem de fazer para da próxima
vez tirar uma nota melhor? Faça o seguinte: leia o texto que precisa ser
resumido, lembre-se de que você tem pouco tempo, e reescreva o que você
entendeu do que leu. Não fique procurando palavras para enfeitar o seu
texto.
- Mãe – disse Maria Júlia – deixa que eu converso depois com ele.
39
apressados, o mais provável é que fiquem confusos e se paralisem, não
conseguindo mais render o que deveriam. Se se sentirem pressionados,
podem sofrer um “completo apagão”.
Por ele ter ficado tão frustrado com o 0,5 que tirou no resumo, pensei
em ir ao colégio para falar com a coordenadora e pedir para os professores
um tempo maior de tolerância para os trabalhos do meu filho. Mas depois
de ponderar por uns minutos, percebi que não era uma boa opção. O melhor
seria que ele se acostumasse com as exigências da realidade e procurasse se
adaptar a elas. Eu deveria ajudá-lo nessa adaptação e não tentar mudar o
“mundo” para que ele se sentisse mais confortável.
... e surpreendente...
- Que legal que você sabe falar espanhol! É a língua mais falada do
mundo, não é?
40
- Não, espanhol é a segunda língua mais falada. A primeira é o
inglês. Let´s speak english a bit!* (no rodapé: Vamos conversar um pouco
em inglês)
- Não, que eu saiba ele sabe bem pouco. Teve apenas algumas aulas
no colégio, e isso já faz um tempo. Atualmente ele só estuda espanhol.
41
- I´ve forgotten....*, disse ele. Minha prima e eu nos entreolhamos,
pasmas.
- Why do I look scary for you?* (no rodapé: por que eu pareço
assustador para você?)
- For what life brings to you*, ela completou. (no rodapé para o que
a vida lhe traz).
42
desenvoltura, sendo que este último ele aprimorou por conta própria e sem
estardalhaço. Além de poliglota, é autodidata.
Outro medo que eu tinha era de que Bernardo não tivesse iniciativa
na vida e precisasse sempre de um empurrão para seguir em frente, para
enfrentar novos desafios. Esse medo, assim como tantos outros que
povoavam minha mente, acabou.
43
Gandhi e Brioche: mais responsabilidade
44
que ela tivesse se perdido). Tivemos também a “Beija”, uma poodle
branca, que mostrava clara preferência pela minha irmã do meio, e os
poodles creme “Bella” e seu filho “Clark Gable”.
Com o passar dos anos, percebi que voltar a morar em uma casa
com os meus filhos não seria possível nem a curto nem a médio prazo. O
nosso apartamento em Porto Alegre fica no Bom Fim, um bairro que dá
acesso a tudo que precisamos: supermercados, lojas, bancos, padarias,
pontos de ônibus e de táxis, hospitais, shoppings, farmácias. Não
precisávamos de carro para nos locomovermos. Não tinha a menor
intenção de vendê-lo e mudarmos para uma casa.
A maioria dos compromissos fora de casa eu fazia a pé. Até o
colégio das crianças era perto. Menos de seis quadras de distância. Por
tudo isso, trocar esse apartamento bem localizado por uma casa em um
bairro distante, precisando de carro para ir a qualquer lugar, não estava nos
meus planos.
Com a mudança para Brasília, fomos morar, mais uma vez, em um
apartamento, o apartamento emprestado da minha tia, na Asa Norte, no
Plano Piloto. Foram dois anos e outra mudança: desta vez para um
apartamento alugado na Asa Sul.
A vantagem do apartamento da Asa Sul era que ficava em frente ao
Dínatos COC e meus filhos só precisavam atravessar a faixa de pedestre
para irem para a escola. Praticidade total! Além disso, era bem mais perto
do meu trabalho no Senado Federal. Também ficamos dois anos nesse
apartamento e nos mudamos novamente. Desta vez, para um apartamento
no Guará. Essa última mudança ocorreu em agosto de 2014.
Quinze dias depois, ainda estávamos nos acostumando com o
apartamento, quando em uma ida à Feira dos Importados, vimos vários
filhotes de cães à venda. Sabendo de antemão que eu não iria concordar
45
em comprar um filhote, as crianças só pediram para vê-los. Nada além
disso.
Concordei com o pedido e caminhamos lentamente, encantados,
vendo todos os filhotes que estavam sendo expostos. Avistamos, então, um
lindo filhote de boxer. Meus filhos perceberam como eu fiquei comovida
com o cachorrinho e, em um momento de insanidade, perguntei o preço.
Não estava caro. Fiquei dividida. Queria tanto lhes proporcionar essa
alegria, tinha adiado por tanto tempo esse pedido deles!
Em um impulso, comprei o filhote de boxer. Eles ficaram eufóricos
e eu também. Teríamos, finalmente, um cachorrinho. O único senão é que
ele teria de ser buscado no dia seguinte. Tudo bem. Somente um dia de
espera.
À noite, praticamente não dormi. Perdi o sono ao imaginar aquele
filhotinho crescendo em um espaço tão pequeno. Ele cresceria muito.
Comecei a imaginá-lo mijando e cagando em todo nosso apartamento.
Imaginei também como seria pequeno o espaço para ele se movimentar
livremente.
Boxer é uma raça para grandes espaços, de preferência, uma casa
com gramado. Seria estressante para ele morar tão confinado! E tinha
mais: eu ficava fora a maior parte do dia no trabalho e meus filhos tinham
o colégio. Quem limparia a sujeira do cachorro? Onde ele dormiria? Na
sacada?
Compreendi que tinha cometido um grave erro ao comprar esse
cachorro, mas não sabia como voltar atrás, não sabia como dizer às
crianças que o sonho deles seria, mais uma vez, adiado. Não queria
desapontá-los, mas não havia outra opção. Eu teria de desfazer o negócio.
Foi quando surgiu a idéia de trocar o filhote de boxer por um
cachorro menor. Bem menor. Conversei com o vendedor e só havia à
46
venda um Lhasa Apso branco, de um mês e meio, pelo qual as crianças e
eu nos apaixonamos no minuto que o vimos. Peguei-o no colo e disse:
- Já é meu.
Maria Júlia e Bernardo exultaram. E como havíamos planejado,
voltamos para casa com dois potes de comida, uma coleira e o Gandhi.
Esse foi o nome escolhido por nós em meio a muitos nomes cogitados. Eu
só estranhei a conversa do vendedor.
Ele ficava repetindo que se o Gandhi tivesse qualquer problema, por
mínimo que fosse, que eu ligasse para ele que o seu veterinário de
confiança o atenderia. Ressaltou várias vezes para eu não levar o Gandhi a
outro veterinário ou não haveria garantia para a compra do cachorro.
Insistia também para eu manter a mesma ração que ele estava dando.
Dizia que se eu trocasse de ração, com certeza o Gandhi ficaria doente.
Achei muito estranha essa conversa, mas logo, logo, ela faria sentido.
Foram quatro dias animadíssimos. Todo branco, Gandhi parecia um
coelhinho, saltitava para todos os lados, era agitado, brincalhão, um
encanto. Engraçado como nos apegamos tanto a ele em tão pouco tempo.
No quinto dia, de madrugada, ele começou a vomitar. E não parou
mais. Ele se contorcia todo. Não quis esperar. Chamei meus filhos, minha
irmã, que estava de visita em minha casa, e fomos ao plantão veterinário.
Não sem antes ligar para o vendedor. Em vão. Ele não atendeu. Eram
quase três horas da manhã.
Ainda bem que não esperei raiar o dia. No plantão, foi feito exame
de sangue, constatando que Gandhi tinha Parvovirose, uma doença fatal na
maioria das vezes. Aquela conversa fiada de doença fez sentido, afinal. Ao
vender o filhote, ele sabia que o cachorro podia estar contaminado e,
mesmo assim, ele o vendeu para mim. E eu tinha provas disso: a
47
Parvovirose tem um período de incubação de quase quinze dias e eu estava
com o Gandhi há apenas quatro dias.
Foi apenas durante a conversa com o veterinário que fui informada
de que não se pode comprar filhotes na Feira dos Importados, uma vez que
não se pode confiar na procedência dos filhotes e nas condições de higiene
em que eles vivem. O preço baixo é resultado dessa falta de cuidado.
Em menos de uma semana, Gandhi morreu. Tive de dar a notícia
para os meus filhos. Assim como eles, eu estava inconsolável. Para minha
surpresa, Bernardo foi quem consolou a Júlia. Eu pensei que seria o
contrário. Muito abalada, Júlia disse que não queria outro cachorro e eu
respeitei sua decisão.
Em junho de 2015, quase um ano depois da morte do Gandhi, ao
passar por um Pet Shop no Sudoeste, vi um filhote de Shitzu, de
aproximadamente três meses. Parecia uma bolinha de pêlos marrom. Eu
me apaixonei por ele na hora e pensei que já era tempo de esquecer a
morte do Gandhi e olhar para frente.
Foi uma surpresa para meus filhos. Liguei para a Maria Júlia, que
estava no colégio, e disse que passaria para buscá-los. Ao mesmo tempo
que queria surpreendê-los, precisava da ajuda deles para carregar o
cachorrinho no carro. Peguei uma casinha emprestada no Pet Shop, mas
ele não parava de latir.
Maria Júlia ficou tão, mas tão surpresa com a novidade que não se
deu conta de que era um cachorro. Pensou que fosse um bicho de pelúcia
ou algo parecido quando o viu.
- Olha o seu Brioche, filha.
Esse foi o nome que ela disse que colocaria se tivesse outro
cachorro. Achei por bem deixá-la escolher o nome desta vez. Na outra,
quem escolheu fui eu. Até brincávamos que o Gandhi morreu cedo pois
48
era muito “espiritualizado”, que não colocaríamos mais nomes de pessoas
de bem nos animais. Riamos que, para viver bastante, o nome deveria ser
“Hitler, Stalin, Sarney”.
Brioche trouxe mais do que alegria para nossas vidas: ele trouxe
mais responsabilidade e mais amadurecimento para o Bernardo. Embora
ele não seja exclusivamente de ninguém – Maria Júlia, brincando, afirma
que é a “sua mãe” – foi o meu filho quem chamou para si praticamente
todos os cuidados com o Brioche. Sem reclamar ou ficar de má vontade.
Está sempre disposto a alimentá-lo, a brincar com ele, a passear.
Mesmo que isso signifique vários passeios por dia. Nosso cachorrinho é,
disparado, o animal que mais vive na rua. Há dias que passeia mais de seis
vezes!
Os passeios fazem parte da sua rotina diária: Brioche nos acorda às
7 horas da manhã, às vezes até antes, para a primeira volta do dia. Como
não consegue pular em nossas camas, ele fica em pé, nas duas patinhas
traseiras, e late para chamar nossa atenção. Já levei cada susto!
Invariavelmente, quem atende ao seu chamado é o Bernardo.
Mesmo sonolento, em jejum e em férias escolares, ele levanta
prontamente, acaricia o cachorrinho e cumpre o seu dever.
Preocupado com a saúde do Brioche, ele nos impede de alimentá-lo
com qualquer coisa que não a sua ração. E insiste em nos explicar que os
bichos, independente da espécie, não devem ser alimentados com comida
para humanos. E repete, sempre que surge a oportunidade:
- Mãe, não se esqueça de que ele é um cachorro!
É muito benéfico para meu filho que ele tenha essa lucidez, essa
compreensão sobre o mundo animal e a vida. Bernardo respeita
profundamente a natureza e suas leis, e vive em harmonia com tudo que o
cerca.
49
Mais bichos à vista...
Expliquei, então, para minha filha que não adiaria mais esse
enfrentamento e que, se ela não quisesse fazer parte disso, que fosse para
seu quarto. Botei os dois na sala e Bernardo e eu ficamos de mediadores,
prontos para entrar na jogada caso a briga se tornasse feia. Bernardo, como
é de se esperar, é sempre o mais tranquilo em relação aos bichos.
Nem tive tempo de pensar, embora saiba que não saberia devolver
um bichinho depois que ele estivesse em nosso apartamento, convivendo
conosco. Ao chegar em casa, o gatinho já estava lá, no quarto da Júlia,
51
dentro de uma caixa de papelão. Sou coração mole mesmo e não consegui
devolver o gatinho. Em poucos minutos, eu já estava escolhendo o nome
dele com meus filhos. Já que Maria Júlia o tinha trazido para casa e ela
estava cursando Psicologia, sugeri vários nomes de psiquiatras, psicólogos
e psicanalistas famosos. Piaget, Pinel, Freud, Lacan...
Quando parecia que a parceria cão e gatos estava formada, eis que
surge um novo membro. Em uma madrugada de janeiro de 2018,
madrugada extremamente quente, Júlia e eu ouvimos um miado, que vinha
do outro lado da rua, no prédio em frente ao nosso. Olhei pela janela e vi
um gatinho cinza, de mais ou menos três meses, ainda bem pequeno, no
meio da rua.
Com medo de que ele fosse atropelado, pedi para Maria Júlia descer
e levar ração para ele. Ju estava só de pijama, mas eu disse que tudo bem,
que ela não precisava trocar de roupa. Não havia ninguém na rua naquela
hora. Era para ir bem rápido, deixar a ração para o gatinho e voltar.
Todavia, apareceu outro gato, bem maior do que o primeiro, e Maria Júlia
se dividiu entre um e outro. Era só para ela botar ração para os gatinhos e
52
voltar, mas ela estava demorando. Vi quando ela entrou no prédio e o
gatinho cinza a seguiu. Pensei:
Dito e feito! Quase cinco minutos depois de ficar esperando por ela,
decidi ver o que estava acontecendo. Moramos no 3º andar e desci as
escadas à sua procura. Ela estava sentada nas escadas do térreo, com o
gatinho no colo. Fez uma cara de expectativa ao me ver se aproximar e
disse:
- Mãe, eu não sei o que fazer. Sei que você não vai aceitar mais um
gato, então, não sei o que faço.
Eu disse:
- Estou namorando!
Sem perder tempo e sem fazer rodeios, ele perguntou se ela gostaria
de namorar com ele. Diante da afirmativa, eles se beijaram ali mesmo, com
direito a abraço demorado depois do beijo. Ao ouvir esse relato, eu sentia
um misto de surpresa, de felicidade, de excitação, de suspense.
Sempre tive muito medo desse dia, o dia que meu filho estivesse
interessado em alguém e tivesse de tomar a iniciativa do relacionamento.
54
Sempre tive medo de que esse dia chegasse, ele precisasse da minha ajuda,
e eu não pudesse ajudá-lo, não soubesse o que dizer a ele ou dissesse algo
que só dificultasse ainda mais a aproximação dos dois.
- Be, como assim? Como você pode namorar antes de mim? Eu que
deveria estar namorando, não você!
Eu fazia coro!
55
- Viu, minha filha, do que adianta ir a tantas festas e paquerar tanto
se o seu irmão, que não sai de casa, consegue namorar? Eu insistia,
reforçando a autoestima dele.
Uma sensação boa, de que tudo se ajeita com o tempo, tomava conta
de mim. A verdade é que nem tudo tinha que ser custoso para meu filho.
Ainda bem!
Dessa forma, meu filho tem alguns direitos que, em tese, facilitariam
seu acesso aos estudos e ao mercado de trabalho. No entanto, esses direitos
surgiram há bem pouco tempo e ainda existem lacunas importantes a serem
preenchidas. Muitas vezes, a intenção é até nobre, mas falta entendimento
sobre o assunto para que a política pública realmente se torne efetiva.
56
eles. As cotas para deficientes ingressarem no ensino superior é uma
iniciativa nobre, mas no caso dos autistas, se não houver alguém que os
oriente na hora da prova ou se o tempo de duração da prova não for flexível
(normalmente eles precisam de mais tempo para fazerem as provas) ou se
as dúvidas não forem esclarecidas, de nada adiantará esta iniciativa. Será
perda de tempo. É preciso haver adaptação entre as necessidades dos
autistas e a realização do exame. Há muito ainda a ser feito.
- Mãe, eu não vou entrar por cotas não. Eu sou como todo mundo.
Vou estudar e passar como todo mundo!
57
decisões, até porque ele se mostrou determinado e corajoso ao abrir mão da
cota para autista?
Sei que sua atitude foi nobre e fiquei muito orgulhosa. Algumas
pessoas, antes de saberem da sua escolha, comentaram comigo que
Bernardo não deveria nem hesitar em tentar ingressar na universidade por
intermédio das cotas. Eu já pensava diferente. Claro que não iria impor
nada a ele, mas assim como ele, achava que ele tinha uma opção.
58
O Processo Seletivo de Avaliação Seriada (PAS), organizado e
executado pela Diretoria de Processos Seletivos (DIPS), é uma forma de
ingresso nos cursos de graduação presenciais da UFLA, no qual o
candidato é avaliado em três etapas consecutivas, ao final de cada ano do
Ensino Médio.
Existe ainda uma outra via de acesso para alguns grupos raciais e
para os deficientes: o sistema de cotas, garantido por lei. Como os autistas
foram recentemente incluídos no rol das deficiências, e por ser o autismo
considerado um transtorno incurável, apesar de o Bernardo estar
praticamente curado, ele teria direito a essas cotas.
CAPÍTULO IV
DO DIREITO À EDUCAÇÃO
60
em conta o talento, a criatividade, as habilidades e os interesses do
estudante com deficiência;
61
§ 2o Na disponibilização de tradutores e intérpretes da Libras a que se
refere o inciso XI do caput deste artigo, deve-se observar o seguinte:
62
Uma linguagem ainda formal
63
primeiro Desabafo Autista Asperger do qual participou, e que eu estive
presente, foi no início de 2016, em uma escola pública da Asa Sul. Estavam
presentes alguns pais e autistas adolescentes.
Suas cartas para mim refletem essa formalidade que tem diminuído
bastante ao longo dos anos, mas que ainda existe no seu jeito de se
comunicar.
64
impedir que isso ocorra vale infinitamente a pena. Uma pessoa como você
merece isso e muito mais em sua vida. Por isso, posso lhe garantir que cartas
como essa não terão sua produção cessada até o momento de minha morte.
65
Reduzi meus estudos em meu colégio, agi de forma impaciente com muita
frequência, expressei falácias e lhe entreguei minha carta anterior para você
incompleta, completando-a apenas alguns meses depois. Caso essa carta
também seja entregue incompleta ou atrasadamente para tua pessoa, então,
não restará dúvidas que sou um péssimo filho para você. Além disso,
também gostaria de me desculpar por ter agido como um vagabundo
anencéfalo ao faltar a dezenas de aulas letivas e gastar seu dinheiro com
avaliações de segunda chamada. Espero poder ser uma pessoa melhor nos
próximos anos, já que nunca senti tanto nojo de mim mesmo quanto esse ano
e sei que você merece o melhor filho do Cosmos.
66
Com muito amor,
67
68
No Dia das Mães de 2017, recebi mais uma vez uma carta de meu filho. É
costume dele escrever para mim nessas ocasiões.
Querida mãe,
Devo lhe dizer que você é a melhor coisa a existir em minha vida. Não
há nada que eu não ame nem há nada que eu seja capaz de desprezar em
você. Para mim, você é perfeita. Nunca existiu nem existirá uma pessoa
inteligente, bela, simpática, amável, honesta, sincera, determinada e sábia
quanto você: seu valor seria indefinido, caso fosse uma jóia, apesar de já tê-
lo como pessoa. Ultrapassa o de mais de um zilhão de diamantes.
69
pessoa. Sem sua existência, minha vida não faria mais sentido algum. Você
e a minha irmã são as únicas coisas capazes de dar um rumo a ela. Te amo
muito. Feliz dia das mães.
Amorosamente,
70
71
Certo X Errado
72
É preciso nos adaptarmos a um novo estilo de vida, no qual há pouco
tempo para processarmos tantas mudanças. É preciso nos adaptarmos a esse
mundo tecnológico que, se por um lado nos traz agilidade, progresso e
encurta distâncias, por outro nos desumaniza sensivelmente.
73
Assim como na Copa do Mundo de 2014, sediada o Brasil, saber
quem era o melhor jogador, Neymar ou Messi, o tranquilizava, saber que
políticos são honestos também o deixa menos ansioso e, cada vez que um
aparecia na televisão devido aos horários políticos gratuitos, ele me
perguntava:
Ou:
Ao que eu, muitas vezes, dizia que não conhecia o trabalho daquele
parlamentar e que não podia afirmar se ele era honesto ou não, embora
neste país seja muito raro um parlamentar honesto. É tudo muito relativo.
74
Mais tarde, em 2017, quando passei a trabalhar como assessora de
imprensa do Delegado Francischini, Deputado Federal do Paraná, Bernardo
se alegrou muito. Eu comentava com ele como Francischini era um
deputado sério, preocupado com o combate à corrupção e que tinha uma
pauta importante sobre segurança pública.
75
Pronomes, concordâncias e afins
Meu filho demorou muito para falar. Foram muitos anos de angústia
até que Bernardo formulasse frases com sentido e realmente se
comunicasse conosco. Ele tinha seis anos quando isso ocorreu. Minha
principal preocupação era a de que ele não recuperasse o tempo perdido e
tivesse dificuldades de linguagem e de aprendizado. Nada poderia ser mais
longe da realidade.
Ela queria saber o que eu “fazia” para que o Bernardo falasse tão
bem! Ele tinha apenas oito anos e fazia a concordância verbal e nominal
sem nenhuma dificuldade.
76
Usava os pronomes e preposições perfeitamente ao contrário dos
demais alunos da sua idade. Inclusive, ele não errava na colocação
pronominal, que muitas vezes pode ser trabalhosa ao definir regras bem
específicas no que se refere aos objetos diretos e indiretos. Ele dizia:
78
somente os autistas leves como ele, mas todos os autistas do espectro,
especialmente os autistas severos, tão carentes de políticas públicas
efetivas.
79
Deu vontade de rir! Foi uma excelente colocação do meu filho. Mais
uma prova de que ele estava ouvindo atentamente a tudo que acontecia a
nosso redor e às reivindicações dos outros palestrantes.
- Ué, Bernardo, por que você está com medo de ser processado?
Aí, eu disse:
- Vinicius, Be está com medo de ser processado pelo que ele disse
em relação ao governador. O que você acha?
- Be, você disse o que todos nós gostaríamos de falar. Você foi
maravilhoso!
80
Em 23 de abril de 2017, Bernardo participou de atividades relacionadas ao
Mês da Conscientização do Autismo 2017, a pedido da coordenadora do
MOAB em Ceilândia/DF, Mell Batista.
81
No UniCEUB, Centro Universitário de Brasília, participou da mesa-
redonda “A atuação do Psicólogo frente ao autismo”, realizada durante aula
da disciplina Fórum de Debates I, em 06 de outubro de 2017.
82
Outra carta de aniversário
83
Brasília, Distrito Federal, 17 de outubro de 2017.
Pode até ser que eu já deva ter expressado isso para ti em outras
cartas, porém, caso isso seja verdade, é extremamente importante que tais
84
fatos estejam gravados em tua memória por infinitas eternidades. Assim,
entenderás a razão pela qual tantas intenções boas que tivestes para mim
puderam, por ti, serem convertidas em benefícios para minha vida de forma
tão bem-sucedida e pela qual eu sofro tanto por não ser o filho que gostaria
de ter sido para tua pessoa. No que diz respeito ao primeiro questionamento,
digo que ele deve ser respondido pelo fato de que um ser perfeito, completo,
infalível como você, não é capaz de gerar nada além de graças e milagres em
minha vida; o segundo pelo fato de que, além de nunca ter conseguido me
converter no filho perfeito (nem no semi-perfeito), encontrando falhas,
defeitos, impurezas na minha constituição material e imaterial, estou seguro
de que as poucas virtudes que eu detinha apodreceram, o que pode ser
comprovado pela facilidade que estou tendo em desenhar criaturas
hediondas como demônios e pelo fato de as pessoas, em geral, preferirem
enxergar minha pessoa como pouco séria ou irritante do que gentil e dotada
de variados atributos intelectuais como antigamente. Na verdade, nem
mesmo essa carta está tão boa quanto deveria estar para ti.
Você é a melhor coisa que Deus poderia trazer para minha vida. Se há
algo que sempre me motiva a melhorar como pessoa, viver e tentar garantir
que os indivíduos ao meu redor não sofram, é a tua existência. Não posso
nem devo tentar viver sem ela. Minha alma e meu corpo hão de perecer sem
sua presença, companhia e felicidade. Você é minha inspiração. Você dá
significado à minha vida. Você é meu tudo, e por conta disso, EU TE AMO
AO INFINITO E ALÉM e BUZZ LIGHTYEAR!! FELIZ
ANIVERSÁRIO!! “Envelheço na cidade”!!
85
Bernardo José Mendina de Souza Martínez
86
Maria Júlia faz 19 anos
Bernardo, como não poderia deixar de ser, escreveu uma carta bem
carinhosa para a irmã, que tem sido seu referencial para quase tudo na vida,
principalmente para os estudos. Maju é extremamente focada, dedicada à
vida acadêmica e Be se espelha nela constantemente.
“Ah, Maju. Como uma entidade divina como você é capaz de existir
e de me dar tantas razões para viver? Para estar vivo e poder lembrar de sua
maravilhosa existência?” – Desconhecido, Autor.
87
88
Maria Júlia também havia escrito um bilhete de aniversário para Be em 28
de julho de 2017. Ela dizia:
Be, meu irmão mais lindo mundo, Feliz Aniversário! Eu espero que você
goste desse “mini-café da manhã” que eu arrumei pra você! Nunca se
esqueça que eu te amo muuuuuito, mesmo não sendo às vezes tão carinhosa.
Você e a mãe são as coisas mais importantes da minha vida. Você me traz
muita felicidade e eu não quero nunca que você sofra, então, saiba que pode
contar comigo sempre e sempre falar dos seus problemas para mim. Você já
está fazendo 17 anos e é um menino lindo, por dentro e por fora! Tenho
muito orgulho de você e da pessoa maravilhosa que você se tornou! Espero
que você aproveite bastante esse aniversário com seus amigos. Te amo muito,
Maju.
Bernardo, como sempre, escreveu uma linda carta para mim no Dia
das Mães. No entanto, essa carta só foi entregue perto do meu aniversário,
no final de outubro. Be está no último ano do Ensino Médio, ele é
extremamente perfeccionista e demorou um longo tempo para me entregá-
la.
89
A carta dizia:
Eu sinto muito por não ter terminado tua carta antes, mas estive tão
preocupado com a ideia dessa carta não ser boa o suficiente para que ti que
fiquei com medo de tentar sequer escrevê-la. Decidi realizar essa tentativa
90
por acreditar que você merece tudo o que há de infinitamente bom nessa
vida e em outras e perceber que, em meio a essa espera, estou fazendo você
sofrer, o que é a última coisa que eu desejo nesse mundo.
Eu te amo muito, mãe. Tenho muito orgulho de ter alguém como você
em minha vida. Sou tão pequeno se comparado a ti, mãe. Tão pequeno eu
sou que não importa o quanto eu me esforce, nunca consigo torna-la feliz o
suficiente para fazê-la se esquecer de seus problemas como eu gostaria ou de
ajudá-la a melhorar tua vida, e eu sinto muito por isso. Esse fato é
extremamente doloroso para mim.
Peço-lhe, mãe, que não te sintas tão ruim por não ter me dado as
condições socioeconômicas que gostarias que eu tivesse tido. O que você me
deu já é suficiente para que eu tenha uma vida muito saudável e feliz ao teu
lado. Não quero exigir mais do que as coisas maravilhosas que tenho e, se
dependesse mais de mim, comeria menos, beberia menos e até venderia
minhas roupas ou meus brinquedos velhos. No entanto, estou sabendo que
91
nada disso iria te agradar ou ajudar, o que me leva a tentar ajudá-la sendo
um bom filho para ti.
Não te sintas mal pelos teus problemas, mãe. A vida não é justa e, se
fosse, por exemplo, nunca teria tido autismo. Mas isso não quer dizer que
uma pessoa linda, virtuosa, forte, inteligente, corajosa, bondosa e simpática
como você não mereça tudo de bom nessa vida, e eu sou testemunha viva
disso. Os poucos momentos de vida que eu tive ao teu lado até agora estão
sendo, de longe, os melhores de minha vida. Você é uma pessoa incrível e eu
agradeço muito por te ter como mãe. Agradeço por tudo. Feliz Dia das
Mães!
92
93
E no meu aniversário de 47 anos, em 19 de outubro de 2018, nova carta:
94
A carta dizia:
95
No Natal desse mesmo ano, Bernardo escreveu outra carta.
No balão: “Feliz Natal, minha boa menina! Eis o meu maior presente para
ti: todo amor desse Cosmos!! Hô, hô, hô!!
96
Brasília, Distrito Federal, 25 de dezembro de 2018.
Escrevo-lhe esta carta com intuito de agradecer a ti por existir, ser uma
pessoa maravilhosa e trazer tantas coisas boas em minha vida. Você é quem
mais me faz feliz nessa existência e nas demais e eu espero que tenhas
apenas coisas boas em tua vida. Eu te amo muito, mãe! Feliz Natal!!
97
98
Diretor da Juventude Asperger do MOAB
Não para mim. Sei que uma inteligência acima da média é tão difícil
de se lidar quanto abaixo da média e que não é sinônimo de falta de
problemas ou de mais facilidades na vida. Muito pelo contrário. Um QI alto
pode gerar forte sentimento de exclusão, de isolamento, de falta de
identificação com os colegas. E tudo que quero evitar é que meu filho de
sinta deslocado depois de tudo que ele já passou.
99
Então, perguntei a meu filho se ele aceitaria esse desafio. Embora eu
queira ajudar todos que nos procuram, não posso sacrificar meu filho. Se
ele achar muito pesado seguir este caminho e dividir suas vivências com
essas pessoas, tenho de preservá-lo. Minha prioridade sempre foi e sempre
será meu filho.
O que ele pensou, então? Bem, se eu, que estudei tanto, tenho
dificuldades, imagine quem não estudou. O professor também afirmou
que, normalmente, quem sai mais cedo antes do tempo estipulado para a
realização da prova é quem desistiu das questões por não estar preparado
para elas.
100
Isso parece ter reconfortado meu filho. Fiquei feliz ao constatar que
ele tem seu próprio jeito de lidar com suas inseguranças. É bom perceber
que ele não depende tanto de mim para enfrentar o mundo. Ele construiu
seu próprio arsenal de crenças.
Despedida
101
Bernardo nos dá um susto
- Oiiii, mãe! Como estás? Hoje está horrível. Minha barriga está ruim
e preciso terminar o trabalho para amanhã. Como estás? Estou com
problemas para sair da cama. 38,1º C é febre? Eu obtive essa temperatura
do termômetro.
Confirmei que 38 graus era febre e pedi para ele tomar remédio para
febre. Perguntei se sua irmã estava em casa e se eles tinham paracetamol
em casa.
- Certo. Ela não está aqui. Vou ver se tem paracetamol. A Maju está
na casa da Laura antiga (é assim que ele se refere a uma amiga da irmã.
Como ela tem duas amigas com o mesmo nome, uma é a antiga). Hoje é
aniversário dela. E tu? Como estás? Achei. Tomo quantos? Disse ele, se
referindo ao remédio.
102
- Certo. Agradeço. O Brioche quer passear. Eu te amo muito. Espero
que estejas bem.
- Eu também te amo.
- Está bem melhor. Dormindo o dia todo. Vou deixar ele na UnB à
noite, se ele estiver melhor. Embora achasse melhor ele não ir.
- Veja se ele precisa ir. Se não precisar, melhor ficar em casa com
você. Ele está agarradinho em você?
- Comigo não, né, Lu, que eu não sei o que ele tem. Não sei ele tem
virose ou se comeu uma coisa estragada. A Santa está cuidando bem dele.
103
tranquila. Só que a tranquilidade durou pouco. No outro dia de manhã cedo,
recebi essa mensagem:
- Lu. O Bernardo não está bem ainda, voltou a ter diarreia. Quando
tem médico no postinho? (Be tem cartão do posto de saúde do Lúcio Costa,
o que lhe dá direito à consulta gratuita). Precisamos saber se ele está com
infecção ou só virose, ou seja, se ele precisa tomar antibiótico ou não.
Posso levar ele para fazer hemograma no Sabin, mas preciso que ele passe
por um médico antes.
- Lu, o Bernardo está muito mal. O médico disse que ele não pode
ficar perto dos gatos, que não podem dormir com ele e que eles passam
muita doença. Segundo o Be, a casa está suja, cheia de vômito de bicho,
nem comida os bichos tinham, a Santa precisou comprar. Você precisa
conversar com a Maria Júlia, não dá para deixar ele com três gatos e um
cachorro para cuidar. Amanhã, vou levar ele no posto novamente para
tomar soro e vou ver se consigo levar em um gastro.
104
- Se não está, vem pra cá ficar com ele.
- Tia, eu não quero ficar internado aqui. Pensei que o hospital fosse
parecido com o seu. Neste daqui eu não quero ficar.
Minha irmã achou engraçado. Como ela tem plano de saúde, fica
internada em hospitais particulares em quarto amplo, privativo, com ar
condicionado e direito a acompanhante.
105
O alívio veio em pouco tempo. O médico disse que ele não precisaria
ficar internado. Minha irmã e ele comemoraram. Em seguida, também
informou que ele tinha uma infecção bacteriana, ou seja, não contagiosa.
Comemoraram novamente!
Fiquei muito feliz com todo esse carinho que ela deu para ele na
minha ausência. Tive muito medo de que ele se deprimisse no dia do
aniversário por eu estar longe. Falamos praticamente todos os dias. Ele é a
primeira pessoa a me dar bom dia ao acordar e a última a me dar boa noite
na hora de dormir.
106
Estou tentando diminuir essa dependência que ele tem em relação a
mim, mas confesso que também sou dependente dele. É uma via de mão
dupla. É tão bom ficar ao lado dele, nós nos damos tão bem, temos tanta
afinidade, que é natural nos aproximarmos cada vez mais.
Não quero fazer nada que atrapalhe a vida do meu filho. Não quero
que ele deixe de investir em um relacionamento ou em um trabalho ou
estudo para ficar sempre perto de mim. Tenho me empenhado em dar mais
independência para ele, principalmente independência emocional, já que
independência física ele já tem.
Bernardo no Tinder
Para mim, quanto mais distante ele estivesse de tudo que pudesse
isolá-lo, melhor. Mas não foi só com Be que agi desta forma. Maria Júlia
107
ganhou o primeiro celular com 13 anos. Como é a filha mais velha e eu
precisava me comunicar com ela quando estava no trabalho, achei prudente
que ela tivesse uma forma de se contatar comigo em caso de emergência.
Não é saudável que um bebê, uma criança assista mais de uma hora
de filmes via celular. Além de o conteúdo desses filmes não ser adequado
para a faixa etária deles, incentiva-se o isolamento em uma fase da vida que
requer justamente o oposto: a socialização do ser humano. Ser bem
adaptado socialmente é um pré-requisito para a formação de um indivíduo
saudável emocionalmente, apto a lidar com os desafios e frustrações do
mundo.
Dito isso, Bernardo ganhou seu primeiro celular aos 18 anos. Isso
talvez explique, em parte, os vários prêmios de aluno destaque e de
excelência acadêmica que recebeu, sem falar nas notas altíssimas que
tirava. Das 13 disciplinas que cursava, chegou a tirar nota 10 em 10 delas.
Isso é um feito, com certeza.
108
dormir, hora para estudar, hora para brincar. Disciplina é indispensável
para quem tem objetivos na vida. E meus filhos sempre tiveram objetivos
bem definidos. Sempre disseram que fariam faculdade, que teriam um bom
trabalho, que seriam independentes. Felizmente, até para o Bernardo esse
sonho se tornou realidade.
Então, quando ele, com 18 anos, disse que não queria ficar solteiro,
achei natural indicar o Tinder para ele. Confio no meu filho. Confio nas
escolhas dele. Além do mais, a irmã também me apoiou na idéia.
Expliquei pra ele que isso acontece muito nesses aplicativos e que
não era nada relacionado a ele em particular. Não havia nada de errado com
ele. Antes pelo contrário. Be é um rapaz fantástico, super carinhoso e
inteligente, preocupado com os outros, romântico. Tenho certeza de que um
dia vai conhecer alguém interessante, que irá amá-lo e compreendê-lo do
jeitinho que ele é. E ele é um ser incrível.
109
De Licenciatura para Bacharelado
110
Ao perguntar para Maria Júlia se o irmão não tentaria trocar de
curso, ela disse que ele não só iria trocar como também tinha passado em
segundo lugar.
111
Aprender a dizer não
E acrescentei:
112
- Certo. Eles me pediram informações e tiraram foto de mim. Acho
que seria algo como virar integrante. Eu sinto muito. Não vou mais fazer
essa merda. Estou cansado de tudo isso.
Não gosto de quando ele fala palavrão, mas meu filho já tem 19
anos. É natural desabafar desta forma. Ainda mais só para mim. Deixei
passar. E eu disse:
113
Visita ao túmulo do meu marido
- Vou ao cemitério visitar seu pai. Quer algum recado pra ele?
- Queria não ter tido autismo para aproveitar melhor meu tempo com
o pai.
- Não fala isso não, meu amor. Não fala isso não! Você aproveitou
seu pai e eu aproveitei muito com você mesmo quando você estava out.
Você é o amor das nossas vidas e sempre vai ser!
114
- Eu queria que meu pai estivesse entre nós. Eu agradeço por ter tido
uma pessoa tão maravilhosa como pai.
- Verdade – eu disse. Vou falar tudo isso pra ele. Foi um pai
maravilhoso com certeza!
E finalizou:
Queria que ele estivesse aqui para ter um papo de homem com o
Bernardo. É tão complicado falar com ele sobre certos assuntos, ser a única
pessoa a quem ele pode recorrer, saber que minha opinião sobre os assuntos
tem tanto peso na vida dele. Seria bom alguém que mostrasse outra visão
do mundo para ele. Ou fosse outro tipo de apoio, com um jeito diferente de
lidar com os problemas.
Novamente em Brasília
115
Os dois se saíram melhor do que o esperado. Sabia que Maria Júlia
era capaz de se virar, mas a grande surpresa ficou por conta de Be. Queria
saber o quanto ele estava preparado para minhas ausências, e a resposta foi
positiva.
Sei que ele sentiu muita saudade de mim, assim como eu também
senti dele. Mas ele amadureceu com essa experiência. Até as pequenas
desavenças que ocorreram entre ele e a irmã foram necessárias para o
crescimento deles. Aprenderam a ceder, aprenderam a ser mais pacientes e
tolerantes um com o outro, aprenderam a resolver os problemas que
surgiram no dia a dia sem a minha interferência.
116
tri-campeão dessa competição – e Campeão do Mundo, além de
tetracampeão da Copa do Brasil. Temos muito orgulho do nosso time.
117
Como é parceiro para tudo, ensinei meu filho a tomar chimarrão
comigo. Nós, do RS, falamos mate em vez de chimarrão. Era um ritual que
eu tinha com meu pai, gaúcho de Santa Maria. Mesmo morando no Rio de
Janeiro, com quase 40 graus de calor, eu tomava mate com meu pai quando
ele chegava de viagem. Meu pai era piloto internacional e viajava muito.
Adorava tomar mate e assistir aos jogos do Grêmio com ele. Transmiti esse
ritual para meu filho.
Bernardo sabe até preparar o mate. Quando estou cansada, peço para
ele preparar pra gente. Tomamos juntos, conversando, assistindo jogos,
vendo séries. Be tenta me convencer a assistir programas do Animal Planet
com ele.
118
pai. Não posso ser a mão controladora e centralizadora que os impede de
crescer e de construírem suas próprias vidas.
Uma das coisas que ele menciona que vai fazer quando começar a
trabalhar é guardar dinheiro para pagar sua carteira de motorista. Foi desta
maneira que percebi que ele quer aprender a dirigir.
119
No dia 25 de outubro, acompanhei Bernardo e Maria Júlia na Região
Administrativa do Guará para confecção de suas carteiras de trabalho. Foi
comovente fazer parte dessa nova etapa da vida dos meus filhos. Fiz
questão de sentar ao lado deles enquanto entregavam os documentos
originais, respondiam as perguntas do funcionário e tiravam foto para a
carteira.
Ele poderia ter ido sozinho, afinal de contas, era só um ônibus para o
Centro de Taguatinga, e era bem fácil chegar até o destino. No entanto,
resolvi ir com ele. Queria que ele se sentisse seguro em seu primeiro teste
da vida adulta. Não era mais um teste escolar. Era um teste para trabalho
agora, para seu primeiro estágio. Queria que ele estivesse calmo para fazer
a prova. Sei como é importante e reconfortante a presença familiar nesta
hora.
121
acalmar relembrando suas notas no colégio e na faculdade, sua aprovação
em Licenciatura e Bacharelado na UnB. Não seria possível ele não passar
nessa prova. As estatísticas estavam a nosso favor.
Mesmo errando quase tudo de Excel, ele tirou a melhor nota do dia
na prova e, por isso, foi escolhido para o estágio. Demos muita risada. A
nota mínima para aprovação era 7.0, Be tirou 6,5 e foi a melhor nota.
Imagine o resto. O rapaz nos reconfortou dizendo que o pessoal é péssimo
mesmo em Excel e em Matemática. Pelo menos Bernardo era bom nas
outras matérias, principalmente em Matemática. Foi o que o salvou.
Por ter tirado a melhor nota da prova, Bernardo foi escolhido para a
vaga do estágio em uma clínica médica em Taguatinga. Meu filho ficou
eufórico. Queria saber tudo sobre o estágio. Perguntou quanto ganharia. R$
800 reais. Perguntou que horas seria o estágio. Provavelmente à tarde, já
que ele estudava de manhã. Perguntou onde ficava a clínica. Em
Taguatinga, bem perto do local da prova. A cada informação dada, meu
filho vibrava. Estava radiante.
122
Saímos de lá e fomos jantar em um Restaurante Chinês para
comemorar. Pedi um pratão de Yakisoba para ele, que comeu tudo sem
demora. Pedi arroz colorido com camarão para mim. Como já passava das
20 horas, achei mais prudente pedir um Pop do que pegar ônibus. Na volta,
dentro do veículo, Bernardo não parava de falar. Indagou se eu gostaria de
voltar para a academia que ele iria pagar. Perguntou também se a Maria
Júlia gostaria de voltar. Estava disposto a pagar academia para ela também.
Eu brinquei:
- Be, você acha que vai ficar milionário? Como vai conseguir pagar
tudo isso com R$ 800 reais? Você tá maluco?
123
Esses tardígrados seriam analisados por uma estudante veterana da
UnB para averiguar detalhes sobre as reações envolvidas na resposta deles
ao estresse oxidativo na pesquisa em questão.
Essa proposta veio em boa hora, já que o estágio não deu em nada.
Era para Be ter recebido uma ligação no dia seguinte confirmando a
entrevista. Ele nunca recebeu esta ligação. Cansado de esperar, Bernardo
ligou para a empresa responsável pelo teste a que se submeteu e não só o
telefone havia mudado, como não conseguimos encontrar seu endereço na
Internet ou nada semelhante.
124
Gil continuou nos falando maravilhas a respeito da menina: que era
uma pessoa muito estudiosa, muito dedicada ao trabalho, focada em
melhorar de vida, enfim, uma excelente pretendente para meu filho. Gil até
nos dizia que os dois eram muito parecidos.
125
Abono Natalino para os usuários do BPC (Benefício de Prestação
Continuada).
Nada mais justo do que conceder o 13º para mais de 4,6 milhões de
pessoas com deficiência e idosos cuja renda mensal é inferior a R$ 260 por
mês (valor reajustado este ano). Por isso, abracei com todas minhas forças
esse objetivo. Bernardo esteve nessa luta o tempo todo. Eu não poderia
ficar mais orgulhosa do meu filho do que fiquei. Ele levou tudo muito a
sério, ajudando e guiando os cegos pelos corredores da Câmara e do
Senado, aprendendo a falar (um pouco) de Libras para se comunicar com
os surdos, empurrando a cadeira de roda dos cadeirantes, servindo água e
café para todos, fazendo amigos por onde passava. Be é exemplo de
solidariedade para todos que o conhecem.
126
Poucos dias depois de chegar a Porto Alegre, a Pandemia do Corona
Vírus atingiu em cheio o Brasil. Fomos comunicados de que haveria
isolamento social em todo o país com fechamento de comércio e de lugares
públicos e abertura apenas de supermercados, mercadinhos e atividades
essenciais de saúde. As escolas foram fechadas, assim como as
universidades. A UnB suspendeu suas atividades presenciais e não havia
previsão de aulas online ou de ensino à distância.
Tudo mudou de uma hora para outra. Não fazia mais sentido Be ficar
em Brasília se não teria aula. Agora, tirar o inquilino do meu apartamento
se tornara prioridade. Por isso, no final de abril, entrei com pedido junto à
imobiliária para que o inquilino desocupasse meu imóvel o quanto antes.
Precisei até isentá-lo de um mês de aluguel para facilitar essa desocupação.
No final, deu tudo certo. Além de ter voltado para meu apartamento no
final de maio, Bernardo veio para Porto Alegre para ficar comigo.
128
mais cruel: já estamos há cinco meses em isolamento e devemos ficar mais
um ou dois meses na mesma situação.
129