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LINGUAGEM e

discurso:
reflexões contemporâneas
JULIO CESAR MACHADO
&
JOCENILSON RIBEIRO
[Organizadores]

LINGUAGEM e
discurso:
reflexões contemporâneas

Pedro & João Editores


Copyright © dos autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser repro-
duzida ou transmitida ou arquivada, desde que levados em conta os direi-
tos dos autores.

MACHADO, Julio Cesar & RIBEIRO, Jocenilson


Linguagem e discurso: reflexões contemporâneas. São Carlos: Pe-
dro & João Editores, 2011. 232p.
ISBN 978-85-7993-???-?
1. Linguagem e Discurso. 2. Análise do Discurso. 3. Semântica His-
tórica da Enunciação. 4. Estudos Bakhtinianos. 5. Autores. I. Título.
CDD – 401

Capa: Marcos Antonio Bessa-Oliveira.


Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito &
Valdemir Miotello & Hélio Pajeú.
Conselho Científico da Pedro & João Editores:
Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil);
Roberto Leiser Baronas (UFSCar/Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral
(UNIR/Brasil) Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Dominique Ma-
ingueneau (Universidade de Paris XII); Maria da Piedade Resende da
Costa (UFSCar/Brasil).

Pedro & João Editores


Rua Tadão Kamikado, 296
Parque Belvedere
www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 - São Carlos – SP
2011
sumário

APRESENTAÇÃO .................................................................................................... p. 09
Jocenilson RIBEIRO & Julio Cesar MACHADO

CAPÍTULOS

PARTE I: ANÁLISE DO DISCURSO, HISTÓRIA E REFLEXÕES SEMIOLÓGICAS

1. Discurso, semiologia e história ......................................................................... p. 15


Vanice SARGENTINI
2. A produção de espaços simbólicos durante a ditadura militar brasileira:
lugares da luta e da memória .............................................................................. p. 21
Israel de SÁ
3. Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação:
reflexões à luz da teoria do discurso .................................................................. p. 35
Jocenilson RIBEIRO
4. Análise do discurso & vitimologia: memória(s) de tráfico de drogas .......... p. 51
Lucas do NASCIMENTO

PARTE II: ESTUDOS DO DISCURSO E REFLEXÕES ANALÍTICAS

5. Por uma vida melhor da/na mídia: uma leitura discursiva ........................... p. 71
Roberto Leiser BARONAS & Samuel PONSONI

6. Discurso constituinte na mídia: algumas possibilidades ............................... p. 83


Andreia Beatriz PEREIRA
7. A originalidade nos textos saussurianos: uma questão de leitura? .............. p. 97
Fernando Curtti GIBIN
8. A cenografia discursiva de «O homem que perdeu as letras do livro» ............. p. 107
Samuel PONSONI
PARTE III: SEMÂNTICA HISTÓRICA DA ENUNCIAÇÃO E REFLEXÕES TEÓRICAS

9. O memorável na relação entre a língua francesa e a língua karipuna ....... p. 125


Soeli Maria Schreiber da SILVA
10. Língua, enunciação e história ....................................................................... p. 131
Adriana da SILVA
11. Ilegalidade legal e legalidade ilegal: um estudo enunciativo de
inseparabilidade semântica ........................................................................... p. 145
Julio Cesar MACHADO

PARTE IV: ESTUDOS BAKHTINIANOS E REFLEXÕES DIALÓGICAS

12. Estilo e autoria no orbe da criação colaborativa: o teatro narrativo


de Luís Alberto de Abreu .............................................................................. p. 163
Hélio Márcio PAJEÚ & Valdemir MIOTELLO
13. Discursos e hegemonia: embates sígnicos no contexto do agronegócio ...... p. 179
Camila Caracelli SCHERMA
14. A colonização da memória no discurso historiográfico............................. p. 193
Eduardo Eide NAGAI
15. A contemplação erótica dos sujeitos estéticos da “infância”,
de Manoel de Barros ....................................................................................... p. 207
Marina Haber de FIGUEIREDO & Valdemir MIOTELLO
16. O mito do eterno retorno na construção da segurança pública:
aportes linguísticos e cinematográficos ...................................................... p. 219
Sidney de PAULO
comissão científica

Roberto Leiser Baronas - UFSCar


Soeli Maria Schreiber da Silva – UFSCar
Valdemir Miotello - UFSCar
Vanice Sargentini – UFSCar

Antenor Rita Gomes - UNEB


Anderson Jacob Rocha – FAFIPA/UEMG
Adilson Ventura da Silva – FAFEM/UNIFEG
Cleudemar Alves Fernandes – UFU
Dirceu Cleber Conde - UFSCar
Denise Gabriel Witzel - UNICENTRO
Girlene Lima Portela - UEFS
Luciana Salazar Salgado – UFSCar
Luiz Francisco Dias - UFMG
Mônica Baltazar Diniz Signori - UFSCar
Mónica Zoppi-Fontana - UNICAMP
Sheila Elias Oliveira - UNICAMP

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apresentação

P
ara melhor significar este livro, é bom que conheçamos algumas
partes de um processo (bem) seletivo do PPGL/UFSCar. Ele pos-
sui uma memória anterior: muitos livros e parco entendimento!
Um acontecimento: uma prova escrita de Mestrado. Uma estru-
tura: a lista de aprovados de alguns nomes de sujeitos desconhecidos e
isolados que, tendo em comum o interesse pelos estudos da linguagem e
do discurso, se inscreviam no campo vasto da linguística. Uma data: ou-
tubro de 2008. Um texto: entrevista de Mestrado. Pelo menos um sentido
certo: tensão.
Se ouro bom é aquele provado no fogo, foi esse fogo seletivo, exigente e
criterioso, a voz que nos forjou e nos tornou sujeitos bem particulares. E é
bom que se diga: nunca mais fomos os mesmos!
Mesmo que na evidência isso seja só a descrição de uma etapa para
nossos interlocutores, para nós autores, esse processo é precioso porque é
a história (ainda por se escrever) de uma turma de Mestrado bem peculiar,
por razões que não estão (somente) em nossa produção acadêmica, mas
estão inscritas discursivamente em cada um de nós. Aos seus modos.
Nosso passado de tensão atualizou-se sempre: vários enunciados de au-
las, congressos, palestras, debates e reuniões, produziram efeitos de amadu-
recimento, crescimento e companheirismo, significando uma boa amizade!
De lá pra cá foi um pulo: de uma boa amizade, embasada em boa formação,
só poderia sair bons trabalhos! Esse livro é um sentido concreto de um pro-
cesso histórico, é a tensão de um passado (processo seletivo e muito estu-
do), amizade de certo presente (o curso de Mestrado), e futuro profissional
(nosso livro!). Nosso momento conjunto de carnavalização!
De modo descritivo, essa coletânea de artigos são frutos de dois anos
de estudos de pós-graduação stricto sensu desenvolvidos entre os anos de
2009 e 2011 na linha de pesquisa Linguagem e discurso do PPGL. Cada au-
tor apresenta um texto cuja reflexão teórico-analítica foi engendrada du-
rante sua pesquisa e, aqui, se evidencia como um recorte no qual estão
concentrados os elementos básicos que configuram seu projeto, a saber: o
objeto de estudo, a filiação teórica, a abordagem metodológica e seus pro-
cedimentos analíticos, o corpus, suas conclusões etc. O leitor iniciante ou já
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com uma considerável trajetória no campo dos estudos linguísticos, de
modo geral, ou do discurso, de modo particular, notará que a diversidade
das questões que aqui se apresentam se deve basicamente a três razões
fundamentais: (i) trabalhamos com o conceito de linguagem no interior da
qual a língua se constitui como um dos sistemas semiológicos capazes de
produzir sentidos frente às condições de produção em que esses sistemas
funcionam. Aliada a essa concepção de linguagem, institui-se uma segun-
da razão em função daquela primeira que dela é indissociável, isto é, (ii) a
diversidade do corpus, que se evidencia por meio de textos verbais e não-
verbais, oral e escrito, imagético e sincrético, imagem fixa e/ou em movi-
mento; textos oficiais, científicos, acadêmicos, pedagógicos, políticos, mi-
diáticos, literários, fundadores, jurídicos etc. Finalmente, e do mesmo mo-
do importante, (iii) a língua é o lugar de materialização das ideologias
instauradas nas interações sociais mais ou menos conflitantes e concreti-
zadas dialogicamente.
Essa diversidade material que destacamos como segunda razão nos faz
perceber que analisar linguagens na relação com seu funcionamento e com
os significados produzidos em textos é observar como a língua e, por ex-
tensão, a linguagem servem aos sujeitos como lugar de constituição, pro-
dução e circulação de sentidos; como a linguagem é terreno em que diver-
sas lutas ideológicas se travam e as identidades se constituem e reconsti-
tuem num movimento heterogêneo e descontínuo; como a linguagem é
espaço de materialização de saberes que, em um dado tempo e condições
sócio-históricas, constituem verdades, criando nos sujeitos o efeito de que
as coisas, os fatos, os acontecimentos no mundo são naturais, um dado já
dado, apagando a própria condição histórica de produção de sentidos.
Aqui o leitor terá a oportunidade de compreender diferentes modos de
analisar a língua na contemporaneidade, reconhecendo em cada parte
desse livro um modo particular de olhar para ela, lançado por nós, pes-
quisadores brasileiros nos últimos anos.
Estruturalmente, o livro é dividido em quatro partes caracterizadas pela
abordagem teórico-metodológica no interior da qual as pesquisas foram
desenvolvidas. A Parte I: Análise do discurso, história e reflexões semiológicas –
congrega artigos oriundos das pesquisas orientadas pela Profa. Dra. Vanice
Sargentini; a Parte II: Estudos do discurso e reflexões contemporâneas – eviden-
cia, do mesmo modo, estudos de pesquisadores orientados pelo Prof. Dr
Roberto Leiser Baronas; a Parte III: Semântica Histórica da Enunciação e refle-

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xões teóricas – apresenta artigos de pesquisas orientadas pela Profa. Dra.
Soeli Maria Schreiber da Silva (Soila). Por fim, a quarta e última parte, inti-
tulada Estudos bakhtinianos e reflexões dialógicas, fecha essa coletânea com
textos oriundos de estudos orientados pelo Prof. Dr. Valdemir Miotello.
Eis nossa obra conjunta: com muito orgulho, tanto da história que ele
carrega quanto dos resultados de pesquisa que aqui se apresenta, coloca-
mos na sua mão, distinto leitor, este acontecimento – a concretização de
uma história em papel, da qual você leitor agora faz parte, para dialogar
conosco e nos constituir de novo!

BOA LEITURA!

Em nome da Turma de Mestrado Linguagem e Discurso 2009-2011,

Jocenilson Ribeiro
Julio Machado
[Organizadores]

São Carlos, 30 de novembro de 2011.

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PARTE I
ANÁLISE do discurso,
HISTÓRIA e reflexões

semiológicas
página 14 PARTE I
um

Vanice SARGENTINI1
DISCURSO, semiologia
e HISTÓRIA1

INTRODUÇÃO

O
objetivo deste artigo é apresentar alguns dos trabalhos
desenvolvidos junto ao grupo de pesquisa que coordeno na
UFSCar – Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR) –,
em especial, introduzir as preocupações de trabalhos sob
nossa orientação nos anos de 2009 a 2011, período em que estivemos
voltados a preocupações relativas ao estudo da linguagem multimodal,
explorando o conceito de semiologia histórica, conforme proposto por
J-. J. Courtine, em algumas das suas obras (1988, 2006, 2009).
O Grupo de Pesquisa LABOR congrega pesquisadores da UFSCar,
como Carlos Piovezani e Luzmara Curcino, pesquisadores de outras
instituições, alunos de pós-graduação em Linguística e alunos de gra-
duação dos cursos de licenciatura em Letras e de bacharelado em Lin-
guística da UFSCar. O objetivo do grupo é discutir teórica e analitica-
mente questões relacionadas ao campo teórico da Análise do discurso,
como o contexto epistemológico de constituição da teoria, a organiza-

1Mestre e Doutora em Linguística - UNESP -Araraquara. Pós-doutorado Paris 3 - Sorbonne


Nouvelle. Professora do Departamento de Letras da UFSCar. São Carlos - SP. Coordena-
dora e pesquisadora do Labor. sargentini@uol.com.br
Vanice Sargentini

ção do corpus de análise, considerando as multimodalidades e as articula-


ções entre discurso e história na constituição dos enunciados.
As investigações organizam-se em dois eixos temáticos: (i) a inseparabili-
dade entre a construção histórica dos discursos e o processo de produção de
identidades, e (ii) o papel da multimodalidade na produção dos discursos na
contemporaneidade, em especial na produção do discurso político. No pri-
meiro, analisam-se as construções de processos históricos discursivos opera-
dos em discursos sobre a resistência política, sobre textos do campo jurídico,
sobre os textos midiáticos divulgados em revistas e jornais, todos eles, enfim,
caracterizando-se como discursos que são espaços de encontro da língua com
a história e, consequentemente, âmbito ideal para a produção de identidades
locais e nacionais. No segundo eixo, investigam-se as transformações no dis-
curso político, considerando a intervenção das novas tecnologias nos pro-
gramas de governo, nas propagandas políticas eleitorais, nos discursos de
posse. Observa-se, então, a necessidade de análise da multimodalidade a que
o discurso político está sujeito, estudando-o não somente em sua organização
verbal e imagética, mas em seu caráter semiológico a ser analisado a partir de
sua inscrição na história.
As pesquisas desenvolvidas no grupo LABOR orientam-se, portanto, na
busca de respostas às questões postas na contemporaneidade como: É pos-
sível, com o quadro teórico da Análise do discurso, analisar o texto misto?
Qual é a importância de se estudar as imagens como operadoras de memó-
ria social e quais são as contribuições desse estudo para o quadro teórico
dos estudos do discurso? Em que nos interessaria o conceito saussuriano de
semiologia e o que se pode conservar desse conceito numa abordagem dis-
cursiva e, portanto, histórica? São essas, com efeito, as motivações que re-
gem os encontros semanais e as produções bibliográficas do grupo.

A CENTRALIDADE DA HISTÓRIA NA ANÁLISE DO DISCURSO

Teoricamente, nossas pesquisas apoiam-se na noção de discurso propos-


ta por M. Pêcheux (1995, 2007, 2008), considerando os movimentos teóricos
pelos quais a Análise do discurso passou do final dos anos de 1960 aos anos
1980. Os distanciamentos e as aproximações da Análise do discurso aos
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conceitos formulados por M. Foucault em diferentes períodos e obras osci-


lam ao longo desses anos, entretanto, a centralidade dos conceitos de dis-
Discurso, semiologia e história

curso e história, bem como a articulação entre eles e que pode ser apreendi-
da na língua são preocupações sempre presentes em nossas pesquisas.
Tomamos como princípio que as bases teóricas da AD, agora e desde
sempre, oferecem-nos um quadro conceitual (noções de interdiscurso, me-
mória discursiva, rede de formulações discursivas, formações discursivas...)
capaz de sustentar as análises e de responder às questões de pesquisa. En-
tretanto, é possível incorrer na armadilha fácil de recitar conceitos, aplicá-
los a um exemplo da mídia, reduzindo a análise a um tratamento pontual
que pode deixar escapar o forte vínculo entre o discurso e a História.
Sensíveis a essas questões, sobretudo relativas à transformação do dis-
curso político e a um apagamento do histórico no estudo dos discursos, J-.
J. Courtine, em alguns de seus trabalhos, cunha o termo semiologia histó-
rica. A proposição desse termo despertou nosso interesse para essa di-
mensão de articulação entre discurso, semiologia e história.

A CONTRIBUIÇÃO DA SEMIOLOGIA HISTÓRICA PARA A


ANÁLISE DE DISCURSOS

Pesquisas desenvolvidas por pesquisadores do grupo objetivam discu-


tir a pertinência da noção de Semiologia Histórica para a análise. Pauta-
mo-nos nas reflexões de J-. J. Courtine (2011), que reconhece duas verten-
tes de surgimento da noção de semiologia: aquela de proposição saussuri-
ana e aquela de raiz ainda mais antiga, indo-europeia, originária da noção
de sintoma, sinais, pistas, indícios, que auxiliam a interpretação.
E será a vertente dos sinais, estes materialmente inscritos no interior
das produções e transformações históricas dos discursos, que talvez seja a
aquela da semiologia que venha a se articular de modo significativo com
uma proposta de estudo dos discursos em um processo histórico de for-
mação do enunciável.
Nessa direção, Courtine (2009), já em seu trabalho de 1981 (Analyse du
discours politique: le discours communiste adresse aux chrétiens), ao aproximar
da Análise do discurso alguns conceitos foucaultianos como o de enunci-
ado e de arquivo, construídos no interior de uma metodologia arqueológi-
ca, antecipa uma questão teórico-metodológica que irá se organizar, poste-
riormente, em outros trabalhos, em torno de uma preocupação com as
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transformações históricas no campo do discurso, uma preocupação da


natureza histórica dos processos discursivos.
Vanice Sargentini

Em sua tese, e em trabalhos posteriores, J-. J. Courtine já coloca em foco


as condições de possibilidade dos discursos, em detrimento das condições
de produção, considerando que as condições de formação do discurso são
aquele conjunto de condições historicamente pertinentes que determinam
a produção, a circulação e a recepção dos enunciados em uma formação
discursiva. Trata-se de considerar o processo histórico de formação do que
é enunciável. Eis aqui posta, neste quadro teórico, a justificativa para se
compreender o termo ‘histórico’ ao lado daquele de semiologia2.
Poderíamos, com isso, compreender a Semiologia histórica como uma
questão teórico-metodológica? E essa pode responder aos nossos anseios
de análise das diversas materialidades sem deixar de lado o processo his-
tórico? Cremos que sim, e ponderamos que é preciso considerar que, no
campo de estudos do discurso, o corpus de análise pode ser recortado le-
vando em conta uma longa, média ou curta duração. No caso, a noção de
arquivo, conforme proposta por M. Foucault (1986) em A arqueologia do
Saber, poderá nos trazer grande contribuição.

ALGUNS RESULTADOS DE PESQUISA

Neste artigo, com o objetivo de introduzir alguns resumos ou fragmen-


tos de pesquisas sob nossa orientação no período de 2009 a 2011, destaca-
mos o fato de esses estudos centrarem suas análises na relação discurso e
história, considerando, de acordo com as proposições foucaultianas, o ‘a
priori-histórico’ que rege os estudos do discurso. É o caso da pesquisa de
mestrado de Lucas do Nascimento – Análise do Discurso e Vitimologia: me-
mória(s) de tráfico de drogas – sobre um processo jurídico envolvendo o trá-
fico de drogas. Para análise, ele busca, na materialidade linguística, a me-
mória discursiva sobre o tráfico, observando distintas posições-sujeitos,
que alimentaram o discurso do suposto criminoso ou da suposta vítima.
A pesquisa de Israel de Sá – Da repressão à abertura política: processos de espe-
tacularização do discurso político –, em nível de mestrado, aborda a espetacula-
rização do discurso político, mostrando como ela já se inicia no período final

2 Uma versão ampliada desta reflexão foi publicada em: SARGENTINI, V. M. O. Análise
página 18

do discurso político: semiologia e história. In: XVI Congresso Internacional de la Asocia-


ción de Lingüística y Filología de la América Latina (ALFAL), 2011, Alcalá de Henares.
Documentos para el XVI Congreso Internacional de la ALFAL. Alcalá de Henares: UAH -
Obras Colectivas de Humanidades, 2011. v. 1.
Discurso, semiologia e história

da ditadura. Desenvolve rica análise sobre matérias de revistas semanais que


apontam alguns lugares como espaços de memória e de resistência.
A dissertação de Jocenilson Ribeiro dos Santos – A constituição do enunciado
nas provas do Enem e do Enade: uma análise dos aspectos semiológicos da relação
língua-imagem sob a ótica dos estudos do discurso – trata da análise, em provas
nacionais, de questões que apresentam o texto sincrético na composição do
enunciado. Observando a significativa ocorrência de textos ao mesmo tempo
verbais e imagéticos, dedica-se a analisar o funcionamento desse texto misto,
destacando, sobretudo, o papel da imagem como operadora de memória.
As pesquisas desenvolvidas no LABOR seguem abordando, como eixo
central, as relações entre discurso e história. Observa-se, nos estudos em
andamento, que a natureza semiológica do objeto de análise dos estudos
do discurso exige que os enunciados sejam compreendidos não unicamen-
te como enunciados linguísticos, mas como semiológicos sem que se des-
cuide do caráter histórico que os constituem. Assim, as noções de discur-
so, de história e de semiologia histórica regem nossas pesquisas.

REFERÊNCIAS

COURTINE, J-. J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cris-
tãos. São Carlos: EdUFScar, 2009

______. Metamorfoses do discurso político: derivas da fala pública. Trad. Nilton Milanez
e Carlos Piovezani Filho. São Carlos, SP: Claraluz, 2006.

COURTINE, J-. J.; HAROCHE, C. Histoire du visage: exprimer et taire ses émotions (XVIe
– debut XIXe siècle). Paris, Payot et Rivages, 1988.

FOUCAULT, M. A arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi
et al. 2.ed. Campinas, SP: EdUnicamp, 1995.

______. Papel da memória. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. 2.ed. Campinas, SP:
Pontes, 2007, p. 49-57.

______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. 5. ed. Cam-
pinas, SP: Pontes, 2008.

SARGENTINI, V. M. O. Análise do discurso político: semiologia e história. In: XVI Con-


gresso Internacional de la Asociación de Lingüística y Filología de la América Latina (AL-
página 19

FAL), 2011, Alcalá de Henares. Documentos para el XVI Congreso Internacional de la AL-
FAL. Alcalá de Henares : UAH - Obras Colectivas de Humanidades, 2011. v. 1.
página 20 Vanice Sargentini
dois

Israel de SÁ1
a PRODUÇÃO DE espaços
SIMBÓLICOS durante A
ditadura MILITAR:1
lugares da luta e da memória?2

A
construção e a produção de identidades se dão e são
verificadas pela própria forma de enunciar e, com isso, é
possível dizer que é no interior do discurso que se legi-
timam e se constituem as negociações identitárias. É por
meio de uma análise propriamente discursiva que é possível obser-
var que a construção de uma identidade está sempre em processo e
nunca se dá de maneira acabada. Foi, portanto, por meio de sua pro-
dução discursiva, como também pela busca de um lugar de resistên-
cia, que a esquerda que se consolidava, à época da Ditadura Militar
no Brasil, fracionada em inúmeros grupos, procurou construir-se e
constituir-se identitariamente.

1 Mestre pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pelo PPGL/UFSCar. Bolsista FAPESP. São Carlos
- SP. Pesquisador do Labor. israeldesa@gmail.com
2 Este artigo trata-se de um recorte da dissertação de mestrado orientada pela Profa. Dra.

Vanice Maria Oliveira Sargentini (PPGL/UFSCar) e intitulada Da repressão à abertura políti-


ca: processos de espetacularização do discurso político, que teve apoio da Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP – processo: 2009/02761-3).
Israel de Sá

A formação de uma identidade dessa nova esquerda, que propunha


uma ruptura com a tradição da esquerda brasileira sustentada pelo Parti-
do Comunista Brasileiro (PCB), sempre esteve ligada à produção de espa-
ços simbólicos registrados por meio da luta contra o regime militar. No
período mais repressivo, aquele da ditadura escancarada iniciada no pós-AI-
5 (Gaspari, 2002), no qual se sobressaiu a resistência armada, verificou-se,
por um lado, o espaço da luta, da clandestinidade, da desterritorialização
– tanto no que diz respeito às guerrilhas urbanas quanto às guerrilhas ru-
rais –; por outro lado, com os relatos realizados por antigos participantes
das organizações de resistência à ditadura, feitos por meio da mídia e dos
romances memorialistas, durante o processo de abertura lenta e gradual, já
no final da década de 1970 (Gaspari, 2002), esses espaços simbólicos rece-
beram uma nova construção filtrada pelo imaginário. Tem-se, assim, como
nos mostra Giddens (apud Hall, 2003, p. 72), que ‚o ‘lugar’ é específico,
concreto, conhecido, familiar, delimitado, o ponto de práticas sociais espe-
cíficas que nos moldaram e nos formaram e com os quais as identidades
estão estreitamente ligadas‛. Ao mesmo tempo em que as identidades
eram negociadas – isto é, construídas – pelas organizações de esquerda,
por meio da aproximação com as classes mais sofridas da sociedade, eram
também construídas na relação com o meio, o espaço concreto – a cidade
ou a selva – onde se estabelecia a luta e se transfigurava em um espaço
simbólico com a marca da própria resistência.
A partir do que propõe Foucault, Gregolin (2003, p. 102) aponta três
formas de lutas pela construção da identidade:

[...] a) aquelas que denunciam as formas de dominação (étnicas, sociais e re-


ligiosas); b) aquelas que denunciam as formas de exploração que separam o
indivíduo daquilo que produz; e c) aquelas que combatem tudo o que liga o
indivíduo a ele mesmo e asseguram assim a submissão aos outros (luta con-
tra a sujeição, contra as diversas formas de subjetividade e de submissão).

No contexto da luta armada no Brasil naquele período, a resistência se


dava também contra as formas de exploração social – basta que observemos
alguns dos argumentos, ainda hoje retomados pelas esquerdas, dos grupos
que constituíam a Nova Esquerda: combater o capitalismo e o imperialismo,
página 22

os grileiros, os grandes proprietários de terras etc. –, mas, mais precisamen-


te, contra a ‚sujeição, às diversas formas de subjetividade e de submissão‛,
na medida em que o poder repressor do Estado autoritário eliminava as
A produção de espaços simbólicos durante a ditadura militar brasileira: lugares da luta e da memória

liberdades individuais. Para resistir contra essa repressão que, simbolica-


mente, suspendia as subjetividades em nome da segurança do Estado, era
preciso buscar um lugar, fora do plano simbólico do Estado e, por extensão,
da ditadura militar, em que se constituísse uma nova identidade e dali e-
mergissem novas construções subjetivas – da utopia à heterotopia.

A RESISTÊNCIA ENTRA NA MATA: a emergência de uma heterotopia

A construção de uma guerrilha rural, que possibilitasse emergir do


campo um espaço de resistência próximo de uma população desfavoreci-
da e por vezes oprimida e fizesse dali surgir uma revolução anti-
imperialista e anticapitalista, sempre foi um dos ideais das esquerdas em
países onde as desigualdades eram escancaradas e onde a repressão era
instrumento de controle.
No Brasil das décadas de 1960 e 1970, a construção dessa resistência fa-
zia parte do imaginário das organizações armadas, que buscavam na
guerrilha urbana subsídios para sua instalação na selva. Poucos foram os
grupos que de fato conseguiram efetivar esta empreitada, mas, dentre
eles, apenas um obteve algum sucesso: a Guerrilha do Araguaia, braço
armado do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Já em 1967, apenas três
anos após a instalação do regime militar, o partido começou a enviar al-
guns homens para o sul do Pará, onde se aproximaram da comunidade
local, desenvolveram trabalhos próprios daquela região e também estuda-
ram o território, verificando a possibilidade de criação de uma guerrilha
naquele lugar (Gorender, 1987). Porém, foi somente em 1971 que o foco
guerrilheiro estabeleceu-se nas matas do alto Araguaia e criou, ali, um
espaço próprio para a resistência e a efetivação da igualdade, um espaço
que, para os militantes da guerrilha, se tornaria o modelo para o país que
emergiria com a derrota da ditadura.
Ao tratar dos espaços, Foucault (2009) afirma que, enquanto a mania do
século XIX foi a história, a época atual seria a época do espaço, que se veri-
fica por meio de relações de posicionamento, uma vez que ‚é definido
pelas relações de vizinhança entre pontos ou elementos; formalmente po-
demos descrevê-las como séries, organogramas, grades‛ (p. 412). Assim, o
página 23

tempo, hoje, aparece no jogo que recobre o espaço. A partir dessa ideia,
Foucault propõe dois tipos de posicionamentos que estão, por assim dizer,
Israel de Sá

ligados a todos os outros espaços, contradizendo, no entanto, todos os


outros posicionamentos. São eles a utopia e a heterotopia.
Em primeiro lugar, Foucault apresenta o conceito de utopia:

[...] os posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos que mantêm


com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou in-
versa. É a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade, mas,
de qualquer forma, essas utopias são espaços que fundamentalmente são
essencialmente irreais (2009, p. 414 - 415).

Em segundo lugar, Foucault afirma que existem, provavelmente em


qualquer cultura, os posicionamentos heterotópicos, que são uma espécie
de utopias efetivamente realizadas. São eles,

[...] lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria ins-
tituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies
de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais que se
podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representa-
dos, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os
lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis (2009, p.415).

Há ainda o que Foucault chamaria de experiência ou posicionamento


misto, que seriam os espelhos. Ou seja, seria, ao mesmo tempo, uma utopia,
posto que é um lugar sem lugar na medida em que podemos nos ver onde
não estamos e uma heterotopia, uma vez que o espelho existe na realidade e
apresenta uma espécie de efeito retroativo no lugar em que ocupamos.
Podemos inferir que os espaços simbólicos produzidos pelas organiza-
ções de esquerda durante a fase da ditadura escancarada se enquadram,
num primeiro momento, na utopia, ainda na formação da luta – a selva
que emerge no ideário dos movimentos de resistência, em especial daque-
les de esquerda que optam pela luta armada e se inscrevem claramente na
utopia, ali, onde poderia se estabelecer o caminho da sociedade justa e
igualitária. Num segundo momento, de combate e de realização das guer-
rilhas, em especial as rurais, inscrevem-se no espaço heterotópico que
permeia as sociedades modernas; isto é, são as heterotopias de desvio, pois o
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comportamento desses grupos desviava em relação à média ou à norma


exigida, mas ainda com a sombra da utopia, na medida em que há, tam-
A produção de espaços simbólicos durante a ditadura militar brasileira: lugares da luta e da memória

bém, a projeção para ‚outros espaços‛, o ‚vir-a-ser‛. É o que veremos pe-


las análises de discursos do movimento guerrilheiro do sul do Pará.
Os guerrilheiros, aqueles que resistiam ao regime, procuravam em outros
lugares condições de resistência, lugares nos quais era possível a construção
de uma identidade que não aquela imposta, construída pelo Estado. Dessa
forma, seriam lugares heterotópicos de desvio na medida em que se busca-
vam condições para resistir, lugares fora das ‚vontades de verdade‛, mas
efetivamente realizados, no momento efetivo de constituição da luta. Há,
sem dúvida, uma relação intrínseca com a chamada ‚crise do pertencimen-
to‛ apontada por Bauman (2005), ao afirmar que ‚a idéia de ‘identidade’ nas-
ceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de
transpor a brecha entre o ‘deve’ e o ‘é’ e erguer a realidade ao nível dos pa-
drões estabelecidos pela idéia‛ (p. 26). Assim, buscava-se em um lugar que
não aquele da vida cotidiana, do espaço urbano, em que se encontravam as
imposições, o ‚deve‛, a representação de suas ideias, das ideologias da es-
querda, lugares heterotópicos, em que se criassem e construíssem novos
posicionamentos identitários, uma identidade própria ao ‚é‛ ou, ainda me-
lhor, ao que propomos discursivamente como ‚somos‛.
De início, tomamos para a análise o seguinte excerto retirado do Comu-
nicado nº 1 dos guerrilheiros do Araguaia:

(1) Diante do criminoso ataque das Forças Armadas governamentais, mui-


tos habitantes das zonas de São Domingos das Latas, Brejo Grande, Ara-
guatins, Palestina, Itamirim, Santa Isabel, Santa Cruz e São Geraldo resol-
veram não se entregar. Armaram-se com o que puderam e enfrentaram co-
rajosamente o arbítrio e a prepotência do Exército e da polícia. Com tal ob-
jetivo, internaram-se nas matas do Pará, Goiás e Maranhão para resistir
com êxito ao inimigo muito mais numeroso e melhor armado. Afim de
desbaratar as operações militares da ditadura, defender suas vidas e de-
senvolver sua luta pela posse de terra, pela liberdade e por uma existência
melhor para toda a população, decidiram formar destacamentos armados,
criaram as Forças Guerrilheiras do Araguaia. Tomaram, também, a iniciati-
va de fundar ampla frente popular para mobilizar e organizar os que alme-
jam o progresso e o bem-estar, os que não se conformam com a fome e a
miséria, com o abandono e a opressão (In: Vários autores, 1996, p. 34-45).
página 25

Nota-se que o enfrentamento dá visibilidade à própria crise de perten-


cimento – o urbano como representação simbólica do Estado e, conse-
Israel de Sá

quentemente, da opressão e das desigualdades é contraposto à selva, o


lugar da luta e da resistência. O enunciado (1) apresenta já aspectos desse
contraponto que se materializa no discurso: contra os ataques do regime,
os habitantes da região resistem, internam-se na mata, lugar próprio para
a luta pela liberdade (melhores condições de vida, a posse de terras etc.).
O espaço construído nos documentos da guerrilha do Araguaia é, por-
tanto, uma utopia efetivamente realizada: a selva que, simbolicamente, consti-
tui o contraposicionamento e estabelece a possibilidade da não sujeição.
Ali é o espaço da luta armada, da resistência efetiva, no interior do qual se
manifestam outros discursos, outras ideologias. Sendo assim, esse espaço
de resistência é heterotópico, pois está em relação de inversão e tensão:
seu objetivo é produzir a revolução a partir do espaço selvagem (utópico,
portanto) a fim de desconstruir os espaços localizáveis (urbanos, do po-
der), os posicionamentos tradicionais.
Observemos o excerto seguinte, ainda do mesmo comunicado emitido
pelas Forças Guerrilheiras do Araguaia, em 1972:

(2) Deste modo, surgiu a União Pela Liberdade e Pelos Direitos do Povo
(ULDP), onde podem ingressar os moradores da região e de outros Estados,
muitos dos quais vêm tendo suas terras roubadas por gananciosos grileiros e
são perseguidos, presos e espancados pelos agentes da ditadura. Nela há lu-
gar não só para os pobres como também para todos os patriotas, seja qual for
sua condição social, que desejem pôr abaixo a ditadura e instaurar no Brasil
um regime verdadeiramente democrático (In: Vários autores, 1996, p. 35).

O discurso guerrilheiro propõe a utopia (criação de um mundo-


-outro, aperfeiçoado – ‚pôr abaixo a ditadura e instaurar no Brasil um
regime verdadeiramente democrático‛) a partir de um espaço localizado,
da selva descrita em seus acidentes geográficos, esquadrinhada nas estra-
tégias de guerrilha. Vale dizer que esses documentos foram produzidos
quando a guerrilha já está formada, interiorizada nas matas da região do
Araguaia, portanto, ali se tratava de um espaço heterotópico, cujo modelo
de ‚sociedade‛ tentava se diferenciar em relação àquele do Estado autori-
tário. Mas será que não havia ali também um espaço utópico? A projeção
para um país diferente, com o fim do regime ditatorial, evidencia um ‚vir-
página 26

a-ser‛, uma organização social igualitária, tal como a desenvolvida ali


naquele espaço físico da selva. Há, ainda, uma fronteira que separa o ‚a-
gora‛ (o momento da guerrilha), seu espaço na selva, heterotópico, e o
A produção de espaços simbólicos durante a ditadura militar brasileira: lugares da luta e da memória

‚futuro‛ (a derrota da ditadura e a emergência da democracia), utopia. A


selva, dessa maneira, como ainda veremos, não se estabelece mais como
um espaço utópico tal como a viam os movimentos guerrilheiros ainda no
início de sua formação, mas as marcas da utopia estão ali presentes.
Ao mesmo tempo, como espaço simbólico de resistência, a selva se ma-
terializa por meio da luta guerrilheira e se constitui como espaço hetero-
tópico justamente por estar em relação contrária, por estabelecer uma re-
lação de tensão entre o discurso oficial (o da política – aquele produzido
pelos órgãos oficiais do regime militar e reproduzido pela maior parte das
instituições da sociedade) e o discurso-outro, da resistência, investido nes-
se lugar – o campo, a selva. Por outro lado, essa tensão se caracteriza pela
luta e, como consequência, por mudanças na sociedade, portanto a proje-
ção – voltemos aos enunciados (1) ‚desenvolver sua luta pela posse de
terra, pela liberdade e por uma existência melhor para toda a população‛;
e (2) ‚instaurar no Brasil um regime verdadeiramente democrático‛. É um
espaço heterotópico por ser o contraponto idealizado-realizado, mas ainda
aparece a utopia, uma vez que o povo e o ideal revolucionário (a liberdade
e o fim das injustiças) estão ainda despossuídos.
Esse tipo de discurso do campo frequentemente instaurado pelos docu-
mentos, de representação da vida no campo, é percebido na tentativa de
aproximar a luta dos guerrilheiros à luta daqueles que vivem naquela regi-
ão, o que evidencia um espaço de luta já consolidado, mas também o espaço
que propõe ainda mudanças, como nos seguintes enunciados-slogans3 (In:
Vários autores, 1996): ‚Abaixo a grilagem‛ (p. 35), ‚Terra e liberdade para o
lavrador viver e trabalhar‛ (p. 39), ‚Fora os grileiros‛ (p.41), ‚Morte aos que
atacam e perseguem os moradores e combatentes do Araguaia‛ (p. 50). Do
mesmo modo, também há uma inversão em relação ao espaço da política,
que é eminentemente o da cidade, urbano, da ‚civilização‛, para o espaço
da resistência, que é o da natureza, a selva, que retrata a purificação e o nas-
cimento do novo. É também por esse motivo que a guerrilha rural é, na
maior parte das vezes, mais mitificada que a guerrilha urbana, pois se con-
figura simbolicamente como o espaço da oposição.
página 27

3 São palavras de ordem que aparecem, em quase todos os documentos, como menção à
luta que realizam, caracterização das injustiças e chamamento para que o povo integre a
resistência. É possível relacioná-las aos slogans nacionalistas empregados pelo regime mili-
tar, uma vez que trazem em si aspectos de autovalorização.
Israel de Sá

Nossa análise nos encaminha, então, para as relações entre espaço e


produção de identidades, a partir do que afirma Hall:

[...] as identificações são as posições que o sujeito é obrigado a assumir,


embora ‚sabendo‛ (aqui, a linguagem da filosofia da consciência acaba de
nos trair), sempre, que elas são representações, que a representação é sem-
pre construída ao longo de uma ‚falta‛, ao longo de uma divisão, a partir
do lugar do Outro e que, assim, elas não podem, nunca, ser ajustadas – i-
dênticas – aos processos de sujeito que nelas são investidos (2000, p. 112).

Nos documentos da Guerrilha do Araguaia podemos observar que o


contraposicionamento heterotópico é também realizado pelo distancia-
mento do guerrilheiro de seu lugar de origem (a cidade) e que essa ‚des-
territorialização‛ produz uma nova identidade para os combatentes. No
seguinte trecho, em que se comemorava um ano de luta nas selvas do sul
do Pará, o narrador comenta as dificuldades enfrentadas do lugar em que
estão combatendo, estranho à maioria deles:

(3) Há precisamente um ano os guerrilheiros combatem com firmeza os


soldados do governo e toda a corja de bate-paus da ditadura. Não temendo
a vida difícil na mata e a falta de alimentos, nem as doenças e a morte, re-
sistem, dando provas de valentia, a um inimigo cruel e armado até os den-
tes (In: Vários autores, 1996, p. 40).

É nesse deslocamento do urbano para o campo que se constitui o espa-


ço simbólico da luta e a emergência de uma heterotopia, que, claramente,
não é constituída na perfeição, mas no contraponto e na possibilidade do
novo no diferente. Se o ambiente selvagem traz consigo as dificuldades
(vida difícil e falta de alimentos), traz também a emergência simbólica de um
outro governo, governo este que é modelo para a nação que seria constru-
ída com o fim da ditadura.
Ainda que a luta nas cidades, a guerrilha urbana, a resistência política
nas cidades, seja também valorizada, como se vê no trecho que se segue,
retirado de uma Carta de quatro guerrilheiros ao bispo de Marabá, a luta no
campo, a resistência na selva é mais valorizada justamente por ser esse con-
página 28

traposicionamento, isto é, o lugar da inversão e do surgimento do novo:


A produção de espaços simbólicos durante a ditadura militar brasileira: lugares da luta e da memória

(4) Há pessoas de diferentes matizes políticos e religiosos, inclusive católi-


cos. Todos eles poderiam viver comodamente, desfrutar a paz, o conforto e
o bem-estar em seus lares. Fiéis, porém, à sua consciência, escolheram o
caminho da luta, preferiram passar fome, morar na selva, dormir ao relento
e, se necessário, sacrificar a vida, a se calar diante de um regime que infeli-
cita o país a mais de oito anos. Os que se portam desse modo agem como
milhares e milhares de brasileiros – entre os quais se incluem muitos pa-
dres católicos – que, nas cidades, combatem o jugo dos generais e de um
punhado de ricaços internacionais e estrangeiros. Vão ao encontro dos mais
legítimos anseios de nosso povo que aspira à liberdade e não quer viver
sobre o tacão da ditadura (In: Vários autores, 1996, p. 42).

A selva, portanto, se desenvolve e se estabelece como espaço da luta e do


sacrifício, mas luta e sacrifício para que a construção da liberdade possa se
efetivar – ‚Vão ao encontro dos mais legítimos anseios de nosso povo que
aspira à liberdade e não quer viver sobre o tacão da ditadura‛ – e a desterri-
torialização seja completa com a derrota do regime militar. Há, portanto, no
espaço da selva, heterotopia – é sem dúvidas um espaço heterotópico –, mas
também aspectos da utopia, que motiva a luta, o combate.
Para Foucault (2009, p. 418) as heterotopias têm profunda relação com
o tempo, pois elas:

[...] estão ligadas, mais frequentemente, a recortes do tempo, ou seja, elas


dão para o que se poderia chamar, por pura simetria, de heterocronia; a he-
terotopia se põe a funcionar plenamente quando os homens se encontram
em uma espécie de ruptura absoluta com seu tempo tradicional [...].

No espaço simbólico da selva – aquele de uma desterritorialização – os


guerrilheiros lutam pela revolução e pela própria sobrevivência. Há aí uma
heterocronia que mescla o tempo do cotidiano (o ‚agora‛ das pequenas
atividades necessárias à sobrevivência) e a grande temporalidade que reto-
ma, em diferentes tempos, o ideal de luta e de revolução, difundido pela
esquerda em diferentes épocas, acumulado com o transcorrer do tempo.
Essa percepção retrata o que há pouco foi mostrado, que no espaço he-
terotópico da selva há um acúmulo de discursos-outros que se consolidam
como resistência àquele da política oficial. Esse acúmulo de discursos in-
página 29

cide em um acúmulo de tempos: heterotopia e heterocronia. Desse modo,


a interdiscursividade é fator constitutivo desse discurso do espaço hetero-
Israel de Sá

tópico, uma vez que toma vários discursos em dispersão e os organiza no


relato a fim de inserir o dizer tanto na temporalidade do ‚agora‛ quanto
naquele da grande temporalidade da História das revoluções. Mas, tam-
bém, tal interdiscursividade alimenta as projeções para o futuro de um
país livre do regime opressor, incidindo aí a utopia.
Ao mesmo tempo, a marca dessa heterotopia é um dispositivo de cons-
tituição da identidade do combatente. Um dos lugares discursivos em que
isso pode ser observado é na relação que o ‚eu combatente‛ estabelece
com a população. Para pontuar essa análise, retornamos ao conceito de
heterotopia desenvolvido por Foucault, quando afirma que:

[...] [as heterotopias] se desenvolvem em dois polos extremos. Ou elas têm


um papel de criar um espaço de ilusão que denuncia como mais ilusório
ainda qualquer espaço real, todos os posicionamentos no interior dos quais
a vida humana é compartimentalizada [...]. Ou, pelo contrário, criando um
outro espaço, um outro espaço real, tão perfeito, tão meticuloso, tão bem
arrumado quanto o nosso é desorganizado, mal-disposto e confuso. Isso se-
ria a heterotopia não de ilusão, mas de compensação [...] (2009, p. 421).

Os discursos dos combatentes buscam criar esses espaços perfeitos, em


contraposição aos espaços reais. Todavia, a imperfeição ainda é própria da
luta, na medida em que o ambiente é, muitas vezes, desfavorável. Esse
fato é perceptível nos documentos da Guerrilha do Araguaia destinados
aos habitantes da região, ao afirmarem um ideário de construção de um
novo ‚mundo‛ para eles, mais ambiciosamente, a construção de um novo
Brasil muito diferente do espaço corrosivo que se verificava naquele mo-
mento. Esse espaço perfeito na sua imperfeição e meticuloso, contrário ao
espaço real da política do regime militar, é criado pela materialidade dis-
cursiva, pela linguagem que incita a população a pegar em armas e a lutar.
Assim, pela palavra convocatória, o combatente coloca-se na posição do
líder revolucionário, aquele que tem competência para tornar real o espa-
ço prometido pela palavra. Portanto, a selva é, de fato, um espaço hetero-
tópico, ali o contraposicionamento em relação ao urbano (local do Estado)
se realiza e consolida novas estruturas, mas é também marcado pela uto-
pia, pois sem ela a luta não teria sentido, ou já estaria acabada.
página 30
A produção de espaços simbólicos durante a ditadura militar brasileira: lugares da luta e da memória

NA MEMÓRIA, HETEROTOPIA E UTOPIA SE ENTRELAÇAM

Quando ocorre a transformação na ordem do discurso, que passa dos


textos doutrinários produzidos no calor da luta para os relatos dos ex-
membros daquelas organizações de esquerda, as identidades se conferem
por meio do espaço produzido pela memória, que tem na reestruturação
da mídia o lugar de emergência dos relatos, trazendo consigo a emergên-
cia de uma história que, ao mesmo tempo em que é construída, está tam-
bém em curso. Assim, Gregolin afirma que:

[...] a mídia produz sentido por meio de um insistente retorno de figuras, de sín-
teses-narrativas, de representação que constituem o imaginário social. Fazendo
circular essas figuras, ela constrói uma ‚história do presente‛, simulando aconte-
cimentos-em-curso que vêm eivados de signos do passado (2003, p. 96).

Nesse sentido, a reconstrução do passado por meio dos relatos, dos es-
paços de memória produzidos na mídia – que contempla também a edição
de inúmeros relatos memorialistas, romanceados –, confere um estatuto
de história em curso, de história do tempo presente.
No momento da abertura política, lenta e gradual, mais do que antes, as
práticas discursivas apresentavam papel essencial para a construção desse
espaço simbólico, pois não há mais relação direta com o espaço físico como
havia no momento da luta efetiva, no momento em que os guerrilheiros
pegavam em armas nas cidades ou no campo para lutar contra o regime
militar. No calor da luta, criavam-se falas de resistência, mas na fase poste-
rior, de abertura política, por meio dos relatos, aparecem as falas de conso-
lidação. Consolidação do passado, da memória, mas também consolidação
da história. No momento em que os relatos, tanto daqueles que participa-
ram diretamente do regime quanto daqueles que resistiram ao governo
ditatorial, começam a circular incessantemente nas arenas midiáticas, o es-
paço simbólico da memória assume papel de destaque. Assim, com a volta
daqueles que participaram da luta armada no final dos anos 1960 e início
dos anos 1970 e o grande boom dos romances memorialistas, muda-se da
negociação por uma identidade brasileira (ou da esquerda) para um discur-
so de consolidação de ex-integrantes dos grupos da esquerda.
página 31

Ainda relacionando esse espaço da memória com o espaço da selva, no-


tamos outra diferença: o espaço simbólico da memória oscila, igualmente,
entre a heterotopia e a utopia. É heterotópico na medida em que os relatos
Israel de Sá

de algo que aconteceu no passado justapõem diferentes espaços e tempos


(Foucault, 2009, p. 418). No entanto, justamente por organizar, selecionar,
dar coerência aos fatos do passado (isto é, reinventá-lo), o espaço da memó-
ria é utópico, um posicionamento sem lugar efetivamente localizável, cam-
biante, movente – a diferença se dá na medida em que a selva era um espa-
ço heterotópico com presença da utopia (mas não um espaço utópico), en-
quanto a memória é um espaço ao mesmo tempo heterotópico e utópico.
A seguir, um excerto retirado do romance memorialista Os carbonários,
de Alfredo Sirkis:

(5) [...] pro Brasil o negócio era um stalinismo adequado às nossas necessida-
des. Nisso o pessoal do colégio concordava. Eu sabia que eles não eram da
linha Moscou nem da linha Pequim (na época nem sequer sabia o nome das
organizações). Eram de outra linha. A linha do exemplo do Che, aquela coisa
bonita. Porque o Che mostrava o pau de matar a cobra. Explicava como fazer
a coisa. Ela não ia explodir de uma hora pra outra. Tinha que ser preparada.
Depois, não ia ser pacífica, a ditadura tava ali pra impedir. Impunha a lei a
ferro e fogo. O povo ia se revoltar. Tinha que se revoltar... Na mesma época,
saiu na revista Realidade uma matéria sobre a vida e morte do Che, que me
impressionou muito. Era notável o gesto daquele homem, que chegara a mi-
nistro do governo cubano: largar tudo para ir combater pela liberdade de ou-
tros povos. Isto, sim, é que era coragem (1998, p. 78).

Na memória, portanto, o cruzamento de diferentes temporalidades so-


brepõe, também, diferentes espaços ao mesmo tempo em que incorpora o
idealizável – aí remissão às figuras ‚exemplares‛ da resistência e aos luga-
res de sua efetivação.
Talvez possamos afirmar que, justamente por ser ao mesmo tempo hete-
rotópico e utópico, o espaço da memória produz uma consolidação do que
foi constantemente construído pela luta efetiva contra o regime, e que, ain-
da que as organizações de esquerda tenham saído derrotadas dessa luta, a
construção de uma memória em torno delas se deu por meio de uma mitifi-
cação da luta, que se estabeleceu até mesmo na construção de um herói da
esquerda que passou por transformações e movimentos, do trágico ao tragi-
cômico, mas que permaneceu como uma figura idealizada, uma construção
utópica4, ainda no interior desse discurso de resistência, mas que seria to-
página 32

4Nesse sentido, basta nos lembrarmos de figuras símbolos do movimento de resistência no


mundo, em distintos tempos, e que foram elevados à figura de heróis: Ernesto ‚Che‛ Gue-
A produção de espaços simbólicos durante a ditadura militar brasileira: lugares da luta e da memória

mado pela grande mídia no contraponto da depreciação, do rebaixamento


desta identidade guerreira, ainda que pela memória. As utopias são ‚a pró-
pria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade mas, de qualquer
forma, essas utopias são espaços essencialmente irreais‛ (Foucault, 2009, p.
415). A fala de consolidação que aparece por meio dos relatos e da constru-
ção da memória é, desse modo, eminentemente utópica.

UMA BREVE RETOMADA

Notamos, com isso, que na fase de maior repressão por parte do regime,
houve a constituição de espaços heterotópicos institucionalizados pelos
locais de resistência, os locais de atuação das guerrilhas, no caso da Guerri-
lha do Araguaia, a selva, o lugar da natureza, contraposição ao lugar efetivo
da política, do Estado ditatorial, o meio urbano, mas que possibilitava a
projeção de uma sociedade diferenciada, demonstrando aspectos de utopia.
Em contrapartida, com a derrota da luta armada e a possibilidade de retor-
no dos exilados políticos, o espaço real da luta, a selva, deu lugar ao espaço
simbólico da memória, um lugar que oscilava entre o heterotópico e o utó-
pico e que era permeado pela busca de consolidação de um ideal revolucio-
nário e de uma identidade construída pela esquerda no momento da luta
armada, principalmente no interior dos relatos, mas na desconstrução dessa
identidade calcada no radicalismo quando apareciam, na mídia, traços de
espetacularização da política e, também, da memória.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2005.

FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Estética: lite-
ratura e pintura, música e cinema (Ditos & Escritos III). Trad. Inês Autran Dourado Barbo-
sa. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 411-422.

GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta
página 33

armada. São Paulo: Ática, 1984.

vara (Argentina/Cuba), Augusto César Sandino (Nicarágua), Emiliano Zapata (México)


etc., para ficar apenas na América Latina.
Israel de Sá

GREGOLIN, Maria do Rosário. O acontecimento discursivo na mídia: metáfora de uma


breve história do tempo. In: ______. Discurso e mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos,
SP: Claraluz, 2003, p. 95-110.

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org). Identida-
de e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, p. 103-133.

______. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaci-


ra Lopes Louro. 7ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. 14.ed. Rio de Janeiro:


Record, 1998.

VÁRIOS AUTORES; DOCUMENTOS DO PCDOB. Guerrilha do Araguaia. 3ed. São Paulo:


Editora Anita Garibaldi, 1996.
página 34
três

Jocenilson RIBEIRO1
POR uma LEITURA do TEXTO
sincrético em EXAMES
nacionais de AVALIAÇÃO:1

reflexões à luz da teoria do discurso2

A imagem está ali num momento único, no instante seguinte,


já se foi – perdida para sempre.
(Margaret Bourke-White, 1904-1971)

INTRODUÇÃO

A
epígrafe com a qual introduzimos este artigo conduz-
nos a pensar no papel da imagem em seus mais diversos
usos na sociedade, de modo geral, e, em particular, no
ensino e nas práticas avaliativas no Brasil. Nos dizeres
da fotógrafa americana Margaret Bourke-White, só se pode capturar
uma imagem numa única vez, num instante singular, pois cada cli-

1 Mestre pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pelo PPGL/UFSCar. Bolsista FAPESP. São Carlos
- SP. Pesquisador do Labor. jonuefs@gmail.com
2 Neste artigo, apresento uma breve abordagem das questões levantadas na pesquisa de

mestrado intitulada “A constituição do enunciado nas provas do ENEM e do ENADE: uma aná-
lise dos aspectos semiológicos da relação língua-imagem sob a ótica dos estudos do discurso” com
financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Jocenilson Ribeiro

que da câmera captura um novo instante, um novo gesto, um olhar, um


microfragmento do mundo que já não existe.
A relação do fotógrafo com o objeto fotografado e a câmera é, decerto,
tão sincrônica que se evidencia na foto: mais do que a captura fidedigna
do mundo, um trabalho de arte. Não há arte sem a leveza das mãos do
artista, e sem a singularidade do acontecimento que lhe serviu de alvo
para a contemplação. A arte não produz sentidos sem aqueles que a pro-
duzem e a contemplam, sem estes dois grupos de sujeitos. A imagem é
lida e se faz vista no instante histórico do acontecimento que a singulariza,
a apaga ou a monumentaliza nas práticas discursivas.
Se o caráter referencial da imagem (seja fotográfica, cinematográfica,
plástica etc.) pode aproximar-se da tentativa de pontuar um sentido, fixar-
se no imaginário do sujeito que a contempla, por outro lado, seu caráter
histórico pode expandir a possibilidade de aquisição de sentidos diversos,
que não negam sua iconicidade, mas dependem da relação com outras
vistas antes, noutros lugares, ou que estão por ainda ser lidas e contem-
pladas no futuro. Mas isso se deve apenas à imagem artística? Qualquer
imagem está passiva à multiplicidade de sentidos dependendo da ordem
de produção em que se inscreve?
É evidente que não é tão fácil responder a essas questões, pois as imagens
produzem sentidos e funcionam não somente no instante em que foram cria-
das, mas no instante em que são contempladas, lidas, postas em circulação no
curso da história. Na medida em que constroem novos saberes, trazem de
volta um acontecimento até então esquecido e atualizam a memória de um
povo, fazem ressignificar um outro acontecimento na ordem das discursivi-
dades. E quando a imagem aparece relacionada sintática e semanticamente
com outra materialidade semiológica? Como essa relação funciona já que
ambos (verbo e imagem, por exemplo) são interdependentes?
Estamos, portanto, diante de um problema que, longe de apresentar
respostas prontas, nos direciona para reflexões mobilizadas mais recente-
mente pelo campo teórico da análise do discurso (doravante, AD). Este
campo convoca para si um conjunto de conceitos e noções a fim de com-
preender o funcionamento de novas materialidades do discurso numa
perspectiva histórica e semiológica. Por ora, mobilizamos o conceito de
página 36

enunciado tal como foi cunhado por Foucault (2001a, 2008) e discutido por
Courtine (2009), que o trouxe como unidade de análise no interior do ar-
quivo para a esteira dos estudos discursivos.
Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação: reflexões à luz da teoria do discurso

Neste artigo, apresentamos um recorte de análise desenvolvida na pes-


quisa de mestrado em que nos debruçamos sobre textos de dupla natureza
semiológica presente em questões do ENEM e do ENADE (Santos, 2011)3.
O objetivo desse trabalho, em específico, é apresentar uma breve reflexão
sobre o funcionamento de uma imagem presente na prova do ENADE,
edição de 2008 (curso avaliado: Química) e avaliar a pertinência da noção
de enunciado para analisar texto misto.

UMA LEITURA DO TEXTO MISTO: reflexões analíticas

Para melhor situarmos a discussão que ora mobilizamos acima, passemos


à análise de uma questão da parte geral4 da prova do ENADE, edição 2008.
Façamos aqui três trajetos de leitura: um primeiro – descrição empírica - obser-
vando apenas o texto enquanto construção composicional5 sem levar em con-
ta sua procedência, o estilo, o conteúdo temático; um segundo - situação fun-
cional - estudando sua inserção no exame de avaliação ainda sem levar em
conta o texto como enunciado e unidade das práticas de discursos; e um ter-
ceiro trajeto – funcionamento discursivo - levando em conta sua natureza enun-
ciativa sem perder de vista o texto misto enquanto materialização dos discur-
sos e o deslocamento do texto nas diversas instâncias de enunciação, cuja
circulação e manipulação permitem efeitos de sentidos autorizados pelas
condições de produção do discurso. Dito de outro modo: para esse terceiro

3 Cf. SANTOS, J. R. A constituição do enunciado nas provas do ENEM e do ENADE: uma


análise dos aspectos semiológicos da relação língua-imagem sob a ótica dos estudos do
discurso. Disponível em:< http://200.136.241.56/htdocs/tedeSimplificado/tde_busca/
arquivo.php?codArquivo=4085>. Acesso em: 21 jun. 2011.
4 Os cadernos de provas do ENADE são organizados em duas partes: uma que avalia os conheci-

mentos gerais dos graduandos, e todos têm acesso às mesmas questões dessa parte; e outra parte
que apresenta questões cujos conhecimentos fazem parte de uma grade de conteúdos específicos à
sua área de formação. Para nosso estudo, serviram apenas as questões da primeira parte.
5 O conceito de gênero, nesse sentido, comporta tipos relativamente estáveis de enuncia-

dos, o que o define. O enunciado na visão bakhtiniana corresponde às condições específi-


cas e às finalidades das esferas de comunicação oral e escrita. Os gêneros, por sua vez,
caracterizam-se por sua natureza primária e secundária. Estes se definem pela natureza
dos primeiros (mais simples), organizados pelos discursos do cotidiano, pouco elaborados.
página 37

Já o gênero secundário apresenta-se mais complexo e mais evoluído como no caso dos
romances, textos científicos, artísticos, tratados, leis etc. Cf. BAKHTIN, M. Os gêneros do
Discurso. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3 ed. Trad. Maria Ermantina Galvão.
G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 277-326.
Jocenilson Ribeiro

momento, pensamos o funcionamento do texto em análise em sua espessura


histórica, sem a qual seria impossível perceber os discursos que o povoam e,
ao mesmo tempo, projetam outros novos.
Descrição empírica - A imagem (Figura 1) é composta, em sua materiali-
dade sígnica, por dois sistemas
semiológicos distintos (o verbal e
o icônico). Na foto, percebemos
duas classes de sujeitos em situa-
ções sócio-históricas, temporais e
materiais bem diferentes: no pri-
meiro plano, destaca-se um grupo
de pessoas enfileiradas, com suas
faces monótonas - algumas com
vasilhames nas mãos - cujo com-
portamento nos sugere uma situa-
ção de aguardo na retirada de
alimentos. Tal grupo contrasta
com outra imagem ao fundo em
que aparecem quatro personagens
sorridentes e um cão em um veí-
culo em trânsito. A composição
sugere uma família feliz fazendo
uma viagem prolongada. Das ins-
crições verbais, distinguimos com Figura 1: World's Highest Standard of living/
muita clareza dois enunciados: a) Fonte: ENADE 2008_Curso Química
um em caixa alta com a inscrição no topo WORLD'S HIGHEST STAN-
DARD OF LIVING; e b) outro enunciado com o dizer There's no way like
the American Way6.
Situação funcional - Para compor a questão do ENADE, esta imagem foi
destacada do livro Arte comentada, dos historiadores de arte Strickland e
Boswell - conforme aparece no rodapé da figura, a partir da qual se apre-
sentam algumas informações ao estudante, a saber: o gênero em análise
(foto), nome da autora (Margaret Bourke-White) seguido de data de nas-
cimento e morte (1904-1971), contextualização histórica da imagem (crise
página 38

americana de 1929 ou Grande Depressão), destaque da composição artísti-

6A) O mais alto padrão de vida do mundo. B) Não existe um modo de vida melhor do que
o dos americanos. (tradução nossa).
Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação: reflexões à luz da teoria do discurso

ca da foto, créditos da obra de onde se recortou a imagem e a lista de al-


ternativas da questão. A imagem foi produzida para o ENADE, haja vista
o modo como se apresenta na prova, a quem ela se dirige, o objetivo de
sua utilização, a razão de se ter escolhido essa e não outra em seu lugar
etc. Dito de outro modo, é preciso levar em conta que esta imagem se diri-
ge a estudantes de nível superior em início ou fim de graduação (cf. regi-
mento político-pedagógico e matriz do ENADE), circulam na internet e,
possivelmente, em materiais didáticos, mantém-se viva no arquivo, circu-
lando desde a Grande Depressão americana, metamorfoseia-se e, ao mes-
mo tempo, se mantém em diversos médiums-suportes7 (Belting, 2004) sobre
os quais acrescentamos: livros, fotos, outdoor, desenho, charge etc.
Após esses dois primeiros trajetos, passemos àquilo que chamamos de
funcionamento discursivo. Esse sintagma não se trata de um conceito, uma
noção ou aspecto similar; trata-se somente de um modo de ler a imagem
que trazemos para análise.
O que o aluno deveria saber para responder à situação problema na
prova do ENADE? Era preciso que ele soubesse ler em língua inglesa ten-
do em vista que os enunciados verbais apresentavam-se neste idioma ou
isso era apenas um detalhe acessório? As informações postas no interior
da situação-problema são suficientes para a garantia da resposta correta
ou o aluno deveria trazer conhecimentos de análise desta imagem desen-
volvidos durante sua formação?
Algumas destas interrogações podem-nos parecer simples de respon-
der, porém elas põem em evidência o papel da escola enquanto lugar de
formação de leitor das multiplicidades de linguagem na contemporanei-
dade, não apenas de textos verbais. Não basta que o aluno saiba ler em
inglês, em língua portuguesa, domine conhecimentos de história interna-
cional (primeira grande crise americana) ou apresente “conhecimentos de
mundo”. É preciso saber como se dão os processos de letramento da ima-
gem fotográfica, publicitária, fílmica, plástica etc. no ensino médio e, por
extensão, na educação básica, quando não no próprio ensino superior; é
preciso também saber quais dispositivos são mobilizados para que se leia
uma imagem dessa natureza.
página 39

7 Cf. BELTING, Hans. Médium, image, corps – Une introduction au sujet. In: Pour une
athropologie des images. Traduit de l’allemand par Jean Torrent. Paris: Gallimard, 2004, p. 17-76.
Jocenilson Ribeiro

Ao recorrermos à história desta foto, notamos que não se trata de uma


imagem qualquer. Ela foi produzida no auge da Crise de 1929, nos Esta-
dos Unidos, num período em que a fotografia passava a adquirir uma
função primordial na história do jornalismo, isto é, servira de documento
factual das coberturas de grandes acontecimentos que se inscreveram na
história. Nesse sentido, a fotografia poderia ser produzida por via de dois
processos de criação (dependendo do fotógrafo): um estético e outro in-
formativo/referencial, o que não significa dizer que as duas características
não possam se apresentar numa mesma foto. Obviamente, o tratamento
dado à foto depende de quem estava - ou ainda está - por trás da objetiva
(câmera). Para entendermos melhor o valor que adquiriu a foto em dife-
rentes momentos, devemos voltar à história da fotografia de imprensa
com Souza (2004). Segundo esse autor,

a história do fotojornalismo se divide em três evoluções. A primeira, que a-


brange o período da Primeira Guerra Mundial, da Segunda Guerra Mundial e
da Guerra Fria, quando se deu a identidade fotográfica para o mundo; a se-
gunda revolução abarca o período em que as agências de notícia voltaram seu
interesse para a fotografia, época em que as cores adentraram os veículos de
comunicação junto ao movimento de deslocamento das verbas publicitárias
para a televisão; a terceira revolução, por sua vez, deu-se com o imediatismo
da notícia, momento em que o jornalismo caminhou para a velocidade na pro-
dução e divulgação de notícias (Souza, 2004 apud Guimarães, 2010, p. 39).

A fotografia de imprensa – com existência já há mais de 80 anos – veio


adquirindo valores distintos, e seu caráter estético acabou, muitas vezes,
perdendo espaço para a informação impactante do mundo, já que o impacto
confere estímulo ao leitor de um jornal, muitas vezes preocupado com a
venda de notícia (Lima, 1988 apud Guimarães, 2010). Contudo, mesmo
depois da Segunda Guerra, a fotografia já vinha perdendo seu caráter “ob-
jetivo”, passando para uma subjetivação que envolvia fotógrafo e câmera.
Portanto, para esse novo estilo introspectivo, “mais do que apresentar
informação objetiva em forma documental, a câmera expressa sentimentos
e manipula a realidade para criar símbolos e fantasias” (Strickland, 2002,
p. 184). Segundo Strickland (2002), Bourke-White tentava ao máximo in-
página 40

cluir o caráter verídico da situação fotografada na composição da foto,


porque esta era produto estético e informativo ao mesmo tempo.
Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação: reflexões à luz da teoria do discurso

Sem entrarmos nas discussões mais atuais acerca das características


constitutivas deste gênero e os pressupostos que distinguem uma fotogra-
fia como imagem estética de outra como imagem referencial, já que não é
esse nosso objetivo aqui, podemos ler a foto de Bourke-White (cf. Figura 2)
a partir do conceito foucaultiano de enunciado, destacando as proprieda-
des que o definem (Foucault, 2008).
Se tomarmos a imagem de
Burke-White como uma sim-
ples foto tal como foi feita no
ano de 1929, diríamos que
seu “sentido único” e infor-
mativo não se sustenta no
plano do visível apenas, em
que pessoas abatidas pela
crise daquele ano, em sua
maioria negra, buscavam por
alimentos. A riqueza do texto
Figura 2: Fotografia American dreams
está justamente na composi-
ção – artística, que lhe confere um caráter polissêmico, cultural e conotado
(Barthes, 1990a, 1990b). A autora da foto capturou um evento talvez único
por ter notado um contraste entre os sujeitos vitimados pela crise estadu-
nidense e um outdoor enorme (cf. billboard, na Figura 2) ao fundo, anunci-
ando um modo de vida promissor aos americanos e aos imigrantes.
Não se trata de uma foto em que, no primeiro plano, aparecem os sujei-
tos e, ao fundo, uma simples paisagem. Ao contrário, há aí a ironia estam-
pada em dois enunciados em confronto, retratando um modo de vida pa-
radoxalmente publicizado e outro efetivamente vivenciado. O processo
antonímico observado entre as duas formações discursivas foi registrado
pela fotógrafa, que destacou, em um clique, as contradições de um país
líder de um sistema capitalista injusto que, de um lado, evidencia(va) um
discurso de desenvolvimento e promessas inscrito no famoso sintagma
inglês American dreams; de outro, eis um país que não conseguia conter as
consequências daquele sistema econômico excludente.
A diferença se acentua mais ainda ao se notar a desigualdade socioeco-
nômica entre aqueles que estão de pé e os que viajam num veículo amea-
página 41

çando passar por cima de suas cabeças. Tal leitura é feita na ordem das discur-
sividades, porque é a partir deste lugar que podemos compreender os
Jocenilson Ribeiro

efeitos de sentido concebidos na enunciação entre interlocutores. De fato,


não há somente este sentido porque o enunciado dialoga com outros, ele
está sempre eivado por outros enunciados, já que os discursos são sempre
heterogêneos, mesmo que se queira uma unicidade, mesmo que se apele
por uma homogeneidade do dizer e do mostrar; os enunciados beiram
sempre outros que estão na ordem do dia, mas também latente por ter
sido dito antes, noutro tempo e lugar já passados.
Trabalhar com a noção de enunciado põe em cena o caráter histórico e
ideológico de que os discursos são sempre reféns, porque estes respeitam
a uma ordem que determina o que pode (ou não pode) ser di-
to/mostrado/lido (Foucault, 2001). Mesmo assim, há também aquilo que
escapa a essa ordem, pois, sendo condição do discurso, os sentidos não se
fecham na materialidade nem estão soltos alhures; ao contrário, os efeitos
de sentidos do(s) enunciado(s) manifestam-se na discursividade. Então,

se a noção de enunciado utilizada por Foucault é próxima àquela tomada pe-


la AD (atividade de produção de um discurso por um sujeito enunciador em
uma situação de enunciação), o enunciado encontra-se, em compensação, li-
gado à noção de repetição. A existência do enunciado é da ordem de uma ma-
terialidade repetível que “se dirige, segundo uma dimensão, de algum modo
vertical, às condições de existência dos diferentes conjuntos significantes”*...+.
A oposição enunciado/enunciação permite aqui pensar o discurso na unida-
de e na diversidade, na coerência e na dispersão, na repetição e na variação.
Tal oposição reparte esses modos contraditórios de existência do discurso
como objeto nos dois níveis, o do enunciado e o da formulação, que a descri-
ção das FD põe em jogo: a existência vertical, interdiscursiva de um sistema
de formação dos enunciados assegurando ao discurso a permanência estru-
tural de uma repetição, corresponde à existência horizontal, intradiscursiva
da formulação, onde o enunciado pode produzir uma variação conjuntural
(Courtine, 2009, p. 91-92, grifos do original).

Com a foto em análise tomada como enunciado, e na esteira das discus-


sões de Courtine (2009) acima acerca da formulação e da circulação do e-
nunciado, podemos estudá-la observando os usos que se fazem dessa ima-
gem e as condições enunciativas que conferem novos sentidos, mesmo que
se tenha repetido durante muito tempo em diversas instâncias de enuncia-
página 42

ção. Resta-nos saber também: o que a tornou recorrente em todo esse tem-
po? Como os sujeitos a recebem, a lêem, nos lugares em que circulam? A
Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação: reflexões à luz da teoria do discurso

fotografia de Bourke-White mantém as mesmas condições de produção de


sentidos se variados os médiums-suportes em que passam a circular?
A permanência desta foto ao longo da história é mantida, portanto, pe-
la historicidade de seu discurso que não permite seu apagamento dado a
força da memória, que lhe serve de pano de fundo. Como destaca Guima-
rães (2010, p.32), “o texto fotográfico traz em si um discurso que, muitas
vezes, inserido nas mídias, conduz o olhar e o pensar do receptor em dire-
ção a caminhos muitas vezes já pré-determinados pelas empresas de notí-
cias”. De uma forma ou de outra, “as fotos fazem parte de um tesouro,
que é o tesouro da memória. É preciso conservá-lo e distribuí-lo. Preservá-
lo para o futuro, para sempre. Até o fim dos tempos.” (Production/Arte,
1999, apud Guimarães, 2010, p. 32). Respondendo a umas das questões
acima, poderíamos dizer que a linguagem é o terreno da memória, é o solo
fértil no interior do qual os sentidos germinam com o adubo desta memó-
ria que os faz permanecer na história; por fim, a linguagem é este espaço
onde se materializam os discursos que fazem das práticas individuais e
coletivas, modos de subjetivação do homem.
Nesse lugar de reflexão acerca da relação entre tempo, linguagem e his-
tória em que se dão estas práticas de subjetivação, Foucault (2001b) nos
chama a atenção para o fato de que:

Durante muito tempo, considerou-se sem dúvida por várias razões, que a
linguagem tinha um profundo parentesco com o tempo, visto que a lingua-
gem é essencialmente o que permite fazer uma narrativa e, ao mesmo tem-
po, uma promessa. A linguagem é essencialmente o que lê o tempo. Além
disso, a linguagem restitui o tempo a si mesmo, pois ela é escrita e, como
tal, vai se manter no tempo e manter o que diz no tempo. A superfície co-
berta de signos é, no fundo, apenas o ardil espacial da duração. É, portanto,
na linguagem que o tempo se manifesta a si mesmo e, além disso, vai se
tornar consciente de si mesmo como história. Pode-se dizer que, de Herder
a Heidegger, a linguagem como logos sempre teve a nobre função de guar-
dar, de vigiar o tempo, de se manter no tempo e de manter o tempo sob sua
vigilância imóvel. (Foucault, 2001b, p. 167)

Nessa perspectiva, uma fotografia ou qualquer outra forma de texto


que se sustenta no tempo não traz a história de outros acontecimentos
página 43

deixados no passado, esquecidos, enterrados; ao contrário, a irrupção de


um novo acontecimento faz com que haja efeitos, efeitos de sentidos para
Jocenilson Ribeiro

diferentes leitores e interlocutores. Não é porque os enunciados postos em


circulação hoje dependem unicamente deste “assopro enunciativo” vindo
de outro lugar, mas porque sua existência significativa só é possível
quando há encontro entre este passado latente e o agora; é a inauguração
do acontecimento, que depende da memória discursiva da imagem, do
leitor da materialidade verbal, do leitor da linguagem de sintaxe mista,
como é o caso em questão.

A IMAGEM OPERADORA DE MEMÓRIA

No ano de 2008, quando os Es-


tados Unidos começaram a mani-
festar os primeiros sintomas da
crise econômica, alguns enuncia-
dos passaram a circular em diver-
sos suportes midiáticos. Entre eles,
a internet sem dúvida foi um dos
meios em que se viu circular uma
regularidade de textos em diferen-
tes materialidades. Quase três
anos depois, notamos um recor-
rente número de enunciados com Figura 3: Charge American dreams (internet)
os sintagmas “grande crise”, “crise econômica”, “crise americana”, “crise
financeira internacional”, “crise no setor imobiliário” etc. do ponto de vista
verbal. Estamos falando de sintagmas vinculados a cadeias sintáticas de e-
nunciados produzidos dentro de (ou em relação a) uma mesma formação
discursiva tal como pensava Foucault (2008); não estamos tratando de outras
FDs que passaram a ter enunciados com a palavra crise, ou termos similares,
provocados pelo enunciado origem “crise americana”, como por exemplo,
“crise aérea”, “crise política *brasileira+”, “crise na família” etc.
Por outro lado, em volume tão expressivo quanto aquele dos enuncia-
dos verbais de que tratamos há pouco, circulou também um expressivo
número de desenhos, pinturas, charges, cartuns, mobilizados pelo mesmo
acontecimento. Nessa conjuntura em que milhares de novos enunciados
página 44

surgem compondo uma rede interdiscursiva – já que cada um vem conta-


giado por outros enunciados já postos à circulação –, emerge uma charge
Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação: reflexões à luz da teoria do discurso

publicada em um blog8 para compor o inapreensivo arquivo de tudo aqui-


lo que pôde ser dito e ser mostrado sobre a crise econômica internacional. O
mais curioso é que os mesmos enunciados verbais e icônicos com alguma
relação à fotografia de Bourke-White voltam a circular, compondo o eixo
sintagmático do texto misto presente na charge (Cf. Figura 3).
A atualização da fotografia de 1929 traz outros signos, como uma lan-
cha em vez de um carro, três pessoas brancas idosas com face derrisória
no veículo, a paisagem urbana ao fundo em vez de campesina, a fala do
condutor What’s to go wrong?9, a bandeira americana na proa da lancha e
os sujeitos em fila quase totalmente submersos em um rio. As próprias
cores vermelha, azul e branca reforçam os símbolos estadunidenses já pre-
sentes na bandeira. A contradição presente no discurso da charge se evi-
dencia entre os sujeitos da fila e os que viajam na lancha como se estes
estivessem a passar por cima daqueles (tal como na foto de Bourke-
White); mas não percebendo a condição em que se encontram, questionam
“o que há de errado com eles?”
Quase 80 anos depois, os enunciados WORLD'S HIGHEST STANDARD
OF LIVING e There's no way like the American Way reaparecem mantendo
sua mesma estruturação sintática. O que mudou? A formulação, decerto,
em nada mudou, mas seus efeitos de sentido já não são mais os mesmos
por algumas razões: a) as condições sócio-históricas que possibilitaram
seu reaparecimento não são mais as mesmas, ainda que se tratasse de uma
crise de ordem aparentemente semelhante à do ano de 1929; b) os sujeitos
do discurso também já não são os mesmos; c) a relação que estes enuncia-
dos mantêm com outros sistemas semiológicos no conjunto da materiali-
dade também é distinta daquela vista na fotografia, até porque aqui já não
se trata da mesma materialidade por ser uma charge; e, finalmente, d)
pelo fato de a enunciação ser singular a cada momento em que um enun-
ciado é posto em funcionamento. Podemos ainda exemplificar com as
próprias palavras de Foucault (2001b), ainda que ele esteja tratando de
uma frase como enunciado produzido diferentemente no interior de um
outro discurso – o literário – este é também constituídos por diversos e-
nunciados igualmente heterogêneos, por diversos saberes de uma cultura:
página 45

8 Blog: Disponível em: <http://www.democraticunderground.com/discuss/duboard.


php?az=view_all&address=105x3967067>. Acesso em: 20 set. 2010.
9 O que há de errado?
Jocenilson Ribeiro

As duas frases “Durante muito tempo deitei cedo” e “Durante muito tempo
deitei cedo”, a primeira sendo uma frase que eu digo e a segunda sendo a
que leio em Proust, embora verbalmente sejam exatamente idênticas, são, na
realidade, profundamente diferentes. A partir do momento em que ela é es-
crita por Proust no limiar de Em busca do tempo perdido, pode ser que, em úl-
tima análise, nenhuma dessas palavras tenha exatamente o sentido que lhes
damos quando as pronunciamos cotidianamente, pode ser que as palavras
tenham suspenso o código de onde foram retiradas (Foucault, 2001b, p. 159).

Do mesmo modo que o filósofo concebe o enunciado para a análise do


discurso na literatura e o difere da enunciação, aqui podemos olhar para os
enunciados verbais nas duas situações históricas de uso e compreender as
razões porque manifestam outras leituras. Conforme Courtine (2009), a for-
mulação difere da enunciação justamente no que diz respeito à historicidade.
O enunciado tem uma espessura histórica, a formulação não, já que é próprio
do sistema semiológico, e só concebemos seus efeitos se o analisamos a partir
do interdiscurso, da relação estabelecida com outras formulações.
Se antes a promessa de um mundo melhor – um modo de vida único e
promissor sem o qual nenhum outro sujeito estaria feliz e seguro senão vi-
vendo nos EUA – faz parte do discurso publicizado no outdoor contraposto
com as condições subumanas daqueles que esperavam por alimentos, na
charge, a contradição se evidencia com mais destaque, uma vez que outros
sujeitos, na contemporaneidade, vitimados pelos efeitos da crise e, por ex-
tensão, do capitalismo já não somente esperam por melhores condições de
vida, mas clamam por salvação pelo fato de estarem afundando.
Os signos visuais do enunciado (lancha, água, homens afundando) su-
gerem, dentre tantas, duas possíveis leituras em conflito: de um lado, a
tentativa de salvamento de pessoas a ponto de perderem a vida; de outro,
o veículo que ameaça passar por cima delas, afundando-as ainda mais. Os
signos linguísticos em relação aos signos icônicos definem a ironia da
charge, pondo em questão a ideia de mais alto padrão de vida do mundo,
o que reduz o saber posto em anúncio a uma espécie de piada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS... para não concluir


página 46

Ainda um outro ponto que merece uma reflexão diz respeito à materia-
lidade textual das imagens que acabamos de analisar, já que suas caracte-
rísticas fogem aos padrões mais recorrentes de uma fotografia. Embora
Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação: reflexões à luz da teoria do discurso

esteja nas cores preto e branco, dadas as condições materiais, físico-


química da época, a composição em que as pessoas aparecem na fila dian-
te de um outdoor (Figuras 1 e 2) nos faz pensar que se trata de uma monta-
gem em desenho ou foto-montagem. Logo, a depender do lugar de circu-
lação e do acontecimento que a fez emergir, seu conceito de texto vai tam-
bém variar, porque este atende às condições de circulação e aos sujeitos a
partir dos quais produz sentido. Obviamente, é de se estranhar a constitu-
ição fotográfica da imagem na prova do ENADE se o candidato nada ou
pouco conhece da história dessa foto e muito menos do que os enunciados
em língua inglesa podem significar por si só.
O que queremos defender aqui é o fato de que a produção de sentido múl-
tiplo independe menos da natureza referencial, factual, imanente da lingua-
gem, e mais dos processos de constituição da leitura do texto – seja ele consti-
tuído por uma ou mais de uma natureza compósita. Isso põe em jogo vários
elementos exteriores à constituição material do texto em análise. Logo, é pre-
ciso levar em conta os sujeitos envolvidos com a linguagem, os interlocutores
a partir dos quais e para os quais a materialidade significa diferentemente; a
historicidade por meio da qual tal imagem foi posta à produção de significa-
dos, face às condições de produção que permitem fazer sentido(s), bem como o
diálogo que uma determinada imagem mantém com outras, postas em circu-
lação antes, noutros lugares como dissemos acima.
Carece-nos então pensar a materialidade por meio de alguns percursos
metodológicos: compreender a história de emergência da imagem, estudar
o funcionamento dos sistemas semiológicos que constituem o todo da ima-
gem e o que a relação estabelecida entre estes sistemas produz do ponto de
vista semântico-discursivo. Por fim, cabe estudar as possibilidades de senti-
dos na cadeia dos acontecimentos que a trazem de volta num gesto inter-
pretativo. Nesse viés, estaremos atendendo ao que Pêcheux (2008) nos apre-
senta para compreender os discursos, isto é, interpretar o discurso é um
processo que se faz descrevendo a estrutura, as regras de funcionamento do
sistema semiológico, mas também interpretando o acontecimento que é da
ordem das discursividades, das práticas de constituição de saberes, das
regras que devemos respeitar no jogo da história e em relação aos sistemas
internos da linguagem, os signos linguísticos e não linguísticos.
página 47

Ele [o sistema de signos] faz parte de uma rede de outros signos que circu-
lam em dada sociedade, signos que não são apenas linguísticos, mas que
Jocenilson Ribeiro

podem ser econômicos, monetários, religiosos, sociais etc. A cada momento


da história de uma cultura corresponde um determinado estado dos signos,
um estado geral dos signos. Seria preciso estabelecer quais elementos atu-
am como suporte de valores significantes e a que regras obedecem esses e-
lementos significantes em sua circulação (Foucault, 2001b, p. 163).

Em última análise, podemos depreender das discussões engendradas a-


cima a importância daquilo que Foucault (2001b) estabelece para a constitu-
ição dos discursos: os enunciados determinados pelos signos que circulam
na sociedade e que adquirem valores significantes por conta de sua circula-
ção, por conta das condições de sua emergência. Estes signos obedecem à
regularidades, estão em repleta relação com outros. Isso só nos leva a pen-
sar que estes valores é que possibilitam que os enunciados não encerrem
um sentido em si mesmo, mas estejam sempre em relação de aliança com
sentidos plurais, dado o equívoco, a não completude da linguagem.
É para essa discussão que devemos estar abertos (nós professores), mu-
nindo-nos de saberes teóricos e analíticos para a leitura do texto sincréticos,
a fim de levar à escola um projeto de interpretação do texto com base nos
aspectos semiológicos e históricos do texto, porque é dessa forma que se
materializam os discursos, e nestes, as ideologias, tal como já pensava Pê-
cheux (1995, 2007, 2008). Não basta apenas olhar para a imagem como uma
mera ilustração; assim como não basta analisar os aspectos linguísticos em
busca do sentido único e afixado na sintaxe... Comecemos, pois, por pensar
também nas relações que ambas as materialidades produzem nessa inter-
relação com vista aos efeitos de sentidos que se põem em causa.

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STRICKLAND, Carol. Fotografia: as novidades. In: STRICKLAND, Carol. Arte Comenta-


da: da pré-história ao pós-moderno. 8. ed. Trad. Ângela Lobo de Andrade. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1999, p. 184-185.
página 49
página 50 Jocenilson Ribeiro
quatro

Lucas do NASCIMENTO1
ANÁLISE do discurso &
VITIMOLOGIA:1
memória(s) de tráfico de drogas2

Há sempre no conhecimento alguma coisa que é da ordem do


duelo e que faz com que ele seja sempre singular
(Michel Foucault).

INTRODUÇÃO

C
onsiderar o Direito como discurso, a partir da afirmação de
Orlandi (2002, p. 210-11) de que ‚não há ciência que não seja
discurso‛, responsabiliza o Direito em uma ciência localiza-
da no campo das sociais, ‚pois seu objeto alcança as condu-
tas do homem‛, que necessita do discurso (Coelho, 2001, p. 51). O dis-
curso jurídico vem, de longa data, sendo corpus de trabalho de pesquisa

1 Mestre em Linguística pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pela USP. São Paulo - SP. Pesqui-
sador do GEPPEP. lucasnascimento@usp.br
2 Resultado da pesquisa orientada pela Profa. Dra. Vanice Sargentini e financiada pela

Capes: NASCIMENTO, L. Análise do Discurso e Vitimologia: Memória(s) de Tráfico de


Drogas. 2011. 132 p. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Programa de Pós-Graduação
em Linguística, Universidade Federal de São Carlos, UFSCar, São Carlos, SP, 2011.
Lucas do Nascimento

de muitos estudiosos, entre outros, psicólogos, advogados, magistrados, jor-


nalistas. Acredito que, pelo viés da Análise do Discurso de linha francesa, o
artigo3 que ora se realiza, tanto sobre a posição-sujeito do defensor público
em processo de (des)construção discursiva de defesa na tentativa de absolvi-
ção penal, quanto da posição-sujeito do(s) réu(s) criminoso(s), possa contribu-
ir para a análise das práticas sociais e judiciais.
Nesse contexto, examinar a posição-sujeito no discurso de defesa do ad-
vogado, na tentativa de absolvição dos réus envolvidos no crime de tráfico
de drogas e na orientação dada a eles, como instrução criminal, implica ana-
lisar a construção de um processo discursivo4 que visa à liberdade, fincado,
muitas vezes, em dada filosofia, ideologia e práticas jurídicas. Assim, o ob-
jetivo geral da pesquisa é analisar os enunciados de um processo jurídico,
tendo como hipótese que eles concorrem para uma prática de suavização do
tráfico de drogas (visto como criminoso pela legislação), que se dá pelo dis-
curso de vitimização do usuário, cada vez mais fortalecido pelos enuncia-
dos que circulam na sociedade (livros, filmes, reportagens, etc.). Dentre os
elementos constitutivos do discurso, serão analisadas especialmente as for-
mas de representação do sujeito, a formação discursiva, o interdiscurso. A análise
será desenvolvida a partir da reflexão sobre a materialidade da linguagem e
da história inscritas no corpus de análise, cuja composição é dada pela peça
‚acórdão‛ de um processo penal, concedida pelo Tribunal de Justiça de
Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul.
Tendo como pressupostos teóricos as formulações da Análise do Dis-
curso de linha francesa, principalmente as teorizações de Michel Pêcheux
e os postulados de Michel Foucault, e da teoria do Direito, sob a perspec-
tiva conflituosa do Direito Positivista e da Jurisprudência, esta pesquisa
tem como objetivos específicos:

a) analisar como e quais efeitos de sentido entram em jogo no momento


da produção e da circulação do discurso do defensor público, assim como
dos denunciados, após a seção Memoriais e Apelação do Acórdão, no processo
penal crime de tráfico de drogas;
b) verificar como se dão o apagamento e/ou o deslizamento do aconte-
cimento do fato, das histórias e do vivido relatados pelos envolvidos no
página 52

3 Ver NASCIMENTO, L. Análise do Discurso: Acontecimento & Memória de Tráfico. Curi-


tiba: Appris, 2011.
4 Processo discursivo no sentido de produção de enunciados no decorrer do processo penal.
Análise do discurso & vitimologia: memória(s) de tráfico de drogas

crime, com vistas a produzir uma inversão na construção de suas identida-


des, vitimizando-os, a partir da Apelação, Preliminar e Pretensão à absolvição.

Tais objetivos específicos são traçados a partir de questões, como as


seguintes, que nos inquietaram na leitura do processo em questão: a)
como funciona o discurso do defensor e qual a representatividade da sua
argumentação no discurso a favor dos réus envolvidos no processo, con-
siderando que no resultado final do julgamento dois réus foram condena-
dos e um absolvido, sendo os três acusados clientes do mesmo defensor
público?; b) pode-se considerar que o sujeito advogado busca uma ordem
social ao defender como vítimas sujeitos denunciados de prática de tráfico
de drogas?; e c) com isso, há possibilidades do Poder Judiciário e da De-
fensoria Pública lutarem ideologicamente por objetos ‚verdade‛ diferen-
tes? Essas questões norteiam o dispositivo analítico deste trabalho.

ANÁLISE DO DISCURSO E A PERSPECTIVA COM A NOVA HISTÓRIA

Por meio de alguns pontos teóricos centrados particularmente nas dis-


cussões dos franceses Pêcheux e Foucault, procuraremos encaminhar-nos
em direção aos entornos da História e do acontecimento observados em
enunciados do discurso jurídico. Para tratar do acontecimento e da memó-
ria no arquivo é preciso tratar, primeiramente, da espessura histórica do
objeto discurso. Essa espessura inerente à análise da discursividade permi-
te pensar pontos de contato do trabalho de historiadores, linguistas e ana-
listas. Sargentini (2010), em seu artigo, apresenta o cerne de tal preocupa-
ção, demarcadamente a discussão sobre a relação discurso/história.
A partir de Régine Robin, da célebre obra Histoire et Linguistique (Paris,
1974), traduzida já em edição brasileira, Robin (cf. Sargentini, 2010) avalia
a existência de recalcamentos tanto do linguista quanto do historiador, em
que este ‚recalca o significante, a materialidade da linguagem‛, e aquele,
‚o sujeito e a história‛. Aludir a esse ponto, consoante a autora, já é para
analistas e historiadores um ponto de encontro para frutíferos avanços em
trabalhos: situar história ‚no domínio do exterior linguístico, que, por sua
vez, passa a estabelecer relação com o linguístico para o estudo do discur-
página 53

so‛ (Sargentini, 2010, p. 96).


M. Pêcheux (1983) apresenta essa articulação história e discurso tam-
bém em comunicação no Colóquio Marxism and the interpretation of culture:
Lucas do Nascimento

limits, frontiers, boundaries, em julho de 1983. Assim, ‚os novos direciona-


mentos indicados por Courtine (1981) e as reflexões de Pêcheux (1983b)
inscrevem a história no interior dos discursos e não mais na exterioridade
linguística‛ (Sargentini, 2010, p. 98).
Com isso, a história comporta-se como ‚regularidade específica‛ de to-
do e qualquer discurso, legitimando-o, e, mais, possibilita a posição identi-
tária dos sujeitos (Foucault, [1969]2008, p. 145). O ensinamento de Fou-
cault [1969], enfim, exige, ao fazer científico, tratar – como método – o a-
parato histórico em toda análise, para, assim, ela ter identificação singular,
original, autêntica, veraz na dispersão da materialidade discursiva.
Em outro artigo, Sargentini (2004, p. 84) aponta que Foucault ‚questio-
na na história o estudo dos longos períodos, os encadeamentos e seqüên-
cias necessárias entre os acontecimentos‛ e ‚opõe-se [...] a toda continui-
dade irrefletida‛. Nesse estudo, destacam-se as reflexões de Foucault acer-
ca da descontinuidade e a Escola dos Annales, com a sua importância.
A Nova História, pelos seus postulados sobre o rompimento da crono-
logia e da sucessão temporal, por intermédio de termos como ‘momento’,
‘singularidade’, ‘acontecimento’ fortalecem sua renúncia com a História
Tradicional. Deu-se, também, com base na evolução da física, da matemá-
tica e da química quânticas, o rompimento da exatidão absoluta dos resul-
tados quantitativos. Por exemplo, a teoria quântica demonstrou, nas ciên-
cias exatas, o fato da probabilidade e de aproximações de resultados so-
brepor-se à tendência de determinar com exatidão os resultados quantita-
tivos. Além disso, ao lado de outros conceitos, como de velocidade, de
espaço, de aceleração, de distância, etc. ‚A época atual seria talvez de pre-
ferência a época do espaço. Estamos na época do simultâneo, época da
justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso‛
(Foucault, 2001, p. 414). Nesse contexto, a exatidão é superada pelas des-
continuidades e pelas somas inexatas de aspectos, assim permitindo mu-
danças não só entre a totalidade e o relativo, o equilíbrio e a oscilação, a
lembrança e o esquecimento, mas também entre a força do tempo e a força
do espaço, ainda, entre a forma do homem e a forma do animal.
Para isso, os percursos teóricos e metodológicos para análise do pro-
cesso serão estudados, a partir de Foucault (apud Gregolin, 2004), obede-
página 54

cendo à seguinte abordagem:


Análise do discurso & vitimologia: memória(s) de tráfico de drogas

a) o crime tráfico de drogas se produz em um emaranhado de descon-


tinuidades históricas e em determinada duração;
b) a memória (ir)rompe-se na História; e
c) as (micro)relações de poder cristalizam sujeitos em determinados su-
jeitos (religiosos, midiáticos, jurídicos, civis, militares, etc.).
Os percursos estudados se darão em alianças entre corpo e olhar, escuta e
voz no relato5 do acontecimento de traficância em uma cidade ‚dos pam-
pas‛, atravessada pela jovialidade, em noite estrelada de novembro de 2003.

PROCESSO PENAL: criminologia ou vitimologia?

Ao tratar de processo penal crime tráfico de drogas, aponta-se uma


questão instigante a ser feita, pela razão da especificidade desse campo do
direito penal. Pelo funcionamento discursivo-jurídico da Defensoria Pú-
blica Brasileira hoje, os sujeitos envolvidos no crime das drogas, seja em
tráfico ou em situação de uso, são eles vítimas ou criminosos? Usuários ou
traficantes? Dependentes, consumidores, viciados ou comerciantes?
Entre tratar a vitimologia ou a criminologia, a mudança no paradigma
interpretativo é para dois aspectos centrais, o da norma e o da razão. Dois
pontos principais para argumentos, defesas, acusações e sentenças. Ainda
que se admita, por muitos profissionais do direito, não haver diferenças
entre as espécies normativas, alguns, porém, afirmam a necessidade de
envidar esforços para a aplicabilidade e a efetividade das normas, sem
conflitá-las, razão relevante à delimitação dos critérios estabelecidos já em
Códigos, Constituição, etc., e a não contradição em práticas processuais.
Com isso, o tratamento interpretativo no processo jurídico envolve a
avaliação. Avaliar pessoas, crianças, famílias, comércios, energia elétrica,
utilidades públicas, saneamento básico, lugares como o morro, a casa, o
‚barraco‛, as ruas e avenidas, as rodovias, a escola, etc. que estão presentes
à prática de tráfico de drogas. Para leigos ou para especialistas, a situação é
agravar a punição. É tirar cidadãos criminosos do meio social. Todavia, a
legislação penal brasileira apresenta-se em seu quadro problemático. O que
ainda não é percebido é a dimensão social exercida quando se concebe o
tráfico como fonte de trabalho e de sobrevivência econômica. Tanto essa
página 55

5 Lembrar os relatos como orais e monumentalizados no documento processo-crime ou


processo penal. Disso, sublime-se que cada sujeito fala de um lugar e posiciona-se de de-
terminada forma-sujeito, rememorando termo de Pêcheux ([1975]1995).
Lucas do Nascimento

realidade é existente que duas constatações daí resultam: (i.) a defesa do


denunciado de tráfico de drogas se pauta no direito de liberdade, de sobre-
vivência, de responsabilidades civis; e (ii.) a inexistência de legislação seve-
ra frente a crime de tráfico de maconha. Por não se tratar de produto quími-
co, causando menos danos ao indivíduo, segundo estudos das ciências da
saúde, a acusação sofre dominação de argumentos de tal ordem, pela defe-
sa, levando ao enfraquecimento processual e punitivo, o que acarreta aber-
tura para o aumento substancial da prática de tráfico de maconha.

O FATO DELITUOSO E A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA

A seguir, faremos análises de enunciados da memória construída do cri-


me, descrevendo-os por sequências discursivas (sdr) materializadas pela pro-
dução escrita do escrivão. As sdr constroem a memória do acontecimento6
tráfico de drogas em que três denunciados serão incitados aos depoimentos,
momentos para a confissão, ou não, da prática criminosa. Levaremos em con-
sideração, desde já, o flagrante dado nessa prática por policiais em serviço.
O enunciado (1) insere-se no interior da sdr construída intradiscursiva-
mente em contexto de formulação do Fato Delituoso, após relato dos réus
presos em flagrantes e dos policiais autores da prisão, pelo escrivão. A for-
mulação tem uma relação particular uma vez dada em situação de diálogo,
de depoimento, momento em que sujeitos são interrogados pelo acontecido
(podem ser os policiais, ou até mesmo os denunciados, que, geralmente, só
serão depoentes posterior consulta/contato com o advogado7). Os policiais e
os sujeitos denunciados respondem às questões formuladas pelo Delegado
de Polícia e o escrivão registra em forma escrita o oralizado. Como demons-
tra (1), enunciado extraído do corpus ‘Fato Delituoso’:

6 Aqui, acontecimento será compreendido como um acontecido inscrito na história do


cotidiano, um fato, uma prática criminosa, um ato como tráfico; diferentemente da noção
página 56

de acontecimento discursivo – de Pêcheux – que trabalhamos nesta pesquisa.


7 O contato/consulta é de direito de todo sujeito em situação de denunciado, preso, réu. É

de opção do sujeito a escolha entre representante público (defensor público) ou particular


(advogado/procurador).
Análise do discurso & vitimologia: memória(s) de tráfico de drogas

[FATO DELITUOSO]

(1) Em data não precisada, mas anterior a 18 de novembro de 2003, em cida-


de tal/RS, os denunciados ‚X‛, ‚Y‛ e ‚Z‛ associaram-se para o fim de prati-
carem, reiteradamente, o crime previsto no artigo 12 da Lei nº 6.368/76, con-
gregando esforços e vontades na obtenção e distribuição onerosa de ‘Canna-
bis sativa‛ entre usuários e outros fornecedores desta cidade, sendo que, no
transporte das substâncias entorpecentes comercializadas, serviam-se, usu-
almente, de um veículo marca tal, com placas tal, transitando com ele na ca-
lada da noite, para não gerarem suspeitas. (grifos meus em negrito).

Nesse recorte [R1], temos a memória discursiva do sujeito escrivão so-


bre o tráfico de drogas na cidade, cuja interferência se materializa na cons-
trução do texto – seção Fato Delituoso – do processo penal. Assim, desde o
início da produção escrita, há um trajeto dado para a fabricação dos senti-
dos. O texto construído aponta direcionamentos discursivos. Nas formu-
lações do enunciado (1), que se inserem nas sequências discursivas consti-
tuídas pelo texto/seção (rito/auto processual), temos uma situação de e-
nunciação determinada: combinação para a realização do tráfico.
Em (1), as formulações abaixo localizam a formação discursiva (FD) do-
minante no processo discursivo na FD ‚tráfico‛:

(1.1) associaram-se para o fim de praticarem, reiteradamente...


(1.2) congregando esforços e vontades na obtenção e distribuição onerosa
de ‘Cannabis sativa‛ entre usuários e outros fornecedores
(1.3) transitando com ele na calada da noite

Dessa situação, visualiza-se o efeito de memória do escrivão sobre dois


eixos do discurso: o eixo horizontal e o eixo vertical, segundo Courtine
([1981]2009). No primeiro, a relação do intradiscurso estabelece o trabalho
da estrutura, do sistema, dos elementos léxico-sintáticos disponíveis para-
digmaticamente (elementos de um estado de língua [classes gramaticais,
sinonímia, etc.]), materializados em uma cadeia sintagmática. No segun-
do, a relação interdiscursiva está no eixo da história, do acontecimento, no
lugar de possíveis atravessamentos (inter-)discursivos específicos, de
página 57

mesmas ou distintas formações discursivas, na própria FD dominante.


Dos dois eixos deriva o discurso como relação da língua com a história.
Lucas do Nascimento

Há, assim, para Pêcheux ([1983]2002), a ordem da língua (a estrutura) e a


ordem do discurso (o acontecimento).
O efeito de memória é materializado na atualização do acontecimento.
A cada efeito, resultado de um processo de formulações, evidenciam-se
sentidos de memória que significam, representam-se como efeito no intra-
discurso. O efeito resulta, ainda, de espaços discursivos que autorizam a
circulação do dizer, que têm em comum alguns pontos relativamente es-
táveis (aqueles evidenciados por certa área, domínio de saber8). Circulam
os sentidos implicados desse ‚efeito‛.
Em (2) (fragmento exposto a seguir), o efeito de memória está inscrito
novamente na transição de verbo (cf. 1.1) para substantivo feminino no
termo ‚a associação‛, como os denunciados terem se organizado para o-
correr em tráfico, sendo-os um grupo de traficantes. Soa, assim, de tal forma
o efeito que os sentidos de tráfico cristalizam-se na formulação (2.3) da sdr
‚transportavam, para vender a terceiros [...]‛.
Se considerarmos, uma vez mais, os enunciados (1.1) e (2.1 – em desta-
que no recorte (2)), como a produção de um efeito de memória que atra-
vessa a enunciação do escrivão, percebemos a formulação (1.1) associa-
ram-se para o fim de praticarem, reiteradamente... reformulada em Inspi-
rados por tal associação (2.1) como forma de repetição de enunciação
determinada pelo sentido de tráfico:

(2) Inspirados por tal associação (2.1), no dia 18 de novembro de 2003, por
volta da 01h10min, na BR-386, Km 366, em cidade tal/RS, os denunciados
‚X‛, ‚Y‛ e Z‛ (2.2), sem autorização e em desacordo com determinação le-
gal ou regulamentar, transportavam, para vender a terceiros (2.3), no inte-
rior do veículo marca tal, placas ‚tal‛ (RJ), de cor tal, 32 (trinta e dois) tijo-
los prensados e embalados em filme plástico, contendo, no total, 116,900Kg
(cento e dezesseis quilos e novecentos gramas) de ‚Cannabis sativa‛, vul-
garmente conhecida como ‚maconha‛, substância entorpecente, que causa
dependência física e psíquica, por conter tetraidrocanabinol (2.4), consoan-
te laudo de constatação preliminar da fl. (grifos meus em negrito).

Na formulação (2.4) das sdr do enunciado (2), o contexto intradiscursivo


demonstra o encaixamento de uma oração relativa que governa um pré-
página 58

construído na oração principal. A formulação da conjunção integrante [que],

8 Noção de Michel Foucault em Arqueologia do Saber.


Análise do discurso & vitimologia: memória(s) de tráfico de drogas

acompanhada de verbo e mais complementos [causa [+] dependência física


e psíquica, por conter tetraidrocanabinol], registra a estrutura que indica o
campo de saber circulado socialmente por informações de profissionais da
saúde em que atesta determinada dependência ao sujeito ser humano. Os
complementos nominais [física] e [psíquica] são pré-construídos da área da
medicina, conclusão de interdiscurso da farmacologia [da substância tetrai-
drocanabinol] como discurso transverso, que regem na ordem discursiva
do enunciado (2.4) uma FD em defesa de um discurso contra a legalização
das drogas no Brasil. Com essa defesa, a FD fortalece discursos da Promoto-
ria Pública e do Poder Judiciário em situação de avaliar os denunciados
como criminosos, portanto, réus. Além do mais, a rede discursiva está em
emaranhado de formulações como a de que [32 (trinta e dois) tijolos pren-
sados e embalados em filme plástico, contendo, no total, 116, 900 Kg (cento
e dezesseis quilos e novecentos gramas) de ‚Cannabis sativa‛, vulgarmente
conhecida como ‚maconha‛...+. Assim, os kilogramas são considerados pe-
sados, demonstrando a quantidade como tráfico e não como para mero uso
dos denunciados. Dessa forma, automaticamente o caráter de denunciados
passa a exercer outro, o de réus.

O INTERROGATÓRIO E O ACONTECIMENTO DISCURSIVO

Leremos, a seguir:

[RECEBIMENTO DA DENÚNCIA, INTERROGATÓRIO E INSTRU-


ÇÃO CRIMINAL]

Os réus foram regularmente citados (fl. 78 vº) para o oferecimento de res-


posta à acusação. Por meio de seu defensor, o réu ‚Z‛ alegou que não pra-
ticou os delitos que lhe são imputados (fls. 81/90) (sdr 1); os réus ‚Y‛ e
‚X‛, também por seu defensor, alegaram ser inocentes (fls. 157/158) (sdr
2). O Ministério Público manifestou-se pelo indeferimento dos pedidos de-
fensivos, postulando o recebimento da denúncia (fl. 99 vº e 159 vº).

A denúncia foi recebida em 18/12/2003 (fl. 162).


página 59

O réu ‚Y‛ foi interrogado (fls. 228/236), momento em que alegou ser verdadei-
ra em parte a imputação que lhe é feita (sdr 3). Na mesma oportunidade, fo-
Lucas do Nascimento

ram interrogados os réus ‚X‛ e ‚Z‛ (fls. 236/248) que afirmaram não ser ver-
dadeira a imputação que lhes é feita (sdr 4). (Os destaques são nossos).

A partir das sequências discursivas no Interrogatório, verificamos, pri-


meiramente, pela sdr 1, que o réu ‚Z‛ alegou que não praticou os delitos que
lhe são imputados, negando o acontecido e até mesmo tracejando o sentido
de anulação; os réus ‚Y‛ e ‚X‛ também alegaram ser inocentes – sdr 2, tendo
a mesma posição frente ao acontecido. De fato, essas sdr iniciais são decla-
radas no momento do Recebimento da Denúncia, isto é, antes da instrução
criminal dada aos denunciados pelo defensor público. No caso, a decisão
por tal defensor foi opção dos três sujeitos denunciados.
Dessa maneira podemos notar que, primeiramente, o discurso, pelas
sequências discursivas dos réus ‚X‛, ‚Y‛ e ‚Z‛, orienta para a mesma es-
trutura léxico-sintática: todos os réus serem não praticantes do delito ou inocen-
tes. Essa discursivização como acontecimento discursivo não-delitivo tor-
na opaco o acontecimento histórico criminal [o acontecido], tentando os
réus trabalhar novos sentidos a partir dos sentidos produzidos no Fato
Delituoso do processo penal, ou seja, tentando materializar o sentido de
‚não delito‛. Assim é tecido um novo e outro sítio de significância, pelos
acontecimentos discursivos (tendo em vista suas construções e o regime
de seus funcionamentos), fazendo soar novos sentidos, como o de não
delito, os quais fazem ressoar os sentidos já-postos: sujeitos não delitivos
e, por isso, inocentes.
No entanto, em segundo momento, posterior a Instrução Criminal, con-
forme sdr 3, o réu ‚Y‛ foi interrogado, momento em que alegou ser verda-
deira em parte a imputação que estava sendo feita, assim considerando em par-
te o ‘fato delituoso’. Na mesma oportunidade, foram interrogados os réus
‚X‛ e ‚Z‛, conforme sdr 4, que afirmaram, mais uma vez, não ser verdadeira
a imputação que lhes estava sendo feita. Diante do confronto de alegações,
portanto, o réu ‚Y‛ optou pela não-repetibilidade da estrutura léxico-
sintática – alegou que não praticou os delitos que lhe são imputados, enunciando
ser verdadeiro em parte o delito.
Com base nisso, verificamos que o réu ‚Y‛, quando interrogado, pri-
meiramente, alegou ser inocente. Em segundo momento, o mesmo alegou
ser ‚verdadeira em parte a imputação que lhe era feita‛, enquanto os de-
página 60

mais réus mantiveram-se com seus discursos: ‚ser não praticante do delito
ou inocente‛. Esse segundo momento do réu ‚Y‛ já vem mostrar que há,
Análise do discurso & vitimologia: memória(s) de tráfico de drogas

no jogo enunciativo dos réus, efeitos de sentido distintos, assim efeitos de


verdade também distintos, consequência das condições de produção dife-
rentes. Condições, estas, em que afetam a repetibilidade ou a não-
repetibilidade do dizer. O deslize na posição sujeito do referido réu põe
em encontro, de forma parcial, uma atualização da memória do crime o-
corrido, isso pela sdr 3 ter trabalhado discursivamente atravessado por
uma suposta transparência de sentido.

O RELATO COMO VOZ DE ESTRATÉGIA

Essas sequências discursivas estão em consonância ao que disse o


sujeito réu ‚Z‛, no Interrogatório, o que vem beneficiar o resultante na ab-
solvição, dada pelo Juiz.
Falar e proliferar os discursos põe o funcionamento enunciativo sob o
regime de contar o acontecido. A tarefa de contar algo a alguém ou, ainda,
declarar, narrar fatos está para a formulação de algumas proposições apa-
rentemente verdadeiras. Há um combate ‚pela verdade‛ ou, ao menos,
‚em torno da verdade‛ – entendendo-se, mais uma vez, que por verdade
não queremos dizer ‚o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a
fazer aceitar *...+‛, mas ao distinguir o verdadeiro do falso se ‚atribuir efei-
tos específicos de poder‛ (Foucault, *1979+ 2005, p. 13).
Na situação criminal, o ‚aparentemente verdadeiro‛ deve distinguir-se e-
fetivamente do falso, no sentido não de coisas a serem aceitas, mas de coisas
oferecidas para experiências ou provas futuras. Para isso, efeitos de poder
próprios do jogo enunciativo precisam entrar em cena a fim de que o pensá-
vel, as estruturas, e o acontecimento possibilitem a interpretação pela ‚inteli-
gibilidade das lutas, das estratégias, das táticas‛ (Foucault, *1979+ 2005, p. 5).
Ao passo de percebermos uma forma de história do fato tráfico de dro-
gas nos possibilita identificarmos a constituição dos saberes e dos discur-
sos sobre tal prática. Assim, é resultante a constituição do sujeito na trama
histórica. Por exemplo, o sujeito réu ao enunciar o argumento da carona
para resistir à acusação de crime de tráfico, imputando-lhe a identificação
de traficante, constitui-se em uma verdade que funciona o mecanismo de
saber-poder valer a ideia ‚de carona‛. Em torno dessa verdade, as técnicas
página 61

e os procedimentos para sua produção é o que fazem formular o estatuto


de verdadeiro. Esse estatuto é o responsável por ‚dizer o que funciona
como verdadeiro‛ (Foucault, *1979+2005, p. 12).
Lucas do Nascimento

Entender que o conjunto de enunciados proferidos posterior a sdr –


Não, eu peguei carona, tava na praça, ali no chafariz [...] – regula essa produ-
ção enunciativa como verdadeira, é entender que o que se torna regime de
verdade, a partir do enunciado visto, são as formações de outros discursos
povoados em filiações de saberes possíveis por ele mesmo. De modo tam-
bém que pô-la para circular e funcionar como enunciado induz à reprodu-
ção de efeitos de poder.
Nesse contexto, o quadro reconstituído da História é memória de ver-
dades. O tudo verdade, como efeito, lá onde aparecem as distinções de
tempo, de modo e de pessoas, coloca a verdade em questão de maneira a
relativizar determinado ângulo do acontecido. A tentativa é neutralizar a
aparência do passado, do próprio fato como já um passado. Os sintagmas
nominais e verbais tornam-se encarregados de apagar na estrutura léxico-
sintática a não-verdade. Logo, temos no processo penal, o réu ‘Z’ como
apenas pegara uma carona.
No relato, o réu ‘Z’ continua

[...]
Saiu pra fora do carro e eles nos prenderam, foi isso que aconteceu.
[...]
Eu acho que sim, não sei, deve ter feito, eu não vi nada. Me prenderam e
me trouxeram pra Lajeado. Só isso.
Não vi (indagado se viu os policiais fazerem uma revista no veículo).
No banco da frente (quanto ao banco em que estava sentado).
Não, não vi. Eu entrei no carro, no que já entrei, não deu nenhuma quadra e a
Polícia já tava atrás (quando indagado se viu algum pacote dentro do carro).
Conheço ele, de vista e conheço ele assim também, ele trabalha num negócio de
placa, ele trabalha junto com um primo do meu padrasto (quanto a ‘Y’ *S+).
Tava conversando com ele, dei uma parada (quanto a ‘X’ *R.C.+). Conheço
ele de vista. Várias vezes eu, de noite eu, de vez em quando eu dou uma
caminhada. Não, caminhar, é costume já.
[...]
Eu queria uma carona, só queria uma carona, eu tava cansado já, e eu que-
ria uma carona pra ponte seca, só isso.
[...]
Não (quando indagado se é dependente químico).
página 62

Não, eu bebo bastante, bebo bastante (quando indagado se costuma usar


drogas).
Droga, às vezes eu fumo um baseado.
Análise do discurso & vitimologia: memória(s) de tráfico de drogas

[...]
Duas portas (quanto ao Palio em que embarcou).
O ‘X’ *R.C.+ ingressou atrás, e eu ingressei na frente do veículo.
[...]
Ninguém fugiu, nós paramos na hora em que foi parado, nós fomos presos.
Ninguém fugiu...‛

O relato de ‚Z‛ argumenta fortemente em direção a ser vítima do fato


ocorrido, sustentado pela repetição da afirmação de só queria uma carona,
aliás, observa-se que o Juiz seleciona essa mesma sdr no texto de Insurgên-
cia: ‚soou como mais verossímil sua alegação de que apenas pegara uma
carona‛. O emprego dos advérbios só, e apenas fortalecem, por sua vez, a
argumentação de que não houve intenção premeditada de estar naquele
carro ou naquela situação, muito menos intenção de dolo9.

APELAÇÃO COMO PODER DE DEFESA

Pelos enunciados abaixo, o sujeito advogado ativa saberes locais, des-


contínuos, contra o saber dominado, a cristalização da ciência, do conhe-
cimento verdadeiro, alegando a absolvição de ‚Z‛. Assim, ele demonstra a
sua relação com as FDs e a oposição contra a coerção de um discurso teó-
rico, unitário, formal e científico:

Recorte 1: [APELAÇÃO]

1. (...) argúi não haver nos autos qualquer elemento de provas para conde-
nar o réu, requerendo a sua absolvição;
2. (...) postula pela revisão da pena imposta, no que diz respeito ao regime
integralmente fechado, bem como pelo afastamento da majorante prevista
no artigo 18, inciso III, da Lei nº 6.368/76.

A seguir, vejamos a Insurgência do Ministério Público, em caráter de ab-


solvição ao réu ‚Z‛, sobre a sua condenação pronunciada na Sentença:
página 63

9 Intenção de realizar a ação criminosa ou delitiva.


Lucas do Nascimento

Recorte 2: [INSURGÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO]

III) provimento da apelação interposta por DEFENSOR PÚBLICO [M.B.C.],


modificando a sentença combatida no que a ele diz respeito, na medida em que
resta absolvido com base no artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal,
devendo ser posto imediatamente em liberdade se por al não estiver preso, com
a retirada de seu nome do rol dos culpados, sem a incidência de custas;

Em (1) do R1, o sujeito defensor requer a absolvição de seu cliente por


declarar não haver provas para condenar o réu, e, em (2), requer a revisão
da pena imposta em regime integralmente fechado e o afastamento da ma-
jorante. A produção de (1) e (2) e a circulação de seus elementos significan-
tes, ligados à formação de discursos, têm efeitos de poder pelas três especi-
ficações: (i.) não há provas; (ii.) pede-se para revisar a pena, e (iii.) pede-se
para afastar a majorante. Essa produção e circulação apresentam a domina-
ção dos meios de coação e a rejeição de atitudes impostas pela Sentença,
entendidas como o efeito de um consentimento. Tal relação de poder é um
modo de ação que age sobre essa própria ação enunciativa (Foucault, 1995).
Nesse contexto, (1) e (2) são enunciados estratégicos para se chegar a um
fim, a um objetivo: a absolvição. Esse fim é a ação de vantagem sobre o ou-
tro, podendo ser uma vitória. No caso do defensor, as três especificações
acima funcionam como mecanismos argumentativos, haja vista o efeito im-
perativo: revisar a pena e afastar a majorante por não haver provas. Desse mo-
do, vemos que cabem, ao ritual jurídico, formas jurídicas em que haja estra-
tégias de confronto, a ser encaminhada pelo defensor, por exemplo, com o
objetivo da não condenação do seu cliente, mais, a não reclusão carcerária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção para o sucesso de absolvição penal se dá pela materiali-


dade da linguagem, pelo linguístico e pelo histórico, inseparáveis no cam-
po do discurso, resultando em amostragem de sujeitos réus determinados
por sentidos de inocência. O que determina um sentido e não outro, ou o
que determina uma dada significância e não outra, nas relações discursi-
vas de defensoria modernas, é o atenuante da vitimologia. Discursivizar o
página 64

sujeito traficante como vítima da esfera social, de acentuada problemática


brasileira pela intensificação do consumo de drogas, estabelece a existên-
cia de sujeitos drogados, dependentes, usuários, consumidores. Essa foi a
Análise do discurso & vitimologia: memória(s) de tráfico de drogas

forma de deslizar o SENTIDO DE TRAFICÂNCIA para o SENTIDO DE


USUÁRIO, com a consequência de apagar a identidade de traficantes dos
três sujeitos envolvidos no crime de tráfico de maconha.
Do trabalho do sentido, o deslizamento e o apagamento da história e
do crime vivido pelos envolvidos, soou como uma inversão na construção
de suas identidades, vitimizando-os. Pelo emprego de atenuadores lin-
guísticos como ‘apenas’, ‘só’, ‘em parte’ se deu essa prática de suavização.
Ainda pela associação com uma memória discursiva que circula na socie-
dade atual sobre o que é ser usuário de drogas em oposição ao ser trafi-
cante. Tal fato coloca o usuário e o traficante em FDs de oposição.
A significação discursiva das novas formas do discurso jurídico (impe-
rar revisões de pena, elaborar argumentos que fragilizam a objetividade e
a razão, elaborar estratégias de confronto com efeito de verdade, construir
sentidos sobredeterminando outras FDs) tem êxito pela enunciabilidade,
formulada por conjunto de enunciados, de um sujeito defensor estratégi-
co. Emaranhado em diversas estratégias, ele atomiza a precisão de que as
palavras já signifiquem para que elas façam sentidos. Diante do simbólico
e do imaginário, o sujeito defensor é instado a dar sentido, a significar,
não por se tratar simplesmente das regras pelas regras em mesmo ritual
jurídico, mas por advir passos estratégicos, elucidar seu papel profissional
que envolve o confronto das acusações, o desacordo com a sentença, o
direito de apelação.
Elencamos, em síntese, algumas das contribuições consideradas no de-
correr do trabalho:

1) Em R1 do Fato Delituoso, o enunciado demonstrou os sentidos e o


interdiscurso acionados pela memória discursiva do escrivão, influenci-
ando a construção enunciativa do fato delitivo em tráfico de maconha;
2) As sdr dos réus confrontaram-se no segundo momento do Interro-
gatório, evidenciando os sentidos da Instrução Criminal dirigida pelo De-
fensor Público;
3) A sdr do réu ‚Z‛ construiu, ao menos, duas declarações que cons-
truíram o tracejo de sentidos em prol da absolvição: a) pegara apenas/só
uma carona até o local de acesso ao Alto do Parque, local em que o réu
página 65

queria ir; e b) ‚verdadeira em parte a imputação que lhe estava sendo fei-
ta‛, assim, a formulação funcionou como efeito de verdade;
Lucas do Nascimento

4) A sdr na Insurgência do Defensor Público e na sua Apelação [R1] de-


monstrou a FD que levou à autorização da absolvição do réu ‚Z‛ *R2+ e
impediu discursos de culpabilidade e punição, elencados na determinação
de condenação na Sentença;
5) A posição identitária de caroneiro acionou sentidos relativos à re-
presentatividade de drogado, usuário, dependente, consumidor;
6) A Defensoria Pública Brasileira formulou discursos constituindo senti-
dos de vitimologia, dessa forma, enfraquecendo mecanismos de criminologia.
Por fim, destacamos o movimento da noção de memória discursiva pa-
ra mostrar a relação de interdiscursos presentes na materialidade linguís-
tica, registrando-os na estrutura sob a(s) (des)ordem(ns) discursiva(s). A
enunciação da escrita do escrivão construiu o fato do crime de tráfico de
maconha sob a ótica da significação da memória discursiva. Ela é constitu-
ída por imagens, argumentos, críticas, exemplos, discursos veiculados no
cenário midiático e cultural. Sabemos, sobretudo, do acionamento da me-
mória para lembrar fatos e torná-los discursivizados. Diante disso, vimos
o funcionamento das sdr de acusação e de defesa em embate.

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______. [1979]. Microfísica do Poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 21. ed.
Rio de Janeiro: Graal, 2005.

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página 67
página 68 Lucas do Nascimento
PARTE II
ESTUDOS do discurso
e reflexões ANALÍTICAS
página 70 PARTE II
cinco

Roberto Lesier BARONAS1 & Samuel PONSONI2


POR uma VIDA
melhor da/na MÍDIA:12
uma leitura discursiva3

Há histórias tão verdadeiras [na mídia] que às vezes parece


que são [re]inventadas [pela própria mídia]...
Manoel de Barros

NOTAS PROMISSÓRIAS...

E
xistem alguns aspectos que nos parecem importante de
mencionar antes de adentrar de fato os objetivos desse arti-
go. A discussão acerca do livro, Por uma vida melhor, em
que uma das mãos que esquadrinham a pena autoral per-
tence à Heloísa Ramos, tal como foi posta a circular, permite relatar
dois extratos importantes. Um para o bem e outro para o mal.

1 Doutor pela UNESP (Araraquara). Prof. Dr. do Departamento de Letras e do PPP-


GL/UFSCar. baronas@uol.com.br
2 Mestre pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pelo PPGL/UFSCar. Bolsista FAPESP. Ribeirão Preto

- SP. Pesquisador do LEEDIM. sponsoni@yahoo.com


3 Uma versão bastante modificada deste texto foi objeto de comunicação oral durante o I

Ateliê de Estudos Discursivos da UFMT, realizado no período de 19 a 20 de agosto de 2011 no


Campus da Universidade Federal de Mato Grosso em Cuiabá – MT.
Roberto Leiser Baronas & Samuel Ponsoni

A parte boa trata de trazer à superfície discussões sobre educação, movi-


mentações político-sociais em palestras, mesas-redondas, atos públicos, artigos
de especialistas em ciência da linguagem (linguistas) e em ensino-
aprendizagem(educadores) – embora possam coincidir ambos os sujeitos teóri-
cos – e, principalmente, a contribuição de teoria e pesquisadores da línguística
para a pedagogia de ensino de línguas, pois, de maneira geral, a inserção social
de grande alcance, seja pela mídia, seja pelo conhecimento escolar ou pelo co-
nhecimento cotidiano, é bastante dificultosa, ainda que nos meios acadêmicos a
linguística tenha grande alcance e relativa estabilidade, no Brasil e no mundo.
A parte ruim é o tratamento que comumente é dado pela mídia a al-
guns fatos que acontecem em nossa sociedade. Sobre essa segunda parte,
ergueremos nossa argumentação neste texto.
Todavia, nos alinhando ao cavaleiro das causas perdidas de Borges ou
enfrentando, quixotescamente, os moinhos de ventos, insistiremos um
pouco mais na parte boa, ao debater em alguma medida questões tributá-
rias a essas, mas não deixando de sulcar a parte ruim, com seu direciona-
mento nocivo a um debate mais franco, justo e necessário.

FUNDAMENTAÇÃO E JUSTIFICATIVAS

Para levar a cabo nossas hipóteses e objetivos com este singelo artigo,
apresentaremos alguns aspectos atinados à argumentação, organização e
construção de certo trajeto4 interpretativo deôntico, a partir dos conceitos
de destacabilidade, de sobreasseveração e de aforização, forjados majori-
tariamente por Dominique Maingueneau (2006), que tentaremos apreen-
der dos enunciados que foram postos a circular para os espectadores de
um telejornal brasileiro de grande circulação, qual seja, o Jornal Nacional
(adiante, vez ou outra, JN), transmitido pela Rede Globo de Televisão, no
horário nobre do sistema televisivo.
Ainda sobre o material de análise, admitimos que a escolha se deve ao
acaso ou não somente à grande circulação que ele tem – outros veículos
também tiveram –, mas a uma certa regularidade no tratamento editorial
que foi feita em diversos telejornais da emissora globo. Cremos que o JN
página 72

4O sagaz leitor pode se indagar acerca dos estudos conduzidos brilhantemente por Jacques
Guilhaumou com o consagrado caso do trajeto temático feito em corporas retirados de tex-
tos jornalísticos tratando das temáticas linguísticas que compõem a Revolução Francesa,
como a clássica observação sobre os sintagmas Pão e Liberdade, Pão e Ferro etc.
Por uma vida melhor da/na mídia: uma leitura discursiva

se constituiu numa espécie de representação metonímica do que a mídia


brasileira produziu a respeito do livro didático Por uma vida melhor.
Ao prosseguir, esbarramos num primeiro problema para perscrutar,
pois, em nosso entendimento, há duas maneiras básicas de pesquisar so-
bre a questão da leitura. Uma tem a ver com decifração, em outras palavras,
técnicas, métodos, teorias que permitiriam a um leitor ter acesso aos sen-
tidos dos textos elencados para compreensão – verdadeiros, profundos,
corretos ... –, dependendo das crenças teóricas ou do que se busca, consi-
derando, ainda nesse sentido, o campo – jurídico, religioso, filosófico, lite-
rário, técnico, comercial, publicitário et cetera– e o tipo de texto.
Outro problema que se coloca concerne à circulação. Disso, poderia re-
sultar perguntas tais como: quais textos circulam em quais lugares? Quem
os lê ou lê o quê (nos diferentes séculos, nas escolas, na Internet; o que se
vende em bancas, em livrarias de aeroporto etc.)? Uma subdivisão desse
tema põe outra pergunta: como certos textos circulam – inteiros, aos peda-
ços, adaptados, em edições originais, traduzidos? E mais: por que, de um
texto integral, frequentemente circulam apenas partes – estrofes, versos,
finais, começos, pontos culminantes? E como isso interfere na produção de
determinados percursos interpretativo-compreensivos deônticos.
De todo o imbróglio, há de se ressaltar a mobilização dos linguistas ao
ensejar suas vozes contra as críticas pouco fundamentadas acerca do tra-
balho do livro, bem como da contribuição da ciência da linguagem para o
ensino de línguas. Todavia, a maior parte dos trabalhos busca, pelo menos
em sua parte principal de argumentação, a compreensão e a explicação
para o porquê de o livro didático abordar tais questões de língua em seu
conteúdo. Portanto, há trabalhos que abordam mais de um ponto de vista
sociolinguístico, cognitivista entre outros.
Os trabalhos que buscam uma compreensão mais discursiva do fenô-
meno, praticamente não foram realizados. Assim, nosso trabalho evocará
o campo epistemológico da Análise do Discurso de orientação francesa
(adiante AD). Para isso, nosso trabalho se valerá sobre tudo dos elementos
linguísticos que permeiam o terreno teórico em que está fundado a AD.
Nelson Rodrigues indagava a necessidade de saber enxergar o óbvio,
logo a pergunta que se segue pode parecer, mas parece-nos primordial:
Afinal, para AD, o que significa discurso?
página 73

Então, respondendo a essa pergunta, diríamos que discurso para a AD


está ligado à manifestação e à materialização ideológica dos modos de
Roberto Leiser Baronas & Samuel Ponsoni

produções e organização sociais na materialidade linguística, textual. E


isso se marca por meio de e como os efeitos linguísticos se inscrevem na
história e no mesmo processo como a história se materializa no linguístico.
No entanto, essa história vem de longa data, iniciando-se com os traba-
lhos fundadores de Michel Pêcheux, em seu texto Análise automática do
discurso, no final dos anos 1960, em que as pesquisas linguísticas de base
estrutural já não mais atendiam aos anseios científicos de se (re)conhecer
sujeitos e ideologias que falavam nos textos por meio da linguagem.
Pode-se dizer que dessa fase tática inicial a AD se desdobrou em três
vertentes basicamente:

1) Linguístico-enunciativa a qual busca compreender a presença/ausência


do alhures, do já dito, do interdiscurso no fio do discurso, no intradiscurso.
Parece-nos que aqueles que melhor representam essa vertente são Michel
Pêcheux e Jacqueline Authier-Revuz.
2) Histórica em que se tenta compreender as condições de emergência
dos discursos. Apontaríamos aqui pensadores tais como Michel Foucault,
Jacques Guilhaumou, Jean Marie Marandin e Jean-Jacques Courtine.
3) Pragmática perscruta em compreender as razões pelas quais deter-
minadas interpretações e não outras circulam na sociedade. Destacaría-
mos, aqui, pesquisadores como Simone Bonnafous, Dominique Maingue-
neau, Sophie Moirand e Alice Krieg-Planque.

É, portanto, dessa terceira vertente que inscrevemos nosso artigo, pois a


circulação que se sucedeu acerca do livro Por uma vida melhor foi crucial
para um trajeto interpretativo-compreensivo, dado de maneira deôntico, aos
espectadores do Jornal Nacional em matéria que mobilizamos para análise.

QUESTÕES SOBRE CITAÇÃO, DESTACABILIDADE, SOBREASSE-


AVERAÇÃO E AFORIZAÇÃO

A questão de se utilizar de discursos citados para representar em algumas


instâncias a fala de um outro que não o próprio locutor encontra grande al-
página 74

cance heurístico, se preferirem, no escopo de estudo da linguística. A noção


tripartite de discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre não
são suficientemente esclarecedoras, uma vez que, com as diversas frinchas
Por uma vida melhor da/na mídia: uma leitura discursiva

teóricas criadas pelas pesquisas da linguística moderna, foi possível notar


outras formas de trazer a voz de outros locutores ao cerne das enunciações.
Entre as múltiplas formas teórico-metodológicas de se pesquisar em linguís-
tica – sobretudo em estudos de texto e discurso – dois autores se destacam: a)
Bakhtin, que mobiliza os casos de citação (direta, indireta, indireta livre etc.)
para pensar a compreensão do outro na construção das palavras de um eu, a
partir do embate enunciativo-ideológico da vida cotidiana; b) Jacqueline Au-
thier-Revuz, que, em muito tributária às teorias de Bakhtin, porém entrecru-
zando outros elementos linguístico-psicanalítico, fundamenta por meio das
citações diretas e indiretas, alusões, glosas, comentários, a presença do ou-
tro/Outro na concepção de eu/Eu do discurso.
Em Maingueneau (2006; 2008; 2010a), a problemática da citação é tratada
de forma bastante diferente tanto da visada bakhtiniana, a qual se inscreve
em suas problemáticas da filosofia da linguagem, quanto da abordagem dis-
cursiva de Authier-Revuz, em que a compreensão do Outro interdiscursivo
que emerge ou se apaga nos fios discursivos dos sujeitos é bastante importan-
te, pois, para esse autor francês, tratar da citação implica notar também a
questão da destacabilidade de enunciados. O “destacamento” dos enuncia-
dos não se dá somente a partir das sequências “destacadas”, mas sim ao se
considerar as condições que permitem que enunciados sejam “destacáveis”.
Ainda no entendimento de Dominique Maingueneau (2010a), poucas pes-
soas atualmente contestariam a ideia de que o texto constitui a única realida-
de empírica sobre a qual se debruça o linguista: unidades como a frase ou a
palavra são necessariamente retiradas de textos. O texto é, com efeito, no
entendimento do pesquisador francês, a contraparte do gênero do discurso,
que é o quadro de toda a comunicação pensável. Maingueneau mobiliza o
termo “gênero do discurso” para atividades como registrar o nascimento, o
debate televisivo, o sermão, entre outros.
Todavia, alguns problemas se põem quando é preciso tratar de enunci-
ados curtos que se apresentam fora do texto, geralmente constituídos de
uma única frase. Dominique Maingueneau chama essas pequenas frases
de “enunciados destacados”, sendo eles de tipos muito diversos: slogans,
máximas, provérbios, títulos de artigos da imprensa, intertítulos, citações
célebres etc. Para o estudioso francês, devem-se distinguir duas classes
bem diferentes, segundo o seu “destacamento”: a) os constitutivos: trata-se
página 75

do caso em particular das fórmulas (provérbios, slogans, divisas) que, por


sua própria natureza, são independentes de um texto particular; b) os que
Roberto Leiser Baronas & Samuel Ponsoni

resultam da extração de um fragmento de texto: neste caso, são os que se en-


contram em uma lógica de citação.
Essa extração não se exerce de maneira indiferenciada sobre todos os
constituintes de um texto, pois, frequentemente, o enunciador sobreasseve-
ra alguns de seus fragmentos e os apresenta como destacáveis. A sobreas-
severação é uma modulação de enunciação que habilita formalmente um
fragmento como candidato a uma destextualização. Trata-se de uma opera-
ção de colocação em relevo por relação ao desenvolvimento textual que se
efetua com a ajuda de marcadores diversos: de ordem aspectual (generici-
dade), tipográfica (posição saliente em uma unidade textual), prosódica
(insistência), sintática (construção de uma forma pregnante), semântica
(recurso aos tropos), lexical (utilização de conectores de reformulação) etc.
No entendimento do teórico do discurso, as divergências entre o enun-
ciado fonte e o enunciado destacado são reveladoras de um estatuto
pragmático específico para os enunciados destacados. Esses últimos reve-
lam, com efeito, um regime de enunciação que Maingueneau propõe cha-
mar “enunciação aforizante”. Entre uma “aforização” e um texto não exis-
te uma diferença de tamanho, de forma, de sistematicidade linguística,
mas de ordem enunciativa. O esquema a seguir exemplifica as duas or-
dens discursivas propostas por Maingueneau:

ENUNCIAÇÃO

Aforizante Textualizante

Destacada por natureza Destacada de um texto


página 76

Figura 1: Esquema vetorial das ordens discursivas proposto por Maingueneau.


Por uma vida melhor da/na mídia: uma leitura discursiva

Para Maingueneau, a enunciação se organiza em duas ordens do


enunciável: a enunciação textualizante e a enunciação aforizante. Esta
última, por sua vez, se organiza em enunciação aforizante destacada por
natureza e enunciação aforizante destacada de um texto. No entendimento
de Dominique Maingueneau, por meio da aforização, o locutor se coloca
além dos limites específicos de um determinado gênero do discurso:

O « aforizador » assume o ethos do locutor que fala do alto, de um indivíduo


em contato com uma Fonte transcendente, ele não se endereça a um
interlocutor colocado no mesmo plano que ele e que pode responder, mas a
um auditório universal. Ele é instado a enunciar a sua verdade, que prescinde
de toda a negociação, exprimindo uma totalidade vivida: seja uma doutrina ou
uma certa concepção de existência. Por intermédio da aforização vemos coin-
cidir sujeito da enunciação e Sujeito no sentido jurídico e moral: alguém que se co-
loca como responsável, afirmando valores e princípios diante do mundo, se
endereçando a uma comunidade para além dos locutores empíricos que são
seus destinatários. (MAINGUENEAU, 2010a, p.14-15)

Sendo assim, para Maingueneau (2010a), este é o ponto central do pro-


blema, “o aforizador não é um locutor, o suporte da enunciação, mas uma
consequência do destacamento”, isto é, não se trata apenas de outra ins-
tância enunciativa, distinta tanto da do locutor/alocutário quanto da do
enunciador/enunciatário. Desse modo, quando se extrai um fragmento de
texto para fazer uma aforização, um título de uma matéria na imprensa,
por exemplo, converte-se ipso facto seu locutor original em aforizador.
Tomemos agora a polêmica acerca do livro didático Por uma vida me-
lhor, de autoria de Heloisa Ramos et. al., destinado aos alunos da Educa-
ção de Jovens e Adultos (EJA), no que se referia ao conteúdo de Língua
Portuguesa. Aqui, vamos nos deter mais especificamente ao trabalho de
destaque realizado pela mídia sobre fragmentos do livro didático, mais
especificamente mobilizamos o trabalho realizado pelo Jornal Nacional da
Rede Globo de Televisão em reportagem exibida em maio de 2011. Fize-
mos tal opção pelo fato de o JN ter se constituído numa espécie de repre-
sentação metonímica do que circulou na grande mídia brasileira acerca
desse acontecimento.
página 77
Roberto Leiser Baronas & Samuel Ponsoni

Figura 2: Imagem que circulou no Jornal Nacional para representar o livro Por uma vida melhor

Nota-se que o enunciador-jornalista faz o trabalho de destaque em seis


enunciados que, retirados de seu cotexto e contexto mais amplo, além de te-
rem sido modificados em relação livro, são postos a circular em outro lugar:

1: Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado.(igual ao livro p.14);


2: Na variedade popular, basta que (os) esse primeiro termo esteja no plural
para indicar mais de um referente. (diferente ao livro p.15);
3: A língua portuguesa admite essa construção(criado pela reportagem);
4: Mas eu posso falar “os livro?”(igual ao livro p.15);
5: Claro que pode. (igual ao livro p.15);
6: Mas fique atento porque, dependendo da situação, você(a pessoa) corre o
risco de ser vítima de preconceito linguístico (diferente ao livro p.15).

Esses enunciados passam a figurar em primeiro plano, em um livro vir-


tual criado computacionalmente, em que o restante do texto é apagado,
permanecendo apenas os elementos destacados. Dessa forma, constitui-se
um trabalho de aforização, pois nem todos os leitores do JN terão ou tive-
ram acesso prévio ao conteúdo total do livro. Mais ainda, o que está desta-
cado nos itens 2 e 3 de nosso exemplo não existe, respectivamente, inte-
gralmente no material didático Por uma vida melhor. Os enunciados não
estão lá, como comprova uma busca simples pelo texto do livro. Ademais,
página 78

em 2, o pronome pessoal “você” é substituído por “a pessoa”; neste caso,


retira-se qualquer marca dêitica que aproxime do trabalho textual comple-
to, algo a parecer estritamente referido a um dado termo anterior, fazendo
Por uma vida melhor da/na mídia: uma leitura discursiva

uma referência de retomada ou a substituição de um termo já existente.


Com efeito, esse movimento de trajeto interpretativo parece inferir que o
livro generaliza o uso de uma suposta “forma errada do português”, auto-
rizando essa competência específica não mais um determinado contexto,
mas a todas as pessoas que recebem tal texto, em indiferentes tempos e
contextos. Em 3, não há em nenhum lugar do capítulo do livro em si a
afirmação de que a língua portuguesa admite tal construção, o que marca
ainda mais o ato de aforização na edição jornalística.
Assim, esse trajeto interpretativo demonstra que não há apenas o trabalho
de citação, como no caso dos outros exemplos (1,2,4,5,6), em que os enuncia-
dos citados são colocados a circular em outros espaço e podem ganhar algu-
ma marca de distanciamento, como, por exemplo, aspas, uma oração interca-
lada introduzida por um verbo dicendi mais “que”. Há, sim, nesse caso do
livro Por uma vida melhor, o trabalho de aforização que corrobora com o
percurso deôntico interpretativo numa dada direção de sentido, qual seja,
jogar as asseverações do posicionamento do editorial jornalístico para a res-
ponsabilidade da autoria do livro e o quem mantém em seus auspícios.
Ainda que isso possa ser dito também em outros casos de citação, quando
o enunciador marca seu distanciamento de alguma maneira, no caso da afo-
rização, existe apagamento de elementos para a compreensão “real” do acon-
tecimento. O cotexto e o contexto em que os enunciados foram produzidos, a
prévia leitura do material pelos leitores do jornal, a não criação de dados a ser
colocados a circular em outro tempo e em outro espaço e, sobretudo, a voz a
quem de fato participou da elaboração do material e a clara fronteira de onde
entram elementos do editorial e elementos do próprio livro. Por seu turno, o
enunciador jornalista se constitui num aforizador que se sobrepõe tanto ao
seu leitor quanto ao outro cuja fala recorta, mostrando uma imagem de si, do
jornal, bem como um posicionamento. Algo da ordem de um sujeito autori-
zado a realizar o trabalho de destaque da fala da outro. Trabalho esse que é
realizado sob a validação da instituição midiática, no caso, JN, que estabelece
valores para além das interações e das argumentações. Trata-se de um traba-
lho de direcionamento de sentidos, de constituição de subjetividades em que,
sem que se dê conta, o leitor é levado a aderir à interpretação do enunciador
jornalista e, por extensão, ao posicionamento do veículo midiático no qual
esse jornalista está inscrito.
página 79
Roberto Leiser Baronas & Samuel Ponsoni

(IN)CONCLUSÕES...

Do ponto de vista dos estudos da mídia, o estudo empreendido neste


artigo demonstra que atualmente os suportes midiáticos têm um papel de
protagonistas na definição dos debates que circulam nos espaços públicos.
São esses suportes que efetivamente modelam, definem a pauta do que
pode e deve circular enquanto já-dito, dito ou o que ainda vai ser dito,
numa determinada sociedade. Assim, por meio da mobilização do concei-
to de aforização, foi possível “apreender as práticas dos atores políticos e
sociais através das diferentes formas de cristalização que seus discursos
modelam e põem em circulação” (KRIEG-PLANQUE, A. 2011, p. 2), com-
preendendo dessa forma a mídia não apenas na sua dimensão interindi-
vidual, mas, sobretudo, na sua dimensão institucional e organizacional.

REFERÊNCIAS

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_____ .Trabalhar os discursos na pluridisciplinaridade: exemplos de uma « maneira de fazer » em


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discours et sciences humaines et sociales, Paris, Ophrys, coll. Les chemins du discours ; p. 57-
71. Tradução brasileira. BARONAS, R. L. & MIOTELLO, V. Análise de Discurso:
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______. La formule “développement durable”: un opérateur de neutralisation de la conflictualité »,


Langage & Société, Paris, Editions de la Maison des Sciences de l‟Homme. Actes du
colloque « Le français parlé dans les médias : les médias et le politique » (Lausanne / 2009)
Por uma vida melhor da/na mídia: uma leitura discursiva

Marcel Burger, Jérôme Jacquin, Raphaël Micheli (éds). Tradução brasileira Roberto Leiser
Baronas. “A fórmula desenvolvimento sustentável: um operador de neutralização de con-
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HELSLOOT, N. et HAK Tony. La contribution de Michel Pêcheux à l'analyse de discours,


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PÊCHEUX, M. Ueber die Rolle des Gedächtnisses als interdiskursives Material, Das
Argument Sonderband 95, 1983.

página 81
página 82 Roberto Leiser Baronas & Samuel Ponsoni
seis

Andreia Beatriz PEREIRA1


discurso CONSTITUINTE
na MÍDIA:1

algumas possibilidades

INTRODUÇÃO

I
niciaremos este artigo como uma advertência: o objetivo que se
propõe é fornecer ao leitor uma amostra do que se pretende
desenvolver em uma dissertação de mestrado. O projeto, a sa-
ber, procura compreender os discursos sobre o Abuso Sexual
Infantil (ou pedofilia) na contemporaneidade. Ancorados pelo en-
tendimento de Donzelot, no livro A polícia das famílias, e de Ariès em
História Social da Criança e da Família, notamos que a preocupação
com a natureza das relações (principalmente sexuais) entre crianças
e adultos teve início nos séculos XVI e XVII juntamente com o con-
junto de regras sobre os cuidados durante a infância. Portanto, nosso
entendimento é que os textos fundadores da temática se encontram
também nesta época.
Trabalharemos sobre a perspectiva de que os textos midiáticos
constroem enunciações de ‚verdades‛ sobre a pedofilia a partir de

1Mestre pelo PPGL/UFSCar. São Carlos - SP. Pesquisadora do LEEDIM. toescrevendopra-


andreia@yahoo.com.br
Andreia Beatriz Pereira

textos anteriores, que legitimam esses dizeres. É justamente este movi-


mento de legitimação que tentaremos compreender.
Ressaltando este artigo como apenas uma amostra da dissertação, ele-
gemos o conto Chapeuzinho Vermelho por ser um dos textos que primeiro se
inscreveu na temática da regulação das relações entre crianças e adultos.
Sendo assim, compreenderemos como alguns discursos constituem este
conto, e como ambos estão em relação com campanhas publicitárias do XXI.
Partindo de conceitos da Análise do Discurso e levando em considera-
ção o estudo da obra de Dominique Maingueneau, especificamente alguns
caminhos trilhados por esse autor, nos auxiliariam para desenvolver a
pesquisa. Conceitos como discurso constituinte, discurso tópico e discurso
atópico forneceram uma compreensão sobre como uma Formação Discur-
siva sobre a pedofilia pode ser composta tanto por textos científicos quan-
to por peças publicitárias. Já o estudo das Práticas Intersemióticas nos pro-
porcionou um entendimento sobre a constituição da Formação Discursiva
por diversas materialidades textuais.

DISCURSO CONSTITUINTE

O termo discurso constituinte é, na obra Discurso Literário, de Domini-


que Maingueneau, como uma propriedade de determinados discursos de
administrar as condições de sua própria existência. Os principais repre-
sentantes dessa modalidade textual são os discursos literário, religioso,
filosófico e científico.
A proposta de Maingueneau para o estudo dos Discursos Constituintes
possibilita um novo olhar sobre os textos com que a Análise do Discurso
trabalha em seu corpus de pesquisa:

Interessar-se pelos discursos constituintes é ir de encontro a uma certa rotina


de trabalhos em Análise do Discurso, onde se tem a tendência de privilegiar
as interações conversacionais, ou então tipos de discursos como o do discur-
so publicitário, midiático, político, escolar (Maingueneau, 2008a, p. 37).

Agora será operado um deslocamento nos estudos do discurso. Os ti-


pos de textos citados por Maingueneau terão que compartilhar espaço
página 84

com os textos que antes eram estudados por outras disciplinas das ciên-
cias humanas, como os textos literários e religiosos.
Discurso constituinte na mídia: algumas possibilidades

Notamos ainda que outra característica marcante dos discursos consti-


tuintes é sua relação com a comunidade que o produz. Eles são, na maio-
ria das vezes, reflexos de uma organização social em torno de uma prática
determinada. Nas palavras de Maingueneau

Uma análise da ‚constituência‛ dos discursos constituintes deve concen-


trar-se em mostrar o vínculo inextricável entre o intradiscurso e o extradis-
cursivo, a imbricação entre uma organização textual e uma atividade enun-
ciativa (Maingueneau, 2006, p. 62).

Então, se há uma estreita ligação entre a produção dos enunciados e a


comunidade que o produz, sempre que o objeto de nosso estudo for um
discurso constituinte deveremos levar em conta que ‚todo estudo que se
pergunta sobre o modo de emergência, circulação e consumo de discursos
constituintes deve dar conta do modo de funcionamento dos grupos que
os produzem e gerem‛ (Maingueneau, 2006, p.69).
Também não devemos nos esquecer de que nem sempre os discursos consti-
tuintes se posicionam em lados opostos de uma formação discursiva. Isso pode acon-
tecer mesmo que eles tenham sido produzidos em grupos sociais diferentes.
Ocorre que grupos distintos, como aqueles que produzem enunciados cientí-
ficos e religiosos, podem se posicionar de forma semelhante no que diz res-
peito a determinados assuntos e de forma diferente no que tange a outros.
Isso nos leva ainda a mais uma conclusão: sempre que se levar em conta o
estudo de discursos constituintes, não devemos tomar como ‚já dito‛ que
suas enunciações partem de pontos de vista antagônicos.
Ainda, os discursos constituintes, além de constituir a si próprios, são par-
ticipantes da constituição de outros discursos. Assim, um texto religioso, a-
lém de criar as condições de sua própria existência, que tornarão seus enun-
ciados legítimos, deve também legitimar outros textos, que, partindo dele,
serão postos em circulação na mesma comunidade discursiva, pois

Uma hierarquia se instaura entre os textos ‚primeiros‛ e os que se apóiam


sobre eles para comentá-los, resumi-los, refutá-los, etc... O discurso constitu-
inte supõe essa interação de regimes diversos, que têm, cada um, um funcionamen-
to específico. (Maingueneau, 2008a, p. 44, grifo nosso)
página 85

A dúvida a qual tentaremos trabalhar no próximo tópico se atêm a um


fato que não fica claro nas obras consultadas do autor: se um discurso
Andreia Beatriz Pereira

constituinte é comentado, resumido, refutado, as produções que se deri-


vam dele não pertenceriam mais ao quadro dos discursos constituintes,
pois, tendo um caráter dependente dos mesmos, não são capazes de criar
as possibilidades de sua própria existência. Poderíamos, então, considerá-
las como discursos tópicos?

Os discursos constituintes são discursos que conferem sentido aos atos da cole-
tividade, sendo em verdade os garantes de múltiplos gêneros do discurso [...]
são a um só tempo, autoconstituintes e heteroconstituintes, duas faces que se
pressupõem mutuamente: só um discurso que se constitui ao tematizar sua
própria constituição pode desempenhar um papel constituinte com relação a
outros discursos (Maingueneau, 2006, p. 61).

Dessa forma, encontramos duas possibilidades de conclusão: na pri-


meira, os textos que refutam, resumem, etc., os discursos constituintes
seriam também discursos constituintes; na segunda, eles seriam aquilo a
que denominamos discursos tópicos. No próximo tópico, tentaremos defi-
nir o que entendemos por discurso tópico.

DISCURSO TÓPICO E OS TROPISMOS

Trata-se aqui de tentar elaborar algumas considerações sobre o modo de


funcionamento dos textos que a análise do discurso primeiro trabalhou como
corpus de pesquisa: os discursos publicitário, midiático, político, escolar.
Nas obras pesquisadas, encontramos algumas orientações acerca dos
discursos que não se enquadram na categoria de discursos constituintes.
No artigo intitulado Além da paratopia, Maingueneau aborda três outras
variantes discursivas: a Atopia (que será tratada no próximo item), o Tro-
pismo e aquilo que é chamado de Mimotópico. Nas palavras deste autor,

somos naturalmente levados a fazer uma distinção implícita entre os discur-


sos paratópicos – os discursos constituintes – e os discursos ‚tópicos‛, ou se-
ja, o resto da produção discursiva da sociedade (Maingueneau, 2008b, p. 13).

Compreendemos que ‚resto da produção discursiva da sociedade‛ é


página 86

uma expressão complicada, pois não é possível compreender por meio


dela quais são as características mais particulares desses discursos. Entre-
tanto, podemos começar a delinear o que seriam os tropismos por meio das
Discurso constituinte na mídia: algumas possibilidades

observações feitas sobre o discurso político: ele nos mostra que este dis-
curso não pode pertencer ao quadro dos discursos constituintes, uma vez
que suas características não o autorizam a se firmar enquanto um discurso
que se autolegitima.
Ainda para definir esses discursos não constituintes, Maingueneau dis-
corre sobre um conjunto de práticas chamado ‚sombras‛:

tem-se pela frente um conjunto de práticas discursivas que implicam uma


distinção essencial entre discursos primeiros [...] e discursos segundos as-
sumidos pelos especialistas que os comentam [...] me parece que uma teoria
dos discursos constituintes deveria levar em conta esse tipo de fenômeno,
que seria preciso elaborar o que se poderia chamar de uma teoria das
‘sombras’ dos discursos constituintes (Maingueneau, 2008 b, p. 15-16).

Logo, compreendemos que algumas práticas discursivas que não são consti-
tuintes estão orientadas em direção aos discursos constituintes. Essa orientação,
a nosso ver, seria como uma dependência, pois a existência do discurso consti-
tuinte é primordial para que exista um outro discurso que se apóie nele.

Por esses dois conjuntos de fenômenos – as praticas discursivas atadas ao


político ou às ‘sombras’ – poderíamos falar de relação ‘tropismo’ com rela-
ção aos discursos constituintes. Mas pode-se distinguir o tropismo global
do discurso político, que tem a pretensão te tocar o conjunto da coletivida-
de, e os tropismos restritos das ‘sombras’ (Maingueneau, 2008 b, p. 16).

Esta pequena exposição que agora fizemos não deve ser estendida à publi-
cidade. Para ela, Maingueneau coloca uma outra categoria, a dos discursos
Mimotópicos, palavra que imaginamos derivar de mimetismo, ou seja, a capa-
cidade de adaptar-se a condições determinadas e passar despercebido.
Para o autor, a publicidade é um discurso que tem a capacidade de se
camuflar em outras formas de textos, que não necessariamente aparentam
ser propagandas. Após as pequenas definições que fizemos sobre os discur-
sos constituintes e tópicos, resta-nos, agora, fazer sobre o discurso atópico.

DISCURSO ATÓPICO
página 87

No discurso constituinte, a principal característica era a paratopia, ou


seja, o seu pertencimento ao conjunto das práticas enunciativas era pro-
Andreia Beatriz Pereira

blemático, visto que seu autor deveria tentar posicionar-se ao mesmo


tempo dentro e fora da sociedade.
Tendo em vista que por associação definimos que o discurso tópico en-
contra seu pertencimento sempre dentro da sociedade, o discurso atópico
assume uma outra característica: ele está sempre fora da sociedade, uma
vez aqueles que se envolvem em sua produção e em seu consumo estarem
sempre às margens da sociedade. Nesse sentido,

Não têm dependência funcional problemática no espaço social: é uma pro-


dução tolerada, clandestina, noturna, que se insinua nos interstício do es-
paço social. A produção pornográfica é superabundante, o consumo não é
menor, mas os produtores ou os consumidores são sempre os outros (Ma-
ingueneau, 2008b, p. 16).

Fazendo um paralelo entre os três tipos de discurso, podemos concluir,


pelo ponto de vista do pertencimento, que o primeiro deles é o mais pro-
blemático, por ter que se situar dentro e fora ao mesmo tempo. Quanto
aos outros dois, estão de um lado ou do outro desta fronteira imaginária.

AS PRÁTICAS INTERSEMIÓTICAS

Pretendemos observar se estes textos se inscrevem em uma prática dis-


cursiva determinada. Isto por que, como vimos, ‚convencionaremos cha-
mar de ‘textos’ os diversos tipos de produções semióticas que pertencem a
uma prática discursiva‛ (Maingueneau, 2008, p. 139).
Assim, deveremos pensar que os textos que circulam em nossa socieda-
de, quando tratam de um mesmo tema e independente de sua materialida-
de e de seu suporte, podem se inscrever nas mesmas formações discursivas.
Nas palavras do autor, ‚Os diversos suportes semióticos não são indepen-
dentes uns dos outros, estando submetidos às mesmas escansões históricas,
às mesmas restrições temáticas, etc...‛ (Maingueneau, 2008, p. 138). meio
Haveríamos de compreender, então, como encontrar os elementos que per-
tencem à mesma semântica global de uma formação discursiva determina-
da, para as materialidades que são diferentes da escrita e da fala.
Como a imagem se constitui em uma linguagem própria, é por dela
página 88

que trabalharemos os elementos de pertencimento à Formação Discursiva.


Parece-nos que o próprio autor nos dá uma resposta no que diz respeito à
imagem. No capitulo 6 do livro Gênese do Discurso, ele diz que:
Discurso constituinte na mídia: algumas possibilidades

A depender de se tratar de obras destinadas a tais instituições, a tais lugares, a


tais funções [...], o formato, o tema, a escolha das cores, etc... serão afetados,
não a título de parâmetros acessórios, mas porque isso se inscreve nas próprias
condições de funcionamento da prática discursiva, tanto quanto o didatismo
[...]. O texto pictórico, por mais solitário que pareça, pelo simples fato de per-
tencer a prática discursiva supõe tacitamente um conjunto virtual daqueles
com os quais pode ser legitimamente associado (Maingueneau, 2008, p. 141).

O que faz imagens enquanto texto é que, para comunicar algo, muitas
vezes, elas são o produto de uma composição, o fruto do trabalho de seus
autores. Seja pela escolha do tema, dos objetos, das cores, tudo na imagem
é pensado para fazê-la significar. Sendo assim, torna-se necessário, para
analisar o texto imagético, que consigamos entender os elementos do tex-
to: o plano, a montagem e o enquadramento, por exemplo.
Tendo posto isto, procuraremos (algumas vezes por meio de analogias)
demonstrar como compreendemos o que deve ser a Análise do Discurso
de um arquivo imagético. A análise do discurso de textos escritos pressu-
põe que se demonstre a utilização de um adjetivo, de um tempo verbal,
etc., como responsável por poder provocar determinados efeitos de senti-
do, poder ativar efeitos de memória e determinar certas significações.
Por agora, devemos explicitar que um texto imagético não é apenas um
aglomerado de imagens ou apenas uma imagem sozinha: um texto imagéti-
co é um conjunto de elementos que somados produzem o efeito ‚imagem‛:
são as cores, as formas, as texturas, os enquadramentos, os ângulos que, no
texto imagético, tomam o lugar que no texto escrito é ocupado pela palavra.
Trata-se de não mais analisar apenas a utilização da palavra no texto imagé-
tico (por meio de um slogan, por exemplo), mas de saber como a própria
composição da imagem pode ativar determinados efeitos de sentido.
Considerando a circulação de textos em nossa sociedade, mesmo que
sejam de materialidades diferentes, que podem pertencer a uma mesma
formação discursiva, e, ainda, que, como vimos anteriormente, os textos
podem ser constituintes, tópicos ou atópicos, tentaremos compreender de
que modo os textos do arquivo sobre o Abuso Sexual Infantil enunciam
(em partes) uma mesma estória, qual seja o conto Chapeuzinho Vermelho.
Buscaremos compreendê-lo enquanto discurso constituinte, para, em se-
página 89

guida, observar de que forma outros textos se utilizaram deste para vali-
dar suas enunciações e de que forma essa relação aparece na imagem.
Andreia Beatriz Pereira

ANÁLISES

A partir do texto fundador de combate à pedofilia, o conto A Chapeuzi-


nho Vermelho, entenderemos como um discurso constituinte também se
inscreve nas estórias infantis, o que justifica a necessidade de cuidados
que deveriam ser tomados nas relações entre crianças e adultos. Nesse
sentido, entende-se que

O caráter constituinte de um discurso confere a seus enunciados um estatu-


to particular. Mais que de ‘texto’, e mesmo de ‘obra’, poderíamos falar aqui
de inscrições, noção que desfaz toda distinção empírica entre oral e gráfico:
inscrever não é forçosamente escrever (Maingueneau, 2006, p. 63).

Em nota de rodapé do livro A psicanálise dos contos de fadas, de Bruno Bette-


lheim, quando Perrault ‚publicou sua coleção de contos de fadas em 1697,
Capinha Vermelha já era uma história antiga, com elementos que remonta-
vam a tempos atrás‛. Ainda segundo o autor, ‚a coleção de contos de fadas
dos Irmãos Grimm, que continha a estória de Chapeuzinho Vermelho, apare-
ceu pela primeira vez em 1812 – mais de cem anos depois da publicação de
Perrault‛. A versão dos Irmãos Grimm é a mais conhecida, no entanto, traba-
lharemos com a versão de Perrault, por ser mais antiga, neste artigo.
Poderíamos destacar ainda que a popularização do conto Chapeuzinho
Vermelho possui características de discursos constituintes, uma vez que

Todo estudo que se pergunta sobre o modo de emergência, circulação e


consumo dos discursos constituintes deve dar conta do modo de funcionamen-
to dos grupos que os produzem e gerem [...] mas, em todos os casos, o posicio-
namento supõe a existência de comunidades discursivas que partilham de
um conjunto de ritos e normas (Maingueneau, 2006, p. 69, grifo nosso).

A comunidade discursiva que encontramos aqui é a mesma comunida-


de que consome os discursos médicos e religiosos acerca da criança. As-
sim, o gesto de escrever um conto que já estava inscrito nas práticas sociais
da contação de estórias e a forma que este conto ganha na versão de Per-
rault são um reflexo direto da sociedade daquela época de suas novas prá-
página 90

ticas: trata-se de uma forma de ensinar o certo e o errado às crianças.


Uma vez que conseguimos compreender a inscrição do conto como
participação de um conjunto de outros enunciados que visavam a instruir
Discurso constituinte na mídia: algumas possibilidades

tanto adultos quanto crianças dos perigos das práticas sexuais entre am-
bos, tentaremos, por meio de uma breve análise de nosso corpus, observar
de que modo esse mesmo conto é utilizado em peças publicitárias dos
anos 2005 a 2008, cuja abordagem ainda é a questão da proibição das prá-
ticas sexuais chamadas de pedofilia.
Em trecho do livro, vemos a seguinte passagem:

– Ponha a torta e o potezinho de manteiga sobre a caixa de pão e venha se


deitar comigo.
Chapeuzinho Vermelho tirou o vestido e foi para a cama, ficando espanta-
da de ver como sua avó estava diferente ao natural.

Ainda do conto de Perrault, destacaremos o encerramento. Trata-se de


um texto chamado MORAL, que explica o conto aos leitores (O conto dos
Irmãos Grimm não possuí este trecho):

Vimos que os jovens,


Principalmente as moças,
Lindas, elegantes e educadas,
Fazem muito mal em escutar
Qualquer tipo de gente,
Assim, não será de estranhar
Que, por isso, o lobo as devore.
Eu digo o lobo porque todos os lobos
Não são do mesmo tipo.
Existe um que é manhoso
Macio, sem fel, sem furor.
Fazendo-se de íntimo, gentil e adulador,
Persegue as jovens moças
Até em suas casas e seus aposentos.
Atenção, porém!
As que não sabem
Que esses lobos melosos
De todos eles são os mais perigosos.

Destacando estes dois momentos do conto, e tendo o cuidado de não os


página 91

perder como ponto de orientação, passamos à análise da imagem de divulga-


ção do filme Menina má.com (Hardy Candy, 2005). Consideramos o primeiro
texto que conseguimos entender como tópico, perante a um texto constituinte.
Andreia Beatriz Pereira

A imagem possuí o fundo cinza, sem margens, delimitando o conteú-


do. No alto, centralizado e escrito em vermelho, encontramos o subtítulo
do filme: ‚Quer teclar comigo?‛. Abaixo, no centro do cartaz, vemos, em
primeiro plano, a foto de uma menina de costas. Ela usa uma jaqueta ver-
melha, cujo capuz cobre o rosto. Saia listrada, calça leg vermelha, chinelos
pretos e bolsa completam a vestimenta da garota.
Ela se encontra parada sobre uma armadilha, redonda, de ferro ou ou-
tro metal resistente, com as bordas dentadas (para que a presa não consiga
escapar). A imagem da armadilha extrapola os limites do quadro, sendo
que não é possível ver toda a armadilha. Quanto à parte que podemos ver,
notamos a armadilha muito maior que a menina e entendemos que a me-
nina não é a presa, mas, sim, a isca.
Sendo que não há obviedade nas relações entre os dois textos (o contrá-
rio do que acontece com os dois outros que serão analisados), entendemos
que os elementos plásticos que compõe esta imagem são o que mais obvi-
amente a inscrevem numa prática intersemiótica com o conto Chapeuzinho
Vermelho. O figurino da personagem possui um chapeuzinho vermelho em
seu agasalho, além disso, no conto, vemos que Chapeuzinho tem um du-
plo papel: ela é a presa do lobo, ao mesmo tempo em que é (uma espécie
de) isca para que o lobo fosse detido pelo lenhador. Na imagem analisada,
vemos exatamente isso: não é possível saber se a menina está caindo em
uma armadilha ou se ela é a armadilha.
Logo, a proposta do conto vê seu papel cumprido também na imagem:
a advertência de que a natureza de relações sexuais não é saudável para
crianças, nem conveniente aos adultos.
Ainda a questão do saudável para a infância se manifesta em mais um
texto, onde a ambiguidade do primeiro desaparece: trata-se de Caperucita
Roja (2007), um cartaz integrante da campanha Con que cuentos estan cresci-
endo nuestros n nõs?. A imagem é composta por camadas (de tecido?), que
formam um quadro. O fundo é vermelho, assim como a renda colocada
nas margens. No alto, centralizado, há um quadro, fazendo às vezes de
letreiro, que apresenta qual é aquele conto. Abaixo deste quadro, há um
quadro menos preso no primeiro por um bordado de paetês roxos.
O fundo da segunda imagem é formado por cartazes onde se vê o rosto
página 92

de uma menina triste. No alto e à esquerda, um letreiro em azul e amarelo


indica qual lugar é aquele (motel). É possível ver também que há um hi-
Discurso constituinte na mídia: algumas possibilidades

drante vermelho, e pequenos tijolos, sugerindo que a personagem esteja


em uma calçada.
Quanto à Chapeuzinho, aparece na figura de uma menina de cabelo pre-
to, preso por presilhas vermelhas, usando blusa curta e saia curta verme-
lhos. Além de meia 7/8 e botas (também vermelhas). É retratada de frente,
escorada em uma parede, com uma perna no muro e um braço atrás do
corpo. No rosto, é possível ver dois olhos grandes, que olham para algo que
está fora do quadro. Há uma lágrima escorrendo de um de seus olhos.
Em relação a esta imagem, sua ligação com o conto é mais próxima,
mais óbvia e mais direta. O título é o grande responsável por isso, entre-
tanto, mesmo sem ele seria possível uma aproximação entre as duas estó-
rias: os elementos que compõe a personagem na imagem são os mesmos
que a descreve em palavras. No entanto, com relação à Menina Má.com há
algumas divergências na estória: não há na campanha colombiana a dupla
advertência que há no cartaz americano, ou seja, na campanha não é pos-
sível compreender a ideia de que o adulto também corre um certo risco
(penal?) ao se aproximar de crianças.
Já na campanha publicitária Contos de Melissa (2008), pertencente ao ca-
tálogo de produtos da marca Melissa, que por sua vez possuí capa e con-
tra-capa douradas, tem o seguinte texto explicativo: ‚Não existe paixão sem
pecado. E é isso que você vai encontrar na nova coleção Contos de Melissa. Uma
mistura de ingênuo com o sexy, do recatado com o provocante, e do bem com o
mal. A nova campanha foi inspirada nas fábulas dos contos de fadas. Histórias
sensuais e ousadas que nenhum pai contaria para a filha dormir‛. Este texto an-
tecede a imagem. Nele já podemos encontrar pistas de que há algo de di-
ferente nos ‚Contos de Melissa‛.
A fotografia analisada é em primeiro plano. O cenário, uma floresta, há
um caminho por onde passa uma moto. Na moto, o lobo veste uma jaque-
ta de material que parece ser couro e usa óculos escuros. Chapeuzinho
Vermelho, sentada de lado, usa laço de cabelo, blusa e capa vermelhas,
meia 7/8 na cor branca. Na cesta de Chapeuzinho encontramos uma garra-
fa de espumante. A posição dos pelos do lobo e da capa da Chapeuzinho
sugere que, no momento da foto, a moto estava em movimento, além dis-
so, encontramos também folhas em suspensão no ar, naquele que seria o
página 93

caminho deixado pela moto; outro elemento como movimento.


Outro texto que possui uma ligação notável com o conto, também inti-
tulado pelo mesmo nome, tem divergências com a estória original. Não há
Andreia Beatriz Pereira

lenhador, e Chapeuzinho Vermelho, já crescida, foge da floresta com o


lobo. A moral de que meninas boazinhas não devem dar ouvidos a estra-
nhos é apagada: Chapeuzinho cresceu e agora pode escolher seus próprios
caminhos. Entretanto, o amadurecimento da personagem não retira o tex-
to de seu pertencimento original, nem elimina dele o caráter educador do
conto, pois se Chapeuzinho teve de crescer para poder fugir com o lobo, é
por que continua sendo escandaloso e proibido que Lobos Maus levem
Pequenas Chapeuzinhos para um lugar desconhecido. A ausência da criança
na imagem é a responsável pela dupla ideia que a pedofilia não é ruim
somente para a criança, mas também o é para o adulto.

CONCLUSÃO

Este breve estudo (amostra de um estudo maior) tornou mais real e


próxima a ideia de que os discursos – usualmente chamamos de tópicos
(mimotópicos e tropismos, nas palavras do autor) – parecem sempre se
fazer valer de uma enunciação que ocupe um lugar constituinte com rela-
ção à enunciação deles mesmos, ainda que essa constituência advenha de
um conto infantil.
Logo, percebemos que o texto midiático é um suporte onde se inscre-
vem diversos textos constituintes e é heterogêneo por excelência.
A ideia de que o discurso atópico seria um discurso isolado dos outros
não pode, no momento, ser plenamente questionada visto que o corpus
selecionado para a análise não pertencia a esferas do discurso desta natu-
reza. Portanto, deixaremos apenas uma interrogação registrada: Não seria
a campanha Contos de Melissa uma forma de heterogeneidade entre aquilo
que é da ordem do atópico, do tópico e do constituinte? Pois, num só tex-
to, podemos ver a constituência do conto, a publicidade de uma sandália e
o erotismo que envolve a utilização de lingeries por mulheres maduras?

REFERÊNCIAS

ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
página 94

BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fada. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

CONTOS de Melissa. Agência: BorghiErh/Lowe. Cliente: Melissa. Direção de Arte: Erh Ray
e Rodrigo Rodrigues. Brasil, 2008.
Discurso constituinte na mídia: algumas possibilidades

DONZELOT, J. A polícia das famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

HARD Candy. Direção: David Slade. Roteiro: Brian Nelson. Estados Unidos: Vulcan Pro-
ductions; Launchpad Productions, 2005. (104 min)

MAINGUENEAU, D. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2006.

MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Tradução de Sírio Possenti. São Paulo: Parábola
Editorial, 2008.

MAINGUENEAU. D. Cenas da enunciação. Organização de Sírio Possenti e Maria Cecilia


Pérez de Souza Silva. São Paulo: Parábola Editorial, 2008a.

MAINGUENEAU, Dominique. Além da paratopia. In: NAVARRO, Pedro. O discurso nos


dominios da linguagem e da história. São Carlos: Claraluz, 2008b. p. 9-20.

GURP, M. V. Which are the stories our children are growing with? Disponível em:
<http://osocio.org/message/which_are_the_stories_our_children_are_growing_with>. A-
cesso em: 04 mai. 2010.

PERRAULT, C. Contos de Perrault. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.

página 95
página 96 Andreia Beatriz Pereira
sete

Fernando Curtti GIBIN1


A originalidade nos
TEXTOS saussurianos:1
uma questão de leitura?

INTRODUÇÃO

C
omo caminho para desenvolver algumas reflexões sobre o
pós-estruturalismo, propõe-se refletir sobre: (1) como o
Curso de Linguística Geral (CLG), publicado em 1916 e or-
ganizado por Charles Bally e Sechehaye, pode ser consi-
derado uma obra cuja autenticidade não se provou, ou seja, como
esse Curso pode ser considerado um apócrifo, uma vez que seria
ilegítimo considerar Ferdinand de Saussure autor original dessa o-
bra; e (2) como é possível estabelecer uma posição ou uma postura
teórica estruturalista de Simon Bouquet frente a esse assunto a partir
de sua leitura em seu recente texto De um pseudo-Saussure aos textos
saussurianos originais (2008).
O Curso de Linguística Geral (CLG), publicado em 1916 e organizado
por Charles Bally e Albert Sechehaye, é uma obra de suma importância
dentro dos estudos linguíticos, j{ que ‚se constituiu numa obra que

1 Mestre pelo PPGL/UFSCar. Fernandópolis - SP. Pesquisador do LEEDIM. fernandocurt-


ti@hotmail.com
Fernando Curtti Gibin

fundou a Linguística e serviu de modelo de cientificidade para as demais


Ciências Humanas‛ (Bouquet, 2008). Segundo Sargentini e Baronas (2007), a
legitimidade científica poderia ser garantida quando se considerava e usava
‚o modelo analítico da linguística a partir do qual é possível descrever as
sistematicidades da língua ou de qualquer outra estrutura, sistema testado e
comprovado nas mais diversas Ciências Humanas *<+‛ (p. 47).
Essa obra, no entanto, geralmente é pouco popularmente lembrada
quando associada aos nomes de seus organizadores (Bally e Sechehaye),
mas é, no entanto, automaticamente reconhecida quando associada ao
nome de Ferdinand de Saussure, considerado, por esses organizadores,
‚autor‛ dela. Segundo Bouquet (2008), Bally e Sechehaye, que reescreve-
ram e reorganizaram integralmente o texto de 1916, apresentaram Saussu-
re como ‘autor’ e se apresentaram como ‘editores’‛. O Curso de Linguística
Geral (1916), desse modo identificado, parecia refletir, de fato, os pensa-
mentos do mestre Saussure.
Simon Bouquet, no texto De um pseudo-Saussure aos textos saussurianos
originais (2008), traz uma discussão que questiona a autenticidade e a ori-
ginalidade do CLG (1916), delineando, a partir da leitura de outros textos,
como Introdução à leitura de Saussure, e de comentários de Godel (Fontes
manuscritas do Curso de Linguística Geral (1957)), de Engler (crítica do Curso
de Linguística Geral (1968 e 1974)), de T. De Mauro (tece importante comen-
tário que vem enriquecer em 1972 as reedições do Curso) e de R. Khyeng
(o qual incorporou os Escritos de Linguística Geral no corpus do seu traba-
lho), alguns pontos principais em que esses textos ‚autênticos‛ (desse
modo chamados por Bouquet) diferenciam-se do Curso.
O projeto que se delineia a partir dessa visão de Bouquet em relativizar, de
algum modo, a import}ncia desses textos ‚autênticos‛ e do CLG (1916), visa à
reconstituição do real ‚pensamento de Saussure, desta vez do suposto ver-
dadeiro porque a partir das fontes manuscritas do autor *...+‛ (Cruz, p. 108)
De acordo com Bouquet (2008), ‚a divergência mais acentuada entre o
Curso e os textos originais concerne ao próprio fundamento da epistemo-
logia saussuriana: o objeto da linguística.‛ Na verdade, a famosa e reco-
nhecida frase final do Curso ‚‘a linguística tem por único e verdadei-
ro objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma’, não corres-
página 98

ponde a nenhum enunciado de Saussure, nem em suas aulas, nem em


seus escritos.‛ (Bouquet, 2008)
A originalidade nos textos saussurianos: uma questão de leitura?

Três testemunhas privilegiadas do ensinamento de Saussure – Antoine


Meillet (linguista), Paul F. Regard (universitário genebrino e linguista) e
Albert Riedlinger (universitário genebrino) opuseram-se a essa obra orga-
nizada por Bally e Sechehaye (1916) justamente pelo fato de que, segundo
eles, ‚*oferecia+ ao público (<) uma redação de idéias de F. Saussure so-
bre a linguística geral‛ (Meillet, 1916), era ‚uma adaptação de um ensino
fugido que se d{ pela oralidade‛ (Meillet, 1916), e ‚experimenta[va] uma
desilusão de não mais encontrar o charme requintado e envolvente das
lições *de Saussure+‛ (Regard, 1919).
A partir dessas diferenças notadas por essas testemunhas e por outros
estudiosos do assunto, como Simon Bouquet, é possível, pois, verificar
que, de fato, alguns pontos do CLG (1916) organizado por Bally e Seche-
haye diferenciavam-se, tanto teórico quanto estilisticamente, das lições
requintadas do mestre Saussure. O CLG (1916), nessa perspectiva, poderia
ser considerado um apócrifo.

A QUESTÃO DO TEXTO E DO AUTOR ORIGINAIS: o insucesso de


uma visão estruturalista logocêntrica

A terceira dessas testemunhas, Albert Riedlinger, em carta, critica


Charles Bally, um dos organizadores do CLG (1916), por não ter os crité-
rios necess{rios para se publicar tal obra: ‚(<) Bally, talentoso para a ob-
servação dos fatos linguísticos, não tinha nem a sensibilidade filosófica,
nem a envergadura de seu mestre *F. de Saussure+.‛ (Bouquet, 2008) Si-
mon Bouquet (2008), também em crítica aos organizadores do CLG (1916),
diz que ‚Meillet é provavelmente o linguista a quem Saussure sente-se
intelectualmente mais próximo – é a ele unicamente que Saussure confia-
ria sua pesquisa sobre anagramas, – (<)‛
A postura desses autores acima apresentada permite fazer uma leitura
de que, para que se publicasse tal obra, era necessário pelo menos que os
organizadores compartilhassem das mesmas qualidades do mestre Saus-
sure, caso contrário, não seriam dignos de produzirem tão importante
texto e, se produzissem, como produziram, nessas condições, poderiam
talvez ser considerados profanos, isto é, alheios às reais e verdadeiras i-
página 99

déias ou conhecimentos saussurianos. Provavelmente, segundo Bouquet


(2008), Meillet seria então o único digno de escrever ou transcrever as pa-
lavras do mestre já que lhe prestava uma afinidade intelectual maior e,
Fernando Curtti Gibin

por isso, apresentaria talvez uma confiabilidade de pensamentos equiva-


lentes. Meillet, assim, seria o único capaz de reproduzir Saussure, de repe-
tir na íntegra as idéias e pensamentos do mestre.
O conto de Jorge Luiz Borges, Pierre Menard, autor de Quijote (1980), ofere-
ce, em poucas p{ginas, ‚um dos coment{rios mais brilhantes e mais comple-
tos que j{ se escreveu sobre os mecanismos da linguagem (<)‛ (Arrojo, 1999,
p. 13). Esse conto traz uma resenha póstuma de Pierre Menard (personagem
fictício criado por Borges), homem de letras francês que viveu na primeira
metade do século XX. Menard compreende o texto como ‚um objeto de con-
tornos perfeitamente determináveis, acreditando, portanto, que seja possível,
(<), reproduzir totalmente, em outra língua, as idéias, o estilo e a naturalida-
de do texto original [de Miguel de Cervantes, autor de Quijote)+‛ (ARROJO,
1999, p. 14). A partir disso, é possível que se indentifique na postura de Mer-
nard em relação ao texto ‚um desejo de se chegar a uma verdade única e ab-
soluta, expressa através de uma linguagem que pudesse neutralizar (<) as
variações de interpretação, as mudanças de sentido trazidas pelo tempo e
pelo contexto.‛ (Arrojo, 1999, p. 17)
Em suma, Menard objetivava reproduzir integralmente o texto de Cer-
vantes, por meio de uma interpretação total e de um controle único, consi-
derando a possibilidade de delimitar e determinar os significados, recupe-
rando a totalidade do texto de Cervantes e o contexto em que fora escrito,
chegando, pois, | ‚total identificação do autor original‛ (Borges, 1981, p. 51)
No entanto, ‚ao tentar identificar-se totalmente com Cervantes e prote-
ger a intenção ou o significado ‘originais’ do texto, Menard inadvertida-
mente ilustra a inviabilidade de seu projeto,‛ (Arrojo, 1999, p. 20-21), exa-
tamente devido ao fato de que o que ele conseguiu, nesse projeto, foi re-
produzir somente as palavras, mas não petrificar e delimitar os seus signi-
ficados ‘originais’. Essas mesmas palavras assumiam um determinado
valor quando relacionadas ao contexto de Cervantes, e um valor diferente
quando relacionadas ao contexto de Pierre Menard. (Arrojo, 1999)
Inevitavelmente, por mais que Menard tentasse controlar, delimitar,
determinar os significados do texto de Cervantes, esses adquiriam outros
valores em seu contexto de produção, revelando, portanto, que não só a
recuperação total do texto original, nessa perspectiva, é impossível, mas
página 100

também que, na verdade, a tentativa de Menard ilustra de fato mais uma


leitura, mais uma interpretação do texto de Cervantes. Até mesmo quando
Menard transforma-se em autor do Quixote, seus leitores também interpre-
A originalidade nos textos saussurianos: uma questão de leitura?

tarão essa obra sob diferentes pontos de vista e não conseguirão recuperar
as ‚intenções‛ do autor original.
Bouquet (2008), ao escolher apenas Meillet para reproduzir os pensa-
mentos saussurianos, já que era o mais confiável e o mais intelectualmente
próximo do mestre, parece também compartilhar dessa perspectiva logo-
cêntrica de que seria possível produzir integralmente os pensamentos e
idéias de um autor original (como Saussure, por exemplo) por meio de um
autor que pudesse talvez, por identidade, transformar-se no autor original
e controlar fielmente, independentemente do contexto, os significados
presentes nos textos ‚originais‛, tal como nas anotações das testemunhas
do curso de linguística geral ministrado por Saussure, ou nos próprios
manuscritos do mestre.
Meillet, assim, por assemelhar-se ao mestre (ou de talvez trazer uma
muito próxima identificação com Saussure) seria o único capaz, para Bou-
quet, de produzir uma obra que fosse fiel ao ponto de abarcar as reais e
verdadeiras intenções de Ferdinand de Saussure, ao contrário de Bally,
que, segundo Riedlinger, ‚não tinha nem a sensibilidade filosófica, nem a
envergadura de seu mestre *F. de Saussure+.‛ (Bouquet, 2008)
A leitura de Bouquet (2008) e a escolha de um, dentre vários autores,
para a (re)produção de uma obra, parecem trazer justamente essa visão
tradicional logocêntrica, que pressupõe uma determinada teoria da lin-
guagem que possibilita determinar os significados fora do contexto em
que é lida ou ouvida. Uma das primeiras estratégias de Menard para a
reescrever Cervantes é justamente ‚transformar-se em Cervantes‛ (Arrojo,
1999, p. 20). A visão trazida por Bouquet (2008) para Meillet parece tam-
bém adotar, logo de princípio, a mesma estratégia: o único que poderia
reescrever Saussure seria aquele que mais se assemelhasse ao mestre e
que, por consequência, poderia talvez se transformar nele.2
As aulas saussurianas, grafadas nas anotações de seus alunos, e os seus
manuscritos, não são, no entanto, um ‚recept{culo de conteúdos estáveis e
mantidos sob controle, que podem ser repetidos na íntegra‛ (Arrojo, 1999,
p. 38). Não é possível que se controle e que se repita integralmente todo o
acervo de pensamentos e idéias ‚reais‛ e ‚verdadeiras‛ desses textos
saussurianos: ‚(<) aquilo que consideramos verdadeiro ser{ irremedia-
página 101

2Segundo Cruz (2009), entretanto, ‚nem Charles Bally, nem Albert Sechehaye, nem Antoine
Meillet assistiram aos cursos de Saussure sobre a linguística geral *<+‛ (p. 113, grifos meus).
Fernando Curtti Gibin

velmente determinado por todos os fatores que constituem nossa história


pessoal, social, coletiva.‛ (ARROJO, 1999, p. 38)
O Quixote de Menard, ainda que verbalmente idêntico ao de Cervantes,
revela, mais do que o mundo de Cervantes, a própria história pessoal,
social e coletiva de Menard que o constitue enquanto sujeito. Da mesma
forma, a versão de Bally e Sechehaye dos pensamentos saussurianos, ain-
da que, como identificado no texto de Bouquet (2008), difira em muitos
pontos dos manuscritos de Saussure, revelará também o contexto sócio-
histórico que constitue e que identifica esses organizadores.
Isso é tão pertinente que o próprio Bouquet (2008) afirma que ‚Bally e
Sechehaye alteraram uma aula oral do terceiro curso para deixá-la de a-
cordo com a tese *deles+‛. Isto é, inevitavelmente, a obra organizada por
eles revelaria o produto da história deles: ‚os livros que leram, os autores
que aprenderam a admirar, a visão de mundo que essas leituras e esses
autores [como o Saussure, por exemplo] ajudaram a construir‛ (Arrojo,
1999, p. 41), e, por que não, a tese que defendiam, adicionaria.

A QUESTÃO DA LEITURA FRENTE A UMA POSIÇÃO ESTRUTU-


RALISTA E LOGOCÊNTRICA

Para Arrojo (1999, p. 41), ‚mesmo que tivermos como único objetivo o
resgate das intenções originais de um determinado autor, o que somente
podemos atingir em nossa leitura ou tradução é expressar nossa visão desse
autor e de suas intenções.‛ O fato de Bally e Sechehaye terem organizado
o CLG (1916) concedendo a autoria à Ferdinand de Saussure parece mos-
trar, talvez, que tinham por objetivo resgatar as intenções originais de
Saussure. Isso não só serviu de arena para muitas discussões, como faz
Simon Bouquet (2008) em seu texto, mas também permitiu que algumas
posturas revelassem uma visão tradicional logocêntrica e estruturalista
que já parecia esquecida.
Nessa visão, o texto ‚original‛ – como empregado por Bouquet (2008)
para se referir aos manuscritos de Saussure – era apresentado como um
‚recept{culo de idéias e/ou características distinguíveis e objetivamente
determin{veis‛ (Arrojo, 1999, p. 29). Do mesmo modo que é impossível
página 102

para Menard tornar-se Cervantes, e do mesmo modo que é impossível


para Meillet, talvez, tornar-se Saussure, ‚é impossível resgatar integral-
mente as intenções e o universo do autor‛ (Arrojo, 1999, p. 40): como de-
A originalidade nos textos saussurianos: uma questão de leitura?

monstrado anteriormente por meio do insucesso ou fracasso de Menard, o


texto (e os significados que ali se abarcam) de Cervantes (ou de quaisquer
outros autores, como os manuscritos de Saussure, por exemplo) não é
constituído de conteúdos estáveis que são mantidos sob controle, inde-
pendemente do contexto, e que podem ser repetidos, transcritos. De acor-
do com Sargentini e Baronas (2008, p. 48-49), ‚O laço que liga as significa-
ções de um texto às condições sócio-históricas desse texto não é secundá-
rio, mas constitutivo das próprias significações.‛
Tanto as aulas de Saussure (documentadas por meio das anotações de
suas testemunhas) quanto os escritos (os manuscritos) são passíveis de
leituras e de interpretações, as quais estão atreladas as suas condições só-
cio-históricas. Aquilo que fora significado naquele instante das aulas e
aquilo que fora escrito por Saussure em um determinado momento pode
simplesmente ter sido resignificado em um outro contexto. O texto, escrito
ou falado, bem como a língua, não é um código, pronto a ser extraído. ‚O
texto não pode ser ponto de partida, como se para ser ponto de partida
devesse ser o único ponto do trajeto.‛ (Possenti, 1990, p. 559), como era
possível assistir, durante uma avassaladora moda de estruturalismo, a
uma perspectiva que teimava em extrair o sentido só do texto, sem consi-
derar outros fatores a ele peculiares.
O texto qualifica-se impotente ‚para ser {rbitro da pendenga pelo sen-
tido, e isso devido ao texto tanto ser coberto de sentidos indiretos, quanto
demandar a consideração de outros elementos além dos verbais,‛ (Possen-
ti, 1990) não sendo suficiente, portanto, apenas o agenciamento puro e
simples do conhecimento lingüístico do texto:
‚Dos v{rios ingredientes a ser considerados, alguns estão sempre pre-
sentes, entre eles os que por simplicidade chamei de autor, de leitor, de
contexto, enfim, de condições de produção, o que, se aceitarmos o clássico
ponto de vista da Análise do Discurso francesa, transforma um enunciado
em discurso.‛ (Possenti, 1991, p. 717)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A leitura de Bouquet (2008) de todos os textos ‚originais‛ saussurianos,


página 103

que se revela em seu texto recentemente escrito De um pseudo-Saussure aos


textos saussurianos originais, também será, como a leitura de Bally e Sechehaye
das aulas do mestre h{ muito tempo, fiel não ao texto ‚original‛, ‚mas |quilo
Fernando Curtti Gibin

que considera[m] ser o texto original, àquilo que considera[m] constituí-lo, ou


seja, | *<+ interpretação do texto de partida, que ser{ (<), sempre produto
daquilo que somos, sentimos e pensamos.‛ (Arrojo, 1999, p. 44)
As aulas e os escritos de Saussure não permitem, como qualquer ou-
tro texto, uma única e melhor leitura, mas, pelo contrário, outras leituras e
interpretações. H{ textos mais abertos ‚(<) sobre os quais o leitor deve
trabalhar para escolher entre as diversas interpretações possíveis (ou ape-
nas para descobri-las e ficar com todas), mas há outros que lhe impõe uma
leitura única‛ (POSSENTI, 1998, p. 52), que dão uma possibilidade de con-
trole, isto é, a interpretação é comandada por regularidades linguísticas
gerais, como o caso dos textos humorísticos.
Os textos de Saussure, dado o número de discussões e interpretações
que já serviu, parece não se identificar com os textos mais fechados, os
quais impõem uma leitura, mas, pelo contrário, com aqueles mais abertos
que permitem várias leituras e interpretações. Existiu uma leitura (a de
Bally e Sechehaye) que editou os alicerces do estruturalismo e que, embo-
ra fosse polêmica quanto à questão da autoria, ironicamente, não manteve
seus significados intactos e congelados, mas, pelo contrário, concedeu que
fossem resignificados em outros momentos por outros autores, como faz
Boquet e outros. Existiu também uma outra leitura (a de Simon Bouquet)
que, embora parecesse já distante dos postulados estruturalistas, em uma
crítica à própria obra que fora o sustentáculo do estruturalismo, revelou-
se inevitavelmente estruturalista, indicando, pois, autores, ou um autor,
que pudessem ser os mais fiéis e justos quanto àquilo que realmente um
autor ‚original‛ tinha dito e pensado, como se fosse possível lapidificar
todos e quaisquer sentidos, independentemente dos contextos.
A decisão de Bally e Sechehaye de elaborarem tão importante obra foi
‚audaciosa‛, como Meillet (1916) diz assumindo uma posição crítica, por
terem ousado conceder a autoria a uma leitura que talvez Ferdinand de
Saussure não fizesse. Segundo Cruz (2009), no entanto, ‚as escolhas dos
editores [Bally e Sechehaye] não foram tão infelizes como se costuma pen-
sar em geral‛ e ‚o Curso não é um texto ‘autêntico’, ele não é tampouco
um texto inteiramente ‘apócrifo’.‛ (p. 109)
O CLG (1016) não é, pois, uma ‚vulgata‛, mas, no entanto, pode também
página 104

ser visto como apenas mais uma leitura, leitura essa que revela inevitavel-
mente o contexto, a visão de seus organizações ou ‚autores‛, a posição sócio-
histórico-ideológica que assumiam. De acordo com Cruz (2009), ‚Engler, que
A originalidade nos textos saussurianos: uma questão de leitura?

edita e estabelece juntamente com Bouquet os Écrits de linguistique générale,‛


tem curiosamente, em relação à crítica de Bouquet ao CLG (1916), uma posi-
ção ou uma opinição radicalmente contrária à de Bouquet:

‚A posição de Engler, em conson}ncia com a orientação histórica, parece indi-


car, ao contrário, a importância de um estudo em torno da recepção das ideias
de Saussure ao longo do século XX com o objetivo de compreender os interes-
ses implicados nas diversas leituras, a serem situadas geográfica e temporal-
mente, começando pela própria leitura dos editores.‛ (Cruz, 2009, p. 121)

Ainda segundo Cruz (2009), a alteração por parte dos editores daquilo se
diferencia dos manuscritos saussurianos provavelmente ‚indica mais uma
preocupação em fazer evidenciar aquilo que o pensamento de Saussure trazia
de novo do que uma tentativa de deformá-lo ou mesmo falseá-lo.‛ (p. 123)
O texto de Simon Bouquet (2008) não se faz audaz ao criticar os orga-
nizadores da mais importante obra ‚que fundou a Linguística‛; esse texto,
da mesma forma, apenas revela mais uma leitura ou interpretação dentre
as inúmeras outras leituras que estão por vir e que, nesse artigo, também
se tentou fazer.

REFERÊNCIAS

ARROJO, R. A questão da fidelidade. In.: ___. Oficina de tradução: a teoria na prática. São
Paulo: Ática, 1999.

ARROJO, R. A questão do texto original, In.: ___. Oficina de tradução: a teoria na prática. São
Paulo: Ática, 1999.

BORGES, J. L. Pierre Menard, autor del Quijote. In: ___. Ficciones, Madri, Aliança Editorial, 1981.

BOUQUET, S. De um pseudo-Saussure aos manuscritos saussurianos originais. Trad. Roberto


Leiser Baronas & Vanice Maria de Oliveira Sargentini, 2008 (mímeo).

CRUZ, M. A. A filologia saussuriana: debates contemporâneos. Alfa, São Paulo, 53 (1): 107-126, 2009.

POSSENTI, S. A leitura errada existe. In: ESTUDOS LINGUÍSTICOS DE SEMINÁRIOS DO


GEL, XIX. Bauru, Unesp, 1990.

POSSENTI, S. Ainda a leitura errada. In: ESTUDOS LINGUÍSTICOS DE SEMINÁRIOS DO


página 105

GEL, XX. Franca, Unifran, 1991.

SARGENTINI, V. & BARONAS, R. O Curso de Lingüística Geral: apontamentos de uma


leitura da Análise do Discurso. Revista do GEL, V. 4, nº 2, 2007.
página 106 Fernando Curtti Gibin
oito

Samuel PONSONI1
A CENOGRAFIA
DISCURSIVA em «O
HOMEM que PERDEU
as letras do LIVRO»1

INTRODUÇÃO

H
á inúmeras interpretações sobre quais seriam as condi-
ções de possibilidade para um texto literário irromper e
sustentar seus sentidos numa dada conjuntura históri-
ca. Assim sendo, existem explicações teórico-
metodológicas circunscritas pelas crítica e teoria literárias, pela psi-
canálise, pela linguística, pela sociologia ou, então, pelas leituras que
convergem parte dessas teorias em um único caminho. Tais indaga-
ções podem questionar, de um lado, quais as formas que as narrati-
vas são construídas por um todo, podem também partir de marcas
ancoradas no trajeto das personagens ou, de outro lado, podem jun-
tar o que o nascedouro dos textos faz aflorar nas personagens, bem

1 Mestre pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pelo PPGL/UFSCar. Bolsista FAPESP. Ribeirão Preto
- SP. Pesquisador do LEEDIM. sponsoni@yahoo.com
Samuel Ponsoni

como nos receptores de determinada obra. Obviamente, essas questões


não se diluem facilmente, pois há múltiplas respostas. Contudo, nosso
artigo interessa-se em analisar a possibilidade de irrupção em um texto
liter{rio, ‚O homem que perdeu as letras do livro‛, do escritor brasileiro
Ignácio de Loyola Brandão, ao refletir a respeito de seu funcionamento
enquanto um dispositivo enunciativo de comunicação verbal. Com isso,
levanta-se a questão de quais são os aspectos pertinentes, em um estudo
discursivo, para análise e interpretação dos sentidos da narrativa demons-
trada como um conto literário, num campo marcadamente literário, e o
que essa indagação pode nos dizer sobre gênero, adesão de interlocutores
e caracterização da cenografia. Por meio desse questionamento, utilizare-
mos os pressupostos teóricos da Análise do Discurso (AD), principalmen-
te os de orientação francesa e os empreendidos por Maingueneau (2006) a
respeito do objeto literário, com a finalidade de especular possibilidades
de análise que, em alguma medida, apreendam marcas discursivas sobre a
construção cenográfica e seus efeitos de sentidos circulantes no engen-
dramento do conto escolhido como material de análise do artigo, bem
como tentar entender como essas marcas na narrativa literária ajudam a
sustentar ou oscilar o quadro genérico por meio desses aspectos heterogê-
neos. Para isso, buscamos marcas linguísticas do discurso indireto livre,
nas quais uma espécie de narrador-testemunha se sobressaia às persona-
gens e desenvolva enunciados ambivalentes – que cerceiam ou delegam
ações às personagens, marcando sua presença ou não na cenografia do
conto em questão –, deixando, assim, o espaço locutório tanto para sujei-
tos-personagens quanto para destinatários da obra, mobilizando uma ma-
neira de adesão. Nesses casos, a entrada linguística no plano enunciativo
se dará por meio do sujeito elíptico nas orações com tempo verbal em pre-
térito imperfeito. Após essa frincha teórica, tentaremos responder às ques-
tões aventadas.

UM POUCO DO MATERIAL DE ANÁLISE

Argumentando com maior especificidade sobre o material de análise,


temos o conto literário em questão, que se trata de um texto do autor bra-
página 108

sileiro Ign{cio de Loyola Brandão chamado ‚O homem que perdeu as


letras do livro‛, publicado no livro Cadeiras proibidas, uma coletânea de
contos de 1976. Sob uma perspectiva estritamente literária, tanto o conto
A cenografia discursiva de «O homem que perdeu as letras do livro»

quanto o livro todo inserem-se no gênero literário chamado de realismo


mágico, ou maravilhoso, que seria uma tipologia de narrativas do realis-
mo fantástico moderno. Esse tipo de estrutura literária circulou com certa
normalidade durante a formação de uma cena contista brasileira dos anos
1970. O referido gênero foi investido ainda pela pena de vários escritores2,
o que lhes propiciou colocarem discursos a circular tratando de absurdos
cotidianos dissimulados em elementos fantásticos, surreais, insólitos e
estranhos, equacionados por uma racionalização estrutural-literária. De
certo, pode-se colocar na conta dessa estrutura liter{ria certa ‚efic{cia‛ na
circulação de discursos literários opostos ao período deveras repressivo. A
publicação de Cadeiras proibidas, portanto, coincide com período do Brasil
ditatorial, entre 1964-1985. Essa ascensão ao poder governamental por
parte dos militares, um dos grupos forjadores do golpe totalitário, trouxe
diversas dissoluções de dispositivos legais e de direitos constitucionais
por meio de atos institucionais, que, no desenrolar dos anos, se consolida-
ram como alicerces de manutenção da ordem vigente.

PRIMEIRAS TRATATIVAS PARA O OBJETO LITERÁRIO

Entre os diversos processos de análise de sentido e marcas de criativi-


dade em manifestações humanas e sociais, arriscaríamos dizer que o dis-
curso da literatura ocupa um lugar bastante visitado e revisitado para tais
inquietações. Elementos tais como a recepção, a interação au-
tor/obra/leitor, a estrutura genérica e a situação de circulação também fa-
zem parte dos questionamentos. Portanto, remontar uma obra literária ao
que lhe tornou possível em um dado espaço-tempo e o ‚como‛ para tais
condições de possibilidade não é algo novo.
Em um percurso histórico, depois do XIX, época em que a literatura se
consolidou definitivamente como objeto de discussão formal, muitos tra-
balhos de pesquisa surgiram com a expectativa de interpretar legitima-
mente as obras literárias. Todavia, nesse momento de entendimento do
discurso literário, quando se tratava de aproximar obra e contexto, as ex-
plicações literárias elegiam como autorizadas a um dizer legítimo aborda-
gens vindas da história literária. Buscava-se explicar tempo e sociedade
página 109

2Escritores, como, por exemplo, Victor Giudice, José J. Veiga, Lygia Fagundes Telles e o
próprio Ignácio de Loyola Brandão, nos anos 1960 e 1970, que figuraram entre os princi-
pais nomes, utilizam esse tipo de narrativa.
Samuel Ponsoni

por meio das obras; estas seriam, por seu turno, representantes ou influ-
ências de determinado período, em que certos gêneros, temas e autores
foram expoentes – e outras explicações vindas da orientação estilística,
que buscava explicar a obra por si, num fechamento intrínseco ao processo
de composição. Essas teorias não negavam o contexto em que determina-
das obras surgiam, mas protelavam o estudo de seu entorno criativo, co-
mo se obra e situações histórica e social não fossem faces da mesma folha.
Entre os anos 1960 e 1970, no entanto, caminhando juntamente com o
avante dos estudos estruturalistas, algumas pesquisas passaram a pensar
o discurso literário e o todo de seu campo de pertencimento (autores, es-
colas, gêneros literários, obras, meios de circulação, contexto histórico etc.)
como partes inseparáveis. Para esse período, poderíamos citar as diversas
correntes das teorias enunciativas e pragmáticas: a semiótica, os estudos
bakhtinianos acerca da literatura, entre outros. De outro lado, no mesmo
período, a AD começava a constituir suas bases epistemológicas, tratando
também de estudos textuais, abordados, obviamente, sob a especificidade
discursiva a que pretendia essa disciplina nascente. Porém, é a partir dos
anos 1990 que o estudo do discurso literário passa a ser visto dentro da
AD como um discurso a ser analisável em todos os seus aspectos:

Desde os anos 1990, o desenvolvimento ‚de uma an{lise do discurso literá-


rio‛, que se assumiu como tal, não se deu sem suscitar dificuldades episte-
mológicas e institucionais. De um lado, é preciso se interrogar sobre quais
de seus pressupostos, conceitos e métodos alteram a nossa apreensão da li-
teratura; [...] Por outro lado, é necessário também interrogar-se em que me-
dida a emergência de uma análise do discurso literário traz repercussões
sobre a própria teoria da análise do discurso. (Maingueneau, 2010)3.

ALGUMAS PALAVRAS ANTES

Como podemos perceber pelas argumentações e pela citação que encerra


o tópico anterior, há problemas ainda a serem diluídos e digeridos tanto por
parte das teorias que lidam há algum tempo com literatura como pela pró-
pria análise do discurso, que, deslocando o objeto literário do epicentro po-
página 110

3 Trecho retirado do texto ‚An{lise do discurso e literatura: problemas epistemológicos e


institucionais‛, que está publicado na revista Linguasagem número 13. Disponível em:
<http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao13/art_01.php>. Acesso em 11 set. 2010.
A cenografia discursiva de «O homem que perdeu as letras do livro»

lítico-ideológico, passa, segundo Maingueneau (2010), a rever algumas de


suas colunas teóricas, sobretudo ligadas aos corpora textuais. E para que esse
deslocamento se configure em alguma medida, a nossa hipótese é a de que
se faz necessário pensar o texto literário como um dispositivo enunciativo
de comunicação e interação verbais. Assim pensando, por seu turno, é ne-
cessário apreender desse dispositivo enunciativo as condições de possibili-
dade em que ele possa eventualmente ter aparecido. Esta irrupção como
forma de gestão de um contexto sem dúvida é uma das instâncias de sua
aparição e reflete-se no que, de um lado, para os estudos pragmáticos é
chamado de situação de comunicação ou contexto ou circunstância de co-
municação, e, de outro lado, em condições de produção para a análise do
discurso. No entanto, as chamadas condições de produção tomam uma a-
bordagem que, para Maingueneau, recai no conceito situação de enuncia-
ção, tornando-se mais especificamente apreendido por uma cena enunciati-
va, pois, justamente, tenta-se avaliar que não há um dentro e um fora para
os textos, e sim que o plano enunciativo, a saber, cena enunciativa, cena
genérica e cenografia, encontra-se imbricado ao próprio discurso.
Para o Dicionário de análise do discurso (2008), cena enunciativa trata-se de
um conceito comutável frequentemente, em AD, por situação de comunica-
ção, que, por seu turno, pode misturar-se a uma ideia formulada em Pêcheux
em 1969 e em 1975 (Gadet; Hak, 1990)4 como condições de produção. Este
conceito figura e se articula para substituir questões atinadas entre a circuns-
tância em que um discurso é produzido e a produção de efeitos de sentidos,
derivados da condição que lhe são pertinentes, ao se levar em conta, princi-
palmente, as formações imaginárias ideológicas e a relação entre sujeitos e
sua posição histórica ocupada. Além disso, essa mesma noção de condições
de produção veio a surgir na AD para pensar e romper a mobilização das
noções de contexto e sujeito de correntes linguísticas de filiação pragmaticista
e teorias da enunciação5. Mais especificamente, o que o conceito de condições
de produção da análise do discurso vem a propor é a mudança de certas rela-

4 Reformulada ainda no trabalho de Jean-Jacques Courtine, intitulado na versão brasileira


Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos,
SP: EDUFSCar, 2009.
página 111

5 Pensamos aqui nas teorias de ato de linguagem empreendidas principalmente pelos tra-

balhos de Austin e Searle. Todavia, também está na crítica de Pêcheux, mesmo que indire-
tamente, em Análise automática do discurso, de 1969, quando de sua análise e reformula-
ção do quadro de funções da linguagem de Roman Jakobson.
Samuel Ponsoni

ções mais pragmáticas e intencionais da enunciação para ligá-las a lugares


enunciativos institucionais, imbricados, por sua vez, a lugares construídos
histórica e ideologicamente. Isso muda a relação que se tem com a circuns-
tância ou com o contexto em que discursos são produzidos. Esse movimento
que a AD realiza, além de tentar analisar sob outra abordagem as questões de
contexto, circunstância, lugar enunciativo, trata de marcar o território episte-
mológico e institucional de onde ela deseja partir, rompendo, assim, com as
abordagens pragmáticas em muitos aspectos. Assinalaremos duas rupturas,
sendo, em primeiro lugar, a ruptura do entendimento de sujeito em relação
às correntes pragmáticas; em segundo lugar, a ruptura da noção de contexto
substituída pela argumentação do conceito de condições de produção. Na
AD, ao contrário de algumas conceituações pragmáticas, o que se leva em
consideração na interação comunicacional não são somente elementos da
ordem da língua, mas também os elementos que escapam a essa ordem da
língua: os componentes ideológicos e históricos, estes que são construídos nas
enunciações a partir da tomada de posição – gerando, então, um posiciona-
mento – a que os sujeitos se condicionam. Isto é, a garantia que sustenta o
sentido da posição do enunciador de determinado discurso não está no con-
texto imediato, em que cada sujeito sabe e domina toda a produção enuncia-
tiva do que diz, nos ditames da regência de um contrato, materializados em
elementos linguísticos e em elementos implícitos dos enunciados, mas que
esses elementos são postos na enunciação e sustentados por outra ordem,
qual seja, a ideológica, na qual sujeitos se inscrevem ao dizer o que dizem,
como dizem e o que atualizam do que já foi dito antes e daquele mesma posi-
ção/lugar. Para representar esse sistema de imagens que vão sendo construí-
das, conforme as posições ocupadas pelos sujeitos, Pêcheux (1990) faz uma
releitura, sob o prisma de condições de produção discurso, do quadro de
comunicação da linguagem desenvolvido por Roman Jakobson. Diferente-
mente de Jakobson, para Pêcheux, as pessoas que participam de uma intera-
ção comunicativa ou discursiva, ao enunciarem, devem dar conta de pergun-
tas, tais como ‚Quem sou para lhe falar assim?‛ ou ‚Quem é ele para que eu
lhe fale assim‛, de tal sorte a desnudar, por sua vez, o ponto de vista de um
sujeito do discurso sobre o outro. Na verdade, isso é parte da hipótese de
Pêcheux, posto que:
página 112

[...] esses lugares estão representados nos processos discursivos em que são
colocados em jogo [...] o que funciona nos processos discursivos é uma sé-
A cenografia discursiva de «O homem que perdeu as letras do livro»

rie de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem


cada uma si e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do
lugar do outro. Se assim ocorre, existem nos mecanismos de qualquer for-
mação social regras de projeção, que estabelecem as relações entre situações
(objetivamente definíveis) e as posições (representações dessas situações)
(Pêcheux, 1990, p. 82, grifos do autor).

Para a AD, os sentidos que derivam das enunciações inscrevem-se em


condições de produção, levadas em consideração num jogo de imagens
entre interlocutores, sendo estas imagens, portanto, ligadas a formações
imaginárias criadas ao longo da história e construídas pela ideologia.

A CENA ENUNCIATIVA: questões de fundamento e análise

Ao pensar em um estudo do objeto literário por meio do qual não se es-


teja totalmente preso às representações sociais, para as quais componentes
ideológicos e políticos são de suma importância, tampouco pairar totalmen-
te sobre o nível estilístico ou de categorização dos textos, Maingueneau
(2001b, 2006) propõe fazer uma análise perscrutando o conceito de cena
enunciativa, que será abordado mais acuradamente nesta parte do texto, a
fim de que possamos também manter nossas hipóteses. Nessa toada, o texto
literário tem de ser observado como um dispositivo enunciativo, e o seu
discurso encenado e regido também por coerções que são do próprio fun-
cionamento desse dispositivo. Por sua vez, tal dispositivo será alçado a cer-
tas condições de possibilidade em um tempo, em um lugar, coberto pela
manta institucional, caracterizando-lhe, assim, uma situação de enunciação
advinda de uma gestão de contexto feita por um ‚como‛ do próprio texto6.
Dito de outro modo, o que Maingueneau propõe como cena enunciativa é
uma maneira de se analisar quais são os efeitos de sentidos, tanto internos
quanto externos, de discursos enunciados por um dispositivo enunciativo, a
partir de certa maneira de se mostrar, de se dizer, uma vez que, ao engren-
drar-se e desenvolver-se dessa maneira, a cena enunciativa ajuda a compor
o que se pretende construir semanticamente. Os discursos que se inscrevem

6 Os textos – aqui evocamos um sentido amplo de texto, ou seja, tomando manifestações


página 113

verbais e não verbais, sob diversos dispositivos enunciativos e seus respectivos discursos:
musical, pictórico, entre outros – não são apenas um amontoado de signos parados numa
sequência que reconhecemos como um texto-padrão, pois ‚um texto é na verdade o rastro
de um discurso em que a fala é encenada‛ (Maingueneau, 2006, p.250).
Samuel Ponsoni

nos textos falam a um grupo de coenunciadores pretendidos intencional-


mente ou não. Com isso, o discurso é construído num enlace paradoxal por
natureza, pois, à medida que o plano enunciativo se desenvolve, é também
desenvolvido pela maneira como está sendo enunciado e para quem está
sendo enunciado e recebido/interpretado.
Qual seria, então, a cena enunciativa de um texto liter{rio, tal como ‚O
homem que perdeu as letras do livro‛? Para responder a essa questão, o
que de sólido temos é que o leitor deste conto em questão envolve-se e
está envolvido, sobretudo, pelo desenvolvimento da cenografia ao conto
atrelada. Isso porque os coenunciadores são interpelados ao mesmo tem-
po como consumidores de uma cena englobante, ou um tipo de discurso,
literário no caso, uma cena genérica, sendo, portanto, leitores que se iden-
tificam com o gênero de conto fantástico-mágico-estranho empreendido
pela narrativa, mas enlaçados pelo dizível discursivo e pela forma como
paulatinamente é construída a trama narrativa, com suas personagens e
situações, ou seja, sob certo engendramento ao discorrer da cenografia
pelo texto. É neste conceito, cenografia, que se concentra o ponto central
de adesão dos sujeitos a um dado discurso empreendido por um disposi-
tivo enunciativo e seus planos enunciativo e discursivo. Em outras pala-
vras, o que integra essa interpelação e faz aderir à história de homens co-
muns, que se inscrevem nesse discurso de cotidianos mais ou menos esta-
bilizados, vividos em conformados lares, conformidade esta duradoura
até o momento em que há a mínima resistência ou descoberta de algo di-
ferente à ordem vigente, diluída nesses fatos diversos e passar a estar nele
de forma irreal, é a cenografia do conto analisado. Todavia, para essa in-
corporação ser feita na gestão contextual de um dado texto, existe um
‚como‛, ou seja, uma mecânica de operações linguístico-discursivas e não
outras. Ainda do conceito de cena enunciativa, pelas palavras de Main-
gueneau, a primeira subdefinição em que o conceito está balizado é cena
englobante, que se trata daquilo que ‚corresponde ao que se costuma en-
tender por ‘tipo de discurso’. Quando se recebe um folheto na rua, deve-se
ser capaz de determinar se é membro do discurso religioso, político, pu-
blicit{rio etc. em nome de que ele interpela aquele que o recebe.‛ (2006, p.
251). Numa enunciação literária, cria-se a possibilidade do posicionamen-
página 114

to do autor em um campo, dando um lugar a pessoas e lugares fictícios,


uso de personagens, percorrendo inúmeras situações e mobilizando diver-
sas vozes. Isso tudo está em junção com uma cena englobante literária,
A cenografia discursiva de «O homem que perdeu as letras do livro»

que, no caso de ‚O homem que perdeu as letras do livro”, bem como em


Cadeiras proibidas, inscrevia-se a uma cena em que o discurso literário tinha
nos contos um momento forte para bradar suas vozes sócio-textuais. Mais
especificamente, é possível falar de cena englobante atinada ao discurso
literário a partir da criação de um campo literário, que se desenvolveu
como tal a partir do XIX, em que há, até os dias atuais, uma instituição
validadora do estatuto de quais autores são consagrados, quais textos são
sagrados, quais são profanos, onde circulam e são expostos os textos de
maior prestígio, quem os lê etc. Não há nada de trivial em dizer que nem
sempre se teve uma cena literária, política, publicitária etc.
No entanto, a cena englobante por si se mostra não suficiente, pois cada
tipo de discurso vai se transmitir por ritos sócio-linguageiros específicos,
ou seja, vai investir-se em gêneros do discurso que definem as cenas gené-
ricas, que serão ‚contadas‛ por certo tipo de engendramento cenográfico.
Assim sendo, a associação entre cena englobante e cena genérica precisa
levar consigo essa outra ordem de consideração, qual seja, a cenografia.
Esta noção é, na verdade, aquilo que dentre as várias maneiras de se e-
nunciar qualquer discurso, sob qualquer gênero e suporte que o ampare,
torna-se a ‚verdadeira‛ forma de a enunciação se solidificar, pois é tam-
bém a maneira própria de ‚como‛ a cenografia se desenvolve que ir{ lhe
sustentar a estruturação discursiva mostrada, seja no nível enunciativo,
seja no nível discursivo, divergindo ou convergindo tais planos. O texto
em análise no artigo sustenta dizeres relacionados ao cotidiano opressor,
entediante, comum, de um homem e sua mulher diante de uma situação
que os cerca. As personagens aparecem não nomeadas, descritas restriti-
vamente nas orações do conto e tendo suas vozes cerceadas ou mostradas
ao escalonamento da narração, vivendo, portanto, em um tempo e em um
espaço indefinidos, um ‚país‛ opaco por natureza, com seu dissabor coti-
diano. Porém, os sujeitos-destinatários desse conto são incorporados a
uma cenográfica que deixa difusas certezas sobre a cena genérica, bem
como qual é a veracidade da situação protagonizada no conto. Disto tudo
resulta uma das características peculiares da cenografia do conto, uma vez
que ela tenta alçar a um segundo plano a cena englobante do posiciona-
mento literário e a cena genérica de conto para dissolver a ideia de ficcio-
página 115

nalidade, diluí-la em palavras insólitas, em trajetos surreais e em persona-


gens forjadas nesse molde opaco, insano no mais das vezes. Trama-se,
portanto, uma certa cenografia que se utiliza de um discurso indireto li-
Samuel Ponsoni

vre, empreendido por um narrador-testemunha que impõe a ordem do


dizível ou do não dizível às personagens, o momento da embreagem e-
nunciativa para personagens aparecerem ou não, colocando a progressão
temática da narrativa, para nominalizar as personagens e situações, ape-
nas no tema-título do conto. Esses elementos são resultantes da maneira
própria e única que a cenografia está engendrada, possibilitando à narra-
tiva do conto lotar-se não tão firmemente ao gênero realista fantástico-
mágico; ela, ao modo como está enquadrada, faz oscilar, ou torna de certa
maneira difusa, a noção de quadro genérico estabilizado, dando, em certos
momentos, a força para o leitor sentir-se diante de uma crônica de jornal,
sobre um fato diverso qualquer. A cenografia trata-se mesmo de

[...] um processo de enlaçamento paradoxal [...] Desde sua emergência, a pa-


lavra supõe uma certa situação de enunciação, a qual, com efeito, é valida-
da progressivamente por meio dessa mesma enunciação. Assim, a cenogra-
fia é, ao mesmo tempo, origem e produto do discurso; ela legitima um enunci-
ado que, retroativamente, deve legitimá-la e estabelecer que essa cenografia
de onde se origina a palavra é precisamente a cenografia requerida para
contar uma história, para denunciar uma injustiça, etc. Quanto mais o coe-
nunciador avança no texto, mas ele deve se persuadir de que é aquela ce-
nografia, e nenhuma outra, que corresponde ao mundo configurado pelo
discurso (Maingueneau, 2006, p. 114, grifos do autor).

Portanto, a cenografia também define as condições de um sujeito-


enunciador, de um sujeito coenunciador, das topografias e cronografias
linguística e discursiva incorporarem-se a um texto literário ou não. No
caso do conto em análise, tem-se esse mundo surreal, insólito, fabricado,
no qual a narração busca uma adesão de leitores que dilua e esteja diluída
com e nas noções da realidade. O que ele quer dizer, dizendo, talvez seja:
‚façamos parte, então, de um mundo que é aparentemente irreal, mas em
certos momentos não se pode afirmar isso com total certeza‛. Instauram-
se, nesta instância da cenografia, dessa cena enunciativa, expedientes to-
pogr{ficos, elementos da ordem do espaço: ‚Uma vida comum, normal.
Igual à de todo mundo. Sem grandes mudanças, tranquila, estável, renda
familiar média, apartamento simpático [...] confortável, dois quartos, sala,
página 116

cozinha e banheiro‛ (Brandão, 2003, p.42), que entram na composição do


plano enunciativo e do plano discursivo para ajustar o posicionamento da
cena de validação dos sujeitos-destinatários, ou seja, a descrição do lugar,
A cenografia discursiva de «O homem que perdeu as letras do livro»

de como ele é e o que tem não é em nada gratuita. Aparenta-se uma vida
familiar normal, que goza de um status e uma estabilização material, alme-
jada em muitos casos, sobretudo num mundo material e estabilizado tal
qual vivemos – e expedientes cronogr{ficos ‚Durante o dia trabalhava.
Voltava correndo, fazia o jantar, cuidava dos filhos e ligava a televisão. Os
dois não conversavam, diziam boa-noite, bom-dia, bom livro, bom pro-
grama, os meninos estiveram bem, etc.‛(Ibid., p. 42) – elementos da ordem
do tempo que entram em consonância com o plano enunciativo e o plano
discursivo para abalizar a monotonia da estabilização, de um comumente
ser igual a todas as famílias, que nadam em harmonia material e social,
mas corrompem-se em desumanidades para si e para os outros. Como a
cenografia não é um elemento vazio, ou uma função vazia a ser ocupada,
a ser inscrita por um discurso, vai se desenvolvendo paralelamente a esse
discurso que se pretende eficaz na interpelação de sujeitos-destinatários
nalgum discurso, como no do conto em questão. Isso nos faz refletir que o
lugar em que um leitor vê seu espaço de inscrição no plano enunciativo é
vinculado a esta única cenografia e não outra nem somente ao gênero,
num sentido mais estático, justamente por haver certas alegorias possi-
velmente ocupadas por esses interlocutores num plano discursivo a que se
quer chegar. Por isso, é dito também que a cenografia é em um só fôlego a
condição e o produto de uma obra, isto é, a espinha que sustenta um cor-
po, e o corpo tal como ele se mostra e é dito e visto por outros sujeitos.
Outro ponto de análise, em se tratando de outros elementos atinados à
cenografia para um dada incorporação ao universo da narrativa, é o de ser
possível perceber a interação entre um tema e o título do conto com o res-
tante da narrativa. Essa interação dá vazão à progressão temática na ceno-
grafia do conto, fazendo o título, de certa forma, unir-se ao corpo do texto,
que, por sua vez, seguirá em processo de desenvolvimento. Portanto, es-
ses títulos passam a funcionar como temas-títulos. Vejamos: “O homem
que perdeu as letras do livro‛, oração que serve de título ao conto, trata-se
de uma oração adjetiva restritiva que tenta compreender semanticamente
a história de um homem singular, na definição do artigo ‚o‛, mas que
também é um sujeito diluído no corpo social, pois o substantivo ‚homem‛
determina desde as mais primárias definições acerca dos indivíduos, isto
página 117

é, de indivíduos de uma espécie animal, até as definições mais complexas


e gerais, como, por exemplo, quando se diz nas Constituições acerca dos
direitos do homem, em que este homem relaciona-se a todos os cidadãos
Samuel Ponsoni

que estão compreendidos legalmente em uma nação qualquer, abarcando


nesse ‚guarda-chuva‛ semântico inclusive mulheres, crianças etc. Tal pro-
cedimento de relacionar o título diretamente a um conteúdo textual maior
é bastante usual em notícias de jornais, um ponto para a oscilação ceno-
gráfica de uma crônica ou de uma notícia jornalística sobre um fato diver-
so qualquer do cotidiano, embora não tenha o mesmo efeito de sentido
para o conto em questão, mas ainda assim deixa o leitor diante de um fato
que pode ser lido em um jornal, até o momento da irrupção cenográfica
dos elementos estranhos. Assim, o movimento em: ‚O homem que perdeu
as letras do livro‛ unindo-se a ‚Estava deitado, lendo. À noite, antes de
dormir, era o único momento disponível para leitura‛ (Brandão, 2003, p.
41), oração do primeiro parágrafo, possibilita a nós notarmos a continui-
dade entre o título e a progressão temática do texto acerca do homem de
quem se fala, algo típico das notícias de jornal, crônicas de fatos diversos,
unindo um enunciado destacado ao corpo textual. Além disso, não signifi-
car particularmente a personagem do conto, torná-la latente no mais das
vezes dentro da narrativa, silenciar ou emergir sua fala é parte de um con-
trole tático da narração da trama para justamente não significá-la mais do
que o fato estranho, qual seja, as letras despencarem dos livros.
Outro ponto de adesão pode se dar pelo fato deste ‚homem‛ permane-
cer elíptico, em um sentido amplo, boa parte do conto, sendo denotado
por um narrador que testemunha e descreve seu cotidiano e determina
quando este ‚homem‛ pode e deve indagar a realidade de letras que caem
diante de si – assim como os destinatários que eventualmente interajam
com o conto. Mesmo sem ter sido referido rigidamente, como em um no-
me próprio, e que tenha aparecido de formas amplas e genéricas, como o
substantivo ‚homem‛, nas elipses requeridas pelos verbos do pretérito
imperfeito indicativo, como, por exemplo, ‛lia, dormia, fazia‛, a voz que é
dada a esse sujeito-personagem, para indagar o fato estranho, ainda que
postada por entre aspas, aparece num jogo de argumentação empreendido
pelo narrador, demonstrando em alguma medida que quem faz toda a
operação do que se deve dizer, de um quando se deve aparecer e como
aparecer ou sucumbir para as personagens do mundo insólito do livro, é
alguém que está/não está presente, testemunhando ou reprimindo os a-
página 118

contecimentos. Quando o homem é referido forte ou aparentemente – co-


mo num caso de ‚ele‛, pessoal do caso reto – tem-se marcadamente a ex-
pressividade do sujeito da ação dada pelo narrador, mostrando seu dis-
A cenografia discursiva de «O homem que perdeu as letras do livro»

tanciamento, bem como a imposição de quem pode falar e operar com o


dizível, com movimento de silenciar e fazer-se presente e falar, com a or-
dem linguística: ‚Como não tinha o mínimo conhecimento de impressão,
imaginava coisas. Na verdade, estava abalado‛ (Brandão, 2003, p. 42, des-
taques nossos). No trecho do conto com os verbos de pretérito imperfeito
destacados haveria, portanto, a opção de uma comutação do referente
embreante da pessoa do discurso para, por exemplo, ‚Eu‛ ou ‚Tu/Você‛.
Tal como aparecem, com os sujeitos em elipse, os verbos do referido tem-
po denotam que o direito de dizer, qualificar, descrever, aparecer e apagar
está no narrador que ora traduz à distância o texto, ora imbrica-se à ação
ou descrição, misturando os turnos enunciativos, causando ambivalências
nas falas da personagem, uma das características também do discurso
indireto livre, no qual os referentes dos turnos enunciativos quase sempre
são ocultados. Pode-se deduzir ainda desse processo de narração teste-
munhal alegorias de fortes censuras às produções artísticas, inclusive à
literatura: ‚Continuou a ler, as letras embaralharam mais ainda. As linhas
pareciam entortar [...]. Abriu os olhos, continuou a leitura. Aí, as linhas
entortaram como se alguém tivesse dado um empurrão violento‛ (Bran-
dão, 2003, p. 42). A queda das letras é atribuída a alguém, mesmo que in-
determinadamente: ‚como se alguém tivesse dado um empurrão violen-
to‛ (Ibid., p. 42). Pode ser alguém presente/não presente, um narrador que
também testemunha o acontecimento. De qualquer maneira, não foi uma
ação espontânea, segundo o testemunho do narrador ou mesmo pela visão
da personagem. Isso pode mais uma vez aludir, ao inferirmos discursiva-
mente um comentário, aos objetos de repressão e censura, isto é, qualquer
elemento – individual ou coletivo –,qualquer figuração artística, poderia
desde que se considerasse subversivo. Com gradativo aumento, as letras
do livro do conto em análise também despencam mais e mais, como po-
demos ver na descrição feita pelo narrador-testemunha: ‚E as letras come-
çaram a despencar, como leve garoa, no colo dele. Em dois segundos, a
página ficou em branco. [...] Foi virando as páginas, uma a uma. As letras
formavam, agora, um amontoado preto sobre a cama. Folheou o livro,
rapidamente, as letras caíram numa enxurrada. Formando um monte con-
sider{vel‛ (Brandão, 2003, p. 42). Dessa met{fora da precipitação pluvio-
página 119

métrica, é possível observar a gradação que parte de uma adjetivação ‚le-


ve‛ para a garoa, chuva fina, branda, chuvisco, às vezes, refrescante, que
não causa grandes problemas, chegando até o estado de ‚enxurrada‛,
Samuel Ponsoni

uma grande quantidade de água que corre com força, com violência, por
vezes causando danos às pessoas e às cidades. Esse é o movimento da
cenografia em que se oscila o gênero mais rígido da literatura para uma
crônica jornalística sobre um fato diverso, trazendo à episteme da narrati-
va uma cenografia difusa, a partir do início de um tema-título, criando um
engendramento que tanto um ‚eu‛, um ‚você‛ ou um ‚ele‛ podem se
enquadrar como responsáveis pelos turnos, deixando, com isso, um ponto
aberto de adesão de sujeitos-destinatários. Um discurso literário como a
gestão de um contexto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em tom de conclusão, o que tentamos expor e refletir, sobretudo pelas


argumentações de cenografia, é que discurso literário demonstra ter ins-
tâncias peculiares operando na mecânica de sua construção, mas que pode
ser apreendido tanto quanto outros discursos. Entretanto, como todo dis-
curso, deve ser compreendido em seu todo discursivo, ou seja, dos ele-
mentos linguísticos aos efeitos de sentidos que podem reverberar na histó-
ria sócio-ideológica, e vice-versa. De nossa parte, caudatários da teoria de
Maingueneau, tentamos analisar essa forma de abordagem do texto literá-
rio, examinando-o como um dispositivo enunciativo para lhe reter em
suas operações enunciativo-discursivas desde aspectos linguísticos até
aspectos discursivos. Isso nos fez observar, entre outras coisas, ao tentar
decifrá-lo por meio das análises, que muitas formas de dizer e mostrar no
discurso literário não estão apenas em seu conteúdo mais visível, transpa-
rente, em um ‚o quê‛ traz determinado discurso, e sim nas formas em que
ele se engendra, se organiza, isto é, em um ‚como‛ faz certas operações
para mostrar seu discurso e não outras.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, I. L. Cadeiras proibidas. São Paulo: Graal, 2003.

CHARADEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso. São Paulo:


página 120

Contexto, 2008.

MAINGUENEAU, D. Elementos de linguística para o texto literário. São Paulo: Martins


Fontes, 2001a.
A cenografia discursiva de «O homem que perdeu as letras do livro»

______. O contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade. São Paulo: Martins
Fontes, 2001b.

______. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2006.

PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso. In: GADET, F. HAK, T. Por uma análise
automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP.
Ed.Unicamp 1990.

página 121
página 122 Samuel Ponsoni
PARTE III
SEMÂNTICA histórica da
ENUNCIAÇÃO
e reflexões TEÓRICAS
página 124 PARTE III
nove

Soeli Maria Schreiber da SILVA1


o MEMORÁVEL na
relação ENTRE a LÍNGUA
FRANCESA e a língua
KARIPUNA1

E
studar o sentido significa estudá-lo na relação com a me-
mória. Trato desse conceito em dois quadros metodológi-
cos - o da Análise do Discurso e o da Semântica do Aconte-
cimento, considerando o conceito de memória e memorá-
vel. Em Pêcheux (2002), no artigo O Discurso, Estrutura ou Aconteci-
mento e em Guimarães, (1999), no artigo Interpretar, Língua e Aconte-
cimento. O primeiro analisa o discurso como estrutura e como acon-
tecimento a partir do enunciado “On a Gagné” (Ganhamos), que se
refere à Vitória de François Miterrand. Descreve e interpreta o con-
texto da atualidade e o espaço de memória no qual tal acontecimento
começa a reorganizar-se - o do Socialismo Francês.
Com isso Pêcheux (2002) vai mostrando que o confronto discur-
sivo se dá bem antes da vitória em 10/5/81, no processo de tensão

1Mestrado, Doutorado e Pós-doutorado na UNICAMP. Professora da Universidade Fede-


ral de São Carlos - UFSCar. São Carlos - SP. Coordenadora e pesquisadora da UEHPOSOL.
xoila@terra.com.br
Soeli Maria Schreiber da Silva

“vitória e derrota”, e isso está inscrito nos enunciados conforme a análise


de Pêcheux (2002), a novidade da vitória mantém a opacidade do aconte-
cimento. O modo como vai se materializando a festa da vitória na relação
com a torcida de futebol cria um jogo metafórico que vem sobredetermi-
nar o acontecimento e evidenciar sua equivocidade. É no estudo da metá-
fora que ele mostra a relação com outros enunciados e o grito de vitória.
Vejamos um recorte da análise do enunciado “On a Gagné”:

[...] é profundamente opaco: sua materialidade léxico-sintática(um prono-


me “indefinido” em posição de sujeito, a marca temporal- aspecto de reali-
zado, o lexema verbal “gagner” (“ganhar”) a ausência de complementos)
imerge esse enunciado em uma rede de relações associativas implícitas -
paráfrases, implicações, comentários, alusões etc - isto é, em uma série he-
terogênea de enunciados funcionando sob diferentes registros discursivos,
e com uma estabilidade lógica variável (Pêcheux, 2002, p.23).

Há, então, uma rede de relações heterogêneas e com estabilidade vari-


ável, diz Pêcheux. É desse modo que Pêcheux (2002) interpreta “On a
Gagné” e funde aqueles que acreditavam na memória e aqueles que não
acreditavam. Nessa análise, o poder dá-se no confronto, mesmo com a
vitória, no movimento espaço adquirido/espaço a conquistar, num con-
fronto contínuo. O espaço de confronto parece estabilizado, mas funciona
no equívoco. Nesse acontecimento, podemos ver que Pêcheux (2002) trata
das questões discursivas por um procedimento de descrição/interpretação
no processo discursivo na relação com a história – o que vem antes, o pas-
sado. No presente há a ruptura na qual o acontecimento vai reorganizar
um espaço de memória que no exemplo dele é o socialismo Francês. Pelo
equívoco o confronto discursivo prossegue através do acontecimento. É o
depois na concepção de história de Pêcheux.
É interessante apontar aqui que Guimarães (1999), em resenha do texto
de Pêcheux (2002), em questão, considera três caminhos na análise: o da
análise como descrição e interpretação, pontuando o real específico da
língua na interpretação; e o fato de que para Pêcheux (2002) a língua está
exposta ao equívoco. Assim, de um enunciado é sempre possível o deslo-
camento discursivo para derivar outro, diz Guimarães (1999).
página 126

Como consequência, há a agitação das filiações sócio-históricas de iden-


tificação, um efeito e um deslocamento. Guimarães (1999) vai caracterizar
o que se deve considerar na língua tomando a distinção de Orlandi (1996)
O memorável na relação entre a língua francesa e a língua karipuna

entre ordem e organização da língua. Na análise, ele mostra como esses


conceitos intervêm na relação real da língua/real da história. No mesmo
artigo, Guimarães (1999) trata da enunciação, como o fez em Os Limites do
Sentido (1995). Retoma a noção de interdiscurso e a mobiliza para estudar
a enunciação. Considera que a língua, na sua ordem própria, é movimen-
tada pelo interdiscurso. São os efeitos do interdiscurso constituídos pelo
funcionamento da língua no acontecimento, efeitos de memórias, posi-
ções-sujeito e cruzamento de discursos no acontecimento, que vão consti-
tuir a análise enunciativa.
Nessa análise, podemos observar Guimarães (1995) tratando do históri-
co como uma relação passado/presente. A memória vai ser mobilizada aí
como interdiscurso organizado pelo esquecimento, pelo sentido já posto -
o sentido de um antes. Temos, então, uma posição discursiva funcionan-
do. O conceito de interdiscurso da Análise do Discurso migrou para a Se-
mântica do Acontecimento, nesse momento de suas reflexões.
Vamos agora observar o modo como a temporalidade é tratada na Se-
mântica do Acontecimento. Vejamos:

[...] considero que algo é acontecimento enquanto diferença na sua própria


ordem. E o que caracteriza a diferença não é um fato no tempo.Ou seja, não
é um fato novo enquanto distinto de qualquer outro ocorrido antes no
tempo. O que o caracteriza como diferença é que o acontecimento tempora-
liza. Ele não está num presente de um antes e de um depois no tempo. O
acontecimento instala sua temporalidade: essa é a sua diferença (Guima-
rães, 2002, p. 11-12).

Guimarães (2002) não trabalha com um conceito discursivo; trata do


passado de maneira enunciativa e de acordo com o tempo do aconteci-
mento. A questão é que o presente abre uma latência de futuro, uma pro-
jeção, um interpretável. Assim, “Todo acontecimento de linguagem signi-
fica porque projeta em si mesmo um futuro” (Guimarães, 2002, p. 12). No
conceito de memorável

[...] presente e futuro próprios do acontecimento funcionam por um passa-


do que os faz significar. Ou seja, esta latência de futuro que, no aconteci-
página 127

mento projeta sentido, significa porque o acontecimento recorta um passa-


do como memorável (Guimarães, 2002: 12).
Soeli Maria Schreiber da Silva

O memorável em Guimarães (2002) é a temporalidade constitutiva no


acontecimento, no sentido de que o acontecimento tem memória que toma
como passado dele; o acontecimento em si recorta o passado como se a-
quele fosse o passado do acontecimento.
O memorável não é um conceito discursivo. Não se trata de um antes
discursivo. É o passado pensado de maneira enunciativa e de acordo com
o tempo do acontecimento. É um procedimento de análise da disciplina de
Semântica do Acontecimento, e o modo como é tratada a temporalidade
no acontecimento de enunciação é específico. Interessa a memória que foi
recortada e não a rede de enunciações de um antes. Exemplo disso é a
análise do memorável e o excluído realizada por Guimarães na nomeação
“Rua dos Trabalhadores” em Cosmópoles:

No momento em que este nome é enunciado, ele toma os trabalhadores,


enquanto conjunto, como memoráveis. Podemos dizer que o locutor-oficial
– (locutor administrador), ao nomear os trabalhadores como conjunto,
constitui uma temporalidade tal que nela se rememoram trabalhadores es-
pecíficos que tenham tido participação na história do movimento dos traba-
lhadores. Ou seja, o acontecimento, ao constituir como lugar social do dizer
o locutor-administrador e não o locutor cosmopolense, retira do memorá-
vel a história dos trabalhadores de Cosmópoles (Guimarães, 2002, p. 65-66).

Vamos nos ater agora à matéria de TV, entrevista com a índia Karipuna
Ceci dos Santos, da Aldeia do Manga-Açaizal para trabalhar com o con-
ceito de memorável e analisar a realção entre a língua Karipuna e a Língua
Francesa. Na entrevista, o locutor-jornalista pede à locutora-Karipuna que
ela traduza algumas palavras da língua indígena, como casa, por exemplo.
E ela responde: “Kais - casa; Manger - comida; Super - Jantar; Bonjour -
bom dia; Bonsoir - Boa tarde” (SANTOS, 2009).
Nesse recorte temos uma divisão entre, de um lado Kais (casa), da lín-
gua Karipuna, e de outro Manger (comida); Super (Jantar); Bonjour (Bom
Dia) e Bonsoir (Boa Tarde), da língua francesa. No texto resposta, a locuto-
ra Karipuna, no momento em que as palavras são citadas, toma palavras
da língua francesa como memoráveis. Podemos dizer que a locutora cita
palavras diferentes da língua dela e que, portanto, está predicada por um
página 128

lugar social de falante de língua francesa.


Ao rememorar a língua francesa, constitui a temporalidade sem que se
rememorem palavras da língua dela, ou seja, o acontecimento, ao constitu-
O memorável na relação entre a língua francesa e a língua karipuna

ir como lugar social do dizer a disparidade locutora-karipuna-


entrevistada/locutora–francesa-entrevistada, retira do memorável a histó-
ria dos Karipuna do Oiapoque. A índia Karipuna fala do lugar social pre-
dicado por outra língua que fala.
Na enunciação da lista com palavras em francês, a questão é que a e-
nunciação da índia dá-se num espaço de enunciação configurado por lín-
guas como a indígena, o francês, o português. E ao responder como res-
ponde (dizendo que bonjour e bonsoir são palavras da língua indígena), o
acontecimento em que se dá sua enunciação faz significar o memorável da
civilização na história dos Karipuna, na região do Oiapoque. A língua dos
Karipuna só está significada na citação do locutor – jornalista. Na enunci-
ação-lista da locutora-karipuna-entrevistada não está significada a língua
Karipuna, não há o memorável dessa língua. Trata-se de uma lista vazia
de palavras da língua karipuna e, é claro, cujo efeito é o de esvaziamento
da história dos Karipuna.
A memória recortada é a memória da colonização na relação com o
português e o francês. Falar em colonização significa pensar a língua polí-
tica e historicamente significada (Orlandi, 2009), como podemos ver na
relação entre as línguas francesa, indígena e portuguesa.

REFERÊNCIAS

GUIMARÃES, E. Semântica do Acontecimento.Campinas: Pontes, 2002.

______. Os Limites do Sentido. Campinas: Pontes, 1995.

______. Interpretar Língua e Acontecimento. In: Revista Brasileira de Letras, v1, n1, UFS-
Car-DL, 1999 p19-23.

ORLANDI, E.P. Interpretação. Petrópolis, Ed. Vozes, 1996

______. Língua Brasileira e Outras Histórias – Discurso sobre a língua e ensino no Brasil,
Campinas: Editora RG, 2009.

PÊCHEUX, M. O Discurso: Estrutura ou Acontecimento – tradução de Eni Orlandi. Cam-


pinas: Pontes, 2002.

SANTOS, C. Entrevista com a índia karipuna sobre a língua em Oiapoque. In: NEGRÃO,
X. Programa Extração 10 do Canal 7, afiliada à Bandeirantes de São Paulo, 2009.
página 129
página 130 Soeli Maria Schreiber da Silva
dez

Adriana da SILVA1
LÍNGUA, enunciação e
HISTÓRIA1

INTRODUÇÃO

P
ropomos, neste artigo, uma discussão acerca do processo
de nomeação da nossa língua, tal como essa questão se co-
loca no Brasil em relação ao imaginário de língua una, e a
partir da leitura de alguns teóricos como Authier-Révuz
(1990), Mariani (2004), Orlandi (2009), Dias (1996) entre outros, bus-
camos compreender a história da nossa língua e também os efeitos
políticos e ideológicos desde sua constituição até as discussões mais
recentes que entremeiam nossa realidade linguística, em que ainda
ressoa ecos da colonização. E para entendermos como se dá esse
processo linguístico, vejamos as abordagens acerca do conceito de
heterogeneidade conforme nos apresentam as autoras Orlandi (2009)
e Authier-Révuz (1990), a partir de uma perspectiva histórica e e-
nunciativa da linguagem.

1Mestre pelo PPGL/UFSCar. Professora Rede Estadual de Ensino - SP.São Carlos - SP.
Pesquisadora do Uehposol. drysil@ig.com.br
Adriana da Silva

ABORDAGENS ACERCA DO CONCEITO DE HETEROGENEIDADE

A autora Authier-Revuz (1990), apoiando-se nas teorias psicanalíticas


de descentramento do sujeito e no conceito de dialogismo de Bakhtin
(1988), desenvolveu a noção de Heterogeneidades enunciativas, apresen-
tadas por ela como sendo de dois tipos: a constitutiva e a mostrada, que
pode ser marcada ou não - como exemplo de heterogeneidade mostrada
marcada temos as glosas enunciativas, o discurso relatado (formas sintáti-
cas do discurso direto e do discurso indireto) e as aspas; e como exemplo
de heterogeneidade mostrada não marcada, temos a ironia, o discurso
indireto livre, entre outros tipos de discursos que contam com o “outro
dizer”, sem explicitá-lo, para produzir sentidos.
Authier-Revuz (1990), ao analisar processos enunciativos sob uma
perspectiva que enfoca a presença do Outro/outro, considera o sujeito co-
mo constitutivo de um corpo histórico-social, no qual interage com outros
discursos para construir sua fala. Para ela, “Sempre, sob nossas palavras”,
“outras palavras” são ditas:

[...] é a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de


uma cadeia, se faça escutar a polifonia não intencional de todo discurso, a-
través da qual a análise pode tentar recuperar os indícios da “pontuação do
inconsciente. (Authier-Revuz, 1990, p. 25-27).

Por esse excerto, podemos depreender que Authier-Révuz (1990) arti-


cula o conceito de dialogismo presente na obra de Bakhtin (1988), numa
abordagem da heterogeneidade constitutiva do sujeito elaborada por ela,
defendendo que nossas palavras sempre estão povoadas de outras já e-
nunciadas. Tal fato de linguagem apresenta-se em nosso discurso quando
falamos, permitindo inconscientemente que a língua tenha essa natureza
constitutiva e dupla: a fala do outro na fala do eu.
Oliveira (2010) reflete sobre a presença fundamental da heterogenei-
dade em seu trabalho sobre a história das palavras a partir de corpora de
dicionários de língua. A autora relata que Authier-Révuz, além de articu-
lar o conceito de dialogismo, faz menção a dois outros lugares teóricos: a
página 132

análise do discurso, que Authier-Révuz remete aos trabalhos de Michel Pê-


cheux, entre outros, e resume pela problemática do discurso como produ-
to do interdiscurso; e a psicanálise, que, apoiada na leitura de Saussure, na
Língua, enunciação e história

leitura lacaniana de Freud, produz a dupla concepção de uma fala funda-


mentalmente heterogênea e de um sujeito dividido (Oliveira, 2010, p.72).
Oliveira (2010) afirma que Authier-Révuz, ao trazer para a caracteriza-
ção da divisão subjetiva um exterior constitutivo que coloca em relação o
inconsciente e a ideologia, aproxima-se do que vem sendo desenvolvido
no Brasil na Semântica do Acontecimento. E, ao refletirmos sobre tal pos-
tulação, concordamos com a autora ao estabelecer uma relação entre essas
abordagens que levam à compreensão de que a subjetividade não se reduz
ao ego benvenistiano, que se apropria da língua e se torna, ao fazê-lo, pa-
râmetro da enunciação.
Ainda entendemos, conforme compreende Oliveira (2010), que na rela-
ção com a AD a semântica do acontecimento não concebe a subjetividade
como “unidade psíquica”, tal como define Benveniste, mas como posição
interdiscursiva, de acordo com Orlandi, com base no trabalho de Pêcheux.
Agora vejamos, embasados na leitura de Orlandi (2002) a partir da a-
bordagem acerca do conceito de heterogeneidade de Authier-Révuz
(1990), o conceito de heterogeneidade linguística que Orlandi desenvolve
para tratar questões da língua, tal como se coloca a relação do Brasil e Por-
tugal numa disjunção histórica.
Dessa forma, a heterogeneidade linguística, compreendida por Orlandi
(2002), faz-se presente toda vez que, no campo dos países colonizados,
temos línguas como o português e o espanhol, na América Latina, que
funcionam em uma identidade dupla.
Assim, a autora, a partir da heterogeneidade tal como é concebida por
Authier-Révuz, colocando em causa a relação entre o Outro e o outro, Or-
landi (2002) propõe distinguir outro aspecto da heterogeneidade e da dife-
rença, ao desenvolver o conceito de heterogeneidade linguística:

Consideramos, pois, a heterogeneidade linguística no sentido de que joga em


nossa língua um fundo falso em que o "mesmo" abriga, no entanto, um "ou-
tro", um diferente histórico que o constitui ainda que na aparência do "mes-
mo": o português brasileiro e o português português se recobrem como se
fossem a mesma língua, mas não são. Produzem discursos distintos, signifi-
cam diferentemente. Discursivamente é possível se vislumbrar esse jogo, pe-
lo qual no mesmo lugar há uma presença dupla, de pelo menos dois discur-
página 133

sos distintos, efeitos de uma clivagem de duas histórias na relação com a lín-
gua portuguesa: a de Portugal e a do Brasil. Ao falarmos o português, nós,
Adriana da Silva

brasileiros, estamos sempre nesse ponto de disjunção obrigada: nossa língua


significa em uma filiação de memória heterogênea. (Orlandi, 2002, p. 23).

Assim, Orlandi (2002) compreende que há uma composição de sentidos


em nossa memória linguística que funciona simultaneamente em movi-
mentos simbólicos distintos quando falamos a língua brasileira, isso signi-
fica que há uma marca de distinção na materialidade histórica desses sis-
temas simbólicos que carregamos na nossa língua.
A partir do conceito de memória, conforme nos apresenta Orlandi
(2002), podemos pensar a nossa língua tal como se coloca essa questão no
Brasil ou, em outras palavras, na contradição entre duas histórias que se
cruzam: a de Portugal e a do Brasil, tendo a língua portuguesa como he-
rança de uma colonização que produz um efeito de homogeneidade. Mas,
na realidade, nossa língua significa em filiação de uma memória hetero-
gênea; ao pronunciarmos o português brasileiro, essas diferenças se tor-
nam explícitas, o português de Portugal e o português do Brasil produzem
sentidos distintos. E assim, há uma duplicidade constitutiva, em que Or-
landi (2002) evidencia a existência de uma polissemia2, de uma heteroge-
neidade no próprio exercício da língua, o português e o brasileiro não têm
o mesmo sentido. “São línguas materialmente diferentes, e esta diferença
trabalha em sua invisibilidade.” (Orlandi, 2002, p. 26).
Para a autora, o que atesta a diferença visível são “acidentes” (sotaque,
rodeios sintáticos) empíricos, ultrapassáveis do ponto de vista da identi-
dade linguística (imaginário de língua una), no entanto, o que distingue
profundamente (português brasileiro) são propriedades inscritas na dife-
rença de constituição de seus processos de significação, inscritos em sua
materialidade linguístico-histórica, em que o que não é atestado pela ob-
servação empírica vale, contudo, como traço de identidade, assim como
podemos perceber em outros trabalhos na sintaxe que também atestam a
diferença entre o português-europeu e o português-brasileiro.
Orlandi (2002) estabelece uma relação de colonização partindo da no-
ção de acontecimento discursivo tal como é formulado por Guillaumou
(1989). De acordo com Orlandi (2002), a noção de acontecimento discursi-
vo formulada pelo autor é que dá lugar específico à enunciação na análise
página 134

2É a simultaneidade de movimentos distintos de sentido no mesmo objeto simbólico. Na


polissemia oque há é composição (com + posição) de sentidos. E a memória sustenta esta
composição. A memória é, por principio, polissêmica.
Língua, enunciação e história

de discurso, fazendo intervir a questão do sujeito e da história. Ainda para


Guillaumou (1989) o sujeito se constrói em uma dispersão de enunciados
da qual ele mesmo é o elemento unificador, sem, entretanto, introduzir a
homogeneidade no interior da heterogeneidade. O sujeito se instala assim
nos dispositivos de arquivo e intervém no exato momento em que algo é
enunciado, relatado, categorizado, conceituado.
Assim, Orlandi (2002) pontua que desse modo a noção de situação de
enunciação cede lugar à noção de acontecimento, operando-se um duplo
deslocamento: as marcas enunciativas vão depender de um processo sin-
gular de construção do sujeito da enunciação e, em perspectiva histórica,
toda a interpretação de um lugar enunciativo necessita levar em conta a
consciência linguística da época considerada e a forma como a questão da
enunciação é apresentada nesse período.
E é a partir dessa reflexão acerca de acontecimento discursivo que Or-
landi (2002) introduz a noção de acontecimento linguístico para nomear,
especialmente em um caso como o da colonização, essa relação do lugar
enunciativo e a língua nacional; dessa forma, segundo a autora, tal relação
“produz uma clivagem, uma disjunção obrigada, que afeta a materialida-
de da língua brasileira” (Orlandi, 2002, p.31-32).
A história da identidade da língua nacional se estende por meio de
muitos acontecimentos como acordos, fundação de academias, regula-
mentos escolares e outros como veremos no decorrer deste capítulo. E
para compreendermos melhor essa história vejamos como a autora Maria-
ni (2004) apresenta a trajetória histórico-linguística constitutiva da institu-
cionalização da língua portuguesa no Brasil. Mariani (2004) relata que o
projeto de colonização linguística é constituído com base no catolicismo
jesuítico e em consonância com um imaginário em torno da relação lín-
gua-nação vigente do século XVI ao XVIII, em meio a confronto entre lín-
guas e memórias, histórias e políticas desiguais:

A colonização lingüística resulta de um processo histórico de encontro en-


tre pelo menos dois imaginários linguísticos constitutivos de povos cultu-
ralmente distintos, línguas com memória, histórias e políticas de sentidos
desiguais, tais que uma dessas línguas – chamada língua colonizadora – vi-
página 135

sa impor-se sobre a (as) outra(s), colonizada(s). Os efeitos decorrentes desse


processo de colonização linguística, porém, não são sempre os mesmos
nem são previsíveis; basta que se observem comparativamente a trajetória
Adriana da Silva

das diferentes línguas indígenas, do inglês, do francês e do espanhol nas


Américas (Mariani, 2004, p. 28).

Muitos são os elementos que vão influir no processo de colonização


linguística, como nos conta Mariani, e mais especificamente no período
que vai do séc. XVI ao XVIII, como a língua de colonização e as demais
línguas, bem como o afastamento e as mudanças que a língua de coloniza-
ção necessariamente sofre em relação à metrópole.
A diversidade das línguas indígena, portuguesa, o fator de comunicação
em uma terra desconhecida, e ainda havia também a questão do aprendizado
das línguas desconhecidas oralmente em função da gramatização em decor-
rência do modo como ia se constituindo o contato. Aqui o encontro da língua
de colonização com outras línguas européias, indígenas e africanas, marcou
um lento desencontro dessa língua com ela mesma.
Assim, a colonização linguística também pode ser apreendida como
um acontecimento linguístico, conforme compreende Orlandi (2002),
quando afirma que a relação de colonização produz uma clivagem, uma
disjunção obrigada que afeta a materialidade da nossa língua.
Orlandi (2002) ainda pontua que ao mesmo tempo em que aqui desembarca
a língua portuguesa, ao deslocar-se de Portugal para o país nascente, o Brasil
institui um movimento de memória, deslizamentos linguísticos por meio dos
quais uma outra língua, a brasileira – faz-se presente.
Assim, Portugal se depara com uma variedade de línguas aqui pratica-
das principalmente pelos índios e tendo que se fazer comunicar, pois o Bra-
sil era a colônia e o colonizador tinha que se fazer entender: ordenar, co-
mandar, enfim administrar um mundo totalmente diferente do seu.
A língua de colonização, a língua portuguesa, cede lugar às transfor-
mações, às materialidades da língua e do mundo. O encontro entre Portu-
gal e Brasil faz emergir dois imaginários linguísticos. A memória local e a
memória da língua colonizadora, que se misturam, transformam-se e dão
origem a uma nova língua, a nossa língua.
Orlandi (2002) nos apresenta essa trajetória histórica, a qual ela divide
em duas partes:
Situação enunciatica I - (relação palavra/palavra, e não da palavra com a
página 136

coisa). Para Orlandi, essa relação se dá quando o colonizador tem a necessi-


dade de nomear coisas, estabelecer uma relação de entendimento, e assim ele
o faz desse lado do Atlântico, mas com uma memória europeia, assim se dá o
Língua, enunciação e história

processo de historização da nossa língua em meio a transferências, desliza-


mentos de memória e metáforas, pois estamos diante de materialidades dis-
cursivas que produzem efeitos de sentidos diferentes.
Situação enunciativa II - As palavras já recobrem outra realidade. A uni-
dade e variedade da língua praticada aqui não se referem mais ao portu-
guês do Brasil ou ao de Portugal, mas a sua unidade e variedade existente
no Brasil. Muda o regime de universalidade da língua que passa a ter sua
referência no Brasil, na convivência de povos de línguas diferentes (a indí-
gena, a africana, a de imigração etc.) (Orlandi, 2009, p. 172).
A autora nos mostra o percurso histórico de uma língua que vai se
constituindo na sua singularidade e como essa língua praticada nesse ou-
tro regime enunciativo realiza deste lado do Atlântico a relação unida-
de/variedade. Por sua vez, a unidade já não se refere ao português do Bra-
sil, ou ao de Portugal, mas à unidade e às variedades existentes no Brasil.
Mas, nesse processo não é a variedade nem a diversidade de línguas que
está em evidência, mas sim, o processo de historicização da língua que é
parte integrante dessa heterogeneidade linguística. Visto todo esse proces-
so histórico, entendemos, como Orlandi (2009), que não é uma questão de
rejeição a nossa filiação à Portugal e sim de atentarmos ao que diz respeito
às questões históricas, ideológicas e culturais, que atravessaram as frontei-
ras da nossa língua, a língua brasileira.
Desse modo, é por meio deste litígio que vemos surgir um emaranhado
de significações no que diz respeito a nossa língua e nos faz refletir sobre
o imaginário de língua una no nosso país. Ao tratarmos de significação,
pensamos na linguagem como constituinte de relações. Não tratamos des-
ta, por isso, como um instrumento de comunicação ou interação, como
somente um lugar de trocas. Vemos a linguagem sob uma perspectiva
sócio-histórica, na qual e por meio da qual travam-se relações entre lín-
guas/falantes via simbólico.

O PROCESSO DE DESCOLONIZAÇÃO E LUSOFONIA

Após compreendermos como se deu o processo de colonização linguística


no Brasil, as consequências e os efeitos produzidos em relação às línguas,
página 137

vejamos como Orlandi (2009) desenvolve o conceito de descolonização ao


refletir sobre o discurso lusófono no Brasil.
Adriana da Silva

Para Orlandi (2009), quando pensamos o Brasil, não podemos deixar de


pensar as condições histórico-políticas e sociais da colonização a que fomos
submetidos. O português de Portugal, ao se deparar com uma diversidade
linguística no Brasil colônia, começa a sofrer transformações devido ao con-
tato com as demais línguas existentes aqui, línguas indígenas, línguas de
fronteira, africanas e de imigrantes. Dessa forma, o português de Portugal
passou a sofrer transformações na sua materialidade, o embate com a mate-
rialidade de um novo mundo e de sua história, dando origem a uma língua
singular, que chamaremos língua brasileira. Para evidenciarmos e atestar-
mos essa língua, Orlandi propõe o processo de descolonização:

Sabemos que não há uma unidade homogênea que se possa chamar de lu-
sofonia, A língua una é herança da colonização. A palavra lusofonia pre-
serva o conceito de homogeneidade. Temos uma diversidade linguística, e,
é preciso tornar visíveis essas diferenças, falamos diferente, produzimos di-
ferentes discursividades, e, é esse sentido que deve ser atribuído a palavra
descolonização. (Orlandi, 2005, p. 18).

Um acontecimento importante de descolonização no Brasil aconteceu


no séc. XIX, com o processo de gramatização -endogramatização conforme
compreende Aroux (1992).

Por gramatização deve-se entender o processo que conduz a descrever e a ins-


trumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares
de nosso saber metalingüístico: a gramática e o dicionário (Aroux,1992,p.65).

Assim, foram produzidas gramáticas e dicionários com o objetivo prin-


cipal de legitimar uma língua nacional, mas o nome institucionalizado da
nossa língua era língua portuguesa, as obras receberam títulos como Gra-
mática Portuguesa, Gramática da Língua Portuguesa e Gramática Brasileira da
Língua Portuguesa. Mas no final do século XIX e principalmente no início
do século XX, é que gramáticos como João Ribeiro e Said Ali registraram
com maior destaque essas transformações da língua. Said Ali, por exem-
plo, escreveu um livro chamado “As dificuldades da língua portuguesa”.
Essas dificuldades, segundo Orlandi (2009), eram as diferenças entre o
página 138

português do Brasil e o de Portugal.


No séc. XX, a relação do Brasil com sua língua nacional está institucionali-
zada, a sociedade brasileira se organiza face as suas necessidades de repre-
Língua, enunciação e história

sentação científica. A gramática passa a ser um instrumento linguístico para


distinguir os brasileiros que conhecem a língua corretamente e aqueles que
não conhecem. E é então que surge a NGB (Norma Gramatical Brasileira, 1959),
que estabelece a homogeneidade de uma terminologia desautorizando as
diferentes posições dos gramáticos.
Dessa forma, o processo de descolonização dá mais um passo, a NGB
distingue não mais brasileiros e portugueses, mas brasileiros e brasileiros,
essa divisão não apaga a ambiguidade da memória, português-europeu,
português-brasileiro, em que se faz presente o imaginário de uma língua
pura, uma língua una. O português europeu é o português institucionali-
zado e o português brasileiro é o mal falado, é o português carregado dos
efeitos ideológicos da colonização.
A autora ainda salienta que não é uma questão de rejeição à nossa filia-
ção a Portugal, mas sim de reconhecer o processo de historicização da
nossa língua, uma língua com suas próprias características. Ou seja, a pa-
lavra lusofonia preserva a noção de homogeneidade e se aplica a situações
de domínio de línguas que resultaram do processo de colonização, mas
que se “independentizaram” ao longo do tempo. Temos uma língua que
se individualizou à sua maneira no processo de sua historicização, ao bus-
carmos algo comum na tensão entre unidade e diversidade, não teremos
mais o passado como referência, mas sim o presente e as nossas diferenças
no modo como elas se organizam, promovendo assim consequentemente
um processo descolonizador.

O PROCESSO DE NOMEAÇÃO DA LÍNGUA QUE SE FALA NO BRASIL

Para Orlandi (2009), o processo de nomeação de uma língua é uma


questão necessária e que se coloca impreterivelmente aos sujeitos de uma
dada sociedade, de uma dada nação, porque a questão da língua que se
fala toca os sujeitos em sua autonomia, em sua identidade, em sua autode-
terminação. E pontua:

O brasileiro deve observar sua história necessariamente através do discurso


europeu, uma abordagem crítica lhe permite atingir o lugar da produção
página 139

desses efeitos de sentido para que ele possa compreender o deslocamento


que preside a produção de sua identidade [...] (Orlandi, 2009, p. 191).
Adriana da Silva

Por esse excerto, Orlandi destaca a importância da história de uma lín-


gua, o conhecimento da sua prática e funcionamento, analisando as injun-
ções política e social, para que especialistas ou simples falantes da língua
possam tomar uma posição frente à história da ciência no conjunto de re-
lações que se articulam no chamado mundo globalizado, em que o lugar
que as línguas ocupam é decisivo. Assim, pensar o nome da língua é levar
em conta a história do saber produzido por ela, é conhecer a história da
sua própria língua.
No Brasil, a questão do nome da língua que falamos atravessa séculos e
se coloca desde os princípios da colonização, mas que adquire uma força e
um sentido especiais ao longo do século XIX.
Orlandi (2009) nos relata que durante todo o tempo, naquele período, o
imaginário da língua oscilou entre a autonomia e o legado de Portugal. De
um lado, o Visconde de Pedra Branca, Varnhagen, Paranhos da Silva e os
românticos como Gonçalves Dias e José de Alencar alinhavam-se entre os que
defendiam nossa autonomia propugnando por uma língua nossa, a língua
brasileira. De outro, os gramáticos e eruditos consideravam que só podíamos
falar uma língua, a língua portuguesa, sendo o resto apenas brasileirismos,
tupinismos, escolhos ao lado da língua verdadeira. Dessa forma, predomina
a língua portuguesa, uma língua padrão, apagando-se, silenciando-se o que
era mais nosso e que não seguia os padrões: nossa língua brasileira.
Em 1823, por ocasião da Assembléia Constituinte, tínhamos pelo me-
nos três formações discursivas, conforme nos apresenta Orlandi (2009): a)
a dos que propugnavam por uma língua brasileira; b) a dos que se alinha-
vam ao lado de uma língua (padrão) portuguesa; e c) a formação discursi-
va jurídica, que, professando a lei, decidia pela língua legitimada, a língua
portuguesa. A partir dessas posições e das decorrentes discussões, neste
mesmo ano elegeu-se a língua portuguesa como a língua falada no país.
Mas o embate entre os nomes língua portuguesa e língua brasileira,
como podemos estabelecer uma relação com a distinção entre língua ima-
ginária e língua fluída, está sempre em evidência e, nos anos seguintes, a
língua que se fala no Brasil é nomeada língua nacional.
Guimarães (2004), procurando argumentar sobre a língua que falamos,
comenta que em 1870 temos a polêmica entre o romancista brasileiro José
página 140

de Alencar e o português Pinheiro Chagas, um enfatizando nossas dife-


renças e autonomia, o outro, sobre o legado que recebemos de Portugal, a
língua portuguesa.
Língua, enunciação e história

Já no século XX, na década de 1930, há uma discussão na Câmara do Dis-


trito Federal sobre o nome da língua do Brasil: língua portuguesa ou brasilei-
ra. Novamente, decide-se pelo indefinido: falamos a língua nacional.
Luis Francisco Dias (1996) faz uma importante reflexão por meio de uma
análise semântica de enunciados de discursos parlamentares, produzidos
no processo de tramitação de três projetos legislativos no Brasil, nas déca-
das de 1930 e 1940, que objetivavam a denominação do idioma falado no
Brasil de língua portuguesa para língua brasileira, mostrando que o debate
em torno da denominação do idioma deixava transparecer uma questão
que esteve presente em outros momentos da nossa história: a identidade da
língua falada no Brasil. As discussões se desenvolviam em torno de duas
posições, como aponta o autor: a primeira em que parte dos parlamentares
via na expressão língua brasileira a legitimação de um domínio de língua
caracterizado como “patuá do povo ignaro”, “meia-língua do poviléu”,
“língua da tia Josefa, a cozinheira”, “dialeto regionalista”, etc. Portanto, era
necessário, no entender desse grupo, lutar contra o projeto de mudança do
idioma, uma vez que designar a língua de brasileira significaria configurar
uma identidade para a nação a partir de um domínio de língua relativa-
mente a “povo ignaro”, “poviléu”, “cozinheira”, “caipira” etc.
Assim, Dias (1996) relata que a língua não poderia ser chamada de bra-
sileira, para o grupo de parlamentares dessa posição, uma vez que “essa
língua” não adquirira um estatuto capaz de legitimar discursos, de modo
a torná-los visíveis às malhas sociais da elite brasileira letrada. O nome
“língua portuguesa” deveria continuar como nome oficial da língua na
ótica desses parlamentares, porque se adequaria a toda uma tradição de
escrita cultivada pelos grandes nomes da literatura brasileira:

Não recuso o meu voto ao projetco do Sr Vereador Frederico Trotta, devido


ao facto de recear que pareça uma falta de patriotismo negar que no Brasil
se falla a lingua brasileira. Entretanto, immensa seria minha satisfação se o
brasileiro, que se falla e nosso paiz, fosse igual ao brasileiro que todos os
brasileiros escrevem. (Anais da Câmara Municipal do D. Federal de julho
de 1935. p.299, apud Dias, 1996,p.47).

Já para a segunda posição, que defendia a mudança da denominação


página 141

do idioma, viam no nome língua brasileira a expressão da própria nature-


za do País.
Adriana da Silva

Quando transplantada para o Brasil aqui se desenvolveu (a língua portugueza)


floriu, amalgamou-se, coloriu-se. De aldeã se tornou palaciana. Não há, portanto
motivo para chamal-a língua portugueza, pois em todas as leis natuaraes, bioló-
gicas e até siciaes, a maior quantidade absorve a menor [...] (Anais da Câmera
Municipal do D. Federal de agosto de 1935, p. 32, apud Dias, 1996, p.62).

Analisando essas duas vertentes acerca da discussão em torno do nome


da língua que seria definido no Brasil, o autor pontua que, como a questão
do nome do idioma estava sendo determinada pela questão da identidade
do cidadão brasileiro e da própria nação que ia se constituindo naquele
período, a relação entre a concepção de idioma e a concepção de naciona-
lidade era permeada pelo espaço em que o sujeito encontra a sua identi-
dade. Especificamente, o grupo que combatia a mudança do idioma e o
grupo que a defendia configuravam esse espaço diferentemente.
Segundo Dias, a análise da primeira perspectiva revelou o brasileiro
enquanto sujeito que se utiliza da língua falada no país e só é percebido
como cidadão tendo como referência o percurso de escrita. Esse fato apon-
ta para uma exclusão daqueles que não dominavam a escrita, que ficavam
alijados da categoria de cidadão.
Na segunda perspectiva, a identidade do brasileiro é deslocada para
uma região distante do debate social; esta região é aquela que constrói
uma imagem de brasileiro distante da realidade que o circunda. É em re-
lação a esses espaços, então, que se configurava a cidadania nas décadas
de 1930 e 1940 no Brasil.
Finalmente, assim como D. Pedro outorgou uma Constituição em 1823,
também em 1946, a comissão encarregada pelo governo brasileiro, em
atendimento ao estabelecido pela Constituição de 1946, decide que o nome
da língua falada no Brasil é língua portuguesa, mas esta questão da nome-
ação da língua que se fala em nosso país se põe e m momentos distintos
de nossa história e continua atrelada à nossa realidade quando se trata do
nome da língua a qual falamos no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo da colonização linguística é fundamental para compreender-


página 142

mos as questões políticas, ideológicas e sociais que fazem parte do proces-


so de historicização da nossa língua. A partir da heterogeneidade linguís-
tica pudemos entender como se dá essa relação entre países colonizados.
Língua, enunciação e história

Orlandi (2009) propõe uma importante reflexão em torno da redefinição


da palavra lusofonia e o que considera como descolonização.
Assim, acerca de todo esse processo político ideológico em que as lín-
guas se constituem, pudemos pensar na situação de conflitos de sentidos e
políticas linguísticas que circundam as questões no que diz respeito a nossa
língua enquanto uma língua brasileira. A memória institucionalizada da
língua portuguesa no Brasil, advinda de um processo vinculado a um ima-
ginário de unidade linguística, herança de uma colonização, faz-se sempre
presente quando pensamos o processo de historicização da nossa língua.
O conceito de descolonização, conforme propõe Orlandi (2009), deve
ser entendido como uma unidade, não mais nos remetendo ao passado
como referência, mas sim ao presente, com as nossas diferenças e como
elas se organizam (Orlandi, 2009).
Dessa forma, estamos sempre afetados pela herança da colonização,
submetidos a uma língua imposta e institucionalizada.
Orlandi (2009) propõe tecermos novas teorias que evidenciem a nossa
língua, apresentem a nossa diversidade e as nossas diferenças que estão
presentes tanto na discursividade, como na materialidade da língua.
A partir dessas proposições em torno do nome da língua, colocamos
uma questão: falamos a língua brasileira ou a língua portuguesa?
Para Orlandi (2009), essa questão é irrespondível, ou pelo menos imprevi-
sível, pois, segundo a autora, trata-se de uma denominação como qualquer
outra e não depende só do que nos diz o conhecimento sobre a nossa língua,
mesmo que já haja pesquisas avançadas mostrando que o que temos na rela-
ção com o português são mudanças, “um nome depende não só de argumen-
tos que tragam a marca da objetividade da ciência, mas depende de uma con-
juntura histórica mais ampla histórica e política” (Orlandi, 2009, p.193).
Assim, Orlandi considera que a questão do nome da língua é uma
questão de poder, uma questão de identidade, questão de memória e, por-
tanto, de ideologia e inconsciente.
A nós cabe então continuarmos nossas reflexões acerca das questões
que circundam a nossa língua, como por exemplo, a questão do nome da
língua a qual falamos que é uma discussão que se interpõe em momentos
distintos da nossa história e ainda continua atrelada à nossa realidade
página 143

produzindo efeitos e sentidos na relação do brasileiro com sua língua.


Adriana da Silva

REFERÊNCIAS

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NORMAND, Claudine. Saussure. São Paulo, SP, Estação Liberdade, 2009.


página 144
onze

Julio Cesar MACHADO1


ILEGALIDADE legal e
LEGALIDADE:1
um estudo enunciativo de inseparabilidade semântica

ADVERTÊNCIA: Uma digressão prefacial: algumas pessoas não deveriam ler


este artigo (não ouso fazer nomeações). A potencialização de certas interpreta-
ções, avessas às acentuadas neste trabalho, poderia convergir em perspectivas
futuras preocupantes. Mas como me calar, se guardar resultados do que se
descobriu seria infortúnio maior? Praticar Linguística é possibilitar cami-
nhos... Em qual deles enveredar-se já não é competência da Linguística. Quiçá
da moral... Faço aqui uma traquinagem: tiro a roupa da corrupção na moder-
nidade e saio correndo, legando questões intencionais, morais e terminais por
se resolver. Para piorar, torno-me inadimplente: que a pragmática pague a
primeira, a psicologia e filosofia quitem a segunda, e que a ciência política, a
sociologia e o jurídico labutem por saldar a última. Afinal, não cabe ao seman-
ticista resolver, apenas significar. Às outras pessoas que julgo fazer bom uso
deste texto (???), boa leitura! E perdoem-me a introspecção não científica.

1Mestre pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pelo PPGL/UFSCar. Professor da Fundação do


Ensino Superior de Passos filiada à Universidade Estadual de Minas Gerais - Fesp/UEMG; e
da Faculdade Integrada LIBERTAS-MG. Bolsista de Doutorado pela SRE-MG. São Sebastião
do Paraíso - MG. julio.semantica@gmail.com.
Julio Cesar Machado

INTRODUÇÃO: caçando raposa com estilingue2

T
oda semântica nasce por causa de um problema angular: a difícil
transposição entre palavra – coisa. Metaforicamente, diremos que
a coisa é a raposa, e a palavra, o estilingue. Definir, ler e descrever
é por si a arte da incompletude, o esmero pelo não alcançável. E
sobre essa insuficiência debruça-se este artigo. Nosso olhar para os estu-
dos semânticos partem do princípio de que ‚nossas línguas [...] são con-
denadas a uma perpétua falta de proporção entre a palavra e a coisa‛
(Bréal, 2008, p. 81). Um problema capital que agencia a Linguística até
hoje. Somos obrigados a concordar que ‚A expressão é tanto demasiado
ampla, quanto demasiada restrita‛ (Bréal, 2008, p. 81). Além disso, a ponte
utópica palavra – coisa é frágil demais, considerando que ‚não há dúvida
de que a linguagem designa as coisas de modo inexato e incompleto‛
(Bréal, 2008, p.123).
E no interior da semântica com essa problemática do inexato e do insu-
ficiente, elegemos investigar o objeto da corrupção. Adotamos uma postura
de refinamento teórico para captar melhor essa inexatidão mencionada,
em certas enunciações de sentidos fugidios e escorregadios, de definição
vaga e imprecisa, todas ligadas à corrupção, tendo em vista que ‚não há,
na tradição do pensamento político ocidental, consenso a respeito do que
vem a ser corrupção‛ (Filgueiras, 2008a, p. 353). Se há um hiato entre as
regularidades estabelecidas e os fatos observados (Guimarães, 2007, p.16),
para investigar a designação da corrupção, envolta pela imprecisão, op-
tamos por desenvolver um aparato teórico próprio que dê conta de tratar
o inexato entre o nível da observação/nível descritivo com cientificidade e
satisfatoriedade. Tal proposta se justifica pelo fato de que não é coerente
tratar enunciados de obscuridade ilógica por aparato teórico-enunciativo
que se apoie em raciocínio de claridade lógica.
Logramos soerguer um mecanismo no interior da Semântica Histórica da
Enunciação, que chamamos agitação enunciativa (a observação simultânea
da evidência e da aparência na enunciação), e seu dispositivo de operação no
interior da Semântica do Acontecimento, que nomeamos enunciador-
flutuante (o vão limítrofe entre dois lugares opostos). O estatuto da agitação
página 146

enunciativa possibilitar-nos-á apresentar essa propriedade em um nível téc-

2Agradeço a leitura e sugestões dos professores Dr. Luiz Francisco Dias (UFMG) e Dra.
Mónica Zoppi-Fontanna (Unicamp). Meu muito obrigado!
Ilegalidade legal e legalidade ilegal: um estudo enunciativo de inseparabilidade semântica

nico-teórico necessário e adequado à prática semântica, uma vez que o real


tem espessura complexa, e sua textura não é claramente manifesta, afinal, o
mundo não existe. Criamos o mundo pela enunciação. Em outras palavras, a
língua objetiva nos condena à precisão, embora o real seja flutuante: ‚o servi-
ço que nos prestam nossas línguas é o de impor-nos uma forma que nos im-
pede de ser vagos, que nos condena à precisão‛ (Bréal, 2008, p. 167). E a pre-
cisão é armadilha para todo semanticista. Retomamos nossa afirmação de
que ‚*...+ a existência não se explica, mas para que seja explicável, há condi-
ções‛ (Machado, 2010, p. 183). Essas condições foram aqui sugeridas como
dois braços rivais e indissociáveis: evidência e aparência (essência da agitação
enunciativa). Passemos a refletir sobre essa hipótese.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Assim como dissemos que o objeto não está previamente dado, mas é
passível de configuração, também não cremos em uma disposição teórica
fechada. A teoria, embora predisposta, é engendrada por uma especifici-
dade teórica própria que a particularidade do corpus reclama.
Como dito, a relação palavra-coisa não se dá de forma direta, mas pelo
modo transitivo e irregular do atravessamento político, social e histórico
intrínsecos ao ato de dizer. Repudiamos a abordagem estrutural palavra-
palavra, a filosófica palavra-mundo e a vericondicional palavra-verdade
em detrimento da proeminência palavra-sentido ou palavra-locutor (pos-
sibilitada pela historicidade), que constrói um objeto pelo viés enunciati-
vo, transcendendo essas relações anteriores. E, ao falar em sentido, vis-
lumbramos o modo como o real é significado na linguagem pelo memorá-
vel (instância enunciativa da historicidade).
Entendemos que o tratamento do sentido reclama um aparato teórico
capaz de processar ‚o fora‛ que o constitui, o além-estrutura e o além-
modo de raciocinar por vias elegantes da razão e da rigidez de um siste-
ma. Assim privilegiamos uma postura de pesquisa que eleja o inexato e a
não-razão no funcionamento da linguagem, bem como um modus operandi
menos simplista e mais sofisticado, compatibilizado com a complexidade
social, histórica e política da língua, que ponha em xeque os procedimen-
página 147

tos analíticos que vislumbram uma sociedade matematicamente regular


ou uma Linguística lógica ou veritativa. Para considerar essas vias, pro-
pomos a noção de agitação enunciativa (Machado, 2010).
Julio Cesar Machado

Desse modo, nosso construto teórico filia-se a um campo linguístico


maior e a um outro menor. Com isso, queremos dizer que nossa pesquisa
interessa não só pela contribuição de utilidade pública que conclama a voz
autorizada da Linguística, para tratar sentidos da corrupção, mas por con-
tinuar a desenvolver mecanismos teóricos extraordinários, fazendo avan-
çar a teoria da enunciação brasileira.
No que concerne à inscrição em um campo teórico maior, filiamo-nos à Se-
mântica Histórica da Enunciação3 (que acessa o sentido pela historicidade ine-
rente ao acontecimento enunciativo) enquanto teoria piloto deste trabalho, e à
Semântica do Acontecimento enquanto dispositivo metodológico-
procedimental analítico. Já no que concerne à inscrição em um campo teórico
menor, de modo inédito, filiamo-nos à agitação enunciativa por nós desenvol-
vida enquanto modus operandi de investigação dos dados, explanada adiante.
O objeto de estudo de nossa linha teórica é a enunciação. Por isso, nos-
sa unidade de análise é o enunciado enquanto inserido em um texto4. Di-
zemos que esse texto constitui-se enquanto tal pelo funcionamento da
língua. E essa especificidade do funcionamento da língua é por nós trata-
da como acontecimento (enunciativo). Assim, o acontecimento é um recor-
te do dizer, que não acontece em um tempo, mas temporaliza, que não é
constituído pelo sujeito, mas constitui sujeitos, que não veicula sentidos
domesticados, mas produz efeitos de sentido de forma não estabilizada.

A teoria da agitação enunciativa

A teoria da agitação foi desenvolvida pelo filósofo lógico-marxista Ge-


org Klaus em sua obra Sprache der Politik (Klaus, 1971), e trazida para a
Linguística por Pêcheux (2009). Klaus observou que há na linguagem uma
distinção entre o ser (Wesen) e a aparência (Schein).
Propomos um deslocamento da teoria da agitação para a agitação enunci-
ativa. Isto é, abandonamos o memorável da divisão platônica Lógica/Retórica
desse autor, uma vez que nosso ponto de vista teórico dele se afasta, e refor-
mulando principalmente as propriedades primárias de existência/aparência
para enunciação de evidência e enunciação de aparência, abandonando o olhar
página 148

3Tal como desenvolvida, basilarmente, por Guimarães (2002, 2007, 2009).


4Texto: ‚unidade significativa sem a qual é impossível que um enunciado signifique‛
(Guimarães, 2007, p. 5). Por essa ideia de texto, o enunciado só terá sentido se inserir-se em
outra unidade maior.
Ilegalidade legal e legalidade ilegal: um estudo enunciativo de inseparabilidade semântica

físico, empírico, filosófico de Klaus, em detrimento de uma materialidade


linguística em funcionamento, típica de pesquisas enunciativas.
Em momentos anteriores (Machado, 2010) começamos a perscrutar a
pertinência da agitação no molde tradicional dicotômico de fazer Linguís-
tica de muitos pesquisadores: significante/significado (Bally, Sechehaye,
1995), semiótico/semântico (Benveniste, 2006), nível externo/interno (Du-
crot, 1987) e argumentação interna e externa (Carel, Ducrot, 2003), estrutu-
ra/acontecimento (Pêcheux, 2008) e língua/alíngua (Gadet, Pêcheux, 2004),
dito/não-dito (Orlandi, 2007), dentre vários5. Amparados nessa prática
dicotômica, propomos pensar esses pares enunciativamente no formato de
evidência/aparência: duas propriedades contrárias, mas sempre indissociá-
veis. Perceptíveis, mas não separáveis (a não ser pela interpretação do
semanticista). Contudo, numa análise não basta apenas propor uma visua-
lização do objeto, é necessário ponderar dispositivos de operação, em con-
formidade com a inscrição teórica. Teríamos que oferecer então, um me-
canismo para manipular a agitação enunciativa, no interior da cena enun-
ciativa (noção que perscruta elementos e personagens do acontecimento
enunciativo). Assim, por razões práticas, explorar os dados de certo enun-
ciado pela perspectiva da agitação enunciativa seria acessível pela propos-
ta de um novo enunciador: o enunciador-flutuante.

O enunciador-flutuante

A cena enunciativa é a noção que expõe, no acontecimento, o interior


de um jogo de falantes incluídos e excluídos em certo lugar de dizer, e
suas interpretações de pertencimento e despertencimento nesses lugares.
Compõem a cena enunciativa as personagens: Locutor (com maiúscula,
que representa a origem do dizer) e locutor (com minúscula, que represen-
ta o lugar social do dizer). Locutor e locutor funcionam pautando-se em
um lugar de dizer que se pretende não social e não histórico, denominado
enunciador. Deste modo, por exemplo, no enunciado ‚Fiz empréstimos *...+.
Desconheço a prática de mensalão‛ (Brasil, 2006), temos o Locutor Marcos-
Valério que fala enquanto locutor-empresário, pautando-se em um lugar de
dizer de enunciador-aliado (argumentando para o despertencimento de um
página 149

5Na ocasião de nossa Dissertação, fizemos uma leitura enunciativa pelo viés da agitação
em cada uma dessas predisposições dicotômicas, cuja reprodução torna-se inviável aqui
devido à sua grande extensão.
Julio Cesar Machado

enunciador-mensaleiro). Esse enunciador merece uma atenção maior de-


vido à nossa proposta de atualização teórica (a flutuância).
Na esteira de alguns autores, entendemos que pelo menos os estudos
semânticos (Bréal, 2008), filosóficos (Rancière, 1996) e enunciativos (Gui-
marães 1997) já haviam se deparado, não raras vezes, com o fenômeno de
simultaneidade de sentidos opostos, no interior de um mesmo enunciado,
mas sem tratamento teórico adequado, como por exemplo os dizeres:
‚Não vou dizer que fiz, mas não vou dizer que não fiz‛ (orientação no
entremeio do sim e do não), ou ‚o sem-terra agora usufrui de terra‛ (ori-
entação que assume o limite de ter e não ter) ou ainda ‚o emo adota visual
estilístico e comportamento masculino e feminino simultâneos‛ (confusão
ou dificuldade de supor sua orientação sexual) etc. A tal funcionamento
em agitação (oposto, mas ‚siamês‛) que Bréal nomeou flutuação externa,
Rancière nomeou flutuância não identitária e Guimarães nomeou indisso-
ciabilidade entre político e ético, nós propomos trabalhar como enunciador-
flutuante, inscrevendo-o na nossa elaboração da agitação enunciativa. Ele
constituirá uma lente metodológica específica e adequada para aconteci-
mentos como os acima citados.
Guimarães (2002, p. 26) propõe três enunciadores: universal (lugar de
dizer submetido ao regime do verdadeiro ou falso), genérico (lugar de di-
zer da repetição do dito popular) e inidividual (lugar de dizer da circuns-
tancialidade e da independência da história). Assim, por exemplo, ‚a água
é essencial à vida‛ baseia-se num E-universal, ‚a cavalo dado não se olha
os dentes‛ pauta-se num E-genérico e ‚eu não sou ladrão‛ proviria de um
E-individual. Contudo, temos acentuado a dificuldade teórica em tratar do
lugar de dizer (enunciador) de enunciados de entremeio, como em ‚não
sou alegre nem sou triste: sou poeta‛ (Meireles, 2006), que se afasta de um
enunciador de bondade e de maldade, flutuando em um não-lugar. A tal
predisposição temos chamado de enunciador-flutuante. Como temos dito,
há farto registro de acontecimentos que nos permite observar que a socie-
dade moderna não mais se dispõe em lugares de dizer X ou não-X, ou em
lugares inteiriços X, Y, Z etc., senão num feitio flutuante de lugares X/não-
X simultâneos, ou nas posições mistas X-Y, Y-Z, X-Z etc., e tal disposição é
amplamente observada em enunciações da política, da moda, da arquite-
página 150

tura, da literatura etc.


Ancorados em Rancière (1996, p. 103), quando afirma que o povo ‚é
uma unidade que não consiste em nenhum grupo social‛, dizemos que
Ilegalidade legal e legalidade ilegal: um estudo enunciativo de inseparabilidade semântica

são ‚sujeitos flutuantes que transtornam toda a representação dos lugares e


parcelas‛, e, em Guimarães (1997, p.3), que numa fugidia antecipação teó-
rica desse enunciador-flutuante, desvela um dizer atravessado pelo políti-
co no episódio de Córax e Tísias (quando Córax enuncia do lugar de aluno
e professor simultaneamente: aluno ao demonstrar o que aprendeu, e pro-
fessor ao julgar seu maior hierárquico), queremos assumir efetivamente a
possibilidade teórica de um enunciador-flutuante.
Assim, podemos observar em enunciados como este, recortado do Re-
latório do ‚caso mensalão‛: ‚Não digo que foi irregular. Não foi, porque
havia o contrato, mas sem necessidade‛ (Brasil, 2006, p. 398), que ele não
se decide sobre o sentido, vacila indeciso entre um enunciador de respon-
sabilidade (porque havia um contrato) e de irresponsabilidade (porque esban-
jou um bilhão de reais sem necessidade). E por mais que se queira, uma
decisão partidária não é tão simples. Devemos investigar o sentido desse
enunciado na sua simultaneidade: as propriedades opostas e intrínsecas.
Percebe-se a impossibilidade de apartar a evidência de ilegalidade da apa-
rência de legalidade. Sendo assim, propomos uma metodologia não de
separação, para produzir efeitos de sentido, mas de simultaneidade, para
obter efeitos de sentido com maior fidelidade ao acontecimento.
É importante pormenorizar e distinguir bem que o enunciador-
flutuante não se trata da ideia de implícito ou pressuposição (por que não
traz um Y por meio de X, mas da identificação de X/Y simultâneos, no
mesmo enunciado), nem de equívoco (porque não é um X que pode vir a
ser Y pela falha, mas de X/Y intrínsecos ao enunciado), nem de incomple-
tude (porque não é uma interpretação Y dada a partir de X, mas da ima-
nência semântica de X/Y no interior do mesmo enunciado) e nem de polí-
tico, com já dito (porque não é um embate nem divisão entre X versus Y,
mas uma simultaneidade de X/Y). Preferimos falar em uma metodologia
de indissociabilidade, uma tautocronia de dois lugares antagônicos conju-
gados juntos por/em um acontecimento, determinado pela agitação enun-
ciativa que o constitui (Machado, 2010, p. 173). Em um único acontecimen-
to, temos, por nosso olhar, não um jogo de abafamento, mas de indissoci-
abilidade: a enunciação de evidência argumenta para calar a enunciação
de aparência, e a enunciação de aparência argumenta para calar a enunci-
página 151

ação de evidência, em vão. E embora tenhamos usado o termo ‚calar‛, não


cremos ser adequada a noção de silenciamento. Não há silenciamento,
mas agitação: no acontecimento enunciativo, a aparência ‚grita‛ dentro da
Julio Cesar Machado

evidência, e a evidência não cessa sua voz, inconvenientemente, dentro


das enunciações de aparência. Dinamizemos a aplicabilidade dessa teoria.

METODOLOGIA

A pertinência do nosso trabalho é propor uma tripla metodologia para


potencializar a prática dos estudos enunciativos, especificamente da Se-
mântica Histórica da Enunciação. Ela consiste em um triplo olhar: pelo
memorável, pelo político e pela agitação. E não se trata aqui de eleger um
olhar mor, de desmerecer outros, mas de elevar a análise linguística a um
primor de completude ao considerar os três olhares (o que transversal-
mente postula que um só, ou dois desses olhares, é (são) insuficiente(s)
para a riqueza semântica do acontecimento).
Se pensarmos sempre em dois lados para tratar o aspecto semântico (evi-
dência/aparência), entendendo um como positivo e outro como negativo,
sejam eles o que for, em certa medida podemos afirmar que, pelo viés do
memorável, o sentido é orientativo (+ ou –), pelo viés do político o sentido é de
disputa (+ versus –), e pelo viés de agitação o sentido é cúmplice (+ mais –). As
três faces do sentido devem ser consideradas, uma atravessa a outra. Pensar a
semântica por apenas um viés, é, em nossa perspectiva de análise, demasiada
incompleta. Por isso, podemos dizer que as conclusões semânticas fechadas,
findadas, são um tanto que interpretações de semanticistas que conduzem a
análise, que se ancorou por demais em um desses três mirantes.
É importante pontuar que esses três olhares trabalham conjuntamente.
Uma vez que todo acontecimento é um acontecimento político (Guima-
rães, 2002), falar em sentido é falar em memorável (Schreiber da Silva,
2009) e há indissociabilidade de contrários no interior dos lugares de dizer
– enunciador (Guimarães, 1997).
Todo dizer instaura uma aparência e uma evidência, indissociáveis (a-
gitação). O que há são tentativas de dissociabilidade (memorável e políti-
co) e efeitos de enunciação que farão um ou outro prevalecer. Se versar-
mos a agitação pela noção de argumentação, diremos que a enunciação de
evidência sempre terá uma orientação para a aparência, que a incomoda-
página 152

rá, da mesma forma, a aparência sempre terá uma orientação futura de


evidência. Por isso, o fechamento de análises na direção X ou Y desvela a
Ilegalidade legal e legalidade ilegal: um estudo enunciativo de inseparabilidade semântica

condição subjetiva da interpretação como efeito de conclusão. Nossa pos-


tura gera, por outro lado, um efeito de nunca esgotamento de resultados.
Por outro lado, convencionamos que o gesto de designar trata-se de olhar
o objeto de três modos distintos. De três lugares. Como dissemos (Machado,
2010, p. 183), ‚*...+ a designação é a experiência de ‘tentar afinar as três cordas
das enunciações da corrupção no mesmo tom’: o objeto imaginário, o objeto ina-
cessível, e o objeto interpretado, que juntos constituem o real da corrupção‛. Tudo
isso amarrado ao nó da nossa coerência de autoria (o percurso panorâmico-
teórico proposto). Assim temos o que se pensa dos repasses de verbas, conhe-
cido como mensalão (imaginário), o que de fato foram os repasses (real ina-
tingível, sem testemunhas ativas, inclusive), e as várias interpretações dos
repasses. E em nossa autoria diremos que essa tríade é reescrita por conden-
sação, de um modo transversal, à distância, como corrupção.

ANÁLISE

Articularemos uma curta análise que perscrutará a designação do obje-


to repasse de dinheiro, proveniente do Relatório Final dos Trabalhos da CPMI
“dos Correios” (vulgo ‚caso mensalão‛). Nele, é explícito o jogo entre lega-
lidade e ilegalidade (empréstimo e mensalão). Consideremos:

(1) O SR. ROBERTO JEFFERSON (PTB-RJ) – [...] o Sr. Marcos Valério, um


carequinha que é publicitário lá de Minas Gerais, repassa dinheiro a parti-
dos que compõem a base de sustentação do Governo num negócio chama-
do mensalão (BRASIL, 2006, p. 499).

(2) O SR. MARCOS VALÉRIO FERNANDES DE SOUZA – O chefe da sua


empresa vira para você e lhe pede um empréstimo: me dá dez reais, me
empresta dez reais. Você sabe que ele tem condições de pagar. Aí fica difícil
você negar (BRASIL, 2006, p. 508 e 539).

Nos recortes acima, uma movimentação argumentativa pelo sentido


instaura-se como perspectiva de solução, reescriturando os repasses ora
pela evidência de mensalão (1) ora pela aparência de empréstimo (2). Neste
Relatório, o funcionamento da língua é determinado pela acentuação das
página 153

exaustivas reescritas entre dois lados politicamente opostos (crime versus


não-crime). Contudo, não cremos que deveríamos fazer apenas um traba-
Julio Cesar Machado

lho político, ou dois trabalhos designativos (um para estudar o objeto cri-
me (mensalão) e outro para investigar o objeto não-crime (empréstimo).
Entendemos que é produtivo estudar também o limite entre essa oposição,
que explicita nosso objeto de estudo: a corrupção. Queremos flagrar uma
corrupção legal-ilegal.
Antes de compassar nossa metodologia, iniciemos a análise ponderando
as seguintes insuficiências ou choques teóricos ao vislumbrar o enunciado (2):

 como resolver teoricamente uma enunciação que se pauta em dois


lugares de dizer ao mesmo tempo? Isto é, dado o enunciado ‚O
chefe da sua empresa vira para você e lhe pede um emprésti-
mo:*...+ Aí fica difícil você negar‛ (Brasil, 2006, p. 508 e 539), por
um modo heurístico de paráfrase, significa:

2a) ‚Consenti emprestar sem querer emprestar‛ e também


2b) ‚Vou correr um risco sem querer correr um risco‛.

Onde se desvenda que (2) foi enunciado por sobre dois enunciadores
contrários:

E-universal: ‚ninguém põe a vida financeira em risco‛ e


E-genérico: ‚corre-se risco confiando nos amigos‛.

Pergunta-se: como manipular, operar e conceber teoricamente um a-


contecimento que se pauta em dois lugares opostos e simultâneos de e-
nunciador em agitação, risco/não-risco?
À guisa de um rigor de cientificidade, preferimos afirmar (Machado,
2010, p. 156) que não cremos que tal condição limítrofe do enunciado (2)
se trata de um ponto de vista analítico partidário, sequer de noções forja-
das de ‚revezamento‛, ou ‚intervalos‛, ou qualquer outro nome que não
represente bem as condições enunciativas em si e sua cena. Queremos
entender essa ilógica descritivamente tal como se deu no acontecimento,
no entremeio em que se constituiu, o que não significa uma soma de luga-
res, mas uma simultaneidade, não significa dois momentos, mas um só,
página 154

não se divide em duas partes, mas é um único acontecimento com propri-


edades distintas indissociáveis.
Ilegalidade legal e legalidade ilegal: um estudo enunciativo de inseparabilidade semântica

Por isso, é razoável que se entenda a enunciação (2) pelo mirante atípi-
co de entremeio, despertencido da lógica:

E-flutuante: ‚proceder prudentemente no círculo de amizade/proceder impru-


dentemente confiando na amizade”.

Um enunciador apenas, de duas orientações, que sagra a realidade es-


corregadia da semântica, sempre em agitação.
Prosseguindo à análise, passemos a perscrutar os sentidos dos enuncia-
dos/texto acima cadenciados pela tripla metodologia proposta. Apresenta-
mos basicamente três nortes para o sentido de enunciações que envolvem a
corrupção. Considerando que nos recortes temos (+) empréstimo como defi-
nições dos acusados e (–) mensalão como definição dos acusadores:

1. Pelo olhar do POLÍTICO a corrupção não se define, porque o sentido


é de disputa, falar em corrupção é instaurar debate (+ versus –). Corrupção
se perpetuará entre ‚empréstimo versus mensalão‛. É o olhar mor do âmbi-
to jurídico. Numa disposição relacional, é essencial que se diga que o jurí-
dico interpreta para fechar os sentidos (veredicto) e a Linguística interpre-
ta para abrir sentidos. Se o jurídico precisa fechar sentidos, o eterno emba-
te ‚mensalão versus empréstimo‛ é fechado pela voz performativizadora
do juiz, historicamente constituído para semantizar as causas legais;

2. Pelo olhar do MEMORÁVEL, a corrupção pode ser apreciável ou e-


xecrável porque o sentido é orientativo, dependente de recortes (+ ou –).
Definições de corrupção seguem uma única linha porque são futuridades
que dependem de recortes de memoráveis: se o memorável é (+), a cor-
rupção é (+); se o memorável é (–) a corrupção é (–). Falar em corrupção é
proceder a recortes: ela será ‚empréstimo ou mensalão‛. É inevitável que,
ao recortar-se um passado, o presente do acontecimento signifique com
uma orientação a ele atrelada. O memorável é a condição do sentido. Con-
tudo, a análise também não poderia resumir-se a este olhar. O estaciona-
mento de uma orientação única de sentido é apenas uma utopia, fruto de
uma parcialidade metodológica (só o olhar de memorável), que afunila o
página 155

sentido a partir de recortes determinados pelo texto em que acontecem, e


seletos conforme as preferências de recortes do semanticista. No caso do
Relatório do ‚mensalão‛, a seleção de memoráveis distintos pelos dois
Julio Cesar Machado

grupos de acusação e defesa (um rememora para o sentido de mensalão, e


o outro rememora para o sentido de empréstimo) extingue a agitação em
uma única direção, cada um. Dever-se-ia, para uma completude analítica,
considerar ainda o choque de interpretações entre esses adversários (o
político), bem como os efeitos de certos enunciados em que a separação
desses dois sentidos é impossível (a agitação);
3. Pelo viés da AGITAÇÃO, existe legitimidade na corrupção, porque o
sentido é cúmplice (+ mais –). Pode-se ‚errar‛ quando se é amparado pela
legitimidade. Aqui corrupção é ‚empréstimo mais mensalão‛. Portanto,
não há como enquadrá-la no isolamento de crime, porque há não-crime no
seu interior, e não se pode tratá-la por procedimento honesto, porque
também há ilegalidade na sua essência. Corrupção é uma discrepância
simultânea que permite seu funcionamento. Pela agitação conseguimos
entender que a corrupção triunfa na modernidade enunciativa, de vilã
para vizinha. Pelos recortes, corrupção não é empréstimo e é ao mesmo
tempo. Mensalão é corrupção, mas também não é. Evidência incomoda
aparência, e vice-versa, porque um não consegue se livrar do outro.

Podemos ainda observar que, nessa dupla orientação, a corrupção passa


a funcionar porque a Lei lhe dá força (embora a Lei queira exterminá-la).
Pois ao legitimar um repasse como empréstimo, suspeição, favor, auxílio,
atos sem necessidade, donativo etc., rejeitando nomeações como crime ou
desvio, promove esses sentidos positivos e essas práticas. ‚Estranhezas‛
como estas do repasse atingem um patamar legítimo de existência, como
que um ‚ilícito legalizado‛, e nessa disposição designamos a corrupção.

CONCLUSÃO

Três aspectos de nossa reflexão merecem condensação e relevo:

(I) Um teórico (relação ‚nossa proposta – estudos enunciativos‛);


(II) Um político de linguagem (relação semântica – outras disciplinas‛);
(III) Um designativo (relação ‚corrupção – crime – não-crime‛).
página 156

No que tange ao nosso dispositivo (I), vimos que a agitação enunciativa


é relevante porque consegue sanar uma problemática semântica forte: a de
enunciados de aspecto flutuante, não ancorados, que, pela ausência de
Ilegalidade legal e legalidade ilegal: um estudo enunciativo de inseparabilidade semântica

dispositivo adequado, eram até então tratados por arcabouço teórico limi-
tado quanto a essas flutuâncias. Sem o olhar de agitação, corre-se o risco
de ‚forçar‛ análises, resultando em incoerências, como tentativas de en-
quadrar acontecimentos enunciativos sobre a corrupção em dispositivos
unívocos. A agitação proporciona um modo de raciocinar a enunciação (e
o sentido) sem ‚forjá-la‛ em dispositivos situacionais, insistência linguísti-
co-científica altamente em voga. E não basta apenas refutar univocidades
semânticas em análises. Para dizê-lo, deve-se dispor de arcabouço teórico
que o comprove. E desse arcabouço carecia os estudos enunciativos.
Uma proposta tal como sugerimos proporciona, pelo menos, certos e-
feitos nos estudos enunciativos e semânticos da Linguística, quais forem:
continuidades, aprofundamentos, reconfigurações, atualizações, incômo-
dos etc. No mínimo, nossa sugestão incomoda a Semântica Histórica da
Enunciação em pelo menos dois pontos:

1) Provoca-a quanto a pesquisas limítrofes (a exemplo da corrupção),


instigando-a a portar-se diante de funcionamentos flutuantes (transtor-
nando a metodologia semântica tradicional de ‚X é Y‛ para aspectos mais
requintados como ‚X é não-X‛ ou ‚X é Y e não-Y‛. Produz no seu interior
uma perspectiva de orientação futura em que essa ciência precisa progre-
dir quanto a indissociabilidade entre as espessuras evidentes/aparentes,
pois o exercício da enunciação não é uma ancoragem só universal, só ge-
nérica ou só individual, mesmo que haja predominância ou efeitos inte-
grais dessas marcações;
2) Sugere a ela uma ampliação metodológica ao ladear com os olhares
histórico-memorável e político, o olhar pela agitação enunciativa, vislum-
brada no enunciador-flutuante, culminando num horizonte analítico me-
nos convencional e lógico, o que não afronta, por isso, a disposição da
Semântica do Acontecimento. Ao contrário, potencializa-a, possibilitando
prismas analíticos que transtornam lugares absolutos, e, consequentemen-
te, sentidos absolutos, primor da modernidade.

No que concerne à determinação da política dos estudos da linguagem


atualmente (II), nosso trabalho prova que a pesquisa linguístico-semântica
página 157

é tão valiosa em assuntos de utilidade pública quanto qualquer outra ci-


ência social, e chega a ser fundamental sua presença em certas discussões,
uma vez que não só as inúmeras ramificações da Linguística valem-se da
Julio Cesar Machado

investigação dos sentidos, como também a sociologia, a ciência política, a


história crítica, os serviços sociais, a filosofia ética, a jurisprudência, o jor-
nalismo etc., valem-se do aspecto linguístico e de certa interpretação se-
mântica dos dados para esmiuçar suas hipóteses. Em outras palavras, to-
das essas ciências atrevem-se a fazer semântica, mesmo que por intuição,
decodificação, introspecção, critérios ínfimos, enfim, que pedem um su-
porte semântico teórico arrojado para lograr cientificidade razoável nas
suas indagações e afirmações. Assim, nosso trabalho pode proporcionar
viabilidade a todas elas. Ademais, a semântica não é invocada apenas em
discussões polêmicas, ela pode satisfazer também, com maior precisão,
aparatos teóricos de ciências que utilizam a linguagem, elevando-a a um
lugar de privilégio entre as ciências consagradas como a saúde e a tecno-
logia, ao expor-se como força motriz para interação e efetivação descriti-
vo-analítica de tais ciências, bem como mostrar-se degrau fundamental de
certas discussões sociais que urgem na sociedade.
Por outro lado, após essas considerações metateóricas, no que concerne
especificamente ao objeto deste artigo (III), é compreensível que tratar a
corrupção por procedimentos de ‚certo‛ e ‚errado‛ não vinga uma análise
e não representa bem seu funcionamento atual, corroborando nossa hipó-
tese de que há uma agitação semântica no interior de cada acontecimento
enunciativo. A corrupção ultrapassa delimitações sócio-históricas constru-
ídas de ‚poder fazer‛ ou ‚não poder fazer‛, predispondo-se em moldes de
ausência de limite, como em ‚poder e não poder fazer‛ ao mesmo tempo.
Não queremos afirmar uma evidência de que corrupção é um crime le-
galizado (o que seria apenas um olhar pelo memorável, que geraria um
efeito polêmico ao confrontar o passado de ‚condenável‛ com o presente
de ‚praticável‛), mas inscrevemos a corrupção na aparência do interior de
um não-limite, que joga com o ‚poder‛ e ‚não-poder‛, nos formatos de
político, memorável e agitação, oscilando suas definições e legitimando
seu funcionamento. E antes que surjam paráfrases errôneas, afirmamos
que, de forma alguma, estamos dizendo que não há solução para corrup-
ção (e nem que há). Limitamo-nos a expor seu funcionamento na atuali-
dade brasileira, apenas o que cabe ao estudo semântico enunciativo. O
estudo da solução seria responsabilidade de outras ciências (Jurídico? Ci-
página 158

ência política? Sociologia? etc.). Para poder tocar a corrupção, um estudo


semântico como este expôs como é uma armadilha pensá-la por um pris-
Ilegalidade legal e legalidade ilegal: um estudo enunciativo de inseparabilidade semântica

ma de solução, ao invés de um prisma de significação. A solução pode ser


consequência, mas não ângulo de análise.
Como palavras finais, diríamos que, ratificada ou retificada posterior-
mente, nossa proposta, no mínimo, já contribuiu com a Linguística ao ex-
por que a sociedade funciona de forma desestabilizada (já o sabemos),
mas ainda é pensada teoricamente de forma estabilizada. E esse entrave,
embora já tenhamos sugestões razoáveis de diversos trabalhos, ainda está
por se resolver nos estudos enunciativos...

REFERÊNCIAS

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2008.

CONGRESSO NACIONAL. Relatório Final dos Trabalhos da CPMI “dos Correios”. Brasília,
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MACHADO, J. C. Um estudo designativo em fronteiras enunciativas: a corrupção pelo prisma da Semântica


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Graduação em Linguística, da Universidade Federal de São Carlos – PPGL/UFSCar, São Carlos, 2010.

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página 159

ção entre línguas. In: SEAD – Seminário de Estudos em Análise do Discurso, IV, novembro de
2009. UFRGS. Resumo. Porto Alegre: CAPES/IL/PP GL/UFRGS, 2009. CD-ROM, p.1.
página 160 Julio Cesar Machado
PARTE IV
estudos BAKHTINIANOS
e reflexões DIALÓGICAS
página 162 PARTE IV
doze

Hélio Márcio PAJEÚ1 & Valdemir MIOTELLO2


ESTILO E autoria no
ORBE da criação
COLABORATIVA:12
o teatro narrativo de Luís Alberto de Abreu

N
este trabalho nos concentraremos a discutir estilo e
autoria fundamentados no processo de criação dramática
do qual se vale o dramaturgo brasileiro Luís Alberto de
Abreu. Não pretendemos traçar uma compreensão do
estilo apregoado por este homem de teatro em sua obra partindo de
uma perspectiva que marca a dicotomia dos estudos da estilística
clássica e da lingüística e retórica que, respectivamente, concebem
uma idéia de estilo que vincula a expressão singular do sujeito como
marca da individualidade do autor na matéria por ele tratada, o que
descamba para o subjetivismo idealista, o qual não queremos chegar;

1 Mestre pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pelo PPGL/UFSCar. Bolsista FAPESP. São Carlos
- SP. Pesquisador do GEGe. heliopajeu@yahoo.com.br.
2 Mestre e Doutor pela UNICAMP. Prof. Dr. do Departamento de Letras e do PPGL/UFSCar.

miotello@terra.com.br.
Hélio Márcio Pajeú & Valdemir Miotello

ou aquele estilo que se fundamenta numa perspectiva objetivo-abstrata que


se dirige somente para a criação, deslembrando seu criador,
compreendendo o estilo apenas como uma forma de organização do texto a
partir das possibilidades que são oferecidas pelo léxico e pela língua.
Buscaremos ver o estilo pousado no ponto do meio, entre a subjetividade
dos sujeitos discursivos, da autoria, e o que se materializa na obra a partir
das possibilidades da língua, das relações, dos gêneros, etc. Desta maneira,
procuraremos entender o estilo que aparece na obra deste autor
fundamentado no diálogo e na polifonia que se estabelece dentro do seu
discurso, ao dar voz a outros sujeitos e incorporar ao seu texto discursos
correntes, fazendo ao mesmo tempo uma aposta na concepção daquilo que
marca sua arquitetônica; isto é, seu estilo estético.
Não nos prenderemos a nomear o estilo encontrado neste processo de
criação como apenas de Abreu, posto que, este caminho apagaria o coro
de vozes que ecoam dentro do seu discurso, considerando que neste estilo
há mais que duas consciências que o constitui, há mais de um grupo social
que é representado e que faz ressoar suas falas na materialidade a qual o
dramaturgo dá a feição final.
Para nós o estilo nesta concepção se fundamenta a partir da interação
dialógica da linguagem, como processo constitutivo, que nos ensina
Bakhtin, uma vez que na criação colaborativa temos imbricado o estilo dos
diversos sujeitos que falam em seu interior. Deste modo, levamos nossos
pensamentos ao encontro dos de Brait (2006, p.59) ao deixar de pensar a
questão do estilo

a partir da produção tomada na sua individualidade, na sua autonomia,


enquanto idiossincrasia de um enunciador ou enquanto produto do
engendramento exclusivo de um texto auto-suficiente, para ser tratada a partir
do pensamento bakhtiniano, ou seja, a linguagem pensada como atividade,
dentro de atividades específicas e concretas.

Assim, como Bakhtin (1976) enxergamos o estilo como sendo um


fenômeno de natureza social, ao colocar dentro de um mesmo caçuá o autor,
o tema, o herói e o interlocutor (ouvinte), como a força viva que compõe e
abotoa o tema, a forma e a substância de uma criação estética. Ao ponderar
página 164

um estilo que se constitui de alteridades, o vemos como um ato que implica


relação, interação entre consciências, sujeitos. No orbe da criação dramática,
o estilo que costura seus passos é uma construção do círculo da
Estilo e autoria no órbe da criação colaborativa: o teatro narrativo de Luís Alberto de Abreu

individualidade das consciências que o integra, uma singularidade


individual e coletiva, por meio da qual aparecem as marcas do cenógrafo,
do diretor, do encenador, do sonoplasta, do dramaturgo, etc.
Bakhtin (2003, p.376) escreveu que o que há por trás do estilo é o ponto
de vista total de uma individualidade total e ao mesmo tempo coletiva. O
código pressupõe uma espécie de conteúdo já pronto e a concretização de
uma escolha entre códigos dados. Deste modo, o autor criador é um
momento constitutivo, mas não o determinante, da forma artística da obra
estética e do seu estilo. Claro que a sua singularidade marca território, ao
contrário disso, esta figura perderia sua função, porém, não numa
perspectiva dialética de Hegel, por exemplo.
Olhando para o texto BorAndá: auto do migrante, assinado por Abreu, e
este se tratando de um gênero secundário, mais elaborado, mais complexo,
o estilo que é nele impresso caminha para uma perspectiva que junta no
mesmo alguidar a dimensão verbal, verbo-visual, extra-verbal que é
intrínseca ao gênero da ação dramática: como a mímica, a encenação, a
indumentária, a sonoplastia, a cenografia, etc. Algo que se materializa como
um traço singular da autoria de Abreu, e aparece nesta trama, é sua
insistência e recuperação de heróis saltimbancos criados por ele outrora,
como: Abu, Benecasta, João Teité, Matias Cão, e outros, que aparecem no
Auto da Paixão e da Alegria, Sacra Folia, Eh Turtuvia, Burundanga, O Anel
de Magalão, como também em outras criações de sua autoria.

Na leitura (na execução) de um dado texto, o contexto extra-textual,


entonacional, dos valores pode realizar-se apenas parcialmente, ficando em sua
maior parte, particularmente em suas camadas mais substanciais e profundas,
fora do texto dado para a percepção ao qual ele confere um fundo dialogizante.
É a isto que se resume, até certo ponto, o problema do condicionamento social
(transverbal) de uma obra. Um texto — impresso, manuscrito ou oral, isto é,
atualizado — não é igual à obra em seu todo (ou ao “objeto estético"). A obra
também engloba necessariamente seu contexto extra-textual. A obra parece
envolver-se na música entonacional e valorativa do contexto em que é
compreendida e julgada (este contexto, claro, varia conforme as épocas da
percepção da obra, o que cria sua nova ressonância). (Bakhtin, 2003, p.411).

Assim, vemos em sua obra uma coreografia de gestos, de vozes, de


página 165

outros, dirigida e ensaiada sob melodias harmônicas e dissonantes, em


que os discursos transitam sem fronteiras claras entre a voz do
dramaturgo e a voz do outro, e os atos da vida cotidiana aparecem
Hélio Márcio Pajeú & Valdemir Miotello

apoiados pelo visual, verbal, musical, nos entremeios dos jogos cênicos e
criativos da arte, do outro, do mundo, que são elementos norteadores do
estilo que se materializa no arranjo deste dramaturgo.
Isso quer dizer que para se entender o estilo apregoado em BorAndá
não se pode extraí-lo do seu contexto de criação, sobretudo, do processo
criativo do qual este texto emerge. Assim, olhando para todo o redor
desse processo, ensaiaremos empreender uma reflexão em torno do
movimento que constitui Abreu como um autor de um estilo bem
delineado que alega seus traços definidores dentro das produções
dramáticas na contemporaneidade.
Na dramaturgia desenvolvida por este sábio homem o que está no
princípio é a imagem e a imagem se faz verbo e esse conjunto se adoça na
boca de heróis, ao ser levado ao palco e virar atividade estética por meio
do processo da criação colaborativa, que ele denomina ser uma

experiência criativa e coletiva, que tem sido objeto de estudo e desenvolvimento


na Escola Livre de Teatro de Santo André, com o nome de processo
colaborativo (e não método colaborativo) não só para preservar o caráter vasto
e intuitivo da criação, como pelo cuidado, nunca desnecessário, de não objetivar
excessivamente o fim pretendido. Não era, e nem é, nossa pretensão estabelecer
um conjunto de regras para levar a bom termo a criação de um espetáculo
teatral. Sabemos por experiência que a criação artística, embora seja uma
geometria racional possui elementos imponderáveis, e não queríamos proceder
como se estivéssemos diante de um objeto de estudo apenas científico. Isso não
significa que o processo colaborativo abra mão de alguns princípios
norteadores, sem os quais os riscos do processo de criação cair num
subjetivismo vazio são por demais evidentes. (Abreu, 2003, p.33).

Tal processo se inspira na criação coletiva disseminada no Brasil desde


a década de 1970, porém, começou a se erigir como o é conhecido
atualmente no começo dos anos 1990, em que se destacam a Cia. Teatro da
Vertigem e a Escola Livre de Santo André como referências na busca da
quebra da hierarquia nas interações criativas na arte dramática entre os
sujeitos que as integram. A criação colaborativa se concretiza em uma
forma de desenvolvimento de obras dramáticas que têm por alicerce a
aproximação entre o dramaturgo, o diretor e o elenco, em um regime de
página 166

liberdade que objetiva conceber textos dramáticos a partir da criação


coletiva, obtendo-se, com isso, um envolvimento na criação de todos os
integrantes do projeto, além se configurar como um processo de pesquisa.
Estilo e autoria no órbe da criação colaborativa: o teatro narrativo de Luís Alberto de Abreu

[Ele é um] processo contemporâneo de criação teatral em que todos os


envolvidos colocam a experiência, conhecimento e talento a serviço da
construção do espetáculo, de tal forma que se tornam imprecisos os limites e o
alcance da atuação de cada um deles. O texto dramático não existe a priori, vai
sendo construído juntamente com a cena, requerendo, com isso, a presença de
um dramaturgo responsável [...].Ele se organiza a partir da escolha de um tema
e do acesso irrestrito de todos os membros a todo o material de pesquisa da
equipe. Após esse período investigativo, idéias começam a tomar forma,
propostas de cena são feitas por quaisquer participantes e a dramaturgia pode
propor uma estrutura básica de ações e personagens, com o objetivo de nortear
as etapas seguintes. (Guinsburg , Faria; Lima, 2006, p.253).

Esse processo de criação reconhece no teatro uma arte por excelência


coletiva e aposta na colaboração e no diálogo entre seus membros como o
princípio fundamental da engenharia estética, irrefutável, para o cabal da sua
realização enquanto um projeto, e assim toma rumos diferentes do método
de criação dramática tradicional em que o autor cria o espetáculo em sua
mente e o transfere via signos lingüísticos para o papel, individualmente,
pensando a arquitetônica da obra, para depois apresentar ao diretor que
estuda as possibilidades da geometria cênica e somente em seguida
disponibiliza ao elenco, para então, partir para a montagem do espetáculo em
si, funcionando como uma linha de produção criativa. Nesse sentido o
subjetivismo idealista que permeia esta prática ortodoxa de criação é
descomunal, seu fruto nasce na imanência da consciência do autor criador, o
que a impede de conviver em harmonia com a criação colaborativa que
desconhece o meu e ao contrário disso põe em redenção o nosso.
Se por um lado a criação tradicional encontra sua estabilidade na
hierarquia que é evidenciada no texto e na particularização das funções, a
criação colaborativa procura em seu percurso dar voz aos diversos sujeitos
que se constituem como geômetras das ações e pensadores do eixo
volitivo-emotivo e do corpo de valores éticos e estéticos que arquiteta o
mundo objetal do todo arquitetônico do projeto estético.
É isso que faz com que na criação colaborativa tudo seja

jogado numa arena comum e examinado, confrontado e debatido até o


estabelecimento de um “acordo” entre os criadores. É claro que esse acordo não
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significa reduzir a criação ao senso comum, nem transformar o vigor da criação


artística num acordo de cavalheiros. É um acordo tenso, precário, sujeito, muitas vezes,
a constantes reavaliações durante o percurso. Confrontação (de idéias e material
criativo) e acordo são pedras angulares no processo colaborativo. (Abreu, 2003, p.36).
Hélio Márcio Pajeú & Valdemir Miotello

Neste tipo de processo criativo, em que a obra se apresenta sempre


num contínuo processo de formação e interação, o dramaturgo não
perde o seu papel, posto que, é ele quem orienta, interativamente, e
organiza o feitio final da obra, dividindo espaço com os membros do
projeto, no qual as imagens, enredos, nomes das cenas e versões são
planejadas e comentadas em conjunto. Essa prática de acordo com
Cavalheiro (2008, p.67) se difere da

Antiguidade até o início da Idade Média onde não havia a preocupação de


estabelecer a responsabilidade pelo fechamento da obra, as histórias estavam
em contínuo processo de criação, os contadores tinham o direito de decidir,
segundo a sua própria vontade, o que acrescentar, melhorar ou modificar.

Além deste arremate, é também papel deste homem trazer à discussão


estruturas míticas, textos da dramaturgia dos gregos aos contemporâneos,
desdobrando a concepção singular de cada escritor numa investigação
com relação às trajetórias dos heróis presentes na escrita em feitura a qual
este será responsável, da qual será autor.
É no interior da criação colaborativa que Abreu se constitui como um
autor que apresenta algo novo, talvez, uma quebra de paradigma, que
ergue um caminho no meio de um processo que há um “como” que lhe
pertence, motivado pelo material semiótico que encarna a essência do
projeto estético que no seu desenrolar não mitiga o mistifório de vozes de
sujeitos distintos que constituem, marcam e fortificam seu discurso.
É desse processo criativo que muitos gênios da dramaturgia tem se
utilizado para organizar seu percurso autoral, ao adotarem um caminho
criador menos hierarquizado, na perspectiva que Luís Alberto de Abreu,
juntamente com outros homens de teatro, dentre eles: Tiche Vianna, Cacá
Carvalho, Antonio Araújo, Luis Fernando Ramos e Francisco Medeiros,
ajudaram a cunhar. Neste processo

o palco não é reinado do ator, nem o texto é a arquitetura do espetáculo, nem a


geometria cênica é exclusividade do diretor. Todos esses criadores e todos os
outros mais colocam experiência, conhecimento e talento a serviço da
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construção do espetáculo de tal forma que se tornam imprecisos os limites e o


alcance da atuação de cada um deles. (Abreu, 2003,p.33).
Estilo e autoria no órbe da criação colaborativa: o teatro narrativo de Luís Alberto de Abreu

No correr deste processo ao abrir espaço à palavra outra, que ecoa no


seu horizonte, Abreu parece materializar um certo romantismo que
circunda sua criação, não um romantismo no sentido de devaneio,
fantasia, utopia, mas no seu sentido mais forte e tocante, o sentido da
beleza que existe na relação de dependência do outro na constituição de si,
numa ligação de incompletude dos sujeitos nas suas relações traçadas
cotidianamente, nos gestos singelos e pequenos que comportam os nossos
atos, nas relações verdadeiramente humanas, nas relações de vida, que
nos constituem e nos fazem ser sujeitos, seres humanos.
É esse aspecto que o faz reconhecer que “o processo colaborativo é
dialógico, por definição. Isso significa que a confrontação e o surgimento
de novas idéias, sugestões e críticas não só fazem parte de seu modus
operandi como são os motores de seu desenvolvimento. Isso faz do
processo colaborativo uma relação criativa baseada em múltiplas
interferências”. (Abreu 2003, p.37).
Imediatamente, percebemos que sua criação escapole completamente a
um mundo subjetivo idealizado e monologicamente compreensível,
governado pela consciência una do autor, para abrir uma arena em que se
arma o feito da interação de consciências plenivalentes que fazem emergir
e se consolidar heróis autônomos que não são talhados dentro de um leito
de Procusto, mas, numa relação de alteridade e exotopia.
A escrita que se consolida no tutano do processo de criação dramática
do homem, ao qual, se atribui a autoria de BorAndá, é efeito de labuta e
de investigação e não de uma graça divina dada ao autor, pois, pensar
assim seria trilhar por uma perspectiva idealista demais, o que não é nem
um pouco interessante para este tipo de processo. Este fato não denota
que o caminho percorrido por Abreu seja uma fórmula estática, ao
contrário, o enfrentamento das barreiras que aparecem, a discussão em
conjunto, a interação dos sujeitos, a voz do outro, a alteridade é o que dá
tom a arquitetônica do projeto e é capital para o movimento que constitui
a criação. A alma da concepção estética, os elementos, as emoções, os
deslumbramentos e impressões que advém dos sujeitos que interagem na
criação colaborativa – cenógrafo, atores, figurinistas, sonoplastas,
diretores, dramaturgos, etc. – são despejados no mesmo palco onde os
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referenciais tangíveis que formam a soma do fenômeno teatral dirigem


suas forças para a relação do espetáculo com seu público. Ou seja, essa
Hélio Márcio Pajeú & Valdemir Miotello

arte se concebe sobre uma coletividade que será dividida com um outro
coletivo, com uma palavra outra: seus espectadores.
Essa exotopia, ao nosso ver, é intrínseca a criação colaborativa, enquanto
intercâmbio estabelecido com o outro, numa relação em que a linguagem é
arquitetada através das materialidades dos signos e funciona como interposto
de comunicação e constituição dos sujeitos, de seus textos e discursos.
É via signos, discursos, por intermédio da interação entre sujeitos que
se dá essa relação dialógica de constituição de consciências e este
acontecimento é fortemente marcado no processo da criação colaborativa,
no qual vemos se abrir uma grande e infinita maravilha batizada por
Bakhtin de dialogia, que a partir das vivências e leituras do Grupo de
Estudos dos Gêneros do Discurso (GEGe, 2009, p.29), direcionadas pelas
lentes deste filósofo, tem sido vista

como sendo um movimento que não exclui, que não exauri a essência da
linguagem: o diálogo Eu/Outro. Considerando esta como o confronto das
entoações e dos sistemas de valores que posicionam as mais variadas visões de
mundo dentro de um campo de visão. Pois a vida é dialógica por natureza. Viver
significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar etc. Nesse
diálogo o homem participa por inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios,
as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos.

É esse princípio que leva Bakhtin (2003, p.383) a afirmar que “no
diálogo as vozes (parte das vozes) se soltam, solta-se as entonações
(pessoais-emocionais), das palavras e réplicas vivas extirpam-se os
conceitos e juízos abstratos, mete-se tudo em uma consciência abstrata – e
assim se obtém a dialética”, que é o caminho inverso ao da dialogia. E
neste sentido, o que me parece é que a criação colaborativa foge a uma
concepção dramática pautada apenas por uma consciência abstrata, o que
a faz se afiliar a uma perspectiva exotópica e se delinear a partir da
alteridade, uma vez que nela

a questão do sentido do homem é tratada sob a categoria do outro e não do eu.


Do ponto de vista da identidade (de um indivíduo, de um grupo, de uma nação,
de uma língua, de um sistema cultural, de uma vasta comunidade, como a
européia, ou de todo o mundo ocidental), não se pode descobrir o sentido do
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homem, apenas falsificá-lo. De fato, numa perspectiva como esta o sentido do


homem coincide com interesses particulares e limitados, apesar de serem
comuns. Para se opor a tal perspectiva é necessário o ponto de vista da
alteridade. A alteridade coloca o problema do sentido do homem no que
Estilo e autoria no órbe da criação colaborativa: o teatro narrativo de Luís Alberto de Abreu

Bakhtin chama de “o tempo grande”. Tal colocação nos permite ver esta questão
desde um ponto de vista novo e criativo da exotopia, desde o ponto de vista de
um cronotopo, que é outro em relação ao contemporâneo. (Ponzio, 2008, p.26).

Ao ter a alteridade como fundamento à criação colaborativa se


apresenta sob uma perspectiva dialógica, posto que, não é somente o
dramaturgo quem dá acabamento aos personagens, mas toda a equipe
que colabora para o processo, até mesmo os sujeitos da vida real, que têm
suas histórias postas na boca dos heróis e que levadas ao centro da cena
permitem, como evidencia Geraldi (2010, p. 113), que “as identidades
socialmente constituídas nestas relações com o outro – outros – e através
destes signos, encarnem as mesmas características e façam múltiplas as
identidades de cada um”.
Quando pensamos na criação colaborativa e vemos a alteridade, o diálogo
e as interações sócio-ideológicas entre sujeitos como elementos que a esboça,
temos claro em nossas mentes que é a diferença que funciona como meio dos
sentidos, pois, é, exatamente, por se basear no outro, na palavra outra, que a
criação colaborativa permite que cada voz que a compõe se torne única e
constitutiva do intercâmbio verbal, que cada ponto de vista dos sujeitos
falantes possa ser trazido nas suas singularidades, nas suas variantes de
mundo, para dentro da criação estética. Isso a torna a própria arena
discursiva, que cita Bakhtin, em que a presença da alteridade; o confronto de
ideologias; a não neutralização do discurso daquele que enuncia; a troca
extralingüística, se harmonizam para produzir, a partir do diferente, os
sentidos que permeiam a criação estética e artística.
Já o método de criação tradicional, ao ter como fundamento, geralmente, a
identidade da consciência criadora, se constitui por natureza monológico,
uma vez que nas criações advindas dele, aparecerão, quase que
naturalmente, no horizonte social dos heróis, as idéias e ideologias do autor,
de uma forma que elas talvez imperem. É desta espécie de criação dramática
que Abreu, no recôndito da Fraternal Cia. de Artes e Malas Artes, foge, para
dar lugar a uma criação coletiva que tenha o outro, a diferença por
fundamento, ao se apoderar da arte definida pela alteridade como sendo
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o lugar por onde podemos nos identificar; aprender a conviver com o inusitado;
reencontrar sonhos abortados, e por fim, fazer ressurgir o sujeito – não como
imagem de um deus criador com o qual cada um tem compromissos de
concretizar na vida sua perfeição, à sua imagem e semelhança, nem como o
Hélio Márcio Pajeú & Valdemir Miotello

sujeito todo poderoso certo e certeiro de sua racionalidade e de suas técnicas – e


sim um sujeito frágil, humano demasiadamente humano, cuja identidade,
estabilidade instável, se define pelos gestos de responsabilidade de ordenar a
experiência do nosso fazer e do nosso padecer. (Geraldi, 2010, p.120).

É isso que caracteriza a Fraternal como uma trupe teatral que motiva
suas pesquisas, referências e investigações artísticas no teatro popular, nas
histórias do cotidiano, na memória do outro, fundamentadas por imagens
advindas do imaginário das relações éticas, que Abreu as nomeia de
imagens quentes, que são aquelas que

nos impressionam, que comunicam e que geram outras ações. Ela é o ponto de
partida para a dramaturgia, ela é mais concreta que uma idéia, projeto ou teoria.
Esta visão focaliza o homem, na etimologia, “ser em luta”. A imagem pode
nascer caótica e deformada, simbólica, metafórica. A originalidade dela vem de
seguir a origem e não necessariamente de “ser diferente”. Seguir o pulso
interior, captar e investir, aparando-lhe as dimensões para que ela se
comunique. A imagem entra na cabeça e se perde lá. Para desenvolvê-la em
dramaturgia, não é o estudo da imagem, mas o seu exercício ou a sua
deformação. Como artista, o dramaturgo percorre esse universo interno terrível,
e esse ato é mais importante que os elementos da arte dramática. Exige
disciplina e rotina, para razão e sensibilidade trabalharem juntas. Gera fluxo
criativo. É atenção e concentração, não devaneio. (Campos, 2001, p.8).

Para Abreu essas imagens devem ser visualizadas na vida, fora dos
palcos, fora da atividade estética e a partir delas é que são criados os brains
storms, que, depois de apurados se transformam em canovaccios. É na
improvisação coletiva, baseada nas ações descritas nos canovaccios que
emerge sugestões de cenas, de situações, de desfechos, tendo por fio
condutor as ações criadas nos roteiros, para então serem tomadas como
fundamento da criação cênica e, a partir delas, prosseguir na criação das
personagens, dos conflitos, dos diálogos, na elaboração do texto em si.
Tudo, antes de integrar o texto, deve ser testado em cena, ação que
consolida uma forte diretriz do processo criativo.

Antes de se chegar à cena, porém, existe todo um trabalho de definição de tema,


mote ou assunto do espetáculo, pesquisa teórica ou de campo e, mesmo,
discussões das primeiras imagens, idéias, improvisações dos atores ou de textos
página 172

da dramaturgia. Após esse período exploratório, onde todo material de


pesquisa é tornado comum a todo o grupo, cabe à dramaturgia propor uma
estruturação básica das ações de ações e personagens. No canovaccio as
Estilo e autoria no órbe da criação colaborativa: o teatro narrativo de Luís Alberto de Abreu

improvisações, propostas de cena, imagens e conceitos do espetáculo, todo o


trabalho anterior já aparece estruturado. O canovaccio contém, de forma
embrionária, uma visão possível do espetáculo. E, como nada é permanente no
processo colaborativo o canovaccio vai à discussão para aperfeiçoamento e
possível reformulação. Canovaccio, embora seja um ganho importante no
processo de organização do trabalho criativo, não é lei a ser cumprida à risca. É
uma proposta que visa insuflar ainda mais a criação e só esta, expressada na
cena, tem o poder de efetuar mudanças. (Abreu, 2003, p.36).

Certamente um dos pontos que evidencia o estilo que compõe uma


parcela do aspecto autoral que atribuo a Abreu é à disposição da trindade
dramática que ele manuseia numa sorte de mistura – da comédia, do
drama e da narração – para dar corpo a um outro gênero dramático que
englobe vozes, de várias individualidades, que situa uma interação com
os elementos transgredientes a este.
Ao trazer a narração para o centro da encenação o dramaturgo instaura
uma perspectiva teatral que extingui, categoricamente, o que se conhece por
quarta parede no teatro, ou seja, uma parede imaginária que aparta a encenação
que ocorre no centro do palco do espectador que a assiste sentado na platéia.
Ao contrário disso, o dramaturgo procura trazer para dentro da encenação
diferentes mundos: o do ator, o da personagem, o do espectador, o seu próprio,
os dos muitos outros que povoam sua criação, o do próprio narrador.
É pelo percorrer do seu mundo, pela experiência, pela riqueza de sua
sabedoria, que a figura do narrador passa a existir em BorAndá, se
tornando o responsável pela quebra desta quarta parede invisível. Seja no
processo de criação, com a narração da história dos migrantes, seja na
configuração dos personagens, porque ele

pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a
própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia). O narrador
assimila a sua substância mais intima aquilo que sabe por ouvir dizer. Seu dom
é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem
que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a
mecha de sua vida. (Benjamin, 1994, p.221).

O que faz atrativo a narração ao teatro é a própria possibilidade desta


página 173

integrar outras ações, é seu poder de fazer funcionar outros textos na ação
dramática, pois do contrário seria apenas uma narração. Deste modo,
partilhamos da mesma concepção que acredita Melo (2005, p.182), isto é, que a
Hélio Márcio Pajeú & Valdemir Miotello

narrativa pode ser, raramente, um gênero homogêneo composto unicamente de


sucessões de ações, mas, na maioria dos casos, combina verdades gerais,
descrições, diálogos, relato de pensamentos, da mesma maneira que a força do
discurso é poder colocar no mesmo espaço discursivo realidades que não
podem ser dadas do mesmo modo, que pertencem a mundos diferentes. Assim,
como não se podem contar realmente os gêneros, não se podem contar
realmente os mundos.

Vê se, pois, que o teatro narrativo não se trata de um gênero


homogêneo, uma vez que nele se dá a possibilidade da integração de uma
pluralidade de gêneros outros, como por exemplo, a própria imaginação
do seu interlocutor.
Logo, participação interativa é algo sine qua non essa perspectiva não se
torna possível. Nela os espectadores passam de meros assistidores passivos
pagantes de um ingresso para partícipes ativos daquilo que acontece no
palco. E aí Benjamin (1994, p.87) esclarece que “o autocontrole do palco
supõe atores que vejam o público com olhos essencialmente outros que
aqueles com os quais o domador vê as feras em suas gaiolas: atores para
os quais os efeitos não sejam fins, e sim meios”.
Embora, muitas vezes, essa participação não se concretize através de
um ato físico, ela ocorre por interferência imaginativa, de modo que a
trama não precisa ser encenada o tempo inteiro, todavia, pode ser
narrada, criada na mente do público, estabelecendo um contato mais
intimo, mais próximo, mais humano e real. É ao se passar de um princípio
de encenação dramática tradicional, em que a mediação se personifica no
herói fechado, aprisionado na cena, para uma outra vertente em que o
mediador é também, e diretamente, o público que a cena se expande, se
abre, ganha outros horizontes através do sujeito estético que é o narrador.
O ator que se apresenta como narrador é

um sujeito heterogêneo, que nos permite constatar a variação dos modos de


organização da narrativa tanto em função dos conteúdos como das capacidades
precoces de retomada/modificação dos modelos culturais. Não há apenas
competência textual, mas várias. Recontar para nós supõe, então, uma mistura
de tipos de usos da linguagem: é preciso apresentar os personagens, descrever,
página 174

qualificar, introduzir discursos reportados, manifestar as intenções ou


sentimentos dos personagens. Todos esses subgêneros vão dicionar a utilização
de estruturas diversificadas, quando se tratar de relatar os atos mentais e as
atitudes. (Melo, 2005, p.178).
Estilo e autoria no órbe da criação colaborativa: o teatro narrativo de Luís Alberto de Abreu

Deste modo, ao enveredar por uma perspectiva do teatro narrativo, ao


encenar BorAndá, a Fraternal constata algo basilar da interação com seus
espectadores: um contato livre, direto, rebento do narrador na visão do
público, que faz circular experiências ficcionais, em que, para Melo (2005,
p.181), “as mudanças dos gêneros remetem a variações perpétuas de
mundo, que não podem ser reguladas por um metadiscurso, que diria de
uma vez por todas: “eis o que é real, eis o que é ficção”.
No teatro narrativo o ator não apenas avisa, mas imprimi experiências
vividas ou relatadas de quem as viveu. Sem esse compartilhar de
experiências entre o narrador e o público não existe narração. O episódio
narrado torna-se desimportante e ilusório.
A partir das falas de Freire e Abreu (2004, p.15), respectivamente,
diretor e dramaturgo da Fraternal, vê-se que o teatro narrativo tem
importância basal dentro de seu projeto estético, ao afirmarem que ele os

fornece um campo extremamente amplo de pesquisa. Permite romper


convencionalismos, dialogar diretamente com o público, fazer um teatro
baseado fundamentalmente na imaginação e na relação do narrador com a
platéia, eliminando todo o aparato teatral desnecessário. Permite
principalmente, uma liberdade de temas, gêneros e, principalmente, uma
comédia reflexiva, mordaz e contemporânea.

É a faculdade de intercambiar experiências a partir do narrar que faz a


função do ator ser variável, que seu modo de representar muda de acordo
com seu desempenho. Tal aspecto ascende do teatro épico, em que

para seu palco, o público não é mais um agregado de cobaias hipnotizadas, e


sim uma assembléia de pessoas interessadas, cujas exigências ele precisa
satisfazer. Para seu texto, a representação não significa mais uma interpretação
virtuosística, e sim um controle rigoroso. Para sua representação, o texto não é
mais fundamento, e sim roteiro de trabalho, no qual se registram as
reformulações necessárias. Para seus atores, o diretor não transmite mais
instruções visando a obtenção de efeitos, e sim teses em função das quais eles
têm que tomar uma posição. Para seu diretor, o ator não é mais um artista
mímico, que incorpora o papel, e sim um funcionário, que precisa inventariá-lo.
(Benjamin, 1994, p. 79).
página 175

No teatro narrativo a ação teatral sofre um deslocamento. A ação


dramática não necessita ser explicitada, não carece ser vista pelo
espectador, entretanto, é impreterível que seja fantasiada, que tome forma
Hélio Márcio Pajeú & Valdemir Miotello

na imaginação da platéia. Ao ter por baluarte esse ato do público, não


mais interessa somente o que ocorre no palco, mas, maiormente, o que
ocorre na imanência da fantasia dos apreciadores a partir da narração.
Para Benjamin (1994, p.203) “o extraordinário e miraculoso são
narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é
imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com
isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na
informação”. Portanto, a arte da narrativa se consolida no aspecto de
evitar dar explicações, e esse estudioso (1994, p.221) explicita que ela “em
seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz.
Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos,
aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o
fluxo do que é dito”.
Ao mudar o ethos do espectador, o ator também re-significa o contexto
enunciativo em que ocorre a atividade discursiva, pois, ele já não tem a
função, somente, de mostrar as ações dramáticas que dão corpo ao
espetáculo, por outro lado, seu desempenho se desenvolve no intento de
indicar ao seu espectador para que este fantasie, imagine e vivencie a ação
naquele ambiente.
Machado (2010, p.164) diz que “o ambiente é a condição sem a qual o
diálogo simplesmente não acontece. A dialogia de um espetáculo [...]
acontece entre signos que ele manipula para interagir com seus
interlocutores ou espectadores que, por mais silenciosos que estejam,
estão produzindo respostas que, por sua vez, alimentam o circuito da
respondibilidade”.
Nesta diretiva os narradores que Abreu ajuda a dar vida, ao construir
uma interação com seus interlocutores, seja o público ou os heróis, se
instauram eqüipolentes ao seu discurso, num caminho em que o

autor reserva efetivamente ao seu herói a última palavra. É precisamente desta, ou


melhor, da tendência para ela que o autor necessita para o plano do herói. Ele não
constrói a personagem com palavras estranhas a ela, com definições neutras; ele
não constrói um caráter, um tipo, um temperamento nem, em geral, uma imagem
objetiva do herói; constrói precisamente a palavra do herói sobre si mesmo e sobre
o seu mundo. (Bakhtin, 2008b, p.15).
página 176

Isso atribui a Abreu, ao nosso ver, a prerrogativa de ser um autor que


compõe uma dramaturgia polifônica, assim como Bakhtin considera o
Estilo e autoria no órbe da criação colaborativa: o teatro narrativo de Luís Alberto de Abreu

romance de Dostoievski, o que nos levou a destacar do rol de suas


criações: BorAndá: auto do migrante, por esta encarnar tais características
que sustente nossa tese.
Assim concluímos que Luís Alberto de Abreu no seu processo de
criação, sobretudo, nesta obra, recorre a procedimentos metodológicos
que se inserem na história oral, que segundo Meihy (2005, p.28) trata-se de
“uma metodologia de pesquisa e também uma ferramenta de trabalho que
possibilita a coleta de depoimentos individuais ou coletivos estabelecendo
posturas e atitudes na história coletiva”. E que na concepção de
Montenegro (1994, p.17) aparece “como um meio privilegiado para o
resgate da vida cotidiana, tendo em vista, que esta se mantém firmemente,
apesar de poder sofrer alterações como resultados de experiências
posteriores ou mudanças de atitudes”.
Isso nos leva a crer que o uso deste tipo de procedimento parece
permitir ao autor não somente enriquecer seu processo de pesquisa e
criação dramática, ao delinear seu feitio autoral pautado na história oral,
portanto na palavra outra e na alteridade, como fundamento de
organização da arquitetônica de seu texto, como também instaurar por
meio da criação colaborativa a possibilidade de recuperar as memórias de
um grupo social bem delineado, constituído de sujeitos de horizontes
sociais distintos e de atos responsáveis traçados nas interações da vida
cotidiana, levando-as ao palco como narrativas derretidas na boca de
heróis eqüipolentes, donos de idéias inacabadas, que não se apresentam
como marionetes da consciência criadora, mas tomam posição na obra
como sujeitos de si. O que o permite, quiçá, na mesma direção que fez
Dostoievski, erigir um teatro polifônico, uma dramaturgia plenivalente
que estabelece a quebra de hierarquias e constitui um eixo emotivo-
volitivo que move os heróis de forma mais autônoma no mundo objetal
que se organiza dentro do todo arquitetônico da criação estética.

REFERÊNCIAS

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página 177

da Escola Livre de Teatro de Santo André, Ano I, Número 0, março de 2003, pp. 33-41.

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Cristovão Tezza para uso didático, tendo como base a tradução inglesa de I. R. Titunik
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PONZIO, A. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia


contemporânea. Coordenação de tradução Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008.
página 178
treze

Camila Caracelli SCHERMA1


DISCURSO e hegemonia:
embates sígnicos no contexto do agronegócio1

O estilo é o homem’, dizem; mas poderíamos dizer: o estilo é pelo


menos duas pessoas ou, mais precisamente, uma pessoa mais seu
grupo social na forma de seu representante autorizado, o ouvinte –
o participante constante na fala interior e exterior da pessoa.

(Bakhtin/Voloshinov, 1976)

O NASCER-JÁ-CAMINHAR DA PESQUISA2

A
força constitutiva dos discursos na preparação, justifica-
ção, manutenção e fortalecimento de ações na base mate-
rial da sociedade – infraestrutura – moveu o trabalho de
pesquisa do curso de Mestrado, intitulado ‚Discursos,
hegemonia e agronegócio: tensão e luta de classes no contemporâ-
neo‛. A relação que se dá, pelos discursos, entre as diferentes esferas
de atividade humana, via palavra, via signo, de modo que a base

1 Mestre pelo PPGL/UFSCar. Doutoranda pelo PPGL/UFSCar. Limeira - SP. Pesquisadora do


GEGe. caracellischerma@bol.com.br
2 Assim como os versos de João Cabral de Melo Neto, em seu poema ‚O Rio‛, que dizem: ‚Para

os bichos e os rios / nascer já é caminhar‛, o nascer deste trabalho de pesquisa foi um já-
caminhar, posto que já nasceu seguindo os rumos que foram-se construindo durante o pensar.
Camila Caracelli Scherma

material e as mudanças nela ocorridas gerem novos discursos, constituin-


do-os ao passo que são também constituídos por eles, impulsionou a pes-
quisa, em busca da construção de compreensões das tensas lutas discursi-
vas e ideológicas que se travam na concretude dos enunciados, em função
de concepções, valorações e tomadas de posição divergentes em relação às
atividades agrícolas e pecuárias em larga escala, o agronegócio. Isso por-
que consideramos que há discursos que constroem essa atividade como a
chave para o desenvolvimento econômico de nosso país e, para sustentar
tal posicionamento, lutam pela manutenção e fortalecimento da atual or-
dem das coisas; e, por outro lado, há concepções que apontam todos esses
esforços e investimentos como a consolidação da já histórica posição do
Brasil de fornecedor de matéria-prima ao mercado internacional. As di-
vergências discursivas são divergências ideológicas, que constituem um
embate entre a estabilidade e a instabilidade; uma luta discursiva, que é
uma luta ideológica, posto que os signos ideológicos que constituem os
discursos refratam e refletem uma mesma realidade de maneiras distintas,
uma vez que são pautados nos interesses de classe. A compreensão do
mundo e sua atual configuração é que nos movem a esta pesquisa. No
entanto, não é a compreensão do mundo, mas de um pedacinho dele, de
um pequeno constituinte da imensidão de relações humanas que se esta-
belecem nas ações contemporâneas.

A QUESTÃO QUE MOVEU A PESQUISA

Mesmo pautado nas atividades econômicas ligadas à produção agrícola


e pecuária em larga escala – o chamado agronegócio – o objeto deste tra-
balho é, antes de tudo, a linguagem, os discursos, as inter-relações que se
travam por enunciados concretos. O ponto de partida é, desse modo, o
texto, uma vez que ‚onde não há texto não há objeto de pesquisa e pen-
samento‛ (Bakhtin, 2003, p. 307).
No estudo desses textos, desses discursos coletados nas mais diversas es-
feras de atividade – entre elas, a esfera publicitária, a governamental, a jor-
nalística, a musical, etc. – interessa-nos a luta, o embate que se trava nas
palavras; uma luta discursiva, que diz respeito aos interesses de classe. Tra-
página 180

balhamos com a hipótese de que os investimentos direcionados ao agrone-


gócio (e toda a organização desse campo de atividade) são sustentados e
justificados por discursos ideologicamente construídos para a manutenção e
Discurso e hegemonia: embates sígnicos no contexto do agronegócio

o fortalecimento da atual ordem das coisas, numa tentativa das classes do-
minantes de tornar os discursos monovalentes (ideologia oficial). Tais dis-
cursos exercem um papel de criar e manter uma aparência de que o Brasil
está se inserindo no contexto da economia mundial, com importante papel.
No entanto, a dialética interna do signo ‚agronegócio‛ revela as con-
tradições, pois há também a construção de discursos não-hegemônicos
que contestam a atual ordem das coisas, fazendo emergir as contradições,
desestabilizando essa hegemonia, subvertendo a atual ordem e revelando
o caráter deformador dos signos e, por meio deles, as contradições de clas-
se no atual período, afirmando que a produção de commodities agrícolas
apenas reforça a já histórica função do país na divisão internacional do
trabalho, além de atender a uma lógica financeira e de mercado.
Com isso, nos propomos a responder à questão: como discursos coleta-
dos em diversas esferas de atividade humana mostram o funcionamento
das ideologias e seu constante embate sígnico a partir de ações na base
material da sociedade e do território?

O PERCURSO DA PESQUISA

O caminho traçado por nós neste trabalho de mestrado perpassa dis-


cursos produzidos nas mais diversas esferas de atividade humana, em
busca de compreender como as ideologias que compõem esses discursos e
como as diversas manifestações sobre as ações em torno do agronegócio
revelam os interesses das diferentes classes sociais envolvidas nesses em-
bates, que são embates discursivos.
Essa luta nos signos também foi analisada nos discursos encontrados
em textos jornalísticos, sobretudo aqueles publicados no jornal Folha de S.
Paulo e Brasil de Fato, em função de se constituírem a partir de destinatá-
rios distintos, com interesses distintos. O período de deflagração da mais
recente crise financeira mundial foi o período em que esses dados foram
coletados, posto que a luta discursiva embasada nos interesses de classe se
intensifica em épocas de instabilidade. Não só a crise financeira nos moti-
vou nessa coleta, mas também uma crise social, uma crise territorial. Nas
palavras de Bakhtin e Voloshinov, a ‚dialética interna do signo não se
página 181

revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revo-
lucionária‛ (Bakhtin/Voloshinov, 2009, p.48).
Camila Caracelli Scherma

O estudo desses dados foi embasado na obra de Bakhtin e do Círculo,


de maneira que, como afirmam no livro Marxismo e Filosofia da Lingua-
gem, além de analisarmos o nosso objeto do ponto de vista do conteúdo,
pudéssemos fazê-lo também ‚*...+ do ponto de vista dos tipos e formas de
discurso através dos quais estes temas tomam forma, são comentados, se
realizam, são experimentados, são pensados, etc.‛ (Bakhtin, 2006, p. 44).
Observamos também as seguintes regras metodológicas propostas por
Bakhtin/Voloshinov:

1. Não separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no


campo da ‚consciência‛ ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível).
2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social (enten-
dendo-se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organi-
zada e que não tem existência fora deste sistema, a não ser como objeto físico).
3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infra-
estrutura) (Bakhtin, 2009, p. 45)

No primeiro capítulo da dissertação, discutimos brevemente a forma-


ção do território brasileiro, das condições de produção e da estrutura so-
ciopolítica, estudando as relações entre infraestrutura e superestrutura,
mediadas pela linguagem, e as mudanças na constituição dos discursos a
partir das mudanças nas bases materiais, nas diferentes esferas ideológi-
cas. Para tanto, buscamos compreender as relações de produção e as rela-
ções sociais que resultam da constituição do território e de que maneira os
discursos são modificados a partir dessas relações, uma vez que tais rela-
ções e a estrutura sociopolítica diretamente derivada delas ‚determinam
todos os contatos verbais possíveis entre indivíduos, todas as formas e os
meios de comunicação verbal: no trabalho, na vida política, na criação
ideológica‛ (Bakhtin, 2009, p. 43).
O segundo capítulo foi construído a fim de compreender as diferentes
relações entre infraestrutura, a base socioeconômica, a materialidade con-
creta e as superestruturas ideológicas a partir do estudo de diferentes dis-
cursos, produzidos por instituições e autores diversos nas mais variadas
esferas de atividade humana. Além disso, para construirmos compreen-
sões a respeito dessas relações, estudamos diferentes conjuntos ideológi-
página 182

cos, no embate, no jogo entre a estabilidade e a instabilidade e, com base


na leitura e compreensão de discursos vários, observamos a relação dialé-
tica e dialógica na concretude, pelas palavras.
Discurso e hegemonia: embates sígnicos no contexto do agronegócio

No terceiro e último capítulo, trabalhamos com os discursos circulantes


a respeito de ações em torno das atividades econômicas ligadas ao agro-
negócio, a partir da concepção de que há discursos que constroem o agro-
negócio como a chave para o desenvolvimento econômico do Brasil, bem
como a porta para inserir o país no cenário econômico mundial e, partindo
dessa construção, lutam pela manutenção e pelo fortalecimento desse se-
tor. Ao mesmo tempo, circulam também discursos que lutam pela subver-
são dessa ordem das coisas, que questionam as ações em torno do agrone-
gócio, afirmando a existência de alternativas de modelos de desenvolvi-
mento, mais igualitários e menos excludentes e que, de fato, proporciona-
riam desenvolvimento para o país e não para um pequeno e seleto grupo
de grandes proprietários de terras e grandes produtores.
Essa luta, que é uma luta ideológica, foi trabalhada por nós nesse ter-
ceiro capítulo da dissertação de modo a levantar discursos impregnados
de ideologias oficiais, aquelas que lutam pela manutenção e fortalecimen-
to da atual ordem das coisas, e de ideologias não-oficiais, que são aquelas
que lutam pela movimentação da base material, pela subversão da atual
ordem de coisas, da atual organização; discursos hegemônicos e não-
hegemônicos, suas construções com base nas tensas relações sociais e a
orientação dos interesses de classes para a constituição desses discursos
que refletem e refratam signicamente a luta de classes nas questões da
agricultura e da pecuária brasileiras. Para a coleta dos dados no terceiro
capítulo recorremos, principalmente, a dois jornais de circulação nacional,
que declaram princípios editoriais bastante divergentes e, ao defini-los
também direcionam seus discursos àqueles sujeitos sociais que selecionam
como co-participantes na construção de discursos ideológicos – Folha de
S. Paulo e Brasil de Fato.3

3*O Jornal Brasil de Fato foi lançado no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 25 de
janeiro de 2003 [...] É um jornal semanal, com circulação nacional. Por entender que, na
luta por uma sociedade mais justa e fraterna, a democratização dos meios de comunicação
é fundamental, movimentos sociais como o MST, a Via Campesina, a Consulta Popular e as
pastorais sociais criaram o jornal Brasil de Fato. Disponível em
http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/quem-somos
página 183

* Agrofolha é um caderno semanal publicado no interior do Caderno Folha Dinheiro. (‚A


conjuntura econômica, brasileira e internacional, e o mundo dos negócios são o principal
alvo do Caderno Folha Dinheiro‛ *...+ ‚Com informações precisas, linguagem clara e eluci-
dativa, o caderno orienta quanto a investimentos, traz indicadores econômicos e faz a
Camila Caracelli Scherma

PONTOS DE DISCUSSÃO

Relação Infra e Superestruturas

As relações, inter-ações, no meio onde elas se dão, na infraestrutura, na


base material concreta, constituem embates ideológicos ao mesmo tempo
em que são por eles constituídas. Mudanças sociais são, portanto, refleti-
das e refratadas pelos signos ideológicos constituintes dos discursos. Nes-
se processo todo, novas relações constituem novos discursos e esses tam-
bém as transformam. Desse modo, foi pelo estudo da palavra, dos signos,
dos discursos que estudamos as relações que se dão entre infraestrutura e
superestrutura. Na busca pela explicitação das relações entre a organiza-
ção do território brasileiro em função das atividades agropecuárias em
larga escala (nomeadas muitas vezes de agronegócio) e as transformações
ideológicas decorrentes desses processos, desembocamos num processo
dialético de evolução social, ‚que procede da infra-estrutura e vai tomar
forma nas superestruturas‛ (Bakhtin, 2009, p. 41).

Ideologias

É importante ressaltar desde já que as concepções de ideologia com as


quais trabalhamos ao longo da pesquisa são aquelas propostas por Bakh-
tin e o Círculo4. Não compreendemos, portanto, ideologia como falsa
consciência ou como uma visão relativista dos fatos, em que tudo é ideo-
lógico. Para situar nossa compreensão de ideologia, podemos citar Ponzio
(2008), quando esclarece que,

para Bakhtin, o termo ‚ideologia‛ se emprega no sentido de ideologia da


classe dominante, interessada em manter a divisão em classes sociais e em
ocultar as reais contradições que tentam transformar as relações sociais de
produção (ideologia como falsa consciência, como mistificação, como pen-

cobertura de temas que mereçam atenção especial em função da conjuntura econômica.‛.


página 184

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/grupofolha/. Acesso em: 15 jul.2009.

4Sobre os interlocutores e os círculos de Bakhtin, ver Miotello (2008); Miotello (2009a) e


Miotello (2009b).
Discurso e hegemonia: embates sígnicos no contexto do agronegócio

samento distorcido etc.), mas também é usado no sentido amplo que o ter-
mo assume, sobretudo a partir de Lênin, e que permite aplicá-lo tanto à ‚i-
deologia burguesa‛ como à ‚ideologia proletária‛ e à ‚ideologia científica‛
(esta última resultaria numa contradição de termos se partirmos da defini-
ção de ideologia em geral como falsa consciência) (Ponzio, 2008, p.115).

Assim, o conceito de ideologia com o qual procedemos às análises é um


conceito que assume esse termo não só como uma visão de mundo, como
opinião valorativa sobre as coisas, mas como tomada de posição diante
delas, calcada nos interesses de classe, constituídos por ela e constitutivos
dela, simultaneamente, e que ‚condiciona atitudes e comportamentos tan-
to dos sujeitos do grupo em questão como dos outros grupos sociais,
quando se converte em ideologia dominante‛ (Ponzio, 2008, p.116).
Tomar posição diante dos acontecimentos é construir discursos a partir
das relações sociais que se estabelecem diante dos fatos. Os interesses de
classes orientam a constituição ideológica desses discursos. Um mesmo
fato que se dá na base material da sociedade é visto de maneiras distintas
de acordo com quem os vê.
O estudo das ideologias se constitui no estudo dos acontecimentos que
se dão na concretude, na materialidade (infraestrutura) e suas relações
com as superestruturas, mas não de maneira direta, mecanicista. É no mo-
vimento constante, no jogo, no embate que se constroem as relações. É no
jogo entre a estabilidade e a instabilidade que se constituem as ideologias.
Os interesses de classe é que pautam a luta pela estabilidade ou instabi-
lidade. A partir desses interesses, da concepção de mundo, da valoração
expressa e da tomada de posição em relação aos acontecimentos é que as
ideologias vão se constituindo, ora lutando pela manutenção e fortaleci-
mento da atual ordem das coisas – ideologias oficiais – ora lutando pela
subversão dessa ordem, em nome das mudanças, de movimentação – ide-
ologias não-oficiais.
No contexto social ligado às atividades econômicas em torno da agricultura
e pecuária – o agronegócio – o jogo entre os discursos mais estáveis e os menos
estáveis instaura ideologias distintas, que, no embate, refletem diferentes com-
preensões da realidade social e expressam pontos de vista contendo diferentes
valorações dos fatos, diferentes refrações. Isso se dá uma vez que ‚a ideologia é
página 185

a expressão das relações histórico-materiais dos homens, mas ‘expressão’ não


significa somente interpretação ou representação, também significa organiza-
ção, regularização dessas relações‛ (Ponzio, 2008, p.113).
Camila Caracelli Scherma

Investimentos na produção agrícola voltada para as exportações po-


dem ser vistos como incentivo, como estratégia para consolidar o desen-
volvimento econômico do país pelos agentes que acumulam capital a par-
tir dessas atividades. Aqueles que terão suas safras financiadas por esses
investimentos, provenientes de recursos públicos, aqueles que terão suas
dívidas renegociadas, com ampliação dos prazos de pagamento e que, em
troca, quase nada precisam oferecer. No entanto, há possibilidades outras
para se construir uma visão a respeito de maiores esforços e investimentos
para a produção voltada à exportação. Os que trabalham, vendendo por
um preço quase que simbólico o único meio de sobrevivência – a força de
trabalho, a mão-de-obra – e que não serão beneficiados por esses novos
montantes de recursos públicos destinados à produção de matéria-prima
para abastecer o mercado externo, por exemplo.
Construir discursos que proclamem o agronegócio como a grande es-
perança brasileira na firmação do nosso país na economia mundial e, para
tanto, escolher palavras como ‚desenvolvimento sustentável‛, ‚geração
de emprego e renda‛, ‚redução das desigualdades sociais‛, ‚promoção de
segurança alimentar‛, ‚competitividade em benefício da sociedade brasi-
leira‛, ‚o setor mais importante da economia brasileira‛, ‚o agronegócio
leva o Brasil nas costas‛, entre outras várias, é tomar posição diante desse
quadro socioeconômico e expressá-la por meio dos signos ideológicos, da
ideologia, que, por tratar da manutenção e fortalecimento da atual ordem
das coisas, tornando os discursos monologizados e monologizantes, cons-
trói os discursos oficiais; trata-se, portanto, de ideologias oficiais.
No entanto, há outras tomadas de posição, outras valorações que po-
dem ser construídas a partir das relações com a base material. Uma toma-
da de posição, por exemplo, questionadora, subversora da ordem das coi-
sas, que coloca em evidência as desigualdades geradas a partir do atual
modelo de desenvolvimento, que discute os acontecimentos além das apa-
rências de estabilidade, numa análise mais profunda, que movimenta as
estruturas já instauradas em busca de mudanças. A expressão dessa valo-
ração, então, avalia o atual modelo de desenvolvimento ancorado no a-
gronegócio com palavras como ‚modelo baseado na concentração de ren-
da e na desigualdade social‛, ‚processo intrinsecamente maléfico‛, ‚base-
página 186

ado na violação dos direitos humanos, sociais e ambientais‛, entre tantas


outras. Na escolha dessas palavras e não de outras para construir seus
discursos, há a presença de ideologias questionadoras, ideologias da ins-
Discurso e hegemonia: embates sígnicos no contexto do agronegócio

tabilidade, ideologias não-oficiais. Essas diferentes ideologias se constitu-


em no embate das relações travadas na base material da sociedade e, por
meio dos signos, refletem e refratam diferentes realidades.
Assim como as palavras, imagens são signos e, portanto, são ideológi-
cas, pois expressam valorações, tomadas de posição diante dos aconteci-
mentos e essas posições geram ações, numa relação dialógica. Diferentes
discursos geram ações diversas e são, ao mesmo tempo, gerados por elas.
Os discursos a respeito do agronegócio são compostos também por ima-
gens que, com a mesma carga ideológica das palavras, constroem e ex-
pressam o ponto de vista daqueles que são os seus autores e ecoam as vo-
zes daqueles que são representados por esses autores por meio de tais
discursos, que pertencem à mesma classe social.
Nos discursos que defendem, justificam e pregam o fortalecimento da a-
tual configuração dos meios de produção, das ações políticas e econômicas
para sustentar o atual modelo de desenvolvimento, as imagens, também sig-
nos ideológicos, refletem valorações sobre essa atividade econômica de ma-
neira positiva, construindo sempre uma ideia de desenvolvimento, de produ-
tividade, de progresso, de grandeza, de modernidade técnica e científica.
As diferentes ideologias são construídas e consolidadas em processos ex-
tremamente amplos, cercando, colonizando os discursos. E nesse embate,
nesse jogo de relações valem os mais diversos recursos linguísticos ideológi-
cos, signos de formas variadas de diferentes materialidades. Numa de suas
propagandas veiculadas na televisão5, o Banco Bradesco apresenta o seu dis-
curso sobre o Brasil. Que país é esse? País de quê? E nessa construção, é pos-
sível perceber a presença de vários outros discursos já consolidados a respei-
to de nosso país, como por exemplo, ‚O Brasil é o país do futebol‛.
A imagem do comercial começa com os acordes da música Isto aqui, o que
é? de Ary Barroso6. Com uma tomada aérea do estádio do Maracanã, a pro-
paganda se inicia a partir de um jogo de futebol e vai mostrando imagens
variadas daquilo que essa instituição financeira julga ser o Brasil – máqui-

5Disponível em:<http://www.youtube.com/watch?v=coat5rurPko>.
6 Isto aqui, ô ô / É um pouquinho de Brasil iá iá / Deste Brasil que canta e é feliz, / Feliz,
feliz, / É também um pouco de uma raça / Que não tem medo de fumaça ai, ai /
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E não se entrega não / Olha o jeito nas 'cadeira' que ela sabe dar /
Olha só o remelexo que ela sabe dar / Morena boa, que me faz penar, / Bota a sandália de
prata / E vem pro samba sambar
Camila Caracelli Scherma

nas trabalhando em plantações de soja e cana, indústrias, prédios e casas, a


torcida aplaudindo e vibrando com esse espetáculo que é o nosso país.
Além das imagens, as palavras que compõem esse discurso definem o
que é o Brasil: O Brasil é mais que o país do futebol – aqui já há as vozes de
uma ideologia já histórica em nosso país: o país do samba e do futebol, é a
ideologia do cotidiano, dos encontros fortuitos, das conversas de ponto de
ônibus, de fila do banco, das mesas de bares e restaurantes, dos encontros
familiares no domingo, entre muitos outros contextos e relações sociais.
Mas o Brasil é muito mais do que isso: É o país da agricultura e da pecuária,
onde o Bradesco tem presença, há mais de 60 anos, financiando produtores de todos
os tamanhos – muito embora as imagens só retratem as grandes e modernas
máquinas trabalhando em plantações de soja e de cana-de-açúcar, que são
os produtos mais exportados pelos grandes produtores do agronegócio.
A construção ideológica desse discurso prossegue: é o país da iniciativa
empresarial, com presença constante do Bradesco na vida do pequeno, médio e
grande empresário. Aqui, além de construir mais uma parte da identidade
de nosso país – a iniciativa empresarial - o banco afirma estar presente em
todos os níveis desse setor, no pequeno, no médio e no grande. Mas não
diz quais as condições oferecidas a cada um, as taxas de juros, as facilida-
des para se conseguir crédito, as garantias que cada tipo de empresário
deve possuir, enfim, coloca-se como atuante nas ações de todos os tama-
nhos de empresas, de maneira homogênea, enfraquecendo, mais uma vez,
as situações de conflito, de desigualdade.
E segue: é o país da diversidade e da igualdade, da iniciativa privada em equilí-
brio com o setor público, onde o Bradesco tem presença em todas as classes, com o
maior número de pontos de atendimento do país – em quase 100% dos municípios.
Diversidade então toma o lugar do signo desigualdade. Desigualdade car-
rega consigo o conflito, injustiça – social, política, econômica. Diversidade
carrega consigo as diferentes identidades, as diferentes construções ideoló-
gicas, os diferentes desejos e interesses. Não desiguais, apenas diferentes.
Como se houvesse o mesmo espaço e a mesma abertura para todas essas
diferenças. Já a desigualdade expõe a ferida, revela um problema, pode
gerar o desejo de combatê-la. Faz sentido combater a desigualdade, mas
talvez não faça tanto sentido assim combater a diversidade. Além disso, do
página 188

modo como o discurso do Bradesco foi construído, a igualdade caminha


junto com a diversidade. São signos que apresentam essa compatibilidade
Discurso e hegemonia: embates sígnicos no contexto do agronegócio

de certa maneira. No entanto, desigualdade e igualdade expressam senti-


dos, significados opostos e, assim, não poderiam caminhar juntos.
E, com todas essas características desse novo Brasil que estamos viven-
do com forte apoio dessa instituição financeira, esse não é mais um país do
futuro. Hoje, no mundo, o Brasil é Presença e Presença no país é Bradesco. A
esperança de que nosso país se faça presente no cenário internacional já
está se concretizando, segundo esse discurso; discurso, aliás, que não dis-
cute em nenhum momento qual o preço que está sendo pago por tudo
isso, nem quem é que recebe os lucros de tamanho investimento, que não
é só financeiro, mas também político, também social.
A perversidade ideológica nesse discurso se completa com a ideia de i-
gualdade, de equilíbrio. Já está tudo bem, tudo equilibrado, temos a presen-
ça protetora de um banco em todas as classes sociais. Essa estrutura está,
então, de acordo com esse discurso, atendendo às expectativas do povo.
Essa construção é perversa por conta de plantar a ideologia que torna os
discursos monológicos, que fortalece e prega a manutenção da atual ordem
das coisas – vejam como o nosso país está crescendo, está diversificando
suas atividades, vejam como o povo está feliz – as arquibancadas do estádio
estão cheias de um povo que vibra, que aplaude, que canta, que pula, que
comemora e que, com muito orgulho, levanta a bandeira brasileira.
Entre todas essas compreensões, há aquela que nos é uma das mais ca-
ras: O Brasil não é mais o país do futuro. Hoje, no mundo, o Brasil é Presença.
Também aqui está a ideologia oficial dos discursos contemporâneos sobre
o Brasil que temos. Um Brasil que está se fortalecendo cada vez mais no
cenário mundial, que tem Presença, que tem voz. Hoje. E quanto a essa
presença, não se discutem os preços sociais que são pagos, não se questio-
nam as desigualdades – aliás, a desigualdade já virou diversidade, que,
pela leitura desse discurso, caminha com a igualdade, com o equilíbrio.
E os signos ideológicos verbais e imagéticos nessa propaganda se so-
mam ao som, aos acordes da música escolhida como fundo e que repre-
sentam também um discurso ideológico de um Brasil ‚que canta e é feliz‛,
de uma raça ‚que não tem medo de fumaça, que não se entrega, não‛.
Essa luta do povo brasileiro é sempre retratada como uma luta que vale a
pena. Para isso, criam-se afirmações que viram até bordões e amplas cam-
página 189

panhas publicitárias para que a garra do brasileiro, apesar de todas as


dificuldades enfrentadas por ele, seja fortalecida: ‚sou brasileiro e não
desisto nunca‛. E toda essa luta é sofrida, mas tem o seu valor. Veja só o
Camila Caracelli Scherma

crescimento de nosso país. O mundo inteiro já sabe quem somos. Temos o


nosso papel garantido no cenário mundial. E o agronegócio é a principal
dessas forças que nos impulsionam para isso. Somos o ‚celeiro do mun-
do‛. E a letra da música que é fundo desse vídeo comercial, embora não
seja cantada durante a propaganda, ainda caminha, depois da luta, da raça
e da felicidade do povo brasileiro, para a mulata que ‚bota a sandália de
prata e vem pro samba, sambar‛. Afinal, ‚somos mais que o país do fute-
bol‛. ‚Somos o país da agricultura e da pecuária‛ – do samba e da boa
morena com molejo nas ‚cadeira‛.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A luta discursiva por nós estudada nesse trabalho de mestrado consti-


tui embates ideológicos que refletem uma realidade de conflitos e tensões,
dentro da qual convivem diferentes sujeitos, organizados em diferentes
classes sociais que, com base nos seus interesses, lançam-se na arena dis-
cursiva, lutando ora pela manutenção da atual ordem das coisas, ora pela
subversão dessa mesma ordem.
A tensão constitutiva dos discursos e constituída por eles está no fato
de que há a construção de uma imagem do Brasil como grande promessa
internacional de desenvolvimento; no entanto, há discursos outros que
afirmam que os esforços nessa direção não passam de trabalho para man-
ter uma posição já historicamente consolidada de um Brasil que é forne-
cedor de matérias-primas a baixos preços e que usa de seus vastos, mas
finitos, recursos para isso.
A grande questão está em torno da hegemonia desses discursos que
também é refletida e refratada nas ações da base material, da base socioe-
conômica. Aqueles discursos que são construídos com a finalidade de
manter e fortalecer a atual organização das coisas, que tentam estabilizar
as ações e as falas em torno delas, que tentam tornar as posições a respeito
dessas ações monológicas, têm sido os discursos hegemônicos, posto que
têm tido mais força, que têm determinado os detentores dos meios de
produção, os detentores de terras, do comando da política e da economia.
Já aqueles discursos que tentam subverter a atual ordem das coisas, que
página 190

questionam, que põem em debate, que propõem mudanças, movimentos,


constituem os discursos da não-hegemonia, posto que os que os proferem
são aqueles que não detêm o poder, que não detêm o comando político e
Discurso e hegemonia: embates sígnicos no contexto do agronegócio

econômico, são os discursos com vozes destoantes daquelas que monolo-


gizam, são as vozes que instauram as instabilidade em oposição à estabili-
dade discursiva corrente na atualidade da esfera de atividade do campo,
da agricultura e da pecuária brasileiras.
O estudo dos signos, dos discursos, um estudo feito, portanto, pelas
lentes da linguagem, nos permitiu construir compreensões acerca da base
material da sociedade – mais especificamente na esfera do agronegócio.
As palavras refletem e refratam as ações, os fatos, os acontecimentos, de
acordo com os projetos de dizer de cada sujeito ou de cada classe social
não porque tais ações ou fatos são o que são, mas porque os sujeitos que a
elas se referem discursivamente são o que são. Desse modo, o alargamento
dos estudos linguísticos e discursivos, buscando neles os embates entre
estabilidade e instabilidade, nos permite pegar nos discursos, além das
lutas ideológicas, a vida.

REFERÊNCIAS

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BAKHTIN/VOLOSHINOV. Discurso na vida e discurso na arte. Tradução de Cristóvão


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______. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método socio-


lógico da linguagem. 13 ed. São Paulo: Hucitec, 2009. [1929]

MELO NETO, João Cabral de, Morte e vida severina e outros poemas. 1 ed. – Rio de Janei-
ro: MEDIAfashion, 2008.

MIOTELLO, V. Os interlocutores de Bakhtin. Linguasagem, v. 2, p. 1-5, 2008. Disponível


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<http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao07/coluna_conversando.php>. Acesso em:
17/01/2011.

PONZIO, Augusto. A Revolução Bakhtiniana: o pensamento e a ideologia contemporânea


– São Paulo: Contexto, 2008.
página 191
página 192 Camila Caracelli Scherma
quatorze

Eduardo Eide NAGAI1


A colonização da
MEMÓRIA no discurso
HISTORIOGRÁFICO1
Durante o período colonial, convidava-se o povo a lutar contra
a opressão. Depois da libertação nacional, convidam-no a lutar
contra a miséria, o analfabetismo, o subdesenvolvimento. A
luta, afirma-se, continua. O povo verifica que a vida é um
combate interminável.
(Fanon, 2005, p. 112)

INTRODUÇÃO

I
niciamos esse artigo assumindo que ele tem por base nossos es-
tudos do mestrado. Trataremos nele algumas questões que fo-
ram levantadas na dissertação intitulada: "A colonização da memó-
ria e a formação da memória dialética nos livros de história". Portanto,
um dos objetivos deste artigo é questionar a atividade do historiador,
analisando os livros de história, esse será o material verbal de nossa
pesquisa. Quando nos deparamos com esse material verbal entende-

1Mestre em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade


Federal de São Carlos, sob Orientação do Prof. Dr. Valdemir Miotello.
Eduardo Eide Nagai

mos que ele se vincula com uma das tarefas do historiador: a seleção dos
fatos que vão ser lembrados e dos que serão esquecidos na história. Sabe-
mos que não é um papel exclusivo do historiador, outras esferas de ativida-
de humana também o promovem, como o escritor, o jornalista, etc.; mas tal
tarefa é por excelência do historiador, exatamente porque historicamente foi
dado a tal personagem social o enfadonho e pesado dever de fiscalizar isso
que chamamos de memória. E assim, uma determinada relação de poder foi
se instalando nessa atividade historiográfica: a colonização. Essa coloniza-
ção, entretanto, é muito específica e não se confunde somente com uma
relação de dominação de um povo sobre o outro, de uma nação sobre outra,
é uma relação que se espalha nas esferas cotidianas, sendo de outra ordem:
a colonização da memória.
Os historiadores vinculados com o ensino de história aprenderam co-
mo ninguém a exercer essa colonização através de um gênero discursivo
muito familiar do historiador: o livro didático de história. São esses sujei-
tos que escolhem as imagens que temos do passado e do presente históri-
cos, e, ao controlar essas imagens, produzem também as orientações para
o futuro. A memória que abordaremos não é uma relação psico-fisiológica
do nosso corpo, a memória que abordaremos é uma relação coletiva de
circulação de signos que constroem um passado para modificar o nosso
momento presente. Dessa forma, a memória é um signo que projeta o fu-
turo, não de forma mecânica, mas de forma complexa. A memória coletiva
é um produto construído principalmente pelos historiadores nessas esfe-
ras oficiais da historiografia.
Um tipo específico de memória foi se desenvolvendo nos discursos di-
dáticos de história: a memória dialética. Memória dialética é um tipo de
memória que consiste em construir um sistema de imagens dialéticas so-
bre determinados temas. Aqui nessa pesquisa selecionamos o tema: impe-
rialismo europeu. Sabemos que são três grandes momentos em que ocorre
a memória dialética sobre a África e sobre a Europa, são eles: as grandes
navegações, o imperialismo europeu e a descolonização africana. É impor-
tante observar que as memórias são construídas como um processo, e não
como produtos fechados, portanto esses episódios são colocados aqui di-
daticamente, e não representa a vida concreta das memórias que se consti-
página 194

tuem continuamente na história.


Nesses três episódios históricos, a África só surge como oposição à Euro-
pa. Enquanto a Europa aparece independente da África, ou seja, esta só existe
A colonização da memória no discurso historiográfico

na condição de antítese da Europa. Nas grandes navegações, os europeus


"descobriram" o continente africano; no imperialismo, o território africano foi
"ocupado" pelos europeus, que separaram o continente africano em grandes
blocos e o partilharam entre os países dominantes. E na descolonização, em
que ocorre a libertação relativa das colônias, quando pensamos que a África
finalmente seria sujeito de sua liberdade, ela o é apenas relativamente, já que
quem promove a independência das colônias ou é mostrando como sendo as
próprias metrópoles, ou sendo as guerrilhas marxistas. Tanto o primeiro,
como o segundo caso são exemplos de uma visão eurocêntrica da história,
porque no primeiro caso é a própria Europa que promove a libertação da
África, e no segundo caso é a ideologia marxista, que também é um pensa-
mento que veio da Europa. Nos três episódios vemos a visão predominante-
mente eurocêntrica se materializando nos discursos.
A história, longe de ser neutra, expõe um determinado ponto de vista
sobre os fatos, o dos vencedores da história. A memória dialética, nesse ca-
so, produz uma imagem ativa da Europa, como potência promotora dos
acontecimentos. Já a imagem que se constrói sobre a África é de passivida-
de, não se mostra como sujeito, mas assujeitada às circunstâncias dadas pela
Europa. Para analisar essas relações ideológicas que se travam nas memó-
rias dialéticas dos livros de história optamos pelo episódio do imperialismo
europeu, já que aqui vemos esse fenômeno social de memória dialética se
colocar mais fortemente, em especial, analisaremos os capítulos que tratam
da Partilha da África. É a memória dialética que possibilita aos historiado-
res participarem do que chamaremos de Colonização da memória.

O LUGAR DA MEMÓRIA NA PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA


DO DISCURSO

A ideia de memória atravessará toda a extensão dos nossos estudos,


por isso mesmo precisamos delimitá-la e compreender os lugares que ela
ocupa. Mas antes disso, é preciso compreender a perspectiva sócio-
histórica da linguagem. Pois é nessa perspectiva que nos inscrevemos nos
estudos discursivos, sobretudo nos estudos bakhtinianos. Para entender a
perspectiva sócio-dialógica de Bakhtin, é preciso antes compreender em
página 195

que medida esta perspectiva foi influenciada pelo pensamento de Marx,


filósofo alemão que modificou a forma de ver o mundo de seu tempo.
Depois de Marx, fora impossível para a filosofia sustentar o idealismo
Eduardo Eide Nagai

como um método de interpretação do mundo sem as duras críticas dos


materialistas. O livro em que o filósofo juntamente com Engels dedicou
maior esforço à crítica ao idealismo foi A ideologia alemã (2007a).
Um conceito que Bakhtin toma emprestado de Marx alargando sua am-
plitude é a ideologia. Vamos começar com a ideologia para Marx e depois
focar na ideologia para Bakhtin. Tal noção foi entendida por Marx como um
falseamento da realidade, porque a ideologia transforma as ideias de uma
determinada classe dominante de uma determinada época em ideias domi-
nantes daquela época. A ideologia cria a ilusão de unicidade de um conjun-
to de ideias como realidade unívoca, unilateral e monológica, sendo que tais
ideias são as pertencentes de uma classe específica. Apaga-se assim a ideo-
logia dos dominados, como se somente existisse a dos dominadores. Essa
maneira de entender a ideologia feita por Marx era extremamente necessá-
ria em sua época, pois dessa forma o pensador alemão fazia uma denúncia
do abuso de poder dos burgueses, classe dominante.

As idéias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, is-


to é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo
tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os
meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiri-
tual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo
tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção
espiritual. (Marx; Engels, 2007a, p. 47)

A burguesia, pela visão de Marx, manipulava o povo através das ideias


falsas que eram impostas por ela. Tal classe dominante alienava a classe
dominada e tirava-a das relações sociais. De uma forma geral, o conceito
de ideologia era ainda muito primário antes de Marx, tratando-se apenas
como um conjunto de ideias, limitava-se ao campo da ideia, perspectiva
tão perseguida por Marx. Não formava um definição estável e sistemática.
Depois que Marx a empregou em sua perspectiva materialista, os marxis-
tas trataram de elaborar definições consistentes para o vocábulo - um de-
les foi Mikhail Bakhtin.
Bakhtin não ficou satisfeito em deixar mais claro o significado que a i-
deologia tinha para Marx, ele se impôs fortemente a esse termo ampliando
página 196

assim sua dimensão. Se ideologia tinha relação com a dialética marxista,


que consistia em compreender como a classe dominante mobilizava as
suas ideias contra as classes dominadas, em Bakhtin vemos a ideologia
A colonização da memória no discurso historiográfico

atrelada à dialogia e vemos não mais as ideias de uma classe dominante,


mas ideias que são construídas também nas esferas cotidianas da vida
social de dados grupos organizados. Em suma, não somente a ideologia
era usada para dominar uma classe social, agora ela podia também ser
usada pelos dominados como uma forma de se contrapor à ideologia da
classe dominante.
Além de representar a ampliação do conceito de ideologia, Bakhtin
conseguiu compreender como ninguém o lugar da ideologia: nos signos
ideológicos. A ideologia não existia em si. Não flutuava por aí como se
fosse autônoma, ela se materializava na sociedade através dos signos, ou
seja, na linguagem. Os signos linguísticos, além de se formarem a partir de
um significante (imagem acústica) e de um significado (conceito), como
mostrava Saussure, também expressam a ideologia formada no interior de
determinados grupos sociais organizados. A ideologia que se forma no
interior do signo somente vive nesse lugar de embates.

Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como


todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas,
ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que
lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo
situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um
signo. Sem signo não existe ideologia (Bakhtin, 2002, p. 31)

O signo, portanto, vivencia duas realidades simultaneamente, uma e-


xistencial e outra semiótica, ou cultural (Idem, 2010, p. 43). A primeira se
refere à zona limítrofe entre objeto e ideologia. Todo objeto, como o pró-
prio Bakhtin diz em Marxismo e filosofia da linguagem (Idem, 2002, p. 32),
possui sua existência na realidade física, na realidade em que todos nós
sentimos nossos corpos na sua concretude, na sua relação com todo corpo
físico de todo objeto. Se precisássemos colocar a memória em um lugar
dentro dos nossos estudos, esse lugar é no interior dos jogos ideológicos
travados na linguagem.
A atividade do historiador, portanto, não está na descrição dos fatos reais
e concretos isolados da linguagem, ele trabalha é com o texto que constitui os
acontecimentos da vida humana, o historiador trabalha com os signos ideo-
página 197

lógicos. Nada que acontece, nenhuma ação é apreendida somente na vida


empírica ou existencial, ela é também capturada e compreendida na medida
em que falamos ou escrevemos. É na ação humana de produzir discursos que
Eduardo Eide Nagai

está o lugar da memória. A produção da memória, a rememoração, está vin-


culada com a construção de um espaço e de um tempo. Nenhuma memória
está isenta disso. Depois que a modernidade trouxe a escrita, o estatuto da
memória mudou, se antes tínhamos uma memória mais oralizada, transmiti-
da de uma geração à outra, de uma forma não mecânica, então, depois da
modernidade, depois da invenção da imprensa, uma nova memória se ins-
taura na sociedade: a memória coletiva.
E se a memória oral já estava vinculada à manutenção de terminados
fatos por longos períodos de tempo e por diversos lugares, a memória
coletiva ampliou essa ideia. A escrita pode circular de uma maneira mais
rápida e a memória pode se dispersar por longes lugares. A escrita mexeu
com a memória. É nesse lugar, é sempre nas memórias, que conseguimos
melhor captar as vozes em diálogos de ideologias em diferentes horizon-
tes espaço-temporais. E as memórias só se materializam na linguagem,
nos discursos criados pela ação humana, nos textos produzidos, tanto por
via oral, quanto por via escrita.
Analisar os discursos dos tempos de hoje é entendê-los nas tramas histó-
ricas da memória. Memória não é a simples atividade de lembrar. Defini-la
dessa forma é empobrecer a sua importância. Quando rememoramos um
determinado acontecimento através dos discursos não estamos apenas fa-
zendo aparecer uma ou mais vozes do passado, mas também reconstruindo
esse passado através das relações do presente. Toda memória é uma ativi-
dade de resposta dentro do elo de comunicação verbal. Portanto o vínculo
do passado com o presente é um dos elementos da memória. É preciso a-
bandonar a compreensão da memória como um passado resgatado e esta-
belecer uma noção de memória na perspectiva sócio-histórica do diálogo. A
memória é social, porque é relação. Um pensador importante que estudou a
memória é Michel De Certeau no livro A invenção do cotidiano (2009).

Sob a forma prática, a memória não possui uma organização já pronta de


antemão que ela apenas encaixaria ali. Ela se mobiliza relativamente ao que
acontece - uma surpresa, que ela está habilitada a transformar em ocasião.
Ela só se instala num encontro fortuito, no outro. (De Certeau, 2009, p. 150)
página 198

A memória, para este estudioso, está sempre se mobilizando, podemos


dizer que a perspectiva em questão se contrapõe àquelas tendências teóri-
cas que veem a memória somente na sua imobilidade, no seu acabamento;
A colonização da memória no discurso historiográfico

e, porque inacabada, a memória sempre se orienta para o outro. A memó-


ria só se constitui nas relações entre o eu e o outro. Ela, portanto, nasce do
outro e se orienta em direção ao seu interlocutor. É deslocável de acordo
com a situação, com a interação. Somente na relação é que ela existe: "A
memória vem de alhures, ela não está em si mesma e sim noutro lugar, e ela se
desloca" (Ibidem, p. 151). Porque a memória é relação, podemos dizer que
se reflete nela, as trocas ideológicas. A memória é tecida na trama das re-
lações sociais e, por isso, as reflete e as refrata, como vemos em Le Goff,
em História e Memória,

A memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento


e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória social é, sobretudo, oral,
ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita, aquelas que
melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da
tradição, esta manifestação da memória (Le Goff, 2003, p. 470)

Assim, chegamos onde gostaríamos, a memória reflete relações de do-


minação, e uma dessas relações é a colonização da memória. Existem dife-
rentes tipos de colonização, mas trataremos, aqui, da colonização da me-
mória, porque ela se dá na linguagem. Para falarmos de colonização, é
preciso antes colocar a questão do papel da violência, porque

Ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e a política pode permane-


cer alheio ao enorme papel que a violência sempre desempenhou nos negócios
humanos, e, à primeira vista, é surpreendente que a violência tenha sido rara-
mente escolhida como objeto de consideração especial. (Arendt, 2009, p. 23)

Hannah Arendt foi uma grande pensadora que teve preocupação com a
discussão sobre a violência e deixou aos estudos filosóficos a responsabili-
dade de debater sobre a difícil questão. Ao analisarmos a história vemos
que a violência sempre esteve presente na vida social da humanidade, in-
clusive no que consiste à atividade historiográfica. Definimos, como violên-
cia, as ações de dominação que promovem os homens contra outros ho-
mens, ou uma nação contra uma outra nação, ou seja, violência é sempre
uma ação contra alguma coisa. Porém, ao nos depararmos com os discursos
página 199

percebemos neles mesmos uma outra maneira de manifestação da violên-


cia, que não é física, mas é virtual. Virtual, aqui, não está sendo empregada
como oposta à real. Porém, virtual no sentido de que a violência não neces-
Eduardo Eide Nagai

sita da presença física do agressor. O agressor pode estar presente nas pala-
vras, nos signos e nos discursos, ou seja, virtual no sentido de semiótico.
Aqui, analisamos o papel da historiografia nesse processo da violência.
Porém, antes de continuarmos, é necessário fazer uma diferenciação em rela-
ção ao poder e à violência. Ambos os conceitos tratam de um processo de
relação ideológica de um grupo sobre o outro. De um sujeito que busca o
assujeitamento do outro. A própria Arendt, no mesmo livro Sobre a violência,
vai colocar essa diferença. De acordo com ela, os autores e pensadores de sua
época diziam que a violência era uma forma extrema do poder, ou que o po-
der era uma forma de violência. Independente da posição dos autores, eles
estavam de acordo em uma coisa, violência e poder se confundiam, um era o
efeito do outro. Arendt propõe, contra isso, a diferenciação dos conceitos:

Os homens podem ser 'manipulados' por meio da coerção física, da tortura


ou da fome, e suas opiniões podem formar-se arbitrariamente em função
da informação deliberada e organizadamente falsa, mas não por meio de
'persuasores ocultos', tais como a televisão, a propaganda ou quaisquer ou-
tros meios psicológicos em uma sociedade livre. (Ibidem, p. 45)

O poder não é entendido como uma violência, mas como uma domina-
ção através de meios psicológicos. De acordo com Arendt, "a forma extrema
e poder é Todos contra Um; a forma extrema da violência é Um contra Todos"
(Ibidem, p. 58). A violência é quando um grupo menor se utiliza da força
física para impor seus argumentos. O poder é quando um grupo convence
outro grupo e dessa forma ambos entram no jogo de convencimento. Co-
mo vimos, se violência é uma ação contra o outro; o poder é uma ação
com o outro, torna-se assim, um jogo em que o outro tem a livre escolha
de jogar ao lado de, ou em posição contrária a. Ainda há a relação de domi-
nação nesse jogo, mas ela é baseada no contrato.

Mudando por um momento para a linguagem conceitual: o poder é de fato


a essência de todo o governo, e não a violência. A violência é por natureza
instrumental; como todos os meios, ela sempre depende da orientação e da
justificação pelo fim que almeja. (Ibidem, p. 68)
página 200

Violência, portanto, pode ser um instrumento para manter o poder,


mas as duas coisas não se confundem. O fim nunca é a violência, e sim o
poder, e o meio pode ser a violência. Há formas de se exercer o poder que
A colonização da memória no discurso historiográfico

não seja a violência, essa outra forma permite ao ofensor não estar presen-
te no lugar de realização do poder, ou melhor, não estar presente na sua
manifestação física, já que de um certo modo, o opressor estará presente
no sentido discursivo. Uma das manifestações de poder é a colonização da
memória, que é uma colonização que faz lembrar a todo o instante o esta-
do de opressão: essa colonização se dá através da memória. É a memória
que faz a colonização se materializar nas relações entre povos, entre ho-
mens, entre homens e objetos, etc.
Quando um povo é reprimido fisicamente, ou seja, quando há invasão
do opressor nas terras do oprimido há realização da violência colonizado-
ra. Nesse mesmo momento, a memória do oprimido é a todo o momento
atualizada para se lembrar desse estado de violência. Uma hora ou outra,
a mente do oprimido estará habituada com essa violência. E ela acaba por
aceitar a violência. Em seguida, a cultura desse sujeito estará invadida por
signos da opressão sofrida. Logo, a história lembrará de fatos manipulan-
do essa opressão e mostrando o opressor como herói.
É nesse momento, em que a história do oprimido se confunde com a his-
tória do opressor, quando mostram aos alunos da colônia, os colonizadores
como "bons", como um ponto positivo na história da colônia, é nessa hora
que a memória passa a ser o lugar da colonização. As esferas mentais, cul-
turais e memoriais se manifestam de uma tal maneira, que depois de gera-
ções, o colonizador não está mais presente fisicamente na vida cotidiana do
colonizado, e mesmo havendo a independência política de uma nação intei-
ra, a política implementada por esse povo é a repetição da política do povo
colonizador. É assim que mostraremos essa colonização se manifestando
nos livros de história. Como a memória construída nesses livros está repleta
de signos ideológicos do colonizador, construindo a imagem do coloniza-
dor como positivo e ativo e a do colonizado como negativo e passivo. A
essa memória daremos o nome de memória dialética.

A COLONIZAÇÃO DA MEMÓRIA NOS LIVROS DIDÁTICOS

Os livros didáticos que analisaremos foram escolhidos, primeiramente,


por seu título, fizemos opção por aqueles que se dedicassem a tratar das
página 201

grandes temporalidades na história, por isso aparecem nos títulos palavras


como "sociedade", "geral", "civilizações", "humanidade". Todas essas palavras
remetem a toda a vida histórica do homem, tratando-a dos primórdios da
Eduardo Eide Nagai

humanidade aos dias atuais. Em segundo lugar, a escolha foi feita de acor-
do com o tratamento dado à África, o livro deveria fazer referência à histó-
ria africana, seja de forma superficial ou aprofundada. E, em terceiro lugar,
os livros deveriam ser didáticos. Os livros escolhidos foram: História das
Sociedades (1979), de Aquino; História Geral – Idade Contemporânea (1966), de
Carvalho e História Geral das Civilizações (1963), de Crouzet. Nem todos apa-
recerão nesse artigo, devido ao espaço que temos para a escrita.
A memória que queremos analisar é chamada memória dialética, exa-
tamente, porque ela se manifesta, como Marx nos mostrou no livro Mani-
festo do partido comunista.

A história de todas as sociedades até hoje é a história das lutas de classes. Ho-
mem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corpora-
ção e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição,
têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que
terminou sempre por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou
pela destruição das duas classes em conflito. (Marx, 2007 [B], p. 40)

Marx dá o nome de dialética a todas as relações que constroem uma sín-


tese a partir da destruição de um dos dois pólos ou da destruição dos dois
para a formação de uma síntese. Podemos, assim, pensar a fórmula hege-
liana da dialética: tese + antítese = síntese. Na memória dialética, é reme-
morada uma relação de dois pólos e um desses é destruído, ou seja, é apa-
gado ou é rebaixado; enquanto se sobressai o outro pólo da memória. No
nosso caso, estamos estudando a relação dialética África X Europa, mos-
trando que há um rebaixamento das imagens construídas sobre a África e
uma elevação das imagens sobre a Europa. Dessa forma, esta última é
sempre vista sob o ponto de vista positivo e ativo, enquanto a outra é vista
sob o ponto de vista negativo e passivo.
Portanto, a visão afrocêntrica não se constitui nos livros de história, o
posicionamento eurocêntrico é predominante. É como se constitui a colo-
nização, já que uma colonizou a outra e por isso tem condições de ditar as
imagens que vão se manifestar nos livros de história e dessa forma, na
própria história.
página 202

(1) Vários foram os motivos que levaram daquela época em diante os euro-
peus a explorar o continente negro. Alguns foram interessados nos núcleos
A colonização da memória no discurso historiográfico

incipientes de imigrantes brancos; outros se dedicaram à catequese; muitos


foram guiados pela curiosidade científica (Carvalho, 1966, p. 171)

Uma forma de manifestação da memória dialética é sempre colocar a


Europa como sujeito da ação expressa, enquanto a África é vista como
objeto, território, ou algo que nos lembre a passividade. "Continente africa-
no" é o que apareceu nesse primeiro exemplo, portanto, vemos aqui, que
continente africano é o lugar que pode ser ocupado pelos "europeus". Nos-
sa primeira memória dialética é quando estes exercem a ação de "explorar"
aquele. Há muitos exemplos, como este, na história, mas queremos mos-
trar outras memórias.

(2) Para justificar a política imperialista e colonialista apresentavam-se razões


filantrópicas e humanitárias. As ‘nações adiantadas’ tinham uma ‘missão ci-
vilizadora’ a cumprir: livrar as ‘nações atrasadas’ do canibalismo e dos sacri-
fícios humanos, convertê-la ao cristianismo, proporcionar-lhes hospitais e es-
colas para melhorar as condições de vida.(Aquino, 1983, p. 200.)

Agora vemos a memória através das designações, relativas à Europa, "na-


ções adiantadas" e as, relativas à África, "nações atrasadas". Enquanto, ao coloni-
zador o signo de adiantado, ao colonizado o de atrasado. Além dessa dialéti-
ca entre adiantado X atrasado, temos ainda memórias dialéticas do tipo avan-
çado X primitivo; ativo X passivo; urbano X rural; industrial X campesino.
Vemos todas essas dialéticas dispersas pelos textos da historiografia, mas o
que gostaríamos de mostrar agora é a memória dialética da cor da pele.

(3) Igualmente recorreu-se à justificativa da ‘superioridade racial’: os ho-


mens brancos eram superiores aos homens não-brancos. Partindo de pre-
missas pseudocientíficas, reforçadas com matizes religiosas, formularam
mitos justificadores da submissão de povos africanos, asiáticos e latino-
americanos, os quais foram integrados no circuito econômico capitalista
(Aquino, 1983, p. 200)

Se esperávamos que veríamos a relação dialética Brancos X Negros, e


vimos em diversas ocasiões, vimos nesse exemplo o branco no centro do
página 203

discurso, já que à Europa vimos o signo ideológico "branco" e à África, o


signo "não branco". Apesar do historiador, nesse exemplo, questionar "as
justificativas de superioridades raciais", ele se inscreve numa ideologia eu-
Eduardo Eide Nagai

rocêntrica a partir do momento em que escolhe esses signos, que não é alea-
tória. Em todos esses signos ideológicos e memórias dialéticas, vemos o
rebaixamento do africano. A África é passiva, enquanto a Europa ativa, isso
equivale a dizer que a África passou a história toda dessa dialética receben-
do da Europa, enquanto esta nada recebeu daquela. Ora, isso é uma ilusão
dos colonizadores, já que quando pensamos na relação de dois povos na
história, ambos aprenderam um do outro, ambos interagiram, ambos existi-
am enquanto culturas autônomas, antes da presença de uma frente à outra.
Dessa forma, procuramos sem êxito uma memória que fosse dialógica, ou
seja, que respeitasse e colocasse ambos no mesmo patamar. A história se
dedicou principalmente a escolher o que uma nação irá lembrar e o que a
mesma irá esquecer. E essa escolha não é aleatória, é sempre feita a partir da
visão do colonizador. É a esse fenômeno que damos o nome de Colonização
da memória. Uma colonização que faz lembrar a todo o momento que o
colonizado não está livre da opressão, que a luta, longe de ter acabado com
a conquista da independência, não acaba nunca.

CONCLUSÃO

O que fica claro para nós, depois dessa análise, é que nesses livros, que
são todos didáticos, ou seja, usados em nossas escolas; os signos materiali-
zados são sempre os dos colonizadores, o que nos leva a acreditar que o
povo irá aprender apenas a versão do colonizador da nossa própria histó-
ria. Vimos a dialética Europa X África, e se pensarmos que a cultura brasi-
leira tem fortes raízes tanto na cultura europeia, quanto na cultura africa-
na, então essa história se refere à nossa formação cultural. Estamos apren-
dendo que em nossa cultura, a europeia tem grande importância, já que
foi ela a ativa, enquanto a africana somente recebeu influências europeias,
ela foi passiva no processo histórico.
É preciso transformar essa situação de colonização. E pensarmos novas
formas de atuação do historiador e do professor de história, que muitas vezes
são rebaixados pela sociedade, porém em nossos estudos vimos que eles têm
uma importância fundamental: a de definir as memórias que orientarão os
rumos da história de uma nação. Essa tarefa, como dissemos, não é só deles,
página 204

mas é deles o papel de orientar as memórias históricas de um povo.


A colonização da memória no discurso historiográfico

REFERÊNCIAS

AQUINO, Rubim. História das sociedades. Rio de Janeiro: Livro técnico, 1983.

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2009.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2002.

______. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João editores, 2010.

CARVALHO, Delgado de. História Geral. Rio de Janeiro: CBPE, 1966.

CROUZET, Maurice. História geral das civilizações. São Paulo: Difusão europeia, 1963.

DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: EdUNICAMP, 2003.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007(A).

______. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Bointempo, 2007(B).

página 205
página 206 Eduardo Eide Nagai
quinze

Marina Haber de FIGUEIREDO1 & Valdemir MIOTELLO2


A contemplação ERÓTICA
dos SUJEITOS estéticos
da "INFÂNCIA", de
Manoel de BARROS12

INTRODUÇÃO

O
presente artigo busca fazer uma pequena reflexão acer-
ca da temática de pesquisa desenvolvida durante o mes-
trado. Dessa forma cumpre informar que o objetivo des-
se estudo residiu na busca (por meio dos discursos dos
sujeitos estéticos de Barros) pela construção de discursos que refra-
tam os discursos que veiculam os valores que se encontram relati-
vamente estáveis no e pelo discurso oficial.
Para isso parte-se da premissa que esses contradiscursos, no caso
deste artigo e da pesquisa desenvolvida, são discursos constituídos
pelo olhar adulto dos sujeitos adultos dos textos de Barros, que ao

1 Mestre pelo PPGL/UFSCar. Patrocínio Paulista - SP. Pesquisadora do GEGe. marinaha-


ber@uol.com.br
2 Mestre e Doutor pela UNICAMP. Prof. Dr. do Departamento de Letras e do PPGL/UFSCar.

miotello@terra.com.br
Marina Haber de Figueiredo & Valdemir Miotello

revisitarem sua infância propõem uma nova forma de ver/sentir/viver o


mundo, respaldada pelos valores dos sonhos, do erotismo simples e con-
creto, do prazer onírico, da criatividade contemplativa e do nada fazer
que aparecem expressos na infância.
A análise da construção dos contradiscursos presentes na obra de Bar-
ros é apresentada por meio dos estudos bakhtinianos e perpassa, especifi-
camente, pela concepção de sujeito e pela forma como se encontra constru-
ído, bem como pelos valores e ideais incutidos em sua voz.
A conceituação de sujeito para Bakhtin se aproxima da concepção de
Vygotsky: o sujeito é agente de sua consciência e depende da linguagem
para formar-se e manifestar-se. Na verdade, o sujeito (eu) se constitui por
meio do eu, a partir do outro. Em outras palavras, os sujeitos se constitu-
em por meio do(s) outro(s), dialogicamente, numa interatividade comple-
xa e dinâmica, com suas próprias orientações ideológicas.
Nesta perspectiva, os sujeitos dialógicos dos textos de Barros se consti-
tuem pelo que pode ser denominado por sujeito adulto-criança e é este
sujeito que se compõe em embate com o sujeito adulto do universo hege-
mônico. Desse ponto de vista, pode-se dizer que o sujeito da arquitetônica
barrosiana se constitui por três sujeitos num só: o sujeito adulto “eu”, des-
locado do mundo adulto, projetado em sua infância; o sujeito adulto “ou-
tro”, representante do mundo hegemônico (a quem “Barros” contradiz); e
o sujeito criança, um outro eu, um outro “outro” existente no interior do
sujeito adulto “eu”, em quem ele se projeta, e a partir do qual afirma sua
voz no texto, como “narrador-personagem” adulto e criança ao mesmo
tempo – eu e outro em embate ao outro, no mundo adulto hegemônico.

A INFÂNCIA ERÓTICO-CONTEMPLATIVA DOS SUJEITOS DE BARROS

As vozes da ordem político-econômico-social vigente no mundo global


pregam um discurso excludente e consumista, que preza pelo desperdício,
bem como imprime um aumento na velocidade dos fatos e atos. O mundo
é regido por um objetivismo racional e cartesiano, o mundo dos negócios,
personificado no homem adulto, com sua seriedade permanente e a sem-
pre presente falta de tempo. Há tempo para a velocidade informacional,
página 208

para produzir tecnologia e bens de consumo cada vez menos duráveis,


mas jamais para o ato contemplativo, para o ato responsável e responsivo
A contemplação erótica dos sujeitos estéticos da “infância”, de Manoel de Barros

da escuta ativa, para o interagir com a vida e deixar-se embriagar constitu-


tivamente por ela.
Para Bakhtin (1987), esse discurso da seriedade presente no discurso o-
ficial perpassa a história da humanidade desde a cultura clássica e, ao que
tudo indica, ecoa seus reflexos na sociedade contemporânea. Afinal, como
afirma o filósofo russo, “na cultura clássica, o sério é oficial, autoritário,
associa-se à violência, às interdições, às restrições. Há sempre nessa serie-
dade um elemento de medo e de intimidação” (Bakhtin, 1987, p.78). Nos
textos barrosianos escolhidos, o discurso oficial é identificado pelo discur-
so capitalista, com sua seriedade e sisudez, impregnado por valores relati-
vamente estáveis que ecoam nas relações sociais como modelos de certo e
errado, rigidez e ordem.

Nas concepções oficiais das classes dominantes, a dupla tonalidade da pa-


lavra é no conjunto impossível, na medida em que as fronteiras firmes e es-
táveis se traçam entre todos os fenômenos (que são ao mesmo tempo desta-
cados de todo o mundo no processo contraditório do devir). Nas esferas o-
ficiais da arte e da ideologia, é o tom único do pensamento e do estilo que
quase sempre dominou. (Bakhtin, idem, p. 380).

Em contrapartida aos fios que tecem esse discurso hegemônico, faz


surgir, na obra de Manoel de Barros, a construção de discursos contrários,
de contradiscursos, representados esteticamente pelo subjetivismo concre-
to e, ao mesmo tempo, contemplativo e erótico da criança, na infância.
Dessa forma, os sujeitos estéticos presentes nos textos de Barros propõem
a reconstrução do mundo por meio da composição de um discurso estéti-
co, repleto de (meta)linguagem, reflexão poética, erotismo, subjetivismo e
lirismo, o que leva a dizer que estes sujeitos estabelecem, por meio de suas
vozes, um diálogo com as vozes que veiculam a ideologia dominante.
É importante dizer que a constatação sobre a construção de contradis-
cursos estéticos nos textos de Barros é observada justamente no ponto de
tensão entre o eu e o outro. Um exemplo disso pode ser o trecho do texto
“O apanhador de desperdícios”: “Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocida-
de das tartarugas mais que a dos mísseis” (2003, IX). Nesse texto, o sujeito
reconhece e nega a rapidez desenfreada do mundo neoliberal ao afirmar
página 209

que prefere insetos a aviões e supervaloriza a “lentidão” das tartarugas à


tecnologia exata dos mísseis. Enquanto o mundo global batalha para con-
quistar sempre mais, sem necessariamente se importar com o que é esse
Marina Haber de Figueiredo & Valdemir Miotello

mais ou com as consequências dessa busca, os sujeitos da obra de Barros


mantêm uma relação profunda com o chão. A terra simboliza esse espaço
de baixo, alicerce do homem nos textos poéticos de Barros. Vale ressaltar
também a questão erótica, não só dos sujeitos dos textos ao revisitarem a
infância, mas a própria ligação entre a terra e o erotismo, a terra que é fer-
tilizada e fecundada pela relação entre morte e vida. Tal fato pode ser ve-
rificado no texto “Ver” (2003, V): “Dava a impressão que havia uma troca vo-
raz entre a lesma e a pedra. Confesso, aliás, que eu gostava muito, a esse tempo, de
todos os seres que andavam a esfregar as barrigas no chão”.
As análises sobre como se articulam a construção ideológica desses
contradiscursos são compostas (por meio da elaboração estética), bem
como constituídas em Barros (na relação eu/outro) ,por discursos que ve-
em utilidade poética no que é inútil. Para isso, trabalha-se sob a perspecti-
va da concepção de infância de Barros, por meio dos vieses do erotismo e
da contemplação, na relação sujeito-mundo-sujeito, por meio da reflexão
responsiva dialógica eu/outro.
A escolha por textos escritos, como material de estudo para o desen-
volvimento deste artigo, especificamente, no caso, uma escrita estética
(literária), justifica-se, pois, como afirma Bakhtin

O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemento de


comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de diálo-
gos e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser es-
tudado a fundo, comentado e criticado. [...] o discurso escrito é de certa
maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala:
ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa respostas e objeções
potenciais, procura apoio, etc. Qualquer enunciação, por mais significativa
e completa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de co-
municação ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao co-
nhecimento, à política, etc.). (Bakhtin, 2006, p.127-128).

Em outras palavras, o discurso literário, abordado como discurso esté-


tico, também representa o mundo de maneira elaborada e também é uma
forma de expressão social. Por isso, passível e importante de ser estudado,
pois se constitui carregado de valores e ideologias.
página 210

A sociedade contemporânea relaciona infância à imaturidade e falta de


responsabilidade. Nos textos de Barros, a representatividade da infância
aparece com valores opostos aos da “vida adulta”, que, ao ser revisitada
A contemplação erótica dos sujeitos estéticos da “infância”, de Manoel de Barros

pelos sujeitos adultos dos textos escolhidos, sinalizam à construção de uma


nova forma de mundo. Os valores expressos na infância de Barros constro-
em discursos contrários, dada a maturidade existencialista – erótica e con-
templativa – incutida nos sujeitos dos textos. Um exemplo pode ser visto
em “O apanhador de desperdício”, em que o sujeito afirma: “Meu quintal é mai-
or que o mundo” (2003, IX). Os valores aferidos pelo olhar do sujeito que vive
e, de certa forma, também contempla a própria infância são os não monetá-
rios, representados pela curiosidade e pela imaginação: o quintal possui
mais possibilidades de descobertas e invenções que “o mundo inteiro”.
O desenvolvimento do conceito de infância permite verificar a constru-
ção de valores e aspirações de uma dada sociedade. Tal constatação pode
ser atribuída a qualquer conceito ou concepção existente, mas, no que se
refere à infância, esta possui certas particularidades que ratificam a sua im-
portância no desenvolvimento valorativo de uma sociedade, por se referir
não a algo externo, mas ao passado de cada um e, ao mesmo tempo, ao fu-
turo de cada grupo humano. Cumpre informar que o conceito de infância
surgiu, no final do século XVII com a filosofia idealista alemã, juntamente
com o conceito de individuo. Dessa forma, tem-se que o conceito de infân-
cia é socialmente produzido e, por isso, varia no tempo e no espaço.
Sobre a concepção da infância é necessário ressaltar que, nos últimos
anos, alguns estudos, como o de Ariès (1981), passaram a questioná-la
como um fenômeno natural e universal, para compreendê-la como uma
realidade social construída e reconstruída historicamente. Há vários traba-
lhos produzidos nas últimas décadas que evidenciam as crianças como
sujeitos no seu sentido pleno e não seres em devir, o que sinaliza para a
necessidade de desconstruir muitas das representações sobre a infância
que abrangem imagens mitificadas e estereotipadas, presentes nos discur-
sos, nas práticas sociais e nas suas formas variadas de representação.
O filósofo Walter Benjamin (1984, 1994a, 1994b), na primeira metade
do século XX, já criticava a concepção equivocada da sociedade sobre a
infância, ao considerar o olhar infantil como ingênuo, crédulo, incapaz e
incompetente. Dentro desse contexto, percebe-se que o olhar dos sujeitos
dos textos propostos reflete toda a inquietude, inventividade e capacidade
transgressora presentes nesta etapa da vida humana e é capaz de criar um
página 211

mundo (ideologia do cotidiano, Bakhtin, 1987) inserido no mundo maior


(ideologia oficial, id.), tal como o pensamento de Benjamin (1984) sobre a
Marina Haber de Figueiredo & Valdemir Miotello

infância, como pode ser observado a seguir nos excertos retirados de al-
guns textos de Barros.

Lagartixas fossem muito principais que as lesmas nesse ponto. Eram esses pe-
quenos seres que viviam ao gosto do chão que me davam fascínio. Eu não via
nenhum espetáculo mais edificante do que pertencer do chão. Para mim esses
pequenos seres tinham o privilégio de ouvir as fontes da Terra (2003,V, Ver).

***

Naquele outono, de tarde, ao pé da roseira de minha avó, eu obrei.


Minha avó não ralhou nem.
Obrar não era construir casa ou fazer obra de arte.
Esse verbo tinha um dom diferente.
Obrar seria o mesmo que cacarar.
Sei que o verbo cacarar se aplica mais a passarinhos
Os passarinhos cacaram nas folhas nos postes nas pedras do rio nas casas
(op.cit., II, Obrar).

Vale dizer que a infância não pode ser entendida como fato passado
que se esgota em tempo vivido, mas é re-significada na vida adulta por
meio da rememoração.

Todo passado está carregado de possibilidades de futuro que se perderam


e que teriam (ou têm?) para nós uma significação decisiva: Benjamin subli-
nhava a importância desse “futuro do pretérito” na rememoração históri-
ca.[...] É aí que o tema da infância assumia um papel fundamental: cada um
de nós tem a possibilidade de rememorar sua própria infância, que é uma
história que lhe é íntima, que pode lhe abrir segredos preciosos, que pode
funcionar como um centro especial de treinamento para o sujeito desenvol-
ver sua sensibilidade e sua capacidade de resgatar significações obscureci-
das que ficaram no passado. (Konder, 1988, p.55-56).

Para Bakhtin, a infância pode ser entendida como parte integrante da


materialidade sócio-histórica que constitui o ser humano e é por ela cons-
tituída, ao mesmo tempo em que é refletida e refratada pelos discursos
página 212

pertencentes às ideologias oficial e do cotidiano. E é por meio do olhar


pertencente à infância, juntamente com a ambivalência e transubstancia-
A contemplação erótica dos sujeitos estéticos da “infância”, de Manoel de Barros

ção das palavras, que os sujeitos presentes nos textos barrosianos expres-
sam a construção de um discurso contrário ao da ótica vigente.
A ideologia capitalista tece sua concepção quase monológica sobre a
infância entendendo-a, hoje, como um dos períodos da vida em que o su-
jeito não tem sua voz ouvida, e que é, portanto, uma fase que possui “ma-
leabilidade” suficiente para ser moldada de acordo com os preceitos dessa
ideologia oficial, que ora intensifica os dizeres moralistas da ideologia
judaico-cristã, ao pregar a criança como uma figura angelical, isenta de
maldade e de características eróticas e sexuais, e ora como miniadultos, tal
e qual os do mundo dos “negócios”, acometidos por agendas abarrotadas
de atividades que visam a prepará-lo, tendo como norte o sucesso profis-
sional na idade adulta e assim “consolida-se” o ideal de vida perfeito
“vendido” pela sociedade de consumo.
No que diz respeito ao viés erótico presente na infância, pode-se dizer
que é também uma característica presente no ser humano desde o seu nas-
cimento. Vale ressaltar que esse erotismo não pode ser entendido no
mesmo grau que o desejo sexual do adulto, porque se trata de um erotis-
mo sexual ligado à descoberta da sexualidade, assim como se descobrem
as necessidades fisiológicas e o seu controle, ou ainda, a descoberta das
mãos e pés. A descoberta de uma vida que se constitui e é constituída por
outras vidas, atos e fatos.

A pulsão sexual ou libido (fome sexual), como denomina Freud, é própria


da criança desde o começo de sua vida; nasce com seu corpo e tem uma vi-
da constante que, às vezes, apenas se atenua, mas nunca se extingue intei-
ramente no organismo e no psiquismo. O amadurecimento sexual é apenas
uma etapa – se bem que muito importante – no desenvolvimento da sexua-
lidade, mas de modo algum é o seu começo. (Bakhtin, 2004, p.36).

Nesse contexto, os estudos desenvolvidos por Freud, Benjamim, Kon-


der, entre outros, desconstroem as idéias sobre o entendimento da criança
como miniadulto, pensamento que permeava o discurso sobre a infância
até por volta do século XII, como a ideia de pureza angelical desenvolvida
por Rousseau (2004).
Na verdade, a infância existiu desde os primórdios da humanidade,
página 213

mas sua percepção como construção e categoria social é somente verifica-


da a partir dos séculos XVI e XVII.
Marina Haber de Figueiredo & Valdemir Miotello

Segundo Ariès (2004, p.50), até o século XII, a arte medieval desconhe-
cia ou não retratava a infância, não existia nenhum sentimento diferencia-
do do ser criança. De acordo com o autor: “o sentimento da infância não
significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da
particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente
a criança do adulto, mesmo jovem.” (Ariès, 2004, p. 156). Ela era tratada
sem distinção do mundo adulto, sendo representada em obras de arte co-
mo um homem ou mulher em miniatura.
Por volta do século XIII, a criança começou a ser representada com ca-
racterísticas um pouco diferentes, que foram se modificando durante os
séculos XIV e XV; porém, as cenas em geral não se consagravam à descri-
ção exclusiva da infância, mas muitas vezes tinham nas crianças suas pro-
tagonistas principais ou secundárias (Ariès, 1981, p.55). Isto pode indicar
que elas participavam do cotidiano dos adultos, em reuniões para o traba-
lho, passeios, jogos, sendo também retratadas por sua singeleza.
O pensamento de Rosseau sobre a existência de uma certa pureza angeli-
cal na infância é advindo da ideia de que toda sociedade corrompida é fruto
da ação humana, como ele mesmo afirma em seu livro supracitado “tudo está
bem quando sai das mãos do Autor das coisas, tudo degenera entre as mãos
dos homens” (2004, p.7); essa afirmação segue a premissa de que Deus criou
o mundo belo e perfeito e que a corrupção/degradação humana acontecem
no viver, nas trocas oriundas das relações sociais. Dessa forma, a infância
passa a ser vista como o momento de excelência à aprendizagem, visto que é
o tempo de vida mais puro e ingênuo que o homem experimenta durante sua
jornada. Porém, este pensamento tende a ser cartesiano, uma vez que tenta
moldar, condicionar o comportamento da criança e do futuro adulto, pois se
percebe a preocupação de Rosseau com o desempenho do papel social de
cada um, além de matar a singularidade e a alteridade, uma vez que lança
mão de práticas homogêneas e pré-estabelecidas.
Para Kramer (2003) foi graças ao desenvolvimento da concepção da in-
fância que os adultos se humanizaram, porém, na atual sociedade, o que
se vê é um processo de adultização ou negação da infância. Dentre outras
coisas, pode-se dizer que a sociedade contemporânea ocidental está se
desumanizando e se coisificando.
página 214

Segundo Narodowiski (1998), a compreensão da atual sociedade he-


gemônica sobre a infância perpassa por dois vieses de entendimento, sem
que nenhum contemple uma constituição mais humanizada, pois ambos
A contemplação erótica dos sujeitos estéticos da “infância”, de Manoel de Barros

servem ao modelo ideológico hegemônico. Assim, as manifestações infan-


tis se processam hoje em dois pólos: um caracterizado pela criança hiper-
realizada, a criança da infância virtual, e o outro é o polo da criança autô-
noma e independente que se tornou assim porque trabalha e vive nas
ruas desde há muito tempo.
No que tange às brincadeiras da infância que preenchem os universos
dos sujeitos de Barros, verifica-se que quase já não se encontram presentes
nas vidas da maior parte das crianças, pois já não se pode mais brincar na
rua, hoje, porque essas são violentas e muito movimentadas (é notório o
aumento no número de crianças desaparecidas nas grandes cidades), o
espaço urbano destinado à moradia se encontra cada vez mais reduzido, o
que impede as crianças de terem liberdade para se movimentar; ao invés
de jogos educativos e convivência familiar ou com outras crianças, o que
se verifica são crianças com agendas lotadas de compromissos e com suas
horas de lazer preenchidas por televisores e jogos eletrônicos.
Para Souza (2004), a única maneira de se reverter o atual panorama
desta sociedade urbana e livrá-la do feitiço e encantamento produzido
pela cultura do consumo é voltar o olhar e recuperar a visão crítica sobre a
infância, pois ela se constitui no agora e é sujeito da história da humani-
dade. Sendo a infância a humanidade incompleta e inacabada do homem,
talvez ela ainda possa nos indicar o que há de mais verdadeiro no pensa-
mento humano: a sua incompletude (op.cit. p. 97).
Tal pensamento evidencia a possibilidade de construção de um contra-
discurso por meio do reencontro entre o sujeito adulto e o sujeito criança
(uma criança-criança, nem adultizada, nem imbecilizada), da descoberta do
mundo como a descoberta do corpo, pelo prazer da constituição do eu por
meio do outro (adulto e criança), e sua relação com o mundo num dado
tempo-espaço (cronotopia), como acontece com os sujeitos dos textos de
Barros a ser observado no seguinte trecho.

Inventei um menino levado da breca para me ser.


Ele tinha um gosto elevado pra chão.
De seu olhar vazava uma nobreza de árvore.
Tinha desapetite para obedecer a arrumação das coisas
página 215

Passarinhos botavam primavera nas suas palavras.


Morava em maneira de pedra na aba de um morro.
O amanhecer fazia glória em seu estar.
Trabalhava sem tréguas como os pardais bicam as tardes.
Marina Haber de Figueiredo & Valdemir Miotello

Aprendeu a dialogar com as águas ainda que não


Soubesse nem as letras que uma palavra tem.
(Barros, 2008, II, Invenção).

Hoje eu estou quando infante. Eu resolvi voltar quando infante por um


gosto de voltar. Como quem aprecia de ir às origens de uma coisa ou de
um ser. Então agora estou quando infante.
(Barros, 2006, XV, Tempo).

A infância é entendida, nos textos em análise, pelo quintal, pelas brin-


cadeiras que outrora aí aconteceram, pela questão da intimidade (crianças
estabelecem laços de afetividade com muito mais espontaneidade que os
adultos), pelo erotismo presente nessa infância, tudo representado pelos
buracos repletos de riquezas, de descobertas, de valores contrários aos
veiculados pelo excludente discurso neoliberal, pelo “baú cheio de punhe-
tas” (Barros, 2003, XIV).
Nos textos de Barros a representatividade da infância aparece com va-
lores opostos aos da “vida adulta”. Os valores expressos na infância de
Barros constroem um contradiscurso, dada a maturidade existencialista –
erótica e contemplativa – incutida nos sujeitos-crianças dos textos. Um
exemplo: em “O apanhador de desperdício”, o sujeito afirma: “Prezo inse-
to mais que aviões” e “Meu quintal é maior que o mundo” (2003), isto é,
os valores aferidos pelo olhar pertencente à infância são valores não mo-
netários, representados pela curiosidade, pela imaginação: o quintal pos-
sui mais possibilidades de descobertas e invenções que “o mundo inteiro”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: o acabamento sem fim

O que se apresentou aqui foi, em linhas gerais, o trabalho desenvolvido


para a tessitura da dissertação desenvolvida e apresentada sob o título de
“Erotismo e Contemplação em “Infância”, de Manoel de Barros e que bus-
ca mostrar a construção de discursos que refratam os discursos proferidos
pelo discurso hegemônico.
Os textos de Barros são marcados por uma ironia fina, principalmente,
no que se refere aos atuais aspectos da vida social ocidental – que ratifi-
página 216

cam os valores presentes na ideologia oficial, pois refletem o inconfor-


mismo dos sujeitos éticos-estéticos da arquitetônica de Manoel de Barros
perante os problemas do mundo contemporâneo (como a divinização do
A contemplação erótica dos sujeitos estéticos da “infância”, de Manoel de Barros

desenvolvimento tecnológico, o distanciamento entre o homem e a natu-


reza, a automatização da vida nos grandes centros urbanos, a supervalori-
zação do prestígio social, a autoridade da ciência e o autoritarismo da lin-
guagem dos meios de comunicação).
Dessa forma, a construção dos discursos contrários é verificada por
meio da expressividade dos sujeitos estéticos de Barros, pelo modo como
seus olhares enxergam o que é e o que não é importante, bem como suas
vozes (adultas, expressas com a simplicidade da criança, sujeito não infan-
til, mas que vivencia a infância – vista como período de nascimento e con-
templação – descoberta – do mundo, o desabrochar da vida – inclusive um
desabrochar erótico) retratam a beleza encontrada nos restos, no despre-
zado pelo mundo tecnológico contemporâneo.
O objetivo deste artigo foi mostrar a construção de discursos contrários
aos que constituem o hegemônico, que privilegiam signos carregados de
valores representados pela seriedade e excesso de competitividade do
mundo adulto, bem como mostrar que esse discurso hegemônico pode (e
deve?) ser refratado, e uma das maneiras pelas quais isso pode ser feito é
por meio do discurso literário (encarado como social, tal qual o conceberam
Bakhtin/Volochinov em Discurso na vida e discurso na arte, mimeo, s/ data).
Dessa forma, é importante ressaltar que não se trata de desprezar as ino-
vações e tecnologias que servem para melhorar a qualidade de vida nesse
mundo, ou de se fazer uma apologia sobre uma erotização infantil repre-
sentada pelos valores do mundo adulto, mas aliar o que tem e foi produzi-
do de bom pela tecnologia a conceitos de cooperação e solidariedade. É
necessário constituir o mundo e constituir-se por ele de uma forma menos
racional e objetiva, e perceber que, muitas vezes, o “belo” pode estar escon-
dido atrás do que o mundo contemporâneo julga passível de desprezo.

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página 218
dezesseis

Sidney de PAULO1
o MITO do eterno
RETORNO na construção da
SEGURANÇA pública:1
aportes linguísticos e cinematográficos

Os deuses tinham condenado Sísifo a rolar um rochedo inces-


santemente até o cimo de uma montanha, de onde a pedra caía
de novo por seu próprio peso. Eles tinham pensado, com as su-
as razões, que não existe punição mais terrível do que o traba-
lho inútil e sem esperança2.

O
intuito deste artigo é funcionar como suporte de um
pensamento desenvolvido a partir de duas obras
cinematográficas brasileiras: Carandiru (2002), de Hector
Babenco e Tropa de Elite (2007), de José Padilha. A

1 Mestre pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pelo PPGL/UFSCar. Professor no Instituto Muni-


cipal de Ensino Superior de Assis. Assis - SP. Pesquisador do GEGe. sidneydepau-
lo@terra.com.br
2 CAMUS, Albert. O mito de Sisifo. Disponível em:< http://filosofocamus.sites.uol.com.br/

camus_sisifo_completol.htm>. Acesso em 11 abr 2011.


Sidney de Paulo

proposta, neste caso, consiste em demonstrar uma construção cíclica da


diegese de ambos os filmes que cria um efeito de eterno retorno, um repetir
incessante na batalha entre as figuras do policial e bandido.
A segurança pública por vezes é alvo de críticas, bem como o sistema
penal, no Brasil. Talvez, o que faz o tema ser bastante recorrente seja ainda a
eterna questão: o que faz um sujeito cometer crimes? Parece que o
criminoso é sempre o mesmo, independente da época que estamos falando.
Parece que a ideia de crime é clara e pode ser tratada da mesma forma em
que se tratam proposições lógicas como dois mais dois são quatro. A
provocativa seria maior se nos perguntássemos: o criminoso realmente
existe? A polícia é necessária? O crime é substancialmente construído de
modo universal, retrato de uma verdade absoluta?
Apesar de o homem constituir-se, por excelência, um ser social, a
sociedade não deixa de ser uma construção do próprio homem e, os
lugares que cada um ocupa são distribuídos conforme uma ideologia
hegemônica que está a favor de uma classe privilegiada, que almeja
manter seu poder sobre as massas.
Isso quer dizer que se um determinado grupo vive uma realidade do
capital, seus valores, ensinados pela escola, pelo Estado, pela Igreja, são
valores capitalistas.
Doravante, caso eu apresente um posicionamento tão simplista como
este, haveria certamente críticas. Não se pode pensar que estas relações de
poder sejam apenas exercícios de dominação que não recebem, em
contrapartida, uma força oposta. Quero dizer que são diversas ideologias
correntes em uma sociedade e infinitas que nascem e morrem
constantemente nas relações mais imediatas do cotidiano e formam uma
“reação” a palavra do outro (Bakhtin, 2010).
Essa palavra que é neutra ao passo que tem possibilidades de entrada
em diversos grupos sociais, ao mesmo tempo, carrega vários sentidos que
se fixam a ela. Ao olhar por tal óptica é aceitável entender que um estudo
do discurso extravase uma mera descrição linguística de estruturas e
busque compreender as realidades humanas e, principalmente, como a
linguagem media homens e mundo (Pêcheux, 2008).
Por isso ser passível falar que qualquer luta de poder passa antes pela
página 220

luta da palavra, pela estabilização dos sentidos (Gregolin, 2003). Para que
tudo continue “funcionando” plenamente em uma sociedade, o discurso
hegemônico tentará sempre inscrever apenas um sentido para cada signo,
O mito do eterno retorno na construção da segurança pública: aportes linguísticos e cinematográficos

fazendo de sua realidade, a verdade universal. Mas quando “treinamos”


nosso ouvido para entender a complexidade do signo, somos capazes de
ver nele a verdadeira dialética, contrária à anulação das vozes e à
uníssona, e deparar-nos-emos com mundos vastos além daquela grande
“voz apagadora” da alteridade.
Neste contexto é que chamo a atenção para a cinematografia brasileira
que, em muitas fases da história, elegeu como objeto a batalha constante
entre o policial e o bandido, ora exaltando o primeiro, ora o segundo.
Um olhar muito rápido nestes filmes poderia levar a caracterizá-los, a
exemplo de Carandiru, de Hector Babenco, como uma espécie de
romantização do crime, ao preferir a figura do criminoso como herói de
uma sociedade, atribuir-lhe predicados positivos. Todavia, isso não seria
uma abordagem satisfatória do problema.
A figura do policial também aparece em algumas obras de forma
romantizada e, ambas não são necessariamente imagens heroicas. O jogo
entre essas personagens apresenta-se embainhada em outro discurso, um
discurso que ultrapassaria a fronteira do Estado e o afetaria de modo
significativo: o capitalismo.
O tempo instituiu uma nova concepção de mercadoria. Hoje, ela não se
resume a bens materiais, como computador, carros ou casas. Na sociedade
moderna comercializam-se sonhos, medos, anseios e esperança. O
sentimento humano tornou-se também objeto de consumo e mesmo o
amor tem um “molde” pré-estabelecido pelos valores sociais.
No caso do policial e do bandido pode-se dizer que estes também se
tornaram mercadorias: vende-se o policial (ou o bandido) e, junto, o
sentimento de medo que se associa a ambos. Deve-se acreditar na
necessidade de um policial porque temos medo do bandido. Deve-se
acreditar na força revolucionária do bandido porque temos medo do policial.
Destarte, produz-se certa insegurança e transfere-se o eixo da discussão
para a vital importância da organização social em regras, em governantes
e governados. O medo acaba sugerindo uma forma de discurso
monologizante que diria ao locutor: “tudo é incerto e por isso devemos
fortalecer a base de nossa sociedade em leis mais severas e governantes
mais aptos em suas tarefas”.
página 221

Em torno da mercadoria policial e bandido gira sempre o espetáculo.


Para a eficiência dos mecanismos mercadológicos surge a espetacularização
como um exagero da realidade, um efeito de luz e fumaça que transfere ao
Sidney de Paulo

acontecimento algo extraordinário e dogmático. A tendência do espetáculo


é separar a vida do objeto contemplado (Debord, 2003).
Quando consciente de que as relações classistas de uma sociedade não são
naturais almeja-se o direito da igualdade e isso implicaria o fim da elite. No
entanto é utópico crer no fim da luta de poder, porque esta não se dá somente nos
domínios dos “grandes aparelhos ideológicos”, ela se dá também nas relações
“menores” seja na formação familiar (o pai que ocupa um lugar diferente do filho),
seja no contato médico paciente, professor e aluno, sujeito e sujeito.
A dualidade constante no pensamento atual acaba por ocultar as múl-
tiplas facetas destes problemas e corroboram para manter uma verdade
anterior como a de sempre. Ao propormos um estudo dos signos polícia e
bandido no cinema brasileiro, tentamos desmistificar essa dicotomia apa-
rente e desvendar as diversas vozes contidas no signo.
Policial e bandido são partes indivisíveis do mesmo objeto e a existên-
cia de um é complementar e essencial para a do outro. Ambos estão igua-
lados e se podemos definir o caráter de herói ou de vilão para cada um
deles é pelo fato de que somos capazes de recorrer ao contexto social mais
imediato e estabelecer relações entre diversos elementos constituintes do
processo de produção de sentido.
Contudo, não caberia ao linguista estudar os fenômenos sociais se estes
não estivessem ligados aos fenômenos da linguagem. O que estudamos
não é o policial ou o bandido em si, mas o que se fala sobre eles e como
essas figuras são construídas no cinema nacional. Se chegarmos ao ho-
mem em última instância é pelo fato de que a linguagem é inerente a ele e
constitutiva de sua consciência.
Aprendemos o mundo via linguagem e poderíamos intuir que não existe
ciência mais antropológica do que a linguística. As palavras em si não signi-
ficam nada e assim percebemos que não há discurso sem ações interlocuti-
vas, sem o Homem: “*...+ o erro está na afirmação e na crença de que as pa-
lavras e as frases significam qualquer coisa: só os homens, ao contrário, sig-
nificam, por meio das frases e palavras” (Mauro, 1969, p. 28). Isso implica
dizer que é no processo de interação verbal que os signos significam.
Compreendido deste modo, o texto fílmico pode ser analisado também co-
mo resultado das interações e que faz parte de uma realidade social, não como
página 222

mero devaneio artístico. Longe de sê-lo, olhar para o cinema é pensar em di-
versos elementos que não estão desvinculados, polarizados, mas sim dialogam
entre si e com o mundo, contribuindo para a formação dos sentidos.
O mito do eterno retorno na construção da segurança pública: aportes linguísticos e cinematográficos

Integrado à conceituação de que o bandido é a figura oposta e necessá-


ria a do policial, também é discutível a proposta associativa de qual destas
personagens pode ser referida como herói ou vilão no campo dos senti-
dos. São aspectos bastante distintos e tensos, pois, na maioria das vezes, o
referente é o atributo de bom ou mau. Embora pareça que possam existir
relações lógicas, dadas unicamente pela semântica inerente a cada pala-
vra, no estado de enunciação concreta se dissipa a lógica estabilizada e
condensa-se a lógica histórico-social.
Possibilidades infinitas nascem dessa relação sujeito, sociedade e história,
sendo algumas delas retratadas pelos enunciados a seguir: 1) Policial = herói =
mau; 2)Policial = vilão = mau; 3) Policial = herói = bom; 4) Policial = vilão = bom.
Não obstante, lembra-se que nenhum sentido pode sofrer um ato de apaga-
mento total, restando naquela materialidade física resquícios de sentidos anterio-
res. Portanto, no cerne do signo herói remanesce a ideia de bondade e virtudes
exemplares, modelo romântico do estágio máximo de sublimação humana.
Os valores empregados são visíveis tanto na vida, quanto nas constru-
ções artísticas. Nas narrativas mitológicas é clara a formação do herói ide-
alizado, que carrega em seu encalço uma imagem rebaixada, o vilão. As
fábulas, o causo (em uma instância bastante interessante de ser estudada),
as parábolas, mitos podem ser entendidos nessa vertente. Mais atual, o
surgimento dos Quadrinhos, revistas de super-herói, também podem ser
tomados como exemplo do que se trata neste momento.
Entretanto, pode ocorrer que um herói não tenha as características espera-
das (presentes no sentido estabilizado) e, de certo modo, sentimos uma sensa-
ção de estranhamento que poderia ser resumida: “Joãozinho é o herói, mas é
mau”. A conjunção adversativa colocada no enunciado revela que na constru-
ção de mundo realizada pelo sujeito, ser mau não pode ser atributo de herói.
O estranhamento ainda causado pela memória presente em cada um
leva a crer que um herói sem virtudes não deveria vestir este rótulo e pas-
sa a ser denominado anti-herói. Este, por conseguinte, é a protagonista da
história, é admirado e, muitas vezes, vivencia o gosto do leitor/público,
entretanto, em lugar de virtudes, essa personagem transveste-se de vícios.
Nova pergunta poderia ser lança e trar-nos-ia outra complicação: a figura
do anti-herói pertence a uma cultura oficializada ou a uma contracultura? É
página 223

difícil dizer que o anti-herói se afasta demasiadamente do herói e, estando este


no campo do oficial, passa a crer que aquele é de uma cultura rebaixada. O
contrário poderia ser suposto, contudo com poucos resultados sustentáveis.
Sidney de Paulo

Em Carandiru, a combinação de muitas pessoas confinadas, sentindo-se


ameaçadas, criou regras próprias de convivência para os presos. Em uma
conversa de Dráuzio, personagem do filme, ouve-se do diretor “Eles são
donos desse lugar, isso aqui só não explode porque eles não querem” e
podemos compreender a dimensão do problema apresentado: o monopó-
lio do poder está na mão dos presidiários.
O enunciado exposto acima já alerta o público para a tensão que será
criada durante todo o filme. Já se espera, desde o início, a explosão: pesso-
as aglomeradas, com uma falsa ausência do Estado, lutando para sobrevi-
ver, é fato de que ocorrerá uma explosão. Todavia antes do ápice, esta
aparecerá em diversos momentos da diegese.

Imagem 01: Presságios da explosão (10’25”)


Fonte: Carandiru, 2002.

O diretor do presídio informa ao médico que quem vai ouvir os conse-


lhos dele, acerca do programa de conscientização da AIDS é o bandido de
verdade, aquele que quer sair inteiro da prisão para voltar a cometer os
crimes. Além disso, o quadro negro ao fundo da personagem apresenta
estatísticas de entrada e saída de presos no Carandiru, números estes ele-
vados, demonstrando a incapacidade de ressocialização do apenado atra-
vés da estrutura do Estado.
A fala do diretor é de desdém, é uma fala que carrega uma desesperança
no trabalho. A sala toda desordenada, com as bandeiras do Brasil e de São
Paulo bem no canto, quase encoberta, passam essa ideia de confusão genera-
lizada. Cometer um crime, ir preso, sair e cometer um novo crime, no tocante,
o caminho que se segue é de um eterno devenir, um ciclo de trabalho inútil.
página 224

Em analogia, recordamos a história de Sísifo, uma personagem da mitolo-


gia grega, que subia uma montanha empurrando uma pedra. Quando che-
gava ao topo, a pedra rolava para baixo e ele recomeçava o trabalho. Albert
O mito do eterno retorno na construção da segurança pública: aportes linguísticos e cinematográficos

Camus toma esse mito para dizer que, mesmo assim, Sísifo era feliz no que
fazia. No momento que a pedra rolava até o pé da montanha era um momen-
to de introspecção. Neste caso, abrimos duas possibilidades de leitura do
ciclo instaurado pelo filme: ou imaginamos as personagens fadadas e insatis-
feitas com a sina; ou as imaginamos felizes no seu movimento de retorno.
O movimento cíclico das personagens é um chamado para o absurdo,
uma criação da rotina do trabalho, mas um trabalho sem fim e sem lógica.
Ela é uma das pistas do estado de explosão constante do sistema. Esta, por
sua vez, também vive o absurdo, pois tenciona, explode e revive para uma
nova explosão. Imagem clara disso está logo após a rebelião, com os presos
retornando ao cotidiano, lavando o chão do presídio, com uma água espu-
mada, branca, que aos poucos varria as marcas de sangue dos mortos.
Não obstante, o filme ainda nos mostra como última explosão (mas não dei-
xa que ela encerre a história) a demolição do Carandiru, realizada pelo governo.
Aliás, um detalhe pode escapar ao leitor do filme. Em vários momentos da
obra uma sirene é tocada, seja para avisar o horário de visita, seja para anunciar
a rebelião e, por fim, para informar que o presídio será demolido. Estes traços
são que levam a crer na fragilidade da organização ali instaurada.
Ainda a respeito da água usada para lavar o sangue derramado, pode-se im-
petrar algumas compreensões bastante interessantes. No capítulo anterior, evi-
denciei que existiu no filme uma aproximação do preso com a imagem do Cristo.
Nessa mesma vertente, a água é capaz de ser identificada como objeto de
purificação, que renova ao banhar o sangue que foi retirado dos nossos pe-
cados, ou seja, foi a nossa indiferença ao problema que culminou naquele
sistema e a morte de tantas pessoas. Por outro lado, a água não é suficiente
para limpar as marcas da violência que só foi “apagada” com a implosão do
prédio. Abaixo, é fácil encontrar esses elementos interpretativos: página 225

Imagem 02: Sangue e água (138’36”)


Fonte: Carandiru (2002)
Sidney de Paulo

O religioso reforça mais que recorrência à memória coletiva como for-


ma de aproximação do leitor com as personagens, ele funciona como de-
núncia. As figuras religiosas operam de maneira paradoxal o olhar cego
do Estado e mão de deus no acaso. Abandonados a toda a sorte, deus pa-
rece ser o intercessor de um mal que seria maior.
Doravante, essa oposição está muito bem escrita, na imagem do policial na
muralha, que olha para o nada e na pintura de Nossa Senhora no pátio de sol
onde ficaram aglomerados os presos sob o controle do policiamento de choque.
Permanece também um clima de ironia quando esta polícia invade o
presídio e, ao agrupar os presos, manda que todos corram gritando “viva
o choque”. Irônico dado que o Estado ausente ainda quer ser louvado,
glorificado pelo problema o qual ele virou as costas e intervém brutalmen-
te, sem, no entanto, trazer soluções.

Imagem 03: O olhar do Estado (134’42”)


Fonte: Carandiru (2002)

Imagem 04: Nossa Senhora (134’49”)


Fonte: Carandiru (2002)
página 226

O foco de luz que podemos observar na imagem acima tem outra in-
terpretação igualmente importante. Ela liga este enunciado ao enunciado
O mito do eterno retorno na construção da segurança pública: aportes linguísticos e cinematográficos

final do filme que traz ao leitor a informação de que só os presos, deus e a


polícia poderiam dizer o que aconteceu naquele dia. O texto fílmico mar-
ca, neste momento, a presença dessas figuras como testemunhas do acon-
tecimento. Anteriormente, durante a invasão, vários presos, vão relatando
como foi ação da polícia, de modo que fica claro o posicionamento do nar-
rador da história “*...+ eu só ouvi os presos”. O policial na muralha estava
calado, a imagem de Nossa Senhora, como este, estática.
Alguns elementos vão se tornando mais evidentes, pois percebemos
um diálogo contínuo entre os enunciados do texto fílmico e deste com os
de outras obras. Fazem da obra um todo dialogizante, que mistura vozes
advindas dos presos, do Dráuzio Varella (não personagem do filme), do
Babenco, vozes dos discursos hegemônicos e do cotidiano.
A aparência de neutralidade, talvez trazida por acreditarmos que aque-
las personagens são fundadas em pessoas reais, no mundo exterior à obra é
algo tão ilusório quanto à própria realidade objetiva. O ouvido do leitor tem
que estar atento para auscultar essas vozes inerentes ao enunciado, pois

Por mais monológico que seja o enunciado (por exemplo, uma obra cientí-
fica ou filosófica), por mais concentrada que esteja no seu objeto, não pode
deixar de ser em certa medida também uma resposta àquilo que já foi dito
sobre dado objeto, sobre dada questão, ainda que essa responsividade não
tenha adquirido uma nítida expressão externa: ela irá manifestar-se na tota-
lidade do sentido, na totalidade da expressão, na totalidade do estilo, nos
matizes mais sutis da composição. O enunciado é pleno de tonalidades dia-
lógicas, e sem levá-las em conta é impossível entender até o fim o estilo de
um enunciado. (Bakhtin, 2010, p.298).

Em Tropa de Elite, a explosão que encontramos é mais metafórica, toda-


via, tão real quanto de Carandiru. A personagem Capitão Nascimento, na
angustiante expectativa de nascer o filhe dele, percorre a luta para encon-
trar um substituto.
O rosto sempre cansado e transtornado, a demora em alcançar seus ob-
jetivos, a missão de apaziguar o morro para a visita do Papa ao Brasil, são
os elementos que engendram as pistas da explosão de Nascimento, explo-
são esta que é materializada na captura e assassinato do chefe do tráfico,
página 227

Baiano. Além disso, as brigas intensas com a esposa é outro bom demons-
trativo de que as coisas caminham para uma inevitável explosão. No e-
Sidney de Paulo

nunciado adiante, vemos Nascimento sofrendo de stress, suando muito,


aparentemente, já com sintomas de crise do pânico.

Imagem 05: Pistas da explosão de Nascimento (26’13”)


Fonte: Tropa de Elite (2007)

Capitão Nascimento também não representa a presença do Estado, ao


contrário, é fruto da ausência do poder estatal. Na narrativa, a persona-
gem deixa evidente que o Estado deixou a polícia, mal preparada, mal
paga e à mercê de toda sorte.
O caminho que poderia um policial seguir tornava-se extremamente
sintético, ou seja, omissão, corrupção ou enfrentar uma guerra diária con-
tra o crime. O Batalhão de Operações Policiais Especiais era o terceiro
grupo: incorruptível e não omissos. Todavia o preço da guerra era o des-
gaste físico e psicológico do combatente e, ainda, o desrespeito de certas
leis que eles mesmos (os policiais) deveriam proteger.
Quando a personagem Matias entra na corporação convencional, em
sua sala de trabalho, encontramos uma imagem bastante semelhante à
sala do diretor de Carandiru, composta de uma desordem, que, por sua
vez, evidencia o afastamento do Estado. Acrescento também a imagem do
pátio de viaturas da polícia, construído pelo texto fílmico em questão.
página 228

Imagem 06: Pátio de viaturas da polícia (13’20”)


O mito do eterno retorno na construção da segurança pública: aportes linguísticos e cinematográficos

Fonte: Tropa de Elite (2007)

Imagem 07: Local de trabalho de Matias (14’38”)


Fonte: Tropa de Elite (2007)

Resta pensar em que consistiria o eterno retorno, o ciclo de Sísifo em Tropa


de Elite. Não precisaríamos avançar muito para concluir que o encontro de
um substituto e o assassinato de Baiano marca o reinício do eterno trabalho.
Capitão Nascimento apenas transfere o seu posto de “rolar a pedra”, todavia,
ela continuará a ser elevada ao cume e deslizar até o pé da montanha.
Portanto, três constantes podem ser elencadas e que abarcam os dois
filmes: a ausência discursiva do Estado; o absurdo (o trabalho inútil de
Sísifo); a explosão a que é levado um grupo quando ficam pela própria
sorte. Somados, o texto fílmico é antes uma crítica ao governo, que cria
policiais violentos e criminosos violentos.
Mas, observo também que os mesmos traços valorativos que tanto o po-
licial quanto o bandido recebem em Carandiru estão presentes em Tropa de
Elite. O que muda é o foco narrativo, sendo o primeiro contado do ponto de
vista do criminoso e, o segundo, reproduzido pela personagem policial.
Assim, os deuses da ideologia oficial criam um eterno retorno, dado pelo
discurso: uma política do medo. Tal política deve ser evidenciada, ridicula-
rizada, desmistificada. O discurso capitalista, assim como outros discursos
hegemônicos, terá sempre um objetivo de cristalizar a verdade de uma elite
para, deste modo, permanecer no poder. Por outro lado, o cotidiano tem
sempre essa força da resistência que evidenciam as infinitas realidades.
Não obstante, o embate ideológico que se dá via linguagem, às vezes,
não é percebido pelo falante da língua. O primeiro passo para se repensar,
página 229

desfragmentar, substituir o discurso do capital é uma tomada de consci-


ência do próprio movimento de significação, que transcursa por um signo
essencialmente valorativo.
Sidney de Paulo

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