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Uma homenagem à Suzy Lagazzi

Organizadores
Flavio Benayon Guilherme Adorno
Liliane Anjos Mirielly Ferraça
Rogério Modesto Romulo Osthues
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Proibida a reprodução total ou parcial em qualquer mídia
sem a autorização escrita da Editora.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Adorno, Guilherme./ Modesto, Rogério./ Ferraça, Mirielly./ Benayon, Flavio./


Anjos, Liliane./ Osthues, Romulo ( Orgs.)

O discurso nas fronteiras do social: uma homenagem à Suzy Lagazzi - volume 1/

Guilherme Adorno./ Rogério Modesto./ Mirielly Ferraça./ Flavio Benayon./


Liliane Anjos./ Romulo Osthues (Orgs.) - Campinas, SP: Pontes Editores, 2019

Bibliografia.
ISBN: 978-85-217-0203-0

1. Análise do discurso - Suzy Lagazzi 2. Estudos sobre linguagem


3. Linguística I. Título

Índices para catálogo sistemático:

1. Análise do discurso - 410


2. Estudos sobre linguagem - 410
4. Linguística - 410
Uma homenagem à Suzy Lagazzi

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Autores deste
qui volume:
tos
Carolina R.-Alcalá (Unic
Carolina P. Fedatto (PUC
Claudia C. Pfeiffer (Uni
Emanuel A. Nascime
(Unicamp)
Eni P. Orlandi (Unicam
Flavio R. Benayon (Unic
Guilherme Adorno (Un
Luciana L. Brasil (Unic
Organizadores Luiz C. M. de Souza (U
Flavio Benayon Guilherme Adorno Olímpia M. Souza (UNE
Liliane Anjos Mirielly Ferraça Renata M. Lara (UE
Rogério Modesto Romulo Osthues Romulo S. Osthue
(Unicamp)
Solange L. Gallo (Un
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Editoração: Vinnie Graciano
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Impresso no Brasil 2019


Sumário

Um pouco de Suzy em nós... 7


Apresentação 11

Parte 1

A secretária: um obstáculo ao exercício dos


Direitos Humanos? Cotidiano e burocracia 21
Eni Puccinelli Orlandi - Unicamp
A condenação de manifestantes nos protestos de 2013:
considerações sobre o funcionamento do
discurso jurídico 39
Flavio da Rocha Benayon - Unicamp
O juridismo e o desafio de dizer diferente 63
Solange Leda Gallo - Unisul
A função-autor nos laudos de comprovação
de higidez mental 85
Olimpia Maluf-Souza - UNEMAT
Na dança das imbricações ou uma coreografia
materialista: o discurso nas fronteiras 115
Guilherme Adorno - Univás
Da evidência do espaço à evidência da percepção
sensível: uma abordagem discursiva 133
Carolina Rodríguez-Alcalá - Unicamp
Parte 2

Na delicadeza e potência da prática teórica e


analítica de Suzy Lagazzi: um recorte 145
Claudia Castellanos Pfeiffer - Unicamp
Um decalque da cena prototípica: corpo, panela e
nariz de palhaço (re)traçados na memória 159
Romulo Santana Osthues - Unicamp
Um (per)curso en(tre)laçado entre diferentes
materialidades significantes 185
Emanuel Angelo Nascimento - Unicamp
Na análise de discurso os discursos em análise:
indo além do mais além 209
Luciana Leão Brasil - Unicamp

Parte 3

O olh(o)ar (d)a imagem-quadro: o semblante (de) Marielle 227


Renata Marcelle Lara - UEM
Por um método de análise de obras artísticas: uma
proposta na perspectiva discursiva a partir do RSI 253
Luiz Carlos Martins de Souza - UFAM
O desafio de dizer eu 293
Carolina Padilha Fedatto - PUC-Minas

Sobre os organizadores 315


Sobre os autores 317
Um decalque da cena prototípica:
corpo, panela e nariz de palhaço
(re)traçados na memória

Romulo Santana Osthues

15 de março de 2015. “Fora, Dilma”, “Fora, PT”, “Intervenção


militar já”, “Impeachment nela”... foram enunciados que ora es-
tampavam cartazes, faixas e camisetas, ora ganhavam força
nas vozes dos manifestantes que se espalharam pelas capitais
brasileiras naquele dia. Exigiam, entre outras coisas, a deposição
da presidenta Dilma Rousseff e apoiavam operações de investi-
gação de corrupção envolvendo políticos – sendo a Lava Jato a
mais destacada na época. Na Avenida Paulista, especificamente,
notável palco de toda sorte de protestos sociais, entre os pre-
sentes, um sujeito que articulava o panelaço ao uso do nariz de
palhaço foi capturado pela câmera de Paulo Whitaker, resultan-
do nesta fotografia abaixo.

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

Imagem 1 – Manifestação pró-impeachment de Dilma Rousseff e


em apoio à operação Lava Jato, na Avenida Paulista, em São Paulo
(SP), no dia 15/03/20151

Sendo uma fotografia – um “objeto simbólico material-


mente heterogêneo” (Lagazzi, 2009, p. 68) –, a imagem 1 nos
conquista a atenção como seus leitores, mobilizando a memó-
ria discursiva frente à injunção a interpretá-la. Nesse trajeto de
interpretação, para além da formulação intradiscursiva (ou seja,
o que está formulado na fotografia), deparamo-nos também
com as diversas imagens desdobradas no interdiscurso (naqui-
lo que “já vimos/ dissemos/ fizemos etc.” e ainda no que pode-
remos ver/ dizer/ fazer etc.) que nos parecem familiares – algo
como uma “desconfiança” de que existe uma cena semelhante
em outro lugar.
Esse é o funcionamento da cena prototípica, uma producen-
te noção teórico-analítica proposta por Suzy Lagazzi, ao longo
1 Foto de Paulo Whitaker (Reuters), publicada numa galeria do portal G1. Disponível em:
<http://g1.globo.com/politica/fotos/2015/03/fotos-manifestacoes-pelo-brasil-neste-
-domingo-15.html>. Acesso em: 12 de janeiro de 2019.

160
O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

de sua trajetória na Análise de Discurso de orientação materia-


lista, na compreensão da imagem como uma materialidade sig-
nificante e do trabalho da equivocidade na composição dessa
com outras materialidades significantes (verbal, sonora, corporal
etc.). “Prototípica” não adjetivaria uma cena à toa: digamos que
prototípica seja uma cena que se apresenta como a “mais exata,
mais perfeita, mais típica”2 representante de algo que pode se
reproduzir em larga escala. Uma cena que, no interdiscurso, se
desdobra em imagens que funcionam “como exemplares, con-
centrando o já-visto” (Lagazzi, 2015, p. 187).
Para enxergar a cena prototípica, cabe ao analista de discur-
so empreitar a deslinearização da imagem (Lagazzi, 2013, 2014a,
2014b), ou seja, descrever e interpretar a formulação visual in-
tradiscursiva (o formulado), remetendo-a ao interdiscurso (o
formulável), a fim de se dar a ver outras imagens que são seus
desdobramentos possíveis e compreender sua textualização em
diversos materiais.
É conforme a compreensão de Barbosa Filho (2018, p. 12)
que lanço mão da noção de textualização “como processo lin-
guístico-histórico de formulação do dizer na materialidade do
documento”. Ainda segundo o autor, considerada desse modo,
a textualização “aponta para o fato de que qualquer formulação
está carregada de historicidade”. Ressalto que, neste texto, as-
sim como em Modesto (2018, p. 200), tratarei de uma textua-
lização que ocorre não só via conteúdo, mas também pela for-
ma material em que, nos materiais analisados, os gestos “dão o
tom das identificações que atravessam as fronteiras do social”.
Esses gestos, por isso, são meus pontos de entrada na leitura
da articulação entre panela e nariz de palhaço textualizando

2 PROTÓTIPO. In: HOUAISS, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. On-line. Disponível


em: <https://houaiss.uol.com.br>. Acesso em: 18 de janeiro de 2019.

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

o protesto em dois documentos: inicialmente, na fotografia já


apresentada acima; em seguida, numa charge que a parafraseia
(imagem 2).
A tarefa de deslinearizar imagens implica o procedimen-
to parafrástico: a proposição de reformulações de enuncia-
dos, formulações visuais etc. quando da análise de um objeto
discursivo que funcionem como suas “paráfrases plausíveis”
(Pêcheux, 2002, p. 26). O procedimento parafrástico, con-
comitantemente, “aponta para o mesmo e para o diferente”
(Lagazzi, 2015, p. 178).
Segundo Lagazzi, cujo trabalho de levar o exercício da pará-
frase para a imagem fundamenta e inspira a escrita deste texto,
ao passo que se movimenta a interpretação nesse exercício de
reformulações,

o procedimento parafrástico vai atualizan-


do o efeito metafórico, definindo limites de
sentidos e dando visibilidade ao processo
discursivo por meio de regularidades que
vão localizando recortes na memória do di-
zer, especificando as formações discursivas
e as posições de sujeito em jogo (Lagazzi,
2015, p. 181).

Assim como se vê na formulação visual da imagem 1, nos


últimos anos, não tem sido raro encontrar sujeitos na formação
social brasileira articulando o panelaço e o uso do nariz de pa-
lhaço nas manifestações. Em vista disso, não é uma coincidência
que fotógrafos e editores de imagem valorizem essa articulação
tanto na hora de sua captura quanto na seleção daquela foto-
grafia que “represente bem” um episódio de protesto a ser posto

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

em circulação nos veículos midiáticos – as cenas prototípicas são


“sedutoras” para sujeitos na posição de jornalistas. Bater panela
e/ou vestir a pequena máscara vermelha vêm sendo recorrentes
gestos (“atos no nível do simbólico”3) que, documentados em
fotografias, textualizam o protesto (denúncia, indignação, des-
contentamento etc.) em contextos de contenda social, de dis-
putas políticas, nas mais diversas posições de sujeito – até mes-
mo antagônicas.
Em um trabalho prévio (Osthues, 2018), cujo corpus forma-
do por 10 fotografias4 (a imagem 1 era uma delas) apresentava
como regularidade essa mesma articulação, nomeei tal funcio-
namento discursivo como cena prototípica do sujeito em protesto
carnavalizando o político. Carnavalizar o (espaço do) político diz
do modo de protestar tal qual um espetáculo. No caso daquelas
fotografias, suas formulações visuais continham cenários, gestos
e objetos que remontavam à paisagem carnavalesca. O chapéu
de bobo da corte utilizado pelo sujeito da imagem 1 é um exem-
plo. Ele, além de um adereço que enfeita a cabeça de foliões,
é um objeto cujos sentidos se entrelaçam aos de palhaço e de
panelaço que a articulação traz à baila.
Se cada gesto produzido pelo corpo do sujeito da imagem 1
tem sua força como uma textualização do protesto na fotografia,
quando articulados por esse mesmo sujeito em um uso conco-
mitante da panela e do nariz de palhaço, quais efeitos de sentido
produzem em composição material? Como o corpo do sujeito,
a panela em riste e a pequena máscara vermelha constituem,

3 Conforme Pêcheux (2014a [1969], p. 77), que elenca signos não linguísticos como aplau-
sos, risos, tumultos, assobios etc. e os designa de tal modo. Para os fins desta análise,
bater panela e vestir nariz de palhaço serão também considerados gestos como atos
simbólicos.
4 As fotografias analisadas foram publicadas por portais de notícia, jornais e revistas on-li-
ne entre os anos de 2006 e 2018.

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

imbricados, efeitos de protesto? O que nos permite tomar a


imagem 1, discursivamente, como uma cena prototípica?
Insisto em falar em “vestir a máscara de palhaço” e “bater
panela” como gestos do sujeito porque não há como ele não im-
plicar seu corpo em sua discursividade5, na composição material
que constitui a imagem 1. O corpo não é apenas um suporte para
os objetos (panela, nariz, camiseta, relógio, óculos, chapéu de
bobo etc.) constituintes da formulação visual insistentemente
ufanista. O corpo do sujeito é, ao mesmo tempo, o elemento
que articula e se dá à composição material com o panelaço e o
vestir um nariz vermelho.
Desde já, é indispensável dizer que as materialidades em
composição não se complementam, e sim, relacionam-se pela
contradição própria que as constitui.

Ou seja, a imbricação material se dá pela in-


completude constitutiva da linguagem, em
suas diferentes formas materiais. Na remis-
são de uma materialidade a outra, a não-sa-
turação funcionando na interpretação per-
mite que novos sentidos sejam reclamados,
num movimento de constante demanda
(Lagazzi, 2009, p. 68).

Logo, o desafio de Lagazzi (2012, p. 1) em seu investimento


nas análises desse tipo é o de “dar visibilidade à própria imbrica-
ção naquilo que a especifica materialmente, naquilo que a torna
uma composição” sem deixar de considerar as especificidades
de cada materialidade envolvida nesse jogo.
5 Trato de discursividade não somente “como inscrição de efeitos linguísticos materiais na
história” (Pêcheux, 2014b [1982], p. 66), mas também como a inscrição de efeitos não
linguísticos, como os dos gestos de fazer panelaço ou portar um nariz de palhaço.

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

1. Corpo, panela e nariz de palhaço

Repare na imagem 1. O brado que sai da boca do sujeito, seus


braços projetando a batucada para o alto. A postura do corpo
atualizando a memória de protestos anteriores, narrando a his-
tória de contestações que já ocorreram naquela avenida. Corpo
em movimento(s) ainda que tornado estático pela fotografia:
voz, suor, batuque que não cessam nunca. O corpo do sujeito
chamando a atenção, sendo o assunto em destaque daquela fo-
tografia, o ponto de interesse do fotógrafo, o corpo como foco:
nossa entrada na imagem, o lugar por onde ela nos cativa. Como
ele diz aquilo que diz? Que ouçamos e vejamos além do que
aquele sujeito tem a dizer! Escutemo-lo atentamente.
Ao bater panela, o barulho resultante ressoa como uma res-
posta do manifestante ao incômodo causado por determinado
problema. Apesar de considerado, atualmente (estamos em
2019!), um gesto típico das manifestações de sujeitos “orienta-
dos à direita” (ou socialmente designado “da direita”),6 é somen-
te “pondo em relação o dizer com sua exterioridade” (Orlandi,
2005, p. 30), ressaltando as condições de produção dos dis-
cursos, que se pode produzir gestos de leitura sobre quem bate
panela. Isso “requer que exponhamos a relação significado/ sig-
nificante às condições de produção, a exponhamos à história, na
sua contradição constitutiva” (Lagazzi, 2011, p. 402).
A análise (Osthues, 2018) que citei anteriormente toca esse
tema. Entre as 10 fotografias deslinearizadas, pude ver que, as-
sim como houve sujeitos entre os que demandavam o impea-
chment de Dilma Rousseff empunhando panelas, entre 2015 e
6 Dito conforme a evidência estabilizante de um espectro ideológico. Como se reconhece
em Análise de Discurso, frente à contradição constitutiva do sujeito e dos discursos, não
há exatamente essa fixidez ideológica.

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

2016, houve também sujeitos do Movimento dos Trabalhadores


Rurais Sem-Terra – MST, em 2006, requerendo atenção de re-
presentantes políticos na época. Sim, o panelaço tem servido a
diversos grupos sociais para chamarem a atenção para suas pau-
tas. Panelaço não foi só “coisa de coxinha”, como muitos querem
fazer-crer ultimamente.7
Já com um nariz de palhaço no rosto, o sujeito simboliza seu
incômodo atravessado por uma memória que se projeta em dis-
cursos do e sobre o palhaço: discursos da palhaçaria como prática
artística e discursos sobre a figura palhacesca. E que são, varia-
velmente, também afetados pelos primeiros. Explico: as discur-
sividades de sujeitos em protestos que têm a figura do palhaço
como um símbolo de sua indignação, denúncia, crítica etc. estão
perpassadas, de alguma forma, também pela inscrição de de-
terminadas práticas artísticas no campo da palhaçaria. Dito de
outro modo, enunciar algo como “me sinto um palhaço”, “não
me faça de palhaço”, “isso é uma palhaçada” ou vestir um nariz
vermelho são gestos constituídos, em sua espessura semântica,
de sentidos deslocados desde as práticas da própria palhaçaria
para as discursividades de insatisfação, crítica, confronto em ma-
nifestações de rua.
Na palhaçaria, há inúmeras cenas nas quais os atores que (se)
interpretam palhaços8 produzem o efeito de que alguém está
sendo ludibriado, enganado, trapaceado... compondo um jogo
cênico entre os papéis daquele que é o tolo e do que é o esper-
to. Papéis designados, pelos intérpretes e teóricos da palhaçaria,

7 Diferentemente do sujeito intérprete comum, minha atividade como analista de mate-


riais que apresentam a articulação panelaço e nariz de palhaço “é justamente não negar
o equívoco, mas considerá-lo em sua relação com a linguagem, não apagá-lo, mas tra-
balhá-lo” (Orlandi, 2007, p. 92).
8 “O ator tem que se interpretar no que está realizando e, ao mesmo tempo, interpretar
para. Ou seja: o ator se investe de sentidos de palhaço (no corpo) a fim de produzir efeitos
desses sentidos para seu espectador. A atuação sempre está investida na e de interpreta-
ção” (Osthues, 2017, p. 48).

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

como status alto/ status baixo ou branco/ augusto (e suas varia-


ções como o contra-augusto), podendo haver também a inversão
de quem ocupa dado papel no decorrer de uma narrativa cênica.
Para Bolognesi (2017, p. 96), “os palhaços e os clowns, em suas
diferentes formas, contemplam algumas das características do
trickster:9 no picadeiro circense, eles se enganam e são frequen-
temente enganados”. Ainda segundo o autor (2017, p. 99), citan-
do Bouissac (2015, p. 136), “os truques ardilosos dos palhaços
entre si e destes com o público ‘[...] colocam os seres humanos
frente a frente com a arbitrariedade de sua cultura e a fragilidade
de sua identidade’”. Então, dos discursos de palhaços (nos circos,
teatros, televisões, hospitais etc.) para os discursos sobre palha-
ços (nas ruas, nos lares, na internet, nos jornais etc.), chegamos
aos processos de identificação que envolvem os efeitos de sen-
tido de palhaço como sendo a (auto)designação daquele que foi
ludibriado/enganado/trapaceado, enfim, “feito de palhaço”, que
“se sente (como) um palhaço” ou que alerta para a decorrência
de uma “verdadeira palhaçada”.
Embora os processos de identificação do sujeito como pa-
lhaço na formação social brasileira tenham a dominância, nos
dias de hoje, da discursividade que mencionei acima, não po-
demos apagar os diversificados efeitos de sentido de palhaço
produzidos por sujeitos em outras posições, afetados por cer-
tos constituintes da memória da palhaçaria que não atualizam
somente a tolice, a enganação, a trapaça etc. numa situação de

9 Para fazer essa comparação, Bolognesi introduz o arquétipo da Sombra e o mito do


trickster (o trapaceiro) propostos por Carl Gustav Jung (1986, 2000): “O mito do trickster
é uma das personificações parciais desse arquétipo. Ele aponta para o herói embusteiro,
ardiloso, pregador de peças, o cômico trapaceiro, o desonesto etc. Ele é deus, homem e
animal; malandro, perverso, ingênuo, brincalhão, bobo, astuto, enfim, um herói negativo
que está presente em personagens e narrativas tanto do tempo presente como do
passado mítico” (Bolognesi, 2017, p. 95).

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

protesto.10 Há sujeitos que, vestidos com a pequena máscara


vermelha, produzem gestos cujos efeitos são os de assunção
da figura palhacesca como aquela dada a satirizar, ironizar, pa-
rodiar. São sujeitos em protesto nas ruas atualizando a memória
dos bobos e bufões medievais e renascentistas (Bakhtin, 1999;
Minois, 2003).
Bolognesi (2017, p. 98) destaca que os bobos, por exemplo,

usavam da liberdade em seu trabalho con-


ciliatório entre segmentos sociais distintos.
Eles flertavam satiricamente com autorida-
des, laicas ou eclesiásticas, apontando-lhes
os excessos e defeitos. Aproximavam-se da
plebe pela festa e pelo riso, especialmente
pelo processo de inversão dos valores reli-
giosos. Em suma, as ações desses cômicos
se regem pelo lema latino ridendo castigat
mores, o riso castiga os costumes. A comici-
dade aponta o erro, almejando sua correção.

Frequentemente, os sujeitos atravessados por essa memó-


ria são atores que apontam suas demandas por meio de ações
“artivistas” ou performances táticas (Bogad, 2016). São exemplos:
as aparições da Tropa de Nhoque no Brasil a partir de 2013;11 e
do grupo CIRCA (Clandestine Insurgent Rebel Clown Army) na

10 Acrescento que, a depender da formação social, o sujeito não se identifica com a/ na


posição de palhaço, mas designa o outro como tal. Nos Estados Unidos, por exemplo,
tenho notado, em minhas pesquisas, que é mais regular que os manifestantes designem
seu objeto de crítica como palhaço, exibindo cartazes com enunciados, desenhos ou
fotografias que atribuem o nariz de palhaço ou a palavra palhaço à pessoa criticada. O
presidente Donald Trump é, neste momento, o alvo mais notório.
11 Disponível em: <http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/?Noticia=502525>. Acesso
em: 17 de janeiro de 2019.

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

Dinamarca, no Reino Unido e nos Estados Unidos desde 2003.12


São sujeitos que, em nossos dias, portadores da pequena
máscara palhacesca que metonimiza a memória de uma prática
artística cujo imperativo é o riso, se autorizam a se significarem:
“somos palhaços, sim, e, como tais, viemos aqui protestar”.

2. Decalcar na memória discursiva, (re)traçar sentidos

Em meio ao arquivo de imagens com o qual venho lidando


na elaboração de minha tese,13 para minha surpresa, deparei-me
com a charge abaixo:

Imagem 2 – Charge do cartunista Vini.O, publicada em seu blog no


dia 23/02/201614

12 Disponível em: <https://beautifultrouble.org/case/clandestine-insurgent-rebel-clown-


-army>. Acesso em: 17 de janeiro de 2019.
13 Tenho me dedicado a compreender os diversificados efeitos de sentido do uso do nariz
de palhaço em manifestações de rua brasileiras ocorridas entre os anos de 2013 e 2016,
por meio de materiais fotográficos e audiovisuais que circularam nesse período.
14 Disponível em: <https://vinioliveiracharges.wordpress.com/2016/02/23/que-tal-bater-
-panela-tambem-para-as-panelas-vazias-das-escolas>. Acesso em: 12 de janeiro de
2019.

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

Um ano depois da ocorrência da manifestação retratada


pelo fotógrafo Paulo Whithaker, em 23 de março de 2016, o car-
tunista Vini.O (Vinícios Santos de Oliveira) publicou em seu blog
e nas suas redes sociais digitais essa charge (imagem 2). É ine-
gável sua força como uma paráfrase da imagem 1, levando-nos
a ver os sentidos da articulação entre corpo, panela e nariz de
palhaço se (re)delineando.

A memória discursiva preside a textualiza-


ção. Por isso afirmamos que o texto é uma
delimitação imaginária. Embora material-
mente configurado como unidade, o texto
não rompe com a memória discursiva, ele
apenas a recorta. Justamente por isso as re-
lações de sentido produzidas na textualiza-
ção são atualizações possíveis frente às con-
dições de produção, não estando definidas a
priori (Lagazzi, 2007, p. 2).

Nessa citação, Lagazzi nos lembra que não há um rompi-


mento do texto, daquilo que foi textualizado, com a memória
discursiva. É ela que rege a textualização de uma discursividade
em qualquer que seja a materialidade significante. É justamen-
te pelo não-rompimento com a memória discursiva, e sim no
seu recorte, que a imagem 2 se viabiliza como uma paráfrase
da imagem 1. A imagem 2 existe, textualizada do modo como
está, não somente porque a fotografia a precedeu. As relações
de sentido que podemos encontrar entre elas são possíveis tam-
bém porque, frente a determinadas condições de produção, o
que está textualizado na imagem 2 surge como atualização do
que está textualizado na imagem 1. O rompimento que ocorre,
efetivamente, é com o processo de produção de sentidos para a

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

articulação do corpo batendo panela e portando o nariz de pa-


lhaço que era dominante nas manifestações de rua entre 2015
e 2016.
Nessa perspectiva, Orlandi (2000, p. 20) coloca:

A criatividade instaura o diferente na lingua-


gem na medida em que o uso pode romper
com o processo de produção dominante de
sentidos e, na tensão da relação com o con-
texto histórico-social, pode criar novas for-
mas, novos sentidos. Pode realizar uma rup-
tura, um deslocamento em relação ao dizível.

Colocadas lado a lado, fica patente que a charge é mais que


um recorte na memória discursiva. Ela é um decalque da foto-
grafia, um decalque da cena prototípica que a fotografia exibe.
Conhecer o modo como o cartunista a realizou (vetorização e
posterior redesenho?) pouco importa para a análise que propo-
nho. O que me interessa é que, ao reformular a formulação vi-
sual da fotografia como uma charge, (re)traçando-a, o cartunista
produziu uma paráfrase reorientando os sentidos da articulação
corpo-panela-nariz de palhaço, permitindo um flagrante do
movimento entre formações discursivas.

171
O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

Quando me deparo com a charge, é inevitável trazer no-


vamente Orlandi (2007, p. 88) para compreendê-la: “o que
despossui o sujeito é o que ao mesmo tempo torna seu dizer
possível; é recorrendo ao já-dito que o sujeito ressignifica. E se
significa”. Com determinado dizer tornado possível, então, ve-
mos que os objetos que recobrem os corpos dos sujeitos e aqui-
lo que se apresenta em seus entornos, em ambas as imagens,
constituem sentidos distintos para tal articulação, que, fora a re-
gularidade da postura dos corpos dos sujeitos em questão, são
suas características proeminentes.
“É ao dar lugar à descrição pelo procedimento parafrástico
que a evidência de um sentido pode ser relativizada e o ana-
lista pode dar consequência ao movimento da interpretação
para compreendê-lo em seus pré-construídos”, destaca Lagazzi
(2015, p. 177-178). Por isso, inspirado pela prática analítica da
autora, darei “o primado ao gesto de descrever a estrutura bus-
cando fazer trabalhar a diferença no entremeio da composição
material” (Lagazzi, 2014c, p. 146). Tomarei, desse modo, as duas
imagens como objetos de análise, a fim de compreender o pro-
cesso discursivo que me permite considerá-las cenas prototípi-
cas frente ao funcionamento específico e distinto das duas for-
mulações visuais enquanto fotografia e charge, descrevendo as
regularidades e dessemelhanças que localizam os recortes feitos
na memória discursiva. Em particular, darei atenção em minha
análise ao efeito persistente da oposição vazio-preenchimento na
relação entre as duas imagens (na verdade, entre três imagens.
Apresentarei a terceira posteriormente).
Entretanto, não seguirei adiante sem antes me remeter,
brevemente, tal como fiz com a imagem 1, às condições de pro-
dução da charge. Em março de 2016, desenrolavam-se protes-
tos de estudantes, pais e funcionários de determinadas escolas

172
O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

estaduais paulistas motivados, especialmente, por dois fatos:


após a quebra de convênio entre secretarias de educação esta-
duais e municipais (pelo repasse insuficiente de verba para aqui-
sição de alimentos), houve a substituição de itens da merenda
escolar, como arroz, feijão e proteína animal por aquilo que ficou
conhecido como “merenda seca” (um kit com biscoitos ou bolos
e bebidas lácteas industrializadas);15 e as primeiras movimen-
tações da operação “Alba Branca”,16 promovida pela Polícia Civil
junto ao Ministério Público, que investigava fraudes na compra
de itens para a merenda de escolas estaduais no interior de São
Paulo.

3. Paráfrases plausíveis textualizando vazios

Lagazzi (2015, p. 188) nos ensina que “descrever as cenas


prototípicas em procedimentos parafrásticos que deem visibi-
lidade à diferença, à contradição, à resistência, pode contribuir
nos modos de escapar à previsibilidade do binarismo da opo-
sição”. O fato de Vini.O ter produzido a paráfrase materializada
em charge me inspira a pensar em muitas outras, num proce-
dimento parafrástico que proponho a partir de um “e se fosse
outra coisa” (no lugar do jovem estudante com uniforme e mochila
perguntando “Cadê a merenda?”), justamente para “tomar o exer-
cício parafrástico como modo de atualização do efeito metafóri-
co” (Lagazzi, 2014c, p. 145).
Então, vamos à proposição de outras paráfrases a fim de
ampliar as possibilidades para além da formulação visual da
charge:
15 Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2016/02/alunos-da-
-rede-publica-recebem-leite-e-biscoito-ao-inves-de-merenda-escolar.html>. Acesso
em: 12 de janeiro de 2019.
16 Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/5529363/>. Acesso em: 12 de janeiro de
2019.

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

a) E se fosse um homem de camiseta e boné


vermelhos, com uma bandeira também ver-
melha ao fundo, na qual fosse possível identi-
ficar a sigla CUT, exclamando “Exploração não
tem perdão”?
b) E se fosse uma mulher negra de cabelos
curtos, usando vestido azul e dizendo “Racismo
não”?
c) E se fosse um homem de jaleco branco gri-
tando “Dilma, vá tratar seu câncer em Cuba”?
d) E se fosse uma mulher idosa vestida com
uma blusa florida e longos cabelos soltos bra-
dando “Quero meu filho de volta”?
e) E se fosse uma mulher trans com os seios à
mostra e uma mordaça na boca?
...

Sabendo que “é fundamental substituirmos as perguntas


informativas por perguntas que tentem compreender as con-
dições pelas quais determinada interpretação se faz possível e
natural” (Lagazzi, 2007, p. 2), proponho algumas questões. Na
composição com o panelaço e o nariz vermelho, esses outros
elementos citados acima também fariam a cena prototípica
possibilitada pela articulação ser textualizada como protesto?
Quais condições de produção permitiriam que essa articulação
textualizasse o protesto nas paráfrases imaginadas? Em quais
condições de produção os sentidos de panelaço e de palhaço,
concomitante ou isoladamente, poderiam estar interditados?
Se “os sentidos têm que ser buscados na composição entre
as imagens e as palavras” (Lagazzi, 2009, p. 76), o que dizer do

174
O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

funcionamento dos enunciados na composição material com o


desenho? Vemos que “Cadê a merenda?” se relaciona com um
sujeito diferente daquele que demanda o impeachment de uma
presidenta (ou mesmo, com o que diz “quero meu filho de vol-
ta” ou “exploração não tem perdão” etc.). O enunciado em com-
posição com a formulação visual da charge ressignifica a panela
como objeto de cozinha, segundo os efeitos de pré-construído
do utensílio e do lugar onde se produz alimento. Assim como o
uniforme e a mochila também delimitam a significação da panela
relacionando-a ao ambiente escolar, no qual o vazio questiona-
do (“Cadê...?”) é a determinação do real dadas as contingências
dos alunos da rede de ensino estadual de São Paulo (a substitui-
ção de itens na alimentação dos estudantes e/ou a investigação
sobre as fraudes na aquisição deles). Já a camiseta que mimetiza
o uniforme da seleção brasileira de futebol, o chapéu de bobo da
corte e a bandeira nacional ao fundo na imagem 1 dizem de uma
demanda outra, uma demanda que também reclama um vazio
(ainda) a se afuturar: “fora, Dilma!” Um “cai fora” para que um
futuro vazio seja preenchido.
O oco da panela preenchido por um batuque que alerta
para dois vazios. Um exige o vazio futuro de (não mais ter) Dilma
Rousseff como presidenta; o outro denuncia o vazio presente,
da merenda escolar que não há ou que tem sido objeto de frau-
de. No jogo entre o mesmo e o diferente, a construção da charge
como paráfrase da fotografia apresenta dois vazios reclamados
por sujeitos de um social dividido, sujeitos que se simbolizam
no espaço político, atravessados pela história e pela contradição.
Significando-se, assim, descontentes diferentemente, por meio
de uma análoga articulação entre os mesmos objetos simbóli-
cos: panelaço e nariz de palhaço. Embora a articulação seja entre
objetos iguais (o mesmo), em cada uma das imagens, a articula-
ção é significada diversamente, justo porque outros objetos que

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

constituem as formulações visuais intradiscursivas se imbricam


a ela, permitindo a especificação, conforme dito, das formações
discursivas17 e das posições de sujeito implicadas na fotografia
ou na charge.

4. Que panelaço (não) é palhaçada?

Mesmo não estando presente na charge em si, como um


gesto de leitura final que apresento neste trabalho, quero levar
em consideração a pergunta que intitulava a postagem da charge
no blog de Vini.O e relacioná-la a outra formulação alhures: “Que
tal bater panela também para as panelas vazias das escolas?”
Essa pergunta é um enunciado que se compõe com a charge,
aparentando um esforço (ilusório) do cartunista em reger as in-
terpretações. A composição é uma referência às manifestações
pelo impeachment da então presidenta que também acontece-
ram no mesmo mês de publicação da charge. Em 13 de março
de 2016, dez dias antes de Vini.O disponibilizá-la na internet,
houve aquele ato midiatizado como “o maior protesto nacional
contra o governo Dilma”.18 E nesse ato, panelas e narizes verme-
lhos também marcaram presença.19 Assim como também, não
muito distante no tempo, no desfile da escola de samba cario-
ca São Clemente, a ala “Panelaço” rememorava os atos contra o
governo em 9 de fevereiro daquele ano.20 Rememoração com

17 “A formação discursiva é, enfim, o lugar da constituição do sentido e da identificação do


sujeito. É nela que todo sujeito se reconhece (em sua relação consigo mesmo e com os
outros sujeitos)” (Orlandi, 2000, p. 58).
18 Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/03/manifestacoes-contra-
-governo-dilma-ocorrem-pelo-pais.html>. Acesso em: 14 de janeiro de 2019.
19 Disponível em: <https://www.jornalnh.com.br/_conteudo/2016/03/multimidia/fotos/
292895-brasileiros-vao-as-ruas-neste-domingo-veja-como-e-a-manha-de-protes-
tos.html>. Acesso em: 14 de janeiro de 2019.
20 Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,escola-do-rio-vai-retratar-
-historia-do-palhaco-e-promover-panelaco-na-sapucai,10000006512>. Acesso em:
14 de janeiro de 2019.

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

efeitos de homenagem aos manifestantes que, no ano anterior,


bateram panela contra a presidenta Dilma Rousseff e a corrup-
ção. “Eu não bati panela (...). Mas bateria com certeza” disse ao
jornal Estadão21 Rosa Guimarães, a carnavalesca que orquestrou
o desfile daquele ano.
O enunciado “que tal bater panela também para as panelas
vazias das escolas?” na composição com uma charge formulada
a partir da articulação entre um panelaço e o uso do nariz de pa-
lhaço pode muito bem ser parafraseado por “panelaço de quem
tem panela cheia é palhaçada”, conforme formulação escrita no
cartaz presente na fotografia abaixo.

Imagem 3 – Ato em defesa da Petrobrás e da presidente Dilma Rousseff


em frente à Câmara dos Vereadores de Recife (PE), em 13/03/201522

21 Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,escola-do-rio-vai-retratar-


-historia-do-palhaco-e-promover-panelaco-na-sapucai,10000006512>. Acesso em:
18 de janeiro de 2019.
22 Foto de Thiago Neuschwander (DP/D.A/Press), publicada no jornal Diário de
Pernambuco. Disponível em: <http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/po-
litica/2015/03/13/interna_politica,565970/em-ato-em-defesa-da-petrobras-manifes-
tantes-ironizam-panelaco-e-dizem-nao-ao-golpe-no-13-de-maio.shtml>. Acesso em:
12 de janeiro de 2019.

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

Essa fotografia (imagem 3) foi feita, em Recife, dois dias


antes daquela que aqui chamamos de imagem 1. Já mobilizado
pela memória dos panelaços realizados pela “elite odiosa”, que
não aceitava o “projeto popular vencedor” da presidenta reeleita
em 2014 (vide cartaz na porção superior da imagem 3), o sujeito
diz que “é palhaçada” o gesto de bater panela de quem não tem
panela vazia. Chamar de “palhaçada” o panelaço do outro contra
o qual se interpõe para deslegitimar seu gesto é uma estratégia
similar à do cartunista que ironiza o sujeito da imagem 1 ao de-
calcá-la e produzir uma charge parafrástica a partir dela.

Panelaço de quem tem panela cheia é...


... Farsa? Trapaça? Impostura? Brincadeira? Deboche? Zombaria?
Estupidez? Uma cena ridícula?

Como “palhaçada” está sendo significada no cartaz da ima-


gem 3? O que nos permite ver uma palavra tomada pela outra?
Se trocarmos por alguma das palavras sugeridas acima, o efeito
metafórico nos possibilita ver que “palhaçada” está textualizada
pejorativamente. Ao enunciar que há um tipo de panelaço – o de
quem tem panela cheia – que não se deve “levar a sério”, o sujeito
também está significando que há outros panelaços que não são
“palhaçadas”. Quais panelaços seriam “legítimos” então? Se vol-
tarmos à formulação visual intradiscursiva da imagem 2 na com-
posição com o título da postagem do cartunista em seu blog, o
panelaço de quem tem panela vazia poderia ser uma resposta (?)
a essa questão.

5. Considerações finais

Na Análise de Discurso de orientação materialista, assumi-


mos que é na relação entre língua e história que o discurso se

178
O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

constitui. A importante contribuição que Lagazzi traz para nosso


campo, na faina de compreender as materialidades significan-
tes várias (verbal, visual, vocal, corporal etc.) e sua composição
material, nos faz ir além disso; faz-nos reputar “o sentido como
efeito de um trabalho simbólico sobre a cadeia significante, na
história” (Lagazzi, 2011, p. 401). Sendo essencial, para isso, “com-
preender a produção do sentido acontecendo sobre uma base
material sempre em condições que determinam essa produção”
(Lagazzi, 2011, p. 402).
Feito o trabalho de deslinearização das imagens apresenta-
das aqui (imagens 1, 2 e, como complemento, a 3), descreven-
do as montagens discursivas, conforme Pêcheux (2002, p. 57),
foi possível “detectar os momentos de interpretações enquanto
atos que surgem como tomadas de posição, reconhecidas como
tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos e não nega-
dos”. Tal como as palavras, que mudam de sentido “segundo as
posições sustentadas por aqueles que as empregam” e “ao pas-
sarem de uma formação discursiva para outra” (Pêcheux, 2011,
p. 73), em relação às imagens em questão, os objetos e gestos
dos sujeitos têm um funcionamento análogo. Para isso, claro, é
preciso ter em conta as diferenças materiais de cada um deles.
De minha parte, filiado à teoria pecheutiana, não venho me ocu-
pando apenas com a compreensão da natureza desses elemen-
tos que se apresentam nas imagens (imbricados a palavras, no
caso da charge), mas, sobretudo, com a da composição em que
eles se articulam.
E foi assim que, ao longo deste texto, vimos que, ainda que
a articulação entre corpo, panela e nariz vermelho estivesse pre-
sente nas imagens 1 e 2 funcionando como uma cena prototípica
do sujeito em protesto carnavalizando o político (Osthues, 2018),
ela é significada diferentemente de acordo com as posições de

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

sujeito ocupadas face a determinadas condições de produção


(manifestações pró-impeachment/ anticorrupção; substituições/
fraude na merenda escolar paulista). E isso nos permitiu flagrar a
mudança de sentido do panelaço, do nariz vermelho e do corpo
em composição material ao passarem de uma formação discur-
siva para outra.
Vimos, também, que não há um fechamento possível, um
só efeito de sentido para a imbricação corpo-panela-nariz de
palhaço. O jogo da interpretação, segundo Lagazzi, só é permi-
tido pela não saturação e o desajuste constitutivo do encontro
de especificidades materiais distintas. Como se sabe, em com-
posição, uma materialidade está em constante remissão à outra.
Nos materiais analisados neste artigo, assim como em tantos
outros, “os discursos se entrecruzam, se esbarram e as formu-
lações se abrem em possibilidades de rearranjos significativos”
(Lagazzi, 2008, p. 2), trazendo sempre novos sentidos (e efei-
tos) para composições materiais como a do panelaço com o na-
riz vermelho.
A charge que parafraseia (e decalca) a fotografia mostra que
“a contradição entendida como impossibilidade de síntese na
interpretação” (Lagazzi, 2017, p. 35) teve espaço nos materiais
analisados uma vez que suas relações de estruturação permiti-
ram reestruturações (corpo-panela-nariz de palhaço com chapéu
de bobo, camiseta que remete ao uniforme da seleção brasileira
de futebol, bandeira nacional etc. >>> corpo-panela-nariz de pa-
lhaço com mochila, uniforme escolar, “cadê a merenda?” etc.) e
suas relações simbólicas possibilitaram as derivas de sentidos.
(Re)estruturações significando ou a demanda de um vazio pre-
sidencial ou a denúncia do vazio da merenda escolar. (Re)estru-
turações textualizando vazios, fazendo as imagens desdobra-
das de um sujeito palhaço-paneleiro em protesto produzirem

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME I

efeitos de demanda/ denúncia ao circularem materialmente nos


suportes em que outros sujeitos, nas posições de fotógrafo e de
cartunista, também se discursivizaram.

Referências

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Você também pode gostar