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discurso:
reflexões contemporâneas
JULIO CESAR MACHADO
&
JOCENILSON RIBEIRO
[Organizadores]
LINGUAGEM e
discurso:
reflexões contemporâneas
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser repro-
duzida ou transmitida ou arquivada, desde que levados em conta os direi-
tos dos autores.
APRESENTAÇÃO .................................................................................................... p. 09
Jocenilson RIBEIRO & Julio Cesar MACHADO
CAPÍTULOS
5. Por uma vida melhor da/na mídia: uma leitura discursiva ........................... p. 71
Roberto Leiser BARONAS & Samuel PONSONI
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apresentação
P
ara melhor significar este livro, é bom que conheçamos algumas
partes de um processo (bem) seletivo do PPGL/UFSCar. Ele pos-
sui uma memória anterior: muitos livros e parco entendimento!
Um acontecimento: uma prova escrita de Mestrado. Uma estru-
tura: a lista de aprovados de alguns nomes de sujeitos desconhecidos e
isolados que, tendo em comum o interesse pelos estudos da linguagem e
do discurso, se inscreviam no campo vasto da linguística. Uma data: ou-
tubro de 2008. Um texto: entrevista de Mestrado. Pelo menos um sentido
certo: tensão.
Se ouro bom é aquele provado no fogo, foi esse fogo seletivo, exigente e
criterioso, a voz que nos forjou e nos tornou sujeitos bem particulares. E é
bom que se diga: nunca mais fomos os mesmos!
Mesmo que na evidência isso seja só a descrição de uma etapa para
nossos interlocutores, para nós autores, esse processo é precioso porque é
a história (ainda por se escrever) de uma turma de Mestrado bem peculiar,
por razões que não estão (somente) em nossa produção acadêmica, mas
estão inscritas discursivamente em cada um de nós. Aos seus modos.
Nosso passado de tensão atualizou-se sempre: vários enunciados de au-
las, congressos, palestras, debates e reuniões, produziram efeitos de amadu-
recimento, crescimento e companheirismo, significando uma boa amizade!
De lá pra cá foi um pulo: de uma boa amizade, embasada em boa formação,
só poderia sair bons trabalhos! Esse livro é um sentido concreto de um pro-
cesso histórico, é a tensão de um passado (processo seletivo e muito estu-
do), amizade de certo presente (o curso de Mestrado), e futuro profissional
(nosso livro!). Nosso momento conjunto de carnavalização!
De modo descritivo, essa coletânea de artigos são frutos de dois anos
de estudos de pós-graduação stricto sensu desenvolvidos entre os anos de
2009 e 2011 na linha de pesquisa Linguagem e discurso do PPGL. Cada au-
tor apresenta um texto cuja reflexão teórico-analítica foi engendrada du-
rante sua pesquisa e, aqui, se evidencia como um recorte no qual estão
concentrados os elementos básicos que configuram seu projeto, a saber: o
objeto de estudo, a filiação teórica, a abordagem metodológica e seus pro-
cedimentos analíticos, o corpus, suas conclusões etc. O leitor iniciante ou já
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com uma considerável trajetória no campo dos estudos linguísticos, de
modo geral, ou do discurso, de modo particular, notará que a diversidade
das questões que aqui se apresentam se deve basicamente a três razões
fundamentais: (i) trabalhamos com o conceito de linguagem no interior da
qual a língua se constitui como um dos sistemas semiológicos capazes de
produzir sentidos frente às condições de produção em que esses sistemas
funcionam. Aliada a essa concepção de linguagem, institui-se uma segun-
da razão em função daquela primeira que dela é indissociável, isto é, (ii) a
diversidade do corpus, que se evidencia por meio de textos verbais e não-
verbais, oral e escrito, imagético e sincrético, imagem fixa e/ou em movi-
mento; textos oficiais, científicos, acadêmicos, pedagógicos, políticos, mi-
diáticos, literários, fundadores, jurídicos etc. Finalmente, e do mesmo mo-
do importante, (iii) a língua é o lugar de materialização das ideologias
instauradas nas interações sociais mais ou menos conflitantes e concreti-
zadas dialogicamente.
Essa diversidade material que destacamos como segunda razão nos faz
perceber que analisar linguagens na relação com seu funcionamento e com
os significados produzidos em textos é observar como a língua e, por ex-
tensão, a linguagem servem aos sujeitos como lugar de constituição, pro-
dução e circulação de sentidos; como a linguagem é terreno em que diver-
sas lutas ideológicas se travam e as identidades se constituem e reconsti-
tuem num movimento heterogêneo e descontínuo; como a linguagem é
espaço de materialização de saberes que, em um dado tempo e condições
sócio-históricas, constituem verdades, criando nos sujeitos o efeito de que
as coisas, os fatos, os acontecimentos no mundo são naturais, um dado já
dado, apagando a própria condição histórica de produção de sentidos.
Aqui o leitor terá a oportunidade de compreender diferentes modos de
analisar a língua na contemporaneidade, reconhecendo em cada parte
desse livro um modo particular de olhar para ela, lançado por nós, pes-
quisadores brasileiros nos últimos anos.
Estruturalmente, o livro é dividido em quatro partes caracterizadas pela
abordagem teórico-metodológica no interior da qual as pesquisas foram
desenvolvidas. A Parte I: Análise do discurso, história e reflexões semiológicas –
congrega artigos oriundos das pesquisas orientadas pela Profa. Dra. Vanice
Sargentini; a Parte II: Estudos do discurso e reflexões contemporâneas – eviden-
cia, do mesmo modo, estudos de pesquisadores orientados pelo Prof. Dr
Roberto Leiser Baronas; a Parte III: Semântica Histórica da Enunciação e refle-
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xões teóricas – apresenta artigos de pesquisas orientadas pela Profa. Dra.
Soeli Maria Schreiber da Silva (Soila). Por fim, a quarta e última parte, inti-
tulada Estudos bakhtinianos e reflexões dialógicas, fecha essa coletânea com
textos oriundos de estudos orientados pelo Prof. Dr. Valdemir Miotello.
Eis nossa obra conjunta: com muito orgulho, tanto da história que ele
carrega quanto dos resultados de pesquisa que aqui se apresenta, coloca-
mos na sua mão, distinto leitor, este acontecimento – a concretização de
uma história em papel, da qual você leitor agora faz parte, para dialogar
conosco e nos constituir de novo!
BOA LEITURA!
Jocenilson Ribeiro
Julio Machado
[Organizadores]
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PARTE I
ANÁLISE do discurso,
HISTÓRIA e reflexões
semiológicas
página 14 PARTE I
um
Vanice SARGENTINI1
DISCURSO, semiologia
e HISTÓRIA1
INTRODUÇÃO
O
objetivo deste artigo é apresentar alguns dos trabalhos
desenvolvidos junto ao grupo de pesquisa que coordeno na
UFSCar – Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR) –,
em especial, introduzir as preocupações de trabalhos sob
nossa orientação nos anos de 2009 a 2011, período em que estivemos
voltados a preocupações relativas ao estudo da linguagem multimodal,
explorando o conceito de semiologia histórica, conforme proposto por
J-. J. Courtine, em algumas das suas obras (1988, 2006, 2009).
O Grupo de Pesquisa LABOR congrega pesquisadores da UFSCar,
como Carlos Piovezani e Luzmara Curcino, pesquisadores de outras
instituições, alunos de pós-graduação em Linguística e alunos de gra-
duação dos cursos de licenciatura em Letras e de bacharelado em Lin-
guística da UFSCar. O objetivo do grupo é discutir teórica e analitica-
mente questões relacionadas ao campo teórico da Análise do discurso,
como o contexto epistemológico de constituição da teoria, a organiza-
curso e história, bem como a articulação entre eles e que pode ser apreendi-
da na língua são preocupações sempre presentes em nossas pesquisas.
Tomamos como princípio que as bases teóricas da AD, agora e desde
sempre, oferecem-nos um quadro conceitual (noções de interdiscurso, me-
mória discursiva, rede de formulações discursivas, formações discursivas...)
capaz de sustentar as análises e de responder às questões de pesquisa. En-
tretanto, é possível incorrer na armadilha fácil de recitar conceitos, aplicá-
los a um exemplo da mídia, reduzindo a análise a um tratamento pontual
que pode deixar escapar o forte vínculo entre o discurso e a História.
Sensíveis a essas questões, sobretudo relativas à transformação do dis-
curso político e a um apagamento do histórico no estudo dos discursos, J-.
J. Courtine, em alguns de seus trabalhos, cunha o termo semiologia histó-
rica. A proposição desse termo despertou nosso interesse para essa di-
mensão de articulação entre discurso, semiologia e história.
2 Uma versão ampliada desta reflexão foi publicada em: SARGENTINI, V. M. O. Análise
página 18
REFERÊNCIAS
COURTINE, J-. J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cris-
tãos. São Carlos: EdUFScar, 2009
______. Metamorfoses do discurso político: derivas da fala pública. Trad. Nilton Milanez
e Carlos Piovezani Filho. São Carlos, SP: Claraluz, 2006.
COURTINE, J-. J.; HAROCHE, C. Histoire du visage: exprimer et taire ses émotions (XVIe
– debut XIXe siècle). Paris, Payot et Rivages, 1988.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi
et al. 2.ed. Campinas, SP: EdUnicamp, 1995.
______. Papel da memória. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. 2.ed. Campinas, SP:
Pontes, 2007, p. 49-57.
______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. 5. ed. Cam-
pinas, SP: Pontes, 2008.
FAL), 2011, Alcalá de Henares. Documentos para el XVI Congreso Internacional de la AL-
FAL. Alcalá de Henares : UAH - Obras Colectivas de Humanidades, 2011. v. 1.
página 20 Vanice Sargentini
dois
Israel de SÁ1
a PRODUÇÃO DE espaços
SIMBÓLICOS durante A
ditadura MILITAR:1
lugares da luta e da memória?2
A
construção e a produção de identidades se dão e são
verificadas pela própria forma de enunciar e, com isso, é
possível dizer que é no interior do discurso que se legi-
timam e se constituem as negociações identitárias. É por
meio de uma análise propriamente discursiva que é possível obser-
var que a construção de uma identidade está sempre em processo e
nunca se dá de maneira acabada. Foi, portanto, por meio de sua pro-
dução discursiva, como também pela busca de um lugar de resistên-
cia, que a esquerda que se consolidava, à época da Ditadura Militar
no Brasil, fracionada em inúmeros grupos, procurou construir-se e
constituir-se identitariamente.
1 Mestre pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pelo PPGL/UFSCar. Bolsista FAPESP. São Carlos
- SP. Pesquisador do Labor. israeldesa@gmail.com
2 Este artigo trata-se de um recorte da dissertação de mestrado orientada pela Profa. Dra.
tempo, hoje, aparece no jogo que recobre o espaço. A partir dessa ideia,
Foucault propõe dois tipos de posicionamentos que estão, por assim dizer,
Israel de Sá
[...] lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria ins-
tituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies
de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais que se
podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representa-
dos, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os
lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis (2009, p.415).
(2) Deste modo, surgiu a União Pela Liberdade e Pelos Direitos do Povo
(ULDP), onde podem ingressar os moradores da região e de outros Estados,
muitos dos quais vêm tendo suas terras roubadas por gananciosos grileiros e
são perseguidos, presos e espancados pelos agentes da ditadura. Nela há lu-
gar não só para os pobres como também para todos os patriotas, seja qual for
sua condição social, que desejem pôr abaixo a ditadura e instaurar no Brasil
um regime verdadeiramente democrático (In: Vários autores, 1996, p. 35).
3 São palavras de ordem que aparecem, em quase todos os documentos, como menção à
luta que realizam, caracterização das injustiças e chamamento para que o povo integre a
resistência. É possível relacioná-las aos slogans nacionalistas empregados pelo regime mili-
tar, uma vez que trazem em si aspectos de autovalorização.
Israel de Sá
[...] a mídia produz sentido por meio de um insistente retorno de figuras, de sín-
teses-narrativas, de representação que constituem o imaginário social. Fazendo
circular essas figuras, ela constrói uma ‚história do presente‛, simulando aconte-
cimentos-em-curso que vêm eivados de signos do passado (2003, p. 96).
Nesse sentido, a reconstrução do passado por meio dos relatos, dos es-
paços de memória produzidos na mídia – que contempla também a edição
de inúmeros relatos memorialistas, romanceados –, confere um estatuto
de história em curso, de história do tempo presente.
No momento da abertura política, lenta e gradual, mais do que antes, as
práticas discursivas apresentavam papel essencial para a construção desse
espaço simbólico, pois não há mais relação direta com o espaço físico como
havia no momento da luta efetiva, no momento em que os guerrilheiros
pegavam em armas nas cidades ou no campo para lutar contra o regime
militar. No calor da luta, criavam-se falas de resistência, mas na fase poste-
rior, de abertura política, por meio dos relatos, aparecem as falas de conso-
lidação. Consolidação do passado, da memória, mas também consolidação
da história. No momento em que os relatos, tanto daqueles que participa-
ram diretamente do regime quanto daqueles que resistiram ao governo
ditatorial, começam a circular incessantemente nas arenas midiáticas, o es-
paço simbólico da memória assume papel de destaque. Assim, com a volta
daqueles que participaram da luta armada no final dos anos 1960 e início
dos anos 1970 e o grande boom dos romances memorialistas, muda-se da
negociação por uma identidade brasileira (ou da esquerda) para um discur-
so de consolidação de ex-integrantes dos grupos da esquerda.
página 31
(5) [...] pro Brasil o negócio era um stalinismo adequado às nossas necessida-
des. Nisso o pessoal do colégio concordava. Eu sabia que eles não eram da
linha Moscou nem da linha Pequim (na época nem sequer sabia o nome das
organizações). Eram de outra linha. A linha do exemplo do Che, aquela coisa
bonita. Porque o Che mostrava o pau de matar a cobra. Explicava como fazer
a coisa. Ela não ia explodir de uma hora pra outra. Tinha que ser preparada.
Depois, não ia ser pacífica, a ditadura tava ali pra impedir. Impunha a lei a
ferro e fogo. O povo ia se revoltar. Tinha que se revoltar... Na mesma época,
saiu na revista Realidade uma matéria sobre a vida e morte do Che, que me
impressionou muito. Era notável o gesto daquele homem, que chegara a mi-
nistro do governo cubano: largar tudo para ir combater pela liberdade de ou-
tros povos. Isto, sim, é que era coragem (1998, p. 78).
Notamos, com isso, que na fase de maior repressão por parte do regime,
houve a constituição de espaços heterotópicos institucionalizados pelos
locais de resistência, os locais de atuação das guerrilhas, no caso da Guerri-
lha do Araguaia, a selva, o lugar da natureza, contraposição ao lugar efetivo
da política, do Estado ditatorial, o meio urbano, mas que possibilitava a
projeção de uma sociedade diferenciada, demonstrando aspectos de utopia.
Em contrapartida, com a derrota da luta armada e a possibilidade de retor-
no dos exilados políticos, o espaço real da luta, a selva, deu lugar ao espaço
simbólico da memória, um lugar que oscilava entre o heterotópico e o utó-
pico e que era permeado pela busca de consolidação de um ideal revolucio-
nário e de uma identidade construída pela esquerda no momento da luta
armada, principalmente no interior dos relatos, mas na desconstrução dessa
identidade calcada no radicalismo quando apareciam, na mídia, traços de
espetacularização da política e, também, da memória.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2005.
FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Estética: lite-
ratura e pintura, música e cinema (Ditos & Escritos III). Trad. Inês Autran Dourado Barbo-
sa. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 411-422.
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta
página 33
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org). Identida-
de e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, p. 103-133.
Jocenilson RIBEIRO1
POR uma LEITURA do TEXTO
sincrético em EXAMES
nacionais de AVALIAÇÃO:1
INTRODUÇÃO
A
epígrafe com a qual introduzimos este artigo conduz-
nos a pensar no papel da imagem em seus mais diversos
usos na sociedade, de modo geral, e, em particular, no
ensino e nas práticas avaliativas no Brasil. Nos dizeres
da fotógrafa americana Margaret Bourke-White, só se pode capturar
uma imagem numa única vez, num instante singular, pois cada cli-
1 Mestre pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pelo PPGL/UFSCar. Bolsista FAPESP. São Carlos
- SP. Pesquisador do Labor. jonuefs@gmail.com
2 Neste artigo, apresento uma breve abordagem das questões levantadas na pesquisa de
mestrado intitulada “A constituição do enunciado nas provas do ENEM e do ENADE: uma aná-
lise dos aspectos semiológicos da relação língua-imagem sob a ótica dos estudos do discurso” com
financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Jocenilson Ribeiro
enunciado tal como foi cunhado por Foucault (2001a, 2008) e discutido por
Courtine (2009), que o trouxe como unidade de análise no interior do ar-
quivo para a esteira dos estudos discursivos.
Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação: reflexões à luz da teoria do discurso
mentos gerais dos graduandos, e todos têm acesso às mesmas questões dessa parte; e outra parte
que apresenta questões cujos conhecimentos fazem parte de uma grade de conteúdos específicos à
sua área de formação. Para nosso estudo, serviram apenas as questões da primeira parte.
5 O conceito de gênero, nesse sentido, comporta tipos relativamente estáveis de enuncia-
Já o gênero secundário apresenta-se mais complexo e mais evoluído como no caso dos
romances, textos científicos, artísticos, tratados, leis etc. Cf. BAKHTIN, M. Os gêneros do
Discurso. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3 ed. Trad. Maria Ermantina Galvão.
G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 277-326.
Jocenilson Ribeiro
6A) O mais alto padrão de vida do mundo. B) Não existe um modo de vida melhor do que
o dos americanos. (tradução nossa).
Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação: reflexões à luz da teoria do discurso
7 Cf. BELTING, Hans. Médium, image, corps – Une introduction au sujet. In: Pour une
athropologie des images. Traduit de l’allemand par Jean Torrent. Paris: Gallimard, 2004, p. 17-76.
Jocenilson Ribeiro
çando passar por cima de suas cabeças. Tal leitura é feita na ordem das discur-
sividades, porque é a partir deste lugar que podemos compreender os
Jocenilson Ribeiro
ção. Resta-nos saber também: o que a tornou recorrente em todo esse tem-
po? Como os sujeitos a recebem, a lêem, nos lugares em que circulam? A
Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação: reflexões à luz da teoria do discurso
Durante muito tempo, considerou-se sem dúvida por várias razões, que a
linguagem tinha um profundo parentesco com o tempo, visto que a lingua-
gem é essencialmente o que permite fazer uma narrativa e, ao mesmo tem-
po, uma promessa. A linguagem é essencialmente o que lê o tempo. Além
disso, a linguagem restitui o tempo a si mesmo, pois ela é escrita e, como
tal, vai se manter no tempo e manter o que diz no tempo. A superfície co-
berta de signos é, no fundo, apenas o ardil espacial da duração. É, portanto,
na linguagem que o tempo se manifesta a si mesmo e, além disso, vai se
tornar consciente de si mesmo como história. Pode-se dizer que, de Herder
a Heidegger, a linguagem como logos sempre teve a nobre função de guar-
dar, de vigiar o tempo, de se manter no tempo e de manter o tempo sob sua
vigilância imóvel. (Foucault, 2001b, p. 167)
As duas frases “Durante muito tempo deitei cedo” e “Durante muito tempo
deitei cedo”, a primeira sendo uma frase que eu digo e a segunda sendo a
que leio em Proust, embora verbalmente sejam exatamente idênticas, são, na
realidade, profundamente diferentes. A partir do momento em que ela é es-
crita por Proust no limiar de Em busca do tempo perdido, pode ser que, em úl-
tima análise, nenhuma dessas palavras tenha exatamente o sentido que lhes
damos quando as pronunciamos cotidianamente, pode ser que as palavras
tenham suspenso o código de onde foram retiradas (Foucault, 2001b, p. 159).
Ainda um outro ponto que merece uma reflexão diz respeito à materia-
lidade textual das imagens que acabamos de analisar, já que suas caracte-
rísticas fogem aos padrões mais recorrentes de uma fotografia. Embora
Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação: reflexões à luz da teoria do discurso
Ele [o sistema de signos] faz parte de uma rede de outros signos que circu-
lam em dada sociedade, signos que não são apenas linguísticos, mas que
Jocenilson Ribeiro
REFERÊNCIAS
______. A retórica da imagem. In: BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1990b, p. 27-43.
página 48
BELTING, Hans. Médium, image, corps – Une introduction au sujet. In: Pour une athropologie
des images. Traduit de l’allemand par Jean Torrent. Paris: Gallimard, 2004, p. 17-76.
Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação: reflexões à luz da teoria do discurso
COURTINE, J.-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos.
Supervisão de Trad. Patrícia Chittoni Ramos Reuillard. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2009.
FOUCAULT, M. [1970]. A ordem do discurso. 7. ed. Trad. Laura Fraga de Almeida Sam-
paio. São Paulo: Loyola, 2001a.
______. [1969] A arqueologia do saber. 7. ed. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janei-
ro: Forense Universitária, 2008.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi
e. Al. 2.ed. Campinas, SP: EdUnicamp, 1995.
______. Papel da memória. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. 2. ed. Campinas:
Pontes, 2007, p. 49-57.
______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. 5. ed. Cam-
pinas, SP: Pontes, 2008.
Lucas do NASCIMENTO1
ANÁLISE do discurso &
VITIMOLOGIA:1
memória(s) de tráfico de drogas2
INTRODUÇÃO
C
onsiderar o Direito como discurso, a partir da afirmação de
Orlandi (2002, p. 210-11) de que ‚não há ciência que não seja
discurso‛, responsabiliza o Direito em uma ciência localiza-
da no campo das sociais, ‚pois seu objeto alcança as condu-
tas do homem‛, que necessita do discurso (Coelho, 2001, p. 51). O dis-
curso jurídico vem, de longa data, sendo corpus de trabalho de pesquisa
1 Mestre em Linguística pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pela USP. São Paulo - SP. Pesqui-
sador do GEPPEP. lucasnascimento@usp.br
2 Resultado da pesquisa orientada pela Profa. Dra. Vanice Sargentini e financiada pela
[FATO DELITUOSO]
(2) Inspirados por tal associação (2.1), no dia 18 de novembro de 2003, por
volta da 01h10min, na BR-386, Km 366, em cidade tal/RS, os denunciados
‚X‛, ‚Y‛ e Z‛ (2.2), sem autorização e em desacordo com determinação le-
gal ou regulamentar, transportavam, para vender a terceiros (2.3), no inte-
rior do veículo marca tal, placas ‚tal‛ (RJ), de cor tal, 32 (trinta e dois) tijo-
los prensados e embalados em filme plástico, contendo, no total, 116,900Kg
(cento e dezesseis quilos e novecentos gramas) de ‚Cannabis sativa‛, vul-
garmente conhecida como ‚maconha‛, substância entorpecente, que causa
dependência física e psíquica, por conter tetraidrocanabinol (2.4), consoan-
te laudo de constatação preliminar da fl. (grifos meus em negrito).
Leremos, a seguir:
O réu ‚Y‛ foi interrogado (fls. 228/236), momento em que alegou ser verdadei-
ra em parte a imputação que lhe é feita (sdr 3). Na mesma oportunidade, fo-
Lucas do Nascimento
ram interrogados os réus ‚X‛ e ‚Z‛ (fls. 236/248) que afirmaram não ser ver-
dadeira a imputação que lhes é feita (sdr 4). (Os destaques são nossos).
mais réus mantiveram-se com seus discursos: ‚ser não praticante do delito
ou inocente‛. Esse segundo momento do réu ‚Y‛ já vem mostrar que há,
Análise do discurso & vitimologia: memória(s) de tráfico de drogas
[...]
Saiu pra fora do carro e eles nos prenderam, foi isso que aconteceu.
[...]
Eu acho que sim, não sei, deve ter feito, eu não vi nada. Me prenderam e
me trouxeram pra Lajeado. Só isso.
Não vi (indagado se viu os policiais fazerem uma revista no veículo).
No banco da frente (quanto ao banco em que estava sentado).
Não, não vi. Eu entrei no carro, no que já entrei, não deu nenhuma quadra e a
Polícia já tava atrás (quando indagado se viu algum pacote dentro do carro).
Conheço ele, de vista e conheço ele assim também, ele trabalha num negócio de
placa, ele trabalha junto com um primo do meu padrasto (quanto a ‘Y’ *S+).
Tava conversando com ele, dei uma parada (quanto a ‘X’ *R.C.+). Conheço
ele de vista. Várias vezes eu, de noite eu, de vez em quando eu dou uma
caminhada. Não, caminhar, é costume já.
[...]
Eu queria uma carona, só queria uma carona, eu tava cansado já, e eu que-
ria uma carona pra ponte seca, só isso.
[...]
Não (quando indagado se é dependente químico).
página 62
[...]
Duas portas (quanto ao Palio em que embarcou).
O ‘X’ *R.C.+ ingressou atrás, e eu ingressei na frente do veículo.
[...]
Ninguém fugiu, nós paramos na hora em que foi parado, nós fomos presos.
Ninguém fugiu...‛
Recorte 1: [APELAÇÃO]
1. (...) argúi não haver nos autos qualquer elemento de provas para conde-
nar o réu, requerendo a sua absolvição;
2. (...) postula pela revisão da pena imposta, no que diz respeito ao regime
integralmente fechado, bem como pelo afastamento da majorante prevista
no artigo 18, inciso III, da Lei nº 6.368/76.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
queria ir; e b) ‚verdadeira em parte a imputação que lhe estava sendo fei-
ta‛, assim, a formulação funcionou como efeito de verdade;
Lucas do Nascimento
REFERÊNCIAS
COURTINE, J-J. Le discours communiste adressée aux chrétiens. Langages. Paris, n. 62, 1981.
______. Análise do Discurso Político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São
Carlos, SP: EdUFSCar, 2009.
COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
______. [1979]. Microfísica do Poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 21. ed.
Rio de Janeiro: Graal, 2005.
______. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault, Uma Trajetó-
ria Filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto
Carrero e introdução traduzida por Antonio Carlos Maia. Rio de Janeiro: Forense Universi-
tária, 1995. p. 231-249.
______. Outros espaços, In: MOTTA, M. B. (Org.). Michel Foucault. Ditos & Escritos. Vol.
página 66
PÊCHEUX, M. [1975]. Les Vérités de la Palice. Paris: Maspero, 1975. Tradução brasileira:
_____. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Pulcinelli
Orlandi et al. 2. ed. Campinas: Ed. Unicamp, 1995.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Língua e Conhecimento Lingüístico: para uma história das
idéias no Brasil. SP: Cortez, 2002.
______. As relações entre a Análise do Discurso e a História. In: MILANEZ, N.; GASPAR,
N. R. (org.). A (des)ordem do discurso. São Paulo: Contexto, 2010. p. 95-102.
página 67
página 68 Lucas do Nascimento
PARTE II
ESTUDOS do discurso
e reflexões ANALÍTICAS
página 70 PARTE II
cinco
NOTAS PROMISSÓRIAS...
E
xistem alguns aspectos que nos parecem importante de
mencionar antes de adentrar de fato os objetivos desse arti-
go. A discussão acerca do livro, Por uma vida melhor, em
que uma das mãos que esquadrinham a pena autoral per-
tence à Heloísa Ramos, tal como foi posta a circular, permite relatar
dois extratos importantes. Um para o bem e outro para o mal.
FUNDAMENTAÇÃO E JUSTIFICATIVAS
Para levar a cabo nossas hipóteses e objetivos com este singelo artigo,
apresentaremos alguns aspectos atinados à argumentação, organização e
construção de certo trajeto4 interpretativo deôntico, a partir dos conceitos
de destacabilidade, de sobreasseveração e de aforização, forjados majori-
tariamente por Dominique Maingueneau (2006), que tentaremos apreen-
der dos enunciados que foram postos a circular para os espectadores de
um telejornal brasileiro de grande circulação, qual seja, o Jornal Nacional
(adiante, vez ou outra, JN), transmitido pela Rede Globo de Televisão, no
horário nobre do sistema televisivo.
Ainda sobre o material de análise, admitimos que a escolha se deve ao
acaso ou não somente à grande circulação que ele tem – outros veículos
também tiveram –, mas a uma certa regularidade no tratamento editorial
que foi feita em diversos telejornais da emissora globo. Cremos que o JN
página 72
4O sagaz leitor pode se indagar acerca dos estudos conduzidos brilhantemente por Jacques
Guilhaumou com o consagrado caso do trajeto temático feito em corporas retirados de tex-
tos jornalísticos tratando das temáticas linguísticas que compõem a Revolução Francesa,
como a clássica observação sobre os sintagmas Pão e Liberdade, Pão e Ferro etc.
Por uma vida melhor da/na mídia: uma leitura discursiva
ENUNCIAÇÃO
Aforizante Textualizante
Figura 2: Imagem que circulou no Jornal Nacional para representar o livro Por uma vida melhor
(IN)CONCLUSÕES...
REFERÊNCIAS
______. « La notion d’ “observable en discours”. Jusqu’où aller avec les sciences du langage dans
l’étude des pratiques d’écriture journalistique ? », dans Marcel BURGER (dir.), L’analyse lin-
guistique des discours médiatiques. Entre sciences du langage et sciences de la commu-
nication, Québec, Université de Laval, Editions Nota Bene, 2008.
_______. « Un lieu discursif : “ Nous ne pourrons pas dire que nous ne savions pas ”. Etude d’une mise
en discours de la morale », Mots. Les langages du politique, Lyon, ENS Editions, n°92, 2010b.
_______. Por uma análise discursiva da comunicação: a comunicação como antecipação de práticas
de retomada e de transformação dos enunciados. Tradução de Luciana Salazar Salgado. In:
Revista de Popularização Científica em Ciências da Linguagem – Linguasagem nº 16, São
Carlos, SP: www.letras.ufscar.br/linguasagem 2011a.
Marcel Burger, Jérôme Jacquin, Raphaël Micheli (éds). Tradução brasileira Roberto Leiser
Baronas. “A fórmula desenvolvimento sustentável: um operador de neutralização de con-
flitos”. In: Revista de Popularização Científica em Ciências da Linguagem – Linguasagem
nº 18, São Carlos, SP: www.letras.ufscar.br/linguasagem 2011c. (no prelo para publicação).
MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Trad. de Sírio Possenti. Curitiba : Criar Edições, 2005.
_______. Les énoncés détachés dans la presse écrite. De la surassertion à l'aphorisation. In:
BONHOMME, M. ; LUGRIN, G. (Éds.). Interdiscours et intertextualité dans les médias.
Travaux Neuchâtelois de Linguistique, n. 44, septembre 2006.
_______. Aphorisations politiques, médias et circulation des énoncés. 2010b. (no prelo
para publicação.
PÊCHEUX, M. Ueber die Rolle des Gedächtnisses als interdiskursives Material, Das
Argument Sonderband 95, 1983.
página 81
página 82 Roberto Leiser Baronas & Samuel Ponsoni
seis
algumas possibilidades
INTRODUÇÃO
I
niciaremos este artigo como uma advertência: o objetivo que se
propõe é fornecer ao leitor uma amostra do que se pretende
desenvolver em uma dissertação de mestrado. O projeto, a sa-
ber, procura compreender os discursos sobre o Abuso Sexual
Infantil (ou pedofilia) na contemporaneidade. Ancorados pelo en-
tendimento de Donzelot, no livro A polícia das famílias, e de Ariès em
História Social da Criança e da Família, notamos que a preocupação
com a natureza das relações (principalmente sexuais) entre crianças
e adultos teve início nos séculos XVI e XVII juntamente com o con-
junto de regras sobre os cuidados durante a infância. Portanto, nosso
entendimento é que os textos fundadores da temática se encontram
também nesta época.
Trabalharemos sobre a perspectiva de que os textos midiáticos
constroem enunciações de ‚verdades‛ sobre a pedofilia a partir de
DISCURSO CONSTITUINTE
com os textos que antes eram estudados por outras disciplinas das ciên-
cias humanas, como os textos literários e religiosos.
Discurso constituinte na mídia: algumas possibilidades
Os discursos constituintes são discursos que conferem sentido aos atos da cole-
tividade, sendo em verdade os garantes de múltiplos gêneros do discurso [...]
são a um só tempo, autoconstituintes e heteroconstituintes, duas faces que se
pressupõem mutuamente: só um discurso que se constitui ao tematizar sua
própria constituição pode desempenhar um papel constituinte com relação a
outros discursos (Maingueneau, 2006, p. 61).
observações feitas sobre o discurso político: ele nos mostra que este dis-
curso não pode pertencer ao quadro dos discursos constituintes, uma vez
que suas características não o autorizam a se firmar enquanto um discurso
que se autolegitima.
Ainda para definir esses discursos não constituintes, Maingueneau dis-
corre sobre um conjunto de práticas chamado ‚sombras‛:
Logo, compreendemos que algumas práticas discursivas que não são consti-
tuintes estão orientadas em direção aos discursos constituintes. Essa orientação,
a nosso ver, seria como uma dependência, pois a existência do discurso consti-
tuinte é primordial para que exista um outro discurso que se apóie nele.
Esta pequena exposição que agora fizemos não deve ser estendida à publi-
cidade. Para ela, Maingueneau coloca uma outra categoria, a dos discursos
Mimotópicos, palavra que imaginamos derivar de mimetismo, ou seja, a capa-
cidade de adaptar-se a condições determinadas e passar despercebido.
Para o autor, a publicidade é um discurso que tem a capacidade de se
camuflar em outras formas de textos, que não necessariamente aparentam
ser propagandas. Após as pequenas definições que fizemos sobre os discur-
sos constituintes e tópicos, resta-nos, agora, fazer sobre o discurso atópico.
DISCURSO ATÓPICO
página 87
AS PRÁTICAS INTERSEMIÓTICAS
O que faz imagens enquanto texto é que, para comunicar algo, muitas
vezes, elas são o produto de uma composição, o fruto do trabalho de seus
autores. Seja pela escolha do tema, dos objetos, das cores, tudo na imagem
é pensado para fazê-la significar. Sendo assim, torna-se necessário, para
analisar o texto imagético, que consigamos entender os elementos do tex-
to: o plano, a montagem e o enquadramento, por exemplo.
Tendo posto isto, procuraremos (algumas vezes por meio de analogias)
demonstrar como compreendemos o que deve ser a Análise do Discurso
de um arquivo imagético. A análise do discurso de textos escritos pressu-
põe que se demonstre a utilização de um adjetivo, de um tempo verbal,
etc., como responsável por poder provocar determinados efeitos de senti-
do, poder ativar efeitos de memória e determinar certas significações.
Por agora, devemos explicitar que um texto imagético não é apenas um
aglomerado de imagens ou apenas uma imagem sozinha: um texto imagéti-
co é um conjunto de elementos que somados produzem o efeito ‚imagem‛:
são as cores, as formas, as texturas, os enquadramentos, os ângulos que, no
texto imagético, tomam o lugar que no texto escrito é ocupado pela palavra.
Trata-se de não mais analisar apenas a utilização da palavra no texto imagé-
tico (por meio de um slogan, por exemplo), mas de saber como a própria
composição da imagem pode ativar determinados efeitos de sentido.
Considerando a circulação de textos em nossa sociedade, mesmo que
sejam de materialidades diferentes, que podem pertencer a uma mesma
formação discursiva, e, ainda, que, como vimos anteriormente, os textos
podem ser constituintes, tópicos ou atópicos, tentaremos compreender de
que modo os textos do arquivo sobre o Abuso Sexual Infantil enunciam
(em partes) uma mesma estória, qual seja o conto Chapeuzinho Vermelho.
Buscaremos compreendê-lo enquanto discurso constituinte, para, em se-
página 89
guida, observar de que forma outros textos se utilizaram deste para vali-
dar suas enunciações e de que forma essa relação aparece na imagem.
Andreia Beatriz Pereira
ANÁLISES
tanto adultos quanto crianças dos perigos das práticas sexuais entre am-
bos, tentaremos, por meio de uma breve análise de nosso corpus, observar
de que modo esse mesmo conto é utilizado em peças publicitárias dos
anos 2005 a 2008, cuja abordagem ainda é a questão da proibição das prá-
ticas sexuais chamadas de pedofilia.
Em trecho do livro, vemos a seguinte passagem:
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
página 94
BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fada. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
CONTOS de Melissa. Agência: BorghiErh/Lowe. Cliente: Melissa. Direção de Arte: Erh Ray
e Rodrigo Rodrigues. Brasil, 2008.
Discurso constituinte na mídia: algumas possibilidades
HARD Candy. Direção: David Slade. Roteiro: Brian Nelson. Estados Unidos: Vulcan Pro-
ductions; Launchpad Productions, 2005. (104 min)
MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Tradução de Sírio Possenti. São Paulo: Parábola
Editorial, 2008.
GURP, M. V. Which are the stories our children are growing with? Disponível em:
<http://osocio.org/message/which_are_the_stories_our_children_are_growing_with>. A-
cesso em: 04 mai. 2010.
página 95
página 96 Andreia Beatriz Pereira
sete
INTRODUÇÃO
C
omo caminho para desenvolver algumas reflexões sobre o
pós-estruturalismo, propõe-se refletir sobre: (1) como o
Curso de Linguística Geral (CLG), publicado em 1916 e or-
ganizado por Charles Bally e Sechehaye, pode ser consi-
derado uma obra cuja autenticidade não se provou, ou seja, como
esse Curso pode ser considerado um apócrifo, uma vez que seria
ilegítimo considerar Ferdinand de Saussure autor original dessa o-
bra; e (2) como é possível estabelecer uma posição ou uma postura
teórica estruturalista de Simon Bouquet frente a esse assunto a partir
de sua leitura em seu recente texto De um pseudo-Saussure aos textos
saussurianos originais (2008).
O Curso de Linguística Geral (CLG), publicado em 1916 e organizado
por Charles Bally e Albert Sechehaye, é uma obra de suma importância
dentro dos estudos linguíticos, j{ que ‚se constituiu numa obra que
tarão essa obra sob diferentes pontos de vista e não conseguirão recuperar
as ‚intenções‛ do autor original.
Bouquet (2008), ao escolher apenas Meillet para reproduzir os pensa-
mentos saussurianos, já que era o mais confiável e o mais intelectualmente
próximo do mestre, parece também compartilhar dessa perspectiva logo-
cêntrica de que seria possível produzir integralmente os pensamentos e
idéias de um autor original (como Saussure, por exemplo) por meio de um
autor que pudesse talvez, por identidade, transformar-se no autor original
e controlar fielmente, independentemente do contexto, os significados
presentes nos textos ‚originais‛, tal como nas anotações das testemunhas
do curso de linguística geral ministrado por Saussure, ou nos próprios
manuscritos do mestre.
Meillet, assim, por assemelhar-se ao mestre (ou de talvez trazer uma
muito próxima identificação com Saussure) seria o único capaz, para Bou-
quet, de produzir uma obra que fosse fiel ao ponto de abarcar as reais e
verdadeiras intenções de Ferdinand de Saussure, ao contrário de Bally,
que, segundo Riedlinger, ‚não tinha nem a sensibilidade filosófica, nem a
envergadura de seu mestre *F. de Saussure+.‛ (Bouquet, 2008)
A leitura de Bouquet (2008) e a escolha de um, dentre vários autores,
para a (re)produção de uma obra, parecem trazer justamente essa visão
tradicional logocêntrica, que pressupõe uma determinada teoria da lin-
guagem que possibilita determinar os significados fora do contexto em
que é lida ou ouvida. Uma das primeiras estratégias de Menard para a
reescrever Cervantes é justamente ‚transformar-se em Cervantes‛ (Arrojo,
1999, p. 20). A visão trazida por Bouquet (2008) para Meillet parece tam-
bém adotar, logo de princípio, a mesma estratégia: o único que poderia
reescrever Saussure seria aquele que mais se assemelhasse ao mestre e
que, por consequência, poderia talvez se transformar nele.2
As aulas saussurianas, grafadas nas anotações de seus alunos, e os seus
manuscritos, não são, no entanto, um ‚recept{culo de conteúdos estáveis e
mantidos sob controle, que podem ser repetidos na íntegra‛ (Arrojo, 1999,
p. 38). Não é possível que se controle e que se repita integralmente todo o
acervo de pensamentos e idéias ‚reais‛ e ‚verdadeiras‛ desses textos
saussurianos: ‚(<) aquilo que consideramos verdadeiro ser{ irremedia-
página 101
2Segundo Cruz (2009), entretanto, ‚nem Charles Bally, nem Albert Sechehaye, nem Antoine
Meillet assistiram aos cursos de Saussure sobre a linguística geral *<+‛ (p. 113, grifos meus).
Fernando Curtti Gibin
Para Arrojo (1999, p. 41), ‚mesmo que tivermos como único objetivo o
resgate das intenções originais de um determinado autor, o que somente
podemos atingir em nossa leitura ou tradução é expressar nossa visão desse
autor e de suas intenções.‛ O fato de Bally e Sechehaye terem organizado
o CLG (1916) concedendo a autoria à Ferdinand de Saussure parece mos-
trar, talvez, que tinham por objetivo resgatar as intenções originais de
Saussure. Isso não só serviu de arena para muitas discussões, como faz
Simon Bouquet (2008) em seu texto, mas também permitiu que algumas
posturas revelassem uma visão tradicional logocêntrica e estruturalista
que já parecia esquecida.
Nessa visão, o texto ‚original‛ – como empregado por Bouquet (2008)
para se referir aos manuscritos de Saussure – era apresentado como um
‚recept{culo de idéias e/ou características distinguíveis e objetivamente
determin{veis‛ (Arrojo, 1999, p. 29). Do mesmo modo que é impossível
página 102
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ser visto como apenas mais uma leitura, leitura essa que revela inevitavel-
mente o contexto, a visão de seus organizações ou ‚autores‛, a posição sócio-
histórico-ideológica que assumiam. De acordo com Cruz (2009), ‚Engler, que
A originalidade nos textos saussurianos: uma questão de leitura?
Ainda segundo Cruz (2009), a alteração por parte dos editores daquilo se
diferencia dos manuscritos saussurianos provavelmente ‚indica mais uma
preocupação em fazer evidenciar aquilo que o pensamento de Saussure trazia
de novo do que uma tentativa de deformá-lo ou mesmo falseá-lo.‛ (p. 123)
O texto de Simon Bouquet (2008) não se faz audaz ao criticar os orga-
nizadores da mais importante obra ‚que fundou a Linguística‛; esse texto,
da mesma forma, apenas revela mais uma leitura ou interpretação dentre
as inúmeras outras leituras que estão por vir e que, nesse artigo, também
se tentou fazer.
REFERÊNCIAS
ARROJO, R. A questão da fidelidade. In.: ___. Oficina de tradução: a teoria na prática. São
Paulo: Ática, 1999.
ARROJO, R. A questão do texto original, In.: ___. Oficina de tradução: a teoria na prática. São
Paulo: Ática, 1999.
BORGES, J. L. Pierre Menard, autor del Quijote. In: ___. Ficciones, Madri, Aliança Editorial, 1981.
CRUZ, M. A. A filologia saussuriana: debates contemporâneos. Alfa, São Paulo, 53 (1): 107-126, 2009.
Samuel PONSONI1
A CENOGRAFIA
DISCURSIVA em «O
HOMEM que PERDEU
as letras do LIVRO»1
INTRODUÇÃO
H
á inúmeras interpretações sobre quais seriam as condi-
ções de possibilidade para um texto literário irromper e
sustentar seus sentidos numa dada conjuntura históri-
ca. Assim sendo, existem explicações teórico-
metodológicas circunscritas pelas crítica e teoria literárias, pela psi-
canálise, pela linguística, pela sociologia ou, então, pelas leituras que
convergem parte dessas teorias em um único caminho. Tais indaga-
ções podem questionar, de um lado, quais as formas que as narrati-
vas são construídas por um todo, podem também partir de marcas
ancoradas no trajeto das personagens ou, de outro lado, podem jun-
tar o que o nascedouro dos textos faz aflorar nas personagens, bem
1 Mestre pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pelo PPGL/UFSCar. Bolsista FAPESP. Ribeirão Preto
- SP. Pesquisador do LEEDIM. sponsoni@yahoo.com
Samuel Ponsoni
2Escritores, como, por exemplo, Victor Giudice, José J. Veiga, Lygia Fagundes Telles e o
próprio Ignácio de Loyola Brandão, nos anos 1960 e 1970, que figuraram entre os princi-
pais nomes, utilizam esse tipo de narrativa.
Samuel Ponsoni
por meio das obras; estas seriam, por seu turno, representantes ou influ-
ências de determinado período, em que certos gêneros, temas e autores
foram expoentes – e outras explicações vindas da orientação estilística,
que buscava explicar a obra por si, num fechamento intrínseco ao processo
de composição. Essas teorias não negavam o contexto em que determina-
das obras surgiam, mas protelavam o estudo de seu entorno criativo, co-
mo se obra e situações histórica e social não fossem faces da mesma folha.
Entre os anos 1960 e 1970, no entanto, caminhando juntamente com o
avante dos estudos estruturalistas, algumas pesquisas passaram a pensar
o discurso literário e o todo de seu campo de pertencimento (autores, es-
colas, gêneros literários, obras, meios de circulação, contexto histórico etc.)
como partes inseparáveis. Para esse período, poderíamos citar as diversas
correntes das teorias enunciativas e pragmáticas: a semiótica, os estudos
bakhtinianos acerca da literatura, entre outros. De outro lado, no mesmo
período, a AD começava a constituir suas bases epistemológicas, tratando
também de estudos textuais, abordados, obviamente, sob a especificidade
discursiva a que pretendia essa disciplina nascente. Porém, é a partir dos
anos 1990 que o estudo do discurso literário passa a ser visto dentro da
AD como um discurso a ser analisável em todos os seus aspectos:
5 Pensamos aqui nas teorias de ato de linguagem empreendidas principalmente pelos tra-
balhos de Austin e Searle. Todavia, também está na crítica de Pêcheux, mesmo que indire-
tamente, em Análise automática do discurso, de 1969, quando de sua análise e reformula-
ção do quadro de funções da linguagem de Roman Jakobson.
Samuel Ponsoni
[...] esses lugares estão representados nos processos discursivos em que são
colocados em jogo [...] o que funciona nos processos discursivos é uma sé-
A cenografia discursiva de «O homem que perdeu as letras do livro»
verbais e não verbais, sob diversos dispositivos enunciativos e seus respectivos discursos:
musical, pictórico, entre outros – não são apenas um amontoado de signos parados numa
sequência que reconhecemos como um texto-padrão, pois ‚um texto é na verdade o rastro
de um discurso em que a fala é encenada‛ (Maingueneau, 2006, p.250).
Samuel Ponsoni
de como ele é e o que tem não é em nada gratuita. Aparenta-se uma vida
familiar normal, que goza de um status e uma estabilização material, alme-
jada em muitos casos, sobretudo num mundo material e estabilizado tal
qual vivemos – e expedientes cronogr{ficos ‚Durante o dia trabalhava.
Voltava correndo, fazia o jantar, cuidava dos filhos e ligava a televisão. Os
dois não conversavam, diziam boa-noite, bom-dia, bom livro, bom pro-
grama, os meninos estiveram bem, etc.‛(Ibid., p. 42) – elementos da ordem
do tempo que entram em consonância com o plano enunciativo e o plano
discursivo para abalizar a monotonia da estabilização, de um comumente
ser igual a todas as famílias, que nadam em harmonia material e social,
mas corrompem-se em desumanidades para si e para os outros. Como a
cenografia não é um elemento vazio, ou uma função vazia a ser ocupada,
a ser inscrita por um discurso, vai se desenvolvendo paralelamente a esse
discurso que se pretende eficaz na interpelação de sujeitos-destinatários
nalgum discurso, como no do conto em questão. Isso nos faz refletir que o
lugar em que um leitor vê seu espaço de inscrição no plano enunciativo é
vinculado a esta única cenografia e não outra nem somente ao gênero,
num sentido mais estático, justamente por haver certas alegorias possi-
velmente ocupadas por esses interlocutores num plano discursivo a que se
quer chegar. Por isso, é dito também que a cenografia é em um só fôlego a
condição e o produto de uma obra, isto é, a espinha que sustenta um cor-
po, e o corpo tal como ele se mostra e é dito e visto por outros sujeitos.
Outro ponto de análise, em se tratando de outros elementos atinados à
cenografia para um dada incorporação ao universo da narrativa, é o de ser
possível perceber a interação entre um tema e o título do conto com o res-
tante da narrativa. Essa interação dá vazão à progressão temática na ceno-
grafia do conto, fazendo o título, de certa forma, unir-se ao corpo do texto,
que, por sua vez, seguirá em processo de desenvolvimento. Portanto, es-
ses títulos passam a funcionar como temas-títulos. Vejamos: “O homem
que perdeu as letras do livro‛, oração que serve de título ao conto, trata-se
de uma oração adjetiva restritiva que tenta compreender semanticamente
a história de um homem singular, na definição do artigo ‚o‛, mas que
também é um sujeito diluído no corpo social, pois o substantivo ‚homem‛
determina desde as mais primárias definições acerca dos indivíduos, isto
página 117
uma grande quantidade de água que corre com força, com violência, por
vezes causando danos às pessoas e às cidades. Esse é o movimento da
cenografia em que se oscila o gênero mais rígido da literatura para uma
crônica jornalística sobre um fato diverso, trazendo à episteme da narrati-
va uma cenografia difusa, a partir do início de um tema-título, criando um
engendramento que tanto um ‚eu‛, um ‚você‛ ou um ‚ele‛ podem se
enquadrar como responsáveis pelos turnos, deixando, com isso, um ponto
aberto de adesão de sujeitos-destinatários. Um discurso literário como a
gestão de um contexto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Contexto, 2008.
______. O contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade. São Paulo: Martins
Fontes, 2001b.
PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso. In: GADET, F. HAK, T. Por uma análise
automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP.
Ed.Unicamp 1990.
página 121
página 122 Samuel Ponsoni
PARTE III
SEMÂNTICA histórica da
ENUNCIAÇÃO
e reflexões TEÓRICAS
página 124 PARTE III
nove
E
studar o sentido significa estudá-lo na relação com a me-
mória. Trato desse conceito em dois quadros metodológi-
cos - o da Análise do Discurso e o da Semântica do Aconte-
cimento, considerando o conceito de memória e memorá-
vel. Em Pêcheux (2002), no artigo O Discurso, Estrutura ou Aconteci-
mento e em Guimarães, (1999), no artigo Interpretar, Língua e Aconte-
cimento. O primeiro analisa o discurso como estrutura e como acon-
tecimento a partir do enunciado “On a Gagné” (Ganhamos), que se
refere à Vitória de François Miterrand. Descreve e interpreta o con-
texto da atualidade e o espaço de memória no qual tal acontecimento
começa a reorganizar-se - o do Socialismo Francês.
Com isso Pêcheux (2002) vai mostrando que o confronto discur-
sivo se dá bem antes da vitória em 10/5/81, no processo de tensão
Vamos nos ater agora à matéria de TV, entrevista com a índia Karipuna
Ceci dos Santos, da Aldeia do Manga-Açaizal para trabalhar com o con-
ceito de memorável e analisar a realção entre a língua Karipuna e a Língua
Francesa. Na entrevista, o locutor-jornalista pede à locutora-Karipuna que
ela traduza algumas palavras da língua indígena, como casa, por exemplo.
E ela responde: “Kais - casa; Manger - comida; Super - Jantar; Bonjour -
bom dia; Bonsoir - Boa tarde” (SANTOS, 2009).
Nesse recorte temos uma divisão entre, de um lado Kais (casa), da lín-
gua Karipuna, e de outro Manger (comida); Super (Jantar); Bonjour (Bom
Dia) e Bonsoir (Boa Tarde), da língua francesa. No texto resposta, a locuto-
ra Karipuna, no momento em que as palavras são citadas, toma palavras
da língua francesa como memoráveis. Podemos dizer que a locutora cita
palavras diferentes da língua dela e que, portanto, está predicada por um
página 128
REFERÊNCIAS
______. Interpretar Língua e Acontecimento. In: Revista Brasileira de Letras, v1, n1, UFS-
Car-DL, 1999 p19-23.
______. Língua Brasileira e Outras Histórias – Discurso sobre a língua e ensino no Brasil,
Campinas: Editora RG, 2009.
SANTOS, C. Entrevista com a índia karipuna sobre a língua em Oiapoque. In: NEGRÃO,
X. Programa Extração 10 do Canal 7, afiliada à Bandeirantes de São Paulo, 2009.
página 129
página 130 Soeli Maria Schreiber da Silva
dez
Adriana da SILVA1
LÍNGUA, enunciação e
HISTÓRIA1
INTRODUÇÃO
P
ropomos, neste artigo, uma discussão acerca do processo
de nomeação da nossa língua, tal como essa questão se co-
loca no Brasil em relação ao imaginário de língua una, e a
partir da leitura de alguns teóricos como Authier-Révuz
(1990), Mariani (2004), Orlandi (2009), Dias (1996) entre outros, bus-
camos compreender a história da nossa língua e também os efeitos
políticos e ideológicos desde sua constituição até as discussões mais
recentes que entremeiam nossa realidade linguística, em que ainda
ressoa ecos da colonização. E para entendermos como se dá esse
processo linguístico, vejamos as abordagens acerca do conceito de
heterogeneidade conforme nos apresentam as autoras Orlandi (2009)
e Authier-Révuz (1990), a partir de uma perspectiva histórica e e-
nunciativa da linguagem.
1Mestre pelo PPGL/UFSCar. Professora Rede Estadual de Ensino - SP.São Carlos - SP.
Pesquisadora do Uehposol. drysil@ig.com.br
Adriana da Silva
sos distintos, efeitos de uma clivagem de duas histórias na relação com a lín-
gua portuguesa: a de Portugal e a do Brasil. Ao falarmos o português, nós,
Adriana da Silva
Sabemos que não há uma unidade homogênea que se possa chamar de lu-
sofonia, A língua una é herança da colonização. A palavra lusofonia pre-
serva o conceito de homogeneidade. Temos uma diversidade linguística, e,
é preciso tornar visíveis essas diferenças, falamos diferente, produzimos di-
ferentes discursividades, e, é esse sentido que deve ser atribuído a palavra
descolonização. (Orlandi, 2005, p. 18).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
______. Língua brasileira e outras histórias: discurso sobre a língua e ensino no Brasil
processo de descolonização linguística e lusofonias.Campinas, SP: RG, 2009.
T
oda semântica nasce por causa de um problema angular: a difícil
transposição entre palavra – coisa. Metaforicamente, diremos que
a coisa é a raposa, e a palavra, o estilingue. Definir, ler e descrever
é por si a arte da incompletude, o esmero pelo não alcançável. E
sobre essa insuficiência debruça-se este artigo. Nosso olhar para os estu-
dos semânticos partem do princípio de que ‚nossas línguas [...] são con-
denadas a uma perpétua falta de proporção entre a palavra e a coisa‛
(Bréal, 2008, p. 81). Um problema capital que agencia a Linguística até
hoje. Somos obrigados a concordar que ‚A expressão é tanto demasiado
ampla, quanto demasiada restrita‛ (Bréal, 2008, p. 81). Além disso, a ponte
utópica palavra – coisa é frágil demais, considerando que ‚não há dúvida
de que a linguagem designa as coisas de modo inexato e incompleto‛
(Bréal, 2008, p.123).
E no interior da semântica com essa problemática do inexato e do insu-
ficiente, elegemos investigar o objeto da corrupção. Adotamos uma postura
de refinamento teórico para captar melhor essa inexatidão mencionada,
em certas enunciações de sentidos fugidios e escorregadios, de definição
vaga e imprecisa, todas ligadas à corrupção, tendo em vista que ‚não há,
na tradição do pensamento político ocidental, consenso a respeito do que
vem a ser corrupção‛ (Filgueiras, 2008a, p. 353). Se há um hiato entre as
regularidades estabelecidas e os fatos observados (Guimarães, 2007, p.16),
para investigar a designação da corrupção, envolta pela imprecisão, op-
tamos por desenvolver um aparato teórico próprio que dê conta de tratar
o inexato entre o nível da observação/nível descritivo com cientificidade e
satisfatoriedade. Tal proposta se justifica pelo fato de que não é coerente
tratar enunciados de obscuridade ilógica por aparato teórico-enunciativo
que se apoie em raciocínio de claridade lógica.
Logramos soerguer um mecanismo no interior da Semântica Histórica da
Enunciação, que chamamos agitação enunciativa (a observação simultânea
da evidência e da aparência na enunciação), e seu dispositivo de operação no
interior da Semântica do Acontecimento, que nomeamos enunciador-
flutuante (o vão limítrofe entre dois lugares opostos). O estatuto da agitação
página 146
2Agradeço a leitura e sugestões dos professores Dr. Luiz Francisco Dias (UFMG) e Dra.
Mónica Zoppi-Fontanna (Unicamp). Meu muito obrigado!
Ilegalidade legal e legalidade ilegal: um estudo enunciativo de inseparabilidade semântica
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Assim como dissemos que o objeto não está previamente dado, mas é
passível de configuração, também não cremos em uma disposição teórica
fechada. A teoria, embora predisposta, é engendrada por uma especifici-
dade teórica própria que a particularidade do corpus reclama.
Como dito, a relação palavra-coisa não se dá de forma direta, mas pelo
modo transitivo e irregular do atravessamento político, social e histórico
intrínsecos ao ato de dizer. Repudiamos a abordagem estrutural palavra-
palavra, a filosófica palavra-mundo e a vericondicional palavra-verdade
em detrimento da proeminência palavra-sentido ou palavra-locutor (pos-
sibilitada pela historicidade), que constrói um objeto pelo viés enunciati-
vo, transcendendo essas relações anteriores. E, ao falar em sentido, vis-
lumbramos o modo como o real é significado na linguagem pelo memorá-
vel (instância enunciativa da historicidade).
Entendemos que o tratamento do sentido reclama um aparato teórico
capaz de processar ‚o fora‛ que o constitui, o além-estrutura e o além-
modo de raciocinar por vias elegantes da razão e da rigidez de um siste-
ma. Assim privilegiamos uma postura de pesquisa que eleja o inexato e a
não-razão no funcionamento da linguagem, bem como um modus operandi
menos simplista e mais sofisticado, compatibilizado com a complexidade
social, histórica e política da língua, que ponha em xeque os procedimen-
página 147
O enunciador-flutuante
5Na ocasião de nossa Dissertação, fizemos uma leitura enunciativa pelo viés da agitação
em cada uma dessas predisposições dicotômicas, cuja reprodução torna-se inviável aqui
devido à sua grande extensão.
Julio Cesar Machado
METODOLOGIA
ANÁLISE
lho político, ou dois trabalhos designativos (um para estudar o objeto cri-
me (mensalão) e outro para investigar o objeto não-crime (empréstimo).
Entendemos que é produtivo estudar também o limite entre essa oposição,
que explicita nosso objeto de estudo: a corrupção. Queremos flagrar uma
corrupção legal-ilegal.
Antes de compassar nossa metodologia, iniciemos a análise ponderando
as seguintes insuficiências ou choques teóricos ao vislumbrar o enunciado (2):
Onde se desvenda que (2) foi enunciado por sobre dois enunciadores
contrários:
Por isso, é razoável que se entenda a enunciação (2) pelo mirante atípi-
co de entremeio, despertencido da lógica:
CONCLUSÃO
dispositivo adequado, eram até então tratados por arcabouço teórico limi-
tado quanto a essas flutuâncias. Sem o olhar de agitação, corre-se o risco
de ‚forçar‛ análises, resultando em incoerências, como tentativas de en-
quadrar acontecimentos enunciativos sobre a corrupção em dispositivos
unívocos. A agitação proporciona um modo de raciocinar a enunciação (e
o sentido) sem ‚forjá-la‛ em dispositivos situacionais, insistência linguísti-
co-científica altamente em voga. E não basta apenas refutar univocidades
semânticas em análises. Para dizê-lo, deve-se dispor de arcabouço teórico
que o comprove. E desse arcabouço carecia os estudos enunciativos.
Uma proposta tal como sugerimos proporciona, pelo menos, certos e-
feitos nos estudos enunciativos e semânticos da Linguística, quais forem:
continuidades, aprofundamentos, reconfigurações, atualizações, incômo-
dos etc. No mínimo, nossa sugestão incomoda a Semântica Histórica da
Enunciação em pelo menos dois pontos:
REFERÊNCIAS
CONGRESSO NACIONAL. Relatório Final dos Trabalhos da CPMI “dos Correios”. Brasília,
2006. Disponível em:<http://www.cpmidoscorreios.org.br/>. Acesso em: 13 maio 2009.
______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni P. Orlandi et
al. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2009.
RANCIÈRE, J. O desentendimento. Tradução de Ângela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34,
1996.
ção entre línguas. In: SEAD – Seminário de Estudos em Análise do Discurso, IV, novembro de
2009. UFRGS. Resumo. Porto Alegre: CAPES/IL/PP GL/UFRGS, 2009. CD-ROM, p.1.
página 160 Julio Cesar Machado
PARTE IV
estudos BAKHTINIANOS
e reflexões DIALÓGICAS
página 162 PARTE IV
doze
N
este trabalho nos concentraremos a discutir estilo e
autoria fundamentados no processo de criação dramática
do qual se vale o dramaturgo brasileiro Luís Alberto de
Abreu. Não pretendemos traçar uma compreensão do
estilo apregoado por este homem de teatro em sua obra partindo de
uma perspectiva que marca a dicotomia dos estudos da estilística
clássica e da lingüística e retórica que, respectivamente, concebem
uma idéia de estilo que vincula a expressão singular do sujeito como
marca da individualidade do autor na matéria por ele tratada, o que
descamba para o subjetivismo idealista, o qual não queremos chegar;
1 Mestre pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pelo PPGL/UFSCar. Bolsista FAPESP. São Carlos
- SP. Pesquisador do GEGe. heliopajeu@yahoo.com.br.
2 Mestre e Doutor pela UNICAMP. Prof. Dr. do Departamento de Letras e do PPGL/UFSCar.
miotello@terra.com.br.
Hélio Márcio Pajeú & Valdemir Miotello
apoiados pelo visual, verbal, musical, nos entremeios dos jogos cênicos e
criativos da arte, do outro, do mundo, que são elementos norteadores do
estilo que se materializa no arranjo deste dramaturgo.
Isso quer dizer que para se entender o estilo apregoado em BorAndá
não se pode extraí-lo do seu contexto de criação, sobretudo, do processo
criativo do qual este texto emerge. Assim, olhando para todo o redor
desse processo, ensaiaremos empreender uma reflexão em torno do
movimento que constitui Abreu como um autor de um estilo bem
delineado que alega seus traços definidores dentro das produções
dramáticas na contemporaneidade.
Na dramaturgia desenvolvida por este sábio homem o que está no
princípio é a imagem e a imagem se faz verbo e esse conjunto se adoça na
boca de heróis, ao ser levado ao palco e virar atividade estética por meio
do processo da criação colaborativa, que ele denomina ser uma
arte se concebe sobre uma coletividade que será dividida com um outro
coletivo, com uma palavra outra: seus espectadores.
Essa exotopia, ao nosso ver, é intrínseca a criação colaborativa, enquanto
intercâmbio estabelecido com o outro, numa relação em que a linguagem é
arquitetada através das materialidades dos signos e funciona como interposto
de comunicação e constituição dos sujeitos, de seus textos e discursos.
É via signos, discursos, por intermédio da interação entre sujeitos que
se dá essa relação dialógica de constituição de consciências e este
acontecimento é fortemente marcado no processo da criação colaborativa,
no qual vemos se abrir uma grande e infinita maravilha batizada por
Bakhtin de dialogia, que a partir das vivências e leituras do Grupo de
Estudos dos Gêneros do Discurso (GEGe, 2009, p.29), direcionadas pelas
lentes deste filósofo, tem sido vista
como sendo um movimento que não exclui, que não exauri a essência da
linguagem: o diálogo Eu/Outro. Considerando esta como o confronto das
entoações e dos sistemas de valores que posicionam as mais variadas visões de
mundo dentro de um campo de visão. Pois a vida é dialógica por natureza. Viver
significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar etc. Nesse
diálogo o homem participa por inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios,
as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos.
É esse princípio que leva Bakhtin (2003, p.383) a afirmar que “no
diálogo as vozes (parte das vozes) se soltam, solta-se as entonações
(pessoais-emocionais), das palavras e réplicas vivas extirpam-se os
conceitos e juízos abstratos, mete-se tudo em uma consciência abstrata – e
assim se obtém a dialética”, que é o caminho inverso ao da dialogia. E
neste sentido, o que me parece é que a criação colaborativa foge a uma
concepção dramática pautada apenas por uma consciência abstrata, o que
a faz se afiliar a uma perspectiva exotópica e se delinear a partir da
alteridade, uma vez que nela
Bakhtin chama de “o tempo grande”. Tal colocação nos permite ver esta questão
desde um ponto de vista novo e criativo da exotopia, desde o ponto de vista de
um cronotopo, que é outro em relação ao contemporâneo. (Ponzio, 2008, p.26).
o lugar por onde podemos nos identificar; aprender a conviver com o inusitado;
reencontrar sonhos abortados, e por fim, fazer ressurgir o sujeito – não como
imagem de um deus criador com o qual cada um tem compromissos de
concretizar na vida sua perfeição, à sua imagem e semelhança, nem como o
Hélio Márcio Pajeú & Valdemir Miotello
É isso que caracteriza a Fraternal como uma trupe teatral que motiva
suas pesquisas, referências e investigações artísticas no teatro popular, nas
histórias do cotidiano, na memória do outro, fundamentadas por imagens
advindas do imaginário das relações éticas, que Abreu as nomeia de
imagens quentes, que são aquelas que
nos impressionam, que comunicam e que geram outras ações. Ela é o ponto de
partida para a dramaturgia, ela é mais concreta que uma idéia, projeto ou teoria.
Esta visão focaliza o homem, na etimologia, “ser em luta”. A imagem pode
nascer caótica e deformada, simbólica, metafórica. A originalidade dela vem de
seguir a origem e não necessariamente de “ser diferente”. Seguir o pulso
interior, captar e investir, aparando-lhe as dimensões para que ela se
comunique. A imagem entra na cabeça e se perde lá. Para desenvolvê-la em
dramaturgia, não é o estudo da imagem, mas o seu exercício ou a sua
deformação. Como artista, o dramaturgo percorre esse universo interno terrível,
e esse ato é mais importante que os elementos da arte dramática. Exige
disciplina e rotina, para razão e sensibilidade trabalharem juntas. Gera fluxo
criativo. É atenção e concentração, não devaneio. (Campos, 2001, p.8).
Para Abreu essas imagens devem ser visualizadas na vida, fora dos
palcos, fora da atividade estética e a partir delas é que são criados os brains
storms, que, depois de apurados se transformam em canovaccios. É na
improvisação coletiva, baseada nas ações descritas nos canovaccios que
emerge sugestões de cenas, de situações, de desfechos, tendo por fio
condutor as ações criadas nos roteiros, para então serem tomadas como
fundamento da criação cênica e, a partir delas, prosseguir na criação das
personagens, dos conflitos, dos diálogos, na elaboração do texto em si.
Tudo, antes de integrar o texto, deve ser testado em cena, ação que
consolida uma forte diretriz do processo criativo.
pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a
própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia). O narrador
assimila a sua substância mais intima aquilo que sabe por ouvir dizer. Seu dom
é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem
que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a
mecha de sua vida. (Benjamin, 1994, p.221).
integrar outras ações, é seu poder de fazer funcionar outros textos na ação
dramática, pois do contrário seria apenas uma narração. Deste modo,
partilhamos da mesma concepção que acredita Melo (2005, p.182), isto é, que a
Hélio Márcio Pajeú & Valdemir Miotello
REFERÊNCIAS
ABREU, L. A. Processo colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de criação. Cadernos
página 177
da Escola Livre de Teatro de Santo André, Ano I, Número 0, março de 2003, pp. 33-41.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 476 p.
Hélio Márcio Pajeú & Valdemir Miotello
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Trad. de Sérgio P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1).
BRAIT, B. Estilo, dialogismo e autoria: identidade e alteridade. p. 54-66. In: FARACO, C. A.;
TEZZA, C.; CASTRO, G. (org). Vinte ensaios sobre Mikhail Bakhtin. Petropolis: Vozes, 2006.
CAMPOS, Vilma. O texto em jogo. In: V Congresso de Ciências Humanas, Letras e Artes,
Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto, 2001, comunicação livre em
Linguagens, Comunicação e Artes. Disponível em: <http://
www.ichs.ufop.br/conifes/anais/LCA/lca0102.htm>. Acesso em 20 mai. 2010.
GERALDI, J. W. Ancoragens: estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
GUINSBURG, J.; FARIA, Roberto Faria; LIMA, Alves de Lima (coord). Dicionário do teatro
brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo : Perspectiva: SESC São Paulo, 2006. 354 p.
MEIHY, Jose Carlos Sebe Bom. Manual de historia oral. 4 ed. Sao Paulo: Loyola, 2002.
(Bakhtin/Voloshinov, 1976)
O NASCER-JÁ-CAMINHAR DA PESQUISA2
A
força constitutiva dos discursos na preparação, justifica-
ção, manutenção e fortalecimento de ações na base mate-
rial da sociedade – infraestrutura – moveu o trabalho de
pesquisa do curso de Mestrado, intitulado ‚Discursos,
hegemonia e agronegócio: tensão e luta de classes no contemporâ-
neo‛. A relação que se dá, pelos discursos, entre as diferentes esferas
de atividade humana, via palavra, via signo, de modo que a base
os bichos e os rios / nascer já é caminhar‛, o nascer deste trabalho de pesquisa foi um já-
caminhar, posto que já nasceu seguindo os rumos que foram-se construindo durante o pensar.
Camila Caracelli Scherma
o fortalecimento da atual ordem das coisas, numa tentativa das classes do-
minantes de tornar os discursos monovalentes (ideologia oficial). Tais dis-
cursos exercem um papel de criar e manter uma aparência de que o Brasil
está se inserindo no contexto da economia mundial, com importante papel.
No entanto, a dialética interna do signo ‚agronegócio‛ revela as con-
tradições, pois há também a construção de discursos não-hegemônicos
que contestam a atual ordem das coisas, fazendo emergir as contradições,
desestabilizando essa hegemonia, subvertendo a atual ordem e revelando
o caráter deformador dos signos e, por meio deles, as contradições de clas-
se no atual período, afirmando que a produção de commodities agrícolas
apenas reforça a já histórica função do país na divisão internacional do
trabalho, além de atender a uma lógica financeira e de mercado.
Com isso, nos propomos a responder à questão: como discursos coleta-
dos em diversas esferas de atividade humana mostram o funcionamento
das ideologias e seu constante embate sígnico a partir de ações na base
material da sociedade e do território?
O PERCURSO DA PESQUISA
revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revo-
lucionária‛ (Bakhtin/Voloshinov, 2009, p.48).
Camila Caracelli Scherma
3*O Jornal Brasil de Fato foi lançado no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 25 de
janeiro de 2003 [...] É um jornal semanal, com circulação nacional. Por entender que, na
luta por uma sociedade mais justa e fraterna, a democratização dos meios de comunicação
é fundamental, movimentos sociais como o MST, a Via Campesina, a Consulta Popular e as
pastorais sociais criaram o jornal Brasil de Fato. Disponível em
http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/quem-somos
página 183
PONTOS DE DISCUSSÃO
Ideologias
samento distorcido etc.), mas também é usado no sentido amplo que o ter-
mo assume, sobretudo a partir de Lênin, e que permite aplicá-lo tanto à ‚i-
deologia burguesa‛ como à ‚ideologia proletária‛ e à ‚ideologia científica‛
(esta última resultaria numa contradição de termos se partirmos da defini-
ção de ideologia em geral como falsa consciência) (Ponzio, 2008, p.115).
5Disponível em:<http://www.youtube.com/watch?v=coat5rurPko>.
6 Isto aqui, ô ô / É um pouquinho de Brasil iá iá / Deste Brasil que canta e é feliz, / Feliz,
feliz, / É também um pouco de uma raça / Que não tem medo de fumaça ai, ai /
página 187
E não se entrega não / Olha o jeito nas 'cadeira' que ela sabe dar /
Olha só o remelexo que ela sabe dar / Morena boa, que me faz penar, / Bota a sandália de
prata / E vem pro samba sambar
Camila Caracelli Scherma
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 4ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MELO NETO, João Cabral de, Morte e vida severina e outros poemas. 1 ed. – Rio de Janei-
ro: MEDIAfashion, 2008.
INTRODUÇÃO
I
niciamos esse artigo assumindo que ele tem por base nossos es-
tudos do mestrado. Trataremos nele algumas questões que fo-
ram levantadas na dissertação intitulada: "A colonização da memó-
ria e a formação da memória dialética nos livros de história". Portanto,
um dos objetivos deste artigo é questionar a atividade do historiador,
analisando os livros de história, esse será o material verbal de nossa
pesquisa. Quando nos deparamos com esse material verbal entende-
mos que ele se vincula com uma das tarefas do historiador: a seleção dos
fatos que vão ser lembrados e dos que serão esquecidos na história. Sabe-
mos que não é um papel exclusivo do historiador, outras esferas de ativida-
de humana também o promovem, como o escritor, o jornalista, etc.; mas tal
tarefa é por excelência do historiador, exatamente porque historicamente foi
dado a tal personagem social o enfadonho e pesado dever de fiscalizar isso
que chamamos de memória. E assim, uma determinada relação de poder foi
se instalando nessa atividade historiográfica: a colonização. Essa coloniza-
ção, entretanto, é muito específica e não se confunde somente com uma
relação de dominação de um povo sobre o outro, de uma nação sobre outra,
é uma relação que se espalha nas esferas cotidianas, sendo de outra ordem:
a colonização da memória.
Os historiadores vinculados com o ensino de história aprenderam co-
mo ninguém a exercer essa colonização através de um gênero discursivo
muito familiar do historiador: o livro didático de história. São esses sujei-
tos que escolhem as imagens que temos do passado e do presente históri-
cos, e, ao controlar essas imagens, produzem também as orientações para
o futuro. A memória que abordaremos não é uma relação psico-fisiológica
do nosso corpo, a memória que abordaremos é uma relação coletiva de
circulação de signos que constroem um passado para modificar o nosso
momento presente. Dessa forma, a memória é um signo que projeta o fu-
turo, não de forma mecânica, mas de forma complexa. A memória coletiva
é um produto construído principalmente pelos historiadores nessas esfe-
ras oficiais da historiografia.
Um tipo específico de memória foi se desenvolvendo nos discursos di-
dáticos de história: a memória dialética. Memória dialética é um tipo de
memória que consiste em construir um sistema de imagens dialéticas so-
bre determinados temas. Aqui nessa pesquisa selecionamos o tema: impe-
rialismo europeu. Sabemos que são três grandes momentos em que ocorre
a memória dialética sobre a África e sobre a Europa, são eles: as grandes
navegações, o imperialismo europeu e a descolonização africana. É impor-
tante observar que as memórias são construídas como um processo, e não
como produtos fechados, portanto esses episódios são colocados aqui di-
daticamente, e não representa a vida concreta das memórias que se consti-
página 194
Hannah Arendt foi uma grande pensadora que teve preocupação com a
discussão sobre a violência e deixou aos estudos filosóficos a responsabili-
dade de debater sobre a difícil questão. Ao analisarmos a história vemos
que a violência sempre esteve presente na vida social da humanidade, in-
clusive no que consiste à atividade historiográfica. Definimos, como violên-
cia, as ações de dominação que promovem os homens contra outros ho-
mens, ou uma nação contra uma outra nação, ou seja, violência é sempre
uma ação contra alguma coisa. Porém, ao nos depararmos com os discursos
página 199
sita da presença física do agressor. O agressor pode estar presente nas pala-
vras, nos signos e nos discursos, ou seja, virtual no sentido de semiótico.
Aqui, analisamos o papel da historiografia nesse processo da violência.
Porém, antes de continuarmos, é necessário fazer uma diferenciação em rela-
ção ao poder e à violência. Ambos os conceitos tratam de um processo de
relação ideológica de um grupo sobre o outro. De um sujeito que busca o
assujeitamento do outro. A própria Arendt, no mesmo livro Sobre a violência,
vai colocar essa diferença. De acordo com ela, os autores e pensadores de sua
época diziam que a violência era uma forma extrema do poder, ou que o po-
der era uma forma de violência. Independente da posição dos autores, eles
estavam de acordo em uma coisa, violência e poder se confundiam, um era o
efeito do outro. Arendt propõe, contra isso, a diferenciação dos conceitos:
O poder não é entendido como uma violência, mas como uma domina-
ção através de meios psicológicos. De acordo com Arendt, "a forma extrema
e poder é Todos contra Um; a forma extrema da violência é Um contra Todos"
(Ibidem, p. 58). A violência é quando um grupo menor se utiliza da força
física para impor seus argumentos. O poder é quando um grupo convence
outro grupo e dessa forma ambos entram no jogo de convencimento. Co-
mo vimos, se violência é uma ação contra o outro; o poder é uma ação
com o outro, torna-se assim, um jogo em que o outro tem a livre escolha
de jogar ao lado de, ou em posição contrária a. Ainda há a relação de domi-
nação nesse jogo, mas ela é baseada no contrato.
não seja a violência, essa outra forma permite ao ofensor não estar presen-
te no lugar de realização do poder, ou melhor, não estar presente na sua
manifestação física, já que de um certo modo, o opressor estará presente
no sentido discursivo. Uma das manifestações de poder é a colonização da
memória, que é uma colonização que faz lembrar a todo o instante o esta-
do de opressão: essa colonização se dá através da memória. É a memória
que faz a colonização se materializar nas relações entre povos, entre ho-
mens, entre homens e objetos, etc.
Quando um povo é reprimido fisicamente, ou seja, quando há invasão
do opressor nas terras do oprimido há realização da violência colonizado-
ra. Nesse mesmo momento, a memória do oprimido é a todo o momento
atualizada para se lembrar desse estado de violência. Uma hora ou outra,
a mente do oprimido estará habituada com essa violência. E ela acaba por
aceitar a violência. Em seguida, a cultura desse sujeito estará invadida por
signos da opressão sofrida. Logo, a história lembrará de fatos manipulan-
do essa opressão e mostrando o opressor como herói.
É nesse momento, em que a história do oprimido se confunde com a his-
tória do opressor, quando mostram aos alunos da colônia, os colonizadores
como "bons", como um ponto positivo na história da colônia, é nessa hora
que a memória passa a ser o lugar da colonização. As esferas mentais, cul-
turais e memoriais se manifestam de uma tal maneira, que depois de gera-
ções, o colonizador não está mais presente fisicamente na vida cotidiana do
colonizado, e mesmo havendo a independência política de uma nação intei-
ra, a política implementada por esse povo é a repetição da política do povo
colonizador. É assim que mostraremos essa colonização se manifestando
nos livros de história. Como a memória construída nesses livros está repleta
de signos ideológicos do colonizador, construindo a imagem do coloniza-
dor como positivo e ativo e a do colonizado como negativo e passivo. A
essa memória daremos o nome de memória dialética.
humanidade aos dias atuais. Em segundo lugar, a escolha foi feita de acor-
do com o tratamento dado à África, o livro deveria fazer referência à histó-
ria africana, seja de forma superficial ou aprofundada. E, em terceiro lugar,
os livros deveriam ser didáticos. Os livros escolhidos foram: História das
Sociedades (1979), de Aquino; História Geral – Idade Contemporânea (1966), de
Carvalho e História Geral das Civilizações (1963), de Crouzet. Nem todos apa-
recerão nesse artigo, devido ao espaço que temos para a escrita.
A memória que queremos analisar é chamada memória dialética, exa-
tamente, porque ela se manifesta, como Marx nos mostrou no livro Mani-
festo do partido comunista.
A história de todas as sociedades até hoje é a história das lutas de classes. Ho-
mem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corpora-
ção e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição,
têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que
terminou sempre por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou
pela destruição das duas classes em conflito. (Marx, 2007 [B], p. 40)
(1) Vários foram os motivos que levaram daquela época em diante os euro-
peus a explorar o continente negro. Alguns foram interessados nos núcleos
A colonização da memória no discurso historiográfico
rocêntrica a partir do momento em que escolhe esses signos, que não é alea-
tória. Em todos esses signos ideológicos e memórias dialéticas, vemos o
rebaixamento do africano. A África é passiva, enquanto a Europa ativa, isso
equivale a dizer que a África passou a história toda dessa dialética receben-
do da Europa, enquanto esta nada recebeu daquela. Ora, isso é uma ilusão
dos colonizadores, já que quando pensamos na relação de dois povos na
história, ambos aprenderam um do outro, ambos interagiram, ambos existi-
am enquanto culturas autônomas, antes da presença de uma frente à outra.
Dessa forma, procuramos sem êxito uma memória que fosse dialógica, ou
seja, que respeitasse e colocasse ambos no mesmo patamar. A história se
dedicou principalmente a escolher o que uma nação irá lembrar e o que a
mesma irá esquecer. E essa escolha não é aleatória, é sempre feita a partir da
visão do colonizador. É a esse fenômeno que damos o nome de Colonização
da memória. Uma colonização que faz lembrar a todo o momento que o
colonizado não está livre da opressão, que a luta, longe de ter acabado com
a conquista da independência, não acaba nunca.
CONCLUSÃO
O que fica claro para nós, depois dessa análise, é que nesses livros, que
são todos didáticos, ou seja, usados em nossas escolas; os signos materiali-
zados são sempre os dos colonizadores, o que nos leva a acreditar que o
povo irá aprender apenas a versão do colonizador da nossa própria histó-
ria. Vimos a dialética Europa X África, e se pensarmos que a cultura brasi-
leira tem fortes raízes tanto na cultura europeia, quanto na cultura africa-
na, então essa história se refere à nossa formação cultural. Estamos apren-
dendo que em nossa cultura, a europeia tem grande importância, já que
foi ela a ativa, enquanto a africana somente recebeu influências europeias,
ela foi passiva no processo histórico.
É preciso transformar essa situação de colonização. E pensarmos novas
formas de atuação do historiador e do professor de história, que muitas vezes
são rebaixados pela sociedade, porém em nossos estudos vimos que eles têm
uma importância fundamental: a de definir as memórias que orientarão os
rumos da história de uma nação. Essa tarefa, como dissemos, não é só deles,
página 204
REFERÊNCIAS
AQUINO, Rubim. História das sociedades. Rio de Janeiro: Livro técnico, 1983.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
______. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João editores, 2010.
CROUZET, Maurice. História geral das civilizações. São Paulo: Difusão europeia, 1963.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007(A).
página 205
página 206 Eduardo Eide Nagai
quinze
INTRODUÇÃO
O
presente artigo busca fazer uma pequena reflexão acer-
ca da temática de pesquisa desenvolvida durante o mes-
trado. Dessa forma cumpre informar que o objetivo des-
se estudo residiu na busca (por meio dos discursos dos
sujeitos estéticos de Barros) pela construção de discursos que refra-
tam os discursos que veiculam os valores que se encontram relati-
vamente estáveis no e pelo discurso oficial.
Para isso parte-se da premissa que esses contradiscursos, no caso
deste artigo e da pesquisa desenvolvida, são discursos constituídos
pelo olhar adulto dos sujeitos adultos dos textos de Barros, que ao
miotello@terra.com.br
Marina Haber de Figueiredo & Valdemir Miotello
infância, como pode ser observado a seguir nos excertos retirados de al-
guns textos de Barros.
Lagartixas fossem muito principais que as lesmas nesse ponto. Eram esses pe-
quenos seres que viviam ao gosto do chão que me davam fascínio. Eu não via
nenhum espetáculo mais edificante do que pertencer do chão. Para mim esses
pequenos seres tinham o privilégio de ouvir as fontes da Terra (2003,V, Ver).
***
Vale dizer que a infância não pode ser entendida como fato passado
que se esgota em tempo vivido, mas é re-significada na vida adulta por
meio da rememoração.
ção das palavras, que os sujeitos presentes nos textos barrosianos expres-
sam a construção de um discurso contrário ao da ótica vigente.
A ideologia capitalista tece sua concepção quase monológica sobre a
infância entendendo-a, hoje, como um dos períodos da vida em que o su-
jeito não tem sua voz ouvida, e que é, portanto, uma fase que possui “ma-
leabilidade” suficiente para ser moldada de acordo com os preceitos dessa
ideologia oficial, que ora intensifica os dizeres moralistas da ideologia
judaico-cristã, ao pregar a criança como uma figura angelical, isenta de
maldade e de características eróticas e sexuais, e ora como miniadultos, tal
e qual os do mundo dos “negócios”, acometidos por agendas abarrotadas
de atividades que visam a prepará-lo, tendo como norte o sucesso profis-
sional na idade adulta e assim “consolida-se” o ideal de vida perfeito
“vendido” pela sociedade de consumo.
No que diz respeito ao viés erótico presente na infância, pode-se dizer
que é também uma característica presente no ser humano desde o seu nas-
cimento. Vale ressaltar que esse erotismo não pode ser entendido no
mesmo grau que o desejo sexual do adulto, porque se trata de um erotis-
mo sexual ligado à descoberta da sexualidade, assim como se descobrem
as necessidades fisiológicas e o seu controle, ou ainda, a descoberta das
mãos e pés. A descoberta de uma vida que se constitui e é constituída por
outras vidas, atos e fatos.
Segundo Ariès (2004, p.50), até o século XII, a arte medieval desconhe-
cia ou não retratava a infância, não existia nenhum sentimento diferencia-
do do ser criança. De acordo com o autor: “o sentimento da infância não
significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da
particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente
a criança do adulto, mesmo jovem.” (Ariès, 2004, p. 156). Ela era tratada
sem distinção do mundo adulto, sendo representada em obras de arte co-
mo um homem ou mulher em miniatura.
Por volta do século XIII, a criança começou a ser representada com ca-
racterísticas um pouco diferentes, que foram se modificando durante os
séculos XIV e XV; porém, as cenas em geral não se consagravam à descri-
ção exclusiva da infância, mas muitas vezes tinham nas crianças suas pro-
tagonistas principais ou secundárias (Ariès, 1981, p.55). Isto pode indicar
que elas participavam do cotidiano dos adultos, em reuniões para o traba-
lho, passeios, jogos, sendo também retratadas por sua singeleza.
O pensamento de Rosseau sobre a existência de uma certa pureza angeli-
cal na infância é advindo da ideia de que toda sociedade corrompida é fruto
da ação humana, como ele mesmo afirma em seu livro supracitado “tudo está
bem quando sai das mãos do Autor das coisas, tudo degenera entre as mãos
dos homens” (2004, p.7); essa afirmação segue a premissa de que Deus criou
o mundo belo e perfeito e que a corrupção/degradação humana acontecem
no viver, nas trocas oriundas das relações sociais. Dessa forma, a infância
passa a ser vista como o momento de excelência à aprendizagem, visto que é
o tempo de vida mais puro e ingênuo que o homem experimenta durante sua
jornada. Porém, este pensamento tende a ser cartesiano, uma vez que tenta
moldar, condicionar o comportamento da criança e do futuro adulto, pois se
percebe a preocupação de Rosseau com o desempenho do papel social de
cada um, além de matar a singularidade e a alteridade, uma vez que lança
mão de práticas homogêneas e pré-estabelecidas.
Para Kramer (2003) foi graças ao desenvolvimento da concepção da in-
fância que os adultos se humanizaram, porém, na atual sociedade, o que
se vê é um processo de adultização ou negação da infância. Dentre outras
coisas, pode-se dizer que a sociedade contemporânea ocidental está se
desumanizando e se coisificando.
página 214
REFERÊNCIAS
______. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João, 2010.
______. Questões de literatura e estética: falta o subtítulo. São Paulo: UNESP, 1998.
BENJAMIN, W. Tradução: Sérgio Paulo Ruanet. Obras Escolhidas I: Magia e técnica, arte
e política. São Paulo: Brasiliense, 1994a.
______. Obras Escolhidas II: Rua de mão única. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho
e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1994b.
ROSSEAU, J.J. Emílio, ou, da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
Sidney de PAULO1
o MITO do eterno
RETORNO na construção da
SEGURANÇA pública:1
aportes linguísticos e cinematográficos
O
intuito deste artigo é funcionar como suporte de um
pensamento desenvolvido a partir de duas obras
cinematográficas brasileiras: Carandiru (2002), de Hector
Babenco e Tropa de Elite (2007), de José Padilha. A
luta da palavra, pela estabilização dos sentidos (Gregolin, 2003). Para que
tudo continue “funcionando” plenamente em uma sociedade, o discurso
hegemônico tentará sempre inscrever apenas um sentido para cada signo,
O mito do eterno retorno na construção da segurança pública: aportes linguísticos e cinematográficos
mero devaneio artístico. Longe de sê-lo, olhar para o cinema é pensar em di-
versos elementos que não estão desvinculados, polarizados, mas sim dialogam
entre si e com o mundo, contribuindo para a formação dos sentidos.
O mito do eterno retorno na construção da segurança pública: aportes linguísticos e cinematográficos
Camus toma esse mito para dizer que, mesmo assim, Sísifo era feliz no que
fazia. No momento que a pedra rolava até o pé da montanha era um momen-
to de introspecção. Neste caso, abrimos duas possibilidades de leitura do
ciclo instaurado pelo filme: ou imaginamos as personagens fadadas e insatis-
feitas com a sina; ou as imaginamos felizes no seu movimento de retorno.
O movimento cíclico das personagens é um chamado para o absurdo,
uma criação da rotina do trabalho, mas um trabalho sem fim e sem lógica.
Ela é uma das pistas do estado de explosão constante do sistema. Esta, por
sua vez, também vive o absurdo, pois tenciona, explode e revive para uma
nova explosão. Imagem clara disso está logo após a rebelião, com os presos
retornando ao cotidiano, lavando o chão do presídio, com uma água espu-
mada, branca, que aos poucos varria as marcas de sangue dos mortos.
Não obstante, o filme ainda nos mostra como última explosão (mas não dei-
xa que ela encerre a história) a demolição do Carandiru, realizada pelo governo.
Aliás, um detalhe pode escapar ao leitor do filme. Em vários momentos da
obra uma sirene é tocada, seja para avisar o horário de visita, seja para anunciar
a rebelião e, por fim, para informar que o presídio será demolido. Estes traços
são que levam a crer na fragilidade da organização ali instaurada.
Ainda a respeito da água usada para lavar o sangue derramado, pode-se im-
petrar algumas compreensões bastante interessantes. No capítulo anterior, evi-
denciei que existiu no filme uma aproximação do preso com a imagem do Cristo.
Nessa mesma vertente, a água é capaz de ser identificada como objeto de
purificação, que renova ao banhar o sangue que foi retirado dos nossos pe-
cados, ou seja, foi a nossa indiferença ao problema que culminou naquele
sistema e a morte de tantas pessoas. Por outro lado, a água não é suficiente
para limpar as marcas da violência que só foi “apagada” com a implosão do
prédio. Abaixo, é fácil encontrar esses elementos interpretativos: página 225
O foco de luz que podemos observar na imagem acima tem outra in-
terpretação igualmente importante. Ela liga este enunciado ao enunciado
O mito do eterno retorno na construção da segurança pública: aportes linguísticos e cinematográficos
Por mais monológico que seja o enunciado (por exemplo, uma obra cientí-
fica ou filosófica), por mais concentrada que esteja no seu objeto, não pode
deixar de ser em certa medida também uma resposta àquilo que já foi dito
sobre dado objeto, sobre dada questão, ainda que essa responsividade não
tenha adquirido uma nítida expressão externa: ela irá manifestar-se na tota-
lidade do sentido, na totalidade da expressão, na totalidade do estilo, nos
matizes mais sutis da composição. O enunciado é pleno de tonalidades dia-
lógicas, e sem levá-las em conta é impossível entender até o fim o estilo de
um enunciado. (Bakhtin, 2010, p.298).
Baiano. Além disso, as brigas intensas com a esposa é outro bom demons-
trativo de que as coisas caminham para uma inevitável explosão. No e-
Sidney de Paulo
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2010.
______. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos
Alberto Faraco. São Paulo: Pedro & João, 2010b.
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix, 1993.
_____. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (Texto e Linguagem).
STAM, R. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Tradução de Heloísa Jahn. São
Paulo: Ática, 1992.
página 231
página 232 Sidney de Paulo