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O Autismo tem cura?

Luciana Mendina

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Agradeço ao Dr. Alfredo Jerusalinsky e à Eda Tavares pelo incansável
comprometimento com o tratamento do meu filho. Agradeço às minhas
irmãs Maria Amanda e Maria Pia, à comadre Aline Tavares e à
Camila Puhl por terem me ajudado a cuidar dos meus filhos como se
fossem delas. Agradeço também a Emily Christmann por ter sido um
porto seguro nesta quarentena.

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Dedico este livro aos meus
filhos Bernardo e Maria Júlia
e ao meu marido Héctor, com
quem construí uma base sólida
de amor e confiança

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“Se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação
(duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida” (Carlos
Drummond de Andrade)

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INTRODUÇÃO

I- O AUTISMO
A importância do diagnóstico precoce
Maior incidência em meninos
Mas o que é o autismo, afinal?
Epidemia de autistas?

II- A VIDA
2000: o nascimento do Bernardo
O parto do meu filho
Duas crianças, dois diários
Um casamento feliz

III- BERNARDO
A primeira noite do Bernardo
Um bebê especial
O primeiro aniversário

IV- FALHA NO ENTROSAMENTO E NA COMUNICAÇÃO


O alerta das professoras
A suspeita da surdez

V- O DIAGNÓSTICO
A viagem para Porto Alegre
Avaliação no Centro Lydia Coriat
O diagnóstico do autismo

VI- O TRATAMENTO
O início do tratamento
Mudança do RJ para POA
A primeira residência em POA
Desfazendo mitos
Uma criança normal

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VII- CONTRATEMPOS FAMILIARES
Outra doença em nossas vidas
A morte da minha mãe
Meu aniversário de 32 anos
Fazendo o luto pela morte do meu marido
Meu pai, o amigo de sempre
Sem noção do perigo

VIII- CONTINUAR A LUTAR, CONTINUAR A VIVER


A mudança pra Ramiro
A volta ao trabalho
Minhas irmãs: tias carinhosas e atentas às necessidades dos
meus filhos
2006: Meu pai, uma nova doença
Um rosto inexpressivo

IX- OS SINTOMAS DO AUTISMO


Um rosto inexpressivo
Recusa a novos alimentos
A ansiedade da espera
O mito da agressividade
Dificuldade para dormir e fixação por metais
A rejeição ao espelho
O mito do balanço
O mito do retardo ou da genialidade
Habilidade para montar brinquedos e quebra-cabeças
O mito da falta de emoção

X- UM CAPÍTULO ESPECIAL PARA A IRMÃ DO BERNARDO


Maria Júlia: a companheira de todas as horas

XI- ABRINDO A PORTA: AS PRIMEIRAS CONQUISTAS


O primeiro desenho
Bernardo começa a falar
Viajar era difícil

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2008: primeira série, um marco para sua cura
Correndo de um lado para o outro
Fantasia vs. realidade – mais um obstáculo a ser vencido
Diferenciação entre o simbólico e o imaginário

XII- BERNARDO NO MUNDO DE TODOS


Dezembro de 2008: enfim, a alta
Mudança para Brasília: mais um recomeço
2010: adaptação à nova cidade
Sinceridade sem filtros
Bullying no colégio?
O teatro em sua vida
Bolsa de estudos para um dos melhores colégios de Brasília

XIII- OUTRO MODO DE SER


Ser ou não ser autista
Sobra formalidade, falta malícia
A mania de doença
2013: sem vergonha de mim
O que importa é competir
Aniversário de 13 anos: consciência da morte
O que houve, meu filho?
Medalha de ouro no judô
2014: ritual antes de dormir
O que você está falando, meu filho?
Um exemplo de autoestima
Em tempo de Copa do Mundo
Outubro de 2014: meu aniversário de 43 anos
Resultado do ano letivo: Bernardo tirou notas excelentes
O dia a dia no colégio
Um menino surpreendente
Gandhi e Brioche em nossas vidas
Mãe, o que falta para você ser feliz?

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Um presente para minha mãe
Cristovam Buarque

“Eu tive de aceitar a morte de um filho idealizado, com quem


eu tinha convivido até então, e amar essa nova criança que estava
nascendo.” Ao ler esta frase, onde Luciana Mendina descreve os
momentos em que tomou conhecimento do diagnóstico de que
Bernardo era um menino autista, com um ano, lembrei das mães que
em algum momento descobrem uma deficiência permanente em seu
filho. A imagem idealizada para um futuro grandioso desaparece e
ela tem de adaptar-se a amar o filho com um futuro ameaçado.
Lembrei especialmente de minha mãe quando, uma jovem
mulher com vinte e oito anos, com os pobres recursos médicos e
sociais da década dos anos 1940, comprovou que seu terceiro filho,
meu irmão Guilherme, seria uma pessoa diferente: dependente em
cada instante de cuidados especiais, em um nível devastador de
autismo ou, talvez, uma devastação neurológica ainda maior que o
impedia da mínima capacidade cognitiva, apesar de ter força física
e mobilidade.
Imaginei como teria sido seu diário e mergulhei no relato deste
lindo livro, com o otimismo disfarçado pela pergunta.
O “O autismo tem cura?” é lido como um mergulho. Nos
sentimentos de uma mãe ao descobrir o autismo de seu filho na
primeira infância; nas relações com o filho idealizado sendo
substituído pelo novo filho autista; nas relações familiares com
sucessivas perdas, do marido e do pai; na luta, dia a dia, noite a
noite, para cuidar da criança; mas também na vitória de ver o filho
idealizado renascer, como um filho pródigo, que retorna graças ao
esforço pedagógico e ao carinho amoroso de sua mãe, irmã, médicos,
babás, avô.
“O autismo tem cura?” é um livro de rara sensibilidade que
agarra o leitor pelo texto e pelo tema, pela trama retratando a
realidade onde os sentimentos afloram em cada página, ao lado da
luta vitoriosa. Ao longo deste período de 15 anos, Luciana

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Mendina nos oferece uma Memória Pessoal onde o grande
personagem é o Bernardo, mas onde, com naturalidade, aflora a
gigantesca figura da própria autora como heroína. Porque ela
escreve na primeira pessoa, como memória, mas passa a sensação de
que um outro observador estaria descrevendo sua vida.
É um livro que nos faz bem. É uma história de amor e de
superação. E deve ser lido desta forma, mergulhando nos
sentimentos da autora, no seu dia a dia, na sua luta. É um livro
que passa razões para o otimismo ao descrever com tanta
naturalidade a passagem das dificuldades para cuidar de um
autista até a improvável cura que ao final acontece. A pergunta no
título ajuda a manter um clima de suspense que só é resolvido no
final quando conhecemos o novo Bernardo, conectado, educado,
criativo, amoroso.
Todos têm razões para ler este livro, que eu espero tenha
milhões de leitores com os quais eu gostaria de dividir os risos e as
lágrimas, as tristezas e as alegrias, os pêsames e as congratulações,
o pessimismo e o otimismo que suas páginas nos passam. É um livro
que seria grandioso, mesmo se fosse ficção, e ainda maior e melhor
sendo Memória, quase um diário literário de rara qualidade, de uma
mãe e seu filho.
Ele deve ser lido especialmente por aqueles que têm filhos
autistas ou com outras síndromes de distúrbios que os colocam fora
da curva da normalidade; também pelos profissionais que lidam
com estes problemas, babás, médicos, terapeutas em geral e pela
sociedade; para quebrar preconceitos, aumentar solidariedade,
mostrar respeito devido a estes filhos que surgem substituindo os
filhos idealizados, crianças diferentes da média que merecem ainda
mais amor. Também pelos irmãos dos idealizados mortos e de seus
substitutos, como eu em relação ao meu irmão Guilherme que viveu
até 67 anos, no ano passado, sem o menor conhecimento do que lhe
acontecia ao redor, nem de quem estava ao seu lado.
Eu gostaria de ter lido este livro anos atrás, como um pequeno
manual de otimismo de como cuidar de autista e leva-lo à cura, ao

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espaço da normalidade, sempre relativa em cada um de nós. E
gostaria muito de poder dar este livro de presente a minha mãe, D.
Bibi, que viveu dos 27 aos 74 anos cuidando de um Bernardo que
morreu com 67 anos sem voltar ao mundo dos idealizados.

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INTRODUÇÃO –

Bernardo foi diagnosticado com autismo e iniciou o tratamento


psicanalítico com Dr. Alfredo Jerusalinsky e Dra.. Eda Tavares em julho
de 2002, quando tinha apenas um ano e onze meses. Dentre os vários
fatores envolvidos nesse processo (ambiente familiar, colégio, tratamento
clínico), o diagnóstico precoce foi fundamental para que Bernardo tivesse
aumentadas suas possibilidades de cura. Enquanto a maioria das crianças
autistas é diagnosticada somente com cinco ou seis anos (perdendo tempo
precioso na luta contra a doença), meu filho foi diagnosticado com autismo
antes dos dois anos de idade.
Diferentemente de vinte anos atrás, hoje há consenso de que a
intervenção terapêutica no período inicial da vida – quando as funções
cerebrais da criança (bebê) ainda estão se ajustando (a chamada
neuroplasticidade) – obtém resultados positivos que as intervenções tardias
muito dificilmente conseguem alcançar.
Por essa razão, defendo a detecção precoce e o tratamento
psicanalítico como as duas principais ferramentas a serem utilizadas no
combate ao autismo, sem menosprezar, é claro, a importância dos pais, da
família e do colégio durante todo esse processo.
Com essas ferramentas, é possível enfrentar o autismo e, dependendo
das circunstâncias e das características específicas de cada caso, curá-lo.
Sim. O autismo tem cura em um significativo número de casos e é o que
pretendo mostrar nas próximas páginas deste livro.
Nesse sentido, em mais uma tentativa de alertar os pais sobre os
sintomas do autismo e tudo que diz respeito ao assunto, criei em outubro
de 2013 o blog Diferente sim e daí? –
WWW.lucianamendina.blogspot.com – e apresentei à senadora Ângela
Portela um estudo feito pelo Grupo Nacional de Pesquisa em Psicanálise e
Saúde Pública.
A senadora abraçou nossa causa e esse estudo se tornou o PLS
451/11, que obriga o SUS a adotar um protocolo para acompanhamento da
saúde psíquica dos bebês desde o nascimento até um ano e meio de vida. O
objetivo é que vários transtornos mentais – e não só o autismo – sejam
detectados o quanto antes a fim de que os bebês recebam tratamento

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adequado em tempo hábil, o que resultará em altas taxas de cura ou, no
mínimo, em maiores taxas de recuperação do que as atuais.
Aprovado por duas comissões do Senado Federal, este projeto de lei
foi renumerado na Câmara dos Deputados para PL 5501/13 e aprovado por
unanimidade em Plenário no dia 29 de março de 2017, com relatoria oral
do Deputado Delegado Francischini, cujo filho Bernardo, de seis anos,
também é autista. Tornou-se, então, a Lei 13.438/17, conhecida como a
Lei do Diagnóstico Precoce.
Esta lei representa uma conquista para milhões de crianças
brasileiras, especialmente para mais de dois milhões de autistas (estimativa
de quantos autistas temos no país. Não temos ainda os números exatos,
infelizmente), e prevê que o protocolo adotado pelo Ministério da Saúde
avalie, sistematicamente, o desenvolvimento mental (mas não apenas este)
do bebê, definindo sua identidade e suas formas de relação com as pessoas
que o rodeiam.
É essencial destacar que são essas primeiras relações que moldarão o
sistema de significações que ele colocará em jogo à medida que for
entrando em contato mais amplo com o mundo. Por fim, é importante
mencionar que esse projeto é mais uma conquista para a prevenção
precoce das doenças mentais e coloca o Brasil na vanguarda dos países que
levam a sério a saúde mental da população.
Quero reforçar, mais uma vez, que a rapidez no diagnóstico e no
início do tratamento pode fazer toda a diferença para a obtenção da cura ou
da remissão da maioria dos sintomas. Depois de concluído o diagnóstico
de autismo leve do Bernardo por uma equipe multidisciplinar, comandada
pelo Dr. Alfredo, levamos menos de um mês para nos mudarmos do Rio
de Janeiro para Porto Alegre, a fim de iniciarmos o tratamento. Não havia
tempo a perder!
A partir daí, os progressos começaram a surgir. Não da forma
crescente e contínua como eu esperava. Houve altos e baixos, e o sucesso
do tratamento não era uma certeza até então. Foram necessários mais de
três anos de intensivo tratamento para que as pequenas mudanças no
comportamento do Bernardo se tornassem definitivas e impulsoras de um
novo jeito de “interpretar” o mundo, com mais participação social e menos
isolamento.

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Até os cinco anos, Bernardo não falava e não desenhava; nem sequer
fazia garatujos, que são aqueles rabiscos gráficos sobre uma superfície
plana que expressam um estado de ânimo sem definir uma figura. A partir
dos seis anos, houve uma mudança radical, com a aquisição da linguagem
e da escrita. Tão radical que aos nove anos (apenas três anos depois de
começar a falar), ele cursava o segundo ano do ensino fundamental de um
colégio público da capital, comunicava-se com as outras crianças da sua
faixa etária – apesar de ter poucos amigos – falava sem qualquer
dificuldade ou limitação, brincava diariamente com a irmã (o
relacionamento deles é tão próximo que ela se tornou seu mais forte ponto
de referência) e com a sua família.
O fim do tratamento ocorreu em fevereiro de 2009, e as consultas de
acompanhamento foram dispensadas. A alta do meu filho foi um dos
momentos mais importantes de nossas vidas e levamos um bom tempo
para nos adaptarmos a esta novidade.
Embora atualmente Bernardo esteja interagindo normalmente com
todos a sua volta, não descarto que, em breve, ele precise ter novas sessões
de psicanálise. Ele já teve algumas sessões com a Dra. Inês Catão em
2016. A idéia partiu dele mesmo. Na fase da puberdade, com 15 anos,
surgiram novos questionamentos e novas inseguranças.
Mais uma vez estive ao seu lado para enfrentarmos esse novo desafio.
Mas foi uma nova história, particularmente porque, nessa oportunidade, o
motivo das consultas não foi, certamente, o autismo.
O mais importante é que este livro surgiu da necessidade de alertar os
pais para a verdadeira face do autismo: um transtorno mental e emocional
que tende a se agravar e a se tornar crônico se não houver atendimento
adequado no início de sua manifestação: é um transtorno que pode, lenta e
constantemente, minar as forças de quem o combate, e levar não somente o
autista ao isolamento, mas também seus pais e todos que o cercam.
Muitos pais não conseguem lidar com toda essa pressão e se
divorciam, culpando (conscientemente ou não) o parceiro pelo inferno que
suas vidas se tornaram. Com tanta dor em jogo, é inevitável procurar
culpados. Mas essa tentativa de imputar a culpa a alguém não leva a lugar
nenhum. Talvez este seja um dos primeiros deveres de casa dos pais:
aprenderem a não se culpar pela condição do filho.

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Para compartilhar minha experiência com Bernardo, comecei a
escrever este livro em 2012, mas não tive pressa para terminá-lo. A
primeira edição foi publicada no final de 2015, quando Be tinha 15 anos.
Apresento agora a vocês a 2ª edição do livro – ampliada e revisada. A
demora na publicação da primeira edição foi imprescindível para o
amadurecimento da história e para a entrada na adolescência, algo que eu
muito temia, mas que tem sido bem positivo (e divertido) até aqui.
Depois de escrever algumas páginas, dei-me conta de que precisava
perguntar a meu filho se ele não se importava de eu tornar pública sua luta
para vencer o autismo. De bate e pronto, ele respondeu:
- Eba! Vou ficar famoso!
Pois é. Ele é assim. Vê o lado positivo de tudo que lhe acontece. Foi
gratificante ouvir isso. Não poderia haver melhor reação. Não sei se ele
ficará famoso, mas tenho certeza de que tudo o que ele passou servirá de
estímulo para pais de crianças autistas que precisam ter esperança para
seguir adiante.
A verdade é que o autismo cansa, desanima. É um transtorno que
avança, recua, confunde. Mas ele só não pode ser maior ou mais forte do
que a determinação dos pais de persistir no tratamento que, até agora, é
fundamentalmente clínico.
Apesar das inúmeras dificuldades encontradas ao longo dos anos, não
podemos desistir de nossos filhos. Não podemos deixar que o autismo
destrua nossas esperanças de cura. Nunca desisti de meu filho. Mudei de
estado, mudei de padrão de vida, mudei meus objetivos pessoais, perdi
algumas pessoas queridas no caminho.
Uma das certezas que adquiri com o tempo foi a de que faria tudo de
novo se fosse preciso. Depois de tantas lágrimas e sorrisos, hoje eu sei que
o autismo – em muitos casos - pode ter cura.
Prestes a completar 19 anos em 28 de julho, Bernardo cursou colégio
particular e regular em Brasília, para onde nos mudamos depois do término
do tratamento psicanalítico.
Lê e escreve com facilidade (suas redações são tão boas que são lidas
em voz alta em sala de aula) e desenha histórias de aventura.
Passou para Ciências Biológicas na UnB no final de 2018 sem cotas.
Ele me disse: “Mãe, não quero entrar por cotas. Sou igual a todo mundo.
Vou estudar e passar!” Sua irmã e eu ficamos orgulhosas.
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Em 2011, perguntado sobre o que pretendia ser quando crescesse, ele
disse que queria ser “cartunista”. Em outras ocasiões nos comunicou que
poderia tornar-se paleontólogo. “Quero estudar os ossos dos dinossauros”,
afirmava.
Com notas altíssimas em Ciências e apaixonado por dinossauros e
biologia em geral, Bernardo optou por Biologia. Quer fazer Licenciatura e
Bacharelado.
Ganhou várias vezes prêmio de aluno destaque no colégio por suas
notas e comportamento. Concluída a faculdade, pensa em prestar concurso
público e se tornar perito da Polícia Federal.

I – O AUTISMO

A importância do diagnóstico precoce

No caso do Bernardo, o diferencial para que ele se curasse foi o


diagnóstico precoce. Enquanto a maioria das crianças recebe tratamento
adequado só a partir dos quatro ou cinco anos – quando recebe - Bernardo
fez sessões diárias de psicanálise desde os dois anos. Era ainda um bebê.
Tomava mamadeira, chupava chupeta, usava fraldas, dependia de mim
para tudo.
O primeiro relatório do Dr. Alfredo, feito aos dois anos e nove meses
do Bernardo (ele iniciou o tratamento em 23 de julho de 2002, cinco dias
antes de completar dois anos), indicava que meu filho “apresentava um
quadro de Autismo Infantil Precoce cuja evolução tinha se mostrado
favorável ao longo de nove meses de tratamento psicanalítico individual.
O exame neurológico, a cargo do Dr. Rudimar Riesgo, verificava e
complementava, clinicamente, o diagnóstico psicológico de autismo com
PDD-NOS (Pervasive Development Disorders – Not otherwise Specified).
O exame de TC se mostrava normal e o EEG evidenciava-se anormal em
sono induzido, apresentando raros paroxismos isolados na região frontal
esquerda, no contexto de um background normal para a idade. Estes
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achados indicavam disfunção cerebral focal em grau leve, com baixo
limiar para convulsões”.
Devido a essa disfunção cerebral, Bernardo foi medicado com
Depakene 3-3ml/dia (25 mg/kg/dia), apresentando ação favorável, sendo
retirada, então, a medicação, depois de quatro meses de uso, corrigindo
totalmente a disfunção, decorrendo, com isto, uma normalização
EEGráfica.
Ainda de acordo com o relatório do psicanalista, a evolução favorável
“permitiu diferenciar a presença de um transtorno específico de
linguagem cuja definição oscilava clinicamente entre um transtorno de
audibilização e um retardo afásico expressivo-compreensivo. O exame de
PEA indicou condução normal, segundo relatório enviado pelo
otorrinolaringologista Dr. Luis Lavinsky, sendo impossível a realização
de uma audiometria tonal pela falta de colaboração do paciente. Havia,
contudo, dúvidas acerca da qualidade da condução. Justamente a
evolução sonora indicava um transtorno na interface entre o auditivo e a
incidência maturativa do sistema linguístico. Este transtorno poderia ser
tanto efeito residual neuroplástico do processo autístico (existindo, então,
possibilidades de remissão por meio de tratamento específico, a se
instalar no momento em que a sua posição subjetiva viesse a demandar a
intermediação linguística como modo de se comunicar com o outro,
quanto constitucional; ou bem efeito correlativo das consequências
maturativas neuroplásticas no SNC (devido a idade precoce de sua
apresentação) da leve disfunção focal no lobo frontal esquerdo
funcionalmente ligado ao desenvolvimento da diferenciação associativo-
lingüística. Do ponto de vista psicológico e maturativo, restabeleceu-se a
relação com o outro, instalando-se a função da demanda e, então, um
incipiente jogo simbólico, registrando-se o aparecimento de umas dez
palavras e a emergência de fonemas vinculados a morfemas da língua.
Aos poucos, instalava-se uma clara manifestação de escolhas e desejos,
como também uma modulação afetiva clara e expressiva. Configurava-se
uma relação diferenciada entre o familiar e o estranho, e uma melhor
aceitação de limites e relativa noção da diferença entre o proibido e o
perigoso. Desapareciam as ritmias e signos de isolamento, aparecendo de
modo intermitente o desejo de se comunicar com o outro. A evolução
favorável, correlativa ao tratamento psicanalítico individual (com
participação episódica dos pais e especialmente da mãe) tornavam

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recomendável a continuidade deste com controle neuropediátrico
periódico e, em função da presença dos transtornos específicos de
linguagem mencionados, a possível indicação de estudos complementares
na área auditiva com futura prescrição – no momento da evolução
subjetiva que o assinale como oportuno – de terapêutica específica de
linguagem”. Assim dizia a avaliação dos primeiros seis meses de
tratamento do meu filho.
Para a maioria dos médicos, o autismo é incurável em todos os casos,
desde os mais leves até os mais severos. Para eles não há exceção. Isso não
é verdade. O meu filho, assim como muitas outras crianças que foram
diagnosticadas com autismo, está curado.
Só que esses médicos que não admitem a cura do autismo são tão
deterministas que se eu digo e demonstro que meu filho está curado eles
passam a argumentar que é porque ele não era autista já que, se fosse
autista, não estaria curado (sic); e o curioso é que isso acontece embora
sejam eles mesmos os responsáveis pelo diagnóstico de autismo.
E como eles não podem negar sua cura (está estampada no seu rosto e
no seu comportamento a falta de sintomas do autismo), só resta a eles
dizerem que meu filho não era autista, que o diagnóstico estava errado
(mas foram eles que fizeram o diagnóstico!).
Para evitar tais equívocos, transcrevo abaixo um segundo diagnóstico,
confirmando o diagnóstico de autismo do Dr. Alfredo, psicanalista. Foi
feito pelo neuropediatra Dr. Rudimar Riesgo. Foram realizadas duas
consultas com Bernardo: a primeira em 26 de julho e a segunda em 30 de
julho, ambas em 2002:
“Revisei hoje o Bernardo José Mendina de Souza Martínez, agora
com dois anos, com um quadro comportamental que tem traços dentro do
espectro do Autismo Infantil, que no seu caso parece ser leve e estar, na
realidade, como um PDD-NOS (Pervasive Development Disorders, Not
Otherwise Specified). A primeira consulta foi em 26/07/2002. Do ponto de
vista neuropediátrico, tem um repertório restrito de interesses, não
mantém o olho no olho, não tolera o manuseio durante os exames, tem
sérias dificuldades na linguagem (em especial a expressiva). Seu EEG tem
ritmos de base bem organizados e maduros para a idade, com raros
paroxismos na região frontal esquerda. O plano é usar Depakene 3-3
ml/dia (25 mg/kg/dia), baseado na clínica e no EEG. Poderia ser

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considerada a possibilidade de Risperidona, conforme a evolução. Se
beneficiaria com atendimento psicoterápico junto com neuropediátrico. À
disposição, caso necessário discutir”.
A maior dificuldade, a meu ver, para estes médicos céticos, é não
saberem mais como classificar, rotular o meu filho. Se ele não é autista, o
que é, afinal?
Ele é uma criança com algumas excentricidades - resquícios de um
autismo bem tratado e curado – com forte potencial para o
desenvolvimento de certas habilidades, e alguns pontos fracos, que
demandam mais atenção, cuidado e apoio.
O fundamental para a cura do autismo ou remissão quase total dos
sintomas é que o diagnóstico seja feito antes dos três anos de idade. Nesses
três primeiros anos de vida, o Sistema Nervoso Central (embora eu seja
leiga, hoje em dia essas informações são de domínio público) experimenta
um processo de maturação que combina de um modo plástico as condições
genéticas constitucionais com a estimulação e organização proposta pelo
meio ambiente tanto físico quanto social. Isso significa que completa,
desenha e articula sua rede de conexões (sinapses) para funcionar o mais
de acordo possível com o modelo familiar, social e cultural que lhe seja
proposto.
Em nenhuma outra época da vida nosso cérebro é tão plástico como
nesse período inicial. Portanto, se nosso filho vier a nascer com
predisposições adaptativas desfavoráveis, esses primeiros três anos
constituem o melhor momento para se tentar resolver suas dificuldades.
Clínicos confirmam que é desse modo que se obtêm os melhores
resultados terapêuticos.
Encaminhar as crianças nesse devido tempo torna necessária uma
detecção precoce; requer-se, para isso, instrumentos e profissionais
especialmente preparados e dirigidos a diferenciar os modos de
funcionamento mental que caracterizam e anunciam precocemente os
riscos de se configurarem graves perturbações nas estruturas psíquicas e
emocionais, já que essas perturbações são capazes de transtornar o
conjunto das funções do desenvolvimento.
Não é somente saber que a motricidade funciona bem, que a criança é
inteligente, que vê e escuta adequadamente, que sua cabeça e seu corpo
crescem de acordo com as tabelas, mas trata-se também de saber como ela

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se relaciona com seus cuidadores e semelhantes, quais seus sentimentos,
como ela entende, acolhe ou rejeita as significações afetivas e a
compreensão que tem ou não das situações familiares, sociais e culturais
das quais participa ou nas quais é incluída.
Se não houver uma abordagem na criança com risco de apresentar
autismo antes que esta complete três anos, teremos desperdiçado o melhor
momento para tentar sua recuperação.
Cinco anos depois do diagnóstico do Dr. Rudimar, em 16 de julho de
2007, Dr. Alfredo fez um novo laudo sobre a evolução do Bernardo. O
diagnóstico inicial havia sido Autismo Infantil (CID 10: F 84.0). O novo
diagnóstico apontava para sintomas leves residuais do quadro autista
inicial: vacilações episódicas na identificação egoica. Embora seu
discurso seja atualmente configurado de um modo gramatical correto e
com sentido pertinente à situação, eventualmente entremeia pequenas
frases feitas – sintagmas – para preencher lugares na linguagem que lhe
aparecem com dúvidas de sentido. Neste ponto, assemelha-se a uma
criança que desenvolveu sua língua num ambiente bilíngue (característica
que se encontra frequentemente nas configurações psíquicas pós-
autísticas). Sua inteligência é completamente normal e ele se encontra em
perfeitas condições de processamento de suas aprendizagens. Recomenda-
se a continuação de seu tratamento psicoterapêutico (psicanalítico) para a
resolução desses sintomas residuais, na medida em que eles, se bem não
atrapalham sua subjetividade nem sua afetividade, podem gerar
transtornos futuros na sua interação social.
Também de acordo com o novo diagnóstico, o histórico do meu filho
- quando da realização do primeiro diagnóstico, aos dois anos de idade -
indicava que Bernardo deambulava intensa e constantemente, se escondia
embaixo dos móveis, parecia não escutar nada do que se falava e também
parecia não registrar os ruídos que se produziam a seu redor (salvo raras
exceções que colocavam em dúvida a qualidade de sua audição).
Segundo anotações do Dr. Alfredo, quando eu insistia em obter
alguma resposta do Bernardo, ele batia em mim com raiva e logo depois se
isolava; era atraído especialmente pelos objetos que giravam e recusava-se
a olhar para o rosto de seus semelhantes.
Suas demandas eram muito escassas e seletivas: exigia sua chupeta
energicamente, pedia água (“aua”), às vezes pedia para eu olhar para ele

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(“ma”) e solicitava o meu colo de modo birrento na hora em que devia
caminhar para deixar o consultório.
Bernardo mostrava desagrado e rejeição ao contato humano. Falava
apenas duas palavras: mama e aua. Apresentava um riso estereotipado e
sem motivo. Imitava os movimentos dos personagens dos desenhos
animados televisivos parecendo se ligar intensamente a eles.
Por momentos, era afetuoso embora com predomínio absoluto de sua
atitude abstraída. Não apresentava balanceio (rocking) – que é o balançar-
se de trás para frente, ou seja, em sentido vertical - nem o flapping, que é
balançar os braços rapidamente, normalmente na altura dos ombros;
Bernardo se concentrava nas luzes intensas, mas de modo brando
(conseguia sair desse fascínio atraído por outra coisa).
Meu filho, também de acordo com o relatório, não se interessava por
bonecos; manuseava indistintamente brinquedos ou objetos circundantes
sem reconhecer restrições, apesar de reconhecer a lógica mecânica das
coisas.
Não controlava esfíncteres nem de dia nem de noite. De um modo
geral, não estabelecia comunicação com as pessoas (salvo comigo e com o
pai, mas também conosco de modo débil). Mostrava-se desconfiado e
arredio, mantendo um controle oblíquo do que acontecia a seu redor.
Acrescento, por minha conta, a relação que tinha com a irmã, desde
sempre. Ela foi essencial para a cura do irmão.
Em fevereiro de 2004, dois anos depois do início do tratamento,
Bernardo foi submetido a um exame no Hospital de Clínicas de Porto
Alegre para a detecção de expansões CGG para síndrome do X-frágil. Era
preciso descartar também essa possibilidade.1

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Segunda causa herdada mais comum de retardo mental, a Síndrome do X-Frágil
consiste em uma doença genética causada pela mutação do gene FMR1 no cromossomo
X, uma mutação encontrada em um a cada dois mil homens e um a cada quatro mil
mulheres.
Uma vez que os homens só têm uma cópia do cromossoma X (salvo exceções
patológicas), aqueles que têm uma expansão significativa de um trinucleotídeo são
sintomáticos, enquanto que as mulheres, tendo herdado dois cromossomas X, dobram
assim as hipóteses de um alelo funcionar. As mulheres portadoras de um cromossoma X
com um gene FMR1 expandido podem ter alguns sinais e sintomas da doença, ou serem
completamente normais.
Fora o atraso mental, outras características proeminentes da síndrome do X-Frágil
incluem uma face alongada, orelhas grandes ou salientes, testículos de grandes
dimensões (macroorquidia), e baixo tónus muscular. Comportamentalmente, podem
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O resultado do exame do Bernardo deu negativo. Foi um alívio!
Bernardo não tinha a síndrome do X-Frágil nem qualquer tipo de retardo.

Maior incidência em meninos

É fato: o autismo é mais comum em meninos do que em meninas. A


incidência de autismo em meninos é quatro vezes maior do que em
meninas.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), os distúrbios
de desenvolvimento neurológico - como deficiência intelectual, distúrbio
específico de linguagem, transtorno de déficit de atenção, hiperatividade,
epilepsia e autismo - afetam uma em cada seis crianças em países
industrializados. Estudos mostram que há de 30% a 50% mais meninos que
sofrem destas doenças do que meninas.
Um estudo divulgado em 2014 pelo Hospital da Universidade de
Lausanne, na Suíça, apontou como causa dessa maior incidência o
funcionamento diferente do cérebro feminino, cujas alterações requerem
alterações mais extremas do que o cérebro masculino para produzir os
sintomas do autismo.
“Este foi o primeiro estudo que demonstrou uma diferença em nível
molecular entre meninos e meninas no que se refere ao desenvolvimento de
uma deficiência neurológica”, disse, em um comunicado, Sébastien
Jacquemont, pesquisador do hospital e autor do trabalho.
Ainda segundo ele e Evan Eichler, pesquisador da Universidade de
Washington, em Seattle, o estudo sugere que há um nível diferente de
robustez no desenvolvimento do cérebro, e as meninas parecem ter uma
vantagem clara.
Para compreender a diferença de gênero, o estudo comparou a
frequência de alterações genéticas em cerca de dezesseis mil crianças com
transtornos do desenvolvimento neurológico.

observar-se movimentos estereotipados e desenvolvimento social atípico,


particularmente timidez e contato ocular limitado. Alguns indivíduos com a síndrome
satisfazem os critérios de diagnóstico do autismo.

22
O resultado mostrou que as meninas diagnosticadas com alguma
disfunção do desenvolvimento neurológico ou transtorno do espectro
autista tiveram um número muito maior de mutações, o que demonstra que
o cérebro feminino requer alterações mais extremas que o masculino para
produzir os sintomas.
Para o psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São
Paulo (USP), Guilherme Polanczyk, é cedo para conclusões. Ele concorda
que existe sim uma questão de gênero neste assunto. “Sem dúvida há uma
questão de sexo nisto. O próprio autismo e o TDAH - transtorno do déficit
de atenção com hiperatividade- são mais comuns em meninos. Mas, após a
puberdade, distúrbios de ansiedade e depressão ficam mais comuns em
mulheres. Acho que temos um caminho aí que pode nos levar a boas
descobertas”, disse.
Polanczyk afirmou, no entanto, que embora os dados mostrem que as
meninas precisavam apresentar mais mutações para manifestarem os
sintomas dos distúrbios, o “modelo protetor” é ainda apenas uma
especulação. “Acho a explicação plausível, mas ainda é preciso fazer mais
replicações deste tipo de estudo para ter certeza”, esclareceu o psiquiatra.

Mas o que é o autismo, afinal?

Considerado uma disfunção global do desenvolvimento, o autismo


afeta a capacidade de comunicação, de socialização e de comportamento da
criança; faz parte de um grupo de síndromes chamado transtorno global do
desenvolvimento (TGD). Dentro desta categoria, recorta-se um conjunto de
problemas psíquicos mais graves, que recebe o nome de transtornos
invasivos do desenvolvimento (TID) ou pervasive development disorder
(PDD). É dentro deste conjunto que se encontra o autismo.
Recentemente, foi adotado o termo Transtorno do Espectro Autista
(TEA, dentro do TID), que engloba o autismo clássico, a síndrome de
Asperger, a síndrome de Rett e o transtorno desintegrativo da infância. Isso
agrega um vasto e heterogêneo conjunto de sintomas que autorizam o
diagnóstico de autismo acerca do qual, hoje, há consenso de sua pouca

23
confiabilidade. Em uma espécie de “confissão” da pobreza conceitual de tal
metodologia diagnóstica – que impede atribuir uma condição específica a
cada tipo de autismo – costuma-se adotar, junto ao diagnóstico assim
proferido, a expressão SOE (Sem Outra Especificação).
O TEA (transtorno de espectro autista), porém, permite que o
transtorno seja graduado desde o autismo mais leve até o mais severo, cuja
cura, neste último caso, é muito difícil de ser obtida. Nos últimos vinte
anos, os critérios de inclusão de crianças dentro da categoria de autismo
diversificaram-se e ampliaram-se, causando uma espécie de epidemia
artificial, já que os critérios do TEA abrangem desde as manifestações
patológicas mais graves (autistas completamente desligados de seu entorno
e governados por automatismos e autoagressões incontroláveis) até
crianças neuróticas normais (que recusam o contato com seus semelhantes
e são irritáveis e agitadas, ou meramente crianças fóbicas).
Segundo a Austism Society of America (ASA), os autistas apresentam
pelo menos metade das características a seguir:
1. Dificuldade de relacionamento com outras pessoas; 2. Pouco ou
nenhum contato visual; 3. Rotação de objetos; 4. Riso
inapropriado; 5. Aparente insensibilidade à dor; 6. Preferência pela
solidão; modos arredios; 7. Ecolalia; 8. Age como se estivesse
surdo; 9. Inapropriada fixação em objetos; 10. Acessos de raiva;
11. Não faz referência social; 12. Desorganização social; 13.
Irregular habilidade motora; 14. Dificuldade em expressar
necessidades; 15. Procedimento com poses bizarras; 16. Não tem
real medo do perigo; 17. Perceptível hiperatividade ou extrema
inatividade; 18. Ausência de resposta aos métodos normais de
ensino; 19. Insistência em repetição desnecessária de assuntos,
resistência à mudança de rotina; 20. Recusa colos ou afagos.
Destes sintomas, os mais perceptíveis no Bernardo eram a dificuldade
de relacionamento com outras pessoas que não eu, o pai e a irmã (em
alguns momentos, relacionava-se com minhas irmãs, meus tios e minhas
primas); pouco ou nenhum contato visual (só olhava nos meus olhos, e de
forma fixa, sem manter qualquer contato visual com mais alguém); e o
isolamento (preferia ficar no canto do quarto ou na sala de televisão,
afastado das pessoas).

24
Comumente, Bernardo ficava em um canto na sala de televisão,
segurando e rodando lápis e canetas, o que configurava a rotação de
objetos; a ecolalia também era muito frequente: imitava sons, repetia frases
de desenhos animados e de propagandas na televisão (isso quando começou
a falar, o que demorou a acontecer); resistia à mudança de rotina,
preferindo ir aos mesmos lugares, comer as mesmas comidas e ficar em
casa em vez de sair.
Não queria dormir fora de casa de jeito nenhum, mesmo que a irmã e
eu estivéssemos com ele. No final do dia queria voltar para casa. Era muito
apegado às rotinas. Nesse sentido, houve notável melhora, mas ele continua
apegado às rotinas, só não mais a ponto de prejudicá-lo. Há mais
flexibilidade e ponderação.
Até os quatro anos, ele ria de forma estereotipada e sem nenhum
motivo aparente. De repente, soltava gargalhadas mecânicas: “ha ha ha”.
Nenhum fato engraçado. Nada justificava a risada. Era um riso fora de
lugar. Como todo o resto.
Dos sintomas listados acima, Bernardo não apresenta mais nenhum
deles, embora tenha um comportamento considerado “excêntrico” em
algumas situações; até essa excentricidade vem decrescendo ao longo dos
anos.
Era de se esperar que alguns resquícios do autismo permanecessem e,
só com o tempo, fossem completamente revertidos. O que posso garantir é
que autista meu filho não é mais. Pode ser considerado excêntrico,
diferente, raro, mas não autista. E isso, repito, incomoda os médicos que
não sabem mais como “classificá-lo”.

25
Epidemia de autistas?

Na década de 80, a Associação Psiquiátrica Americana tornou mais


abrangentes os parâmetros para diagnóstico do autismo e, com isso, os
EUA viveram uma campanha de informação massiva. Até então, a maioria
dos médicos americanos tinha a mesma imagem estereotipada que nós,
brasileiros, tínhamos, e cuja mudança, no nosso caso, se deu recentemente,
mais precisamente de dez a quinze anos para cá.
Antes, os médicos americanos consideravam autista apenas a pessoa
totalmente incapaz de interagir socialmente; não se falava em espectro
autista, muito menos nas graduações do autismo em leve, médio e severo.
Com as novas normas, contudo, o número de casos aumentou
consideravelmente, representando um “boom” nas estatísticas, e o autismo
passou, inclusive, a ser tratado pela Mídia como uma epidemia.
É importante frisar que esse “boom” foi resultado, basicamente, da
ampliação dos critérios usados para se estabelecer se uma criança era
autista ou não. Dessa forma, passou-se de um extremo a outro: se antes o
número de autistas não era confiável por não levar em consideração os
tipos de autismo mais leves, agora não é confiável por considerar qualquer
alteração comportamental como um indício de autismo. Passamos de um
extremo para o outro.
A flexibilização dos critérios foi a responsável pela diferença nas
estimativas internacionais e pela profusão de diagnósticos de autismo.
Logo, como ocorreu no EUA na década de 80, é a vez agora de o Brasil ter
essa sensação de epidemia.
Relevando os exageros, é louvável que haja maior conscientização da
comunidade em geral e de pais, professores e médicos, em particular, o que
viabilizará o diagnóstico precoce, amplamente defendido por mim.
Também merece destaque o fato de que, quanto maior a
disponibilidade de informações sobre o distúrbio, mais possibilidade de
inclusão social e de combate ao preconceito.
Outro aspecto positivo é que as pessoas entendam a importância da
terapia tanto para os casos graves da doença quanto para os casos leves,
26
haja vista que, sem o diagnóstico adequado, corremos o risco de considerar
apenas “esquisitas” ou “excêntricas” crianças que se beneficiariam muito
com ajuda profissional.
É provável que, nos próximos anos, haja um rearranjo, com a
divulgação de estatísticas que reproduzam, com mais precisão, qual é o
número real de autistas no mundo atualmente.

II – A VIDA

2000: o nascimento do Bernardo –

Quando Bernardo nasceu, em 28 de julho de 2000, não imaginava


como nossas vidas (minha, do meu marido e da minha filha) mudariam
completamente. A gravidez transcorreu tranqüilamente como a anterior -
ele tem uma irmã um ano e quatro meses mais velha do que ele – e,
assim como ela, ele nasceu de parto normal, com 49 cm, quase 3,5 kg, só
que desta vez quase na sala de pré-parto.
Durante a gestação, eu caminhava durante uma hora todos os dias na
orla do Leme, em Copacabana, onde morávamos na época, e estava em
excelente forma física. Tinha engordado apenas 10 quilos e não houve
qualquer imprevisto ou desconforto durante a gravidez. Fiz
acompanhamento pré-natal com o mesmo ginecologista e obstetra da
Maria Júlia.
Eu me alimentava bem, procurava manter uma dieta equilibrada e
saudável na nova gravidez; sempre gostei muito de frutas e de verduras e
dei prioridade a esses alimentos.
Muito ativa, cuidava da Júlia, que ainda era literalmente um bebê,
sem qualquer esforço: eu a pegava no colo, dava-lhe banho, botava para
dormir, levava à praia e à pracinha.

27
Nada mudou na minha rotina diária. Embora Bernardo não tenha sido
planejado como a irmã, a notícia da gravidez foi muito bem recebida e
comemorada. Meu marido Hector e eu ficamos muito felizes. Maria Júlia
estava com apenas oito meses, mas eu não senti qualquer receio de
cuidar de duas crianças.
Pelo contrário. Queria mesmo que os irmãos tivessem idades
próximas, que fossem companheiros e grandes amigos. Tenho duas irmãs
mais novas e sei da importância dessa relação afetiva. Ter irmãos é uma
experiência única, que nenhuma amizade consegue substituir.
Assim que fiz o exame de gravidez (de farmácia) em casa e deu
positivo, parei de fumar. Nunca mais botei um cigarro na boca. Jamais
me perdoaria se o meu filho tivesse algum problema de saúde – em
especial respiratório - por minha causa.
Não senti falta do cigarro. Já tinha parado de fumar na gestação da
Maria Júlia e, infelizmente, em uma recaída depois do seu nascimento,
voltei a fumar. Agora era para valer. Eu me conscientizei de que não
deveria voltar a fumar nunca mais – promessa que cumpro até hoje.

O parto do meu filho

Além de uma gravidez tranqüila, o dia do parto foi como outro dia
qualquer. Até a hora da minha consulta quinzenal com o ginecologista no
dia 28 de julho à tarde, nem cólicas eu sentia. Fui à consulta, na qual foi
constatado que já estava com seis dedos de dilatação, e de lá fui
encaminhada para a Casa de Saúde São José, no Humaitá, bairro do Rio
de Janeiro.
Mas, apesar da “boa dilatação”, o médico avisou que não havia
pressa. Eu tinha três horas para chegar ao hospital. Eu ainda tinha algum
tempo para ir a casa, pegar a minha mala e a do bebê. Minha família
estava reunida. Minhas irmãs estavam passando alguns dias na minha casa
para o nascimento do Bernardo. Fomos juntas para o hospital.
No carro, estavam todos agitados. Quem menos falava era eu. Cena
engraçada esta: meu pai, meu marido, minhas duas irmãs, Maria Júlia e
28
eu. Lotação completa! Todos falando ao mesmo tempo, eufóricos com a
chegada do bebê.
Eu estava calma, feliz pela chegada do bebê e por ter todos os que eu
amava ao meu redor. Eu tinha a experiência do parto da Júlia, no qual
tudo ocorreu perfeitamente bem, e não havia qualquer razão para eu me
preocupar.
Chegando lá, fiquei na sala de pré-parto cerca de 30 minutos, local
em que foi realizada a anestesia peridural. Senti poucas contrações. A dor
era suportável. Como previ, o parto do Bernardo foi rápido e quase o tive
na sala de pré-parto.
Este segundo parto foi ainda mais rápido do que o primeiro (o que
descobri ser algo comum nos partos normais) e, em menos de duas horas
depois da entrada no hospital, às 18:15 horas, estava com o meu filho nos
braços. Bernardo veio ao mundo com 3,430 kg e 49 centímetros.
Ao contrário da irmã, que tinha cabelos bem escuros e era bem
cabeluda, Bernardo tinha a pele mais clara e quase não tinha cabelos. Mas
assim como a irmã, o processo de amamentação foi tranquilo. Ele aceitou
o peito com facilidade.

Duas crianças: dois diários

Assim como fiz na gravidez da Maria Júlia, comprei um caderno para


anotar e descrever o desenvolvimento do Bernardo, no qual eu escrevo
desde os quatro meses de gestação. Recorri algumas vezes a este caderno
em busca de pistas sobre a evolução do autismo no meu filho, para tentar
montar esse complexo quebra-cabeça que é o surgimento, ou o
desenvolvimento do autismo.
Existem algumas teorias sobre a origem do autismo e eu gostaria de
comentá-las. A mais antiga é o mito de que as mães frias, pouco
carinhosas, distantes emocionalmente de seus filhos, seriam as
responsáveis pelo desenvolvimento do autismo.
Essa teoria foi muito difundida nos anos 50 e 60. O psicólogo
austríaco Bruno Bettelheim afirmou, na época, que a causa do autismo

29
poderia ser a indiferença da mãe, a quem chamou de “mãe-geladeira”2.
Essas mães frias, que não sabiam demonstrar afeto, levariam os filhos a
um isolamento mental.
Suas teorias foram aceitas internacionalmente por mais de duas
décadas. Felizmente, a partir dos anos 70, essa teoria foi rejeitada. A
comunidade científica concluiu que a hipótese de Bettelheim foi
precipitada e carecia de comprovação técnica.
Hoje, sabe-se que essa teoria não se sustenta, embora seja verdade
que ser mãe de um autista, muitas vezes, exija que nós esfriemos a cabeça.
Todos sabem, e isso não é nenhum mistério, que a evolução de nossos
filhos depende em alta proporção do que nós, seus pais, fazemos por eles.
Seja uma criança autista ou não, essa responsabilidade cabe a nós de
qualquer forma.
Os filhos não nascem perfeitos, e nós, pais, podemos transformar suas
vantagens ou desvantagens naturais em grandes inconvenientes, graves
impedimentos ou grandes virtudes, percalços banais. É difícil dizer até
que ponto o autismo cabe dentro dessas considerações, embora, pelos
resultados tão variáveis obtidos nos tratamentos (a cura do meu filho, por
exemplo) parece necessário considerarmos caso a caso.
Outra tese para o surgimento do autismo é a de que a idade do pai
também pode influenciar, em muitos casos, a sua ocorrência. Estudos
científicos sugerem que quando o homem tem mais de 52 anos, o risco de
que o filho venha a desenvolver autismo é muito grande. Ou seja, quanto
mais velho for o homem, mais chances de o filho ter a doença.
Hector tinha 53 anos quando casamos e 56 quando o Bernardo
nasceu; era vinte e oito anos mais velho do que eu, mas era um homem
muito saudável. Não tinha diabetes, hipertensão, colesterol alto, nenhum
problema cardíaco, nenhuma doença física ou mental.
Porém, tudo indica que as condições de saúde do pai não fazem
diferença na freqüência com que aparecem casos de autismo em filhos de
pais idosos, já que a maior incidência seria produzida pela maior
freqüência de variações genéticas nas células reprodutivas das pessoas
com maior idade (nas mulheres, o risco aumenta significativamente após
os 38 anos e, nos homens, a partir dos 52).

2
Embora caiba termos presente, na sua descarga, que ele mesmo considerou que essa “frieza” bem
poderia ser conseqüência da indiferença do filho e não a sua causa.

30
Outra possibilidade aventada é a de que há uma falha neurológica de
nascimento que prejudica a aquisição da linguagem. Fui informada,
depois de um tempo de tratamento, de que meu filho padecia dessa
dificuldade em algum grau, embora o tratamento tenha lhe permitido,
finalmente, superá-la.
Ainda existe a questão genética. Sei que recentemente tem havido
comprovações de que se encontram variantes genéticas atípicas em muitos
casos de autismo, embora os mesmos cientistas que fizeram essas
descobertas insistam que não podem afirmar que essas sejam a sua causa
única.
De acordo com eles, não podemos deduzir dessas descobertas que, em
pouco tempo, possamos contar com auxílio de medicamentos para o
tratamento específico.
É bom, muito bom, que contemos com pesquisadores dedicados, mas,
por enquanto, a responsabilidade dos pais está em escolher entre
tratamentos que tentam fazer de nossos filhos autistas pessoas (o que é
mais complexo) ou tratamentos que tentam lhes ensinar a comportar-se (o
que é bem mais simples).
A questão seja genética ou não genética não muda nada. De fato,
muitos outros filhos que têm outros muito diversos problemas genéticos
colocam para seus pais a mesma disjuntiva na escolha dos tratamentos.
É mister salientar que ensinar a criança apenas a “comportar-se” é
tratar apenas o sintoma – pura e simplesmente – e não a causa da
patologia. Se nos concentrarmos na superfície do problema, adotando
“teorias comportamentais” para uma doença tão complexa, como é o
autismo – na qual tantas variáveis estão em jogo (orgânicas, psíquicas,
ambientais) – abriremos mão de fazermos de nossos filhos seres pensantes
e atuantes no mundo.

31
Um casamento feliz

“Ainda que eu falasse a língua dos homens, que falasse


a língua dos anjos, sem amor eu nada seria” (Coríntios, 13)

Hector ficou o tempo todo ao meu lado, nos momentos felizes, nos
infelizes e nos críticos. Meu marido era argentino e não tinha irmãos. O
nascimento dos filhos foi um marco em sua vida. Ele não teve filhos nos
casamentos anteriores.
Segundo ele, a questão de ter ou não filhos era bem resolvida. Até me
conhecer. Fui a única pessoa com quem ele desejou ter filhos e ele foi o
único homem com quem eu teria a coragem de casar apenas três meses
depois de iniciado o namoro, como o fiz.
Ele veio da Argentina para o Brasil no início da década de 70, fixou
residência no Rio e nunca mais voltou para seu país de origem. Só o fez
para passeios. E curtos. Não gostava de ficar longe de nós.
Dizia que o Brasil era seu verdadeiro lar. Até ria das piadas sobre
argentinos, muito comuns entre os brasileiros. Parecia mais brasileiro do
que eu. Gostava particularmente do Rio, com suas belas praias e
montanhas.
Eu o conheci no Jornal do Commercio em fevereiro de 1997. Depois
de uma temporada em São Paulo e em Porto Alegre, que não durou mais
de dois anos, voltei a morar com o meu pai na Ilha do Governador no final
de 1996.
Hector era coordenador de Finanças do jornal e meu chefe imediato.
Meu trabalho era no setor de Economia. Uma das minhas funções era
traduzir artigos sobre commodities do inglês para o português, o que foi
possível graças aos dois anos que passei nos EUA em 1988, quando meu
pai, piloto da Varig, foi escalado para um baseamento em Los Angeles,
com viagens periódicas a Tóquio.
Quando Hector e eu fomos apresentados, surgiu imediatamente uma
forte atração. No dia seguinte, já tomávamos cafezinho juntos como
amigos de infância. Passávamos horas conversando, revisando os artigos
do jornal, falando sobre os mais variados assuntos.

32
Quando decidimos morar juntos, três meses depois de nos
conhecermos, eu me mudei para o seu apartamento, em Copacabana. O
apartamento era de um quarto apenas, bem simples, mas era o início da
nossa união. Eu estava radiante.
Era muito bom irmos e voltarmos juntos do trabalho, planejarmos
nosso futuro, vivermos nosso presente. Quando tínhamos tempo,
aproveitávamos para dar um mergulho na praia antes de irmos para o
trabalho.
A cumplicidade que tínhamos, a segurança que sentíamos um ao lado
do outro, a afinidade intelectual e o entrosamento emocional contribuíram
para que o nosso casamento fosse uma união de corpos e de almas, um
matrimônio de verdade, apesar dos altos e baixos de qualquer
relacionamento. Ele era um bom marido, e eu sabia, instintivamente, que
seria um bom pai. A minha intuição não falhou.

III - BERNARDO

A primeira noite do Bernardo

Como a Maria Júlia ficou no berçário quando nasceu, em 15 de março


de 1999, pensei que os bebês não pudessem ir para o quarto com os pais
logo após o parto. Quando descobri que Bernardo poderia ficar comigo no
quarto em poucas horas depois de seu nascimento, adorei a ideia e pedi
para o médico autorizar sua ida.
Não queria que ele ficasse no berçário. Preferia tê-lo ao alcance dos
meus olhos e dos meus braços. Apesar de exausta, queria pegá-lo no colo
o quanto antes. Mas o tempo foi passando e nada de as enfermeiras
aparecerem com o Bernardo.
Meus familiares, inclusive minhas duas irmãs, Maria Amanda e
Maria Pia, estiveram no quarto por poucos minutos para nos felicitar e

33
comentar sobre o bebê, e eu esperava ansiosamente o momento de vê-lo
novamente.
Passava das 22 horas. Estávamos sozinhos no quarto – Hector e eu –
quando recebemos um telefonema da Enfermaria avisando que o
Bernardo ficaria no Berçário naquela noite, pois sua temperatura corporal
não tinha se estabilizado. Em outras palavras: ele não ficava quente.
Nunca tinha ouvido falar de um caso desses. Não sabia que isso
existia. Por que o seu corpo não aquecia? Por que a sua temperatura não
estabilizava? O obstetra minimizou o problema, alegando que isso
acontecia de vez em quando. Mas por que acontecia?
Meu pai, ao saber do ocorrido, culpou a enfermeira que deu banho no
Bernardo. Para ele, ela ficou tempo demais com o bebê na água, o que
teria causado a queda da temperatura ou a dificuldade para sua
regularização.
A resposta não tenho até hoje. Não sei se a acusação do meu pai tinha
algum fundamento. Talvez ele nem tenha ficado tanto tempo assim no
banho! Procurei várias vezes na Internet algo que ligasse a temperatura do
corpo da criança ao autismo. Não encontrei nada. Só sei que pensei
naquele momento: “esta criança é sensível. Vai precisar muito de mim”. E
foi esse filho sensível que recebi na manhã seguinte, atenta a suas
demandas, preocupada com o que estava por vir.

Um bebê especial

A adaptação do Bernardo ao novo lar ocorreu dentro do esperado: ele


mamava no peito de três em três horas, dormia bem, quase não chorava,
não nos dava motivos para maiores preocupações. Era um bebê tranquilo.
Só que o fato de sua temperatura não ter se estabilizado no primeiro
dia de vida fez com que eu o cobrisse demais; calçava luvas, meias,
gorros. Até cobertores eu usava para cobri-lo. Tinha medo de que ele
sentisse frio. Felizmente isso durou pouco. Com o passar dos dias, relaxei
e passei a vesti-lo de acordo com o clima do Rio: quente e úmido.

34
Com um mês e meio de vida, no entanto, Bernardo apresentou
significativo reflexo gastro-cólico. Ele mamava e, quase ao mesmo tempo,
fazia cocô. A sensação que eu tinha era a de que tudo que ele ingeria ia
embora na mesma hora. Ele não conseguia reter o alimento. Pouco tempo
depois, surgiu o refluxo. Maria Júlia havia tido refluxo, mas de forma
mais branda, razão pela qual não nos preocupamos.
O refluxo do Bernardo era diferente, angustiava-nos. O vômito se
projetava em jato. Era horrível assistir aquela cena. Imaginávamos o mal-
estar que ele devia sentir. Nós o levamos ao pediatra, que receitou
remédios para diminuir o refluxo e evitar azia.
Mais tarde fiquei sabendo que o refluxo é frequente em bebês que,
posteriormente, manifestam signos autistas. Devemos questionar se um
mal-estar tão intenso não viria precisamente a colaborar para a
causalidade do autismo.
O resultado do exame realizado pelo Laboratório Eco-X
Radiologistas Associados apontou um refluxo gastroesofageano repetitivo
que ascende à região cervical. O esvaziamento do esôfago pós-refluxo se
faz prontamente.
De acordo com o Dr. Alfredo, é frequente a concomitância entre o
refluxo esofágico persistente durante o primeiro ano de vida, apresentado
pelo Bernardo, e os quadros autistas. Isso é, de um modo genérico,
atribuível à experiência negativa da criança durante sua alimentação,
anulando o prazer da relação com a mãe perante o ato alimentar.
É essencial ressaltar que Bernardo teve poucas doenças durante a
infância, embora todas elas, de alguma forma, relacionadas ao autismo. Na
época, no entanto, não tínhamos conhecimento disso.
Fora o refluxo, o rangido da poltrona de amamentação também o
incomodava. Isso nos intrigava; eu havia amamentado sua irmã nessa
mesma poltrona e, com o tempo, era normal que ela passasse a ranger,
devido ao uso constante; o barulho da poltrona nunca incomodou a Maria
Júlia, e não imaginei que pudesse incomodá-lo; ela estava em bom estado,
funcionava perfeitamente; apenas rangia se eu a balançasse com um pouco
mais de força.
Era o suficiente para Bernardo se assustar e abrir o berreiro. Ele tinha
menos de um mês e chorava ao ouvir o rangido. Eu não entendia o que

35
havia de assustador naquele barulho, que nem alto era. Ele estava nos
braços de sua mãe, protegido, e, mesmo assim, ficava assustado.
Foi mais estranho ainda quando percebi que ele não acordava com o
barulho dos fogos de artifício no Réveillon (morávamos em frente à praia
e víamos a queima de fogos do Ano Novo da sacada), mas acordava
chorando ao ouvir a sirene dos bombeiros bem mais distante. Por que
esses sons o irritavam? O que havia de diferente nesses sons para que ele
se comportasse dessa maneira? Será que já eram sinais do que estava por
vir?
Eu não sabia na época, mas transtornos auditivos podem produzir,
secundariamente, uma proporção significativa de autistas com
características de recrutamento, déficit de registro, de recepção ou de
condução, de audibilização e outros, sendo que uma delas pode ser a
hiperacúsia para conjunto de sons ou para determinados sons. Nesses
casos, a intensidade de registro pode ser tão grande a ponto de provocar
dor ou incômodo insuportáveis.
Há de se ressaltar, contudo, que a sensibilidade exagerada aos sons
não é uma característica própria do autismo, mas sim de um transtorno
auditivo primário, que nem todos os autistas apresentam. Isso, por sinal,
não deve ser confundido com a conduta deliberada de um autista de
tampar os ouvidos para neutralizar o que o outro lhe diz e manter seu
isolamento.
Vivemos outro contratempo quando Bernardo estava com dois meses:
fui obrigada a interromper a amamentação porque tive uma forte crise de
vesícula e fui internada no Hospital São Lucas, em Copacabana.
A dieta era “zero”, apenas soro na veia; não podia comer nada, sentia
dores alucinantes. Coincidência ou não, também tive de interromper a
amamentação da Maria Júlia quando ela tinha apenas dois meses, porque
tive de fazer uma cirurgia na mão e precisava tomar anestesia, o que
contraindicava a amamentação.
Ligamos para a minha tia Carmem, que morava em Porto Alegre, e
pedimos a ela que viesse para o Rio ajudar o Hector a cuidar das crianças.
Irmã da minha mãe e presença constante na minha infância, ela atendeu o
meu chamado na hora. Assim eu ficaria mais tranquila; ela tinha prática
em cuidar de crianças e daria conta do recado.

36
A internação durou três dias. Além da minha tia e do meu marido, as
crianças ficaram com a babá e a empregada. Quando, por fim, voltei para
casa, Bernardo já tinha se adaptado à mamadeira, e pude descansar.
Segundo relatos da minha tia, a troca do peito pela mamadeira foi muito
fácil. Em nenhum momento meu filho rejeitou a mamadeira.
Não fiquei angustiada com o fato de ele não mamar mais no peito,
pois sabia que foi uma eventualidade e que eu não podia me culpar pelo
que aconteceu. Houve, enfim, uma calmaria dos dois meses aos oito
meses de vida do Bernardo.
Com nove meses, nova apreensão: um resfriado mal curado se
transformou em bronquiolite, e ele precisou ficar internado em razão de seu
quadro clínico: estava muito abatido, prostrado. Fiquei o tempo todo com
ele, não arredava pé do hospital nem para comer.
Foi necessário fazer aspiração pela via nasal para que ele respirasse
melhor. Essa aspiração era um processo invasivo e muito incômodo para
um bebê, e o pior era que durava alguns minutos para ser realizado, não era
um procedimento rápido. Pareciam minutos intermináveis para ele e para
mim. Ele chorava muito, incessantemente, e era muito doloroso para mim
vê-lo naquele estado.
Como não havia berço no quarto e ele era muito pequeno, eu dormia
na cama agarrada a ele. Foram apenas três dias, mas, quando Bernardo
voltou para casa, eu senti que algo havia mudado em seu comportamento.
Na hora não me alarmei, tentei me convencer de que era apenas o fato de
ter ficado no hospital e que, com o tempo, tudo voltaria ao normal.

O primeiro aniversário

Mas não voltou ao normal. Quando completou um ano, Bernardo


começou a regredir. Apesar de caminhar normalmente, seu
desenvolvimento foi atingido. Deixou de balbuciar as palavras que até
então tentava falar; ficou mais retraído; quase não sorria.
O que estava acontecendo com ele? Quando brincava com os
carrinhos, fixava seu olhar nas rodas e apenas elas lhe interessavam. Não

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via o brinquedo como um todo, prestava atenção nos detalhes e não no
conjunto. O que interessava era girar as rodinhas, e não movimentar os
carros.
Comecei a observar o seu comportamento e achei-o um pouco
esquisito. Se deixássemos, ele ficava horas assistindo desenhos animados
e em vez de ficar mais calmo, com o passar do tempo, os desenhos o
agitavam tanto que eu levava quase duas horas para acalmá-lo e fazê-lo
dormir. Só que não me preocupei muito. Pensei que era apenas uma fase e
que passaria em breve.
O susto veio poucos meses depois quando fui a uma reunião na escola
das crianças. Bernardo e Júlia estudavam no Colégio Anglo-Americano,
em Botafogo, à tarde. Maria Júlia já estava no Maternal II e Bernardo no
maternalzinho, pois tinha apenas um ano e meio.
Sempre que ele entrava no ônibus escolar e se despedia de mim,
chorava sem parar, mas eu não via nisso nada de anormal, afinal de
contas, ele era bem pequeno e precisava entender as separações, saber que
estava tudo bem, que iria para o colégio, mas depois voltaria para casa,
onde eu estaria esperando por ele. Meu filho sempre foi muito apegado a
mim.

IV – FALHAS NO ENTROSAMENTO
E NA COMUNICAÇÃO

O alerta das professoras

Em uma das minhas idas ao colégio para buscá-lo, a professora me


disse que o seu comportamento não estava satisfatório e que precisávamos
conversar. Ali mesmo, no corredor que dava acesso à sala de aula dele, ela
antecipou um pouco o tema da conversa, informando que ele se isolava da
turma, não participava das brincadeiras, evitava os colegas, pegava lápis e

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canetas e ficava segurando-os no fundo da sala, sozinho, sem se aproximar
das outras crianças.
A professora também disse que ele não obedecia a nenhuma
professora, e que nem parecia ouvi-las. Na hora, até achei graça do que ela
estava me relatando. Disse que ele realmente tinha um temperamento forte
e era teimoso. Não compreendia as implicações que o seu comportamento
podia ter a curto prazo e que poderia ser bem mais do que engraçadinho o
seu jeito de agir.
Na primeira avaliação do colégio, dois meses antes, Bernardo foi
descrito com uma criança que chorava muito e solicitava sempre a
presença da mãe: “participou só das atividades pelas quais demonstrou
interesse. Apresentou habilidades motoras de acordo com a sua faixa
etária, mas precisou sempre ser estimulado para realizá-las. Pediu
frequentemente o auxílio das professoras frente a alguma dificuldade do
dia a dia. Relacionou-se carinhosamente com as professoras, buscando
um lugar no seu colo. Bernardo mostrou ser uma criança tranquila e de
temperamento forte, só fazendo o que ele desejava”, indicava a avaliação.
Marcamos, então, uma reunião para discutirmos melhor o assunto.
Chegou o dia da reunião, e conversei com duas professoras e com a
coordenadora da Educação Infantil. Elas repetiram o que já havia sido dito
antes, mas, desta vez, não achei graça.
À medida que elas falavam, percebi que havia algo errado com o meu
filho. As peças começaram, pouco a pouco, a se juntar e a formar um
quebra-cabeça. E ele era assustador. A realidade era que o comportamento
dele não era apenas excêntrico como eu pensava. Ele não estava bem. Algo
tinha de ser feito.
As professoras me pediram para exigir mais dele, que o fizesse me
obedecer, pois se o comportamento dele fosse apenas resultado de eu tratá-
lo ainda como bebê, mimando-o demais, seria fácil resolver essa questão.
Parecia que, para elas, ele era apenas uma criança mimada. Mas eu sentia
que o assunto era bem mais sério.
Minha primeira e grande frustração ocorreu justamente quando fui
para casa e decidi que ele não seria mais mimado por mim. Exigi dele que
falasse o que queria comer ou não teria o que queria. Lembro que ele
queria comer um danoninho e que eu estava disposta a deixá-lo passar

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fome caso não falasse ou não tentasse, pelo menos, falar o nome da
comida.
Mas quando notei que ele não conseguia se comunicar e quando ele
começou a chorar (não o choro de uma criança mimada, mas um choro
triste, sentido, de desespero), meu mundo ruiu. Senti uma impotência sem
fim. Percebi como a situação do meu filho era grave. Percebi que tinha
algo errado com ele. Era hora de agir.

A suspeita da surdez

Nossa primeira impressão – minha e de meu marido – era a de que ele


tivesse um problema auditivo. Agora vejo que, para nós, era melhor ter
um filho surdo do que autista. Preferíamos que ele fosse surdo; mais fácil
de tratar, mais fácil de curar, mais fácil de aceitar.
Minha vizinha e amiga Zoraima, que foi contrabaixo do Teatro
Municipal, também tinha suas teorias. Para ela, a suspeita era de que ele
era surdo ou tinha um sério problema auditivo. Ela dizia que não tinha
outra explicação para o seu comportamento.
Zoraima morava dois andares acima de nós e, quando eu tinha um
tempo livre, subia para lhe contar alguma novidade ou apenas para jogar
conversa fora. Ela também aproveitava os momentos de folga para me
fazer uma visita.
Um dia, para me provar a sua tese da surdez, ela pegou a cabecinha
dele e botou no buraco do instrumento e tocou uma melodia que, segundo
ela, faria qualquer criança dar um pulo.
Qualquer criança, menos o meu filho. Bernardo nem se mexeu. Fiquei
mais nervosa ainda. A hipótese da surdez foi ganhando mais adeptos entre
amigos e familiares. Mas, pelo menos, era uma suspeita de surdez. Não
era algo ameaçador. Não era uma doença fatal ou crônica.

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V – O DIAGNÓSTICO

A viagem para Porto Alegre

Nesse meio tempo, Hector e eu tivemos algumas brigas por questões


financeiras. Ele estava investindo em um segundo trabalho: montou uma
empresa de banco de dados na Internet, e eu não concordava com o
investimento que ele estava fazendo, embora lhe desse apoio e tentasse
ajudá-lo.
Eu não via retorno a curto prazo e também não tinha mais a sua
presença em casa. Se por um lado não havia ganho financeiro, por outro
havia perda da convivência familiar. Ele estava sempre ocupado. Eu não
convivia mais tanto com o meu marido. Mesmo assim, torci o tempo todo
para que o investimento desse certo.
Eu ia ao escritório dele, em Copacabana, sempre que tinha um
tempinho livre, e procurava ser compreensiva. Por causa dessas
discordâncias, principalmente por ele ter escondido de mim nossa real
situação financeira (ele assumiu várias dívidas por causa da empresa),
decidi passar um mês em Porto Alegre com minhas irmãs, minha tia e
meu tio.
Conversei com Hector e achamos que seria melhor eu me afastar por
um tempo, até para relaxar, colocar a cabeça no lugar, e matar as saudades
da minha família, que poderia me ajudar com as crianças.
Minha irmã menor, Maria Pia, estava se formando em Psicologia e
me sugeriu uma entrevista com a equipe multidisciplinar do Centro Lydia
Coriat, em Porto alegre, para investigar o comportamento do Bernardo.
Ela também achava que o comportamento dele era muito estranho e
que eu deveria levá-lo a essa junta médica, formada por profissionais do
Lydia Coriat, do qual o psicanalista Alfredo Jerusalinsky era diretor. A
partir daí, tudo aconteceu como se estivesse predestinado.

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Avaliação no Centro Lydia Coriat

O Centro Lídia Coriat é um centro de clínica interdisciplinar (onde


trabalham profissionais de várias especialidades, desde psicanalistas,
psicólogos, psiquiatras, psicopedagogos, fonoaudiólogos,
psicomotricistas, professores de educação especial, até especialistas em
estimulação precoce) que se dedica ao diagnóstico e ao tratamento dos
transtornos do desenvolvimento e transtornos mentais em crianças e
adolescentes.
Inicialmente fundada na cidade de Buenos Aires no ano de 1971
como Centro de Neurologia Infantil pela Dra. Lydia Coriat, o nome é uma
homenagem de seus discípulos, feita em 1981, ano de sua morte. Teve sua
origem na primeira equipe interdisciplinar que houve na Argentina,
organizada precisamente pela Dra. Coriat no Hospital de Niños de Buenos
Aires (Gutiérrez).
No ano de 1978, havendo migrado para a cidade de Porto Alegre, o
Dr. Alfredo Jerusalinsky trouxe a experiência dessa equipe e, juntamente
com o Dr. Paulo César Brandão, fundaram uma instituição semelhante
nessa cidade.
Como eu já estava acostumada com psicólogos, psiquiatras e
analistas, a idéia da psicanálise não me causou nenhuma estranheza. Eu
também me tratava com um psicanalista em Copacabana havia dois anos.
Além disso, fiquei internada um mês em Porto Alegre, no Hospital
Presidente Vargas, em 1996, vítima de um erro médico.
Dr. Alfredo atendia em um consultório no bairro Auxiliadora e, já na
primeira consulta, explicou a necessidade de uma avaliação
multidisciplinar, com a intervenção de um neurologista e de um otorrino,
para que fossem descartadas doenças como surdez e problemas
neurológicos.
Fomos então ao consultório do Dr. Luiz Lavinsky, onde Bernardo foi
submetido a dois tipos de exames: audiometria e PEA (Potenciais
Evocados Auditivos).
Tivemos dificuldades para realizar o exame de audiometria, pois meu
filho não colaborava, e também o PEA, porque ele não se acalmava, não
aceitava ter de ficar quieto para a sua realização. Estava muito agitado.

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Os resultados mostraram que não havia nenhum sintoma ou sinal de
surdez ou qualquer comprometimento do canal ou da transmissão auditiva
que pudesse causar seu estranho comportamento.

O diagnóstico do Autismo

Depois da consulta com o otorrino, Bernardo teve uma consulta com o


Dr. Rudimar Riesgo, neuropediatra, que marcou o eletroencefalograma
para o dia seguinte. Durante a consulta, Bernardo ficou ansioso, irritado.
Não aceitava ser tocado pelo médico. Para fazer o exame, ele precisou ser
sedado. Pegaríamos o resultado assim que estivesse pronto, provavelmente
em menos de 24 horas.
Foi uma luta a realização do eletro. Mesmo sedado, Bernardo
acordava exatamente na hora que o exame estava começando. A dosagem
teve de ser aumentada duas vezes, e eu estava querendo desistir de fazer o
exame nesse dia. Não queria que aumentassem a dosagem mais uma vez.
Decidi, então, voltar para casa. Quando ele, por fim, adormeceu,
estávamos em casa, mas não pensei duas vezes: peguei um táxi e o levei
com travesseiro e tudo para impedir que ele despertasse novamente.
Entre uma e outra consulta com o neurologista, Bernardo continuava
sendo avaliado pelo Dr. Alfredo. Presenciei uma ou duas sessões, não mais
do que isso, pois ele me explicou que era importante avaliar o
comportamento do meu filho também sem minha presença.
Foi uma semana de incertezas e de muitas suspeitas, que se
confirmavam fundadas ou não. A surdez foi descartada. Faltava o laudo
neurológico e o psicológico. Estava confiante de que pelo menos poderia
entender o que se passava com o meu filho e auxiliá-lo nas suas
necessidades.
A única palavra que ele balbuciava era água: “aua, aua”. E eu tinha a
clara sensação de que, antes de completar um ano, ele balbuciava bem
mais. Sentia que houve estagnação no seu desenvolvimento e, depois,

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regressão. Às vezes ele balbuciava “mã mã”, mas seu repertório linguístico
era quase nulo.
Faltava uma semana para o seu aniversário de dois anos quando
recebi a “bomba” do neurologista, que foi categórico ao afirmar que
Bernardo era autista. Lembro até hoje do que ele disse: “O Dr. Alfredo
pode dizer o que quiser, mas ele é autista. Pode ser de grau leve,
moderado, mas é autismo”.
Soube depois que o Dr. Alfredo também suspeitava de que ele era
autista, mas ainda não tinha se pronunciado justamente por estar esperando
o laudo neurológico e a finalização de sua própria avaliação.
Ter um filho diagnosticado com autismo soa como uma sentença.
Uma sentença de morte em vida. Quando o neurologista explicou a
situação, tentei convencê-lo de que estava errado citando ações, atitudes e
feitos do meu filho, como se ainda fosse possível modificar o diagnóstico.
Sabia que ele era diferente, mas não sabia o quanto. Aquela certeza,
aquela segurança do neurologista em relação ao diagnóstico, deixou-me
desnorteada. Fiquei atônita. Minha irmã Maria Amanda e meu cunhado
Fabiano estavam presentes na consulta. Eles tinham ido nos buscar de
carro. Fiquei tão confusa, tão sem chão, que lembro de ter lhes dito, depois
da consulta, que “se eles não quisessem mais ser padrinhos dele, eu
entenderia”. Foi a minha primeira reação. Uma reação completamente
impulsiva, hoje eu percebo. Eu estava assustada.
Achei que o mundo se fecharia para meu filho, que ele seria rejeitado
a partir daquele momento. Achei que só eu poderia aceitá-lo e amá-lo do
jeito que ele era. Felizmente, eu estava enganada.
Toda vez que eu pensava ou falava em autismo, lembrava
imediatamente do filme “Meu filho, meu mundo” que passava na Sessão
da Tarde da TV Globo na década de 80. Eu tinha apenas onze ou doze
anos quando assisti pela primeira vez, e aquelas cenas me comoveram
muito.
Anos mais tarde, assisti a Rainman com o excelente ator Dustin
Hoffman no papel de um homem com síndrome de Asperger. Mas, com
certeza, foi o primeiro filme o que mais me marcou. Coincidentemente, na
cena final do filme, o bebê falava “água”, e isso era celebrado como uma
grande vitória. Para meu desespero, essa era uma das poucas palavras que
meu filho também falava.

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Um dia, sonhei que Bernardo dizia “mamãe”. Parecia tão real. Foi tão
real pra mim. Fiquei tão feliz! Depois, tive de aceitar que foi apenas um
sonho, um forte desejo que eu tinha de que tudo voltasse ao normal.
Engraçado como algo tão banal quanto dizer “mamãe” se tornou tão
importante para mim.
Como a Maria Júlia andou pouco antes de completar um ano e
começou a falar com um ano e meio, dentro do esperado, e como não tive
de esperar para ouvi-la me chamar de mamãe, não sabia que seria tão
desejado e precioso o momento de ouvir o Bernardo falar.
Quando ainda estava assimilando o diagnóstico do autismo, Dr.
Alfredo ligou para me acalmar – tinha acabado de falar com o Dr. Rudimar
e já imaginava a minha aflição.
Naquela noite, eu tinha uma formatura para ir. Não tinha mais
vontade de sair ou de conversar com outras pessoas. Minha tia, no entanto,
insistiu para que eu espairecesse um pouco. Comentei com ela o medo que
tinha do preconceito do qual Bernardo seria alvo, mas ela não concordou
comigo. Ela tentava me convencer de que ninguém iria rejeitá-lo, que eu
estava nervosa com a notícia, mas que as pessoas aceitariam as suas
diferenças.
Fiquei muito abalada. O diagnóstico do neurologista martelava na
minha cabeça. Não conseguia pensar em outra coisa. Meus pensamentos
giravam em torno do que significava ter um filho com autismo, o que nos
esperava para o futuro. Que futuro ele teria? Eu não sabia nada sobre
autismo. Só o que via na televisão. E, mesmo assim, sabia que metade
daquilo não devia ser verdade.
Eu também ignorava se havia algum tratamento eficaz, se havia
medicamento para a doença, quais as possibilidades de melhora no estado
em ele se encontrava. Ignorava e temia o seu futuro. Só o que eu conhecia
era o que havíamos vivido até então, até aquele momento.
Mas de uma coisa eu tinha certeza: queria ver de volta o sorriso no
rosto do meu filho. Bernardo não sorria mais, não parecia feliz, não fazia
parte do mundo em que vivíamos; não parecia nem estar vivo. Estava
distante de tudo e de todos. Era angustiante. Eu só queria que ele fosse
feliz, que brincasse como qualquer criança, que tivesse prazer na vida.

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Um dia depois do diagnóstico do neurologista, Bernardo, Maria Júlia
e eu viajamos para Santana do Livramento, terra natal da minha mãe e
cidade que faz divisa com o Uruguai.
Passamos alguns dias na casa da minha prima Cinthia, que tem dois
filhos da mesma idade dos meus. Dias depois, Hector se juntou a nós para
passar um final de semana. Aproveitamos para conversar muito sobre tudo
que estava acontecendo. Enquanto Maria Júlia brincava o tempo todo com
os primos João Pedro e Isadora, Bernardo preferia ficar perto dos
cachorros ou brincar sozinho.
A presença das outras crianças o incomodava, mas os cachorros, dois
labradores, exerciam enorme fascínio sobre ele. Embora os cachorros
fossem bem maiores do que ele, Bernardo não tinha medo. Para onde os
cachorros fossem, ele ia atrás. Era uma perseguição.
O seu aniversário de dois anos foi comemorado na casa da minha
prima. Ele era tão pequeno, praticamente um bebê. Tomava mamadeira,
usava fraldas, precisava muito de mim.

VI – O TRATAMENTO

O início do tratamento

De longe, mantive meu marido informado sobre todos os


acontecimentos das últimas semanas: os exames, as suspeitas, a
avaliação, o diagnóstico final. Era muita informação em muito pouco
tempo. Conversávamos sobre a possibilidade de ser autismo mesmo e da
necessidade de tratamento médico o quanto antes.
Também falávamos sobre o que seria melhor para o Bi (apelido que a
irmã lhe deu) e, conseqüentemente, para toda a família. Além de estar
perdida (ou confusa e apavorada?) com o diagnóstico de autismo, meu
filho dava muito trabalho. E era muito cansativo cuidar dele.
Por outro lado, Bernardo era muito carinhoso, muito apegado a mim.
Eu mal podia ir ao banheiro ou à cozinha que ele me seguia, chorava,
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queria estar onde eu estivesse. Era o meu agarradinho. Eu precisava
impor limites e, portanto, tentava lhe explicar que não poderia ir ao
banheiro comigo ou que mamãe precisava cozinhar e não podia lhe dar
atenção naquela hora.
Mas, às vezes, eu ficava muito confusa. Não sabia se ele estava
determinado a não me ouvir, ou se ele não entendia mesmo o que eu
dizia. Eu sentia nele uma forte ansiedade de separação, como se nós dois
tivéssemos um elo indissolúvel, uma ligação atípica, algo fora do
comum. Não é à toa que uma de suas brincadeiras preferidas era
assoprar o meu umbigo. Ele tinha verdadeiro fascínio pelo meu umbigo,
que simboliza, entre outras coisas, a primeira ligação entre a mãe e o seu
filho.
Somado a essas dificuldades havia o fato de ele não ficar com outras
pessoas, nem mesmo com as da família; não aceitava nenhuma mudança
na sua alimentação – era arroz e feijão todos os dias ou danoninho e
toddynho – e demorava horas para dormir (demorava muito tempo para
ele relaxar). Muitas noites eu levava de duas a três horas para fazê-lo
dormir.
Enquanto ele estivesse acordado, eu precisava ficar atenta a todos os
seus movimentos, pois ele gostava de pegar objetos perigosos, pontudos
(preferencialmente de metal) para botar na boca.
Ele separava os talheres por ordem: as facas, os garfos e as colheres.
Preferia brincar com as facas (que eram mais perigosas), e não aceitava,
sem lutar, que as tirássemos dele.
Eu tive de aceitar a morte de um filho idealizado, com quem eu tinha
convivido até então, e amar essa nova criança que estava nascendo.
Aquela criança que eu acreditava conhecer não existia mais. Todas as
expectativas que são feitas normalmente pelos pais, todos os projetos de
futuro, tiveram de ser deixados de lado. Não sabia nem se o meu filho
falaria mamãe, quanto mais se ele seria independente algum dia.
Aprendi muito cedo a não idealizar mais nada para os meus filhos. Só
podia esperar e descobrir quem era essa criança que estava na minha
frente, mas que não conseguia se expressar, não conseguia demonstrar
seus sentimentos. Tive de fazer o luto de um bebê que não existia mais e
conhecer meu novo bebê.

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Até um ano de idade, Bernardo era um determinado bebê. Um bebê
que eu estava aprendendo a conhecer. Depois de fazer um ano, ele
mudou, foi se tornando outro bebê, alguém indecifrável para mim,
alguém que precisaria de ser redescoberto, alguém para o qual eu não
tinha as respostas.
Muitas e muitas vezes eu chorei imaginando se tinha acontecido algo
com ele que eu não tinha visto ou percebido durante esse último ano.
Talvez ele tivesse levado um tombo, batido a cabeça com força, ou
alguma babá poderia tê-lo machucado, traumatizando meu filho. Ele teve
duas ou três babás, e elas eram muito carinhosas com ele. Nunca
suspeitei de nada. Até aquele instante.
Queria, precisava de uma explicação para o que estava acontecendo.
Precisava culpar alguém. Tentava a todo custo lembrar algum evento que
pudesse ter contribuído ou causado essa transformação.
Também me perguntava se a bronquiolite e a internação hospitalar
aos oito meses teriam desencadeado ou mesmo produzido essa mudança
de comportamento. Onde foi que eu errei? O que eu poderia ter feito
diferente?

Mudança do RJ para POA

Levamos apenas quinze dias para fazer a mudança do Rio para Porto
Alegre. O que foi decisivo para a minha escolha - divisor de águas - e me
convenceu sobre a necessidade da mudança foi a consulta à Dra. Denise
Morsch, psicanalista indicada pelo Dr. Alfredo.
Ela nos recebeu em seu consultório em Botafogo e enfatizou que o
Alfredo era considerado um dos melhores psicanalistas do Brasil e
especialista em autismo, além de o Rio Grande do Sul ser um excelente
lugar para a realização do tratamento por suas facilidades de locomoção,
preço, distância etc.
Seus argumentos foram confirmados pelo pai de um autista de cinco
anos que me procurou para trocarmos ideias sobre tratamentos e
diagnósticos. Ele afirmava ter perdido alguns anos na dúvida de qual seria
a melhor opção de tratamento para seu filho. Disse ter pesquisado muito
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sobre o assunto e que, segundo informações recentes, o melhor tratamento
para o autismo era realizado no RS.
Era tudo de que eu precisava saber. Se até então eu tinha alguma
dúvida, ela foi dissipada naquele instante. Sempre soube que a decisão
estava nas minhas mãos; meu marido sempre me apoiou, e eu iria escolher
o que fosse melhor para o Bernardo.
Cabia a mim a decisão de como e onde realizar o tratamento. Se fosse
um resfriado, uma doença de fácil tratamento e de cura garantida, poderia
fazê-lo em qualquer lugar.
Mas era autismo, doença que até então eu acreditava, pelas poucas
informações que tinha, que não tinha cura. Escolhi o melhor profissional e
mudamo-nos para Porto Alegre. Deixar o Hector no Rio, infelizmente, foi
inevitável.
Pelo menos foi dessa forma que sempre encarei nossa mudança de
vida. Jamais imaginei o que estava por vir. Cada vez mais me convenço de
que, seja qual for o caminho que tomemos, um longo caminho ou um
pequeno atalho, o nosso destino não poderá ser totalmente controlado por
nós. Temos controle sobre poucas coisas que nos rodeiam; a vida não nos
dá garantias.
Vender o meu piano talvez tenha sido um dos momentos mais difíceis
da mudança. Eu vendi tão barato – quanto antes eu fosse para o Rio
Grande do Sul, mais rápido começaria o tratamento do Bernardo – que foi
praticamente de graça. Mas não apenas isso. O valor material era o de
menos.
Era o meu piano. Ele sempre esteve na minha casa, fazia parte da
minha infância, era uma lembrança dos meus concertos (participei de três
concertos na década de 80). Era o meu companheiro nos momentos de
angústia, desabafo, e também nos de felicidade. Não podia levá-lo. Não
sabia para onde ia. O mais provável era que eu fosse para um apartamento.
Não sabia se haveria espaço.
E é nessa vida sem garantias, cheia de contratempos, que devemos
viver. Tomar decisões em pouco tempo nunca foi um problema para mim,
mas, até que o resultado se torne claro, não sabemos se elas foram
acertadas ou não. É um tiro no escuro. Sei que as perdas que estiveram
associadas a essas decisões doeram muito, mas se eu estivesse na mesma
situação hoje, não agiria diferente.

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A única solução era seguir adiante; ser prática e racional. Os
primeiros dias em Porto Alegre foram desanimadores. Senti muita falta da
ajuda do meu marido e das nossas conversas; procurava me convencer de
que era uma situação temporária; de que, em pouco tempo, estaríamos
todos juntos.
Não tinha um extenso círculo de amizades na cidade. Minhas irmãs
estavam sempre ocupadas em seus trabalhos e estudos. Meus parentes
moravam longe, e eu estava com duas crianças – uma de três anos e outra
de dois –, que precisavam de mim.

A primeira residência em Porto Alegre

A nossa primeira residência em Porto Alegre foi a uma quadra do


Parque Farroupilha, no Bairro Cidade Baixa, perto do Centro da cidade. O
prédio de três andares ficava na Rua Otávio Corrêa, esquina com a Avenida
Lima e Silva. Era um bairro bem movimentado, habitado, principalmente,
por estudantes. Lá, a noite fervia.
Trocamos a vista da praia do Rio pela do parque. Morávamos quase
em frente ao Parque Farroupilha, mais conhecido como Redenção, e eu os
levava quase que diariamente para dar um passeio em meio à natureza.
Moramos nesse apartamento até agosto de 2004, quando nos
mudamos para o Bom Fim, bairro que ficava exatamente do lado oposto do
parque e que era bem mais tranquilo e mais perto do tratamento.
Antes da mudança, era muito trabalhoso ir da Cidade Baixa para o
consultório do Dr. Alfredo, que ficava na Rua Germano Pettersen Junior,
no Bairro Auxiliadora.
O tratamento psicanalítico era de segunda a sexta-feira, à tarde. A
psicanalista Eda Tavares atendia três vezes por semana: segunda, terça e
quinta. Os outros dois dias eram do Alfredo.
Pegávamos duas lotações para ir e duas para voltar: uma da Cidade
Baixa até o Centro e outra do Centro até a Auxiliadora. Passávamos mais
tempo na lotação do que no tratamento propriamente dito, que durava
apenas 30 minutos.

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No começo, eu levava o Bernardo. Muitas vezes, ele dormia no
caminho, e eu tinha de levá-lo no colo da parada da lotação até o
consultório. Mas eu não estava trabalhando e tinha tempo para me dedicar
completamente a ele. Maria Júlia ia para a creche à tarde e, quando estava
em casa, sempre me ajudava a cuidar do irmão.
Outras vezes, mesmo acordado, ele se negava a caminhar. Ou eu o
arrastava ou o pegava no colo. Cabia a mim decidir. Dependia mais da
pressa que eu tinha no dia e da minha disposição física.
As sessões duravam, em média, de quinze a trinta minutos, quando
eram com o Alfredo. Como ele tinha uma agenda lotada, chegávamos a
esperar uma, duas horas pela consulta. Sentia vontade de ir embora. Era um
desrespeito esperar tanto tempo! Fui me conformando e procurei tirar
proveito do tempo que tinha livre: lia todas as revistas da sala de espera,
levava livros, brincava com o meu filho (dentro do possível).
Bernardo ficava angustiado com a demora e eu tentava contornar sua
insatisfação. Ele levantava, pegava os brinquedos do baú da sala de espera,
brincava, guardava-os novamente, pegava um livro, largava. Ficava
inquieto, muito irritado.
Depois de seis meses de tratamento, encarreguei minha empregada,
Lívia, de levá-lo ao tratamento, e pude resolver outros assuntos nesse meio-
-tempo. Maria Júlia ia à creche diariamente, e combinamos, os psicanalistas
e eu, que ele também deveria ir à creche assim que fosse apropriado.
Foi uma decisão acertada: era bom afastá-lo um pouco de mim;
permitia, com isso, que ele criasse novos vínculos afetivos. O engraçado é
que, mesmo Bernardo “tendo sido” autista (ele não é mais!), as babás ou
empregadas encarregadas de cuidá-lo – e houve algumas – eram
apaixonadas por ele, que era um bebê muito sedutor!
Quanto ao uso da risperidona, apesar de o neuropediatra ter sugerido o
uso aliado ao tratamento psicanalítico, Bernardo nunca tomou o
medicamento, nem nos momentos mais complicados: a verdade é que havia
progresso, mas também estagnações, e até um certo e previsto retrocesso. O
tratamento não se realizou em linha reta: houve altos e baixos durante todo
o processo.

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Desfazendo mitos

É preciso ressaltar que meu primeiro impulso, ao receber o


diagnóstico do Bernardo, foi o de me informar sobre a doença por meio
da Internet e participar de algum grupo de pais de autistas.
Queria saber tudo que fosse útil para ajudá-lo e curá-lo. Nem mesmo
sabia se a cura era possível, mas estava disposta a fazer tudo que
estivesse ao meu alcance para que ele melhorasse. O que me movia era a
urgência de ver meu filho feliz e inserido no mundo. Se ele estivesse
feliz, eu ficaria tranqüila. Percebia que ele era uma criança infeliz.
Com o passar dos dias, no entanto, notei que havia muita reclamação
e pouca ação nos sites de informações sobre autismo. Muitos pais
queriam apenas encontrar alguém para culpar pela doença e ficar
remoendo essa ferida. Não era o meu caso.
Não queria rótulos para meu filho. Não precisava encaixá-lo em
nenhum grupo. Pelo contrário. Não queria o estigma do autismo.
Tampouco me acomodaria ou desistiria do meu filho.
Nunca desisti do meu filho, nem por um segundo. O autismo é tão
cansativo, tão desgastante, que a tendência natural dos pais é desistir de
procurar a cura, aceitar a doença e se resignar. Esse nunca foi meu
pensamento.
A cura era meu objetivo, mas havia algo mais forte que me
impulsionava. Minha grande motivação era ver meu filho feliz. Não
planejava grandes feitos para ele. Procurava não imaginar grandes
progressos, mas sim vivenciar cada conquista, aos poucos, diariamente.
Como já disse, joguei todas as minhas expectativas de um “futuro
glorioso”, que todas as mães têm em relação aos seus filhos, no lixo. Só
queria vê-lo feliz. Esse era meu objetivo principal.
Mas, quando o cansaço era demasiado, a minha vontade era sumir,
acordar desse pesadelo. A realidade, às vezes, parecia um pesadelo, e a
vida, em vez de divertida, ficava pesada demais. Em alguns momentos,
eu simplesmente não sabia o que fazer.
Havia períodos de desânimo. Tudo era difícil. Eu estava sozinha com
duas crianças pequenas, sem a ajuda do meu marido, precisando atender

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às necessidades dos dois, sem saber, todavia, se não estava
negligenciando, de certa forma, a minha filha.
Bernardo não me obedecia e qualquer tarefa se tornava difícil. Dava
trabalho para comer, para dormir, para sair de frente da televisão, para
sair do balanço, para escovar os dentes. Esta última tarefa, então, era
dificílima. Tinha de ser praticamente à força.
Eu ficava dividida. A vontade era a de não escovar seus dentes, mas
eu não podia deixar meu filho ter cárie por que ele se recusava,
conscientemente ou não, dia após dia, a facilitar o meu trabalho.
Caminhar nas ruas era um trabalho “hercúleo”. Ou ele caminhava na
direção oposta e não aceitava mudar o rumo ou saía correndo, e eu atrás,
aflita por ele não obedecer ao meu chamado, com medo de que ele fosse
atropelado ou se machucasse.
Lembro de minha irmã e eu arrastando Bernardo pelas ruas depois do
tratamento, cada uma o segurando por um braço. Sentíamos a
recriminação no olhar das pessoas que passavam por nós. Para eles,
talvez fossemos pessoas desumanas, agressivas, que arrastavam um bebê
desobediente. Sabíamos que não era nada disso.
O amor pelo meu filho me levou a Porto Alegre e me levaria ao
Japão, à China, se fosse preciso. Mas havia aqueles momentos de
dúvidas quanto ao sucesso do tratamento, e eu precisava desabafar com
alguém. Nessas horas eu procurava Margareth, minha psicanalista.
Não podia jogar tanto peso nas costas do meu marido; ele ficaria mais
ansioso por estar longe, e não havia muito que ele pudesse fazer.
Tínhamos de ser pacientes. Eu só queria alguém para desabafar.
A minha rotina era muito cansativa. Meu marido estava longe, e toda
a responsabilidade recaía sobre meus ombros. Quando o Bernardo não
tinha consulta, como quando a Eda entrou de férias por duas semanas, eu
tinha de me desdobrar para distraí-lo.
Ao menos no Rio, eu levava as crianças à praia quase todos os dias.
Era só atravessar a rua. Apenas Maria Júlia entrava no mar. Bernardo
tinha pavor da areia, não aceitava o contato da areia com seu corpo e
ficava no meu colo. Se eu tentasse tirá-lo do colo e botá-lo de pé, ele
encolhia os pés para evitar o contato com a areia.
Para amenizar o calor de Porto Alegre, cujo verão é abafadíssimo, eu
colocava os dois na banheira e a enchia de brinquedos. E ficava por
53
perto. Até porque ele não aceitava a minha ausência por muito tempo:
estava sempre agarrado às minhas pernas, gritando.
Mesmo enquanto eu escrevia no meu diário (eu não estava
trabalhando e, como afirmei anteriormente, era prazeroso manter um
diário para me distrair e para ajudar o tratamento do meu filho), meu
agarradinho estava ao meu lado, abraçado às minhas pernas, gritando
para chamar minha atenção.
Seu vínculo comigo chegou a ser doentio, eu admito, pois ele não
aceitava que eu ficasse em um cômodo da casa e ele em outro; não me
deixava ir ao banheiro sozinha, esmurrava a porta para entrar, e só parava
de esmurrá-la quando eu a abria.
Quanto mais eu tentava entender a doença do Bernardo, mais
confusa eu ficava. Quanto mais eu lia, mais dúvidas surgiam. Parecia que
nem os médicos se sentiam seguros para falar sobre o assunto. Não havia
certezas ou uma causa isolada que explicasse a origem da doença, e sim
múltiplas causas que variavam de criança para criança. Li sobre uma
teoria de que as vacinas seriam as causadoras do autismo em algumas
crianças. Fiquei chocada.
Essa suposição surgiu em 1999. O médico Andrew Wakefield
publicou o artigo MMR “Vaccination and Autism”, estabelecendo uma
suposta relação entre a vacina tríplice e o autismo. Diversos estudos
médicos foram conduzidos a partir de então a fim de se comprovar ou
não essa relação. Não houve evidências nesses novos estudos acerca
dessa hipótese, chegando-se à conclusão de que tal relação é
completamente inexistente.
O Conselho Médico Geral Britânico (General Medical Council), em
2010, considerou que o Dr. Wakefield agiu de forma antiética e
desonesta ao vincular, mediante a falsificação de resultados da pesquisa
destinada à tal comprovação, a vacina tríplice ao autismo e cassou seu
registro profissional no Reino Unido em maio daquele ano.
O conselho médico também acusou a conduta antiética do Dr.
Wakefield de ter sido responsável pelo ressurgimento do sarampo no
Reino Unido, devido ao receio dos pais de aplicarem a vacina tríplice em
seus filhos. As taxas de vacinação nunca mais voltaram a subir, e surtos
da doença se tornaram comuns.

54
Nos últimos dez anos, uma dezena de pesquisas realizadas na
tentativa de encontrar uma correlação entre a vacina tríplice e o autismo
não encontraram nenhuma evidência que comprovasse os dados
preliminares do artigo de Wakefield.
Infelizmente, várias famílias foram influenciadas pela polêmica
criada pela Mídia logo após a publicação do artigo, e doenças
consideradas extintas devido à aplicação de vacinas regulares voltaram a
matar crianças em famílias que resolveram não vacinar seus filhos.
Se a hipótese da vacinação tivesse qualquer fundamento, por menor
que fosse, eu iria acreditar que somos apenas cobaias impotentes, que
não há qualquer segurança quanto ao uso de fármacos. E que, em vez de
proteger nossos filhos, estaríamos, involuntariamente, os envenenando.
Já me sentia impotente o suficiente por ter de lidar com o autismo.
Não queria me sentir impotente em todo esse processo. Que outras
surpresas me aguardavam?
Sempre fui apaixonada pelo meu filho. O diagnóstico nos uniu ainda
mais. Meu coração permaneceu o mesmo. Minhas angústias
aumentaram. Eu me preocupava com seu futuro.
Gostaria que ele tivesse opções, que ele pudesse fazer escolhas, que
ele fosse independente, feliz, que tivesse qualidade de vida. Eu sabia que
eu era o seu mundo, a sua intérprete.
Tínhamos uma linguagem própria Bernardo e eu; criamos códigos,
dialetos, feitos das pequenas histórias que partilhamos. Aprendi também
a gritar quando ele gritava, jogar-me no chão com ele, dançar, fazer
caretas, entrar no seu universo.
Aprendi a ir até ele e não esperar mais que ele viesse até mim. Toda a
minha bagagem materna, acumulada com a experiência da Maria Júlia,
pouco serviu para Bernardo. Deixei de lado os antigos ensinamentos e
aprendi a ser a mãe que ele precisava, a mãe que tinha significado para
ele. Também precisei aceitar a realidade como ela era: Bernardo tinha
quase três anos e ainda não falava mamãe.

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Uma criança normal

No primeiro ano do tratamento psicanalítico, Bernardo pedia colo


insistentemente. Não sei se tinha preguiça de andar ou se simplesmente
queria ficar grudado em mim e manter a condição de bebê, que era tão
confortável para ele. Mas não era só o meu colo que ele pedia. Aceitava
também o colo das empregadas, embora, para mim, o pedido tenha sido
mais frequente.
Quando via que eu ia pegá-lo, o psicanalista chamava a minha
atenção e dizia para eu não fazê-lo, para eu forçá-lo a caminhar. Era para
eu impor limites e, principalmente, para não tratá-lo como bebê, apesar
de ele ter pouco mais de dois anos.
Eu concordava com ele, escutava atentamente suas orientações,
entendia seus argumentos, mas algumas vezes não lhe obedecia. Até que,
um dia, foi mais incisivo e me fez colocá-lo no chão na hora e obrigá-lo a
andar.
Hoje percebo com clareza que, no início do tratamento, eu o protegia
demais. Não estava ainda bem claro, para mim, como tratá-lo– não sabia
se deveria protegê-lo ou ser firme com ele. Com o tempo aprendi a ser as
duas coisas: firme e protetora.
Foi aí que, depois de uma consulta, perguntei ao Dr. Alfredo como eu
deveria tratar o Bernardo. Ele não entendeu a minha pergunta. Eu repeti:
– Gostaria que você me orientasse a respeito de como devo tratar o
meu filho, para ajudá-lo ainda mais no tratamento.
Ele disse:
– Escuta, Luciana, o Bernardo já tem dois terapeutas, que somos Eda
e eu. Não precisa de mais um. Você tem de ser apenas a mãe dele.
Nunca mais perguntei como deveria tratá-lo; compreendi que deveria
seguir a minha intuição e sabedoria maternas; tratá-lo como uma criança
normal foi a minha escolha.
Com o tempo, passei a exigir dele o que exigia da Maria Júlia.
Compreendi que, enquanto eu não o visse como uma “criança normal”,
não poderia desejar que ele se tornasse uma.
Sei como isso é difícil. Não raras vezes, diante da doença dos filhos,
os pais os tratam como “vítimas, coitadinhos”. Não percebem que, se há

56
uma atitude que pode causar dano ao filho – e de forma permanente –, é
ter pena dele.
Ter pena de um filho é aleijá-lo, é não dar chance de que ele vença a
doença. Mais do que isso: é não notar os progressos que a criança está
fazendo e tratar como doente uma criança em pleno processo de
desenvolvimento.
A criança só se sentirá capaz de vencer os obstáculos que surgem na
vida – sejam afetivos, mentais ou físicos – se tiver a confiança dos pais.
A mensagem que os pais passam a ela, quando sentem pena, é a de que
ela não é capaz. Aprendi que o diagnóstico do autismo não precisa ser
uma sentença. Há espaço para lutar pela cura.
Portanto, matricular Bernardo em uma escola regular e não em uma
escola especializada em autistas foi fundamental nesse processo. Ainda
mais depois que visitei uma escola especial em Porto Alegre. Essa escola
era bem perto de casa. Poderia levá-lo a pé se quisesse. Seria até bem
prático.
Mas não gostei do que vi. Em primeiro lugar, porque só havia
crianças com deficiências mentais, tão excludente quanto só haver
crianças sem problemas mentais em um colégio regular. Em segundo,
porque eu não via naquelas crianças sinais de cura, e sim de
adestramento.
Como eu tratava meu filho como uma “criança normal”, queria que
ele fosse incluído socialmente, e não excluído ou treinado. Daí a
importância que vejo na inclusão social e de como ela pode ser benéfica
para a aceitação das diferenças e também das deficiências. Essa troca
entre as crianças, com uma incentivando a outra para novos feitos e
superações, deve ser incentivada tanto pela sociedade quanto pelo
governo.
O mais triste era que o rosto inexpressivo do meu filho, que eu queria
tanto que voltasse a ser sorridente, continuava lá, no rosto daquelas
outras crianças. Os automatismos também. Não via aquelas crianças
felizes, brincalhonas, curadas.
Via um monte de crianças sendo ensinadas a repetir comportamentos
e não a entendê-los. Não ensinavam aquelas crianças a pensar. Eles
estavam lá apenas para repetir movimentos, sem entender o significado
do que faziam. Aquilo não servia para o meu filho.

57
A partir de um ano de idade, as idas ao pediatra se tornaram
complicadas. Até então, ele não dava qualquer trabalho, era fácil tirar sua
roupa para examiná-lo e pesá-lo.
Depois que houve a já mencionada estagnação e regressão no seu
comportamento e depois que o autismo foi diagnosticado, tudo ficou bem
mais difícil. Ele não aceitava mais ser tocado. Não queria ser pesado.
Relutava em aceitar o contato com o pediatra. Bernardo era muito forte e
resistente. Não era fácil obrigá-lo a fazer algo que ele não quisesse.
Depois de iniciado o tratamento, houve uma melhora significativa em
termos de aproximação com as outras pessoas. Pouco tempo depois, já
em tratamento, Bernardo começou a se consultar com uma pediatra na
Cidade Baixa, aceitando passivamente ser examinado e pesado.
Foi uma pequena vitória! Ao informá-la de que ele tinha sido
diagnosticado com autismo, ela disse que o autismo dele deveria ser de
grau leve e que as chances de ele se recuperar deveriam ser muito boas.
Fiquei muito animada com o comentário.

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Carta recebida um mês antes da ida do Hector a Porto Alegre em junho
de 2003

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VII – CONTRATEMPOS FAMILIARES

Outra doença em nossas vidas

“2003 será o ano em que voltaremos a ficar os quatro juntos. Te amo


muito, muito mesmo, e a nossos filhos também. Lembra de mim” -Hector

No final de junho de 2003, em mais uma visita do Hector a Porto


Alegre para passar o final de semana – até então ele continuava morando
em Copacabana e trabalhando no Jornal do Commercio – notei que meu
marido estava agindo de forma esquisita. O primeiro alerta surgiu quando
ele começou a me contar uma história de trabalho e, sem mais nem menos,
no melhor da história, ele se calou.
Eu perguntei:
– E aí? O que aconteceu? Qual é o final da história?
Ele olhou para mim sem entender o que eu estava perguntando; havia
simplesmente esquecido o que estava falando. Muito estranho! Isso nunca
tinha acontecido antes.
O segundo alerta se repetiu duas ou três vezes naquela tarde. Depois
de ele usar o banheiro, logo em seguida eu entrei, e a torneira estava
aberta. Outra atitude suspeita, outro comportamento incomum. Na cozinha,
a mesma coisa. Depois de usar a pia, não a fechou.
Foi a minha vez de perguntar o que estava acontecendo, se era uma
nova mania não fechar mais as torneiras. Ele nem percebeu que estava
fazendo isso e passou a reclamar de fortes dores de cabeça.
Era raríssimo ele sentir dor de cabeça, e esse sintoma, combinado
com as outras esquisitices me fizeram pensar: nunca havia reclamado tanto
de dor de cabeça. Tudo muito estranho, tudo muito novo.
No dia de voltar para o Rio, dois dias depois (tinha ido passar o final
de semana conosco em comemoração ao Dia dos Namorados), Hector
acordou com uma insuportável dor de cabeça, e eu disse que ele não

60
viajaria daquele jeito. Convenci-o a ir à Emergência da Santa Casa para
uma consulta de emergência.
Assim que a consulta começou – permitiram a minha presença – fui
me dando conta de que o caso era mais sério do que eu imaginava. À
medida que a neurologista lhe perguntava sobre alguns sintomas dos
últimos dias – como forte dor de cabeça, dificuldade na escrita e uma
perna puxando –, novos sintomas iam surgindo.
Soube, assim, que ele não estava conseguindo assinar seu nome como
de costume, que a perna esquerda estava puxando e que não havia
controlado a urina um dia no trabalho. Dava para perceber que era muito
mais sério do que eu pensava!
A tomografia, pedida com urgência pela médica, poderia confirmar
meu maior medo até então: o de um derrame ou isquemia. Não pensava,
naquele momento, que o diagnóstico podia ser ainda pior. E foi. Até
termos o diagnóstico em mãos, Hector fez vários exames, de sangue a
urina, e a tomografia mostrou uma mancha: um edema cerebral.
A causa do edema? Somente suposições. Uma delas era de tumor.
Quando a neurologista falou sobre a suspeita do tumor, Hector, na mesma
hora, disse: É isso que eu tenho! A neurologista, todavia, disse que podia
haver outras causas. Para ele, não. Não sei como, mas ele tinha certeza de
que estava com câncer.
Ele não voltou para casa naquele dia. Ficou internado no Hospital São
José, no Setor de Neurologia da Santa Casa de Porto Alegre, para a
realização de exames que fossem suficientes e conclusivos para um
diagnóstico.
Assim que eu soube que o Hector teria de ser internado, liguei para o
meu pai e pedi para ele vir a Porto Alegre para cuidar das crianças, com a
ajuda da babá. Eu pretendia ficar ao lado do meu marido naqueles
próximos dias, o que incluía dormir no hospital todas as noites.
Tentei fingir para o Hector e para os meus filhos que tudo estava
bem, que não estava muito preocupada, que acreditava na hipótese de uma
inflamação isolada, mas eu estava em estado de choque. Sabia que a
situação era gravíssima.
O pior é que Hector estava certo. A ressonância magnética, feita dias
depois, indicou dez tumores cerebrais em vez de um, como imaginávamos
na pior das hipóteses. Também descobrimos que os tumores cerebrais

61
eram metástases de um câncer de pulmão. O câncer estava em estágio
avançado, e as chances de cura eram mínimas.
O tratamento incluía sessões de radioterapia e de quimioterapia,
realizadas na Santa Casa e em uma clínica particular. Pelo menos o plano
de saúde arcou com todas as despesas.

A morte da minha mãe

Só havia a minha perplexidade diante da possibilidade, inicial, e da


confirmação, posterior, do câncer do meu marido. Ainda mais pelo
aparecimento das metástases. Para mim, o câncer é um inimigo antigo.
No dia 20 de janeiro de 1986, minha mãe, que tinha apenas 44 anos,
faleceu em razão de um câncer de rim com metástases ósseas, depois de
lutar dois anos contra a doença.
Uma dor nas costas, insistente, que ela acreditava ser problema na
coluna, se revelou um tipo raro de câncer renal. Eu tinha apenas quatorze
anos quando ela morreu; minhas irmãs eram ainda menores: Maria
Amanda tinha onze anos e Maria Pia, sete.
Quando minha mãe foi operada, em 1984, para retirar uma parte do
tumor para biópsia, já havia metástase no sistema nervoso. É digno de
nota que no início dos anos 80, o câncer ainda era um bicho com mais de
sete cabeças e, quase sempre, fatal.
Era quase proibido pronunciar o seu nome como se, ao dizer
“câncer”, a pessoa, automaticamente, viesse a adquiri-lo, como se só de
pronunciar o nome da doença, ela se instalasse instantaneamente. Até
hoje vejo pessoas que têm dificuldade de falar “câncer”.
Meu pai fez tudo que estava ao seu alcance para que ela se curasse,
desde o uso da medicina tradicional até o de tratamentos alternativos,
como macrobiótica, visita de gurus, mudança alimentar, meditação e
oração. Muita oração.

62
Minha família é católica e minha mãe rezava toda hora. Ainda lembro
de passar pelo seu quarto e ouvi-la cantando hinos religiosos como "A
Barca" ou "Segura na mão de Deus".
Uma dessas tentativas de cura foi a viagem que fizemos para Los
Angeles em 1984. Considerada um dos melhores centros especializados
no combate ao câncer na década de 80, a Universidade da Califórnia
(UCLA) oferecia um tratamento de ponta, além de ser referência mundial
em oncologia.
Ficamos seis meses em Los Angeles na expectativa de que as notícias
fossem mais animadoras e de que houvesse possibilidade de cura para
minha mãe.
Mas não foi o que aconteceu. Lá os oncologistas disseram que não
havia mais nada a ser feito a não ser amenizar a dor com um tratamento
paliativo (o câncer nos ossos é muito doloroso).
Voltamos para o Brasil e para nossa vida no Rio. Ela continuou a
radioterapia e foi forte do princípio ao fim, mas as dores eram intensas e,
em pouco tempo, ela foi obrigada a ficar metade do tempo deitada,
sedada.
Quase não convivíamos mais com ela. Foi muito triste ver uma
mulher boa, vaidosa e cheia de vida ser consumida pelo câncer. Ela era
muito nova. Tinha apenas 42 anos quando a doença foi descoberta.
Mesmo careca (consequência da radio e da quimioterapia), mesmo
andando de muletas, minha mãe não se entregava; usava maquiagem,
vestia roupas elegantes, procurava passar força e otimismo para nós, as
filhas.
Em 20 de janeiro, feriado de São Sebastião, o câncer venceu a
batalha, e ela faleceu. Foi muito difícil aceitar sua morte. Até o
surgimento do câncer, ela era muito saudável; era difícil vê-la com um
resfriado, uma dor de cabeça ou coisa parecida. Como aceitar a perda da
mãe, que é um referencial para a vida toda?
Eu sabia que ela não estaria presente nos meus quinze anos, não
estaria presente na minha formatura da faculdade, não conheceria meus
namorados, não estaria presente no meu casamento, não conheceria seus
netos.

63
Quase vinte anos se passaram e fomos novamente, desta vez meus
filhos e eu, surpreendidos pelo câncer em nossas vidas. Ele continua
assustador, mas algumas características mudaram.
Não sou mais uma criança. Minha compreensão da vida não é a
mesma. A história é outra. Meu marido também teve acesso a um
tratamento de ponta, em uma das melhores clínicas do país (considerada
a melhor da Região Sul), e, para compensar, não tivemos preocupações
financeiras.
O plano de saúde cobriu todas as despesas médicas, desde exames
simples, como o de sangue, até os mais sofisticados, ao contrário do que
aconteceu com a minha mãe, pois meu pai precisou vender alguns bens
para pagar o tratamento.
Pelo menos, o dinheiro para pagar o tratamento não foi uma
preocupação adicional. Foi reconfortante não termos preocupações extras
com dinheiro e podermos nos dedicar totalmente ao seu bem-estar.
Senti muito orgulho do meu marido, da sua coragem, da sua
serenidade e da sua determinação. Esteve sempre empenhado em vencer
esta luta, mas sem perder a noção da realidade e aproveitando cada
minuto para ficar ainda mais próximo da família.

Meu aniversário de 32 anos

Em outubro de 2003, fiz 32 anos. Recebi vários telefonemas de


congratulações de pessoas muito queridas. O primeiro a ligar foi o meu
tio Geraldo, marido da minha tia Carmem, a quem chamo de pai Caque.
Em seguida, meu pai chegou à minha casa, vindo do RJ, e brincou
bastante com as crianças. A esposa dele, Sônia, ficou na casa da minha
irmã, a quatro quadras da minha.
Almoçamos todos juntos. Hector passou praticamente todo o tempo
deitado, dormindo. Não estava se sentindo bem desde a véspera. Ficou
com uma febre persistente, que só foi ceder à noite. Foi um aniversário
triste. Fiz muita força para que ele não fosse tão triste, até tentei me
animar, mas meu filho e meu marido estavam doentes. Quando assoprei a
64
velinha de aniversário, fechei com força os olhos, e o meu primeiro
desejo foi de que o meu marido se curasse, ou, no mínimo, melhorasse.
Sabia que isso era quase impossível, mas eu só queria um pouco mais
de tempo ao seu lado. Pedia alguns anos a mais. Era o meu maior desejo.
O meu segundo desejo foi o de que o Bernardo ficasse curado.
No dia 31 de outubro, apenas doze dias depois do meu aniversário,
Hector fez uma tomografia com contraste de iodo. O resultado indicava
que os tumores haviam aumentado: “marcada progressão dos tumores em
número e tamanho”. Ficamos arrasados.
Desta vez não consegui me conter e chorei muito. Não queria aceitar
que ele estava morrendo e não entendia essa guerra, na qual os tumores
destruíam, hora após hora, dia após dia, o meu marido.
Durante todo o tratamento, fiquei ao lado do meu marido. Tive de
deixar os meus filhos um pouco de lado. Meu pai e a esposa vieram de
Minas Gerais, ficaram no nosso apartamento e cuidaram dos meus filhos
até a alta do Hector, quase um mês depois. Eu os visitava, mas por poucos
minutos; tinha de voltar rapidamente para o hospital. Não queria deixar
meu marido sozinho.
Quando estava no hospital, eu esperava o Hector dormir e saía de
fininho do quarto, escondida. Precisava fazer algumas ligações. Ligava
para as minhas irmãs, para as minhas tias. Falava sem parar, nem sabia
direito o que estava falando. Eu só precisava botar para fora a angústia que
estava sentindo, angústia pelo Hector, pelo Bernardo, pelo futuro incerto
dos dois.
Também ligava para minha psicanalista. Estava perdida,
desorientada. De repente, o problema do Bernardo parecia algo menor,
muito menor. Surgia outro monstro, um monstro antigo, conhecido, que
mais uma vez teria de ser enfrentado.
Eu estava, novamente, impotente, dependendo da sorte, do destino, da
medicina, para combater o câncer do meu marido. Infelizmente, o câncer
tem alguns componentes de crueldade. Os dois resultados mais
significativos para o diagnóstico do câncer foram revelados a mim antes de
serem ao Hector.
Tive de ser uma boa atriz para não desmoronar na sua frente e contar
a verdade. Pela primeira vez, mentia ao meu marido. Esses dois resultados
foram mais do que a confirmação de um tumor cerebral. Havia dez

65
tumores em vez de um, o que inviabilizava qualquer cirurgia para a
retirada.
Lembro que, quando recebi o resultado, fui, literalmente, correndo da
Santa Casa até o consultório, nos Moinhos de Vento, do Dr. Jorge Luis
Kramer, neurocirurgião do Hospital São José, para lhe implorar que
operasse o meu marido, que tentasse curá-lo.
Ele olhou a ressonância magnética e, pelo seu olhar, não havia
necessidade de palavras. Mesmo assim, ele precisava me dar alguma
explicação e o que ouvi foi que, infelizmente, operá-lo não era uma opção,
não havia mais nada a ser feito. Provavelmente ele não sobreviveria à
cirurgia e, se sobrevivesse, ficaria em estado vegetativo.
Não havia alternativas a não ser a radioterapia, que era paliativa, não
iria curá-lo, não iria salvá-lo, mas apenas adiar a data de sua morte. Dez
tumores era algo surreal de se ouvir. Saber que o seu companheiro de vida,
a pessoa que você escolheu para ficar ao seu lado nos momentos bons e
ruins tinha dez tumores na cabeça não foi fácil de ser assimilado. Por que,
meu Deus?
Voltei para o hospital e tive de fingir que não sabia de nada. Acredito
que isso significava mais do que uma mentira nobre. Os médicos ficaram
encarregados de conversar com ele e explicar a situação. Pelo menos ainda
restava a tomografia de pulmão, o que me dava uma certa esperança.
O resultado deveria sair em dois ou três dias. Novo banho de água
fria. Sem o Hector saber, procurei o pneumologista para pegar o resultado
da tomografia. Tivemos uma longa conversa, longa e desoladora. O
pulmão estava tomado por metástases. E o pneumologista ainda acreditava
que o pulmão era o câncer primário.
Sentindo-me derrotada, não sabia para onde ir. Eu precisava de ar.
Por outro lado, eu só ficava calma se estivesse ao lado do Hector. Um
medo enorme de que ele morresse de uma hora para outra, de que ele
morresse e eu não estivesse por perto. No fundo, acreditava que podia
impedir a sua morte.
Caminhei um pouco antes de voltar para o hospital e, quando fui em
casa para ver as crianças, eu me senti tão mal que não tive vontade de ficar
lá. Meu lugar agora era no hospital, ao lado do meu marido, e só lá eu
ficava menos apavorada.

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Não queria olhar para as crianças. Fiquei com tanta raiva do que
estávamos vivendo, da falta do que dizer para os meus filhos, de não ter
como consolá-los. Senti muita raiva de tudo. Não tinha vontade de vê-los.
Não daquela forma. Não com essas tristes notícias. Não podia lhes dizer a
verdade, não podia dividir essa dor com eles. Precisava protegê-los; no
entanto, eu é que estava carente de proteção.
Anos depois, soube pelo Dr. Alfredo que Hector o tinha procurado
para que ele prometesse dar continuidade ao tratamento do Bernardo caso
eu não pudesse pagá-lo. Mas isso aconteceu muitos anos depois de sua
morte.
Como era de se esperar, meu marido estava preocupadíssimo com o
nosso futuro. Sabia que não tinha muito tempo de vida. A gravidade do seu
câncer nunca foi um segredo. Os médicos foram muito corretos ao lhe
informar tudo que ele perguntava, de forma clara e objetiva, sem lhe
esconder qualquer informação.
Por isso, era natural que ficasse preocupado com a família. Desde o
nascimento das crianças, eu parei de trabalhar. Ficava em casa cuidando
deles e, por não ter contatos profissionais em Porto Alegre, a perspectiva
de arranjar um trabalho a curto prazo não era boa.
Para reverter essa situação (e por ter trabalhado na manutenção de
sites), Hector propôs ao dono da clínica particular em que se tratou
reformular o site deles, desde que eu fosse contratada para ser assessora de
imprensa na clínica, já que sou jornalista. Era uma forma de ele ser útil
durante a doença e de me arranjar um emprego. Uma grande prova de
amor. Mais uma.
Hector lutou bravamente contra o câncer. Foram onze meses muito
sofridos. Ele não queria partir. Nós o queríamos por perto. Levei as
crianças para visitá-lo durante as internações. Não queria fazer com os
meus filhos o mesmo que o meu pai fez comigo e com as minhas irmãs.
Apesar das súplicas da minha mãe para que ele nos levasse ao
hospital para vê-la (ela estava em fase terminal), ele se manteve irredutível
e não nos levou. Nem mesmo no seu enterro estivemos presente. Meu pai
não teve sensibilidade para entender que precisávamos nos despedir dela.
Eu não cometeria o mesmo erro, embora algumas pessoas tenham me
aconselhado a poupá-los.

67
“Tu quieres volver
Y no te veo mas
Tu quieres volver
Y no me encuentro mas “
(Gipsy Kings)

No dia 11 de maio de 2004, um pedaço de nossas vidas se foi. Às


duas horas da madrugada, Hector faleceu em decorrência das complicações
do câncer de pulmão com metástase cerebral.
Eu estava ali, inconsolável, naquele quarto escuro, escutando sua lenta
respiração, à espera do minuto em que tudo estivesse acabado. Eu olhava o
seu rosto e aceitava o inevitável com uma dor indescritível, com a certeza
de que morria o melhor amigo, amante, marido que eu poderia ter tido na
vida.
Seu pulmão estava tomado por nódulos, quase não sobrava espaço
para ele respirar, e as metástases cerebrais, que haviam regredido durante
alguns meses, voltaram a crescer nas últimas semanas, ocasionando forte
dor de cabeça e convulsões. Assistir a quem se ama com sucessivas
convulsões é tão doloroso que paralisa. Não queria mais vê-lo daquele
jeito.
A dor do que vivenciei foi penetrando na minha alma e, embora eu
tentasse não chorar – precisava ser forte para os meus filhos –, uma parte
de mim foi perdida para sempre. Carrego uma tristeza muito grande pelo
que vi. Mas tenho orgulho de dizer que ele não foi entubado. Segui à risca
seu desejo de não prolongarmos seu sofrimento.
Quatro dias antes da sua morte, comemoramos no hospital São José,
setor neurológico da Santa Casa de Porto Alegre, o seu aniversário de 60
anos.
Todos os enfermeiros fizeram questão de participar e cantar o
parabéns. Hector era muito querido por todos – por sua simplicidade, por
sua educação, por sua coragem na luta contra o câncer.

68
Houve uma pequena festa, com direito a balões coloridos,
refrigerantes, salgadinhos, docinhos e um bolo. Naquele dia, quando eu o
deixei no hospital para levar as crianças pra casa, eu não tinha como prever
que, em apenas quatro dias, teríamos de nos despedir. E, dessa vez, para
sempre.
Na véspera de sua morte, foi o Dia das Mães. Foi um dos dias das
mães mais tristes que vivi, embora estivéssemos os quatro juntos no
hospital. Fiz questão de levar as crianças para vê-lo.
Mas ele estava muito cansado, muito fraco, debilitado pela doença.
Não ficava mais sem o balão de oxigênio. Mesmo assim, sempre que podia,
eu levava as crianças ao hospital. Queria que eles tivessem a oportunidade
de se despedir do pai maravilhoso que tiveram.

Fazendo o luto pela morte do meu marido

Tatuei nas minhas costas “Ânimo, valor y miedo” um ano depois da


morte do Hector. É um lema argentino citado diversas vezes por ele antes
e depois de descobrir que estava doente.
Embora eu tenha presenciado a sua morte – estava ao seu lado quando
ele faleceu – e tenha dito todas as vezes que tive chance o quanto eu o
amava, parecia sempre pouco, principalmente depois que ele se foi. Com
a tatuagem, eu me senti mais próxima dele, e foi mais uma oportunidade
de eu homenageá-lo e fazer o luto.
Bernardo ficou muito interessado pela tatuagem. Gostou da novidade.
Maria Júlia perguntou a razão de eu ter feito a tatuagem e eu lhe expliquei
que era uma homenagem ao seu pai, que era uma forma de eu me
despedir. Bernardo ainda não falava, mas dava para perceber que ele
também tinha gostado.
Passamos o primeiro Natal sem o Hector em Santana do Livramento
com a minha prima, o marido e seus filhos.
Depois de entregar os presentes para as crianças, no táxi de volta para
a casa onde estávamos hospedados, Maria Júlia disse:
- Sabe o que eu queria em vez dessa Barbie? O meu pai de volta.

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Foi de cortar o coração. Em pedacinhos. Eu disse que sabia disso e
que também queria muito que ele estivesse conosco. No entanto, ele não
estava, e eu precisava fazer o luto e olhar para a frente. Eu tinha de pensar
nos meus filhos, não deixar a tristeza me consumir, não deixar o
desânimo invadir a minha alma.

Meu pai, o amigo de sempre

Meu pai foi presença constante durante a doença do meu marido.


Piloto aposentado da Varig, ele morava em uma fazenda em Juiz de Fora
(MG), a 15 km do Centro da cidade, mas passava alguns dias em Porto
Alegre sempre que eu pedia para ele me ajudar a cuidar das crianças.
Sucessor natural do Hector, eles tinham nele um segundo pai.
Avô dedicado, soube conciliar carinho e deveres, ajudando meus
filhos a vivenciarem a morte do Hector de uma forma mais leve e menos
traumática. Procurava distraí-los com brincadeiras e passeios.
Casado pela terceira vez, ele levava a esposa para nos dar apoio. Não
se cansavam de dizer que estavam a nosso dispor, que só iriam embora
quando eu não precisasse mais deles.
Nunca precisei pedir ao meu pai para ele assumir esse papel de
“referência masculina” para meus filhos. Naturalmente ele assumiu o
papel e passou a ficar mais presente em nossas vidas, indo mensalmente a
Porto Alegre ou telefonando para saber notícias.
Meu pai ficava hospedado em nosso apartamento. Por esse tempo, já
havíamos nos mudado para a Rua Ramiro Barcelos, quase esquina com a
Rua Vasco da Gama, no bairro Bom Fim. Assim como no antigo
apartamento, estávamos perto das principais avenidas que cortavam a
cidade e tínhamos várias opções de transporte público.
Eu estava sem carro e não sentia necessidade de comprar um, porque
era fácil nos locomovermos a pé, de lotação ou de ônibus. Também havia
um ponto de táxi quase em frente ao nosso prédio.
Além de ótimo avô, carinhoso e dedicado, meu pai sempre teve jeito
com crianças. Sua ajuda foi fundamental para que os meus filhos não
sentissem ainda mais a falta do Hector.
70
A relação do meu pai com a Maria Júlia era mais fácil, fluía
naturalmente. Já com o Bernardo, ele sentia-se impotente, exigia demais
dele, não compreendia suas limitações e, com isso, se frustrava.
Na tentativa de ficar mais tempo com os netos, meu pai convidou as
crianças para passarem uns dias na fazenda. Fazia pouco mais de ano que
o Hector tinha morrido. Deixei Bernardo e Maria Júlia viajarem para Juiz
de Fora com a babá, Rosa, que foi contratada quando tive de voltar a
trabalhar.

Sem noção do perigo

Foram 15 dias longe de mim em janeiro. Um incidente marcou a


viagem. Bernardo estava com quatro anos. Estavam no carro Maria Júlia,
Bernardo e meu pai. Rosa tinha ficado na fazenda com Sônia.
No meio do caminho, com o carro em movimento, Bernardo abriu a
porta. Pelo que soube, com rápido reflexo, meu pai parou o carro na hora.
Ficou irritadíssimo e foi bem duro com o neto. Não foi a primeira vez.
Meu pai não sabia como agir com o Bernardo. Ele até tentava se
controlar, mas o comportamento do Bernardo o incomodava. Não sabia
lidar com o autismo. Ele queria que Bernardo obedecesse a ele como a
Maria Júlia fazia. Mas isso não acontecia, e ele ficava frustrado,
afastando-se dele.
Outro exemplo de que Bernardo não tinha noção do perigo aconteceu
quase dois anos antes em uma visita ao sítio do meu tio José Rubens, em
Santo Antônio da Patrulha.
Fomos minhas irmãs, primas, Maria Júlia, Bernardo e eu passar o
domingo com meu tio, minha tia e seus filhos. Chegamos de manhã cedo,
pretendíamos aproveitar o dia em meio a natureza. O sítio era lindo, tinha
um gramado enorme, verdinho, muito bem cuidado e plano, ideal para
caminhadas ou corridas, ou para a prática de esportes.
No meio do terreno havia uma casa rústica, toda feita de madeira, de
dois andares, com enormes janelas de vidro, parecia até a casa do
“Tarzan”.

71
A casa tinha sido planejada e construída pelo meu tio (já falecido),
que tinha muito bom gosto e talento artístico: suas esculturas e pinturas
são muito expressivas e, também, muito elogiadas. Além do dom
artístico, meu tio era conhecido como “cachorreiro”, uma expressão que
usamos no Sul para pessoas que adoram cachorros.
Os cães preferidos eram os de guarda e, consequentemente, as raças
de grande porte; talvez porque tenha morado mais da metade de sua vida
em casas e precisasse se sentir seguro; mas não era só isso. Ele tinha
muito jeito com o adestramento de cães. Lembro de ele ter tido um
dobberman quando eu era pequena e do quanto minhas irmãs e eu
sentíamos medo dele.
O cão da vez era o Guru, um rottweiler de meter medo também,
enorme, e que ele dizia ser bravíssimo. Pois bem. O animal era majestoso,
pelo reluzente, parecia o cão do filme de terror “A Profecia”. O mais
sábio era guardar distância. E foi o que nós procuramos fazer. Ele só não
tinha sido preso no canil por que obedecia aos comandos de meu tio, que
estava alerta aos seus movimentos e nos aconselhava a não chegarmos
muito perto do cachorro. Prova de que era um cachorro perigoso.
Se ele não confiava completamente na docilidade do animal, imagine
a gente! Por tudo isso, fiquei o tempo todo de olho no Bernardo. Eu não
queria perdê-lo de vista. Mas como dizem, a criança nos “cega”.
Guru brincava com uma bola de tênis na boca. Em fração de
segundos, Bernardo foi em sua direção, tirou a bola da boca do cachorro,
deu meia-volta e saiu andando, tranquilamente. Houve um silêncio no ar.
Todos, inclusive meu tio, não acreditavam no que estavam vendo.
Bernardo não tinha noção do perigo, mas nós, sim. Felizmente Guru
não atacou o Bernardo. Mas tememos por isso. Peguei meu filho no colo
e o abracei com força. Respirei aliviada.
Refazendo-se do choque, meu tio veio em minha direção e disse:
- Ninguém nunca fez isso antes. Nem eu tenho coragem de tirar a bola
da boca do Guru. Fiquei com muito medo – desabafou.
O hábito de lamber metais, de brincar com garfos, facas e colheres
também era um sinal claro de que Bernardo não tinha noção do perigo.
Ainda bem que tive a ajuda da minha família e da minha tia, que não via
nenhum problema em lhe dizer não e impor limites.

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VIII – CONTINUAR A LUTAR, CONTINUAR A
VIVER

A mudança pra Ramiro

Depois da morte do meu marido, em maio de 2004, meu pai tentou me


convencer a mudarmos para Juiz de Fora. O clima de Minas é um dos
melhores do Brasil, nem muito frio nem muito quente, o ideal “clima de
montanha”, e na fazenda havia muitos bichos para divertirem as crianças:
bois, cavalos, galinhas, dois cachorros, além de várias cachoeiras.
Ele queria que morássemos mais perto dele. Para tanto, estava
disposto a nos comprar uma casa em um condomínio de casas bem
próximo à sua fazenda, muito arborizado, quase um bosque. A
possibilidade de morar em uma casa com piscina, cachorro e muito verde
(ou seja, com mais qualidade de vida) teria sido tentadora para mim em
outra fase de nossas vidas, mas eu estava decidida a investir no tratamento
do Bernardo com o Dr. Alfredo e a Dra. Eda.
Eu confiava no trabalho deles e não queria arriscar a cura do meu filho
mudando de cidade e de tratamento. Recusei a oferta do meu pai diversas
vezes, até que ele, conformado com minha decisão, nos comprou o
apartamento do Bom Fim, em Porto Alegre. Até então eu alugava o
apartamento da Cidade Baixa.
Em um prédio de três andares, com um bonito gramado e lírios na
frente, formando um círculo de flores, meu novo apartamento era bem
aconchegante. Mas uma das principais vantagens é que esse apartamento
era meu. Não tinha mais de pagar aluguel. Além disso, ficava bem mais
perto do tratamento do Bernardo.
O nosso apartamento era “um térreo elevado”, expressão que eu não
conhecia até então, com três degraus que o separavam do andar térreo.
Estava todo reformado e com detalhes em madeira, em estilo rústico. Tinha
dois quartos, dependência para empregada e dois banheiros, sendo um
social e outro de serviço. A cozinha, americana, era muito prática e grande,
onde cabia uma grande mesa retangular de vidro, na qual fazíamos nossas
refeições.
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Apesar de ser um bairro residencial, o Bom Fim é o principal reduto
dos judeus na capital e oferece tradicionais pontos de comércio. Há
supermercados, lojas e confeitarias a poucos metros, e as ruas são
belíssimas, decoradas com imensos jacarandás roxos. Eles delineiam um
caminho para as ruas, que, na primavera, ficam tomadas pelas flores.
Um bairro inspirador, sem dúvida. Um excelente lugar para enfrentar
o autismo. Não precisava de carro para me movimentar pelo bairro. O meu
trabalho, por coincidência, era bem perto do apartamento; apenas oito
quadras de distância, dez minutos de caminhada diária.

A volta ao trabalho

Enquanto esteve doente, Hector tentava se distrair e se ocupar; em


uma dessas tentativas, escreveu um livro sobre câncer para leigos.
Infelizmente, o livro não despertou o interesse das poucas editoras que ele
visitou. Mas o trabalho não foi em vão: serviu de base para que ele
reformulasse o site da clínica particular na qual ele fez as sessões de
quimioterapia a partir de julho de 2003.
Como disse anteriormente, a proposta do Hector foi a de que, depois
da sua morte, eu fosse a responsável pela manutenção do site. Isso foi
possível durante quatro anos – de junho de 2004 a julho de 2008.
Quando comecei a trabalhar como assessora de imprensa nessa
clínica, apesar de morarmos perto e de a minha carga horária ser de apenas
seis horas diárias, Bernardo tinha apenas quatro anos e estava acostumado
comigo em casa.
Não foi fácil esse período de adaptação. Ele chorava muito na hora da
despedida, mas eu me recusava a sair escondido. Pelo contrário. Fazia
questão de me despedir para que ele entendesse que eu tinha de sair, mas
que voltaria em breve. Queria que ele entendesse que não precisava sofrer
tanto; eu sempre voltaria. Era muito doloroso vê-lo desesperado com a
nossa separação. Mas eu não tinha opção.
Para diminuir a dor dessa temporária separação, eu fazia questão de
que ele me acompanhasse até o portão gradeado do prédio e, durante o
trajeto, explicava para ele que eu voltaria assim que terminasse o meu
trabalho (embora ele parecesse não ouvir).

74
Em uma dessas difíceis despedidas, assim que saí do prédio, deixei
meu filho, acompanhado da babá, agarrado às grades, gritando, chorando.
Ao subir a rua em direção ao meu trabalho, a cinco metros do meu
apartamento, fui abordada por um homem que me perguntou como eu tinha
coragem de fazer isso com uma criança, como eu tinha coragem de deixá-lo
chorando daquele jeito. Disse que eu não era um ser humano, que eu era
um monstro, e que eu merecia apanhar. Foi um momento horrível. Esse
homem me seguia e me xingava, falando que tinha vontade de bater na
minha cara.
Assim que cheguei ao trabalho, liguei para o Dr. Alfredo, aos prantos,
e lhe relatei tudo que havia acontecido. Eu lhe disse que tinha sido agredida
na rua injustamente, que tinha sido julgada e condenada por um estranho;
que a minha intenção, que era das melhores, não foi bem interpretada. Eu
estava inconsolável.
De forma sensata, Dr. Alfredo me perguntou que importância tinha a
opinião daquele homem para mim, que diferença fazia ele ter me dito
aquelas coisas, e mais: disse que, se eu sabia que estava fazendo a coisa
certa, pouco importava a opinião daquele homem.
Esse conselho me serviu para toda a vida. Percebi a duras penas que
seria algumas vezes mal interpretada, incompreendida, mas que isso em
nada alterava as minhas convicções de que estava fazendo o melhor para o
meu filho.

Minhas irmãs: tias carinhosas e atentas às necessidades dos


meus filhos

As minhas irmãs, Maria Amanda e Maria Pia, me deram todo o apoio


que eu esperava, desde o início do tratamento até hoje. Por não terem filhos
naquela época, era um pouco difícil para elas entenderem o que é cuidar de
dois filhos sozinha, ainda mais depois que Bernardo foi diagnosticado com
autismo.
Porém, mesmo sem compreender claramente a gravidade do
transtorno, assim como eu muitas vezes não entendia, elas sempre

75
estiveram por perto e deram muito carinho e atenção para os meus filhos e
se mostraram atentas à evolução do tratamento psicanalítico.
Elas liam e se informavam sobre autismo (na medida do possível),
sem se intrometerem demais. Era uma abordagem respeitosa, e sou grata a
elas por isso; houve respeito às minhas decisões. Combinamos de exigir um
comportamento mais maduro do Bernardo. As limitações temporárias não
poderiam ser desculpa para condutas permissivas.
Outro aspecto positivo e que aconteceu espontaneamente, sem que eu
precisasse falar com elas a respeito, foi o fato de elas não terem feito
distinção ou terem demonstrado preferência por um dos meus filhos.
Para elas, os dois eram crianças normais, e procuravam tratá-los com
o mesmo peso e a mesma medida. Tenho certeza de que meus filhos se
sentiram amados com a mesma intensidade, muito embora cada um tenha
seu jeito de ser, personalidade e temperamento.

2006: Meu pai – uma nova doença

Em junho de 2006, meu pai começou a sentir fortes dores nas costas e
suspeitou de pneumonia ou tuberculose. Eu sabia da sua saúde pelas
nossas conversas ao telefone, já que ele continuava morando em Juiz de
Fora, e nós, em Porto Alegre. A minha vida estava bem mais corrida com
o trabalho na clínica, e acontecia de ficarmos dias sem nos falarmos.
Havia, além disso, outro motivo para esse distanciamento: minhas
irmãs e eu tinhamos uma relação complicada com a esposa do meu pai.
Inexplicavelmente, ela sentia ciúmes de nós e competia pelo amor do meu
pai, o que dificultava muito minha comunicação com ele.
Não podíamos ligar para ele tanto quanto gostariamos e as poucas
notícias que tínhamos sobre seu estado de saúde nos eram dadas por ele
mesmo. Ou seja, credibilidade quase zero. Ele não nos diria se estivesse
muito doente. Procuraria amenizar a situação.
Nosso relacionamento com a madrasta foi se deteriorando ao longo
dos anos e nem as aparências conseguíamos manter mais. Não havia meio
de nos entendermos. Ela não repassava para ele os recados que

76
deixávamos; dizia que ele não estava em casa quando sabíamos que era
mentira, desligava o telefone na nossa cara.
O fato é que os dias passavam, e ele não melhorava. Mas não
achávamos que fosse uma doença grave. Acreditávamos que, mais dia,
menos dia, ele estaria bem, saudável como sempre foi.
Não foi o que aconteceu. Piorando diariamente, foram realizados
novos exames, e a suspeita passou a ser de câncer de pulmão. Câncer de
pulmão? Mais uma vez? Depois do câncer do Hector, imaginei que
respiraríamos aliviados por algum tempo. Mas eu estava enganada.
Viajei para Juiz de Fora levando apenas a Maria Júlia, que estava com
sete anos; Bernardo ficou em Porto Alegre com a babá. A essa altura,
meu pai já estava internado em um hospital da cidade para realizar outros
exames.
O diagnóstico não estava fechado. Não havia certeza quanto à origem
do câncer, se era originário do pulmão, se havia metástases, se a origem
estava em outro órgão. Muitas perguntas sem respostas conclusivas até
então.
Por ser a filha mais velha, fiquei com a responsabilidade de receber o
diagnóstico dos médicos e também de comunicar a meu pai seu estado de
saúde. Foi tudo muito rápido. No mesmo dia da nossa chegada, minhas
irmãs também foram para Minas. Conversei com a médica responsável
pelo caso, e ela me disse que não havia mais dúvidas, que o meu pai
estava com câncer, originário do pulmão, e com metástases ósseas.
Ela foi otimista. Disse que ele poderia viver alguns anos, com
razoável qualidade de vida, pois havia apenas um tumor no pulmão, e as
metástases ósseas poderiam ser controladas com tratamento oncológico.
Mas não foi o que ocorreu. Um mês depois meu pai falecia em uma
clínica no Rio de Janeiro, para onde se mudou a fim de fazer o
tratamento.
Não sei mensurar as consequências da morte do meu pai no
comportamento do Bernardo. Ele estava com seis anos, tinha começado a
falar e a desenhar.
Maria Júlia se fechou ainda mais com a morte do avô; ele era um
referencial masculino importante para ela, e a sua morte contribuiu para
que ela ficasse ainda mais retraída, mais tímida. Ela evitava falar sobre o
avô; eu não insistia. Tenho certeza de que ela sabia que, se quisesse

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desabafar, eu estaria à disposição para ouvi-la; ela, no entanto, preferiu o
silêncio.
O mais incrível é que, apesar de não ter ido ao enterro do avô, ela não
podia me ouvir cantando “Segura na mão de Deus” que dizia:
– Não canta essa música, mãe. Não gosto dela, não sei por que, mas
me deixa triste.
Foi essa música que cantamos enquanto o caixão com o corpo do meu
pai era levado da capela onde ele foi velado para o local de sepultamento.
E ela nem soube disso!

IX - OS SINTOMAS DO AUTISMO

Um rosto inexpressivo

“O único bem a que visam todas as coisas é a felicidade” (Aristóteles).

“Só há um dever: o de sermos felizes” (Denis Diderot)

Um sorriso bastaria. Só queria que o meu filho fosse feliz. Mais um


dos sintomas do autismo foi percebido no seu rosto: do bebê sorridente
que ele foi até um ano de idade, praticamente nada sobrou depois dessa
fase.
Ele passou a ter uma expressão de “paisagem”, “inexpressiva”. Não
sorria mais, tinha um olhar ausente. Talvez, por essa característica, os
autistas pareçam não “sentir nada”, “não ter emoção”.
Mas eles têm. Isto é inegável. Embora, no auge do transtorno, meu
filho tenha ficado com um rosto inexpressivo. Até para tirar fotos, a sua
fisionomia não se alterava. Ele não sorria.
Ele ficava apático diante dos acontecimentos do dia a dia, fossem
alegres ou tristes. Era muito triste vê-lo assim, principalmente para mim,
que desejava ardentemente a sua felicidade, a volta da sua alegria. Aos

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poucos, com o tratamento psicanalítico, o sorriso foi voltando ao seu
rosto, assim como outras emoções, como a raiva, a tristeza, o
contentamento, a seriedade.

Recusa a novos alimentos

A alimentação do Bernardo foi constante fonte de preocupação e de


aborrecimentos. Desde que apresentou os primeiros sinais de mudança do
seu comportamento, a partir de um ano de idade, sua forma de se alimentar
também mudou. Bernardo aceitava pouquíssimos alimentos, entre eles
toddynho, danoninho, batata frita, arroz e feijão.
Eu tentava de todas as formas introduzir novos alimentos na sua dieta,
mas não adiantava. Ele resistia; ele se recusava a comer. Não aceitava
experimentá-los de jeito nenhum; não havia chantagem que desse jeito.
Cheguei a deixá-lo sem comer uma tarde inteira para ver se assim ele
me obedecia. Mas não teve jeito. Mesmo com fome, em vez de comer o
que eu oferecia, preferiu catar cereais que estavam caídos no chão. Era
difícil, irritante, cansativo tentar fazê-lo comer.
Quando expliquei a situação para o Dr. Alfredo, ele me tranquilizou,
argumentando que meu filho, com certeza, não morreria de fome, e que
esse leque de comidas que ele aceitava, embora reduzido, já era suficiente.
Contudo, eu não me conformava com a situação. Afinal de contas, a
dieta alimentar do Bernardo era muito pobre, não incluía frutas, verduras,
legumes, nem sequer uma carne. Em termos nutritivos, apenas leite, arroz,
feijão e bolo de chocolate. Mas confiei no psicanalista e não fiz desse
assunto um cavalo de batalha. Já havia tanta coisa para eu me preocupar
que preferi olhar os progressos diários do meu filho.
Dr. Alfredo insistia que, com o tempo, Bernardo aceitaria outros
alimentos. Ele estava certo, ainda que tenha levado muito tempo para isso
acontecer. Paulatinamente, depois de muitos anos de insistência, Bernardo
começou a aceitar novos alimentos.
Considero a mania de só comer um tipo de alimento, com sua
inevitável relutância em experimentar – seja alimentos, novos lugares ou

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novas experiências – uma das características mais marcantes e resistentes
do autismo.
O novo é sentido como algo perigoso. Isso não é exclusividade dos
autistas; o novo é percebido como algo assustador para a maioria das
pessoas; mas, para os autistas, assume outra dimensão. Uma boa notícia foi
quando, alguns anos depois, além do tradicional arroz e feijão, Bernardo
aceitou comer nuggets de frango. Pelo menos ele estava ingerindo algum
tipo de carne. No entanto, não aceitava experimentar os sanduíches, mesmo
que fossem de frango. Era apenas nuggets.
Nas nossas idas ao Mc Donald´s, eu pedia batata frita, nuggets e
toddynho para ele. Em casa, fazia nuggets de frango todos os dias. Não
entendia como ele não enjoava de comer sempre a mesma coisa.
Quando estava com fome e ainda não falava, Bernardo demonstrava o
seu desejo com gestos; trazia o bolo de chocolate (na embalagem mesmo) e
uma faca para que eu cortasse um pedaço para ele.
Para se relacionar, adotava o estilo “instrumental”, que consistia em
me “usar” para conseguir o que queria. Ele pegava a minha mão para abrir
a porta, pegava a minha mão para que eu desenhasse para ele; não
executava, ele próprio, as ações.
Eu sabia que ele compreendia o significado e a engrenagem de vários
objetos e situações, mas ele não conseguia expressar verbalmente o que
desejava, como se houvesse um bloqueio, algo que o impedisse de falar.
Anos depois, quando ele falava, tornou-se mais fácil fazer algumas
negociações. Desenvolvi uma tática: se ele se recusasse a comer, eu
avaliava o conteúdo do prato e disparava:
– Vamos fazer o seguinte: você só precisa comer dez colheradas, só
dez. Pode ser?
Ele ficava satisfeito com o trato, sem se dar conta de que dez
colheradas era exatamente o conteúdo do prato.
– Tá bom. Só dez, ele dizia.
E acabava comendo tudo que estava no prato. Valia a pena enganá-lo.
Mais uma vez, era uma causa nobre.

80
A ansiedade da espera

Nas sessões psicanalíticas, assim que chegava ao consultório do Dr.


Alfredo, principalmente nos dias em que era ele quem atendia, e não a Dra.
Eda Tavares, Bernardo insistia em entrar na sala de brinquedos antes do
horário. Mal chegávamos ao consultório e ele escapava de mim, corria em
direção à porta e batia com força, ansioso para entrar e ver seu médico.
Eu explicava para ele que ainda não era hora, que ele tinha de esperar
um pouquinho. Mas ele, impaciente, tentava abrir a porta à força; corria de
um lado para o outro da sala de espera, jogava-se no chão.
Depois de várias tentativas frustradas, desistia de entrar na sala de
brinquedos, mas como havia alguns espalhados na sala de estar, ele abria
um pequeno baú, de onde tirava um balde e colocava na cabeça.
Queria que eu brincasse de encontrá-lo, tirando e colocando o balde
em sua cabeça. Repetia uma, duas, três, quatro vezes. Adorava brincar de
esconde-esconde. Quando eu o achava, dava gargalhadas. Repetia a
brincadeira inúmeras vezes. Era um progresso. Havia alegria e um pouco
de separação entre nós dois.
Aliás, a repetição é outra marca registrada do autismo. Bernardo fazia
movimentos repetitivos com os brinquedos, queria comer sempre as
mesmas comidas, repetia os mesmos gestos em relação a mim, me abraçava
forte; parecia haver um ritual. Para ele, era como se eu fosse o princípio, o
meio e o fim, e ele só pudesse contar comigo.
Nossa intensa ligação, no entanto, servia tanto para o bem quanto para
o mal. Quando ficava frustrado, dava cabeçadas na minha barriga ou
tentava bater em mim. Se outras pessoas o contrariavam, ele procurava
expressar sua raiva em mim, e não nelas. É como se eu fosse o seu para-
raios, tivesse de garantir seu sucesso, garantir que ele obtivesse o que
desejava, já que eu era sua intérprete para o mundo.

81
O mito da agressividade

Apesar de o psicanalista ter escrito em um laudo médico que o


Bernardo me batia às vezes, juro que não me lembro desses episódios.
Esqueci completamente. Apaguei da minha memória. Talvez eu tenha
bloqueado estes momentos intuitivamente.
Talvez tenha bloqueado para me defender, para negar a doença, para
não sofrer. Mas o que me parece mais provável é que Bernardo tenha
mudado tanto de lá para cá que não consigo conceber a ideia de que ele
tenha sido tão agressivo comigo.
A única agressão forte de que eu me lembro foi quando estávamos no
Shopping Center Praia de Belas, no Menino Deus, e levei as crianças para
brincarem na área de lazer. Bernardo só tinha dois anos. Era a pior fase da
doença.
Na área de lazer, ficou encantado com uma enorme piscina de
bolinhas (realmente era gigantesca) e não queria sair de lá. Como ele se
recusava terminantemente a sair do brinquedo, deixei que brincassem por
mais tempo. Duas horas depois, ao tentar tirá-los da piscina, Júlia aceitou
sem resistência (ela era muito obediente e compreensiva), mas ele se
atirava, gritava, não queria ir embora.
Mesmo assim, fui firme, não cedi. Era hora de sair do brinquedo. Não
podia ceder. Eu tentava contê-lo, procurava abraçá-lo, mas ele me repelia.
Quando, finalmente, chegamos ao estacionamento do shopping, ele me
deu um forte tapa no rosto.
Sabia que aquele tapa não tinha sido proposital, mas doeu muito,
mesmo assim. Não pela violência da agressão. Doeu pela impotência que
senti na hora; doeu pela dificuldade de comunicação; doeu porque eu não
sabia qual era a melhor forma de agir. Por que tudo tinha de ser tão
difícil? Sei que ele não pretendia atingir meu rosto. Poderia ter pego em
qualquer parte do meu corpo, mas pegou no meu rosto.
Aquele tapa me pegou em cheio, atingiu meu rosto, atingiu meu
sofrimento. Eu fazia tudo o que estava ao meu alcance e, mesmo assim,
nada parecia dar certo. Por quê? Maria Júlia olhava pra mim, triste, meio
abobada pela cena que tinha presenciado.
Não revidei. Jamais revidaria um tapa no rosto do meu filho – embora
Dr. Alfredo tenha me dito, quando lhe contei sobre o ocorrido, que eu
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deveria ter lhe dado outro tapa no rosto. Existe algo que é o que nós
somos e que não pode ser modificado. E eu sou simplesmente uma mãe
que não bate no rosto do filho.

Dificuldade para dormir e fixação por metais

Seu sono também não era tranquilo. Em algumas noites, acordava


diversas vezes, irritado. Rejeitava a mamadeira, parecia insatisfeito,
impaciente. Eu tentava entender o que ele queria. Não estava mijado, não
estava com fome, não estava com frio. Ele acordava muito cedo, atirava
os brinquedos em cima de mim até que eu acordasse, levantasse e lhe
desse atenção.
Às vezes, passávamos o final de semana na casa dos meus tios
Geraldo e Carmem, meus pais de coração e segundos avós das crianças,
que moravam em uma casa perto do Shopping Iguatemi, no bairro
Chácara das Pedras.
Eu não podia tirar os olhos dele por um segundo. Era muita novidade,
muitos objetos novos, e ele era rápido, escolhia os objetos mais perigosos
para brincar. Os metais o fascinavam, principalmente os talheres da minha
tia. Ele sentava no chão da cozinha e atirava todos os garfos e facas no
chão.
Nossa preocupação era a de que ele se machucasse. Era uma
dificuldade tirar os talhares dele. Como minha tia era quem, sem hesitar,
se encarregava de tirá-los, acondicionando-os na parte de cima do armário
e impedindo que ele os pegasse novamente, era vítima de seus beliscões.
Achávamos graça. Não era uma agressão propriamente dita, nem
chegou a doer, mas ele apertava o braço dela como a indicar quem
mandava ali, olhando com cara feia para ela, tentando intimidá-la.
Outro exemplo de quanto os metais o fascinavam foi uma vez em que
estávamos almoçando na casa dos meus tios e Bernardo sumiu.
Procuramos por toda parte e nada; nós o encontramos, minutos depois,
escondido, lambendo o pé da mesa de jantar, que era de metal.
Ele tinha apenas dois anos, um bebê, e já demonstrava ter vínculos
diferentes com meus tios. Com a Carmem, que era quem impunha limites
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para as suas travessuras, ele media forças, tentava tirá-la de cena para
fazer o que queria. Empurrava-a, puxava-a, beliscava-a para não obedecê-
la.
O avô, que o mimava muito, recebia outro tratamento: Bernardo
sentava no seu colo, beijava seu nariz, passava a mão no seu peito, fazia
carinho, apertava-o forte e abraçava-o apertado. Ele gostava dos dois à
sua maneira, demonstrando claramente seu agrado ou desagrado.
Com a irmã, o relacionamento era muito próximo, como é até hoje.
Ela o protegia em todas as situações, era paciente, compreensiva em
relação aos seus desejos e a sua agressividade. Júlia estava atenta às
necessidades e desejos do irmão. Ele, por sua vez, fazia cócegas no
umbigo dela. Andavam os dois de mãos dadas; dançavam juntos e
mantinham, embora discreto, contato olho no olho.

A rejeição ao espelho

Um dos principais sintomas do autismo é a falta de contato visual


com outras pessoas, a falta do contato “olho no olho”. Por isso, muitas
crianças autistas olham apenas de canto de olho ou fazem um breve
contato visual, desviando logo o olhar. Não conseguem manter o contato
visual enquanto conversam.
O famoso “olhe para mim enquanto estou falando” não serve para os
autistas. Eles fogem deste tipo de contato. No entanto, não é só o olhar
das outras pessoas que eles evitam. Bernardo, por exemplo, não aceitava
se olhar no espelho. Embora gostasse de segurar o meu rosto entre suas
mãos e olhar bem dentro dos meus olhos, ele só fazia isso comigo e, em
alguns raros momentos, com a irmã. Mas tinha resistência a se olhar no
espelho. Passei a insistir nessa brincadeira, porque entendi como ela era
importante para o seu desenvolvimento.
Ao se contemplar no espelho, é como se ele estivesse “admitindo” e
“aceitando” sua existência, constituindo-se como pessoa, como um ser
único. Não se olhar no espelho, para mim, era como se o meu filho ainda

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não aceitasse que ele fazia parte deste mundo, do meu mundo que, por
enquanto, ainda não era o dele.
Eu o pegava no colo, levava-o para a sala de estar, onde havia um
espelho enorme de madeira, e, brincando, apontava:
– Olha o Bernardo ali. Que lindo que o Bernardo é!
Ele desviava o olhar. Não tinha jeito. Não olhava para o espelho.
Tudo bem. Eu imaginava que haveria resistência; entretanto, eu não
desistiria. Quase todos os dias eu fazia novas tentativas.

O mito do balanço

Rodar pratos, balançar-se para frente e para trás continuamente


(rocking). Esses são os sintomas mais conhecidos do imaginário popular
quando o assunto é autismo.
Muitas pessoas associam esses sintomas ao autismo e acreditam que
todos os autistas agem exatamente da mesma maneira, como o menininho
que se balançava sem parar no filme “Meu filho, meu mundo”, filme
apresentado na Sessão da Tarde pela TV Globo nos anos 80. É um terrível
engano.
É verdade que Bernardo fazia movimentos circulares com os objetos
e que rodava em torno de si mesmo, mas ele nunca rodou um prato ou
ficou sentado se balançando, embora balançasse outros objetos. Rodava
lápis, canetas, talheres. Não se balançava para frente e para trás, mas
girava, girava muito.
Aprendi que não existe um jeito autista de ser. Não existe um padrão
fixo para todos os autistas. Infelizmente, a falta de informações confiáveis
faz com que os pais neguem o autismo quando não veem esses
estereótipos nos seus filhos. Se ele não roda pratos, não se balança, não é
autista, certo? Errado. É preciso aceitar o quanto antes o autismo para que,
encarado de frente, ele possa ser combatido e superado.
Aconselho os pais a observarem o comportamento dos filhos e a
procurarem ajuda especializada, seja de pediatras, psicólogos,
psicanalistas ou psiquiatras, assim que encontrarem sintomas que possam
levar ao diagnóstico do autismo.

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Não é preciso que a criança tenha todos os sintomas que citei na
introdução deste livro para “estar” com autismo. Basta alguns deles.
Bernardo não apresentava alguns dos principais sintomas e, mesmo assim,
seu quadro era de autismo leve.

O mito do retardo ou da genialidade

Faltava descobrir se Bernardo tinha algum retardo mental. Estava


alarmada com essa possibilidade. Fiquei aliviada ao ser informada pelo
Dr. Alfredo de que o QI (coeficiente de inteligência) do Bernardo é
normal. Ele não possuia nenhum tipo de retardo mental, mas também não
era nenhum gênio.
Engraçado foi perceber que, para alguns pais, é mais fácil aceitar o
autismo se o filho for diagnosticado como Asperger, já que isso
significaria que a criança é superdotada, com uma inteligência acima da
média. Felizmente, nunca considerei o meu filho gênio nem preferiria que
ele fosse Asperger.
Em algumas ocasiões, conhecidos e amigos chegaram a afirmar que
sua inteligência era acima da média, coisa que sempre discordei, pois sei
que meu filho é inteligente, mas sua inteligência está dentro da média.
Um QI mais alto não garante maior capacidade de ser feliz ou mais
sucesso e realizações na vida. Aliás, um QI mais alto não garante
praticamente nada e, não raro, é a causa de muitos conflitos, sejam eles
afetivos ou psíquicos.
Há uma discrepância enorme de dados quando o assunto é retardo
mental. Chegou-se a acreditar que 70% dos autistas tinham algum tipo de
retardo, o que é um absurdo. Feitas as devidas correções, hoje sabe-se que
o percentual chega no máximo a 10%, 12% e, mesmo assim, trata-se de
um leve retardo.
A origem da confusão estava na dificuldade de se separar
características “semelhantes” encontradas em crianças que tinham retardo
mental e crianças autistas, o que levou muitas crianças que tinham apenas
retardo mental a serem consideradas autistas. Daí a falácia do percentual
de 70%.

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Em relação aos autistas com algum tipo de genialidade (normalmente
diagnosticados com Asperger), esse número também é bem abaixo da
crença popular, com percentual em torno de 5% a 6%.
A esmagadora maioria é formada por crianças com inteligência
dentro da média, que precisam de estímulos diários para desenvolver suas
potencialidades.

Habilidade para montar brinquedos e quebra-cabeças

Desde muito pequeno, a partir dos três ou quatro anos, Bernardo


montava com extrema facilidade quebra-cabeças e brinquedos de encaixar.
Muitos deles montados apenas por adultos e, mesmo assim, com a ajuda de
um manual de instruções.
A facilidade com que ele montava era incrível. Para completar um
quebra-cabeça de 500 peças, ele levava menos de uma hora, e montava
sozinho, sem qualquer auxílio.
No começo, eu fiquei feliz com essa habilidade. Acreditava que era
um bom sinal. Mas o psicanalista me explicou que montar com tanta
facilidade o quebra-cabeça era uma das características do autismo,
comprovando que o seu funcionamento cerebral era de um menino autista.
Aprendi que a razão para essa facilidade em montar quebra-cabeças é
que – de modo geral, mas não absoluto – os autistas ficam muito pouco ou
nada preocupados em descobrir o sentido da cena representada nos quebra-
cabeças, e muito centrados em estabelecer a continuidade das formas, cores
e linhas. Não exigir das linhas que façam sentido economiza grande parte
do trabalho da percepção e facilita “a armação”, embora não saiba o
armador o que armou ali.
Mas não eram só os quebra-cabeças que lhe interessavam. Seus
brinquedos preferidos eram bonecos de dinossauros e miniaturas de
animais. Ele tinha coleção de bichos e de dinossauros, de todos os
tamanhos e tipos. Carrinhos e bolas nunca chamaram a sua atenção. Eu
tinha percebido isso e, quando ele ganhava carros e bolas, repassava para
outras crianças.

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Mais tarde, viriam os legos, especialmente os da coleção do Star Wars
(Guerras nas Estrelas) que imitavam o filme lançado em 1980 por George
Lucas. Bernardo era extremamente cuidadoso com seus brinquedos. Ele
não os perdia nem os estragava. Muitos desses brinquedos ele conserva até
hoje.

O mito da falta de emoção

Carinhoso, agarradinho, meu filho nunca foi uma criança fria,


distante. Às vezes ficava ausente, mas eu era o seu contato com o mundo.
Sua distância era com os outros, não comigo. Bernardo sempre foi um
bebê carinhoso e se tornou um menino beijoqueiro e muito afetuoso,
mesmo com as limitações que o autismo impunha.
Não tinha aversão ao colo ou ao toque como alguns autistas; inclusive
foi esse potencial afetivo que ele apresentava que me fez duvidar, no
início, sobre o diagnóstico de autismo. Para mim, para ser autista a
criança precisava ser emocionalmente “distante” e, muitas vezes,
Bernardo era bem afetuoso. Comigo e com a irmã sempre foi. Com os
outros, menos.
No auge do transtorno, ele podia até se isolar das outras crianças,
mas, em compensação, nunca as agrediu. Ele nunca bateu, mordeu ou
gritou com outra criança. Era justamente o contrário. Eu me preocupava
muito mais com a possibilidade de que alguma criança o machucasse.
Por isso, ficava muito atenta a todos os seus passos. Quando íamos ao
parquinho, era a agressividade das outras crianças que eu temia. Tinha
medo de que algo o traumatizasse e ele se fechasse de vez para o mundo.
De certa forma, eu sentia que ele não sabia se defender sozinho. Eu
tinha muito medo de que ele piorasse caso alguma criança o machucasse.
Mas havia sempre o risco do exagero; não deveria protegê-lo demais ou
colocá-lo em uma redoma. Era fundamental que ele se fortalecesse e
aprendesse a se defender.

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Sei que tive uma atitude muito protetora em relação a ele muitas
vezes. Contudo, sempre procurei não exagerar nessa proteção. Eu tinha de
me revezar entre ser protetora e deixá-lo vivenciar o mundo.
Compensando a falta de amigos, o relacionamento do Bernardo com a
irmã era mágico. Os dois se entendiam pelo olhar, pelos gestos, pelas
palavras que ela lhe dirigia. Nessa época, ele ainda não falava. Só
começou a falar aos seis anos. Esperamos muito tempo para ouvi-lo falar.
Maria Júlia, um dia, se sentou ao meu lado no sofá e perguntou, baixinho,
para que ele não ouvisse:
- Mãe, quando o Bernardo vai falar?
Eu respondi que um dia ele falaria e que, desse dia em diante, ela
sentiria falta do silêncio de antigamente, pois ele falaria muito. E foi
exatamente o que aconteceu.

X - UM CAPÍTULO ESPECIAL PARA A IRMÃ DE


BERNARDO.

WIND BENEATH MY WINGS


(o vento que impulsiona minhas asas)

It must have been cold there in my shadow


To never have sunlight on your face
You were content to let me shine, that´s your way
You always walked a step behind.

So I was the one with all the glory


While you were the one with all the strength
A beautiful face without a name for so long
A beautiful smile to hide the pain.

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Did you ever know that you are my hero?
You´re everything I would like to be
I can fly higher than an eagle
For you are the wind beneath my wings.

(Devia estar frio aí na minha sombra


Para nunca o sol ter brilhado no seu rosto
Você ficava feliz em me deixar brilhar – assim você é –
Você sempre caminhava um passo atrás.

Então eu era aquele com todas as glórias


Enquanto você era aquela com toda a força
Um rosto bonito sem nome por tanto tempo
Um sorriso bonito que escondia a dor

Você alguma vez soube que é o meu herói?


Você é tudo que eu gostaria de ser
Eu posso voar mais alto do que uma águia
Pois você é o vento que impulsiona minhas asas.)

Maria Júlia: a companheira de todas as horas

Maria Júlia é um capítulo à parte na história da nossa família. Ela


teve e tem papel fundamental na melhora do Bernardo, pois sempre foi a
irmã que ele precisava ter: carinhosa, compreensiva, alerta às
necessidades do irmão.
Ao mesmo tempo em que ela o ajudava, sendo paciente e
compreensiva, sabia exigir dele um comportamento mais maduro. Ela

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fazia com que ele entrasse no mundo dela, com suas brincadeiras, danças,
cantos.
Maria Júlia nunca desistiu do irmão. Pelo contrário. Não aceitava que
suas amigas não brincassem com ele, não aceitava que eu brigasse com
ele ou que o censurasse.
Foi sua defensora e parceira em todos os momentos. Muitas vezes
precisei lhe explicar que chamar a atenção dele também era uma forma de
amor, uma maneira de ajudá-lo, de educá-lo.
Minha filha foi a irmã que ele precisava ter para sair de um mundo de
isolamento e abraçar um mundo de possibilidades. Ele precisava acreditar
que o mundo era seguro e encontrou alguém que lhe estendeu a mão em
todas as situações.
Ela mal sabia falar ou andar e já parava na frente do carrinho dele
para protegê-lo quando algum estranho aparecia. Solidária, ela sabia e
soube muito antes do que qualquer um de nós que ele precisava de
proteção e de um cuidado especial.
No auge de seu isolamento, quando Bernardo não me ouvia e nem
obedecia a qualquer ordem minha, era dificílimo sair com ele. Ir ao
shopping center ou ao parque parecia uma tortura. Eu ficava tensa, por
que sabia que não tinha qualquer controle sobre ele.
Em uma dessas idas à pracinha, ele começou a disparar na minha
frente, e eu precisei sair correndo para detê-lo. Não sabia se ele pararia na
calçada ou atravessaria a rua sem olhar. Maria Júlia se assustou e saiu
correndo atrás dele, gritando:
– Eu não quero perder meu filho, eu não quero perder meu filho.
Ela gritava, chorava, exigia de mim alguma providência. Eu consegui
pegá-lo, por fim, e, em seguida, eu a abracei, explicando que ela não iria
perdê-lo, e que, principalmente, ele não era seu filho. Era seu irmãozinho.
Isso aconteceu mais de uma vez. Quando a cena se repetia e ele
disparava de mim, se eu demorasse um pouco para ir atrás dele, ela ficava
angustiada e pedia para eu pegá-lo, que não queria que ele morresse. Foi
ela quem o apelidou de “Bi”, que é como a família o chama; fora do
círculo familiar seu apelido é “Bê”.

91
Aquela menina loirinha, gorducha, cheia de dobras espalhadas pelo
corpo, cabelo queimado pelo sol e pela praia, era sempre a mais atenta e
preocupada com o irmão quando ele corria perigo.
Risonha, eu a chamava de “feliz”, um dos anõezinhos da Branca de
Neve. Ela ria e perguntava: “E o Bernardo? Que anãozinho ele é?”;
“Dengoso, com certeza”, eu dizia. E dávamos boas risadas.
Ela sempre o incluía nas conversas, nas perguntas, nas brincadeiras.
Até em um apelido que eu dava para ela era importante que ele estivesse
presente. Quando meus amigos nos visitavam, precisavam dar ao irmão a
mesma atenção que davam a ela. E ela fazia questão de cobrar. Se
levassem um presente para ela, imediatamente perguntava onde estava o
do Bernardo.
Se alguém falasse apenas com ela – sem se interessar pelo irmão – ela
mostrava: esse é o meu irmão, o Bernardo. Aquele dedinho gordo
apontava para o irmão sempre. Ele fazia parte do mundo dela.
Um dos programas favoritos dos dois, quando tinham três, quatro
anos de idade, era assistir aos desenhos da Disney, especialmente Branca
de Neve, Alice no País das Maravilhas, Banzé, Oliver e Cinderela.
Bernardo se negava a assistir qualquer programa da TV aberta.
Quando eu tentava sintonizar em um canal da TV aberta, ele desligava a
TV. Era engraçadíssimo, pois ele se dirigia, tranquilo, inabalável, até o
aparelho e o desligava.
Não gritava, não brigava, porém não deixava que nós assistíssemos a
outro programa. Quando algo lhe interessava, Bernardo era muito
determinado e insistente.
Outro programa que ele gostava muito de fazer era folhear os álbuns
de família, principalmente os que continham nós quatro: Hector, Maria
Júlia, Bernardo e eu.
Sempre que pedi a colaboração da Júlia para cuidar do irmão, ela se
mostrou disponível. Algumas vezes, até exigi demais dela, apenas um ano
mais velha do que ele. Para mim, ela era minha ajudante, alguém que
deveria me auxiliar na exaustiva tarefa de cuidá-lo, e quem sabe torná-la
um pouco mais fácil.
Não fui justa com ela muitas vezes, exigi um comportamento muito
maduro quando ela era apenas uma criança. Mas evito me culpar por isso.

92
Sei que busquei amenizar minhas exigências quando percebia o que
estava fazendo.
Procurei me redimir quando tive chance, explicando a ela que não
deveria se sacrificar sempre pelo irmão. Quando eles queriam o mesmo
brinquedo ou quando havia alguma disputa em jogo, ela, invariavelmente,
cedia em favor dele.
Gostaria que a vida tivesse sido mais leve, mais bondosa com ela.
Acho que ela merecia uma vida mais cor de rosa, mais encantada, como
os livros que ela gosta de ler e os filmes a que ela gosta de assistir.
Não teve tempo para ser mimada, birrenta. Como ela é uma menina
sensível, preocupada com os outros, gostaria de ter lhe oferecido uma vida
de sonhos, de grandes realizações. Mas, até agora, duas perdas foi o que
ela ganhou, além, é claro, de muito amor e carinho. Isso nunca faltou!
Tenho plena consciência de como a vida dos irmãos dos autistas é
afetada negativamente. É muito grande o peso e a responsabilidade que
eles carregam. Não é fácil para eles que a vida familiar gire em torno do
irmão e que eles tenham de ser maduros e compreensivos quando são
apenas crianças, necessitando dos mesmos cuidados.
Não sei até que ponto um acidente, em dezembro de 2003, marcou a
minha filha. Ela tinha apenas quatro anos. Foi durante o tratamento do
Hector. Decidimos ir a Gramado para que as crianças conhecessem a Casa
do Papai Noel e vissem a cidade enfeitada para o Natal. Faltavam poucos
dias para a data.
Minha amiga Luciana, seu marido, Ciro, e a filha Jaqueline, que
também tinha quatro anos, foram conosco. Hector estava muito inchado e
muito debilitado devido às sessões de rádio e quimioterapia.
Ao pararmos em um posto de gasolina para abastecer, na entrada de
Gramado, Bernardo saiu em disparada, e eu, em pânico, gritei para que o
Hector o pegasse. Ele estava mais próximo ao Bernardo do que eu.
Prontamente, Hector correu em direção a ele, mas suas pernas não
obedeceram. Devido ao tratamento contra o câncer, ele estava muito mais
fraco do que imaginávamos. Só não sabíamos, até aquele momento, o
quanto. Hector tropeçou nas próprias pernas e caiu, com os óculos no
rosto.
Foi uma cena de terror. Hector bateu o rosto no chão, machucou o
nariz, quebrou os óculos. E também sangrou bastante, jorrando sangue
93
pelo nariz. Olhei para a Maria Júlia, e ela estava transtornada, estava aos
prantos. Eu a abracei com força.
Ciro e o frentista do posto já tinham ajudado o Hector a se levantar.
Eu só pensava na minha filha; no que ela tinha visto, como ela sofrera
com aquele acidente e como aquela cena poderia marcá-la para o resto da
vida.
Como viu o pai perder muito sangue, dias depois passou a perguntar
para mim, repetidamente, até onde estava o sangue dela, o meu e o do
irmão. Eu não entendi a pergunta de primeira. Ela repetia: queria saber se
o sangue dela estava na altura da canela, do pé (com pouco sangue
estocado), ou se estava cheia de sangue. Eu dizia que ela estava cheia de
sangue, até a cabeça; então, ela se acalmava.
Na cabecinha dela, a morte do Hector foi influenciada pelo sangue
que ele perdeu naquele acidente. Cada vez que, por alguma razão, ele
tinha um sangramento, ela se apavorava. Por isso, ela só estaria segura se
estivesse “cheia” de sangue no corpo. Quanto menos sangue tivesse, mais
risco de morrer.
Por tudo que ela viveu até hoje, procuro diminuir a responsabilidade
da minha filha a todo instante, mas vejo que ela mesma se cobra muito.
Tornou-se uma menina exigente consigo mesma, que não se permite errar
ou se machucar.
Qualquer arranhão é sinal de falha, de algo errado. É uma menina
perfeccionista. Nunca precisei pedir para fazer um dever da escola, um
trabalho de casa. Por conta própria, realiza suas tarefas com
independência.
Quanto às cobranças que eu fazia à Maria Júlia, eu sempre
questionava se não estava sendo dura demais com ela, se as cobranças não
eram exageradas, se eu deveria exigir um comportamento tão adulto dela.
Eu me culpei bastante por ter sido tão exigente com a Maria Júlia.
Confesso que posso ter negligenciado, sem querer, os seus sentimentos, os
seus desejos, em alguns momentos. Mas também sei que fiz o que foi
possível em uma situação tão complicada.
Sem querer, posso ter descontado nela a impotência que eu sentia em
relação ao Bernardo. Não foi premeditado. Não foi planejado. Não foi
proposital. Essa sensação de impotência piorava naqueles momentos mais
difíceis, nos quais o Bernardo não me ouvia, não respondia aos meus

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chamados. Ele ficava totalmente ausente. Nesses momentos era mais
frequente eu ficar cansada, desanimada.

Carta do Bernardo para a irmã em razão do 16º aniversário dela:


Cara Maju,
Estou escrevendo uma carta, nesse fragmento industrializado de
madeira, não apenas para expressar meus sentimentos em relação a você,
mas também para descrever sua importância em minha vida de maneira
clara. Desde que eu nasci, você sempre me amou de maneira incondicional,
mesmo pelos meus defeitos, sempre esteve ao meu lado para me ajudar a
superar dificuldades e para me tornar uma pessoa feliz, e sempre se
esforçou para me auxiliar a ser um indivíduo com caráter, capacidade
cerebral, criatividade, personalidade e sabedoria mais bem desenvolvidos,
com o intuito de me tornar uma pessoa melhor e bem sucedida no mundo.
Agradeço muitíssimo a você por tudo isso. Sua simples existência já é o
suficiente para que eu seja o homem (muy macho, guapo y inteligente) mais
feliz de todo o Cosmos. Você é a mulher com a inteligência, a beleza, a
criatividade e a sabedoria mais desenvolvidas de todas. O seu valor é
inestimável, nenhuma quantidade de diamante e outras jóias seria sequer
capaz de chegar perto de seu nível. O melhor dia da minha vida foi o dia
em que eu nasci, pois pude conhecer as melhores pessoas do mundo: nossa
mãe, nosso pai e você. Te amo infinitamente. Gostaria de ter uma
capacidade cerebral tão bem desenvolvida quanto a sua, uma sociabilidade
tão bem desenvolvida quanto a sua e uma experiência tão bem
desenvolvida quanto a sua. Feliz Aniversário, Maju. Te amo!
Assinado: Bernardo José Mendina de Souza Martínez.

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XI – ABRINDO A PORTA: AS PRIMEIRAS
CONQUISTAS

O primeiro desenho

Bernardo desenhou pela primeira vez quando tinha quase seis anos,
mas ainda não falava. Além da questão da linguagem, até aquele momento,
ele se recusava obstinadamente a desenhar. Não desenhava sob hipótese
alguma. Os lápis e as canetas, para ele, tinham outra função: ele os pegava
e girava. Acredito que na recusa em desenhar estava subentendida também
outra recusa: a de se sujar.
Bem próximo dos seis anos, passou a pedir para eu desenhar para ele.
Ele se aproximava com um lápis ou uma caneta, entregava para mim,
juntamente com o papel, e pedia para eu desenhar um jacaré ou um
dinossauro. Apenas balbuciava jacaré e dinossauro, mas não formava frases
completas. Eram algumas palavras soltas.
Eu tentava convencê-lo a desenhar, pedia pacientemente para que ele
desenhasse comigo, mas não adiantava. Ele nem sequer me respondia.
Apenas continuava segurando a minha mão, imitando o gesto de quem
desenha (o estilo instrumental que descrevi anteriormente), forçando-me a
desenhar.
De repente, como que por estalo, quando tinha seis anos, ele começou
a desenhar. E não desenhou esporadicamente. O desenho se tornou uma
paixão e, aos 12 anos de idade, ele já tinha desenhado mais de dez histórias
em quadrinhos. Duas foram encadernadas.
Como passou a gostar muito de desenhar (passava a maior parte do
tempo em que estava em casa desenhando no quarto), anos depois,
Bernardo costumava dizer que queria ser cartunista e que queria conhecer o
Maurício de Sousa. Tinha um monte de revistas da Turma da Mônica; as
preferidas eram as do Cascão, do Cebolinha e do Chico Bento.

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Bernardo começa a falar...

A etapa seguinte foi a aquisição da linguagem. O progresso que


Bernardo apresentou nesses poucos meses, com os desenhos e as
conversas, nos impressionou. Ele avançou nesse curto período de tempo o
que não tinha avançado em quatro anos de tratamento. A impressão que
dava era a de que essas conquistas estavam escondidas em um canto do seu
cérebro, esperando a hora propícia para se revelarem.
Se afirmo que meu filho não falava até os seis anos, é porque não
podemos considerar como aquisição da linguagem frases soltas ou meros
balbucios sem progressos na conversação. Aos dois anos, de forma
rudimentar ainda, ele se comunicava com seus psicanalistas, mais aptos a
compreender seus balbucios e outros sons que, emitidos dentro de um
contexto específico, tornavam-se palavras. Mas as orações e as frases mais
elaboradas só foram ditas depois dos seis anos.
Depois que desandou a falar, não parou mais. Não precisou de
acompanhamento fonoaudiólogo ou de qualquer outro especialista em fala.
Surpreendentemente, Bernardo pronunciava as palavras com perfeição,
usando de forma apropriada os pronomes, o que é raro de se ver em um
menino tão pequeno. Lembro como se fosse hoje de uma noite em que
fomos jantar no apartamento de um casal de amigos.
Eles moravam na Anita Garibaldi, atrás do Shopping Iguatemi. Ela era
minha amiga desde a faculdade de jornalismo e foi bom reencontrá-la e
fazermos um programa todos juntos. O churrasco seria na cobertura do
apartamento, onde havia um espaçoso terraço sem obstáculos para que as
crianças pudessem correr, brincar, inventar peraltices.
Era uma noite muito agradável, temperatura amena (o que é bom
sinal, quando se trata de Porto Alegre) e a lua cheia chamava a atenção. As
crianças corriam no terraço, inventavam brincadeiras, quando Bernardo
avistou a lua e ficou impressionado:
– Nooooossa! Noooooosa! Nooooossa!
E assim ficou, repetindo, com uma entonação bem engraçada, a
palavra. Olhava fixo para a lua e repetia:
– Nooooossa!
Maria Júlia e eu rimos muito. Espontaneidade total! Mais uma vitória

97
Viajar era difícil

Assim como a alimentação, viajar também era outra dificuldade.


Como afirmei antes, toda mudança era penosa, toda nova experiência,
difícil. Bernardo não queria sair de casa. O único programa que ele gostava
de fazer fora de casa era ir à Livraria Cultura, que ficava no segundo andar
do Bourbon Shopping, ao lado do Shopping Iguatemi.
Quando eu avisava que iríamos à livraria – o que acontecia quase
todos os sábados – ele e a irmã ficavam empolgados, largavam a televisão,
deixavam o que estivessem fazendo de lado e iam sem demora para o
quarto se arrumar. Mas se eu avisava que íamos fazer um piquenique ou
brincar no parquinho da Redenção, ninguém se mexia. Preferiam ficar em
casa.
Definitivamente, a livraria era o lugar preferido deles. Bernardo
sempre pedia para passarmos o dia inteiro lá e chegou a me fazer um
pedido inusitado:
– Mãe, posso dormir hoje aqui?
Maria Julia e eu achamos graça do pedido singular.
Uma vez, no entanto, em vez de irmos à Livraria Cultura no sábado,
como sempre fazíamos, decidi levá-los no domingo. Só que eu não sabia
que aos domingos a livraria só abria a partir das 14 horas.
Não imaginava que seria tão difícil para Bernardo entender que ele
tinha de esperar alguns minutos para entrar, pois a livraria abriria mais
tarde naquele dia. Infelizmente, foi um sofrimento imenso para ele.
Embora eu lhe explicasse, com paciência e repetidas vezes, que a
livraria iria abrir em poucos minutos, ele ficava em frente à porta de
entrada, batia no vidro, gritava para os funcionários que estavam dentro,
limpando o ambiente:
– Por favor, abre a livraria. Abre a porta! Abre!
Foram os minutos mais longos do mundo. Eu explicava, explicava e
explicava, mas não adiantava. Ele não tinha paciência para esperar.
Sair de casa era sempre custoso. Nem à padaria ele gostava de ir.
Dormir na casa de alguém, então, nem pensar. Queria voltar para sua casa.
Como minhas irmãs, meu pai e a maioria dos nossos parentes moravam em
outros estados, teríamos de viajar para vê-los. Quando eu mencionava a
viagem, Bernardo era contra. Não queria sair de casa. Ou, se saía, quando

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chegava a hora de dormir, pedia para voltar para casa. Dormir na sua cama
era fundamental.
Viajar era ficar exposto a situações novas para as quais Bernardo não
dispunha de recursos de linguagem para lhes atribuir significação. Portanto,
toda viagem o lançava em um mundo que ele não tinha como organizar,
nem sabia como deveria responder. Para ele, cada viagem não era somente
uma viagem para um mundo desconhecido, mas também a entrada em um
mundo sem sentido.

2008: Primeira série, um marco para a cura

Depois de três anos na creche, matriculei-o no Colégio Nossa Senhora


do Bom Conselho, onde a Júlia estava estudando. Ficava na mesma rua
em que morávamos, a três quadras da nossa casa.
Bernardo ia para a primeira série, e o primeiro dia de aula foi
aguardado com muita ansiedade. Ele falou sobre isso uma semana inteira,
estava felicíssimo com o novo colégio. Ele não via a hora de começarem
as aulas. Eu também não.
Apesar da ansiedade e da expectativa, ele não estava nervoso,
apreensivo. Ele estava feliz, o que considerei extremamente positivo. Não
havia medo em seu comportamento.
Não era uma ansiedade sofrida. Havia uma felicidade exteriorizada,
mas de forma equilibrada, sem altos e baixos no humor. Combinei com
ele que o levaria para a aula nos primeiros três dias, e ele aceitou nosso
acordo.
Não poderia levá-lo depois desses três dias; ele teria de ir com a
empregada e com a Maria Júlia, pois eu estaria no meu horário de
trabalho (trabalhava a partir das 12:30, e as aulas começavam às 13:30).
Confesso que o primeiro dia de aula também foi especial para mim.
Ao contrário da Maria Júlia, cuja trajetória escolar foi linear, houve uma
época em nossas vidas – no início do tratamento – em que eu me
perguntava se Bernardo chegaria a cursar um colégio normal. Tinha
muito medo de que ele precisasse de um colégio especial. Não era o que
eu desejava.

99
Correndo de um lado para o outro

Bernardo não se balançava como a maioria dos autistas, mas tinha a


mania de correr de um lado para o outro do quarto quando ficava
angustiado, ou de apertar os brinquedos, cerrando os dentes, como se
estivesse fazendo força com seu corpo inteiro.
Esse sintoma persiste até hoje, apesar de não ser mais tão frequente.
Nem sempre ele corre. Também caminha de um lado para o outro sem
parar.
Eu fico angustiada.
- Senta, meu filho. Vem aqui, senta aqui ao meu lado.
Quando está muito ansioso, assistindo a um jogo, vendo um filme de
suspense, por exemplo, ele não senta de jeito nenhum; fica em pé,
encostado na parede, assistindo o filme a uma distância segura; mexe-se o
tempo todo. Nessa hora, eu tento conversar com ele.
– O que foi, Bernardo, o que está incomodando você? – pergunto.
– Nada, mãe, eu estou bem. Está tudo bem, diz. E sai, me deixando
sozinha, sem explicação.
Perguntei a ele, diversas vezes, porque ele andava de um lado para o
outro da sala ou do quarto. Ele nunca me respondeu.
Os padrões estereotipados e repetitivos do Autismo incluem
estereotipias motoras e verbais, tais como correr em círculos, repetir
determinadas palavras, frases ou canções, e bater palmas repetidamente.
Bernardo nem batia palmas repetidamente nem andava na ponta dos
pés, outro sintoma. Mas apresentava sensibilidade auditiva exagerada,
como afirmei anteriormente na história da sirene dos bombeiros.

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Fantasia x realidade – mais um obstáculo a ser vencido

Em 2008, aos sete anos de idade, depois de ter se formado no pré-


escolar e de ter entrado na primeira série (e ainda em tratamento com o
Dr. Alfredo e a Dra. Eda), Bernardo teve de vencer outro desafio, algo
completamente inesperado e que me causou muita aflição.
Uma das igrejas mais bonitas de Porto Alegre, em estilo gótico, a
Igreja Santa Terezinha, ficava a apenas três quadras da minha casa, em
frente ao Parque Farroupilha (Parque da Redenção) e perto do Colégio
Militar.
Depois de ter ido várias vezes às missas de domingo nessa igreja,
sempre fazendo mil perguntas sobre os santos que decoravam o altar e o
teto, Bernardo ficou assustado com uma imagem em particular.
Engraçado ter reparado na imagem só naquele dia; era uma enorme
imagem, em tamanho real, de Jesus crucificado. Quando Bernardo olhou
para a imagem, ficou aterrorizado.
A imagem o assustou tanto que ele só falava nisso; queria saber a
razão de Jesus ter sido pregado naquela cruz, a razão dos pregos, porque
havia tanto sangue, o que Jesus tinha feito para ter sido morto, etc, etc. Eu
disse que a crucificação tinha ocorrido há muito tempo, há séculos, mas
ele não parecia satisfeito com minhas respostas.
Ao sairmos da igreja, fomos à Confeitaria Maomé, ao lado da igreja,
para um café; Bernardo, contudo, estava transtornado; ele abordava as
pessoas sentadas nas outras mesas da cafeteria, completos estranhos, e
lhes perguntava:
– Você viu o que eles fizeram com Jesus?
E continuava repetindo:
– Você viu o que eles fizeram com Jesus?
Era para ser cômico se não fosse trágico. Ele estava se referindo à
imagem da igreja, e ninguém entendia o que ele estava perguntando; não
compreendiam sua pergunta. Ele não parava de repetir que as pessoas
pregaram Jesus e o mataram. “Como puderam fazer aquilo?”, ele
indagava.
Fiquei preocupada com a reação dele, principalmente porque eu
tentava acalmá-lo, e não conseguia; tentava tirar o foco daquele assunto,
mas ele retornava a ele. E o que era mais preocupante: falava de um fato
do passado distante como se tivesse acabado de acontecer.

101
Liguei para Dr. Alfredo para que ele pudesse me orientar sobre o que
fazer, o que dizer para o Bernardo, como lidar com a situação. No
entanto, o que ouvi do Dr. Alfredo me assustou ainda mais.
Ele disse que esse episódio mostrava que o Bernardo podia entrar na
psicose, que era preciso tomar muito cuidado.
Mas era só o que faltava. O Bernardo se curava do autismo e se
tornava um psicótico. Não sabia o que era pior.
Mentira! Sabia sim. Para mim, ser psicótico, com certeza, era muito
pior. Apesar do susto inicial, os dias foram passando, e ele deixou de
tocar no assunto.

Diferenciação entre o simbólico e o imaginário

Foi quando em um domingo, 06 de julho de 2008, alguns meses


depois do episódio da estátua, presenciamos progressos no tratamento do
Bernardo. Minha prima Patrícia havia chegado de manhã cedo do Rio e
fomos almoçar na Lancheria do Parque, na Rua Oswaldo Aranha, em frente
ao Parque Farroupilha (Parque da Redenção).
Usando da nova tática sugerida pela psicanalista do meu filho, eu
decidi não me preocupar tanto com a alimentação do Bernardo. Não ficaria
mais tão irritada se ele não comesse.
Deixei-o à vontade para comer ou não; queria diminuir o estresse que
as horas das refeições causavam em mim e, por tabela, nele. Quando a
minha prima perguntou se o Bernardo não iria comer nada, eu disse que,
por mim, ele podia comer ou não, eu não me importava com isso.
Foi justamente aí que ele resolveu comer batata-frita, coisa que não
fazia há mais de dois meses. Disfarcei o meu contentamento; continuei
fingindo que pouco me importava se ele comia ou não. Foi a primeira
vitória daquele dia. Mal sabia o que o dia prometia.
Ao sairmos da Lancheria do Parque, fomos ao brick da Redenção,
uma feira semelhante à Feira Hippie de Ipanema, local em que são
vendidos artesanatos de todo o país, principalmente gaúchos e indígenas.
Em uma pequena rodinha no meio da rua, índios equatorianos
cantavam e dançavam, e os meus filhos pararam para observar o show.
Realmente a música era contagiante.

102
Minha prima avistou a Igreja Santa Teresinha (aquela que causava
horror ao Bernardo) e disse que gostaria de conhecê-la. Como eu disse
anteriormente, é uma igreja muito bonita, tanto por fora quanto por dentro,
e sua arquitetura gótica chama a atenção de quem passa.
Eu disse que iríamos lá na volta, e foi o que fizemos. Também
lembrava do horror que o Bernardo sentia pela igreja, mas era só ficarmos
nós dois do lado de fora que nada aconteceria.
Como era de se esperar, Bernardo reagiu muito mal. Gritava que não
entraria na igreja de jeito nenhum e eu lhe acalmei avisando que ficaria do
lado de fora com ele, mas que a Maria Júlia e a Patrícia entrariam. Não
falei mais nada. Sentei em um banco que ficava no pátio da igreja e esperei
o retorno das duas.
Bernardo, então, começou a se aproximar lentamente. Ele foi
chegando, chegando, observando o interior da igreja de canto de olho, e
parou ao meu lado. Olhou para a estátua que tanto lhe causava medo, olhou
para as outras estátuas, quadros e pinturas e disse:
- É só uma estátua, mãe, como as outras. Eu não tenho mais medo. Eu
sei que é só uma estátua. Eu acho até que eu vou entrar na igreja. Não
tenho mais medo.
A minha felicidade foi imensa, parecia um sonho ver que o meu filho
estava diferenciando a fantasia da realidade, a imaginação do simbólico.
Fiquei radiante, mas procurei não demonstrar meu entusiasmo. Não queria
quebrar a magia daquele momento. Não queria que transparecesse o alívio
que eu sentia.
A partir daquele momento, tomei outra decisão, iria disfarçar um
pouco a minha emoção. Seria uma estratégia para que ele não se valesse de
meus sentimentos para me controlar ou me chantagear.
Mas as boas surpresas não pararam por aí. Voltamos para casa e, sem
brigas ou estresse, ele tomou banho sozinho, comeu a comida que estava no
prato e, na hora que pedi, sem reclamar, aceitou dormir no seu quarto, em
vez de dormir comigo.
As conversas que tivemos, quando eu lhe dizia que ele já era um
menino com quase oito anos, grande e inteligente, foram bem sucedidas e o
ajudaram a entender que ele precisava ter seu espaço e não ocupar o meu.
Quase um ano depois, ele falou novamente sobre a estátua de Jesus:
– Mãe, sabe aquela estátua do Jesus que eu vi na igreja?
Pensei: vai começar tudo de novo. Mas não. Ele acrescentou:

103
– Pois é, mãe, eu não tenho mais medo dela. Eu sei que aquilo
aconteceu há muito tempo.
Foi um alívio tão grande! Mais uma etapa vencida, mais um obstáculo
superado.

XII- BERNARDO NO MUNDO DE TODOS

Dezembro de 2008: Enfim, a alta

Quando eu menos imaginava, então, veio a alta do tratamento. Depois


de um tempo sem conversar com os terapeutas, mandei um e-mail para
eles propondo uma reunião, queria contar as novidades da vida escolar do
Bernardo, contar que ele passou com facilidade de ano, nem sequer ficou
em recuperação, e ouvir o que eles tinham a me dizer sobre os progressos
no tratamento.
A reunião foi marcada para o dia onze de dezembro. Era uma reunião
importante, mas eu não fazia ideia do quanto essa conversa seria decisiva
para o futuro do Bernardo.
O psicanalista foi o primeiro a falar e me disse que, realmente, o
Bernardo tinha evoluído muito bem na primeira série – aprendendo a ler
sem nenhuma dificuldade – e que algumas questões que mereciam mais
cuidado (como a questão de não querer ser visto com a irmã no colégio)
estavam sendo abordadas na terapia e não representavam perigo sério
para seu desenvolvimento.
Ou seja, era natural que ele quisesse separar meninos de meninas nesta
fase de sua vida. Eda também se mostrou satisfeita com o comportamento
dele. Foi então que o Dr. Alfredo disse que os dois haviam conversado e
que não viam mais motivos para dar continuidade ao tratamento.
Fiquei atônita. Fui pega de surpresa. Sabia que este dia chegaria em
breve. Já tínhamos comentado a alta algumas vezes, mas nada concreto.
Ri, chorei, agradeci aos dois, fiquei sem fala, ou falei demais. Mas o
momento foi muito emocionante.

104
Perguntei aos terapeutas se Bernardo precisaria de algum tipo de
acompanhamento psicológico ou até mesmo de algumas sessões
esporádicas para controle, e eles disseram que não, que ele estava
totalmente liberado. Em fevereiro de 2009 Bernardo teve suas últimas
consultas.

Mudança para Brasília: mais um recomeço

A alta de Bernardo inaugurou uma nova fase em nossas vidas. Se


antes havia a obrigação de permanecer em Porto Alegre, agora havia a
possibilidade da escolha.
Comecei a estudar para concurso público à noite. De dia, ficava com
as crianças. Tinha saído há menos de um ano da clínica onde trabalhei
como assessora de imprensa por quatro anos.
Foi nessa clínica que conheci a Aline Tavares, amiga querida e uma
das pessoas que mais me ajudaram a vencer os obstáculos que encontrei
no Rio Grande do Sul. Minha prima Ana Cristina Benítez também esteve
ao meu lado durante o processo da cura do Bernardo, assim como as
amigas Camila Puhl e Fátima Rocha.
Mesmo que à distância, minhas irmãs ligavam regularmente para
saber notícias dos sobrinhos. Meus tios Geraldo e Carmem e minhas
primas Kika e Cinthia também tentavam me dar apoio. Minha tia Carmem
Alice morava em Santana do Livramento e eu a visitava quando era
possível. Suas palavras de alento foram fundamentais durante o
tratamento.
Recebi um generoso apoio da minha tia Vera Regina, ex-mulher de
meu tio Miguel: ela me ofereceu estadia em seu apartamento na Asa
Norte, em Brasília. A oferta era por tempo ilimitado; disse que eu poderia
ficar no apartamento o tempo necessário para eu me estabilizar
financeiramente.
Era um desejo meu me qualificar melhor para empregos que me
permitissem assegurar o futuro de meus filhos. Era mais prudente,
contudo, amadurecer a ideia. Seria mais uma mudança em nossas vidas.
Mas eu estava muito otimista, tudo daria certo.

105
A oferta era tentadora: minha irmã menor e o marido tinham sido
transferidos há um ano para Brasília e, por coincidência, Maria Amanda
também. Se fôssemos para Brasília, morariam os três núcleos familiares
na mesma cidade novamente, depois de mais de cinco anos afastados.
Com três quartos, o apartamento era muito bem localizado e ideal para
recomeçarmos nossas vidas, desta vez sem o fantasma do Autismo.
Para não agir por impulso, fui à Brasília nas férias, disposta a
conhecer melhor a cidade. Foi muito bom rever minhas irmãs e, nesse
meio tempo, surgiu a possibilidade de um trabalho na Câmara dos
Deputados, assessorando a deputada Maria Helena (PSB-RR).
Aceitei a proposta da minha tia. Fiquei no seu apartamento e
matriculei as crianças em um colégio público. Acabadas as férias, eu
tinha um outro trabalho e não voltaria mais para Porto Alegre.
Aline se encarregou de conseguir uma imobiliária para alugar,
mobiliado, o apartamento de Porto Alegre. E foi além: ficou responsável
por todos os trâmites burocráticos, e fez sozinha a minha mudança. Teve
de encaixotar todos os nossos pertences pessoais e os levou para sua casa.
Foi mais do que uma amiga, foi uma irmã.

2010: adaptação à nova cidade

Graças à influência da minha tia no meio político (ela tinha sido


deputada estadual por Roraima nos anos 90), consegui um trabalho como
assessora parlamentar na Câmara dos Deputados. Minha tia era muito
amiga da deputada Maria Helena, que prontamente aceitou sua indicação.
Eu trabalhava pouco mais de um turno nas segundas e nas sextas, com
maior movimento concentrado na terça, na quarta e na quinta, dias de
muitas comissões permanentes e de votação no Plenário. Minha função era
acompanhar a deputada nas comissões. Ela participava de três comissões
permanentes, e eu a assessorava.
Como a deputada estava em seu último ano de mandato, durou pouco
a minha incursão na Câmara. Maria Helena não foi reeleita e, novamente,
eu estava sem trabalho. Mas não por muito tempo. Também amiga da
minha tia, a senadora Ângela Portela (PT-RR) precisava de alguém para
106
reformular seu site e, como eu já havia feito isto na clínica em que
trabalhava em Porto Alegre, conversamos sobre a possibilidade de eu ficar
responsável pelo site e pelo assessoramento nas comissões.
Reformulei o site da senadora e, depois de pronto, era só preciso
alimentá-lo de informações diariamente, o que fiz por certo período. Mas
não havia a necessidade de uma pessoa só para fazer esse trabalho e, como
eu tinha boa experiência nas comissões, passei a ser responsável por elas.
Meus filhos mudaram de colégio tantas vezes, no Rio e em Porto
Alegre, que mais uma mudança em Brasília não os assustava. O último
colégio que estudaram em Porto Alegre era público, um dos melhores
colégios públicos da cidade: o Colégio Uruguai, que ficava em frente ao
Parcão, na Avenida Goethe.
Com tão pouco tempo para conseguir vaga para as crianças em uma
escola pública – as aulas estavam prestes a começar, e eu não os tinha
matriculado – fui à Secretária de Educação do Governo do Distrito Federal
(GDF) para descobrir quais seriam as escolas mais próximas do
apartamento da minha tia e também as que tinham o melhor ensino.
Maria Júlia foi inscrita na 409 Norte; Bernardo, na 115 Norte. O
apartamento ficava na 315 Norte, e meu filho tinha de apenas atravessar a
rua para chegar lá.

Sinceridade sem filtros

Outra característica do autismo é a excessiva franqueza, a falta de


senso crítico e a falta de percepção das consequências do que se diz,
traduzindo inadequação social. Bernardo não filtrava o que deveria dizer,
não ponderava se o que ia dizer era adequado para o momento que estava
vivendo. De tão inapropriado, chegava a ser engraçado. Esse
comportamento era um chamariz para o bullying.
Em uma viagem a Pirenópolis, em 2011, cidade de Goiás famosa por
suas belas cachoeiras, Bernardo, então com nove anos, disse para a dona da
pousada em que ficamos por apenas dois dias que ele tinha pena de mim,
porque eu era órfã e viúva.

107
Estávamos conversando há menos de 10 minutos com essa senhora e
ele já expôs a minha vida sem rodeios. Em outro episódio, quando
morávamos em Porto Alegre, minha amiga e comadre Aline Tavares havia
terminado o namoro com um rapaz chamado Marcelo e, em poucos dias,
estava namorando outro rapaz, chamado Francisco.
Como Bernardo conversava bastante com o Marcelo, quando ele
aparecia lá em casa, eu até previ o que ia acontecer. Falei com a Aline que
provavelmente Bernardo ia estranhar a mudança de namorado. Dito e feito.
Foi só a Aline aparecer com o novo namorado que Bernardo disse: “Tia
Aline, cadê o tio Marcelo? Você não está mais namorando ele?”
Foi uma saia justa daquelas, e tivemos, todos, de dar risada. Ainda em
outro momento, a ex-esposa do meu pai ligou para falar com as crianças.
Meu pai havia falecido há seis meses e, por não manter boas relações com
ela, nunca mais a procuramos. Nem no seu nome eu falava; não havia mais
motivos para nos relacionarmos.
Maria Júlia atendeu o telefone e conversou durante alguns minutos
com ela. Na vez do Bernardo, ele perguntou:
– Vovó Sônia, você ainda não morreu? – Maria Júlia, a babá e eu nos
entreolhamos e não conseguimos segurar o riso.
Na cabecinha dele, os dois tinham morrido ao mesmo tempo,
suponho. Até porque eles deixaram de ver a Sônia, que nunca foi aceita, e
com razão, pela família. O distanciamento repentino dela, para ele, que
sabia da morte do avô, deve ter gerado essa confusão. Os dois saíram de
sua vida ao mesmo tempo.
Além da franqueza excessiva, o comportamento do Bernardo era
imprevisível. Quando ele tinha quatro anos, fomos ao Clube Caixeiros
Viajantes, do qual éramos sócios, para passar o dia e irmos à piscina. Era
um sábado de verão, e o clube estava lotado.
Maria Júlia e Bernardo estavam na piscina de crianças, e eu
conversava com uma amiga fora da piscina. Apesar da conversa animada,
eu não tirava os olhos deles, sobretudo do Bernardo. Mas, como ele tinha
medo de entrar na piscina, eu não estava muito preocupada. Não havia o
perigo de ele se atirar na piscina.
Só que sem mais nem menos, sem qualquer indicação do que iria
fazer, Bernardo abaixou a sunga e, mirando a piscina infantil, fez xixi na
água. Parecia até uma fonte, um chafariz, de tão tranquilo que ele estava
naquela posição.

108
Eu saí correndo, gritando, para evitar que ele continuasse a mijar na
piscina, mas não dava mais tempo de fazer nada. Pensei que seria
repreendida por algum sócio ou funcionário, estava esperando que alguém
viesse falar comigo, mas não sei como, demos sorte e passou despercebido.

Bullying no colégio?

O que eu mais temia, um dia, tornou-se realidade. Deixei a Câmara


dos Deputados um pouco antes das 17 horas e dirigi rumo à escola do
Bernardo, na Asa Norte. Sintonizada na Rádio Força Aérea, escutava uma
música lenta, absorta em meus pensamentos, procurando relaxar depois de
um dia cansativo de trabalho.
Estacionei o carro em frente ao colégio e, como fazia sempre, desci do
carro para buscá-lo. Avistei-o na entrada do colégio, perto das grades do
portão de ferro.
Quando me viu, ele começou a gesticular, com os olhos arregalados,
acenava para que eu acelerasse o passo; estava com uma fisionomia tensa.
Eu tentava entender o que ele queria dizer e apressei o passo em sua
direção. Caminhei o mais rápido que pude. Não tive nem tempo de
perguntar o que estava acontecendo. Ele disparou:
-Mãe, esse menino está me incomodando. E apontou para um menino
que estava bem perto.
Sem pensar duas vezes, eu falei para o menino:
-Eu vou agora falar com a diretora sobre o que você está fazendo! Eu
não tinha ideia de como o menino estava incomodando o meu filho, mas
estava claro que se tratava de bullying. E isso eu não ia permitir. Não
depois de tudo por que ele passou. Não depois de ter se superado e vencido
o Autismo. Não simplesmente por ser meu filho. Isso bastava para que eu
tomasse alguma atitude.
Não entrei em detalhes, não perguntei de que forma o menino estava o
chateando. O menino se assustou com a minha atitude e disse:
– Não, tia, não fala nada. Eu fiz sem querer. Não vou fazer de novo...
Alívio; nada de confusão, nada de brigas.
– Poxa vida, vocês devem ser amigos! E, me dirigindo ao menino,
disse:
109
– Pede desculpas para ele e deem um abraço bem forte. Vocês têm de
ser amigos, insisti.
E assim foi. Tudo resolvido; sem drama. Bernardo gostou do desfecho
do problema. O menino, por sua vez, também parecia estar satisfeito. Eu
estava mais do que satisfeita. O que eu mais temia aconteceu, e o resultado
não foi uma catástrofe como eu previra.
Bernardo se sentiu seguro para me contar sobre o bullying e, com isso,
eu tive condições de ajudá-lo a enfrentar a questão; ele não teve medo ou
vergonha de me contar que estava sendo vítima de bullying.

O teatro em sua vida

No final de dezembro de 2010, Bernardo encenou a peça Bumba-meu-


boi em Brasília; o papel dele era o do padre. Para tanto, ensaiou suas falas
com a irmã. Na hora, atuou direitinho. Via-se que ele estava relaxado no
palco. Decorar as falas foi fácil. Bernardo tem excelente memória e boa
concentração.
Quando a peça acabou, ele foi para a coxia e não voltou mais. Os
artistas da peça voltaram ao palco, cantaram e dançaram uma música. E
nada do Bernardo. Até que uma menina foi nos bastidores e trouxe o
Bernardo pela mão. Aí, sim, ele começou a dançar com ela.
Mas não tinha sido a primeira vez que ele participava de uma peça de
teatro. Em 2009, ainda em Porto Alegre, inscrevi os dois na oficina de
teatro do Colégio Uruguai. Eram dois dias por semana e eles adoravam as
aulas.
Em dezembro, duas peças foram escolhidas para as comemorações do
final do ano letivo. Em uma delas – O Boizinho e Meus Netinhos – Maria
Júlia fazia o papel principal da peça – era a netinha. Bernardo, no entanto,
fazia dois papéis secundários: era o avô e o caranguejo.
Impossível imaginar, dois anos antes, que ele seria capaz de decorar
um texto e recitá-lo em público, obedecendo às ordens do diretor da peça,
esperando sua vez de falar sem estresse, sem angústia.

110
O incrível é que Bernardo comemorou muito o fato de ter feito um
papel secundário, acreditando ser melhor do que o principal. Dizia:
– Vou fazer uma peça no colégio. Eu tenho um papel secundário! – e
comemorava.
O lado artístico não parou por aí. Em dezembro de 2011, o roteiro “O
assassino”, que Bernardo fez para um vídeo de cinco minutos, tarefa da
disciplina de Audiovisual, realizada na Escola Parque 210, foi escolhido
como o melhor roteiro da sala. O roteiro era uma história de suspense,
gênero que muito o atrai.

Bolsa de estudo para um dos melhores colégios de Brasília

Em outubro de 2011, Bernardo e a irmã fizeram uma prova para uma


bolsa de estudo no Colégio Dínatos COC, que fica na Quadra 604, na Asa
Sul. Considerado um dos melhores colégios de Brasília, eu estava
impaciente quanto ao resultado. Eram bons descontos na mensalidade,
variando de 15% a 30%.
Por serem muito estudiosos, esperava que eles tirassem boas notas,
mas não sabia até que ponto o nervosismo poderia atrapalhá-los. Maria
Júlia se cobrava demais e poderia ser vítima daquele nervosismo típico dos
perfeccionistas.
Bernardo, por seu turno, era um pouco inseguro quanto ao seu
desempenho escolar. Conversávamos bastante sobre isso. Ele só precisava
ter mais autoestima, confiar mais na sua capacidade intelectual. O
nervosismo também poderia atrapalhá-lo, além, é claro, da pressão do
tempo. Bernardo tem seu tempo próprio para realizar as tarefas. Odeia ser
pressionado. Eu temia que o pressionassem demais.
Mais ou menos um mês depois da realização da prova, recebi uma
ligação do colégio informando que os dois tinham conseguido a bolsa e
com descontos acima da média. Suas notas foram altíssimas, e o desconto
seria de 30% para cada um. Mas não parava por aí.
Os dois obtiveram as melhores notas em redação, por isso, seria dado
um desconto adicional de 5%, o que totalizaria 35% de desconto na
mensalidade para cada um dos meus filhos. Exultei!

111
Eu estava a ponto de explodir de orgulho. Bernardo iria, portanto, para
o sexto ano do Ensino Fundamental (o que correspondia à antiga quinta
série) e Maria Júlia, para o oitavo ano (antiga sétima série).
Se eu tinha qualquer dúvida quanto à adaptação do Bernardo ao
colégio, ela foi logo dissipada. Correu tudo bem no primeiro ano no COC.
As notas do Bernardo no colégio eram ótimas. No primeiro bimestre,
contudo, as notas foram um pouco mais baixas do que nos bimestres
seguintes, em virtude do período de adaptação à nova escola. Mas, à
medida que ele se acostumava com o método de ensino, as notas foram
subindo.
A maior dificuldade surgiu com a interpretação de textos. Inicialmente
tirou notas baixas em História e Língua Portuguesa, que exigiam mais
subjetividade. Ele dominava a matéria; o problema era entender as
perguntas. Sentei com ele e conversamos. Mostrei a ele como ele sabia
todas as questões e só tinha se confundido na forma como elas foram
pedidas; se a pergunta tivesse sido mais objetiva, ele teria gabaritado. Com
isso, ele não se sentiu tão culpado pelo erro. Maria Júlia também lhe deu
muito apoio. A partir daí, a cada novo exame dessas disciplinas, as notas
foram melhorando.
E, Mesmo com aquela dificuldade específica, a menor nota que ele
tirou foi 6.0 em Língua Portuguesa; nas outras matérias, as notas foram
acima de 7.0. Em Ciências, sua disciplina preferida, obteve 9,42; em
Ciências Sociais/Filosofia, 9,82; seguido de 8,32 em Geografia; 8,15 em
Matemática e 7,82 em Redação. No segundo bimestre, houve um aumento
considerável em todas as notas.
Foram seis notas dez! Em Ciências, Ciências Sociais/Filosofia,
Geografia, História, Artes e Educação Física. Em Matemática, obteve 9,39,
seguido de Língua Portuguesa, 9,28. No terceiro bimestre, manteve médias
acima de 8.0.
O que mais nos surpreendeu foi o desempenho em Redação. Quase
sempre tirava dez! É um menino muito criativo, cuja imaginação parece
não ter limites. Se o professor propunha um tema livre, ele vibrava. Gosta
muito de criar histórias, principalmente de ficção científica.
O gosto pelos estudos ele havia adquirido da irmã. Ela estuda muito e
se esforça para bater recordes em notas máximas. Das onze disciplinas do
boletim, ela já tirou nota 10 em dez delas. Só não tirou em todas porque
não é boa em educação física, o que não a incomoda nem um pouquinho.

112
Acredito que o gosto pela leitura ele tenha desenvolvido com as idas à
livraria desde pequeno e pelo exemplo que tenho dado ao longo dos anos.
Na hora de dormir, eu os convidava a pegarem um livro e a deitarem ao
meu lado, em minha cama, para lermos os três juntos.
Perguntava a opinião dele sobre os livros, quais eram os seus
preferidos, que assuntos atraiam sua atenção. Explicava a importância da
leitura em suas profissões e vidas; com isso, foi natural que eles
valorizassem a leitura tanto quanto eu.
Percebo que Bernardo tem na Maria Júlia um forte referencial, mais
até do que em mim. Orgulho-me disso. Ao buscar ser mais parecido com
ela, ele passou a valorizar muito os estudos. Não se contenta em tirar notas
médias. Quer ser um dos melhores da turma. Por vezes, exige-se demais e
decepciona-se se as coisas não saem exatamente como planejava. Tanto
esforço e disciplina são, mais cedo ou mais tarde, recompensados.

Em outubro de 2013, meu filho ganhou uma “carta de


reconhecimento” do colégio por suas notas e comportamento.

113
XIII- OUTRO MODO DE SER

Ser ou não ser autista

Comentando com Dr. Alfredo minhas preocupações acerca de


algumas reações de Bernardo, ele me acalmou fazendo as seguintes
considerações: os antecedentes de meu filho moldaram nele algumas
características particulares em seu modo de ser e entender o mundo. Esses
traços não significam que ele continue a ser autista. De modo algum. Todas
essas características se apresentam somente e sempre na relação com os
outros, coisa que o autista não tem.
É precisamente a ausência de relação com o outro que define o
autismo e, nesse caso, trata-se, pelo contrário, de formas de relação com o
outro. A maioria dos seres humanos é formada por ex-alguma coisa.
Alguns são ex-bebês; outros são ex-neuróticos ou ex-fóbicos; ou ex-
melancólicos ou ex-psicóticos; ou ainda ex-masoquistas. A lista é
interminável.
Devem-se lamentar somente aqueles que não conseguem ser ex-
alguma coisa e continuam sendo algo que não desejam ser ou que os fazem
sofrer, impedindo seu contato normal com o mundo. Agora, há tantas
formas de normalidade! Quantas pessoas ex-alguma coisa há nesse mundo,
pela simples razão de que todos nós carregamos traços e características do
que fomos nas nossas origens e, principalmente, na nossa infância.
Segundo o psicanalista, é isso que propicia a cada um de nós um
estilo particular de ser. Bernardo é um ex-autista e, como tal, tem um
estilo, um modo de ser, no qual se expressam alguns dos mecanismos e
significações de suas origens. É como o sotaque de nossa língua de origem
que, necessariamente, vai provocar um estilo de falar na nova língua que
adotarmos. Isso não constitui anormalidade nenhuma, porque não impede
a relação normal com os outros; apenas introduz nela um traço particular.
Ser diferente é o normal.

114
Alguns seres humanos sabem amar essas diferenças. Outros as temem
e as rejeitam, mas todos nós somos amados ou rejeitados pelos pequenos
traços que nos caracterizam. Com Bernardo, não poderia nem teria por que
ser diferente.

Sobra formalidade, falta malícia

Do menino ansioso, angustiado e agressivo de antigamente não


sobrou nada. Bernardo tornou-se um menino tão educado e atencioso com
as pessoas que, não raro, seu jeito de se dirigir aos outros beira à
formalidade. Ele age e se veste como um lord inglês.
Todas suas frases começam com “por favor” e terminam com
“obrigado”. Suas roupas são basicamente camisas, coletes e sapatos.
Veste-se elegantemente; seu estilo de vestir lembra os argentinos, os
uruguaios; veste-se como um “portenho”, assim como seu pai fazia.
No supermercado, inicia a conversa com as caixas do estabelecimento
com “bom dia”, “boa tarde” ou “boa noite”. Ao sair, dispara: “Obrigado
pelo serviço. Tenha um bom dia” (ou boa tarde, ou boa noite)”.
No colégio, é conhecido por todos. Gosta de beijar, abraçar as
professoras. Cumprimenta com um aperto de mão os professores, os
funcionários, assim como faz com meus amigos.
Por vezes, há um excesso de formalidade. As cartas que me escreve,
normalmente, tem esse tom formal. A verdade é que já foi bem pior, e que
ele está bem mais informal, flexível e descontraído. Essa é uma batalha
diária. Pode parecer um detalhe, mas o jeito de nos expressarmos também
é importante para a interação social.
É fundamental que se esclareça que as formalidades são constituídas
por rituais sociais que sempre se repetem de forma idêntica perante
circunstâncias iguais ou muito parecidas. Os autistas temem as mudanças
porque não conseguem atribuir novos significados a situações novas. Por
isso, as formalidades sociais, que repetem sempre o mesmo significado,
vêm a calhar no seu modo de funcionar, e lhe permitem se apropriar, ao
menos, de um sentido precisamente, porque ele é fixo.
115
Temos conversado bastante sobre essa questão; quero que ele seja
mais informal, tanto no jeito de se vestir quanto no jeito de falar. Mas não
quero que seja uma imposição minha, não quero mudá-lo. Eu o aceito
como ele é, só que ele é muito jovem para ter um comportamento tão
maduro. É importante que ele aproveite a adolescência, que ele tenha
amigos, que ele se divirta, que ele erre como todo mundo. Ele não tem de
ser perfeito.
Bernardo reclama que quer ter mais amigos (agora ele se importa com
isso), mas diz que não sabe como iniciar uma conversa, não sabe o que
dizer. Eu lhe digo que ele tem de ser ele mesmo: espontâneo,
despreocupado. Assim, as amizades surgirão com o tempo. Mas vejo que
é justamente aí que reside o problema: Bernardo tem dificuldades em ser
espontâneo.
Isso não quer dizer que ele não seja autêntico; bem pelo contrário. Ele
é autêntico até demais, o que torna inapto socialmente, falando coisas
inadequadas para a situação que está vivendo. Inevitavelmente, isso o
afasta dos meninos da sua idade.
Há rigidez na sua linguagem; Bernardo se cobra demais; não fala
palavrão, gírias ou palavras chulas; escandaliza-se com qualquer
vulgaridade. Para ele, é fundamental falar “corretamente”, de acordo com
as normas gramaticais.
Há mais ou menos três anos, fiz um ditado para os dois, com mais de
cem palavras bem difíceis (as que mais confundem, aquelas que são
grafadas com ss, ç, x z, ch, s), para verificar como estava a ortografia
deles. Os dois foram muito bem, mas Bernardo acertou ainda mais do que
Maria Júlia. Das cem palavras que eu ditei, ele errou menos de dez. E isso
que começou a falar com seis anos e a escrever com sete. Bernardo tem
revertido completamente suas limitações iniciais.
Nos bilhetes que Bernardo tem me escrito nestes últimos anos,
sobressaem-se a formalidade e o exagero. Meu filho expressa seus
sentimentos intensamente. Tudo é muito sério e visceral para ele.
Mas se sobra formalidade, falta malícia para Bernardo; ele é
extremamente ingênuo, puro e sensível. Incapaz de fazer mal a qualquer
pessoa deliberadamente, acredita que os outros são iguais a ele. Não
compreende que algumas pessoas possam ser maldosas por escolha; tem

116
um olhar ingênuo para os acontecimentos da vida. É um menino meigo e
sensível.
A ingenuidade dos autistas é consequência da impossibilidade de
fazer suposições sobre as intenções dos outros, já que não têm senão
unicamente uma representação da superfície desse outro, e não de seu
pensamento.
Embora tenha evoluído muito nesse sentido – com o tratamento
psicanalítico e com as próprias experiências de vida –, ainda demora para
captar certas nuances de linguagem, tais como deboche, ironia e
sarcasmo.
Para se ter uma noção de como a subjetividade na linguagem lhe é
estranha, há mais ou menos quatro anos, quando ele tinha dez anos de
idade, estávamos – Bernardo, Júlia e eu – assistindo a um filme, quando
algo me incomodou, e eu disse: “vontade de mandar fulano para o
espaço”. Bernardo, prontamente, replicou:
– Mãe, quem você quer mandar para o céu?
– Não. Não. Não quero mandar ninguém para o céu de “verdade” – eu
disse – É apenas força de expressão.
E a coisa não parou por aí. Ele queria saber o que era força de
expressão. Eu expliquei.
Em outro momento, também quando estava com raiva, eu disse:
– Quero que tudo se exploda!
– Mãe, você tem uma bomba?
– Lógico que não, meu filho. É só jeito de falar. Fique tranquilo!
Para ele, era difícil compreender o sentido conotativo das palavras; só
havia o denotativo. Hoje é mais fácil fazê-lo entender que as palavras,
dependendo do contexto, podem ter vários significados.
Mas por que a subjetividade é tão difícil para os autistas? A resposta é
que neles prevalecem os automatismos de conduta que os empurram a
repetir de modo idêntico suas reações perante diferentes estímulos ou
perante os mesmos estímulos em diferentes contextos. Eles ficam, assim,
impedidos de dar diferentes significados ao mesmo estímulo, de acordo
com os diferentes contextos e situações em que esse mesmo estímulo
aparece.

117
Ocorre que a subjetividade consiste, precisamente, em interpretar e
atribuir sentidos diversos à mesma coisa de acordo com as circunstâncias
tanto interiores quanto exteriores em que ela se apresente.
No entanto, os automatismos são baterias de movimentos que se
disparam automaticamente pela ativação de circuitos fixos do Sistema
Nervoso Central e que não têm significação nenhuma, embora, com o
tempo e a experiência, alguns autistas aprendam a se valer deles em forma
defensiva ou para convocar a atenção de seus pais.
A questão é conseguir que os autistas valorizem mais as significações
e não fiquem focados na condição material das coisas ou no significado
literal das palavras.
Em abril de 2012, recebi uma carta do Bernardo, na qual ele dizia,
entre outras coisas, que quando ficasse rico, compraria uma mansão para
mim.

118
A carta dizia:

“Querida mãe, eu queria sempre você feliz, saudável e bem. Mãe,


você é a melhor mãe do mundo, eu te amo infinitamente e tenho orgulho
de uma mãe tão boa e maravilhosa como você. Obrigada por tornar
minha vida maravilhosa. Te amo, mãe, você e minha irmã são as
melhores coisas que aconteceram na minha vida. Espero que tenha uma
boa vida. Quando você estiver na terceira idade, se eu conseguir ficar
rico, vou comprar uma mansão para você. Te amo. Com amor, seu filho,
Bernardo José Mendina de Souza Martínez”
P.S: se estranhar o tipo de carta, é porque ela foi feita em uma página de
um caderno, pelo menos é o que eu acho”

No meu aniversário de 39 anos, em outubro de 2010, Bernardo, então


com nove anos, me entregou um cartão, que dizia:

“Mamãe, eu te acho a melhor mãe do mundo. Ainda bem que você


irá fazer 39 anos. Você até pode me falar algumas coisas pra eu fazer que
às vezes me irritam, mas mesmo assim eu sempre vou te amar para
sempre. Bernardo”

Nesse bilhete, Bernardo escreveu em letra de forma, que era como ele
escrevia quando aprendeu a ler e a escrever. Também não tinha
preocupação com fazer uma letra bonita, de tamanho uniforme. Ás vezes,
as letras se agrupavam, umas quase em cima das outras.

119
120
Poucos meses depois, dias antes do Natal, recebi outro bilhete.
Bernardo passava a me chamar de “mãe”, em vez de “mamãe”, e, a partir
de então, só me chamaria de mãe. Mamãe era coisa de criança, e ele
estava crescendo! Ele se esforçava para ter um comportamento menos
infantil em todos os sentidos. Ele se exigia demais, não se permitia errar,
procurava me agradar em tudo; desejava a minha aprovação. Era 17 de
dezembro de 2010.

“Mãe, eu te amo tanto que vou morar com você para


sempre. Espero um Bom Natal pra você. Com amor, Bernardo”.

121
De tempos em tempos, Bernardo repetia a mesma frase:
– Mãe, eu vou morar com você para sempre.
Decidi, então, brincar com o exagero.
– Isso é uma ameaça, Bernardo? Você está me ameaçando?
Ele dava gargalhadas. O humor foi um bom recurso para lidar com
alguns sintomas do Autismo e para tentar descontraí-lo, tirá-lo da
formalidade. Bernardo levava tudo muito a sério.
Depois que descobriu as teorias espíritas, Bernardo dizia que, se
reencarnasse, queria que fosse como meu filho novamente.
– Pode deixar, filho, que, se existir reencarnação, pedirei para ser sua
mãe novamente. Sua e da Maria Júlia.
Um assunto frequente nos bilhetes e nas cartas que recebo dele é o
nosso relacionamento; ele insiste que quer morar comigo até “morrer”.
Houve uma época que ele dizia que iria me congelar quando eu morresse
e esperar o momento em que fosse possível, cientificamente, me
descongelar para me fazer reviver.
Como adora Ciências, ele mesmo descobriria uma forma de me
descongelar. Tive, então, mais uma vez, de lhe esclarecer que a vida tem
seu ciclo inevitável de nascimento, crescimento e morte e que, além do
mais, congelar uma pessoa era crime; portanto, era bom tirar essas ideias
da cabeça.
Não supervalorizei sua fala; é natural vivenciar o medo da perda e é
muito bom que ele se sinta à vontade para expressá-lo.
Além do que é compreensível que um menino que perdeu o pai
quando tinha apenas três anos deposite em mim o medo da perda que
vivenciou. Acredito que, se ele tivesse os pais vivos, não teríamos esse
tipo de conversa. Ele ansiava por segurança.

122
A mania de doença

– Mãe, estou com câncer terminal – dizia Bernardo. Ou:


– Ih! Mãe, estou sentindo uma dorzinha aqui, apontando para o braço.
Ou ainda, depois de bater a cabeça ao entrar no carro:
– Mãe, acho que terei problema no meu sistema nervoso. Estou com
coceira na cabeça e nos ombros.
Sua mania de doença se manifesta de várias formas; ele se preocupa
demasiadamente com a validade dos alimentos que consome, pergunta
todas as vezes em que vai comer se a comida não está estragada. Se o
alimento vencia naquele dia, ele se recusava a comer; me fazia cheirá-lo
primeiro.
– Tem certeza mesmo de que não está estragado? – pergunta uma,
duas, três vezes. Eu digo que tenho, que estou perdendo a paciência.
– Chega. Come. Eu estou garantindo que você pode comer – falo, com
voz firme.
– Mãe, você é minha rastreadora de comida estragada – conclui,
enquanto se dirige à cozinha.
Já foi muito, muito pior. Quando eles estudavam à tarde, ele no sexto
ano (quinta-série) e ela no oitavo (sétima-série), meu filho tinha tempo de
sobra para assistir televisão e brincar na parte da manhã e, com isso,
assistia ao Bem-Estar, programa de saúde exibido pela TV Globo às 10
horas.
Eu estava trabalhando neste horário e não tinha tempo de
supervisioná-lo ou de assistir ao programa com ele. A repercussão dos
programas, contudo, era certa.
Assim que eu chegava em casa, ele dizia:
– Mãe, não vou comer mais doces. Vai fazer mal para o meu
colesterol.
Ou se eu oferecia algum alimento:
– É frito? Se for frito, eu não quero, vai aumentar o meu colesterol.
Ele também pedia para fazer exames para saber se o colesterol dele
estava dentro dos índices recomendados, queria saber se estava alto ou
baixo, perguntava a diferença entre o colesterol bom e o ruim; enfim,
ficava obcecado pelo assunto e só falava nisso.

123
Em uma aula de Ciências sobre protozoários, surgiu a preocupação
com o “barbeiro”, o inseto que transmite a Doença de Chagas. Ele não
podia ver qualquer inseto que tinha certeza de que era o barbeiro. Não tinha
jeito. Chegou ao ponto de dizer que já tinha sido picado pelo mosquito, que
estava doente, que não tinha mais jeito. Um fatalismo sem precedentes.
Ele é tão preocupado com sua saúde que deixou de comer Nutella
depois que passou mal uma vez. Tentei ponderar com ele, mas foi inútil.
Ele dizia que tinha pego uma virose por causa da Nutella e, a partir daquele
dia, decidiu não comer mais a pasta de avelã.

2013: sem vergonha de mim

No Dia das Mães, recebi, como de costume, um cartão dos meus


filhos. Eles fazem isso desde pequenos. Maria Júlia, desde bem pequena.
Bernardo, só a partir dos seis anos, quando deu seus primeiros rabiscos.
No início, era isso mesmo que eu recebia: rabiscos. Progrediram para
desenhos e, ultimamente, são lindas cartas de amor. Apesar de todos os
anos eles perguntarem o que eu quero ganhar de presente, a resposta
manteve-se a mesma: quero que escrevam algo para mim, “uma declaração
de amor”, brinco.
É realmente o melhor presente que posso ganhar; suas cartas são
valiosas, nos aproximam cada vez mais. Ah! E não posso deixar de
mencionar que, de uns quatro ou cinco anos para cá, além das cartas, tenho
ganhado um café da manhã especial, preparado por eles.
Nessas horas, a criatividade rola solta: misturam pães, frios,
chocolate, panquecas, frutas e, é claro, para arrematar, uma xícara de café
com leite. Também arranjam flores para enfeitar a bandeja, a maioria das
vezes são flores artificiais compradas no 1,99. Júlia gosta de cozinhar e
aprendeu a fazer panquecas americanas; Bernardo fica animado em ser seu
assistente.

124
Mas, voltando aos cartões, o do Bernardo daquele ano foi o mais
criativo de todos que recebi até agora e, no mínimo, continha uma pitada
de humor negro. Era, por sinal, bem mórbido.
Em um papel ofício branco, dobrado ao meio, ele tinha desenhado,
em caneta preta com detalhes em caneta vermelha, dois túmulos, um ao
lado do outro, um para mim e outro para ele, com nossos nomes nas
respectivas lápides. Ou seja, juntos na vida, juntos na morte. Juntos para
sempre. Foi uma declaração de amor sem igual.
Estou acostumada às suas exageradas manifestações de carinho, mas
esta me surpreendeu um pouco. Ele me confidenciou, horas depois, que,
enquanto desenhava na sala de aula, um colega havia perguntado:
– Bernardo, sua mãe morreu?
Bernardo achou engraçadíssima aquela confusão. Eu também. Sei o
quanto ele é autêntico, leal aos seus sentimentos, sem vergonha de
expressá-los. Bernardo tem um jeito só dele de expressar seus sentimentos,
bem diferente dos meninos da sua idade. Na carta abaixo, percebe-se
diferença na sua letra; não escreve mais em letra de forma, a leitura é mais
fácil, uma vez que as letras estão mais caprichadas, menores, e mantêm um
espaço regular, uniforme, entre si.
Abaixo, o “mórbido” cartão do Dia das Mães:

125
“Cara Mãe,
Eu estou escrevendo nesta carta coisas muito importantes que eu não sei
como simplificar, mas eu preciso explicar: você é algo muito importante
na minha vida, eu quero poder sentir o seu material genético ou DNA
misturado nas minhas células, sem frescura nenhuma; quero poder ter
126
orgulho de você por ser a melhor e pra mim única mãe no universo
inteiro, incluindo Outworld, Edenia e o Netherrealm, quero estar ao seu
lado por toda a eternidade; quero que você esteja sempre bem, sendo
abençoada por Deus, Jesus, São Cartonildo e pelos Deuses Anciões. Você
sabe de todas as coisas que eu gosto de fazer na vida, mas você precisa
saber que nada disso tem importância na minha vida sem você ao meu
lado! Eu preciso de você. Eu nunca vou m e separar de você! Eu ficarei
com você até a morte...”E por aí vai....
O São Cartonildo a que ele se refere na carta é um santo inventado
por nós três, o santo que protege os usuários dos cartões de crédito,
impedindo que este seja rejeitado. Foi criado em um momento de
desespero financeiro, e é motivo de gargalhadas para nós.
Ao entrar na adolescência, era esperado que Bernardo tivesse
vergonha de ser visto ao meu lado no colégio, principalmente quando
estivesse com seus colegas de turma, como fazem todos os meninos da sua
idade. Eu estava me preparando para essa fase com a cabeça feita para não
encará-la (a atitude do meu filho) como uma rejeição.
Mas isso não aconteceu. Talvez o tratamento psicanalítico aliado ao
temperamento do Bernardo e a tudo que ele teve de superar nos últimos
anos o tenha influenciado positivamente nesta questão, ou seja, uma
característica singular de meu filho, ou todas as coisas juntas, quem sabe?
O peculiar é que ele não tem vergonha de falar comigo quando vou ao
colégio buscá-los ou resolver qualquer outro assunto com os diretores e
funcionários do COC. Quando me avista, Bernardo vem correndo em
minha direção, me beija, me abraça e me dá a mão.
A irmã mal finge que me vê. Acena com a cabeça, de longe, e sai
com as colegas para mais longe ainda das minhas vistas.

127
O que importa é competir

No fim de abril de 2012, Bernardo então com doze anos, foi


comunicado pela coordenadora pedagógica do colégio que era o aluno
destaque da sua turma, o que o encheu de alegria, a tal ponto que
espalhou a novidade para quem quisesse ouvir. Estava exultante.
Ao comentar o feito, disse que se esforçaria para ganhar o prêmio de
novo. E conseguiu. Em novembro de 2014, Bernardo foi mais uma vez
agraciado com um prêmio de reconhecimento pelo seu comportamento e
notas.
De lá para cá, tem tirado excelentes notas: a maioria acima de 8,
alguns 9, e outros 10. Ele se espelha muito na irmã, que é a melhor aluna
da sala e que estuda diariamente com afinco.
Bernardo fez alguns amigos na turma; entre eles o Eduardo, o João
Pedro e o Ednaldo. Atencioso, fala com todos os professores e
funcionários do colégio. Faz questão de cumprimentá-los sempre que os
encontra.
Como o colégio oferece uma atividade física a ser escolhida pelo
aluno, incluída no valor da mensalidade, Bernardo teria de escolher entre
as modalidades disponíveis, que eram Capoeira, Judô, Basquete, Vôlei,
Hip Hop e Jiu-Jitsu.
Embora sua primeira escolha tenha sido a capoeira, eu o inscrevi no
basquete. Tinha medo de que ele se machucasse. Dei graças a Deus
quando soube que a piscina do colégio não estava funcionando e não
havia a possibilidade de eles fazerem natação. Foi um exagero, eu sei,
mas melhorei com o tempo. Aprendi a relaxar.
Bernardo fez basquete durante seis meses e percebeu que não levava
jeito para o esporte. Apesar disso, comentava com muito orgulho que o
seu ponto forte era “atrapalhar os adversários”. Para ele, era evidente que
ele tinha uma função importante, afinal de contas, atrapalhar os
adversários também fazia parte do jogo.
Por sinal, obter o segundo ou o terceiro lugar nas competições não era
problema para ele. Até o último lugar ele comemorava com um sorriso
largo no rosto. O importante era competir.
Do basquete, foi para a capoeira. Desta vez o problema não era ele,
mas o professor, que nunca aparecia. Cansei de vê-lo voltar para casa
antes do horário, pois o professor havia faltado à aula. Por isso, Bernardo

128
decidiu mudar, mais uma vez, de atividade física. Escolheu o judô, onde
parece ter se encontrado. Só tira nota dez e é muito elogiado pelo
professor, por sua disciplina e dedicação.
Até prova oral sobre os golpes a turma tem. E, quando algum aluno
não sabe a resposta, o professor pergunta para o Bernardo, que tem tudo
decorado na ponta da língua. É recompensador ver os progressos do meu
filho em todos os aspectos de sua vida. E é mais do que reconfortante
constatar que, depois de todas as dificuldades pelas quais ele passou, está
muito mais maduro, equilibrado, feliz e socialmente adaptado.
Ainda no ano passado, Bernardo chegou em casa contente com uma
medalha de bronze pendurada no pescoço por ter tirado o penúltimo lugar
em uma partida de xadrez.
– Como assim? – perguntei. Não sabia que ele ia competir. Não tinha
me dito nada. Sabia menos ainda sobre o xadrez.
Como ele iria competir em xadrez se nem tabuleiro tinha? Não sabia
que estava fazendo aulas de xadrez, e indaguei-o a respeito.
– Não estou treinando em lugar algum, mãe – ele disse.
Então tá, sem tabuleiro, sem prática, ele competia do mesmo jeito. E
comemorava alegre o penúltimo lugar. Está certo. Outra vez: o que
importa é competir!

Em uma carta de abril de 2014, que me foi escrita sem motivo


aparente (não era nenhuma data comemorativa), Bernardo mantém a letra
cursiva. Sua letra continua pequena e percebe-se, pela sua uniformidade,
que houve capricho ao escrever. Assim como o coração da carta, o do
meu filho também é enorme!

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Dizia a carta:

“Cara mãe, é difícil para mim tentar expressar todos os meus sentimentos
por você neste fragmento industrializado de madeira, mas, mesmo assim,
eu tentarei fazer isso, pois meu amor por você é tão grande e tão forte,
que vale muito a pena conseguir uma tentativa de cumprir algo tão puro e
valioso como isso. Você e a Maju são as melhores coisas que existem na
minha vida. O melhor dia da minha vida foi o dia no qual eu nasci, pois
pude conhecer você, a pessoa mais sábia, mais bonita, mais opinativa e a
melhor mãe do mundo. Você vale mais que tudo nesse cosmos. Você é a
melhor coisa que existe na minha vida, a energia que me mantém vivo e
feliz com muito prazer. Você torna a minha vida algo valioso, não há nada
em você que eu não goste, eu sempre amarei você, independente de
qualquer coisa. A cada vez que eu fico com você, eu compreendo cada vez
mais o quanto eu preciso de você, pois se você não estiver na minha vida,
aí morrerei. Quero ficar contigo para sempre. Amo você de maneira
infinita. Quero que você tenha saúde, uma boa vida, e que seja feliz!

Aniversário de 13 anos: a consciência da morte

Em 28 de julho de 2013, Bernardo fez treze anos e convidou três


colegas do colégio para a festa de aniversário que fizemos no nosso
apartamento, na Quadra 404, Asa Sul. Há um ano, haviamos nos mudado
para a Asa Sul, para um apartamento bem em frente ao Dínatos Coc.
Morar em frente ao colégio facilitou nosso dia a dia; queria que meus
filhos tivessem mais qualidade de vida. Em vez de acordarem antes das
seis horas para pegar o ônibus escolar, eles poderiam dormir até mais tarde
e apenas atravessar a faixa de pedestres na rua.
Almoçariam em casa e, depois de descansar uma ou duas horas,
voltariam ao colégio para as aulas de inglês e judô. Para o Bernardo, aulas
de espanhol e judô. Antes da mudança, eles tinham de ficar o dia todo no
colégio, o que era muito cansativo. Voltar para o almoço era inviável.
131
A nova moradia tornava nossa vida mais prática e os incentivava a
serem mais independentes. A experiência foi positiva; meus filhos
aprenderam a cozinhar, esquentar o almoço, fazer as tarefas domésticas e a
resolver imprevistos sem mim. A evolução de Bernardo foi visível:
assumiu mais responsabilidades, tomou mais iniciativas, dentro e fora de
casa, indo sozinho à padaria, ao supermercado, à farmácia e às lojas; com
isso, ele se sentiu útil, o que foi essencial para sua autoestima.
Voltando à festa de aniversário, dos três colegas convidados,
apareceu apenas um: o Eduardo. Isso já era esperado. Julho é um mês
difícil para se fazer festas, assim como janeiro e fevereiro. As crianças
estão de férias, e cada um vai para um lado. Muitos viajam com os pais ou
familiares; outros são difíceis de se encontrar.
Mas Eduardo, seu amigo mais próximo, estava presente, e eles se
divertiram muito com brincadeiras, jogos e conversa. Apesar de quase
dois anos mais novo que o meu filho, Dudu tem sido um ótimo amigo: é
um menino precoce, muito esperto, extremamente atento a tudo que se
passa à sua volta. Talentoso, estava aprendendo a tocar gaita e teclado, a
fazer origami, tudo ao mesmo tempo, com uma gama enorme de
interesses.
Há uma troca saudável entre eles: Bernardo ensina tudo que sabe
sobre Biologia e Ciências, e Eduardo lhe apresenta um leque de novos
interesses e de informações, tirando-o do mundo mental e levando-o à
ação. Eles jogam totó, correm, brincam com galinhas (há um galinheiro na
casa de Eduardo), atiram balões com água um no outro, inventam todo tipo
de brincadeiras e travessuras.
De alguma forma, eles se completam; Bernardo é muito mais mental,
com tendência a divagar, a questionar tudo; Eduardo é mais prático, gosta
de esportes, é muito ativo. Seus olhos brilhantes em busca de algo novo
para fazer. Falante, carinhoso, Eduardo se atira de cabeça no que faz.

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O que houve, meu filho?

Cantamos parabéns, cortamos o bolo. Bernardo estava radiante com a


presença do Eduardo lá em casa. Minha prima Ana Cristina, que é
madrinha da Maria Júlia, também tinha vindo de Porto Alegre para passar
uns dias conosco. As crianças a adoram!
Minha amiga Caroline, que as crianças chamam de tia Carol, também
estava presente. Foi uma festinha pequena, bem íntima, mas muito
divertida. Faltaram minha irmã Maria Amanda, que estava viajando, a
filha Maria Antônia, e a Santa, babá da minha sobrinha, que entrou em
nossas vidas há oito anos e se tornou uma avó para ela e uma mãe para
todas nós, conquistando definitivamente nossos corações por sua bondade,
generosidade e paciência.
Bernardo ganhou da minha prima o DVD Life, da BBC News. Uma
coletânea de três documentários sobre Ciências, que explica a criação da
Terra e dos animais, separando-os por espécies e por cadeia alimentar; ele
não poderia ter ganhado presente melhor.
Queria assisti-los na mesma noite; não deixei. Tinha aula muito cedo
no dia seguinte, e os três documentários juntos duravam mais de seis
horas. Como meu filho é muito obediente, quando eu digo não, ele respeita
minhas ordens sem discutir.
Lá pelas onze horas da noite, Eduardo e Caroline foram para suas
casas, e nós quatro, depois de arrumarmos um pouco o apartamento e
protelarmos a hora de dormir, decidimos nos recolher. Depois de um dia
cansativo, mas recheado de bons momentos, fui lentamente pegando no
sono. Quando estava quase dormindo, escutei um choro forte, sem
interrupção; levantei e fui averiguar o que estava acontecendo.
No escuro de seu quarto, deitado na cama de costas, Bernardo olhava
para o teto e chorava muito. Deitei ao seu lado e perguntei o que estava
acontecendo, mas ele não parava de chorar, e eu não conseguia entender o
que ele estava tentando me dizer.
Ficamos assim um bom tempo, esperando que ele se acalmasse. Eu o
abraçava forte. Era comovente vê-lo chorando intensamente. Não entendia
o que estava acontecendo. Tinha sido um dia tão feliz! Quando, enfim, ele
se acalmou, disse:

133
– Mãe, eu não quero que você morra! – falou. Senti um aperto tão
forte no peito. O que poderia dizer a ele? Optei pela sinceridade:
– Eu também não quero morrer, meu filho, e farei tudo que estiver ao
meu alcance para que isso não aconteça, está bem? – indaguei.
Mesmo assim, ele continuou chorando por um bom tempo e repetia
que não queria que eu morresse. Eu permaneci deitada ao seu lado, de
mãos dadas, pensando como meu filho tinha amadurecido em pouco
tempo.
Ao deixar seu quarto, lembrei-me de uma situação quase idêntica que
eu havia vivido com o meu pai depois da morte da minha mãe. Eu tinha
mais ou menos dezoito anos na época. Era mais velha do que o Bernardo
hoje, mas o episódio era muito parecido.
Meu pai e eu estávamos conversando e eu lhe disse que, quando ele
morresse, eu morreria junto. Também chorei muito, um choro
incontrolável. E meu pai dizia:
– Para com isso, minha filha. Deixa de bobagem. Não vai morrer
nada.
Mas eu continuava chorando. Não conseguia imaginar minha vida
sem meu pai. Eu era muito apegada a ele, éramos muito próximos, e o
idealizava demais – menos do que na infância, mas, de qualquer maneira,
mais do que deveria. Ele continuava sendo o meu herói.
Mas a vida se encarregou de colocar em perspectiva essas angústias;
depois que meus filhos nasceram, deixei de ser filha para me tornar mãe.
Continuava amando muito meu pai e sentia bastante sua falta,
particularmente por ele morar longe de nós, mas havia algo maior na
minha vida: duas crianças que precisavam de mim.
O que despertou esse medo tão forte de perda no Bernardo é um
mistério. Pode ter sido simplesmente o início de uma nova fase em sua
vida: a adolescência, com todas as implicações que ela traz.
Mas o certo é que esse dia foi um marco divisor para nosso
relacionamento mãe e filho: um novo sentimento – poderoso – tinha
aflorado, contribuindo para que o amadurecimento de meu filho se
intensificasse e para que surgissem novos questionamentos sobre a vida e a
morte.

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Ele se tornou ainda mais carinhoso, ainda mais prestativo; passou a se
oferecer para nos ajudar nos afazeres domésticos; assumiu a incumbência
de lavar a louça diariamente (diz que esse é seu trabalho); arruma nossas
camas (embora protestemos com veemência); e se tornou ainda mais
afetuoso, beijoqueiro. Cada vez mais o Autismo fazia parte do passado.

Medalha de ouro no judô

Como antecedentes do passado que retornam (vestígios do pai, que


jogava Rugby, um esporte muito popular na Argentina) houve novas
conquistas, principalmente no esporte. Bernardo recebeu duas medalhas de
ouro no judô na categoria Extra Leve, de 52 a 58 quilos; a primeira no
primeiro semestre de 2014; e a segunda no segundo semestre, em 29 de
outubro. Em 2013, ele já havia recebido duas medalhas de prata na mesma
competição e na mesma categoria.
Muito aplicado, Bernardo sabe o nome de todos os golpes e
técnicas, e sempre tem respostas para as perguntas que o professor faz,
oralmente, em salas de aula. Mesmo assim, é simples e humilde na
abordagem aos colegas. Por tudo isso, conquistou o carinho deles.
Embora esteja no ensino fundamental, ele compete com os meninos
do ensino médio, uma vez que é muito alto – quase um metro e oitenta – e
o professor acha que seria uma covardia ele competir com os meninos da
sua idade. Fazendo judô há menos de dois anos, na última troca de faixa,
ele passou para a amarela.
Só que, se ele antes não lidava bem com as derrotas ou fracassos em
outros esportes que praticou, com o judô, a exigência ficou ainda maior.
Depois de ter ganho a medalha de ouro no final do ano, percebi-o triste em
duas ocasiões e perguntei o que estava acontecendo. Com os olhos cheios
d´agua, ele disse:

– Quero sair do judô, mãe!

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– Mas por quê? O que aconteceu?

– Nada. Eu só não quero fazer mais.

– Foi algo que aconteceu hoje? (Ele tivera aula de judô naquela
tarde) Eu quero lhe ajudar, filho. Diga o que aconteceu – insisti.

Ele ficou calado por um tempo. As lágrimas, escorrendo pelo rosto.


Por fim, disse:

– É que eu perdi uma luta hoje – disse, e começou a chorar.

– Meu filho, isso faz parte, você sabe. Um dia você ganha, no outro
você perde.

– Eu sei, mãe, mas já perdi duas lutas depois do acidente com o meu
ombro (em uma luta há dois meses, o adversário o derrubou e ele caiu de
mal jeito, machucando o ombro direito, e afastando-o das aulas de judô por
mais de um mês).

– Isso é normal. Você ficou um tempo parado. E mesmo assim, filho,


você conseguiu aquela medalha de ouro, mesmo com o ombro ruim. Você
percebeu isso? Não quero que se cobre tanto! Não adianta nada as pessoas
serem legais com você se você não é legal com você mesmo – disse, e
acrescentei – Você tem de ser a primeira pessoa a gostar de você!

Ele prestava atenção ao que eu dizia: um conselho, que não deixava


de ser um apelo. Sabemos que os conselhos precisam de um tempo para
serem assimilados. A experiência já tinha nos ensinado a dar o tempo
necessário para que as coisas se modificassem e acontecessem. No
Autismo, tanto quanto na vida, tem de se saber esperar.

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2014: ritual antes de dormir

Ritualístico, todas as noites antes de deitar, Bernardo vai ao quarto da


irmã e ao meu (cada um tem o seu próprio quarto), nesta ordem, para nos
dar um beijo de boa noite.
Enquanto nos beija, recita uma reza que criou especialmente para esse
momento: “Boa noite. Durma bem. Durma com os anjos. Que Deus te
proteja, e que seja abençoada. Amém”.
Há noites em que recita mais de uma vez. Nessas noites, percebo que
ele está mais ansioso, mais angustiado. Precisa recitar várias vezes para se
acalmar. Recita uma, duas, três vezes.
– Chega! – digo – Agora vai dormir.
Ele me obedece. Sai do meu quarto, fecha a porta, entra no seu e se
deita. Em menos de cinco minutos, está dormindo.
Naquela poltrona de amamentação que rangia e o assustava quando
ele era bebê, e que nos acompanhou em Porto Alegre, ninei meus filhos
durante anos, em especial o Bernardo, o que só confirma que de “mãe-
geladeira” eu não tenho nada. Talvez “mãe-fogão”, afinal de contas, eles
não saiam do meu colo. Posso afirmar, sem medo de errar, que se pequei,
foi por excesso; não por falta.
Naqueles dias, eu entoava basicamente duas canções de ninar. Uma
delas, a preferida deles, eu perdi as contas de quantas vezes eu a cantei,
sobretudo quando eles ficavam gripados, tinham febre ou sentiam dor de
garganta. Aconchegados em meu colo, quase dormindo, ouviam minha
voz:

“Silêncio, ele está dormindo


Vejam como é lindo
Sua majestade, o Bernardo (ou Juju)
A casa já tem novo dono
Novo rei no trono
Sua majestade o Bernardo

138
Parece com o papai
Com a mamãe também
Parece com a vovó
Não parece com ninguém
Ele é ele só
Sua majestade, o Bernardo”

– De novo – dizia o Bi. E eu recomeçava.


Dos três aos seis anos de idade, se eu não o levasse ao banheiro antes
de dormir e durante o meio da noite, ele mijava na cama. A partir dos sete
anos, eu só o levava uma vez, de madrugada, por precaução.
Fui, gradualmente, deixando de me preocupar com o assunto, à
medida que ele, sem eu chamar, se levantava e ia ao banheiro sozinho.
A chupeta, que, quando tinha dois anos, ele só tirava da boca para se
alimentar, foi uma grata surpresa. Quando decidi que já era hora de
abandonar o hábito, ele só estranhou nos primeiros dois dias e, mesmo
assim, não foi um grande sofrimento. Pedia a chupeta de volta; eu
explicava que ele não ia mais usá-la, que já estava grande para isso; ele se
conformava.
O único vício que deu mais trabalho para ser vencido foi a
mamadeira. Mas adotei uma posição mais tolerante em relação a isso.
Deixei que ele tomasse mamadeira – só à noite – até os quatro, cinco anos.

O que você está falando, meu filho?

Bernardo fala sozinho. Essa mania ele não perdeu com o fim do
Autismo. No entanto, esse sintoma tem diminuído ao longo dos anos; ele
fala bem menos agora, com intervalos cada vez maiores entre suas
ocorrências. Admito que sua mania de falar sozinho me assustava; tinha

139
muito medo de que ele sofresse bullying graças a esse comportamento,
sobretudo dos colegas da escola. Isso não me assusta mais.
Conversamos a respeito:
– Não se preocupe, mãe. Eu não falo sozinho na rua. Eu sei que as
pessoas vão achar estranho se eu fizer isso. Só falo sozinho em casa.
– Mas o que você fala nessas horas, meu filho? Sobre o que você fala
quando está sozinho? – pergunto, curiosa.
– Não sei explicar direito.
Eu insisto tanto que ele cede.
– Mãe, eu crio histórias sobre coisas reais que irão acontecer. Nós
vamos ao zoológico agora, certo? (estávamos nos arrumando para passar o
dia no Zôo) Então, eu crio histórias na minha cabeça sobre o que
acontecerá lá, os animais que verei, esse tipo de coisa.
É uma antecipação, penso. Bernardo se prepara para as situações que
irá viver. Ele me tranquiliza; promete que não falará sozinho na rua; ele,
mais do que ninguém, não quer ser vítima de bullying; em casa, no
entanto, essa prática é tolerada.
Se falar sozinho é um sintoma de TOC – Transtorno Obssessivo
Compulsivo – isso eu não posso afirmar, até porque, como afirmei antes,
não é algo que ocorra diariamente. Além disso, é bem compreensível que
um menino que sofreu anos com o autismo apresente, em seu
comportamento, resquícios da doença, excentricidades que não fazem mal
a ninguém, nem mesmo a ele.

Um exemplo de autoestima

Um episódio marcante aconteceu em agosto de 2014. No colégio, as


meninas da classe deveriam escolher seus “príncipes” para uma peça que
seria encenada no final do ano. A peça era um apanhado de vários contos
de fadas, entre eles Cinderela, Branca de Neve, A Bela Adormecida, João
e o Pé de Feijão, Peter Pan, Zorro e A Bela e a Fera. Bernardo sugeriu que
fizessem uma paródia de Peter Pan: o Peter Panda, com a inclusão de um
urso como personagem.

140
Embora Bernardo seja considerado um menino bonito, ninguém o
escolheu ou a seus amigos, tão nerds ou “diferentes” quanto ele. Maria
Júlia, ao saber do ocorrido, temeu pela reação do irmão. Ela tinha medo de
que, por não ter sido escolhido, Bernardo ficasse triste ou deprimido. Ela
imaginou que a autoestima do irmão pudesse ser abalada.
Que nada. A reação de Bernardo, mais uma vez, nos surpreenderia.
Ao comentar a escolha das meninas, disse:
– Maju, as meninas, nesta idade, têm muito mal gosto. Imagina que
ninguém me escolheu. Eu, tão bonito! É, realmente, elas não sabem
escolher – E mudou de assunto.
Maria Júlia achou graça, não esperava essa resposta. Ou seja, para o
Bernardo, essa pequena rejeição não abalou em nada a confiança que ele
tem em si mesmo. O problema era delas, que não sabiam o que era bom, e
não dele.
Sozinhas mais tarde, Júlia me relatou toda a história, ressaltando a
resposta do irmão; achei tudo muito engraçado e mais uma vez senti muito
orgulho do meu filho.
É gratificante comprovar que Bernardo se tornou um adolescente
seguro, consciente de seus pontos fortes e de suas fraquezas. Não é o
outro, felizmente, quem lhe diz quem ele é; o outro não tem o poder de
fazê-lo duvidar de quem ele é; o outro não é capaz de abalar suas
convicções.
Infelizmente, a peça foi cancelada. Com a junção de tantas histórias,
o roteiro ficara inviável. Porém Bernardo encenou outra peça, desta vez
em língua espanhola, chamada Hansel Y Gretel. O seu papel era de pai de
João e Maria.

Em tempo de Copa do Mundo

– Mãe, o Ronaldo Fenômeno é melhor do que o Ronaldinho Gaúcho?


– Sim, meu filho (com Ronaldo ganhamos a Copa de 2002).
– E o Neymar? O Ronaldo é melhor ou pior do que o Neymar?

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– Ah! Isso eu não sei. É diferente apenas.
Bernardo insiste.
– Mas é melhor ou pior? E o Messi?
E por aí vai. Tenho de saber as qualidades de todos os jogadores de
futebol e compará-los.
– O Ronaldo é melhor ou pior do que o Messi?

Meu filho precisa organizar e valorar as informações para se sentir


seguro; os acontecimentos devem ser entendidos em termos de mais ou
menos; melhor ou pior.
Durante os jogos do Brasil na última Copa do Mundo, em julho de
2014, Bernardo ficava agitado, nervoso, e comentava todas as jogadas da
seleção brasileira.
Se nossos jogadores marcavam um gol, ele ficava em êxtase,
profundamente entusiasmado. Gritava, abraçava a mim e a irmã, falava
sobre o lance do gol diversas vezes. Se, contudo, a seleção adversária é
que marcava, ele criticava, sem parar, o ocorrido. Parecia o fim do mundo;
ele ficava com raiva de tudo e de todos.
Muitas vezes, tive de pedir para ele se acalmar, afinal de contas, era
só um jogo, e eu tinha de relembrá-lo disso; os esportes são assim mesmo,
um dia se ganha, no outro se perde. Mas não era fácil. Bernardo levava
qualquer competição muito a sério.
Contudo, nas semifinais da Copa do Mundo, quando fomos goleados
pela Alemanha por 7 a 1, embora triste, foi ele quem consolou a irmã, e
não o contrário, como eu esperava que acontecesse. Assim como milhões
de brasileiros, ela não se conformava com a derrota, muito menos com a
elasticidade do placar, e não parava de chorar.

Outubro de 2014: meu aniversário de 43 anos

No dia 19 de outubro de 2014, fui acordada pelos meus filhos às sete


horas da manhã. Era meu aniversário e, embora domingo, um dos poucos

142
dias em que posso dormir até mais tarde, fiquei emocionada com a
homenagem, que incluía farto café da manhã na cama.
Havia panquecas americanas preparadas pela Maria Júlia, uma xícara
de café com leite, um pote de manteiga para as panquecas, um tablete de
diamante negro e um buquê de pequenas margaridas artificiais.
Além disso, recebi também um enorme cartão de cartolina branca,
feito por eles, e decorado com uma foto antiga de nós três: morávamos
ainda no Leme. Júlia tinha dois anos na época; Bernardo, menos de um
ano. É uma das minhas fotos preferidas. Nela, estamos os três na banheira,
formando um trenzinho. Ela representa a nossa união.

A carta de Bernardo dizia:

“A cada vez que estou perto de você, sinto que minha alma possui paz,
pois você, sendo minha maior felicidade, faz com que eu me esqueça de
todos os conceitos negativos em minha vida. Sempre esteve ao meu lado,

143
sempre me forneceu auxílio nos momentos em que eu mais precisei,
sempre foi a pessoa mais sábia de todas, sempre foi a pessoa mais justa de
todas, sempre foi a pessoa com a beleza mais bem desenvolvida de todas e
sempre foi a melhor mãe do Cosmos. Sei que você nunca deixará de ser
assim. Você é única. Ninguém jamais será como você. O dia em que eu
nasci foi o melhor da minha vida, pois eu pude conhecer a Maju, o meu
pai e você (perceba que o termo anteriormente transcrito está destacado
com o uso de negrito e letras maiúsculas). Você é a melhor coisa a existir
em minha vida. Te amo infinitamente. Feliz Aniversário!” - Bernardo José
Mendina de Souza Martínez.”

Resultado do ano letivo: Bernardo tirou notas excelentes

No primeiro bimestre de 2014, Bernardo não teve sequer uma nota


abaixo de oito. Das onze disciplinas cursadas, obteve duas notas dez, cinco
notas acima de nove e quatro notas acima de oito. Considerando que a
média do colégio é seis, suas notas ficaram bem além do exigido. No
segundo bimestre, ele manteve duas notas dez e praticamente as mesmas
médias, nenhuma abaixo de seis.
O terceiro bimestre trouxe resultados ainda melhores: três notas 10,
sendo uma delas em Redação, prova incontestável de que houve evolução
na forma de ele se expressar, concatenando ideias de forma clara e
objetiva. Isso revela o seu amadurecimento intelectual e afetivo.
No quarto semestre manteve as boas notas do terceiro e passou direto
de ano, sem a ameaça da recuperação, embora ele sempre se preocupe com
isso. É muito responsável e sempre fica inseguro no início do ano letivo.
Questiona-se se está “preparado” para mais um degrau do aprendizado. E
até agora a resposta tem sido afirmativa!
Em 2012, quando foi matriculado no Dínatos Coc, Bernardo tinha
onze anos e estava no sexto ano, equivalente à antiga quinta-série. Se havia
alguma dúvida quanto ao seu rendimento em consequência de ele estar
vindo de uma escola pública, esta foi dissipada assim que chegou o
primeiro boletim. Embora tivesse apresentado dificuldades em Língua

144
Portuguesa, devido, precisamente, à interpretação de textos, esse problema
foi contornado imediatamente.

O dia a dia no colégio

Quando almoça no colégio, Bernardo prefere sentar-se sozinho. Ao


ver a cena, digo:
– Meu filho, cadê o João Felipe (amigo do nono ano cuja mãe é
minha conhecida)? Por que não senta com ele?
– Estou bem aqui, mãe. Ele está com seus amigos.
– Senta com eles. Não precisa dizer nada. Senta lá e vê o que
acontece – insisto.
O diretor-administrativo do colégio nos vê, cumprimenta-me e dirige-
se ao Bernardo:
145
– Como é que você está? Tudo bem?
Eu me percebo respondendo; ele me ignora e diz:
– Bernardo é um ótimo aluno, você sabia?
Digo que sim, e que a irmã também é. Mais uma vez ele ignora minha
resposta, desta vez sobre a Maria Júlia.
– E esse bigode, Bernardo? Está crescendo!
E, com a mão no pescoço de meu filho, faz com que suas cabeças se
aproximem em um leve toque, uma aproximação doce e significativa. A
cena me comove.
Tenho de perder essa mania de falar por ele; sei que não devo fazer
isso, mas, quando me dou conta, já estou falando. Sinto que preciso
protegê-lo, é mais um impulso que não consigo controlar do que um ato
racional. Está mais do que comprovada sua capacidade de se defender
sozinho.
E aí eu me pergunto: o que leva mais tempo para curar? A doença do
filho ou a dos pais? Porque eu adoeci junto; tenho antecipado todo tipo de
agressão que ele pode vir a sofrer no afã de protegê-lo, de evitar esses
males, como se eu pudesse controlá-los.

Um menino surpreendente

No Carnaval de 2015, durante a visita de minha prima Patrícia,


Bernardo nos mostrou mais uma faceta de sua personalidade. Depois de
eles conversarem por mais de quinze minutos em espanhol, Patrícia
comentou:
- Que legal que você sabe falar espanhol! É a língua mais falada do
mundo, não é?
Bernardo, no entanto, a corrigiu:
- Não, espanhol é a segunda língua mais falada. A primeira é o
inglês. Let´s speak english a bit!* (no rodapé: Vamos conversar um pouco
em inglês)
E despejou um arsenal de frases, respondendo corretamente a todas
as perguntas feitas por ela (que é tradutora e foi professora de inglês em
146
vários cursos no país), dando continuidade a um diálogo que durou quase
uma hora.
Não presenciei a conversa deles. Eu estava lendo no quarto quando
minha prima me chamou (com certa urgência na voz) para eu ver o que
estava acontecendo.
- Você sabia que o Bernardo fala inglês? Ela me perguntou.
- Não, que eu saiba ele sabe bem pouco. Teve apenas algumas aulas
no colégio, e isso já faz um tempo. Atualmente ele só estuda espanhol.
- Pois ele está falando fluentemente - disse ela. E reiniciou uma
conversa com ele na minha frente que, para meu completo espanto, não só
entendia tudo que ela dizia, como ainda respondia, apropriadamente, em
inglês. Eu estava boquiaberta.
- Meu filho, onde você aprendeu a falar assim?
- Ah! Mãe, em vários lugares. Jogando videogames, assistindo a
séries americanas na TV, visualizando vídeos no Youtube e,
principalmente, pesquisando sobre Biologia na Internet.
O mais impressionante é que ele conhece muitas expressões
idiomáticas e conjuga os verbos não apenas no presente ou no passado (o
que é mais fácil de se fazer), mas também no Present Perfect, bem mais
complexo.
- I´ve forgotten....*, disse ele. Minha prima e eu nos entreolhamos,
pasmas.
Bernardo dominava até as inversões de palavras e expressões mais
difíceis daquela língua, tais como “Can I? Did I?”, que são empregadas
nas perguntas.
Patricia, em tom de brincadeira, disse:
- Bernardo, estou com medo de você! E ele rebateu na hora:
- Why do I look scary for you?* (no rodapé: por que eu pareço
assustador para você?)
Em outro momento, quando Patricia prendeu a manga da camisa na
maçaneta da porta, ele veio ajudá-la imediatamente. Ela agradeceu,
dizendo: “como a vida, sozinha, faz coisas. Eu não fiz nada para prender a
blusa na maçaneta”.
- Exato, disse Bernardo. Você tem de estar preparada... you have to
be ready*...(no rodapé: você tem de estar preparada...)
- For what life brings you*, ela completou. (no rodapé para o que a
vida lhe traz).

147
Minha prima lingüista ficou impressionada com a competência
idiomática dele, pois o que ele fez (assim como os intérpretes profissionais)
foi uma tradução idiomática, e não literal, o que necessita de mais
abstração. Ele poderia ter traduzido a frase literalmente com a expressão to
be prepared, mas a expressão mais usual é mesmo to be ready, que foi o
que ele fez.
E assim, sem mais nem menos, descubro, em uma tarde de Carnaval,
que meu filho é poliglota. Fala português, espanhol e inglês com
desenvoltura, sendo que este último ele aprimorou por conta própria e sem
estardalhaço. Além de poliglota, é autodidata.
Outro medo que eu tinha era de que Bernardo não tivesse iniciativa
na vida e precisasse sempre de um empurrão para seguir em frente, para
enfrentar novos desafios. Esse medo, assim como tantos outros que
povoavam minha mente, acabou.

Gandhi e Brioche: mais responsabilidade


Meus filhos sempre quiseram ter um cachorrinho. Volta e meia,
apesar das minhas constantes negativas, eles me pediam novamente. A
minha negativa era só pelo fato de morarmos em um apartamento. Apesar
de eles serem muito novos para cuidar de um cachorro, eu não me
importaria de fazê-lo, desde que morássemos em uma casa. Durante toda
minha infância, eu morei em casas.
A primeira foi uma casa térrea na Rua Uçá, na Ilha do Governador,
no Rio. Essa casa, mais tarde, tornou-se um colégio, o nosso colégio. Lá
não tivemos bicho de estimação, mas também eu era muito nova. Vivemos
nesta casa só até meus seis anos.
A casa para a qual nos mudamos tinha três pavimentos, sendo um
deles uma piscina, totalmente gradeada. Foi nessa casa que ganhamos
nosso primeiro cachorro: um boxer. Não por acaso essa é uma das minhas
raças preferidas.
Depois dessa experiência, tínhamos constantemente um bichinho
por perto. Tivemos até coelhinhos e pintinhos. Tivemos uma gata, a
“Chiquinha”, que durou apenas um dia. Nosso portão da garagem era
eletrônico e de subir e descer. No mesmo dia em que a ganhamos, ela

148
desceu junto com o portão para nunca mais. Achei esse lance de ter gatos
muito sem graça! Foi nossa primeira e última experiência com eles.
Veio, então, a “Estrelinha”, uma cachorra vira-lata que recolhemos
da rua, a “Evita Perón”, uma Lhasa Apso cor de mel, que foi roubada por
um dos vizinhos da minha avó materna, em Santana do Livramento, onde
passávamos nossas férias (só soubemos do roubo anos depois; pensamos
que ela tivesse se perdido). Tivemos também a “Beija”, uma poodle
branca, que mostrava clara preferência pela minha irmã do meio, e os
poodles creme “Bella” e seu filho “Clark Gable”.
Com o passar dos anos, percebi que voltar a morar em uma casa
com meus filhos não seria possível nem a curto nem a médio prazo. O
nosso apartamento em Porto Alegre fica no Bom Fim, um bairro que dá
acesso a tudo que precisamos: supermercados, lojas, bancos, padarias,
pontos de ônibus e de táxis, hospitais, shoppings, farmácias. Não
precisávamos de carro para nos locomovermos.
A maioria dos compromissos fora de casa eu fazia a pé. Até o
colégio das crianças era perto. Menos de seis quadras de distância. Por
tudo isso, trocar esse apartamento bem localizado por uma casa em um
bairro distante, precisando de carro para ir a qualquer lugar, não estava nos
meus planos.
Com a mudança para Brasília, fomos morar, mais uma vez, em um
apartamento, o apartamento emprestado da minha tia, na Asa Norte, no
Plano Piloto. Foram dois anos e outra mudança: desta vez para um
apartamento alugado na Asa Sul.
A vantagem do apartamento da Asa Sul era que ficava em frente ao
Dínatos COC e meus filhos só precisavam atravessar a faixa de pedestre
para irem para a escola. Praticidade total! Além disso, era bem mais perto
de meu trabalho no Senado Federal. Também ficamos dois anos nesse
apartamento e nos mudamos novamente. Desta vez, para um apartamento
no Guará. Essa última mudança ocorreu em agosto de 2014.
Quinze dias depois, ainda estávamos nos acostumando com o
apartamento, quando em uma ida à Feira dos Importados vimos vários
filhotes de cães à venda, desde as pequenas raças até as de grande porte.
Sabendo de antemão que eu não iria concordar em comprar um filhote, as
crianças só pediram para vê-los. Nada além disso.

149
Concordei com o pedido e caminhamos lentamente, encantados,
vendo todos os filhotes que estavam sendo expostos. Avistamos, então, um
lindo filhote de boxer. Meus filhos perceberam como eu fiquei comovida
com o cachorrinho e, em um momento de insanidade, perguntei o preço.
Não estava caro. Fiquei dividida. Queria tanto lhes proporcionar essa
alegria, tinha adiado por tanto tempo esse pedido deles!
Em um impulso, comprei o filhote de boxer. Eles ficaram eufóricos
e eu também. Teríamos, finalmente, um cachorrinho. O único
inconveniente é que ele teria de ser buscado no dia seguinte. Tudo bem.
Somente um dia de espera.
À noite, praticamente não dormi. Perdi o sono ao imaginar aquele
filhotinho crescendo em um espaço tão pequeno. Ele cresceria muito.
Comecei a imaginá-lo mijando e cagando em todo o nosso apartamento.
Imaginei também como seria pequeno o espaço para ele se movimentar
livremente.
Boxer é uma raça para grandes espaços, de preferência, uma casa
com gramado. Seria estressante para ele morar tão confinado! E tinha
mais: eu ficava fora a maior parte do dia no trabalho e meus filhos tinham
o colégio. Quem limparia a sujeira do cachorro? Onde ele dormiria? Na
sacada?
Compreendi que tinha cometido um grave erro ao comprar esse
cachorro, mas não sabia como voltar atrás, não sabia como dizer às
crianças que o sonho deles seria, mais uma vez, adiado. Não queria
desapontá-los, mas não havia outra opção. Eu teria de desfazer o negócio.
Foi quando surgiu a idéia de trocar o filhote de boxer por um
cachorro menor. Bem menor. Conversei com o vendedor e só havia à
venda um Lhasa Apso branco, de um mês e meio, pelo qual as crianças e
eu nos apaixonamos no minuto que o vimos. Peguei-o no colo e disse:
- Já é meu.
Maria Júlia e Bernardo exultaram. E como havíamos planejado,
voltamos para casa com dois potes de comida, uma coleira e o Gandhi.
Esse foi o nome escolhido por nós em meio a muitos nomes cogitados. Eu
só estranhei a conversa do vendedor.
Ele ficava repetindo que se o Gandhi tivesse qualquer problema, por
mínimo que fosse, que eu ligasse para ele que o seu veterinário de

150
confiança o atenderia. Ressaltou várias vezes para eu não levar o Gandhi a
outro veterinário ou não haveria garantia para a compra do cachorro.
Insistia também para eu manter a mesma ração que ele estava dando.
Dizia que se eu trocasse de ração, com certeza o Gandhi ficaria doente.
Achei muito estranha essa conversa, mas logo, logo, ela faria sentido.
Foram quatro dias animadíssimos. Todo branco, Gandhi parecia um
coelhinho, saltitava para todos os lados, era agitado, brincalhão, um
encanto. Engraçado como nos apegados tanto a ele em tão pouco tempo.
No quinto dia, de madrugada, ele começou a vomitar. E não parou
mais. Ele se contorcia todo. Não quis esperar. Chamei meus filhos, minha
irmã, que estava de visita em minha casa, e fomos ao plantão veterinário.
Não sem antes ligar para o vendedor. Em vão. Ele não atendeu. Eram
quase três horas da manhã.
Ainda bem que não esperei raiar o dia. No plantão, foi feito exame
de sangue, constatando que Gandhi tinha Parvovirose, uma doença fatal na
maioria das vezes. Aquela conversa fiada de doença fez sentido, afinal.
Ao vender o filhote, ele sabia que o cachorro podia estar
contaminado e, mesmo assim, ele o vendeu para mim. E eu tinha provas
disso: a Parvovirose tem um período de incubação de quase quinze dias e
eu estava com o Gandhi há apenas quatro dias.
Foi apenas durante a conversa com o veterinário que fui informada
de que não se pode comprar filhotes na Feira dos Importados, vez que não
se pode confiar na procedência dos filhotes e nas condições de higiene em
que eles vivem. O preço baixo é resultado dessa falta de cuidado.
Em menos de uma semana, Gandhi morreu. Tive de dar a notícia
para os meus filhos. Assim como eles, eu estava inconsolável. Para minha
surpresa, Bernardo foi quem consolou a Júlia. Eu pensei que seria o
contrário. Muito abalada, Júlia disse que não queria outro cachorro e eu
respeitei sua decisão.
Em junho de 2015, quase um ano depois da morte do Gandhi, ao
passar por um Pet Shop no Sudoeste, vi um filhote de Shi Tzu, de
aproximadamente três meses. Parecia uma bolinha de pêlos marrom. Eu
me apaixonei por ele na hora e pensei que já era tempo de esquecer a
morte do Gandhi e olhar para frente.
Foi uma surpresa para meus filhos. Liguei para a Maria Júlia, que
estava no colégio, e disse que passaria para busca-los. Ao mesmo tempo
151
que queria surpreendê-los, precisava da ajuda deles para carregar o
cachorrinho no carro. Peguei uma casinha emprestada no Pet Shop, mas
ele não parava de latir.
Maria Júlia ficou tão, mas tão surpresa com a novidade que não se
deu conta de que era um cachorro. Pensou que fosse um bicho de pelúcia
ou algo parecido quando o viu.
- Olha o seu Brioche, filha.
Esse foi o nome que ela disse que colocaria se tivesse outro
cachorro. Achei por bem deixa-la escolher o nome desta vez. Na outra,
quem escolheu fui eu. Até brincávamos que o Gandhi morreu cedo pois
era muito “espiritualizado”, que não colocaríamos mais nomes de pessoas
de bem nos animais. Riamos que, para viver bastante, o nome deveria ser
“Hitler, Stalin, Sarney”.
Brioche trouxe mais do que alegria para nossas vidas: ele trouxe
mais responsabilidade e mais amadurecimento para o Bernardo. Embora
ele não seja exclusivamente de ninguém – Maria Júlia, brincando, afirma
que é a “sua mãe” – foi o meu filho quem chamou para si praticamente
todos os cuidados com o Brioche. Sem reclamar ou ficar de má vontade.
Está sempre disposto a alimentá-lo, a brincar com ele, a passear.
Mesmo que isso signifique vários passeios por dia. Nosso cachorrinho é,
disparado, o animal que mais vive na rua. Há dias que passeia mais de seis
vezes!
Os passeios fazem parte da sua rotina diária: Brioche nos acorda às
7 horas da manhã, às vezes até antes, para a primeira volta do dia. Como
não consegue pular em nossas camas, ele fica em pé, nas duas patinhas
traseiras, e late para chamar nossa atenção. Já levei cada susto!
Invariavelmente, quem atende ao seu chamado é o Bernardo.
Mesmo sonolento, em jejum e em férias escolares, ele levanta
prontamente, acaricia o cachorrinho e cumpre o seu dever.
Preocupado com a saúde do Brioche, ele nos impede de alimentá-lo
com qualquer coisa que não a sua ração. E insiste em nos explicar que os
bichos, independente da espécie, não devem ser alimentados com comida
para humanos. E repete, sempre que surge a oportunidade:
- Mãe, não se esqueça de que ele é um cachorro!

152
É muito benéfico para o meu filho que ele tenha essa lucidez, essa
compreensão sobre o mundo animal e a vida. Bernardo respeita
profundamente a natureza e suas leis, e vive em harmonia com tudo que o
cerca.

“Mãe, o que falta para você ser feliz?”

Bernardo espichou nos últimos anos. Está muito alto. Aos dezenove
anos, mede quase 1,80 m. Cabelos castanhos e lisos, com corte parecido
com o dos Beatles, curto e cheio, com um leve repicado, sua aparência e
seu jeito de vestir é de “argentino”, herança paterna, sem dúvida; seu
sorriso é cativante, as covinhas chamam atenção; assim como os olhos:
grandes, expressivos e castanhos claros.
Adora ler livros de piadas e assistir às “Videocassetadas” do
Domingão do Faustão. Dá gargalhadas com as trapalhadas. Contagia a
todos com seu jeito calmo e seu bom humor. O que eu mais temia – que
Bernardo fosse um menino infeliz, alheio a tudo e a todos e
completamente dependente de mim e de outras pessoas para viver – não
aconteceu.
Ele é um rapaz normal, com preocupações típicas da idade – estudos,
meninas, faculdade, esportes. Mudou tanto desde o início do tratamento
que é até difícil acreditar que um dia ele teve Autismo. Conversa sobre
todos os assuntos, embora relute para falar sobre sexo comigo – ainda não
teve namorada –, o que é bem compreensível. Falta um referencial paterno,
alguém que possa “deambular nesse mundo masculino”.
De resto, se antes ele não comia praticamente nada, hoje é o oposto:
uma de suas comidas preferidas é a culinária japonesa. Também gosta de
comida árabe, italiana, mexicana e brasileira (até de Tacacá e Acarajé ele
gosta). Come muitas frutas e verduras, e experimenta tudo que eu lhe
ofereço. Enfim, não guarda nenhum traço da infância, quando só comia
arroz, feijão, nuggets e achocolatado.

153
No final de 2014, fomos a um rodízio em um restaurante mexicano na
Asa Sul, bem perto de nossa casa, e Bernardo, além de fazer questão de
usar o sombrero, falava só em espanhol com a atendente, que ficou
encantada com sua desenvoltura e simpatia.
Participativo em casa e na rua, Bernardo se oferece para ajudar nas
tarefas domésticas; lava a louça (diz que nem Maria Júlia nem eu lavamos
direito), arruma as camas (sob nossos protestos), me pergunta de que
forma poderia me ajudar mais. Quando não está estudando, pega um livro
e deita ao meu lado na minha cama para lermos juntos.
Sabe fazer chimarrão (tomamos todos os dias, mesmo no verão, sem
ar condicionado e com a temperatura acima dos 30 graus) e café, aprendeu
a cozinhar com a irmã e faz um macarrão delicioso. Seu café coado é
imbatível, assim como seu ovo frito.
Criamos o hábito de, à tardinha, caminharmos mais de uma hora pelo
bairro, admirando a vegetação (o Cerrado tem uma beleza singular),
comentando a arquitetura das residências, as que gostamos mais, as que
gostamos menos, o que poderia ser mudado aqui, ali, o que seria mantido
se a casa fosse nossa, o estilo de que mais gostamos (rústico, com certeza),
e aproveitamos para abordarmos assuntos que não surgiriam se
estivéssemos em casa, assistindo televisão juntos ou cada um cuidando de
seus afazeres.
Companheiro incansável, ele me acompanha nos serviços da rua sem
reclamar; vamos ao banco, ao supermercado, às lojas, às livrarias. Não me
pede nada de presente; aceita livros e histórias em quadrinhos, mas só se
não forem muito caros; preocupa-se com meus gastos e procura
economizar no que pode.
Exagera na economia, diz que vai vender seus brinquedos para me
ajudar. Fico comovida, mas digo que não precisa. Tudo vai melhorar. É
apenas uma fase. Criar dois filhos não é fácil não! A recompensa é vê-los
tão felizes e independentes, responsáveis por suas vidas, na medida de suas
e minhas possibilidades.
- Mãe, estou dando muito trabalho? pergunta, apreensivo. Eu não
quero lhe atrapalhar. Quero facilitar sua vida, acrescenta.
Eu digo que não, que ele não me dá o menor trabalho, mas faço a
ressalva de que não seria nada de mais se ele me desse trabalho, eu o
amaria do mesmo jeito, afinal de contas, ele é meu filho, e isso faz parte.

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Questionador, Bernardo me pergunta: “Mãe, o que falta na sua vida para
você ser feliz?”
O que falta para eu ser feliz? Não sei. Deixe-me pensar. A cura do
Bernardo era um sonho que se tornou realidade, uma aposta bem-sucedida;
era o meu desejo quando assoprava as velinhas de bolo de aniversário, era
a minha reza diária na hora de dormir.
O que falta para eu ser feliz? Não sei. E reflito longos minutos
procurando uma resposta. O que eu mais queria aconteceu, mas sempre
falta alguma coisa. Ninguém é completamente feliz. Não o tempo todo.
Talvez a única fase que mais se aproxime da felicidade plena seja a
infância, quando acreditamos que nossos pais são imortais, que têm
poderes de super-heróis e que estamos protegidos de todos os infortúnios.
A maturidade, para mim, é aquele instante em que você compreende
que, apesar da felicidade ser efêmera, é possível ser otimista e ter
esperança no futuro, mesmo vivenciando situações desesperadoras.
Não posso reclamar do presente. Aqui em Brasília, Bernardo e Maria
Júlia desabrocharam. Em Porto Alegre, eram estudiosos e bons alunos,
mas foi aqui na capital do país que vieram os prêmios e o reconhecimento
pelo esforço diário.
No primeiro ano na cidade, Maria Júlia tirou o sexto lugar em redação
em um concurso das escolas públicas do Governo do Distrito Federal
(GDF) e recebeu menção honrosa nas Olimpíadas de Matemática
(OBMEP).
Bernardo se espelhou na irmã e, sentindo dificuldades em
matemática, especificamente nas contas de multiplicação, pediu ajuda a
ela; desde então, tem tirado excelentes notas nas provas desta disciplina.
Talvez mais um ciclo tenha se encerrado; talvez seja hora de voltar
para Porto Alegre, voltar para minha família (muitos dos nossos parentes
moram no Rio Grande do Sul), para meus amigos, para meu lar. Ou talvez
seja melhor esperar o Bernardo terminar a faculdade de Biologia.
Sinto falta do Hector, mas essa falta eu carregarei comigo para onde
eu for. O tempo amenizou a dor, mas não deu fim a ela. Embora ele tenha
falecido há quinze anos – maio de 2004 – ele vive nos meus sonhos, nas
minhas orações, nas minhas lembranças. E são essas memórias felizes que
meus filhos e eu cultivamos. Sei que ele teria vibrado muito com todas as

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superações e conquistas do Bernardo e seu apoio nos fez falta em vários
momentos.
Caminhamos de mãos dadas, Bernardo e eu, admirando o amplo céu
azul de Brasília, ouvindo o canto dos pássaros (a cidade é um mini-zôo
sem grades, com quero-queros, carcarás, pica-paus, corujas nos rodeando)
e pergunto:
– Meu filho, você é feliz?
– Muito, mãe, sou muito feliz, diz ele, e me dá um beijo no rosto.
E, então, tudo, tudo se justifica.

“Ainda que eu falasse a língua dos homens, e falasse a língua dos


anjos, sem amor eu nada seria”. (Renato Russo)

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