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MARGUERITA BORNSTEIN
A ARTE
E A
VIDA S O C I A L
1.* edição: 1964
2 a edição
Tradução de
EDUARDO SUCUPIRA FILHO
EDITÒRA BRASILIENSE
1969
TÍTULO DO OKIGIN Ali ESPANHOL:
E L ARTE Y L A VIDA SOCIAL
(Edicionee en Lenguae Extranjeraa — Moscou)
Introdução
G. Plekhanov
A ARTE E A VIDA SOCIAL (1)
(34) "Ê preciso estar contente, chova ou faça sol, faça frio ou
calor: Tende boas cores, que detesto gente magra e face pálida; o
que não ri merece ser empalado".
Ii
(40) Seu caráter exclusivo, que não pode ser negado, significava
tão somente que no século XVI existia um divórcio irremediável entre
as pessoas que amavam a arte e o meio social que as rodeava. Êsse
divórcio também deu lugar então à tendência da arte pura, isto é,
da arte pela arte. Em épocas anteriores, como por exemplo nos tempos
de Giotto, não existiram êsse divórcio nem essa tendência.
(41) É significativo que o próprio Perugino fôsse considerado
suspeito de ateísmo por seus contemporâneos.
Essa indiferença elevava-lhe o valor das obras poéticas,
porquanto o preservava da vulgaridade, da moderação e da es-
crupolosidade burguesas. Mas ao mesmo tempo reduzia êsse
mesmo valor, pois lhe limitava o horizonte e o impedia de
assimilar as idéias avançadas de sua época. Tomemos o já co-
nhecido prefácio a Mademoiselle de Maupin, onde ataca com
um arrebatamento quase infantil os defensores da concepção
utilitarista da arte.
"Deus meu — exclama Gautier — que cousa néscia é
essa pretensa perfectibilidade do gênero humano com que nos
aturdem os ouvidos! Dir-se-ia, em verdade, que o homem é
uma máquina suscetível de ser melhorada, e que uma engrena-
gem melhor ou um contrapêso colocado de maneira mais con-
veniente podem fazê-la funcionar com mais facilidade" (42).
Para demonstrar que não era assim, Gautier citava o Mare-
chal De Bassompierre, que bebia de um trago a bota cheia
de vinho à saúde dos treze cantÕes. E assinala que seria tão
difícil superar o gesto dêsse marechal, no que à bebida se refe-
re, como a um contemporâneo nosso ganhar em capacidade di-
gestiva a Mílon de Crotona, que era capaz de comer um boi
inteiro. Essas observações, em si muito justas, são típicas quan-
do se consideram as teorias da arte pela arte, do modo por que
são expostas pelos românticos conseqüentes.
Ë de perguntar-se: Quem inculcou a Gautier essas dou-
trinas acêrca da perfectibilidade do gênero humano? Os socia-
listas, e em especial os partidários de Saint-Simon, muito po-
pulares na França à época que precedeu a aparição de Made-
moiselle de Maupin. Contra êles são dirigidas essas observa-
ções — em si muito justas — a respeito da dificuldade de
superar o Marechal de Bassompierre, embriagado, ou Mílon
de Crotona, em voracidade. Mas êstes reparos, em si justos,
ficam totalmente fora de lugar quando dirigidos contra os
saint-simoniens. A perfeição do gênero humano, de que fa-
lavam os seguidores de Saint-Simon, nada tem a ver com o
aumento da capacidade do estômago. Os saint-simoniens refe-
riam-se à melhoria da organização social em benefício da
parte mais numerosa da população — de sua parte produtiva,
isto é, dos trabalhadores. Qualificar de necessidade semelhante
tarefa e perguntar se realizada fará com o que homem seja
capaz de encharcar-se mais de vinho ou de empanturrar-se de
(42) Mademoiselle de Maupin, prefácio, pág. 23.
36 George Plekhanov
carne, é dar mostras daquela limitação burguesa que mexia
com os brios dos jovens românticos. Gomo pôde ocorrer isso?
Como pôde a limitação burguesa infiltrar-se no raciocínio de
um escritor, para quem todo o sentido da existência residia
numa luta de vida e morte contra essas mesmas limitações
burguesas?
Ëm mais de uma ocasião, ainda que por outro motivo,
respondi a esta pergunta ao comparar as idéias dos românticos
com as de Davi e seus amigos. Disse que os românticos, ao
mesmo tempo em que se sublevavam contra os gostos e cos-
tumes dos burgueses nada tinham a objetar contra o regime
social burguês. Agora, devemos analisar mais detalhadamente
essa questão.
Alguns ramântícos, como George Sand — na época de
sua amizade com Pedro Leroux — simpatizavam com o socia-
lismo. Mas eram exceção. Geralmente, os românticos, que
se erguiam contra a vulgaridade burguesa, eram também ini-
migos dos sistemas socialistas, que mostravam a necessidade de
uma reforma social. Os românticos queriam mudar os costu-
mes da sociedade, sem mexer no regime social, o que, eviden-
temente, é de todo impossível. Por isso, a insurreição dos ro-
mânticos contra os "burgueses" teve tão poucas conseqüências
práticas como o desprêzo das "raposas" de Goettingen ou de
Iena pelos filisteus. Dita insurreição foi completamente estéril
do ponto de vista prático. Mas essa esterilidade prática teve
conseqüências literárias bastante importantes, pois imprimiu aos
heróis românticos êsse caráter irreal e artificioso que no fim
de contas conduziu ao desmoronamento dessa escola. 0 caráter
irreal e artificioso dos personagens não pode ser aceito de mo-
do algum como mérito de uma obra de arte, pelo que, a par
do aspecto positivo apontado mais acima, devemos indicar ago-
ra um aspecto negativo: ainda que tenha sido muito o que
ganharam as obras de arte românticas com a insurreição de
seus autores contra os "burguesesde outra parte perderam
bastante, em conseqüência da vacuidade prática dessa insur-
reição.
Os primeiros realistas franceses esforçaram-se por supri-
mir o principal defeito das obras românticas: o caráter irreal
e artificioso de seus personagens. Na obras de Flaubert (com
exceção, talvez de Salambô e Contos), não há sombra da irrea-
lidade e artificialismo dos românticos. Os primeiros realistas
também se sublevam contra os "burgueses", mas fazem-no à
sua maneira. Não opõem aos vulgares burgueses, heróis ima-
ginários, mas procuram criar fiéis imagens artísticas desses mes-
mos tipos vulgares. Flaubert considarava de seu dever tratar
o meio social que descrevia, com a mesma objetividade com
que um naturalista se situa ante a natureza. "Ë preciso ver os ho-
mens — diz — como se vêem os mastodontes e os crocodilos.
Ácaso pode alguém entusiasmar-se com as prêsas daqueles ou
as mandíbulas dêstes? É preciso mostrá-los, convertê-los em
espantalhos, metê-los em frascos de álccol, e nada mais. Mas
não lanceis condenações morais, pois quem sois vós, rãs insig-
nificantes?" Na medida em que Flaubert lograva ser objetivo,
os tipos apresentados em suas obras adquiriam a significação
de "documentos", cujo estudo é absolutamente indispensável
para todo aquêle que queira fazer um estudo científico dos fe-
nômenos de psicologia social. A objetividade era o lado forte
de seu método, mas ainda sendo objetivo no processo da cria-
ção artística, Flaubert não deixava de ser muito subjetivo na
apreciação dos movimentos sociais de sua época. Tanto êle co-
mo Gautier desprezavam profundamente os "burgueses", mas
ao mesmo tempo eram acérrimos inimigos de todos os que de
um modo ou de outro atentassem contra as relações sociais
burguesas. E o próprio Flaubert, mais do que Gautier. Flau-
bert era decididamente contra o sufrágio universal, que quali-
ficava de "vergonha da inteligência humana". "Com o sufrá-
gio universal — escrevia a George Sand — o número prevalece
sobre a inteligência, a instrução, a raça e inclusive o dinheiro,
que vale mais que o número." Em outra carta diz que o su-
frágio universal é mais estúpido que o direito divino. Para
êle, a sociedade socialista é um monstro enorme que devorará
tôda ação individual, tôda personalidade, todo pensamento, que
tudo dirigirá e tudo fará por si só. Vemos por isso que sua
atitude negativa ante a democracia e o socialismo faria coinci-
dir êsse detrator dos "burgueses" com os mais limitados ideó-
logos da burguesia. E êsse mesmo traço se observa em todos
os partidários da arte pela arte, contemporâneos de Flaubert.
Em um ensaio sobre a vida de Edgar Poe, Baudelaire, que
desde muito esquecera seu revolucionário Salut Public, diz:
"Em um povo sem aristocracia, o culto da beleza só pode cor-
romper-se, diminuir e desaparecer". Em outro lugar afirma que
só existem três sêres dignos de respeito: "o cura, o soldado e o
poeta". Isso já não é espírito conservador, mas reacionário. Tão
reacionário quanto êle, era Barbey d'Aurévilly. Em seu livro Les
Poetes refere-se às obras poéticas de Laurent-Pichat e diz que
este poderia ter sido um grande poeta "se tivesse tomado a
decisão de pisotear o ateísmo e a democracia, esses dois opró-
brios (ces deux déshonneurs ) do pensamento"(43).
Desde que Teófilo Gautier escrevera seu prefácio a Ma-
demoiselle de Maupin (maio de 1835), correra muita água.
Os saint'simoniens , que, segundo suas palavras, lhe haviam ator-
doado os ouvidos com seus propósitos acerca da perfectibili-
dade do gênero humano, proclamavam aos gritos a necessidade
de uma reforma social. Mas, do mesmo modo que a maioria
dos socialistas utópicos — eram êles decididos partidários de
um desenvolvimento social pacífico, e, portanto, adversários não
menos decididos da luta de classes. Além disso, os socialistas
utópicos se dirigiam sobretudo aos bem acomodados. Não acre-
ditavam na atuação independente do proletariado. Mas os acon-
tecimentos de 1848 demonstraram que essa situação indepen-
dente podia chegar a ser muito ameaçadora. Depois de 1848
já se não apresentava a questão de se as classes possuidoras que-
riam ou não encarregar-se de melhorar a sorte dos despossuí-
dos, mas de quem — possuidores ou desprotegidos — haveria
de triunfar na luta travada entre uns e outros. As relações
entre as classes da nova sociedade se haviam simplificado de
modo extraordinário. Então, todos os ideólogos da burguesia
compreenderam que o de que se tratava era de saber se essa classe
conseguiria manter as massas trabalhadoras sob o jugo econô-
mico. A consciência dêsse fato calara na mente dos partidários
da arte para os ricos. Ernesto Renan, um dos mais notáveis
dentre êles por sua significação científica, exigia em sua obra
La Reforme Intelectuelle et Morale um governo forte "que obri-
gue os bons aldeões a realizar parte do trabalho enquanto nós
especulamos "(44).
Os ideólogos da burguesia compreendiam, com muito mais
clareza que dantes, o significado da luta entre a burguesia e o
proletariado, e êsse fato não podia deixar de influir de modo
extraordinário sobre a natureza das "especulações" a que se
entregavam êsses ideólogos. O Eclesiastes diz muito bem: "A
calúnia perturba o próprio sábio". Ao descobrir o segredo da
Por isso, seria peregrino pensar que os atuais ideólogos burgueses sejam
totalmente incapazes de produzir obras de realce. Tais obras, como ó
natural, também são possíveis agora. Mas, as possibilidades de que
apareçam diminuem fatalmente. Além disso, até as obras de destaque
levam a marca da época de decadência. Tomemos como exemplo a
referida trindade russa: se o Senhor Filosófov não tem talento para
nada, a Senhora Guíppius tem, em troca, certo talento artístico, e o
Senhor Merezhkovski e inclusive um artista de grande talento. Mas,
é fácil comprovar que sua última novela, Alexandre I, por exemplo,
se perdeu definitivamente por sua mania religiosa, a qual, é por sua
vez, um fenômeno próprio de uma época de decadência. Em tais épocas,
até os homens de grande talento não dão o que poderiam dar se as
condições sociais fossem mais favoráveis.
(95) "Por último, ainda que não menos importante".
Ë possível, entretanto, que pelo sistema harmônico de con-
ceitos o Senhor Lunatcharski entendesse as considerações sôbre
a cultura proletária expostas, não faz muito, na imprensa, pelo
Senhor Bogdánov(96), um de seus mais afins correligionários.
Em tal caso, sua última objeção se reduz a dizer-me que "muito
ganharia se aprendesse de" Bogdánov(97). Grato pelo conselho,
mas não tenho a intenção de aproveitá-lo. E ao incauto que
demonstrasse interêsse pelo folheto de Bogdánov — Da Cultura
Proletária — direi que foi ridicularizado com bastante acerto
em Sovremenni Mir (98), pelo Senhor Alexinski, outro dos cor-
religionários mais afins do Senhor Lunatcharski.
CARTAS
SEM
ENDERÊÇO
CINCO ENSAIOS
SOCIOLÓGICOS
SÔBRE ARTE
2. a edição
Tradução de
EDUABPO ÇyCUPIRA FILHO
TÍTULO DO ORIGINAL ESPANHOL:
CARTAS SIN DIRECCIÓN
(Edicionea en Lenffuaa Extranjeraa — Moscou)
INDICE
PRIMEIRA CARTA
Relações Estéticas Entre a Arte e a Realidade 85
SEGUNDA CARTA
A Arte dos Povos Primitivos 124
TERCEIRA CARTA
Os Jogos Cênicos e o Trabalho 142
QUARTA CARTA
As Danças 165
QUINTA CARTA
Pintura e Escrita Primitivas 195
PRIMEIRA CARTA
(21) Alexandre Belrame, ob. cit., pp. 7-8. Cabeças redondas era
o nome aplicado aos puritanos, por usarem o cabelo curto.
gunta de por que em seu estômago, a cada dia, vai parar uma
comida saborosa e nutritiva, ao passo que o meu raramente é
visitado por ela? Por acaso explicam essas leis a razão por que
uns comem demasiado, enquanto outros morrem de fome? Pa«
rece-me que a explicação deve ser procurada em outra esfera,
na ação de leis de outra índole. 0 mesmo ocorre com o entendi-
mento humano. Quando este se encontra em determinada situa-
ção, quando o meio ambiente lhe proporciona determinadas im-
pressões, combina-as em obediência a certas leis gerais, com a
particularidade de que nesse caso também os resultados são extre-
mamente variados tonalizando-as com a variedade das impressões
recebidas. Mas, que é que coloca o entendimento nessa situação?
Que é que determina o afluxo e ó caráter das novas impressões?
Ë esta uma questão que se não pode resolver com nenhuma lei
do pensamento.
Prossigamos. Imagine você que uma bola elástica caia do
alto de uma torre. Seu movimento obedece a uma lei de mecâ-
nica, muito simples e de todos conhecida. Mas agora a bola
choca-se com um plano inclinado. Seu movimento muda de
acordo com outra lei mecânica, tão simples e conhecida como a
anterior. Como resultado, obtemos uma linha quebrada do movi-
mento, com respeito à qual se pode e se deve dizer que tem sua
origem na ação combinada das duas leis que acabamos de men-
cionar. Mas, como surgiu o plano inclinado contra o qual se
foi chocar nossa bola? Isto não é explicado pela primeira nem
pela segunda lei, como, tampouco, sua ação combinada. Exata-
mente o mesmo ocorre com o pensametno humano. De onde
procedem as circunstâncias em virtude das quais seu movimento
se submete à ação combinada de tais ou quais leis? 0 fato não
é explicado nem pelas diferentes leis do pensamento nem por
sua ação conjunta(22).
Estou firmemente convencido de que a história das ideo-
logias só pode ser compreendida por quem tenha assimilado
plenamente esta clara e simples verdade.
Continuemos. Ao referir-me à imitação, mencionei a ten-
dência diametralmente oposta, que denominei de tendência à
contradição.
Ë preciso que a eximanemos mais detidamente.
(32) Belrame, ibid., pp. 40-41; cf; Taine, I. c., pp. 508-512.
Varias Sem Endereço 103
corria o perigo de provocar ruidoso protesto dessa arte do pú-
blico. Seus amigos franceses escreviam-lhe cartas elogiando o
"valor" com que fazia frente a êsse perigo: "Car je connais la
populace anglaiseacrescentava um dêles(33).
A dissolução dos costumes da nobreza, durante a segunda
metade do século XVII, também repercutiu, como é sabido,
na cena inglêsa, onde adquiriu proporções realmente incríveis.
As comédias escritas na Inglaterra de 1660 a 1690 pertencem
quase sem exceção, como diz Eduardo Engel, ao gênero por-
nográfico (34). Por isso, podia-se dizer a priori que, tarde ou
cedo, na Inglaterra haveria de aparecer, segundo o princípio da
antítese, um gênero dramático que seria a apresentação e a
louvação das virtudes domésticas e da pureza burguesa dos cos-
tumes. E, com efeito, êsse gênero foi criado mais tarde pelos
representantes intelectuais da burguesia inglêsa. Mais adiante,
terei ocasião de referir-me a êsse gênero de obras dramáticas,
quando abordar a "comédia lacrimosa" francesa(35).
Parece-me que foi Hipólito Taine quem observou melhor
e com mais acuidade a significação do princípio da antítese,
na história dos conceitos estéticos (36).
Em seu engenhoso e interessante Voyage aux Pyrénées re-
produz uma conversação com Monsieur Paul, seu 44 companheiro
de mesa", que evidentemente exprime as idéias do autor: "Vá
a Versalhes — diz Mr. Paul — e ficará indignado ante os gostos
do século X V I I I . . . Mas deixe, por algum tempo, de julgar
as cousas do ponto de vista de suas próprias necessidades e de
seus próprios hábitos. . . " Temos razão ao entusiasmar-nos ante
(40)7n dieser Idealisierung der Natur liess sich die Sculptur con
Fingerzeigen der Natur selbst leiten: sie überschätzte hauptsächlich
Merkmale die den Menschen von Tiere unterscheiden. Die aufrechte
Stellung fürte zu grösserer Schlankheit und Länge der Beine, die zuneh-
Mas, aplicado aos povos primitivos, isto é de todos os modos
falso. Sabemos que alguns deles arrancam os incisivos superiores
para se assemelharem aos ruminantes; outros aguçam os dentes
para se identificarem com as feras; outros, ainda, trançam os
cabelos para formar com êles u n s chifres, e assim, sucessiva-
mente, até o i n f i n i t o ( 4 I ) .
Freqüentemente, êsse afã de imitar os animais aparece li-
gado, nos povos primitivos, a suas crenças religiosas(42).
Mas, isto não m u d a e m nada a questão.
Se o homem primitivo contemplasse os animais inferiores
com nossos olhos, certamente os animais não teriam cabimento
em suas idéias religiosas. 0 homem primitivo olha os animait*
de outro modo. P o r quê? Porque se encontra em uma etapa
pena nos determos nelas, mesmo que seja de passagem. Em seu livro
Vie des Poètes Français du Siècle de Louis XIV (Paris, 1813), Guizot
diz que a literatura grega reflete em sua história o curso natural do
desenvolvimento da inteligência humana, ao passo que nos povos mo-
dernos o problema se apresenta muito mais complicado: nelas deve-se
levar em conta "um exame de causas secundárias". Quando passa a
considerar a história da literatura na França e começa a estudar essas
causas "secundárias", conclui que tôdas elas têm sua origem nas re-
lações sociais de França, sob cuja influência se foram formando os
gostos e os costumes de suas diferentes classes e camadas sociais. Em
Essai sur Shakespeare, Guizot considera a tragédia francesa como um
reflexo da psicologia de classe. Em sua opinião, os destinos do drama
aparecem em geral estreitamente ligados ao desenvolvimento das rela-
ções sociais. Mas Guizot não abandona a idéia de que a literatura grega
é um produto do desenvolvimento "natural" da inteligência humana,
sequer na época em que se edita seu Essai sur Shakespeare. Ao con-
trário, esta idéia encontra seu pendant em suas próprias concepções
histórico-naturais. Em Essais sur l'Histoire de France, publicado em
1821, Guizot expõe a idéia de que o regime político de um país se
determina por sua "vida civü", e esta — pelo menos nos povos do
mundo moderno — se acha ligada à agricultura, oomo a conseqüência
à causa. Êsse "pelo menos" é sumamente significativo, pois mostra que
a vida civil dos povos antigos, à diferença da vida civü dos povos do
mundo moderno, é para Guizot um produto "do desenvolvimento natu-
ral da inteligência humana", e não o resultado da história da agricul-
tura e, em geral, das relações econômicas. Temos aqui uma analogia
total com a idéia do desenvolvimento excepcional da literatura grega.
Se agregarmos a isto que Guizot, na época em que foram editados seus
Essais sur l'Histoire cie France, expressava com grande calor e decisão
em suas notas periodísticas a idéia de que a França "foi criada pela
luta de classes", não nos restará a menor dúvida de que a luta de
classes no seio da sociedade contemporânea chamou antes a atenção
dos historiadores contemporâneos do que essa mesma luta no seio dos
Estados da antigüidade. Oferece interesse o fato de que os historia-
dores da antigüidade, como Tucídides e Políbio, consideravam a luta
de classes na sociedade de sua época como algo completamente natural
e lógico, pouco mais ou menos como os camponeses de nossas comu-
nidades consideram a luta entre os membros da comunidade que têm
muitas terras e os que têtm poucas.
guinte, para compreender a história da arte e da literatura de
tal ou qual pais é preciso estudar a história das mudanças ope-
radas na situação de seus habitantes. Não há dúvida de que
isso é uma verdade. E basta 1er Philosophie de l'Art, Histoire
de la Littérature Anglaise ou Voyage en Italie para encontrar
em grande número as mais brilhantes e geniais ilustrações de
tal verdade. Mas Taine, como Madame de Staël e outros prede-
cessores seus, mantinha, apesar de tudo, uma concepção idealista
da história, o que o impediu de extrair de uma verdade indu-
bitável, brilhante e genialmente ilustrada por êle, todo o pro-
veito que poderia tirar dela um historiador da literatura e da
arte.
E como o idealista vê nos êxitos do intelecto humano a
última razão do desenvolvimento histórico, resulta, segundo Taine,
que a psicologia dos homens é determinada por sua situação, e
que sua situação se determina por sua psicologia. Daí, uma série
de contradições e escolhos, dos quais, Taine, como outros filó-
sofos do século XVII, se livraria, apelando para a natureza hu-
mana, que nêle aparece como raça. O seguinte exemplo mostra-
nos muito bem quais as portas que essa chave abria. É sabido
que o Renascimento começou na Itália antes que em outra
parte, e que, em geral, a Itália acabou, antes que os demais
países, com a existência medieval. Qual foi a causa dessa mu-
dança na situação dos italianos? As propriedades da raça italiana,
responde Taine(70). Julgue você mesmo até que ponto é satis-
fatória tal explicação; enquanto isso, passarei a outro exemplo.
Taine vê uma paisagem de Poussin no Palácio Sciara, de Roma,
e observa através dêste motivo que os italianos, devido a certas
qualidades particulares de sua raça, entendem a paisagem de
um modo especial; que para êles esta representa também' a
cidade, mas em ponto maior, ao passo que a raça alemã ama a
natureza pela natureza mesma(7l). Mas em outro lugar, Taine,
referindo-se às paisagens do mesmo Poussin, diz: "Para saber
embevecer-se com elas é preciso amar a tragédia (clássica), o
(14) Sarrasin, Die Weddahs von Ceylon und die sie umgebenden
Völkerschaften, Wiesbaden, 1892-93.
(15) (Clãs de família unidas por vínculos familiares): Ceylon,
an account of the Island, etc., London, 1880, vol. LI, p. 440.
consangüíneas não podem ser grandes, dado o baixo nível de
desenvolvimento das forças produtivas dos vedas. Mas não se
trata disso. O que nos interessa neste caso não são as propor-
ções dos clãs vedas, mas o papel que desempenham na vida dos
diferentes indivíduos dessa tribo. Pode dizer-se que êsse papel
é nulo? Que o clã não favorece a existência individual? De
modo algum! Ë sabido que as associações consangüíneas dos
vedas são dirigidas por seus chefes. Sabe-se também que nas
longas noites, as crianças e os adolescentes dormem ao lado do
chefe, ao passo que os membros adultos do clã se põem à volta
dêle, formando assim uma cadeia viva, disposta a defendê-los
dos ataques inimigos(16). Êsse costume favorece, sem dúvida,
a existência do indivíduo como de tôda a tribo. Não a favorecem
menos outras manifestações solidárias. Assim, por exemplo, as
viúvas continuam recebendo sua parte de tudo quanto cai em
mãos do clã(17).
Se os vedas não tivessem qualquer união social, e se entre
êles dominasse a "busca individual de alimentos", às mulheres
que tivessem perdido o apoio de seus maridos estava reservada
uma sorte bem diversa.
Para terminar o assunto dos vedas, acrescentarei que êstes,
como os bosquímanos, fazem reservas de carne e de outros pro-
dutos da caça, tanto para consumo próprio como para a troca
com as tribos vizinhas(18). O Capitão Ribeiro chegou a afirmar
que os vedas não comem em absoluto carne fresca, mas cor-
tam-na em pedaços e guardam-na nos ocos das árvores, não
tocando antes de transcorrer um ano(19). Certamente, trata-se
de um exagêro, mas em todo o caso volto a rogar-lhe se detenha
no exame dos vedas — que como os bosquímanos — refutam
categoricamente com seu exemplo a opinião sustentada por Bücher
de que os selvagens não fazem reservas. E a acumulação de
reservas é, segundo Bücher, um sintoma dos mais indubitáveis
da existência de uma economia.
( 57 ) Reisen, I, p. 450.
(58) Die Weddas von Ceylon , p. 560.
(59) Lichtenstein, obra cit., t. II, pp. 479-480.
(60) Die Umsegelung Asiens und Europas auf der "Vega", Leip-
zig, 1882, Band II, p. 139.
( 61 ) Des Sociétés Animales, deuxième édition, Paris, 1878, p. 502.
chamados de individualistas completos, Alguns se reúnem amiúde
e cantam em coro, batendo nas árvores ôcas. Du Chaillu viu
grupos de gorilas de oito a dez indivíduos; também foram en-
contradas manadas de gibões de cem e inclusive de cento e
cinqüenta cabeças. Ainda que os orangotangos vivam em pe-
quenas famílias isoladas, devemos ter presentes as excepcionais
condições de existência dêsses animais. Os macacos antropo-
morfos já não se encontram em condições de continuar a luta
pela existência. Encontram-se em vias de degeneração, e são
muito poucos os que vão ficando, pelo que, como observa acerta-
damente Topinard, seu atual gênero de vida não nos pode dar
a mais remota idéia acêrca de como viveram antes (62).
Em todo o caso, Darwin estava convencido de que nossos
antepassados antropomorfos viveram em sociedade(63), e eu
não conheço qualquer argumento que possa obrigar-nos a con-
siderar errada esta convicção. E se efetivamente nossos ante-
passados antropomorfos viveram em sociedade, quando, em que
momento do ulterior desenvolvimento zoológico e por que seus
instintos sociais tiveram que ceder lugar ao individualismo,
característico, segundo afirmam, do homem primitivo? Ignoro-o.
Também Bücher o ignora. Pelo menos, não nos diz absoluta-
mente nada a respeito.
Vemos, pois, que suas concepções não encontram confir-
mação, quer nas considerações hipotéticas quer nos materiais
concretos.
(22) "Les jeux des petitis sont l'imitation du travaâ des grands"
("Os jogos dos pequenos são uma imitação do trabalho dos grandes").
Dernier Journal du Docteur David Livingstone, t. II, p. 267. '
"Não há nada que distraia tanta as crianças pequenas como a imi-
tação das atividades maternas. Os irmãozinhos têm por brinquedos...
pequenos arcos e flechas" (Exploração do Zambeze por Davi e Carlos
Livingstone). "The amusements of the natives are various but they
generally have a reference to their future occupations" ("As distrações
dos nativos são variadas, mas geralmente guardam relação com suaa
ocupações futuras."), Eyre, p. 227.
(23) "Êsses jogos constituem uma imitação exata do trabalho ulte-
rior", Klutschak, obra cit., p. 222.
dessa tarefa, surge a seleção dos indivíduos, de acordo com as
qualidades exigidas por dita tarefa, e a educação dessas quali-
dades na infância. Tampouco, nesse caso, é a recreação outra
cousa que uma figuração do trabalho, uma função da atividade
utilitária.
A diferença entre o homem e os animais inferiores reduz-
se em tal caso a que o desenvolvimento dos instintos herdados
desempenha em sua educação um papel muito menor do que na
educação dos animais. O filhote do tigre nasce como um animal
carniceiro, enquanto o homem não nasce caçador, agricultor,
guerreiro ou mercador: converte-se em um ou outro sob a
influência das condições que o rodeiam. Б isto é exato no que
respeita aos dois sexos. A menina australiana, ao vir ao mundo,
não traz inclinação instintiva quando arranca da terra as raízes
ou pratica outros trabalhos de análoga significação econômica.
Essa inclinação aparece nela pela tendência à imitação: em seus
entretenimentos procura imitar o trabalho da mãe. Mas, por
que imita a mãe e não o pai? Porque na sociedade a que per-
tence está definida a divisão do trabalho entre o homem e a
mulher. Como pode você verificar, essa causa tampouco reside
nos instintos dos indivíduos, mas no meio social que os rodeia.
E, quanto maior é a importância do meio social, menos se pode
abandonar o ponto de vista da sociedade e perfilhar o ponto de
vista do indivíduo, como faz Bücher em seus raciocínios acerca
das relações entre a atividade diversiva e o trabalho.
Groos diz que a teoria de Spencer passa por alto a signi-
ficação biológica do jôgo cênico. Com muito maior motivo se
pode dizer que Groos não percebeu sua denotação sociológica.
Ademais, é possível que essa omissão seja corrigida por êle na
segunda parte da sua obra, em que tratará das preocupações
diversivas dos homens. A divisão do trabalho entre os dois sexos
dá-nos ocasião de examinar o raciocínio de Bücher de um nôvo
ponto de vista. Bücher apresenta o trabalho do selvagem adulto
como uma distração. Isto, já por si, constitui naturalmente um
êrro: a caça não é para o selvagem um esporte, mas uma ocu-
pação séria e necessária para a manutenção da vida.
O próprio Bücher observa, acertadamente, que "os selvagens
passam com freqüência grandes privações, e o cinturão que cons-
titui sua única roupa lhes serve realmente de schmatriemen,
segundo a expressão popular alemã, com que apertam o ventre
152 George Plekhanoc
para mitigar as torturas provocadas pela fome que os per-
segue" (24).
Será possível que nesses casos "freqüentes" (como o re-
conhece o próprio Bücher) o selvagem continue sendo um es-
portista que caça por distração e não por penosa necessidade?
Com Lichtenstein nos inteiramos de que os bosquímanos costu-
mam ficar sem alimentos durante vários dias. Tais períodos de
fome são, naturalmente, períodos de intensa busca de alimentos.
Será possível que também essa busca continue sendo uma dis-
tração? Os peles-vermelhas da América do Norte entregam-se
à "dança do bisonte", justamente quando estão muito tempo
sem caçar um desses animais e se sentem ameaçados de morrer
de fome (25).
A dança prolonga-se até que apareçam os bisontes, e os
índios estabelecem uma relação causai entre essa aparição e a
dança. Deixando de lado a questão, que não nos preocupa no
momento, acerca de como pôde surgir em sua imaginação a
idéia de tal relação causai, podemos dizer, sem risco de incor-
reção, que em casos tais a caça que se inicia com o apareci-
mento dos animais não pode ser considerada como distração.
Nesse caso, a dança mesma é uma atividade destinada a um
fim útil e estreitamente ligada à principal atividade vital do
pele-vermelha (26).
As Danças
(52) Alfaia.
(53) Von den Steinen, obro cit., p. 179.
(54) Von den Steinen, obra cit., p. 305.
184 George Plekhanov
beça enfeites sumamente belos, feitos de penas de pássaros de
vivas côres(55). Nas Ilhas da Sociedade, as penas vermelhas
de uma ave da Polinésia constituíam importantíssimo artigo de
comércio(56). Podem citar-se numerosíssimos exemplos como
êste, mas todos êles devem ser considerados como fenômenos
secundários originados das condições essenciais da vida baseada
na caça.
Por uma causa perfeitamente compreensível, isto é, pelo
fato de que a caça não é uma ocupação feminina, as mulheres
nunca carregam troféus. Mas o hábito de carregar troféus de
caça nas orelhas, nos lábios ou no nariz originou'o costume de
perfurar essas partes do corpo com ossos, pedacinhos de pau,
palhas e até pedra. O batoque brasileiro teve, evidentemente,
origem nesse tipo de adornos. E como êstes não se achavam
obrigatoriamente ligados a uma ocupação exslusivamente mas-
culina — a caça — não houve obstáculo a que a mulheres
também o usassem. E mais. E muito provável que tenham
sido precisamente as mulheres que introduziram o costume de
usá-los. Na tribo africana dos bongos, todas as mulheres casa-
douras perfuram o lábio inferior e introduzem no orifício um
pedacinho de pau. Outras perfuram também o nariz, em que
colocam uma palha (57). Êsse costume surgiu, certamente, em
uma época em que se não conhecia a elaboração dos metais e
em que as mulheres, desejosas de imitar os homens, mas sem
direito a se enfeitarem com troféus de guerra ou de caça, des-
conheciam ainda os adornos de metal. A elaboração dos metais
abriu um nôvo período na história da ornamentação. Os ador-
nos metálicos foram deslocando aos poucos aos que procediam
da caça (58). Os homens e as mulheres começaram a cobrir as
(24) Ver V. I. Iojelson, obra cit., pp. 33-34. Ver também pp.
34-35, pelas quais se vê a grande importância que tinha para os yuca-
giros tal gênero de escrita, dados os contínuos traslados próprios de
sua vida nômade, em que tinham que saber escrever ante o temor de
uma caçada infeliz.
(25) As crianças australianas que chegam a estudar em escolas
destinadas a europeus costumam revelar grandes aptidões para o dese-
Çou a utilizá-las, não apenas para a luta direta pela existência.
Os yucagiros também recorrem à escrita para suas declarações
amorosas(26). Tal luxo, que sequer está hoje ao alcance da
maioria de nossos camponeses, aparece como simples e natural
conseqüência da vida baseada na caça. Outra conseqüência,
igualmente simples e natural, é que o homem primitivo adorna
suas armas, instrumentos de trabalho e até o próprio corpo com
figuras de animais(27). À medida que se vão estilizando, os
desenhos dêsse gênero vão perdendo o aspecto original e com
freqüência, devido a seu caráter em aparência totalmente abs-
trato, constituem o deleite dos investigadores idealistas. À es-
treita relação causai entre a ornamentação primitiva e as con-
dições de vida baseada na caça não foi esclarecida até os últimos
tempos, mas na atualidade essa ornamentação deve ser incluída
entre os testemunhos mais convincentes a favor da concepção
materialista da história.
Segundo observa com extraordinário acêrto Von den Steinen,
na palavra alemã zeichnen manifesta-se claramente a vinculação
das origens da arte do desenho na sociedade primitiva. Essa
palavra é, evidentemente, uma derivação do vocábulo Zeichen
— sinal. Von de Steinen crê que os sinais destinados a comu-
nicar algo são mais antigos que o desenho. Estou completa-
mente de acordo com êle, pois — como sabe você — tenho o
pleno convencimento de que a atitude ante os objetos (e tam-
bém, claro está, ante as ações), do ponto de vista da utilidade
precedeu a atitude ante êles do ponto de vista do prazer esté-
nho. Semon observa que essa circunsância nada tem de estranho: "Denn
auch die Alten sind Meister im Lesen aller der Zeichen, die das Wild
auf flüchtiger Spur dem Boden, den Gräsern und Bäumen aufgedrückt
hat. Ebenso geschickt sind sie aber auch, sich gegenseitig durch absicht-
lich hervorgebrachte Zeichen zu verständigen . Es gibt Stämme die
darin geradezu Bewunderungswürdiges leisten" ("Também os adultos
são mestres em decifrar todos os sinais, que ao passar, deixam as feras
na terra, na esrva e nas árvores. Com a mesma habilidade se entendem
entre si mediante sinais traçados para êste fim. Há tribos que sob êste
aspecto realizam verdadeiros prodígios"). Im australischen Busche, p.
242.
(26) Iojelson, obra cit., p. 34.
(27) Na Nova-Zelândia, a tatuagem chama-se Moko, que quer
dizer lagarto, serpente. (Ratzel, Völkerkunde, vol. II, p. 137). É evi-
dente que de comêço a tatuagem se limitava à representação dêsses ani-
mais. Sua imagem estilizada foi certamente a Dase daquelas figuras
"geométricas" com que começaram os neozelandeses a se adornar.
tico. " 0 prazer causado pela imitação na imagem — acrescenta
Von den Steinen — que condicionou todo o desenvolvimento
ulterior, foi de certo modo a causa atuante também desde о
comêço"(28). Em uma das próximas cartas veremos se efeti-
vamente "todo" o desenvolvimento ulterior da pintura teve como
causa determinante o prazer causado pela imitação na imagem.
Mas é evidente que se essa imitação não houvesse produzido
qualquer prazer, a pintura não teria passado da etapa dos sinais
destinados a comunicar algo. O prazer foi sem dúvida, nesse
caso, um elemento indispensável. Todo o problema reside em
saber por que o prazer causado pela imitação na imagem se fêz
sentir com tanta fôrça nos caçadores europeus da época qua-
ternária, nos australianos e nos bosquímanos, nos esquimós e
yucagiros, desenvolvendo em todos êles uma grande afeição pela
pintura, e por que exerceu tão pouca influência, como por
exemplo, entre os negros africanos habituados desde muito à
agricultura. Só se pode dar uma resposta satisfatória a esta
pergunta assinalando o diferente caráter da atividade produtiva
dos povos caçadores e dos povos agricultores. Já vimos a grande
importância que têm os escritos-desenhos na vida dos caçadores
primitivos. Êsses escritos surgiram como uma condição do êxito
na luta pela existência. Mas ao fazer sua aparição, necessaria-
mente deveriam orientar em determinado sentido êsse afã de
imitação que se estriba nas qualidades da natureza humana, mas
que segue um ou outro desenvolvimento, segundo as condições
que rodeiam o homem. Enquanto o homem primitivo vive da
caça, seu afã de imitação torna-o, entre outras coisas, pintor e es-
cultor. A causa é bem compreensível. Que necessita para ser
pintor? Necessita capacidade de observação e habilidade manual.
Isto é, exatamente as mesmas qualidades que necessita possuir
como caçador. Sua atividade artística é, portanto, uma manifes-
tação das mesmas qualidades que nêle desenvolve a luta pela exis-
tência. Quando a passagem para a cria do gado e a agricultura
concorre para mudar as condições da luta pela existência, o
homem primitivo perde em grau considerável a inclinação e a
aptidão para a pintura que o distinguem no período da vida
baseada na caça. "Ainda que o agricultor e o criador de gado
estejam muito acima do caçador — diz Grosse — acham-se
abaixo dêle em matéria de artes plásticas, o que mostra, entre
outras coisas, que a relação entre a arte e a cultura não é tão