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Katia Perez
Jornalista e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Social da Universidade Metodista de São Paulo (PósCOM). Mestra em
Comunicação Social com ênfase em Comunicação dentro das Organizações e
Especialista em Planejamento Estratégico em Comunicação, pela mesma
instituição. Perfil Academia: https://metodista.academia.edu/KatiaPerez.

E-mail: katia.perez@outlook.com.br

Argumentação e efeito de verdade na narrativa jornalística multimodal –


reflexões sobre a discursividade da reportagem “Rota 66”, do Estadão

O jornalismo passa por um período de transformação profunda, onde o


jornalismo on-line tem mostrado constantes (r)evoluções nestas primeiras
décadas do séc XXI (DEUZE, 2006). O ciberjornalismo e sua multiplicidade de
linguagens e plataformas (LONGUI, 2015; RENÓ, 2015) propiciam um novo
formato à produção das reportagens, às narrações dos acontecimentos
(SANTOS, 2015). As novas tecnologias oferecem novos e criativos recursos às
reportagens, desde a multimidialidade e a hipertextualidade, chegando a novos
modos de „ler‟, com profundidade, experenciando o relatado, a qualquer hora e
em qualquer lugar onde estiver, já que diversos canais se complementam.
Acessar conteúdos, atualmente, é tão diverso quanto produzi-los, deixando as
interações entre os coenunciadores cada vez mais complexas. Nesse jogo de
polifonia e dialogismo, conforme a acepção de Diana de Barros (2001) em seus
estudos sobre o filósofo Mikhail Bakhtin, percebemos diversas vozes
perpassando estas reportagens, construindo sentidos, deixando rastros de
suas marcas ideológicas, narrando/argumentando.
Neste contexto histórico e social, a questão que propomos para reflexão
e debate, é quanto à argumentatividade presente nas narrações dos „fatos‟,
buscando criar efeitos de verdade, a partir das novas linguagens disponíveis e
proporcionadas pela proposta multimodal e transmidiática. Para traçar este
caminho, entendemos pertinente buscar a visão de mundo proposta pela
Análise de Discurso em sua vertente francesa, utilizando o pensamento de
alguns pesquisadores como Alain Rabatel (2015; 2016), e seus conceitos sobre
a argumentatividade presente na narrativa; os conceitos de efeitos de sentido
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na mídia, propostos por Patrick Charaudeau (2015), e as teorias sobre o ethos


discursivo de Dominique Maingueneau (2008, 2015). Para dar corpo à reflexão,
usamos a reportagem Rota 66 – A confissão, observando suas diversas
linguagens expostas em diferentes plataformas, publicada pelo Estadão.com,
em 2015.
O resultado desta análise coloca em evidência uma contradição
existente no interior da reportagem. Mesmo „revelando‟ a culpabilidade da ação
policial no assassinato de três jovens, o texto multimodal constrói ethos e
propõe experiências visuais e interativas (contribuindo para o efeito de
verdade) que levam o leitor-internauta a participar da narrativa sob o ponto de
vista da viatura número 66, da Rota.

Uma narrativa, diversas linguagens


As reportagens multimídia ganharam impulso, no Brasil, a partir de 2013,
com produtos publicados especialmente pela Folha de S. Paulo, G1 e Estadão
(Longhi, 2015). Estes conteúdos, porém, seguem uma tendência mundial,
como observamos em reportagens como Snow Fall1, produzida pelo New York
Times, em 2012, Cycling’s Road Foward2, de The Washington Post, em 2013,
ou Lost and Found3, da também norte-americana National Public Radio (NPR),
em 2012, apenas para citar algumas das mais marcantes.
Produzida pelo Estadão.com, Rota 66 – A confissão4 foi anunciada no
perfil do Facebook, que, com um trailer de 40 segundos, chamava o leitor-
internauta para a publicação da reportagem no Estadão.com, (no sábado, 25
de abril de 2015), no jornal impresso (no domingo, dia 26). Na TV Estadão, a
reportagem /documentário, com 10 minutos, estaria disponível também no
sábado, dia 25.
Analisando a publicação do Estadão.com, que se apresenta mais
completa para o estudo aqui proposto, a reportagem apresenta ao leitor-

1
Disponível em <http://www.nytimes.com/projects/2012/snow-fall/#/?part=tunnel-creek> .
Acesso em 15 ago 2017
2
Disponível em <http://www.washingtonpost.com/sf/wp-sports/2013/02/27/cyclings-road-
forward/> . Acesso em 15 ago 2017
3
Disponível em <http://www.npr.org/news/specials/2012/cushman/#c2>. Acesso em 15 ago
2017
4
Disponível em <http://infograficos.estadao.com.br/especiais/rota-66-confissao/> . Acesso em
15 ago 2017
3

internauta formatos que permitem formar sentidos de imersão na reconstrução


do fato por meio de depoimentos filmados e gravados, de imagens em
movimento, do resgate de páginas de jornal da época, de gráficos e mapas, de
simulação de tiros (em que o leitor „aperta‟ o gatilho), de inúmeras e boas fotos,
além de links que permitem a navegação pelo Estadão.com e a compartilhar.
Todos esses recursos/elementos audiovisuais e interativos usados
remetem a uma sensação de liberdade, de escolhas, por parte dos
leitores/internautas (e que também ocupam a posição de coenunciadores).
Essas novas tecnologias de comunicação, conforme o pensamento de
Dominique Maingueneau ao observar a Web (p. 170, 2015), promovem uma
“tecnologia discursiva” que “modificam a materialidade do que se entende por
„discurso‟, com tudo o que isso implica em termos de relações sociais e de
construção da subjetividade” (Maingueneau, 2015, p. 170). No caso em foco, a
reconstrução do fato torna-se mais densa quando os leitores/internautas se
apropriam dessas tecnologias e, por que não dizer, mais „real‟.
Reconstruções do fato
Mais próxima também fica a narrativa, ou melhor, a narração dos fatos,
que estão sendo apresentados ao leitor por um locutor primeiro (o
Estadão.com). De acordo com os estudos de Alain Rabatel (2015) sobre o
ponto de vista, as narrativas representam uma transparência, mas mesclada de
ponto opacos e de intencionalidades, pois trazem um ponto de vista do locutor
(o Estadão) através da fala do narrador (que seriam os jornalistas, em seu
papel de redatores, ou os designers, elaborando elementos gráficos e layout) e
de personagens (os depoimentos dos entrevistados, que são destacados pelos
elementos gráficos, como o „olho‟ ou pelas suas próprias vozes gravadas).
“As relações enunciativas em ação na narrativa [...] indicam ao
destinatário como se apropriar do texto, a partir de quais centros de
perspectiva, como pensar em suas relações, a fim de fazer emergir
uma significação coconstruída pelo leitor, com base nas instruções do
texto e nas escolhas de empatização efetuadas pelo leitor”
(RABATEL, 2015, p. 38-39)

Nesta escolha de fontes (sejam depoimentos de entrevistados, imagens,


dispositivos de interação) fica inscrito o ponto de vista do próprio locutor que,
por sua força enunciativa marcada também por um lugar de enunciação (as
empresas jornalísticas ou a Imprensa, como „entidade‟), confere credibilidade
aos textos. Esses sentidos de verdade, de acordo com Patrick Charaudeau
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(2006, p. 87) ao estudar o discurso jornalísitco, tenta alcançar um „fazer crer‟


por meio de dois tipos de construção textual: a descrição-narração, que reporta
os fatos, e a explicação, que esclarece esses fatos.

Reflexões sobre a confissão

O foco principal da matéria é o depoimento do ex-coronel Antônio


Erasmo Dias, que comandou a Secretaria da Segurança Pública de São
Paulo de 1974 a 1977. A sua confissão sobre a atuação da polícia no
assassinato de três jovens em São Paulo, em abril de 1975, e o encobrimento
de provas – o que inocentaria os policiais da Rota 66 – são o ponto alto da
reportagem. O depoimento gravado por Erasmo Dias aparece no 3º e último
capítulo da reportagem. Os dois primeiros capítulos apresentam,
respectivamente, as três vítimas (ressalta que eram de famílias ricas, um havia
abandonado os estudos, outro era brigão e tivera passagem pela polícia,
gostavam de fumar maconha) e o processo judicial envolvendo os policiais (já
aqui a narração envolve o depoimento de figuras de destaque da sociedade:
advogados, atuais vereadores, ex-policiais). Textos escritos, fotos e imagens
levam à construção de dois ethe: a imagem “hippie” dos rapazes e a imagem
distinta do aparato judiciário.

Um dos elementos interativos que ilustram o segundo capítulo, mostra


as armas e supostas armas usadas na noite da perseguição e do crime. Ao
clicar sobre as armas, o leitor-internauta ouve o som dos disparos. Importante
lembrar que, como as três vítimas estavam desarmadas, os leitores-internautas
são colocados na posição de policiais, ao dispararem as armas virtuais, crinado
empatis entre leitores e „personagens‟ (RABATEL, 2016).

Estes dois capítulos funcionam como uma preparação para o ponto alto
da reportagem, que inclusive é o seu título: a confissão. Entendemos que os
dois primeiros capítulos funcionam como um ethos pré-discursivo
(Maingueneau, 2008) para o depoimento do ex-coronel Erasmo Dias. O clímax
da reportagem, então, é previamente preparado para que essa reconstrução
dos fatos seja observada pelo ponto de vista da dos policiais da Rota: não
como um crime, mas como um engano, uma tragédia.
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Referências (para este resumo)

BARROS, Diana de. Contribuições de Bakhtin às teorias do texto e do discurso.


In: FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristovão; CASTRO, Gilberto de (Orgs.)
Diálogos com Bakhtin. Paraná: Editora UFPR, 2001.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.

DEUZE, Mark. O jornalismo e os novos meios de comunicação social.


Comunicação e Sociedade,revista científica editada pelo Centro de Estudos
de Comunicação e Sociedade do Instituto de Ciências Sociais da Universidade
do Minho, Braga (Portugal), vol. 9-10, p. 15-37, 2006. Disponível em
<http://revistacomsoc.pt/index.php/comsoc/article/view/1152/1095> . Último
acesso em: 21 ago. 2017.

LONGHI, Raquel Ritter. A grande reportagem multimídia como gênero


expressivo no ciberjornalismo. In: 6º Simpósio Internacional de
Ciberjornalismo, 2015, Campo Grande (Mato Grosso do Sul-BR). Disponível
em
<http://www.ciberjor.ufms.br/ciberjor6/files/2015/03/LONGHICIBERJOR.pdf>.
Último acesso: 19 ago. 2017.

MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola


Edltorial, 2008.

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do Discurso. São Paulo:


Parábola, 2015.

RABATEL, Alain. Homo Narrans – por uma abordagem enunciativa e


interacionista da Narrativa. São Paulo: Cortez, 2016.

RENÓ. Denis Porto. O documentário transmídia: como produzir. Âncora,


Revista Latino-americana de Jornalismo, editada pelo Programa de Pós-
graduação em Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa
(PB-BR), VOL.2, N.2, p. 191 a 211, JUL./DEZ. 2015. Disponível em
<http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/ancora/article/view/26007/13995>.
Último acesso em: 21 ago. 2017.

SANTOS, Marli dos. Reportagem: diversidade de formatos e estilos. TEMER,


Ana Carolina R.P.; SANTOS, Marli dos (Orgs.). Fronteiras Híbridas do
Jornalismo. Paraná: Appris Editora, 2015.

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