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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Melo. Iran Ferreira de, (Org.)

Introdução aos estudos críticos do discurso: Teoria e prática /


Iran Ferreira de Melo (Org.)
Campinas, SP : Pontes Editores, 2012

Bibliografia.
ISBN 978-85-7113-405-8

1. Análise de discurso crítica - 2. Linguística 3. Discurso


I. Título

Índices para catálogo sistemático:

1. Análise de discurso crítica - 410


2. Linguística - 410
3. Discurso - 410
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impresso no Brasil
2012
SUMÁRIO

Prefácio............................................................................................... 7
Josenia Vieira
André Lúcio Bento

Apresentação....................................................................................... 11
Iran Ferreira de Melo

Política, ideologia e discurso.............................................................. 15


Teun a. Van dijk

Por uma análise crítica do discurso..................................................... 53


Iran Ferreira de Melo

Análise de discurso crítica como interdisciplina para a crítica social:


uma introdução .................................................................................. 99
Viviane Resende

Democracia y salud en chile¿ utopías por siempre?........................... 113


Leda Berardi

Gêneros discursivos e ideologia: elementos para estudos críticos...... 139


Viviane Ramalho

A mulher no léxico da canção de consumo:


Um discurso polarizado...................................................................... 189
Beatriz Daruj Gil

“Moda é dureza”: a construção discursiva do consumismo juvenil


como compulsão em reportagem do folhateen................................... 203
Paulo Roberto Gonçalves Segundo

Análise crítica do discurso e realismo crítico:


reflexões teórico-metodológicas......................................................... 239
Solange Maria de Barros Papa
Iran Ferreira de Melo (Org.)

prefácio

Prefaciar uma obra escrita a tantas mãos, não é tarefa


simples, sobretudo quando estamos diante de uma coletânea
cujos trabalhos se submetem a perspectivas teóricas, com
características diferenciadas. Este livro, entretanto, destaca-se
pela organicidade com que desenvolve suas análises, o que,
ao fim e ao cabo, resulta em relevante colaboração para os
estudos transdisciplinares do discurso contemporâneo.
O livro “Introdução aos estudos críticos do discurso:
teoria e prática” é marcado por elevadas qualidades acadê-
micas, na medida em que se torna potencialmente mais uma
significativa referência para os linguistas que se debruçam
sobre os discursos sob a ótica da Análise de Discurso Crítica,
impondo-se, ao mesmo tempo, como excelente ferramenta
para uso de pesquisadores dos mais diversos campos das
Ciências Sociais e de Análises Críticas que, igualmente,
consideram o discurso elemento constitutivo das práticas
sociais, das identidades e das relações de poder, imbricadas
em construções ideológicas.
Vale dizer ainda que o livro é de amplo alcance, tendo em
vista que abraça tanto os principiantes nos estudos da linguagem
em interface com outras práticas sociais quanto os pesquisadores
já iniciados nessa instigante tarefa. Assim, mesmo que o título
da obra nos sugira se tratar de um livro introdutório, cumpre-nos
desfazer esse possível “engano”, pois o que se constata, quando
da leitura dos artigos, é que todos, sem exceção, ultrapassam
a análise introdutória e a “superficialidade” que tal palavra
possa denotar, para adentrarem discussões profundas sobre
temas variados dos estudos do discurso.

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Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Ademais, “Introdução aos estudos críticos do discurso:


teoria e prática” agrega consideráveis contribuições para as
abordagens teóricas surgidas nos anos de 1970, notadamente
na Universidade de East Anglia, sob o rótulo de Linguística
Crítica (LC), com a publicação de Language and Control, uma
forte e influente vertente, precursora da Análise de Discurso
Crítica. À época, em tempos de hegemonia da gramática gera-
tiva transformacional, os estudos em LC tiveram repercussões
contundentes, entre elas a de não ser considerada linguística.
Hoje, todavia, esse momento é tomado por muitos teóricos
como o balizamento histórico que introduziu a Linguística no
rol das Ciências Sociais Críticas. E, mesmo que a Linguística
Crítica e a Análise de Discurso Crítica apresentem pontos de
dessemelhança, como o que trata do emprego do próprio termo
“crítica”, que, em ADC, reveste-se, em termos gerais, do com-
promisso político na construção de uma sociedade engajada
que pretende mudanças sociais, ainda assim a natureza crítica
de ambas nasce na mesma vertente teórica e, nesse sentido,
estabelece a preocupação dos estudos em ADC no intuito de
dar visibilidade aos sentidos construídos, de forma a desvelar
as representações de natureza crítica e ideológica.
As pesquisas em Análise de Discurso Crítica, em seu per-
curso histórico, incorporam a transdisciplinaridade, conceito
esse que atribui um caráter distintivo aos estudos do discurso
no âmbito da Linguística. Desse modo, em face do compro-
misso de realizar análise com o discurso como prática social,
torna-se evidente a necessidade de o pesquisador buscar em
outras ciências ou em diferentes vertentes teóricas, igualmen-
te críticas, o aparato que fundamenta as investigações feitas
em ADC, e isso privilegia os estudos contextuais, históricos,
sociológicos, filosóficos, políticos entre outros.
Esse olhar que perpassa vários campos do saber é uma
preocupação constante desta obra, pois ela localiza-se na in-
terseção de várias perspectivas que vêm dialogando na busca

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Iran Ferreira de Melo (Org.)

da interpretação do papel que os discursos desempenham nas


representações sociais, sempre de cunho ideológico. Assim,
podemos dizer que este livro é um interessante diálogo entre a
Análise de Discurso Crítica, o Realismo Crítico, a Linguística
Sistêmico-Funcional e a Sociorretórica.
Para além disso, um ponto de convergência dessas
vertentes teóricas, afora o discurso, sem dúvida, é a noção
de ideologia. Nesse particular, o estudo do professor Teun
Van Dijk apresenta uma densa análise sobre o caráter “vago”
que esse conceito ocupa no seio das Ciências Sociais. Desse
modo, Van Dijk ocupa-se da ideologia segundo a visão da
cognição social. Nessa perspectiva, as representações sociais
são erigidas por determinado grupo social, o que garante um
traço multidisciplinar na formação das ideologias, envoltas
em concepções de pertencimento e de ética, por exemplo.
Desse modo, muito mais do que “simples” representação, a
ideologia é o fundamento axiomático dessa representação. É
parte de tudo o que torna possível o aspecto coeso intragru-
pos e para isso guarda uma condição estável e flexível, tendo
em vista as práticas discursivas realizadas pelos membros de
certa comunidade.
Ao longo da leitura de todos os capítulos desta obra,
o leitor perceberá dois movimentos ─ um de recuperação
de conceitos e de definições essenciais, outro de aplicação
analítica de alguns desses conceitos e definições ─ os quais
resultam em unidade teórica e prática de alcance múltiplo,
pois interage de modo agradável tanto com os novos pesqui-
sadores, quanto com os experientes estudiosos, sem perder a
profundidade requerida por uma obra dessa natureza.

Josenia Vieira
André Lúcio Bento

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Iran Ferreira de Melo (Org.)

APRESENTAÇÃO

A crítica [...] objetiva a mudança [...] torna transparente o que


previamente estava oculto, e, ao fazer isso, inicia um processo de
reflexão própria, nos indivíduos ou em grupos, destinado a romper com
a dominação de limitações passadas. Aqui uma mudança na prática é,
portanto, um elemento constitutivo de uma mudança na teoria.
(CONNERTON, 1976, p.20)1

Os estudos linguísticos contemporâneos de orientação


discursiva têm dado relevo à investigação de fatores de ordem
sociocultural e política na relação que estes mantêm com a
língua. Esses trabalhos são de caráter crítico e delineados por
subáreas da Linguística preocupadas em dialogar suas teses
com teorias das Ciências Sociais que tratam o funcionamento
da linguagem em processos políticos e ideológicos. No rol das
pesquisas dessa natureza encontra-se a linha teórica denomi-
nada Análise Crítica do Discurso (ACD), que intenta desvelar
como os falantes constroem a realidade, os sistemas de crença,
as identidades e as representações sociais, oferecendo atenção
ao processo de produção e interpretação social caracterizado
por tensões e embates e contemplando a dimensão da mudança
social no discurso.
A ACD entende o discurso tanto como reprodutor quanto
transformador de realidades sociais, compreendendo o sujeito
da linguagem a partir de uma perspectiva psicossocial, não só
propenso ao moldamento ideológico e linguístico, mas também
agindo como transformador de suas próprias práticas discursi-
1 CONNERTON, P. Critical Sociology. Harmondsworth: Penguin, 1976.

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Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

vas, contestando e reestruturando a dominação e as formações


ideológicas socialmente empreendidas pela linguagem. Para a
ACD, o sujeito e o discurso se constituem num processo dialéti-
co, que ora se conforma às formações discursivas/sociais que o
compõem, ora resiste a elas, ressignificando-as, reconfigurando-
as. Desse modo, essa perspectiva tem-se apresentado como um
instrumental teórico para a análise das práticas discursivas que
reproduzem e transformam as várias ordens sociais vigentes,
investigando a diversidade das relações de poder investidas
no uso cotidiano e institucional da linguagem, e os analistas
críticos do discurso vêm mostrando o modo como as práticas
linguístico-discursivas estão imbricadas com as estruturas so-
ciopolíticas mais abrangentes de poder e dominação.
A ACD não pretende realizar uma análise do discurso
apenas como procedimento epistemológico sobre a língua,
antes, propõe analisar a linguagem como fenômeno de mu-
dança/transformação social, entendendo o discurso como
uma prática social que reflete e constitui as relações humanas.
Assume, assim, de modo explícito, um caráter ativista na luta
por democracia social, na medida em que denuncia práticas
de dominação e conflitos sociais que impedem a dinâmica
democrática da sociedade e permite aumentar a consciência
de como a linguagem contribui para a dominação de umas
pessoas sobre as outras, já que essa consciência é o primeiro
passo para a emancipação.
Diante disso, a proposta deste livro consiste em apresentar
estudos feitos por pesquisadores de Linguística e filiados aos
interesses dos estudos críticos da linguagem, especialmente
aqueles sob os fundamentos epistemológicos da ACD. Trata-se
de um material que versa sobre a história e o processo de esta-
belecimento dessa perspectiva, além de apresentar modelos de
aplicação dessa abordagem em diversos contextos de uso da
língua, expondo a práxis de uma crítica social da linguagem
sem se distanciar da análise do sistema linguístico.

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Iran Ferreira de Melo (Org.)

A obra é formada por oito capítulos. Os três primeiros


oferecem um apanhado geral da história da ACD, bem como
apresentam seu escopo e a diferem de outras perspectivas
de estudos sobre discurso. Além disso, esses capítulos são
responsáveis por introduzir temas importantes para essa
abordagem de investigação, tais como ideologia, política e
interdisciplinaridade. Os cinco capítulos que sucedem, além
de retomarem teorias já expostas nos anteriores, acrescentam
outros enfoques também privilegiados pela ACD, como suas
interfaces com os estudos da Saúde Pública, do Realismo
Crítico e sobre gênero discursivo e indústria cultural.
A ideia de escrever tal livro partiu da constatação de que
ainda são escassos os títulos que não só sintetizem a história e
os postulados teóricos da ACD, mas também explorem análi-
ses que se comprometam em desvendar as relações de poder
subjacentes às práticas sociais de uso da linguagem. Diante
de tal lacuna, propusemo-nos a organizar esse trabalho com
o desejo de contemplar as diversas abordagens e as questões
fundamentais dessa relevante área da Linguística Crítica. A
fim de compartilhar com essa concepção político-científica,
nosso trabalho:
a) objetiva funcionar como fonte de informação ampla
para todos/as aqueles/as que se dedicam ao estudo da lingua-
gem;
b) busca oferecer o respaldo das mais eminentes linhas
teóricas da ACD;
c) intenta instrumentalizar possíveis interessados/as em
estudos críticos, com exemplos diferenciados de análise que
se prontificam a decifrar o investimento ideológico subjacente
em vários usos da língua.
Muitas ramificações da ACD têm se apresentado como
instrumental de teoria e método para a análise das práticas
discursivas que compõem a sociedade. Desse modo, nosso
livro será uma compilação tanto de estudos expositivos (ver-

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Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

sando sobre as perspectivas que formam a ACD, a história


de sua formação e seus interesses políticos explícitos) quanto
analíticos (apresentando-se de modo prático, composto de
análises que podem ser transpostas a várias pesquisas). Há
aqui trabalhos de estudiosos já experientes nos estudos críticos
da linguagem (como o professor Teun van Dijk e a professora
Leda Berardi); textos de representantes das mais importantes
interfaces que compõem o interior da ACD – estudos so-
ciocognitivos (Beatriz Gil), linguística sistêmico-funcional
(Paulo Segundo), Realismo Crítico (Solange Papa), estudos
sociorretóricos (Viviane Ramalho); e ensaios muito produtivos
para os pesquisadores iniciantes nessa área (como os de Iran
Melo e Viviane Resende).
O resultado global desta obra favorece a leitura tanto
daqueles/as que pretendem se enveredar pela Linguística do
discurso em sua ramificação textualmente orientada quanto
de quem se interessa em estudar a dinâmica da sociedade
hodierna por meio do viés crítico das ciências sociais que
dialogam com os estudos linguísticos. Embora o acesso a esse
material seja voltado em especial a pesquisadores, professores
e estudantes de Letras, ele não é exclusivo dessa área, haja
vista a ACD constituir um campo de abordagem multidisci-
plinar, multiteórico e multimetódico e articular teorias das
Ciências Sociais, da Filosofia, da Psicologia Cognitiva e da
Semiótica. Certamente, esta obra será relevante para todos/
as que desejam descortinar de forma crítica e sistemática a
relação entre a linguagem e o poder, a hegemonia, a ideolo-
gia, as representações sociais e a construção de identidades.
Portanto, aproveitem e boa leitura!

O organizador

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Iran Ferreira de Melo (Org.)

POLÍTICA, IDEOLOGIA E DISCURSO1


Teun A. van Dijk
Universidad Pompeu Fabra

1. Introdução

Poucas áreas nas Ciências Sociais são tão relacionadas


entre si quanto o estudo da política, da ideologia e do discur-
so. A política é um dos domínios sociais cujas práticas são
quase exclusivamente discursivas; a cognição política é, por
definição, ideologicamente baseada; e as ideologias políticas
são largamente reproduzidas pelo discurso. Neste capítulo
examinaremos essas relações mais detalhadamente.

2. Ideologia

O conceito de “ideologia” é comumente utilizado nas


mídias e nas Ciências Socias, entretanto é notoriamente vago.
Seu uso diário é amplamente negativo e geralmente refere-se
às ideias rígidas, equivocadas ou partidárias de outros: nós
temos a verdade e eles têm ideologias. Esse sentido negativo
remonta a Marx-Engels, para quem as ideologias eram uma
forma de “falsa consciência”; Assim, a classe trabalhadora
tinha ideias equivocadas a respeito das condições da sua exis-
tência como resultado da doutrinação por parte daqueles que
controlavam os meios de produção. Ao longo de grande parte
do século XX, tanto nas áreas da Política quanto nas Ciências

1 Tradução de Ítalo Barros.

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Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Sociais, a noção de ideologia continuava a carregar conotação


negativa e era frequentemente usada em oposição a conheci-
mento “objetivo” (para a história da noção de ideologia, ver,
por exemplo:  BILLIG, 1982; EAGLETON, 1991; LARRAIN,
1979; para uma coleção de estudos clássicos sobre ideologia,
ver ZIZEK, 1994).
Na sua origem, “ideologia” não carregava esse sentido
negativo. Há mais de 200 anos, o filósofo francês Destutt
de Tracy introduziu o termo a fim de denominar uma nova
disciplina que estudaria as ‘ideias’: idéologie. Na ciência po-
lítica contemporânea, a noção também é usada num sentido
mais neutro e descritivo, como por exemplo, ao se referir aos
sistemas de crenças políticas (FREEDEN, 1996).
Uma das inúmeras dimensões destacadas nas abordagens
clássicas sobre ideologia era sua natureza “dominadora”,
no sentido de que as ideologias têm o papel de legitimação
do abuso de poder por grupos dominantes. Uma das formas
mais eficientes de dominação ideológica é quando os grupos
dominados aceitam as ideologias dominantes como “naturais”
ou pertencentes ao “senso comum”. Gramsci chamou essas
formas de domínio ideológico de “hegemonia” (GRAMS-
CI, 1971). Bourdieu não utiliza a noção de ideologia com
frequência (principalmente porque ele acredita que o termo
é demasiadamente vago e tem sido usado para desacreditar
outras pessoas que não concordam conosco; ver BOURDIEU
& EAGLETON, 1994), mas fala de poder e violência sim-
bólicos. É importante ressaltar que, embora relacionados, os
usos desses termos são diferentes dos (vários) usos da noção
de ideologia. Seu principal interesse reside nas condições
sociais do poder discursivo e simbólico, como a autoridade e
legitimidade de quem produz o discurso.
A fim de resumir uma longa pesquisa histórica, um con-
ceito específico de ideologia será usado neste capítulo, nota-
damente para descrever crenças específicas e fundamentais de

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Iran Ferreira de Melo (Org.)

grupos de pessoas. Nossa definição de trabalho de ideologia


é, portanto, a que se segue: Uma ideologia é a base das re-
presentações sociais compartilhadas por um grupo social.
Dependendo da perspectiva, pertencimento de grupo ou ética,
essas ideias podem ganhar valor ‘positivo’, ‘negativo’ ou não
ganhar valor nenhum. Isto é, não identificamos ideologias
exclusivamente nos grupos dominantes (veja também a dis-
cussão em ABERCROMBIE, HILL & TURNER, 1980). Os
grupos dominados também podem ter ideologias, notadamente
ideologias de resistência e oposição. Ideologias são associadas,
geralmente, com grupos sociais, classes, castas ou comunida-
des que representam seus interesses fundamentais. A teoria
que aponta para esse tipo de crenças ideológicas é complexa
e multidiciplinar e pode ser resumida a seguir (para detalhes
e outras referências, ver VAN DIJK, 1998):

• Ideologias têm propriedades sociais e cognitivas que pre-


cisam ser contabilizadas para uma teoria integrada.
• Cognitivamente, ideologias são tipos especiais de sistemas
de crenças sociais, alocados na Memória de Longo Prazo.
• Socialmente, assim como cognitivamente, esses sistemas
de crenças ideológicas são compartilhados pelos membros
de grupos sociais específicos ou “comunidades ideológi-
cas”.
• Assim como as línguas, as ideologias são essencialmente
sociais. Não há ideologias “pessoais” ou “individuais” –
apenas usos pessoais ou individuais das ideologias.
• A identidade de grupo não é apenas baseada nas suas pro-
priedades “estruturais”, mas também nas suas ideologias.
• Sistemas de crenças ideológicas, ideologias, formam a
base “axiomática” de crenças mais específicas ou “repre-
sentações sociais” de um grupo, tais como seus conheci-
mentos e opiniões de grupo (atitudes).
• Diferentemente das abordagens mais tradicionais de ide-

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Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

ologia, elas não são necessariamente “negativas”. Ideolo-


gias têm estruturas e funções similares compartilhadas tan-
to por grupos dominantes quanto por dominados, “maus”
ou “bons”. Logo, podemos ter ideologias negativas, assim
como positivas (“utopias”), dependendo da perspectiva,
valores ou pertencimento de grupo de quem os avalia.
• Nem todas as crenças compartilhadas socialmente por um
grupo são ideológicas. No entanto, grupos ideologicamen-
te diferentes ou opostos na mesma sociedade precisam ter
crenças em comum a fim de serem capazes de se comu-
nicarem primordialmente. Essa base comum consiste em
conhecimento compartilhado socioculturalmente, que, por
definição, é pré-ideológico em dada sociedade (embora
possa ser descrita mais tarde, em um outro contexto, como
conhecimento ideológico).
• Deste modo, a problemática relação tradicional entre
conhecimento e ideologia pode ser explicada da seguinte
maneira: conhecimento geral, sociocultural, compartilhado
por uma comunidade epistêmica forma a base comum das
representações sociais de todos os grupos (ideológicos)
em determinada comunidade. Entretanto, cada grupo pode
desenvolver seu conhecimento específico (por exemplo:
conhecimento profissional, religioso ou político.) baseado
na sua ideologia. Esse conhecimento é chamado de “conhe-
cimento” de dentro do grupo, porque ele é geralmente com-
partilhado e certificado como sendo “verdadeiro”. Outros
grupos, no entanto, podem considerar esse conhecimento
como “mera crença”, superstição ou religião. Em outras
palavras, crenças que são tomadas como verdadeiras, senso
comum, não disputadas etc. dentro de uma comunidade e
compartilhadas por diferentes grupos ideológicos, são por
definição, não ideológicas dentro da comunidade.
• As ideologias expressam os princípios norteadores que
controlam a coerência geral das representações sociais

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Iran Ferreira de Melo (Org.)

compartilhadas pelos membros de determinados grupos.


Por exemplo, uma ideologia racista pode controlar atitu-
des mais específicas sobre imigração e ações afirmativas.
• Representações sociais ideologicamente baseadas (tais
como atitudes feministas sobre aborto ou situações de-
licadas no trabalho) são gerais e abstratas. A fim de se
relacionar às praticas sociais concretas e discursos sobre
eventos específicos, elas precisam se tornar contextuali-
zadas e especificadas em modelos mentais. Esses mode-
los mentais (ideologicamente tendenciosos) alocados na
Memória Episódica são ideias complexas que controlam
o discurso, a interação e outras práticas sociais. E, inver-
samente, é através dos modelos mentais que os discursos
são capazes de influenciar as representações sociais e
ideologias, assim como reproduzi-las. (Ver Cognition,
Emotion and Language).
• As ideologias representam uma das dimensões da identi-
dade social ou autoimagem dos grupos.
• Diferentemente das representações sociais menos funda-
mentais e muito mais do que modelos pessoais variáveis,
ideologias são relativamente estáveis. Uma ideologia não
se torna ou deixa de ser feminista, socialista ou pacifista
da noite para o dia. Muitas delas são adquiridas depois
de muitos anos e permanecem ativas durante as vidas dos
membros do grupo.
• As ideologias estão estruturadas por um esquema social
que consiste em um número de categorias que representam
cognitivamente a maior dimensão social dos grupos, tais
como suas propriedades distintivas, critério de pertenci-
mento, ações típicas, objetivos, normas e valores, grupos
de referência e recursos básicos ou interesses.
• Tanto cognitivamente quanto socialmente, as ideologias
desenvolvem recursos compartilhados especial e social-
mente para a coerência interna do grupo e cooperação,

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Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

assim como para maneiras eficientes de relações intra-


grupais.
• Muitas ideologias – mas não todas – são relevantes em
situações de competição, conflito, dominação e resistência
entre grupos, isto é, fazem parte de uma luta social. Isso
também explica porque muitas das estruturas mentais das
ideologias e práticas ideológicas são polarizadas com base
na diferenciação de grupo interno e externo, geralmente
dividido entre Nós e Eles, como os discursos ideológicos
também mostram.
• Como os indivíduos têm a possibilidade de ser membros
de vários grupos, eles podem “participar” de várias ideo-
logias. Portanto, alguém pode ser nacionalista, socialista,
jornalista feminista e assim compartilhar desses diferentes
tipos de ideologias profissionais e sociais. Obviamente,
quando ativadas (usadas) ao mesmo tempo, no discurso
ou em outras práticas sociais, podem levar a conflitos.
• As praticas sociais, e até mesmo discursos de membros
dos grupos podem ser (indiretamente) controlados pelas
ideologias do grupo, mas são comumente mediados por
representações sociais mais específicas no nível de gru-
po e por modelos mentais concretos e pessoas no nível
individual.
• Por outro lado, ideologias são adquiridas de modo indi-
vidual e reproduzidas socialmente através das práticas
sociais e, especialmente, pelos discursos de um grupo.
• Os grupos podem organizar a aquisição discursiva e a
produção das ideologias, como, por exemplo, através de
formas especiais de educação, doutrinação, treinamento
de trabalho, catequização, e por membros de grupos
especializados (ideólogos, padres, professores etc.) em
instituições especiais.
• Nem todos os membros do grupo têm, nem mesmo pre-
cisam ter, o mesmo nível de conhecimento ideológico e

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Iran Ferreira de Melo (Org.)

experiência. Seu conhecimento ideológico também não


precisa ser sempre muito explícito. Usar uma ideologia é
como ser capaz de usar uma língua sem, no entanto, ter
a habilidade de formular sua gramática. Muitos homens
são sexistas e suas ideologias sexistas podem controlar
muito do seu discurso e outras práticas sociais, mas eles
nem sempre precisam ter acesso explícito aos conteúdos
das suas ideologias.
• No entanto, uma vez que muitas ideologias sociais se
desenvolvem como parte das relações de grupo, conflito,
dominação e resistência, e além disso envolvem o debate
ideológico que é geralmente publicado na mídia de massa,
muitos membros do grupo sabem, pelo menos, os princí-
pios básicos do seu grupo.

Essas são algumas das principais propriedades das ide-


ologias, formuladas em uma teoria multidisciplinar e socio-
cognitiva. Desse modo, as ideologias são a base “axiomática”
das representações sociais de um grupo e através de atitudes
sociais específicas e de modelos mentais pessoais, controlam
os discursos individuais e outras práticas sociais dos membros
do grupo. Dessa forma, elas também são o recurso necessário
da cooperação, coordenação e coesão intergrupal, assim como
são responsáveis pelo gerenciamento das relações internas do
grupo. Essa concepção é levada em conta apenas dentro de
uma teoria que seja capaz de levar em consideração o discurso
ideológico e outras práticas sociais, notadamente como sendo
derivados das representações sociais formadas ideologica-
mente e como instanciações de relações socias entre grupos.
Mais do que as abordagens tradicionais, esta abordagem
multidisciplinar não enfatiza apenas a natureza política e ideo-
lógica das ideologias, mas também sua natureza sociocogniti-
va. Deve ser destacado, no entanto, que isso não significa que
apenas essa dimensão cognitiva é importante. Diferentemente

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Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

das tradicionais abordagens sociais e socioeconômicas, a teoria


enfatiza que ideologias – triviais – têm a ver com ideias de
algum tipo e, além disso, também precisam de uma contabi-
lização cognitiva e até mesmo uma teoria social dos grupos e
das suas relações, poder e interesses. Essa abordagem não im-
plica que a teoria da ideologia sem um componente cognitivo
explícito é incompleta: lidar com ideologias sem falar sobre
a natureza e funções das ‘ideias’ socialmente compartilhadas
é teoricamente insatisfatório.
Compreendemos que as práticas sociais ideológicas
são por definição baseadas em ideologias definidas como
representações mentais compartilhadas, de uma forma que
podem ser comparadas com o modo em que o uso da língua
é ‘baseado’ numa gramática compartilhada ou em regras do
discurso e da conversação. É neste sentido que as ideologias,
como recursos cognitivos compartilhados socialmente, são
fundamentais para as práticas sociais, interação e relação
intra e intergrupal. Por outro lado, as funções sociais gerais
das práticas ideológicas devem ser representadas, além de
tudo, como parte das ideologias “em destaque”. Este é um
dos motivos pelos quais as abordagens sociais e cognitivas
sobre ideologia precisam ser integradas.
A teoria proposta aqui representa tanto os aspectos relati-
vamente estáveis quanto os aspectos flexíveis, dinâmicos, vari-
áveis, contextualizados e subjetivos das ideologias. A primeira
dimensão pode ser explicada em termos de representações
mentais relativamente estáveis e socialmente compartilhadas
de grupos. A segunda dimensão é responsável pelos modelos
mentais ideologicamente baseados, específicos e subjetivos
de membros do grupo que controlam o discurso e outras prá-
ticas sociais em determinadas situações. Diferente de outras
abordagens, por exemplo, a Psicologia discursiva e outras
abordagens construtivistas (BILLIG, 1988, 1991; POTTER,
1996) esta teoria não atribui os aspectos flexíveis, subjetivos,

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Iran Ferreira de Melo (Org.)

contextualmente variáveis das práticas ideológicas à sua pró-


pria natureza ideológica, mas aos seus “usos” de membros
individuais. Novamente, a comparação entre as gramáticas
naturais relativamente estáveis – e de mudança lenta – e seus
usos pessoais, variáveis e contextualizados sugere isso por si
só. Pelo mesmo motivo, as ideologias não são reduzidas aos
seus usos, discursos ou práticas sociais “observáveis”, mas
definidas como representações destacadas, compartilhadas
socialmente ou recursos que governam tais práticas. Nem
mesmo podemos reduzir ideologias a discursos porque ob-
viamente elas também controlam outras práticas socias, tais
como formas de discriminação e violência. Em suma, a teoria
apresentada aqui não é apenas multidisciplinar, mas também
não reducionista.
Por fim, ideologias são contabilizadas em termos so-
ciocognitivos mais do que nos termos emocionais porque
elas são, por definição, socialmente compartilhadas e na
nossa definição de emoções, apenas pessoas individuais e
não grupos podem ter emoções corporalmente baseadas.
Quando nós, às vezes, falamos de ideologias de “ódio”,
como no caso das ideologias racistas e sexistas, não estamos
falando de emoções, mas de avaliações cognitivas negativas
(opiniões). Emoções são temporais, contextuais e pessoais,
psicologicamente baseadas e eventos interpretados cogniti-
vamente. Desse modo, alguém pode ter e compartilhar uma
opinião mais ou menos permanentemente negativa sobre
imigrantes mas não pode, no sentido estrito do termo, estar
permanentemente “com raiva” de imigrantes sem literal-
mente compartilhar uma emoção com outros. Portanto,
uma vez que ideologias são compartilhadas socialmente,
elas não podem, por definição serem “emocionais”. Entre-
tanto, seus usos ou aplicações por membros individuais
de grupos em situações concretas podem desencadear e
serem expressos como emoções. Também por essa razão

23
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

é essencial distinguir analiticamente as ideologias e seus


usos atuais ou manifestações no discurso, interação e outras
práticas sociais.

3. Ideologia e política

A teoria geral de ideologia resumida acima precisa ser


especificada para o enorme “campo” social da política, isto
é, para os políticos, cognição política, processos políticos,
práticas políticas e discurso político como caracterização dos
grupos políticos, tais como partidos políticos, membros de par-
lamentos ou de movimentos sociais. Assim como as ideologias
não só têm funções sociais gerais, mas mais especificamente
(também) funções políticas no campo da política, vamos
chamá-las de ideologias políticas. Portanto, o Socialismo é
uma ideologia obviamente mais “política” do que a ideologia
profissional de dentistas, tendo em vista que interpretamos
“político” aqui como a descrição dos processos no campo da
política e não como parte dos campos de cuidado da saúde,
educação, justiça entre outros. Deste modo, uma maneira
de classificar as ideologias, bem como os discursos, é pelo
campo social em que eles funcionam. Ou seja, ideologias de
campos políticos, educacionais, legais, religiosos e cuidados
da saúde, entre outros.
Está além do escopo deste breve capítulo definir e teo-
rizar em detalhes sobre o que caracteriza o campo da política
(ver, por exemplo, GOODIN & KLINGEMANN, 1996). No
entanto, além de ser definido por seus participantes prototí-
picos, os políticos, este campo pode ser brevemente – e um
tanto tradicionalmente – definido por:

• Seus sistemas globais (Democracia, Ditadura etc.);


• Macro ações sociais especiais, tais como governo, legis-
lação, eleições, ou tomada de decisão;
• e suas micro práticas, interações e discursos tais como

24
Iran Ferreira de Melo (Org.)

debates parlamentares, propaganda eleitoral e demons-


trações.
• Suas relações sociais especiais, como as do poder insti-
tucional;
• Suas normas e valores especiais (por exemplo, liberdade,
igualdade etc.);
• Suas cognições políticas, como as ideologias políticas.

Se tivéssemos que eleger apenas um campo social ideoló-


gico, seria o da política. Isto não é surpreendente levando em
consideração que, nesse campo, grupos diferentes e opostos,
poder, luta e interesses estão em jogo. A fim de serem capazes
de competir, os grupos políticos precisam ser ideologicamente
conscientes e organizados. Poucos grupos ideológicos, além
dos partidos políticos, têm “programas” que elaboram suas
ideologias de forma explícita e que disputam pelos novos
membros que dão suporte à sua base. Poucas ideologias são
tão explicitamente defendidas e contestadas como as ideolo-
gias políticas, como conhecemos da história do Socialismo,
Comunismo, Liberalismo e assim por diante.
A organização social do campo da política e, portanto, dos
políticos e grupos políticos é amplamente baseada em diferen-
ças ideológicas, alianças e similaridades. A organização geral
das crenças sociais como uma luta entre Esquerda e Direita
é o resultado da polarização subjacente das ideologias polí-
ticas que impregnaram a sociedade como um todo. Eleições,
parlamentos, eleições políticas, propagandas, e muitas outras
demonstrações do campo político são, portanto, profundamen-
te ideológicas. Debates no Parlamento opuseram ideologias
políticas como base de políticas públicas, medidas, decisões
ou ações. Uma identidade política, posturas e lealdade não
estão tão definidas em membros do grupo estrutural, tais como
membros de um partido político, mas sim em termos da sua
própria ideologia. A maioria dos socialistas ou neoliberais

25
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

não tem um cartão de membro. O mesmo acontece em outras


ideologias sociais que têm profundas implicações políticas,
como o feminismo, pacifismo, ambientalismo ou racismo.
Embora primariamente definidas em termos sociocogni-
tivos, as ideologias políticas permeiam todo o campo político,
tais como sistemas globais como as democracias (baseadas
nas ideologias democráticas), atos gerais e processos (tais
como governo, construção de alianças ou eleições), práticas
políticas diárias (debates e demonstrações parlamentares),
relações de grupo (como dominação e resistência, governo
e oposição), normas e valores fundamentais (como igual-
dade e independência, que são categorias constitutivas das
ideologias), assim como atitudes políticas mais específicas
(por exemplo, legislação sobre aborto ou divórcio) que são
controladas por ideologias.

4. Discurso político e ideologia

Se o campo político é completamente ideológico, da


mesma forma são suas práticas políticas e, portanto, seus
discursos (entre muitos livros sobre discurso político, veja,
por exemplo: CHILTON, 1995, 2004; CHILTON & SCHÄFF-
NER, 2002; WILSON, 1990; WODAK & MENZ, 1990; veja
também outras contribuições nessa sessão). Na verdade, as
ideologias políticas não são envolvidas apenas na produção e
compreensão dos discursos políticos e outras práticas políticas,
mas também são re(produzidas) por eles. Em certos sentidos, é
tornar as ideologias “observáveis” no sentido de que é apenas
no discurso que elas podem ser “expressas” e “formuladas”.
É no discurso que precisamos explicar explicitamente que
tal discriminação ocorre “porque ela é mulher”, “porque ele
é negro” ou “porque eles são socialistas”.
Assim, é em grande parte por meio do discurso que as
ideologias políticas são adquiridas, expressas, aprendidas, pro-

26
Iran Ferreira de Melo (Org.)

pagadas e contestadas. A continuação deste capítulo examinará


as relações entre discurso político e ideologia política. Curio-
samente, apesar da vasta literatura sobre ideologia (milhares de
livros apenas em inglês), praticamente não há monografias que
explorem os detalhes das relações entre discurso e ideologia,
apesar de muitos livros na área da linguística crítica e análise
crítica do discurso lidarem pelo menos com alguns aspectos
dessa relação (ver, por exemplo, FAIRCLOUGH, 1989, 1995;
FOWLER, HODGE, KRESS & TREW, 1979; FOWLER,
1991; HODGE & KRESS, 1993; PÊCHEUX, 1982; VAN
DIJK, 1998; WODAK, 1989; WODAK et al., 1987; WODAK
& MENZ, 1990; WODAK & MEYER, 2001).

4.1 Situações e contextos políticos

As relações entre discurso e ideologias políticas são


normalmente estudadas em termos das estruturas do discur-
so político, como o uso de itens lexicais “preconceituosos”,
estruturas sintáticas ativas e passivas, pronomes como nós e
eles, metáforas ou temas, argumentos, implicações e muitas
outras propriedades do discurso (ver as referências no final
da última sessão).
Deve-se ressaltar que, embora o discurso deva ser con-
ceituado também em termos da estrutura de seu contexto
(DURANTI & GOODWIN, 1992), não basta observar, por
exemplo, que o discurso político geralmente apresenta o
conhecido pronome político nós. É crucial relacionar tal uso
a categorias como quem está falando, quando, onde e com/
para quem, isto é, aspectos específicos da situação política.
Uma vez que tais situações políticas não “fazem” ape-
nas os atores políticos falarem de certa forma, precisamos
novamente de uma interface cognitiva entre uma situação
e discurso ou texto, ou seja, um modelo mental da situação
política (VAN DIJK, 1999, 2001, 2003). Tais modelos men-

27
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

tais definem como os participantes vivenciam, interpretam e


representam os aspectos relevantes da situação política. Es-
ses modelos mentais são chamados de contextos. Em outras
palavras, contextos são definições subjetivas de participantes
de situações comunicativas. Eles controlam todos os aspectos
da produção e compreensão do discurso.
O discurso político, portanto, não é apenas definido em
termos da sua estrutura, mas também por contextos políticos.
Assim, atuando como membros do Parlamento, Primeiros Mi-
nistros, líderes de partido, ou como manifestantes, esses atores
serão geralmente percebidos como porta-vozes ou receptores
em uma categoria de contexto relevante no discurso político,
ao passo que um dentista ou um porteiro dificilmente seriam.
Da mesma forma, contextos políticos podem ser definidos por
configurações especiais, que apresentam locais como prédios
parlamentares ou eventos como debates ou encontros, geralmen-
te controlados por tempo preciso, como é o caso dos debates
parlamentares. Os discursos políticos e suas estruturas serão
apenas capazes de ter as funções políticas que elas possuem
quando estiverem aprovando os atos políticos ou processos,
governando, legislando ou fazendo oposição, e com os objetivos
políticos específicos em mente, como, por exemplo, ao defen-
der e derrotar um projeto de lei ou ser eleito. E, finalmente, os
atores políticos obviamente não participam inocentemente das
situações políticas, mas têm conhecimentos políticos, compar-
tilham normas e valores políticos, assim como ideologias. De
fato, é através dessa forma de contextualização que nós somos
capazes de vincular as ideologias dos participantes aos seus
discursos (GUMPERZ, 1982). Textos ou discursos “mostram”
ideologias discursivamente, mas são as pessoas, políticos ou
manifestantes que “têm” ideologias, não apenas nesta prática
social ou discurso, mas também em outros.
Estes são, portanto, alguns dos tipos de categorias que
compõem o nosso contexto de modelo político, isto é, catego-

28
Iran Ferreira de Melo (Org.)

rias políticas que usamos para definir a situação de texto e dis-


curso. Da mesma forma que discursos podem ser ideológicos
quando baseados em ideologias, as estruturas e práticas dos
contextos políticos também podem ter uma base ideológica.
Obviamente, ser um membro do Parlamento pressupõe um
sistema parlamentar, e, portanto, uma ideologia democrática,
ao passo que ser um ditador pressupõe outra ideologia.
Evidentemente estas categorias são culturalmente variá-
veis: membros do parlamento, primeiros ministros ou secretá-
rios de partido não são exatamente categorias de participantes
políticos universais. Outras culturas podem ter seus próprios
tipos de eventos, ações políticas, participantes, locais, ge-
renciamento de tempo e, claro, seus próprios conhecimentos
políticos, atitudes, ideologias, normas e valores.
Uma explicação mais detalhada sobre os processos cog-
nitivos envolvidos na forma em que os modelos de contexto
controlam o discurso político está além do nosso objetivo neste
capítulo. Basta dizer que as informações nas várias catego-
rias dos modelos de contextos (pragmáticos), por exemplo,
quem está participando da situação comunicativa, antes de
tudo controlam os atos de fala e outros atos da situação atual.
Assim, o enunciado atual pode ser definido como uma pro-
messa política ou como uma ameaça, dependendo do poder
ou relação dos participantes, suas posições políticas (governo
ou oposição, meu partido ou o seu partido), bem como as in-
tenções de ajudar ou prejudicar o receptor. Em segundo lugar,
os modelos de contextos pragmáticos controlam a seleção da
informação no modelo (semântico) mental que define (inter)
subjetivamente sobre o que os participantes falam, como a
guerra no Iraque. Portanto, um membro do parlamento ou
um ministro, ao se endereçar aos seus colegas, irá expressar
e pressupor muitos mais conhecimentos do que um político
participando de uma entrevista ou proferindo um discurso.
Em terceiro lugar, os modelos de contexto controlam todos os

29
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

níveis do estilo do discurso político, como as escolhas lexicais,


pronomes, estruturas sintáticas e outras escolhas gramaticais
que dependem de como as situações são definidas. Assim, o
estilo lexical e sintático em um debate parlamentar será muito
mais formal do que uma reunião informal de membros de um
partido político ou um folheto de propaganda. E, por fim, os
modelos de contexto controlam o “formato global” ou “es-
quema” do discurso político, tais como a organização formal
da tomada de turno, aberturas e fechamentos de um debate
no parlamento, a estrutura de conversação de uma entrevista
política, a organização geral de um programa do partido ou o
layout de uma propaganda política em uma revista ou em um
outdoor. Por exemplo, apenas o orador público, uma categoria
especial de participante da Câmara dos Comuns do Reino
Unido, pode abrir e fechar as sessões parlamentares e debates,
distribuir turnos e decidir quando as interrupções ou questões
serão permitidas, entre muitas outras coisas. Assim, as regras
e estruturas da interação parlamentar, bem como seus partici-
pantes, estão intimamente relacionadas à estrutura discursiva
do debate a ser exercida pelos membros do Parlamento.
Relevante para nossa discussão, neste caso, é que espe-
cialmente a ideologia política dos participantes não é con-
trolada apenas por muito do que eles mesmos dizem, mas
também como eles vão entender outros interlocutores. Assim,
uma chamada para limitar a imigração feita por um partido
de extrema direita será geralmente ouvida e comentada como
“racista”, enquanto propostas semelhantes formuladas por
membros da esquerda do Parlamento do nosso próprio partido
raramente será interpretada como tal.

4.2 Discurso político e ideologia política

Se as ideologias políticas são propriedades relevantes das


situações políticas, ou seja, são compartilhadas pelos partici-

30
Iran Ferreira de Melo (Org.)

pantes, então como elas podem ser expressas e reproduzidas


pelas estruturas do texto e do discurso?
A primeira questão que nos deparamos é se todas as
propriedades do discurso político são influenciadas pelas
ideologias “subjacentes”. A resposta a essa pergunta seria:
obviamente que não, pois, em primeiro lugar, apenas aquelas
propriedades do discurso que variam contextualmente podem
ser influenciadas por ideologias. Assim, a escolha de pronomes
mais ou menos polidos é contextualmente variável, ao passo
que muito da estrutura sintática, como a posição dos artigos
antes de substantivos em inglês, não é. Pessoas com ideolo-
gias diferentes não possuem gramáticas diferentes, embora
elas usem tais gramáticas de maneira um pouco diferente às
vezes. O conhecimento sociocultural, incluindo a linguagem,
define comunidades e não grupos ideológicos. A esse respeito,
esquerda ou direita, socialistas ou neoliberais, racistas ou an-
tirracistas, não falarão ou escreverão de modo muito diferente.
Isso sugere que as diferenças ideológicas devem ser procura-
das no que as pessoas dizem e não em como elas dizem. As
ideias políticas podem ser defendidas persuasivamente pela
Esquerda ou Direita, logo as diferenças ideológicas raramente
serão definidas apenas em termos de retórica. Assim, embora
provavelmente existam usos políticos das formas do discurso,
como o uso de pronomes como marcadores de intragrupo e
extragrupo, ou meios retóricos de persuasão, é provável que a
maior parte da variação ideológica seja encontrada nos níveis
de significado.
A fim de evitar um processo de descoberta arbitrário do
montante potencialmente enorme de estruturas ideologica-
mente variáveis do texto e do discurso, é mais útil prosseguir
de uma forma mais sistemática e orientada pela teoria. Assim,
vimos que as ideologias geralmente possuem uma estrutura
polarizada, refletindo a competição e conflito entre os mem-
bros do grupo e a categorização em intragrupos e extragrupos.

31
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Essas estruturas subjacentes também aparecem em atitudes


políticas mais específicas, por exemplo, atitudes racistas sobre
imigração e, por fim, modelos mentais tendenciosos sobre os
membros dos grupos. Esses modelos mentais controlam os
“conteúdos” do discurso, e se eles são polarizados, é provável
que o discurso também mostre os vários tipos de polarização.
Assim, muitas pesquisas têm mostrado que o discurso ideo-
lógico geralmente apresenta as seguintes estratégias do que
pode ser chamado de “quadrado ideológico”.

• Enfatizar Nossas coisas boas


• Enfatizar as coisas ruins Deles
• Não enfatizar Nossas coisas ruins
• Não enfatizar as coisas boas Deles

Essas estratégias gerais podem ser aplicadas a to-
dos os níveis de ação, significado e forma do texto e do
discurso. Portanto, discursos políticos, entrevistas, pro-
gramas ou propagandas normalmente incidem sobre os
temas preferidos do “nosso” grupo ou “partido”, sobre o
que nós temos feito bem, e associam adversários políti-
cos aos temas negativos, como guerra, violência, drogas,
falta de liberdade, entre outros. Assim, muitos políticos
e a mídia associam imigrantes ou minorias a problemas
de deliquência. Por décadas o comunismo foi associado à
agressão, falta de liberdade e ideologia rígida. Da mesma
forma, se o comunismo é bom, ou melhor do que “nós” na
área dos serviços sociais, saúde ou educação, o discurso
anticomunista normalmente vai ignorar ou minimizar tais
“coisas boas” do seu adversário.
A mesma realidade dos significados ou assuntos tam-
bém se aplica à forma ou estrutura: podemos enaltecer os
significados através de muitas formas de entonação, meios
gráficos ou visuais, ordem das palavras, título, topicali-

32
Iran Ferreira de Melo (Org.)

zação, repetição, e assim por diante. O oposto acontece


quando nós queremos minimizar as coisas ruins. Coisas
muito ruins dos nossos inimigos, como um ataque terrorista,
aparecerão na primeira página, num grande artigo com uma
manchete grande e negativa ou num debate emergencial no
Parlamento, entre outros.
Em outras palavras, existem formas sistemáticas de exa-
minar o discurso através de vários níveis quando procuramos
ideologias que (não) estão expressas ou ordenadas em determi-
nado discurso. Sempre que um significado estiver associado
com coisas boas, ele tenderá a ser associado com o intragrupo
do falante, e todas propriedades estruturais do discurso podem
ser exercidas para enfatizar tais significados. O oposto será o
caso dos Outros, Adversários e Inimigos.
Além da estratégia geral e combinada da autorre-
presentação positiva e representação negativa do outro,
estruturas ideológicas do discurso podem aparecer como
expressões de outras estruturas de ideologias subjacentes,
e não apenas como uma expressão da relação polarizada
entre grupos ideológicos (opostos). Assim, se a identidade,
ações características, objetivos, normas, valores, relações
de grupo e recursos são categorias ideológicas fundamen-
tais, podemos esperar que as referências aos “conteúdos”
de tais categorias sejam destaque nos discursos de membros
de grupos ideológicos. Novamente, isso será verdade para
o significado ou contexto do discurso, mas as formas pelas
quais tais significados são expressos e persuasivamente vei-
culados, envolvem muitos aspectos formais da gramática,
discurso e conversação.
Essas são as estratégias gerais da produção do discurso
ideológico e também uma descoberta útil ou procedimento de
reconhecimento para a análise ideológica do discurso políti-
co. As estruturas do discurso mais detalhadas e sutis serão
examinadas em exemplos concretos.

33
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

4.3 Exemplos

A título de exemplos, usarei alguns fragmentos de um


debate na Câmara dos Comuns do Reino Unido sobre reque-
rentes de asilo, realizado no dia 05 de março de 1997. A Srª.
Gorman, representante de Billericay pelo Partido Conservador,
até então no poder, tomou a iniciativa do debate, que ela inicia
com uma crítica aos custos alegados dos requerentes de asilo.
Custos que, segundo ela, estariam sendo pagos pelos pobres
e velhos “contribuintes” ingleses. Um dos que se opunham a
ela era Jeremy Corbyn, do Partido Trabalhista.
A fim de reforçar a importância da nossa análise, vamos
atribuir uma categoria analítica para cada exemplo. Após o
nome da categoria, será adicionado o domínio do discurso
ao qual a categoria pertence, por exemplo: significado, ar-
gumentação. O principal objetivo da análise é mostrar como
várias ideologias, especialmente as que lidam com racismo e
antirracismo, são expressas em várias formas de estruturas.
Existem, a princípio, centenas de categorias, então fizemos
uma pequena seleção (para detalhes, veja uma análise ideo-
lógica mais detalhada em VAN DUK, 2000; sem referência
às muitas centenas de estudos que lidam com as respectivas
categorias analíticas mencionadas acima; ver VAN DUK,
1997, para uma introdução geral a muitas dessas noções).

5. Algumas categorias da análise do discurso ideológico

DESCRIÇÃO DE ATORES (SIGNIFICADO). A forma


com que os atores são descritos no discurso também depende
das nossas ideologias. Normalmente tendemos a descrever os
membros do intragrupo de uma forma mais neutra ou positiva
e os membros do extragrupo de forma negativa. Do mesmo
modo, iremos suavizar as descrições negativas de membros
do nosso próprio grupo e enfatizar as características negativas

34
Iran Ferreira de Melo (Org.)

de Outros. A Srª Gorman descreve um requerente de asilo da


seguinte maneira:

(1) Em um caso, um homem da Romênia, que veio


para cá numa excursão de jogo de futebol (...) decidiu
que não queria mais voltar, se declarou como reque-
rente de asilo e ainda está aqui depois de quatro anos.
Ele nunca fez uma greve de trabalho na sua vida.

AUTORIDADE (ARGUMENTAÇÃO). Muitos oradores


em uma argumentação, também no parlamento, recorrem à
falácia de mencionar autoridades que dão suporte aos seus
casos, geralmente organizações ou pessoas que estão acima da
discussão da política partidária ou que são reconhecidos como
especialistas ou líderes morais. Organizações internacionais,
como as Nações Unidas ou a Anistia Internacional, acadêmi-
cos, a mídia, a igreja, ou as cortes geralmente têm esse papel.
Pessoas com diferentes ideologias geralmente citam várias
autoridades. Assim, o Sr. Corbyn pergunta, ironicamente, se
a Srª Gorman tem lido os relatórios da Anistia Internacional
ou da Helsinki Watch.

CARGA (TEMA). A discussão sobre a imigração é base-


ada, geralmente, em vários argumentos padrões, ou temas, que
representam as premissas tidas como certas, autoevidentes e
com razões suficientes para aceitar a conclusão. Um dos temas
do discurso anti-imigração é que os requerentes de asilo são
uma “carga” financeira para nós:

(2)
Não está certo que contribuintes na área de Londres
devam ter uma proporção indevida de carga de des-
pesa do que aquelas pessoas que as estão causando.

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Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

CLASSIFICAÇÃO (SIGNIFICADO). Como sabemos da


Psicologia Social, as pessoas tendem a classificar as outras,
e assim também fazem os oradores no parlamento, especial-
mente quando Outros (imigrantes, refugiados etc.) estão en-
volvidos. O mais característico nesse tipo de debate é a (sub)
classificação de requerentes de asilo em “genuínos” refugiados
políticos e “falsos” requerentes de asilo. Uma classificação
formulada das seguintes formas:

(3) Existem, obviamente, requerentes de asilo e


requerentes de asilo (Gorman).

(4)… aquelas pessoas, muitas das quais poderiam


ser chamadas de imigrantes econômicos e algumas
que são apenas requerentes de benefício em férias,
para permanecer no Reino Unido. (Gorman)

COMPARAÇÃO (SIGNIFICADO, ARGUMENTA-


ÇÃO). Diferente dos símiles retóricos, comparações como
entendemos aqui ocorrem normalmente em discursos sobre
refugiados ou minorias, ou seja, quando os falantes comparam
intragrupos e extragrupos. No discurso racista, extragrupos são
comparados negativamente e intragrupos positivamente. No
discurso antirracista, podemos comparar negativamente nosso
país ou governo com repugnantes regimes antidemocráticos.
No exemplo seguinte, o Sr. Corbyn usa uma comparação
argumentativa com a segunda Guerra Mundial para enfatizar
a situação dos requentes de asilo:

(5) Muitos soldados que foram torturados durante


a segunda Guerra Mundial encontraram dificuldade
em falar sobre suas experiências por anos. Isso não
é diferente da posição de pessoas que têm sido tor-
turadas no Irã, Iraque, Oeste da África ou qualquer
outro lugar. (Corbyn).

36
Iran Ferreira de Melo (Org.)

CONSENSO (ESTRATÉGIA POLÍTICA). Reivindicar


ou insistir num consenso nacional ou entre partidos é uma
estratégia política muito conhecida nas situações onde o país
está ameaçado, por exemplo, por um ataque externo. A imi-
gração é vista, muitas vezes, como uma ameaça. Então, a Srª
Gorman insiste que a lei de imigração atual é um resultado
do consenso, e, portanto, não pode ser alterada:

(6) O Governo, com apoio suprapartidário, decidiu


fazer algo sobre o assunto (Gorman, C).

CONTRAFACTUAIS (SIGNIFICADO, ARGUMENTA-


ÇÃO). (Ver também Counterfactuals) O que aconteceria, se uma
típica expressão contrafactual for usada com frequência neste
debate da oposição do Partido Trabalhista a fim de sugerir que
os conservadores tentam imaginar como seria estar na situação
de requerentes de asilo? Uma atitude de persuasão argumentativa
que também está relacionada à atitude de pedir empatia.

(7) Sugiro que ele comece a pensar mais seriamente


sobre as questões dos Direitos Humanos. Vamos supor
que ele teve que sair do seu país por causa de um re-
gime opressor. Para onde ele iria? Provavelmente ele
não aceitaria ajuda de mais ninguém, porque ele não
acredita que a ajuda deva ser dada para outra pessoa.

(8) Se isso acontecesse em outro país sob um regime


no qual desaprovamos, o Governo Britânico diria
que é uma acusação terrível de violação dos direitos
humanos daquele regime, que os prisioneiros eram
forçados a realizar uma greve de fome para chamar
atenção para a sua situação. (Corbyn).

ISENÇÕES (SIGNIFICADO). Uma combinação conhe-


cida da estratégia ideologicamente baseada da autorrepresen-
tação positiva e da representação negativa do outro, são os
vários tipos de isenções.

37
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

(9) [Empatia aparente] Entendo que muitas pessoas


querem vir trabalhar na Inglaterra, mas há um pro-
cedimento pelo qual as pessoas podem fazer parte
da nossa comunidade de forma legítima.

(10) [Negação aparente] Eu não disse que todo re-


querimento de asilo de europeus do leste neste país
eram falsos. No entanto...

EUFEMISMO (RETÓRICA; SIGNIFICADO). (Ver


Taboo, euphemism and political correctness). A conhecida
figura retórica do eufemismo, um ato semântico de suaviza-
ção, tem um papel importante em discursos sobre imigrantes.
Dentro do quadro mais amplo da estratégia da autorrepresen-
tação positiva, e especialmente seu correlato, a prevenção de
formação de impressões negativas, opiniões negativas sobre
imigrantes são geralmente suavizadas, especialmente no dis-
curso estrangeiro. O mesmo se aplica aos atos negativos do
próprio grupo. Assim, o racismo ou a discriminação serão ti-
picamente minimizados como “ressentimento” ou “tratamento
desigual”, respectivamente. Da mesma forma a Srª Gorman
usa a palavra “desencorajar” nesse mesmo debate (“para de-
sencorajar o grande número de estrangeiros”) para se referir
às políticas de imigração severas do governo e, portanto,
minimizar as ações do governo conservador que ela apoia.
Da mesma forma, o Partido Trabalhista (Corbyn) acha que
a condenação de regimes opressores pelo governo é “muito
silenciada”, em vez de usar termos mais críticos. Obviamente,
tais suavizações pelo uso de eufemismos podem ser explicadas
tanto em termos ideológicos (proteção do intragrupo), quanto
em termos contextuais, como, por exemplo, ao fazer parte de
condições de polidez ou outras regras interacionais que são
comuns nos debates parlamentares.

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Iran Ferreira de Melo (Org.)

EVIDENCIALIDADE (SIGNIFICADO, ARGUMEN-


TAÇÃO). (Ver também Evidentiality in grammar). As recla-
mações ou pontos de vista em um argumento são mais plau-
síveis quando os locutores apresentam alguma evidência ou
prova para seu conhecimento ou opinião. Isso pode acontecer
através de referências a figuras de AUTORIDADES ou insti-
tuições (veja acima), ou por várias formas de Evidencialidade:
como ou onde eles conseguiram as informações. Portanto,
as pessoas podem ter lido alguma coisa no jornal, ouvido de
porta-vozes confiáveis ou visto algo com seus próprios olhos.
Especialmente em debates sobre imigração, nos quais crenças
negativas sobre imigrantes podem ser entendidas como ten-
denciosas, as evidências são atos importantes para transmitir
objetividade, confiança e credibilidade. Nas estórias que têm
por objetivo criar empatia, naturalmente as provas devem ser
fornecidas pelas próprias vítimas. Quando as fontes estiverem
realmente sendo citadas, a evidencialidade estará ligada à
INTERTEXTUALIDADE. Aqui estão dois exemplos:

(11) Nesta amanhã eu estava lendo uma carta de um


dos meus eleitores (..) (Gorman)

(12) As pessoas que eu encontrei me disseram, em


detalhes, como eles foram tratados pelo regime no
Irã (Corbyn).

EXEMPLO/ILUSTRAÇÃO (ARGUMENTAÇÃO). Um
ato poderoso de argumentação é fornecer exemplos concre-
tos, normalmente em forma de vinheta ou estória pequena,
ilustrando ou tornando o ponto central defendido pelo orador
mais plausível. Estórias concretas são, geralmente, mais fáceis
de memorizar do que argumentos abstratos e têm um impacto
emocional maior, tornando a argumentação mais persuasiva.
Claro, a direita e a esquerda contarão suas próprias estórias.

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Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

(13) O Daily Mail de hoje fala do caso de uma mu-


lher da Rússia que pretendia ficar no Reino Unido
por cinco anos. De acordo com a decisão da corte
dos magistrados de ontem, ela custou ao contribuinte
britânico £40,000. Ela foi presa, claro, por roubo
(Gorman).

(14) As pessoas que eu encontrei me disseram, em


detalhes, como eles foram tratados pelo regime no
Irã – como eles haviam sido presos, sem acesso
aos tribunais; como as suas famílias haviam sido
espancadas e abusadas enquanto estavam na prisão;
e como o regime matou a noiva de um homem na
sua frente porque ele se recusou a falar sobre as
atividades secretas que ele estaria supostamente
envolvido (Corbyn).

GENERALIZAÇÃO (SIGNIFICADO, ARGUMENTA-


ÇÃO). Em vez de fornecer estórias concretas, os oradores
também podem fazer generalizações, no discurso racista
tipicamente usado para formular preconceitos sobre caracterís-
ticas negativas generalizadas de imigrantes. Da mesma forma,
numa estratégia populista, os oradores podem generalizar o
sentimento negativo contra os requerentes de asilo.

(15) Algumas coisas continuam e aborrecem todos


eleitores (Gorman).

HIPÉRBOLE (RETÓRICA). Hipérboles são instrumen-


tos semânticos para a intensificação do significado. Dentro da
estratégia geral de autorrepresentação positiva e representação
negativa do outro, presumimos que nos debates parlamen-
tares sobre imigrantes, as ações negativas ou propriedades
dos Outros sejam expressas de forma hiperbólica (as nossas
ações ruins de forma minimizada) e vice-versa. Às vezes tais
formas de hipérbole estão implícitas pelo uso de METÁFO-
RAS especiais, como observamos no uso da Srª Gorman em:

40
Iran Ferreira de Melo (Org.)

“abrir as comportas” a fim de fazer referência à chegada de


muitos requerentes de asilo. E, inversamente, na esquerda, os
porta-vozes do Partido Trabalhista enfatizarão, obviamente,
a natureza negativa dos regimes autoritários, e como o Sr.
Corbyn, irão chamá-los de “extremamente opressores” e a
condição dos refugiados provenientes desses países “terrível”.

IMPLICAÇÃO (SIGNIFICADO). Por muitas razões


pragmáticas (contextuais), os porta-vozes não dizem, ou não
precisam dizer o que eles realmente sabem ou acreditam.
Na verdade, grande parte do discurso permanece implícita
e tais informações podem ser inferidas pelos destinatários
com conhecimentos ou atitudes compartilhadas e, portanto,
construídas como parte dos seus modelos do evento ou ação
representado no discurso. Em debates sobre imigração, a im-
plicitude pode ser usada, especialmente, como uma forma de
transmitir significados que, na sua expressão mais explícita,
poderiam ser compreendidos como preconceituosos ou racis-
tas. Assim, quando a Srª Gorman diz que muitos refugiados
vêm dos países do Leste Europeu que têm sido “liberados”
recentemente, ela está deixando implícito que as pessoas de
tais países não podem ser requerentes de asilo genuínos por-
que países democráticos não oprimem seus cidadãos (ponto
posteriormente rebatido pela oposição do Partido Trabalhista).
Ao mesmo tempo é verdade quando ela descreve esses refu-
giados como “homens aptos fisicamente”, o que implica que
eles não precisam da nossa ajuda.

IRONIA (RETÓRICA). (Ver Irony). As acusações podem


surgir de forma mais efetiva quando elas não são feitas direta-
mente ou frente a frente (o que viola algumas restrições), mas
de uma maneira aparentemente mais leve de ironia. Há muita
ironia nas críticas e ataques mútuos de conservadores e traba-
lhistas e isso caracteriza a própria dimensão interacional do

41
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

debate. No entanto, ao falar sobre imigrantes, a ironia também


pode servir para depreciar requerentes de asilo, como é o caso
da expressão “Descobrem de repente” no exemplo a seguir, o
que implica que a “descoberta súbita” só pode ser falsa, uma
vez que os requerentes de asilo alegadamente conheciam todo
tempo que eles vieram ao país para ficar:

(16) Muitos requerentes de asilo entram no país,


inicialmente, como visitantes da família, turistas ou
empresários, e descobrem de repente que eles que-
rem permanecer como requerentes de asilo (Shaw).

LEXICALIZAÇÃO (ESTILO) A nível local de análi-


se, os debates sobre requerentes de asilo devem expressar
conceitos e crenças subjacentes através de itens lexicais
especiais. Significados semelhantes podem ser expressos de
modo variado em palavras diferentes, dependendo da posição,
papel, objetivos, ponto de vista ou opinião do falante, isto é,
como uma função das características do contexto. No discurso
conservador que opõe as políticas de imigração liberais, isso
irá resultar em expressões mais ou menos descaradamente
negativas denotando refugiados e suas ações, implementan-
do, no nível de lexicalização, a estratégia de representação
negativa do outro. Assim, mesmo nesse debate, nós podemos
encontrar expressões como “imigrantes econômicos”, “falsos
requerentes de asilo” ou “aproveitadores de benefício”, como
costumamos ver nos tablóides britânicos. Por outro lado, a
lexicalização em favor dos refugiados pode focar nos aspec-
tos negativos dos regimes totalitários e seus atos, como em
“opressão”, “esmagamento”, “tortura”, “abuso” ou “injustiça”.

METÁFORA (SIGNIFICADO, RETÓRICA). Poucas


figuras semântico-retóricas são tão persuasivas quanto as
metáforas, até mesmo nos debates sobre imigração Signifi-
cados abstratos, complexos, estranhos, novos ou emocionais

42
Iran Ferreira de Melo (Org.)

podem ser mais familiares ou concretos. Praticamente uma


metáfora padrão (se não um tema) é o uso de metáforas sobre
inundações ao se referir a refugiados e a suas chegadas, sim-
bolizando a ameaça contínua da imigração, na qual podemos
todos “nos afogar”. Assim, a Srª Gorman alerta para as mu-
danças na lei atual, dizendo que tais mudanças “abririam as
comportas novamente”. Outro domínio notório da semântica
das metáforas é descrever as pessoas em termos de animais
(agressivos, repulsivos etc.), por exemplo, requerentes de asilo
como ‘parasitas’, como faz a Srª Gorman.

AUTOGLORIFICAÇÃO NACIONAL (SIGNIFICA-


DO). Especialmente nos discursos parlamentares sobre imi-
gração, a autorrepresentação positiva pode ser implementada
rotineiramente por várias formas de autoglorificação nacional:
referências positivas ou elogios para o próprio país, seus
princípios, história e tradições. Ideologias racistas podem,
portanto, ser combinadas com ideologias nacionalistas, como
vimos acima. Esse tipo de retórica nacionalista não é o mesmo
em todos países. É escancarado nos Estados Unidos, muito
comum na França (especialmente na Direita), e não é muito
comum na Alemanha. Na Holanda e no Reino Unido, tal au-
toglorificação é menos explícita. Veja, no entanto, o seguinte
exemplo padrão – provavelmente até um tema comum:

(17) O Reino Unido sempre honrou a convenção


de Genebra e tem dado abrigo a pessoas com um
bem fundamentado medo de perseguição no país de
onde elas estão saindo e cujo primeiro país seguro
é o Reino Unido.

REPRESENTAÇÃO NEGATIVA DOS OUTROS.


(ESTRATÉGIA MACROSSEMÂNTICA). Como os exem-
plos mostrados, a classificação de pessoas em intragrupos e
extragrupos e até mesmo a divisão entre extragrupos “bons”

43
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

e “maus” não é isenta de valores, mas imbuída de aplicações


ideologicamente baseadas de normas e valores. Assim, através
desse debate a Srª Gorman descreve os requerentes de asilo
em termos como “procuradores de benefício” ou “falsos”
imigrantes. A apresentação negativa de outros geralmente é
elogiosa para com a autorrepresentação.
  
NORMAS DE EXPRESSÃO. O discurso antirracista é
profundamente normativo e denuncia as políticas de racismo,
discriminação, preconceito e anti-imigração em declarações
explicitamente normativas sobre o que “nós” (no parlamento,
no Reino Unido, na Europa etc.) devemos ou não devemos
fazer:

(18) Devemos adotar uma nova atitude em relação


aos requerentes de asilo.

JOGO DE NÚMEROS (RETÓRICA, ARGUMEN-


TAÇÃO). Muitos argumentos são orientados para reforçar a
credibilidade em movimentos que enfatizam a objetividade.
Números e estatísticas são modos primários na nossa cultura
de mostrar objetividade persuasivamente, e eles habitualmente
caracterizam as notícias da imprensa. A chegada de imigrantes
é geralmente acompanhada por números, até mesmo no par-
lamento. O mesmo é verdade para os “custos” de imigrantes:

(19) Abriria as comportas de novo e, presumivelmen-


te o custo de £200 milhões por ano que foi estimado
quando a legislação foi introduzida (Gorman, C).

POLARIZAÇÃO, CATEGORIZAÇÃO DO NÓS-ELES


(SIGNIFICADO). Poucas estratégias semânticas em deba-
tes sobre Outros são tão prevalentes quanto a expressão de
cognições polarizadas e a divisão categórica de pessoas em
intragrupos (nós) e extragrupos (eles). Isso sugere que, espe-

44
Iran Ferreira de Melo (Org.)

cialmente, discursos e textos sobre imigração ou refugiados


são fortemente monitorados pelas representações sociais sub-
jacentes (atitudes, ideologias) de grupos e não por eventos de
modelos únicos e pessoas individuais (salvo quando eles são
usados como ilustrações para discutir sobre um ponto geral).
A polarização também pode se aplicar a subcategorias “más”
ou “boas” de extragrupos, como é o caso de amigos ou aliados,
por um lado, e inimigos, por outro. Note que a polarização
pode ser retoricamente melhor quando expressa como um
claro contraste, isto é, atribuindo propriedades NOSSAS e
DELES que são semanticamente opostas umas das outras.
Os exemplos são encontrados em todo o debate, mas darei
apenas dois exemplos típicos:

(20) É verdade que, em muitos casos, eles fizeram


uma provisão cuidadosa para si próprios em sua
velhice, têm uma pequena pensão adicional assim
como suas pensões por idade e pagam seus aluguéis,
contas e não pedem nada para o estado. Eles são
orgulhosos e felizes em fazer isso. Essas pessoas
não devem ser exploradas por pessoas que estão
explorando o sistema. (Gorman, C).

AUTORREPRESENTAÇÃO POSITIVA (MACROES-


TRATÉGIA SEMÂNTICA). Quer seja ou não em combinação
com a diminuição dos extragrupos, o discurso do grupo geral-
mente é caracterizado por outra estratégia geral, ou seja, a do
favoritismo do intragrupo ou “autorrepresentação positiva”.
Isso pode levar a uma forma mais individual de gerenciamento
que esconde suas próprias impressões, como conhecemos
pelas isenções conhecidas (“Eu não sou racista, mas...”), ou
uma forma mais coletiva, na qual o orador enfatiza as caracte-
rísticas positivas do seu próprio grupo, assim como o próprio
partido ou país. No contexto dos debates sobre imigração, tal
autorrepresentação positiva será manifestada, normalmente,

45
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

como uma ênfase da sua própria tolerância, hospitalidade,


falta de preconceito, EMPATIA, apoio aos direitos humanos
ou cumprimento da lei ou acordos internacionais. Autorrepre-
sentação positiva é essencialmente ideológica, porque ela é
baseada no esquema positivo do “eu” que define a ideologia
de um grupo. Aqui está um exemplo:

(21) Eu apoio completamente a política do Gover-


no de ajudar requerentes de asilo genuínos, mas...
(Gorman, C.)

POPULISMO (ESTRATÉGIA POLÍTICA). Uma das


estratégias gerais do discurso conservador sobre imigração
é a do populismo. Existem diversas variantes e ações que
compõem a estratégia. A estratégia básica é afirmar (por
exemplo, contra a oposição trabalhista) que “as pessoas” (ou
“todos”) não apoiam mais imigração, o que também é uma
falácia argumentativa. Mais especificamente neste debate, a
estratégia populista é combinada com o tema comum da carga
financeira: pessoas comuns (contribuintes) têm que pagar para
os refugiados. Dos muitos tipos de estratégia, apenas citamos
a seguinte:
  
(22) Não está certo que contribuintes na área de
Londres devam ter uma proporção indevida de
carga de despesa do que aquelas pessoas que estão
causando-as.

PRESSUPOSIÇÃO (SIGNIFICADO). Discursos são


como os icebergs do provérbio: a maioria dos significados não
é explicitamente expressa por pressupostos a ser conhecidos,
e se encontram no conhecimento sociocultural geral. Estrate-
gicamente, os pressupostos são frequentemente usados para
assumir a verdade de uma proposição quando essa verdade
não está estabelecida de nenhuma forma.

46
Iran Ferreira de Melo (Org.)

(23) Gostaria de saber se o Exmo. Senhor irá dizer à


Câmara que mandato ele tem do povo britânico para
compartilhar sua cidadania com estrangeiros? (Gill).

IMPRECISÃO (SIGNIFICADO). Praticamente em todos


contextos, os porta-vozes podem usar expressões “vagas”, ou
seja, expressões que não têm referentes bem definidos, ou que
se referem a conjuntos imprecisos. Quantificadores vazios
(“pouco”, “muito”), advérbios (“muito”), substantivos (“coi-
sa”) ou adjetivos (“baixo”, “alto”), entre outras expressões
que podem ser comuns em tais discursos. Dadas a restrições
normativas sobre o discurso tendencioso e a relevância da
quantificação em debates sobre imigração, podemos esperar
várias formas de imprecisão, como é o caso de “Só Deus sabe
o quanto” e “generalizado” no seguinte exemplo:
  
(24) Só Deus sabe quanto custa para a ajuda legal a
requisição que essas pessoas fazem para impugnar a
decisão de que eles são requerentes de asilo de má fé.
  
VITIMIZAÇÃO (SIGNIFICADO). Juntamente com a
DRAMATIZAÇÃO e a POLARIZAÇÃO, os discursos sobre
a imigração e relações étnicas são organizados, em grande
parte, pelo binário NÓS-ELES do par intragrupo e extragru-
po. Assim, a fim de enfatizar a “má” natureza dos imigrantes,
as pessoas podem contar histórias terríveis sobre os pobres
cidadãos, como as crianças...

(25) Muitas das pessoas vivem em apartamentos


antigos da associação Peabody. Eles têm rendas pe-
quenas. Muitos deles são velhos, administrando sua
pensão recebida do estado e talvez até uma pequena
pensão dos seus trabalhos. Eles pagam seus aluguéis
sozinhos. Agora eles vão ter que pagar uma taxa
de £35 para homens com aptidão física que vieram
passar um feriado prolongado e agora pedem que o
contribuinte do governo britânico os sustente.

47
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

As categorias e exemplos mostrados acima não se limi-


tam às ideologias sociais racistas e antirracistas, ou à ideo-
logia política socialista ou conservadora. Praticamente todas
as categorias também se aplicam aos discursos de ideologias
machistas, feministas, pacifistas e militaristas. São recursos
bastante gerais dos grupos e seus membros adquirem e usam, a
fim de prestar contas e defender suas ideias e práticas sociais.
Na verdade, não precisamos aprender maneiras totalmente
novas de discurso e texto ideológico assim que nos tornamos
membros ou nos identificamos com outro grupo social ou
político.

6. Conclusões

Existe uma relação estreita entre discurso, ideologia e


política, no sentido de que a política é normalmente discur-
siva, assim como ideológica e as ideologias são amplamente
reproduzidas pelo texto e discurso. Tradicionalmente as
ideologias eram definidas em termos vagos e negativos de
“falsa consciência”. Numa abordagem mais contemporânea
e multidisciplinar, as ideologias são descritas em termos da
fundação axiomática das representações sociais comparti-
lhadas por grupos. Tais ideologias gerais formam a base de
atitudes de grupo mais específicas, que por sua vez, podem
influenciar opiniões individuais de membros do grupo, cons-
truções ou interpretações de eventos específicos, bem como
as práticas sociais e discursos dos quais os grupos se dedicam.
Na política, a ideologia tem um papel específico na definição
dos sistemas políticos, organizações, movimentos, práticas e
cognições políticas, todos enaltecidos ou reproduzidos pelo
discurso político. Ideologias políticas subjacentes são expres-
sas, normalmente, no discurso político, através da ênfase nas
Nossas coisas boas e nas coisas ruins Deles. Tal estratégia
geral poder ser implementada em todos os níveis do discurso.

48
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Assim, em exemplos como o debate sobre os requerentes de


asilo no Parlamento Britânico, vemos que muitas ideologias
podem ser expressas, por exemplo, na descrição dos atores,
nas falácias, nas isenções, nas metáforas, nas comparações,
nos eufemismos, nas hipérboles e assim por diante.

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51
Iran Ferreira de Melo (Org.)

POR UMA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO


Iran Ferreira de Melo
Universidade de São Paulo

Os analistas críticos do discurso contribuem para corrigir injustiças


sociais historicamente instituídas e preparar o caminho da
emancipação dos indivíduos que se encontram no lado menos
privilegiado da ordem social 1

1. Preâmbulo: Funcionalismo, discurso e ACD

Cada vez mais, pesquisadores estão interessados em


examinar criticamente práticas sociais que, outrora, foram
concebidas como isentas de ideologia. Entre diversas discipli-
nas atualmente rotuladas de “ciências críticas”, encontram-se
algumas correntes teóricas da Linguística, que “veem a lingua-
gem de modo diferente daquele que caracteriza a concepção
dominante na chamada linguística autônoma ou do sistema”
(PEDRO, 1997, p.20).
O sentido do termo crítico, nos estudos da linguagem,
implica desvelar conexões entre os textos e os fatores que os
permeiam, como o contexto histórico e social de produção e
compreensão textual. Nessa perspectiva, “a crítica [...] torna
transparente o que previamente estava oculto, e, ao fazer isso,
inicia um processo de reflexão própria, nos indivíduos ou em
grupos” (CONNERTON, 1976, p.20), apresentando informa-
ções fundamentais sobre elementos que amparam e ajudam a
construir os textos, mas que não são aparentes. Sendo, pois,
1 (RAJAGOPALAN, 2003; apud MAURER, 2005, p.105)

53
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

uma teoria crítica aquela que ajuda a fornecer recursos para o


conhecimento de uns sobre o posicionamento de outros, isto
é, aquela que joga luz à reflexão do indivíduo, para que ele
consiga compreender o que subjaz o notório, munindo, desse
modo, de ferramentas perceptivas principalmente aqueles que
possam encontrar-se em desvantagem social.
A distinção entre essa proposta e a citada linguística au-
tônoma encontra justificativa nas concepções de língua(gem)
que ambas adotaram. Trata-se de duas visões de que Lin-
guística contemporânea ocidental é legatária, as perspectivas
epistemológicas que denominamos Funcionalismo e do For-
malismo linguísticos. O primeiro entende a linguagem como
uma prática interconectada a várias outras da vida social e
o segundo a julga como um fenômeno suficiente em si, in-
dependente de qualquer fator extrínseco a ele, sendo, assim,
“um modo a-social de estudar a linguagem” (FAIRCLOUGH,
1989, p.07).
Os formalistas identificam o social como uma dimensão
dissociada da linguagem, sem considerar a intervenção dos
elementos históricos, ideológicos e culturais na determinação
dos textos, isto é, na organização interna do sistema linguís-
tico. Nesse paradigma, o usuário da linguagem é incapaz de
intervir na sua própria língua, ocupando o lugar de reprodutor e
decodificador de mensagens, os sentidos são pré-estabelecidos
à realização verbal e o texto é entendido como um amontoado
de sentenças, que produz efeito imanente, ou seja, a partir de
seus elementos internos (de dentro para fora).2
Em virtude disso, esse modo de olhar a linguagem foi,
por alguns, denominado de linguística autônoma, uma vez
que consiste num campo de estudos responsável por não re-
conhecer a relação entre a linguagem e seu contexto (aspectos
socioculturais, históricos e políticos), ou seja, afirmando que
o evento linguístico prescinde do seu entorno. Interessa a essa

2 A exploração desse tema pode ser encontrada em Koch (2002).

54
Iran Ferreira de Melo (Org.)

linguística descrever ou mapear a manifestação da linguagem


em termos de compreensão das estruturas que os textos pos-
suem. Por exemplo, caso seus estudiosos pretendam analisar
um artigo de opinião, levarão em conta apenas a composição
morfossintática do texto, ou, no máximo, questões relativas
ao sentido gerado na imanência de uma proposição a partir
do efeito do uso da pontuação e da ambiguidade lexical. Essa
análise não consideraria o suporte onde a notícia é veiculada
(tv, rádio, jornal) e, consequentemente, a modalidade em que
é produzida (oral ou escrita); a identidade do autor (crítico de
arte, professor acadêmico, literato); ou o motivo da produção
textual (se responde, complementa ou reforça um outro artigo).
Isto é, não faz parte dos objetivos de um estudo formalista
entender as condições de realização do texto, mas apenas a
sua estrutura interna (a forma).3
No paradigma funcionalista, a linguagem é vista tam-
bém pela relação que mantém com elementos externos.4 Por
exemplo, a identidade social dos usuários de uma língua é
levada em conta ao se analisar um texto, pois, no Funciona-
lismo, essa identidade interfere na maneira como os próprios
usuários lidam com a linguagem. Para ilustrar, podemos citar
o caso da polidez: um indivíduo em interação com quem
mantém relação hierárquica (pai e filho, chefe e empregado,
professor e aluno) marca, comumente, sua fala com elemen-
tos que representam polidez (verbos no modo hipotético, ou
subjuntivo – “eu gostaria” – para não demonstrar autoridade;
o tratamento honorífico como “senhor”, “doutor”, para não
gerar intimidade; entre outros).
O Funcionalismo tem por objetivo estabelecer princípios
gerais relacionados ao uso da linguagem e investigar a inter-
face entre aspectos sociais e o sistema interno das línguas.
3 Os estudos formalistas são muito comuns na descrição de línguas indígenas, uma vez
que a essas pesquisas interessa a observação do funcionamento e das características
intrínsecas de uma língua ainda não catalogada.
4 Essa relação entre interioridade e exterioridade linguísticas é explicada com detalha-
mento em Schinffrin (1994).

55
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Sendo, portanto, um modelo mais abrangente de estudos, pois


investiga como a forma atua no significado e como as funções
externas do sistema linguístico influenciam na forma. Essa
dialética, inerente aos estudos desse paradigma, é tratada de
maneira diferente a depender do modelo funcionalista adotado
(NEVES, 2001). No entanto, a compreensão das implicações
das funções sociais no sistema linguístico é central à discussão
que relaciona a linguagem à sociedade em todas vertentes do
Funcionalismo.
No decorrer do século passado, tanto o Formalismo
quanto o Funcionalismo orientaram as diversas disciplinas que
foram surgindo. Contudo, na década de 1960, as pesquisas da
linguística autônoma começam a se desestabilizar a partir de
novas propostas teóricas funcionalistas. Introduzem-se com-
ponentes pragmáticos e a dimensão social começa a, cada vez
mais, fazer parte do estudo da linguagem, com o propósito
de investigar questões das rotinas sociais que interferiam na
linguagem e que por ela eram construídas. Esse limiar dá lugar
ao surgimento de diferentes práticas científicas sob a legenda
de linguística enunciativa ou do discurso.
Essa expressão tem suscitado uma série de equívocos
em função da diversidade de significados atribuídos ao termo
discurso. Existem várias concepções, nos estudos linguísticos,
para o significado dessa palavra. Algumas delas são resumidas
por Emília Pedro (1997) sob duas perspectivas: o discurso
como um momento do uso linguístico e o uso linguístico
como um momento do discurso. A primeira o entende como
um nível da língua mais complexo que a frase (à guisa das
correntes formalistas da linguagem), abordando-o sob um
viés eminentemente imanentista5, e a segunda o define como
o funcionamento da linguagem em uso, ou seja, percebe o
discurso como o processo de atividade cotidiana que um
indivíduo faz da linguagem.
5 Entende-se discurso, nessa concepção, quando usamos enunciados como “o presidente
proferiu um discurso longo”.

56
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Boa parte da linguística contemporânea da segunda me-


tade do século XX se eregiu a partir do conceito de discurso
– entendido pela maioria das correntes linguísticas funcio-
nalistas – como o uso (produção, distribuição e consumo) da
linguagem. Nesse sentido, o discurso não é algo material, mas
corresponde à prática de utilização da linguagem (atividades e
leitura e escrita). Porém, a história dos conceitos dados a esse
termo consiste num percurso bastante heterogêneo.
Cunhada por Foucault (1996, 2008), a categoria
“discurso” – hoje muito usada em diversos campos do
conhecimento – significou inicialmente o conjunto de ide-
ologias responsável por instituir poder aos indivíduos de
diversas áreas (discurso jurídico, médico, político), tendo
sido, desse modo, criada como um elemento independente
da estrutura linguística.6A partir de então, os trabalhos te-
óricos sob denominação de análises de discurso buscaram
responder a um determinado conjunto de pressupostos que
autorizam a construção e a operacionalização de estruturas
não linguísticas (notadamente sociais) nos textos. Muitos
de seus proponentes partem de lugares epistêmicos dife-
rentes, embora haja em comum entre todas as correntes
que analisam o discurso (excetuando-se as perspectivas
formalistas) o procedimento de análise não focalizado
apenas no funcionamento linguístico, mas na relação que
o usuário da língua e esse funcionamento estabelecem
reciprocamente. Ou seja, o objeto de estudo de qualquer
análise de discurso não se trata somente da linguagem, mas
o que pode ser criado, reproduzido, mantido e transformado
por meio dela: relações de poder, institucionalização de
identidades sociais, processos de inconsciência ideológica,
enfim, diversas manifestações humanas.

6 Foucault, em muitos de seus trabalhos, discutiu o conjunto de práticas discursivas


disciplinares de escolas, prisões e hospitais, defendendo que essas instituições
utilizam técnicas de natureza discursiva para “adestrar” indivíduos, ajustando-os às
necessidades do poder.

57
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Dentre as correntes que se filiaram a essa nova perspec-


tiva, enquadram-se: a Teoria da Enunciação (BENVENIS-
TE, 1989), cuja principal contribuição foi reconhecer que a
linguagem só se realiza a partir do processo enunciativo – a
interação entre um “eu”, um “tu”, um “aqui” e um “ago-
ra” – e que a subjetividade é resultante desse movimento; a
Pragmática (AUSTIN, 1962; SEARLE, 1969; LEVINSON,
2007), para qual é indispensável que se compreenda a lingua-
gem como modo de ação sobre o mundo; a Sociolinguística
(LABOV, 2008), que identifica a relação entre a composição
da linguagem e a identidade sociocultural de seus falantes; a
Análise da Conversação (MARCUSCHI, 1999), na qual se
legitima a ideia de que a estrutura da interação verbal ocorre
considerando fatores situacionais (canal ou suporte, grau
de intimidade entre os interactantes etc); a Psicolinguistica
(GARMAN, 1990; OSGOOD & SEBEOK, 1965), em que
se formatou a responsabilidade da cognição nas atividades
de aquisição e desenvolvimento da linguagem; a Linguística
Textual (BEAUGRANDE, 1980; HALLIDAY & HASAN,
1976), reconhecedora de aspectos sociocognitivos importantes
(conhecimentos enciclopédico – de mundo – e procedural – de
ações) na atribuição de sentido aos textos; e as Análises do
Discurso (FAIRCLOUGH, 2001; MAINGUENEAU, 2008;
PÊUCHEUX, 1993), para as quais o foco de interesse é a
investigação de como os sistemas linguísticos funcionam
na representação da realidade, na construção de relações e
identidades e na estruturação, reafirmação e contestação de
hegemonias.
Oriundas dessa última área, inúmeras vertentes surgiram
nos anos 1960 até hoje. Atualmente, pesquisas de variadas
naturezas são publicadas sob esse nome, passando por filiações
ligadas à Semiótica, à Psicanálise e às Ciências Sociais. No fim
dessa década, com o advento da abordagem de estudos deno-
minada Análise do Discurso (doravante AD) desenvolvida na

58
Iran Ferreira de Melo (Org.)

França pelo filósofo Michel Pêcheux, a Linguística atrelou o


conceito foucaultiano ao trabalho com a linguagem, uma vez
que Pêcheux objetivou analisar que ideologias perpassavam
as práticas linguísticas de alguns grupos sociais considerados
opressores.7
Quando a AD surgiu – afetada pela atmosfera intelectual
do período formalista anterior e pelo envolvimento político
com o movimento de maio de 1968 na França –procurou, so-
bretudo, combater uma tendência interpretativista/conteudista
das Ciências Sociais, que lidava com o texto como se ele fosse
uma superfície transparente, onde, naturalmente, os indivíduos
mergulham para buscar os sentidos. Ao contrário disso, a AD
enfatiza como os sujeitos da linguagem são posicionados,
bem como, numa postura marxista, busca analisar como a
dominação ideológica é assegurada através da linguagem.
Isso significa, como afirma Orlandi (2002), que a AD
vai articular o linguístico ao sócio-histórico, colocando a
linguagem na relação com os modos de produção social.
Conforme essa disciplina, há, entre os diferentes modos de
produção social, um específico, que é o simbólico, sendo sua
materialidade concebida como discurso. Para tanto, surgiu,
naquele momento, o conceito de discurso como o conjunto
das condições de produção e funcionamento da linguagem em
geral, qual sejam o contexto sócio-histórico, as identidades
de indivíduos e grupos, a ideologia, entre outros elementos
extrínsecos à linguagem e que passaram a ser entendidos
como elementos que engendram fundamentalmente os eventos
linguísticos.
Na esteira da AD, surgiram inúmeras outras agendas
científicas que passaram a se denominar análise de discurso
(AUTHIER-RÉVUZ, 1990; GREIMAS, 1976; entre outros).
7 Michel Pêcheux (1993) defende que o discurso é uma forma de materialização ide-
ológica, como identificaram os marxistas e Dominique Maingueneau (2008, p.15)
– também analista do discurso –, “uma dispersão de textos cujo modo de inscrição
histórica permite definir como um espaço de regularidades enunciativas”, não ope-
rando sobre a realidade das coisas, mas sobre outros discursos.

59
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Algumas estavam interessadas em examinar criticamente


práticas sociais que, outrora, foram concebidas como isentas
de ideologia, desvelando conexões entre os textos e os fatores
que os permeiam, mas não são percebidos pelos usuários da
língua. Uma delas surgiu com o objetivo de revisar as con-
cepções de sujeito da linguagem e de discurso que as corren-
tes anteriores desenvolveram: trata-se da Análise Crítica do
Discurso (doravante ACD).8 Essa perspectiva de estudos do
discurso, que se iniciou na década de 1990, tem o intuito de
continuar verificando a forma como as estruturas sociais se
engendram na linguagem/discurso, porém asseverando sua
relação constitutiva e dialética, isto é, teorizando a linguagem
e a sociedade como universos que só possuem existência na
relação biunívoca que mantém entre si.
A ACD configura-se como uma abordagem teórico-
metodológica que objetiva investigar a maneira como as
formas linguísticas funcionam na reprodução, manutenção
e transformação social. Ela representa, atualmente, um dos
caminhos mais reveladores dentro da ciência da linguagem e
o que há de mais moderno na atuação e interface da Linguís-
tica com outras áreas de conhecimento, por se tratar de uma
abordagem transdisciplinar, isto é, que “não somente aplica
outras teorias como também, por meio do rompimento de
fronteiras epistemológicas, operacionaliza e transforma tais
teorias em favor da abordagem sociodiscursiva” (RESENDE
& RAMALHO, 2006, p. 14).
Os analistas críticos do discurso estão centrados na análi-
se da reprodução do sexismo e do racismo através do discurso,
da legitimação do poder, da manipulação do consentimento, do

8 Alguns estudiosos traduzem o termo original do inglês “Critical Discourse Analysis”


como “Análise do Discurso Crítica”. Isso ocorre notadamente com o grupo de pesquisa
instalado na Universidade de Brasília (UnB), que, durante muito tempo, foi liderado
pela professora Maria Izabel Magalhães, para quem essa preferência terminológica
se justifica por dissociar os estudos críticos do discurso da tradição em “Análise do
Discurso” (corrente convencionalmente chamada de francesa) já estabelecida no
Brasil há décadas (MAGALHÃES, 2005).

60
Iran Ferreira de Melo (Org.)

papel da política e da mídia, enfim, da produção discursiva da


relação de dominação entre grupos. Essas preocupações e um
conjunto de outros objetivos explicitamente políticos servem
para distinguir a ACD dos outros tipos de análise de discurso.
A motivação da ruptura entre as análises de discurso
precedentes à ACD e as pesquisas desenvolvidas nessa aborda-
gem repousou no conceito de sujeito/ator social. Num primeiro
momento dos estudos do discurso (período de constituição
da AD), a formação dos sujeitos era considerada o efeito de
uma posição social representada no discurso. Anos mais tarde,
com a ACD, a subjetividade passou a ser concebida como
algo resultante e atuante em processos sociais que formaram
a história dos usuários da língua.
De acordo com essa abordagem, o processo de interpe-
lação ideológica, tal como é descrito na AD, faz com que o
sujeito desapareça. Segundo a ACD, o sujeito é uma posição
intermediária, situada entre a determinação estrutural e a
agência consciente. Ao mesmo tempo em que sofre uma
determinação inconsciente, ele trabalha sobre as estruturas, a
fim de modificá-las conscientemente. É como se a estrutura
estivesse em constante risco material devido às práticas coti-
dianas dos indivíduos.
A ACD opera com o conceito de sujeito tanto propenso
ao moldamento ideológico e linguístico quanto agindo como
transformador de suas próprias práticas discursivas, contes-
tando e reestruturando a dominação e as formações ideoló-
gicas socialmente empreendidas em seus discursos. Sob essa
ótica, o indivíduo ora se conforma às formações discursivas/
sociais que o compõem, ora resiste a elas, ressignificando-as,
reconfigurando-as, ou seja, o sujeito na ADC é, como preco-
niza Pedro (1997, p. 20), “um agente processual, com graus
relativos de autonomia, mas [...] construído por e construindo
os processos discursivos a partir da sua natureza de ator ide-
ológico”. Por isso, essa dimensão agentiva do indivíduo na

61
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

ACD sugere o uso do termo ator social em vez de sujeito.9


A ACD dialoga com o poder de interdição dos atores so-
ciais por meio da força de persuasão, da dominação, hegemo-
nia e da ideologia, discutida nos empreendimentos de Gramsci
(1971), para o qual existem possibilidades de liberdade de
ações disponíveis aos falantes. Sob a égide desses pressupostos
se estabeleceu a história dessa corrente de estudos, que resu-
miremos abaixo, juntamente com alguns tópicos relevantes
ao escopo dos seus mais reconhecidos pesquisadores.

2. História e agenda teórica da Análise Crítica


do Discurso

O termo análise do discurso crítica foi cunhado pelo


linguista britânico Norman Fairclough, da Universidade de
Lancaster, em um artigo publicado no periódico Journal of Pr-
gamatics em 1985. Essa abordagem científica surgiu a partir da
filiação a uma corrente da Linguística que, hoje, convencional-
mente, denominamos de Linguística Crítica (doravante LC).
De acordo com Rajagopalan (2002), a LC nasceu na década
de 1970 e trata-se da convicção de que teorizar a respeito da
linguagem não é, como se crê, em larga escala, se empenhar
em um metadiscurso acerca do objeto, mas tem como ponto
de partida a tese de que essa atividade é uma forma de intervir
na linguagem e na estrutura social que a norteia.
Pode-se dizer que a ACD confere continuidade aos estu-
dos da LC10, porém, segundo Wodak (2003), ela se consoli-
dou como disciplina no início da década de 1990, quando se
reuniram, em um simpósio realizado em janeiro de 1991, na
cidade de Amsterdã, Teun van Dijk, Gunter Kress, Theo van
Leeuwen, Ruth Wodak e Norman Fairclough. Estes, precurso-
9 Os papéis que os atores sociais desempenham nas situações discursivas é um aspecto
que tem recebido grande relevo no trabalho de muitos analistas críticos do discurso.
10 A Linguística Crítica surgiu a partir da publicação de Language and control, livro
escrito por Fowler et al (1979), da Universidade de East Anglia. Para os autores dessa
obra, a Linguística era capaz de responder a questões de equidade social.

62
Iran Ferreira de Melo (Org.)

res de uma diversidade de estudos críticos sobre o discurso que


seriam difundidos nos anos seguintes. Tais teóricos procuram
equacionar os problemas sem resposta de múltiplas tradições
intelectuais, em um esforço de síntese crítica, voltada para os
problemas sociais mais urgentes. Abaixo segue um resumo
das preocupações que os posicionam.

2.1. Teun van Dijk – o empreendimento sociocognitivista

As práticas sociais concretizadas pela linguagem, natu-


ralizadas e legitimadas socialmente tem interesse para a ACD
e especialmente nos estudos de Teun van Dijk, teórico que se
destacou por sua vertente sociocognitivista nos estudos discur-
sivos. Para esse autor, é necessário reconhecer quais práticas
discursivas institucionalizam a sociedade e quais cognições
sociais permeiam tais práticas.
De acordo com Van Dijk (1997), embora as ideologias
sejam evidentemente, sociais e políticas e estejam relaciona-
das com grupos e estruturas societais, possuem também uma
dimensão cognitiva crucial. Em termos intuitivos incorporam
objetos mentais, tais como ideias, pensamentos, crenças,
apreciações e valores. Dentre suas considerações sobre o
discurso, pode-se destacar um conceito que ele formulou, a
fim de entender o funcionamento da cognição social: a noção
de acesso discursivo, que significa a chance do indivíduo se
inserir socialmente num discurso de domínio prestigiado.
Van Dijk pensou esse percurso de acesso para quem é
excluído socialmente, ou seja, se preocupou em detectar como
quem não participava de circuitos de poder tinha acesso a esses
circuitos através da linguagem. Com isso, analisou muitos
domínios discursivos, desde o jornalístico até o jurídico, e
estipulou dois tipos de inserção: o acesso ao domínio discur-
sivo através de voz reportada e o acesso ao discurso propria-
mente dito, por meio da construção predicativa. Por exemplo,

63
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

é possível perceber como um grupo social desprestigiado


adentra no domínio discursivo do jornal através desses dois
mecanismos: no primeiro, como os jornalistas usam o discurso
de tal grupo – quando o reporta e entrevista – e no segundo,
como o texto criado no jornal constrói a imagem desse grupo
através de predicações, ou seja, como esse grupo é comentado.
Para van Dijk, a partir do modo como determinado grupo tem
acesso a dados discursos, pressupõe-se como se constrói sua
representação e inclusão social.

2.2. Gunther Kress – o papel social da Semiótica

Os estudos funcionalistas forneceram o conceito e a me-


todologia que permitem o tratamento de algumas das questões
colocadas no âmbito da Semiótica Social, especialmente no
que tange à articulação entre forma e função. Herdeiro da es-
cola de Michael Halliday, Gunther Kress fundou a perspectiva
semiótica da ACD.
Kress tem se destacado por sua atuação nos trabalhos
sobre as teorias multimodais, concepção que defende a ideia
de que o discurso se constrói não só com base nos significados
atrelados às palavras, mas também naqueles ligados à imagem.
Por exemplo, um gesto ou um formato de um texto escrito,
seja qual for, diz muito de sua construção discursiva à medida
que for possível reconhecer a imagem e relacioná-la com o
seu contexto de uso.

2.3. Theo van Leeuwen – a Teoria da Representação


Social e o discurso

Um dos pioneiros da ACD, Theo van Leeuwen foi respon-


sável por integrar os estudos acerca da representação de atores
e ações sociais à Linguística. Em alguns de seus trabalhos, van
Leeuwen (2008) questionou quais são os diversos modos pelos
quais os atores e as ações sociais podem ser representados no

64
Iran Ferreira de Melo (Org.)

discurso verbal e que escolhas nos apresenta a língua para nos


referirmos às pessoas, aos grupos e suas práticas sociais. A
partir dessas questões e de vários estudos, ele descreveu um
quadro de aspectos sociodiscursivos que marcam a represen-
tação dos indivíduos e das ações nos textos.
Para esse teórico, em nosso dia a dia, sentimos a neces-
sidade de categorizar pessoas, grupos e atitudes por vários
aspectos que os identificam culturalmente, pois, na sua concep-
ção, a língua nos oferece muitas formas para representarmos o
mundo. Essas formas compõem nosso sistema linguístico e as
usamos de acordo com os fatores que circundam nossa relação
com aquilo que representamos. A partir desse raciocínio, van
Leeuwen tentou esboçar um inventário sociossemântico dos
modos pelos quais os atores sociais podem ser representados
e estabeleceu a relevância sociológica e crítica de algumas
categorias linguísticas que enquadrou nesse inventário, den-
tre as quais os processos de inclusão e exclusão por meio do
discurso.

2.4. Ruth Wodak – o lugar da história na Análise do


Discurso Crítica

As práticas sociais concretizadas pela linguagem, natu-


ralizadas e legitimadas socialmente, interessam à ACD. Para
Ruth Wodak (2003), é necessário reconhecer quais práticas
discursivas institucionalizam a sociedade e que imagens so-
ciais permeiam tais práticas.
Um dos destaques nas pesquisas dessa analista é dado à
investigação que desenvolve sobre temas e textos históricos e
políticos, para integrar a grande quantidade de conhecimentos
disponíveis sobre fontes históricas, interpretando os aspectos
sociopolíticos nos discursos. Esse enfoque analisa a dimen-
são cultural das ações discursivas, explorando, num plano
diacrônico, os modos como os particulares tipos de discurso

65
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

formam a historicidade do indivíduo.

2.5. Norman Fairclough – o engajamento político da


Teoria Social do Discurso

Uma das vertentes mais atuantes desenvolvidas na ACD


está no postulado do linguista britânico Norman Fairclough,
em seu método de análise do discurso intitulado Análise do
Discurso Textualmente Orientada (doravante ADTO) (FAIR-
CLOUGH, 2001), enquadrado no que o autor concebe como
Teoria Social do Discurso, isto é, uma forma de analisar as
relações entre o discurso e outros elementos da prática social.
Fairclough (1997) afirma que o papel do analista crítico
do discurso é descrever a formação dos textos, interpretar o
processo discursivo e explicar a prática social que se constitui
na linguagem. Esse teórico tem contribuído para entender o
discurso como elemento constitutivo da vida social. Fair-
clough (2001, 2003) entende qualquer evento discursivo
como simultaneamente um texto, uma pratica discursiva e
uma prática social. Nessas três esferas calca-se a perspectiva
tridimensional do discurso concebida pelo autor e entendida,
respectivamente, como a dimensão da análise linguística, da
análise do processo interacional e da análise de circunstâncias
organizacionais e institucionais da sociedade. Essa abordagem
decorre do fato de esse cientista considerar a natureza dialética
social do discurso como base de sua teoria.
Para Fairclough, o mundo é formado pela atribuição de
sentido que os atores sociais lhe impõem. Sua abordagem
dá conta da “face” de resistência do discurso, da natureza de
mudança social que as práticas discursivas carregam. Por isso,
ele não pretende fazer análise do discurso como procedimento
epistemológico sobre a língua, mas como instrumento político
contra a injustiça social. Assim, em sua abordagem, o discurso
é visto como um modo de ação, capaz de alterar o mundo,
portanto sua teoria solicita dos analistas métodos que sirvam

66
Iran Ferreira de Melo (Org.)

para formular pesquisas que exerçam ações de contrapoder


e contraideologia, práticas de resistência à opressão social.

3. Dispositivos teórico-metodológicos da ACD

3.1. Dispositivos teóricos

A grande tarefa da ACD é a construção de um aparelho


teórico integrado, a partir do qual seja possível desenvolver
uma descrição, explicação e interpretação dos modos como
os discursos dominantes influenciam o conhecimento, os
saberes, as atitudes e as ideologias socialmente partilhadas.
Norman Fairclough (1989) afirma que existem dois tipos
de relações que o poder estabelece com o discurso: o poder no
discurso e o poder por trás do discurso. O primeiro é exercido
através da textura da linguagem, por meio de palavras e textos
específicos, e o segundo deriva das ordens de discurso a que
o texto está atrelado. Abaixo, comentaremos um pouco sobre
essas duas propriedades do discurso, enxergando nelas, respec-
tivamente, o caráter constituído e constitutivo da linguagem.

3.1.1. A opacidade da linguagem

A ACD partilha da concepção de que muitas das relações


entre a linguagem e as estruturas sociais são opacas, ou seja,
pouco visíveis, passam despercebidas pelos indivíduos. En-
tretanto, os textos apresentam traços e pistas de rotinas sociais
(FAIRCLOUGH, 2001) que revelam essas relações.
A concepção da materialidade linguística, ou seja, do
texto na ACD (notadamente em FAIRCLOUGH 1989, 2001)
é tributária aos trabalhos da Linguística Sistêmico-funcional
de Michael Halliday (1970, 1985) (doravante LSF), que, por
sua vez, incorpora ao estudo textual a noção de contexto, isto
é, os elementos externos à linguagem que interferem na com-
posição e sentido da mesma, dentre eles a cultura, a história

67
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

e a ideologia.
Para os analistas críticos, esses recursos são totalmente
extrínsecos aos textos, porém fazem parte da constituição do
discurso, só sendo possível reconhecê-los nos textos se levar-
mos em consideração, como afirma Pedro (1997, p. 33) que,
“na sua função representativa, a forma linguística é sempre
deformada pelos efeitos do poder [...] tem sempre um efeito
mediador que leva a processos de enviezamento articulados
em modos específicos [...] e na sua função de construção, a
linguagem projeta, permanentemente, relações e estruturas
sociais, de acordo com os desejos dos participantes, em regra
os do(s) participante(s) mais poderosos”.
Diante disso, o objetivo metodológico do analista crítico
é investigar esses traços e pistas na intenção de tornar
visíveis as relações entre a linguagem e outras práticas
sociais, que são dadas como naturais. Significa dizer que a
ACD se propõe a desconstruir os significados não óbvios ou
“agendas ocultas” presentes nos textos, expondo elementos
indiciais reprodutores da organização social, que privilegia
certos grupos e indivíduos em detrimento de outros, por meio
de formas institucionalizadas de ver e avaliar o mundo (ide-
ologias) ou preservação de poderes (hegemonia) de grupos
dominantes.

3.1.2. Poder e ideologia no discurso

Os textos são perpassados por relações de poder e ideo-


logia. Uma das principais preocupações da ACD é identificar
como a linguagem é usada para manter ou desafiar tais
relações no mundo contemporâneo. A ideologia é consti-
tuída por formas de ver o mundo, contribuindo para manter
ou mudar os sistemas de poder e dominação, estes organiza-
dos institucionalmente e de modo hieráquico, já que alguns
membros de grupos e de organizações dominantes assumem

68
Iran Ferreira de Melo (Org.)

um papel especial no planejamento, na tomada de decisões


e no controle das relações e processos da ativação do poder.
Poder é a possibilidade que os indivíduos, ou instituições
que representam, têm de fazer uso de algum tipo de recurso
para agir em determinado contexto social (GIDDENS, 2003).
Contudo, é conceituado, na ACD, como o conjunto de assi-
metrias entre participantes nos acontecimentos discursivos, a
partir da eventual capacidade destes para controlar a produção
dos textos, a sua distribuição e o seu consumo em contextos
socioculturais particulares. Apesar de hoje existirem diversas
formas de violência explícita, o poder tem tendido a não ser
imposto por coerção, ou seja, pela força, mas, ao contrário,
funciona, em nossa sociedade, como um exercício tácito de he-
gemonia produzido discursivamente e que conduz as pessoas
a cooperar consensualmente com determinadas ideologias. As
verdadeiras motivações dessa cooperação não são explicitadas,
dando a impressão ao indivíduo de que está agindo sob seu
próprio controle (FAIRCLOUGH, 2001).
Além disso, a ACD pensa a linguagem como um espa-
ço de luta irregular de poder, ressaltando o papel da cobiça
constante por hegemonia, isto é, a “liderança tanto quanto
dominação nos domínios econômicos, político, cultural e
ideológico de uma sociedade” (FAIRCLOUGH, 2001, p.
122). Assim, na ACD, podemos falar em poder hegemônico
quando o poder está a serviço da continuidade da liderança
e dominação de uns sobre outros. Diante disso, os analistas
críticos do discurso desenvolvem uma teoria/método para
investigar como o exercício de poder hegemônico se mescla
com práticas discursivas no mundo contemporâneo11, ou
seja, analisar e revelar o papel do discurso na (re)produção da
dominação. Dominação esta entendida como o exercício do
poder social por elites, instituições ou grupos, que resultam
em desigualdade social, onde estão incluídas a desigualdade
11 Para reconhecer o papel do mecanismo de hegemonia, a ACD se baseia nos postulados
de Antônio Gramsci (1971).

69
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

política, cultural e a discriminação por classe, etnia, gênero


e orientação sexual. Especificamente, os analistas críticos
querem saber quais as estruturas, estratégias, ou outras pro-
priedades do texto, falado ou escrito, desempenham um papel
nesses modos de reprodução. Trata-se de uma teoria do poder
e contrapoder.
A ACD adota de Foucault (1997, 2008) a assertiva de
que o discurso tem poder constitutivo, porque, através de
seu uso, os indivíduos constroem, mantém ou transformam
realidades sociais, isto é, criam, reforçam ou modificam for-
mas de conhecimento e crença, relações e identidades sociais
(FAIRCLOUGH, 1989, 2001).
Diante disso, Maurer (2005) aponta três princípios
norteadores do arcabouço teórico da ACD que partem desse
pressuposto:

1. os indivíduos realizam ações por meio da linguagem,


de acordo com o conceito de ato de fala elaborado nos estudos
da Pragmática por Austin (1962) e Searle (1969);

2. as formas discursivas e as estruturas sociais se influen-


ciam mutuamente, princípio este, cunhado pelas Ciências
Sociais, em especial por Antony Giddens (2003), de que há
sempre uma relação biunívoca entre os textos e a sociedade;

3. os recursos empregados pelos indivíduos para produzir


e consumir textos não são apenas cognitivos, mas sociocog-
nitivos atravessados por ideologias (van Dijk, 2004).

3.2. Dispositivos metodológicos

Na ACD, o método de análise resulta totalmente da


fundamentação teórica, isto é, os procedimentos de aplica-
ção da análise só fazem sentido se forem associados com os

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Iran Ferreira de Melo (Org.)

princípios teóricos citados acima (linguagem opaca e como


prática social). Nesse sentido, encontramos na ACD, como
afirma Pedro (1997, p.21) “um processo analítico que julga os
seres humanos a partir da sua socialização e as subjetividades
humanas e o uso linguístico como expressão de uma produ-
ção realizada em contextos sociais e culturais, orientados por
formas ideológicas e desigualdades”.
Fairclough (2001) entende qualquer evento discursivo
como um compósito de três dimensões simultâneas: o texto,
a prática discursiva e a prática social, como aponta o gráfico
abaixo:

(FAIRCLOUGH, 2001, p. 101)

Tais dimensões correspondem aos elementos estruturais,


como léxico, processos de coesão textual, ordem sintática e
transitividade (texto); à produção, distribuição e consumo de
textos, como os princípios de coerência textual, a intertextu-
alidade, a interdiscursividade e a força ilocucionária (prática
discursiva); e às atividades socioculturais e seus significados, a
saber, ideologias, exercício de poder, hegemonia (prática social).
No procedimento metodológico que Fairclough imple-

71
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

menta, ele apresenta três dimensões instrumentais de análise


– descrição, interpretação e explicação – ligadas respectiva-
mente às dimensões do discurso supracitadas.
Nesse método, a análise do texto privilegia a descrição
dos elementos linguísticos (léxico, opções gramaticias, coe-
são), porém, segundo Fairclough (2001, 1997), mesmo numa
análise descritiva, é preciso interpretação, pois estamos lidan-
do com material simbólico. Por isso, a dimensão de análise
como prática discursiva exige interpretação do texto no que
tange à sua produção, distribuição e consumo, discutindo a
coerência que os leitores podem atribuir a ele, bem como os
propósitos comunicativos do produtor e os graus de intertextu-
alidade e/ou interdiscursividade, ou seja, a presença de outros
textos e discursos no texto analisado. Por fim, a dimensão de
análise de um evento discursivo como prática social procura
explicar como são investidos, no texto, aspectos sociais ligados
a formações ideológicas e formas de hegemonia.
Diante disso, a ACD procura ser, em sua metodologia,
ao mesmo tempo, descritiva, interpretativa e explicativa, di-
ferindo-se de outras abordagens da Linguística. Apresentamos
abaixo um sumário desses três dispositivos metodológicos.

3.2.1. A dimensão do texto

Quando Fairclough trata da dimensão textual de um


evento discursivo, ele está se referindo aos elementos micro
de uma análise do discurso: são os aspectos estruturais que
compõem a tessitura de um texto, como os operadores de
argumentação e coesão textual, marcadores conversacionais,
itens lexicais, constituintes sintáticos, entre outros.
Para o estudo dessa dimensão, como vimos acima, ele de-
fende a atividade de descrição desses elementos sob a adoção
das noções da LSF (HALLIDAY, 1970, 1985), que concebe
a linguagem como um fenômeno multifuncional, porque

72
Iran Ferreira de Melo (Org.)

realiza três tipos de funções diferentes, aos quais Halliday


denomina de macrofunções da linguagem. São elas: ideacio-
nal, interpessoal e textual, correspondentes a três realizações
simultâneas: representar a realidade, refletindo e construindo
sistemas de conhecimentos, crenças e imagens sociais (função
ideacional); estabelecer relações sociais e identidades (função
interpessoal); e organizar a ordenação do texto, para indicar
os propósitos comunicativos do falante (função textual).
Fairclough (2003) amplia o diálogo teórico com a
abordagem de Halliday (1970, 1985) e propõe a articulação
dessas macrofunções com os conceitos de gênero, discurso e
estilo, sugerindo o uso de três tipos de significados (em lugar
de funções): representacional, acional e identificacional. Na
ACD, os elementos estruturais de um texto são descritos com
a finalidade de se verificar em que medida cooperam para
construir o significado de cada uma dessas macrofunções.
Abaixo segue uma síntese delas.

3.2.1.1. A função ideacional

Essa função é responsável pela representação da reali-


dade, pessoas e grupos. Tanto Halliday (1970, 1985) quanto
Fairclough (2001, 2003) atribuem à transitividade o papel de
reconhecimento e realização da função ideacional da lingua-
gem. A unidade de análise é o enunciado, que se compõe de
participantes (grupos nominais), processos (verbos) e circuns-
tâncias (advérbios). A relação entre esses constituintes forma
um enunciado transitivo, que é analisado ao se reconhecer o
valor semântico dos processos (material, relacional, mental,
verbal, entre outros) e o papel temático dos participantes de
acordo com os tipos de processos.
A principal função do estudo da transitividade é evi-
denciar textualmente quem faz/é/pensa/diz algo e em que
circunstâncias. Isso significa que esse tipo de análise se pro-

73
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

põe a indicar os significados ideacionais do texto: que tipo


de conhecimentos ou crenças são produzidos e, portanto, que
representação da realidade o texto oferece, por isso chamados
por Fairclough de significados representacionais.

3.2.1.2. A função interpessoal

Ao mesmo tempo em que funciona para representar uma


realidade, qualquer texto estabelece também algum tipo de
relação entre seus interlocutores, ou seja, exerce, sua função
interpessoal. Como proposto por Halliday (1975, 1985),
Fairclough (2001) divide essa função da linguagem em duas
perspectivas: função identitária e relacional, a primeira es-
tebalecendo identidades sociais aos indivíduos e a segunda,
tipos de relações sociais. Mais adiante, o próprio Fairclough
(2003) rejeita essa nomenclatura e classifica a função inter-
pessoal em: significados identificacional (função identitária) e
acional (função relacional). Um dos recursos mais usados para
se analisar a função interpessoal é a modalização linguística,
que compreende uma gama de formas de atenuação e ênfase
nos argumentos que demonstram os propósitos dos falantes.
Muitas vezes, a ACD busca verificar, com a análise da
função interpessoal, como a assimetria e o poder na interação
verbal indicam controle e hegemonia. Esse tipo de estudo
é muito analisado sob o cariz metodológico da Análise da
Conversação e da Sociolinguística Interacional.

3.2.1.3. A função textual

Além das duas funções citadas acima, uma outra, mais


dirigida à estrutura, se realiza no texto: a função textual. Com
ela, parte-se do pressuposto de que a ordem de um enuncia-
do não é casual. O tema, ou seja, o ponto de partida de uma
oração remete, conforme a LSF e a ACD, ao elemento textual
central para a progressão do texto. A estrutura temática é sem-

74
Iran Ferreira de Melo (Org.)

pre aquele elemento já conhecido pelo interlocutor (o dado)


e que introduz a informação. Sobre ele irá se predicar algo,
ou seja, se apresentar uma nova informação (o novo), que é
representado pelo rema.
Essa função identifica as conexões entre esses dois ele-
mentos (tema e rema) e verifica ao que é dado relevo como
tema, isto é, elemento central no fluxo informacional, e qual
o motivo da seleção desse elemento. A escolha de um deter-
minado termo para a posição temática representa, segundo
Kress (1990), poder e controle, pois, como afirma Pedro
(1997, p.34) “é diferente dizer o João casou com Joana, a
Joana casou com João, João e Joana casaram-se, ou a Joana
e o João casaram-se. A concepção de relação social implicada
nestes três enunciados é obviamente distinta, embora muito
provavelmente, a aparente sutileza da diferença escape ao
falante. Mas caberá ao analista torná-la relevante”. Fairclough
(2003) reclassifica a função textual por significado acional,
pois, segundo a concepção de texto como gênero, ou seja,
como prática social, a estrutura funciona como ação.12
As três funções supracitadas, como já dissemos, se re-
alizam simultaneamente e é essa simultaneidade, segundo a
LSF e a ACD, responsável pela composição de um evento
discursivo como texto. Portanto, um texto é constituído por
um conjunto de elementos estruturais que, ao mesmo tempo,
representa a realidade, estabelece e cria identidades e relações
e organiza a informação textual.

3.2.2. A dimensão da prática discursiva

Nessa dimensão de análise, Fairclough (2001, 2003)


propõe que examinemos os textos no que diz respeito à sua
produção, distribuição e consumo, com atenção especial aos
fatores de coerência textual, à manifestação da força ilocucio-

12 As teorias de gênero partem do pressuposto de que os textos se configuram em ações.

75
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

nária, ou seja, da ação que a linguagem exerce por meio de


enunciados ou textos completos (macroatos de fala)13, e aos
graus de intertextualidade e interdiscursividade.
Essa dimensão se realiza por meio das atividades socio-
cognitivas que os falantes desempenham no curso de suas
interações, isto é, trata-se do funcionamento do discurso
propriamente dito, como destacamos no início deste capítulo:
a organização do processo interativo (produção – escrita ou
oral – e consumo – lido ou ouvido), destacando-se os fatores
extrínsecos à linguagem (história, status social, cultura etc)
que interferem na constituição do discurso.14
Nesse sentido, a forma de entender essa dimensão pressu-
põe um exercício de interpretação. Ao contrário da dimensão
que expomos acima, cuja manifestação é eminentemente tex-
tual e, portanto, o dispositivo de análise seria a descrição, na
dimensão da prática discursiva exige-se a postura interpretati-
va do analista, uma vez que nesse caso se trata não unicamente
de identificar (descrever) um quadro de categorias linguísticas,
mas entender como funciona o movimento de interação que é
construído com essas categorias da linguagem.

3.2.3. A dimensão da prática social

Nessa dimensão de análise, Fairclough (2001, 2003)


procura relacionar os textos com práticas sociais mais amplas.
Sua proposta é que sejam examinadas as conexões em termos
de ideologia e hegemonia.
Esse nível de análise pode implicar uma complexidade
maior que as anteriores, pois depende de teorias de outros
campos de conhecimento para dar conta de fatos realizados
13 A noção de macroato de fala como a ação comunicativa que um texto completo exerce
foi desenvolvida por Teun van Dijk (2004).
14 A diferença maior entre a ACD e a Linguística de Texto reside exatamente no valor
dos elementos contextuais sobre o discurso. Os analistas críticos do discurso afirmam
existir uma dialética constitutiva entre a estrutura textual e social, ao contrário dos
linguistas de texto que chegam a identificar essa relação, mas não reconhecem esse
fluxo biderecional.

76
Iran Ferreira de Melo (Org.)

discursivamente, uma vez que a ACD opera com conceitos


oriundos da Linguística e das Ciências Sociais e é caracte-
rizada por um esforço de síntese de múltiplas contribuições
teóricas, cujo resultado deve auxiliar a pesquisa científica
social a estudar os processos de mudança na sociedade. Para o
exercício de análise dessa dimensão, Fairclough (1997) sugere
o trabalho explicativo à medida que o analista vai reconhe-
cendo nas outras dimensões marcas textuais e discursivas que
justifiquem o texto se relacionar com determinadas estruturas
da sociedade. Por exemplo, ao analisar uma notícia que o
pesquisador justifica ser preconceituosa em relação a deter-
minados grupos sociais, ele precisa explicar isso baseado no
texto, no discurso e na prática social que aquela notícia realiza,
isto é, essa terceira dimensão da atividade linguística implica
a investigação das outras duas citadas anteriormente aqui.

4. O papel político da ACD – proposta de análise

A ACD consiste numa perspectiva sobre a linguagem a


partir de um paradigma até então não visto. Isso se justifica
pelo fato de ela não tratar apenas de uma abordagem teórico-
metodológica sobre o estudo linguístico, mas de uma atuação
sobre práticas e estruturas engendradas pela linguagem.
Para os proponentes da ACD, o estudo de questões
linguístico-discursivas pode revelar aspectos importantes da
vida social. Ao analisar os textos criticamente, eles não estão
interessados apenas nos textos em si, mas na interação que
estes possuem com as estruturas sociais, ou seja, em questões
sociais que atravessam a linguagem, tais como as formas de
representar/construir a realidade, a manifestação de identida-
des sociais e as relações de poder.
A ACD busca promover a conscientização dos indivíduos
quanto às relações entre discurso e estruturas sociais, represen-
tando, portanto, uma forma de luta por mudanças na sociedade.

77
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Ela “se reclama de uma atividade política comprometida, essa


atividade não é menos adequadamente científica. É mesmo pos-
sível que o seja mais ainda, dada a consciência que caracteriza a
sua posição política, ideológica e ética” (PEDRO, 1997, p. 24).
Fairclough (1989, 2001) acredita que uma vez que al-
guém se torna consciente do valor ideológico de determinado
discurso, pode resistir a ele, isto é, a compreensão do papel
ideológico da linguagem como prática social pode cooperar
para a emancipação de grupos menos privilegiados.
Sob esse postulado, os analistas críticos do discurso são
declaradamente engajados com a mudança social. Desse modo,
segundo Kress (1990, p.85), “ao desnaturalizar as práticas dis-
cursivas e os textos de uma sociedade, considerando tratar-se
de um conjunto de comunidades ligadas discursivamente, e ao
tornar visível o que antes pode ter sido invisível e aparentemente
natural, os analistas críticos do discurso pretendem mostrar o
modo como as práticas linguístico-discursivas imbricam nas
estruturas, alargadas, sociopolíticas, do poder e da dominação”.
E, na medida em que essas estruturas atuam numa sociedade
em detrimento de grupos particulares, os analistas críticos do
discurso esperam poder produzir mudanças não apenas nas
práticas discursivas, mas também, nas práticas e estruturas so-
ciopolíticas que apoiam as práticas discursivas. Isso tudo pode
ser refletido no fluxo causa/consequência do gráfico abaixo:

Figura 01 – Processo metodológico de análise crítica do discurso


A seguir, descreveremos as propriedades dessas três

78
Iran Ferreira de Melo (Org.)

funções, estabelecendo relação entre elas e a releitura de-


senvolvida por Fairclough, bem como, a título de exemplo
da aplicabilidade teórico-metodológica dessas funções e
para avaliar criticamente o discurso, identificando os três
significados abordados por Fairclough, apresentamos como
elas poderiam ser aplicadas à análise da reportagem exposta
abaixo. A escolha desse gênero de texto se dá porque por
seu poder em servir, na sociedade atual, como uma ação
social da reflexividade dos indivíduos (GIDDENS, 1990),
munindo parte da população de informações consideradas
importantes sobre o funcionamento social, mas, ao mesmo
tempo, por sua forte atuação ideológica subjacente que
produz manobras para causar algumas reflexividades, e
não outras.
Trata-se de um texto sobre a mobilização de homosse-
xuais na cidade de São Paulo, publicado no jornal Folha de
Pernambuco no dia 14 de junho de 2009. Nesse exemplo
buscamos analisar brevemente determinadas formas do dis-
curso como um modo de representar a ação noticiada (função
ideacional ou significado representacional); de ser/identificar,
com essa ação, os interlocutores do texto (funções interpessoal
e relacional ou significado identificacional); e de agir ou atuar
como uma prática social específica, organizando as informa-
ções segundo os interesses do enunciador (funções textual e
relacional ou significado acional).

79
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Parada Gay deve reunir 3,5 milhões de pessoas

SÃO PAULO (Folhapress) – A 13ª Parada Gay será reali-


zada neste domingo em São Paulo e espera alcançar 3,5 milhões
de participantes. No ano passado, o evento atraiu 3,4 milhões de
pessoas, segundo a Associação da Parada do orgulho LGBT de
São Paulo, número menor do que os 3,5 registrados em 2007.
O evento está programado para começar às 12h em frente
ao MASP, na avenida Paulista, onde acontece a concentração.
Os organizadores estimam que a dispersão do grupo deve
acontecer por volta das 20h na praça Roosevelt. Durante todo o
percurso, o grupo será acompanhado por 20 trios elétricos, em
sua maioria, ligados a ONGs e entidades sindicais como a UGT
(União Geral dos trabalhadores) e a CUT (Central Única dos
Trabalhadores).
Neste ano, o evento terá como tema “Sem Homofobia,
Mais Cidadania Pela Isonomia dos Direitos!”. Atualmente, está
em trâmite no Congresso um projeto de lei que transformaria a
homofobia em crime e prevê penas para pessoas com comporta-
mentos e atitudes homofóbicas.
No mês passado, o ministro do Meio Ambiente, Carlos
Minc, participou da marcha para comemorar o Dia Mundial de
Combate à Homofobia e pela Paz e afirmou defender a tipificação
da homofobia como crime.
Folha de Pernambuco, 14 de junho de 2009

4.1. Realização da função ideacional

A função ideacional proposta por Halliday é responsável


pela representação da realidade, pessoas e grupos. Tanto Halli-
day (1970, 1985) quanto Fairclough (2001, 2003) conferem,
além do léxico, principal valor à categoria da transitividade,
cuja unidade de análise é o enunciado, que se compõe de
participantes (grupos nominais), processos (verbos) e circuns-
tâncias (advérbios). Denominamos constituintes do enunciado,
por exemplo a seguir:

80
Iran Ferreira de Melo (Org.)

(01)

“Fórum de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros faz manifestação


participante 01 – P1 processo participante 02 – P2

pelas ruas do Recife”15


circunstância

A relação sintático-semântica entre esses constituintes


forma um enunciado transitivo, que é analisado quando reco-
nhecemos o sentido social dos processos e o papel temático
dos participantes. No exemplo acima, estão claros os três
tipos de constituintes indicados por Halliday. Eles equivalem,
numa perspectiva formalista, a quatro elementos da oração: o
sujeito, o verbo, o objeto e o adjunto adverbial. Nesse sentido,
a categorização se vale da estrutura. Portanto, se há mais de
um núcleo em P1, o sujeito é revelado como formalmente
composto e, se o verbo for sucedido por uma preposição, a
transitividade será indireta e P2 denominar-se-á objeto indi-
reto. Um processo pode envolver três participantes. Do ponto
de vista formal, essa relação seria chamada de transitividade
direta e indireta, ou bitransitividade, pelo simples motivo de
não haver preposição entre o processo e P2, e sim entre o
processo e P3.
No caso da transitividade funcionalista utilizada por
Halliday, os participantes serão determinados por seus sig-
nificados no contexto em que o enunciado está inserido.
Podemos dizer que, no exemplo acima, P1 não é apenas um
sujeito formado por um núcleo, ou seja, um sujeito simples,
mas que constitui, principalmente, um agente de uma ação,
de um processo. Dizemos, ainda, que P2 não é somente um
complemento direto (por não haver preposição entre o verbo
e a palavra “manifestação”), mas que, também, significa um

15 Os exemplos de enunciados transitivos expostos aqui na fundamentação teórica são


retirados de Melo (2007), dissertação que versou sobre o papel da transitividade na
representação da homossexualidade em jornais.

81
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

objeto da ação do Fórum nas ruas do Recife. Essa perspec-


tiva funcionalista e crítica de entender o enunciado não está
comprometida apenas com a sintaxe, mas vem apresentar uma
visão semântica sobre o que é dito e, além disso, suscitar uma
análise pragmática, pois podemos interpretar o significado
social da ação como uma atividade de poder, que representa
o Fórum como autônomo, por ter assumido papel de agente
ao fazer manifestação nas ruas.
A principal função do estudo da transitividade é evi-
denciar textualmente quem faz/é/pensa/diz algo e em que
circunstâncias isso ocorre. Significa dizer, portanto, que esse
tipo de análise se propõe a indicar os significados ideacionais
do texto: que tipo de conhecimentos ou crenças são produzidos
e, portanto, que representação da realidade o texto oferece
(por exemplo, ofuscando ou ressaltando, agenciando ou apas-
sivando os atores e as ações sociais), por isso chamados por
Fairclough de significados representacionais.
O exemplo, a seguir, serve também para esclarecer essa
forma de análise:

(02)
“Músicas e cores deram o tom à caminhada [...]”
P1 processo P2 P3

Funcionalmente, é possível dizer que, neste exemplo, P1


(a música e as cores) funciona como a causa do “tom” (P2)
que beneficia a caminhada (P3). Portanto, podemos reconhecer
que os papéis dos participantes deste enunciado no exemplo
são bastante distintos:

P1 – causa
P2 – objeto
P3 – beneficiário

82
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Uma análise mais detalhada que considere o texto com-


pleto em que está inserido o enunciado desse exemplo e um
contexto mais amplo que situe os atores sociais representados
em seu discurso pode revelar informações pertinentes para
identificarmos o que significam as relações entre os partici-
pantes e qual a repercussão social dessas relações.
Quanto aos processos, Halliday (1985, 2004) os dividiu
em cinco tipos: materiais, mentais, verbais, relacionais,
comportamentais e existenciais. Os processos materiais são
os que representam as ações físicas. Os participantes envol-
vidos com esses processos são chamados de ator e meta, ou
ator e objeto, e, segundo Halliday (1985), podem representar
os participantes como ativos ou passivos. Por exemplo, em
“Gays e simpatizantes lotaram a Avenida Paulista”, “gays e
simpatizantes” assumem papel de atores e “a Avenida Paulista”
de meta ou objeto. Se o verbo estivesse em voz passiva – “A
Avenida Paulista foi lotada por gays e simpatizantes” – as
funções não seriam alteradas. A ordem mudaria, mas “gays e
simpatizantes” permaneceriam como atores e “a Avenida Pau-
lista” como objeto. Já no enunciado “Os gays recebem verba
da prefeitura”, o processo “receber” mobiliza um participante
passivo, embora a voz permaneça ativa, pois os gays são alvo
da ação da prefeitura, que doou a verba.
Outra espécie de processo postulada por Halliday (1985)
são os que indicam os sentimentos ou as atividades cogni-
tivas, chamados mentais. Alguns exemplos são: “lembrar”,
“calcular”, “desejar” etc. Já os processos verbais, também
preconizados pelo linguista britânico, consistem nas ações
enunciativas, por exemplo, “falar”, “dizer”, “contar”, que
exigem como participantes um “locutor”, quem fala, e um
“objeto”, o que se fala.
Há, ainda, os processos relacionais, aqueles que expres-
sam a característica e o estado de algo; são os processos de ser
e de estar. Eles têm função de atribuir, identificar, caracterizar,

83
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

qualificar e indicar o estado em que se encontra o indivíduo


ou o grupo sobre quem se fala. Os participantes, segundo
Halliday (1985), podem ser um portador e um atributo, ou
um indivíduo identificado e sua identidade. Um exemplo que
ilustra esse tipo de processo é:

(03)
A avenida Conde da Boa Vista, no centro do Recife, virou uma apoteose, ontem
portador atributo

à noite, devido a IV Parada da Diversidade [...]

Outros processos abordados pelo referido autor são os


comportamentais, aqueles que apresentam comportamentos
fisiológicos e psicológicos, como “sonhar”, “sorrir”, “respi-
rar”, “tossir”. Normalmente esses exigem apenas um partici-
pante, que é denominado pelo autor de “portador”. Para esse
teórico, os processos comportamentais demonstram o estado
físico e psicológico de um indivíduo e funcionam, também,
como uma ação.
O quinto tipo de processo discutido é o existencial, res-
ponsável por afirmar que os fatos existem ou acontecem; os
mais comuns são “existir”, “haver”, “ocorrer” e “acontecer”.
Ele normalmente vem acompanhado de uma circunstância. O
participante dos enunciados em que há esse processo é apenas
um, denominado “existente”.
Outro constituinte do enunciado, conforme os postulados
de Halliday (1985) é a circunstância, ou seja, as condições em
que o fato descrito ocorre. Elas podem indicar tempo, lugar,
modo, intensidade, companhia etc. As circunstâncias são ele-
mentos essenciais em notícias, uma vez que esse gênero de
texto não se realiza de modo eficiente sem haver informações
sobre as condições em que se deu o fato informado.
Em relação à função ideacional ou significado represen-
tacional, na reportagem que mostramos, podemos já verificar

84
Iran Ferreira de Melo (Org.)

pela forma como o assunto é lexicalizado no título: como “Pa-


rada Gay”. Atualmente – mesmo não sendo do conhecimento
de todos – a proposta política dos movimentos de militância
contra a homofobia e a favor dos direitos civis dos homosse-
xuais reconhece o gay apenas como um dos representantes da
orientação homo(sexual), uma vez que as lésbicas, os bisse-
xuais e os transgêneros (travestis e transexuais) já passaram a
empreender a causa outrora apenas pleiteada pelos homosse-
xuais masculinos e foram inseridos no grupo LGBT (iniciais
dos representantes que compõem tais movimentos). De forma
que, o jornalista, ao criar o título da notícia, não levou isso
em consideração, mesmo tendo correferido a manifestação, no
corpo do texto, como “Parada do Orgulho LGBT”. A exclusão
de representantes do grupo de homossexuais já inseridos nesse
processo político fornece direcionamento de sentidos que o
leitor fará na compreensão da notícia e do que seja a Parada.
Outro fator importante na análise da representação
desse título é a transitividade desempenhada pelo enunciado.
Nele, “Parada Gay” assume o lugar de participante 1 e “3,5
milhões de pessoas”, de participante 2. O primeiro realiza uma
ação sobre o segundo e essa ação é formalizada pelo processo
“reunir”.
Se categorizarmos o processo usado no título entre os
tipos propostos por Halliday, poderíamos caracterizá-lo como
“material”, uma vez que a ação de reunir denota um aconte-
cimento concreto.16 O participante que reúne e aquele que é
reunido, ou seja, o que pratica e o que recebe a ação também
são categorizados, nesse caso, segundo a teoria hallidayana,
como ator e objeto. Para efeito de representação, ao ator é
criada uma imagem de agentividade e autonomia sobre o
16 Muitos estudiosos de Halliday compreendem que a categorização semântica dos
processos é um procedimento “escorregadio”, pois depende de fatores como registros,
estilo etc. Por exemplo, o processo “reunir” dessa notícia pode ser entendido como
uma metáfora de “possibilitar” ou “motivar a reunião”, já que reunir implica um ato
empírico de agrupar alguém ou algo, cabendo, desse modo, apenas aos organizadores
da Parada.

85
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

abjeto, portanto, a partir desse título, o leitor pode inferir o


potencial da Parada, isto é, dos homossexuais organizados
naquele evento de militância política. A partir da semântica
do processo, Halliday (1985) denomina de papel temático
os sentidos atribuídos ao ator e ao objeto.17 Já Fairclough
(2003) se utiliza tanto da seleção lexical quanto da transiti-
vidade para afirmar que ambas expressam a imagem social
que a notícia engendra no seu processo discursivo (produção
e leitura).
Em relação ao léxico escolhido no corpo da notícia, ob-
servamos a semântica das palavras usadas para se referirem à
Parada e aos homossexuais. Já sobre a transitividade é preciso
que nos dediquemos a perceber os mesmos mecanismos que
observamos no título: a semântica dos processos e o papel
temático dos participantes, além – quando for o caso – a se-
mântica da circunstância.
A forma de transitividade com voz passiva do pro-
cesso está presente em três enunciados da notícia, todos eles
revelam – como vimos – a parada /o homossexual na posição
temática, mas no papel de objeto:

1. “a 13ª Parada gay será realizada”;


2. “o evento está programado”;
3. “o grupo será acompanhado por 20 trios elétricos”.

As duas primeiras ocorrências apagam o ator das ações


(quem realiza e quem programa) e a terceira apresenta um ator
que não representa semanticamente a Parada ou o homosse-
xual. Os processos usados nesses enunciados são materiais,
ou seja, denotam forte agentividade.
Além desses três enunciados, a parada / o homossexual –
como constatamos – é retomado em mais quatro enunciados
17 Nesse título não há nenhuma circunstância (“hoje”, “em São Paulo” etc). Se houvesse,
deveria ser analisada também a relação que ela estabelece com os outros constituintes
(participantes e processo).

86
Iran Ferreira de Melo (Org.)

transitivos. Em todos eles, esse assunto ocupa papel de ator,


porém com processos distintos semanticamente:

1. “A 13ª Parada gay [...] espera alcançar 3,5 milhões de


participantes”;
2. “No ano passado, o evento atraiu 3,4 milhões de pessoas”;
3. “Os organizadores estimam que a dispersão do grupo deve
acontecer por volta das 20h”;
4. “Neste ano, o evento terá como tema ‘Sem Homofobia,
Mais Cidadania Pela Isonomia dos Direitos!’”;

O primeiro enunciado que se mostra é formado pelo


processo composto “espera alcançar”, em que há um processo
modalizador (espera), que atenua o principal (alcançar). Esse
recurso de modalizar o processo “alcançar” mitiga a ação real
do participante “13ª Parada Gay” no enunciado, colocando-a
na condição de possibilidade. Isso atenua, também, o poder do
ator, pela intervenção do processo auxiliar – modalizador. O
segundo enunciado representa uma ação agentiva: “o evento
atraiu 3,4 milhões de pessoas”. Contudo, a circunstância de
tempo no passado diminui o poder do ator, uma vez que se
afirma uma ação totalmente concluída no passado, ou seja,
sem marcas de que ainda é vigente, portanto ausente de força
atual.18 Já o terceiro enunciado, tanto quanto os outros, aborda
o assunto na posição de destaque, porém o uso do processo
mental “estimar” caracteriza o tema (“organizadores”) como
experienciador, fornecendo-lhe agentividade, mas também
baixo poder, já que não consiste numa prática de intervenção
concreta, como o processo material. Quanto ao quarto e último
enunciado, podemos dizer que se trata do mais agentivo de
todos eles, pois “o evento terá” algo, ou seja, é representado
como uma entidade de poder, possuidora e dominante. Porém,
seu objeto, isto é, o que ele detém consiste numa proposta
18 Para uma melhor reflexão sobre o papel do tempo verbal na enunciação, recomenda-se
a teoria clássica de Benveniste (1989).

87
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

criada por ele mesmo (o evento ou os organizadores). O al-


cance de governo do ator social nesse enunciado é limitado,
visto que não se trata de ter algo além daquilo que faz parte
do seu próprio contexto.
Diante da descrição desses enunciados transitivos, reco-
nhecemos que essa notícia aponta, como sugere Fairclough
(2003), para a representação de baixa autonomia, inclusão e
poder de governo dos homossexuais na notícia observada.
Mesmo havendo visibilidade de LGBT, pois a posição temática
que assumem destaca-os, os alcances de atuação são limita-
dos, seja por meio da atribuição passiva, pela agentividade
atenuada por modalizador e circunstância de tempo, ou pelo
papel temático de beneficiário.

4.2. Realização da função interpessoal

Ao mesmo tempo em que funciona para representar


uma realidade, qualquer texto estabelece também algum
tipo de relação entre seus interlocutores, ou seja, exerce,
sua função interpessoal. Conforme propôs Halliday (1970,
1985, 2004), Fairclough (2001) divide essa função da
linguagem em duas perspectivas: função identitária e re-
lacional, a primeira estabelecendo identidades sociais aos
indivíduos e a segunda, tipos de relações sociais. Tempos
depois, como já apresentamos, o próprio Fairclough (2003)
rejeita essa nomenclatura e classifica a função interpesso-
al em: significados identificacional (função identitária) e
acional (função relacional). Ambos teóricos consideram
como um dos recursos mais usados para se analisar a fun-
ção interpessoal, a modalização linguística, estratégia que
compreende uma gama de formas de atenuação e ênfase
nos argumentos que demonstram os propósitos dos falantes.
Detalharemos melhor essa manobra à luz da análise que
podemos fazer da reportagem exposta.

88
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Nessa perspectiva, Podemos destacar, ainda no título da


reportagem, o uso do modalizador verbal “deve”, classificado
por Fairclough (2003) como modalizador epistêmico, que
funciona para emitir conhecimento relativo sobre o assunto,
mas, sobretudo, indicar o grau de comprometimento do lo-
cutor. Ao dizer que a Parada “deve reunir”, o jornalista não
assume a certeza da ação, mas lança possibilidade sobre ela,
consequentemente atenuando a força agentiva do ator “Parada
Gay”. Seria diferente se o enunciado fosse, como conceitua
Halliday (1985), polarizado, ou seja, se fornecesse uma ação
sem ressalvas: “Parada gay reúne 3,5 milhões de pessoas”.
Essa forma identificaria diferentemente a relação do locutor
com o que diz, pois haveria a garantia do acontecimento
(reunião de 3,5 milhões de pessoas).
No texto completo, podemos dar atenção precisa ao re-
curso de modalização que se manifestou apenas por meio de
processos e em dois trechos – no título e no parágrafo inicial
– através da forma composta “espera alcançar”. Nesse caso,
processo “esperar” atua sobre a ação atenuando-a e, além
disso, retirando a responsabilidade do locutor em assegurar
um acontecimento real. A utilização desse processo modaliza
o processo seguinte, dando a ele o caráter de hipótese.
Halliday (1985, 2004) afirma que o papel do modalizador
é pôr em um plano intermediário a pontualidade dos acon-
tecimentos, isto é, não assegurar a realização de uma ação,
ou não garantir a sua polaridade. Para Halliday a ocorrência
de um evento (polo positivo) ou a negação do mesmo (polo
negativo) indica pontos extremos de um acontecimento,
sendo, portanto o intermédio entre esses pontos, ou polos, a
possibilidade positiva ou negativa do acontecimento, como
mostra o gráfico abaixo19:

19 Esse gráfico é livremente inspirado na teoria sobre a modalização de Michael Halliday


(1985, 2004).

89
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Figura 02 – Representação do contínuo da modalização segundo Halliday

Ao destacar a posição intermediária, o locutor indica que


não se compromete com alguma das polaridades, ou seja, com
a certeza da ocorrência ou negação dela. A manifestação desse
ponto intermediário Halliday chama de “modalidade” e afir-
ma ser materializado na forma de processos e circunstâncias
(verbos e advérbios). Já Fairclough (2003) inclui os polos no
processo de modalização e denomina qualquer um dos pontos
(polos positivo e negativo, bem como o intermédio) como
um fator de modalização, nomeado por ele de modalização
categórica. Esse teórico amplia a proposta de Halliday e de-
fende que qualquer expressão do acontecimento (polarizada
ou intermediária) compromete o locutor e estabelece uma
relação entre este e o que diz.
Diante disso, seguindo a perspectiva de Fairclough,
podemos afirmar que houve modalização em toda extensão
da notícia que analisamos, no entanto em alguns momentos
(no título e no enunciado “A 13ª Parada [...] espera alcan-
çar 3,5 milhões de pessoas”) o locutor se identifica com
menos responsabilidade sobre o que diz. Assim, podemos
perceber que, do ponto de vista relacional e identitário,
é atribuído à postura do jornalista o comprometimento
com o que informa.

90
Iran Ferreira de Melo (Org.)

4.3. Realização da função textual

Além das duas funções citadas acima, uma outra é mais


dirigida à estrutura do texto: a função textual. Com ela, parte-
se do pressuposto de que a ordem de um enunciado não é
casual. O tema, ou seja, o ponto de partida de uma oração
remete, conforme a LSF e a ACD, ao elemento textual cen-
tral para a progressão do texto. A estrutura temática é sempre
aquele elemento já conhecido pelo interlocutor (o dado) e
que introduz a informação. Sobre ele irá se predicar algo,
ou seja, se apresentar uma nova informação (o novo), que é
representado pelo rema.
Essa função identifica as conexões entre esses dois ele-
mentos (tema e rema) e verifica o que é dado relevo como
tema, isto é, elemento central no fluxo informacional, e qual o
motivo da seleção desse elemento. A escolha de um determina-
do termo para a posição temática representa poder e controle
(KRESS, 1990), pois, como afirma Pedro (1997, p.34) “é dife-
rente dizer o João casou com Joana, a Joana casou com João,
João e Joana casaram-se, ou a Joana e o João casaram-se. A
concepção de relação social implicada nestes três enunciados é
obviamente distinta, embora muito provavelmente, a aparente
sutileza da diferença escape ao falante. Mas caberá ao analista
torná-la relevante”. Tendo isso em vista e concebendo essa
escolha como uma operação consciente do locutor, Fairclough
(2003) reclassifica a função textual por significado acional,
uma vez que, segundo a concepção de texto como gênero, ou
seja, prática social, a estrutura funciona como ação.
No início do texto, podemos já analisar o título (fator de
contextualização cujo papel é fornecer uma previsão sobre o
que se lerá adiante). Nele, é possível se fazer uma descrição da
multifuncionalidade linguística. No que diz respeito ao fluxo
informacional e a sua função textual, a ordem das palavras
não é aleatória, ou seja, não tem uma motivação por parte do

91
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

produtor. A introdução com a lexia “Parada Gay” cumpre,


nesse caso, o papel de tema do enunciado, o que indica para
o leitor o elemento principal da informação, que vem seguido
de uma predicação, um rema (“deve reunir 3,5 milhões de
pessoas”), ou aquilo que se fala sobre a informação principal.
O primeiro, de acordo com Halliday (1985, 2004), correspon-
de não só a um elemento importante (por isso ressaltado no
início do enunciado), mas também a uma informação dada ou
conhecida, pelo interlocutor, ao contrário do rema, que con-
siste num aspecto sobre o tema e que, por predicar sobre ele
(um elemento conhecido) é, do ponto de vista informacional,
geralmente, uma informação nova. Supondo que o título fos-
se “3,5 milhões de pessoas se reúnem hoje na Parada Gay”,
essa locação dos termos causaria outro efeito, uma vez que,
seguindo Halliday, a atenção dada ao leitor para a informação
“3,5 milhões de pessoas” não atribuiria a esse trecho a função
de informação remática, ou secundária.20
Nesse título, portanto, é possível descrever o elemento
temático como “Parada Gay”, por sua posição no enunciado,
e interpretar essa posição como uma escolha de foco sobre
a informação que será veicula. Isso implica dizer, ainda, que
podemos entender, por meio da forma, o possível propósito
comunicativo do locutor partilhar a função da “Parada Gay”
no texto: como assunto principal.
20 Para corroborar com um exemplo bastante marcado sobre a importância da ordem
em enunciados, podemos citar um uso do sujeito tópico que fazemos como registro
informal na oralidade. É comum acentuarmos o assunto sobre o qual queremos falar,
usando-o no início do enunciado mesmo quando ele é retomado no fim. Por exemplo,
ao dizer que gostamos de um livro, podemos usar um recurso de mudança na ordem,
comum à nossa língua portuguesa, de sujeito, verbo, objeto (SVO), para reforçar que
seu assunto é o livro. Isto é, o enunciado “Eu gosto desse livro” – ordenado em SVO –
e tematizado por “eu”, termo dêitico que aponta para o locutor, pode ser falado como
“Esse livro, eu gosto dele”. Tal escolha de ordem não é fortuita, conforme Halliday
(1985), e promove um foco diferenciado se comparado à outra ordem. Embora haja
uma retomada do referente “livro” através da pronominalização “de + ele”, o falante
pode achar necessário apresentá-lo no início do enunciado, ou seja, como tema – na
posição temática –, o que revela para Fairclough (2003) uma posição axiológica
do falante, por isso esse pesquisador categoriza tal função da linguagem como um
significado acional. Essa ordenação não ocorreu no título da notícia em tela, ele é
construído na canônica forma SVO.

92
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Uma vez demonstrando isso já no título, ou seja, na forma


contextualizadora de apontar a expectativa do leitor21, a notícia
anuncia seu assunto. Cabe-nos perceber se esse tema é susten-
tado no texto, uma vez que, em muitas notícias ocorre o desfo-
que do assunto no corpo do texto como manobra argumentativa
e ideológica. Dos cinco parágrafos que a notícia possui, quatro
deles são tematizados por termos que remetem à Parada. Isso
demonstra que o jornalista seguiu o foco do título no corpo do
texto. Apenas o último parágrafo, como geralmente acontece
nas notícias, não é dedicado às informações relacionadas ao
assunto principal, assumindo natureza secundária naquilo que
se quer informar. Os termos usados como tema são: “a 13ª
Parada Gay” e “o evento” (primeiro parágrafo); “o evento”
(segundo parágrafo); “os organizadores” e “o grupo” (terceiro
parágrafo); “o evento” e “o projeto de lei” (quarto parágrafo);
“o ministro do Meio Ambiente” (quinto parágrafo).22 Todos
os temas são relacionados à parada / os homossexuais, com
graus de aproximação semântica na seguinte ordem:
Se considerarmos que a Parada é o assunto e que LGBT
formam o tema subjacente, uma vez que são os atores e be-
neficiados da Parada, apresentamos a gradação com:

1. a “Parada” como primeiro elemento, o qual é retomado na


notícia como “evento”;

2. o termo “organizadores” como segundo elemento, pois já


representa os próprios homossexuais ligados à Parada, ele-
mento anterior;

3. “grupo” como terceiro elemento, porque aponta para os


organizadores, mas também para aqueles que acompanham
a Parada;
21 Uma abordagem sobre a função do título como fator de contextualização de um texto
é encontrada em Marcuschi ([1983]2009).
22 Consideraremos apenas os temas que são formados por participantes (nomes).

93
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

4. “projeto de lei”, quarto elemento, uma vez que está ligado


à Parada, embora o nome, per si, não identifique esse evento
nem LGBT;

5. por último, “o ministro do Meio Ambiente”, que, mesmo


apoiando a Parada, não tem relação com o movimento.

Figura 03 – Gradação semântica de aproximação com a Parada e com


os homossexuais

Observando a ordem de aparição desses temas no


decorrer do texto, veremos que a gradação apresentada
corresponde à sequência também da notícia, o que indica
o mecanismo de exposição escolhido pelo locutor seguindo
o fluxo informacional e semântico que abordamos. Nesse
sentido, a permanência de palavras ligadas à Parada e ao
homossexual na posição temática funciona como ação de
prover a leitura do que vai ocorrer – a parada – e o que o
locutor deseja predicar, o foco de atenção do texto. Isso
também reforça a representação da Parada e do homossexu-
al na notícia, uma vez que a ocorrência dos termos citados
como temas fornece visibilidade tanto à primeira quanto
ao segundo. Contudo, a qualidade dessa representação,
quais papeis ambos – Parada e homossexuais – ocupam no
texto, só poderá ser analisado na relação entre o tema e o

94
Iran Ferreira de Melo (Org.)

rema, ou seja, já na avaliação dos enunciados transitivos,


que significa a análise de uma das categorias gramaticais
responsáveis pela função ideacional.

5. Considerações finais

Os estudos acerca da relação entre a línguagem e os


contextos sociais mais amplos constituem, há muito tempo,
investigações caras à Linguística e fazem dessa ciência
uma arena produtiva de pesquisas que ajudam a repensar
as teorias sobre o lugar do discurso na construção e no es-
tabelecimento das práticas sociais. Diante disso, a relação
entre discurso e sociedade vem suscitando, na Linguística
contemporânea, abordagens que possuem destaque, por
apresentarem interfaces complexas entre as Ciências So-
ciais e os estudos da linguagem e por identificarem entre a
prática discursiva e a prática social uma relação dialética
e biunívoca (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999).
Tais abordagens se inserem definitivamente na agenda da
Linguística através de postulados que ajudam a repensar os
objetivos dessa ciência e a destacar o papel da linguagem
na formação, manutenção e transformação da história, do
comportamento e das relações humanas.
Diante disso, determinadas vertentes críticas da Lin-
guística contemporânea e aplicada oferencem um cabedal
teórico-metodológico bastante eficaz para desenvolver essa
função (FOWLER ET AL, 1979). Em nosso artigo expla-
namos um pouco sobre uma dessas vertentes de estudo, a
ACD, responsável pela abertura e difusão do diálogo epis-
têmico entre os estudos linguísticos e as Ciências Sociais.
Reafirmamos os postulados dessa abordagem, considerando
suas discussões sobre o papel político, crítico e aplicado
do linguista face às demandas sociopolíticas do mundo
contemporâneo.

95
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

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98
Iran Ferreira de Melo (Org.)

ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA COMO


INTERDISCIPLINA PARA A CRÍTICA SOCIAL:
UMA INTRODUÇÃO1
Viviane Resende
Universidade de Brasília

Critical discourse analysis is far from easy2

1. Do que se fala quando se fala em ADC?

Quando se fala em Análise de Discurso Crítica (ADC),


é preciso definir a que versão de ADC se pretende referir.
Isso porque a ADC não é um corpo teórico homogêneo, ao
contrário, é constituída por uma heterogeneidade de aborda-
gens identificadas com o rótulo “Análise de Discurso Crítica”
(BLOMMAERT, 2005).
Em Resende (2009), ressalto que, ainda que diversas em
suas premissas teóricas e metodológicas, as versões de ADC
guardam certas características em comum, o que garante coe-
rência ao campo. Essas características comuns são, pelo menos,
três: a interdisciplinaridade, o posicionamento e a utilização das
categorias linguísticas como ferramentas para a crítica social.
1 Este capítulo recebe contribuições parciais de trabalhos de pesquisa anteriores, no
sentido de recontextualizar e reorganizar algumas reflexões inicialmente formuladas
para meus trabalhos “Análise discursiva crítica de uma circular de condomínio acerca
de ‘moradores de rua’ em Brasília”; e “Análise crítica de um recorte de um chat
acerca de violência e rebaixamento da maioridade penal no Brasil”. Essas reflexões
são aprofundadas em meu livro Análise de Discurso Crítica e Realismo Crítico:
implicações interdisciplinares (RESENDE, 2009).
2 (VAN DIJK, 1993, p. 253)

99
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Todas as diferentes vertentes da ADC reconhecem que


a transgressão dos limites entre disciplinas é um pressuposto
básico para a análise de problemas sociais parcialmente dis-
cursivos – dada a relação interna entre linguagem e sociedade.
Nesse sentido, Pardo Abril (2007, p.13) destaca que:
A Análise de Discurso Crítica consolidou-se como
um lugar de interesse para a problematização da ação
discursiva como uma prática transformadora, consti-
tuinte e constitutiva da realidade social. Nessa pers-
pectiva, propor formas de aproximação ao discurso
implica articular princípios e categorias provenientes
de diversos desenvolvimentos das ciências sociais
e humanas com as técnicas, ferramentas e procedi-
mentos construídos para a abordagem dos objetos de
estudo, em que se relaciona a teoria à observação, à
explanação, à interpretação e à crítica de fenômenos
socioculturais próprios da ação discursiva.

Assim, cada uma das diferentes versões de ADC procura


operacionalizar conceitos e categorias desenvolvidos pelas
ciências sociais (WODAK, 2003). Algumas abordagens em
ADC constituem influentes corpos teóricos e metodológicos,
com pesquisadores/as adeptos/as no Brasil e em toda a Amé-
rica Latina.3 É o caso das propostas de Norman Fairclough,
Teun van Dijk, Theo van Leeuwen e Ruth Wodak, que estabe-
lecem diferentes relações interdisciplinares em suas versões
de ADC. Fairclough propõe uma articulação entre Linguística
Sistêmica Funcional e Sociologia (FAIRCLOUGH, 2003); van
Dijk estabelece diálogo entre Linguística Textual e cognição
social (VAN DIJK, 1989); van Leeuwen, um dos principais
nomes da Semiótica Social, volta sua atenção para a multi-
modalidade, propondo o conceito ampliado de texto que nor-
3 Neyla Pardo Abril (2007, p.32) ressalta que “a chegada dos estudos do discurso à
América Latina constituiu uma de suas principais razões de crescimento e expansão,
pois se desenvolveram múltiplas aplicações dos princípios teóricos na análise de
situações e problemáticas concretas, o que levou ao desenvolvimento das teorias e
dos métodos e à ampliação de perspectivas da análise de discurso”.

100
Iran Ferreira de Melo (Org.)

teia pesquisas contemporâneas em ADC (VAN LEEUWEN,


2007); e Ruth Wodak articula a Sociolinguística e a História
(WODAK, 1996).
Outra característica basilar das diversas propostas teó-
rico-metodológicas em ADC é seu caráter posicionado. Em
todas as suas vertentes, a ADC propõe abordagens críticas para
a análise de textos, assumindo posicionamento explícito em
relação a problemas sociais de cunho discursivo e negando
o mito da “imparcialidade científica”. O objetivo, portanto,
é desvelar discursos e ideologias que sustentem estruturas
de dominação. De acordo com esse própósito, o conceito de
ideologia mais adequado parece ser o de Thompson (1995),
para quem ideologias são construções simbólicas a serviço de
relações de poder, entendidas como dominação.
Tendo em vista esse posicionamento explícito em relação
aos problemas sociodiscursivos analisados, van Dijk (2001,
p. 352) assim define a ADC:

A Análise de Discurso Crítica (ADC) é um tipo de


investigação analítica do discurso que estuda prin-
cipalmente as formas como o abuso do poder social,
a dominação e a desigualdade são conquistados,
reproduzidos e contestados, por meio de textos, no
contexto social e político. Com esse tipo de investi-
gação, analistas de discurso críticos/as assumem po-
sição explícita e, portanto, pretendem compreender,
expor e, finalmente, resistir à desigualdade social.

Essa característica posicionada da ADC permanece um


debate aberto e já suscitou diversas críticas da relação entre
análise e interpretação (veja, por exemplo, WIDDOWSON,
1995). Em resposta à crítica, Fairclough “ataca a concepção
de análise de discurso de Widdowson, pois este a concebe
como reduzida à pragmática, sem considerar os processos in-
tertextuais” (FRANCO, 2008, p. 55). Assim, para Chouliaraki
& Fairclough (1999, p. 67), “a interpretação é um processo

101
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

complexo e contextualizado, sendo necessário distinguir entre


compreensão e explanação como partes da interpretação. [...]
A ADC não advoga uma compreensão particular de um texto,
embora possa advogar uma explanação particular”.4
A interdisciplinaridade e o posicionamento como carac-
terísticas fundamentais às diferentes abordagens em ADC
implicam uma terceira: em análises discursivas críticas, a
utilidade de teorias e categorias linguísticas não é pressuposta;
ao contrário, é emergente dos dados e dos objetivos da análise
(RESENDE, 2009). A Linguística, portanto, serve como ins-
trumento para a crítica social, já que o objetivo das análises
é a crítica sustentada pela análise de textos. Assim, a seleção
das categorias linguísticas utilizadas em estudos discursivos
críticos deve ser justificada por sua utilidade na análise da
materialização discursiva de problemas sociais.
Essas três características apontadas como basilares em
ADC mantêm estreita ligação entre si. Sendo a ADC “uma
abordagem do uso da linguagem que objetiva explorar e expor
os papéis do discurso na reprodução (ou resistência) das de-
sigualdades sociais” (RICHARDSON, 2007, p. 06, grifos no
original), seu interesse investigativo extrapola os fenômenos
linguísticos. Esse escopo ampliado em que os processos de
mudança discursiva são analisados tendo em vista os proces-
sos sociais resulta, por sua vez, na exigência da articulação
com outras disciplinas, isto é, no pressuposto da interdisci-
plinaridade. E, nas relações interdisciplinares estabelecidas,
as categorias linguísticas mostram-se ferramentas úteis para
a crítica social.
Daí, podemos afirmar que a ADC reproduz, no nível
epistemológico, a relação entre linguagem e sociedade
4 Na vertente da ADC de Fairclough, a explanação relaciona-se à “crítica explanatória”
proposta no Realismo Crítico (BHASKAR, 1989; FAIRCLOUGH, 2003). Por meio de
análises discursivas, é possível mapear conexões entre escolhas linguísticas de atores
sociais ou grupos e os contextos sociais mais amplos nos quais os textos analisados
são formulados e, assim, elucidar relações causais entre aspectos discursivos e não
discursivos de práticas sociais.

102
Iran Ferreira de Melo (Org.)

defendida no nível ontológico.5 A relação interna entre


linguagem e sociedade (nível ontológico) possibilita que
a análise linguístico-discursiva aponte caminhos para uma
crítica social discursivamente orientada (nível epistemoló-
gico). Se podemos utilizar a análise de textos como material
empírico para a crítica de processos sociais de mudança/
manutenção de práticas é porque a linguagem, entendida
como discurso, é constituída na/pela sociedade e constitu-
tiva da sociedade.

Figura 01 – Linguagem e sociedade/análise discursiva e crítica social

2. Discurso e crítica social

A relevância do conceito de discurso para a crítica social


pode ser evidenciada pelo crescente interesse de pesquisado-
res/as de diversos campos da Ciência Social contemporânea
pelos estudos discursivos, que tem sido referido como uma
“virada discursiva”. Para Fairclough (2000), esse interesse
resulta de teorizações recentes da modernidade centradas no
papel da linguagem na vida social moderna, decorrentes de
uma característica das práticas sociais contemporâneas: a vida
social é cada vez mais mediada por textos, em todos os campos
da atividade humana (FAIRCLOUGH, 2006).
5 Um dos aspectos centrais da ADC é a abordagem da relação entre linguagem e so-
ciedade, definida como uma relação interna e de mão dupla. A natureza interna dessa
relação significa que textos são resultantes da estruturação social da linguagem,
mas são também potencialmente transformadores dessa estruturação, assim como
os eventos sociais são tanto resultado quanto substrato das estruturas sociais.

103
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Os desenvolvimentos teóricos das ciências sociais acerca


do discurso impactaram, é claro, na compreensão do papel do
discurso nas práticas sociais, inclusive no âmbito da ciência
linguística. Há, entretanto, uma lacuna, nas Ciências Sociais,
entre essas teorizações do papel da linguagem na vida social
contemporânea e as ferramentas para a análise empírica desse
papel (CHOULIARAKI, 2005). A essa lacuna a ADC procura
responder, aliando o referencial teórico das ciências sociais
sobre o discurso às ferramentas analíticas que provêm da Lin-
guística. Isso exige, obviamente, um trabalho de articulação
e recontextualização interdisciplinar:

Para dar conta de sua relação com a teoria social


crítica em termos teóricos e da dimensão crítica
assumida em termos práticos – ou seja, para se con-
figurar uma prática teórica crítica nas fronteiras da
Linguística –, a ADC busca o conceito de práticas
sociais, um dos conceitos basilares da ADC, ao lado
do de discurso (RESENDE & RESENDE, 2006).
Para Fairclough (2000, p.167), a análise das práticas
sociais constitui um foco “teoricamente coerente e
metodologicamente efetivo” porque permite conec-
tar a análise das estruturas sociais à análise da (inter)
ação. (RESENDE, 2009, p. 15)

De acordo com Harvey (1992), toda prática social é


composta de momentos articulados e irredutíveis a um. Na
recontextualização para a ADC (CHOULIARAKI & FAIR-
CLOUGH, 1999), os momentos constituintes de uma prática
social são discurso e semiose, atividade material, relações
sociais e fenômeno mental (crenças, valores, desejos). Nessa
perspectiva, o discurso é considerado um momento da prática
social ao lado de outros momentos igualmente importantes –
e que, portanto, também devem ser privilegiados na análise,
pois o discurso é um elemento da prática social que constitui
outros elementos sociais assim como é informado por eles, em

104
Iran Ferreira de Melo (Org.)

uma relação dialética de articulação (LACLAU & MOUFFE,


2004; ver também RESENDE & RAMALHO, 2006).

Figura 02 – Prática social em ADC

Essa perspectiva ontológica mantém a irreditubilidade


dos momentos da prática: estão em relação de internalização,
mas não se podem reduzir um ao outro. Os componentes on-
tológicos do mundo social, nessa perspectiva, são estruturas e
ações sociais, práticas e eventos, relações sociais, identidades,
ideologias e discursos. Se os momentos constituintes das práti-
cas sociais são irredutíveis, então ideologias, relações sociais e
atividade material não podem ser reduzidas ao discurso, o que
tem implicações epistemológicas importantes (veja discussão
pormenorizada dessas implicações em RESENDE, 2009).
Considerar o discurso como um elemento de práticas
sociais implica, por exemplo, a necessidade de observar, nos
trabalhos de pesquisa, não só as relações entre os diferentes
momentos das práticas, mas também as relações entre práticas
contextualizadas e seus aspectos discursivos e não discursivos.
Isso significa que com a análise de textos isolados dificilmente
se pode lograr uma relação entre análise discursiva e crítica

105
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

social que responda a essa complexidade ontológica e à relação


interna entre linguagem e sociedade.
As práticas sociais são articuladas em redes organizadas
nas diversas áreas da vida social, e a articulação das práticas
em redes é um sistema aberto à mudança social (FAIRCLOU-
GH, 2000), já que as pressões pela continuidade são parte da
luta hegemônica, e toda hegemonia é um equilíbrio instável
(GRAMSCI, 1995). A relevância do conceito de hegemonia
em ADC advém de seu interesse em se constituir prática
teórica crítica capaz de investigar, por meio do discurso,
problemas sociais ligados ao poder, à dominação, à discrimi-
nação, às diferenças de acesso a bens materiais e simbólicos
na sociedade. Na próxima seção, o foco será a relação entre
discurso e hegemonia.

3. Discurso e hegemonia

Nessa recontextualização interdisciplinar, de acordo com


Fairclough (1997), duas relações podem ser definidas entre
discurso e hegemonia. Em função da dialética entre discurso
e sociedade, a hegemonia e a luta hegemônica influenciam o
momento discursivo de práticas assim como são conformadas
no/pelo discurso – hegemonias são produzidas, reproduzidas,
contestadas e transformadas também no discurso. E o discurso
pode ser entendido como uma esfera da hegemonia, pois hege-
monias dependem, em termos simbólicos, da universalização
de discursos que as tornem naturais e socialmente legitimadas
(RESENDE & RAMALHO, 2006).
Esse conceito de hegemonia, articulado ao de discurso
como elemento de práticas sociais, implica que, em termos
discursivos, a luta hegemônica seja percebida como:

[...] disputa pela criação/sustentação de um status


universal para determinadas representações particu-
lares – do mundo material, mental e social –, ou seja,

106
Iran Ferreira de Melo (Org.)

para certos discursos que podem ser internalizados


em modos de (inter)ação social e em modos de iden-
tificação (FAIRCLOUGH, 2003). Considerando-se
que o poder depende da conquista do consenso e
não apenas dos recursos para o uso da força (FOU-
CAULT, 1997), a ideologia figura como elemento
essencial para a sustentação de relações hegemônicas
em um dado contexto histórico. O conceito aberto de
hegemonia, recontextualizado de Gramsci, reforça
o papel da ideologia no estabelecimento e na ma-
nutenção de relações de dominação, uma vez que a
naturalização de práticas particulares é fundamental
para a permanência de articulações baseadas no
poder. (RESENDE, 2009, p. 16)

As relações interdisciplinares estabelecidas com as ciên-


cias sociais, na constituição do referencial teórico que alimenta
as diferentes versões de ADC, resultam na abordagem social
de textos, principal característica dos estudos críticos do dis-
curso. Um aspecto diferenciador dessas abordagens críticas ao
discurso é a articulação entre um referencial teórico oriundo de
teorizações da Ciência Social e as ferramentas desenvolvidas
pela ciência linguística para a análise de textos. Isso significa
que, em ADC, a crítica social constrói-se por meio de análise
da materialidade linguística em textos contextualizados em
práticas sociais específicas.
O objetivo é apontar os efeitos sociais de textos e os
efeitos das práticas sociais sobre a formulação de textos, por
meio de análise discursiva textualmente orientada. O mérito
de uma análise dessa natureza é oferecer suporte para análises
sociais fundamentadas em dados textuais, possibilitando uma
melhor compreensão de como a linguagem figura na vida
social contemporânea, em termos de seu funcionamento em
textos concretos. Isso pode ser de grande relevância se con-
siderarmos que as pesquisas sociais frequentemente lidam
com dados textuais, e nem sempre contam com arcabouços

107
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

estruturados para a análise desse tipo de dado. Assim, a relação


interdisciplinar entre estudos discursivos e ciências sociais é
de mão dupla.
Isso porque análises discursivas críticas permitem “iden-
tificar conexões entre escolhas linguísticas de atores sociais ou
grupos e os contextos sociais mais amplos nos quais os textos
analisados são formulados”, gerando conhecimento acerca das
relações entre discursos, identidades, relações sociais. Para
além disso, análises discursivas críticas podem gerar conhe-
cimento “acerca da utilização de estruturas linguísticas com
propósitos políticos, acerca da distribuição desigual do acesso
a elementos discursivos, acerca da relação entre os momentos
discursivos e não discursivos de práticas sociais específicas”
(RESENDE, 2009, p. 47).

4. Para terminar: aonde queremos chegar?

Uma questão sempre debatida quando se trata de ADC é


o alcance que podemos esperar desse esforço de investigação.
Podemos esperar lograr efeitos na transformação de estruturas
de poder, por meio da pesquisa acadêmica? Podemos manter
a esperança de que nossos trabalhos de investigação tenham
resultados práticos para além de nossa própria compreensão do
objeto de pesquisa? Se a resposta a essas questões for “não”,
todo o projeto da ADC como interdisciplina deixa de fazer
sentido. Daí decorre que a decisão por pesquisar no âmbito da
ADC é uma escolha política. Mas o que podemos fazer para
que essa resposta seja “sim”? Que posturas epistemológicas e
atitudes metodológicas estão a nosso alcance para que nossas
pesquisas de fato influenciem transformações na direção da
justiça social?
Penso que a constituição de grupos interinstitucionais de
pesquisadores/as com diferentes “origens acadêmicas” com-
partilhando interesses por problemas sociais particulares seja

108
Iran Ferreira de Melo (Org.)

um caminho. Desses grupos exige-se um comprometimento


no sentido de fazer chegarem os resultados dos projetos de
pesquisa articulados para além dos limites da academia. Pes-
quisas em ADC não são feitas para as estantes das bibliotecas,
nem são feitas para a satisfação pessoal de nossa curiosidade
como pesquisadores/as.
Particularmente, acredito no potencial da articulação da
ADC com a etnografia, posição que venho defendendo há al-
gum tempo. Pesquisas de campo engajadas são potencialmente
transformadoras de modos de compreensão da realidade social,
podendo resultar efeitos positivos para os/as participantes da
pesquisa, desde que se assumam pressupostos dialógicos na
condução da investigação. Por isso, acredito que pesquisas
com movimentos sociais que atuam em lutas por direitos e
por justiça social devam figurar no centro do escopo da ADC.
Além disso, a ADC tem sido utilizada com sucesso em
pesquisas críticas sobre as práticas pedagógicas, sobre as
relações institucionais em contextos diversos, sobre repre-
sentações discursivas de grupos específicos na mídia, sobre
discriminação contra grupos sociais particulares. Permanece
um desafio: a divulgação mais ampliada dos resultados dessas
pesquisas – muitas vezes nossos próprios discursos são pouco
democráticos, e parece ser necessário buscar modos menos
técnicos de textualização de nossas descobertas, de modo que
se tornem mais acessíveis a não linguistas.
Por todos esses desafios – o estabelecimento de relações
interdisciplinares de complexidade considerável, a abordagem
crítica e posicionada de problemas sociais muitas vezes per-
turbadores, a necessidade de contato com pesquisadores/as de
áreas diversas, a busca pela divulgação ampla de resultados
–, devo concordar com van Dijk na citação que usei como
epígrafe a este capítulo: sem dúvida, a Análise de Discurso
Crítica está longe de ser um empreendimento fácil. Nem por
isso deixa de ser um convite instigante.

109
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

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111
Iran Ferreira de Melo (Org.)

DEMOCRACIA Y SALUD EN CHILE


¿UTOPÍAS POR SIEMPRE?1
Leda Berardi
Universidad de Chile

1. Introducción

Puesto que en trabajos anteriores de análisis crítico del


discurso político he puesto en evidencia la distancia entre
el decir y el hacer gubernamental (BERARDI, 2009, 2005,
2003), he considerado importante analizar el discurso de la
ciudadanía acerca del sistema de salud por cuanto este se
constituye en el “espejo” que refleja la inconsecuencia de ese
otro discurso.
Esta investigación se origina a partir de los comentarios
constantes de un amplio sector de la ciudadanía relacionados
con las desigualdades en la calidad y equidad en el sistema
de atención de salud2 y corroboradas por la Fundación Terram
(2004).
Dicha Fundación sostiene que

el gran problema de la salud en Chile corresponde a las


profundas inequidades que recorren transversalmente a este
1 “Las utopías son destellos de la imaginación, aspiraciones casi inverosímiles que, sin
embargo, llevan en sí mismas el germen de lo posible. Una generación sin utopías
será siempre una generación atascada (aunque tenga la obsesión de la velocidad) e
inmóvil (aunque se agite sin cesar). La utopía no comulga con la religión del dinero,
con la mezquindad, ya que es, en esencia, una señal inequívocamente solidaria”
(Énfasis mío) Benedetti, en Claude (2007).
2 Ver “Participación ciudadana y derechos sociales en Chile” en M. Shiro, Erlich F.,
Bentivoglio P. (Eds.) 2009.

113
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

sistema. Existe una salud para ricos y otra para pobres. La eli-
minación del Fondo de Compensación de Riesgo del proyecto
original de la reforma a la salud es una clara señal que la soli-
daridad3 una vez más se aparta de las políticas públicas, y los
criterios de mercado en que cada cual vela por sus intereses se
imponen sin reflexión alguna a nivel país. (…) El componente
solidario del proyecto permitía un traspaso de los cotizantes
de Isapres (sector privado de salud) a Fonasa (sector público
de salud) de 18 mil millones de pesos4 y la oportunidad a nivel
país de que las personas con menores riesgos pudieran ayudar
a financiar la salud de las personas más riesgosas debido a su
avanzada edad, enfermedades crónicas o elevados niveles de
pobreza”. (Énfasis mío).
Por su parte, Claude et al. (2002, p. 4) señalan que “si
se considera una cifra más realista para medir la pobreza, en
base a las necesidades básicas de 131 mil pesos por persona
al mes5, el porcentaje de personas que no logra cubrir ade-
cuadamente sus necesidades ascendería a cerca del 80% de
la población del país” (énfasis mío).
La imposibilidad de gran parte de la ciudadanía de ac-
ceder de manera digna a un sistema de salud equitativo y de
calidad es un problema basado en necesidades por cuanto “el
acceso a servicios de atención de salud6 se relaciona con las
necesidades de salud de las poblaciones, y con las condiciones
para la utilización del sistema de salud”. (Superintendencia de
Salud, Departamento de Estudios y Desarrollo 2007, p. 121)
El acceso a los servicios de salud en función de las ne-
cesidades está determinado por factores individuales, comu-
nitarios y socio-culturales, y también por las características

3 Para un análisis de la solidaridad y la justicia sanitaria en el discurso de Alex Figue-


roa, ministro de salud durante el gobierno de Frei Ruiz-Tagle, y de Enrique Accorsi,
presidente del Colegio médico de Chile, consultar Berardi (2002).
4 Alrededor de U$ 31.578.174
5 Aproximadamente U$ 205
6 Los servicios de atención de salud se refieren a la prevención, promoción curación
y rehabilitación.

114
Iran Ferreira de Melo (Org.)

del sistema de salud, es decir, por la interacción entre los


individuos y sus necesidades de salud, y el sistema de salud.
De acuerdo al enfoque de determinantes de salud, es ne-
cesario actuar sobre el contexto y las condiciones que inciden
en la salud, como lo es la pobreza, con el fin de lograr cambios
significativos en el nivel de salud de la población.
Debido a los ingresos insatisfactorios de la mayor parte de
la población y los costos asociados a salud, esta se ve privada
de la posibilidad de poder optar y, por ende, de poder decidir
o participar en la elección de las prestaciones de salud.
Sobre la base de lo anteriormente expuesto, me propuse
realizar un análisis crítico del discurso de una muestra de ciu-
dadanos de la ciudad de Santiago, segmentada por nivel socio-
económico, género y edad7, con el fin de poner de manifiesto
las opiniones de los ciudadanos respecto del sistema de salud,
los determinantes sociales de la salud8 y las características de
la democracia existente en el país.
Para ello, se analizan los discursos en sus contextos
socio-culturales para develar los problemas arriba señalados
y las representaciones sociales asociadas9.

2. (Desigualdad en) salud y democracia participativa

En lo que se refiere al gasto del gobierno en salud como


porcentaje del PIB, aun cuando en el año 2001 Chile se ubicaba
en el lugar 99, con un 3,1%, entre un listado de 192 países
7 Las características de la muestra pueden verse en Berardi 2009.
8 El análisis de los determinantes sociales en salud constituye una variable fundamental
para proponer acciones en el ámbito de la calidad y equidad en salud. En el resumen
analítico “Alcanzar la equidad sanitaria actuando sobre los determinantes sociales
de la salud”, del informe final de la Comisión sobre Determinantes Sociales de la
Salud de la Organización Mundial de la Salud 2008, se señala que “los determinantes
estructurales y las condiciones de vida en su conjunto constituyen los determinantes
sociales de la salud, que son la causa de la mayor parte de las desigualdades sanitarias
entre los países y dentro de cada país” (Énfasis mío).
9 Fairclough (1999, p. 9) señala que “las prácticas discursivas de los problemas basados
en necesidades y las representaciones sociales (de los que ostentan el poder o de las
mayorías versus las minorías) no satisfacen adecuadamente las necesidades de las
personas”

115
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

– precedido por Argentina 5,1%, Uruguay 5,0%, Costa Rica


4,9%; Colombia 3,6% y Brasil 3,2% – es importante destacar
que sólo un 1,4% corresponde a aporte estatal, y la diferencia
proviene principalmente del 7% de las cotizaciones de las per-
sonas en Fonasa10. Dos tercios de la población, equivalente a
más de 10 millones de personas, se atendían, en ese entonces,
en el sistema público mientras que el 20%, correspondiente
a 3 millones de personas, lo hacían en las Isapres. El 80,4%
de las personas de 60 años y más se encontraban en Fonasa
(FUNDACIÓN TERRAM, 2004).
Aun cuando los discursos gubernamentales suelen aludir
a la participación ciudadana11, y en el Instructivo presidencial
sobre participación ciudadana del Presidente Lagos12 se señala
que “la participación es una cualidad indispensable dentro
de la democracia representativa” (RONCAGLIOLO, 2005,
p. 11; énfasis mío), para los fines de esta investigación sigo
la conceptualización de democracia participativa entregada
por Alguacil (2005) y por Fleury (2004).
Alguacil (2005, p. 2,4) plantea que esta “se basa en la
participación como un conjunto de procedimientos y procesos
relacionales donde los agentes13 entran en relación simétrica
y recíproca de comunicación, de cooperación y de correspon-
sabilidad (en la que) los ciudadanos (se) incorporan a las
decisiones públicas en estrategias de transformación social”.
(Énfasis mío).
10 El senador Mariano Ruiz Esquide, integrante de la Comisión de salud del Senado,
señala que “el sistema público (Fonasa) atiende casi el 70% de la población con la
mitad del financiamiento per cápita y ese 70% es mayoritariamente pobre, ancianos,
niños y de alta morbilidad. El sector privado (Isapre) , en tanto, con el doble del
financiamiento per cápita, atiende un universo mayoritariamente joven, de los más
altos ingresos del país, y de morbilidad menor, con el agravante de no asumir la
prevención para sus propios afiliados, que son de costo del sector público estatal”
(Diario La Segunda, 17 de octubre de 2003, en Fundación Terram, 2004).
11 Para un análisis de la participación ciudadana en Chile, consultar Berardi 2009.
12 Conjuntamente con la sustentación del Proyecto de ley sobre asociaciones y partici-
pación ciudadana en la gestión pública, sometido por el Presidente al Congreso el 8
de junio del 2004.
13 Para las características de los Modelos de gestión o administración municipal y los
roles de los agentes según dichos Modelos, consultar Alguacil, op. cit.:, p. 9, 10.

116
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Con respecto a lo público, Lechner (2002) señala que


este debe ser promovido por instituciones que potencien
la conversación social con el fin de debatir acuerdos y
disensos.
Una democracia participativa debe considerar no sólo
los derechos civiles, políticos y sociales-económicos de
la ciudadanía sino también los derechos de gestión de-
liberativa de las políticas públicas o derecho de quinta
generación (FLEURY, 2004). Ello implica la autoorgani-
zación de la ciudadanía sobre la base de sus necesidades
14
para que estas puedan insertarse en la agenda pública y
para que los ciudadanos puedan decidir sobre los asuntos
públicos mediante la “construcción de redes sociales que
(articulan) comunidades (para constituir) tejidos sociales
que participan en la toma de decisiones” (RODRÍGUEZ y
BELLO, 2001, p.14).
La necesidad de participación, denominada autonomía
crítica por Doyal y Gough (1994)15, es considerada la más
relevante por cuanto “interviene directa y transversalmente
optimizando el acceso a la satisfacción de las demás necesi-
dades” (ALGUACILOP.cit.:, p. 3) como las de subsistencia,
afecto, libertad e identidad, entre las mencionadas por Elizal-
de, Hopenhayn y Max Nef.
En el contexto del modelo socio-económico neoliberal
– implementado en el país a fines de la década de los 70
por la dictadura militar – en el que Chile ocupa el lugar 11
entre los 12 países con peores distribuciones del ingreso
a nivel mundial con un 57,5, de acuerdo al coeficiente de
Gini –16, se propende a destruir las memorias históricas y
colectivas, fragmentar y deshistorizar la sociedad, y dester-
14 Elizalde A., M. Hopenhayn y M. Max Nef en Alguacil, op.cit., conciben el sistema
de necesidades como la combinación de categorías axiológicas, entre las que se
encuentran la participación, con categorías existenciales como ser y tener entre otras.
15 La autonomía crítica incluye el “derecho a comunicar, proponer, disentir, decidir
y compartir” (ALGUACIL op. cit.:, p. 3).
16 Informe sobre Desarrollo Humano PNUD, 2003

117
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

ritorializar las comunidades locales, fenómenos que, según


Lechner, provocan sentimientos de inseguridad y fomentan
desafección hacia la democracia. Debido a la dificultad de
“construir un ‘sentido común’17 capaz de integrar la diversi-
dad social, (la democracia) llega a ser menos significativa
en la experiencia subjetiva de los ciudadanos” (LECHNER,
op. cit.:, p. 19) (Énfasis mío).
En lo concerniente a las memorias históricas y colectivas,
Lechner agrega que el proceso de transición a la democracia no
ha fomentado en los ciudadanos la elaboración de un sentido
común que les permita percibirse como parte de un sujeto
colectivo “y visualizar su biografía personal como parte de
una trayectoria histórica” (LECHNER, op. cit.:, p. 8). Esto
ha obstaculizado la construcción de un “nosotros los chilenos”
y “nosotros los ciudadanos”.
El sólo hecho de que Santiago sea la ciudad donde más
se trabaja en el mundo con 2.244 horas anuales promedio
(CLAUDE, 2007) – lo que no redunda en una productividad
equivalente – es un claro indicador de lo afirmado por Le-
chner.
Lo anterior se enmarca en el 4,6% de rigidez laboral
ostentado por Chile, en contraste con el 22,8% de Colombia,
a nivel latinoamericano (CLAUDE, op.cit.).
Los siguientes indicadores de precariedad en el mercado
laboral chileno entregados por Claude (op.cit.) refuerzan lo
señalado anteriormente: el 70% de los trabajadores con jor-
nada parcial no cotiza en el sistema provisional; el 76,6% de
la fuerza de trabajo no ha terminado la enseñanza secundaria
y el 72% es semi-calificada o no calificada; el 34,6% de los
empleos temporales generan ingresos menores de U$80.000;
el 52% de las mujeres del quintil más pobre que trabajan
no tiene ninguna calificación y el 27% lo hace en servicio
doméstico.
17 Derivado de la exclusión del bienestar económico, de las redes sociales y de una
comunidad de sentidos.

118
Iran Ferreira de Melo (Org.)

3. Antecedentes teóricos y metodológicos

Sobre la base de los objetivos y del corpus de esta inves-


tigación, se recurrió a Bolívar (1995) para la segmentación
de los textos en unidades de análisis; Brown y Yule (1983)
y van Dijk (1984) para la conceptualización de los tópicos;
Fairclough (1999) para las representaciones sociales acerca
del sistema de salud, de los determinantes sociales de la salud
y de la democracia; Kaplan y Weber (1995) para las matrices
de recolección y análisis de datos; Lakoff y Johnson (1995)
y Wodak, de Cillia, Reisigl y Liebhart (1999) para la clasifi-
cación de las metonimias; y Chilton y Schäffner (2000) para
los verbos del campo semántico del sentir.

Categorias de analisis

Las categorías de análisis que se presentan a continuación


permitieron develar e interpretar las opiniones de los ciuda-
danos concernientes al sistema de salud, y los determinantes
sociales de la salud, y correlacionarlas con las características
de la democracia chilena durante el gobierno del presidente
Lagos.

3.1.1 Las metonimias

Son los medios linguísticos de mayor recurrencia en los


discursos de los ciudadanos para referirse a la (in)satisfacción
respecto del sistema de salud. Marchese y Forradellas (1989,
p. 262) las definen como “figuras de transferencia semántica en
las [que se sustituye] un término por otro que presenta, con el
primero, una relación de contigüidad”. Debido a que las metoni-
mias no especifican a los actores involucrados en las situaciones
y acciones aludidas por los ciudadanos, Wodak et al. (1999, p.
48) las consideran “abstracciones de actores concretos”.

119
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Para la clasificación de las metonimias utilizadas en este


trabajo, seguimos a a Lakoff y Johnson (1995) y a Wodak
et al. (1999).

3.1.2 Verbos del campo semántico del “sentir”

Los verbos del campo semántico del sentir se refieren


a los sentimientos explícitos e implícitos de los ciudadanos
respecto del sistema de salud, de los determinantes sociales
de la salud y de las particularidades distintivas de la sociedad
chilena.

3.1.3 Los tópicos

Los tópicos corresponden a “aquello de lo que se habla”


(BROWN y YULE 1983; VAN DIJK 1984, p. 125). Una
vez identificados los tópicos utilizados por los integrantes
de los tres segmentos sociales para referirse a los temas an-
teriormente referidos, se vincularán con los sentimientos de
ciudadanos al respecto.

Corpus

El corpus corresponde a los discursos transcritos de tres


grupos de discusión de ciudadanos de Santiago, segmentados
por nivel socio-económico, género y edad de los participantes.
Un grupo estuvo constituido por seis adultos de 35 y 50
años de edad, pertenecientes al estrato socioeconómico bajo
o medio bajo, integrado por hombres trabajadores, mujeres
dueñas de casa y mujeres que trabajan fuera del hogar; otro,
por un grupo mixto de cuatro adultos entre 28 y 35 años de
edad, pertenecientes al nivel socioeconómico medio; y otro,
por un grupo mixto de cinco adultos entre 28 y 35 años del
nivel/segmento socioeconómico medio alto y alto

120
Iran Ferreira de Melo (Org.)

3.3. Procedimientos

Para recolectar y analizar los datos, se construyeron tres


matrices de seis columnas, adaptadas de Kaplan y Weber
(1995), con las siguientes secciones:

i. unidad (párrafo semántico)18;


ii. tópico; iii. metonimia;
iv. verbos del campo semántico del sentir; v. señales
linguísticas que se refieren a los indicadores de las categorías
de análisis; y vi. comentarios.

4. Análisis e interpretación de los datos

4.1. Metonimias

Las metonimias más utilizadas por los integrantes de los tres


grupos socio-económicos son las denominadas una institución
por la gente o representante responsable. De acuerdo a Lakoff y
Johnson (1995:73), con estas metonimias se utiliza “una entidad
para referirse a otra que está relacionada con ella”. Los ciudada-
nos aluden de manera abstracta a las instituciones y a los actores
responsables de determinadas acciones y situaciones, es decir, no
se menciona a los representantes responsable de las decisiones
atingentes a la institución (WODAK et al., op. cit.).

4.1.1. La metonimia “Una institución por los represen-


tantes responsables”

A. Segmento socio-económico bajo y medio bajo:

(1) La salud está mal […] pa’ l pobre.


(2) Uno p’al consultorio22 tiene que irse a […] las 5
de la mañana […] y después llega a la farmacia, no

18 Ver (BOLÍVAR, 1995)

121
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

hay remedios, y si pide hora te dan pa’ 3 días más


[…]. Yo creo que la salud es mala […] uno tiene que
esperar hora y hora y hora.
(3) La salud es cara.
(4) El sistema público de salud está malo, esta
saturado, porque no dan abasto los profesionales,
medicamentos no hay, los remedios son caros, no
están al alcance de tu bolsillo.

Como se observa en los ejemplos, aun cuando las meto-


nimias aluden al gobierno y a las instituciones asociadas, no
se alude a las personas o representantes responsables de las
situaciones mencionadas.
Los tópicos asociados a las metonimias muestran de una
apreciación negativa de las políticas públicas en salud.
Las afirmaciones (1), (3) y (4) dan cuenta de los determi-
nantes sociales de la salud (los remedios son caros, no están
al alcance de tu bolsillo; la salud es cara), los que inciden
en el estado de salud de este nivel social.

B. Segmento socio-económico medio

(5) El sistema está […] tan fácil para ciertos sectores


y tan difícil para otros.
(6) Los problemas que hay con la política, […] la
religión19, todo pasando por una crisis, en el fondo
deja a las personas con un grado de incertidumbre,
no sabemos ni siquiera dónde estamos […] , la salud,
o sea, todo en crisis, en el fondo te lleva a que tú
también te encuentres en crisis.
(7) Es un país con tremendas desigualdades […] en
términos de acceso a la salud, desigualdades que
están generando un montón de disgustos de la gente.
(8) Yo creo que nos vendieron la pomá20, de que
en estos últimos gobiernos se iba más o menos a
equilibrar y yo veo que no, creo que se ha continu-
19 Se refiere a los casos públicos de pedofilia por parte de miembros de la Iglesia.
20 Vender la pomada significa “engañar”

122
Iran Ferreira de Melo (Org.)

ado con un modelo que aún […] sigue ampliando


desigualdades.

Las opiniones de este estrato social no se diferencian del


anterior debido a que la muestra está estratificada según los
parámetros oficiales y no de acuerdo al umbral mínimo de
satisfacción y a la línea de la dignidad (CLAUDE et al. 2002;
LARRAÍN 2002).21

C. Segmento socio-económico medio alto y alto

(9) No podemos esperar que las políticas públicas


nos vayan guiando, somos nosotros.
(10) Son las cúpulas las que deciden acá […] tene-
mos todos que aguantar sí o sí.
(11) Yo creo que las políticas sociales son una y otra
cosa lo cotidiano.
(12) Es terrible la salud.

Aun cuando los integrantes de este segmento no tienen


problemas atingentes al acceso y a la calidad de la atención
recibida en salud, sus juicios de valor al respecto conciernen
a la realidad de los otros niveles socio-económicos.
La apelación a la participación ciudadana (ejemplo 9)
aparece como una aspiración a emprender acciones desde la
ciudadanía.

4.1.2. La metonimia El todo por algunos integrantes

Esta metonimia es simultáneamente una sinécdoque


generalizante en la que se utiliza una expresión semántica-
mente más amplia (wider), en lugar de una menos incluyente
(narrower) (WODAK et al. 1999, p. 44).

21 Ambos conceptos aparecen definidos en (BERARDI, 2009)

123
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

A. Segmento socio-económico bajo y medio-bajo

(13) A la gente un poquito más baja que uno, o sea


la sociedad como que la discrimina.
(14) Acá en Chile se bota mucha plata en panfletos
en todas esas cuestiones, cuando empiezan con […]
las campañas (políticas).
(15) En los consultorios (…) a la gente de la tercera
edad, yo creo que a ninguna persona le gusta que
(…) todo el mundo las tratan mal, que espérate y
por qué no te levantaste mas temprano.

En estos ejemplos se pone en evidencia el carácter gene-


ralizante de esta figura retórica por cuanto no se especifica a
los sujetos o instituciones responsables de las acciones men-
cionadas. Es así como se hace referencia a toda la sociedad
(13), todo el país (14) y a todos los consultorios y las personas
que trabajan en ellos (15).
Los integrantes de este nivel no se incluyen entre los
discriminados por los integrantes de los otros niveles socioe-
conómicos, lo que evidencia enajenación respecto de la propia
clase social por cuanto no se conciben como pertenecientes al
segmento socio-económico al que pertenecen.

B. Segmento socio-económico medio

(16) (La gente tiene) miedo que pueda perder la


pega22 si reclamas por ganar 200 lucas)23.
(17) (Me siento súper) engañado por este gobierno
(18) El sistema está (…) tan fácil para ciertos secto-
res y tan difícil para otros”

Una vez más, se observa generalización por cuanto no se


discrimina entre segmentos sociales (16) y entre los represen-
tantes de las instituciones responsables de la planificación e
22 Trabajo.
23 200 lucas equivalen a $200.000 = US$ 321, aproximadamente.

124
Iran Ferreira de Melo (Org.)

implementación de las políticas públicas (17). En el ejemplo


18 no sólo no se especifica quiénes constituyen el sistema,
sino que además no se explicita cuáles son los grupos sociales
contrastados.

C. Segmento socio-económico medio alto y alto

(19) Desde cierta perspectiva me gusta ser chileno y


desde otras como que a veces me avergüenzo, […]
hay cosas que me molestan de Chile (como) la forma
de ser de los chilenos […], la hipocresía y más que
eso el doble estándar en materias morales.
(20) Aquí en Chile no es bueno llegar a la tercera edad.
(21) Si te enfermai24, mejor no falto porque puedo
perder [el trabajo]
(22) La gente que empieza a trabajar a los 18 años,
[…] les interesa sobrevivir […] su problema es
sobrevivir y trabajar.
(23) (El tema de la edad fértil de la mujer para las
empresas25) es un tema que tenemos que asumir
como sociedad.
(24) La sociedad en estos momentos es demasiado
dura para que uno sólo (de la pareja) esté trabajando

Al igual que en los otros estratos sociales, se critica el


modus operandi de la sociedad chilena y se generaliza respecto
de los tópicos aludidos. Es así como en (20) no se discrimina
entre los distintos niveles socio-económicos.
Por otra parte, la ausencia de cohesión social produce
paralización (ejemplo 21) en lo concerniente a la posibilidad
de generar acciones sociales tendientes a modificar o paliar
situaciones injustas. Sólo en dos ocasiones (23) y (9) se apela
a la participación social. La identificación con un nosotros los
ciudadanos o nosotros los chilenos (ejemplo 19) se obstaculiza
24 La expresión remite a todas las personas.
25 Las empresas privadas tienen como política no contratar a mujeres que estén en
condiciones de procrear con el fin de no pagar reemplazantes durante las licencias
médicas de pre y post natal.

125
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

al no percibirse como parte de un sujeto colectivo que le per-


mita internalizar un sentido común (LECHNER 2002). Esto
se condice con los resultados de la Encuesta Bicentenario
UC Adimark del año 2006, en la que el 82,7% de la muestra
de ciudadanos le asigna un puntaje de 4.6, en una escala de 1
al 7 a la pregunta ¿Cuán orgulloso se siente de ser chileno?
Respecto de los determinantes sociales de la salud, los
problemas sociales mencionados en los ejemplos (20) a (24)
revelan la indefensión y posible incidencia en la salud de la
ciudadanía.

4.1.3. La metonimia “País por persona”

Wodak et al. (1999) señalan que esta metonimia se uti-


liza para no poner en evidencia a los actores responsables de
determinadas acciones. Se caracteriza por la referencia a un
país, o a la palabra país, acompañado de un verbo que describe
una conducta humana.

A. Segmento socio-económico bajo y medio-bajo

(25) El país está mal.

La afirmación constituye una generalización al no incluir


al sector más rico de la población, concentrado en 16 grupos
económicos.

B. Segmento socio-económico medio

(26) Un sueño […] sería que este país fuera más


tolerante y que tuviera más memoria..
(27) Chile […] no está bien, pero está menos mal
que otros países de Latinoamérica.
(28) Me siento en un país que me ha estado min-
tiendo.

126
Iran Ferreira de Melo (Org.)

(29) El país está como las pelotas.26


(30) Estamos en un país discriminador.

Nuevamente, se emiten juicios negativos acerca del país


y de las instituciones. Además, se generaliza al incluir a todos
los segmentos sociales en una imagen común (el país), omiti-
éndose, así, las diferencias generadas, mantenidas y crecientes
del modelo económico.

C. Segmento socio-económico medio alto y alto

(32) Yo me siento chileno (pero) mi descontento es


el siguiente que yo como ciudadano no tengo dinero,
no puedo pagar mis estudios, si yo no puedo pagarme
cuando me quiebro un pie, si yo no tengo dinero no
puedo tomar la micro27 todos los días, entonces el
ser chileno no creo que es te guste la cueca28 o no,
[…] creo que el ser chileno es […] empezar a ser un
poco más justo, porque Chile realmente es injusto.
(33) Desde cierta perspectiva me gusta ser chileno y
desde otras como que a veces me avergüenzo, […]
hay cosas que me molestan de Chile (como) la forma
de ser de los chilenos.

Una vez más, el juicio de valor concerniente a la injusticia


(32) y a Chile (33) incluye a todos los chilenos.
En el ejemplo (32), los determinantes sociales aludidos
(ausencia de un trabajo que genere ingresos dignos o situacio-
nes de cesantía) se enmarcan en el contexto de la distribución
del ingreso a nivel del país, en el que la brecha económica
entre los sectores más ricos y los más pobres es cada vez más
amplia.

26 Término informal que significa ‘muy mal’.


27 Autobús.
28 Baile típico chileno.

127
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

5.2. Verbos del campo semántico del sentir y tópicos

5.2.1. En el discurso de ciudadanos de nivel socio-econó-


mico bajo y medio bajo

(34) Como mi marido es jubilado, el descuento es


por FONASA. De qué me ha valido a mí; desde hace
como 3 meses no me he podido hacer los exámenes
porque son carísimos y con una pensión de 120 mil
pesos, dígame Ud. Antes de hacerme esos exámenes
prefiero comprarle los cuadernos a mi hijo, los zapa-
tos para el colegio y he ido atrasando mi operación,
porque yo tengo una hernia y me tengo que operar
y no he podido.
(35) (…) Uno p’al consultorio tiene que irse a (…)
las 5 de la mañana (…) y después llega a la farmacia
no hay remedios y si pide hora te dan pa 3 días más
(…). Yo creo que la salud es mala (…) uno tiene
que esperar hora y hora y hora.
(36) Yo, a Dios gracia, tengo atención gratuita,
porque tengo una tarjeta de atención y yo estoy en
un programa que me están arreglando la dentadura,
entonces, por ese lado tengo un beneficio, pero un
beneficio que tengo que estar a las 6, 6 y media de
la mañana para que me puedan atender, sacando
hora, son costos, grandes costos para poder tener
una buena salud
(37) En los consultorios (…) a la gente de la tercera
edad, yo creo que a ninguna persona le gusta que
(…) todo el mundo las tratan mal
(38) A mi esposo lo mandaron a hacer un examen a
la próstata, pero tiene que tener 3000 pesos29 y hace
2 meses, y no se lo ha podido hacer”.
(39) Yo creo que la gente en general está estresada,
muy estresada, yo creo hay muy poco tiempo para uno
mismo, está muchos menos tolerante, hay una cosa
de exigirse, ser mejor, ganar más, etc; entonces todo
eso te lleva a tener una sociedad no muy agradable”

29 Aproximadamente U$ 4,7.

128
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Los sentimientos de este segmento social evidencian


impotencia, molestia y disgusto respecto de los tópicos aso-
ciados, a saber, pensión precaria y atención médica deficitaria,
los que, a su vez, se vinculan con los determinantes sociales
que afectan la salud (ejemplos 34 y 38).

5.2.2. En el discurso de ciudadanos de nivel socio-econó-


mico medio

(40) (…) Es un país con tremendas desigualdades


(…) en términos de educación (…) de acceso a la
salud, desigualdades que están generando un montón
de disgustos de la gente”.
(41) “Yo siento que pasa por un tema de falta de
oportunidades (…) Un país con desigualdades que
de repente provoca mucha rabia”
( 42 ) (Me siento súper) engañado por este gobierno.
(43) Los problemas que hay con la política, […] la
religión, todo pasando por una crisis, en el fondo
deja a las personas con un grado de incertidumbre,
no sabemos ni siquiera dónde estamos
( 44) (La gente tiene) miedo que pueda perder la
pega si reclamas por ganar 200 lucas.
(45) Un sueño […] sería que este país fuera más
tolerante y que tuviera más memoria
(46 Me siento en un país que me ha estado min-
tiendo.
(47 Estamos en un país discriminador.
(48 La persona que se atiende en un hospital (…) se
muere en el pasillo antes que lo atiendan”

Roberto Pizarro, ex ministro de Mideplan, en un artículo


llamado “Desigualdad: El verdadero riesgo país”, publicado
en la última edición de “El Periodista”, destaca la pésima
distribución del ingreso ostentada por Chile y señala que la
concentración patrimonial es la fuente primaria de tales grados
de desigualdad. Es así como “16 grupos económicos explican

129
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

el 80% del producto nacional” ( Fundación Terram 2004) (En-


fasis mío). Los determinantes sociales de la salud derivados
de esta situación y expresados por este grupo social generan
disgusto (40), rabia (41) y (46), enojo (42), incertidumbre (43),
miedo (44), anhelo de tolerancia (45) e impotencia (47) y (48).
Lo referido por los integrantes de este de este nivel es
coincidente con lo expresado por la Organización para la Coo-
peración y el Desarrollo Económico (OCDE), quien señala que
la clase media chilena se caracteriza por tener una de las peores
distribuciones de ingreso en latinoamérica (CLAUDE, op.cit.).30

5.2.3. En el discurso de ciudadanos de nivel socio-econó-


mico medio y medio alto

(49) (…) Yo estoy trabajando, pero no estoy contratada,


tampoco tengo sistema de salud (…) Si estay traba-
jando y tenis que ir a un consultorio y tenis que pedir
permiso, podis correr el riesgo de perder la pega (…).
Si te enfermai, mejor no falto, porque puedo perder
(50) Mi descontento es el siguiente: que yo como
ciudadano no tengo dinero, no puedo pagar mis estu-
dios, si yo no puedo pagarme cuando me quiebro un
pie, si yo no tengo dinero no puedo tomar la micro
todos los días, entonces (…) creo que el ser chileno
es (…) empezar a ser un poco más justo, porque
Chile realmente es injusto
(51) Es terrible (…) la salud (…). La peor maldición
es ser pobre, viejo, porque tiene que ver con segu-
ridad social, con salud (…). Te enfermaste y tenís
que ir a un consultorio a hacer una cola de 4 horas.
En una interconsulta pueden pasar meses pa que te
vea el especialista
30 Paradojalmente, los 30 países miembros de la OCDE decidieron sumar a Chile al club de
las naciones más desarrolladas del mundo, invitación que fue confirmada por el Gobierno
en enero del 2010. A este respecto, Andrés Velasco, Ministro de economía, afirmó que esto
“ es un reconocimiento para Chile (por cuanto) es una asociación de países democráticos,
con las instituciones más fuertes, los estados más transparentes y los mejores instrumentos
para luchar contra la pobreza y la desigualdad” (Radio Bio Bio, 15 diciembre 2009).

130
Iran Ferreira de Melo (Org.)

(52) En algunos trabajos te piden el test de embarazo


antes de contratarte, es imperdonable
(53) (…) A la mujer en Chile no se le respeta, se
le paga menos, (…) se le echa cuando está con
güagüa31, (…) yo creo que estamos a años luz de
ser iguales.

Estos sentires expresan miedo (49), impotencia (51), rabia


(52) y también discriminación hacia la mujer (53) y respaldan
lo que Lechner denomina falta de identificación emocional con
el desempeño económico del país lo que, a su vez, incide en
una imagen social de perdedor respecto del sistema económico.
En la encuesta del PNUD del 2002, 7 de cada 10 entrevistados
declaran sentir enojo, inseguridad o pérdida en relación al sis-
tema económico. Esta afirmación es refrendada por el diario
Estrategia del 5 de junio de 2005, donde se señala que, según
la encuesta Casen32, sólo un 16% tiene un ingreso familiar de
820 mil pesos mensuales hacia arriba 33 (CLAUDE, op.cit.).

Conclusões

El análisis de las metonimias revela que los ciudadanos


de los tres niveles socio-económicos no responsabilizan ni a
las instituciones ni a sus representantes respecto de la toma de
decisiones y la puesta en práctica de las políticas públicas. Si-
guiendo a Lechner (2002, p. 11), si las desigualdades sociales34
inciden en la ausencia de un nosotros, los ciudadanos – deriva-
do de una democracia cuya calidad expresaría “su inoperancia

31 Bebé.
32 Encuesta de caracterización socio-económica del año 2004.
33 Aproximadamente U$ 1370.
34 El 80% de la población (12 millones de personas) no lograba cubrir adecuadamente
sus necesidades en el año 2002. Estos datos corresponden al umbral mínimo de
satisfacción planteado por Claude et al. (2002:4) el que sólo incluye la satisfacción
de las necesidades en el límite inferior: “No considera acceso ni a la educación, ni a
la salud privada, ni a las vacaciones, ni a la adquisición de algún regalo para Navidad
o cumpleaños. Los precios elegidos siempre correspondieron al promedio más bajo
entregado por el Instituto Nacional de Estadísticas”

131
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

como imaginario colectivo en el cual pueda reconocerse la


sociedad” – la gran mayoría de la población estaría expresando
una ausencia de interlocutores válidos. Al no sentirse parte de
una nación, el imaginario político de los chilenos “les inhibe de
participar en un ejercicio colectivo de ciudadanía” por cuanto,
al tener una visión consumista de la democracia, no “estarían
identificando la democracia con un Nosotros”35 .
En lo concerniente a los tópicos aludidos por los in-
tegrantes de los tres segmentos sociales y los sentimientos
asociados, se observa la existencia de una democracia de baja
intensidad, caracterizada por ausencia de participación ciuda-
dana en lo atingente a las políticas públicas y una satisfacción
deficitaria de las necesidades o derechos sociales, no sólo en
lo concerniente a la salud, sino también a los otros derechos
como la educación y el trabajo. A este respecto, la Comisión
sobre Determinantes Sociales de la Salud de la Organización
Mundial de la Salud 2008, señala que
la mala salud de los pobres, el gradiente social de salud
dentro de los países y las grandes desigualdades sanitarias
entre los países están provocadas por una distribución desi-
gual, a nivel mundial y nacional, del poder, los ingresos, los
bienes y los servicios, y por las consiguientes injusticias que
afectan a las condiciones de vida de la población de forma
inmediata y visible (acceso a atención sanitaria, escolari-
zación, educación, condiciones de trabajo y tiempo libre,
vivienda) y a la posibilidad de tener una vida próspera.
Esa distribución desigual de experiencias perjudiciales
para la salud (…) es (…) el resultado de una nefasta combi-
nación de políticas y programas sociales deficientes, arreglos
económicos injustos y una mala gestión política (Énfasis mío).
En el Panel “Perspectivas de la Participación Ciudadana
en Chile a partir de la Implementación de la Ley, o ¿Qué le
35 La afirmación de Lechner se basa en el hecho de que la mitad de los chilenos que
responde la encuesta de Desarrollo humano imagina la democracia como “un super-
mercado donde cada uno saca lo que necesita”.

132
Iran Ferreira de Melo (Org.)

corresponde a Quien?” realizado en el Instituto de Asuntos


Públicos (INAP) de la Universidad de Chile, en octubre de
2004, Urzúa planteó que es importante avanzar hacia una de-
mocracia participativa mediante el establecimiento de vínculos
entre la sociedad civil, el mundo de las ONGs, fundaciones y
corporaciones y el mundo académico.
El planteamiento fue respaldado por la diputada Tohá
quien reconoció que la actual democracia es débil y carente
de participación.
Los testimonios que se presentan a continuación son sólo
una ínfima muestra de las condiciones laborales en el Chile
actual que acaba de incorporarse a la OCDE.36
En la empresa laboran unos 250 trabajadores. El Sindicato
tiene afiliados a 28. Contando a todos los que han despedido
y los que han negociado con la empresa para irse, seríamos
alrededor de 60. Hemos sido perseguidos y amedrentados por
nuestro empleador.
(…) Si no hubiera sido por el sindicato aún andaríamos
metidos en el barro del agua del baño. Los excusados no
servían. De seis lavamanos sólo dos funcionan. Las duchas
estaban llenas de hongos y tapadas. El patrón bañaba a
sus perros en los baños de los trabajadores sin pensar en
las enfermedades que nos podía causar.
(…) Por el miedo a perder el trabajo, cuando recién
llegué, trabajaba desde las ocho y media de la mañana de un
lunes, y seguía toda la noche, y el martes trabajábamos hasta
las seis de la tarde, encerrados. El guardia iba a abrirnos
la puerta en la mañana. Eso sucedió por mucho tiempo.
36 En términos de empleo, la OCDE recomienda para Chile: “Fortalecer la presencia de
interlocutores sociales en la fijación de salarios y condiciones de trabajo, lo que en la
práctica se traduce en fortalecer los sindicatos; Aplicar la nueva ley de subcontratación.
Ampliar el seguro de desempleo y disminuir los costos de despidos. Invertir más en
servicios de empleo y formación para el trabajo”. Promover el empleo de los jóvenes y
fomentar sistemas de aprendizaje. Por ejemplo, haciendo que bajo los 25 años se les pueda
pagar menos que el sueldo mínimo”. Por otra parte, cuestionó la baja productividad de la
fuerza laboral, la rigidez del sistema de contratación y despidos, y la desigual distribución
del ingreso. (Biblioteca del Congreso nacional de Chile, 5 de junio de 2009)

133
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Ahora los trabajadores no están encerrados, pueden salir,


pero los turnos siguen igual.
(…) Un día un obrero se rompió un pie. Le dijo que se
fuera caminando a la Mutual, pero a su perro lo atropella-
ron el mismo día y lo llevó a una Clínica en ambulancia…
Le importó más un perro que un trabajador.
(Ana Luisa Miranda, presidenta del sindicato de Textil
Talinay donde fabrican pantalones --unos de los más caros
del mercado-- pantalones, casacas y ropa de vestir de lona.
Mandan a hacer cinturones, carteras, bolsos y zapatillas a
China. Énfasis mío). (marzo 2007)
La mayoría de las trabajadoras son técnicas en párvulos,
atienden niños en extrema pobreza y riesgo social, a lo largo
de todo Chile. Nuestro horario es de 8:30 de la mañana hasta
las 17:30. Los niños asisten hasta las 16:30 y hay una 'exten-
sión horaria' para un 10 por ciento, más o menos. El sueldo
promedio es de 180.000 pesos37. Quienes ganan menos son
los de 'extensión horaria' que tiene una remuneración de
alrededor de 70.000 pesos38.
En el año 2002 nos movilizamos en tres ocasiones (para
lograr un aumento de sueldo). (…) Logramos hacer una nego-
ciación por 4 años. Obtuvimos para todas las funcionarias
un reajuste que fue desde un 9 a un 12,2 por ciento. Pero
para los bajos sueldos que teníamos en ese entonces, en la
práctica la plata líquida que llegó a nuestros bolsillos no fue
muy significativa. (Rosa Hueraleo, presidenta del Sindicato Nº
1 de la Fundación Integra, que posee unos 1.200 afiliados. En
mayo del 2007, trabajaban unas 10.000 personas. (Énfasis mío ).39

37 U$ 344.
38 U$ 133.
39 La Fundación Integra es una entidad privada, sin fines de lucro. Es una red nacional
de recursos humanos e infraestructura que trabaja en favor de la infancia. Cuenta
con más de 12 mil trabajadoras que educan y alimentan a 80.000 niños y niñas en
todo el país en sus 1.031 jardines infantiles y salas cuna. Forma parte de la Red de
Fundaciones de la Presidencia de la República.

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Iran Ferreira de Melo (Org.)

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VAN DIJK, T. Prejudice in discourse. Amsterdam: John Benjamins,
1984.
WODAK, R.; CILLIA, R.; REISIGL, M.; LIEBHART, Y. K.
The discursive construction of national identity. Edinburgh:
Edinburgh University Press, 1999.

137
Iran Ferreira de Melo (Org.)

GÊNEROS DISCURSIVOS E IDEOLOGIA:


ELEMENTOS PARA ESTUDOS CRÍTICOS
Viviane Ramalho
Universidade de Brasília

1. Apresentação

Os gêneros do discurso têm recebido especial atenção


nos estudos linguísticos, que, de modo crescente, inclinam-se
para o reconhecimento da linguagem como interação social,
ultrapassando as noções de língua como “sistema de regras”
ou como “instrumento de comunicação” (MARCUSCHI,
2008). São muitas as abordagens científicas dos gêneros
do discurso, a exemplo da Escola de Sidney, fundamentada
na Linguística Sistêmico-Funcional; da Escola de Genebra,
baseada no interacionismo sociodiscursivo; da Escola norte-
americana – conhecida como Nova Retórica (New Rhetoric) –,
fundamentada numa compreensão mais cultural e sociológica
dos gêneros, dentre outras. Todas partem dos ensinamentos de
Bakhtin (1997[1953]), e se diferenciam, sobretudo, no foco
de atenção mais ou menos voltado para a “forma textual” ou
para a “ação social”, conforme detalharemos adiante.
A Análise de Discurso Crítica (ADC) de vertente britânica
(CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999; FAIRCLOUGH,
2003) – uma abordagem transdisciplinar para estudos críticos
da linguagem como prática social – propõe, em diálogo com
a Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), uma compreensão

139
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

mais crítica dos gêneros discursivos relacionando-os a ques-


tões de poder. O objetivo deste capítulo é refletir sobre essa
concepção de gênero discursivo como forma de poder, com
potencial para disseminar sentidos a serviço de relações de do-
minação (THOMPSON, 2002a). Para tanto, nos apoiamos em
exemplos trazidos da tese “Discurso e ideologia na propaganda
de medicamentos: um estudo crítico sobre mudanças sociais
e discursivas” (RAMALHO, 2008), em que verificamos, com
base na compreensão de gêneros da ADC britânica, a emer-
gência de novas “tecnologias discursivas” (FAIRCLOUGH,
1989, 2001) na propaganda de medicamentos, baseadas no
que denominamos “metáfora acional”. Isto é, em maneiras
não congruentes de (inter-)agir pela linguagem que podem,
em determinadas práticas sociais, operar ideologicamente
ocultando, negando ou obscurecendo relações de dominação .
Para levar a cabo tal objetivo, organizamos o capítulo
em quatro seções: na primeira, retomamos sucintamente al-
guns conceitos centrais de Bakhtin (1997[1953]), já bastante
conhecidos, para a compreensão dos gêneros do discurso.
Também comentamos brevemente algumas das abordagens
contemporâneas de estudos de gêneros, sobretudo, a Escola
de Sidney, baseada na teoria linguística que subsidia a ADC
britânica, e a Nova Retórica, que tem informado muitas pes-
quisas brasileiras e pode estabelecer um diálogo produtivo com
a ADC. Na segunda seção, discutimos a abordagem teórica
dos gêneros discursivos em ADC, contrastando brevemente
com princípios da LSF e da Nova Retórica. Na terceira seção,
discutimos a proposta teórico-metodológica da ADC para es-
tudo de gêneros particulares em textos, bem como de traços
textuais do aspecto acional do significado. Na quarta seção,
aplicamos essa discussão mais teórica à análise do texto “Na
hora H, conte conosco”, proveniente do corpus da pesquisa
“Discurso e ideologia na propaganda de medicamentos: um
estudo crítico sobre mudanças sociais e discursivas” (RAMA-

140
Iran Ferreira de Melo (Org.)

LHO, 2008). Esperamos, assim, atingir o objetivo de incluir,


na ampla discussão atual sobre gêneros, uma perspectiva mais
crítica, que considere a relação dos gêneros discursivos com
o exercício do poder.

2. Estudos contemporâneos de gêneros discursivos/tex-


tuais: Escola de Sidney e Nova Retórica

Como é amplamente reconhecido, os estudos atuais de


gêneros discursivos encontram suas bases em Bakhtin (1997).
O filósofo russo levantou a questão da dialogicidade da lin-
guagem, problematizando que “mesmo os discursos aparente-
mente não dialógicos, como textos escritos, são internamente
dialógicos e polifônicos”. Inevitavelmente, “compõem cadeias
dialógicas e respondem, antecipam, polemizam outras vozes”,
por isso são sempre “uma resposta ao que já foi dito”. O que
assegura a organização de tal diversidade infinita de cadeias
dialógicas, segundo o autor, são os gêneros do discurso – “os
tipos relativamente estáveis de enunciados, ligados a esferas
particulares da atividade humana” (BAKHTIN, 1997, p. 279).
A ideia, em que hoje nos apoiamos, é de que em nossa
cultura dispomos, de antemão, de diversos gêneros. Nas prá-
ticas sociais diárias, selecionamos os mais adequados para
cada situação de interação, o que varia conforme o papel da
linguagem na atividade social específica; o tipo de atividade
desenvolvida e seus temas correlacionados, e, por fim, as rela-
ções sociais envolvidas na atividade. Tal seleção, no entanto,
no repertório cultural de gêneros implica não só reprodução,
mas também inovação. Ao lançarmos mão dos gêneros para
interagir no mundo social, contribuímos tanto para preservar-
lhes as características, quanto para alterá-las. Como recursos
para ação humana, mas também como resultantes dela, gêneros
são infinitamente “ampliados, transmutados, diferenciados,
fundidos”, daí sua heterogeneidade característica (BAKHTIN,

141
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

1997, p.301). Essa característica, como antecipou o autor,


tende a ser vista como uma barreira para o estudo dos gêne-
ros. Ainda hoje buscamos ultrapassar abordagens que tentam
domesticar os gêneros, transformando-os em “dóceis objetos
de pesquisa”, apagando a sua “correlação com processos
históricos de constituição, ideologias e visões de mundo”
(BAKHTIN, 1997, p. 291).
Em preceitos fundamentais como esses, as diversas
abordagens contemporâneas de gêneros discursivos/textuais
encontram seu ponto de partida, ainda que diversifiquem
sua aplicação. Há, por exemplo, abordagens que se atêm a
investigar a estabilidade composicional dos gêneros; outras
que reservam especial atenção para seu uso individual. Há
aquelas que buscam conjugar os dois aspectos; e, ainda, as
que não perdem de vista a relação entre gêneros, atividades
sociais e ideologia.
Atualmente, podemos apontar três principais escolas de
estudos sobre gêneros: a Escola de Sidney; a Escola de Gene-
bra, e a Nova Retórica, norte-americana. A Escola de Sidney
baseia-se na perspectiva sistêmico-funcional da linguagem
(EGGINS & MARTIN, 1997; EGGINS, 2004; HALLIDAY
& HASAN, 1989; MARTIN, 1992, 1997, dentre outros). A
Escola de Genebra informa-se no interacionismo sociodiscur-
sivo (BRONCKART, 1999; SCHNEUWLY & DOLZ, 2004,
e outros). A Nova Retórica fundamenta-se numa perspectiva
sociorretórica, cultural e sociológica (MILLER, 1984, 1994;
BAZERMAN, 2004, 2005, 2007a). Outra abordagem retórica,
mas dedicada ao ensino do inglês, é da Escola de Linguística
Aplicada/ESP (SWALES, 1990; BHATIA, 1993, 2004). Para
nossa discussão sobre a compreensão crítica dos gêneros pela
ADC, teceremos alguns comentários sobre apenas duas dessas
escolas: a Escola de Sidney, baseada na LSF e frequentemente
utilizada em estudos em ADC, e a da Nova Retórica, funda-
mentada numa perspectiva mais sociológica.

142
Iran Ferreira de Melo (Org.)

2.1 Escola de Sidney: gênero e registro

A partir de princípios da Linguística Sistêmico-Funcional,


que concebe a linguagem como sistema semiótico – uma rede
de opções que constituem recursos aos quais o falante recorre
para construir significados em suas interações diárias –, Martin
(1992, 1997), Eggins & Martin (1997) e Eggins (2004), por
exemplo, associam gêneros ao contexto de cultura. Para os
autores, o contexto social, em que se insere o sistema semi-
ótico, compreende dois níveis: o contexto de cultura, mais
geral e abstrato, formado por sistemas de gêneros, e o contexto
de situação, com seus elementos: campo (atividade social),
relações sociais e modo (papel da linguagem na atividade).
Nessa perspectiva, as escolhas realizadas no contexto de
cultura têm impacto nas escolhas em nível situacional, e as
duas materializam-se na linguagem, organizada pelas macro-
funções ideacional (pela qual construímos e representamos a
experiência de mundo); interpessoal (pela qual estabelecemos
relações sociais), e textual (pela qual estruturamos significa-
dos em textos) (HALLIDAY, 2004; SILVA, 2007; SILVA &
RAMALHO, 2008).
Por isso se entende que textos materializam linguistica-
mente escolhas operadas nos contextos de cultura (gênero) e
de situação (registro). Ao interagir pela linguagem, as pesso-
as, primeiro, elegem um gênero do contexto de cultura, que
possibilita e constrange seleções realizadas no contexto de
situação. Por exemplo, ao elegermos a estrutura esquemática
narrativa, apresentada em Eggins (2004, p. 70) e simplificada
aqui, cujos estágios são “resumo > orientação > complicação
> resolução > avaliação > coda”, realizamos uma escolha de
gênero. Ao passo que as escolhas seguintes, de campo (nar-
ração de uma notícia ou de um conto infantil), de relações
(jornalista/repórter e leitor/telespectador, ou adulto e criança),
e de modo (interação mediada ou face a face, oral ou escrita),

143
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

por exemplo, são escolhas de registro. Essa compreensão de


gêneros fundamenta o estudo de sua Estrutura Esquemática,
“um sistema estruturado em partes, com meios específicos
para fins específicos” (MARTIN, 1992, p. 503), ou a “ma-
neira estruturada pela qual pessoas buscam atingir objetivos
usando a linguagem” (EGGINS, 2004, p. 10). Ainda que
descrita muito brevemente, é possível notar o foco da teoria
na estrutura textual, organizada em etapas que correspondem
aos propósitos sociais a que os gêneros atendem.

2.2 Nova Retórica: gênero e ação social

Por sua vez, os estudos em Nova Retórica priorizam


um entendimento de gêneros não como conjuntos de traços
textuais estáveis, ordenados e previsíveis, mas, sim, como
ações sociais recorrentes, dinâmicas, mutáveis e culturalmente
constituídas. Para esta Escola, mais importante do que descre-
ver elementos textuais é investigar maneiras como os gêneros
respondem a diferentes exigências retóricas e socioculturais.
Esse tipo de investigação, a exemplo de trabalhos de Bazerman
(2007a, 2007b) sobre a evolução histórica do gênero carta; de
Miller (2007), sobre a dinâmica social envolvida na produção
do gênero blog, dentre outros, focaliza aspectos sociológicos
envolvidos na mobilidade dos gêneros, e não apenas aspectos
linguísticos de sua estabilidade. Assim, seu ponto de partida
está não “no conteúdo ou na forma do discurso, mas na ação
que é usada para executá-lo” (MILLER, 1984, p. 152).
Com base na tradição retórica de estudo de gêneros e da
“fenomenologia da vida cotidiana” (SCHUTZ, 1967), a Nova
Retórica concebe gêneros como “ações retóricas tipificadas,
baseadas em situações recorrentes” (MILLER, 1984, p. 159).
Por isso, como adverte Miller (1984, p. 163), essa abordagem
“não se presta a taxonomias, porque gêneros mudam, evo-
luem, e decaem; o número de gêneros de qualquer sociedade

144
Iran Ferreira de Melo (Org.)

é indeterminado e depende da complexidade e diversidade da


sociedade”. Em termos bakhtinianos, isso significa ocupar-se
menos da estabilidade de temas, estilos e estruturas compo-
sicionais de gêneros e mais de sua mobilidade, plasticidade.
Bazerman (2005) situa os estudos da Nova Retórica entre
duas tradições de estudos sobre gêneros: uma que os aborda
como enunciados individuais, como Locke (1992), e outra que
se dedica amplamente a discussões sobre suas regularidades
textuais, a exemplo de Halliday e Martin (1994), conforme
indica o autor. Entre essas duas tradições, estão os trabalhos
com impulso retórico, ou seja, os que têm uma preocupação
com o uso estratégico dos processos e recursos regularizados
da comunicação. Isso implica conjugar preocupações dos dois
tipos, que as demais tradições separaram. Preocupa-se com o
geral, o público, ligado a regularidades/tipificações textuais,
que constituem recursos para a ação e resultados dela. Mas,
preocupa-se, igualmente, com o individual, o privado, rela-
cionado ao uso de gêneros em cada nova interação, com seus
propósitos retóricos e estratégias particulares, que podem
resultar em inovações, mudanças.
Se, de um lado, a LSF tende a priorizar estruturas textuais
mais estáveis, a Nova Retórica avança na percepção de gêne-
ros como ação social, mas não trata diretamente de possíveis
implicações políticas e ideológicas de tal ação pela linguagem.
Aqui, a perspectiva crítica da ADC oferece suas contribuições.

3. Gênero e poder na Análise de Discurso Crítica

Conforme mencionamos, a ADC consiste numa abor-


dagem científica transdisciplinar para estudos críticos da
linguagem como prática social. Insere-se na tradição da
“ciência social crítica”, comprometida em oferecer suporte
científico para questionamentos de problemas sociais relacio-
nados a poder e justiça. Operacionaliza conceitos de outras

145
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

disciplinas e, da mesma forma, pretende oferecer suporte


para estudos críticos em geral que envolvam linguagem.
Para a ADC, a relação linguagem-sociedade é interna e
dialética, por isso considera que “questões sociais são, em
parte, questões de discurso”, e vice-versa (CHOULIARAKI
& FAIRCLOUGH, 1999, p. vii). Nessa perspectiva crítica,
a linguagem é parte irredutível da vida social. Constitui-se
socialmente na mesma medida em que tem “consequências
e efeitos sociais, políticos, cognitivos, morais e materiais”
(FAIRCLOUGH, 2003, p. 14).
Como ciência crítica, a ADC está preocupada com efeitos
ideológicos que (sentidos de) textos possam ter sobre relações
sociais, ações e interações, conhecimentos, crenças, atitudes,
valores, identidades. Por sentidos ideológicos, entende, com
base em Thompson (2002a), sentidos a serviço de projetos
particulares de dominação e exploração que sustentam a dis-
tribuição desigual de poder.
Em razão de seu amplo escopo, na ADC britânica não há,
como observou Meurer (2005, p. 103), “preocupação siste-
mática com a pesquisa sobre gêneros”. Para a ADC, gêneros
constituem um momento de (redes de) ordens de discurso – ao
lado de discursos e estilos – ligado a modos de (inter-) agir
em práticas sociais, e ao significado acional. Assim como
na Nova Retórica, gêneros são concebidos como ação social,
“o aspecto especificamente discursivo de maneiras de ação e
interação no decorrer de eventos sociais” (FAIRCLOUGH,
2003, p. 65). Mas, diferentemente daquela abordagem, a ADC
considera, com efeito, que tal ação pela linguagem pressupõe
“relações com os outros”, mas também poder, isto é, “ação
sobre os outros” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 28), como discu-
timos adiante.

146
Iran Ferreira de Melo (Org.)

3.1 Gêneros como maneiras de agir com os outros e


sobre os outros

Com base nos três principais modos como o discurso


(momento irredutível da vida social, em articulação dialética
com outros momentos – ação/interação; relações sociais;
pessoas com crenças, valores, atitudes, histórias; e mundo ma-
terial) figura simultânea e dialeticamente em práticas sociais
– como modo de (inter-)agir, representar aspectos do mundo
e identificar(-se) –, Fairclough (2003) compreende gêneros
como maneiras relativamente estáveis de agir e relacionar-se
em práticas sociais, que implicam relações com os outros e
ação sobre os outros.
Os três modos como utilizamos o discurso nas práticas
sociais correlacionam-se a três principais significados do
discurso (significado acional, significado representacional e
significado identificacional), ligados aos três elementos de
ordens de discurso (gêneros, discursos, estilos), de forma
dialética, como ilustra a Figura 1:

Figura 1 – Relação dialética entre os significados do discurso.


Fonte: Resende & Ramalho (2005, p. 43).

147
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Nessa concepção dialética, maneiras (inter-)agir, ou seja,


de agir e relacionar-se em práticas sociais, correlacionam-se
ao significado acional e a gêneros. Maneiras de representar
aspectos do mundo, por sua vez, correlacionam-se ao signi-
ficado representacional e a discursos particulares (modos
particulares de representar aspectos do mundo). Por fim,
maneiras de identificar(-se) estão correlacionadas ao signifi-
cado identificacional e a estilos. Embora gêneros, discursos e
estilos, assim como os significados do discurso, tenham suas
especificidades, a relação entre eles é dialética. Cada qual
internaliza traços de outros, de maneira que nunca se excluem
ou se reduzem a um (RESENDE & RAMALHO, 2005, 2009).
As reflexões mais recentes de Fairclough (2003) sobre
as funções do discurso nas práticas sociais assentam-se no
princípio dialético, já apresentado em Fairclough (2001), se-
gundo o qual o discurso é tanto constituído pelo social quanto
constitutivo de identidades sociais, relações sociais e sistemas
de conhecimento e crença”. Esses “três efeitos constitutivos do
discurso” correspondem a três funções da linguagem – iden-
titária, relacional e ideacional –, dialeticamente relacionadas
à função textual. A função identitária, referente aos “modos
pelos quais as identidades sociais são estabelecidas no dis-
curso”, bem como a função relacional, ligada às maneiras
“como as relações sociais entre os participantes do discurso
são representadas e negociadas”, originam-se na macrofunção
interpessoal, da LSF (HALLIDAY, 1985). Tanto a função ide-
acional, relativa aos “modos pelos quais textos significam o
mundo e seus processos, entidades e relações”, como a função
textual, referente à “organização da mensagem”, preservam
os princípios da LSF (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91).
Fairclough (2003) operacionaliza na ADC essa multifun-
cionalidade da linguagem, relacionando-a com os principais
modos como o discurso figura em práticas sociais. Nessa
operacionalização, o significado representacional correlacio-

148
Iran Ferreira de Melo (Org.)

na-se à função ideacional, de Halliday (1985). O significado


identificacional, por sua vez, ancora-se na função identitária.
O significado acional, mais importante para esta discussão
porque se liga à concepção de gênero, apoia-se na função
relacional, mas também incorpora a função textual, da LSF
(RESENDE & RAMALHO, 2009).
Para o autor, o ponto de partida nos três principais sig-
nificados do discurso leva a efeito a proposta de alcançar a
relação dialética entre momentos semióticos e não semióticos
do social. Além disso, avança na percepção não só do siste-
ma semiótico, mas também do sistema social de ordens de
discurso como rede de opções para construir significados,
como discutiremos na subseção 3.1.1. Igualmente relevante
para uma abordagem crítica dos gêneros é o reconhecimento
da relação entre o significado acional e as funções textual e
relacional da linguagem, o que ajuda a compreender gêneros
não apenas como “a organização, a estrutura da mensagem”,
ligada à função textual, mas também como as maneiras pelas
quais essa mensagem contribui para a representação e nego-
ciação de relações sociais entre os participantes do discurso,
tangente à função relacional. Logo, gêneros pressupõem
relações com os outros, assim como ação sobre os outros, o
que, em circunstâncias específicas, pode estar relacionado à
distribuição assimétrica de poder, conforme discutiremos na
subseção 3.1.2.

3.1.1 Gênero como momento de ordens do discurso

Um dos propósitos do diálogo da ADC com a LSF é


construir uma abordagem que considere a relação dialética
entre discurso e outros momentos do social, sem privilegiar
nenhum deles. Com esse diálogo, Chouliaraki & Fairclough
(1999) buscam superar a primazia do semiótico sobre os ou-
tros momentos do social; o foco no sistema semiótico, e não

149
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

em sua materialização em textos; bem como o não reconhe-


cimento de redes de “ordens do discurso” como um sistema
de escolhas semióticas.
Conforme os autores, para uma abordagem sociodis-
cursiva não pode haver primazia do semiótico sobre os
outros momentos do social. O enfoque não é orientado
para a estrutura ou sistema semiótico, mas, sim, para as
práticas sociais, concebidas como articulações de outros
momentos (não semióticos) com ordens de discurso. Se-
gundo Chouliaraki & Fairclough (1999, p. 143), “o foco em
práticas sociais chama atenção para ligações e relações de
internalização entre os vários momentos, de tal modo que
possibilita avaliar o trabalho do momento semiótico em
cada prática particular”. Esse foco, que estreita as relações
dialéticas entre o social e o discursivo, torna mais clara, por
exemplo, a função do discurso na manutenção de relações
de poder em práticas.
O foco no sistema semiótico e não em textos também
está relacionado à primazia da estrutura/sistema. Para os
autores, a análise de textos orientada para a identificação de
escolhas particulares operadas no potencial do sistema tende
a resultar numa visão idealizada de textos, como realização
de “‘um’ registro particular (HALLIDAY, 1992) e ‘membro’
de um gênero particular (HASAN, 1994)”.1 Chouliaraki &
Fairclough (1999) ilustram essa idealização com a abordagem
problemática do gênero “defesa de tese”, em que Hasan (1994)
não reconhece interações informais, gracejos, como estágios/
elementos da Estrutura Potencial Genérica. Os registros infor-
mais são considerados textos separados, paralelos ao discurso
de tese, alheios ao gênero “defesa de tese”. Tal visão acarreta
dificuldades para abordagens de textos híbridos, que misturam
gêneros, discursos, estilos. O hibridismo e a heterogeneidade,
característicos dos gêneros, são vistos como aquilo que des-

1 Citados em Chouliaraki & Fairclough (1999, p. 143).

150
Iran Ferreira de Melo (Org.)

toa dos limites fixos do gênero, ou seja, aquilo que não pode
ocorrer em determinado gênero.
Por fim, a ADC considera não apenas a rede de opções do
sistema semiótico como responsável pelo potencial mais ou
menos indefinido da linguagem para a construção de signifi-
cados. As redes de ordens do discurso também são concebidas
como sistema, enfatizando, dessa forma, a potencialidade do
social, e não só do sistema semiótico, na manutenção do poten-
cial da linguagem para significar. Assim, na abordagem socio-
discursiva da ADC, o potencial de significados da linguagem é
entendido não só a partir da noção de sistema semiótico, mas
também de sistema social de ordens do discurso, ou seja, as
“combinações particulares de gêneros, discursos e estilos, que
constituem o aspecto discursivo de redes de práticas sociais”
(FAIRCLOUGH, 2003, p. 220). Nos termos de Chouliaraki
& Fairclough (1999, p. 151-152),

[...] a linguagem, como um sistema aberto, tem


capacidade ilimitada para a construção de signifi-
cado através de conexões gerativas sintagmáticas
e paradigmáticas, mas é o dinamismo da ordem
do discurso, capaz de gerar novas articulações de
discursos e gêneros, que mantém a linguagem como
um sistema aberto (...). Por outro lado, é a fixidez
da ordem do discurso que limita o poder gerativo da
linguagem, impedindo certas conexões.

O foco em mudanças no sistema semiótico, possibilitadas


e constrangidas por conexões gerativas sintagmáticas e para-
digmáticas, ajuda a explicar o poder gerativo da linguagem,
mas não é suficiente. A ADC reconhece que o sistema aberto
da linguagem é mantido tanto por seus recursos “internos”
(lexicogramaticais, semânticos) quanto por recursos “exter-
nos”, de natureza social (gêneros, discursos, estilos), assegu-
rados pelo dinamismo das ordens do discurso de cada campo
social. Novas articulações de gêneros, discursos e estilos

151
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

de diferentes ordens de discurso também contribuem para a


construção de significados. Por um lado, o poder gerativo do
semiótico é mediado pelo poder gerativo de outros momentos
do social. Por outro, a semiose tem estrutura dupla, formada
pela rede de opções do sistema semiótico (linguagem como
estrutura), mas também pela rede de opções do sistema social
da linguagem, as redes de ordens de discurso (linguagem
como prática social). Gêneros, portanto, são regras/recursos
disponíveis na faceta social da estrutura dupla da linguagem.
E a mudança genérica, por sua vez, pressupõe mudança “na
maneira como diferentes gêneros são combinados”, dado que
“novos gêneros se desenvolvem por meio da combinação de
gêneros existentes” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 66).
Tal abordagem avança na percepção de relações de causa
e efeito entre discurso e momentos não discursivos do social,
de modo que sentidos que circulam em gêneros discursivos
podem ser vistos como parcialmente responsáveis pela sus-
tentação de problemas sociais. Ainda, abre possibilidades
para a compreensão não só de “regularidades textuais” mas
também das maneiras dinâmicas pelas quais gêneros, como
ações sociais, dialogam entre si, antecipam-se, misturam-se,
polemizam-se, constrangem-se, em práticas sociais. Assim,
mudanças em gêneros, como a que discutiremos na seção 4,
são vistas como novas articulações de gêneros, discursos e es-
tilos, possibilitadas e constrangidas por opções oferecidas pelo
sistema de ordens de discurso, a faceta social da linguagem.
Nessa perspectiva, gêneros, discursos e estilos, como
maneiras relativamente estáveis de (inter-)agir, representar
e identificar(-se) em práticas sociais, não são categorias
puramente linguísticas. Uma vez que práticas articulam dis-
curso com outros momentos não discursivos (ação/interação,
relações sociais, pessoas, mundo material, como apontamos
acima), elementos de ordens do discurso são categorias tanto
discursivas quanto sociais, que “atravessam a divisão entre

152
Iran Ferreira de Melo (Org.)

o linguístico e o não linguístico, entre o discursivo e o não


discursivo” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 25). Por isso, com
base em Foucault, Fairclough (2003) sustenta que: discursos
pressupõem controle sobre as coisas; estilos implicam identi-
dades sociais ou pessoais particulares, e gêneros pressupõem
relações com os outros e sobre os outros.

3.1.2 Significado acional do discurso e o “eixo do poder”

Com base nos três grandes eixos da obra de Foucault


(1994) – o eixo do saber, o eixo da ética e o eixo do poder2,
Fairclough (2003, p. 29) associa o significado representacio-
nal ao eixo do saber, ou seja, ao “controle sobre as coisas”.
Discursos, maneiras particulares de representar aspectos do
mundo, pressupõem controle sobre as coisas, e conhecimen-
to. O significado identificacional, por sua vez, associa-se ao
eixo da ética, isto é, a “relações consigo mesmo”, ao “sujeito
moral”. Estilos, maneiras de identificar a si mesmo, os outros
e aspectos do mundo, pressupõem identidades sociais ou pes-
soais particulares e ética. Por fim, o significado acional está
associado ao eixo do poder, ou seja, a “relações de ação sobre
os outros”. Nessa perspectiva, entende-se que gêneros, como
maneiras de agir e relacionar-se discursivamente em práticas
sociais, implicam relações com os outros, mas também ação
sobre os outros, e poder.
Os três eixos de Foucault, no entanto, não são isolados,
mas dialeticamente articulados, ou seja, o controle sobre as
coisas (eixo do saber) é mediado pelas relações com/sobre os
outros (eixo do poder), assim como as relações com/sobre os
outros pressupõem relações consigo mesmo (eixo da ética), e
assim por diante. Por isso, adverte Fairclough (2003, p. 29),
a relação entre os significados do discurso também deve ser
compreendida como dialética, isto é, “discursos particulares
2 Citado em Fairclough (2003, p. 28). Os três eixos (savoir, subjectivation, pouvoir)
correspondem à arqueologia, analítica-hermenêutica e genealogia.

153
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

(representação/saber) são mediados por gêneros (ação/poder),


assim como gêneros pressupõem estilos (identificação/ética)”
ou, ainda, “representações particulares (discursos) podem ser
legitimadas em maneiras particulares de ação e relação (gêne-
ros), e inculcadas em maneiras particulares de identificação
(estilos)”, e assim por diante.
Gêneros discursivos constituem, nessa perspectiva,
“um mecanismo articulatório que controla o que pode ser
usado e em que ordem, incluindo configuração e ordenação
de discursos”. São “a faceta regulatória do discurso, e não
simplesmente a estruturação apresentada por tipos fixos de
discurso” (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999, p. 144).
Como Fairclough (2003, pp. 31-32) observa, na modernidade
tardia, (cadeias de) gêneros contribuem para ações/relações
temporal e espacialmente desencaixadas, “facilitando a acen-
tuada capacidade de ‘ação a distância’ e, portanto, facilitando
o exercício do poder.” Ao reconhecer “a importância dos gê-
neros na sustentação da estrutura institucional da sociedade
contemporânea”, incluindo as relações capitalistas, o autor
enfatiza a relação entre gêneros e poder.
Para o autor, certos gêneros possibilitam e controlam não
só discursos, mas práticas sociais como um todo. Fairclough
(2003, p. 32) contrasta “gêneros práticos”, que figuram mais
na ação pela qual as coisas são feitas, e “gêneros de governân-
cia”, que figuram na regulação e controle das maneiras como
as coisas são feitas.3 Esses últimos são associados a redes de
práticas especializadas na regulação e no controle de outras
práticas sociais. As notícias, como exemplifica o autor, asso-
ciadas aos meios de comunicação que integram o “aparato de
governância”, podem regular e controlar os eventos noticiados
e as maneiras como as pessoas reagem a esses eventos.
A postura da ADC sobre a relação dialética gênero-poder
permite conceber o fenômeno da tipificação, discutido pela

3 No original, “genres of governance” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 32).

154
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Nova Retórica, como possível recurso para disseminação de


ideologias, isto é, de sentidos com potencial para sustentar
relações de dominação (THOMPSON, 2002a). Ao contrário
de entender padrões comunicativos simplesmente como “ma-
neiras de nos compreendermos ou de coordenarmos melhor
nossas atividades” (BAZERMAN, 2004, p 316), é possível
explorar a função das convenções discursivas em relações
de poder. Uma publicidade em forma tipificada de notícia,
por exemplo, pode revestir ideologicamente a tentativa de
interação bem sucedida. Aqui, interação bem sucedida pode
significar dissimulação de propósitos promocionais e ação
ideológica sobre o outro.
É necessário considerar que o sentido de continuidade,
rotinização, reconhecimento que os gêneros oferecem a atores
sociais pode servir, também, em determinadas circunstâncias,
como mecanismo semiótico de dominação. Isso pode ser par-
cialmente explicado pela saliência, apontada por Fairclough
(1989), de alguns discursos-chave nas sociedades modernas
tardias, tais como o da publicidade, entrevista, aconselhamen-
to/terapia, que colonizam muitos campos sociais e obscurecem
fronteiras entre o que é informação, o que é entretenimento,
o que é publicidade. Tal “ambivalência contemporânea”,
sobretudo sua faceta resultante da colonização do mundo da
vida pela economia, demanda um olhar crítico sobre maneiras
recorrentes de (inter-)agir discursivamente.
Essa visão mais crítica também permite relacionar a con-
cepção de gêneros como “respostas a exigências sociocultu-
rais” com a ideia de mudança discursiva compreendida como
parte de lutas hegemônicas. Mudanças discursivas, incluindo
mudanças em gêneros, podem estar relacionadas com questões
de poder e, à medida que se tornam naturalizadas, perdem
o “efeito de colcha de retalhos e passam a ser consideradas
inteiras”, o que “é essencial para estabelecer novas hegemo-
nias na esfera do discurso” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 128).

155
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Antecipando o que discutiremos na seção 4, caso assumam de


maneira crescente características mais fixas de reportagens,
por exemplo, propagandas de medicamento podem dar origem
a novas tipificações/convenções orientadas para a dominação
de “leigos” por “peritos” tanto em saúde quanto em comunica-
ção (RAMALHO, 2008). Mudanças em gêneros constituirão,
portanto, respostas a exigências socioculturais voltadas para
o exercício da distribuição desigual de poder.
Como Fairclough (2003) destaca, a mudança em gêneros
é parte importante das transformações no novo capitalismo,
pois mudanças na articulação de práticas sociais, a exemplo
do rompimento de fronteiras entre informação e promoção,
são mudanças em formas de ação e interação e, portanto,
em gêneros. Numa perspectiva mais crítica, o objetivo dos
estudos em Nova Retórica, qual seja, “investigar a evolução
de gêneros específicos em resposta a fenômenos sociocul-
turais” (FREEDMAN & MEDWAY, 1994, p. 09), pode ser
ampliado para incorporar preocupações com o exercício do
poder, buscando investigar a evolução de gêneros específicos
em resposta a fenômenos socioculturais, e sua relação com
questões de poder.

4. Abordagem teórico-metodológica de gêneros em ADC

Inicialmente, é preciso lembrar que, como a ADC não é


uma abordagem específica para estudos de gêneros e, ainda,
entende que as maneiras como utilizamos o discurso na vida
social são dialéticas – ou seja, interagimos, representamos e
identificamos pelo discurso simultaneamente –, a preocupação
com gêneros constitui apenas uma parte de seu programa.
Com base no Realismo Crítico (BAHSKAR, 1989), a
ADC propõe um arcabouço teórico-metodológico para ex-
planação crítica de problemas sociodiscursivos, por meio da
investigação de mecanismos discursivos e seus potenciais
efeitos ideológicos em práticas sociais. Esse arcabouço, que

156
Iran Ferreira de Melo (Org.)

conjuga análises textuais e socialmente orientadas e busca


alcançar “níveis mais profundos, suas entidades, estruturas e
mecanismos que existem e operam no mundo” (CHOULIA-
RAKI & FAIRCLOUGH, 1999, p. 60), compõe-se de cinco
etapas principais: percepção de um problema social com
aspectos semióticos; identificação de obstáculos para superar
o problema em foco, o que inclui análise da conjuntura, aná-
lise da prática particular e análise do discurso; investigação
da função do problema na prática; investigação de possíveis
modos de ultrapassar obstáculos, e reflexão sobre a análise
(CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999, p. 60; FAIR-
CLOUGH, 2003, pp. 209-210).
Na análise do discurso, que é uma parte da proposta
teórico-metodológica da ADC, textos constituem o principal
material empírico para a investigação de conexões entre
discurso e práticas sociais. A análise detalhada e intensiva
de textos como elementos de processos sociais é, nos termos
de Chouliaraki & Fairclough (1999), um processo complexo
que engloba duas partes: a compreensão e a explanação. Um
texto pode ser compreendido de diferentes maneiras, uma
vez que diferentes combinações das propriedades do texto
e do posicionamento social, conhecimentos, experiências e
crenças do leitor resultam em diferentes compreensões. Parte
da análise de textos é, portanto, análise de compreensões,
que envolvem descrições e interpretações. A outra parte da
análise é a explanação, que reside na interface entre concei-
tos e material empírico. Essa constitui um processo no qual
propriedades de textos particulares são “redescritas” com
base em um arcabouço teórico particular, com a finalidade
de “mostrar como o momento discursivo trabalha na prática
social, do ponto de vista de seus efeitos em lutas hegemônicas
e relações de dominação”.
Para a ADC, textos são parte de eventos específicos, que
envolvem pessoas, ação/interação, relações sociais, mundo

157
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

material, além de discurso. Por isso, textos são analisados


na interface entre ação, representação e identificação, os três
principais aspectos do significado. Fairclough (2003, p. 28)
observa que analisar textos em termos dos significados do dis-
curso implica uma perspectiva social detalhada. Permite não só
abordar os textos “em termos dos três principais aspectos do
significado, e das maneiras como são realizados em traços dos
textos”, mas também fazer “a conexão entre o evento social
concreto e práticas sociais mais abstratas”, pela investigação
dos gêneros, discursos e estilos que são articulados, bem como
das maneiras como são articulados.
A concepção de gêneros, discutida acima, como elemento
de ordens de discurso, associado, em princípio, ao significado
acional/relacional da linguagem, implica ação humana, mu-
tabilidade, plasticidade, hibridismo. Permite levar a efeito o
preceito bakhtiniano de que “não há razão para minimizar a ex-
trema heterogeneidade dos gêneros do discurso” (BAKHTIN,
1997, p. 281). Para a ADC, um texto ou interação particular
não ocorre em “um” gênero particular, mas frequentemente
envolve uma combinação de diferentes gêneros (FAIRCLOU-
GH, 2003). Além da ideia de hierarquização dos gêneros,
característica dessa combinação híbrida, a ADC sustenta,
também, que eles apresentam distintos níveis de abstração.
Num gradiente decrescente de abstração, há “pré-gêneros”,
“gêneros desencaixados” e “gêneros situados”.
Os pré-gêneros, termo de Swales (1990) usado por Fair-
clough (2003), são tipos textuais – narração, argumentação,
descrição, exposição, e outros –, utilizados na composição
de gêneros discursivos situados. Um pouco menos abstratos
que os pré-gêneros são os gêneros desencaixados, que trans-
cendem redes particulares de práticas. Exemplos podem ser
apontados na entrevista e no depoimento, que figuram em
diversas práticas, como jornalística, médica, acadêmica, pu-
blicitária. Por fim, os gêneros situados, a exemplo do gênero

158
Iran Ferreira de Melo (Org.)

situado “anúncio de medicamento”, são característicos de


uma (rede de) prática particular, como a da publicidade. Ao
contrário dos pré-gêneros, que se limitam a alguns poucos,
os gêneros situados são inúmeros, e nem todos têm nomes
estabelecidos. Nessa perspectiva, considera-se que um texto
pode materializar, por exemplo, o gênero situado “anúncio
de medicamento”, menos abstrato. Esse, por sua vez, pode
ser composto por gêneros desencaixados, pouco mais abstra-
tos, como o depoimento, e por pré-gêneros, mais abstratos,
como descrição e narração. Em textos, também pode haver
hibridismo entre gêneros situados. Marcuschi (2005, p. 31)
define tal hibridismo como intergenericidade: “a mescla de
funções e formas de gêneros diversos num dado gênero” ou
“o aspecto da hibridização em que um gênero assume a função
de outro, o que resulta na subversão do modelo global gené-
rico”. Por exemplo, uma bula, que assume função de anúncio
publicitário, preserva sua forma, mas se presta ao propósito
precípuo de promover bens/serviços. Na ADC, esse aspecto
do hibridismo é compreendido como um processo de inter-
discursividade, isto é, de hibridização de gêneros, discursos
e estilos, que pode, como alertam Chouliaraki & Fairclough
(1999, p. 62), constituir “uma estratégia de luta hegemônica”.
Nessa perspectiva, hibridismos de gêneros podem servir para
fins ideológicos, implicando não apenas questões linguísticas,
mas também questões relacionadas a poder e ideologia.
Por se tratar de abordagem discursiva, pela qual se con-
sideram gêneros como momentos de ordens de discurso, logo,
elementos de práticas sociais, o termo “gêneros discursivos”
é mais adequado do que “gêneros textuais”, que pressupõem
a ideia de “eventos”. Enfatizam-se, assim, os gêneros como
elementos ligados a práticas sociais, entidade social inter-
mediária entre estruturas mais fixas e eventos mais flexíveis.
Tal compreensão apoia-se no entendimento do gradiente de
entidades sociodiscursivas mais fixas até as menos fixas, quais

159
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

sejam: estrutura social/sistema semiótico; práticas sociais/


ordens de discurso (e gêneros, discursos, estilos) e, por fim,
eventos/textos. Para a investigação de gêneros situados em
textos particulares, a ADC propõe uma análise mais social,
das dimensões da interação discursiva, e uma análise mais
discursiva, de traços textuais moldados, em princípio, pelo
significado acional do discurso.

4.1 Dimensões da (inter-)ação discursiva: atividade,


relações sociais e tecnologias de comunicação

Como modos relativamente estáveis de agir e relacionar-


se em práticas sociais, gêneros envolvem diretamente ativi-
dade, pessoas e linguagem. O estudo de gêneros situados
inicia-se, então, pela investigação das dimensões da interação
discursiva: atividade, relações sociais e tecnologias de comu-
nicação (FAIRCLOUGH, 2003, p. 70). Isto é, a atividade à
qual o gênero pesquisado se presta, ou “o que as pessoas estão
fazendo”; as relações sociais que ele envolve, ou “as relações
entre as pessoas”, assim como a tecnologia de comunicação
de que a atividade pode depender.
Gêneros associam-se a atividades específicas, ligadas
a práticas particulares e com propósitos específicos. Então,
segundo Fairclough (2003, p. 70), na primeira aproximação
de um gênero situado cabe questionar “o que as pessoas
estão fazendo discursivamente”, e com quais propósitos.
O autor pondera, entretanto, que a análise de “propósitos
da atividade” deve levar em conta que propósitos também
podem estar combinados hierarquicamente, mesclados,
implícitos, de maneira que a fronteira entre eles pode não
ser tão clara. A mesma ressalva vale para a investigação
da macroestrutura ou estrutura genérica, isto é, a mate-
rialização dos propósitos das atividades discursivas em
textos. Tal materialização pode ser mais homogênea em
determinados gêneros com elementos ou estágios textuais

160
Iran Ferreira de Melo (Org.)

bastante fixos, previsíveis, ordenados, do que em outros


gêneros mais plásticos.
Sobre a segunda dimensão da (inter-)ação discursiva, as
relações sociais entre as pessoas envolvidas nas atividades
discursivas, Fairclough (2003) enfatiza que na modernidade
tardia há diferentes tipos de relação além daquelas entre indiví-
duos face a face, e que isso deve ser considerado no estudo de
gêneros. Há relações (e poder) a distância entre organizações,
instituições (governamentais, empresariais) e indivíduos, entre
grupos (como movimentos sociais) e indivíduos, entre orga-
nizações e grupos, e assim por diante. Tal ponto nos remete
à questão discutida do poder a distância, possibilitado pelos
“gêneros de governância”, por meio dos quais organizações/
instituições se comunicam com indivíduos e exercem poder
sobre eles. O autor avalia que o novo capitalismo caracteriza-
se por um poder crescente das organizações sobre indivíduos,
na medida em que estas operam em escalas cada vez mais
globais. Frequentemente, como Fairclough (2003) ainda en-
fatiza, a alta hierarquia e distância social, características deste
tipo de gênero, são dissimuladas por tecnologias discursivas
como forma de eliminar assimetrias explícitas ou mesmo de
dissimular relações de dominação.
A análise da terceira dimensão, as tecnologias de comuni-
cação de que a atividade pode depender, deve considerar duas
distinções entre os tipos de comunicação, segundo Fairclough
(2003). Primeiro, a comunicação em duas vias versus comuni-
cação em uma via. Segundo, a comunicação mediada versus
comunicação não mediada. Uma conversa face a face, para
usar exemplos do autor, é comunicação não mediada em duas
vias. Um telefonema, por sua vez, é comunicação mediada
em duas vias. Uma leitura é comunicação não mediada em
uma via. A comunicação mediada em uma via é possibilitada
pelos meios de comunicação como rádio, televisão, imprensa.
As tecnologias de comunicação, como ainda observa o autor,

161
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

ampliaram a complexidade da articulação das práticas sociais


contemporâneas.
Na modernidade tardia, grande parte da ação e interação é
mediada. As relações sociais envolvem participantes distantes
no tempo e espaço e dependem de tecnologia de comunica-
ção. Essa mediação criou um tipo de situação interativa que
Thompson (2002b, p. 79) denominou, em razão de seu baixo
grau de reciprocidade interpessoal, “quase interação mediada”.
A “quase interação mediada” converge com a “comunicação
mediada em uma via”, pois em ambas as relações sociais são
estabelecidas pelos meios de comunicação de massa (livros,
jornais, rádio, televisão, revistas). Este tipo de comunicação
possibilita extensa disponibilidade de informação e conteúdo
simbólico no espaço e no tempo, uma vez que são produzidos
para um número indefinido de receptores potenciais. Além
disso, constitui uma forma de interação monológica, isto é,
o fluxo da comunicação é predominantemente de sentido
único, em uma via. Para essa abordagem crítica dos gêneros,
é fundamental considerar que a extensa disponibilidade de
informação e o fluxo da comunicação predominantemente
em sentido único acarretam aumento significativo da capa-
cidade de transmitir mensagens potencialmente ideológicas
em escala global.
Essas são, em linhas gerais, as dimensões da (inter-)ação
discursiva contempladas na proposta teórico-metodológica
da ADC para estudos de gêneros. Em seguida, comentamos
aspectos da proposta para análise de traços textuais moldados
por gêneros.

4.2 Significados acionais em textos

A proposta de análise textual da ADC, uma das etapas


da análise do discurso, situa-se na interface entre gêneros e
(inter-)ação, discursos e representação, estilos e identificação.

162
Iran Ferreira de Melo (Org.)

A análise de gêneros, discursos, estilos (e seus respectivos


significados/formas em textos) estreita a relação entre (inter-)
ação, pessoas, relações sociais, mundo material e textos. Ainda
que a relação entre os significados do discurso seja dialética, ou
seja, cada qual internaliza traços de outros, sem se reduzirem
a um, traços semânticos, gramaticais e lexicais dos textos são
moldados, em princípio, por significados particulares. Gêneros
se realizam nos textos em formas e significados acionais; dis-
cursos, em formas e significados representacionais; e estilos,
em formas e significado identificacionais.
Assim, para a análise de significados acionais/relacionais,
a ADC, inspirada na LSF, oferece categorias mais ligadas a
traços de textos ou a aspectos da organização textual que são,
de maneira geral, moldados por gêneros. O mesmo ocorre com
discursos e estilos. Para análise de significados representacio-
nais, há categorias mais ligadas a aspectos textuais moldados
por discursos. Da mesma forma, para análise de significados
identificacionais, há categorias mais relacionadas a aspectos
textuais moldados por estilos. Para a análise de significados
acionais em textos – aspecto do significado que interessa
diretamente a essa discussão –, Fairclough (2003) propõe
categorias como tipos de troca, associada a funções da fala e
a modos gramaticais.
Os tipos de troca, e respectivas funções da fala e modos
gramaticais, são traços textuais moldados por gêneros. Para a
LSF, escolhas relacionadas à sentença como troca ou ato de
fala são realizadas no sistema lexicogramatical de “modo/mo-
dalidade”, associado à macrofunção interpessoal da linguagem
(HALLIDAY, 2004). Como na ADC a multifuncionalidade da
linguagem é repensada em termos dos principais significados
do discurso, conforme discutimos, o aspecto da macrofunção
interpessoal referente às relações sociais estabelecidas pela
linguagem é incorporado no significado acional. Por esse
motivo, os tipos de troca, juntamente com as funções da fala

163
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

e com os modos gramaticais, são categorias acionais, em


princípio.
Diferentes gêneros estabelecem diferentes relações so-
ciais entre os interactantes, e isso se deve, em parte, ao tipo de
troca envolvido na interação. Segundo Fairclough (2003), a
interação se estabelece por meio de trocas de dois tipos prin-
cipais: troca de conhecimento e troca de atividade. A primeira,
que corresponde à troca de informação de Halliday (1985), é
frequentemente orientada para uma ação textual, para declarar
algo, responder a perguntas. A segunda, por sua vez, que cor-
responde à troca de bens e serviços na LSF, é orientada para
ações não textuais, ou seja, para solicitar que algo seja feito.
Os tipos de troca determinam distintas funções discursivas
primárias, que se relacionam a diferentes modos oracionais.
Quatro funções discursivas primárias e gerais, quais
sejam, afirmação, pergunta, oferta e ordem, associam-se, res-
pectivamente, aos papéis principais da troca: dar informação,
demandar informação, dar bens e serviços, e demandar bens e
serviços. Essas funções discursivas relacionam-se, de manei-
ras complexas e apenas tendenciais, a modos oracionais e tipos
de sentença específicos. Trocas de conhecimento/informação
têm “afirmações” e “perguntas” como funções discursivas
primárias. Afirmações são realizadas tipicamente em sentenças
declarativas (“Ele sofre de enxaqueca”). Perguntas, por sua
vez, são tipicamente realizadas em sentenças interrogativas
(“O que você sente?”), mas também podem se manifestar, de
modo não típico, no modo declarativo modulado (“Você tem
dores de cabeça?”). Por outro lado, trocas de atividade têm
“ofertas” e “demandas” como funções discursivas primárias.
Ofertas são realizadas tipicamente no modo interrogativo
modulado (“Você quer um comprimido?”), mas podem igual-
mente ser realizadas em sentenças imperativas declarativas
(“Leve um comprimido.”). Ordens são feitas, de maneira típica
explícita, no modo imperativo (“Dê-me um comprimido.”),

164
Iran Ferreira de Melo (Org.)

mas demandas de bens e serviços também podem ser feitas em


sentenças interrogativas moduladas (“Você pode me receitar
um medicamento?”) e declarativas (“Eu quero um comprimi-
do.”), e assim por diante.
Exemplo de potencial investimento ideológico nesses
traços moldados por gêneros pode ser apontado em textos
publicitários que “simulam” troca de conhecimento, como
se fossem orientados para informar, mas que, de fato,
têm o propósito estratégico de desencadear ações, como
discutiremos a seguir. Na seção seguinte, apresentamos
e aplicamos algumas categorias para análise de gêneros
numa perspectiva crítica e situada na interface entre os
significados do discurso.

5. A teoria na prática: discurso e ideologia no gênero


publicidade de medicamentos

O objetivo desta seção é exemplificar a aplicação da


abordagem teórica dos gêneros, discutida nas seções ante-
riores. Para tanto, trazemos um exemplo de análise reali-
zada na pesquisa “Discurso e ideologia na propaganda de
medicamentos: um estudo crítico sobre mudanças sociais
e discursivas” (RAMALHO, 2008). O objetivo geral do
estudo, cujos desdobramentos deram origem ao Projeto de
pesquisa Representações da saúde na mídia 4, foi investigar
o papel do discurso na sustentação de relações assimétricas
de poder, sobretudo entre “peritos” (especialistas em saúde,
como médicos, empresários da indústria de bens e serviços
farmacêuticos; assim como especialistas em linguagem, como
publicitários, editores) e “leigos” (cidadãos comuns que re-

4 O Projeto de pesquisa Representações da saúde na mídia, desenvolvido no âmbito da


Universidade de Brasília (UnB), integra as atividades do Grupo Brasileiro de Estudos
de Discurso, Pobreza e Identidades, liderado pela pesquisadora Denize Elena Garcia
da Silva. O Projeto dá continuidade às investigações iniciadas na pesquisa da autora
(RAMALHO, 2008). O objetivo é problematizar representações hegemônicas da
“saúde” na mídia brasileira.

165
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

cebem diariamente conteúdos publicitários e necessitam, de


alguma forma, do conhecimento perito em saúde).
No Brasil, o debate sobre os riscos da circulação de
propagandas de medicamento na mídia não é recente. As
crescentes preocupações envolvem, por exemplo, os riscos
da automedicação, das intoxicações, do consumo inade-
quado e exagerado de medicamentos, da autoidentificação
projetada na imagem do consumidor de produtos para
saúde (RAMALHO, 2009). Tudo isso somado, no Brasil, a
desigualdades sociais e dificuldades de acesso a serviços e
tratamentos de saúde, dentre outros problemas. Como infor-
ma a literatura especializada, a indústria de medicamentos
está entre as mais lucrativas do mundo e seu investimento
em propaganda é muito maior do que em pesquisa e de-
senvolvimento de novos medicamentos, correspondendo
a cerca de 35% da receita (ANGELL, 2007). Ainda que o
Brasil disponha de serviço público de saúde assim como
de políticas de regulação da promoção comercial de medi-
camentos, parte da população brasileira, por um lado, está
desassistida de tratamentos e serviços de saúde. Por outro,
considerável parcela da sociedade é diariamente exposta a
apelos comerciais que possuem potencial para, em práti-
cas específicas, levar pessoas ao consumo desnecessário e
desmedido de medicamentos.
Nessa conjuntura em que mercadorias se tornam
“símbolos de saúde”, a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) é responsável por monitorar no Brasil o
conteúdo da propaganda de medicamentos na mídia geral,
não especializada. Busca coibir, por exemplo, propagandas
que associem beleza, desempenho físico, a consumo de
medicamentos e, ainda, veta propagandas de medicamentos
éticos, de venda sob prescrição médica (ANVISA, 2000,
2008). Tal controle deu origem a novas formas de promover
medicamentos sem chamar a atenção da vigilância sanitária,

166
Iran Ferreira de Melo (Org.)

o que designamos na pesquisa como “metáforas acionais”,


maneiras não congruentes de (inter-)agir orientadas para
estabelecer e sustentar relações de dominação, como dis-
cutiremos a seguir.
Diversos estudos sobre o assunto têm sido desenvolvidos
no Brasil desde 1980, com destaque para a área da Saúde Pú-
blica (NASCIMENTO, 2005; TEMPORÃO, 1987). Embora
envolva diretamente o uso da linguagem, até meados de 2005,
a publicidade de medicamentos não era objeto de pesquisas
linguístico-discursivas, o que já se pode verificar em estudos
como de Böehlke (2008), além de Ramalho (2008). Isso
aponta a natureza social e semiótica do problema em foco,
e destaca conexões entre o social e o semiótico, bem como
entre mudanças discursivas e não discursivas, demandando
uma abordagem científica que contemple a relação dialética
entre linguagem-sociedade.
Essa perspectiva dialética, preocupada com efeitos
potenciais do discurso em lutas hegemônicas e relações de
dominação, fundamentou a pesquisa qualitativa. O objetivo
do estudo sociodiscursivo não foi pesquisar um gênero, mas,
sim, investigar como determinados gêneros podem sustentar
relações de dominação. Ou seja, problematizar como o dis-
curso particular publicitário (representação) pode ser legi-
timado no gênero anúncio de medicamento (ação/relação),
e inculcado em estilos de vida projetados na imagem do/a
“consumidor/a de medicamento” (identificação). As seguintes
questões orientaram o estudo: Há conexões entre mudanças
sociais na promoção de medicamentos na modernidade tardia
(vigilância, sociedade de consumo) e mudanças discursivas?
Quais? Que sentidos potencialmente ideológicos são arti-
culados nos textos publicitários? Como são articulados? A
quais convenções discursivas leitores de textos publicitários
recorrem para identificar publicidades de medicamento? Há
leituras mais disciplinadoras e outras mais criativas?

167
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

5.1 Abordagem teórico-metodológica do problema socio-


discursivo

Dada a perspectiva relacional-dialética do estudo e


seu objetivo crítico de investigar e também desvelar a fun-
ção do discurso da publicidade na sustentação de relações
desiguais de poder, foi necessário pesquisar não somente
textos, mas também outros aspectos não discursivos en-
volvidos no problema: interesses ideológicos, relações
sociais, aspectos conjunturais, práticas de recepção dos
textos publicitários.
A pesquisa demandou uma abordagem predominante-
mente documental, cujo principal material empírico foram
documentos formais da mídia impressa, elaborados por
publicitários, jornalistas. Coletamos 610 textos, produzidos
de 1911 a 2006, que promovem medicamentos, mais ou
menos explicitamente. Com base numa compreensão mais
sociológica dos gêneros discursivos, sistematizamos os
textos coletados segundo um gradiente de hibridização de
gêneros. Dada a “ambivalência discursiva”, já comentada,
sistematizamos os textos conforme seu propósito promocio-
nal, mais ou menos explícito, em quatro categorias gerais:
publicidade clássica; publicidade indireta; publicidade
institucional e publicidade oculta. Cabe esclarecer que as
três últimas categorias (publicidade indireta, institucional
e oculta) são provenientes da primeira versão da RDC
96/2008, um documento formal que compunha o corpus
ampliado da pesquisa (ANVISA, 2008).
Na categoria publicidade clássica, enquadram-se tex-
tos cujo propósito promocional é facilmente identificável,
quer porque apresenta estrutura genérica mais fixa (título,
texto, ilustração, slogan, assinatura), quer porque, em ca-
sos de hibridização com outros gêneros, não dissimula seu
propósito estratégico. Um exemplo são publicidades que

168
Iran Ferreira de Melo (Org.)

recorrem a histórias em quadrinhos para promover explici-


tamente um produto. A categoria publicidade indireta, por
sua vez, diz respeito a textos que, sem mencionar nomes
comerciais, apresentam marcas, logotipos, cores, símbo-
los, fotos, indicações de uso, potencialmente capazes de
identificar o produto farmacêutico. Neste tipo de anúncio,
não há menção explícita e direta ao produto promovido.
A categoria geral publicidade institucional, por sua vez,
engloba textos cuja finalidade parece ser a promoção de
instituições, uma vez que não há menção a medicamentos.
No entanto, por meio de marcas, logotipos, cores, símbolos,
fotos, indicações de uso e outros recursos, promovem, de
fato, produtos farmacêuticos. Difere da publicidade indireta
porque aquela não exalta qualidades de empresas. Por fim,
fazem parte da categoria publicidade oculta textos em que
se omite ou se dissimula o caráter publicitário. Exemplos
de todas as categorias de texto podem ser encontrados em
Ramalho (2008). Aqui, exemplificaremos apenas a publi-
cidade indireta.
Depois de sistematizados, os dados documentais de-
ram origem a um corpus principal composto por 13 textos
e, posteriormente à aplicação de questionários de leitura,
delimitamos um corpus de 6 textos, representativos do
gradiente “mais ou menos explicitamente promocional”.
Isso significa que, para responder às questões de pesquisa,
somamos à investigação da composição dos textos promo-
cionais, comentada a seguir, outros dois elementos atuantes
em processos de significação: a produção e a recepção/
consumo de textos.
Aspectos diretamente relacionados à produção dos
textos publicitários foram investigados em dados formais,
como legislações vigentes, e, também, em dados informais,
quais sejam, notas de campo feitas em eventos organiza-
dos para discussão da legislação específica, envolvendo

169
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

diferentes atores sociais: empresários da indústria de me-


dicamentos, autoridades federais, sanitaristas, editores,
publicitários.
Para investigar aspectos da recepção dos textos do cor-
pus principal, recorremos a aplicação de questionário aberto
autoadministrado, seguido de categorização e quantificação
de respostas, com questões acerca (1) da(s) função(ões) do
texto; (2) de elementos discursivos relevantes para a identifi-
cação da(s) função(ões), e (3) do tema do texto. Nessa fase,
os/as colabores/as da pesquisa, estudantes de Graduação da
Universidade de Brasília, leram os 13 textos do corpus prin-
cipal para responder aos questionários. Para discussão mais
detalhada, ver Ramalho (2008).
Por fim, para o estudo da composição dos textos,
ou seja, para a análise textual, estabelecemos um diálogo
teórico-metodológico entre a teoria da narratividade do
texto publicitário (VESTERGAARD & SCHRODER,
1994), categorias analíticas da Gramática Visual (KRESS
& VAN LEEUWAN, 1996) para análise de imagens e ca-
tegorias da ADC.
Para ilustrar o estudo realizado, trazemos a análise do
texto “Na hora H, conte conosco”, um exemplo de publicidade
indireta, coletada em um espaço público em 2006.

5.2 “Na hora H, conte conosco”: aproximação analítica

O texto a seguir, coletado em um espaço público em 2006,


é uma das amostras do gênero conhecido no meio publicitário
como mídia card:

170
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Figura 2 – Texto “Na hora H, conte conosco” (2006)


Fonte: Distribuição gratuita.

O mídia card é um gênero que vem se consolidando na


prática publicitária. De acordo com Sampaio (2003, p. 107,
317), os “postais distribuídos em bares e restaurantes” são
uma mídia extensiva, complementar aos veículos básicos de
comunicação. Constituem, ainda segundo o autor, uma das
tendências da publicidade, resultante da atual “necessidade de
desenvolver novos formatos”. Se a publicidade como um todo

171
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

carece de novos formatos, no caso das propagandas de medi-


camento essa necessidade amplia-se. O formato mídia card,
nessa perspectiva, contribui não só para atingir de maneira
mais eficiente o leitor, mas também para fazê-lo de modo que
não seja, ao menos imediatamente, percebido como propagan-
da de medicamento. No livro Reclames da Bayer (2006), em
que, posteriormente à coleta de dados, o texto foi publicado,
essa propaganda é apresentada como “institucional”. Significa
que, para o anunciante, o texto em análise é uma propaganda
dos laboratórios Bayer, e não do medicamento Levitra, imi-
tação do Viagra patenteado pela Pfizer. “Imitação” significa
que, findada a vigência da patente do medicamento, ele pode
ser produzido por outros laboratórios. Como são muitas as
imitações, só mesmo a propaganda, como observou Angell
(2007), pode destacar uma ou outra marca concorrente. Se-
gundo a autora, nos EUA, país em que a prática publicitária
é liberada, a propaganda de medicamentos para disfunção
erétil assume proporções assustadoras. No Brasil, apesar de
proibida, essa propaganda é feita, por exemplo, por meio de
supostas “campanhas de utilidade pública”, como discutimos
na pesquisa, e, também, “publicidades institucionais”, como
se pretende o texto apresentado.

5.2.1 Atratividade por sentidos implícitos

Conforme mencionamos acima, para o anunciante, o texto


“Na hora H, conte conosco” é uma “publicidade institucio-
nal”, cuja finalidade, portanto, é promover o laboratório. No
regulamento da Anvisa (2008), publicidade dessa natureza
é definida como “aquela que exalta a qualidade da empresa,
sem exaltar características dos medicamentos, insumos ou
substâncias ativas”. Uma vez que, em princípio, não promove
medicamentos, essa prática promocional é autorizada. Entre-
tanto, numa leitura um pouco mais crítica e contextualizada

172
Iran Ferreira de Melo (Org.)

na conjuntura de crescente conversão do medicamento em


“símbolo de saúde” (RAMALHO, 2008), é possível identificar
várias sugestões, tanto em modalidade verbal quanto visual,
ao medicamento Levitra produzido pela Bayer, e não só ao
laboratório que o fabrica.
Assim como textos analisados na pesquisa que exploram
a cor azul do medicamento Viagra, também no texto em aná-
lise a cor laranja do Levitra parece servir de recurso alusivo
ao medicamento. Além da cor que remete ao produto, temos
a representação particular dos participantes, assim como a
atribuição de valores específicos às informações, como meios
para a construção de sentidos implícitos.
Embora sejam poucos os elementos de composição tex-
tual, uma leitura possível é de que a representação dos parti-
cipantes – mulher e homem na faixa etária dos 40 anos (idade
que também é sugerida pela imagem) – conjugue traços das
estruturas narrativas do tipo reacional e mental. Segundo Kress
e van Leeuwen (1996), o design visual como representação
pode ser analisado segundo dois tipos de estrutura: narrativa
e conceitual. Estruturas visuais que representam ações, even-
tos, processos de mudança, arranjos espaciais transitórios são
narrativas. O que caracteriza uma estrutura como narrativa é
a presença de um vetor, uma linha imaginária, formada por
corpos, braços, linha do olhar, instrumentos em ação, dentre
outros, que sugere ações, eventos. O tipo de vetor, a quantidade
e os tipos de participantes envolvidos definem os processos
narrativos como: processos de ação, processos reacionais, pro-
cessos verbais, processos mentais e processos de conversão.
No texto, temos estruturas narrativas do tipo reacio-
nal, sinalizada por vetores formados pela linha dos olhos, e
mental, indicada pelos pensamentos. Como não há balões de
pensamento nem de fala delimitando os elementos verbais
constituídos pela pergunta “Quando?” e pela resposta “Ago-
ra!”, não podemos afirmar com precisão se o casal manifesta

173
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

esses elementos como “verbiagem”, mensagem de balões


de fala, ou como “fenômeno”, mensagem característica de
balões de pensamento. O que importa é a representação dos
participantes em termos de fenômenos mentais. Isso se explica
pelo fato de tanto o processo reacional transacional, em que
um participante projeta a linha do olhar ao outro, quanto os
processos mental e verbal, em que o participante emite um
pensamento/fala, implicarem representação dos participantes
segundo (a verbalização de) seus conhecimentos, percepções,
desejos, emoções, conforme a LSF.
Observa-se que a distribuição das informações na imagem
explora o eixo horizontal. Na frente do mídia card, temos a
imagem, de acordo a estrutura típica de cartão-postal. Na
imagem, a mulher, à direita, conforme se sugere, projeta o
vetor, formado pela linha do olhar, ao homem. Ela representa
o experienciador (reacter), aquele que experiencia o processo
de “sentir”, e o homem, por sua vez, representa o fenômeno,
o alvo da percepção feminina. Outro indício de que o ponto
de partida da informação seja a mulher diz respeito ao fato
de ser ela quem lança a pergunta, de modo a sugerir que é ela
quem age sobre o homem e dele espera algo. O homem, à es-
querda, compartilha espaço com as informações consideradas
mais importantes. Além de estar mais visível ao leitor – ao
contrário da mulher, que está de cabeça para baixo –, divide
espaço com os elementos mais importantes para a publicidade,
quais sejam, as referências comerciais – logotipo/assinatura
“Bayer”, e slogan “Se é Bayer, é bom”. Essa disposição,
somada ao fato de o medicamento aludido ser indicado ao
público masculino, sugere que o alvo do cartão publicitário
são os homens.
Em termos representacionais, essa organização semiótica
particular sugere envolvimento sentimental e íntimo entre os
participantes, que expressam desejos, emoções, sentimentos.
É, notadamente, sugestiva ao ato sexual. Em termos identifi-

174
Iran Ferreira de Melo (Org.)

cacionais, constrói uma realidade em que a mulher moderna


é quem cobra desempenho sexual do homem maduro, o
consumidor potencial que, para atender a tal exigência social
ou mesmo para buscar autorrealização, pode “contar” com a
Bayer, um dos laboratórios que produzem medicamento para
disfunção erétil.
Em termos acionais, observa-se, por fim, que no verso do
cartão, à esquerda, é reiterada a mensagem para o leitor “Na
hora H, conte conosco”, ao passo que à direita estão, novamen-
te, os elementos comerciais logotipo e slogan. Também é no
verso do cartão que se observam tipificações mais marcadas
do gênero “cartão postal”, quais sejam, os espaços reservados
para o endereço do destinatário, para uma pequena mensagem
do remetente e para o selo. Com base em Bazerman (2000),
reconhecemos o “cartão postal” como um gênero próprio da
ordem de discurso “interpessoal”, e fruto de um processo de
simplificação da “carta pessoal”. Nessa cadeia de gêneros,
os “cartões publicitários”, podem ser vistos como um dos
gêneros que evoluíram da carta pessoal, mas que hibridiza as
ordens de discurso do mundo da vida e da publicidade. Esses
cartões, segundo informações da agência pioneira nesse for-
mato publicitário, teriam chegado ao Brasil no final de 1990,
e hoje já estariam consolidados como veículo de baixo custo
e amplo alcance.
O “cartão publicitário”, portanto, pode ter passado por
um processo de constituição por hibridização genérica, mas
hoje representa efetivamente um gênero em emergência.
Também criado a partir da carta pessoal, mas como resposta,
num contexto social específico, à tendência de dissolução de
fronteiras entre o mundo da vida e o sistema da economia.
As práticas publicitárias são amplamente revisadas à luz de
conhecimento do perito em linguagem, sobretudo no que
diz respeito à recepção e aceitação do consumidor potencial.
Assim sendo, no campo da publicidade exploram-se com

175
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

frequência novos formatos, o que aponta para a insuficiência


de abordagens mais rígidas de tipologia textual, como ainda
se verifica em alguns trabalhos com gêneros publicitários.
O texto em análise é um exemplo da publicidade praticada
nos dias atuais, em que hibridismos de gêneros dão origem a
novos formatos, orientados para alcançar o leitor potencial em
situações mais espontâneas, em que a demanda à atividade de
consumir não seja feita explicitamente. No que toca à promo-
ção de medicamento, a essa vantagem soma-se a possibilidade
de dissimular o produto anunciado. Apesar das comentadas
alusões ao Levitra, por não mencionar diretamente ao me-
dicamento, o texto simula uma publicidade que teria como
principal objetivo promover a indústria farmacêutica. Ocorre,
no entanto, que o texto parece promover não só a instituição,
mas também seu produto, indicado para o público masculino
e cuja publicidade é proibida pela Anvisa.
Na pesquisa, as análises indicaram que não se trata somente
de “publicidade institucional”; temos, de fato, um exemplo
de “publicidade indireta”, em que sugestões feitas por cores,
símbolos, disposição de imagens, possibilitam a divulgação de
medicamentos sem que estes sejam referidos de modo explícito,
como discutimos na subseção 5.1. A análise permite dizer que
a atratividade centra-se nos sentidos implícitos, que sugerem
intimidade sexual entre o casal, assim como na estranheza que
pode ser causada pelo novo formato publicitário.

5.2.2. Estratégia de proximidade

No que diz respeito aos recursos articulados no texto


para persuadir o leitor, seja acerca das qualidades do produto
anunciado, seja acerca das supostas vantagens de seu consumo,
destacam-se a interdiscursividade e a metáfora.
A interdiscursividade consiste na hibridização, em textos,
de discursos oriundos de diferentes ordens de discurso. É uma

176
Iran Ferreira de Melo (Org.)

categoria que permite explorar a presença/ausência de discur-


sos particulares, articulados de maneiras específicas, como
parte de lutas hegemônicas, mas também como recurso para
estimular desejo/criar convicção no leitor, no caso da publici-
dade. Constitui um traço moldado por discursos particulares,
ligados a campos sociais, interesses e projetos particulares, por
isso é um aspecto representacional do significado. Discursos
particulares, como o científico, podem ser identificados pelo
vocabulário ou seleção lexical, uma vez que “lexicalizam” o
mundo de maneiras particulares.
A metáfora, por sua vez, é, em princípio, um traço
identificacional de textos, moldado por estilos particulares.
Segundo Lakoff & Johnson (2002), a essência da metáfora
é “compreender uma coisa em termos de outra”. Como os
autores observam, nosso sistema conceptual é metafórico por
natureza, isto é, sempre compreendemos aspectos particulares
do mundo, de acordo com nossa experiência física e cultural,
em termos de outros aspectos, estabelecendo correlações. Os
conceitos metafóricos que estruturam nossos pensamentos,
ainda segundo os autores, também estruturam nossa percep-
ção, nosso comportamento, nossas relações. As metáforas
moldam significados identificacionais em textos, pois, ao
selecioná-las num universo de outras possibilidades, o locutor
compreende sua realidade e as identifica de maneira particular,
ainda que orientadas por aspectos culturais.
Como mencionamos, o cartão publicitário constitui
um gênero emergente da publicidade que se origina da hi-
bridização de convenções discursivas oriundas das ordens
de discurso do mundo da vida e da publicidade. Elementos
característicos da interação de tipo interpessoal mesclam-
se a elementos tipificados de anúncios. Como parte dessa
hibridização, opera-se um processo de interdiscursividade
que converge com o conceito de “democratização sintética
do discurso”, uma tecnologia discursiva em que se eliminam

177
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

assimetrias explícitas no discurso, tendo em vista finalidades


ideológicas (FAIRCLOUGH, 2001). Além das tipificações
de um gênero associado em princípio ao mundo da vida, o
texto não ordena ao leitor que consuma o produto, mas cria,
de maneira sintética, uma interação supostamente simétrica.
Esse efeito é alcançado não só pela articulação de recursos
da modalidade visual, mas também da modalidade verbal. A
oferta “Na hora H, conte conosco” sugere proximidade entre
os interlocutores, assegurada pelo tom conversacional, que
converte uma ordem em um conselho amigável.
Este “conselho” constrói, ainda, uma relação em que
o medicamento produzido pelo laboratório é representado
como instrumento de guerra. Como se sabe, “hora H” é uma
expressão característica da terminologia militar utilizada para
referir a hora escolhida para dar início a operações de guerra.
Aplicada para compreender outros conceitos, como o ato
sexual, converte-se em metáfora de militarização. Esse uso
figurado da linguagem, identificado em diversos textos do
corpus da pesquisa, é frequente em anúncios, que representam
a “doença” como inimigo, e o “medicamento” como o recurso
bom e desejável, capaz de vencê-lo. Essa metáfora corrobora
a estratégia ideológica de democratização do discurso, visto
que o laboratório e o consumidor potencial tanto da publi-
cidade quanto do Levitra são apresentados como “membros
do mesmo exército” na luta contra a impotência sexual. Tal
representação, ainda que sem uma fábula publicitária explícita,
reserva o papel de doador medicamento, aquele que intercede
favoravelmente ao sujeito na busca pela vida sexual plena
(VESTGAARD & SCHRODER, 1994).
Outra importante representação metafórica típica de
anúncios, observada na pesquisa mais ampla, diz respeito à
relação metonímica de “parte pelo todo”, discutida em Lakoff
& Johnson (2002) e Eco (1997). No texto, o casal (parte) é
apresentado como representante de sua classe ou categoria,

178
Iran Ferreira de Melo (Org.)

isto é, de “todos os homens e mulheres modernos e com vida


sexual ativa” (todo). O sentido que se constrói é o de que se
o casal do anúncio, modelo a se copiar, é feliz porque con-
some Levitra, o leitor potencial, assim como todas pessoas
representadas pelo par, também pode alcançar a felicidade
pelo consumo do medicamento, o objeto que materializa os
conceitos de saúde, felicidade, vigor. Tais sentidos atuam como
estratégia ideológica de unificação, pelo fato de construírem
simbolicamente uma forma de unidade que interliga indiví-
duos numa identidade coletiva, qual seja, a de consumidor de
medicamentos (THOMPSON, 2002a). Ainda como parte da
estratégia de proximidade, podemos observar o tipo de contato
visual estabelecido entre o par representado e o leitor.

5.2.3 Convite velado à ação

Como indicamos, a imagem do cartão publicitário sugere,


pelo vetor que emana dos olhos e pela pergunta verbalizada
ou mental, que a mulher age sobre o homem. Desse modo, os
participantes representados é que interagem, e não demandam
diretamente algo do leitor. Na composição textual, a única
demanda é aquela insinuada ao leitor – “Na hora H, conte
conosco” – como um conselho simétrico. No mais, a compo-
sição imagética sugere troca de conhecimento/informação.
Kress e van Leeuwen (1996) explicam que nesse tipo de re-
presentação visual, não há contato direto entre os participantes
representados e o leitor, o participante interativo. A troca é de
conhecimento, por meio de ofertas, em que os participantes
representados são oferecidos como itens de informação ou
objetos de contemplação. Esses elementos verbais e visuais,
ligados ao tipo de troca e contato visual estabelecido, corrobo-
ram a “democratização sintética do discurso”, já identificada
na interdiscursividade e nas metáforas do texto. A ordem ve-
lada, possibilitada no cartão publicitário pela articulação dos

179
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

discursos do mundo da vida e da publicidade, constitui uma


das estratégias para alcançar o leitor em situações de descon-
tração. No caso específico da propaganda de medicamentos,
constitui, ainda, estratégia para dissimular o propósito de
“promover o Levitra”.
O que se verifica, como em muitos outros textos do cor-
pus da pesquisa, é um processo não só de “intergenericidade”,
como entende Marcuschi (2005), mas, sim, de metáfora acio-
nal, ou seja, de uma maneira não congruente de (inter-)agir,
orientada para estabelecer e sustentar relações de dominação
(RAMALHO, 2008, 2009). Na releitura da multifuncionalida-
de da linguagem segundo os significados do discurso, como já
discutimos, traços da função interpessoal de Halliday (1985),
ligada a relações sociais estabelecidas pela linguagem, foram
incorporados ao significado acional do discurso, relativo a
gêneros. Isso significa que gêneros – maneiras recorrentes de
(inter-)agir – implicam relações com os outros mas também
ação e poder sobre os outros.
Tal compreensão do vínculo gênero-poder permite con-
ceber dissimulações particulares do propósito estratégico-
promocional, a exemplo do que ocorre no texto “Na hora H,
conte conosco” não só como “trocas não congruentes” mas,
sobretudo, como maneiras não congruentes de (inter-)agir
orientadas para estabelecer e sustentar relações de domina-
ção. Observa-se que o uso de tipificações genéricas, como
recursos disponíveis na rede de opções de ordens de discurso,
não se presta apenas para coordenar atividades e compartilhar
significados pelo reconhecimento de maneiras recorrentes de
interagir. Tal uso de convenções genéricas pode estar reves-
tido ideologicamente e funcionar como instrumento de luta
hegemônica. Com base em Thompson (2000a), podemos con-
ceber a metáfora acional como uma estratégia de construção
simbólica, baseada no uso figurado da linguagem e ligada ao
modo de operação da ideologia por “dissimulação”. Isto é,

180
Iran Ferreira de Melo (Org.)

uma maneira não congruente de (inter-)agir que pode servir


para ocultar, negar ou obscurecer relações de dominação,
favorecendo a ação ideológica sobre o outro, assim como a
distribuição assimétrica de poder.
No texto em análise, a rearticulação estratégica de tipifi-
cações do cartão-postal contribui para dissimular propósitos
promocionais, facultando a divulgação de propagandas de
medicamentos éticos. O cartão publicitário, como destacam
pesquisas atuais do campo, permite alcançar o consumidor
potencial cada vez mais “alfabetizado em publicidade”. Se a
“ordem” tende a ser rejeitada, a oferta de informações pode
receber menos rejeição do público-alvo. Para o regulador/
legislador da propaganda de medicamentos, o emergente
formato publicitário pode representar mais um obstáculo
para coibir a divulgação de medicamentos como a suposta
“materialização da saúde”.
Nota-se que os recursos discursivos utilizados para
perseguir a meta de atrair o leitor e “mascarar a ordem” em
anúncios de produtos farmacêuticos avançam os de natureza
lexicogramatical em direção a novas articulações de elemen-
tos de ordens de discurso. Com isso, queremos destacar a
emergência do gênero cartão publicitário como instrumento
e tendência de pressões sociais específicas, fundado na rear-
ticulação de convenções de gêneros, discursos e estilos de
diferentes campos. É perceptível que a “publicidade indireta”
do Levitra apoia-se mais em elementos visuais e tipificações
discursivas trazidas de diferentes campos sociais do que pro-
priamente em recursos verbais.
As análises realizadas na pesquisa mais ampla, a exem-
plo desta que trazemos aqui, apontam que, como respostas a
mudanças sociais, mudanças discursivas podem ter potencial
ideológico, sobretudo no que tange à articulação estratégica de
convenções de gêneros, discursos, estilos de diferentes ordens.
Vimos que representações particulares (discurso do complexo

181
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

médico-hospitalar e publicitário) são legitimadas em modos


particulares de ação e relação (gênero “anúncio de medicamen-
to”), e inculcadas em maneiras particulares de identificação
(identidade do “consumidor de medicamento”). Os discursos
articulados nos textos do corpus prestam-se à legitimação do
medicamento como símbolo da materialização mágica e instan-
tânea da saúde – e de valores, crenças a ela associados. Os estilos
seguem enfatizando supostas qualidades do medicamento, este
apresentado como algo bom e desejável, ocultando possíveis
contraindicações, efeitos colaterais, assim como contribuindo
para a identificação do “consumidor de medicamento”. Os gê-
neros, por fim, articulam-se hierarquicamente nos textos para
funcionarem como recursos à atratividade, mas também para
dissimular propósitos promocionais/estratégicos.
Como resultado da investigação da evolução do gênero
“anúncio de medicamento” em resposta a mudanças sociais
da modernidade tardia, e sua relação com questões de poder,
observamos a emergência de novas tecnologias discursivas
– manipulação estratégica da linguagem orientada para pro-
jetos de dominação – baseadas em hibridismos de gêneros.
Determinadas hibridizações genéricas, a exemplo da analisada
aqui, funcionam como tecnologias discursivas estrategica-
mente aplicadas para promover medicamentos de maneira
dissimulada no contexto de vigilância. Ainda que o anunciante
defina o texto “Na hora H, conte conosco” como “publicidade
institucional”, verificamos sua potencialidade para constituir
uma “publicidade indireta”, em que sugestões feitas por cores,
símbolos, disposição de imagens, possibilitam a divulgação
do medicamento sem que este seja referido de modo explícito.
Podemos, certamente, reconhecer as publicidades de
medicamento como um gênero de governância, associado aos
meios de comunicação e orientado para controlar crenças sobre
saúde; práticas de consumo no mundo da vida; identificação
do/a “consumidor/a de medicamento”, e assim por diante. Por

182
Iran Ferreira de Melo (Org.)

isso, gêneros, maneiras particulares de ação e relação, podem


legitimar discursos ideológicos, ou seja, maneiras particulares
de representar práticas “a partir de perspectivas posicionadas
que suprimem contradições, antagonismos, dilemas, em favor
de seus interesses e projetos de dominação” (CHOULIARAKI
& FAIRCLOUGH, 1999, p. 26).

6. Considerações finais

Neste artigo, buscamos apontar possíveis contribuições


da Análise de Discurso Crítica para uma abordagem crítica
dos gêneros discursivos, que os associe a questões de poder.
Retomamos sucintamente alguns conceitos centrais de Bakhtin
(1997) e comentamos algumas das abordagens contemporâneas
de estudos de gêneros, sobretudo a Escola de Sidney e a Nova
Retórica. Em seguida, discutimos a abordagem teórica dos
gêneros discursivos em ADC, contrastando brevemente com
princípios da LSF e da Nova Retórica. Discutimos, ainda, a
proposta teórico-metodológica da ADC para estudo de gêneros
particulares em textos, bem como de traços textuais do aspecto
acional do significado. Por fim, trazendo exemplos da pesquisa
“Discurso e ideologia na propaganda de medicamentos: um
estudo crítico sobre mudanças sociais e discursivas” (RAMA-
LHO, 2008), refletimos, com base na compreensão de gêneros
da ADC, sobre a emergência de novas tecnologias discursivas
na propaganda de medicamentos, baseadas em “metáforas
acionais”, em maneiras não congruentes de (inter-)agir pela
linguagem que podem, em determinadas práticas sociais, operar
ideologicamente ocultando, negando ou obscurecendo relações
de dominação. Dessa forma, esperamos ter contribuído para in-
cluir, na discussão sobre gêneros, uma perspectiva mais crítica,
que veja os gêneros não só como formas textuais tipificadas
mas, antes, como maneiras de agir e se relacionar em práticas
sociais que podem servir a projetos de dominação.

183
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

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187
Iran Ferreira de Melo (Org.)

A MULHER NO LÉXICO DA CANÇÃO DE


CONSUMO: UM DISCURSO POLARIZADO
Beatriz Daruj Gil
Universidade de São Paulo

1. Introdução

Idealizada, desprezada ou amada, a mulher é tema


dominante nos discursos cancioneiros que, naturalmente,
reproduzem o pensamento que os grupos sociais têm sobre
o mundo feminino. Considerando a cultura grega, a latina e
a judaico-cristã, três referências culturais marcantes para o
mundo ocidental, vê-se que a mulher, ao longo dos tempos,
tem sua identidade construída sempre em função do elemento
masculino. Beltrão Jr. (1993), em um estudo sobre a figura
feminina em letras de canções populares brasileiras, observa
que a sociedade patriarcal grega reservava à mulher os cuida-
dos domésticos e filiais, mantendo-a distante da vida da rua.
O homem, por sua vez, buscava na relação com as mulheres
exclusivamente o prazer do corpo, enquanto o amor acontecia
apenas entre homens. A realidade grega patriarcal, portanto,
constrói a mulher como um objeto de satisfação para o homem.
Do espaço público da polis, lugar onde os discursos eram
enunciados, apenas homens faziam parte, já que eram consi-
derados os únicos detentores do conhecimento. Mulheres e
escravos estavam privados de serem vistos e ouvidos fora do
espaço doméstico. Caponi (2006, p. 108) observa que “se o
patriarcado e a escravidão, relações eminentemente desiguais,

189
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

eram tolerados no âmbito do privado, era porque as pessoas


que pertenciam exclusivamente a esse espaço (mulheres, es-
cravos e bárbaros) careciam de significação e de consequência
para os outros”.
A cultura latina, associada à ideologia judaico-cristã, é
que divulga a mulher-Eva, considerando-a responsável pela
perda do Paraíso. O texto bíblico revela uma mulher subjugada
ao homem, como seu objeto de posse, além de representá-la
como a fonte do mal e de pecado (BELTRÃO JR., 1993).
Fundado na herança cultural, o discurso da canção brasi-
leira é, desde os primeiros tempos, essencialmente masculino,
tendo a mulher ingressado nesse universo como intérprete,
apenas para reproduzir o pensamento dominante do homem.
Produzindo e cantando músicas que falavam sobre as relações
amorosas entre o homem e a mulher, os homens transmitiram
e introjetaram na consciência coletiva a visão que tinham da
mulher. Criaram uma representação do feminino em seu discur-
so machista e patriarcal e revelaram o pensamento do universo
masculino sobre a mulher, marcando a identidade absolutista.
Para Santa Cruz (1992), em grande parte de seu reper-
tório, a música brasileira foi um meio divulgador de precon-
ceitos contra a mulher reiterando, muitas vezes, um discurso
masculino de poder e dominação.
Este estudo, portanto, procura observar como enunciado-
res masculinos constroem a identidade feminina nas escolhas
lexicais realizadas em canções de fácil consumo. O corpus
escolhido é um conjunto de sete canções de Victor e Leo que
tratam da relação amorosa entre um homem e uma mulher.
São elas: Razão do meu astral, Você sabia, Lado errado, Tanta
solidão, Sem você, Lembranças de amor, Fotos.

2. Léxico e ideologia

Com base na orientação sociocognitiva da Análise Crítica


do Discurso, as ideologias possuem uma dimensão cognitiva,

190
Iran Ferreira de Melo (Org.)

pois incorporam dados mentais, como ideias, pensamentos


e valores. Para analisar o discurso desse ponto de vista, Van
Dijk (2003) define um triângulo em cujos vértices estão Dis-
curso, Sociedade e Cognição. Associados aos sistemas de
cognição, há dois tipos de memória, a episódica, que reúne
crenças fundamentadas em experiências pessoais e a social
que congrega crenças e conhecimentos compartilhados. Os
modelos mentais são as representações mentais da memória
episódica e estão divididos em modelos mentais contextuais,
que consistem nas crenças e pensamentos que o enunciador
possui sobre o que pensam e o que são seus interlocutores,
ou seja, o que se sabe sobre as relações entre os participantes
da enunciação, sobre sua identidade, o tempo e o espaço do
ato enunciativo; e modelos mentais de acontecimentos, o que
se sabe sobre as situações de que falam e escrevem os enun-
ciadores, e que servem tanto como ponto de partida de quem
constrói o discurso como de quem o interpreta.
Em relação ao vértice Sociedade, observa Van Dijk (2003)
que as mentes que incorporam e utilizam uma ideologia são
conectadas socialmente e por isso a prática de uma ideologia
está nas ações sociais divulgadas em discursos reais. Assim,
os aspectos sociais dos discursos podem ser analisados em um
plano local, observando-se a interação e a situação comunica-
tiva, ou seja, os modelos mentais contextuais, e em um plano
global, considerando os grupos, instituições e organizações
nos quais determinado discurso se insere.
Cada um desses grupos ou instituições é definido por
origem, religião, idioma, atividade profissional ou alguma
outra característica compartilhada por seus membros. Possuem
uma ideologia própria e tratam de divulgá-la por meio do dis-
curso e, assim, captar novos membros para que sua ideologia
se mantenha viva. É ela que retrata o grupo, une e identifica
os membros, o que facilita o surgimento, entre aqueles que a
partilham, da sensação de poder da união em torno de algo em

191
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

comum, e o que, por sua vez, faz com que o grupo produza
um discurso polarizado, valorizando-se e qualificando-se e
desvalorizando aqueles que não o integram.
É com base nessa relação polarizada que Van Dijk (2003)
formulou o quadrado ideológico, buscando explicar a combi-
nação dessas crenças sociais de um grupo com sua expressão
no discurso:
Pôr ênfase em nossos aspectos positivos
Pôr ênfase em seus aspectos negativos
Tirar ênfase de nossos aspectos negativos
Tirar ênfase de seus aspectos positivos

Para observar os modelos cognitivos (Cognição) e a


construção da ideologia (Sociedade), é necessário escolher
estruturas discursivas (Discurso) que sejam relevantes para
questões sociais, entre as quais podem ser citados, segundo
Van Dijk (2003), os temas, o grau de detalhamento do assunto,
suposições e inferências, coerência, sinonímia e paráfrase,
exemplos e ilustrações, negação aparente, atores, modalização,
provas, ambiguidade, topoi, estruturas formais (gramaticais)
e seleção de palavras.
É a seleção lexical a propriedade discursiva escolhida
neste estudo para analisar o discurso das canções do ponto de
vista da ideologia e da cognição.
À medida que conhece seres e objetos, o homem tem a
necessidade de categorizá-los e nomeá-los, construindo para
isso um sistema classificatório: o léxico. Acumula, então,
signos lexicais e desenvolve modelos categoriais de geração
de novas palavras para ampliar seu repertório vocabular e
designar novos aspectos da realidade dos quais ele se apropria.
O progresso tecnológico e científico e as alterações sociais
contribuem, assim, para a expansão contínua do léxico, con-
siderado um sistema aberto que se desenvolve junto com o
homem e a sociedade (BIDERMAN, 2001).

192
Iran Ferreira de Melo (Org.)

O conjunto de unidades lexicais de uma língua espelha,


portanto, a experiência humana acumulada e, particularmente,
traços das práticas culturais e sociais dos grupos. Quando essas
unidades do léxico são manifestadas no uso da língua, revelam
as alterações dessas práticas, deixando evidentes os incessantes
movimentos humanos em seus hábitos sociais e culturais.
Atualizadas no discurso, essas unidades revelam valores
ideológicos e visões de mundo dos sujeitos da enunciação,
explicitando qual é a percepção que os enunciadores do dis-
curso têm da realidade.
Pertencentes ao nível do sistema da língua, os lexemas
são unidades virtuais do léxico porque ainda não se atualiza-
ram discursivamente. O vocábulo, unidade léxica atualizada
repetidamente em um vocabulário de um grupo, pertence ao
nível da norma – conjunto de realizações tradicionais e de
uso comum do grupo linguístico. A lexia, também denomi-
nada palavra-ocorrência, é a unidade lexical atualizada em
um discurso particular, como resultado de uma escolha feita
pelo enunciador de acordo com as necessidades da situação
de enunciação, que é singular e única.
Para o estudo das estruturas sociais e culturais associadas
à produção lexical, é necessário, portanto, avaliar os elementos
lexicais nas manifestações discursivas, nos enunciados (lexias) e
não no sistema (lexemas), usando teorias linguísticas que deem
conta das relações entre estruturas do discurso e estruturas sociais,
como, por exemplo, a orientação sociocognitiva da Análise Críti-
ca do Discurso, escolhida como fundamento teórico desta análise.

3 Análise do corpus

3.1 Contextualização e apresentação do corpus

Definidas com base nas necessidades da sociedade de


uma época, as canções de consumo têm estilo informal, atin-
gem grandes públicos, dominam o mercado fonográfico e são

193
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

repelidas pela faixa da população que procura, na audição da


melodia ou da letra, identificar traços específicos do com-
positor (TATIT, 2004). As letras apresentam temas simples,
divulgam uma visão romântica do amor e exploram, na maioria
das vezes, a relação entre homens e mulheres.
Os autores/intérpretes das canções do corpus são Victor
e Leo, dupla que se popularizou no país a partir de 2006 e
que já gravou sete CDs e dois DVDs. Classificam-se como
representantes da continuidade da “renovada música sertaneja
com um inconfundível estilo que mescla folk, pop, romantismo
e sertanejo de raiz” (VICTOR e LEO, 2010).
O gênero sertanejo é um dos que divulga a canção de
consumo e que se fortalece no país a partir da década de 1980,
época em que a indústria fonográfica preocupa-se em divulgar
o produto nacional e regional, respondendo a uma necessidade
da sociedade que não aceitava plenamente a fixação da música
norte-americana presente naquele momento. Com origem na
música caipira, o gênero adaptou-se ao consumo de massa
do meio urbano, atingindo grandes púbicos por meio de sua
divulgação em megashows e programas televisivos de signi-
ficativa audiência. É a canção-show e a audição de grandes
temas românticos e dramáticos em espetáculos grandiosos
que passam a emocionar os ouvintes que costumam receber
as canções em bloco.
As canções do corpus, portanto, serão analisadas em
conjunto, observando-se como a seleção lexical do discurso do
bloco contribui para a construção de determinadas visões de
mundo. Seguem abaixo as sete canções integrantes do corpus1
e cujo léxico será objeto de análise deste estudo.

1 As canções foram extraídas de www.victoreleo.com

194
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Razão do Meu Astral – Victor Chaves

Não foi amor/Nem deixou de ser/Quem me dirá o


nome dessa história?/Quem me dirá/ Como foi pra
você/Se tudo pra mim revive na memória?
Se foi só ilusão/Meu coração não saberá
É triste ter que admitir/Que ainda te desejo aqui/E fe-
cho os olhos pra sentir/O cheiro do seu cabelo em mim
Quem foi a razão do meu astral/Agora me mata, me
faz mal/Mas veja que, pra mim/Morrer não é o fim

Você Sabia – Victor Chaves / Leo Chaves

Foi um sentimento que aos poucos/Tomou conta


sem deixar espaço/Fiquei completamente louco/
Completamente apaixonado
Aos olhos de quem está de fora/Parece coisa de nove-
la/Aí o sentimento aflora/Magia que ninguém espera
Tudo aconteceu num sonho/Ninguém como você
sabia/Que dentro do meu peito estava/Um coração
que amava e por você sorria
Até que você foi embora/Deixou de vez o meu
caminho/E quem sorria, agora chora/Dessa nossa
história vou lembrar sozinho
Você sabia

Lado Errado – Victor Chaves

Era como se estivesse pra começar/Um novo amor/


Eu, do lado errado, sem saber/Que, em vão, tudo
acabou
Como posso agora te culpar?/Fui eu quem quis te
encontrar/Me joguei no escuro sem pensar/Errei,
deixei-me levar
Agora mesmo, a chorar/Eu tenho que encontrar/Um
jeito de fazer você me amar
Eu simplesmente não sei mais/Gostar de alguém sem
ser você/Você roubou a minha paz/Vem cá, meu bem/
Vem cá dizer/Quem poderá me devolver

195
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Tanta Solidão – Victor Chaves / Leo Chaves

Veja no céu/Hoje a lua não saiu/Sem você/Nem o


meu olhar se abriu/Pra não ver tanta solidão
Queria aquele beijo que você negou/Queria ao menos
uma noite de amor/Pra mim
Nada a fazer/A não ser te esperar/Porque sei/Nada
nesse mundo irá me fazer/Esquecer você

Sem Você – Victor Chaves / Paula Fernandes

Nas incertezas de um caminho que é tão doído/Sem


você eu já me encontrava tão sozinho/Antes de adeus
você dizer/Na mágoa de um sonho que acabou/
Dia a dia sentia você partir/Sem rumo, perdido vou
ficando aqui
Sem você, sem você/Nem o tempo me faz com-
panhia/Não me arranca essa agonia de viver/Sem
você, sem você
O silêncio dessas horas frias são palavras que não
sei dizer/Ainda amo você

Lembranças de Amor – Victor Chaves

Veja só/Sei que palavras não consertam nada/Mas


eu acho que é melhor/A gente conversar
Afinal/O nosso caso não difere de outros casos/Que
acabaram mal/E só pra te lembrar
Eu já sofri demais/Mas longe de você/Sofrerei bem
mais
Preciso te dizer o que acontece com meu sentimento/
Chego em casa, não te vejo
O meu desejo é te ligar correndo/E pouco a pouco,
a solidão e o silêncio me abraçam/Minha alegria
passou/Só as lembranças de amor, não passam

196
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Fotos – Victor Chaves

Joguei fora fotos de nós dois/Reviver você não me


faz bem/Nem vai me trazer o que já foi/Você mudou
muito e eu também/Finjo que o tempo não passou/
Busco em outros olhos ver você/Fotos do que foi o
nosso amor/Não revelam outra pessoa pra ser
Uma vida pra tirar você da minha/Só seus flashes
disparam meu coração/Já rasguei as fotos, mas, em
pensamento/Guardo cópias do seu beijo e solidão

3.2 Sistematização do léxico: os campos semânticos

Para estudar o fenômeno léxico-semântico, é possível


utilizar a metodologia onomasiológica, em que, a partir de
um determinado conceito, procura-se encontrar os lexemas
a ele correspondentes; ou a metodologia semasiológica, em
que, inversamente, inicia-se por um conjunto de lexemas de
determinado discurso, buscando verificar o sentido comum
impresso por eles naquela atualização específica que define,
portanto, um conceito ao qual correspondem.
As duas metodologias contribuem para a sistematização
do léxico em campos semânticos, forma que demonstra como
o léxico de um discurso é organizador de determinada expe-
riência ou visão de mundo.
Utilizando a metodologia onomasiológica e tendo como
ponto de partida o conceito relação entre homem e mulher,
foram definidos cinco campos semânticos nos quais está
organizada parte do léxico das canções, como pode ser visto
a seguir:

197
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Lembranças de amor Idealização da mulher Sofrimento de amor


ou do sentimento
- “Revive na memória” - “A razão do meu astral” - “Agora me mata, me
- “Fecho os olhos pra - “Parece coisa de novela” faz mal”
sentir o cheiro do seu - “Magia que ninguém - “Quem sorria agora
cabelo em mim” espera” chora”
- “Nada nesse mundo/irá - “Vem cá dizer quem - “Nas incertezas de
me fazer esquecer você” poderá me devolver” um caminho que é tão
- “Só as lembranças de - “Tudo aconteceu num doído”
amor não passam” sonho” - “Na mágoa de um so-
- “Joguei fora fotos de - “Foi um sentimento nho que acabou”
nós dois” que aos poucos/Tomou - “Não me arranca essa
- “Reviver você não me conta sem deixar espaço/ agonia de viver”
faz bem” Fiquei completamente - “Eu já sofri demais/
- “Fotos do que foi o louco/Completamente Mas longe de você/So-
nosso amor/Não revelam apaixonado” frerei bem mais
outra pessoa pra ser uma Minha alegria passou”
vida pra tirar você da
minha”

Solidão Mulher culpada


- “Sem você/Nem o meu olhar se - “Você sabia”
abriu/Pra não ver tanta solidão” - “Até que você foi embora”
- “Dia a dia sentia você partir/Sem - “Você roubou a minha paz”
rumo, perdido vou ficando aqui” - “Queria aquele beijo que você negou”
- “Sem você, sem você/Nem o tempo - “Dia a dia sentia você partir”
me faz companhia” - “Sem você”
- “O silêncio dessas horas frias são - “Quem foi a razão do meu astral/ Agora
palavras que não sei dizer” me mata, me faz mal”
- “Chego em casa não te vejo”
- “A solidão e o silêncio me abraçam”

3.3 Análise das ocorrências

A relação dos elementos do léxico apresentada nos cam-


pos semânticos contribui para a constituição do sentido que os
enunciadores têm a respeito da relação entre homem e mulher.
No campo semântico Lembranças de amor as lexias
constroem um homem que vive de lembranças de um amor
que acabou. Paradoxalmente, ele deseja viver a lembrança da
mulher que já se foi em “Fecho os olhos pra sentir o cheiro do
seu cabelo em mim”, ao mesmo tempo em que rechaça essa

198
Iran Ferreira de Melo (Org.)

lembrança: “Joguei fora fotos de nós dois/Fotos do que foi o


nosso amor/Reviver você não me faz bem”.
Esse homem considera-se um sofredor e aponta como
causa do sofrimento a relação de amor desfeita, como pode
ser observado no campo semântico Sofrimento de amor:
“Quem sorria agora chora/Nas incertezas de um caminho
que é tão doído/Na mágoa de um sonho que acabou/Não me
arranca essa agonia de viver/Eu já sofri demais, mas de longe
de você sofrerei bem mais/Minha alegria passou”. O seu pas-
sado, considerado um momento feliz, é associado ao sonho,
como se vê em “Na mágoa de um sonho que acabou”, o que
indica que a relação amorosa é idealizada e não faz parte da
realidade e que está confirmado em outro campo semântico
Idealização da mulher ou do sentimento, em que podem ser
encontradas lexias que constroem um amor ligado a noções
de impossibilidade e predestinação que pode ser chamado de
amor-paixão. O sujeito apaixonado está possuído pelo amor e
a ansiedade, a carência e a dor pela ausência do ser amado são
geradas porque ele luta, clamando pelo amor, sem resultados
satisfatórios ou plenos.
Além disso, ele não se sente responsável pelo que está
sentindo; acredita que o amor o invadiu e dominou, foi selado
pelo destino como se vê em “Magia que ninguém espera/Tudo
aconteceu num sonho/Foi um sentimento que aos poucos
tomou conta sem deixar espaço/Fiquei completamente louco
apaixonado”. O amor é, então, magia e o homem é vítima des-
sa magia; é sonho, sentimento que toma conta e deixa louco.
Não parece ser o amor construído pelos amantes e, tampouco,
determinado por uma relação comunicativa entre os parceiros.
O amor-paixão apresenta-se como o exacerbamento do
sentimento amoroso, o que reflete uma postura narcísea de des-
preocupação com o outro e enaltecimento e querer próprios;
além disso, induz o sujeito apaixonado a crer que é dono do ser
amado. A face narcísea desse sentimento pode ser justificada

199
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

pelo fato de a grandiosidade do amor aparecer nas letras das


canções como um sentimento de alguém por outro alguém que
não se conhece bem, ou seja, a dimensão do sentimento não se
deve a uma característica do outro, mas a uma ansiedade por
satisfação própria. O que ocorre é a projeção de ideais feita
pelo amante sobre o amado: como não se conhece o objeto do
desejo em suas especificidades, projetam-se nele os próprios
desejos. O sujeito quase nunca demonstra o mínimo acordo
comunicativo com o ser que ama; na verdade, se não sabe bem
quem é o ser que ama, como se comunicar?
Dominado pelo amor, então, o homem aparece como
vítima, aquele que vive de lembranças, sofre muito e sente-se
muito sozinho: “Sem você/Nem o meu olhar se abriu/Pra não
ver tanta solidão/Sem rumo, perdido, vou ficando aqui/Nem
o tempo me faz companhia/O silêncio dessas horas frias são
palavras que não sei dizer/Chego em casa não te vejo/A soli-
dão e o silêncio me abraçam”, lexias que integram o campo
Solidão.
A mulher, por outro lado, é abandonadora, como se vê
no campo semântico Mulher culpada; é ela a responsável
pelo sofrimento do homem que era feliz com sua presença
e passou à infelicidade extrema com sua ausência: “Até que
você foi embora/Dia a dia sentia você partir/Sem você”. A
mulher aparece como causadora do mal, uma vez que sabia
que o homem a amava: “Você sabia que dentro do meu peito
estava/Um coração que amava e por você sorria”. É a mulher
responsável por tirar a tranquilidade do homem: “Você roubou
a minha paz e, finalmente, ela encarna o próprio mal: Quem
foi a razão do meu astral/agora me mata, me faz mal”.
Do ponto de vista cognitivo, essas escolhas lexicais,
descrevem um modelo mental contextual em que o espaço
é a TV, o rádio, os grandes shows musicais. O homem é um
dos participantes da enunciação e enuncia do lugar de vítima,
enquanto a mulher é outro participante identificado com a

200
Iran Ferreira de Melo (Org.)

culpa e responsabilidade pelo sofrimento masculino. Assim,


ao realizarem sua seleção lexical, os enunciadores das canções
revelam seus modelos de acontecimentos, ou seja, o que pen-
sam sobre o tema abordado: a relação entre homem e mulher.
O discurso das canções revela a organização polarizada
da sociedade, em que o homem vítima é enfatizado ao mesmo
tempo em que se ressalta a mulher culpada e desvalorizada,
como se pode ver no quadro abaixo que sistematiza dois lados
do quadrado ideológico proposto por Van Dijk (2003):

Homem vítima Mulher culpada


- “Quem sorria, agora chora” - “Você sabia”
- “Nas incertezas de um caminho que - “Até que você foi embora”
é doído” - “Você roubou a minha paz”
- “Na mágoa de um sonho que acabou” - “Queria aquele beijo que você
- “Não me arranca essa agonia de viver” negou”
- “Eu já sofri demais/Mas longe de você/ - “Dia a dia sentia você partir”
Sofrerei bem mais” - “Sem você”
- “Minha alegria passou” - “Quem foi a razão do meu astral/
- “Sem você/Nem o meu olhar se abriu/ Agora me mata, me faz mal”
Pra não ver tanta solidão”
- “Dia a dia sentia você partir/Sem
rumo, perdido vou ficando aqui”
- “Sem você, Sem você/nem o tempo
me faz companhia”
- “O silêncio dessas horas frias são
palavras que não sei dizer”
- “Chego em casa não te vejo”
- “A solidão e o silêncio me abraçam”

4. Considerações finais

As escolhas lexicais das canções aqui estudadas reve-


lam um enunciador masculino que se constrói como vítima
e responsabiliza a mulher por isso, expondo, dessa forma, a
orientação ideológica do discurso das canções, baseado na
polarização entre o homem sofredor e a mulher culpada por
esse sofrimento. É um discurso que reafirma a identidade
feminina construída desde tempos remotos em que à mulher

201
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

está sempre associada a culpa. No texto bíblico, por exemplo,


é de Eva a responsabilidade por ela e Adão terem comido a
maça proibida: “Mas de quem foi a culpa? De Eva, claro, a
tentadora sexual, a única fêmea de mamíferos que tem os pei-
tos constantemente intumescidos, como se estivesse sempre
pronta a fazer amor e a corromper o homem, um santo, claro”
(POSADAS, 2001, pp. 62-63)
Os participantes da situação sociodiscursiva que se con-
cretiza no discurso das canções atualizam a voz do pensamento
machista e patriarcal e realizam ações sociais quando respon-
sabilizam e acusam a mulher, contribuindo para a divulgação
de uma ideologia sexista.

Referências

BELTRÃO JR., S. A musa-mulher na canção brasileira. São Paulo:


Estação Liberdade, 1993.
BIDERMAN, M. T. C. Fundamentos da Lexicologia. In: ______.
Teoria Linguística. Teoria lexical e computacional. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
CAPONI, S. Sobre guerras e fantasmas: o feminino e a distinção
entre público e privado. In: MINELLA, L. S. & FUNCK, S. B.
(Orgs.) Saberes e fazeres de gênero. Entre o local e o global.
Florianópolis: Editora da UFSC, pp. 105 –116, 2006.
POSADAS, C. Um veneno chamado amor. Ensaios sobre paixões,
ciúmes e mortes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
SANTA CRUZ, M. A. A musa sem máscara. A imagem da mulher
na música popular brasileira. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,
1992.
TATIT, L. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.
VAN DIJK, T. A. Ideología y discurso. Barcelona: Ariel, 2003.
VICTOR e LEO. < Disponível em www.victoreleo.com >, Acesso
em 8 de março de 2010.

202
Iran Ferreira de Melo (Org.)

“MODA É DUREZA”: A CONSTRUÇÃO


DISCURSIVA DO CONSUMISMO JUVENIL
COMO COMPULSÃO EM REPORTAGEM DO
FOLHATEEN
Paulo Roberto Gonçalves Segundo
Universidade de São Paulo

1. Introdução

A realidade midiática sofreu modificações estruturais


importantes no decorrer do século XX, especialmente no que
se refere às inovações tecnológicas, que possibilitaram inte-
grar som, imagem, vídeo e linguagem verbal, de modo que a
nova produção da mídia se torna, em essência, convergente
(MEYER, 2007), e o público, cada vez mais atraído por essa
pluralidade semiótica.
Diante disso, como a imprensa tradicional – cujas pu-
blicações ainda se vinculam ao suporte do papel – consegue
fazer frente às pressões multimodais de alto teor de captação
provenientes da internet e da televisão, por exemplo? Ou ain-
da: como lidar com as diferenças advindas das transformações
nos padrões de consumo de textos instaladas na atualidade,
tendo em vista, justamente, as possibilidades comunicativas
mais amplas dos novos meios?
Uma das formas de resistência encontradas por essa im-
prensa escrita foi, em primeiro lugar, a adaptação. Aumentar
a qualidade do papel, da impressão, do design, incorporando
uma maior densidade gráfica e fotográfica que pudesse pro-

203
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

porcionar ao jornal e à revista um maior estímulo de leitura


– dado o teor multimodal das outras formas midiáticas –,
constituiu-se em uma primeira etapa importante para a ma-
nutenção de seu espaço operacional discursivo nessa miríade
comunicativa hodierna.
Em segundo lugar, tais publicações buscaram, cada vez
mais, dirigir-se a públicos menores de modo mais específico
– em outros termos, focaram em um público-alvo determi-
nado, procurando adaptar seu conteúdo aos projetados inte-
resses desse grupo. Assim, a segunda metade do século XX
e, principalmente, esses últimos 20 anos, configuraram um
palco perfeito para o surgimento de uma intensa variedade
de periódicos voltados a temas e grupos sociais específicos,
conforme aponta Sant’Anna (2008).
Tal fato é de fácil constatação. Uma banca de jornais
abriga, atualmente, dezenas de títulos de revistas, por exem-
plo, voltados ao público feminino, no que concerne à moda,
beleza, boa forma; outra variedade dirigida a carros, com foco
no público masculino; outra, à informática, visando ao jovem;
além das revistas e jornais direcionadas a assuntos mais gerais,
dentre tantas outras possibilidades.
Nessa nova perspectiva, até os grandes jornais, como
Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, foram obrigados
a adaptar-se, principalmente após períodos de crise que
reduziram drasticamente sua circulação. A economia se
reestruturava, os hábitos de leitura se modificavam e a
internet ganhava importância como veículo de informa-
ções. O jornal passa, portanto, a ser, cada vez mais, um
produto para se consumir seletivamente – um grande amál-
gama, coerente, de informações e comentários, voltados
a públicos e temas diferenciados, com anúncios alocados
em cadernos específicos, de modo a dirigir a leitura de
seus consumidores às seções que, potencialmente, lhes
interessariam.

204
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Desse modo, o grande jornal adapta-se à tendência de


“desmassificação” dos meios (MEYER, 2007) – ou seja, ao
deslocamento no consumo de informações do maciço e glo-
bal para o local e específico – ao mesmo tempo em que não
prescinde de estratégias de massificação e do oferecimento de
informações e comentários globais. O que se altera é a relação
entre público, jornal e conteúdo informativo ou comentado.
Tendo em vista essas questões, este artigo visa justamente
a analisar uma reportagem de um dos suplementos do maior
jornal do país – o Folhateen, veiculado pela Folha de S. Paulo
e voltado para o consumo do público jovem, em especial, o
adolescente, como o próprio nome permite entrever –, cuja
produção está nitidamente vinculada aos pressupostos ante-
riormente mencionados.
A reportagem – intitulada Moda é dureza – abrange a
temática do consumismo juvenil, principalmente no que se re-
fere às classes mais baixas. O objetivo desta análise é desvelar
o discurso e a identidade atribuída pelo jornal e pelos próprios
jovens a esse grupo social no que concerne à sua relação com
as mercadorias por eles consumidas e à suposta imagem que
lhes seria auferida pelo uso e pelo consumo desses mesmos
bens – relativos, especialmente, à esfera da moda.
Para isso, serão utilizados os pressupostos teóricos da Análi-
se Crítica do Discurso (ACD), com ênfase nas propostas de Fair-
clough (1997, 2007); além da Linguística Sistêmico-Funcional
(LSF), de Halliday (2004); da Teoria da Valoração, na perspectiva
de Martin & White (2005); e da Teoria da Argumentação ou Nova
Retórica, segundo Perelman (2004) e Reboul (2004).

2. Análise Crítica do Discurso e Linguística Sistêmico-


Funcional: convergências

Para Hodge e Kress (1993), o maior objetivo da Lin-


guística deve ser a unificação, em uma única empreitada, de

205
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

um referencial teórico e analítico que permita abranger as


relações entre língua e sociedade, por um lado, e entre língua
e mente, por outro. Nesse sentido, eles defendem que a língua
seja vista como um agente vital para o processo de construção
social da realidade.
De modo análogo, Fairclough (2007) concebe a lingua-
gem verbal como um elemento irredutível da vida social,
tomando o discurso como uma prática inserida no seio de
uma estrutura social, que permite a emergência de textos com
efeitos causais – ou seja, capazes de proporcionar mudanças
tanto cognitivas e valorativas, em termos de conhecimentos,
crenças, posicionamentos e valores individuais, bem como
materiais, na medida em que discursos podem impingir os
indivíduos à ação.
Nesse sentido, o foco da ACD reside justamente na inves-
tigação de como elementos do sistema linguístico funcionam
para a representação de eventos, para a construção de relações
sociais e para a estruturação, confirmação e contestação de
hegemonias no discurso. Trata-se de um modelo teórico-
analítico que se preocupa com a relação dialética entre língua
e sociedade. Por conseguinte, coaduna-se a uma perspectiva
funcionalista da linguagem, uma vez que esta postula que a
língua possui funções externas ao sistema e que essas mes-
mas funções são as responsáveis pela organização interna do
sistema linguístico.
Halliday (1978), em sua proposta sistêmico-funcional,
concebe a língua como um potencial de significado que deve
cumprir quatro grandes funções, advindas da interpretação
sócio-semiótica do contexto ou tipo situacional, que, por
sua vez, é definido a partir de três componentes: o campo,
as relações e o modo. De maneira geral, o primeiro abarca a
atividade em que se está engajado; o segundo, os participantes
e as relações estabelecidas entre eles em uma interação; e o
terceiro, a maneira pela qual os significados são realizados.

206
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Assim, segundo Halliday (1978, pp. 21-22):

1. A língua deve interpretar o conjunto de nossa experiência,


reduzindo a variedade indefinida de fenômenos do mundo
ao nosso redor, e também do nosso mundo interior, além dos
processos de nossa própria consciência, para um número de
classes e fenômenos gerenciáveis: tipos de processos, even-
tos e ações, classes de objetos, pessoas e instituições, dentre
outros;

2. A língua deve expressar certas relações lógicas elementa-


res, como “e” e “ou” e “se”, assim como aquelas criadas pela
própria língua, como “isto é”, “diz” e “significa”;

3. A língua deve expressar nossa participação, como falantes,


na situação discursiva; os papéis que assumimos e impomos
aos outros; nossos desejos, sentimentos, posicionamentos e
julgamentos;

4. A língua deve fazer todas essas coisas simultaneamente, de


modo que ela relacione o que está sendo dito ao contexto do
que está sendo dito, ambos em relação ao que já foi expresso
e ao “contexto situacional”; em outras palavras, ela deve ser
capaz de ser organizada em um discurso relevante, não so-
mente em palavras e frases de uma gramática ou dicionário.

Cada uma dessas funções atualiza diferentes concepções


de enunciado, com categorias distintas, que permitem descre-
ver e analisar:

a) a categorização e classificação do mundo pelos agentes


sociais, numa concepção de enunciado como representação
(o que corresponde aos dois primeiros itens anteriormente
citados, denominados, respectivamente, função experencial

207
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

e lógica, e que integram a chamada função ideacional da


linguagem);

b) a instauração de relações interpessoais, baseada na noção


de enunciado como troca ou intercâmbio (o que concerne ao
terceiro item, denominado função interpessoal);

c) a formulação do fluxo informacional, calcada na concepção


de enunciado como mensagem (o que abrange a função textual,
referente ao quarto item).

Fairclough (2007) reformula a teoria hallidayana, pro-


curando adaptá-la aos pressupostos teóricos neomarxistas e
a uma concepção sociológica mais apurada em relação aos
objetivos da ACD. Nesse sentido, ele também concebe a lín-
gua – e mais precisamente, o discurso – como multifuncional,
atualizando três tipos principais de significado, que atuam
como intermediários entre o texto em si e a estrutura social:

1. Significado Acional (gênero), referente ao modo de agir.


Corresponde tanto à função interpessoal de Halliday, com
ênfase na (inter)ação em eventos sociais e no estabelecimento
de relações sociais, quanto à função textual;

2. Significado Representacional (representação ou discurso1),


concernente ao modo de representar. Equivale, grosso modo,
à função ideacional da LSF;

3. Significado Identificacional (estilo), relativo ao modo de ser.


Abarca os aspectos de constituição da identidade do sujeito no
discurso e, por isso, encontra-se ainda relacionado à função
interpessoal hallidayana.
1 Deve-se ter o cuidado de diferenciar discurso como representação, e discurso como
atividade linguística de produção concreta de textos, que engloba os três tipos de
significado mencionados.

208
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Nessa perspectiva, a produção discursiva é concebida


como um evento social, constituído e atravessado por ordens
do discurso, que englobam padrões genéricos, representati-
vos e estilísticos, advindos de práticas e estruturas sociais
determinadas, de modo a controlar a variação linguística e a
combinação aleatória de variáveis contextuais concernentes
ao campo, às relações e ao modo.
No entanto, tal mecanismo de controle social não é capaz,
para o autor, de constranger completamente o ator social, tendo
em vista que este possui uma força causal, ou seja, a possibi-
lidade de resistir e opor-se às ordens do discurso, originária
de sua capacidade de autoconfrontação reflexiva.
Giddens (1991) afirma que a reflexividade consiste em
um fenômeno diretamente envolvido com a contínua geração
de autoconhecimento sistemático. Nesse sentido, a atualida-
de configura-se em um sistema pelo qual o pensamento e a
ação são constantemente refratados entre si, de modo que as
práticas sociais são continuamente examinadas e reformadas
em razão das informações renovadas sobre essas próprias
práticas, gerando, assim, alterações sucessivas em seu caráter
constitutivo. Como corolário, postula-se que “todas as formas
de vida social são parcialmente constituídas pelo conheci-
mento que os atores têm delas” (GIDDENS, 1991, p. 45).
Desse modo, a identidade dos indivíduos torna-se resultado
de uma construção reflexiva, de caráter autoconfrontador,
baseada nesses saberes sobre as práticas sociais e nos va-
lores associados a elas, de modo que o agente social vê-se
impingido a posicionar-se, discursivamente, mediante esse
sistema, contestando, resistindo, confirmando ou mantendo
as classificações, posturas, atitudes e ações engendradas nos
eventos sociais de que participa.
Por meio desse mecanismo, cuja origem e funciona-
mento estão diretamente relacionados às mudanças sociais,
tecnológicas, políticas e culturais da segunda metade do

209
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

século XX, os agentes sociais encontram espaço para for-


mas alternativas de agir, representar e ser, que, obviamente,
poderão se chocar com as práticas hegemônicas. Nessa
perspectiva, a mudança linguística é concebida essencial-
mente como resultado do embate ideológico e hegemônico
realizado no eixo interdiscursivo da atividade discursiva
ou comunicativa.
Por essa razão, a ACD concebe a estrutura social como
meio e resultado das práticas sociais, a partir de uma relação
dialética, na medida em que ações localizadas são respon-
sáveis pela produção e reprodução ou pela transformação e
contestação da organização social, embora seja esta o grande
elemento responsável pela limitação do espaço de criatividade
destas mesmas práticas. Trata-se, portanto, de processos es-
treitamente ligados a questões que concernem poder, ideologia
e hegemonia, objetos de estudo preferenciais da perspectiva
crítico-discursiva de análise.
Como corolário, a relação entre gêneros, discursos e
estilos também deve refletir tal aproximação. Assim, os
discursos – que englobam representação e ideologia e se
referem à categorização e classificação do mundo – con-
sistem nos elementos responsáveis pela instanciação de
gêneros e inculcação de estilos, ao mesmo tempo em que
esses gêneros e estilos confirmam e representam discursos.
Desse modo, enfocar-se-á principalmente, neste trabalho,
a construção discursiva da identidade e das representações
dos atores sociais tematizados pela reportagem – os jovens
consumistas das classes mais baixas –, procurando desvelar
suas avaliações implícitas e explícitas e o papel que o consumo
e o discurso que lhe é associado parecem assumir em relação
à sua agência social, mediante a projeção possibilitada pela
construção textual da reportagem.

210
Iran Ferreira de Melo (Org.)

3. A Teoria da Valoração

Segundo Martin e White (2005, p. 01), a abordagem da


Valoração concerne ao “interpessoal na linguagem, à presença
subjetiva de escritores/falantes nos textos ao adotarem um po-
sicionamento diante tanto do material que apresentam quanto
daqueles com quem eles se comunicam”. Desse modo, trata-se
de uma teoria que se apoia na proposta gramatical da Linguís-
tica Sistêmico-Funcional de Halliday (2004), que concebe a
função interpessoal como o componente por meio do qual o
indivíduo expressa tanto seus posicionamentos e julgamentos
quanto procura influenciar o comportamento e as atitudes dos
outros, na medida em que, por ela, são instanciadas as relações
pessoais e sociais dos participantes dos eventos discursivos,
tanto no aspecto de sua configuração identitária como da sua
relação com os outros atores sociais envolvidos na interação.
Por conseguinte, poder e solidariedade constituem-se em
variáveis-chave no que tange a tal perspectiva: o primeiro,
por estar relacionado à reciprocidade de escolhas – ou seja, à
construção da igualdade/desigualdade no acesso e na possibi-
lidade de escolher ou decidir; a segunda, por referir-se tanto
à disponibilidade maior ou menor de significados para troca
numa interação quanto à maior ou menor explicitação desses
mesmos significados, tendo em vista, por exemplo, o grau de
conhecimento e intimidade verificado entre atores sociais que
participam de uma prática discursiva.
Nesse sentido, os autores propõem uma tipologia de ca-
tegorias semântico-discursivas responsáveis pela regulação do
aspecto interpessoal nas interações, de modo a marcar, com
maior ou menor intensidade, a relação de poder e/ou solida-
riedade entre os participantes de uma prática discursiva, o que
configurará, em grande parte, sua identidade discursiva e seu
modo de relação com o outro. São três grandes categorias, a
saber: a gradação, a atitude e o engajamento.

211
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

A gradação concerne ao modo pelo qual os falantes/es-


critores maximizam ou minimizam a força de suas asserções
e tornam nítidas ou ofuscadas as categorizações semânticas
com as quais operam. Subdivide-se em força e foco.
A atitude abrange significados graduáveis por meio dos
quais o falante/escritor avalia entidades, estados de coisas e
acontecimentos negativa ou positivamente. É subdividida em
afeto (reações afetivas diante de uma situação ou comporta-
mento específico), julgamento (avaliações acerca da capaci-
dade, normalidade, tenacidade, propriedade e veracidade dos
comportamentos ou atitudes humanas e/ou institucionais) e
apreciação (avaliações de caráter estético acerca de elementos
concretos da realidade, como objetos, ou de risco e importân-
cia, no que tange a processos, eventos, entidades abstratas).
O engajamento, por sua vez, constitui-se no componente
por meio do qual a voz autoral se posiciona em relação a seu
enunciado e aos outros atores sociais envolvidos na interação.
Nesse sentido, todo enunciado é visto como posicionado ou
atitudinal de algum modo (MARTIN & WHITE, 2005). O
objetivo de tal perspectiva, calcada na noção de heteroglossia
ou heterogeneidade constitutiva do círculo bakhtiniano (2004),
reside, portanto, na descrição do grau de reconhecimento das
afirmações anteriores em face às formulações atuais dos ato-
res sociais e o modo pelo qual estes se engajam em relação
a elas (opondo-se, concordando, aparentando neutralidade,
dentre outras possibilidades responsivas). Trata-se de um
componente subcategorizado em dois grupos: os recursos de
expansão dialógica e os mecanismos de contração dialógica.
A expansão dialógica subdivide-se em:

1. CONSIDERAR (ENTERTAIN): abrange recursos por


meio dos quais a voz autoral se posiciona de modo não autoritário,
ou seja, de maneira que sua proposta ou proposição seja entendida
como uma possibilidade dentre várias, o que abre espaço para

212
Iran Ferreira de Melo (Org.)

outras alternativas. Tal opção geralmente está ligada ao fato de


a voz autoral pressupor a existência de uma divisão polêmica
da audiência acerca de um determinado tópico ou avaliação. Tal
domínio agrega, principalmente, os fenômenos da modalidade,
da evidencialidade e certos tipos de perguntas retóricas.

2. ATRIBUIÇÃO (ATTRIBUITON): trata-se das formu-


lações em que se atribui a uma fonte externa uma proposição
ou proposta, que, em geral, se dissocia da posição da voz
autoral interna. Subdivide-se em reconhecimento – quando
a voz autoral não se posiciona em relação à proposição – e
distanciamento – quando o escritor/falante rejeita explicita-
mente tornar-se responsável pela proposição, maximizando,
assim, o espaço de alternativas dialógicas. Por conseguinte,
pertencem a este domínio os recursos associados ao discurso
relatado: os verbos de elocução, os verbos de processamento
mental, nominalizações desses processos, adjuntos adverbiais
conformativos, e formulação de “hearsay” (ouvir dizer), como
supostamente, dizem que.

A contração dialógica também apresenta duas subclas-


sificações:

1. REFUTAR (DISCLAIM): refere-se às formulações


por meio das quais se rejeita ou substitui um enunciado ante-
rior ou posição dialógica alternativa por meio de sua invoca-
ção no texto. Trata-se do mecanismo de contração máxima,
já que a alternativa invocada não se aplica. É subdividida em
negação e concessão/contraexpectativa.

2. DECLARAR (PROCLAIM): estão incluídas nesta


categoria as formulações que limitam o escopo das alternativas
dialógicas em questão. Subdivide-se em concordar, declarar/
afirmar e endossar.

213
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

A primeira – concordar – diz respeito à concordância


explícita da voz autoral em relação a um parceiro dialógico
projetado; em geral, o leitor ideal, o que pressupõe um grau
máximo de alinhamento entre os interlocutores. Formas ad-
verbiais, como naturalmente, obviamente e perguntas retóricas
constituem exemplos de tal categoria.
A segunda – declarar/afirmar – envolve a ênfase do
produtor textual na formulação, já que se pressupõe uma
resistência em relação aos valores enunciados ou à própria
proposição. Trata-se de contração dialógica, pois a voz autoral
rejeita a possível voz alternativa. Expressões como O fato é
que... e intensificadores de escopo oracional, como de fato, de
verdade, realmente são exemplos de tal componente.
Por fim, a terceira – endossar – abarca as formulações
por meio das quais a voz autoral toma responsabilidade pela
proposição alternativa invocada, tomando-a como válida ou
inegável. Difere do distanciamento, pois, neste, a responsa-
bilização e identificação não se verificam. Os verbos mostrar,
demonstrar, provar, são exemplos típicos da categoria.

4. A dinâmica do Folhateen

O suplemento juvenil Folhateen circula às segundas-


feiras no jornal Folha de S. Paulo, um periódico de abrangên-
cia nacional, sediado na capital paulista, que se configura em
um dos veículos de comunicação escrita de maior influência
no país. Nesse sentido, pode-se afirmar que, em tese, tal su-
plemento consiste em um dos materiais de maior alcance e
penetração comunicativa – no que se refere à imprensa escrita
nacional – voltada ao público e à cultura jovens no Brasil.
O Folhateen possui um design moderno, em que se desta-
ca a multimodalidade. Desenhos, fotos e textos convergem de
modo intenso, buscando destacar, em geral, os atores sociais
diretamente envolvidos em suas reportagens e resenhas. A uti-

214
Iran Ferreira de Melo (Org.)

lização de fontes coloridas e diversificadas, além de recursos


gráficos que remetem ao ambiente virtual, à internet, contribui
ainda mais para uma identificação do jovem com o material,
cuja configuração em muito se assemelha à de um site. São
publicados, inclusive, no corpo das notícias e reportagens,
inúmeros links referentes a sites da internet que os jovens
podem consultar a respeito de projetos, bandas, shows, filmes
e vídeos, considerados pelos jornalistas como relevantes e
interessantes para tal público. Desse modo, o suplemento
atua não só como elemento de refração da cultura jovem,
mas também como um agente de proliferação de elementos
dessa cultura, de modo que o periódico se estende para outros
domínios midiáticos, especialmente o virtual.
O registro de linguagem busca adequar-se ao projetado
registro teen. Nesse sentido, tanto os colunistas quanto os
repórteres empregam estratégias de envolvimento, que en-
contram na oralidade concepcional (OESTERREICHER, in
mimeo) e na utilização de gírias e vocabulário específico do
mundo virtual um forte mecanismo de identificação com o
público-leitor.
Além disso, o suplemento passou por uma recente re-
estruturação que procurou, ainda mais, reforçar o vínculo
interpessoal com o jovem, por meio da ampliação do espaço
editorial para uma maior participação do leitor. O número de
cartas do leitor publicadas aumentou – assim como as respos-
tas da redação a elas – e há, inclusive, um espaço dedicado a
alguma produção literária, a um texto crítico ou a uma resenha
produzida pelo leitor acerca de algum filme, álbum musical,
peça de teatro, dentre outros produtos simbólicos relevantes
na atualidade. Ademais, a criação de um blog e de perfis vir-
tuais que representam o suplemento – tanto no MSN quanto
no Twitter –, permitem uma interação ainda maior com o
leitor, o que proporciona ao jornal um maior conhecimento do
público-alvo, um feedback mais direto das reportagens, colu-

215
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

nas e de seus efeitos de sentido – positivos ou negativos – nos


consumidores, além de possíveis sugestões para novos textos.
Internet, música, cinema, sexualidade, relacionamento,
educação e esporte são temas recorrentes nas páginas do suple-
mento. Além disso, é tradicional a publicação, na última página,
de uma tirinha, geralmente crítica e bem humorada, acerca da
realidade social contemporânea – em especial, a jovem.
Os anúncios estão, geralmente, ligados ao âmbito do
ensino superior, da indústria fonográfica, de programas de
entretenimento – incluindo apresentações de conjuntos musi-
cais de relevo – e de bens de consumo direcionados ao jovem.
Na edição analisada – de 21 de setembro de 2009 –, a única
publicidade veiculada relacionava-se a um evento musical em
que bandas de destaque nacional participariam.
Não obstante, não se pode afirmar que o suplemento se
volte ou refrate o discurso, a ação e a identidade de qualquer
jovem brasileiro. Trata-se de um jovem ou adolescente espe-
cífico: aquele que leia ou cuja família, em geral, consuma a
Folha de S. Paulo, que possua acesso privilegiado à internet e
a bens simbólicos variados, como cinema, teatro, entre outros,
e que já curse nível superior ou tenha alto potencial para tal –
ou seja, trata-se de um jovem, em geral, de classe média e alta.
No entanto, muitas reportagens publicadas buscam abar-
car a realidade dos jovens de baixa renda, como é o caso do
texto analisado neste trabalho. Como o jornal lida com essa
“aparente dissonância” entre público-alvo e grupo social re-
tratado? Trata-se de um dos questionamentos que este artigo
se propõe a responder.

5. Análise do corpus

A reportagem analisada2 ocupa duas páginas da edição de


21 de setembro de 2009 do Folhateen e vem acompanhada,

2 O texto encontra-se publicado, na íntegra, no anexo deste artigo.

216
Iran Ferreira de Melo (Org.)

na segunda página, de uma coluna assinada pelo consultor


de moda Alcino Leite Neto e de uma breve notícia acerca
da grife associada ao rapper 50 Cents, de modo que se pode
estabelecer uma continuidade temática entre os textos. Esta
análise, no entanto, enfocará a reportagem em si, tendo em
vista que nela se verifica tanto a posição do jornal como a dos
jovens acerca do tema considerado.
O objetivo será desvelar o discurso subjacente ao consu-
mismo jovem, buscando mostrar de que forma a construção
da reportagem orienta o leitor a uma avaliação de futilidade e
compulsividade no que se refere a esse grupo social, de modo a
apresentá-lo – especialmente no que se refere às camadas mais
baixas – como desinteressados, descontrolados e insaciáveis.
O título – Moda é dureza –, ao apresentar uma estrutura
relacional em que se avalia o elemento temático moda a partir
de um traço de esforço e dificuldade, já conduz o leitor para
uma orientação de que a tarefa de seguir os ditames desta es-
fera não é simples, o que é corroborado pela asserção da linha
fina da reportagem. Veja-se: Jovens gastam todo o salário em
celulares e roupas; falta de perspectiva motiva consumo dos
mais pobres, dizem estudiosos.
Na primeira parte dessa estrutura, a voz autoral procede
a uma generalização, realizada no presente – tempo verbal
prototípico do mundo comentado, por meio do qual se
busca um maior envolvimento interpessoal entre instância
produtora e consumidora do texto –, de modo a se postular
categoricamente que o jovem gasta todo seu salário em
celulares e roupas. A construção é autoritária, dado que
mascarada como verdade.
Por sua vez, na segunda parte, apresenta-se uma justifi-
cação atribuída a estudiosos – ainda não explicitados – acerca
desse consumo no que concerne aos mais pobres. Nesse caso,
o fator apontado é a falta de perspectiva. Não fica explícito, no
entanto, em relação a quê a falta de perspectiva incide. Só a

217
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

leitura da reportagem poderia esclarecer tal fato, assim como


revelar que autoridades seriam essas.
Note-se, portanto, que a linha fina apresenta uma dupla
estratégia de comprometimento. Ao afirmar categoricamente
o gasto referente a celulares e roupas, a voz autoral assume
modalmente a responsabilidade pela proposição; por outro
lado, o recurso de engajamento relativo à atribuição – dizem
estudiosos –, que expande o dialogismo, atribui a outros a
responsabilidade pela justificativa, de modo que a voz autoral
não se compromete em relação ao que se afirma acerca das
motivações relativas ao consumismo dos mais pobres, bus-
cando, assim, dirimir eventuais leituras resistentes que lhe
poderiam ser direcionadas logo no início do texto.
O primeiro parágrafo inicia-se pelo discurso relatado
da auxiliar de enfermagem Ana Garcia, que revela uma
representação subjacente de dissociação entre pobreza e
moda. O operador argumentativo mas contrai o dialogismo
da proposição, na medida em que deixa desvelar um pressu-
posto, para, então, rejeitá-lo. Assim, ao afirmar “Sou pobre,
mas tô na moda”, a auxiliar de enfermagem constrói-se
como uma exceção à regra de que “pobre não está (ou não
costuma estar) na moda”, o que permite, portanto, que ela se
“gabe”, conforme projeção do repórter acerca de sua atitude
mediante a declaração.
O termo gabar é revelador da avaliação da voz autoral
em relação ao modo de agir da auxiliar, que projeta uma
autoavaliação positiva de anormalidade na garota, de modo
a conduzir o leitor a crer que esta atitude é adotada por Ana
com toda a consciência – e possivelmente por outros jovens
em igual ou semelhante condição.
Veja-se que a forma verbal ralar, no segundo parágrafo,
remete à dureza prenunciada no título, proporcionando maior
verossimilhança para tal associação de noções. O interessante,
contudo, está na nova atribuição realizada no parágrafo, em

218
Iran Ferreira de Melo (Org.)

que se afirma que a garota diz gastar seu salário de R$ 700


com roupas “de marca”.
O verbo discendi dizer apresenta-se como novo meca-
nismo dissociativo de expansão dialógica, de forma que a voz
autoral não se compromete com a veracidade da proposição
da garota, abrindo a possibilidade para uma leitura alternativa
de coexistência, que revela uma possível incompatibilidade
entre o discurso e a ação (REBOUL, 2004), visto que a garota
não necessariamente gasta aquilo que afirma gastar.
As próprias aspas marcam novo procedimento expansivo,
na medida em que são ambíguas no entendimento da expressão
“de marca” como, por um lado, uma sinonímia da expressão
“de grife” ou, por outro, como um ofuscamento da avaliação,
revelando-se em um recurso de gradação – conforme apontam
Martin e White (2005) –, o que levaria a um questionamento
acerca do real estatuto de grife relativo a tais roupas.
Entretanto, é no terceiro parágrafo que o jornal passa
a desvelar o discurso subjacente de futilidade. Note-se que
todas as proposições apresentam polaridade negativa, três
delas explicitamente modalizadas: A garota não cogita se
graduar em breve. Seus pais não podem pagar uma faculdade
particular, ela acha que não consegue entrar em uma pública
e não quer cortar gastos.
A forma verbal escolhida pela voz autoral no primeiro
enunciado – cogitar – potencializa o julgamento implícito de
desinteresse, relacionado à tenacidade negativa. Além disso,
seu acesso ao ensino superior apresenta outros impedimentos,
advindos de esferas que lhe são externas e internas. Externa-
mente, trata-se da incapacidade dos pais; internamente, trata-se
da crença na própria incapacidade e da ausência de vontade
em cortar gastos, o que poderia possibilitar o estudo. Observa-
se, portanto, que desprovida de querer e de possibilidades
concretas de estudo, o não cogitar se justifica, de modo que
a única saída seria, de fato, dedicar-se a outra atividade – no

219
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

caso, o consumo. O enunciado É do que preciso agora – que


fecha o terceiro parágrafo – corrobora a análise e proporciona
um efeito de veracidade à cadeia argumentativa do jornalista,
tendo em vista que as próprias palavras da auxiliar ratificam
o argumento. Desse modo, a voz autoral proporciona ao lei-
tor um exemplo da falta de perspectiva mencionado na linha
fina, o que colabora para associar as noções de consumo a
escapismo.
O exemplo de Ana atua como figura de presença que
permite ao leitor concretizar um dado pesquisado pelo Da-
tafolha e veiculado na reportagem, referente à avaliação de
importância dada por 22% dos jovens brasileiros de renda
familiar inferior a 2 salários mínimos a estar na moda. No-
vamente, a voz autoral opta por uma estratégia de expansão
dialógica, que dirime as possibilidades de leitura resistente.
No caso, a opção é pela estrutura verbal dizem achar, poten-
cialmente ambígua, causada pela atualização de duas formas
de expansão sequenciais. A forma de consideração achar, sob
o escopo do recurso de atribuição dizer, permite interpretar
uma possível dissociação entre o dizer e o crer dos jovens
envolvidos, de modo que se consegue minimizar o impacto
de uma leitura identificacional resistente de membros desse
grupo com o conteúdo da pesquisa e da reportagem. A busca
por estabelecer solidariedade torna-se, portanto, uma das
estratégias centrais do texto, mesmo que enviesada, já que o
discurso que compatibiliza e identifica o jovem ao escapismo,
desinteresse e futilidade é veiculado, mesmo que não assumido
explicitamente pela voz autoral.
Assim, as hipóteses explicativas são atribuídas a vozes
externas ao jornal, como a da socióloga da Universidade de
São Paulo, Paula Nascimento, conforme é possível verificar-se
no quinto parágrafo do texto. Note-se que a proposição inicial
da socióloga é apresentada como categórica, tendo caráter
relacional. “Ter” é definido como uma preocupação central

220
Iran Ferreira de Melo (Org.)

do jovem, uma avaliação afetiva relacionada à realização de


objetivos. No mesmo relato, o jovem é descrito como inseguro,
uma avaliação concernente tanto ao afeto negativo (no alcance
das metas) quanto à incapacidade potencial e imaginada. Nesse
sentido, a insegurança manifesta-se como a razão pela busca do
“ter”. O “ter” constitui-se, como corolário, em uma preocupação
e, ao mesmo tempo, em uma meta. Tal cadeia argumentativa
pressupõe, no entanto, que a segurança advenha da possibili-
dade de agir de modo semelhante aos ricos, com igualdade de
oportunidades, “sendo” como eles. Nesse sentido, o “ter” figura
como a aparência que contrasta com o “ser” impossibilitado de
atingir os objetivos. Pelo consumo, consegue-se o mínimo de
compatibilidade. Assim, “parecer” associa-se a um “ter” que
satisfaz, por representar o alcance dos objetivos.
A operação argumentativa de associação de noções,
realizada pela socióloga, baseada na incompatibilidade entre
ter e ser revelada nos mais pobres, encontra respaldo nos
exemplos seguintes da reportagem, que buscam ratificar a
concepção escapista e, de certo modo, ilusória, desse grupo
social, reiterando a noção de aparência como forma de ascen-
são, o que é confirmado pela segunda instância de discurso
relatado da socióloga – “Os jovens tinham roupas e celulares
que não condiziam com sua situação financeira e procuravam
qualquer trabalho para comprá-los”.
O discurso da especialista ecoa um pressuposto concer-
nente à necessidade de compatibilização entre a condição fi-
nanceira e o vestuário ou acessórios consumidos pelos jovens,
instaurando um julgamento implícito de normalidade, caso tal
adequação se verifique. Na situação em questão, entretanto, os
jovens constituem-se em elementos que contradizem a norma-
lidade esperada, dado que a compatibilidade não se manifesta.
Nesse sentido, a busca de um trabalho de qualquer natureza
torna-se, de fato, imperativa, uma vez que se configura no
instrumento prático para o alcance do ter.

221
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Aliás, o pronome indefinido qualquer – que atua, proto-


tipicamente, como recurso de indeterminação3 – instaura um
caráter depreciativo ao nome trabalho, de modo que a procura
por um emprego assume, potencialmente, um teor desespera-
do, uma reação afetiva negativa de alto grau relacionada ao
alcance de objetivos – teleológica –, que se torna central para
a aquisição do componente de aparência necessário.
O argumento é pragmático (PERELMAN, 2004). Se a
consequência é positiva – comprar roupas e celulares “de
marca”, ato associado ao prazer e ao simulacro do ser –, os
meios para alcançar o objetivo – procurar/ter um emprego
de qualquer natureza – também se tornam positivos, de
forma que o processo se configura como subsidiário do
resultado, e a submissão às condições presentes encontra
justificativa. O jovem é construído de modo maquiavélico
e, desse modo, cego diante da potencial exploração de sua
situação presente.
O jornalista reitera tal concepção, por meio do exemplo de
Rafael Ramos, de 19 anos. A voz autoral constrói o enunciado,
marcando este jovem como responsável modal da proposição
Aceitou o “trampo” como soldador no bairro paulistano Vila
Formosa pelo salário de R$ 700.
A forma verbal que encabeça a proposição apresenta o
ator social como agente de uma atividade de aceitação, o que
implica – dado o contexto – um certo teor de resistência. O
caráter prosódico, isto é, o aspecto de contaminação textual
das avaliações, que incidem não somente no enunciado em
questão, mas no entorno textual como um todo, possibilita
depreender que Rafael é um dos exemplos de jovens que
procuram, para a realização da meta do ter, qualquer trabalho
e que, portanto, aceitou a função referida apenas pelas possi-
bilidades consumistas do salário mencionado.
3 Em termos mais precisos, o pronome qualquer relaciona-se a uma extração aleatória
de um elemento pertencente a um conjunto ou domínio referencial determinado, cuja
especificidade não se torna, na dada construção, relevante.

222
Iran Ferreira de Melo (Org.)

O efeito prosódico contamina a proposição, de modo que


as expressões aceitar, “trampo”, soldador e R$ 700 se tornam
passíveis de uma avaliação potencialmente negativa. Em ou-
tros termos, a aceitação remete a uma necessidade relacionada
ao imperativo do consumo e do parecer. O “trampo” – entre
aspas – marca, por sua vez, mais do que um distanciamento
matizado da voz autoral em relação à linguagem jovem. Ela
possibilita uma leitura ofuscada da categoria, à semelhança
do termo “de marca”, no segundo parágrafo, o que desquali-
ficaria, potencialmente, o emprego de soldador, que, por con-
sequência, adquiriria um estatuto de trabalho qualquer. Como
corolário, o salário mostrar-se-ia como baixo, configurando-se
no argumento concreto que justifica a possível exploração
mercadológica desses jovens de consumo insaciável.
A hipótese analítica acima é confirmada pelo próprio jo-
vem, cujo discurso relatado é introduzido na sequência – “Tô
precisando comprar umas roupas da Hurley e da Billabong pra
mim”. Novamente, é a necessidade que incide sobre a compra,
e as marcas das roupas citadas são conhecidas e valorizadas por
muitos jovens de diversas classes sociais. Em outros termos: a
aceitação do trabalho encontra eco na necessidade de aquisição,
e o próprio jovem, em seu testemunho, comprova o argumento
desenvolvido pela voz autoral e pela socióloga.
Sabe-se que a necessidade deôntica advém, em geral, de
uma coerção externa – não se trata de um desejo do indiví-
duo. Diz respeito, portanto, a uma imposição social relativa
ao “parecer”, não advinda originalmente do jovem, mas nele
inculcada de modo a tornar-se um imperativo. Nesse sentido, o
discurso do consumo como instrumento de ascensão mostra-se
inerente ao jovem, que o manifesta como “dever”. Consumir
é, portanto, obrigação, dado da identidade inculcada desses
jovens, e não, um prazer originário apenas de suas inclinações.
O próximo ator social citado, Alexander da Silva, primo
de Rafael, é representado de modo mais detalhado, por meio

223
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

de construções oracionais relativas, que possuem como res-


ponsáveis modais tanto o próprio ator social quanto seu tênis
Oakley, numa construção que atua no sentido de cindir dois
aspectos aparentemente dissociados – e talvez dissonantes no
discurso em questão – acerca da identidade do jovem, confor-
me se verifica no trecho: Alexander, que parou de estudar na
oitava série, gasta dez horas por dia em uma oficina mecânica.
Mas, quando tira o macacão, fica na estica. O tênis Oakley,
que nunca viu graxa, custou os R$ 600 que ganha em um mês.
Alexander é construído como um jovem dotado de in-
fluência, dado que lhe é atribuída importância na decisão de
Rafael aceitar o emprego anteriormente mencionado de sol-
dador. Na sequência, a voz autoral apresenta a carga horária
de trabalho do ator social, entrecortada por uma construção
relativa, que assume teor parentético, informando ao leitor
sobre o fato de este ter parado de estudar na oitava série.
A voz autoral reatualiza no texto o descaso desses jovens
em relação ao estudo, de modo a, pelo reforço do exemplo,
deixar implícita a possibilidade de se tratar de um padrão, de
uma regra – o que direciona à interpretação de o consumo
ser, de fato, resultado da falta de perspectiva e de um possível
desinteresse em relação a uma atividade socialmente valori-
zada – a educação. O exemplo assume, portanto, a função
já observada por Reboul (2004): a de reforçar a presença do
argumento no auditório – no caso, o leitor –, não provando a
regra, mas tornando-a incrivelmente verossímil, o que poderia
levar a uma inculcação de tal concepção.
O contraponto é anunciado pelo operador argumentativo
mas, que introduzirá proposições que instauram uma relação
de contraexpectativa em relação a um trabalho na oficina
mecânica. O ficar na estica – ou seja, elegante, bonito, apre-
sentável – circunscreve-se ao não uso do macacão; em outros
termos, à saída do trabalho. O elemento referencial associado
a essa identidade é o tênis Oakley, apresentado em referência

224
Iran Ferreira de Melo (Org.)

a seu valor monetário, que, por sinal, equivale ao salário total


do ator social relativo a um mês de trabalho.
A associação todo-um, relativa ao trabalho de um mês e
a compra de um único produto, atua como um mecanismo de
surpresa, possibilitando inúmeras avaliações resistentes, dado
que a disparidade entre a situação econômica e o objeto salta
aos olhos do leitor ideal projetado pelo texto. No entanto, a voz
autoral não apresenta as condições de pagamento do produto,
de forma que a menção apenas ao valor bruto exponencializa
a resistência, que, talvez, não fosse aplicada caso se soubesse,
por exemplo, que a compra fora parcelada.
Obviamente, não é dever do repórter proceder a tal ressal-
va; no entanto, não mencionar a forma de pagamento consiste
em uma estratégia argumentativa que associa quantidades
baseada numa relação todo-um, o que permite julgamentos
de incoerência, imaturidade, insaciabilidade, reiterando uma
concepção de consumo desenfreado. A estrutura parentética
relativa – que nunca viu graxa – mostra como o produto não
se mescla à realidade profissional do jovem. Trata-se de um
elemento pertencente a outra esfera de atuação – a pessoal
–, ou seja, o tênis consiste em marca concreta e explícita de
uma outra identidade – aquela em que o ter fundamenta o ser
(ou o parecer ser).
A leitura de resistência é pressuposta pela voz autoral,
tanto que esta apresenta as palavras do próprio jovem para
avaliar o ato e justificá-lo: “Pior é que valeu a pena [...] É
bom ter uns ‘trapos’ bons, que eu não podia ter antes. Mos-
tra minha mudança”. A estrutura pior (é) que consiste em
um mecanismo de avaliação e modalização que pressupõe a
resistência do outro e a consciência do enunciador em relação
ao caráter polêmico do discurso proferido ou do ato realizado.
Nesse sentido, o ator social revela consciência do potencial
de discordância social em relação a sua prática. Por outro
lado, essa mesma estrutura avaliativa visa à consecução de

225
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

basicamente dois objetivos mutuamente excludentes: (1) ceder


à resistência e perceber a impertinência do ato ou discurso;
(2) apresentar uma avaliação positiva originária do próprio
indivíduo ou de outros grupos sociais com ele identificados
acerca desse mesmo ato ou discurso, de modo a atuar na ex-
pectativa contrária em relação ao contexto em que se enuncia.
Nesse caso, trata-se justamente desta última situação – o valer
a pena contrasta com a expectativa projetada, de modo que a
voz autoral, ao inserir o jovem como assumindo tal posição,
compromete-o intensamente do ponto de vista interpessoal,
já que apresenta uma posição que se choca ao senso comum,
do que decorre a necessidade de justificação.
A posse de “bons trapos” é avaliada positivamente por
ele e se choca com um passado em que isso não era possível.
A possibilidade presente é contrastada com a impossibilidade
ou incapacidade do passado, de modo que a mudança torna-
se positiva para o jovem. Assim, a autoavaliação positiva,
decorrente da compra, é o motor teleológico do ator social.
Novamente, o ter se constitui como elemento do “ser melhor”.
Desse modo, o jornalista consegue deixar ainda mais
presente ou visível o grau de insaciabilidade do consumo jo-
vem. Ele institui um fuso de argumentos que abarca o descaso
em relação aos estudos, a aceitação de situações profissionais
dubitáveis e a potencial falta de maturidade para lidar com
os próprios ganhos como traços constitutivos desses jovens
consumistas, de modo que eles acabam sendo discursiva-
mente construídos a partir de julgamentos de capacidade e
tenacidade negativos. A reportagem assume implicitamente
um viés condenatório. Alexander, especialmente, torna-se um
contraexemplo, um antimodelo (REBOUL, 2004).
A segunda parte do texto possui como subtítulo De aju-
dante a ajudada. Este permite entrever uma mudança de um
provável ator social de agente para alvo de uma ação de ajuda,
o que, de fato, será corroborado ao final do texto.

226
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Karoline Dicena é a primeira agente social apresentada


nesta parte da reportagem. É caracterizada pelas funções que
ocupa no salão de beleza que se localiza no térreo de sua casa.
Em seguida, a voz autoral ressalta o gasto total do primeiro
pagamento em uma loja de celulares. Note-se que a inserção do
lexema inteiro, entre vírgulas, destaca o caráter de totalidade,
presentificando de modo mais intenso a ação realizada para o
leitor. O discurso relatado da garota mostra sua reação afetiva
positiva – “A sensação foi ótima! Fiquei surpresa comigo!”.
O afeto de bem-estar positivo – ótima – mostra o impacto
prazeroso da compra, a tal ponto de ser capaz de causar sur-
presa – outra reação afetiva, advinda, no caso, de uma situa-
ção excepcional, de uma anormalidade. Posteriormente, um
novo caso de gasto total de salário é apresentado; no entanto,
trata-se de um caso de maior destaque ainda, como mostra
a sequência: Foi-se o primeiro mês e, com ele, a saciedade
com o aparelho. Hoje, Karoline tem três celulares de ponta.
Todos são pré-pagos.
A menção a três celulares pré-pagos modernos ressalta a
insaciabilidade da garota. Por meio de uma metáfora do campo
da alimentação, o jornalista ressalta a “gula” do ator social,
buscando, assim, solidarizar-se com as vozes provavelmente
resistentes às atitudes da garota. O questionamento básico do
leitor projetado, referente à necessidade de tantos aparelhos,
é atualizado pelo repórter, que, no parágrafo seguinte, simula
um diálogo – estratégia de envolvimento que, instaurando a
oralidade concepcional, busca estreitar o vínculo interpessoal
com o leitor de modo a facilitar a execução do processo de
convencimento ou persuasão.
Veja-se o trecho:

Mas ela fala tanto ao telefone? “Ah, não uso os


três, mas gosto muito deles”. E por que continua
a montar uma central telefônica? “Sei que preciso
economizar para os estudos, e vou passar a fazer isso

227
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

em breve, mas é muito difícil resistir à vontade, que


tá sempre ali”.

O operador argumentativo mas, mecanismo de contração


dialógica, permite a pressuposição de que “quem tem tantos
aparelhos pré-pagos modernos deveria falar muito ao telefo-
ne”. O questionamento apontado no parágrafo vai justamente
denunciar a falácia da pressuposição aplicada a esse caso – o
discurso da própria garota nega o pressuposto. Ela não usa os
três aparelhos. No entanto, a compra e a posse é justificada
pelo prazer em tê-los. O gostar justifica a posse, mesmo que
carente de justificativa prática para a aquisição.
A pergunta que se segue visa a questionar as razões para
a compra aparentemente despropositada, por meio de uma
estratégia humorística, tendo em vista que a remissão da voz
autoral a montar uma central telefônica não se aplica, obvia-
mente, de modo literal à situação. O humor resulta justamente
do caráter de contraexpectativa da construção, possibilitada
pela realização implícita de uma correlação analógica entre a
garota e a central telefônica, visto que ambas deteriam muitos
números e aparelhos.
O humor já carrega em si um traço de avaliação implícita
concernente ao ridículo, o que implica uma atitude resistente
da voz autoral em relação ao comportamento da garota. Se-
gundo Reboul (2004) e Perelman (2004), uma argumentação
que caia no ridículo perde sua legitimidade. Trata-se de uma
das maneiras mais hábeis de se contra-argumentar. A proposta
dos autores procede, visto que o ridículo é resultado do isola-
mento da verossimilhança do mundo possível criado pelo ator
social em seu discurso, que não encontra respaldo nas crenças,
valores e avaliações de outros atores sociais, de modo que
só encontra sentido para o próprio enunciador, vinculando-
se apenas a ele mesmo e, por conseguinte, segregando-a da
comunhão discursiva e representacional de um determinado
grupo social, o que resulta no riso.

228
Iran Ferreira de Melo (Org.)

A resposta da garota não é, contudo, direta. Aliás, o di-


álogo é simulado pelo repórter, de modo que a pergunta real
que se fez à garota não é, necessariamente, esta, e não pode
ser recuperada pelo texto. No entanto, conforme o simulacro
de oralidade, a resposta não satisfaz plenamente as condições
impostas pela pergunta, dado que é evasiva. Ela se inicia com
uma defesa – “Sei que preciso economizar para os estudos, e
vou passar a fazer isso em breve” – e conclui com uma jus-
tificativa disjuntiva, iniciada pelo operador de contração mas
– “mas é muito difícil resistir à vontade, que tá sempre ali”.
Note-se que a garota atribui a si mesma a responsabilida-
de modal por um saber referente à necessidade de economizar
para os estudos, propondo-se a adotar tal postura futuramente.
Ou seja, Karoline constrói-se como detentora de tal conhe-
cimento, como alguém consciente da imposição social no
que se refere ao estudo. No entanto, tal saber não é suficiente
para frear seus impulsos, avaliando como difícil a resistência
à vontade reiterada. Note-se que o operador modal de habi-
tualidade alta sempre ressalta a continuidade ou iteratividade
da vontade, valor de inclinação, segundo Halliday (2004),
referente ao querer. Nesse sentido, mesmo o conhecimento
das obrigações não possibilita à garota a capacidade de vencer
seus impulsos.
A construção discursiva do consumismo na reportagem
aponta para uma relação compulsiva do jovem em relação
ao ter, conforme postula Giddens (1997). Para este autor, a
compulsividade caracteriza-se pela repetição, pela conduta
rotinizada vazia, que não atua no sentido de levar o ator social
à autonomia e à formação de uma identidade reflexiva. Trata-
se do congelamento da confiança – um índice do processo de
“destradicionalização” da sociedade, na medida em que os
valores tradicionais que garantiam uma visão de mundo ética
e moralmente justificada, assim como a identidade coletiva
e individual do ator social, apresentam-se enfraquecidas, o

229
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

que resulta na perda da confiança em relação às instituições


e valores sempre confrontáveis da modernidade reflexiva.
Desse modo, o consumismo desses jovens é dotado de
teor compulsivo, uma vez que se caracteriza por uma repeti-
ção de conduta que não os leva à autonomia, baseado numa
não confiança em sua identidade e nos valores de seu grupo.
Ele deve ser outro, parecer ser outro, a fim de se identificar
com um grupo diverso – o que é possibilitado, em tese, pela
democracia, pelo espaço de mobilidade social e pela refle-
xividade modernas – , embora se trate, no caso, apenas de
uma encenação de corpo, e não, de uma adoção efetiva da
prática, da identidade ou do discurso do outro grupo social.
A justificativa para o consumo reside no prazer de buscar ser
o que não se é; prazer este que é discursivamente construído
como resultado de um imperativo, e não, de uma inclinação.
No entanto, os jovens se mostram conscientes do discurso
circulante em sociedade. Giddens (1997) define o vício como
qualquer coisa que o indivíduo sinta que deve esconder. Na
reportagem, eles não escondem suas ações, mas demonstram,
por suas falas, consciência dos imperativos sociais, de sua dis-
sidência em relação a tal discurso. A justificativa do prazer e do
bem-estar torna-se o mecanismo que permite desvelar aquilo
que se deveria esconder. Assim, a reação afetiva é discursi-
vizada como máscara da necessidade deôntica de consumo.
A reportagem continua, introduzindo a voz de uma outra
autoridade acerca do assunto – a antropóloga Cecília Fornazie-
ri, da Faculdade Santa Marcelina –, que, em sua fala, expande
a vontade de consumir a todos os grupos sociais. Ademais,
a voz autoral apresenta novos dados da pesquisa Datafolha,
apontando uma valorização da moda por 17% dos jovens,
tanto de classe média, quanto de classe alta.
Veja-se, portanto, que é só ao final do texto – quinto, sexto
e sétimo parágrafos da segunda parte – que os outros jovens
são tematizados; no entanto, são só esses comentários que lhes

230
Iran Ferreira de Melo (Org.)

são concernentes. O foco reside, de fato, nas classes baixas,


nas quais a incompatibilidade projetada pode ser verificada.
A mesma antropóloga aponta como diferença entre a
atitude de consumo dos mais pobres em relação aos ricos a
vontade daqueles em fingir ser o que não são. Ela diz: “Moda
é aspiração, é querer se fantasiar pontualmente de quem se
admira”. A especialista reitera o argumento da reportagem
como um todo, mostrando que a relação que o jovem de baixa
renda assume com o consumo é da ordem da ilusão, ou seja,
do “parecer ser” momentâneo. O tênis Oakley, que nunca
frequentou a oficina mecânica de Alexander, consiste em um
exemplo claro desse argumento, que consiste em uma defini-
ção subjetiva de moda, concebida pela antropóloga Cecília.
O exemplo que finaliza a reportagem é justamente aquele
que remete ao subtítulo: Thifani é apresentada como filha
única e ajudante da mãe no processo de confecção de formas
para doces. Repare-se:
A duas casas de distância do salão de beleza de
Karoline, a filha única Thifani Melo, 15, ajuda a
mãe no seu trabalho de fazer forminhas para doces.
Ou ajudava. Hoje em dia, a relação se inverteu. Os
R$ 120 que Thifani ganha pelas tardes trabalhadas
têm de receber complemento materno para cobrir
as parcelas do celular (R$ 685) e das joias de prata
(R$ 600, o conjunto de pulseira, colar e bracelete).

O enunciado alternativo Ou ajudava contrasta com o


tempo verbal da proposição anterior, cujo verbo estava no
presente – ajuda –, apontando a inversão atual da relação
econômica entre mãe e filha. A mãe seria, naquele momento,
obrigada a complementar a renda da filha para pagar os gastos
por elas auferidos – ou seja, passaria de ajudante a ajudada.
O último parágrafo merece destaque por sintetizar a razão
que leva os jovens construídos neste discurso à compra: Por
mais que se diga arrependida de gastar tanto, e de às vezes

231
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

seguir as amigas nas aquisições caras, Thifani é direta: “Seria


menos feliz sem comprar”.
Verifica-se nessa sequência que a construção concessiva
também contrai o dialogismo, por negar a potencial necessi-
dade de compatibilidade entre ser direto e se arrepender, de
modo que a voz autoral acaba construindo a garota como um
ator social consciente de que o arrependimento e a atribuição
de culpa às amigas consistem em pretextos. No fundo, ela sabe
a razão – “seria menos feliz sem comprar” –, ou seja, a reação
afetiva de felicidade é consequência da atividade de consumo.
O prazer é a justificativa para tal, não uma necessidade ou
uma utilidade prática. Ou seja, trata-se de uma compulsão
que estabelece um novo sentido identitário ao indivíduo, que
lhe proporciona uma satisfação em parecer ser aquilo que ele
não é.
Em outras palavras, a reportagem do jornal naturaliza
uma concepção de que o jovem de baixa renda é aquele que se
vê sem perspectivas e que vislumbra na compulsão inescapável
do consumo uma possibilidade de ser aquilo que, em teoria,
não pode ser – rico e dotado de oportunidades. A moda, como
encenação corporal e faceta externalizada e simbólica da iden-
tidade, permite o simulacro do ser, referendado pela satisfação
discursivizada dos atores sociais apresentados pela revista, que
têm na necessidade do “ter” a sua “real” justificativa.

6. Considerações finais

Este artigo teve por objetivo analisar o discurso do Folha-


teen acerca do consumismo jovem na atualidade. Enfocando
as camadas mais baixas e construindo-as como compulsivas
no que se refere ao consumo da moda, a reportagem busca
justificar o comportamento desses teens a partir de uma falta
de perspectiva que tem como espelho as potenciais possibi-
lidades dos mais ricos.

232
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Assim, torna-se justificada a compulsividade pela identi-


ficação pontual em relação àqueles que detêm mais oportuni-
dades, por meio da encenação corporal permitida pela moda e
pela posse de acessórios de ponta, que justificam a submissão
a formas de trabalho construídas textualmente como explora-
tórias ou o gasto desregrado de dinheiro – segundo se permite
deduzir – nessas fontes “não condizentes” de consumo.
Em outros termos, a reportagem – por meio de argumentos
de autoridade e de testemunho dos próprios jovens – apresenta
uma visão do consumismo como uma saída apenas prazerosa
para a falta de perspectiva, desvelando uma crítica implícita
às atitudes desses jovens, tendo em vista que a construção
do discurso passa pelo pressuposto de uma leitura resistente
à grande parte dos argumentos e atitudes consideradas pelos
jovens, como o descaso em relação aos estudos, a imaturidade,
o descontrole e a insaciabilidade.
Nesse sentido, é importante notar como uma parcela da
mídia escrita brasileira – e essa reportagem ilustra bem – atua,
muitas vezes, em direções opostas em seus textos: ao mesmo
tempo em que procura apresentar uma visão crítica da reali-
dade, que poderia funcionar como um alerta a certos dados
da realidade – no caso, em relação aos padrões de consumo
dos jovens mais pobres –, a mídia articula um texto que se
baseia em premissas de resistência e de condenação prévias,
a partir das quais as atitudes e o discurso dos atores sociais
apresentados são articulados como forma de comprovar uma
representação hegemônica – no caso, a da ascendência dos
mais ricos na parametrização das práticas, estilos e ações dos
mais pobres –, justificando e generalizando tal atitude, ao
mesmo tempo em que a desvaloriza, sem apresentar propostas
para escapar de tal armadilha.
Assim, a crítica desvelada e implícita acaba apenas rei-
terando o status quo e ratificando uma realidade que é, por
um lado, condenada, e, por outro, perpetuada.

233
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Referências

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Paulo: Hucitec, 2004.
FAIRCLOUGH, N. Critical Discourse Analysis: papers in the
critical study of language. London and New York: Longman,
1997.
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London: Routledge, 2007.
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Editora UNESP, 1991.
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BECK, U; LASH, S. Modernização reflexiva: política, tradição
e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da
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HALLIDAY, M. A. K. Language as social semiotic: The social
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Hodder Arnold, 2004.
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jornalismo na era da informação. São Paulo: Contexto, 2007.
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REBOUL, O. Introdução à retórica. 2 ed. São Paulo: Martins
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SANT’ANNA, L. O destino do jornal: a Folha de S. Paulo, O
Globo e O Estado de S. Paulo na sociedade da informação. Rio
de Janeiro: Record, 2008.

234
Iran Ferreira de Melo (Org.)

ANEXO

Comportamento - Moda é Dureza

Jovens gastam todo o salário em celulares e roupas; falta de


perspectiva motiva consumo dos mais pobres, dizem estudiosos.

Chico Felitti
da Reportagem Local

“Sou pobre, mas tô na moda!”, gaba-se a auxiliar de


enfermagem Ana Garcia, 19.
Ela rala para isso – diz gastar todo seu salário de R$ 700
com roupas “de marca”.
A garota não cogita se graduar em breve. Seus pais não
podem pagar uma faculdade particular, ela acha que não con-
segue entrar em uma pública e não quer cortar gastos. “É do
que preciso agora”.
A urgência de Ana ecoa pesquisa de 2008 do Datafolha,
feita com 1.541 brasileiros de 16 a 25 anos: 22% dos jovens
com renda familiar (soma do que ganham todas as pessoas
da casa) de até dois salários mínimos (R$ 930) dizem achar
muito importante estar na moda.
“Ter é uma preocupação central para esses jovens. Eles
se sentem inseguros no convívio, pois não agem como os mais
ricos e tampouco têm as chances deles na vida”, explica Paula
Nascimento, socióloga da USP.
Paula fez seu mestrado acompanhando o comportamento
de consumo de 200 teens com renda familiar média de dois
salários mínimos, em uma entidade assistencial espírita na
zona oeste de SP.
“Os jovens tinham roupas e celulares que não condiziam
com sua situação financeira e procuravam qualquer trabalho
para comprá-los”, conta.

235
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

Rafael Ramos, 19, está prestes a entrar no mercado de


trabalho. Aceitou o “trampo” como soldador no bairro pau-
listano Vila Formosa pelo salário de R$ 700. “Tô precisando
comprar umas roupas da Hurley e da Billabong pra mim”.
O futuro operário diz que o primo Alexander da Silva, 19,
influenciou sua escolha. Alexander, que parou de estudar na
oitava série, gasta dez horas por dia em uma oficina mecânica.
Mas, quando tira o macacão, fica na estica. O tênis Oakley,
que nunca viu graxa, custou os R$ 600 que ganha em um mês.
“Pior é que valeu a pena”, diz Alexander, para logo
justificar:
“É bom ter uns ‘trapos’ bons, que eu não podia ter antes.
Mostra minha mudança”.

De ajudante a ajudada

Faz um ano que Karoline Dicena, 15, corta, pinta e es-


cova cabelos no salão de beleza no térreo da sua casa, na Vila
Carrão (zona leste de São Paulo).
Logo que pegou o primeiro contracheque, já o gastou,
inteiro, numa loja de celulares.
“A sensação foi ótima! Fiquei surpresa comigo.” Foi-se
o primeiro mês e, com ele, a saciedade com o aparelho. Hoje,
Karoline tem três celulares de ponta. Todos são pré-pagos.
Mas ela fala tanto ao telefone? “Ah, não uso os três, mas
gosto muito deles”. E por que continua a montar uma central
telefônica? “Sei que preciso economizar para os estudos, e
vou passar a fazer isso em breve, mas é muito difícil resistir
à vontade, que tá sempre ali”.
Essa vontade espreita ricos, pobres, jovens e velhos, diz a
antropóloga Cecília Fornazieri, da Faculdade Santa Marcelina.
A mesma pesquisa Datafolha aponta que 17% dos teens
cuja família ganha até cinco salários (R$ 2.325) por mês acham
moda muito importante. O número é igual (17%) entre os mais

236
Iran Ferreira de Melo (Org.)

ricos, com renda familiar superior a dez salários (R$ 4.650).


A diferença, para a professora Cecília, é que os mais
pobres têm mais vontade de fingir ser o que não são. “Moda
é aspiração, é querer se fantasiar pontualmente de quem se
admira”.
A duas casas de distância do salão de beleza de Karoline,
a filha única Thifani Melo, 15, ajuda a mãe no seu trabalho
de fazer forminhas para doces.
Ou ajudava. Hoje em dia, a relação se inverteu. Os R$
120 que Thifani ganha pelas tardes trabalhadas têm de rece-
ber complemento materno para cobrir as parcelas do celular
(R$ 685) e das joias de prata (R$ 600, o conjunto de pulseira,
colar e bracelete).
Por mais que se diga arrependida de gastar tanto, e de às
vezes seguir as amigas nas aquisições caras, Thifani é direta:
“Seria menos feliz sem comprar”.

Fonte: Folhateen, 21 set. 2009, consultado em 21 set. 2009.


http://www1.folha.uol.com.br/fsp/folhatee/fm2109200901.htm

237
Iran Ferreira de Melo (Org.)

ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO E


REALISMO CRÍTICO:
REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
Solange Maria de Barros Papa
Universidade do Estado de Mato Grosso

1. Introdução

Já é consenso entre os analistas críticos do discurso


sobre a necessidade de entender a linguagem como “prática
social” (Fairclough, 1989; 2001; 2003; Kress, 1990;
Van Dijk, 1993; entre outros). A linguagem contribui para
a “produção, manutenção e mudança nas relações sociais
de poder”, bem como “amplia a consciência de como ela
contribui para a dominação de umas pessoas sobre outras, já
que a consciência é o primeiro passo para a emancipação”
(Fairclough, 1989, p. 01). Para os analistas críticos do
discurso, a linguagem não é algo puramente individual; ao
contrário, é carregada de sentidos, subjaz uma ideologia. A
linguagem como prática social implica, conforme Fairclough
(2003, p. 94), questões de ordem econômica, política, cultural
e ideológica.
Os estudiosos críticos do discurso consideram algumas
abordagens de análise de textos (orais e escritos) necessárias
para garantir uma dimensão mais crítica na pesquisa social.
Conforme Fairclough (2003, p. 05), a abordagem da Gra-
mática Sistêmico-Funcional (Halliday, 1994) contribui
para a análise linguística dos textos. Outros analistas críticos

239
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

do discurso têm se utilizado de estudos da ‘pragmática’ para


análise dos atos de fala (Chilton, 1985; Van Dijk, 1988)
e de relatos de histórias de vida (Papa, 2005; 2007; 2008),
sendo esta, considerada como uma rica ferramenta para
uma melhor compreensão dos níveis micro e macrossocial.
Há ainda os estudos da etnografia (Chouliaraki, 1995;
Resende, 2008) e uma versão de análise crítica baseada
na “crítica explanatória” desenvolvida por Bhaskar (1986),
e considerada por Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 60) e
Fairclough (2003, p. 209) como uma forma de linguagem
crítica, visando à emancipação social. Conforme nos assegura
Kress (1990, p. 85), os analistas críticos do discurso buscam
não apenas desvelar o modo como as práticas linguístico-
discursivas imbricam nas estruturas sociopolíticas de poder
e dominação, mas, principalmente, operar mudanças nessas
mesmas práticas e estruturas sociais.
Neste artigo, apresento algumas reflexões teórico-meto-
dológicas da Análise Crítica do Discurso (ACD), ressaltando
aspectos da Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) e do Rea-
lismo Crítico (RC), considerados de suma importância para os
analistas críticos do discurso que desejam não apenas remover
o véu ideológico das estruturas sociais de poder, opressão e
dominação, mas também agir de forma a transformar essas
mesmas estruturas sociais. Ao discutir sobre os aspectos
teórico-metodológicos da ACD e do RC, teço também consi-
derações sobre a relevância dos relatos das histórias de vida
para a ACD.

2. Análise Crítica do Discurso e Gramática Sistêmico-


Funcional

A linguagem é elemento básico na vida social, sendo,


portanto, parte da sociedade. A linguagem como processo
social, deve, necessariamente, envolver o discurso, pois, se-
gundo Fairclough (1989, p. 25):

240
Iran Ferreira de Melo (Org.)

[...] envolve condições sociais, que podem ser


especificadas como condições sociais de produção
e condições sociais de interpretações. Além disso,
essas condições sociais se relacionam com três
diferentes ‘níveis’ de organização social: o nível da
situação social, ou o meio social imediato, no qual
o discurso ocorre; o nível da instituição social, que
constitui uma matriz mais ampla para o discurso; e
o nível da sociedade como um todo.

O discurso é entendido como uma forma de ação no


mundo. É mediante o discurso que os indivíduos constroem
sua realidade social, agem no mundo em condições histórico-
sociais e nas relações de poder nas quais operam (Fairclou-
gh, 1989). Para esse autor, o discurso não é apenas prática de
representação do mundo; mas também prática de significação
no mundo, construindo o mundo em significado. O discurso
contribui para a construção de: “identidades sociais, relações
sociais entre as pessoas e sistemas de conhecimento e crença”
(Fairclough, 2003, p. 91).
Do ponto de vista metodológico, alguns aspectos do
discurso são relevantes para a análise de textos. Ou seja, o
discurso é visto sob estas três dimensões: (i) Texto – descrição
dos aspectos relevantes da estrutura textual (oral ou escrito);
(ii) Prática discursiva – interpretação do texto, incluindo a
produção, distribuição e consumo (leitura e interpretação);
iii) prática social – explanação da relação dos processos
discursivos e sociais (Fairclough, 1989; 2001). Fazer
uma análise crítica do discurso implica, portanto, considerar
esses três níveis tridimensionais. A seguir, explicitarei cada
um deles.
No primeiro nível – o Textual – é fundamental considerar
a GSF, como uma abordagem voltada para a descrição minu-
ciosa e sistemática dos padrões linguísticos. A análise do texto
(oral ou escrito) é vista sob a perspectiva sociossemiótica, na
qual os significados são entendidos a partir de escolhas lin-

241
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

guísticas, estruturalmente organizadas (Halliday, 1994).


As escolhas que o falante/escritor faz, segundo Halliday
(1994), operam em todos os níveis do discurso: lexical,
sintático, modal, e é por meio delas que se pode perceber o
nível de expressividade presente numa determinada situação
comunicativa. O léxico utilizado num texto carrega traços da
identidade do falante/escritor, uma vez que as escolhas feitas
pelo falante/escritor podem estar transparentes ou não, preci-
sando, portanto, ser desveladas. A análise linguística permite,
dessa forma, interpretar os significados presentes nos textos.
No segundo nível – prática discursiva – é preciso con-
siderar a interpretação do texto, ou seja, questões inerentes à
produção, à distribuição e consumo (leitura e interpretação).
Neste nível de análise, os aspectos intertextuais e interdiscursi-
vos presentes no texto devem ser avaliados. Fairclough (2001)
explica que a prática discursiva deve combinar “microanálise”
e “macroanálise”. Conforme o autor, é a natureza da prática
social que determina a prática discursiva.
No terceiro nível – prática social – busca a explicação ma-
crossocial da prática discursiva. Neste nível de análise, busca-se
compreender como as estruturas sociais moldam os textos e
como eles refletem as estruturas sociais. A análise da prática
social traz à tona os efeitos ideológicos e políticos presentes
nos textos. Fairclough (2001, p. 289) assegura que ao sermos
capazes de identificar a natureza da prática social, seremos
capazes de explicar os seus efeitos sobre a prática social.
A ACD tem procurado expandir seu modelo de análise, na
relação entre os níveis textual e social. Ela tem apresentado,
por exemplo, princípios metodológicos, que podem contribuir
para o aprimoramento da análise de textos orais e escritos. A
ênfase na “análise interdiscursiva” de textos (em termos de
hibridade de gêneros, discursos e estilos), é uma tentativa, por
exemplo, de suprir o espaço existente entre texto e contexto,
isto é, entre linguagem e contexto social.

242
Iran Ferreira de Melo (Org.)

Nessa perspectiva, é relevante para o analista de discur-


so crítico se utilizar da GSF, a fim de se investigar melhor a
linguagem do ponto de vista micro e macrossociais. A ACD,
em conjugação com a GSF, pode proporcionar ao analista
crítico do discurso uma visão mais holística do contexto social
investigado, estreitando cada vez mais o elo entre o texto e o
contexto, entre o social e o linguístico. A convergência dessas
duas concepções teórico-analíticas é uma forma dialética de
olhar a linguagem sob vários prismas. Trata-se de diferen-
tes modos de enxergar e sentir a realidade e o mundo, para
compreender melhor os mecanismos sociais de dominação e
resistência ou de emancipação e transformação social.

3. Análise Crítica do Discurso e Realismo Crítico

Para os analistas de discurso (Chouliaraki &


Fairclough, 1999), o termo Realismo Crítico1 surge
pela primeira vez para explicar a organização da vida social
como um sistema aberto. Chouliaraki & Fairclough (1999),
em consonância com Bhaskar (1986; 1998), entendem que há
várias dimensões da vida social, incluindo a física, química,
biológica, econômica, social, psicológica e linguística e que
estas possuem estruturas distintas, com efeitos gerativos nos
eventos, através de mecanismos particulares. Inspirados no
Realismo Crítico, Chouliaraki & Fairclough (1999) conse-
guiram organizar um modelo analítico que possibilitasse
1 O Realismo Crítico refere-se à ideia de que existe uma realidade exterior, indepen-
dente das concepções que se tenha dela. Bhaskar (1998, p. 41) distingue não apenas
o mundo e a nossa experiência, mas a sua estratificação ontológica ¾ a questão do
Ser, representado pelos três domínios da realidade: o Real, o Realizável e o Empírico.
O domínio do Real pode ser entendido como tudo que existe na natureza, sejam eles
objetos naturais (estruturas atômicas e estruturas químicas), sejam sociais (ideias,
relações sociais, modos de produção etc.). O domínio do Realizável consiste em
eventos ou atividades que são realizadas e, portanto, geram efeitos de poder, po-
dendo ser observáveis ou não. O domínio do Empírico é entendido como o domínio
da experiência. Se tomarmos o exemplo de qualquer trabalhador, seja ele professor,
médico etc., sua capacidade física e mental se concentra no domínio do Real, enquanto
seu trabalho como atividade que gera efeito de poder, se concentra no domínio do
Realizável.

243
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

identificar problemas sociais, materializados em textos orais


ou escritos. Essa abertura de possibilidades transdiciplinares
fez com que a ADC ganhasse cada vez mais espaço na ciên-
cia social crítica, permitindo aos analistas de discurso uma
compreensão cada vez mais ampliada da vida social, princi-
palmente em relação aos elementos micro e macrossociais.
Chouliaraki & Fairclough (1999), em conformidade com
Bhaskar (1986; 1998), entendem que as pesquisas em ADC
devem estar voltadas para problemas práticos da vida social,
vislumbrando, assim, uma crítica explanatória (Bhaskar,
1986; 1998; 2002), construída com base nas descobertas dos
problemas sociais, oriundos das práticas sociais, e a partir
delas buscar soluções para a sua superação. E para alcançar o
potencial explanatório, o ponto de partida é a análise de como
os significados são construídos na prática social. Para tanto,
Fairclough (1989; 2003) propõe uma abordagem de análise de
discurso que pode contribuir para o crescimento da pesquisa
social crítica, uma vez que a ADC enfatiza a relação dialética
entre o discurso e outros elementos das práticas sociais (outras
formas de semioses: linguagem corporal, imagens visuais etc).
O modelo de análise proposto por Chouliaraki & Fair-
clough (1999), baseado na crítica explantória de Bhaskar
(1986; 1998; 2002) sugere cinco estágios:

1. Identificação do problema;
2. Obstáculos a serem enfrentados;
3. Função do problema na prática;
4. Possíveis maneiras de superar os obstáculos;
5. Reflexão da análise.

No primeiro estágio, conforme nos assegura Chouliaraki


e Fairclough (1999), o analista crítico do discurso deve iden-
tificar o problema que pode estar em alguma parte da vida
social (ex. educação, política, economia etc).

244
Iran Ferreira de Melo (Org.)

No segundo estágio, o analista crítico do discurso deve


reconhecer os possíveis obstáculos a serem enfrentados.
Precisa fazer uma análise denominada por Chouliaraki &
Fairclough (1999) de análise de conjuntura. Conforme os
autores, a conjuntura a que eles se referem representa um
trajeto particular de uma rede de práticas que constituem as
estruturas sociais. Ao proceder a análise de conjuntura, o
analista crítico de discurso deve atentar-se para a análise de
uma prática em particular ou práticas sociais. Chouliaraki
& Fairclough (1999) identificam 04 (quatro) momentos da
prática social: atividade material; relações sociais; fenômenos
mentais e discurso.
Um aspecto relevante destacado por Chouliaraki &
Fairclough (1999, p. 61) para a pesquisa analítica do dis-
curso é o trabalho conjunto com outros métodos científicos
sociais, particularmente a etnografia. Segundo os autores, a
combinação desses dois métodos pode ser útil para ambos. A
etnografia requer a presença do pesquisador, por um período
de tempo, no contexto da prática social, contribuindo para o
conhecimento além do texto.
No terceiro estágio, o analista crítico do discurso procura
olhar a função do problema na prática. Chouliaraki & Fair-
clough (1999) ressaltam a necessidade de que seja considerado
o se e o como o aspecto problemático do discurso tem uma
função particular dentro da prática social. Significa dizer que o
analista deve se concentrar em apenas um aspecto da análise,
acima dos obstáculos, para conseguir abordar o problema.
Significa também mudar do é para deve, ou seja, passar da
fase da explanação da prática que conduz ao problema, para
a fase da avaliação da pratica, em termos de resultados.
No quarto estágio, o analista crítico do discurso procura
as possíveis maneiras de superar os obstáculos. Deve-se
também mudar do é para deve, isto é, se as práticas estiverem
problemáticas ou danificadas, o analista tem que procurar

245
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

transformá-las. O analista crítico do discurso deve, portanto,


investigar os efeitos reprodutivos das práticas.
No quinto e último estágio, o analista crítico do discurso
deve fazer uma reflexão da análise, isto é, manter-se como um
pesquisador reflexivo, tendo me vista ser a pesquisa social uma
pesquisa crítica. Nesse sentido, a reflexão feita pelo analista
crítico do discurso deve levar em consideração se o que está
sendo realizado é, de fato, uma pesquisa que visa algum tipo
de mudança na prática social.

4. Reflexões interdisciplinares: relatos de histórias de


vidas

As considerações feitas por Chouliaraki & Fairclough


(1999), com base no Realismo Crítico (Bhaskar, 1986;
1998; 2002), sobre o modelo de análise de crítica explantó-
ria (Bhaskar, 1986; 1998; 2002), permitem uma reflexão
mais profunda sobre como nós, analistas críticos do discurso,
realizamos pesquisas com base na ACD. O que se tem visto
nos últimos congressos da ACD são trabalhos com a preo-
cupação de desvelar relações de poder e ideologia, mas que
nada tem de engajamento junto aos reais problemas práticos
da vida social. No meu entendimento, desvelar relações de
poder, hegemonia, opressão etc deve ser apenas uma parte da
análise realizada pelo pesquisador social crítico. Para alcan-
çar um potencial crítico, como deseja Bhaskar (1986; 1998;
2002), em sua proposta de crítica explanatória, e corroborado
por Chouliaraki & Fairclough (1999), é preciso não apenas
desvelar as relações de poder, ideologia, opressão etc, mas,
a partir delas, buscar soluções práticas para a sua superação.
Bhaskar (1998, p. 62), ao construir seu pensamento filo-
sófico sobre emancipação e transformação social, apresenta
uma proposta para a ciência social crítica, pois, segundo ele,
os mecanismos geradores dos problemas podem ser removi-
dos. Para esse autor, a emancipação não pode ser alcançada

246
Iran Ferreira de Melo (Org.)

apenas pela mudança da consciência; ao contrário, ela deve


ocorrer na prática, ou seja, deve passar pela transformação
dos próprios agentes ou participantes.
As contribuições das teorias sociais críticas são relevantes
para a ACD. Todavia, há ainda muitos caminhos a percorrer.
Nada está pronto e acabado. Reflexões frutíferas ainda estão
por vir e certamente serão bem vindas. Do ponto de vista da
análise de significados apresentados nos textos, alguns cami-
nhos transdisciplinares surgem como uma tentativa de melhor
compreender os níveis micro e macrossociais.
Além da abordagem etnográfica defendida por Chou-
liaraki & Fairclough (1999, p. 61), há, ainda, os relatos de
histórias de vida, considerados também de suma importância
para ampliar a visão do pesquisador na análise de textos orais
e escritos (Papa, 2005; 2007; 2008).
Os relatos de histórias de vida podem contribuir com a
ACD, uma vez que fornecem pistas ao analista sobre outros
significados que podem, ou não, estar presentes nos textos.
Enquanto instrumento de coleta para gerar dados, os relatos
de histórias de vida podem ser utilizados pelo analista crítico
de discurso para uma compreensão mais profunda da estrutura
social (Bhaskar, 1998; 2002).
Os relatos de histórias de vida são descrições de even-
tos em que são apreendidos os significados das ações dos
participantes, suas crenças, valores e experiências vividas e
como elas se desenvolvem. Conforme Clandinin & Connely
(2004), as experiências são as histórias de vida das pessoas e
consiste não apenas de fatos, mas também de valores, emo-
ções e memórias. Nessa mesma perspectiva, Goodson & Sike
(2001) argumentam também que as histórias são memórias e
que todas as memórias são histórias. Ou seja, quando falamos
sobre nós mesmos, estamos nos referindo a nossa identidade,
sentimentos, imagens, e os relatos revelam o modo como ex-
perienciamos o mundo. Contudo, nem sempre o pesquisador

247
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

consegue captar toda a história de vida do sujeito, participante


da pesquisa. Quase sempre há um ocultamento de experiên-
cias tristes que foram por eles vivenciados. Nesse caso, os
elementos discursivos que poderiam ser cruciais para a análise
deixam de ser revelados e o analista acaba não conseguindo
capturar outros discursos da vida desse sujeito.
Sob a ótica da ACD e do RC, alguns estudos vêm sendo
feitos desde 2006, na Escola Estadual Meninos do Futuro,
localizada no Centro Socioeducativo do Complexo Pomeri,
na cidade de Cuiabá/MT (Papa, 2007; 2008; 2009).2 Os
professores da escola participam de grupos de estudos, onde
são oportunizados momentos de discussões e reflexões sobre
temas concernentes à emancipação e transformação social.
A experiência realizada com os professores dessa esco-
la, particularmente, com a professora Keila (nome fictício),
tem mostrado resultados significativos do ponto de vista de
mudança das práticas sociais.
Das atividades que desenvolvemos nessa escola, foram
realizadas gravações de entrevistas com a professora, além
dos relatos de suas histórias de vida. Keila não autorizou
que fossem gravados os relatos de suas histórias de vida. Os
relatos foram registrados, etnograficamente, como anotações
de campo. É importante ressaltar que os de relatos serviram
apenas como um instrumento para gerar dados, contribuindo,
positivamente, para ampliar a minha visão enquanto analista
crítica do discurso, a fim de obter uma melhor compreensão do
contexto macrossocial, no momento da análise das entrevistas.
Keila trabalha na escola desde 2003. É professora de
espanhol. Diz nunca ter trabalhado com adolescentes e jovens
em situação de risco. É a sua primeira experiência com esse
público estudantil. Ao relatar-me suas histórias de vida, ela

2 A Escola Meninos do Futuro atende crianças e adolescentes egressos de medidas


sócio-educativas, sob guarda judicial e em situação de risco. O projeto que desenvol-
vemos nessa escola tem como título: Formação Continua do Professor de Línguas:
(Re)Construção da Prática Pedagógica.

248
Iran Ferreira de Melo (Org.)

menciona sobre a sua família. Diz não ter conhecido sua mãe
biológica. Fora criada pelo pai biológico e sua madrasta desde
tenra idade. Por não ter tido uma filha mulher, sua madrasta
adotou-a como legítima, dando-lhe todo o amor e carinho.
Keila relata também que vivenciou, ainda criança, o drama da
sua madrasta com o filho legítimo, ao vê-lo se envolver com
drogas. Afirma ter sofrido, juntamente com a mãe adotiva, o
problema do irmão.
Em entrevista informal, Keila comenta sobre o esforço
para realizar o 1º Seminário de Literatura na escola, no ano
de 2006.3

Esse Seminário de Literatura, desde 2004 era pra


acontecer [...] pra nós desenvolvermos qualquer tipo
de evento...nós temos que ter apoio...da segurança...
quanto do financeiro mesmo...por quê? Porque se nós
quisermos a sós não temos como. [...] nós temos que
ter autorização pros meninos levarem os livros pra ala.4

Nesse excerto, Keila mostra a dificuldade em realizar


qualquer tipo de atividade na escola. Ao dizer “qualquer tipo
de evento nós temos que ter apoio da segurança”, Keila usa
alto grau de modulação “temos que ter”, sinalizando proibição
da escola para esse tipo de evento. Percebe-se que a estrutura
social do Centro Socioeducativo do Complexo do Pomeri,
composta por chefes e subordinados “disciplinados”, impede
que qualquer evento social seja realizado no ambiente escolar.
Keila comenta também sobre a decisão tomada pelo
Superintendente do Centro Socioeducativo do Pomeri, para
a realização do 1º Seminário de Literatura:

3 Desde 1996, os professores passaram a realizar, anualmente, seminários com os alunos.


A cada ano, novos temas são selecionados. Alunos e professores escolhem a temática
e organizam o seminário. Pais, professores e autoridades do Centro Socioeducativo
do Pomeri são convidados a assistirem as apresentações dos alunos. Drogas foi o
tema escolhido pelos alunos no ano de 2009.
4 Possui também o significado de “quarto” (variedade utilizada pelos alunos e profes-
sora).

249
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

[...] tem que ter autorização...né?...por quê? [...]


este ano o Cristiano5 acreditou e resolveu apoiar...
a educação..ele viu a proposta ....a proposta veio do
Cristiano...nos envolvemos junto a ele...sentamos
junto....e ele falou...“se vocês acreditam eu vou
apoiar.

Esse depoimento mostra de forma contundente o poder


exercido pelo Superintendente Cristiano o qual (des)auto-
riza qualquer atividade pedagógica na escola. Ao dizer: “o
Cristiano acreditou e resolveu apoiar”, Keila usa processo
mental “acreditar” para sinalizar uma atitude de decisão so-
bre a proposta de se realizar o Seminário. Percebe-se, que a
proposta de realização do Seminário surge a partir de Keila.
É ela a responsável pela tentativa de negociação da proposta
junto ao Superintendente. Enquanto detentor de poderes que
lhe são atribuídos pelo Centro Socioeducativo do Pomeri,
caberia somente ao Superintendente dar a voz de comando
para autorizar a realização do Seminário.
Percebe-se, pelos relatos das histórias de vida de Keila,
que o seu engajamento não se concentra apenas no cumpri-
mento das atividades pedagógicas que lhe são atribuídas.
O interesse na realização de eventos como o Seminário de
Literatura está intimamente ligado às suas experiências de
vida. Keila, ao lembrar, o drama de sua madrasta ao ver seu
irmão adotivo se envolver com drogas, relembra que, assim
como ele, no período de sua adolescência, vários jovens que
vivem hoje no Pomeri têm procurado esse mesmo caminho
para esquecer o seu passado triste e desalentador.
Os relatos de histórias de vida podem ser uma rica ferra-
menta para a ACD, assegurando uma compreensão mais ampla
da estrutura social, pois a estrutura social molda os textos e
estes refletem a estrutura social. Os relatos de histórias de vida
de Keila forneceram pistas para uma análise mais profunda
5 Nome fictício.

250
Iran Ferreira de Melo (Org.)

sobre outros significados que não puderam estar visíveis nos


textos.
Desvelar relações de poder, opressão, etc deve ser apenas
uma parte da análise crítica do discurso. Para alcançar um
potencial crítico, como deseja Bhaskar (1986; 1998), em sua
proposta de crítica explanatória, é preciso não apenas mostrar
as relações de poder e ideologia existentes, mas, a partir delas,
buscar soluções práticas para a sua superação.

5. Conclusão

Neste artigo, apresentei algumas reflexões teórico-meto-


dológicas da Análise Crítica do Discurso (ACD), ressaltando
aspectos da Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) e do Re-
alismo Crítico (RC), considerados relevantes para analistas
críticos do discurso que desejam agir de forma a transformar
as estruturas sociais de poder e opressão. As considerações
feitas por Chouliaraki & Fairclough (1999), com base no
Realismo Crítico de Bhaskar (1989), permitem uma reflexão
mais profunda sobre como nós, analistas críticos do discurso,
estamos realizando pesquisas com base na ACD. As relações
de poder, hegemonia e opressão devem ser apenas uma parte
da análise realizada pelo pesquisador social crítico. Choulia-
raki & Fairclough (1999, p. 60) e Fairclough (2003, p. 209)
corroboram a proposta de crítica explanatória defendida por
Bhaskar (1986; 1998), de que é preciso não apenas desvelar
as estruturas sociais de poder, ideologia, opressão etc, mas, a
partir delas, buscar soluções para a sua superação.
Chouliaraki & Fairclough (1999, p. 61) argumentam a
favor da etnografia para a ACD. Assim como a etnografia,
os relatos de histórias de vida podem ser também úteis para
a ACD, contribuindo, significativamente, para a compre-
ensão dos mecanismos sociais de dominação e resistência
ou de emancipação e de transformação social. O uso dessa

251
Introdução aos Estudos Críticos do Discurso: Teoria e Prática

ferramenta permite que outros significados invisíveis sejam


interpretados. Os relatos das histórias de vida da professora
Keila permitiram, por exemplo, que outros discursos fossem
trazidos à tona.
O seu esforço em defesa de atividades pedagógicas que
venham contribuir para melhorar a vida dessas jovens revela
uma postura de educadora crítica no processo de emancipa-
ção. Ao privilegiar o desenvolvimento de práticas sociais
libertadoras, Keila está também contribuindo para que a sua
própria prática pedagógica seja de fato transformadora. Este
trabalho é apenas o início de uma longa caminhada a percorrer
nas searas da ACD e RC.

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