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1. o último quadro
Em 1927, o então curador do MoMA, Alfred Barr, visitou a URSS em busca de obras
suprematistas e construtivistas. Ele esperava encontrar, conforme relatava em seus diários, pinturas
e esculturas geométricas, tais como as produzidas no início do decênio de 1920 por Kasimir
Malevich ou por Aleksandr Rodchenko. Ao invés de tais obras, os artistas apresentavam a Barr
fotomontagens, fotografias, design de livros, cenografias e projetos arquitetônicos. O construtivista
El Lissitsky, por exemplo, chegou a dizer a Barr que “pintava apenas quando não tinha nada mais
a fazer, e como isso nunca acontecia, ele nunca pintava” (Barr, 1978).
Com efeito, os debates que envolviam a noção de representação (política, sobretudo) estavam
na ordem do dia na URSS do decênio de 1920. O dispositivo de dominação social calcado na
representação era evidente após a reintrodução, em 1921, de elementos de livre comércio na
economia. Era a leitura sobre tal processo que moldava a posição construtivista de recusa do
cavalete. Em 1923, por exemplo, quando a NEP já havia acirrado a desigualdade social na
sociedade soviética e produzido uma nova burguesia russa, Sergei Tretiakov, proeminente teórico
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Comunicação proposta para o GT9 – Cultura, capitalismo e socialismo, do IX Congresso Internacional Marx e Engels
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Doutorando em Sociologia no Programa de Pós Graduação da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-UNICAMP).
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do produtivismo, escreveu que “(...) as pessoas estão novamente ‘absortas na contemplação’ e
estão ‘experimentando a vida de modo mediado” (Tretiakov, 2006, p.17).
Na sua formação, a LEF, dirigida por Maiakóvsky, contava com nomes como os de Nikolay
Aseev Aleksandr Rodchenko, Bóris Arvatov, Ossip Brik, Boris Pasternak, Varvara Stepanova,
Anton Lavinski e Nikolay Tarabukin.
A plataforma produtivista adotada pelo grupo baseava-se num programa que visava
introduzir os artistas no processo produtivo, nas fábricas, para a reorganização da produção e dos
esquemas de trabalho, voltados à produção de objetos socialmente úteis. O movimento
produtivista soviético, que surgiu em 1921, era uma radicalização marxista do movimento
construtivista. O produtivismo propunha a superação da arte de cavalete e do psiquismo
contemplativo que ela supostamente engendrava, em prol de uma arte operativa e politicamente
engajada, que serviria ao avanço do processo revolucionário na medida em que reestruturaria
psiquicamente os sujeitos e os processos produtivos.
No contexto social da URSS, a LEF surgiu para aglutinar os artistas e teóricos produtivistas e
oferecer uma resposta à proliferação da arte representativa e naturalista, que passava a ser
difundida vigorosamente pela Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária – a AKhRR.
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Ao longo de sua história, a LEF combateu a estética contemplativa, a NEP, a cultura
burguesa dos nepmen e o “culto a Lênin”. Ela constituiu-se, portanto, numa frente de combate à
burocracia estatal e ao livre mercado. O movimento produtivista soviético foi aquele que
formulou, a sua maneira e a partir do debate artístico, uma espécie de pensamento radicalmente
crítico à espetacularização do processo revolucionário e, inclusive, uma crítica radical do
pensamento da Oposição de Esquerda, liderada por Trotsky.
3. arte-trabalho-produção-vida
Arvatov apontava que a concepção de cultura e arte da “maioria dos marxistas”, como ele
escreveu, centrava-se apenas em seus aspectos ideológicos, ou seja, na temática das obras, e não
em seus aspectos materiais constitutivos. Era tal concepção, por exemplo, que permitia a
manutenção do valor de culto realizada pelas escolas artísticas figurativistas e endossada e
promovida pelo Partido.
Existem slogans como Arte para todos!; Arte para as massas!, Arte nas ruas!.
Estes slogans soam vagos se levarmos em conta que existem dois aspectos na arte: a
fixação de experiências e sensações privadas em um material (a criação), e o efeito das
formas criadas no psiquismo humano (a percepção).
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Nas condições da sociedade burguesa, estes dois aspectos são distribuídos entre dois
grupos distintos. O grupo daqueles que percebem – uma audiência passiva que devota a
maior parte da vida a um trabalho inútil e indesejado, e que se esforça para preencher suas
horas de lazer com alguma atividade que ofereça prazer e interesse (...). As pessoas estão
procurando por espaços nas quais elas possam escapar da monotonia e insipidez do
cotidiano. E pintores, poetas, músicos e atores vieram em seu resgate. (...) A arte
constituiu-se como um truque com qualidades hipnóticas. Ela é um narcótico que cria na
psique humana uma vida paralela à vida concreta (2006a, p. 15).
Temos que lembrar que é a praga do trabalho forçado que atualmente gerou essa
necessidade [a necessidade da ‘arte como um narcótico’, conforme definida previamente
no artigo]. Foi tal praga que forçou as pessoas a assimilarem a neblina da ‘cultura
burguesa’, que incute a passividade e a contemplação (...) (Tretiakov, 2006a, p. 18).
Analogamente, Arvatov escrevia, em 1925, que a manutenção de uma relação passiva entre
os sujeitos e o produto do trabalho social, concretizado em Objetos, era o principal problema para
o avanço do processo revolucionário. O problema da superação da arte de cavalete, assim, era
posto como o problema da superação do Objeto-mercadoria e do seu fetichismo. O processo de
superação da arte, portanto, era o processo da reestruturação das relações de produção, construção
do poder operário e reordenação do gozo. Conforme Tretiakov, “A alegria em transformar a
matéria bruta em formas socialmente úteis (...): é isso que Arte para todos! deveria ser” (Idem, p.
17).
4. as oposições
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por exemplo, de que a cultura é “(...) a soma orgânica dos conhecimentos e informações que
caracterizam toda sociedade ou, ao menos, sua classe dirigente” (TROTSKY, 2007, p. 159), os
produtivistas oporão a noção de que a cultura material constituiu-se como um “sistema de
Objetos”, e é a relação entre os sujeitos e estes Objetos, na produção e no consumo, que
condicionam o psiquismo.
Tretiakov escreverá, por exemplo, que o pensamento de Trotsky com relação ao campo
cultural não é dialético. Arvatov, por sua vez, escreverá que a noção de que a cultura é um sistema
de acúmulo e difusão de conhecimentos, proposta, dentre outros, por Trotsky, é uma noção
burguesa, tributária do modo de funcionamento dos sistemas culturais burgueses, baseados na
cisão entre trabalho intelectual e trabalho manual.
Em um texto de 1927, intitulado “O novo Leon Tolstoi”, por exemplo, Tretiakov retomava a
crítica desta dimensão representativa contida no pensamento da Oposição. Ele escreveu:
Alguns estão desconsolados. Eles reclamam: onde está a arte monumental da revolução?
Onde estão as obras-primas do ‘épico vermelho’? Onde estão nossos Homeros e Tolstóis
vermelhos? E existem os otimistas que replicam: Espere! A revolução é sempre
‘indelicada’ no que se refere à arte. Dê um tempo às coisas. Os futuros Goncharovs e Leon
Tolstois estão entrando na escola primária. E, por hora, contente-se com os Tolstóis
provisórios: Seifullina, Pilniak e Veresaev. Eles podem não ser tão bons assim; ‘Virineia’
não é exatamente ‘Guerra e Paz’, mas sejamos pacientes (Tretiakov, 2006b, p. 47)
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literários nos jornais, que pudessem submeter o modo de vida soviético a uma rigorosa
investigação.
5. a “forma espectador”
Talvez possamos, nas trilhas do argumento até aqui desenvolvido, situar os produtivistas
dentre um grupo minoritário que, durante o processo revolucionário russo, procurou questionar as
bases do pensamento burguês no seio do movimento operário e, no caso, partidário. Se, em 1924,
Evgeny Pachukanis, rechaçando qualquer tentativa teórica de fundamentar um direito socialista,
analisou o direito como uma construção especificamente burguesa, cujo núcleo articulador seria a
“forma sujeito” e o estabelecimento de contratos que daí decorreriam entre os indivíduos
juridicamente livres e abstratamente iguais, talvez seja possível pensar que a LEF e os teóricos
produtivistas operaram uma crítica análoga no campo artístico.
Conclui-se, da leitura dos textos dos produtivistas, que o que aqui se chama de “forma
espectador” é uma forma social moderna correspondente a uma espécie de generalização da
posição psíquica contemplativa que resulta da cisão, nos sujeitos, entre o momento da produção e
o momento do consumo.
Arvatov teorizou sobre tal cisão em “A vida cotidiana e a cultura do Objeto”. Segundo ele,
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“A arte distingue-se também do ofício; a primeira chama-se arte livre, a outra pode também chamar-se arte
remunerada. Observa-se a primeira como se ela pudesse ter êxito (ser bem-sucedida) conforme a um fim somente
enquanto jogo, isto é, ocupação que é agradável por si própria; observa-se a segunda enquanto trabalho, isto é,
ocupação que por si própria é desagradável (penosa) e é atraente somente por seu efeito (por exemplo, pela
remuneração), que, por conseguinte, pode ser imposta coercitivamente”. Cf. Kant, 2008, p. 150.
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caracterizou o sistema capitalista. (...) A propriedade privada dos meios de produção deu
origem ao modo de vida (byt) privado, doméstico. Tal processo leva ao estabelecimento
das diferenças de classe, mas também leva ao máximo isolamento do sistema de produção
(que é como uma ‘máquina coletiva’) com relação ao sistema do consumo (que é um
sistema de apropriação individual) [1997].
Seria um dos resultados da cultura capitalista, estruturada em termos binários, esta “forma
espectador”? Se, por um lado, era o processo revolucionário russo que possibilitava a crítica da
estética contemplativa ao colocar em xeque as formas de vida burguesas; por outro lado, o mesmo
processo falhava em reestruturar as relações produtivas e repor tal cultura binária. É exemplar
deste aspecto a produção pictórica desenvolvida nos anos de 1930, por pintores como Aleksandr
Deineka, explicitamente dividida entre as pinturas que faziam a apologia do trabalho e as pinturas
que celebravam o modo de vida e as atividades recreativas na URSS.
6. o triunfo do espetáculo
Durante as comemorações pelo décimo ano da revolução russa, uma professora chinesa e
seus alunos, todos eles oposicionistas, invadiram e depredaram o mausoléu de Lenin. O caso,
emblemático, indicava a tensão política no país e a luta por um psiquismo ativo e crítico. A
professora e seus alunos tentavam pôr abaixo um dos exemplos máximos do “culto ao líder” e da
burocratização da revolução. Se o atentado ao Lenin mumificado expressava, ao menos
metaforicamente, o combate contra o espetáculo; a sorte da professora e dos estudantes
oposicionistas também parecia uma alegoria para o fim da atividade oposicionista: ela e os alunos
foram prontamente presos e enviados à Sibéria (Marie, 2009, p. 348).
Consumava-se, assim, “uma ordem de coisas que está no âmago da dominação do espetáculo
moderno”, nas palavras de Guy Debord (1997, p. 67-68). Tanto o bonapartismo soviético quanto o
parlamentarismo social-democrata operaram uma cisão radical entre representação e atividade,
uma cisão estruturada numa espécie de exacerbação do valor de culto e de reposição de uma
retórica enaltecedora do trabalho alienado. Assim, Ebert afirmava que “Socialismo quer dizer
trabalhar muito”, e Stálin, beneficiando-se de um regime de difusão de imagens otimistas sobre a
URSS, dizia que “Quando a vida é prazerosa, o trabalho vai bem” (Apud Idem, ibidem).
referências bibliográficas
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ARVATOV, Boris. “Everyday life and the culture of the Thing (Toward the Formulation of the
Question)”. Trad. Christina Kaier. In: OCTOBER 81, Cambridge, MA, MIT Press, Summer 1997,
p. 119-128.
BARR, Alfred. “Russian diary”. In: OCTOBER 7, Cambridge, MA, MIT Press, Winter 1978, p.
10-51.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro:
Contraponto Editorial, 1997.
MARIE, Jean Jacques. Trotski: revolucionario sin fronteras. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica, 2009.
TRETIAKOV, Sergei. “Art in the Revolution and the Revolution in Art (Aesthetic Consumption
and Production)”. October 118. Cambridge: MIT Press, 2006a.
________________. “The new Leo Tolstoy”. In: OCTOBER 118. Cambridge, MA, MIT Press,
Fall 2006b.
TROTSKY, Leon. Literatura e revolução. Trad. Luiz Alberto Moniz Bandeira. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2007.