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Opinião: Felipe Moura Brasil - As lições de

Zelensky aos brasileiros


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Felipe Moura Brasil


Colunista do UOL

02/03/2022 20h39

Encontrei, legendei em português e publiquei no Twitter


(https://twitter.com/FMouraBrasil/status/1499170890851958789) a
cena do programa satírico "Servo do Povo", lançado em 2015, em
que Vasyl Petrovych Holoborodko, o professor de história
interpretado pelo então comediante Volodymyr Zelensky, faz um
desabafo contra a corrupção dos políticos da Ucrânia e o
conformismo do povo em escolher entre dois corruptos nas eleições
do país do leste europeu.

Filmado por um aluno, o discurso viraliza e ele acaba sendo eleito


presidente na ficção, o que também veio a acontecer na vida real
com Zelensky em 2019, em meio à onda de protesto, surgida pelo
mundo, contra a classe política dominante - ou, de modo mais geral,
o sistema, o establishment, o que inclui as elites econômicas e seus
oligarcas.

"Estou farto e cansado disso. Por que nossos políticos chegam ao


poder e cometem os mesmos erros? É porque eles são
matemáticos. A única coisa que eles sabem é dividir, somar e
multiplicar suas próprias riquezas!"

"Petrovych, nunca ouvi você usando esse linguajar! Por que ficou tão
revoltado?"
"Porque estou farto e cansado dessas merdas. Agora fazem
crianças construírem as cabines! Você sabe por que temos vidas de
cão? É porque começamos nossa escolha nas cabines! Você
entende? Não há quem escolher! Estamos escolhendo entre dois
FDP! Tem sido assim por 25 anos seguidos! Você sabe o que é
interessante? Nada vai mudar desta vez! Você sabe por quê? É
porque você, meu pai e eu vamos escolher um FDP de novo! É
porque 'sim, ele é um FDP, mas pelo menos é melhor que os outros'!
Então esses FDP chegam ao poder e roubam e roubam e roubam!
Esses putos têm nomes diferentes, mas agem da mesma maneira. E
ninguém dá a mínima! Eu não dou a mínima, você não dá a mínima,
ninguém dá a mínima! Se eu pudesse ficar lá só uma semana, eu
mostraria a eles! Eu gostaria que todo professor vivesse como
presidente! E que todo presidente vivesse como professor, cacete!
Estou falando pra você como professor de história. Mas você não dá
a mínima! Bando de FDP!"*

Esse discurso de terceira via segue fazendo sentido no Brasil,


porque, em 2018, ele foi usurpado pelo então deputado federal Jair
Bolsonaro (https://noticias.uol.com.br/politica/governo-bolsonaro/),
que se fez de 'outsider' na corrida presidencial e, após virem à tona
as rachadinhas em gabinetes de sua família, agiu da mesma
maneira pró-sistema que velhos corruptos, com os quais ainda
reforçou aliança.

O slogan real da campanha sarcástica de Zelensky, também ela


baseada em discurso anticorrupção e redes sociais, pelo menos
assumia, ao contrário do decepcionante "Posto Ipiranga" de Paulo
Guedes (https://economia.uol.com.br/paulo-guedes/), que "se não
tem promessa, não tem decepção". Muito pelo contrário, o que se
tem agora na Ucrânia é um presidente apoiado por mais de 93% dos
cidadãos, dizendo para os EUA (e para os livros de história) que
"preciso de munição, não de carona" e defendendo, finalmente com
armas e dinheiro fornecidos por países da União Europeia, a vida de
seu povo e a independência de seu país contra a invasão e os
bombardeios da Rússia de Vladimir Putin, aliado de Bolsonaro.

Depois de enfatizar a posição de "neutralidade" do Brasil (que seria


amenizada pela diplomacia brasileira, compelida a votar na ONU
contra os ataques russos) e também considerar exagerado o uso da
palavra massacre (quando os ucranianos já contavam 352 mortos,
sendo 16 crianças), o presidente "isentão" pró-Putin repetiu em tom
de crítica que o povo da Ucrânia confiou a um comediante o destino
da nação (declaração logo destacada em agência estatal da Rússia,
equivalente à EBC bolsonarista).

Como resumi no Twitter no dia 1º de março:

"Expectativa de Bolsonaro: guerra acaba rapidinho, tudo volta ao


normal, agro ganha adubo e apoia sua campanha, Putin dá
mãozinha virtual.

Cenário: guerra se estende, Europa se une contra Putin, neutralidade


[de Bolsonaro] isola Brasil, sanções abalam Rússia e Belarus, não há
garantia de adubo."

A própria ministra Tereza Cristina, da Agricultura, derrubou a


principal desculpa dos bolsonaristas para passar pano para o tirano
russo, ao declarar que "o Brasil é um importador de fertilizantes de
vários países do mundo", que "temos outras alternativas para poder
substituir" os insumos russos e que não há "motivo para pânico" em
relação à possibilidade de escassez. Para tratar do assunto, ela
afirmou também que vai ao Canadá, um dos países, como Alemanha
e Israel, exportadores de potássio.

Na falta de argumentos confessáveis para manter sua posição,


Bolsonaro compartilhou em grupos de Whatsapp um texto que
critica a atuação dos EUA no atual cenário geopolítico e que exalta a
Rússia como integrante do seleto grupo de países que seria capaz
de enfrentar a "Nova Ordem Mundial": "Só existe a Rússia, a China e
a Liga Árabe capaz de enfrentar a NOM... O Brasil está no radar da
NOM e de toda a esquerda... a NOM está pronta para instalar um
governo hegemônico mundial e o Brasil será a horta dele! O
comunismo se transmutou, voltou para o seu berço europeu..."

Em nome do combate ao poder hegemônico dos EUA, o PT de Lula


passa pano para a perseguição de dissidentes das ditaduras de
Cuba, Venezuela e Nicarágua. Em nome do combate ao poder
hegemônico da NOM, o bolsonarismo está disposto a passar pano
para a sanha imperialista e assassina de Putin, que, por sua vez, em
nome da alegada "desnazificação" da Ucrânia, bombardeia o
memorial do Holocausto em Kiev e usa mercenários neonazistas
para perseguir o presidente ucraniano, filho de judeus. Quanto mais
torpes são as ações individuais, maior a propaganda contra inimigos
forjados.

Como a Ucrânia, porém, entrou na pauta eleitoral brasileira e o


derretimento nas redes sociais preocupa o bolsonarismo, até a
militância virtual de gabinete ligada aos filhos de Bolsonaro já dá
sinais de que talvez, quem sabe, o presidente devesse condenar a
invasão, em vez de manter com o Itamaraty o atual morde-e-assopra
a Rússia, dobradinha na qual cabe a ele assoprar o cangote do ex-
agente da KGB comunista.

Bolsonaro jamais aprende, mas a terceira via, que cobrou dele essa
condenação, deveria se espelhar ainda mais em Zelensky, tanto no
candidato fictício quanto no presidente real. O motivo é simples:
melhor ter sangue nos olhos do que nas mãos.

[* Assista ao vídeo: aqui


(https://twitter.com/FMouraBrasil/status/1499170890851958789).]

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