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Luciana Mendina
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Agradeço ao Dr. Alfredo Jerusalinsky e à Eda Tavares pelo incansável
comprometimento com o tratamento do meu filho. Agradeço às minhas
irmãs Maria Amanda e Maria Pia, à comadre Aline Tavares e à
Camila Puhl por terem me ajudado a cuidar dos meus filhos como se
fossem delas. Agradeço também a Emily Christmann por ter sido um
porto seguro nesta quarentena.
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Dedico este livro aos meus
filhos Bernardo e Maria Júlia
e ao meu marido Héctor, com
quem construí uma base sólida
de amor e confiança
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“Se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação
(duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida” (Carlos
Drummond de Andrade)
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INTRODUÇÃO
I- O AUTISMO
A importância do diagnóstico precoce
Maior incidência em meninos
Mas o que é o autismo, afinal?
Epidemia de autistas?
II- A VIDA
2000: o nascimento do Bernardo
O parto do meu filho
Duas crianças, dois diários
Um casamento feliz
III- BERNARDO
A primeira noite do Bernardo
Um bebê especial
O primeiro aniversário
V- O DIAGNÓSTICO
A viagem para Porto Alegre
Avaliação no Centro Lydia Coriat
O diagnóstico do autismo
VI- O TRATAMENTO
O início do tratamento
Mudança do RJ para POA
A primeira residência em POA
Desfazendo mitos
Uma criança normal
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VII- CONTRATEMPOS FAMILIARES
Outra doença em nossas vidas
A morte da minha mãe
Meu aniversário de 32 anos
Fazendo o luto pela morte do meu marido
Meu pai, o amigo de sempre
Sem noção do perigo
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2008: primeira série, um marco para sua cura
Correndo de um lado para o outro
Fantasia vs. realidade – mais um obstáculo a ser vencido
Diferenciação entre o simbólico e o imaginário
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Um presente para minha mãe
Cristovam Buarque
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Mendina nos oferece uma Memória Pessoal onde o grande
personagem é o Bernardo, mas onde, com naturalidade, aflora a
gigantesca figura da própria autora como heroína. Porque ela
escreve na primeira pessoa, como memória, mas passa a sensação de
que um outro observador estaria descrevendo sua vida.
É um livro que nos faz bem. É uma história de amor e de
superação. E deve ser lido desta forma, mergulhando nos
sentimentos da autora, no seu dia a dia, na sua luta. É um livro
que passa razões para o otimismo ao descrever com tanta
naturalidade a passagem das dificuldades para cuidar de um
autista até a improvável cura que ao final acontece. A pergunta no
título ajuda a manter um clima de suspense que só é resolvido no
final quando conhecemos o novo Bernardo, conectado, educado,
criativo, amoroso.
Todos têm razões para ler este livro, que eu espero tenha
milhões de leitores com os quais eu gostaria de dividir os risos e as
lágrimas, as tristezas e as alegrias, os pêsames e as congratulações,
o pessimismo e o otimismo que suas páginas nos passam. É um livro
que seria grandioso, mesmo se fosse ficção, e ainda maior e melhor
sendo Memória, quase um diário literário de rara qualidade, de uma
mãe e seu filho.
Ele deve ser lido especialmente por aqueles que têm filhos
autistas ou com outras síndromes de distúrbios que os colocam fora
da curva da normalidade; também pelos profissionais que lidam
com estes problemas, babás, médicos, terapeutas em geral e pela
sociedade; para quebrar preconceitos, aumentar solidariedade,
mostrar respeito devido a estes filhos que surgem substituindo os
filhos idealizados, crianças diferentes da média que merecem ainda
mais amor. Também pelos irmãos dos idealizados mortos e de seus
substitutos, como eu em relação ao meu irmão Guilherme que viveu
até 67 anos, no ano passado, sem o menor conhecimento do que lhe
acontecia ao redor, nem de quem estava ao seu lado.
Eu gostaria de ter lido este livro anos atrás, como um pequeno
manual de otimismo de como cuidar de autista e leva-lo à cura, ao
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espaço da normalidade, sempre relativa em cada um de nós. E
gostaria muito de poder dar este livro de presente a minha mãe, D.
Bibi, que viveu dos 27 aos 74 anos cuidando de um Bernardo que
morreu com 67 anos sem voltar ao mundo dos idealizados.
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INTRODUÇÃO –
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adequado em tempo hábil, o que resultará em altas taxas de cura ou, no
mínimo, em maiores taxas de recuperação do que as atuais.
Aprovado por duas comissões do Senado Federal, este projeto de lei
foi renumerado na Câmara dos Deputados para PL 5501/13 e aprovado por
unanimidade em Plenário no dia 29 de março de 2017, com relatoria oral
do Deputado Delegado Francischini, cujo filho Bernardo, de seis anos,
também é autista. Tornou-se, então, a Lei 13.438/17, conhecida como a
Lei do Diagnóstico Precoce.
Esta lei representa uma conquista para milhões de crianças
brasileiras, especialmente para mais de dois milhões de autistas (estimativa
de quantos autistas temos no país. Não temos ainda os números exatos,
infelizmente), e prevê que o protocolo adotado pelo Ministério da Saúde
avalie, sistematicamente, o desenvolvimento mental (mas não apenas este)
do bebê, definindo sua identidade e suas formas de relação com as pessoas
que o rodeiam.
É essencial destacar que são essas primeiras relações que moldarão o
sistema de significações que ele colocará em jogo à medida que for
entrando em contato mais amplo com o mundo. Por fim, é importante
mencionar que esse projeto é mais uma conquista para a prevenção
precoce das doenças mentais e coloca o Brasil na vanguarda dos países que
levam a sério a saúde mental da população.
Quero reforçar, mais uma vez, que a rapidez no diagnóstico e no
início do tratamento pode fazer toda a diferença para a obtenção da cura ou
da remissão da maioria dos sintomas. Depois de concluído o diagnóstico
de autismo leve do Bernardo por uma equipe multidisciplinar, comandada
pelo Dr. Alfredo, levamos menos de um mês para nos mudarmos do Rio
de Janeiro para Porto Alegre, a fim de iniciarmos o tratamento. Não havia
tempo a perder!
A partir daí, os progressos começaram a surgir. Não da forma
crescente e contínua como eu esperava. Houve altos e baixos, e o sucesso
do tratamento não era uma certeza até então. Foram necessários mais de
três anos de intensivo tratamento para que as pequenas mudanças no
comportamento do Bernardo se tornassem definitivas e impulsoras de um
novo jeito de “interpretar” o mundo, com mais participação social e menos
isolamento.
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Até os cinco anos, Bernardo não falava e não desenhava; nem sequer
fazia garatujos, que são aqueles rabiscos gráficos sobre uma superfície
plana que expressam um estado de ânimo sem definir uma figura. A partir
dos seis anos, houve uma mudança radical, com a aquisição da linguagem
e da escrita. Tão radical que aos nove anos (apenas três anos depois de
começar a falar), ele cursava o segundo ano do ensino fundamental de um
colégio público da capital, comunicava-se com as outras crianças da sua
faixa etária – apesar de ter poucos amigos – falava sem qualquer
dificuldade ou limitação, brincava diariamente com a irmã (o
relacionamento deles é tão próximo que ela se tornou seu mais forte ponto
de referência) e com a sua família.
O fim do tratamento ocorreu em fevereiro de 2009, e as consultas de
acompanhamento foram dispensadas. A alta do meu filho foi um dos
momentos mais importantes de nossas vidas e levamos um bom tempo
para nos adaptarmos a esta novidade.
Embora atualmente Bernardo esteja interagindo normalmente com
todos a sua volta, não descarto que, em breve, ele precise ter novas sessões
de psicanálise. Ele já teve algumas sessões com a Dra. Inês Catão em
2016. A idéia partiu dele mesmo. Na fase da puberdade, com 15 anos,
surgiram novos questionamentos e novas inseguranças.
Mais uma vez estive ao seu lado para enfrentarmos esse novo desafio.
Mas foi uma nova história, particularmente porque, nessa oportunidade, o
motivo das consultas não foi, certamente, o autismo.
O mais importante é que este livro surgiu da necessidade de alertar os
pais para a verdadeira face do autismo: um transtorno mental e emocional
que tende a se agravar e a se tornar crônico se não houver atendimento
adequado no início de sua manifestação: é um transtorno que pode, lenta e
constantemente, minar as forças de quem o combate, e levar não somente o
autista ao isolamento, mas também seus pais e todos que o cercam.
Muitos pais não conseguem lidar com toda essa pressão e se
divorciam, culpando (conscientemente ou não) o parceiro pelo inferno que
suas vidas se tornaram. Com tanta dor em jogo, é inevitável procurar
culpados. Mas essa tentativa de imputar a culpa a alguém não leva a lugar
nenhum. Talvez este seja um dos primeiros deveres de casa dos pais:
aprenderem a não se culpar pela condição do filho.
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Para compartilhar minha experiência com Bernardo, comecei a
escrever este livro em 2012, mas não tive pressa para terminá-lo. A
primeira edição foi publicada no final de 2015, quando Be tinha 15 anos.
Apresento agora a vocês a 2ª edição do livro – ampliada e revisada. A
demora na publicação da primeira edição foi imprescindível para o
amadurecimento da história e para a entrada na adolescência, algo que eu
muito temia, mas que tem sido bem positivo (e divertido) até aqui.
Depois de escrever algumas páginas, dei-me conta de que precisava
perguntar a meu filho se ele não se importava de eu tornar pública sua luta
para vencer o autismo. De bate e pronto, ele respondeu:
- Eba! Vou ficar famoso!
Pois é. Ele é assim. Vê o lado positivo de tudo que lhe acontece. Foi
gratificante ouvir isso. Não poderia haver melhor reação. Não sei se ele
ficará famoso, mas tenho certeza de que tudo o que ele passou servirá de
estímulo para pais de crianças autistas que precisam ter esperança para
seguir adiante.
A verdade é que o autismo cansa, desanima. É um transtorno que
avança, recua, confunde. Mas ele só não pode ser maior ou mais forte do
que a determinação dos pais de persistir no tratamento que, até agora, é
fundamentalmente clínico.
Apesar das inúmeras dificuldades encontradas ao longo dos anos, não
podemos desistir de nossos filhos. Não podemos deixar que o autismo
destrua nossas esperanças de cura. Nunca desisti de meu filho. Mudei de
estado, mudei de padrão de vida, mudei meus objetivos pessoais, perdi
algumas pessoas queridas no caminho.
Uma das certezas que adquiri com o tempo foi a de que faria tudo de
novo se fosse preciso. Depois de tantas lágrimas e sorrisos, hoje eu sei que
o autismo – em muitos casos - pode ter cura.
Prestes a completar 19 anos em 28 de julho, Bernardo cursou colégio
particular e regular em Brasília, para onde nos mudamos depois do término
do tratamento psicanalítico.
Lê e escreve com facilidade (suas redações são tão boas que são lidas
em voz alta em sala de aula) e desenha histórias de aventura.
Passou para Ciências Biológicas na UnB no final de 2018 sem cotas.
Ele me disse: “Mãe, não quero entrar por cotas. Sou igual a todo mundo.
Vou estudar e passar!” Sua irmã e eu ficamos orgulhosas.
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Em 2011, perguntado sobre o que pretendia ser quando crescesse, ele
disse que queria ser “cartunista”. Em outras ocasiões nos comunicou que
poderia tornar-se paleontólogo. “Quero estudar os ossos dos dinossauros”,
afirmava.
Com notas altíssimas em Ciências e apaixonado por dinossauros e
biologia em geral, Bernardo optou por Biologia. Quer fazer Licenciatura e
Bacharelado.
Ganhou várias vezes prêmio de aluno destaque no colégio por suas
notas e comportamento. Concluída a faculdade, pensa em prestar concurso
público e se tornar perito da Polícia Federal.
I – O AUTISMO
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recomendável a continuidade deste com controle neuropediátrico
periódico e, em função da presença dos transtornos específicos de
linguagem mencionados, a possível indicação de estudos complementares
na área auditiva com futura prescrição – no momento da evolução
subjetiva que o assinale como oportuno – de terapêutica específica de
linguagem”. Assim dizia a avaliação dos primeiros seis meses de
tratamento do meu filho.
Para a maioria dos médicos, o autismo é incurável em todos os casos,
desde os mais leves até os mais severos. Para eles não há exceção. Isso não
é verdade. O meu filho, assim como muitas outras crianças que foram
diagnosticadas com autismo, está curado.
Só que esses médicos que não admitem a cura do autismo são tão
deterministas que se eu digo e demonstro que meu filho está curado eles
passam a argumentar que é porque ele não era autista já que, se fosse
autista, não estaria curado (sic); e o curioso é que isso acontece embora
sejam eles mesmos os responsáveis pelo diagnóstico de autismo.
E como eles não podem negar sua cura (está estampada no seu rosto e
no seu comportamento a falta de sintomas do autismo), só resta a eles
dizerem que meu filho não era autista, que o diagnóstico estava errado
(mas foram eles que fizeram o diagnóstico!).
Para evitar tais equívocos, transcrevo abaixo um segundo diagnóstico,
confirmando o diagnóstico de autismo do Dr. Alfredo, psicanalista. Foi
feito pelo neuropediatra Dr. Rudimar Riesgo. Foram realizadas duas
consultas com Bernardo: a primeira em 26 de julho e a segunda em 30 de
julho, ambas em 2002:
“Revisei hoje o Bernardo José Mendina de Souza Martínez, agora
com dois anos, com um quadro comportamental que tem traços dentro do
espectro do Autismo Infantil, que no seu caso parece ser leve e estar, na
realidade, como um PDD-NOS (Pervasive Development Disorders, Not
Otherwise Specified). A primeira consulta foi em 26/07/2002. Do ponto de
vista neuropediátrico, tem um repertório restrito de interesses, não
mantém o olho no olho, não tolera o manuseio durante os exames, tem
sérias dificuldades na linguagem (em especial a expressiva). Seu EEG tem
ritmos de base bem organizados e maduros para a idade, com raros
paroxismos na região frontal esquerda. O plano é usar Depakene 3-3
ml/dia (25 mg/kg/dia), baseado na clínica e no EEG. Poderia ser
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considerada a possibilidade de Risperidona, conforme a evolução. Se
beneficiaria com atendimento psicoterápico junto com neuropediátrico. À
disposição, caso necessário discutir”.
A maior dificuldade, a meu ver, para estes médicos céticos, é não
saberem mais como classificar, rotular o meu filho. Se ele não é autista, o
que é, afinal?
Ele é uma criança com algumas excentricidades - resquícios de um
autismo bem tratado e curado – com forte potencial para o
desenvolvimento de certas habilidades, e alguns pontos fracos, que
demandam mais atenção, cuidado e apoio.
O fundamental para a cura do autismo ou remissão quase total dos
sintomas é que o diagnóstico seja feito antes dos três anos de idade. Nesses
três primeiros anos de vida, o Sistema Nervoso Central (embora eu seja
leiga, hoje em dia essas informações são de domínio público) experimenta
um processo de maturação que combina de um modo plástico as condições
genéticas constitucionais com a estimulação e organização proposta pelo
meio ambiente tanto físico quanto social. Isso significa que completa,
desenha e articula sua rede de conexões (sinapses) para funcionar o mais
de acordo possível com o modelo familiar, social e cultural que lhe seja
proposto.
Em nenhuma outra época da vida nosso cérebro é tão plástico como
nesse período inicial. Portanto, se nosso filho vier a nascer com
predisposições adaptativas desfavoráveis, esses primeiros três anos
constituem o melhor momento para se tentar resolver suas dificuldades.
Clínicos confirmam que é desse modo que se obtêm os melhores
resultados terapêuticos.
Encaminhar as crianças nesse devido tempo torna necessária uma
detecção precoce; requer-se, para isso, instrumentos e profissionais
especialmente preparados e dirigidos a diferenciar os modos de
funcionamento mental que caracterizam e anunciam precocemente os
riscos de se configurarem graves perturbações nas estruturas psíquicas e
emocionais, já que essas perturbações são capazes de transtornar o
conjunto das funções do desenvolvimento.
Não é somente saber que a motricidade funciona bem, que a criança é
inteligente, que vê e escuta adequadamente, que sua cabeça e seu corpo
crescem de acordo com as tabelas, mas trata-se também de saber como ela
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se relaciona com seus cuidadores e semelhantes, quais seus sentimentos,
como ela entende, acolhe ou rejeita as significações afetivas e a
compreensão que tem ou não das situações familiares, sociais e culturais
das quais participa ou nas quais é incluída.
Se não houver uma abordagem na criança com risco de apresentar
autismo antes que esta complete três anos, teremos desperdiçado o melhor
momento para tentar sua recuperação.
Cinco anos depois do diagnóstico do Dr. Rudimar, em 16 de julho de
2007, Dr. Alfredo fez um novo laudo sobre a evolução do Bernardo. O
diagnóstico inicial havia sido Autismo Infantil (CID 10: F 84.0). O novo
diagnóstico apontava para sintomas leves residuais do quadro autista
inicial: vacilações episódicas na identificação egoica. Embora seu
discurso seja atualmente configurado de um modo gramatical correto e
com sentido pertinente à situação, eventualmente entremeia pequenas
frases feitas – sintagmas – para preencher lugares na linguagem que lhe
aparecem com dúvidas de sentido. Neste ponto, assemelha-se a uma
criança que desenvolveu sua língua num ambiente bilíngue (característica
que se encontra frequentemente nas configurações psíquicas pós-
autísticas). Sua inteligência é completamente normal e ele se encontra em
perfeitas condições de processamento de suas aprendizagens. Recomenda-
se a continuação de seu tratamento psicoterapêutico (psicanalítico) para a
resolução desses sintomas residuais, na medida em que eles, se bem não
atrapalham sua subjetividade nem sua afetividade, podem gerar
transtornos futuros na sua interação social.
Também de acordo com o novo diagnóstico, o histórico do meu filho
- quando da realização do primeiro diagnóstico, aos dois anos de idade -
indicava que Bernardo deambulava intensa e constantemente, se escondia
embaixo dos móveis, parecia não escutar nada do que se falava e também
parecia não registrar os ruídos que se produziam a seu redor (salvo raras
exceções que colocavam em dúvida a qualidade de sua audição).
Segundo anotações do Dr. Alfredo, quando eu insistia em obter
alguma resposta do Bernardo, ele batia em mim com raiva e logo depois se
isolava; era atraído especialmente pelos objetos que giravam e recusava-se
a olhar para o rosto de seus semelhantes.
Suas demandas eram muito escassas e seletivas: exigia sua chupeta
energicamente, pedia água (“aua”), às vezes pedia para eu olhar para ele
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(“ma”) e solicitava o meu colo de modo birrento na hora em que devia
caminhar para deixar o consultório.
Bernardo mostrava desagrado e rejeição ao contato humano. Falava
apenas duas palavras: mama e aua. Apresentava um riso estereotipado e
sem motivo. Imitava os movimentos dos personagens dos desenhos
animados televisivos parecendo se ligar intensamente a eles.
Por momentos, era afetuoso embora com predomínio absoluto de sua
atitude abstraída. Não apresentava balanceio (rocking) – que é o balançar-
se de trás para frente, ou seja, em sentido vertical - nem o flapping, que é
balançar os braços rapidamente, normalmente na altura dos ombros;
Bernardo se concentrava nas luzes intensas, mas de modo brando
(conseguia sair desse fascínio atraído por outra coisa).
Meu filho, também de acordo com o relatório, não se interessava por
bonecos; manuseava indistintamente brinquedos ou objetos circundantes
sem reconhecer restrições, apesar de reconhecer a lógica mecânica das
coisas.
Não controlava esfíncteres nem de dia nem de noite. De um modo
geral, não estabelecia comunicação com as pessoas (salvo comigo e com o
pai, mas também conosco de modo débil). Mostrava-se desconfiado e
arredio, mantendo um controle oblíquo do que acontecia a seu redor.
Acrescento, por minha conta, a relação que tinha com a irmã, desde
sempre. Ela foi essencial para a cura do irmão.
Em fevereiro de 2004, dois anos depois do início do tratamento,
Bernardo foi submetido a um exame no Hospital de Clínicas de Porto
Alegre para a detecção de expansões CGG para síndrome do X-frágil. Era
preciso descartar também essa possibilidade.1
1
Segunda causa herdada mais comum de retardo mental, a Síndrome do X-Frágil
consiste em uma doença genética causada pela mutação do gene FMR1 no cromossomo
X, uma mutação encontrada em um a cada dois mil homens e um a cada quatro mil
mulheres.
Uma vez que os homens só têm uma cópia do cromossoma X (salvo exceções
patológicas), aqueles que têm uma expansão significativa de um trinucleotídeo são
sintomáticos, enquanto que as mulheres, tendo herdado dois cromossomas X, dobram
assim as hipóteses de um alelo funcionar. As mulheres portadoras de um cromossoma X
com um gene FMR1 expandido podem ter alguns sinais e sintomas da doença, ou serem
completamente normais.
Fora o atraso mental, outras características proeminentes da síndrome do X-Frágil
incluem uma face alongada, orelhas grandes ou salientes, testículos de grandes
dimensões (macroorquidia), e baixo tónus muscular. Comportamentalmente, podem
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O resultado do exame do Bernardo deu negativo. Foi um alívio!
Bernardo não tinha a síndrome do X-Frágil nem qualquer tipo de retardo.
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O resultado mostrou que as meninas diagnosticadas com alguma
disfunção do desenvolvimento neurológico ou transtorno do espectro
autista tiveram um número muito maior de mutações, o que demonstra que
o cérebro feminino requer alterações mais extremas que o masculino para
produzir os sintomas.
Para o psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São
Paulo (USP), Guilherme Polanczyk, é cedo para conclusões. Ele concorda
que existe sim uma questão de gênero neste assunto. “Sem dúvida há uma
questão de sexo nisto. O próprio autismo e o TDAH - transtorno do déficit
de atenção com hiperatividade- são mais comuns em meninos. Mas, após a
puberdade, distúrbios de ansiedade e depressão ficam mais comuns em
mulheres. Acho que temos um caminho aí que pode nos levar a boas
descobertas”, disse.
Polanczyk afirmou, no entanto, que embora os dados mostrem que as
meninas precisavam apresentar mais mutações para manifestarem os
sintomas dos distúrbios, o “modelo protetor” é ainda apenas uma
especulação. “Acho a explicação plausível, mas ainda é preciso fazer mais
replicações deste tipo de estudo para ter certeza”, esclareceu o psiquiatra.
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confiabilidade. Em uma espécie de “confissão” da pobreza conceitual de tal
metodologia diagnóstica – que impede atribuir uma condição específica a
cada tipo de autismo – costuma-se adotar, junto ao diagnóstico assim
proferido, a expressão SOE (Sem Outra Especificação).
O TEA (transtorno de espectro autista), porém, permite que o
transtorno seja graduado desde o autismo mais leve até o mais severo, cuja
cura, neste último caso, é muito difícil de ser obtida. Nos últimos vinte
anos, os critérios de inclusão de crianças dentro da categoria de autismo
diversificaram-se e ampliaram-se, causando uma espécie de epidemia
artificial, já que os critérios do TEA abrangem desde as manifestações
patológicas mais graves (autistas completamente desligados de seu entorno
e governados por automatismos e autoagressões incontroláveis) até
crianças neuróticas normais (que recusam o contato com seus semelhantes
e são irritáveis e agitadas, ou meramente crianças fóbicas).
Segundo a Austism Society of America (ASA), os autistas apresentam
pelo menos metade das características a seguir:
1. Dificuldade de relacionamento com outras pessoas; 2. Pouco ou
nenhum contato visual; 3. Rotação de objetos; 4. Riso
inapropriado; 5. Aparente insensibilidade à dor; 6. Preferência pela
solidão; modos arredios; 7. Ecolalia; 8. Age como se estivesse
surdo; 9. Inapropriada fixação em objetos; 10. Acessos de raiva;
11. Não faz referência social; 12. Desorganização social; 13.
Irregular habilidade motora; 14. Dificuldade em expressar
necessidades; 15. Procedimento com poses bizarras; 16. Não tem
real medo do perigo; 17. Perceptível hiperatividade ou extrema
inatividade; 18. Ausência de resposta aos métodos normais de
ensino; 19. Insistência em repetição desnecessária de assuntos,
resistência à mudança de rotina; 20. Recusa colos ou afagos.
Destes sintomas, os mais perceptíveis no Bernardo eram a dificuldade
de relacionamento com outras pessoas que não eu, o pai e a irmã (em
alguns momentos, relacionava-se com minhas irmãs, meus tios e minhas
primas); pouco ou nenhum contato visual (só olhava nos meus olhos, e de
forma fixa, sem manter qualquer contato visual com mais alguém); e o
isolamento (preferia ficar no canto do quarto ou na sala de televisão,
afastado das pessoas).
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Comumente, Bernardo ficava em um canto na sala de televisão,
segurando e rodando lápis e canetas, o que configurava a rotação de
objetos; a ecolalia também era muito frequente: imitava sons, repetia frases
de desenhos animados e de propagandas na televisão (isso quando começou
a falar, o que demorou a acontecer); resistia à mudança de rotina,
preferindo ir aos mesmos lugares, comer as mesmas comidas e ficar em
casa em vez de sair.
Não queria dormir fora de casa de jeito nenhum, mesmo que a irmã e
eu estivéssemos com ele. No final do dia queria voltar para casa. Era muito
apegado às rotinas. Nesse sentido, houve notável melhora, mas ele continua
apegado às rotinas, só não mais a ponto de prejudicá-lo. Há mais
flexibilidade e ponderação.
Até os quatro anos, ele ria de forma estereotipada e sem nenhum
motivo aparente. De repente, soltava gargalhadas mecânicas: “ha ha ha”.
Nenhum fato engraçado. Nada justificava a risada. Era um riso fora de
lugar. Como todo o resto.
Dos sintomas listados acima, Bernardo não apresenta mais nenhum
deles, embora tenha um comportamento considerado “excêntrico” em
algumas situações; até essa excentricidade vem decrescendo ao longo dos
anos.
Era de se esperar que alguns resquícios do autismo permanecessem e,
só com o tempo, fossem completamente revertidos. O que posso garantir é
que autista meu filho não é mais. Pode ser considerado excêntrico,
diferente, raro, mas não autista. E isso, repito, incomoda os médicos que
não sabem mais como “classificá-lo”.
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Epidemia de autistas?
II – A VIDA
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Nada mudou na minha rotina diária. Embora Bernardo não tenha sido
planejado como a irmã, a notícia da gravidez foi muito bem recebida e
comemorada. Meu marido Hector e eu ficamos muito felizes. Maria Júlia
estava com apenas oito meses, mas eu não senti qualquer receio de
cuidar de duas crianças.
Pelo contrário. Queria mesmo que os irmãos tivessem idades
próximas, que fossem companheiros e grandes amigos. Tenho duas irmãs
mais novas e sei da importância dessa relação afetiva. Ter irmãos é uma
experiência única, que nenhuma amizade consegue substituir.
Assim que fiz o exame de gravidez (de farmácia) em casa e deu
positivo, parei de fumar. Nunca mais botei um cigarro na boca. Jamais
me perdoaria se o meu filho tivesse algum problema de saúde – em
especial respiratório - por minha causa.
Não senti falta do cigarro. Já tinha parado de fumar na gestação da
Maria Júlia e, infelizmente, em uma recaída depois do seu nascimento,
voltei a fumar. Agora era para valer. Eu me conscientizei de que não
deveria voltar a fumar nunca mais – promessa que cumpro até hoje.
Além de uma gravidez tranqüila, o dia do parto foi como outro dia
qualquer. Até a hora da minha consulta quinzenal com o ginecologista no
dia 28 de julho à tarde, nem cólicas eu sentia. Fui à consulta, na qual foi
constatado que já estava com seis dedos de dilatação, e de lá fui
encaminhada para a Casa de Saúde São José, no Humaitá, bairro do Rio
de Janeiro.
Mas, apesar da “boa dilatação”, o médico avisou que não havia
pressa. Eu tinha três horas para chegar ao hospital. Eu ainda tinha algum
tempo para ir a casa, pegar a minha mala e a do bebê. Minha família
estava reunida. Minhas irmãs estavam passando alguns dias na minha casa
para o nascimento do Bernardo. Fomos juntas para o hospital.
No carro, estavam todos agitados. Quem menos falava era eu. Cena
engraçada esta: meu pai, meu marido, minhas duas irmãs, Maria Júlia e
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eu. Lotação completa! Todos falando ao mesmo tempo, eufóricos com a
chegada do bebê.
Eu estava calma, feliz pela chegada do bebê e por ter todos os que eu
amava ao meu redor. Eu tinha a experiência do parto da Júlia, no qual
tudo ocorreu perfeitamente bem, e não havia qualquer razão para eu me
preocupar.
Chegando lá, fiquei na sala de pré-parto cerca de 30 minutos, local
em que foi realizada a anestesia peridural. Senti poucas contrações. A dor
era suportável. Como previ, o parto do Bernardo foi rápido e quase o tive
na sala de pré-parto.
Este segundo parto foi ainda mais rápido do que o primeiro (o que
descobri ser algo comum nos partos normais) e, em menos de duas horas
depois da entrada no hospital, às 18:15 horas, estava com o meu filho nos
braços. Bernardo veio ao mundo com 3,430 kg e 49 centímetros.
Ao contrário da irmã, que tinha cabelos bem escuros e era bem
cabeluda, Bernardo tinha a pele mais clara e quase não tinha cabelos. Mas
assim como a irmã, o processo de amamentação foi tranquilo. Ele aceitou
o peito com facilidade.
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poderia ser a indiferença da mãe, a quem chamou de “mãe-geladeira”2.
Essas mães frias, que não sabiam demonstrar afeto, levariam os filhos a
um isolamento mental.
Suas teorias foram aceitas internacionalmente por mais de duas
décadas. Felizmente, a partir dos anos 70, essa teoria foi rejeitada. A
comunidade científica concluiu que a hipótese de Bettelheim foi
precipitada e carecia de comprovação técnica.
Hoje, sabe-se que essa teoria não se sustenta, embora seja verdade
que ser mãe de um autista, muitas vezes, exija que nós esfriemos a cabeça.
Todos sabem, e isso não é nenhum mistério, que a evolução de nossos
filhos depende em alta proporção do que nós, seus pais, fazemos por eles.
Seja uma criança autista ou não, essa responsabilidade cabe a nós de
qualquer forma.
Os filhos não nascem perfeitos, e nós, pais, podemos transformar suas
vantagens ou desvantagens naturais em grandes inconvenientes, graves
impedimentos ou grandes virtudes, percalços banais. É difícil dizer até
que ponto o autismo cabe dentro dessas considerações, embora, pelos
resultados tão variáveis obtidos nos tratamentos (a cura do meu filho, por
exemplo) parece necessário considerarmos caso a caso.
Outra tese para o surgimento do autismo é a de que a idade do pai
também pode influenciar, em muitos casos, a sua ocorrência. Estudos
científicos sugerem que quando o homem tem mais de 52 anos, o risco de
que o filho venha a desenvolver autismo é muito grande. Ou seja, quanto
mais velho for o homem, mais chances de o filho ter a doença.
Hector tinha 53 anos quando casamos e 56 quando o Bernardo
nasceu; era vinte e oito anos mais velho do que eu, mas era um homem
muito saudável. Não tinha diabetes, hipertensão, colesterol alto, nenhum
problema cardíaco, nenhuma doença física ou mental.
Porém, tudo indica que as condições de saúde do pai não fazem
diferença na freqüência com que aparecem casos de autismo em filhos de
pais idosos, já que a maior incidência seria produzida pela maior
freqüência de variações genéticas nas células reprodutivas das pessoas
com maior idade (nas mulheres, o risco aumenta significativamente após
os 38 anos e, nos homens, a partir dos 52).
2
Embora caiba termos presente, na sua descarga, que ele mesmo considerou que essa “frieza” bem
poderia ser conseqüência da indiferença do filho e não a sua causa.
30
Outra possibilidade aventada é a de que há uma falha neurológica de
nascimento que prejudica a aquisição da linguagem. Fui informada,
depois de um tempo de tratamento, de que meu filho padecia dessa
dificuldade em algum grau, embora o tratamento tenha lhe permitido,
finalmente, superá-la.
Ainda existe a questão genética. Sei que recentemente tem havido
comprovações de que se encontram variantes genéticas atípicas em muitos
casos de autismo, embora os mesmos cientistas que fizeram essas
descobertas insistam que não podem afirmar que essas sejam a sua causa
única.
De acordo com eles, não podemos deduzir dessas descobertas que, em
pouco tempo, possamos contar com auxílio de medicamentos para o
tratamento específico.
É bom, muito bom, que contemos com pesquisadores dedicados, mas,
por enquanto, a responsabilidade dos pais está em escolher entre
tratamentos que tentam fazer de nossos filhos autistas pessoas (o que é
mais complexo) ou tratamentos que tentam lhes ensinar a comportar-se (o
que é bem mais simples).
A questão seja genética ou não genética não muda nada. De fato,
muitos outros filhos que têm outros muito diversos problemas genéticos
colocam para seus pais a mesma disjuntiva na escolha dos tratamentos.
É mister salientar que ensinar a criança apenas a “comportar-se” é
tratar apenas o sintoma – pura e simplesmente – e não a causa da
patologia. Se nos concentrarmos na superfície do problema, adotando
“teorias comportamentais” para uma doença tão complexa, como é o
autismo – na qual tantas variáveis estão em jogo (orgânicas, psíquicas,
ambientais) – abriremos mão de fazermos de nossos filhos seres pensantes
e atuantes no mundo.
31
Um casamento feliz
Hector ficou o tempo todo ao meu lado, nos momentos felizes, nos
infelizes e nos críticos. Meu marido era argentino e não tinha irmãos. O
nascimento dos filhos foi um marco em sua vida. Ele não teve filhos nos
casamentos anteriores.
Segundo ele, a questão de ter ou não filhos era bem resolvida. Até me
conhecer. Fui a única pessoa com quem ele desejou ter filhos e ele foi o
único homem com quem eu teria a coragem de casar apenas três meses
depois de iniciado o namoro, como o fiz.
Ele veio da Argentina para o Brasil no início da década de 70, fixou
residência no Rio e nunca mais voltou para seu país de origem. Só o fez
para passeios. E curtos. Não gostava de ficar longe de nós.
Dizia que o Brasil era seu verdadeiro lar. Até ria das piadas sobre
argentinos, muito comuns entre os brasileiros. Parecia mais brasileiro do
que eu. Gostava particularmente do Rio, com suas belas praias e
montanhas.
Eu o conheci no Jornal do Commercio em fevereiro de 1997. Depois
de uma temporada em São Paulo e em Porto Alegre, que não durou mais
de dois anos, voltei a morar com o meu pai na Ilha do Governador no final
de 1996.
Hector era coordenador de Finanças do jornal e meu chefe imediato.
Meu trabalho era no setor de Economia. Uma das minhas funções era
traduzir artigos sobre commodities do inglês para o português, o que foi
possível graças aos dois anos que passei nos EUA em 1988, quando meu
pai, piloto da Varig, foi escalado para um baseamento em Los Angeles,
com viagens periódicas a Tóquio.
Quando Hector e eu fomos apresentados, surgiu imediatamente uma
forte atração. No dia seguinte, já tomávamos cafezinho juntos como
amigos de infância. Passávamos horas conversando, revisando os artigos
do jornal, falando sobre os mais variados assuntos.
32
Quando decidimos morar juntos, três meses depois de nos
conhecermos, eu me mudei para o seu apartamento, em Copacabana. O
apartamento era de um quarto apenas, bem simples, mas era o início da
nossa união. Eu estava radiante.
Era muito bom irmos e voltarmos juntos do trabalho, planejarmos
nosso futuro, vivermos nosso presente. Quando tínhamos tempo,
aproveitávamos para dar um mergulho na praia antes de irmos para o
trabalho.
A cumplicidade que tínhamos, a segurança que sentíamos um ao lado
do outro, a afinidade intelectual e o entrosamento emocional contribuíram
para que o nosso casamento fosse uma união de corpos e de almas, um
matrimônio de verdade, apesar dos altos e baixos de qualquer
relacionamento. Ele era um bom marido, e eu sabia, instintivamente, que
seria um bom pai. A minha intuição não falhou.
III - BERNARDO
33
comentar sobre o bebê, e eu esperava ansiosamente o momento de vê-lo
novamente.
Passava das 22 horas. Estávamos sozinhos no quarto – Hector e eu –
quando recebemos um telefonema da Enfermaria avisando que o
Bernardo ficaria no Berçário naquela noite, pois sua temperatura corporal
não tinha se estabilizado. Em outras palavras: ele não ficava quente.
Nunca tinha ouvido falar de um caso desses. Não sabia que isso
existia. Por que o seu corpo não aquecia? Por que a sua temperatura não
estabilizava? O obstetra minimizou o problema, alegando que isso
acontecia de vez em quando. Mas por que acontecia?
Meu pai, ao saber do ocorrido, culpou a enfermeira que deu banho no
Bernardo. Para ele, ela ficou tempo demais com o bebê na água, o que
teria causado a queda da temperatura ou a dificuldade para sua
regularização.
A resposta não tenho até hoje. Não sei se a acusação do meu pai tinha
algum fundamento. Talvez ele nem tenha ficado tanto tempo assim no
banho! Procurei várias vezes na Internet algo que ligasse a temperatura do
corpo da criança ao autismo. Não encontrei nada. Só sei que pensei
naquele momento: “esta criança é sensível. Vai precisar muito de mim”. E
foi esse filho sensível que recebi na manhã seguinte, atenta a suas
demandas, preocupada com o que estava por vir.
Um bebê especial
34
Com um mês e meio de vida, no entanto, Bernardo apresentou
significativo reflexo gastro-cólico. Ele mamava e, quase ao mesmo tempo,
fazia cocô. A sensação que eu tinha era a de que tudo que ele ingeria ia
embora na mesma hora. Ele não conseguia reter o alimento. Pouco tempo
depois, surgiu o refluxo. Maria Júlia havia tido refluxo, mas de forma
mais branda, razão pela qual não nos preocupamos.
O refluxo do Bernardo era diferente, angustiava-nos. O vômito se
projetava em jato. Era horrível assistir aquela cena. Imaginávamos o mal-
estar que ele devia sentir. Nós o levamos ao pediatra, que receitou
remédios para diminuir o refluxo e evitar azia.
Mais tarde fiquei sabendo que o refluxo é frequente em bebês que,
posteriormente, manifestam signos autistas. Devemos questionar se um
mal-estar tão intenso não viria precisamente a colaborar para a
causalidade do autismo.
O resultado do exame realizado pelo Laboratório Eco-X
Radiologistas Associados apontou um refluxo gastroesofageano repetitivo
que ascende à região cervical. O esvaziamento do esôfago pós-refluxo se
faz prontamente.
De acordo com o Dr. Alfredo, é frequente a concomitância entre o
refluxo esofágico persistente durante o primeiro ano de vida, apresentado
pelo Bernardo, e os quadros autistas. Isso é, de um modo genérico,
atribuível à experiência negativa da criança durante sua alimentação,
anulando o prazer da relação com a mãe perante o ato alimentar.
É essencial ressaltar que Bernardo teve poucas doenças durante a
infância, embora todas elas, de alguma forma, relacionadas ao autismo. Na
época, no entanto, não tínhamos conhecimento disso.
Fora o refluxo, o rangido da poltrona de amamentação também o
incomodava. Isso nos intrigava; eu havia amamentado sua irmã nessa
mesma poltrona e, com o tempo, era normal que ela passasse a ranger,
devido ao uso constante; o barulho da poltrona nunca incomodou a Maria
Júlia, e não imaginei que pudesse incomodá-lo; ela estava em bom estado,
funcionava perfeitamente; apenas rangia se eu a balançasse com um pouco
mais de força.
Era o suficiente para Bernardo se assustar e abrir o berreiro. Ele tinha
menos de um mês e chorava ao ouvir o rangido. Eu não entendia o que
35
havia de assustador naquele barulho, que nem alto era. Ele estava nos
braços de sua mãe, protegido, e, mesmo assim, ficava assustado.
Foi mais estranho ainda quando percebi que ele não acordava com o
barulho dos fogos de artifício no Réveillon (morávamos em frente à praia
e víamos a queima de fogos do Ano Novo da sacada), mas acordava
chorando ao ouvir a sirene dos bombeiros bem mais distante. Por que
esses sons o irritavam? O que havia de diferente nesses sons para que ele
se comportasse dessa maneira? Será que já eram sinais do que estava por
vir?
Eu não sabia na época, mas transtornos auditivos podem produzir,
secundariamente, uma proporção significativa de autistas com
características de recrutamento, déficit de registro, de recepção ou de
condução, de audibilização e outros, sendo que uma delas pode ser a
hiperacúsia para conjunto de sons ou para determinados sons. Nesses
casos, a intensidade de registro pode ser tão grande a ponto de provocar
dor ou incômodo insuportáveis.
Há de se ressaltar, contudo, que a sensibilidade exagerada aos sons
não é uma característica própria do autismo, mas sim de um transtorno
auditivo primário, que nem todos os autistas apresentam. Isso, por sinal,
não deve ser confundido com a conduta deliberada de um autista de
tampar os ouvidos para neutralizar o que o outro lhe diz e manter seu
isolamento.
Vivemos outro contratempo quando Bernardo estava com dois meses:
fui obrigada a interromper a amamentação porque tive uma forte crise de
vesícula e fui internada no Hospital São Lucas, em Copacabana.
A dieta era “zero”, apenas soro na veia; não podia comer nada, sentia
dores alucinantes. Coincidência ou não, também tive de interromper a
amamentação da Maria Júlia quando ela tinha apenas dois meses, porque
tive de fazer uma cirurgia na mão e precisava tomar anestesia, o que
contraindicava a amamentação.
Ligamos para a minha tia Carmem, que morava em Porto Alegre, e
pedimos a ela que viesse para o Rio ajudar o Hector a cuidar das crianças.
Irmã da minha mãe e presença constante na minha infância, ela atendeu o
meu chamado na hora. Assim eu ficaria mais tranquila; ela tinha prática
em cuidar de crianças e daria conta do recado.
36
A internação durou três dias. Além da minha tia e do meu marido, as
crianças ficaram com a babá e a empregada. Quando, por fim, voltei para
casa, Bernardo já tinha se adaptado à mamadeira, e pude descansar.
Segundo relatos da minha tia, a troca do peito pela mamadeira foi muito
fácil. Em nenhum momento meu filho rejeitou a mamadeira.
Não fiquei angustiada com o fato de ele não mamar mais no peito,
pois sabia que foi uma eventualidade e que eu não podia me culpar pelo
que aconteceu. Houve, enfim, uma calmaria dos dois meses aos oito
meses de vida do Bernardo.
Com nove meses, nova apreensão: um resfriado mal curado se
transformou em bronquiolite, e ele precisou ficar internado em razão de seu
quadro clínico: estava muito abatido, prostrado. Fiquei o tempo todo com
ele, não arredava pé do hospital nem para comer.
Foi necessário fazer aspiração pela via nasal para que ele respirasse
melhor. Essa aspiração era um processo invasivo e muito incômodo para
um bebê, e o pior era que durava alguns minutos para ser realizado, não era
um procedimento rápido. Pareciam minutos intermináveis para ele e para
mim. Ele chorava muito, incessantemente, e era muito doloroso para mim
vê-lo naquele estado.
Como não havia berço no quarto e ele era muito pequeno, eu dormia
na cama agarrada a ele. Foram apenas três dias, mas, quando Bernardo
voltou para casa, eu senti que algo havia mudado em seu comportamento.
Na hora não me alarmei, tentei me convencer de que era apenas o fato de
ter ficado no hospital e que, com o tempo, tudo voltaria ao normal.
O primeiro aniversário
37
via o brinquedo como um todo, prestava atenção nos detalhes e não no
conjunto. O que interessava era girar as rodinhas, e não movimentar os
carros.
Comecei a observar o seu comportamento e achei-o um pouco
esquisito. Se deixássemos, ele ficava horas assistindo desenhos animados
e em vez de ficar mais calmo, com o passar do tempo, os desenhos o
agitavam tanto que eu levava quase duas horas para acalmá-lo e fazê-lo
dormir. Só que não me preocupei muito. Pensei que era apenas uma fase e
que passaria em breve.
O susto veio poucos meses depois quando fui a uma reunião na escola
das crianças. Bernardo e Júlia estudavam no Colégio Anglo-Americano,
em Botafogo, à tarde. Maria Júlia já estava no Maternal II e Bernardo no
maternalzinho, pois tinha apenas um ano e meio.
Sempre que ele entrava no ônibus escolar e se despedia de mim,
chorava sem parar, mas eu não via nisso nada de anormal, afinal de
contas, ele era bem pequeno e precisava entender as separações, saber que
estava tudo bem, que iria para o colégio, mas depois voltaria para casa,
onde eu estaria esperando por ele. Meu filho sempre foi muito apegado a
mim.
IV – FALHAS NO ENTROSAMENTO
E NA COMUNICAÇÃO
38
canetas e ficava segurando-os no fundo da sala, sozinho, sem se aproximar
das outras crianças.
A professora também disse que ele não obedecia a nenhuma
professora, e que nem parecia ouvi-las. Na hora, até achei graça do que ela
estava me relatando. Disse que ele realmente tinha um temperamento forte
e era teimoso. Não compreendia as implicações que o seu comportamento
podia ter a curto prazo e que poderia ser bem mais do que engraçadinho o
seu jeito de agir.
Na primeira avaliação do colégio, dois meses antes, Bernardo foi
descrito com uma criança que chorava muito e solicitava sempre a
presença da mãe: “participou só das atividades pelas quais demonstrou
interesse. Apresentou habilidades motoras de acordo com a sua faixa
etária, mas precisou sempre ser estimulado para realizá-las. Pediu
frequentemente o auxílio das professoras frente a alguma dificuldade do
dia a dia. Relacionou-se carinhosamente com as professoras, buscando
um lugar no seu colo. Bernardo mostrou ser uma criança tranquila e de
temperamento forte, só fazendo o que ele desejava”, indicava a avaliação.
Marcamos, então, uma reunião para discutirmos melhor o assunto.
Chegou o dia da reunião, e conversei com duas professoras e com a
coordenadora da Educação Infantil. Elas repetiram o que já havia sido dito
antes, mas, desta vez, não achei graça.
À medida que elas falavam, percebi que havia algo errado com o meu
filho. As peças começaram, pouco a pouco, a se juntar e a formar um
quebra-cabeça. E ele era assustador. A realidade era que o comportamento
dele não era apenas excêntrico como eu pensava. Ele não estava bem. Algo
tinha de ser feito.
As professoras me pediram para exigir mais dele, que o fizesse me
obedecer, pois se o comportamento dele fosse apenas resultado de eu tratá-
lo ainda como bebê, mimando-o demais, seria fácil resolver essa questão.
Parecia que, para elas, ele era apenas uma criança mimada. Mas eu sentia
que o assunto era bem mais sério.
Minha primeira e grande frustração ocorreu justamente quando fui
para casa e decidi que ele não seria mais mimado por mim. Exigi dele que
falasse o que queria comer ou não teria o que queria. Lembro que ele
queria comer um danoninho e que eu estava disposta a deixá-lo passar
39
fome caso não falasse ou não tentasse, pelo menos, falar o nome da
comida.
Mas quando notei que ele não conseguia se comunicar e quando ele
começou a chorar (não o choro de uma criança mimada, mas um choro
triste, sentido, de desespero), meu mundo ruiu. Senti uma impotência sem
fim. Percebi como a situação do meu filho era grave. Percebi que tinha
algo errado com ele. Era hora de agir.
A suspeita da surdez
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V – O DIAGNÓSTICO
41
Avaliação no Centro Lydia Coriat
42
Os resultados mostraram que não havia nenhum sintoma ou sinal de
surdez ou qualquer comprometimento do canal ou da transmissão auditiva
que pudesse causar seu estranho comportamento.
O diagnóstico do Autismo
43
regressão. Às vezes ele balbuciava “mã mã”, mas seu repertório linguístico
era quase nulo.
Faltava uma semana para o seu aniversário de dois anos quando
recebi a “bomba” do neurologista, que foi categórico ao afirmar que
Bernardo era autista. Lembro até hoje do que ele disse: “O Dr. Alfredo
pode dizer o que quiser, mas ele é autista. Pode ser de grau leve,
moderado, mas é autismo”.
Soube depois que o Dr. Alfredo também suspeitava de que ele era
autista, mas ainda não tinha se pronunciado justamente por estar esperando
o laudo neurológico e a finalização de sua própria avaliação.
Ter um filho diagnosticado com autismo soa como uma sentença.
Uma sentença de morte em vida. Quando o neurologista explicou a
situação, tentei convencê-lo de que estava errado citando ações, atitudes e
feitos do meu filho, como se ainda fosse possível modificar o diagnóstico.
Sabia que ele era diferente, mas não sabia o quanto. Aquela certeza,
aquela segurança do neurologista em relação ao diagnóstico, deixou-me
desnorteada. Fiquei atônita. Minha irmã Maria Amanda e meu cunhado
Fabiano estavam presentes na consulta. Eles tinham ido nos buscar de
carro. Fiquei tão confusa, tão sem chão, que lembro de ter lhes dito, depois
da consulta, que “se eles não quisessem mais ser padrinhos dele, eu
entenderia”. Foi a minha primeira reação. Uma reação completamente
impulsiva, hoje eu percebo. Eu estava assustada.
Achei que o mundo se fecharia para meu filho, que ele seria rejeitado
a partir daquele momento. Achei que só eu poderia aceitá-lo e amá-lo do
jeito que ele era. Felizmente, eu estava enganada.
Toda vez que eu pensava ou falava em autismo, lembrava
imediatamente do filme “Meu filho, meu mundo” que passava na Sessão
da Tarde da TV Globo na década de 80. Eu tinha apenas onze ou doze
anos quando assisti pela primeira vez, e aquelas cenas me comoveram
muito.
Anos mais tarde, assisti a Rainman com o excelente ator Dustin
Hoffman no papel de um homem com síndrome de Asperger. Mas, com
certeza, foi o primeiro filme o que mais me marcou. Coincidentemente, na
cena final do filme, o bebê falava “água”, e isso era celebrado como uma
grande vitória. Para meu desespero, essa era uma das poucas palavras que
meu filho também falava.
44
Um dia, sonhei que Bernardo dizia “mamãe”. Parecia tão real. Foi tão
real pra mim. Fiquei tão feliz! Depois, tive de aceitar que foi apenas um
sonho, um forte desejo que eu tinha de que tudo voltasse ao normal.
Engraçado como algo tão banal quanto dizer “mamãe” se tornou tão
importante para mim.
Como a Maria Júlia andou pouco antes de completar um ano e
começou a falar com um ano e meio, dentro do esperado, e como não tive
de esperar para ouvi-la me chamar de mamãe, não sabia que seria tão
desejado e precioso o momento de ouvir o Bernardo falar.
Quando ainda estava assimilando o diagnóstico do autismo, Dr.
Alfredo ligou para me acalmar – tinha acabado de falar com o Dr. Rudimar
e já imaginava a minha aflição.
Naquela noite, eu tinha uma formatura para ir. Não tinha mais
vontade de sair ou de conversar com outras pessoas. Minha tia, no entanto,
insistiu para que eu espairecesse um pouco. Comentei com ela o medo que
tinha do preconceito do qual Bernardo seria alvo, mas ela não concordou
comigo. Ela tentava me convencer de que ninguém iria rejeitá-lo, que eu
estava nervosa com a notícia, mas que as pessoas aceitariam as suas
diferenças.
Fiquei muito abalada. O diagnóstico do neurologista martelava na
minha cabeça. Não conseguia pensar em outra coisa. Meus pensamentos
giravam em torno do que significava ter um filho com autismo, o que nos
esperava para o futuro. Que futuro ele teria? Eu não sabia nada sobre
autismo. Só o que via na televisão. E, mesmo assim, sabia que metade
daquilo não devia ser verdade.
Eu também ignorava se havia algum tratamento eficaz, se havia
medicamento para a doença, quais as possibilidades de melhora no estado
em ele se encontrava. Ignorava e temia o seu futuro. Só o que eu conhecia
era o que havíamos vivido até então, até aquele momento.
Mas de uma coisa eu tinha certeza: queria ver de volta o sorriso no
rosto do meu filho. Bernardo não sorria mais, não parecia feliz, não fazia
parte do mundo em que vivíamos; não parecia nem estar vivo. Estava
distante de tudo e de todos. Era angustiante. Eu só queria que ele fosse
feliz, que brincasse como qualquer criança, que tivesse prazer na vida.
45
Um dia depois do diagnóstico do neurologista, Bernardo, Maria Júlia
e eu viajamos para Santana do Livramento, terra natal da minha mãe e
cidade que faz divisa com o Uruguai.
Passamos alguns dias na casa da minha prima Cinthia, que tem dois
filhos da mesma idade dos meus. Dias depois, Hector se juntou a nós para
passar um final de semana. Aproveitamos para conversar muito sobre tudo
que estava acontecendo. Enquanto Maria Júlia brincava o tempo todo com
os primos João Pedro e Isadora, Bernardo preferia ficar perto dos
cachorros ou brincar sozinho.
A presença das outras crianças o incomodava, mas os cachorros, dois
labradores, exerciam enorme fascínio sobre ele. Embora os cachorros
fossem bem maiores do que ele, Bernardo não tinha medo. Para onde os
cachorros fossem, ele ia atrás. Era uma perseguição.
O seu aniversário de dois anos foi comemorado na casa da minha
prima. Ele era tão pequeno, praticamente um bebê. Tomava mamadeira,
usava fraldas, precisava muito de mim.
VI – O TRATAMENTO
O início do tratamento
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Até um ano de idade, Bernardo era um determinado bebê. Um bebê
que eu estava aprendendo a conhecer. Depois de fazer um ano, ele
mudou, foi se tornando outro bebê, alguém indecifrável para mim,
alguém que precisaria de ser redescoberto, alguém para o qual eu não
tinha as respostas.
Muitas e muitas vezes eu chorei imaginando se tinha acontecido algo
com ele que eu não tinha visto ou percebido durante esse último ano.
Talvez ele tivesse levado um tombo, batido a cabeça com força, ou
alguma babá poderia tê-lo machucado, traumatizando meu filho. Ele teve
duas ou três babás, e elas eram muito carinhosas com ele. Nunca
suspeitei de nada. Até aquele instante.
Queria, precisava de uma explicação para o que estava acontecendo.
Precisava culpar alguém. Tentava a todo custo lembrar algum evento que
pudesse ter contribuído ou causado essa transformação.
Também me perguntava se a bronquiolite e a internação hospitalar
aos oito meses teriam desencadeado ou mesmo produzido essa mudança
de comportamento. Onde foi que eu errei? O que eu poderia ter feito
diferente?
Levamos apenas quinze dias para fazer a mudança do Rio para Porto
Alegre. O que foi decisivo para a minha escolha - divisor de águas - e me
convenceu sobre a necessidade da mudança foi a consulta à Dra. Denise
Morsch, psicanalista indicada pelo Dr. Alfredo.
Ela nos recebeu em seu consultório em Botafogo e enfatizou que o
Alfredo era considerado um dos melhores psicanalistas do Brasil e
especialista em autismo, além de o Rio Grande do Sul ser um excelente
lugar para a realização do tratamento por suas facilidades de locomoção,
preço, distância etc.
Seus argumentos foram confirmados pelo pai de um autista de cinco
anos que me procurou para trocarmos ideias sobre tratamentos e
diagnósticos. Ele afirmava ter perdido alguns anos na dúvida de qual seria
a melhor opção de tratamento para seu filho. Disse ter pesquisado muito
48
sobre o assunto e que, segundo informações recentes, o melhor tratamento
para o autismo era realizado no RS.
Era tudo de que eu precisava saber. Se até então eu tinha alguma
dúvida, ela foi dissipada naquele instante. Sempre soube que a decisão
estava nas minhas mãos; meu marido sempre me apoiou, e eu iria escolher
o que fosse melhor para o Bernardo.
Cabia a mim a decisão de como e onde realizar o tratamento. Se fosse
um resfriado, uma doença de fácil tratamento e de cura garantida, poderia
fazê-lo em qualquer lugar.
Mas era autismo, doença que até então eu acreditava, pelas poucas
informações que tinha, que não tinha cura. Escolhi o melhor profissional e
mudamo-nos para Porto Alegre. Deixar o Hector no Rio, infelizmente, foi
inevitável.
Pelo menos foi dessa forma que sempre encarei nossa mudança de
vida. Jamais imaginei o que estava por vir. Cada vez mais me convenço de
que, seja qual for o caminho que tomemos, um longo caminho ou um
pequeno atalho, o nosso destino não poderá ser totalmente controlado por
nós. Temos controle sobre poucas coisas que nos rodeiam; a vida não nos
dá garantias.
Vender o meu piano talvez tenha sido um dos momentos mais difíceis
da mudança. Eu vendi tão barato – quanto antes eu fosse para o Rio
Grande do Sul, mais rápido começaria o tratamento do Bernardo – que foi
praticamente de graça. Mas não apenas isso. O valor material era o de
menos.
Era o meu piano. Ele sempre esteve na minha casa, fazia parte da
minha infância, era uma lembrança dos meus concertos (participei de três
concertos na década de 80). Era o meu companheiro nos momentos de
angústia, desabafo, e também nos de felicidade. Não podia levá-lo. Não
sabia para onde ia. O mais provável era que eu fosse para um apartamento.
Não sabia se haveria espaço.
E é nessa vida sem garantias, cheia de contratempos, que devemos
viver. Tomar decisões em pouco tempo nunca foi um problema para mim,
mas, até que o resultado se torne claro, não sabemos se elas foram
acertadas ou não. É um tiro no escuro. Sei que as perdas que estiveram
associadas a essas decisões doeram muito, mas se eu estivesse na mesma
situação hoje, não agiria diferente.
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A única solução era seguir adiante; ser prática e racional. Os
primeiros dias em Porto Alegre foram desanimadores. Senti muita falta da
ajuda do meu marido e das nossas conversas; procurava me convencer de
que era uma situação temporária; de que, em pouco tempo, estaríamos
todos juntos.
Não tinha um extenso círculo de amizades na cidade. Minhas irmãs
estavam sempre ocupadas em seus trabalhos e estudos. Meus parentes
moravam longe, e eu estava com duas crianças – uma de três anos e outra
de dois –, que precisavam de mim.
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No começo, eu levava o Bernardo. Muitas vezes, ele dormia no
caminho, e eu tinha de levá-lo no colo da parada da lotação até o
consultório. Mas eu não estava trabalhando e tinha tempo para me dedicar
completamente a ele. Maria Júlia ia para a creche à tarde e, quando estava
em casa, sempre me ajudava a cuidar do irmão.
Outras vezes, mesmo acordado, ele se negava a caminhar. Ou eu o
arrastava ou o pegava no colo. Cabia a mim decidir. Dependia mais da
pressa que eu tinha no dia e da minha disposição física.
As sessões duravam, em média, de quinze a trinta minutos, quando
eram com o Alfredo. Como ele tinha uma agenda lotada, chegávamos a
esperar uma, duas horas pela consulta. Sentia vontade de ir embora. Era um
desrespeito esperar tanto tempo! Fui me conformando e procurei tirar
proveito do tempo que tinha livre: lia todas as revistas da sala de espera,
levava livros, brincava com o meu filho (dentro do possível).
Bernardo ficava angustiado com a demora e eu tentava contornar sua
insatisfação. Ele levantava, pegava os brinquedos do baú da sala de espera,
brincava, guardava-os novamente, pegava um livro, largava. Ficava
inquieto, muito irritado.
Depois de seis meses de tratamento, encarreguei minha empregada,
Lívia, de levá-lo ao tratamento, e pude resolver outros assuntos nesse meio-
-tempo. Maria Júlia ia à creche diariamente, e combinamos, os psicanalistas
e eu, que ele também deveria ir à creche assim que fosse apropriado.
Foi uma decisão acertada: era bom afastá-lo um pouco de mim;
permitia, com isso, que ele criasse novos vínculos afetivos. O engraçado é
que, mesmo Bernardo “tendo sido” autista (ele não é mais!), as babás ou
empregadas encarregadas de cuidá-lo – e houve algumas – eram
apaixonadas por ele, que era um bebê muito sedutor!
Quanto ao uso da risperidona, apesar de o neuropediatra ter sugerido o
uso aliado ao tratamento psicanalítico, Bernardo nunca tomou o
medicamento, nem nos momentos mais complicados: a verdade é que havia
progresso, mas também estagnações, e até um certo e previsto retrocesso. O
tratamento não se realizou em linha reta: houve altos e baixos durante todo
o processo.
51
Desfazendo mitos
52
às necessidades dos dois, sem saber, todavia, se não estava
negligenciando, de certa forma, a minha filha.
Bernardo não me obedecia e qualquer tarefa se tornava difícil. Dava
trabalho para comer, para dormir, para sair de frente da televisão, para
sair do balanço, para escovar os dentes. Esta última tarefa, então, era
dificílima. Tinha de ser praticamente à força.
Eu ficava dividida. A vontade era a de não escovar seus dentes, mas
eu não podia deixar meu filho ter cárie por que ele se recusava,
conscientemente ou não, dia após dia, a facilitar o meu trabalho.
Caminhar nas ruas era um trabalho “hercúleo”. Ou ele caminhava na
direção oposta e não aceitava mudar o rumo ou saía correndo, e eu atrás,
aflita por ele não obedecer ao meu chamado, com medo de que ele fosse
atropelado ou se machucasse.
Lembro de minha irmã e eu arrastando Bernardo pelas ruas depois do
tratamento, cada uma o segurando por um braço. Sentíamos a
recriminação no olhar das pessoas que passavam por nós. Para eles,
talvez fossemos pessoas desumanas, agressivas, que arrastavam um bebê
desobediente. Sabíamos que não era nada disso.
O amor pelo meu filho me levou a Porto Alegre e me levaria ao
Japão, à China, se fosse preciso. Mas havia aqueles momentos de
dúvidas quanto ao sucesso do tratamento, e eu precisava desabafar com
alguém. Nessas horas eu procurava Margareth, minha psicanalista.
Não podia jogar tanto peso nas costas do meu marido; ele ficaria mais
ansioso por estar longe, e não havia muito que ele pudesse fazer.
Tínhamos de ser pacientes. Eu só queria alguém para desabafar.
A minha rotina era muito cansativa. Meu marido estava longe, e toda
a responsabilidade recaía sobre meus ombros. Quando o Bernardo não
tinha consulta, como quando a Eda entrou de férias por duas semanas, eu
tinha de me desdobrar para distraí-lo.
Ao menos no Rio, eu levava as crianças à praia quase todos os dias.
Era só atravessar a rua. Apenas Maria Júlia entrava no mar. Bernardo
tinha pavor da areia, não aceitava o contato da areia com seu corpo e
ficava no meu colo. Se eu tentasse tirá-lo do colo e botá-lo de pé, ele
encolhia os pés para evitar o contato com a areia.
Para amenizar o calor de Porto Alegre, cujo verão é abafadíssimo, eu
colocava os dois na banheira e a enchia de brinquedos. E ficava por
53
perto. Até porque ele não aceitava a minha ausência por muito tempo:
estava sempre agarrado às minhas pernas, gritando.
Mesmo enquanto eu escrevia no meu diário (eu não estava
trabalhando e, como afirmei anteriormente, era prazeroso manter um
diário para me distrair e para ajudar o tratamento do meu filho), meu
agarradinho estava ao meu lado, abraçado às minhas pernas, gritando
para chamar minha atenção.
Seu vínculo comigo chegou a ser doentio, eu admito, pois ele não
aceitava que eu ficasse em um cômodo da casa e ele em outro; não me
deixava ir ao banheiro sozinha, esmurrava a porta para entrar, e só parava
de esmurrá-la quando eu a abria.
Quanto mais eu tentava entender a doença do Bernardo, mais
confusa eu ficava. Quanto mais eu lia, mais dúvidas surgiam. Parecia que
nem os médicos se sentiam seguros para falar sobre o assunto. Não havia
certezas ou uma causa isolada que explicasse a origem da doença, e sim
múltiplas causas que variavam de criança para criança. Li sobre uma
teoria de que as vacinas seriam as causadoras do autismo em algumas
crianças. Fiquei chocada.
Essa suposição surgiu em 1999. O médico Andrew Wakefield
publicou o artigo MMR “Vaccination and Autism”, estabelecendo uma
suposta relação entre a vacina tríplice e o autismo. Diversos estudos
médicos foram conduzidos a partir de então a fim de se comprovar ou
não essa relação. Não houve evidências nesses novos estudos acerca
dessa hipótese, chegando-se à conclusão de que tal relação é
completamente inexistente.
O Conselho Médico Geral Britânico (General Medical Council), em
2010, considerou que o Dr. Wakefield agiu de forma antiética e
desonesta ao vincular, mediante a falsificação de resultados da pesquisa
destinada à tal comprovação, a vacina tríplice ao autismo e cassou seu
registro profissional no Reino Unido em maio daquele ano.
O conselho médico também acusou a conduta antiética do Dr.
Wakefield de ter sido responsável pelo ressurgimento do sarampo no
Reino Unido, devido ao receio dos pais de aplicarem a vacina tríplice em
seus filhos. As taxas de vacinação nunca mais voltaram a subir, e surtos
da doença se tornaram comuns.
54
Nos últimos dez anos, uma dezena de pesquisas realizadas na
tentativa de encontrar uma correlação entre a vacina tríplice e o autismo
não encontraram nenhuma evidência que comprovasse os dados
preliminares do artigo de Wakefield.
Infelizmente, várias famílias foram influenciadas pela polêmica
criada pela Mídia logo após a publicação do artigo, e doenças
consideradas extintas devido à aplicação de vacinas regulares voltaram a
matar crianças em famílias que resolveram não vacinar seus filhos.
Se a hipótese da vacinação tivesse qualquer fundamento, por menor
que fosse, eu iria acreditar que somos apenas cobaias impotentes, que
não há qualquer segurança quanto ao uso de fármacos. E que, em vez de
proteger nossos filhos, estaríamos, involuntariamente, os envenenando.
Já me sentia impotente o suficiente por ter de lidar com o autismo.
Não queria me sentir impotente em todo esse processo. Que outras
surpresas me aguardavam?
Sempre fui apaixonada pelo meu filho. O diagnóstico nos uniu ainda
mais. Meu coração permaneceu o mesmo. Minhas angústias
aumentaram. Eu me preocupava com seu futuro.
Gostaria que ele tivesse opções, que ele pudesse fazer escolhas, que
ele fosse independente, feliz, que tivesse qualidade de vida. Eu sabia que
eu era o seu mundo, a sua intérprete.
Tínhamos uma linguagem própria Bernardo e eu; criamos códigos,
dialetos, feitos das pequenas histórias que partilhamos. Aprendi também
a gritar quando ele gritava, jogar-me no chão com ele, dançar, fazer
caretas, entrar no seu universo.
Aprendi a ir até ele e não esperar mais que ele viesse até mim. Toda a
minha bagagem materna, acumulada com a experiência da Maria Júlia,
pouco serviu para Bernardo. Deixei de lado os antigos ensinamentos e
aprendi a ser a mãe que ele precisava, a mãe que tinha significado para
ele. Também precisei aceitar a realidade como ela era: Bernardo tinha
quase três anos e ainda não falava mamãe.
55
Uma criança normal
56
uma atitude que pode causar dano ao filho – e de forma permanente –, é
ter pena dele.
Ter pena de um filho é aleijá-lo, é não dar chance de que ele vença a
doença. Mais do que isso: é não notar os progressos que a criança está
fazendo e tratar como doente uma criança em pleno processo de
desenvolvimento.
A criança só se sentirá capaz de vencer os obstáculos que surgem na
vida – sejam afetivos, mentais ou físicos – se tiver a confiança dos pais.
A mensagem que os pais passam a ela, quando sentem pena, é a de que
ela não é capaz. Aprendi que o diagnóstico do autismo não precisa ser
uma sentença. Há espaço para lutar pela cura.
Portanto, matricular Bernardo em uma escola regular e não em uma
escola especializada em autistas foi fundamental nesse processo. Ainda
mais depois que visitei uma escola especial em Porto Alegre. Essa escola
era bem perto de casa. Poderia levá-lo a pé se quisesse. Seria até bem
prático.
Mas não gostei do que vi. Em primeiro lugar, porque só havia
crianças com deficiências mentais, tão excludente quanto só haver
crianças sem problemas mentais em um colégio regular. Em segundo,
porque eu não via naquelas crianças sinais de cura, e sim de
adestramento.
Como eu tratava meu filho como uma “criança normal”, queria que
ele fosse incluído socialmente, e não excluído ou treinado. Daí a
importância que vejo na inclusão social e de como ela pode ser benéfica
para a aceitação das diferenças e também das deficiências. Essa troca
entre as crianças, com uma incentivando a outra para novos feitos e
superações, deve ser incentivada tanto pela sociedade quanto pelo
governo.
O mais triste era que o rosto inexpressivo do meu filho, que eu queria
tanto que voltasse a ser sorridente, continuava lá, no rosto daquelas
outras crianças. Os automatismos também. Não via aquelas crianças
felizes, brincalhonas, curadas.
Via um monte de crianças sendo ensinadas a repetir comportamentos
e não a entendê-los. Não ensinavam aquelas crianças a pensar. Eles
estavam lá apenas para repetir movimentos, sem entender o significado
do que faziam. Aquilo não servia para o meu filho.
57
A partir de um ano de idade, as idas ao pediatra se tornaram
complicadas. Até então, ele não dava qualquer trabalho, era fácil tirar sua
roupa para examiná-lo e pesá-lo.
Depois que houve a já mencionada estagnação e regressão no seu
comportamento e depois que o autismo foi diagnosticado, tudo ficou bem
mais difícil. Ele não aceitava mais ser tocado. Não queria ser pesado.
Relutava em aceitar o contato com o pediatra. Bernardo era muito forte e
resistente. Não era fácil obrigá-lo a fazer algo que ele não quisesse.
Depois de iniciado o tratamento, houve uma melhora significativa em
termos de aproximação com as outras pessoas. Pouco tempo depois, já
em tratamento, Bernardo começou a se consultar com uma pediatra na
Cidade Baixa, aceitando passivamente ser examinado e pesado.
Foi uma pequena vitória! Ao informá-la de que ele tinha sido
diagnosticado com autismo, ela disse que o autismo dele deveria ser de
grau leve e que as chances de ele se recuperar deveriam ser muito boas.
Fiquei muito animada com o comentário.
58
Carta recebida um mês antes da ida do Hector a Porto Alegre em junho
de 2003
59
VII – CONTRATEMPOS FAMILIARES
60
viajaria daquele jeito. Convenci-o a ir à Emergência da Santa Casa para
uma consulta de emergência.
Assim que a consulta começou – permitiram a minha presença – fui
me dando conta de que o caso era mais sério do que eu imaginava. À
medida que a neurologista lhe perguntava sobre alguns sintomas dos
últimos dias – como forte dor de cabeça, dificuldade na escrita e uma
perna puxando –, novos sintomas iam surgindo.
Soube, assim, que ele não estava conseguindo assinar seu nome como
de costume, que a perna esquerda estava puxando e que não havia
controlado a urina um dia no trabalho. Dava para perceber que era muito
mais sério do que eu pensava!
A tomografia, pedida com urgência pela médica, poderia confirmar
meu maior medo até então: o de um derrame ou isquemia. Não pensava,
naquele momento, que o diagnóstico podia ser ainda pior. E foi. Até
termos o diagnóstico em mãos, Hector fez vários exames, de sangue a
urina, e a tomografia mostrou uma mancha: um edema cerebral.
A causa do edema? Somente suposições. Uma delas era de tumor.
Quando a neurologista falou sobre a suspeita do tumor, Hector, na mesma
hora, disse: É isso que eu tenho! A neurologista, todavia, disse que podia
haver outras causas. Para ele, não. Não sei como, mas ele tinha certeza de
que estava com câncer.
Ele não voltou para casa naquele dia. Ficou internado no Hospital São
José, no Setor de Neurologia da Santa Casa de Porto Alegre, para a
realização de exames que fossem suficientes e conclusivos para um
diagnóstico.
Assim que eu soube que o Hector teria de ser internado, liguei para o
meu pai e pedi para ele vir a Porto Alegre para cuidar das crianças, com a
ajuda da babá. Eu pretendia ficar ao lado do meu marido naqueles
próximos dias, o que incluía dormir no hospital todas as noites.
Tentei fingir para o Hector e para os meus filhos que tudo estava
bem, que não estava muito preocupada, que acreditava na hipótese de uma
inflamação isolada, mas eu estava em estado de choque. Sabia que a
situação era gravíssima.
O pior é que Hector estava certo. A ressonância magnética, feita dias
depois, indicou dez tumores cerebrais em vez de um, como imaginávamos
na pior das hipóteses. Também descobrimos que os tumores cerebrais
61
eram metástases de um câncer de pulmão. O câncer estava em estágio
avançado, e as chances de cura eram mínimas.
O tratamento incluía sessões de radioterapia e de quimioterapia,
realizadas na Santa Casa e em uma clínica particular. Pelo menos o plano
de saúde arcou com todas as despesas.
62
Minha família é católica e minha mãe rezava toda hora. Ainda lembro
de passar pelo seu quarto e ouvi-la cantando hinos religiosos como "A
Barca" ou "Segura na mão de Deus".
Uma dessas tentativas de cura foi a viagem que fizemos para Los
Angeles em 1984. Considerada um dos melhores centros especializados
no combate ao câncer na década de 80, a Universidade da Califórnia
(UCLA) oferecia um tratamento de ponta, além de ser referência mundial
em oncologia.
Ficamos seis meses em Los Angeles na expectativa de que as notícias
fossem mais animadoras e de que houvesse possibilidade de cura para
minha mãe.
Mas não foi o que aconteceu. Lá os oncologistas disseram que não
havia mais nada a ser feito a não ser amenizar a dor com um tratamento
paliativo (o câncer nos ossos é muito doloroso).
Voltamos para o Brasil e para nossa vida no Rio. Ela continuou a
radioterapia e foi forte do princípio ao fim, mas as dores eram intensas e,
em pouco tempo, ela foi obrigada a ficar metade do tempo deitada,
sedada.
Quase não convivíamos mais com ela. Foi muito triste ver uma
mulher boa, vaidosa e cheia de vida ser consumida pelo câncer. Ela era
muito nova. Tinha apenas 42 anos quando a doença foi descoberta.
Mesmo careca (consequência da radio e da quimioterapia), mesmo
andando de muletas, minha mãe não se entregava; usava maquiagem,
vestia roupas elegantes, procurava passar força e otimismo para nós, as
filhas.
Em 20 de janeiro, feriado de São Sebastião, o câncer venceu a
batalha, e ela faleceu. Foi muito difícil aceitar sua morte. Até o
surgimento do câncer, ela era muito saudável; era difícil vê-la com um
resfriado, uma dor de cabeça ou coisa parecida. Como aceitar a perda da
mãe, que é um referencial para a vida toda?
Eu sabia que ela não estaria presente nos meus quinze anos, não
estaria presente na minha formatura da faculdade, não conheceria meus
namorados, não estaria presente no meu casamento, não conheceria seus
netos.
63
Quase vinte anos se passaram e fomos novamente, desta vez meus
filhos e eu, surpreendidos pelo câncer em nossas vidas. Ele continua
assustador, mas algumas características mudaram.
Não sou mais uma criança. Minha compreensão da vida não é a
mesma. A história é outra. Meu marido também teve acesso a um
tratamento de ponta, em uma das melhores clínicas do país (considerada
a melhor da Região Sul), e, para compensar, não tivemos preocupações
financeiras.
O plano de saúde cobriu todas as despesas médicas, desde exames
simples, como o de sangue, até os mais sofisticados, ao contrário do que
aconteceu com a minha mãe, pois meu pai precisou vender alguns bens
para pagar o tratamento.
Pelo menos, o dinheiro para pagar o tratamento não foi uma
preocupação adicional. Foi reconfortante não termos preocupações extras
com dinheiro e podermos nos dedicar totalmente ao seu bem-estar.
Senti muito orgulho do meu marido, da sua coragem, da sua
serenidade e da sua determinação. Esteve sempre empenhado em vencer
esta luta, mas sem perder a noção da realidade e aproveitando cada
minuto para ficar ainda mais próximo da família.
65
tumores em vez de um, o que inviabilizava qualquer cirurgia para a
retirada.
Lembro que, quando recebi o resultado, fui, literalmente, correndo da
Santa Casa até o consultório, nos Moinhos de Vento, do Dr. Jorge Luis
Kramer, neurocirurgião do Hospital São José, para lhe implorar que
operasse o meu marido, que tentasse curá-lo.
Ele olhou a ressonância magnética e, pelo seu olhar, não havia
necessidade de palavras. Mesmo assim, ele precisava me dar alguma
explicação e o que ouvi foi que, infelizmente, operá-lo não era uma opção,
não havia mais nada a ser feito. Provavelmente ele não sobreviveria à
cirurgia e, se sobrevivesse, ficaria em estado vegetativo.
Não havia alternativas a não ser a radioterapia, que era paliativa, não
iria curá-lo, não iria salvá-lo, mas apenas adiar a data de sua morte. Dez
tumores era algo surreal de se ouvir. Saber que o seu companheiro de vida,
a pessoa que você escolheu para ficar ao seu lado nos momentos bons e
ruins tinha dez tumores na cabeça não foi fácil de ser assimilado. Por que,
meu Deus?
Voltei para o hospital e tive de fingir que não sabia de nada. Acredito
que isso significava mais do que uma mentira nobre. Os médicos ficaram
encarregados de conversar com ele e explicar a situação. Pelo menos ainda
restava a tomografia de pulmão, o que me dava uma certa esperança.
O resultado deveria sair em dois ou três dias. Novo banho de água
fria. Sem o Hector saber, procurei o pneumologista para pegar o resultado
da tomografia. Tivemos uma longa conversa, longa e desoladora. O
pulmão estava tomado por metástases. E o pneumologista ainda acreditava
que o pulmão era o câncer primário.
Sentindo-me derrotada, não sabia para onde ir. Eu precisava de ar.
Por outro lado, eu só ficava calma se estivesse ao lado do Hector. Um
medo enorme de que ele morresse de uma hora para outra, de que ele
morresse e eu não estivesse por perto. No fundo, acreditava que podia
impedir a sua morte.
Caminhei um pouco antes de voltar para o hospital e, quando fui em
casa para ver as crianças, eu me senti tão mal que não tive vontade de ficar
lá. Meu lugar agora era no hospital, ao lado do meu marido, e só lá eu
ficava menos apavorada.
66
Não queria olhar para as crianças. Fiquei com tanta raiva do que
estávamos vivendo, da falta do que dizer para os meus filhos, de não ter
como consolá-los. Senti muita raiva de tudo. Não tinha vontade de vê-los.
Não daquela forma. Não com essas tristes notícias. Não podia lhes dizer a
verdade, não podia dividir essa dor com eles. Precisava protegê-los; no
entanto, eu é que estava carente de proteção.
Anos depois, soube pelo Dr. Alfredo que Hector o tinha procurado
para que ele prometesse dar continuidade ao tratamento do Bernardo caso
eu não pudesse pagá-lo. Mas isso aconteceu muitos anos depois de sua
morte.
Como era de se esperar, meu marido estava preocupadíssimo com o
nosso futuro. Sabia que não tinha muito tempo de vida. A gravidade do seu
câncer nunca foi um segredo. Os médicos foram muito corretos ao lhe
informar tudo que ele perguntava, de forma clara e objetiva, sem lhe
esconder qualquer informação.
Por isso, era natural que ficasse preocupado com a família. Desde o
nascimento das crianças, eu parei de trabalhar. Ficava em casa cuidando
deles e, por não ter contatos profissionais em Porto Alegre, a perspectiva
de arranjar um trabalho a curto prazo não era boa.
Para reverter essa situação (e por ter trabalhado na manutenção de
sites), Hector propôs ao dono da clínica particular em que se tratou
reformular o site deles, desde que eu fosse contratada para ser assessora de
imprensa na clínica, já que sou jornalista. Era uma forma de ele ser útil
durante a doença e de me arranjar um emprego. Uma grande prova de
amor. Mais uma.
Hector lutou bravamente contra o câncer. Foram onze meses muito
sofridos. Ele não queria partir. Nós o queríamos por perto. Levei as
crianças para visitá-lo durante as internações. Não queria fazer com os
meus filhos o mesmo que o meu pai fez comigo e com as minhas irmãs.
Apesar das súplicas da minha mãe para que ele nos levasse ao
hospital para vê-la (ela estava em fase terminal), ele se manteve irredutível
e não nos levou. Nem mesmo no seu enterro estivemos presente. Meu pai
não teve sensibilidade para entender que precisávamos nos despedir dela.
Eu não cometeria o mesmo erro, embora algumas pessoas tenham me
aconselhado a poupá-los.
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“Tu quieres volver
Y no te veo mas
Tu quieres volver
Y no me encuentro mas “
(Gipsy Kings)
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Houve uma pequena festa, com direito a balões coloridos,
refrigerantes, salgadinhos, docinhos e um bolo. Naquele dia, quando eu o
deixei no hospital para levar as crianças pra casa, eu não tinha como prever
que, em apenas quatro dias, teríamos de nos despedir. E, dessa vez, para
sempre.
Na véspera de sua morte, foi o Dia das Mães. Foi um dos dias das
mães mais tristes que vivi, embora estivéssemos os quatro juntos no
hospital. Fiz questão de levar as crianças para vê-lo.
Mas ele estava muito cansado, muito fraco, debilitado pela doença.
Não ficava mais sem o balão de oxigênio. Mesmo assim, sempre que podia,
eu levava as crianças ao hospital. Queria que eles tivessem a oportunidade
de se despedir do pai maravilhoso que tiveram.
69
Foi de cortar o coração. Em pedacinhos. Eu disse que sabia disso e
que também queria muito que ele estivesse conosco. No entanto, ele não
estava, e eu precisava fazer o luto e olhar para a frente. Eu tinha de pensar
nos meus filhos, não deixar a tristeza me consumir, não deixar o
desânimo invadir a minha alma.
71
A casa tinha sido planejada e construída pelo meu tio (já falecido),
que tinha muito bom gosto e talento artístico: suas esculturas e pinturas
são muito expressivas e, também, muito elogiadas. Além do dom
artístico, meu tio era conhecido como “cachorreiro”, uma expressão que
usamos no Sul para pessoas que adoram cachorros.
Os cães preferidos eram os de guarda e, consequentemente, as raças
de grande porte; talvez porque tenha morado mais da metade de sua vida
em casas e precisasse se sentir seguro; mas não era só isso. Ele tinha
muito jeito com o adestramento de cães. Lembro de ele ter tido um
dobberman quando eu era pequena e do quanto minhas irmãs e eu
sentíamos medo dele.
O cão da vez era o Guru, um rottweiler de meter medo também,
enorme, e que ele dizia ser bravíssimo. Pois bem. O animal era majestoso,
pelo reluzente, parecia o cão do filme de terror “A Profecia”. O mais
sábio era guardar distância. E foi o que nós procuramos fazer. Ele só não
tinha sido preso no canil por que obedecia aos comandos de meu tio, que
estava alerta aos seus movimentos e nos aconselhava a não chegarmos
muito perto do cachorro. Prova de que era um cachorro perigoso.
Se ele não confiava completamente na docilidade do animal, imagine
a gente! Por tudo isso, fiquei o tempo todo de olho no Bernardo. Eu não
queria perdê-lo de vista. Mas como dizem, a criança nos “cega”.
Guru brincava com uma bola de tênis na boca. Em fração de
segundos, Bernardo foi em sua direção, tirou a bola da boca do cachorro,
deu meia-volta e saiu andando, tranquilamente. Houve um silêncio no ar.
Todos, inclusive meu tio, não acreditavam no que estavam vendo.
Bernardo não tinha noção do perigo, mas nós, sim. Felizmente Guru
não atacou o Bernardo. Mas tememos por isso. Peguei meu filho no colo
e o abracei com força. Respirei aliviada.
Refazendo-se do choque, meu tio veio em minha direção e disse:
- Ninguém nunca fez isso antes. Nem eu tenho coragem de tirar a bola
da boca do Guru. Fiquei com muito medo – desabafou.
O hábito de lamber metais, de brincar com garfos, facas e colheres
também era um sinal claro de que Bernardo não tinha noção do perigo.
Ainda bem que tive a ajuda da minha família e da minha tia, que não via
nenhum problema em lhe dizer não e impor limites.
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VIII – CONTINUAR A LUTAR, CONTINUAR A
VIVER
A volta ao trabalho
74
Em uma dessas difíceis despedidas, assim que saí do prédio, deixei
meu filho, acompanhado da babá, agarrado às grades, gritando, chorando.
Ao subir a rua em direção ao meu trabalho, a cinco metros do meu
apartamento, fui abordada por um homem que me perguntou como eu tinha
coragem de fazer isso com uma criança, como eu tinha coragem de deixá-lo
chorando daquele jeito. Disse que eu não era um ser humano, que eu era
um monstro, e que eu merecia apanhar. Foi um momento horrível. Esse
homem me seguia e me xingava, falando que tinha vontade de bater na
minha cara.
Assim que cheguei ao trabalho, liguei para o Dr. Alfredo, aos prantos,
e lhe relatei tudo que havia acontecido. Eu lhe disse que tinha sido agredida
na rua injustamente, que tinha sido julgada e condenada por um estranho;
que a minha intenção, que era das melhores, não foi bem interpretada. Eu
estava inconsolável.
De forma sensata, Dr. Alfredo me perguntou que importância tinha a
opinião daquele homem para mim, que diferença fazia ele ter me dito
aquelas coisas, e mais: disse que, se eu sabia que estava fazendo a coisa
certa, pouco importava a opinião daquele homem.
Esse conselho me serviu para toda a vida. Percebi a duras penas que
seria algumas vezes mal interpretada, incompreendida, mas que isso em
nada alterava as minhas convicções de que estava fazendo o melhor para o
meu filho.
75
estiveram por perto e deram muito carinho e atenção para os meus filhos e
se mostraram atentas à evolução do tratamento psicanalítico.
Elas liam e se informavam sobre autismo (na medida do possível),
sem se intrometerem demais. Era uma abordagem respeitosa, e sou grata a
elas por isso; houve respeito às minhas decisões. Combinamos de exigir um
comportamento mais maduro do Bernardo. As limitações temporárias não
poderiam ser desculpa para condutas permissivas.
Outro aspecto positivo e que aconteceu espontaneamente, sem que eu
precisasse falar com elas a respeito, foi o fato de elas não terem feito
distinção ou terem demonstrado preferência por um dos meus filhos.
Para elas, os dois eram crianças normais, e procuravam tratá-los com
o mesmo peso e a mesma medida. Tenho certeza de que meus filhos se
sentiram amados com a mesma intensidade, muito embora cada um tenha
seu jeito de ser, personalidade e temperamento.
Em junho de 2006, meu pai começou a sentir fortes dores nas costas e
suspeitou de pneumonia ou tuberculose. Eu sabia da sua saúde pelas
nossas conversas ao telefone, já que ele continuava morando em Juiz de
Fora, e nós, em Porto Alegre. A minha vida estava bem mais corrida com
o trabalho na clínica, e acontecia de ficarmos dias sem nos falarmos.
Havia, além disso, outro motivo para esse distanciamento: minhas
irmãs e eu tinhamos uma relação complicada com a esposa do meu pai.
Inexplicavelmente, ela sentia ciúmes de nós e competia pelo amor do meu
pai, o que dificultava muito minha comunicação com ele.
Não podíamos ligar para ele tanto quanto gostariamos e as poucas
notícias que tínhamos sobre seu estado de saúde nos eram dadas por ele
mesmo. Ou seja, credibilidade quase zero. Ele não nos diria se estivesse
muito doente. Procuraria amenizar a situação.
Nosso relacionamento com a madrasta foi se deteriorando ao longo
dos anos e nem as aparências conseguíamos manter mais. Não havia meio
de nos entendermos. Ela não repassava para ele os recados que
76
deixávamos; dizia que ele não estava em casa quando sabíamos que era
mentira, desligava o telefone na nossa cara.
O fato é que os dias passavam, e ele não melhorava. Mas não
achávamos que fosse uma doença grave. Acreditávamos que, mais dia,
menos dia, ele estaria bem, saudável como sempre foi.
Não foi o que aconteceu. Piorando diariamente, foram realizados
novos exames, e a suspeita passou a ser de câncer de pulmão. Câncer de
pulmão? Mais uma vez? Depois do câncer do Hector, imaginei que
respiraríamos aliviados por algum tempo. Mas eu estava enganada.
Viajei para Juiz de Fora levando apenas a Maria Júlia, que estava com
sete anos; Bernardo ficou em Porto Alegre com a babá. A essa altura,
meu pai já estava internado em um hospital da cidade para realizar outros
exames.
O diagnóstico não estava fechado. Não havia certeza quanto à origem
do câncer, se era originário do pulmão, se havia metástases, se a origem
estava em outro órgão. Muitas perguntas sem respostas conclusivas até
então.
Por ser a filha mais velha, fiquei com a responsabilidade de receber o
diagnóstico dos médicos e também de comunicar a meu pai seu estado de
saúde. Foi tudo muito rápido. No mesmo dia da nossa chegada, minhas
irmãs também foram para Minas. Conversei com a médica responsável
pelo caso, e ela me disse que não havia mais dúvidas, que o meu pai
estava com câncer, originário do pulmão, e com metástases ósseas.
Ela foi otimista. Disse que ele poderia viver alguns anos, com
razoável qualidade de vida, pois havia apenas um tumor no pulmão, e as
metástases ósseas poderiam ser controladas com tratamento oncológico.
Mas não foi o que ocorreu. Um mês depois meu pai falecia em uma
clínica no Rio de Janeiro, para onde se mudou a fim de fazer o
tratamento.
Não sei mensurar as consequências da morte do meu pai no
comportamento do Bernardo. Ele estava com seis anos, tinha começado a
falar e a desenhar.
Maria Júlia se fechou ainda mais com a morte do avô; ele era um
referencial masculino importante para ela, e a sua morte contribuiu para
que ela ficasse ainda mais retraída, mais tímida. Ela evitava falar sobre o
avô; eu não insistia. Tenho certeza de que ela sabia que, se quisesse
77
desabafar, eu estaria à disposição para ouvi-la; ela, no entanto, preferiu o
silêncio.
O mais incrível é que, apesar de não ter ido ao enterro do avô, ela não
podia me ouvir cantando “Segura na mão de Deus” que dizia:
– Não canta essa música, mãe. Não gosto dela, não sei por que, mas
me deixa triste.
Foi essa música que cantamos enquanto o caixão com o corpo do meu
pai era levado da capela onde ele foi velado para o local de sepultamento.
E ela nem soube disso!
IX - OS SINTOMAS DO AUTISMO
Um rosto inexpressivo
78
poucos, com o tratamento psicanalítico, o sorriso foi voltando ao seu
rosto, assim como outras emoções, como a raiva, a tristeza, o
contentamento, a seriedade.
79
novas experiências – uma das características mais marcantes e resistentes
do autismo.
O novo é sentido como algo perigoso. Isso não é exclusividade dos
autistas; o novo é percebido como algo assustador para a maioria das
pessoas; mas, para os autistas, assume outra dimensão. Uma boa notícia foi
quando, alguns anos depois, além do tradicional arroz e feijão, Bernardo
aceitou comer nuggets de frango. Pelo menos ele estava ingerindo algum
tipo de carne. No entanto, não aceitava experimentar os sanduíches, mesmo
que fossem de frango. Era apenas nuggets.
Nas nossas idas ao Mc Donald´s, eu pedia batata frita, nuggets e
toddynho para ele. Em casa, fazia nuggets de frango todos os dias. Não
entendia como ele não enjoava de comer sempre a mesma coisa.
Quando estava com fome e ainda não falava, Bernardo demonstrava o
seu desejo com gestos; trazia o bolo de chocolate (na embalagem mesmo) e
uma faca para que eu cortasse um pedaço para ele.
Para se relacionar, adotava o estilo “instrumental”, que consistia em
me “usar” para conseguir o que queria. Ele pegava a minha mão para abrir
a porta, pegava a minha mão para que eu desenhasse para ele; não
executava, ele próprio, as ações.
Eu sabia que ele compreendia o significado e a engrenagem de vários
objetos e situações, mas ele não conseguia expressar verbalmente o que
desejava, como se houvesse um bloqueio, algo que o impedisse de falar.
Anos depois, quando ele falava, tornou-se mais fácil fazer algumas
negociações. Desenvolvi uma tática: se ele se recusasse a comer, eu
avaliava o conteúdo do prato e disparava:
– Vamos fazer o seguinte: você só precisa comer dez colheradas, só
dez. Pode ser?
Ele ficava satisfeito com o trato, sem se dar conta de que dez
colheradas era exatamente o conteúdo do prato.
– Tá bom. Só dez, ele dizia.
E acabava comendo tudo que estava no prato. Valia a pena enganá-lo.
Mais uma vez, era uma causa nobre.
80
A ansiedade da espera
81
O mito da agressividade
A rejeição ao espelho
84
não aceitasse que ele fazia parte deste mundo, do meu mundo que, por
enquanto, ainda não era o dele.
Eu o pegava no colo, levava-o para a sala de estar, onde havia um
espelho enorme de madeira, e, brincando, apontava:
– Olha o Bernardo ali. Que lindo que o Bernardo é!
Ele desviava o olhar. Não tinha jeito. Não olhava para o espelho.
Tudo bem. Eu imaginava que haveria resistência; entretanto, eu não
desistiria. Quase todos os dias eu fazia novas tentativas.
O mito do balanço
85
Não é preciso que a criança tenha todos os sintomas que citei na
introdução deste livro para “estar” com autismo. Basta alguns deles.
Bernardo não apresentava alguns dos principais sintomas e, mesmo assim,
seu quadro era de autismo leve.
86
Em relação aos autistas com algum tipo de genialidade (normalmente
diagnosticados com Asperger), esse número também é bem abaixo da
crença popular, com percentual em torno de 5% a 6%.
A esmagadora maioria é formada por crianças com inteligência
dentro da média, que precisam de estímulos diários para desenvolver suas
potencialidades.
87
Mais tarde, viriam os legos, especialmente os da coleção do Star Wars
(Guerras nas Estrelas) que imitavam o filme lançado em 1980 por George
Lucas. Bernardo era extremamente cuidadoso com seus brinquedos. Ele
não os perdia nem os estragava. Muitos desses brinquedos ele conserva até
hoje.
88
Sei que tive uma atitude muito protetora em relação a ele muitas
vezes. Contudo, sempre procurei não exagerar nessa proteção. Eu tinha de
me revezar entre ser protetora e deixá-lo vivenciar o mundo.
Compensando a falta de amigos, o relacionamento do Bernardo com a
irmã era mágico. Os dois se entendiam pelo olhar, pelos gestos, pelas
palavras que ela lhe dirigia. Nessa época, ele ainda não falava. Só
começou a falar aos seis anos. Esperamos muito tempo para ouvi-lo falar.
Maria Júlia, um dia, se sentou ao meu lado no sofá e perguntou, baixinho,
para que ele não ouvisse:
- Mãe, quando o Bernardo vai falar?
Eu respondi que um dia ele falaria e que, desse dia em diante, ela
sentiria falta do silêncio de antigamente, pois ele falaria muito. E foi
exatamente o que aconteceu.
89
Did you ever know that you are my hero?
You´re everything I would like to be
I can fly higher than an eagle
For you are the wind beneath my wings.
90
fazia com que ele entrasse no mundo dela, com suas brincadeiras, danças,
cantos.
Maria Júlia nunca desistiu do irmão. Pelo contrário. Não aceitava que
suas amigas não brincassem com ele, não aceitava que eu brigasse com
ele ou que o censurasse.
Foi sua defensora e parceira em todos os momentos. Muitas vezes
precisei lhe explicar que chamar a atenção dele também era uma forma de
amor, uma maneira de ajudá-lo, de educá-lo.
Minha filha foi a irmã que ele precisava ter para sair de um mundo de
isolamento e abraçar um mundo de possibilidades. Ele precisava acreditar
que o mundo era seguro e encontrou alguém que lhe estendeu a mão em
todas as situações.
Ela mal sabia falar ou andar e já parava na frente do carrinho dele
para protegê-lo quando algum estranho aparecia. Solidária, ela sabia e
soube muito antes do que qualquer um de nós que ele precisava de
proteção e de um cuidado especial.
No auge de seu isolamento, quando Bernardo não me ouvia e nem
obedecia a qualquer ordem minha, era dificílimo sair com ele. Ir ao
shopping center ou ao parque parecia uma tortura. Eu ficava tensa, por
que sabia que não tinha qualquer controle sobre ele.
Em uma dessas idas à pracinha, ele começou a disparar na minha
frente, e eu precisei sair correndo para detê-lo. Não sabia se ele pararia na
calçada ou atravessaria a rua sem olhar. Maria Júlia se assustou e saiu
correndo atrás dele, gritando:
– Eu não quero perder meu filho, eu não quero perder meu filho.
Ela gritava, chorava, exigia de mim alguma providência. Eu consegui
pegá-lo, por fim, e, em seguida, eu a abracei, explicando que ela não iria
perdê-lo, e que, principalmente, ele não era seu filho. Era seu irmãozinho.
Isso aconteceu mais de uma vez. Quando a cena se repetia e ele
disparava de mim, se eu demorasse um pouco para ir atrás dele, ela ficava
angustiada e pedia para eu pegá-lo, que não queria que ele morresse. Foi
ela quem o apelidou de “Bi”, que é como a família o chama; fora do
círculo familiar seu apelido é “Bê”.
91
Aquela menina loirinha, gorducha, cheia de dobras espalhadas pelo
corpo, cabelo queimado pelo sol e pela praia, era sempre a mais atenta e
preocupada com o irmão quando ele corria perigo.
Risonha, eu a chamava de “feliz”, um dos anõezinhos da Branca de
Neve. Ela ria e perguntava: “E o Bernardo? Que anãozinho ele é?”;
“Dengoso, com certeza”, eu dizia. E dávamos boas risadas.
Ela sempre o incluía nas conversas, nas perguntas, nas brincadeiras.
Até em um apelido que eu dava para ela era importante que ele estivesse
presente. Quando meus amigos nos visitavam, precisavam dar ao irmão a
mesma atenção que davam a ela. E ela fazia questão de cobrar. Se
levassem um presente para ela, imediatamente perguntava onde estava o
do Bernardo.
Se alguém falasse apenas com ela – sem se interessar pelo irmão – ela
mostrava: esse é o meu irmão, o Bernardo. Aquele dedinho gordo
apontava para o irmão sempre. Ele fazia parte do mundo dela.
Um dos programas favoritos dos dois, quando tinham três, quatro
anos de idade, era assistir aos desenhos da Disney, especialmente Branca
de Neve, Alice no País das Maravilhas, Banzé, Oliver e Cinderela.
Bernardo se negava a assistir qualquer programa da TV aberta.
Quando eu tentava sintonizar em um canal da TV aberta, ele desligava a
TV. Era engraçadíssimo, pois ele se dirigia, tranquilo, inabalável, até o
aparelho e o desligava.
Não gritava, não brigava, porém não deixava que nós assistíssemos a
outro programa. Quando algo lhe interessava, Bernardo era muito
determinado e insistente.
Outro programa que ele gostava muito de fazer era folhear os álbuns
de família, principalmente os que continham nós quatro: Hector, Maria
Júlia, Bernardo e eu.
Sempre que pedi a colaboração da Júlia para cuidar do irmão, ela se
mostrou disponível. Algumas vezes, até exigi demais dela, apenas um ano
mais velha do que ele. Para mim, ela era minha ajudante, alguém que
deveria me auxiliar na exaustiva tarefa de cuidá-lo, e quem sabe torná-la
um pouco mais fácil.
Não fui justa com ela muitas vezes, exigi um comportamento muito
maduro quando ela era apenas uma criança. Mas evito me culpar por isso.
92
Sei que busquei amenizar minhas exigências quando percebia o que
estava fazendo.
Procurei me redimir quando tive chance, explicando a ela que não
deveria se sacrificar sempre pelo irmão. Quando eles queriam o mesmo
brinquedo ou quando havia alguma disputa em jogo, ela, invariavelmente,
cedia em favor dele.
Gostaria que a vida tivesse sido mais leve, mais bondosa com ela.
Acho que ela merecia uma vida mais cor de rosa, mais encantada, como
os livros que ela gosta de ler e os filmes a que ela gosta de assistir.
Não teve tempo para ser mimada, birrenta. Como ela é uma menina
sensível, preocupada com os outros, gostaria de ter lhe oferecido uma vida
de sonhos, de grandes realizações. Mas, até agora, duas perdas foi o que
ela ganhou, além, é claro, de muito amor e carinho. Isso nunca faltou!
Tenho plena consciência de como a vida dos irmãos dos autistas é
afetada negativamente. É muito grande o peso e a responsabilidade que
eles carregam. Não é fácil para eles que a vida familiar gire em torno do
irmão e que eles tenham de ser maduros e compreensivos quando são
apenas crianças, necessitando dos mesmos cuidados.
Não sei até que ponto um acidente, em dezembro de 2003, marcou a
minha filha. Ela tinha apenas quatro anos. Foi durante o tratamento do
Hector. Decidimos ir a Gramado para que as crianças conhecessem a Casa
do Papai Noel e vissem a cidade enfeitada para o Natal. Faltavam poucos
dias para a data.
Minha amiga Luciana, seu marido, Ciro, e a filha Jaqueline, que
também tinha quatro anos, foram conosco. Hector estava muito inchado e
muito debilitado devido às sessões de rádio e quimioterapia.
Ao pararmos em um posto de gasolina para abastecer, na entrada de
Gramado, Bernardo saiu em disparada, e eu, em pânico, gritei para que o
Hector o pegasse. Ele estava mais próximo ao Bernardo do que eu.
Prontamente, Hector correu em direção a ele, mas suas pernas não
obedeceram. Devido ao tratamento contra o câncer, ele estava muito mais
fraco do que imaginávamos. Só não sabíamos, até aquele momento, o
quanto. Hector tropeçou nas próprias pernas e caiu, com os óculos no
rosto.
Foi uma cena de terror. Hector bateu o rosto no chão, machucou o
nariz, quebrou os óculos. E também sangrou bastante, jorrando sangue
93
pelo nariz. Olhei para a Maria Júlia, e ela estava transtornada, estava aos
prantos. Eu a abracei com força.
Ciro e o frentista do posto já tinham ajudado o Hector a se levantar.
Eu só pensava na minha filha; no que ela tinha visto, como ela sofrera
com aquele acidente e como aquela cena poderia marcá-la para o resto da
vida.
Como viu o pai perder muito sangue, dias depois passou a perguntar
para mim, repetidamente, até onde estava o sangue dela, o meu e o do
irmão. Eu não entendi a pergunta de primeira. Ela repetia: queria saber se
o sangue dela estava na altura da canela, do pé (com pouco sangue
estocado), ou se estava cheia de sangue. Eu dizia que ela estava cheia de
sangue, até a cabeça; então, ela se acalmava.
Na cabecinha dela, a morte do Hector foi influenciada pelo sangue
que ele perdeu naquele acidente. Cada vez que, por alguma razão, ele
tinha um sangramento, ela se apavorava. Por isso, ela só estaria segura se
estivesse “cheia” de sangue no corpo. Quanto menos sangue tivesse, mais
risco de morrer.
Por tudo que ela viveu até hoje, procuro diminuir a responsabilidade
da minha filha a todo instante, mas vejo que ela mesma se cobra muito.
Tornou-se uma menina exigente consigo mesma, que não se permite errar
ou se machucar.
Qualquer arranhão é sinal de falha, de algo errado. É uma menina
perfeccionista. Nunca precisei pedir para fazer um dever da escola, um
trabalho de casa. Por conta própria, realiza suas tarefas com
independência.
Quanto às cobranças que eu fazia à Maria Júlia, eu sempre
questionava se não estava sendo dura demais com ela, se as cobranças não
eram exageradas, se eu deveria exigir um comportamento tão adulto dela.
Eu me culpei bastante por ter sido tão exigente com a Maria Júlia.
Confesso que posso ter negligenciado, sem querer, os seus sentimentos, os
seus desejos, em alguns momentos. Mas também sei que fiz o que foi
possível em uma situação tão complicada.
Sem querer, posso ter descontado nela a impotência que eu sentia em
relação ao Bernardo. Não foi premeditado. Não foi planejado. Não foi
proposital. Essa sensação de impotência piorava naqueles momentos mais
difíceis, nos quais o Bernardo não me ouvia, não respondia aos meus
94
chamados. Ele ficava totalmente ausente. Nesses momentos era mais
frequente eu ficar cansada, desanimada.
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XI – ABRINDO A PORTA: AS PRIMEIRAS
CONQUISTAS
O primeiro desenho
Bernardo desenhou pela primeira vez quando tinha quase seis anos,
mas ainda não falava. Além da questão da linguagem, até aquele momento,
ele se recusava obstinadamente a desenhar. Não desenhava sob hipótese
alguma. Os lápis e as canetas, para ele, tinham outra função: ele os pegava
e girava. Acredito que na recusa em desenhar estava subentendida também
outra recusa: a de se sujar.
Bem próximo dos seis anos, passou a pedir para eu desenhar para ele.
Ele se aproximava com um lápis ou uma caneta, entregava para mim,
juntamente com o papel, e pedia para eu desenhar um jacaré ou um
dinossauro. Apenas balbuciava jacaré e dinossauro, mas não formava frases
completas. Eram algumas palavras soltas.
Eu tentava convencê-lo a desenhar, pedia pacientemente para que ele
desenhasse comigo, mas não adiantava. Ele nem sequer me respondia.
Apenas continuava segurando a minha mão, imitando o gesto de quem
desenha (o estilo instrumental que descrevi anteriormente), forçando-me a
desenhar.
De repente, como que por estalo, quando tinha seis anos, ele começou
a desenhar. E não desenhou esporadicamente. O desenho se tornou uma
paixão e, aos 12 anos de idade, ele já tinha desenhado mais de dez histórias
em quadrinhos. Duas foram encadernadas.
Como passou a gostar muito de desenhar (passava a maior parte do
tempo em que estava em casa desenhando no quarto), anos depois,
Bernardo costumava dizer que queria ser cartunista e que queria conhecer o
Maurício de Sousa. Tinha um monte de revistas da Turma da Mônica; as
preferidas eram as do Cascão, do Cebolinha e do Chico Bento.
96
Bernardo começa a falar...
97
Viajar era difícil
98
chegava a hora de dormir, pedia para voltar para casa. Dormir na sua cama
era fundamental.
Viajar era ficar exposto a situações novas para as quais Bernardo não
dispunha de recursos de linguagem para lhes atribuir significação. Portanto,
toda viagem o lançava em um mundo que ele não tinha como organizar,
nem sabia como deveria responder. Para ele, cada viagem não era somente
uma viagem para um mundo desconhecido, mas também a entrada em um
mundo sem sentido.
99
Correndo de um lado para o outro
100
Fantasia x realidade – mais um obstáculo a ser vencido
101
Liguei para Dr. Alfredo para que ele pudesse me orientar sobre o que
fazer, o que dizer para o Bernardo, como lidar com a situação. No
entanto, o que ouvi do Dr. Alfredo me assustou ainda mais.
Ele disse que esse episódio mostrava que o Bernardo podia entrar na
psicose, que era preciso tomar muito cuidado.
Mas era só o que faltava. O Bernardo se curava do autismo e se
tornava um psicótico. Não sabia o que era pior.
Mentira! Sabia sim. Para mim, ser psicótico, com certeza, era muito
pior. Apesar do susto inicial, os dias foram passando, e ele deixou de
tocar no assunto.
102
Minha prima avistou a Igreja Santa Teresinha (aquela que causava
horror ao Bernardo) e disse que gostaria de conhecê-la. Como eu disse
anteriormente, é uma igreja muito bonita, tanto por fora quanto por dentro,
e sua arquitetura gótica chama a atenção de quem passa.
Eu disse que iríamos lá na volta, e foi o que fizemos. Também
lembrava do horror que o Bernardo sentia pela igreja, mas era só ficarmos
nós dois do lado de fora que nada aconteceria.
Como era de se esperar, Bernardo reagiu muito mal. Gritava que não
entraria na igreja de jeito nenhum e eu lhe acalmei avisando que ficaria do
lado de fora com ele, mas que a Maria Júlia e a Patrícia entrariam. Não
falei mais nada. Sentei em um banco que ficava no pátio da igreja e esperei
o retorno das duas.
Bernardo, então, começou a se aproximar lentamente. Ele foi
chegando, chegando, observando o interior da igreja de canto de olho, e
parou ao meu lado. Olhou para a estátua que tanto lhe causava medo, olhou
para as outras estátuas, quadros e pinturas e disse:
- É só uma estátua, mãe, como as outras. Eu não tenho mais medo. Eu
sei que é só uma estátua. Eu acho até que eu vou entrar na igreja. Não
tenho mais medo.
A minha felicidade foi imensa, parecia um sonho ver que o meu filho
estava diferenciando a fantasia da realidade, a imaginação do simbólico.
Fiquei radiante, mas procurei não demonstrar meu entusiasmo. Não queria
quebrar a magia daquele momento. Não queria que transparecesse o alívio
que eu sentia.
A partir daquele momento, tomei outra decisão, iria disfarçar um
pouco a minha emoção. Seria uma estratégia para que ele não se valesse de
meus sentimentos para me controlar ou me chantagear.
Mas as boas surpresas não pararam por aí. Voltamos para casa e, sem
brigas ou estresse, ele tomou banho sozinho, comeu a comida que estava no
prato e, na hora que pedi, sem reclamar, aceitou dormir no seu quarto, em
vez de dormir comigo.
As conversas que tivemos, quando eu lhe dizia que ele já era um
menino com quase oito anos, grande e inteligente, foram bem sucedidas e o
ajudaram a entender que ele precisava ter seu espaço e não ocupar o meu.
Quase um ano depois, ele falou novamente sobre a estátua de Jesus:
– Mãe, sabe aquela estátua do Jesus que eu vi na igreja?
Pensei: vai começar tudo de novo. Mas não. Ele acrescentou:
103
– Pois é, mãe, eu não tenho mais medo dela. Eu sei que aquilo
aconteceu há muito tempo.
Foi um alívio tão grande! Mais uma etapa vencida, mais um obstáculo
superado.
104
Perguntei aos terapeutas se Bernardo precisaria de algum tipo de
acompanhamento psicológico ou até mesmo de algumas sessões
esporádicas para controle, e eles disseram que não, que ele estava
totalmente liberado. Em fevereiro de 2009 Bernardo teve suas últimas
consultas.
105
A oferta era tentadora: minha irmã menor e o marido tinham sido
transferidos há um ano para Brasília e, por coincidência, Maria Amanda
também. Se fôssemos para Brasília, morariam os três núcleos familiares
na mesma cidade novamente, depois de mais de cinco anos afastados.
Com três quartos, o apartamento era muito bem localizado e ideal para
recomeçarmos nossas vidas, desta vez sem o fantasma do Autismo.
Para não agir por impulso, fui à Brasília nas férias, disposta a
conhecer melhor a cidade. Foi muito bom rever minhas irmãs e, nesse
meio tempo, surgiu a possibilidade de um trabalho na Câmara dos
Deputados, assessorando a deputada Maria Helena (PSB-RR).
Aceitei a proposta da minha tia. Fiquei no seu apartamento e
matriculei as crianças em um colégio público. Acabadas as férias, eu
tinha um outro trabalho e não voltaria mais para Porto Alegre.
Aline se encarregou de conseguir uma imobiliária para alugar,
mobiliado, o apartamento de Porto Alegre. E foi além: ficou responsável
por todos os trâmites burocráticos, e fez sozinha a minha mudança. Teve
de encaixotar todos os nossos pertences pessoais e os levou para sua casa.
Foi mais do que uma amiga, foi uma irmã.
107
Estávamos conversando há menos de 10 minutos com essa senhora e
ele já expôs a minha vida sem rodeios. Em outro episódio, quando
morávamos em Porto Alegre, minha amiga e comadre Aline Tavares havia
terminado o namoro com um rapaz chamado Marcelo e, em poucos dias,
estava namorando outro rapaz, chamado Francisco.
Como Bernardo conversava bastante com o Marcelo, quando ele
aparecia lá em casa, eu até previ o que ia acontecer. Falei com a Aline que
provavelmente Bernardo ia estranhar a mudança de namorado. Dito e feito.
Foi só a Aline aparecer com o novo namorado que Bernardo disse: “Tia
Aline, cadê o tio Marcelo? Você não está mais namorando ele?”
Foi uma saia justa daquelas, e tivemos, todos, de dar risada. Ainda em
outro momento, a ex-esposa do meu pai ligou para falar com as crianças.
Meu pai havia falecido há seis meses e, por não manter boas relações com
ela, nunca mais a procuramos. Nem no seu nome eu falava; não havia mais
motivos para nos relacionarmos.
Maria Júlia atendeu o telefone e conversou durante alguns minutos
com ela. Na vez do Bernardo, ele perguntou:
– Vovó Sônia, você ainda não morreu? – Maria Júlia, a babá e eu nos
entreolhamos e não conseguimos segurar o riso.
Na cabecinha dele, os dois tinham morrido ao mesmo tempo,
suponho. Até porque eles deixaram de ver a Sônia, que nunca foi aceita, e
com razão, pela família. O distanciamento repentino dela, para ele, que
sabia da morte do avô, deve ter gerado essa confusão. Os dois saíram de
sua vida ao mesmo tempo.
Além da franqueza excessiva, o comportamento do Bernardo era
imprevisível. Quando ele tinha quatro anos, fomos ao Clube Caixeiros
Viajantes, do qual éramos sócios, para passar o dia e irmos à piscina. Era
um sábado de verão, e o clube estava lotado.
Maria Júlia e Bernardo estavam na piscina de crianças, e eu
conversava com uma amiga fora da piscina. Apesar da conversa animada,
eu não tirava os olhos deles, sobretudo do Bernardo. Mas, como ele tinha
medo de entrar na piscina, eu não estava muito preocupada. Não havia o
perigo de ele se atirar na piscina.
Só que sem mais nem menos, sem qualquer indicação do que iria
fazer, Bernardo abaixou a sunga e, mirando a piscina infantil, fez xixi na
água. Parecia até uma fonte, um chafariz, de tão tranquilo que ele estava
naquela posição.
108
Eu saí correndo, gritando, para evitar que ele continuasse a mijar na
piscina, mas não dava mais tempo de fazer nada. Pensei que seria
repreendida por algum sócio ou funcionário, estava esperando que alguém
viesse falar comigo, mas não sei como, demos sorte e passou despercebido.
Bullying no colégio?
110
O incrível é que Bernardo comemorou muito o fato de ter feito um
papel secundário, acreditando ser melhor do que o principal. Dizia:
– Vou fazer uma peça no colégio. Eu tenho um papel secundário! – e
comemorava.
O lado artístico não parou por aí. Em dezembro de 2011, o roteiro “O
assassino”, que Bernardo fez para um vídeo de cinco minutos, tarefa da
disciplina de Audiovisual, realizada na Escola Parque 210, foi escolhido
como o melhor roteiro da sala. O roteiro era uma história de suspense,
gênero que muito o atrai.
111
Eu estava a ponto de explodir de orgulho. Bernardo iria, portanto, para
o sexto ano do Ensino Fundamental (o que correspondia à antiga quinta
série) e Maria Júlia, para o oitavo ano (antiga sétima série).
Se eu tinha qualquer dúvida quanto à adaptação do Bernardo ao
colégio, ela foi logo dissipada. Correu tudo bem no primeiro ano no COC.
As notas do Bernardo no colégio eram ótimas. No primeiro bimestre,
contudo, as notas foram um pouco mais baixas do que nos bimestres
seguintes, em virtude do período de adaptação à nova escola. Mas, à
medida que ele se acostumava com o método de ensino, as notas foram
subindo.
A maior dificuldade surgiu com a interpretação de textos. Inicialmente
tirou notas baixas em História e Língua Portuguesa, que exigiam mais
subjetividade. Ele dominava a matéria; o problema era entender as
perguntas. Sentei com ele e conversamos. Mostrei a ele como ele sabia
todas as questões e só tinha se confundido na forma como elas foram
pedidas; se a pergunta tivesse sido mais objetiva, ele teria gabaritado. Com
isso, ele não se sentiu tão culpado pelo erro. Maria Júlia também lhe deu
muito apoio. A partir daí, a cada novo exame dessas disciplinas, as notas
foram melhorando.
E, Mesmo com aquela dificuldade específica, a menor nota que ele
tirou foi 6.0 em Língua Portuguesa; nas outras matérias, as notas foram
acima de 7.0. Em Ciências, sua disciplina preferida, obteve 9,42; em
Ciências Sociais/Filosofia, 9,82; seguido de 8,32 em Geografia; 8,15 em
Matemática e 7,82 em Redação. No segundo bimestre, houve um aumento
considerável em todas as notas.
Foram seis notas dez! Em Ciências, Ciências Sociais/Filosofia,
Geografia, História, Artes e Educação Física. Em Matemática, obteve 9,39,
seguido de Língua Portuguesa, 9,28. No terceiro bimestre, manteve médias
acima de 8.0.
O que mais nos surpreendeu foi o desempenho em Redação. Quase
sempre tirava dez! É um menino muito criativo, cuja imaginação parece
não ter limites. Se o professor propunha um tema livre, ele vibrava. Gosta
muito de criar histórias, principalmente de ficção científica.
O gosto pelos estudos ele havia adquirido da irmã. Ela estuda muito e
se esforça para bater recordes em notas máximas. Das onze disciplinas do
boletim, ela já tirou nota 10 em dez delas. Só não tirou em todas porque
não é boa em educação física, o que não a incomoda nem um pouquinho.
112
Acredito que o gosto pela leitura ele tenha desenvolvido com as idas à
livraria desde pequeno e pelo exemplo que tenho dado ao longo dos anos.
Na hora de dormir, eu os convidava a pegarem um livro e a deitarem ao
meu lado, em minha cama, para lermos os três juntos.
Perguntava a opinião dele sobre os livros, quais eram os seus
preferidos, que assuntos atraiam sua atenção. Explicava a importância da
leitura em suas profissões e vidas; com isso, foi natural que eles
valorizassem a leitura tanto quanto eu.
Percebo que Bernardo tem na Maria Júlia um forte referencial, mais
até do que em mim. Orgulho-me disso. Ao buscar ser mais parecido com
ela, ele passou a valorizar muito os estudos. Não se contenta em tirar notas
médias. Quer ser um dos melhores da turma. Por vezes, exige-se demais e
decepciona-se se as coisas não saem exatamente como planejava. Tanto
esforço e disciplina são, mais cedo ou mais tarde, recompensados.
113
XIII- OUTRO MODO DE SER
114
Alguns seres humanos sabem amar essas diferenças. Outros as temem
e as rejeitam, mas todos nós somos amados ou rejeitados pelos pequenos
traços que nos caracterizam. Com Bernardo, não poderia nem teria por que
ser diferente.
116
um olhar ingênuo para os acontecimentos da vida. É um menino meigo e
sensível.
A ingenuidade dos autistas é consequência da impossibilidade de
fazer suposições sobre as intenções dos outros, já que não têm senão
unicamente uma representação da superfície desse outro, e não de seu
pensamento.
Embora tenha evoluído muito nesse sentido – com o tratamento
psicanalítico e com as próprias experiências de vida –, ainda demora para
captar certas nuances de linguagem, tais como deboche, ironia e
sarcasmo.
Para se ter uma noção de como a subjetividade na linguagem lhe é
estranha, há mais ou menos quatro anos, quando ele tinha dez anos de
idade, estávamos – Bernardo, Júlia e eu – assistindo a um filme, quando
algo me incomodou, e eu disse: “vontade de mandar fulano para o
espaço”. Bernardo, prontamente, replicou:
– Mãe, quem você quer mandar para o céu?
– Não. Não. Não quero mandar ninguém para o céu de “verdade” – eu
disse – É apenas força de expressão.
E a coisa não parou por aí. Ele queria saber o que era força de
expressão. Eu expliquei.
Em outro momento, também quando estava com raiva, eu disse:
– Quero que tudo se exploda!
– Mãe, você tem uma bomba?
– Lógico que não, meu filho. É só jeito de falar. Fique tranquilo!
Para ele, era difícil compreender o sentido conotativo das palavras; só
havia o denotativo. Hoje é mais fácil fazê-lo entender que as palavras,
dependendo do contexto, podem ter vários significados.
Mas por que a subjetividade é tão difícil para os autistas? A resposta é
que neles prevalecem os automatismos de conduta que os empurram a
repetir de modo idêntico suas reações perante diferentes estímulos ou
perante os mesmos estímulos em diferentes contextos. Eles ficam, assim,
impedidos de dar diferentes significados ao mesmo estímulo, de acordo
com os diferentes contextos e situações em que esse mesmo estímulo
aparece.
117
Ocorre que a subjetividade consiste, precisamente, em interpretar e
atribuir sentidos diversos à mesma coisa de acordo com as circunstâncias
tanto interiores quanto exteriores em que ela se apresente.
No entanto, os automatismos são baterias de movimentos que se
disparam automaticamente pela ativação de circuitos fixos do Sistema
Nervoso Central e que não têm significação nenhuma, embora, com o
tempo e a experiência, alguns autistas aprendam a se valer deles em forma
defensiva ou para convocar a atenção de seus pais.
A questão é conseguir que os autistas valorizem mais as significações
e não fiquem focados na condição material das coisas ou no significado
literal das palavras.
Em abril de 2012, recebi uma carta do Bernardo, na qual ele dizia,
entre outras coisas, que quando ficasse rico, compraria uma mansão para
mim.
118
A carta dizia:
Nesse bilhete, Bernardo escreveu em letra de forma, que era como ele
escrevia quando aprendeu a ler e a escrever. Também não tinha
preocupação com fazer uma letra bonita, de tamanho uniforme. Ás vezes,
as letras se agrupavam, umas quase em cima das outras.
119
120
Poucos meses depois, dias antes do Natal, recebi outro bilhete.
Bernardo passava a me chamar de “mãe”, em vez de “mamãe”, e, a partir
de então, só me chamaria de mãe. Mamãe era coisa de criança, e ele
estava crescendo! Ele se esforçava para ter um comportamento menos
infantil em todos os sentidos. Ele se exigia demais, não se permitia errar,
procurava me agradar em tudo; desejava a minha aprovação. Era 17 de
dezembro de 2010.
121
De tempos em tempos, Bernardo repetia a mesma frase:
– Mãe, eu vou morar com você para sempre.
Decidi, então, brincar com o exagero.
– Isso é uma ameaça, Bernardo? Você está me ameaçando?
Ele dava gargalhadas. O humor foi um bom recurso para lidar com
alguns sintomas do Autismo e para tentar descontraí-lo, tirá-lo da
formalidade. Bernardo levava tudo muito a sério.
Depois que descobriu as teorias espíritas, Bernardo dizia que, se
reencarnasse, queria que fosse como meu filho novamente.
– Pode deixar, filho, que, se existir reencarnação, pedirei para ser sua
mãe novamente. Sua e da Maria Júlia.
Um assunto frequente nos bilhetes e nas cartas que recebo dele é o
nosso relacionamento; ele insiste que quer morar comigo até “morrer”.
Houve uma época que ele dizia que iria me congelar quando eu morresse
e esperar o momento em que fosse possível, cientificamente, me
descongelar para me fazer reviver.
Como adora Ciências, ele mesmo descobriria uma forma de me
descongelar. Tive, então, mais uma vez, de lhe esclarecer que a vida tem
seu ciclo inevitável de nascimento, crescimento e morte e que, além do
mais, congelar uma pessoa era crime; portanto, era bom tirar essas ideias
da cabeça.
Não supervalorizei sua fala; é natural vivenciar o medo da perda e é
muito bom que ele se sinta à vontade para expressá-lo.
Além do que é compreensível que um menino que perdeu o pai
quando tinha apenas três anos deposite em mim o medo da perda que
vivenciou. Acredito que, se ele tivesse os pais vivos, não teríamos esse
tipo de conversa. Ele ansiava por segurança.
122
A mania de doença
123
Em uma aula de Ciências sobre protozoários, surgiu a preocupação
com o “barbeiro”, o inseto que transmite a Doença de Chagas. Ele não
podia ver qualquer inseto que tinha certeza de que era o barbeiro. Não tinha
jeito. Chegou ao ponto de dizer que já tinha sido picado pelo mosquito, que
estava doente, que não tinha mais jeito. Um fatalismo sem precedentes.
Ele é tão preocupado com sua saúde que deixou de comer Nutella
depois que passou mal uma vez. Tentei ponderar com ele, mas foi inútil.
Ele dizia que tinha pego uma virose por causa da Nutella e, a partir daquele
dia, decidiu não comer mais a pasta de avelã.
124
Mas, voltando aos cartões, o do Bernardo daquele ano foi o mais
criativo de todos que recebi até agora e, no mínimo, continha uma pitada
de humor negro. Era, por sinal, bem mórbido.
Em um papel ofício branco, dobrado ao meio, ele tinha desenhado,
em caneta preta com detalhes em caneta vermelha, dois túmulos, um ao
lado do outro, um para mim e outro para ele, com nossos nomes nas
respectivas lápides. Ou seja, juntos na vida, juntos na morte. Juntos para
sempre. Foi uma declaração de amor sem igual.
Estou acostumada às suas exageradas manifestações de carinho, mas
esta me surpreendeu um pouco. Ele me confidenciou, horas depois, que,
enquanto desenhava na sala de aula, um colega havia perguntado:
– Bernardo, sua mãe morreu?
Bernardo achou engraçadíssima aquela confusão. Eu também. Sei o
quanto ele é autêntico, leal aos seus sentimentos, sem vergonha de
expressá-los. Bernardo tem um jeito só dele de expressar seus sentimentos,
bem diferente dos meninos da sua idade. Na carta abaixo, percebe-se
diferença na sua letra; não escreve mais em letra de forma, a leitura é mais
fácil, uma vez que as letras estão mais caprichadas, menores, e mantêm um
espaço regular, uniforme, entre si.
Abaixo, o “mórbido” cartão do Dia das Mães:
125
“Cara Mãe,
Eu estou escrevendo nesta carta coisas muito importantes que eu não sei
como simplificar, mas eu preciso explicar: você é algo muito importante
na minha vida, eu quero poder sentir o seu material genético ou DNA
misturado nas minhas células, sem frescura nenhuma; quero poder ter
126
orgulho de você por ser a melhor e pra mim única mãe no universo
inteiro, incluindo Outworld, Edenia e o Netherrealm, quero estar ao seu
lado por toda a eternidade; quero que você esteja sempre bem, sendo
abençoada por Deus, Jesus, São Cartonildo e pelos Deuses Anciões. Você
sabe de todas as coisas que eu gosto de fazer na vida, mas você precisa
saber que nada disso tem importância na minha vida sem você ao meu
lado! Eu preciso de você. Eu nunca vou m e separar de você! Eu ficarei
com você até a morte...”E por aí vai....
O São Cartonildo a que ele se refere na carta é um santo inventado
por nós três, o santo que protege os usuários dos cartões de crédito,
impedindo que este seja rejeitado. Foi criado em um momento de
desespero financeiro, e é motivo de gargalhadas para nós.
Ao entrar na adolescência, era esperado que Bernardo tivesse
vergonha de ser visto ao meu lado no colégio, principalmente quando
estivesse com seus colegas de turma, como fazem todos os meninos da sua
idade. Eu estava me preparando para essa fase com a cabeça feita para não
encará-la (a atitude do meu filho) como uma rejeição.
Mas isso não aconteceu. Talvez o tratamento psicanalítico aliado ao
temperamento do Bernardo e a tudo que ele teve de superar nos últimos
anos o tenha influenciado positivamente nesta questão, ou seja, uma
característica singular de meu filho, ou todas as coisas juntas, quem sabe?
O peculiar é que ele não tem vergonha de falar comigo quando vou ao
colégio buscá-los ou resolver qualquer outro assunto com os diretores e
funcionários do COC. Quando me avista, Bernardo vem correndo em
minha direção, me beija, me abraça e me dá a mão.
A irmã mal finge que me vê. Acena com a cabeça, de longe, e sai
com as colegas para mais longe ainda das minhas vistas.
127
O que importa é competir
128
decidiu mudar, mais uma vez, de atividade física. Escolheu o judô, onde
parece ter se encontrado. Só tira nota dez e é muito elogiado pelo
professor, por sua disciplina e dedicação.
Até prova oral sobre os golpes a turma tem. E, quando algum aluno
não sabe a resposta, o professor pergunta para o Bernardo, que tem tudo
decorado na ponta da língua. É recompensador ver os progressos do meu
filho em todos os aspectos de sua vida. E é mais do que reconfortante
constatar que, depois de todas as dificuldades pelas quais ele passou, está
muito mais maduro, equilibrado, feliz e socialmente adaptado.
Ainda no ano passado, Bernardo chegou em casa contente com uma
medalha de bronze pendurada no pescoço por ter tirado o penúltimo lugar
em uma partida de xadrez.
– Como assim? – perguntei. Não sabia que ele ia competir. Não tinha
me dito nada. Sabia menos ainda sobre o xadrez.
Como ele iria competir em xadrez se nem tabuleiro tinha? Não sabia
que estava fazendo aulas de xadrez, e indaguei-o a respeito.
– Não estou treinando em lugar algum, mãe – ele disse.
Então tá, sem tabuleiro, sem prática, ele competia do mesmo jeito. E
comemorava alegre o penúltimo lugar. Está certo. Outra vez: o que
importa é competir!
129
130
Dizia a carta:
“Cara mãe, é difícil para mim tentar expressar todos os meus sentimentos
por você neste fragmento industrializado de madeira, mas, mesmo assim,
eu tentarei fazer isso, pois meu amor por você é tão grande e tão forte,
que vale muito a pena conseguir uma tentativa de cumprir algo tão puro e
valioso como isso. Você e a Maju são as melhores coisas que existem na
minha vida. O melhor dia da minha vida foi o dia no qual eu nasci, pois
pude conhecer você, a pessoa mais sábia, mais bonita, mais opinativa e a
melhor mãe do mundo. Você vale mais que tudo nesse cosmos. Você é a
melhor coisa que existe na minha vida, a energia que me mantém vivo e
feliz com muito prazer. Você torna a minha vida algo valioso, não há nada
em você que eu não goste, eu sempre amarei você, independente de
qualquer coisa. A cada vez que eu fico com você, eu compreendo cada vez
mais o quanto eu preciso de você, pois se você não estiver na minha vida,
aí morrerei. Quero ficar contigo para sempre. Amo você de maneira
infinita. Quero que você tenha saúde, uma boa vida, e que seja feliz!
132
O que houve, meu filho?
133
– Mãe, eu não quero que você morra! – falou. Senti um aperto tão
forte no peito. O que poderia dizer a ele? Optei pela sinceridade:
– Eu também não quero morrer, meu filho, e farei tudo que estiver ao
meu alcance para que isso não aconteça, está bem? – indaguei.
Mesmo assim, ele continuou chorando por um bom tempo e repetia
que não queria que eu morresse. Eu permaneci deitada ao seu lado, de
mãos dadas, pensando como meu filho tinha amadurecido em pouco
tempo.
Ao deixar seu quarto, lembrei-me de uma situação quase idêntica que
eu havia vivido com o meu pai depois da morte da minha mãe. Eu tinha
mais ou menos dezoito anos na época. Era mais velha do que o Bernardo
hoje, mas o episódio era muito parecido.
Meu pai e eu estávamos conversando e eu lhe disse que, quando ele
morresse, eu morreria junto. Também chorei muito, um choro
incontrolável. E meu pai dizia:
– Para com isso, minha filha. Deixa de bobagem. Não vai morrer
nada.
Mas eu continuava chorando. Não conseguia imaginar minha vida
sem meu pai. Eu era muito apegada a ele, éramos muito próximos, e o
idealizava demais – menos do que na infância, mas, de qualquer maneira,
mais do que deveria. Ele continuava sendo o meu herói.
Mas a vida se encarregou de colocar em perspectiva essas angústias;
depois que meus filhos nasceram, deixei de ser filha para me tornar mãe.
Continuava amando muito meu pai e sentia bastante sua falta,
particularmente por ele morar longe de nós, mas havia algo maior na
minha vida: duas crianças que precisavam de mim.
O que despertou esse medo tão forte de perda no Bernardo é um
mistério. Pode ter sido simplesmente o início de uma nova fase em sua
vida: a adolescência, com todas as implicações que ela traz.
Mas o certo é que esse dia foi um marco divisor para nosso
relacionamento mãe e filho: um novo sentimento – poderoso – tinha
aflorado, contribuindo para que o amadurecimento de meu filho se
intensificasse e para que surgissem novos questionamentos sobre a vida e a
morte.
134
Ele se tornou ainda mais carinhoso, ainda mais prestativo; passou a se
oferecer para nos ajudar nos afazeres domésticos; assumiu a incumbência
de lavar a louça diariamente (diz que esse é seu trabalho); arruma nossas
camas (embora protestemos com veemência); e se tornou ainda mais
afetuoso, beijoqueiro. Cada vez mais o Autismo fazia parte do passado.
135
– Mas por quê? O que aconteceu?
– Foi algo que aconteceu hoje? (Ele tivera aula de judô naquela
tarde) Eu quero lhe ajudar, filho. Diga o que aconteceu – insisti.
– Meu filho, isso faz parte, você sabe. Um dia você ganha, no outro
você perde.
– Eu sei, mãe, mas já perdi duas lutas depois do acidente com o meu
ombro (em uma luta há dois meses, o adversário o derrubou e ele caiu de
mal jeito, machucando o ombro direito, e afastando-o das aulas de judô por
mais de um mês).
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137
2014: ritual antes de dormir
138
Parece com o papai
Com a mamãe também
Parece com a vovó
Não parece com ninguém
Ele é ele só
Sua majestade, o Bernardo”
Bernardo fala sozinho. Essa mania ele não perdeu com o fim do
Autismo. No entanto, esse sintoma tem diminuído ao longo dos anos; ele
fala bem menos agora, com intervalos cada vez maiores entre suas
ocorrências. Admito que sua mania de falar sozinho me assustava; tinha
139
muito medo de que ele sofresse bullying graças a esse comportamento,
sobretudo dos colegas da escola. Isso não me assusta mais.
Conversamos a respeito:
– Não se preocupe, mãe. Eu não falo sozinho na rua. Eu sei que as
pessoas vão achar estranho se eu fizer isso. Só falo sozinho em casa.
– Mas o que você fala nessas horas, meu filho? Sobre o que você fala
quando está sozinho? – pergunto, curiosa.
– Não sei explicar direito.
Eu insisto tanto que ele cede.
– Mãe, eu crio histórias sobre coisas reais que irão acontecer. Nós
vamos ao zoológico agora, certo? (estávamos nos arrumando para passar o
dia no Zôo) Então, eu crio histórias na minha cabeça sobre o que
acontecerá lá, os animais que verei, esse tipo de coisa.
É uma antecipação, penso. Bernardo se prepara para as situações que
irá viver. Ele me tranquiliza; promete que não falará sozinho na rua; ele,
mais do que ninguém, não quer ser vítima de bullying; em casa, no
entanto, essa prática é tolerada.
Se falar sozinho é um sintoma de TOC – Transtorno Obssessivo
Compulsivo – isso eu não posso afirmar, até porque, como afirmei antes,
não é algo que ocorra diariamente. Além disso, é bem compreensível que
um menino que sofreu anos com o autismo apresente, em seu
comportamento, resquícios da doença, excentricidades que não fazem mal
a ninguém, nem mesmo a ele.
Um exemplo de autoestima
140
Embora Bernardo seja considerado um menino bonito, ninguém o
escolheu ou a seus amigos, tão nerds ou “diferentes” quanto ele. Maria
Júlia, ao saber do ocorrido, temeu pela reação do irmão. Ela tinha medo de
que, por não ter sido escolhido, Bernardo ficasse triste ou deprimido. Ela
imaginou que a autoestima do irmão pudesse ser abalada.
Que nada. A reação de Bernardo, mais uma vez, nos surpreenderia.
Ao comentar a escolha das meninas, disse:
– Maju, as meninas, nesta idade, têm muito mal gosto. Imagina que
ninguém me escolheu. Eu, tão bonito! É, realmente, elas não sabem
escolher – E mudou de assunto.
Maria Júlia achou graça, não esperava essa resposta. Ou seja, para o
Bernardo, essa pequena rejeição não abalou em nada a confiança que ele
tem em si mesmo. O problema era delas, que não sabiam o que era bom, e
não dele.
Sozinhas mais tarde, Júlia me relatou toda a história, ressaltando a
resposta do irmão; achei tudo muito engraçado e mais uma vez senti muito
orgulho do meu filho.
É gratificante comprovar que Bernardo se tornou um adolescente
seguro, consciente de seus pontos fortes e de suas fraquezas. Não é o
outro, felizmente, quem lhe diz quem ele é; o outro não tem o poder de
fazê-lo duvidar de quem ele é; o outro não é capaz de abalar suas
convicções.
Infelizmente, a peça foi cancelada. Com a junção de tantas histórias,
o roteiro ficara inviável. Porém Bernardo encenou outra peça, desta vez
em língua espanhola, chamada Hansel Y Gretel. O seu papel era de pai de
João e Maria.
141
– Ah! Isso eu não sei. É diferente apenas.
Bernardo insiste.
– Mas é melhor ou pior? E o Messi?
E por aí vai. Tenho de saber as qualidades de todos os jogadores de
futebol e compará-los.
– O Ronaldo é melhor ou pior do que o Messi?
142
dias em que posso dormir até mais tarde, fiquei emocionada com a
homenagem, que incluía farto café da manhã na cama.
Havia panquecas americanas preparadas pela Maria Júlia, uma xícara
de café com leite, um pote de manteiga para as panquecas, um tablete de
diamante negro e um buquê de pequenas margaridas artificiais.
Além disso, recebi também um enorme cartão de cartolina branca,
feito por eles, e decorado com uma foto antiga de nós três: morávamos
ainda no Leme. Júlia tinha dois anos na época; Bernardo, menos de um
ano. É uma das minhas fotos preferidas. Nela, estamos os três na banheira,
formando um trenzinho. Ela representa a nossa união.
“A cada vez que estou perto de você, sinto que minha alma possui paz,
pois você, sendo minha maior felicidade, faz com que eu me esqueça de
todos os conceitos negativos em minha vida. Sempre esteve ao meu lado,
143
sempre me forneceu auxílio nos momentos em que eu mais precisei,
sempre foi a pessoa mais sábia de todas, sempre foi a pessoa mais justa de
todas, sempre foi a pessoa com a beleza mais bem desenvolvida de todas e
sempre foi a melhor mãe do Cosmos. Sei que você nunca deixará de ser
assim. Você é única. Ninguém jamais será como você. O dia em que eu
nasci foi o melhor da minha vida, pois eu pude conhecer a Maju, o meu
pai e você (perceba que o termo anteriormente transcrito está destacado
com o uso de negrito e letras maiúsculas). Você é a melhor coisa a existir
em minha vida. Te amo infinitamente. Feliz Aniversário!” - Bernardo José
Mendina de Souza Martínez.”
144
Portuguesa, devido, precisamente, à interpretação de textos, esse problema
foi contornado imediatamente.
Um menino surpreendente
147
Minha prima lingüista ficou impressionada com a competência
idiomática dele, pois o que ele fez (assim como os intérpretes profissionais)
foi uma tradução idiomática, e não literal, o que necessita de mais
abstração. Ele poderia ter traduzido a frase literalmente com a expressão to
be prepared, mas a expressão mais usual é mesmo to be ready, que foi o
que ele fez.
E assim, sem mais nem menos, descubro, em uma tarde de Carnaval,
que meu filho é poliglota. Fala português, espanhol e inglês com
desenvoltura, sendo que este último ele aprimorou por conta própria e sem
estardalhaço. Além de poliglota, é autodidata.
Outro medo que eu tinha era de que Bernardo não tivesse iniciativa
na vida e precisasse sempre de um empurrão para seguir em frente, para
enfrentar novos desafios. Esse medo, assim como tantos outros que
povoavam minha mente, acabou.
148
desceu junto com o portão para nunca mais. Achei esse lance de ter gatos
muito sem graça! Foi nossa primeira e última experiência com eles.
Veio, então, a “Estrelinha”, uma cachorra vira-lata que recolhemos
da rua, a “Evita Perón”, uma Lhasa Apso cor de mel, que foi roubada por
um dos vizinhos da minha avó materna, em Santana do Livramento, onde
passávamos nossas férias (só soubemos do roubo anos depois; pensamos
que ela tivesse se perdido). Tivemos também a “Beija”, uma poodle
branca, que mostrava clara preferência pela minha irmã do meio, e os
poodles creme “Bella” e seu filho “Clark Gable”.
Com o passar dos anos, percebi que voltar a morar em uma casa
com meus filhos não seria possível nem a curto nem a médio prazo. O
nosso apartamento em Porto Alegre fica no Bom Fim, um bairro que dá
acesso a tudo que precisamos: supermercados, lojas, bancos, padarias,
pontos de ônibus e de táxis, hospitais, shoppings, farmácias. Não
precisávamos de carro para nos locomovermos.
A maioria dos compromissos fora de casa eu fazia a pé. Até o
colégio das crianças era perto. Menos de seis quadras de distância. Por
tudo isso, trocar esse apartamento bem localizado por uma casa em um
bairro distante, precisando de carro para ir a qualquer lugar, não estava nos
meus planos.
Com a mudança para Brasília, fomos morar, mais uma vez, em um
apartamento, o apartamento emprestado da minha tia, na Asa Norte, no
Plano Piloto. Foram dois anos e outra mudança: desta vez para um
apartamento alugado na Asa Sul.
A vantagem do apartamento da Asa Sul era que ficava em frente ao
Dínatos COC e meus filhos só precisavam atravessar a faixa de pedestre
para irem para a escola. Praticidade total! Além disso, era bem mais perto
de meu trabalho no Senado Federal. Também ficamos dois anos nesse
apartamento e nos mudamos novamente. Desta vez, para um apartamento
no Guará. Essa última mudança ocorreu em agosto de 2014.
Quinze dias depois, ainda estávamos nos acostumando com o
apartamento, quando em uma ida à Feira dos Importados vimos vários
filhotes de cães à venda, desde as pequenas raças até as de grande porte.
Sabendo de antemão que eu não iria concordar em comprar um filhote, as
crianças só pediram para vê-los. Nada além disso.
149
Concordei com o pedido e caminhamos lentamente, encantados,
vendo todos os filhotes que estavam sendo expostos. Avistamos, então, um
lindo filhote de boxer. Meus filhos perceberam como eu fiquei comovida
com o cachorrinho e, em um momento de insanidade, perguntei o preço.
Não estava caro. Fiquei dividida. Queria tanto lhes proporcionar essa
alegria, tinha adiado por tanto tempo esse pedido deles!
Em um impulso, comprei o filhote de boxer. Eles ficaram eufóricos
e eu também. Teríamos, finalmente, um cachorrinho. O único
inconveniente é que ele teria de ser buscado no dia seguinte. Tudo bem.
Somente um dia de espera.
À noite, praticamente não dormi. Perdi o sono ao imaginar aquele
filhotinho crescendo em um espaço tão pequeno. Ele cresceria muito.
Comecei a imaginá-lo mijando e cagando em todo o nosso apartamento.
Imaginei também como seria pequeno o espaço para ele se movimentar
livremente.
Boxer é uma raça para grandes espaços, de preferência, uma casa
com gramado. Seria estressante para ele morar tão confinado! E tinha
mais: eu ficava fora a maior parte do dia no trabalho e meus filhos tinham
o colégio. Quem limparia a sujeira do cachorro? Onde ele dormiria? Na
sacada?
Compreendi que tinha cometido um grave erro ao comprar esse
cachorro, mas não sabia como voltar atrás, não sabia como dizer às
crianças que o sonho deles seria, mais uma vez, adiado. Não queria
desapontá-los, mas não havia outra opção. Eu teria de desfazer o negócio.
Foi quando surgiu a idéia de trocar o filhote de boxer por um
cachorro menor. Bem menor. Conversei com o vendedor e só havia à
venda um Lhasa Apso branco, de um mês e meio, pelo qual as crianças e
eu nos apaixonamos no minuto que o vimos. Peguei-o no colo e disse:
- Já é meu.
Maria Júlia e Bernardo exultaram. E como havíamos planejado,
voltamos para casa com dois potes de comida, uma coleira e o Gandhi.
Esse foi o nome escolhido por nós em meio a muitos nomes cogitados. Eu
só estranhei a conversa do vendedor.
Ele ficava repetindo que se o Gandhi tivesse qualquer problema, por
mínimo que fosse, que eu ligasse para ele que o seu veterinário de
150
confiança o atenderia. Ressaltou várias vezes para eu não levar o Gandhi a
outro veterinário ou não haveria garantia para a compra do cachorro.
Insistia também para eu manter a mesma ração que ele estava dando.
Dizia que se eu trocasse de ração, com certeza o Gandhi ficaria doente.
Achei muito estranha essa conversa, mas logo, logo, ela faria sentido.
Foram quatro dias animadíssimos. Todo branco, Gandhi parecia um
coelhinho, saltitava para todos os lados, era agitado, brincalhão, um
encanto. Engraçado como nos apegados tanto a ele em tão pouco tempo.
No quinto dia, de madrugada, ele começou a vomitar. E não parou
mais. Ele se contorcia todo. Não quis esperar. Chamei meus filhos, minha
irmã, que estava de visita em minha casa, e fomos ao plantão veterinário.
Não sem antes ligar para o vendedor. Em vão. Ele não atendeu. Eram
quase três horas da manhã.
Ainda bem que não esperei raiar o dia. No plantão, foi feito exame
de sangue, constatando que Gandhi tinha Parvovirose, uma doença fatal na
maioria das vezes. Aquela conversa fiada de doença fez sentido, afinal.
Ao vender o filhote, ele sabia que o cachorro podia estar
contaminado e, mesmo assim, ele o vendeu para mim. E eu tinha provas
disso: a Parvovirose tem um período de incubação de quase quinze dias e
eu estava com o Gandhi há apenas quatro dias.
Foi apenas durante a conversa com o veterinário que fui informada
de que não se pode comprar filhotes na Feira dos Importados, vez que não
se pode confiar na procedência dos filhotes e nas condições de higiene em
que eles vivem. O preço baixo é resultado dessa falta de cuidado.
Em menos de uma semana, Gandhi morreu. Tive de dar a notícia
para os meus filhos. Assim como eles, eu estava inconsolável. Para minha
surpresa, Bernardo foi quem consolou a Júlia. Eu pensei que seria o
contrário. Muito abalada, Júlia disse que não queria outro cachorro e eu
respeitei sua decisão.
Em junho de 2015, quase um ano depois da morte do Gandhi, ao
passar por um Pet Shop no Sudoeste, vi um filhote de Shi Tzu, de
aproximadamente três meses. Parecia uma bolinha de pêlos marrom. Eu
me apaixonei por ele na hora e pensei que já era tempo de esquecer a
morte do Gandhi e olhar para frente.
Foi uma surpresa para meus filhos. Liguei para a Maria Júlia, que
estava no colégio, e disse que passaria para busca-los. Ao mesmo tempo
151
que queria surpreendê-los, precisava da ajuda deles para carregar o
cachorrinho no carro. Peguei uma casinha emprestada no Pet Shop, mas
ele não parava de latir.
Maria Júlia ficou tão, mas tão surpresa com a novidade que não se
deu conta de que era um cachorro. Pensou que fosse um bicho de pelúcia
ou algo parecido quando o viu.
- Olha o seu Brioche, filha.
Esse foi o nome que ela disse que colocaria se tivesse outro
cachorro. Achei por bem deixa-la escolher o nome desta vez. Na outra,
quem escolheu fui eu. Até brincávamos que o Gandhi morreu cedo pois
era muito “espiritualizado”, que não colocaríamos mais nomes de pessoas
de bem nos animais. Riamos que, para viver bastante, o nome deveria ser
“Hitler, Stalin, Sarney”.
Brioche trouxe mais do que alegria para nossas vidas: ele trouxe
mais responsabilidade e mais amadurecimento para o Bernardo. Embora
ele não seja exclusivamente de ninguém – Maria Júlia, brincando, afirma
que é a “sua mãe” – foi o meu filho quem chamou para si praticamente
todos os cuidados com o Brioche. Sem reclamar ou ficar de má vontade.
Está sempre disposto a alimentá-lo, a brincar com ele, a passear.
Mesmo que isso signifique vários passeios por dia. Nosso cachorrinho é,
disparado, o animal que mais vive na rua. Há dias que passeia mais de seis
vezes!
Os passeios fazem parte da sua rotina diária: Brioche nos acorda às
7 horas da manhã, às vezes até antes, para a primeira volta do dia. Como
não consegue pular em nossas camas, ele fica em pé, nas duas patinhas
traseiras, e late para chamar nossa atenção. Já levei cada susto!
Invariavelmente, quem atende ao seu chamado é o Bernardo.
Mesmo sonolento, em jejum e em férias escolares, ele levanta
prontamente, acaricia o cachorrinho e cumpre o seu dever.
Preocupado com a saúde do Brioche, ele nos impede de alimentá-lo
com qualquer coisa que não a sua ração. E insiste em nos explicar que os
bichos, independente da espécie, não devem ser alimentados com comida
para humanos. E repete, sempre que surge a oportunidade:
- Mãe, não se esqueça de que ele é um cachorro!
152
É muito benéfico para o meu filho que ele tenha essa lucidez, essa
compreensão sobre o mundo animal e a vida. Bernardo respeita
profundamente a natureza e suas leis, e vive em harmonia com tudo que o
cerca.
Bernardo espichou nos últimos anos. Está muito alto. Aos dezenove
anos, mede quase 1,80 m. Cabelos castanhos e lisos, com corte parecido
com o dos Beatles, curto e cheio, com um leve repicado, sua aparência e
seu jeito de vestir é de “argentino”, herança paterna, sem dúvida; seu
sorriso é cativante, as covinhas chamam atenção; assim como os olhos:
grandes, expressivos e castanhos claros.
Adora ler livros de piadas e assistir às “Videocassetadas” do
Domingão do Faustão. Dá gargalhadas com as trapalhadas. Contagia a
todos com seu jeito calmo e seu bom humor. O que eu mais temia – que
Bernardo fosse um menino infeliz, alheio a tudo e a todos e
completamente dependente de mim e de outras pessoas para viver – não
aconteceu.
Ele é um rapaz normal, com preocupações típicas da idade – estudos,
meninas, faculdade, esportes. Mudou tanto desde o início do tratamento
que é até difícil acreditar que um dia ele teve Autismo. Conversa sobre
todos os assuntos, embora relute para falar sobre sexo comigo – ainda não
teve namorada –, o que é bem compreensível. Falta um referencial paterno,
alguém que possa “deambular nesse mundo masculino”.
De resto, se antes ele não comia praticamente nada, hoje é o oposto:
uma de suas comidas preferidas é a culinária japonesa. Também gosta de
comida árabe, italiana, mexicana e brasileira (até de Tacacá e Acarajé ele
gosta). Come muitas frutas e verduras, e experimenta tudo que eu lhe
ofereço. Enfim, não guarda nenhum traço da infância, quando só comia
arroz, feijão, nuggets e achocolatado.
153
No final de 2014, fomos a um rodízio em um restaurante mexicano na
Asa Sul, bem perto de nossa casa, e Bernardo, além de fazer questão de
usar o sombrero, falava só em espanhol com a atendente, que ficou
encantada com sua desenvoltura e simpatia.
Participativo em casa e na rua, Bernardo se oferece para ajudar nas
tarefas domésticas; lava a louça (diz que nem Maria Júlia nem eu lavamos
direito), arruma as camas (sob nossos protestos), me pergunta de que
forma poderia me ajudar mais. Quando não está estudando, pega um livro
e deita ao meu lado na minha cama para lermos juntos.
Sabe fazer chimarrão (tomamos todos os dias, mesmo no verão, sem
ar condicionado e com a temperatura acima dos 30 graus) e café, aprendeu
a cozinhar com a irmã e faz um macarrão delicioso. Seu café coado é
imbatível, assim como seu ovo frito.
Criamos o hábito de, à tardinha, caminharmos mais de uma hora pelo
bairro, admirando a vegetação (o Cerrado tem uma beleza singular),
comentando a arquitetura das residências, as que gostamos mais, as que
gostamos menos, o que poderia ser mudado aqui, ali, o que seria mantido
se a casa fosse nossa, o estilo de que mais gostamos (rústico, com certeza),
e aproveitamos para abordarmos assuntos que não surgiriam se
estivéssemos em casa, assistindo televisão juntos ou cada um cuidando de
seus afazeres.
Companheiro incansável, ele me acompanha nos serviços da rua sem
reclamar; vamos ao banco, ao supermercado, às lojas, às livrarias. Não me
pede nada de presente; aceita livros e histórias em quadrinhos, mas só se
não forem muito caros; preocupa-se com meus gastos e procura
economizar no que pode.
Exagera na economia, diz que vai vender seus brinquedos para me
ajudar. Fico comovida, mas digo que não precisa. Tudo vai melhorar. É
apenas uma fase. Criar dois filhos não é fácil não! A recompensa é vê-los
tão felizes e independentes, responsáveis por suas vidas, na medida de suas
e minhas possibilidades.
- Mãe, estou dando muito trabalho? pergunta, apreensivo. Eu não
quero lhe atrapalhar. Quero facilitar sua vida, acrescenta.
Eu digo que não, que ele não me dá o menor trabalho, mas faço a
ressalva de que não seria nada de mais se ele me desse trabalho, eu o
amaria do mesmo jeito, afinal de contas, ele é meu filho, e isso faz parte.
154
Questionador, Bernardo me pergunta: “Mãe, o que falta na sua vida para
você ser feliz?”
O que falta para eu ser feliz? Não sei. Deixe-me pensar. A cura do
Bernardo era um sonho que se tornou realidade, uma aposta bem-sucedida;
era o meu desejo quando assoprava as velinhas de bolo de aniversário, era
a minha reza diária na hora de dormir.
O que falta para eu ser feliz? Não sei. E reflito longos minutos
procurando uma resposta. O que eu mais queria aconteceu, mas sempre
falta alguma coisa. Ninguém é completamente feliz. Não o tempo todo.
Talvez a única fase que mais se aproxime da felicidade plena seja a
infância, quando acreditamos que nossos pais são imortais, que têm
poderes de super-heróis e que estamos protegidos de todos os infortúnios.
A maturidade, para mim, é aquele instante em que você compreende
que, apesar da felicidade ser efêmera, é possível ser otimista e ter
esperança no futuro, mesmo vivenciando situações desesperadoras.
Não posso reclamar do presente. Aqui em Brasília, Bernardo e Maria
Júlia desabrocharam. Em Porto Alegre, eram estudiosos e bons alunos,
mas foi aqui na capital do país que vieram os prêmios e o reconhecimento
pelo esforço diário.
No primeiro ano na cidade, Maria Júlia tirou o sexto lugar em redação
em um concurso das escolas públicas do Governo do Distrito Federal
(GDF) e recebeu menção honrosa nas Olimpíadas de Matemática
(OBMEP).
Bernardo se espelhou na irmã e, sentindo dificuldades em
matemática, especificamente nas contas de multiplicação, pediu ajuda a
ela; desde então, tem tirado excelentes notas nas provas desta disciplina.
Talvez mais um ciclo tenha se encerrado; talvez seja hora de voltar
para Porto Alegre, voltar para minha família (muitos dos nossos parentes
moram no Rio Grande do Sul), para meus amigos, para meu lar. Ou talvez
seja melhor esperar o Bernardo terminar a faculdade de Biologia.
Sinto falta do Hector, mas essa falta eu carregarei comigo para onde
eu for. O tempo amenizou a dor, mas não deu fim a ela. Embora ele tenha
falecido há quinze anos – maio de 2004 – ele vive nos meus sonhos, nas
minhas orações, nas minhas lembranças. E são essas memórias felizes que
meus filhos e eu cultivamos. Sei que ele teria vibrado muito com todas as
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superações e conquistas do Bernardo e seu apoio nos fez falta em vários
momentos.
Caminhamos de mãos dadas, Bernardo e eu, admirando o amplo céu
azul de Brasília, ouvindo o canto dos pássaros (a cidade é um mini-zôo
sem grades, com quero-queros, carcarás, pica-paus, corujas nos rodeando)
e pergunto:
– Meu filho, você é feliz?
– Muito, mãe, sou muito feliz, diz ele, e me dá um beijo no rosto.
E, então, tudo, tudo se justifica.
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