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Jan Brokken conta o

esplendor cultural de São


Petersburgo em novo livro
Vladimir Nabokov, Anna Akhmatova e Liev Gumilev têm
suas histórias contadas em um cenário fervilhante

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Por Paulo Nogueira


12/11/2022 | 16h00
Atualização: 14/11/2022 | 10h33

Especialmente a partir do Modernismo, quase tudo da arte


contemporânea germinou em berços urbanos carismáticos:
Viena, Tóquio, Nova York, Londres, São Paulo. Já havia
monografias magistrais descrevendo esses nichos e as
respectivas ninhadas, como a de Edmund White sobre Paris,
a de John Banville sobre Praga ou a de Ruy Castro sobre o
Rio de Janeiro. Agora Jan Brokken mostra São Petersburgo
como um sonho feliz de cidade: se não na política (o contexto
é o totalitarismo soviético e o populismo de Putin), pelo menos
enquanto cornucópia de obras-primas. Para mim, um dos
lançamentos do ano.

Às margens do Báltico, São Petersburgo (SP) foi fundada em


1703 por Pedro, o Grande, como signo da modernização
russa (o imperador proibiu o uso de barba). Continuou como
capital até 1918, sucedida por Moscou. Em 1924 foi
rebatizada como Leningrado, mas com o colapso da URSS
em 1991 recuperou o nome original. Lar do Hermitage, um
dos maiores museus do mundo, SP é e sempre foi a alma
cultural da Rússia. Jan Brokken é um autor holandês de
premiados romances, biografias e livros de viagens. “O
Esplendor de São Petersburgo” conjuga apetitosamente
esses gêneros.

Estação Finlândia, um dos marcos de São Petersburgo, na gelada Rússia


Foto: Ana Carolina Sacoman/Estadão

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Brokken visitou a cidade em dois momentos: em 1975, sob o


comunismo, e quarenta anos depois, sob Putin. A obra é uma
genealogia subjetiva mas enciclopédica de figurinhas
carimbadas da literatura, música, pintura e cinema, o excelso
panteão de SP: Puchkin, Mandelstam, Gogol, Dostoiévski,
Stravinski, Turgueniev, Tchaikovsky, Malevitch, Nabokov e
Tarkóvski, entre outros. De quebra, traz fotos emocionantes
sobre esse dream team. SP e Moscou esgrimem um eterno
Fla-Flu, com a primeira ganhando de goleada no âmbito
artístico. Mas não levando. Como resmungam os
peterburguenses: onde começou a Revolução de 1917? Em
SP. Qual virou capital em 1918? Moscou. SP carrega o ônus,
Moscou o bônus. Em termos, pois qual metrópole pode se
gabar de uma rua onde eram vizinhos três escritores do
pedigree de Gogol, Turgueniev e Dostoievski? SP vence
Moscou até no kitsch. Se a Praça Vermelha exibe a múmia de
Lenin, o pênis do monge Rasputin se pavoneia num frasco
deformol no Museu do Erotismo de SP, “ao lado de uma
clínica para problemas na próstata”.

Mas quem rouba este livro como uma Robin Hood lírica –
depenando os filisteus para dar aos leitores - é a poeta Anna
Akhmatova, barbada para o pódio das mulheres mais
fascinantes que jamais existiram (tietada por VIP como Boris
Pasternak – que a pediu em casamento três vezes -, Isaiah
Berlin, Modigliani, Joseph Brodsky, etc).

Visitantes olham uma das musas do pintor Amadeo Modigliani, de 1916, no


Museu de Arte de Zurique Foto: Arnd Wiegmann/REUTERS

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Sob o comunismo, a maioria dos habitantes de Leningrado


sabia na ponta da língua os versos de Réquiem, cuja edição
completa seria publicada apenas no fim da URSS. Na vida de
Akhmatova, desgraça pouca era bobagem. Nikolai Gumilev, o
primeiro marido, foi fuzilado pela polícia política logo depois
da revolução de 1917. O segundo morreu num campo de
concentração, onde o filho dela vegetou por catorze anos e
sucumbiu o maior amigo de Akhmatova , o grande Ossip
Mandelstam. O melhor pupilo dela, o futuro Nobel Joseph
Brodsky, definhou cinco anos na cadeia e foi deportado. Ela
própria não passou sequer um dia no xilindró (nem Stalin
tinha esse topete). Mas foi impedida de publicar e viveu em
cortiços, porém com uma empáfia de duquesa e
despedaçando corações como quem sopra dentes-de-leão.

Uma outra efígie do livro é espectral: Vladimir Nabokov, que


passou a infância e juventude em SP, mas se mandou para
Cambridge em 1920 e nunca mais voltou. Hoje há um museu
em SP dedicado ao autor de Lolita, cujo muro em 2013
apareceu pichado com a palavra “pedófilo”. A melhor amiga
da irmã de Nabokov em SP era uma pirralha chamada Alisa
Rosenbaum, mais tarde escritora com o pseudônimo de Ayn
Rand. Brokken conta um causo encantador sobre Alexander
Soljenitsyn, o Nobel de literatura que expôs as atrocidades do
Gulag. O editor de Soljenitsyn e Nabokov marcou um
encontro entre ambos, a pedido do primeiro, no restaurante
do Hotel Palace, em Montreux, onde este último morava com
a mulher, Vera. Soljenitsyn, um ex-zek (o termo para os
prisioneiros do Gulag), amarelou na hora H e deu o cano nos
anfitriões, que o esperaram à mesa com cara de tacho.

O escritor russo Vladimir Nabokov, autor do polêmico 'Lolita' Foto: Yousuf


Karsh

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O livro termina com Liev Gumilev, filho de Nikolai e Anna


Akhmatova. A relação era tensa: Liev odiava o poema
“Réquiem", no qual a poeta descreve suas
peregrinações diárias à penitenciária onde ele estava
encarcerado: “Fui preso primeiro por causa do meu pai, e
depois por causa da minha mãe”. Liev tão-pouco suportava
que todo mundo se apaixonasse por Anna – ele só se casou
aos 55 anos. Achava que a mãe poderia ter feito mais por ele,
embora ela tenha chegado a ponto de escrever poemas em
louvor de Stalin, para obter o perdão do filho.

Gumilev tornou-se um historiador proeminente, postulando


que a cultura russa não é europeia, mas eurasiana, e
reabilitando o legado mongol (a Universidade do Cazaquistão
foi batizada com o nome dele). Por ironia do destino, essa
ideia acabou apropriada por Putin, cujo avô fora cozinheiro de
Lenin. Gumilev

morreu em 1992, com um aura de guru, e não viu a anexação


da Crimeia em 2014 por Putin, o primeiro passo para uma
“união euroasiática”. Putin bajulou o filho de Akhmatova em
vários discursos. Gumilev reconciliou-se com a mãe apenas
no funeral dela, em 1966. Antes de o caixão ser fechado,
beijou-a demoradamente na testa, observado por um
comovido Joseph Brodsky. Brokken inclui essa foto no livro.

Especialmente a partir do Modernismo, quase tudo da arte


contemporânea germinou em berços urbanos carismáticos:
Viena, Tóquio, Nova York, Londres, São Paulo. Já havia
monografias magistrais descrevendo esses nichos e as
respectivas ninhadas, como a de Edmund White sobre Paris,
a de John Banville sobre Praga ou a de Ruy Castro sobre o
Rio de Janeiro. Agora Jan Brokken mostra São Petersburgo
como um sonho feliz de cidade: se não na política (o contexto
é o totalitarismo soviético e o populismo de Putin), pelo menos
enquanto cornucópia de obras-primas. Para mim, um dos
lançamentos do ano.

Às margens do Báltico, São Petersburgo (SP) foi fundada em


1703 por Pedro, o Grande, como signo da modernização
russa (o imperador proibiu o uso de barba). Continuou como
capital até 1918, sucedida por Moscou. Em 1924 foi
rebatizada como Leningrado, mas com o colapso da URSS
em 1991 recuperou o nome original. Lar do Hermitage, um
dos maiores museus do mundo, SP é e sempre foi a alma
cultural da Rússia. Jan Brokken é um autor holandês de
premiados romances, biografias e livros de viagens. “O
Esplendor de São Petersburgo” conjuga apetitosamente
esses gêneros.

Estação Finlândia, um dos marcos de São Petersburgo, na gelada Rússia


Foto: Ana Carolina Sacoman/Estadão

Brokken visitou a cidade em dois momentos: em 1975, sob o


comunismo, e quarenta anos depois, sob Putin. A obra é uma
genealogia subjetiva mas enciclopédica de figurinhas
carimbadas da literatura, música, pintura e cinema, o excelso
panteão de SP: Puchkin, Mandelstam, Gogol, Dostoiévski,
Stravinski, Turgueniev, Tchaikovsky, Malevitch, Nabokov e
Tarkóvski, entre outros. De quebra, traz fotos emocionantes
sobre esse dream team. SP e Moscou esgrimem um eterno
Fla-Flu, com a primeira ganhando de goleada no âmbito
artístico. Mas não levando. Como resmungam os
peterburguenses: onde começou a Revolução de 1917? Em
SP. Qual virou capital em 1918? Moscou. SP carrega o ônus,
Moscou o bônus. Em termos, pois qual metrópole pode se
gabar de uma rua onde eram vizinhos três escritores do
pedigree de Gogol, Turgueniev e Dostoievski? SP vence
Moscou até no kitsch. Se a Praça Vermelha exibe a múmia de
Lenin, o pênis do monge Rasputin se pavoneia num frasco
deformol no Museu do Erotismo de SP, “ao lado de uma
clínica para problemas na próstata”.

Mas quem rouba este livro como uma Robin Hood lírica –
depenando os filisteus para dar aos leitores - é a poeta Anna
Akhmatova, barbada para o pódio das mulheres mais
fascinantes que jamais existiram (tietada por VIP como Boris
Pasternak – que a pediu em casamento três vezes -, Isaiah
Berlin, Modigliani, Joseph Brodsky, etc).

Visitantes olham uma das musas do pintor Amadeo Modigliani, de 1916, no


Museu de Arte de Zurique Foto: Arnd Wiegmann/REUTERS

Sob o comunismo, a maioria dos habitantes de Leningrado


sabia na ponta da língua os versos de Réquiem, cuja edição
completa seria publicada apenas no fim da URSS. Na vida de
Akhmatova, desgraça pouca era bobagem. Nikolai Gumilev, o
primeiro marido, foi fuzilado pela polícia política logo depois
da revolução de 1917. O segundo morreu num campo de
concentração, onde o filho dela vegetou por catorze anos e
sucumbiu o maior amigo de Akhmatova , o grande Ossip
Mandelstam. O melhor pupilo dela, o futuro Nobel Joseph
Brodsky, definhou cinco anos na cadeia e foi deportado. Ela
própria não passou sequer um dia no xilindró (nem Stalin
tinha esse topete). Mas foi impedida de publicar e viveu em
cortiços, porém com uma empáfia de duquesa e
despedaçando corações como quem sopra dentes-de-leão.

Uma outra efígie do livro é espectral: Vladimir Nabokov, que


passou a infância e juventude em SP, mas se mandou para
Cambridge em 1920 e nunca mais voltou. Hoje há um museu
em SP dedicado ao autor de Lolita, cujo muro em 2013
apareceu pichado com a palavra “pedófilo”. A melhor amiga
da irmã de Nabokov em SP era uma pirralha chamada Alisa
Rosenbaum, mais tarde escritora com o pseudônimo de Ayn
Rand. Brokken conta um causo encantador sobre Alexander
Soljenitsyn, o Nobel de literatura que expôs as atrocidades do
Gulag. O editor de Soljenitsyn e Nabokov marcou um
encontro entre ambos, a pedido do primeiro, no restaurante
do Hotel Palace, em Montreux, onde este último morava com
a mulher, Vera. Soljenitsyn, um ex-zek (o termo para os
prisioneiros do Gulag), amarelou na hora H e deu o cano nos
anfitriões, que o esperaram à mesa com cara de tacho.

O escritor russo Vladimir Nabokov, autor do polêmico 'Lolita' Foto: Yousuf


Karsh

O livro termina com Liev Gumilev, filho de Nikolai e Anna


Akhmatova. A relação era tensa: Liev odiava o poema
“Réquiem", no qual a poeta descreve suas
peregrinações diárias à penitenciária onde ele estava
encarcerado: “Fui preso primeiro por causa do meu pai, e
depois por causa da minha mãe”. Liev tão-pouco suportava
que todo mundo se apaixonasse por Anna – ele só se casou
aos 55 anos. Achava que a mãe poderia ter feito mais por ele,
embora ela tenha chegado a ponto de escrever poemas em
louvor de Stalin, para obter o perdão do filho.

Gumilev tornou-se um historiador proeminente, postulando


que a cultura russa não é europeia, mas eurasiana, e
reabilitando o legado mongol (a Universidade do Cazaquistão
foi batizada com o nome dele). Por ironia do destino, essa
ideia acabou apropriada por Putin, cujo avô fora cozinheiro de
Lenin. Gumilev

morreu em 1992, com um aura de guru, e não viu a anexação


da Crimeia em 2014 por Putin, o primeiro passo para uma
“união euroasiática”. Putin bajulou o filho de Akhmatova em
vários discursos. Gumilev reconciliou-se com a mãe apenas
no funeral dela, em 1966. Antes de o caixão ser fechado,
beijou-a demoradamente na testa, observado por um
comovido Joseph Brodsky. Brokken inclui essa foto no livro.

Especialmente a partir do Modernismo, quase tudo da arte


contemporânea germinou em berços urbanos carismáticos:
Viena, Tóquio, Nova York, Londres, São Paulo. Já havia
monografias magistrais descrevendo esses nichos e as
respectivas ninhadas, como a de Edmund White sobre Paris,
a de John Banville sobre Praga ou a de Ruy Castro sobre o
Rio de Janeiro. Agora Jan Brokken mostra São Petersburgo
como um sonho feliz de cidade: se não na política (o contexto
é o totalitarismo soviético e o populismo de Putin), pelo menos
enquanto cornucópia de obras-primas. Para mim, um dos
lançamentos do ano.

Às margens do Báltico, São Petersburgo (SP) foi fundada em


1703 por Pedro, o Grande, como signo da modernização
russa (o imperador proibiu o uso de barba). Continuou como
capital até 1918, sucedida por Moscou. Em 1924 foi
rebatizada como Leningrado, mas com o colapso da URSS
em 1991 recuperou o nome original. Lar do Hermitage, um
dos maiores museus do mundo, SP é e sempre foi a alma
cultural da Rússia. Jan Brokken é um autor holandês de
premiados romances, biografias e livros de viagens. “O
Esplendor de São Petersburgo” conjuga apetitosamente
esses gêneros.

Estação Finlândia, um dos marcos de São Petersburgo, na gelada Rússia


Foto: Ana Carolina Sacoman/Estadão

Brokken visitou a cidade em dois momentos: em 1975, sob o


comunismo, e quarenta anos depois, sob Putin. A obra é uma
genealogia subjetiva mas enciclopédica de figurinhas
carimbadas da literatura, música, pintura e cinema, o excelso
panteão de SP: Puchkin, Mandelstam, Gogol, Dostoiévski,
Stravinski, Turgueniev, Tchaikovsky, Malevitch, Nabokov e
Tarkóvski, entre outros. De quebra, traz fotos emocionantes
sobre esse dream team. SP e Moscou esgrimem um eterno
Fla-Flu, com a primeira ganhando de goleada no âmbito
artístico. Mas não levando. Como resmungam os
peterburguenses: onde começou a Revolução de 1917? Em
SP. Qual virou capital em 1918? Moscou. SP carrega o ônus,
Moscou o bônus. Em termos, pois qual metrópole pode se
gabar de uma rua onde eram vizinhos três escritores do
pedigree de Gogol, Turgueniev e Dostoievski? SP vence
Moscou até no kitsch. Se a Praça Vermelha exibe a múmia de
Lenin, o pênis do monge Rasputin se pavoneia num frasco
deformol no Museu do Erotismo de SP, “ao lado de uma
clínica para problemas na próstata”.

Mas quem rouba este livro como uma Robin Hood lírica –
depenando os filisteus para dar aos leitores - é a poeta Anna
Akhmatova, barbada para o pódio das mulheres mais
fascinantes que jamais existiram (tietada por VIP como Boris
Pasternak – que a pediu em casamento três vezes -, Isaiah
Berlin, Modigliani, Joseph Brodsky, etc).

Visitantes olham uma das musas do pintor Amadeo Modigliani, de 1916, no


Museu de Arte de Zurique Foto: Arnd Wiegmann/REUTERS

Sob o comunismo, a maioria dos habitantes de Leningrado


sabia na ponta da língua os versos de Réquiem, cuja edição
completa seria publicada apenas no fim da URSS. Na vida de
Akhmatova, desgraça pouca era bobagem. Nikolai Gumilev, o
primeiro marido, foi fuzilado pela polícia política logo depois
da revolução de 1917. O segundo morreu num campo de
concentração, onde o filho dela vegetou por catorze anos e
sucumbiu o maior amigo de Akhmatova , o grande Ossip
Mandelstam. O melhor pupilo dela, o futuro Nobel Joseph
Brodsky, definhou cinco anos na cadeia e foi deportado. Ela
própria não passou sequer um dia no xilindró (nem Stalin
tinha esse topete). Mas foi impedida de publicar e viveu em
cortiços, porém com uma empáfia de duquesa e
despedaçando corações como quem sopra dentes-de-leão.

Uma outra efígie do livro é espectral: Vladimir Nabokov, que


passou a infância e juventude em SP, mas se mandou para
Cambridge em 1920 e nunca mais voltou. Hoje há um museu
em SP dedicado ao autor de Lolita, cujo muro em 2013
apareceu pichado com a palavra “pedófilo”. A melhor amiga
da irmã de Nabokov em SP era uma pirralha chamada Alisa
Rosenbaum, mais tarde escritora com o pseudônimo de Ayn
Rand. Brokken conta um causo encantador sobre Alexander
Soljenitsyn, o Nobel de literatura que expôs as atrocidades do
Gulag. O editor de Soljenitsyn e Nabokov marcou um
encontro entre ambos, a pedido do primeiro, no restaurante
do Hotel Palace, em Montreux, onde este último morava com
a mulher, Vera. Soljenitsyn, um ex-zek (o termo para os
prisioneiros do Gulag), amarelou na hora H e deu o cano nos
anfitriões, que o esperaram à mesa com cara de tacho.

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