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ANA CAROLINA NUNES DA CUNHA VILELA-ARDENGHI

“MINHA TERRA TEM PALMEIRAS…”: ASPECTOS DISCURSIVOS DA CONSTRUÇÃO


DE UM ESPAÇO “TIPICAMENTE” BRASILEIRO

CAMPINAS,
2014
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

ANA CAROLINA NUNES DA CUNHA VILELA-ARDENGHI

“MINHA TERRA TEM PALMEIRAS…”: ASPECTOS DISCURSIVOS DA CONSTRUÇÃO


DE UM ESPAÇO “TIPICAMENTE” BRASILEIRO

Tese de doutorado apresentada ao


Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Campinas para
obtenção do título de Doutora em
Linguística.

Orientador: Prof. Dr. Sírio Possenti

CAMPINAS,
2014
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RESUMO

A partir do modo de circulação da cristalização do que chamamos aqui de espaço nacional, este trabalho
debruçou-se sobre o estudo dos estereótipos, assumidos não como algo “engessante” ou redutor, mas
como uma regularização, efeito de retomadas, paráfrases e repetições que levam ao “esquecimento” da
origem enunciativa. Entendemos o espaço nacional como uma paisagem “típica” associada a um país, ou,
em outros termos, aquilo que é tomado como sendo a melhor representação do espaço físico desse país.
No caso brasileiro, historicamente, a imagem construída é a do próprio “paraíso terreal” e ela tem
particular importância na medida em que, como aponta Chauí (2006), funciona como um “mito fundador”,
uma narrativa que não cessa de ser retomada e que impõe um vínculo interno com um passado de origem
que, paradoxalmente, nunca cessa de existir, mantendo-se sempre perene. O corpus reunido para esta
pesquisa – proveniente do turismo e da moda – atesta essa perenidade. Para analisá-lo, mobilizamos, de
início, o conceito de pré-construído que, conforme sugerem Amossy & Pierrot (2005), é um aporte teórico
importante – e talvez insuficientemente explorado – para o estudo dos estereótipos do interior do quadro
teórico-metodológico da Análise do Discurso (AD). Embora tenha, de fato, mostrado ser um conceito
relevante para a apreensão do modo de funcionamento dos estereótipos, os dados provam também que não
pode haver uma relação direta – ou exclusiva – entre estereótipos e pré-construídos. Para além destes, os
estereótipos relacionam-se, como mostram as análises do corpus, a simulacros e cenas validadas
(Maingueneau, 2002). Do ponto de vista metodológico, a apreensão do corpus reunido suscitou um
conjunto de reflexões em torno da proposta de Maingueneau (2006) para a noção de formação discursiva
enquanto uma unidade não tópica de análise.

Palavras-chave: Estereótipo; Pré-construído; Simulacro; Cena validada; Unidade não tópica de análise

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ABSTRACT

From the circulation mode of crystallization of what we here call a national space, this work focused on
the study of stereotypes, undertaken not as something “limiting” or as a reducer, but as a regularization,
due to retakes, paraphrases and repetitions that lead to “oblivion” of the original enunciation. We
understand the national space as a “typical” landscape associated with a country, or, in other terms, that
which is taken as being the best representation of the physical space of this country. In the Brazilian case,
historically, the image is built from the “earthly paradise” and it is of particular importance to the extent
that, as observed by Chauí (2006), works as a “founding myth”, a narrative that does not cease to be
retaken and imposing an internal link with a past of origin which, paradoxically, never ceases to exist,
remaining perennial. The corpus assembled for this study – from tourism and fashion – testifies this
perpetuity. To analyze it, we mobilized, at first, the concept of pre-construed, that, as suggested by
Amossy & Pierrot (2005), is an important theoretical contribution – and perhaps insufficiently explored –
for the study of stereotypes within the theoretical methodological framework of Discourse Analysis (DA).
Although, in fact, shown to be a relevant concept for the apprehension of the mode of operation of the
stereotypes, the data prove also that there cannot be a direct – or exclusive – relationship between
stereotypes and the pre-construed. In addition to these, stereotypes relate, as shown by the analysis of the
corpus, the simulacra and validated scenes (Maingueneau, 2002). From the methodological point of view,
the gathering of the corpus brought about a set of reflections around the proposition of Maingueneau
(2006) for the notion of the discursive formation as a non topic analysis unit.

Keywords: Stereotype; Pre construed; Simulacra; Validated Scene; Non topic analysis unit

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SUMÁRIO

CAPÍTULO 1 – (Des)Caminhos..................................................................................................................... 01
1. Palavras iniciais..................................................................................................................................... 02
2. Entre pedras... ....................................................................................................................................... 03
2.1 A noção de fórmula: reformulações para a pesquisa?........................................................................ 08
3. O corpus: uma questão de teoria e de método....................................................................................... 17
3.1 Unidades tópicas e não tópicas de análise......................................................................................... 19
3.1.1 As unidades não tópicas: delimitações...................................................................................... 23
3.2 “Ajuntando” as pedras... ................................................................................................................... 40

CAPÍTULO 2 – A “invenção” do Brasil.......................................................................................................... 47


1. Palavras iniciais..................................................................................................................................... 48
2. No princípio era... o paraíso................................................................................................................... 50
3. Moda e turismo: atualizações da “invenção”......................................................................................... 62

CAPÍTULO 3 – Terra brasilis......................................................................................................................... 73


1. Palavras iniciais..................................................................................................................................... 74
2. O corpus: primeiros contatos................................................................................................................. 75
2.1 Férias com ciência............................................................................................................................. 79
3. Pré-construído: testando a produtividade da noção para o estudo dos estereótipos................................ 89
3.1 “Muito mais que sol e praia”: estereótipo e deslocamento................................................................ 93
4. Considerações finais............................................................................................................................ 116

CAPÍTULO 4 – Moda brasilis...................................................................................................................... 119


1. Palavras iniciais................................................................................................................................... 120
2. “Mas aqui é aqui mesmo?”: moda, identidade e espaço nacional........................................................ 122
2.1 Simulacro e moda: implicações para a noção de estereótipo........................................................... 127
2.2 Brasil-paisagem: reflexos na moda................................................................................................. 133
3. O Brasil em cena................................................................................................................................. 140
3.1 Moramos num país tropical: mesmo?.............................................................................................. 157
4. Considerações finais............................................................................................................................ 169

xi
CAPÍTULO 5 – Costurando paisagens: diálogos entre moda e turismo........................................................ 173
1. Palavras iniciais................................................................................................................................... 174
2. Turismo e moda: aproximações........................................................................................................... 175
3. E agora, José?...................................................................................................................................... 189
3.1 Formação discursiva unifocal.......................................................................................................... 191
3.2 Formação discursiva plurifocal....................................................................................................... 193
4. Considerações finais............................................................................................................................ 196

CONCLUSÕES.................................................................................................................................................199
1. O que foi... .......................................................................................................................................... 200
2. O que poderá vir a ser... ...................................................................................................................... 206

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................................................................213

ANEXOS........................................................................................................................................................221

xii
À Daniela e ao Ricardo,
Que fazem tudo valer a pena...
xiii
xiv
AGRADECIMENTOS

nada tão comum


que não possa chamá-lo
meu

nada tão meu


que não possa dizê-lo
nosso

nada tão mole


que não possa dizê-lo
osso

nada tão duro


que não possa dizer
posso
(Paulo Leminski)

A Deus, em primeiro lugar. Companheiro de todas as horas e que me faz dizer “posso!”.

Ao Ricardo, meu primeiro leitor e meu grande incentivador.

Aos meus pais, Ana Lúcia e Raimundo, pelo apoio e amor incondicional que me devotam e que tento
replicar.

Ao meu irmão, Roberto, que me “abrigou” no seu apartamento durante o período em que cursei as
disciplinas do doutorado e que, depois, acompanhou de longe – embora parecesse sempre perto –, dando
força e “assistência técnica” nos momentos necessários.

À vovó Laura, que mesmo diante das provações que a vida lhe apresentou ao longo desses anos,
permaneceu forte – muitas vezes bem mais que eu – e, em suas orações, inclui sempre a mim e minha
família.

Aos meus sogros, Ari e Adélia, e ao meu cunhado, Rodrigo, pelo interesse e apoio proporcionados.

À madrinha Noyde e à vó Lia, exemplos de força, superação e destemor que carrego comigo.

À Janice, pelo cuidado e amor com a Daniela nos momentos de minha ausência.

Aos amigos, que por serem tantos não caberão nominalmente aqui, mas que sabem a importância que têm,
tanto nas conversas sérias e mesmo teóricas quanto nas horas de distração.
xv
À Juliana Sabatin, por me ceder gentilmente seus dados para o trabalho de qualificação de área e por ser
mais que amiga em todos os momentos.

À Sonia Cyrino, cuja leitura criteriosa dá a certeza de que a aprovação é fruto de um trabalho bem feito.
As aulas de sintaxe foram uma experiência fascinante e, não fosse a vocação para a AD, teriam certamente
feito mais uma sintaticista.

À Fernanda e à Suzy que, na qualificação, fizeram uma leitura fina do trabalho, apontando com precisão
os pontos a serem aprofundados, as possibilidades e as potencialidades.

Aos membros da banca, Fernanda, Suzy, mais uma vez, e também Sonia, Júlia, Carolina, Eduardo e Jorge
– escolhidos cuidadosamente – por terem aceitado o convite e, certamente, poderem contribuir com suas
leituras.

Aos colegas do FEsTA (Fórmulas e Estereótipos: Teoria e Análise), pelas trocas constantes, nos encontros
presenciais e no grupo de e-mails.

À CAPES, pelo apoio financeiro.

Aos colegas da UFMS, pela torcida e, especialmente, ao Geraldo – amigo e colega de sala que com suas
palavras amigas e sua família encantadora (Edvânia e Emanuel) tornam a jornada mais aprazível – e ao
Daniel, cuja “ínfima”, como ele insiste, contribuição veio em momento decisivo.

Aos meus alunos e alunas, que me fazem querer voltar logo para a sala de aula.

A Deus, novamente. Porque nunca é demais agradecê-lo.

xvi
AGRADECIMENTO ESPECIAL

Ao Sírio.

Sei que corro riscos ao reservar este lugar especial pra você, mas vou corrê-los porque você fez jus a ele...
Pela orientação certeira de quem sabe que Os limites do discurso precisam ser postos à prova
constantemente para que a teoria possa caminhar.
Pelas correções pontuais das questões de língua e de discurso, quase sempre com humor, mostrando que,
de fato, Humor, língua e discurso são velhos conhecidos seus.
Pela propriedade com que apresenta diversas Questões para analistas do discurso e incita-nos a enfatizar
mais “análise” que “discurso”.
Pela maneira como leva às últimas consequências o poema-pílula de Oswald de Andrade (amor/ humor) e
revela, através d’Os humores da língua, o amor por essas Mal comportadas línguas.
Pela aparente contradição entre o desejo de colocar a Língua na mídia sem querer que os holofotes te
alcancem.
E – como se não bastasse tudo isso – pela pessoa íntegra, correta, serena, atenciosa e amiga que me
acompanhou em todos os momentos (principalmente nos mais difíceis) dessa jornada. A convivência ao
longo desses anos mostra que nem tudo se resume a Questões de linguagem e, por isso, sua amizade é
também algo que levo para o resto do caminho.
Obrigada! Por tudo...

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nada foi
feito o sonhado
mas foi bem-vindo
feito tudo
fosse lindo
(Paulo Leminski)
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Capítulo 1 – (Des)Caminhos

1
Tinha uma pedra no meio do caminho
(Carlos Drummond de Andrade)

Ajuntei todas as pedras


que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos
(Cora Coralina)

1. Palavras iniciais

Os trabalhos acadêmicos – como as teses, por exemplo – têm, em geral, uma rotina

bastante fixa na qual a introdução tem um “lugar cativo”. Maingueneau (2002; 2006; 2008) diria,

a partir de sua forma de conceber um texto como o entrelaçamento de cenas enunciativas, que

2
este seria um gênero que não permitiria a instauração de cenografias muito variadas. Nesse caso,

é preciso fazer uma advertência ao leitor: não faremos aqui uma introdução “típica”; optamos por

explicitar com um pouco mais de detalhe os caminhos trilhados ao longo da pesquisa. Essa

decisão, por si só, não excluiria a presença da “introdução”, é fato; no entanto, poucas páginas –

sucintas – provaram ser, para nós, tarefa das mais ingratas, uma pedra no meio do caminho.

No percurso da realização de uma pesquisa, muitas decisões são tomadas e muitas

opções se impõem diante do tema eleito. Ao final, corre-se o risco de ver esse percurso – muito

ou pouco – apagado, de modo que a tese apresenta-se como que “higienizada”, i.e., sem as

angústias que marcaram o caminho do pesquisador. E em nosso caso foram muitas: mudança de

hipótese1, novos rumos na construção do corpus2 e, principalmente, impasses sobre a melhor

maneira de apreendê-lo3. Este capítulo pretende, portanto, explicitar minimamente as trilhas

percorridas e, eventualmente, deixar aparentes as nossas “angústias” ao longo da realização da

pesquisa; trata-se, assim, de mais uma opção feita: a de não “varrer para debaixo do tapete” os

“pedaços” (quase digo “cacos”) que, um a um, construíram a tese que ora apresentamos.

Diríamos, então, que Drummond teve mais sorte: ele encontrou uma pedra em seu caminho...

2. Entre pedras...

“Entre pedras cresceu minha poesia”, escreve Cora Coralina; também entre elas este

trabalho se fez. Diante de um já antigo interesse por questões referentes às representações do

Brasil nos mais diversos campos, seria preciso eleger uma temática. Num cenário até certo ponto

1
Cf. item 2 deste capítulo.
2
Cf. itens 2.1 e 3 também deste capítulo.
3
Cf. itens 3.1 e 3.2 adiante.
3
inusitado, uma declaração do presidente da FIFA sobre a escolha do Brasil para sede da Copa de

2014 – citada mais adiante – funciona como “pontapé inicial” para a problemática que

apresentaremos aqui, a saber: a representação de um Brasil “genuíno” no que diz respeito ao seu

espaço.

Alguns diriam que estaríamos diante de uma problemática identitária que, nos últimos

anos, perpassa os mais variados campos de estudo – deixando de ser um tema de preferência dos

sociólogos, por exemplo –, pois, como observa Bauman (2005, p. 22-23), “a ‘identidade’ é o

‘papo do momento’, um assunto de extrema importância e em evidência”. Assim, se é verdade

que ela tem cada vez mais “vazado”4 para outros campos, uma consequência disso é que esses

debates permeiem também a linguística. Há aí, porém, um grande risco: o de tudo tratar como

estando – ao fim e ao cabo – atrelado ao debate identitário.

Por cautela, procuramos, num primeiro momento, não entrar no mérito da questão –

isto é, não decidir se se tratava ou não de uma pesquisa sobre identidade; o objetivo era, assim, a

partir do arcabouço teórico da Análise do Discurso francesa, analisar e descrever o

funcionamento de certos discursos acerca de um espaço nacional, ou, como querem alguns

autores (LÖFGREN, 2000, por exemplo), de uma paisagem nacional típica do Brasil; trata-se,

em última análise, daquilo que é tomado como sendo a melhor representação do espaço físico

de um país.

Voltemos, então, ao início. No dia 30 de outubro de 2007, quando do anúncio da sede

da Copa de 2014, entre comemorações e declarações, uma frase chama a atenção; Joseph Blatter,

presidente da FIFA, declara-se “impressionado” com a proposta de uma “copa ecológica” que,

4
E isso ocorre há tempos, como se pode facilmente comprovar pela publicação resultante do encontro organizado em
Paris, na década de 1970, por Lévi-Strauss e Benoist e que intitulou-se L’identité. O encontro reuniu profissionais
das mais diversas áreas para discutir o tema: biólogos, antropólogos, linguistas, psicanalistas, sociólogos e filósofos.
4
segundo ele, só poderia ter sido feita pelo Brasil. A declaração de Blatter parece indiciar aspecto

fortemente relacionado a uma representação do Brasil, especialmente no que diz respeito ao seu

espaço: só o Brasil poderia falar em uma “copa ecológica” porque o Brasil seria, em tese, o lugar

das “belezas naturais”. Seguindo esse raciocínio, o Brasil não poderia, por outro lado, propor uma

“copa tecnológica”, por exemplo – o que ficaria a cargo dos alemães ou dos japoneses? Esse tipo

de afirmação traz à baila uma memória, evocando um conjunto de cristalizações.

Holanda ([1959]2010), a esse respeito, observa que, olhando para a história da

América do Sul, é possível destacar uma “senha” para o entendimento de vários aspectos da

civilização latina, a saber: o motivo edênico. No caso do Brasil, o autor aponta que os motivos

edênicos explicam muitos dos aspectos da “formação nacional” ainda atuantes nos dias de hoje.

Essa visão será compartilhada por Chauí (2006) por meio da proposta de um mito fundador: uma

espécie de narrativa da nação que tem um efeito de perenidade, na medida em que é

constantemente objeto de reinvestimentos, sob múltiplas formas. Na construção desse mito,

Chauí aponta que a natureza ocupa lugar privilegiado – no caso do Brasil – como obra de Deus5.

Também a figura a seguir – que circulou na internet recentemente – pode ser tomada

como exemplo da materialização desse discurso. Nela é possível encontrar as imagens

representativas do mundo como o conhecemos – muitos estereótipos e simulacros, é verdade. Ao

que interessa mais de perto aqui: o Brasil toma quase toda a América do Sul, representado por

três símbolos: o café, o futebol e uma arara. A recorrência à fauna e à flora (metonimicamente

representada nesse mapa pela figura da arara) é bastante característica na representação

(estereotipada) do espaço nacional brasileiro – o “paraíso terreal” 6. De uma perspectiva

discursiva, é preciso considerar de que modo tais estereótipos são mobilizados pelos discursos –

5
Essa questão será aprofundada no capítulo seguinte.
6
Vide capítulo 2 desta tese.
5
em nosso caso, nos discursos que contribuem para a construção/legitimação desse espaço

nacional.

A partir do interesse por analisar o funcionamento desses discursos, a hipótese de

partida era, então, a de que a emergência de um “discurso ecológico” seria a principal forma de

validação desse espaço: chama a atenção a busca de uma construção de um espaço

“genuinamente” nacional apoiada sobre certos traços “ecológicos”7, especialmente voltados para

a valorização das belezas naturais do Brasil – tanto as mais “intocadas” como também as

“recuperadas”.

7
Embora seja preciso reconhecer uma distância entre “ecologia” e “natureza”, no sentido de que um discurso
ecológico não é o mesmo que um discurso de exaltação da natureza, a ideia de uma “Copa Ecológica” –
especialmente se considerarmos a declaração de Blatter – parece “suturar” esse distanciamento. Assim, quando
falarmos aqui em “discurso ecológico”, é pensando nessa “sutura”, até porque, como se verá adiante, esse caminho
investigativo não prosperará na construção do corpus.
6
Inicialmente, acreditava-se que, após o anúncio do Brasil como sede da Copa de 2014

– mais de sessenta anos depois de sediar o mundial pela primeira vez —, haveria um

investimento alto em torno da tão falada “Copa Ecológica” proposta na candidatura brasileira e

que, em assim sendo, o cenário esportivo seria um lugar interessante para observar e analisar o

funcionamento desses discursos de construção/legitimação do espaço nacional. No entanto, a

ideia de “Copa ecológica” foi perdendo força e não mais se referiu ao evento daquela maneira: a

última vez que, no corpus coletado, encontramos alguma referência ao aspecto ecológico como

sendo um traço característico do evento é em texto do governador do Amazonas, Eduardo Braga,

que integra uma série de informes publicitários das cidades então candidatas à sede da Copa,

publicados na revista Istoé, em 18 mar. 2009. Nesse texto, escreve Eduardo Braga: “Mas seria

também, e acima de tudo, a Copa da Preservação Ambiental, no país que possui um grande

patrimônio a serviço da humanidade: a Amazônia”. A ideia de “Copa Ecológica” ficaria, então,

apenas como uma promessa de campanha...

Uma possível explicação para isso talvez seja o fato de que as cidades-sede

escolhidas para a competição não tenham investido no aspecto ecológico ou por não ser esse um

ponto muito forte (como é o caso de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, para ficar em

poucos exemplos) ou porque, ao contrário, a natureza é um aspecto “cristalizado” a tal ponto que

a referência a ela é “desnecessária” (pensando, por exemplo, nas sedes da Amazônia).

E, até certo ponto, essa explicação estava certa. O que o acontecimento em pauta

evidenciava era, na verdade, o funcionamento de uma fórmula, como mostra pesquisa de Krieg-

Planque (2010b), sobre a qual falaremos no próximo tópico: assumindo “desenvolvimento

sustentável” como fórmula, a autora irá observar, por exemplo, que a questão “ecológica” torna-

se um ponto de passagem obrigatório dos diversos discursos que circulam na sociedade.

7
2.1 A noção de fórmula: reformulações para a pesquisa?

Pensando em algumas categorias em Análise do Discurso para a constituição de

corpora, Maingueneau (2006) propõe que as unidades a partir das quais os analistas do discurso

operam podem ser de dois tipos, a saber: tópicas e não tópicas. Oportunamente trataremos em

mais detalhes dessa proposta do autor. Por ora, interessa dizer que, dentre as chamadas unidades

não tópicas – isto é, unidades cuja constituição não é resultante de espaços pré-delineados, seja

pelas práticas verbais seja por categorias não discursivas (comunicacionais, funcionais ou

linguísticas, segundo o autor) – Maingueneau (2006) inclui o que chama de percursos. Esse novo

conceito decorre do fato de que

pratica-se também em análise do discurso o estabelecimento em rede de unidades de


diversas ordens (lexicais, proposicionais, fragmentos de textos) extraídas do
interdiscurso, sem procurar construir espaços de coerências, constituir totalidades. O
pesquisador pretende, ao contrário, desestruturar as unidades instituídas definindo
percursos inesperados: a interpretação apoia-se, assim, sob (sic) a atualização de relações
insuspeitas no interior do interdiscurso. (MAINGUENEAU, 2006, p. 21).

Um dos trabalhos a que o autor se refere como sendo exemplo de percurso é a

pesquisa realizada por Krieg-Planque (1996) que tem na fórmula “purificação étnica” a entrada

do corpus. Operar com uma categoria como a de fórmula é, assim, uma maneira de transgredir as

fronteiras postas pelos discursos e por seus produtores para tornar visíveis a retomada, a

reformulação, a regularidade, a circulação etc. (KRIEG-PLANQUE, 2010b).

De acordo com Krieg-Planque (2010b), as fórmulas têm quatro propriedades, a saber:

i) caráter cristalizado; ii) inscrição em uma dimensão discursiva; iii) o fato de funcionarem como

um referente social; iv) a sua dimensão polêmica. Todas essas propriedades encontram-se

profundamente imbricadas na definição da noção, como se verá a seguir – mas, vale dizer, não se

encontram sempre com a mesma “força”, sendo preciso avaliar caso a caso.

8
Das quatro propriedades de uma fórmula, tais como propostas por Krieg-Planque

(2010b), o caráter cristalizado é o que está mais diretamente ligado à língua. Krieg-Planque

(2010a, p. 61) é, a esse respeito, categórica: “a fórmula tem um caráter cristalizado”, isto é, “ela é

sustentada por uma forma significante relativamente estável”. No entanto, isso não quer dizer que

a fórmula deva ser, por exemplo, uma unidade lexical simples (como “perestroika”); a fórmula

pode ser também uma unidade lexical complexa, uma unidade léxico-sintática ou ainda uma

sequência autônoma (“frase”); Krieg-Planque (2010a) aponta, porém, duas estruturas

“privilegiadas”: sintagmas nominais com adjetivos denominais (“seleção natural”,

“desenvolvimento sustentável”, “pacto republicano”) e nominalizações (“globalização”,

“retomada”, “exclusão”). O que importa aqui é que, em quaisquer dos casos anteriores, ela deve

tender à cristalização, o que implica também um certo nível de concisão. Afinal, é isso que fará,

em última análise, com que a fórmula possa circular: “é a concisão [...] que permite à sequência

ser integrada a enunciados que a sustentam, a incluem, a retomam, a reforçam, a reiteram ou a

recusam” (KRIEG-PLANQUE, 2010a, p. 71).

Assim, ainda que a fórmula tenha em uma materialidade linguística relativamente

estável o seu suporte, é preciso insistir sobre seu caráter discursivo. É, pois, nesse sentido que a

autora observa que “a fórmula não existe sem os usos que a tornam uma fórmula” (KRIEG-

PLANQUE, 2010a, p. 81). Em outras palavras, uma fórmula não é só uma cristalização, ela é

principalmente um determinado “uso” dessa cristalização; o que torna uma fórmula uma fórmula

são, reitere-se, os seus usos. Estamos, portanto, diante de uma noção que articula profundamente

língua e discurso: se, por um lado, temos uma estrutura linguisticamente descritível, por outro,

essa mesma estrutura não pode ser analisada sem que se leve em conta o acontecimento

discursivo (PÊCHEUX, [1983]2002) que a torna uma fórmula. E isso tem reflexos nos recortes

9
que o analista opera no que diz respeito às variantes de uma dada fórmula, já que, a título de

exemplo, “não é por parentesco lexical – uma vez que não há – que ‘ethnique’ é aproximado de

‘racial’, mas por recobrimento nos usos do primeiro termo pelo segundo” (KRIEG-PLANQUE,

2010a, p. 81).

Ainda a esse respeito, a autora chama a atenção para o fato de que

na maior parte das vezes, a sequência preexiste formalmente a sua chegada à condição
de fórmula. Não é, então, uma forma nova que o analista deve buscar, mas um uso
particular, ou uma série de usos particulares, por meio dos quais a sequência assume um
movimento, torna-se um jogo de posições, é retomada, comentada, para de funcionar no
modo “normal” das sequências que nomeiam pacificamente e que usamos sem nem
mesmo nos dar conta delas. (KRIEG-PLANQUE, 2010a, p. 82)

Reconhecer, portanto, o caráter discursivo da fórmula traz implicações de ordem

metodológica: só é possível analisá-las na medida em que se apoiam sobre um corpus saturado de

enunciados atestados, ou, nas palavras de Krieg-Planque (2010a, p. 89), quando o enriquecimento

desse corpus por novos enunciados “não traz mais dados novos do ponto de vista da problemática

adotada, pelo menos não mais dados novos suscetíveis de modificar os resultados de maneira

substancial”.

No que diz respeito às duas outras propriedades da fórmula – seu caráter de referente

social e sua dimensão polêmica – sua interdependência é algo que precisa ser posto em relevo.

Gestadas nos trabalhos de Fiala e Ebel, como aponta Krieg-Planque (2010a), essas propriedades

resultam precisamente do caráter discursivo da fórmula, apontado anteriormente. Vejamos

porquê.

De maneira sintética, atestar o caráter de referente social de uma fórmula nada mais é

que reconhecer nela uma espécie de “lugar de passagem obrigatório” em um dado momento.

O caráter de referente social “traduz seu aspecto dominante, num dado momento e

num dado espaço sociopolítico” (KRIEG-PLANQUE, 2010a, p. 90). Ou, para usar as palavras de
10
Fiala e Ebel, trata-se de “um signo que significa alguma coisa para todos em um momento dado”.

E significar “alguma coisa” não é, observe-se, sinônimo de significar “a mesma coisa”, pois,

partindo do trabalho de Fiala e Ebel em torno das fórmulas “Überfreumdung” e “xenofobia”, o

que se pode observar é que esses termos

condensaram em si uma massa considerável de discursos, para os quais serviam de


equivalentes semânticos. Enunciar um ou outro era colocar em circulação significações
múltiplas, contraditórias, remetendo à existência de séries de enunciados parafrásticos,
bem atestados, pelos quais os dois termos eram definidos. (KRIEG-PLANQUE, 2010a,
p. 53-54).

É, pois, nesse sentido que Krieg-Planque (2010a, p. 90) observa que considerar a

fórmula como um referente social “não implica que a significação de que a fórmula se investe

seja homogênea” – possibilidade essa de leitura para a qual, aliás, Courtine (apud KRIEG-

PLANQUE, 2010a) alerta. Ao contrário disso, suas significações são múltiplas, às vezes

contraditórias.

Essa diversidade de significação encontra-se em profundo alinhamento com a última

propriedade da fórmula: seu caráter constitutivamente polêmico. Nas palavras de Krieg-Planque

(2010a, p. 56),

é porque se põe como dominante que ela não é aceita por todos, é porque se impõe que
ela faz tanto barulho. A distinção “referente social”/ “polêmica” pode, então, ser vista
como um artifício a serviço da análise, permitindo descobrir os lugares de instalação ou,
ao contrário, de fragilização da fórmula. Mas, na massa de discursos que se respondem,
construção da fórmula como referente social e construção da fórmula como objeto
polêmico são indissociáveis.

Compreendendo, então, em resumo, fórmula como “um conjunto de formulações que,

pelo fato de serem empregadas em um momento e em um espaço público dados, cristalizam

questões políticas e sociais que essas expressões contribuem, ao mesmo tempo, para construir”

(KRIEG-PLANQUE, 2010a, p. 9), o trabalho que apresentaremos a seguir, também de sua

autoria, dedica-se ao estudo da fórmula “desenvolvimento sustentável” (développement durable).

11
Esperamos mostrar, ao fim dessa resenha, a relação estreita da fórmula em questão com a

proposta de uma “Copa ecológica” apontada anteriormente – e, consequentemente, explicar o

porquê de não mais persegui-la nesta pesquisa.

Antes de mais nada, reconhecer “desenvolvimento sustentável” como uma fórmula

implica atribuir-lhe as propriedades já evocadas. Falaremos aqui, de modo especial, do caráter de

referente social e de sua dimensão polêmica, aspectos esses destacados no texto de Krieg-Planque

(2010b).

Um dos índices de que uma sequência se tornou uma fórmula é, segundo Krieg-

Planque, o aumento da frequência de sua utilização. Afinal, dizer que a fórmula é um referente

social é, como vimos, reconhecer que ela significa alguma coisa para todos. E, obviamente, “para

que esse signo evoque alguma coisa para todos, é necessário que ele seja conhecido por todos”

(KRIEG-PLANQUE, 2010a, p. 92), do que decorre uma necessária “notoriedade”, que

transborde, por exemplo, os limites dos discursos especializados: uma fórmula precisa circular

por entre os mais variados tipos de discurso; se originária de uma formação discursiva, deve sair

dela e circular em outras. O sucesso da expressão em pauta, “desenvolvimento sustentável”, é

evidente: ela circula do setor energético ao educacional, passando pela arquitetura, construção,

transportes, agricultura e turismo – para ficar em poucos. Além disso, muitos são os gêneros nos

quais ela se faz presente (veremos que as fórmulas são apreendidas como unidades não-tópicas,

como propõe Maingueneau). A autora aponta ainda casos de mudança no nome de pastas

ministeriais na França – que passaram a incluir o sintagma 8 –, de fomento a pesquisas com essa

temática etc.

8
Em 2002, criaram-se uma secretaria de Estado de Desenvolvimento Sustentável e um ministério da Ecologia e do
Desenvolvimento Sustentável (no lugar do que era anteriormente um ministério de Gestão do território e do meio
ambiente).
12
Mas, como vimos, o fato de se tornar uma “passagem obrigatória”, longe de garantir

uma homogeneidade de sentidos, abre espaço para a polêmica. Em outras palavras, é porque há

um “território partilhado” que a polêmica existe, uma vez que as fórmulas “estão investidas de

questões sociopolíticas, questões que têm como consequência usos polêmicos e conflituosos da

sequência” (KRIEG-PLANQUE, 2010a, p. 101).

No caso de “desenvolvimento sustentável”, a autora aponta que diversas são as

acepções nos enunciados definidores, por exemplo, ou nos vários suportes em que o sintagma

aparece (comunicados da Air France, trabalhos das Semanas Sociais da França, ou documentos

da Oxfam). Em suma, se a fórmula circula, é porque ela traz consigo posicionamentos múltiplos,

eventualmente contraditórios: enquanto ela estiver em uso, será modificada.

A partir de uma categoria como a de fórmula, é possível, como aponta Maingueneau

(2006), descobrir relações insuspeitas no interdiscurso. Então, a pergunta que fica é: que relações

são essas que o estudo da fórmula “desenvolvimento sustentável” permite revelar?

Krieg-Planque (2010b) aponta algumas pesquisas que, no interior das ciências

humanas e sociais, mostram que a fórmula em questão tornou-se um termo-chave nos discursos

políticos e busca exprimir uma conciliação entre desenvolvimento e proteção ao meio ambiente,

ou seja, ocupa um lugar, até certo ponto, de mediador, apagando a dimensão conflituosa

necessariamente implicada no debate, uma vez que muitos são os sentidos que a expressão pode

ter. Mas o que Krieg-Planque explora aqui é o fato de que tal dimensão consensual e legitimante

passa por operações precisas e linguisticamente descritíveis.

13
É assim, então, que a autora observa que as estruturas concessivas9 são bastante

comuns no entorno da fórmula “desenvolvimento sustentável”, estruturas essas que têm por

característica argumentativa apresentar como “acidentais” os elementos que ela mesma põe em

tensão, já que ela apresenta os elementos como podendo parecer contraditórios, mas já não sendo

mais. Assim, o sintagma “desenvolvimento sustentável” simboliza, graças às ligações que

mantém no interdiscurso, uma contradição que ele pode resolver. Mas, ao mesmo tempo, esse

sintagma tende a dissimular essa contradição pela dimensão formulaica que adquire: a fórmula

“desenvolvimento sustentável” é uma oposição que ela não representa mais de forma transparente

(KRIEG-PLANQUE, 2010b, p. 17-19).

Porém, ainda que a estrutura concessiva exprima um embate, a fórmula

“desenvolvimento sustentável” consegue, por seu turno, neutralizá-lo. É, pois, nesse sentido que a

autora a considera um operador de neutralização do conflito.

Mas para os fins desta pesquisa, importa destacar principalmente, a respeito do

trabalho de Krieg-Planque (2010b), que a fórmula “desenvolvimento sustentável” é também um

conjunto de variantes que podem ser identificadas em seu contexto 10:

Celui qui s’intéresserait en détail à l’inventaire de la formule “développement durable”


serait amené à repérer, dans des corpus circonscrits, différentes formulations, qu’elles
soient produites par commutation nominale (« alimentation durable », « mode de vie
durable », « quartiers durables »), par commutation adjectivale (« développement viable
», « développement éthique », « développement propre »), par coordination («
développement durable et solidaire », « développement et croissance durables »), par
insertion (« développement urbain durable », « développement humain durable »), ou
encore sur une base adjectivale par dérivation impropre (« le durable », « le soutenable
») ou par nominalisation (« la soutenabilité », « la durabilité »). Les formulations
produites par combinaison de plusieurs de ces opérations figurent aussi à l’inventaire,

9
Alguns exemplos de construções desse tipo são: “...modo de desenvolvimento que responde às necessidades do
presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de responder as suas”; “...melhorar as condições de
existência das comunidades humanas, mantendo-se dentro dos limites da capacidade dos ecossistemas”; “...oferecer
aos consumidores uma solução completa para fazer brilhar sua casa respeitando o meio ambiente”.
10
A noção de contexto de uma fórmula refere-se não à realidade mundana cuja descrição pelo pesquisador forneceria
a conjuntura esclarecedora da fórmula; trata-se da ordem do real discursivo e simbólico de onde surge a fórmula.
(KRIEG-PLANQUE, 2010b, p. 11).
14
parfois en rapport étroit avec la « responsabilité sociale de l’entreprise » : « soutenabilité
faible », « épargne responsable », « politiques de durabilité », « gestion durable et
équitable de l’eau », « aménagement responsable et durable des territoires et de
l’environnement ».11 (KRIEG-PLANQUE, 2010b, p. 11).

Além disso, a autora acrescenta, dentre outros, os compostos neológicos prefixados

com “eco” e “bio”. É precisamente nesse ponto que a proposta da “Copa Ecológica” entra e ela

parece bastante reveladora do funcionamento dessa fórmula como um referente social. Assim, a

proposta de “Copa Ecológica” que inicialmente julgamos ser promissora para estudar a

construção/legitimação de um espaço “genuíno” nacional, mostrou-se pouco produtiva para os

nossos fins: o sintagma evidenciava, na verdade, o caráter de referente social da fórmula estudada

por Krieg-Planque (2010a), “desenvolvimento sustentável”. E, como já dito antes, de fato as

referências a uma “Copa Ecológica” desaparecem em pouco tempo do cenário nacional.

Como se vê, então, a fórmula “desenvolvimento sustentável” guarda uma certa

proximidade com esta pesquisa. A relevância do trabalho de Krieg-Planque (2010b) para nós está

no fato de que a autora mostra que “sustentabilidade” tornou-se um referente social, um ponto de

passagem obrigatório12, e que, portanto, talvez não pudéssemos/devêssemos associar à construção

de um espaço nacional “genuíno” o “discurso ecológico” de que falamos no início. Desse modo,

talvez não fosse produtivo considerar que a dimensão “ecológica” fosse, ainda na atualidade, um

11
Quem se interessasse em detalhe pelo inventário da fórmula “desenvolvimento sustentável” seria levado a
identificar, no interior dos corpora circunscritos, diferentes formulações, quer tenham sido produzidas por
comutação nominal (“alimentação sustentável”, “estilo de vida sustentável”, “bairro sustentável”), por comutação
adjetiva (“desenvolvimento viável”, “desenvolvimento ético”, “desenvolvimento próprio”), por coordenação
(“desenvolvimento sustentável e solidário”, “Desenvolvimento e Crescimento Sustentável”), através da inserção
(“desenvolvimento urbano sustentável”, “desenvolvimento humano sustentável”), ou ainda sobre um adjetivo, por
derivação imprópria (o “sustentável”) ou por nominalização (“Sustentabilidade”, “durabilidade”). As formulações
produzidas por combinação de várias dessas operações figuram também no inventário, às vezes em relação estreita
com a “responsabilidade social da empresa”: “baixa sustentabilidade”, “poupança responsável”, “políticas de
sustentabilidade”, “gestão sustentável e justa da água”, “gerenciamento responsável e sustentável dos territórios e do
ambiente”. (tradução nossa)
12
Exemplo de que a fórmula em questão tornou-se esse “ponto de passagem obrigatório” é o fato de que,
na ocasião do anúncio do Brasil como sede da Copa de 2014, surpreendentemente, nada se disse, por exemplo, sobre
o futebol estar voltando para a terra do maior campeão, ou do “rei” do futebol – i.e., elementos que estariam mais
diretamente ligados ao tema da Copa. Ao contrário, ganhou relevo a proposta de uma “Copa Ecológica”.
15
traço tão fortemente associado ao espaço nacional brasileiro – afinal, não seria, por exemplo, o

“turismo sustentável”, uma das variantes da fórmula acima, algo suficientemente espalhado a

ponto de não remeter diretamente ao Brasil? Nesse caso, não seria a fórmula “desenvolvimento

sustentável” (por meio, principalmente de suas variantes “turismo sustentável”, “ecoturismo”

etc.) que constituiria nossa “modesta”13 entrada no corpus – até porque, como esperamos mostrar

mais adiante, a fórmula não daria conta do que pensamos ser um ponto crucial do funcionamento

dos discursos analisados.

A ideia de “Copa Ecológica”, ponto de partida deste trabalho, saía, assim, de cena;

isso não significava, porém, a derrocada da hipótese inicial – ou do projeto como um todo –;

significava, tão-somente, que esse não parecia um caminho muito promissor para trilhar. Mas se o

futebol é um importante “canal” para representar o Brasil no exterior, também o são o turismo e a

moda – ainda mais no que diz respeito a uma paisagem nacional típica. Assim, esses passaram a

ser os espaços onde buscar material para o corpus desta pesquisa. O turismo, aliás, já havia sido

“sondado” anteriormente, pois imaginamos que, após o anúncio da sede da Copa de 2014, haveria

um aumento de pacotes para conhecer o “país da Copa”14 e, consequentemente, haveria também

ampla exploração da dimensão “ecológica” historicamente vinculada ao Brasil – o que, na

verdade, não ocorreu.

13
“Uma pesquisa boa é aquela que transforma as hipóteses iniciais, que descobre coisas novas e isso implica uma
entrada, achar uma entrada e muitas vezes uma entrada modesta, através de uma fórmula, de um conector, de uma
metáfora, de uma frase, não sei, da tipografia, não sei, uma coisa que parece humilde, pode ser muito mais rentável,
porque é uma maneira de ver o texto não através do conteúdo, porque senão o conteúdo sempre vai ter interpretação”
(grifamos). Entrevista dada por Maingueneau e publicada na revista eletrônica Linguasagem (n. 10, set./out. 2009).
Disponível em: <http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao10/ index.php>. Acesso em: 18 nov. 2010.
14
A hipótese era a de que haveria muito investimento em “destinos verdes” e valorização de “ecoturismo”, mas isso
também encontra-se bastante vinculado à fórmula “desenvolvimento sustentável”, o que significa usos mais
generalizados, i.e., não restritos apenas a lugares em que a natureza é um forte elemento, como se poderia supor
sobre o caso brasileiro, por exemplo.
16
Neste ponto, talvez fosse necessário reformular a hipótese inicial – e,

consequentemente, o objetivo. Certamente seria preciso dar novos encaminhamentos à

constituição do corpus.

3. O corpus: uma questão de teoria e de método

Construir corpora em Análise do Discurso não é tarefa simples. De fato, essa etapa

em Análise do Discurso sempre foi um ponto crucial para a disciplina. Se, no início, na chamada

primeira época da AD, a noção de maquinaria discursiva privilegiava corpora mais estabilizados

e homogêneos – no sentido de os processos discursivos serem gerados a partir de condições de

produção mais estáveis15 –, a partir do momento em que se assume a tese do primado do

interdiscurso (na terceira época) abrem-se muitos caminhos para a construção dos corpora, o que

não significa que não possa haver “preferências” de formato por parte dos analistas 16.

Some-se a esse horizonte de possibilidades, o fato de que as pesquisas em AD devem,

como já anunciava Pêcheux ([1983]2002), seguir uma espécie de movimento espiral em que o

analista vai constantemente da teoria ao corpus e dele novamente à teoria, tantas vezes quantas

forem necessárias. Ou seja, construir o corpus de uma pesquisa não é necessariamente uma tarefa

pontual, podendo estender-se por todo o processo. Esse é um ponto que não desejamos “apagar”

nesta pesquisa; não apenas a constituição do corpus, mas a forma de apreendê-lo mostraram-se

desafios de ordem teórica e metodológica. Afinal, não era um recorte previamente dado que

15
Um exemplo seria um manifesto partidário voltado para os membros do próprio partido. Nesse caso, o famoso
esquema do jogo de imagens explicaria a maior estabilidade desse discurso (PÊCHEUX, [1969]1997).
16
Sabe-se, por exemplo, que pesquisas empíricas, com questionários etc., são relativamente raras em AD. A esse
respeito, vide, por exemplo, levantamento empreendido por Courtine ([1981]2009, p. 58-61), em que encontram-se
listados os tipos de corpora analisados nas pesquisas de vários analistas de discurso e a dominância de determinadas
formas de constituição de corpora em AD.
17
tínhamos diante de nós, mas uma configuração original que, como tal, exigia, minimamente, uma

justificativa17.

Como aponta Courtine ([1981]2009, p. 56-57), os critérios formulados no nível de

uma linguística descritiva – exaustividade, representatividade e homogeneidade – demandam

uma “apreciação especificamente discursiva” antes de serem transpostos para o quadro teórico-

metodológico da AD: “em relação a quê se pode avaliar uma exaustividade, representatividade e

homogeneidade discursivas?”, pergunta-se o autor. Citando Gardin & Marcellesi (1974), Courtine

([1981]2009, p. 56) aponta que a exigência de exaustividade “prescreve que não se deixe na

sombra nenhum fato discursivo que pertença ao corpus, devendo ele ‘incomodar o pesquisador’.

A exigência de representatividade indica ‘que não se deve tirar uma lei geral de um fato

constatado uma única vez’”. Sobre o critério da homogeneidade – divergindo dos autores citados,

para quem o estudo dos contrastes discursivos excluiria a homogeneidade –, Courtine afirma que

“a constituição de corpus discursivo em AD [...] efetua-se na condição de um postulado muito

importante de homogeneidade ou de coerência discursiva, mesmo nos tratamentos contrastivos”

(p. 56-57). Nessa mesma direção, Maingueneau (2006, p. 20-21) destaca que “diante de um texto

ou um conjunto de textos que parecem heterogêneos, as rotinas interpretativas que as instituições

universitárias valorizam incitam a procurar um princípio unificador, uma coerência escondida”.

As reformulações que surgiram ao longo da pesquisa demandaram uma reflexão acerca

da constituição do corpus, uma vez que não se estava diante de uma zona previamente

delineada pelas práticas linguageiras. Diante disso, se a constituição do corpus não passaria,
17
Penso que, com ainda poucas exceções, muitos trabalhos em AD tendem a não explicitar a tensão envolvida na
construção de corpora. Há casos em que, de fato, não há tensão, i.e., o corpus não coloca problemas para sua
delimitação ou apreensão; mas há muitos outros em que a constituição do corpus resulta de uma configuração inteira
ou parcialmente nova que coloca sim problemas para o analista. Este é o caso aqui e não desejamos deixar esse ponto
à margem das discussões, apresentando, ao final — como geralmente se faz — uma solução “milagrosa” que apague,
como já dissemos, as “angústias” do processo. Sobre essa questão, Boutet et al (1995) observam que, não raro, os
analistas acabam por deixar à margem os problemas colocados pelo corpus e atribuem isso ao histórico da AD em
trabalhar com corpora altamente institucionalizados.
18
então, pela noção de percurso proposta por Maingueneau (2006); melhor dizendo, não seria a partir

de uma fórmula que se condensariam os materiais mais relevantes para descrever o funcionamento

dos discursos de construção/legitimação do espaço nacional brasileiro, era preciso encontrar uma

nova categoria que se provasse produtiva. Essa busca – quase obsessiva, dirão alguns – tem sua

razão de ser, que pode ser assim resumida: “como ter certeza de que o agrupamento de textos que

se efetua não é puro delírio?”18 (MAINGUENEAU, 2011, p. 28; tradução nossa).

3.1 Unidades tópicas e não tópicas de análise

O início do levantamento do corpus é sempre guiado por hipóteses formuladas pelo

próprio analista, a partir de seus conhecimentos históricos sobre o tema (MAINGUENEAU,

[1984]2005). Assim, como dissemos mais acima, a hipótese inicial era a de que houvesse um

“discurso ecológico” que perpassaria a construção/legitimação de um espaço nacional

“genuinamente” brasileiro. O que ainda não foi dito é como se poderia pensar algo como um

“discurso ecológico” a partir de uma categoria da AD que permitisse um agrupamento de textos

capazes de identificar (ou não) esse discurso. Para abordar essa questão será preciso entender a

proposta feita por Maingueneau (2006) em decorrência do que ele acredita ser uma “fissura

constitutiva” da AD: “é impossível fazer a síntese entre uma abordagem que se apoia sobre as

fronteiras e uma que se nutre dos limites pelos quais a primeira se institui” (MAINGUENEAU,

2006, p. 23). Trata-se para o autor, respectivamente, de abordagens integradoras (que mostram a

articulação entre os diversos planos do discurso) e analíticas (que, desarticulando o discurso, o

relacionam a uma nova identidade discursiva). Partindo dessa distinção, o autor irá propor, então,

que as unidades de análise organizam-se, como já dissemos, em tópicas e não tópicas.


18
“Comment être certain que le groupement de textes qu’on effectue n’est pas pur délire?”.
19
Maingueneau (2006), motivado pelo que pensa ser, em certa medida, um

esvaziamento da noção de formação discursiva na Análise de Discurso francófona – decorrente,

por sua vez, de um emprego bastante variado –, empreende uma reflexão em torno das unidades

de análise de que se valem os analistas do discurso em suas pesquisas e propõe, a partir daí, um

estatuto novo e, segundo ele, mais preciso para a noção em pauta. É, aliás, o próprio autor que,

tendo adotado a noção em Gênese dos discursos ([1984]2005) sem o que pensa ser uma maior

especificidade, confessa, no prefácio à edição brasileira, ter sido esse um “emprego frouxo” do

termo19. E conclui que melhor teria sido empregar “posicionamento” em vez de “formação

discursiva”.

Assim, para Maingueneau, antes de se definir propriamente a noção de formação

discursiva, é preciso delimitar “o conjunto de termos que designam as categorias sobre as quais a

análise do discurso trabalha” (MAINGUENEAU, 2006, p. 14), relacionando-as às práticas dos

analistas do discurso, que ora operam na articulação dos planos do discurso ora os desarticulam

para dar-lhes uma nova identidade. São esses, portanto, como ilustra o quadro abaixo

(MAINGUENEAU, 2006, p. 22), os tipos de unidades de que os analistas se valem nas suas

pesquisas:

Unidades tópicas Unidades não tópicas


Territoriais Transversas Formações discursivas Percursos
Tipos/Gêneros de discurso
a) Gêneros concernentes a • Registros linguísticos Unifocais Plurifocais
campos • Registros funcionais
b) Gêneros concernentes a • Registros
aparelhos comunicacionais

Discorreremos, a partir desse quadro, acerca das unidades propostas pelo autor.
19
Maingueneau (2006, p. 13) observa que “na maioria das vezes emprega-se ‘formação discursiva’ ‘na falta de uma
expressão melhor’, nas situações em que o analista encontra um conjunto de textos que não corresponde a uma
categorização clara”; trata-se, assim, de uma forma de nomear o excedente. Ele mesmo confessa seu embaraço diante
da necessidade de definir a expressão: “quando redigi o verbete ‘Formação discursiva’ para o Dictionnaire d’analyse
du discours, co-dirigido com P. Charaudeau, eu mesmo substituí ‘formação discursiva’ por ‘posicionamento’, devido
à incapacidade em que me encontrava de atribuir-lhe um estatuto bem claro” (MAINGUENEAU, 2006, p. 14).
20
As unidades tópicas comportam – na definição de Maingueneau (2006) – uma

subdivisão em unidades territoriais e unidades transversas. Trata-se, as primeiras, de espaços

“pré-delineados” pelas práticas verbais que podem ser definidos tanto do ponto de vista de

aparelhos institucionais, quanto de um mesmo posicionamento no interior de um campo. O autor

dá como exemplos os casos do “discurso hospitalar” e do “discurso comunista”:

o “discurso hospitalar” consiste na interação dos diversos gêneros de discurso em um


aparelho, no caso, o hospital (reuniões de trabalho, consultas, receitas, etc.). O “discurso
do partido x”, por outro lado, consiste na diversidade dos gêneros de discurso
produzidos por um posicionamento determinado no interior do campo político (jornal
cotidiano, panfletos, programas eleitorais etc.). No primeiro caso, estamos em uma
lógica de funcionamento do aparelho. No segundo, em uma ótica de luta ideológica, de
delimitação de um território simbólico contra outros posicionamentos.
(MAINGUENEAU, 2006, p. 15).

Note-se, a respeito das unidades territoriais, que elas são instituídas não pelo analista,

mas, antes, pelas práticas da sociedade; é como se estivessem sempre já-lá. Contudo, ainda que

essas unidades sejam, de certa forma, “dadas”, a opção pela forma de abordá-las é do analista.

Traduzindo em um exemplo, “nada impede que se aborde também o discurso de um partido

político como discurso de aparelho: nesse caso são os gêneros de discurso ligados ao

funcionamento do partido que serão levados em conta” (MAINGUENEAU, 2006, p. 15).

Além das unidades territoriais, haveria ainda, segundo a proposta de Maingueneau,

dentre as unidades tópicas, as unidades transversas, que são, por sua vez, aquelas que atravessam

textos de múltiplos gêneros de discurso, podendo ser definidas a partir de registros linguísticos

(por exemplo, a tipologia de Benveniste que distingue discurso e história e as tipologias fundadas

sobre estruturações textuais), funcionais (mobilização de textos a partir da função de linguagem

que desempenhem) ou comunicacionais (por exemplo, “discurso cômico”, “discurso didático”

etc.). Maingueneau (2010), a respeito desses registros, observa que não se trata de categorias

21
propriamente discursivas, mas definidas segundo critérios ora de ordem linguística/enunciativa

ora de ordem psicossociológica.

A constituição do corpus desta pesquisa não passou, como se pode imaginar, pela

chamada “abordagem integradora”, como propõe Maingueneau. Analisar o funcionamento dos

discursos acerca de um espaço nacional “genuíno” não obedece à lógica das unidades territoriais,

em primeiro lugar, porque não se trata de pensar em discursos ligados a determinadas instituições

(como seria o caso de um “discurso hospitalar”, por exemplo) nem produzidos a partir de certos

posicionamentos no interior de um campo (o “discurso comunista”, como sugere o autor). Nesse

sentido, ainda que o turismo tenha sido apresentado inicialmente como um lugar privilegiado

para a circulação desses discursos, em momento algum tratou-se de analisar o funcionamento de

um “discurso turístico”, por exemplo, mas, ao contrário, de ver o modo de circulação nesse

espaço discursivo (MAINGUENEAU, [1984]2005) dos discursos sobre um “Brasil genuíno”.

Além disso, como veremos mais adiante, outros lugares mostram-se produtivos nesse aspecto. As

transversas, por seu turno, também não se apresentavam como o melhor alternativa, uma vez que

os critérios de levantamento do corpus não passaram por tipologias linguísticas/enunciativas,

funcionais ou psicossociológicas. Para o presente trabalho, a inscrição histórica dos enunciados

analisados não pode/deve ser apagada.

A partir desse cenário, a constituição do corpus da pesquisa recorreria, então, não

mais à lógica das unidades tópicas, “que se apoiam sobre cartografias dos usos linguageiros”

(MAINGUENEAU, 2006, p. 23), mas sim à das unidades ditas não tópicas, cujas fronteiras não

são instituídas por outros que não o próprio analista: “o princípio que as agrupa é uma decisão

tomada exclusivamente pelo analista” (MAINGUENEAU, 2006, p. 22) – o que não significa que

tal decisão seja fruto de “caprichos” do analista, pois as fronteiras “devem ser especificadas

22
historicamente” 20 (MAINGUENEAU, 2006, p. 16). Afinal, é preciso lembrar sempre que o dado

– embora dependa de uma teoria para atribuir-lhe um status – “existe independentemente do

pesquisador”, mas isso “não significa dizer que ele determine as opções e ações do investigador”

(POSSENTI, 2004a, p. 33).

Essa decisão traz, assim, algumas implicações importantes, como se verá mais

adiante, para a constituição do corpus e, em razão disso, falaremos de maneira um pouco mais

demorada acerca desse tipo de unidade. Vale dizer, porém, que o trajeto percorrido até aqui não

tem por objetivo encontrar um conceito no qual o tipo de pesquisa realizada possa “encaixar-se”.

Sendo o processo de levantamento do corpus uma etapa crucial em AD, é preciso constantemente

“testar” o conceito diante das perguntas e hipóteses da pesquisa. A hipótese de Maingueneau,

sumarizada no quadro apresentado anteriormente, tem, a nosso ver, a vantagem de tornar mais

palpável e visível as maneiras por meio das quais se constroem corpora em AD.

Isso não significa, como se verá ao longo deste trabalho, que a questão esteja

“resolvida” de uma vez por todas. Esperamos, na verdade, que a apresentação da questão

contribua, primeiramente, para uma maior clareza do tema, e, naturalmente, para uma maneira

satisfatória de apreensão do corpus aqui constituído.

3.1.1 As unidades não tópicas: delimitações

Se as escolhas teórico-conceituais em Análise do Discurso implicam certas decisões

no que diz respeito ao corpus a ser constituído – atrelado a determinadas instituições ou a

20
Ainda em torno do tema, Maingueneau (2006, p. 22) reitera: “a construção de formações discursivas ou de
percurso não está submetida só ao capricho dos pesquisadores: há um conjunto de princípios, de técnicas que
regulam esse tipo de atividade hermenêutica”.
23
posicionamentos no interior de um campo discursivo (MAINGUENEAU, [1984]2005); mais ou

menos heterogêneo; relacionado a uma tipologia de tipo X etc. –, é preciso decidir por um tipo de

abordagem, sem esquecer, contudo, de confrontar essas opções com os objetivos da pesquisa, as

hipóteses e, obviamente, os dados levantados, afinal “o dado é freio para a divagação sem

sentido, descontrolada” (POSSENTI, 2004a, p. 33).

Antes de mais nada, lembremo-nos de que a pergunta inicial desta pesquisa gira

precisamente em torno da construção/legitimação de um espaço nacional “genuíno”, sendo que

a hipótese de partida é a de que tal processo apoia-se sobre um discurso ecológico, segundo

denominamos. A partir daí, vimos na seção anterior que não se poderia pretender neste trabalho

construir um corpus a partir de uma lógica pautada em fronteiras pré-estabelecidas pelas práticas

linguageiras da sociedade, o que levaria esta pesquisa a operar com as unidades tópicas. A opção,

por outro lado, por constituir uma nova unidade, uma nova configuração imporia algumas

restrições. A circulação para além dos limites de tais “fronteiras” sugere, em primeiro lugar, uma

certa heterogeneidade dos corpora construídos, sejam eles agrupados com base em percursos ou

em formações discursivas.

No caso dos percursos, Maingueneau afirma que eles fazem parte de uma prática em

análise do discurso: “o estabelecimento em rede de unidades de diversas ordens (lexicais,

proposicionais, fragmentos de textos) extraídos do interdiscurso, sem procurar construir espaços

de coerência, construir totalidades” (MAINGUENEAU, 2006, p. 21). Sendo assim, o objetivo do

pesquisador é estabelecer percursos não esperados a partir da desestruturação das unidades

instituídas: “a interpretação apoia-se, assim, na atualização de relações insuspeitas no interior do

interdiscurso” (MAINGUENEAU, 2006, p. 21).

24
Um exemplo de pesquisa realizada em que se estabeleceu um percurso é a de Krieg-

Planque, apresentada anteriormente, sobre a fórmula “desenvolvimento sustentável”. A

pesquisadora não privilegiou gêneros ou posicionamentos, mas explorou “uma dispersão, uma

circulação”, sem procurar relacionar a “sequência verbal a uma fonte enunciativa”

(MAINGUENEAU, 2006, p. 21). Trata-se, portanto, de um procedimento que privilegia a

heteronímia do corpus, sem pretender reduzi-lo a uma unidade, o que não significa, reiteremos,

que se submeta a “caprichos” do pesquisador: as hipóteses de trabalho são pautadas em

conhecimentos históricos.

Maingueneau aponta, contudo, alguns “riscos” ao se optar por construir um corpus

em torno de percursos:

É com efeito muito sedutor atravessar múltiplas fronteiras, circular no interdiscurso para
fazer aparecer relações invisíveis particularmente propícias às interpretações fortes. Mas
o reverso da medalha é a dificuldade em justificar as escolhas operadas e, então, corre-se
o risco, como já mencionado, daquilo que chamamos, habitualmente, de delírio
interpretativo, ou, mais simplesmente, o risco de se encontrar na conclusão aquilo que se
propôs no início. (MAINGUENEAU, 2006, p. 21).

Ao perseguir as ocorrências da fórmula “desenvolvimento sustentável”, por exemplo,

Krieg-Planque “descobre” que ela tem um funcionamento bastante peculiar, trata-se de um

operador de neutralização do conflito. Tal conclusão é possibilitada, por seu turno, pela

observação dos contextos em que a sequência aparece, frequentemente cercada de estruturas

concessivas, que, nas palavras da analista, “suturam” a distância necessária entre

desenvolvimento e proteção ao meio ambiente.

Do mesmo modo que os percursos, as formações discursivas, segundo essa proposta,

também não são produzidas por instituições correspondentes – ao menos totalmente – a espaços

previamente constituídos pelas práticas verbais. Trata-se igualmente de um recorte que deriva de

25
uma decisão tomada pelo analista: o pesquisador reúne um conjunto de textos que, segundo seus

propósitos, suas hipóteses, julga relevante colocar em relação. Para Maingueneau, é preciso

ressaltar o caráter dinâmico e agentivo do termo “formação” em “formação discursiva”.


Em vez de considerá-lo em uma perspectiva puramente estática como referindo-se a uma
entidade já existente, o analista, em função de sua pesquisa, dá forma a uma
configuração original. (MAINGUENEAU, 2006, p. 19; grifamos).

Essa característica das formações discursivas é destacada por Maingueneau desde a

gênese do conceito, ainda que uma “situação confusa” seja apontada pelo autor decorrente da sua

dupla paternidade: Foucault e Pêcheux. Para Maingueneau, tanto o conceito de Foucault quanto o

de Pêcheux procuram dar conta da possibilidade de se operar com corpora situados no limite das

fronteiras.

A noção de formação discursiva em Foucault, por exemplo, obedece, segundo aponta

Maingueneau (2006, p. 10), “a duas injunções contraditórias: definir os sistemas e desfazer toda

unidade”. Em passagem recortada d’Arqueologia do saber, Maingueneau irá observar que “a

formação discursiva é apresentada simultaneamente como conjunto de enunciados submetidos a

uma mesma ‘regularidade’ [...] e ‘dispersão’ que excede toda ‘coerência’” (MAINGUENEAU,

2006, p. 11). Para assumir a noção nos moldes foucaultianos é-se, então, obrigado a constituir

corpora que sejam, além de heterogêneos, relativamente extensos, a fim de que se possa

depreender na dispersão uma regularidade. Um exemplo disso encontra-se n’As palavras e as

coisas, que demonstra que, por detrás de uma variedade de conjuntos discursivos, atua um

mesmo sistema de regras.

Já em Pêcheux, o termo ganha contornos althusserianos, na medida em que uma

formação discursiva determina “o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma

arenga, um sermão, um panfleto, uma exposição, um programa etc.) a partir de uma posição

dada numa conjuntura” (PÊCHEUX, [1975]1997, p. 161; grifamos). Aqui, o termo posição

26
refere-se ao espaço da luta de classes. A definição de Pêcheux permite, como aponta

Maingueneau,

uma dupla leitura, segundo se dá ênfase “àquilo que pode e deve ser dito” ou “articulado
sob a forma de uma arenga”. Na primeira leitura, a menção a diversos gêneros é
acessória; na segunda, o discurso não pode ser “articulado” senão por meio de um
gênero de discurso; e é preciso, então, pensar a relação entre “posição”, de uma parte, e
“arenga”, “sermão” etc., de outra parte. [...] o conhecimento do pensamento de Pêcheux
incitam a optar pela primeira leitura, que relega a segundo plano a problemática do
gênero. É a “posição” que é determinante, e o gênero de discurso não parece ser outra
coisa além do lugar onde se manifesta alguma coisa que, por essência, está escondida,
seguindo nesse aspecto o modelo psicanalítico dominante na época. (MAINGUENEAU,
2006, p. 12).

Mas, como já destacado, as definições canônicas de formação discursiva apresentadas

sucintamente acima revelam a problemática que Maingueneau pensa ser constitutiva da

discursividade: ao mesmo tempo submetida a processos tópicos – inscritas numa cartografia dos

usos linguageiros – e não tópicos – que acentuam “os processos de deslocamento, de

condensação ou a presença do interdiscurso no discurso” (MAINGUENEAU, 2007, p. 73). Tanto

em Pêcheux como em Foucault, os tipos de corpora construídos demonstram essa tensão: se, por

um lado, é possível associar os conjuntos discursivos a determinados espaços constituídos

previamente nas sociedades (sejam eles no nível de campos, de posições ideológicas etc.); por

outro, a configuração é estabelecida pelo analista, é ele quem decide por em relação aquele

conjunto e não outro.

A proposta de Maingueneau de definir as unidades de análise conforme critérios mais

ou menos cartográficos procura dar conta daquilo que ele chama, como visto, de “falha

constitutiva” da Análise do Discurso, acentuando, assim, o caráter “dinâmico e agentivo” do

conceito de formação discursiva.

No entanto, a definição de formações discursivas proposta por Maingueneau pode

trazer dificuldades ao analista, especialmente ao se deparar com o corpus ou com as questões

27
propostas para a pesquisa. No caso da presente pesquisa, se, por um lado, descartar o trabalho

com as chamadas unidades tópicas – em função das próprias hipóteses iniciais formuladas – foi

tarefa difícil, por outro, “enquadrar” a pesquisa em uma das unidades não tópicas provou ser uma

empreitada das mais árduas. Uma razão para isso está na subdivisão proposta por Maingueneau

para a constituição das formações discursivas, conforme apresentada a seguir.

***

Ao propor que se reserve o termo formação discursiva para aquelas unidades cuja

configuração dependeria de uma intervenção direta do analista (tais como o “discurso racista” ou

o “discurso colonial”, por exemplo) e cujos corpora correspondentes poderiam reunir tipos e

gêneros do discurso bastante variados – podendo mesmo misturar corpus de arquivo e corpus

construído pela pesquisa, tais como entrevistas e questionários (MAINGUENEAU, 2006, p.16) –,

Maingueneau percebe que seria necessário precisar melhor esse tipo de categoria. E isso porque,

segundo relata, um agrupamento de materiais sob o rótulo de “discurso racista”, por exemplo,

tem no racismo onisciente que governa a fala dos locutores um “foco único” que os faz convergir.

Nesse contexto, seria preciso dar conta daquelas unidades que, embora obedecendo os, digamos,

“requisitos” para a constituição das formações discursivas, não se submetessem a um sistema de

regras único que forçasse a convergência dos textos ali reunidos.

Com base nessa demanda, Maingueneau (2006) propõe que, diante de uma reunião,

em um mesmo corpus de diversos conjuntos discursivos, é possível a priori proceder de três

maneiras distintas, a saber: i) realizar uma simples comparação entre diversos sub-corpora

independentes uns dos outros, de modo a colocar em relevo determinadas características suas; ii)

definir uma formação discursiva unifocal dentro da qual os sub-corpora são governados por um

mesmo sistema de regras; iii) construir uma formação discursiva plurifocal, que não reduz os

28
diversos sub-corpora a um mesmo sistema de regras, preservando, assim, a sua heterogeneidade.

O ponto em comum entre as três possibilidades de formação do corpus está, reitere-se, no fato de

que os conjuntos discursivos reunidos são distintos; em outras palavras, trata-se de um

agrupamento de materiais não dado a priori, mas reunido intencionalmente pelo analista.

No caso de se tomar uma unidade como o “discurso racista”, por exemplo, é-se

obrigado a construir um corpus essencialmente heterogêneo que demonstre que, de fato, há a

constante presença de um racismo a governar a fala dos enunciadores. Segundo um exemplo dado

pelo próprio autor a partir da pesquisa de Foucault, que há um mesmo sistema de regras que rege

a fala desses enunciadores, não importando quão variado seja o conjunto de textos colhidos.

Trata-se, nesse caso, do que Maingueneau chamará de formações discursivas

unifocais. Um outro exemplo do que Maingueneau compreende por estabelecimento de uma

formação unifocal é a já mencionada pesquisa de Foucault relatada n’As palavras e as coisas,

um estudo que se esforça por encontrar a partir de que foram possíveis conhecimentos e
teorias; segundo qual espaço de ordem se constituiu o saber; na base de qual a priori
histórico e no elemento de qual positividade puderam aparecer ideias, constituir-se
ciências, refletir-se experiências em filosofias, formar-se racionalidades, para talvez se
desarticularem e logo desvanecerem. [...] Trata-se, em suma, de uma história da
semelhança. (FOUCAULT, [1966]2007, p. XVIII-XXI).

Maingueneau ainda destaca, a respeito desse trabalho de Foucault, que a

convergência desse conjunto de textos não foi dada de início e “produz acontecimentos cujo

interesse será tanto maior quanto mais inesperada for a configuração de textos da qual tal

convergência resulte” (MAINGUENEAU, 2006, p. 19).

No caso das formações plurifocais, não há um mesmo princípio que force a

convergência – como se dá no caso das unifocais, isto é, as diferenças são mantidas e não

anuladas em proveito de uma unidade superior. Maingueneau ilustra a oposição entre os dois

tipos de formações a partir de uma comparação com a noção de polifonia bakhtiniana. Nos

29
romances polifônicos, segundo Bakhtin ([1963]2008), não há o predomínio do ponto de vista do

narrador, de modo que “o que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande

coro de vozes que participam do processo dialógico” (BEZERRA, 2005, p. 194).

Mutatis mutandi, o analista do discurso que configura uma formação discursiva


plurifocal é um pouco como um dramaturgo. Da mesma maneira que este constrói um
espaço no qual as posições que se confrontam não estão unifocadas, o analista do
discurso, a partir de hipóteses de trabalho argumentadas, associa diversos conjuntos
discursivos em uma mesma configuração sem, no entanto, reduzir sua heteronímia.
(MAINGUENEAU, 2006, p. 18).

Ou seja, não basta reunir um conjunto discursivo variado para que se tenha uma

formação plurifocal; tomando como exemplo o corpus reunido na tese de Oger (2002),

Maingueneau (2006) aponta as possibilidades de tratamento ao corpus reunido, distinguindo a

comparação a que procedeu a autora da plurifocalização que ele propôs.

Oger (2002), analisando um corpus constituído de relatos da banca examinadora de

três concursos públicos para cargos de altos funcionários franceses 21, opta por uma abordagem

contrastiva. De acordo com Oger (2005, p. 122), seu projeto consistia principalmente em

identificar as leis do discurso bem formado segundo a banca que presidia a seleção dos

candidatos. Sua hipótese era a de que as restrições de boa formação diziam menos respeito ao

gênero, por exemplo, e mais a um vasto conjunto que integrava, por exemplo, a produção de um

ethos legítimo, a mobilização de conhecimentos diversos, a utilização de determinados

raciocínios etc. A partir daí, a autora empreende uma “busca”, no conjunto de textos reunidos,

pautada pelos conceitos elencados em sua hipótese inicial para ver, em cada banca, como se

define um “discurso bem formado”.

21
Trata-se de três instituições distintas: as Écoles de Administração, da Magistratura e de Guerra.
30
Distinta desse tipo de análise é o que Maingueneau chama de plurifocalização, que

pode ser exemplificada inicialmente pela análise apresentada em Gênese dos discursos

([1984]2005) dos discursos jansenista e humanista devoto:

Quando construí um “espaço discursivo” que relacionava duas unidades tópicas, neste
caso, dois posicionamentos em um mesmo campo — o humanismo devoto e o
jansenismo —, não era para comparar esses dois posicionamentos, mas para construir
uma unidade bifocal, uma interação fundada sobre um processo de “interincompreensão”
regrada. (MAINGUENEAU, 2006, p. 19).

Como havia aí dois conjuntos discursivos distintos, temos, portanto, uma formação

bifocal. Com essa reformulação em relação ao que se encontra reportado em Gênese dos

discursos22, Maingueneau pretende estabelecer critérios mais precisos para se utilizar a noção de

formação discursiva. No entanto, ao confrontar o corpus com as diferentes categorias propostas

por Maingueneau, encontramos algumas dificuldades para colocar em prática tais categorias: as

distinções entre os dois tipos de formação discursiva e entre a análise contrastiva pareciam por

demais fluidas para serem operacionalizadas. Em muitos momentos, quando o conceito parecia

ser cercado, tornava a escapar.

Na busca por uma maior clareza em relação ao cenário da plurifocalização, segue

abaixo, com um pouco mais de minúcias, um exemplo extraído das análises do próprio autor.

Objetivando “refletir sobre os processos discursivos que permitem suscitar a adesão a

uma certa ideologia” – a saber, a da superioridade da Europa Ocidental, especialmente em relação

aos “indígenas” – de uma perspectiva discursiva, i.e., sem passar pelas vias clássicas da

argumentação23, Maingueneau reúne em um mesmo espaço romances de Júlio Verne e manuais


22
Nesta obra, Maingueneau refere-se aos discursos Humanista Devoto e Jansenista como formações discursivas. A
partir da reflexão sobre a noção de FD, porém, o autor irá atribuir novo estatuto a esses discursos: trata-se agora de
posicionamentos. A formação discursiva é, por seu turno, a unidade formada pela interação entre os dois discursos –
unidade essa estabelecida pelo próprio analista.
23
Descartam-se, dessa forma, as seguintes concepções de argumentação:
a) aquela proposta por Ducrot e Anscombre, para quem a linguagem é constitutivamente argumentativa, no sentido
de que há sempre uma “orientação argumentativa” nos enunciados, i.e., as restrições que cada proposição representa
nos encadeamentos possíveis de que participa. O estudo dos operadores argumentativos é a manifestação mais visível
31
da escola republicana leiga na França no fim do século XIX. O corpus assim constituído intenta

colocar em relevo, portanto, a diferença entre as duas modalidades de formação discursiva

propostas por Maingueneau (unifocais e plurifocais), de modo que, conforme argumenta, há entre

os manuais e os romances uma visão educativa, o que faz com que tanto o foco dos manuais

quanto o dos romances estejam “ligados (do contrário, o fato de relacioná-los seria arbitrário),

mas suas diferenças não [são] anuladas em proveito de uma unidade superior”

(MAINGUENEAU, 2006, p. 17). Assim, a heterogeneidade dos conjuntos de textos que integram

o corpus é preservada na plurifocalização: os gêneros, os públicos, as ideologias e tipos de

discurso são distintos em cada conjunto, conforme argumenta o autor. Mas também essa

heterogeneidade, nos parece, pode ser mantida nos recortes unifocais – tome-se como exemplo a

pesquisa foucaultiana citada pelo próprio Maingueneau mais acima – e nas análises contrastivas.

A nosso ver, esse critério não serviu para dissipar as dúvidas.

Seguindo adiante, as análises de Maingueneau mostram que a eficácia do discurso que

promove a adesão à ideologia da superioridade da Europa ocidental repousa, nos materiais sob

análise, sobre dois recursos principais: a mobilização do interdiscurso e a reflexividade enunciativa.

A interdiscursividade manifesta-se em dois níveis: i) internamente ao sistema dos

manuais; e ii) entre os manuais e os romances. Nos manuais, o autor destaca a constante interação

existente entre as diversas matérias, seja por meio de referências de uma a outra, seja por meio do

que ele chama invariantes semânticas transversais, i.e., cada enunciado tomado individualmente

apoia-se sobre uma mesma rede de sentidos, o que contribui fortemente para lhe conferir o

deste nível;
b) aquela da retórica clássica, segundo a qual analisam-se textos em termos de teses defendidas e de argumentos
trocados sobre uma dada “questão”;
c) aquela de Amossy (2000) sobre a “dimensão argumentativa” de textos que não são propriamente
“argumentações”, i.e., textos que assumem uma determinada posição acerca de um debate na sociedade; diversos
gêneros podem estar aí incluídos: o artigo científico, a reportagem, as informações televisionadas, testemunho,
autobiografias etc. (MAINGUENEAU, 2011, p. 26).
32
estatuto de evidência24 (MAINGUENEAU, 2011, p. 30). Vejamos, no quadro abaixo, como o

autor exemplifica esse recurso:

Manifestações da Exemplos
interdiscursividade
uma lição sobre a fabricação de manteiga conduz a um curso de
higiene; os livros de moral aconselham utilizar os livros de
Referências de uma
história como um repertório de ilustrações de determinadas
disciplina a outra
virtudes (cf. a biografia dos “grandes homens”), e assim por
diante.
FRANCÊS/COLONIZADO >> ROMANOS/ GAULESES >>
RACIONALISTAS/SUPERSTICIOSOS >> PROFESSORES/
Existência de invariantes ALUNOS
semânticas transversais um enunciado de gramática >> um enunciado de geografia
um enunciado sobre os gauleses >> um enunciado sobre os
professores da 3ª República

Entre os manuais e os romances há também a manifestação de tal interdiscursividade.

Existe uma forte imbricação entre o discurso escolar e a narrativa ficcional25, de modo que esse

discurso apoia-se sobre uma narrativa, a história da França, não mais uma disciplina como as

outras, mas a legitimação mesma da República francesa. Um exemplo citado por Maingueneau

dessa imbricação é o manual de história de Lavisse ([1913]1939), em cuja capa se encontra a

imagem de um avô rodeado de crianças, com a seguinte legenda do próprio autor: “O ensino de

história a todos os pequenos deve ser como uma série de histórias contadas de avós para os netos”

(tradução nossa).

Além disso, muitos são os romances produzidos nesse período com o mesmo caráter

didático das Viagens extraordinárias de Júlio Verne: a metáfora da viagem é, nesse sentido,

constitutiva do percurso escolar.


24
“Chaque énoncé pris individuellement s’appuie sur ceux du même réseau de sens, ce qui contribue ainsi fortement
à lui conférer le statut d'une evidence”.
25
Os manuais escolares da escola laica, tendo surgido em seguida à instauração da República, deveriam ter por
função disseminar entre as massas a legitimidade da própria República. Já os romances de Júlio Verne participam,
por seu turno, de um processo de “escolarização” do mercado editorial francês, o que faz com que haja uma
convergência entre a narrativa ficcional e o discurso escolar.
33
O recurso da reflexividade enunciativa – a que Maingueneau (2011) chama “ponto

cego da atividade enunciativa”, posto que “não cessa de legitimar o texto que a contém” –

manifesta-se tanto no interior dos manuais como nos romances. Trata-se do enlaçamento entre o

conteúdo enunciado e a cena de enunciação mobilizada. Neste ponto reside uma significativa

diferença entre as perspectivas de um analista do discurso e de um historiador. Para o historiador,

afirma Maingueneau (2011, p. 29-30), o discurso seria uma espécie de veículo de uma certa

ideologia que ele, por meio de uma leitura atenta, decifra. Ao contrário, a AD não negligencia os

meios pelos quais uma organização textual pode ter uma eficácia ideológica. E é justamente aí

que encontramos o mecanismo da reflexividade funcionando exemplarmente.

Após a instauração da República – que “surgia como a finalidade profunda da

História”26, nas palavras de Maingueneau (2011, p. 29) – era preciso legitimá-la na consciência

das massas, papel este que cabia à escola (gratuita, obrigatória e laica) e, consequentemente, aos

manuais. Nessa conjuntura, a escola gratuita, obrigatória e laica surge como o “coroamento” do

“Progresso” que regia a história da França e da humanidade como um todo. Nesse sentido, a

reflexividade de que fala o autor reside precisamente nessa espécie de “circularidade”: “através

de seu discurso, a escola engendra-se a si mesma”27 (MAINGUENEAU, 2011, p. 31) e, por seu

turno, legitima a República recém-instaurada.

A escola é, assim, a um só tempo: i) o espaço que envolve concretamente a criança

(com suas salas de aula, seus cadernos, seus livros, seus professores, seus horários...); ii) um

lugar produzido pelos próprios manuais (que, continuamente, põem em cena de múltiplas formas

a figura da escola como o coroamento da civilização); e iii) a cena de enunciação didática no

26
“La III° République y apparaissait comme la finalité profonde de l’Histoire”.
27
“A travers son discours, l'école s'engendre ainsi elle-même”.
34
interior da qual o discurso mesmo é enunciado (como prática discursiva que associa intimamente

regras de vida e transmissão de conhecimentos) (MAINGUENEAU, 2011, p. 31).

Cette boucle qui va de la scène d’énonciation aux contenus se manifeste de manière


particulièrement exemplaire dans les livres d’histoire, dont le dernier chapitre ne manque
pas de montrer les enfants de l’école républicaine sagement assis dans une classe
moderne, image régulièrement associée, par contraste, à celle de l’école d’autrefois, sale,
chaotique. On comprend l'efficacité d'un tel discours: au-delà de toute argumentation,
l’école est l'évidence première dans laquelle est pris l’enfant, et elle transmue à son tour
en évidence un enseignement qui, quand il parle de la nature, de l'histoire, du bien et du
mal, en dernière instance parle aussi de l'Ecole elle-même.28 (MAINGUENEAU, 2011,
p. 33).

Nos romances, a reflexividade enunciativa é ainda mais evidente quando se tomam os

célebres episódios em que um pequeno grupo de ocidentais privilegiados viaja em algum meio de

transporte (submarino, balão, jangada...) – Maingueneau chama de “Esfera” tais meios – através

de um espaço a ser descrito/descoberto. Por meio da Esfera, descobre-se um mundo; também por

meio da leitura isso pode ser feito. Assim, a leitura é essa “Esfera última que permite viajar por

tudo sem sair do lugar”29 (MAINGUENEAU, 2011, p. 34; tradução nossa).

Seja no discurso escolar, seja nos romances, a Esfera passa, por vezes, por situações

em que é ameaçada. A ameaça é sempre múltipla (i.e., supera, em número, os ocupantes da

Esfera) e selvagem (i.e., não civilizada). Tais episódios de ataque da Esfera são relevantes para

que se visualize a relação entre os manuais escolares e os romances, apresentada pelo autor por

meio de dois recortes, cada um pertencente a um dos conjuntos discursivos: o episódio do Forte

de Mazagran e o episódio do ataque da Nautillus por uma multidão de selvagens.

28
Esse enlaçamento que vai da cena de enunciação aos conteúdos se manifesta de maneira particularmente exemplar
nos livros de história, nos quais o último capítulo não deixa de mostrar as crianças da escola republicana
silenciosamente sentadas em uma sala moderna, imagem frequentemente associada, em contraste, àquela da escola
de outrora, suja, caótica. Compreende-se a eficácia de tal discurso: para além de toda argumentação, a escola é a
evidência primeira na qual a criança é apreendida, e ela transforma, por seu turno, em evidência um ensino que,
quando fala da natureza, da história, do bem e do mal, em última instância fala também da própria escola. (tradução
nossa).
29
“Cette Sphère ultime qui permet de voyager tout en restant immobile”.
35
No curso elementar de História da França, de Lavisse, uma das páginas apresenta a

figura de um forte, situado no alto de um morro e em segundo plano, de modo que, no primeiro

plano da imagem, revela-se um combate entre cavaleiros árabes e soldados franceses. O texto

abaixo acompanha a figura:

Le combat de Mazagran - Pendant cette guerre, il y eut bien des batailles. L'Algérie est
habitée par des Arabes qui sont des soldats très braves. Une des plus célèbres batailles
fut celle de Mazagran. Cent vingt-trois français occupèrent un fort qui portait ce nom. Ils
y furent attaqués par les Arabes. L'image vous montre des Arabes qui arrivent au grand
galop de leurs chevaux. Ils sont vêtus d'un manteau blanc, qu'on appelle un burnous.
Vous en voyez qui tirent des coups de fusil vers le haut du mur. Nos soldats répondent.
Derrière les Arabes que vous voyez, d'autres arrivèrent. Ils furent bientôt douze mille.
Pendant trois jours, ils demeurèrent autour de Mazagran. Ils essayèrent de grimper à des
échelles pour atteindre le haut du mur. Mais nos soldats les repoussaient à coups de
crosse. Les douze mille Arabes virent qu'ils ne viendraient jamais à bout des cent vingt-
trois Français, et ils s'en allèrent. Dans toute la France, on parla du combat de Mazagran.
Tout le monde fut fier de la vaillance de nos soldats.30

O recorte do romance de Júlio Verne coloca máxima distância entre os atores

envolvidos, pois rebaixa o “selvagem” ao “macaco”.

Levantamo-nos os três, de espingardas em punho, prontos para responder a qualquer


ataque.
— Serão macacos? — perguntou Ned Land.
— Mais ou menos — respondeu Conselho. — São selvagens.
— Corramos para o bote! — apressei-os, dirigindo-me para o mar. 31

Vejamos o episódio que interessa mais de perto:

Os indígenas continuavam na praia, mas em número bem superior aos que eu vira na
véspera. Agora seriam uns quinhentos ou seiscentos. Aproveitando a maré baixa alguns
deles tinham avançado pelos corais e estavam a menos de quatrocentos metros do
submarino. Eu podia vê-los muito bem. Eram papuas, de porte atlético, homens de uma
bela raça, de testa alta, nariz grosso mas não achatado e dentes brancos. Em geral,
andavam nus. Notei a presença de algumas mulheres, vestidas com uma verdadeira saia

30
O combate de Mazagran – Durante esta guerra, houve muitas batalhas. A Argélia era habitada pelos Árabes, que
são soldados muito corajosos. Uma das batalhas mais célebres foi a de Mazagran. Cento e vinte e três franceses
ocupavam um forte que tinha esse nome. Eles foram atacados pelos árabes. A imagem mostra os árabes que
chegaram a cavalo. Eles estão vestidos com uma capa branca que chamamos “burnous”. Vejam que atiram com fusis
em direção ao muro. Nossos soldados respondem. Atrás dos árabes que vemos, outros chegaram. Eram 12 mil.
Durante três dias, eles permaneceram em torno de Mazagran. Tentaram subir as escadas para chegar ao alto
do muro. Mas nossos soldados os afastaram com golpes de espada. Os 12 mil árabes viram que jamais venceriam os
123 franceses, e se foram. Por toda a França, se falava do combate de Mazagran. Todo mundo estava orgulhoso da
valentia de nossos soldados. (grifos do original; tradução nossa).
31
Disponível em: <http://www.virtualbooks.com.br/v2/ebooks/pdf/00854.pdf>.
36
de ervas presa na cintura cobrindo até os joelhos. Quase todos os homens estavam
armados de arcos, flechas e portavam escudos. Traziam ao ombro uma espécie de rede
que continha as pedras arredondadas que atiram certeiramente com as fundas.

O efeito de evidência aqui apoia-se na referência a um saber etnográfico pré-

construído: “verdadeiros” papuas, o uso das aspas em “mado”, seguido da justificativa pautada

sobre um saber já estabelecido. A dêixis memorial evocada pelo artigo “as”, em “as pedras

arredondadas...”, que implica uma certa conivência com o locutor. Neste episódio, não há um

combate propriamente dito: o cabo elétrico – algo da ordem da magia para os papuas – serve

como arma.

Os episódios de ataque da Esfera “põem em evidência o que sustenta tacitamente o

conjunto do dispositivo, condição de uma colonização que permite precisamente eliminar o que

torna possível a existência de tais Hordas”32 (MAINGUENEAU, 2011, p. 42; tradução nossa).

Nas palavras do autor, a plurifocalização não é nem uma simples comparação e nem a

busca por uma “coerência escondida”:

L’analyste ne rassemble pas des données textuelles qui seraient « représentatives » d’une
« réalité » préexistante, mais, en fonction des objectifs sa recherche, il institue
souverainement une configuration originale. Une formation discursive plurifocale place
ainsi au premier plan les interrogations du chercheur, qui construit une certaine
configuration de textes pour répondre aux questions qu’il élabore, au lieu d’attendre que
la « réalité » discursive immédiate lui impose ses découpages.33 (MAINGUENEAU,
2011, p. 28).

Duas são, assim, as exigências com que o analista deve se preocupar ao construir um

corpus plurifocal: i) afastar-se de divisões preestabelecidas; ii) a configuração deve permitir

aumentar a inteligibilidade dos discursos envolvidos (MAINGUENEAU, 2011, p. 29).

32
“L’épisode critique de l’attaque de la Sphère par la Horde, au-delà, de son intérêt dramatique, met en évidence ce
qui soutient tacitement l’ensemble du dispositif, condition d’une colonisation qui permet précisément d’éliminer ce
qui rend possible l’existence de telles Hordes.”
33
“O analista não reúne os dados textuais que seriam “representativos” de uma “realidade” preexistente, mas, em
função dos objetivos de sua pesquisa, ele cria soberanamente uma configuração original. Uma formação discursiva
plurifocal coloca assim em primeiro plano os questionamentos do pesquisador, que constrói uma certa configuração
de textos para responder as questões que elaborou, em vez de esperar que a “realidade” discursiva imediata lhe
imponha suas camadas.” (tradução nossa).
37
Em síntese, apresentamos no quadro que segue as características referentes, de acordo

com a proposta de Maingueneau apresentada até aqui, às diferentes posturas que um analista do

discurso pode ter diante de um corpus constituído por conjuntos discursivos variados:

A noção de foco é, como parece, crucial para que se compreenda a distinção proposta

pelo autor. As reflexões empreendidas até o momento levam a conclusão de que foco, para o

autor, deve ser entendida como sinônimo de sistema de regras34. Nesse sentido, a formação
34
Como se verá mais adiante neste trabalho, essa definição proposta pelo autor não se mostra satisfatória. Afinal, a
própria definição do que seria um “sistema de regras” carece de maior especificidade. Entretanto, uma primeira
38
unifocal tem por meta evidenciar quais as regras a reger um conjunto heterogêneo de discursos.

Por outro lado, na formação plurifocal, não se busca encontrar uma “coerência escondida”, uma

vez que o objetivo do analista é compreender melhor o modo de funcionamento dos diversos

discursos envolvidos – para o que a colocação em relação desse mesmo conjunto contribui – mas

sem que, para isso, ele precise propor que haja um mesmo sistema de regras. De acordo com

Maingueneau, no caso de uma FD plurifocal, o que ganha destaque é a “pergunta” que o analista

propõe. No caso dos romances de Júlio Verne e dos manuais da escola republicana, por exemplo,

a pergunta era: de que modo é possível pensar a argumentação de uma perspectiva discursiva –

isto é, para além das considerações da retórica, da semântica etc. – de modo a apreender a

circulação de uma certa ideologia europeia no século XIX? O que ele mostra nas análises é,

justamente, que tal ideologia encontra-se disseminada tanto na escola quanto nos manuais, mas

não chega a propor um mesmo sistema de regras nem para os manuais nem para os romances.

Embora se possa perceber um certo tom crítico à ideia de uma “coerência escondida”, como

entendemos, Maingueneau parece não escapar daquelas rotinas acadêmicas; afinal, o que seriam

as figuras da Esfera e da Horda?

Em relação à oposição entre a análise contrastiva (ou comparação) e a

plurifocalização parece haver ainda maior chance de confusão. Isso porque Oger (2005) não

considera que esse tipo de análise mantenha – ou deva manter – blocos autônomos no interior do

conjunto discursivo reunido, característica esta que, para Maingueneau (2006), é distintiva entre

as duas abordagens.

Olhando para a pesquisa de Oger, contudo, observamos que a principal diferença

estava, também neste caso, na colocação em relevo da pergunta do analista. Na análise

leitura feita dos textos de Maingueneau em torno do tema nos levou a essa definição provisória.
39
contrastiva, trata-se de analisar, no interior do corpus reunido, o funcionamento de certas

categorias (como é o caso do ethos, por exemplo, na pesquisa da autora). Talvez seja por isso que,

para Maingueneau, as partes do conjunto acabem por manter uma certa autonomia: por mais que

a abordagem procure integrar os diversos grupos analisados, o que se tem, ao final, é sempre a

busca por um “discurso bem formado” a partir de categorias específicas de cada banca analisada.

Mas, de fato, a distinção ainda não parece essencialmente clara.

Diante disso, voltaremos às hipóteses de trabalho a fim de problematizar a escolha

por um dos tratamentos acima expostos. Embora tenhamos dito que não procuramos um modelo

para “encaixar” o material a ser analisado aqui, o leitor pode ficar com a impressão contrária. É

preciso esclarecer, nesse caso, que se trata, antes, de um exercício que visa colocar a questão da

constituição de corpus em AD em pauta, o que, como alerta Maingueneau (2006, p. 9), acaba por

provocar uma reflexão sobre a própria Análise do Discurso.

3.2 “Ajuntando” as pedras...

As discussões apresentadas aqui não são definitivas, especialmente porque não parece

ser possível garantir, antes das análises, a não ser como hipótese, se um conjunto de textos é

regido ou não por um mesmo sistema de regras. Apresentaremos as hipóteses que foram

formuladas num momento inicial de contato com o corpus, sem que análises mais aprofundadas

tivessem sido levadas a termo. Nos próximos capítulos, as análises serão apresentadas e, ao final

deste trabalho, retomaremos a questão referente ao modo de apreensão do corpus assim

constituído. É, pois, como “construção” que se devem ler as próximas linhas.

40
Se a questão nesta pesquisa é analisar como se constrói uma imagem do espaço

nacional brasileiro, a lógica é – e quanto a isso não cremos que haja dúvidas – a das unidades

não tópicas, posto que não há uma unidade estabelecida de antemão na sociedade na qual se

encaixaria o corpus reunido. A unidade construída não é, porém, aleatória: ela resulta, como

procuraremos mostrar nos próximos capítulos, de hipóteses históricas sobre a

construção/legitimação de um espaço brasileiro “genuíno” 35.

Krieg-Planque (2007, p. 58), discorrendo acerca de certas maneiras de se fazer análise

do discurso, observa – em torno das categorias propostas em Maingueneau (2006) – que as

unidades tópicas e não tópicas dão conta de interesses muito diferentes por parte dos analistas.

Para a autora, privilegiam-se as unidades tópicas no caso de o analista se interessar por

determinados gêneros ou tipos de discurso, tais como os manuais escolares ou as reuniões do

serviço hospitalar; ou ainda no caso de se desejar analisar os “registros” de enunciados

apreendidos segundo critérios linguísticos, funcionais ou comunicacionais. As unidades não

tópicas, por sua vez, servem a propósitos do tipo: i) compreender as propriedades do “discurso

colonial” de uma dada época; ii) localizar, no interdiscurso, enunciados em torno de uma dada

questão (por exemplo, sobre a responsabilidade social e ambiental das empresas).

***

Esta pesquisa começa olhando para o universo futebolístico, rapidamente

abandonado, como dito anteriormente. Mas foi a partir dele que surgiu o interesse em estudar a(s)

representação(ões) do Brasil no que concerne seu espaço. Assim como o futebol, o turismo e a

moda são espaços que projetam o Brasil interna e externamente e, ademais, valem-se fortemente

das imagens de paisagens “tipicamente” nacionais. É essa configuração – que certamente não é
35
O capítulo 2 procurará mostrar que, de fato, há uma formação discursiva – historicamente constituída – acerca de
um imaginário para o espaço nacional “típico” do Brasil.
41
dada de antemão – que será confrontada com as unidades não tópicas tais como propostas por

Maingueneau. Pareceu, assim, produtivo reunir em um mesmo espaço um conjunto de textos que

tocassem, de alguma forma, a construção de um espaço nacional e que fossem provenientes de

universos bastante distintos à primeira vista: do turismo e da moda. Os textos aí reunidos não

pertencem a um mesmo gênero, não são todos de um mesmo veículo nem de um mesmo autor ou

instituição; também não são destinados a um mesmo público. Em suma, trata-se de um universo

absolutamente heterogêneo e, em momento algum, se intentou reduzir a sua heteronímia.

Inicialmente, cogitou-se assumir o “discurso ecológico” de que falamos mais acima

como uma formação discursiva unifocal. Parecia, nesse sentido, proveitoso construir um corpus

com gêneros advindos de diversos campos e de posicionamentos variados em que se revelasse a

“presença onisciente” de um “discurso ecológico” ao se referir ao Brasil, ou melhor, ao espaço

nacional brasileiro. Enunciados como os listados a seguir reforçavam essa hipótese:

Enunciado Fonte
“Flávio Dino diz que mega-eventos esportivos Entrevista do Presidente da
desempenham um papel político relevante. A Copa da EMBRATUR Flávio Dino a Paulo
África do Sul mostrou que a democracia se tinha Henrique Amorim, em 14/09/2011.
instalado, depois do apartheid. A Alemanha da Copa Disponível em:
mostrou um pais cordial e pacífico, que contrastou com o <http://www.conversaafiada.com.b
passado belicista e invasor. A China mostrou que já era r/brasil/2011/09/14/dino-e-copa-
uma potência. Daí, o tema das Olimpíadas de Beijing ser um-brasil-lindo-e-competente>.
“um mundo, um sonho”. Essa é a tarefa da Embratur, Acesso em: 20/09/2011.
segundo Dino: mostrar um Brasil mais do que lindo.
Competente, também.”
“Mais que uma prainha bonita: Santa Catarina tem, em Revista Viagem e Turismo, n. 181,
Florianópolis, uma capital agora sofisticada que pode até nov. 2010.
dar as costas para o mar e cidades como Garopaba e
Balneário Camboriú”
“El sociólogo recifense Gilberto Freyre decía que sus Revista Viajar (Espanha), ago.
paisanos pernambucanos han formado una sociedad 2011.
introvertida, que no se entrega al primer contacto. Sin
embargo, el colorido de la terminal de llegadas del
aeropuerto internacional de Recife apunta a todo lo
contrario; su vitalidad, también. Y el paisaje, la costa, el
clima, la playa, y todo.
42
“O litoral norte do Espírito Santo é uma mistura de Revista Bancorbrás, ano XVI, n.
paisagens do Brasil [...]. Praias paradisíacas, enfeitadas 58, jan.fev.mar. 2009, p. 6.
por montanhas, dunas e por vestígios da colonização do
Brasil”.
“O produto turístico brasileiro caracteriza-se por oferecer TURISMO brasileiro. Wikipédia.
tanto ao turista brasileiro quanto ao estrangeiro uma Acesso em: 12/08/2009.
gama diversificada de opções, com destaque aos
atrativos naturais, aventura e histórico-cultural.”
“Desde o início da história do Brasil, a Amazônia foi um ROTHER, Larry. Deu no New
domínio de paisagens fantásticas e grande número de York Times: o Brasil segundo a
fábulas e lendas”. ótica de um repórter do jornal mais
influente do mundo. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2008, p. 282.
“[São Paulo, Rio de Janeiro and Belo Horizonte] are CLEARY, David, JENKINS,
worth visiting but Rio, which really is as beautiful as it Dilwyn, MARSHALL, Oliver. The
seems in pictures, is the one essential destination. [...] rough guide to Brazil. 7. ed.
The spectacular Iguaçu Falls on the border with Londres: Rough guides, 2009, p. 9-
Argentina is one of the great natural wonders of South 10.
America. [...] the Pantanal, the largest wetlands in the
world and the richest wildlife reserve anywhere in the
Americas”.
“Da floresta amazônica, no Norte, com forte presença BRASIL. Encarte Min. Turismo
indígena, aos Pampas, no Sul, passando pelo exuberante
Pantanal, no Centro-Oeste, e pela biodiversidade
incomparável da Mata Atlântica, na faixa litorânea, o
Brasil fascina por sua beleza natural.”
“No Brasil a exuberância da natureza está por toda Blog Agradece Brasil. Disponível
parte. Aqui você encontra uma imensidão das areias em:
desérticas dos Lençóis Maranhenses, mais de sete mil <http://www.agradecebrasil.com.br
quilômetros de praias e depara-se com rios que mais /?p=941>. Acesso em: 15/11/2011.
parecem mar. O Brasil é o país da maior floresta do
planeta, do impressionante Pantanal e de uma reserva
natural privilegiada.”
“Esse país, que é o único no mundo com nome de árvore, Programa No astral, do canal
reúne entre 15% e 20% de todas as espécies conhecidas GNT, exibido em 04/12/2011. O
e catalogadas. Não é pouca coisa. Algumas dessas excerto é extraído de entrevista
espécies só ocorrem aqui, no bioma amazônico, na maior com o jornalista André Trigueiro.
floresta tropical úmida do mundo, na caatinga, no Na chamada do vídeo no site,
cerrado, no Pantanal, na Mata Atlântica, no pampa encontra-se “André Trigueiro fala
gaúcho... Isso é de uma riqueza incomensurável [...]”. sobre a riqueza do nosso meio
ambiente”
“Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito Letra da música “País tropical”, de
por natureza” Jorge Ben Jor.
O “discurso ecológico” que, segundo a hipótese inicial de pesquisa, pudesse permear

a construção de um espaço nacional “genuíno” – assim como no exemplo do discurso racista


43
apresentado por Maingueneau (2006) –, não circularia por meio de gêneros ou campos

específicos, e também não seria de “responsabilidade” de uma dada comunidade ou instituição.

No entanto, a fórmula “desenvolvimento sustentável” analisada por Krieg-Planque (2010a) – e

sucintamente apresentada no início do capítulo – dá conta, pareceu-nos, do fenômeno que

identificamos no princípio no turismo: as referências ao ecoturismo poderiam ser lidas por essa

ótica. Assim, ainda que houvesse um, digamos, traço “verde” na caracterização do espaço

“genuinamente” brasileiro, seria ele o foco a unir os discursos analisados? Com efeito, não parece

que esses discursos estejam submetidos a algo que se pudesse chamar de um mesmo sistema de

regras. Além disso, não se trata em nosso caso de analisar propriamente o funcionamento de um

“discurso ecológico” em si, mas sim de verificar em que medida um tal discurso contribui para a

construção/legitimação de uma certa imagem do Brasil, mais especificamente acerca de seu

espaço. E nesse sentido – alguns dos recortes acima podem nos ajudar a ver isso, como o título de

matéria da revista Viagem e turismo: “Mais que uma prainha bonita” – não parece que a

“ecologia” possa ser apontada como um foco unificador dos discursos sobre o espaço brasileiro: é

certo que as belezas naturais estão pressupostas (afinal, Santa Catarina tem praias bonitas), mas

não são só elas que caracterizam o lugar.

Por outro lado, não se trata igualmente de perseguir os usos de uma determinada

forma linguística, ou sequências – o que imporia o estabelecimento de percursos. Tampouco

objetiva-se descrever certas categorias no interior dos campos levantados – no caso de se ter a

hipótese de que o funcionamento dos discursos sobre o espaço nacional obedecesse, de algum

modo, certas rotinas mais ou menos fixas em cada campo – ou seja, não era uma análise

contrastiva que serviria aos nossos propósitos.

44
Mas, ainda assim, a construção do corpus apoia-se sobre uma configuração original,

isto é, um recorte não dado a priori, mas soberanamente criado a partir de algumas hipóteses;

resta ainda a opção de organizá-lo como uma formação discursiva plurifocal. Uma configuração

plurifocal sempre nos pareceu de apreensão mais difícil, especialmente ao se considerar que se

poderia acabar fazendo uma comparação entre os materiais coletados. Além disso, a própria

análise de Maingueneau (2011) dos manuais escolares da 3ª República e as “Viagens

extraordinárias” de Júlio Verne pode deixar a impressão de que haja um mesmo “foco”, na

medida em que o autor propõe as figuras da Esfera e das Hordas. Será preciso, ao longo desta

pesquisa, tentar estabelecer uma distinção mais precisa entre ter focos “ligados” ou ter o

“mesmo” foco.

Como dissemos mais acima, o processo de constituição do corpus obrigou em

diversos momentos a repensar a melhor forma de apreendê-lo. Em nosso caso, talvez não seja

possível definir de uma vez por todas se se trata de uma formação discursiva unifocal ou

plurifocal. Por ora, o cenário parece ser o de uma plurifocalização – em que a heteronímia do

conjunto será mantida, embora haja, naturalmente, pontos de contato relevantes sobre a questão

proposta.

45
46
Capítulo 2 – A “invenção” do Brasil

47
A América não estava aqui à espera de
Colombo, assim como o Brasil não estava
aqui à espera de Cabral. Não são
“descobertas” ou, como se dizia no
século XVI, “achamentos”. São
invenções históricas e construções
culturais. [...] O Brasil foi instituído
como colônia de Portugal e inventado
como “terra abençoada por Deus” [...].
(CHAUÍ, 2006, p. 57)

1. Palavras iniciais

Antes das análises propriamente ditas, algumas palavras a respeito da histórica

relação entre Brasil e natureza são necessárias — e serão retomadas nas análises. Trata-se de

mostrar que estamos, de fato, diante de uma temporalidade que permite a formulação da hipótese

de uma formação discursiva. Neste capítulo olharemos para um conjunto de materiais que, ainda

que não integrem o corpus propriamente dito, serve de evidência de que há um discurso acerca do

Brasil no que concerne ao seu espaço que remonta ao período de seu descobrimento.

As referências a um Brasil “tropical”, “abençoado por Deus”, “bonito por natureza”,

“paradisíaco” fazem parte daquilo a que Chauí (2006) denominou mito fundador: uma espécie de

narrativa que impõe um vínculo interno com um passado de origem que, paradoxalmente, nunca

cessa, mantendo-se sempre perene. Isso significa, portanto, que “um mito fundador é aquele que
48
não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias,

de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo”

(CHAUÍ, 2006, p. 9).

Essas imagens que “inventam” um Brasil “verde-e-amarelo”36 estão fortemente

relacionadas àquilo a que chamamos aqui de espaço nacional – isto é, o que é tomado como

sendo a melhor representação do espaço físico de um país ou ainda uma “paisagem nacional

típica” (LÖFGREN, 2000) – e parecem ser aspecto bastante relevante de um ponto de vista

histórico. Com isso não se pretende dizer que esse traço não seja importante para outras (todas?)

as nações; trata-se, bem entendido, de reconhecer a sua importância no panorama brasileiro.

Tal é a relevância da paisagem nacional típica na “construção” ou “invenção” do

Brasil que, como aponta Chauí (2006, p. 62), a bandeira brasileira – em franca dissonância com

as bandeiras nacionais pós-Revolução Francesa, “insígnias das lutas políticas por liberdade,

igualdade e fraternidade” – é quadricolor e não guarda qualquer relação política, por um lado,

nem narra, por outro lado, a história do país: é um símbolo da natureza, “é o Brasil-jardim, o

Brasil-paraíso”. O verde das matas, o amarelo das riquezas (o ouro), o azul do céu e as estrelas,

brancas. A imagem seguinte evoca de maneira ainda mais evidente a relação entre a bandeira

brasileira e a “natureza exuberante” considerada característica do Brasil:

Fonte: <http://www.materiaincognita.com.br/o-melhor-do-lugar-do-mundo-e-aqui-e-agora/#axzz2xH6jj31P>.

36
Chauí (2006) chama “verdeamarelismo” a elaboração – por parte da classe dominante brasileira de um certo período
– de uma imagem celebrativa de um “país essencialmente agrário”. Tal imagem visava a legitimar, segundo a autora, o
que havia restado do sistema colonial e a hegemonia dos proprietários de terra no Império e início da República. Nessa
imagem, condensam-se o culto à natureza rica e bela do Brasil e a imagem de um povo pacífico e ordeiro.
49
Apresentaremos, então, neste capítulo algumas considerações acerca dessa

“invenção” do Brasil. O objetivo aqui não é ser exaustivo, mas oferecer alguns exemplos

representativos desse imaginário do espaço nacional ao longo do tempo — trata-se, portanto, de

mostrar as diversas retomadas em períodos distintos — a fim de mostrar que, de fato, a

perenidade é marca dessa imagem do Brasil.

2. No princípio era... o paraíso

Considerada a “certidão de nascimento” do Brasil, a Carta de Pero Vaz de Caminha

ao rei D. Manuel assim afirma — dentre outras coisas que deixamos de citar aqui:

Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra
ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que
haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em
algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima
toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito
chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a
estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos – terra que nos parecia muito
extensa.
Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro;
nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados
como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d’agora assim os achávamos
como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a
aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! (CAMINHA,
[1500]1963; grifamos).

O verde das matas, as belas praias, o clima agradável, as águas: elementos da natureza

pródiga com que o Brasil foi abençoado já se faziam presentes na carta que dava notícias sobre o

“achamento” da nova terra. De fato, o Brasil “paraíso” é uma imagem fortemente cristalizada,

como mostram os estudos de Holanda ([1959]2010) — comentados brevemente a seguir.

Analisando documentos históricos que datam da época do descobrimento e posterior

colonização da América do Sul, Holanda ([1959]2010) aponta que a “senha” para o entendimento

50
de diversos aspectos da civilização latina no Novo Mundo é o “motivo edênico”; desde o começo

das viagens de Colombo, “a crença na proximidade do Paraíso Terreal não é apenas uma sugestão

metafórica ou uma passageira fantasia, mas uma espécie de ideia fixa”, de modo que a “tópica

das ‘visões do paraíso’ impregna todas as suas [de Colombo] descrições daqueles sítios de magia

e beleza” (HOLANDA [1959]2010, p. 50-53).

Os relatos dos que no Novo Mundo estiveram nos primeiros anos — recortes dos

quais são apresentados e analisados por Holanda ([1959]2010) — são marcados por tentativas de

aproximação com elementos que pudessem de alguma forma remetê-los ao Éden bíblico — os

textos do Gênesis funcionam neste caso como uma espécie de “mapa do tesouro” dos

navegadores37. Três são os topoi recorrentes apontados pelo autor, a saber: i) a perene primavera e

temperança dos ares; ii) a longevidade dos seus nativos; iii) a ausência de pestilências e

enfermidades. Esses topoi encontram-se altamente imbricados, já que a falta de doenças e a

consequente vida longeva dos índios eram, em boa medida, atribuídas ao caráter ameno do clima

das novas terras.

Falando sobre o Brasil, por exemplo, podem-se citar – além da Carta de Caminha,

como vimos acima – passagens em que a amenidade do clima é destacada, como a seguinte, de

Gandavo (apud HOLANDA, [1959]2010, p. 26): “nesta província de Santa Cruz de tal maneira

se comediu a natureza na temperança dos ares, ‘que nunca se sente frio ou quentura excessiva’”;

ou a de Anchieta, para quem “não faltavam no tempo do inverno os calores do sol para

37
As passagens do Gênesis dão conta de características climáticas, de localização (por meio de elementos como rios)
e dos “residentes”. Uma delas que é inclusive recortada para comparações de Holanda está em Gênesis, 2: 10: “E
saía um rio do Éden para regar o jardim; e dali se dividia e se tornava em quatro braços”. Holanda ([1959]2010, p.
118-119), acerca dessa questão, observa: “Não é bem um eco desse pensamento, agora convertido em visão
premonitória e futurista, o que ressoa já no século XIX nas palavras de Hipólito da Costa, quando coloca a capital
imaginada do Brasil naquelas mágicas paragens, onde encontra ainda um sítio singularmente privilegiado a que não
faltam sequer as velhas sugestões edênicas? Lá aparecem os homens a encaminhar-se para um ‘país do interior
central e imediato à cabeceira dos grandes rios’”.
51
contrabalançar os rigores do frio, nem no estio para tornar mais agradáveis os sentimentos, as

brandas aragens e os úmidos chuveiros” (apud HOLANDA, [1959]2010, p. 26).

A “temperança” climática do novo continente — cuja descrição retoma a fórmula

bíblica “non ibi frigus non aestus” — permitia o florescimento de uma vegetação “exuberante” e

a obsessão dessa paisagem verdejante, de tão bons céus e ares que, se não liberta seus
moradores da lei da morte, imuniza-os, ou quase, de mortais pestilências e outros danos
cruéis, capazes de fazer definhar e padecer os homens em muitos lugares – com o que
atingem esses moradores excessiva longevidade – se enlaça estreitamente aos motivos
edênicos, tão populares durante as grandes navegações da época. (HOLANDA,
[1959]2010, p. 374).

A longevidade, por seu turno, é um elemento importante, pois trata-se de “atributo

dos patriarcas bíblicos e sucedâneo plausível, além disso, da imortalidade, própria do estado de

inocência em que foram postos os nossos primeiros pais no Paraíso Terrestre” (HOLANDA,

[1959]2010, p. 357).

O cenário encontrado pelos navegadores ao chegarem ao Novo Mundo era

absolutamente diverso daquele de onde vinham: uma paisagem de cores “exuberantes”,

proporcionada pelo clima temperado, responsável por garantir aos seus habitantes uma vida

longa, já que longe de enfermidades. Ou nas belas palavras de Holanda:

não admira se, em contraste com o antigo cenário familiar de paisagens decrépitas e
homens afanosos, sempre a debater-se contra uma áspera pobreza, a primavera
incessante das terras recém-descobertas devesse surgir aos seus primeiros visitantes
como uma cópia do Éden. Enquanto no Velho Mundo a natureza avaramente regateava
suas dádivas, repartindo-as por estações e beneficiando os previdentes, os diligentes, os
pacientes, no paraíso americano ela se entregava de imediato em sua plenitude, sem a
dura necessidade – sinal de imperfeição – de ter de apelar para o trabalho dos homens.
(HOLANDA, [1959]2010, p. 13).

O tema das cores que dominam o cenário brasileiro seria retomado anos mais tarde,

em 1940, quando da publicação de Marcha para o Oeste, de Cassiano Ricardo. Ao abordar a

formação da sociedade brasileira, através da mistura das raças, destacando a importância do

movimento de Entradas e Bandeiras, Cassiano Ricardo não se cansa de exaltar o “berreiro

52
cromático” que é o Brasil: “parece que Deus derramou tinta por tudo”, escreve ele. Do

“escândalo” de cores da natureza — do céu aos animais — o autor faz um paralelo com mistura

de raças que formam o povo brasileiro: “todas as cores raciais na paisagem humana”.

A literatura é, aliás, campo em que as representações do espaço nacional ganham

contornos mais, digamos, dramáticos. O Romantismo brasileiro38, interessado em promover

elementos “verdadeiramente” nacionais, desvinculados até certo ponto da antiga metrópole, foi

período marcado pela exaltação dos índios e da natureza. Em ensaio breve, Gonçalves de

Magalhães (apud ZILBERMAN & MOREIRA, 1999), escritor do romantismo brasileiro,

comenta a influência das paisagens sobre o universo artístico nacional:

O Brasil, tão fértil em produtos naturais, não o é menos em gênios raros. Teve seus
poetas, essa nação nascida ontem; aliás, o brasileiro nasce poeta e músico: à sombra de
suas altas palmeiras, ao som do violão agreste, sua imaginação se expande em acordes
melodiosos como a brisa de suas florestas virgens.

Os grifos acima evidenciam os elementos da natureza brasileira e sua influência sobre

os artistas nacionais. Como se verá nas análises, também no campo da moda destaca-se a

influência desses elementos sobre o caráter criador/criativo dos estilistas nacionais. A imagem

apresentada acima reitera as imagens paradisíacas das florestas virginais com brisas que tornam o

clima ameno.

Poema símbolo do período romântico é a célebre Canção do Exílio (1843), de

Gonçalves Dias:

Minha terra tem palmeiras,


Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

38
Essa escola é apontada por muitos críticos literários como a primeira verdadeiramente nacional, i.e., independente
de Portugal. Candido (1981, p. 23-24) observa, sobre esse tema, que só se pode considerar “literatura brasileira” – ou
de qualquer outra nacionalidade – quando há um sistema em que três elementos encontram-se consolidados, a saber:
i) obra; ii) autor; iii) público. No caso de haver autores cientes de seu papel, que escrevam obras capazes de despertar
o interesse e a formação de um público, um sistema se formará de modo a haver uma “continuidade literária” – em
oposição a um “movimento literário”, quando nem todos aqueles elementos encontram-se consolidados.
53
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,


Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,


Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,


Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Contrapondo as paisagens de Portugal (o “cá” do poema) e do Brasil (o “lá”),

exaltam-se os pássaros, as árvores, as flores, as várzeas, o céu: todo o cenário idílico que se

oferece ao “desfrute”. Na exaltação às cores do país, Cassiano Ricardo, quase um século depois

de Gonçalves Dias, irá também, no já citado romance Marcha para o oeste (1940), falar do céu

anil, das flores e das aves que gritam o amarelo avermelhado do ouro e do sol.

Nesse percurso em torno da construção da imagem cristalizada do espaço nacional,

merece destaque também o período compreendido entre o final do século XIX (especialmente a

última década) e início do século XX (as duas primeiras décadas, principalmente). Nesse período,

começa a ser produzida uma literatura de cunho cívico-pedagógico direcionada principalmente às

crianças — há inclusive o surgimento da revista O Tico-Tico39, primeira direcionada ao público

infantil. Entre os escritores que se dedicaram a essa literatura, encontramos Olavo Bilac, que

produz poema que se tornou emblemático desse momento; trata-se de Brasil40:

39
A primeira edição da revista data de 11 de outubro de 1905.
40
Esse mesmo poema pode ser encontrado também com o título de “A pátria”. Optamos por apresentá-lo com o
título “Brasil” por assim estar em coletânea de textos “patrióticos”, de Frederico dos Reys Coutinho, que será
54
Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! Não verás nenhum país como este!
Olha que céu! Que mar! Que rios! Que floresta!
A natureza, aqui, perpetuamente em festa,
É um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! Vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!
Boa terra! Jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha...
Quem com o seu suor a fecunda e umedece,
Vê pago o seu esforço, é feliz, e enriquece!
Criança! Não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste! (grifamos)

Os versos acima destacam aquilo que comumente se considera grandioso do país –

invariavelmente elementos da natureza: o céu, o mar, as matas... É também possível encontrar

nele o topoi da “primavera perene”, apontado em Holanda ([1959]2010) como característica do

Paraíso Terreal tão avidamente procurado pelos navegadores. Esse poema bebe no ufanismo de

Afonso Celso, que, em 1901, publica o não menos célebre Porque me ufano do meu país, com

motivos que vão da natureza à história, passando pelo povo. Chauí (2006, p. 51-52) assim

sintetiza as linhas sobre os motivos relacionados à natureza:

Do lado da natureza, o primeiro motivo de ufanismo é a grandeza territorial (“o Brasil


é um mundo” e “sobreleva em tamanho quase todos os países do globo. Quando lhe
falecessem outros títulos à precedência – e esses títulos abundam – bastava-lhe a
grandeza física”). [...] Ainda do lado da natureza, é motivo de orgulho a beleza
incomparável do país, atestada por viajantes e poetas que cantam seus primores (a
fauna, a flora, o Amazonas, a Cachoeira de Paulo Afonso, a baía de Guanabara). Vêm a
seguir as riquezas naturais (“o Brasil as possui todas”), que permitem “a distribuição
natural da riqueza conforme as leis naturais do trabalho”, de sorte que são protegidas as
liberdades de todos e “não conhecemos proletariado, nem fortunas colossais [...], nem
argentarismo, pior que a tirania, nem pauperismo, pior que a escravidão [...]. No Brasil,
com trabalho e honestidade, conquistam-se quaisquer posições”. O motivo seguinte é a
variedade e amenidade do clima, graças ao qual “nenhuma moléstia lhe é peculiar ou
exclusiva”, “nenhum problema sanitário se lhe apresenta insolúvel”, as feridas e
amputações, aqui, cicatrizam mais depressa do que em hospitais do velho mundo e [...]
“a temperatura não incomoda ou acabrunha o homem, exigindo-lhe sacrifícios”. Por fim,
é preciso mencionar a ausência de calamidades, isto é, “privilegiado da Providência”, o
Brasil não registra flagelos, catástrofes como ciclones, terremotos, vulcões, correntes
traiçoeiras, furacões. Em resumo, o brasileiro pode confiar na Natureza, pois ela não o
trai, não o surpreende nem o amedronta, não o maltrata nem o aflige. “Dá-lhe tudo

apresentada mais adiante. Nessa mesma coletânea, há um outro poema de Bilac com o título de “Pátria”.
55
quanto pode dar, mostrando-se-lhe sempre magnânima, meiga, amiga, maternal!”.
(grifamos).

Dos cinco motivos acima citados – e que grifamos – encontramos referência a dois

topoi descritos por Holanda ([1959]2010), a saber: a temperança dos ares e a ausência de

pestilências e enfermidades (em Afonso Celso não se fala em “ausência”, mas aqui seriam mais

amenas, ou com cura mais rápida). Além disso, encontramos aqui a exaltação das belezas e das

riquezas naturais, bem como da grandeza do país – ecos do que lemos no excerto da carta de

Caminha. Finalmente, o poema de Bilac apresentado anteriormente também apoia-se no ufanismo

de Afonso Celso: a natureza “maternal” (que oferece as condições para o crescimento de todos –

qualquer posição almejada é alcançada com trabalho), a “grandeza” da terra (a ser imitada) e, não

menos importantes, as belezas e riquezas naturais.

Durante a chamada Era Vargas (1930-1945), o ufanismo também teve forte presença.

É dessa época o movimento na música popular brasileira que ficou conhecido como samba-

exaltação e que teve na Aquarela do Brasil o seu marco inaugural, em 1939. De autoria de Ary

Barroso, a canção articula dois grandes temas da “grandeza” nacional: a natureza e o povo, aqui

representado pela figura miscigenada do mulato. A imagem do Brasil-jardim ou Brasil-paraíso é

atualizada por meio da referência ao verde, às noites enluaradas, ao coqueiro, às fontes. Não se

pode esquecer ainda que a “terra abençoada por Deus” – presente inicialmente na carta de

Caminha (“Nosso senhor não nos trouxe sem causa”) – também encontra ecos na canção de

Barroso (“terra de Nosso Senhor”):

Brasil, meu Brasil Brasileiro,


Meu mulato inzoneiro,
Vou cantar-te nos meus versos:

O Brasil, samba que dá


Bamboleio, que faz gingar;
O Brasil do meu amor,
Terra de Nosso Senhor.
Brasil!... Brasil!... Prá mim!... Prá mim!...

56
[…]
Brasil, terra boa e gostosa
Da moreninha sestrosa
De olhar indiferente.

O Brasil, verde que dá


Para o mundo admirar.
O Brasil do meu amor,
Terra de Nosso Senhor.
Brasil!... Brasil! Prá mim ... Prá mim!...

Esse coqueiro que dá coco,


Onde eu amarro a minha rede
Nas noites claras de luar.
Ô! Estas fontes murmurantes
Onde eu mato a minha sede
E onde a lua vem brincar.
Ô! Esse Brasil lindo e trigueiro
É o meu Brasil Brasileiro,
Terra de samba e pandeiro.
Brasil!... Brasil! (ARY BARROSO, 1939; grifamos).

A canção de Ary Barroso destaca o “verde” do Brasil que o mundo admira e “inveja”,

como diz Casimiro de Abreu, e que nas palavras de Bilac “não tem rival”. O coqueiro, as fontes e

a noite enluarada: elementos da natureza do país que são frequentemente atualizados nas páginas

de nossa história. Mesmo quando se valorizam outros elementos do “caráter” nacional – o povo,

os ritmos – a natureza nunca chega a ser posta de lado.

Exemplo disso é a antologia organizada por Frederico dos Reys Coutinho, em 1954,

intitulada As mais belas poesias patrióticas e de exaltação ao Brasil. Trata-se de período em que

houve muitos avanços tecnológicos (as transmissões pela televisão, por exemplo), além de ser

período marcado por conflitos internacionais e, em tal contexto, os aspectos acima poderiam ser,

se não abandonados, enfraquecidos. A coletânea é, contudo, organizada em quatro seções, a

saber: i) A pátria e a bandeira; ii) A raça e a natureza; iii) Vultos ilustres e páginas da história

brasileira; iv) Diversas, hinos e canções. A antologia é composta de 140 peças, dentre hinos,

canções e poemas de autores variados, dentre os quais podemos citar Olavo Bilac, Cassiano

Ricardo, Castro Alves, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela. Mesmo havendo seção específica

57
para tratar das grandezas naturais do Brasil, é possível encontrar referências a ela em todas as

demais seções – mesmo não sendo tema das peças, a natureza se faz presente em grande número

dos poemas e canções. Um exemplo é “Minha terra”, de C. de Abreu, da primeira seção, que,

narrando um período da história do país, da descoberta à independência, canta em muitos versos a

sua “grandeza” natural, “do mundo todo invejada” porque “Deus fadou-a/ dentre todas – a

primeira:/ Deu-lhe esses campos bordados,/ Deu-lhe os leques da palmeira” (grifamos). A

primazia destacada acima evoca memórias do Éden bíblico, a primeira casa do homem. Sua

última estrofe assim diz:

Tem tantas belezas, tantas,


A minha terra natal,
Que nem as sonha um poeta
E nem as canta um mortal!
— É uma terra de amores,
Alcatifada de flores,
Onde a brisa em seus rumores
Murmura: — não tem rival!

Os temas “patrióticos” — vultos da história, a pátria e a bandeira — aparecem

juntamente com a natureza, que, embora não ocupe a “primeira posição” na compilação, reúne

muitos materiais que atualizam os motivos edênicos da época do descobrimento. Um dos poemas

compilados é um excerto de Caramuru (1781), de Santa Rita Durão — Descrição do Brasil.

Parece-nos interessante apresentar duas estrofes aqui: a primeira delas inicia apresentação das

grandezas do país, de modo que as que a seguem irão esmiuçar os diversos rios e alguns artigos

“cobiçados” naquela época (cana e tabaco); já a segunda a ser citada aqui é justamente a última

presente na antologia de Coutinho, que retoma o “em se plantando tudo dá” que — embora não

estivesse assim presente em Caminha — é passagem frequentemente associada ao documento:

Mil e cinqüenta e seis léguas de costa,


De vales e arvoredos revestida,
Tem a terra brasílica composta
De montes de grandeza desmedida.
Os Guararapes Borborema posta

58
Sobre as nuvens na cima recrescida,
A serra de Aimorés, que ao pólo é raia,
As de Ibo-ti-catu e Itatiaia.

Ervilha, feijão, favas, milho e trigo,


Tudo a terra produz, se se transplanta;
Fruta também, o pomo, a pêra, o figo
Com bífera colheita e em cópia tanta,
Que mais que no país que o dera antigo
No Brasil frutifica qualquer planta;
Assim nos deu a Pérsia e Líbia ardente
Os que a nós transplantamos de outra gente.

Os anos da ditadura militar (1964-1985) também cultivaram o sentimento ufanista no

país. Em agosto de 1969, é lançada música que até os dias de hoje é lembrada quando se trata de

exaltar as belezas nacionais: País tropical, de Jorge Ben Jor. A música encaixa-se perfeitamente

no ufanismo (militarista) que se vivia: “Moro num país tropical/ Abençoado por Deus/ E bonito

por natureza [...]”. No entanto, a imagem típica do “verdeamarelismo” não era tão forte assim

nesse período. E isso decorre, até certo ponto, do fato de que a exaltação das características mais

“agrárias” iam de encontro ao “projeto político” do nacional desenvolvimentismo, momento em

que a ênfase na atividade industrial era maior. Chauí (2006) observa que, nesse contexto, o

“verdeamarelismo” permanece, porém; e isso se dá, segundo a autora, por dois motivos:

em primeiro lugar, ele permitia enfatizar que o país possuía recursos próprios para o
desenvolvimento e que a abundância da matéria-prima e de energia baratas vinha
justamente de sermos um país de riquezas naturais inesgotáveis; em segundo lugar, ele
assegurava que o mérito do desenvolvimentismo se encontrava na destinação do capital
e do trabalho para o mercado interno e, portanto, para o crescimento e progresso da
nação contra o imperialismo ou a antinação. (CHAUÍ, 2006, p. 40).

Mas como nem tudo eram flores,

o verdeamarelismo tradicional – o da rica e bela natureza tropical e o do povo ordeiro e


pacífico, ou o do “caráter nacional” – sofreu um forte abalo, pois passou a ser visto pelos
promotores do nacional-desenvolvimentismo como signo da alienação social dos
“setores atrasados” das classes dominantes e das massas populares, obstáculo contra o
desenvolvimento econômico e social, que seria obra da burguesia nacional industrial
moderna e das classes médias conscientes, encarregadas de conscientizar as massas.
(CHAUÍ, 2006, p. 40).

59
Assim, o verdeamarelismo constituiu-se, nesse período, um pano de fundo até certo

ponto “ambíguo” e “difuso” — ao mesmo tempo expressão de nacionalismo espontâneo e, por

outro lado, significando alienação. No entanto, nunca chegou a ser totalmente abandonado ou

posto de lado e volta a ser, nos anos que seguem, reinvestido.

Durante a ditadura, houve também grande controle dos sambas-enredo produzidos no

carnaval carioca — evento “genuinamente” nacional. Os versos eram duramente censurados e os

desfiles seguiam um certo padrão em conformidade com o nacionalismo exacerbado do período.

Com letras que incorporavam, em sua maioria, os slogans militares, o carnaval do Rio de Janeiro

também testemunhou o “verdeamarelismo” típico, por exemplo, no desfile da Mangueira em

197041, quando a escola traz para a avenida o enredo Um cântico à natureza. É possível notar na

letra do samba referências claras à carta de Caminha (sublinhadas), à Canção do Exílio

(negritadas), de Gonçalves Dias e ainda ao poema Brasil (em itálico), de Bilac.

Brilhou no céu o sol oh! que beleza


Vem contemplar a natureza
Vem abrasar a imensidão, imensidão...
Onde na pesca ou na plantação
Pedras preciosas ou mineração
Rios cachoeiras e cascatas
Frutos pássaros e matas
Enobrecem a nação
Oh! lugar... oh! lugar...
Tudo que se planta dá
Terra igual a esta não há
Imenso torrão de natureza incomum
Onde envaidece qualquer um
Praia e flores
Inspiram amores
E o petróleo te deu mais vida
Solo de vultos imortais
Direi teu e não esquecerão jamais
Oh! pátria querida
De natureza tão sutil
Tens belezas mil
Isto é Brasil... isto é Brasil... isto é Brasil...
41
Cumpre fazer um esclarecimento: o samba enredo da Mangueira de 1955 foi Cântico à natureza – nome
semelhante ao de 1970 a que nos referimos aqui. O samba de 1955 tratava de outro tema, as estações do ano, e, mais
tarde, foi gravado sob o título de As quatro estações.
60
Interessante é encontrar, porém, um samba enredo como o da Portela que, em 1956,

traz em sua letra a exaltação das forças militares e, tal como o samba enredo acima, também traz

referências explícitas ao civismo pregado por Bilac (em itálico), bem como à “dádiva” de Deus a

que Caminha referia-se (sublinhado). Bastante sugestivo é o título: Riquezas do Brasil. Vejamos:

Brasil tu és uma dádiva divina


Cacau, cana-de-açúcar e algodão
Borracha, mate e café
Frutos desta imensa nação
Tendes o campo tão fértil em matéria-prima
E as tuas riquezas invejam o mundo
Jazidas tais e tamanhas
Em teu solo tão fecundo
Há nas tuas entranhas
Ouro e manganês
E outros minerias
És forte, belo e varonil
Brasil, Brasil, Brasil
Tuas gloriosas Forças Armadas
Com desvelo zelam pelo teu tesouro
Em tua história consagrada
Escreveram páginas de ouro
Guias defensores de amanhã
Futuros doutorandos do Brasil
Estejam sempre alertas
Tragam na lembrança
O conselho do poeta
Criança não verás país nenhum como este
Imita na grandeza
A terra em que nasceste

O percurso feito até aqui permite observar as diversas retomadas que são feitas das

ideias presentes na Carta de Caminha ao rei D. Manuel, considerada a certidão de nascimento do

Brasil, bem como dos topoi que marcaram a era dos descobrimentos segundo as análises de

Holanda ([1959]2010); além dos versos que, em nossa literatura, tornaram-se sinônimo de

nacionalismo e de exaltação das “belezas”, “riquezas”, “grandezas” do país. Reiteramos que o

objetivo aqui não foi, como se pode notar, ser exaustivo — trata-se, antes, de mostrar como, ao

longo do tempo e em diversos campos, se foi construindo um imaginário do Brasil no que diz

respeito à sua imagem “típica”.

61
Segundo Chauí (2006) — apoiando-se em e referendando, em parte, os estudos de

Holanda ([1959]2010) —, é da época da colonização da América e do Brasil o surgimento dos

elementos que constroem o mito fundador nacional: “a obra de Deus, isto é, a Natureza, a palavra

de Deus, isto é, a história, e a vontade de Deus, isto é, o Estado” (CHAUÍ, 2006, p. 58). O mito

fundador é, segundo a autora, um meio para a solução de conflitos e apagamento de contradições

no presente, pois, em certa medida, não permite operar sobre a diferença temporal, impedindo o

entendimento do presente enquanto tal: “nosso passado assegura nosso futuro num continuum

temporal que vai da origem ao porvir”, já que, “se o Brasil é ‘terra abençoada por Deus’, se é

paraíso reencontrado, então somos berço do mundo, pois somos o mundo originário e original”

(CHAUÍ, 2006, p. 75).

Ao qualificar tais narrativas de mito fundador, Chauí pretende dar conta do fato de

que ele “oferece um repertório inicial de representações da realidade e [...] sob novas roupagens,

o mito pode repetir-se indefinidamente” (2006, p. 10) e foi o que tentamos mostrar até aqui: os

diversos reinvestimentos desse Brasil “inventado”, em última análise, no seu “descobrimento”.

O próximo tópico trará alguns exemplos coletados nos materiais que compõem o

corpus desta pesquisa a fim de explicitar a relação entre o que foi exposto até o momento e as

análises que seguirão.

3. Moda e turismo: atualizações da “invenção”

O espaço discursivo (MAINGUENEAU, [1984]2005) recortado para as anállises

propriamente ditas engloba turismo e moda, ambos bastante representativos do Brasil no exterior,

i.e., são cenários que contribuem grandemente para a construção de representações do Brasil,

62
inclusive no que tange a uma paisagem típica. Daí sua escolha. Se insistimos na construção do

imaginário sobre esse espaço nacional é porque ele parece ser fator importante para a identidade

nacional42, como mostra a declaração de Joseph Blatter, presidente da FIFA, que afirmou estar

“impressionado” com a proposta de uma “copa ecológica”43 que, segundo ele, só poderia ter sido

feita pelo Brasil. Tal declaração funcionou, já dissemos, como “pontapé inicial” para a

problemática aqui apresentada: a construção de um Brasil “genuíno” no que diz respeito ao seu

espaço. O que chama a atenção nela é que mesmo diante de elemento tão constitutivo da

identidade nacional — o futebol —, o aspecto “ecológico”, obviamente atrelado às paisagens

“genuinamente” brasileiras, aparece. Ou seja, a relevância de tal elemento na construção do

nacional não pode ser ignorada.

Vimos anteriormente que a colonização da América Latina como um todo e, mais

especificamente do Brasil, foi marcada pela busca de “evidências”44 de que aqui estava o paraíso

terreal, como aponta obra de Holanda ([1959]2010). E essa imagem permanece ainda muito forte

no imaginário acerca do Brasil, como revela Carvalho (1998) em trabalho mais recente, mas

fortemente influenciado pela obra de Holanda ([1959]2010). Diferentemente deste último autor 45,

Carvalho (1998) detecta, num corpus constituído de pesquisas de opinião de 1997, que, ao lado

dos mesmos motivos edênicos levantados por Holanda, há uma oposição — que ele chama de
42
O tema da identidade nacional já foi tratado em outra pesquisa nossa (VILELA-ARDENGHI, 2007), mas o
enfoque lá era em torno da relação com a língua. A questão identitária, portanto, é de particular interesse para nós.
43
Quando da proposição do Brasil como candidato à Copa de 2014 da FIFA, o marketing da candidatura girou em
torno da ideia de uma “copa ecológica”.
44
De acordo com Holanda, a partir do século XVI, os escritos portugueses tornam-se cada vez menos “sóbrios e
realistas” e ganham ares de “efusões mais desvairadas” (p. 27). Exemplo disso é obra do português Antonio León
Pinelo que, sem hesitar, aponta, com base no texto bíblico, que o paraíso terreal encontrava-se na América. Além
dele, Simão de Vasconcelos, ao escrever “Notícias curiosas e necessárias das coisas do Brasil” (que abre a Crônica da
Companhia de Jesus), colocava “nos sete últimos parágrafos [...] a teoria de que estava na América o Paraíso, e mais
precisamente no Brasil” (p. 28).
45
Para Holanda, as “imagens negativas” ou “negadoras” da visão edênica não eram suficientemente relevantes para
fazerem frente “aos mesmos extremos a que chegou sua [da América do Sul] idealização. Ou melhor, não
conseguiram cristalizar-se, salvo como opiniões individuais e sem muita força de contágio” (HOLANDA,
[1959]2010, p. 32)
63
razão satânica — responsável pelas representações negativas do brasileiro: sua pequenez diante

da natureza e seu pouco engajamento político e social. Note-se, porém, que essa imagem negativa

recai sobre o povo, mas não modifica a concepção do espaço nacional “típico” do Brasil. Ao

contrário, a grandeza da natureza funciona aí como elemento que cerca o povo brasileiro,

mostrando-lhe sua “insignificância”.

De fato, se a relação direta46 com o paraíso bíblico apontada por Holanda

([1959]2010) vai com o tempo se diluindo, ainda atualmente a ideia de que no Brasil se tem um

cenário paradisíaco permanece. E o “paraíso” aí implicado é invariavelmente relacionado à

natureza, às belezas naturais, como bem se pode observar nos recortes que seguem 47, extraídos do

turismo:

(1) Praias paradisíacas, enfeitadas por montanhas, dunas e por vestígios da colonização
do Brasil. Assim é o Espírito Santo [...]. (Revista Bancorbrás, ano XVI, n. 58,
jan./fev./mar. 2009, p. 6)

(2) Ano novo: momento de renovação, férias e aventuras sob o generoso sol do verão
brasileiro! [...] Os diversos vôos diários ao Rio de Janeiro, por exemplo, tornam mais
acessível um dos paraísos turísticos brasileiros: Angra dos Reis [...], que oferece 365
ilhas, uma para cada dia do ano, oito baías e mais de duas mil praias compondo um
cenário deslumbrante para o turista em busca de belezas naturais. (Avianca em Revista,
ano III, n. 19, 2010, p. 10)

(3) [Uma das baías de Angra] abriga inúmeras ilhas, praias paradisíacas e um mar de
águas transparentes [...]. (Avianca em Revista, ano III, n. 19, 2010, p. 52)

(4) Little by little, however, we start to discover paradisiacal places filled with
attractions such as waterfalls, caves and lagoons, all endowed with complete infra-
structure for visitors of all ages who look for adventure, radical sports and all the thrill
the Brazilian Central Plateau has to offer. (Brasil Central, encarte EMBRATUR e
Ministério do Turismo do Brasil, s/d)

46
Segundo relata Holanda ([1959]2010, p. 28), em texto de Pinelo, impresso pela primeira vez em 1663, “nos sete
últimos parágrafos vinha explanada a teoria de que estava na America o Paraíso, e mais precisamente no Brasil. Já se
achavam prontos dez exemplares da obra quando veio ordem superior para se riscarem aqueles parágrafos”. A ordem
superior, bem entendido, vinha da Igreja Católica. Vê-se, assim, que a havia na época uma necessidade de localizar
efetivamente na Terra o Paraíso. Além disso, Holanda ([1959]2010) aponta também que as indicações para que se
pudesse encontrar geograficamente o paraíso eram extraídas da Bíblia.
47
Dada a imensa quantidade de referências como essas nos materiais de nosso corpus, apresentaremos aqui alguns
recortes apenas.
64
(5) Mato Grosso presents an enormous diversity of natural landscapes: the cerrado, the
Amazon rainforest and the Pantanal. A paradise for rare bird species. (Brasil Central,
encarte EMBRATUR e Ministério do Turismo do Brasil, s/d)

(6) In Caldas Novas, Rio Quente, Lagoa Santa, Jataí and Cachoeira Dourada, you will
feel the pleasure of a unique experience: relaxing in hot water right in the middle of
paradise. (Brasil Central, encarte EMBRATUR e Ministério do Turismo do Brasil, s/d)

(7) Porto de Galinhas é um verdadeiro paraíso tropical! São quilômetros de areias finas,
banhadas por águas de uma gama de tons de verde impressionante. Neste local mágico,
onde o sol brilha muito,há maravilhosos arrecifes que formam deliciosas piscinas
naturais. (Revista de Turismo, disponível em:
<http://www.revistaturismo.com.br/passeios/p-galinhas.htm>)

(8) [Cabo de Santo Agostinho] Pertence à zona metropolitana de Recife e basta percorrer
37 quilômetros rumo ao sul para alcançar esse pedaço do paraíso. (Revista da
Bancorbrás, ano XVI, n. 65, out./nov./dez. 2010, p. 13)

Como se pode ver nos recortes acima, quase sempre as referências ao paraíso dizem

respeito às praias, mas sempre às belezas naturais. Julgamos não ser necessária a apresentação de

mais recortes na medida em que eles reiteram os aqui apresentados em que tentamos mostrar a

diversidade de suportes em que aparecem.

Além desses exemplos acima, há ainda um outro encarte48 produzido pelo Ministério

do Turismo do Brasil — e que integra o seu Programa de Regionalização do Turismo — em que

podemos encontrar, no total de 87 roteiros turísticos, dezesseis referências ao paraíso que é o

Brasil. Destacamos algumas a seguir:

(9) A Ilha de Marajó guarda verdadeiros tesouros turísticos. Danças típicas, assim como
a cerâmica e a culinária marajoaras, ajudam a enriquecer o cenário paradisíaco. (p. 23)

(10) A densa vegetação, os paredões ao redor e o vapor d’água dão a impressão de


paraíso. (p. 28)

(11) Os baianos têm tudo para se orgulhar da Costa do Dendê. O Arquipélago de


Tinharé, por exemplo, reúne 36 ilhas paradisíacas. (p. 36)

(12) A partir de Jeri, pode-se visitar várias outras praias nas redondezas. O que não falta
são lugares paradisíacos para o turista desfrutar. (p. 41)

(13) As cidades de João Pessoa, capital da Paraíba, Conde e Cabedelo são bem próximas
e oferecem opções que vão das belas e paradisíacas praias até igrejas, casarios e
monumentos históricos típicos do início da colonização brasileira. (p. 46)
48
Este encarte (BRASIL. Ministério do Turismo. Roteiros do Brasil: 87 belos motivos para viajar pelo Brasil,
2009.) será objeto de análises mais detidas no capítulo seguinte.
65
(14) As cidades de Miranda, Corumbá e Bonito são os portais de dois dos mais
espetaculares paraísos ecológicos: o Pantanal Sul-Matogrossense e as águas cristalinas
de Bonito. (p. 71)

(15) Três Estados [da região Sudeste] têm litoral e, portanto, ostentam ilhas e praias
paradisíacas.

(16) A Costa Verde, no sul, ostenta dezenas de ilhas paradisíacas, praias, enseadas
sinuosas e montanhas. [...] Situada no Médio Vale do Rio Paraíba, a Região das Agulhas
Negras alia vegetação exuberante, cachoeiras e recantos paradisíacos a um imponente
conjunto de formações rochosas. (p. 85)

(17) Verdadeiro paraíso ecológico, berço da civilização brasileira, a Costa do


Descobrimento, na Bahia, ostenta praias maravilhosas, entrecortadas de rios, coqueirais,
Mata Atlântica, manguezais e falésias. (p. 115)

No campo da moda, esse paraíso vem representado, por exemplo, pelas ricas flora e

fauna que aparecem não apenas nas estampas, mas também nos cenários dos desfiles e catálogos:

Verifica-se ainda um grande número de enunciados que remetem a questão presente,

por exemplo, na Marcha para o oeste, de Cassiano Ricardo: o colorido nacional (“parece que

Deus derramou tinta por tudo”; “berreiro cromático”). Vai nessa direção a declaração da estilista

brasileira Isabela Capeto:

(18) Muitas pessoas nem sabem que sou brasileira. Mas sei que se fosse sueca minhas
roupas nunca teriam esse colorido, esse bordado, esse tempero.49 (grifamos).

Tufi Duek, outro estilista nacional, também destaca a relevância das cores para a

moda brasileira:
49
In: MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 130.
66
(19) Hoje todo mundo fala da nossa tropicalidade, do nosso colorido, nossa
sensualidade. Eu me sinto bastante orgulhoso em dizer [...] que eu sou pioneiro nisso.50
(grifamos).

E muitos outros não se furtam a mencionar as cores como característica da moda

nacional:

(20) Quando um estilista coloca as cores do Brasil, nossos pássaros, as nossas


borboletas [...] não há quem não se emocione. [...] a galera está se esmerando em mostrar
o nosso tropicalismo, a nossa brasilidade, as cores que a gente curte no Brasil, a
sensualidade da mulher brasileira.51 (grifamos)

A questão das cores, na moda, encontra-se fortemente atrelada à ideia de um “país

tropical” — é possível ver essas referências em (19) e (20) acima. Essas cores estão presentes

também nas estampas que costumam aparecer nas coleções inspiradas pelo “Brasil”:

Leitão “costura” todos esses elementos ao observar que

a natureza exuberante, quase arrebatadora, que germina e impregna-se por toda parte, é
uma sedutora representação do Brasil em nossa moda de vestir, assim como é metáfora
do país fora de suas fronteiras. Fauna e flora inspiram diretamente motivos figurativos
em nossas estampas e padronagens. Ao mesmo tempo, a natureza percebida como
molde para um caráter nacional brasileiro (ou como sua segunda natureza), serve de
linha mestra para coser nossa moda. (2007, p. 130; grifamos).

Para a presente pesquisa, assumiremos que tanto o motivo edênico quanto os demais

temas que, de algum modo dele derivam e que acabam por construir um imaginário do espaço

50
História da moda no Brasil. Direção: João Braga, Luís André do Prado, Tatiana Lohmann. 2012. Documentário.
51
Declaração de um jornalista gaúcho durante edição do Fashion Rio (apud LEITÃO, 2007, p. 133).
67
nacional têm, ainda hoje, ecos na construção de um espaço nacional “genuíno”; não é objetivo

aqui, contudo, detectar os eventuais topoi sobre os quais se assentaria tal construção. Dito de

outro modo, os temas edênicos que motivaram em parte os relatos da época do descobrimento

contribuíram para que se cristalizasse — para usar o mesmo termo de Holanda ([1959]2010) —

uma certa imagem do Brasil. Considerando que os estereótipos são “representações cristalizadas,

esquemas culturais preexistentes através dos quais cada um filtra a realidade a seu redor”

(LIPPMANN apud AMOSSY & PIERROT, 2005, p. 31-32), então é um estereótipo do espaço

nacional que vemos desenhar-se.

Historicamente, a noção de estereótipo sempre gozou de um estatuto ambíguo: ora

tomada como uma construção redutora e nociva, ora como um ponto de ancoragem para a relação

do sujeito com o real. Frequentemente, os estudos ligados a tal noção são feitos tendo como

objeto grupos e indivíduos (os brasileiros, os negros, os pobres, os latinos, os nordestinos, as

mulheres etc.); não será essa a abordagem aqui. Trata-se, como já dito, de analisar os usos, a

circulação de um estereótipo do espaço nacional brasileiro.

Uma concepção pioneira de estereótipos nas ciências sociais data da década de 1920,

segundo Amossy e Pierrot (2005, p. 31). A obra Opinião pública, de Lippmann apresenta os

estereótipos como imagens indispensáveis para a vida em sociedade, pois permitiriam aos

sujeitos categorizarem o real, atuando sobre ele: “¿Cómo examinar cada ser, cada objeto en su

especificidad propia y en detalle sin vincularlo a un tipo o a una generalidad?” (LIPPMANN

apud AMOSSY & PIERROT, 2005, p. 32). Seriam, assim, uma espécie de imagem fictícia, mas

não por serem mentirosas: tais imagens expressariam um imaginário social (LIPPMANN,

[1922]2008). Assim, ainda que sejam por vezes excessivamente redutoras, tais imagens são

apreendidas a partir daquilo que as torna produtivas: seu caráter de previsibilidade.

68
Aqueles que compartilham dessa posição veem nos estereótipos uma importância

cognitiva, otimizando o processamento de novos dados, de novas informações (NEWMAN,

1975). As questões referentes ao processamento cognitivo são certamente pouco relevantes para a

Análise do Discurso francesa o que talvez tenha feito com que durante muito tempo os

analistas se interessassem pouco pelo estudo dos estereótipos (AMOSSY & PIERROT, 2005, p.

112), o que não significa, porém, que sejam os estereótipos desinteressantes ou mesmo

incompatíveis com os pressupostos da AD.

Ao contrário, respeitada a variedade de correntes no interior da escola francesa de

Análise do Discurso, é possível apontar um conjunto de pressupostos teórico-metodológicos

comuns que tornam o estudo dos estereótipos um terreno profícuo (AMOSSY& PIERROT,

2005). Tomemos, por exemplo, a sumarização de Maingueneau (2008a) dos pressupostos da

Análise do Discurso francesa:

1. um interesse pelos corpora provenientes de gêneros do discurso instituídos (= não


conversacionais) ou mesmo corpora provenientes do arquivo histórico;
2. preocupação de não se interessar somente pela função das unidades mas também
pelas suas propriedades como elementos do sistema da língua, o que implica uma
relação forte com a linguística;
3. importância atribuída ao interdiscurso;
4. uma reflexão constante sobre os modos de inscrição da subjetividade no discurso,
enraizada nas teorias da enunciação linguística;
5. uma posição que põe a ênfase no caráter construído de “fatos”, dos “dados” com os
quais lida o analista do discurso. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 147).

Para Amossy e Pierrot (2005), especialmente se se levarem em conta as noções de

sujeito e de sentido para a disciplina, os estereótipos podem representar um interessante campo de

estudos para os analistas, já que, para a AD,

el sentido de las palabras no es independiente de los contextos en las que están insertas
(contextos sinctáticos, enunciativos, genéricos, géneros como la noticia policial, la
conferencia, la editorial, etc.) ni del lugar de los locutores en el campo sociohistórico e
institucional. (AMOSSY & PIERROT, 2005, p. 112).

Por outro lado, considerar os estereótipos, na esteira de Lippmann ([1922]2008),

como uma imagem fictícia mediadora da relação do sujeito com o real, traz outras questões à
69
baila. Biroli (2011, p. 76), por exemplo, ainda que não concorde integralmente com tal

posicionamento, assinala, primeiramente, que

há diferenças significativas entre o entendimento dos estereótipos como esquemas


simplificadores e sua definição como representações falsas da realidade. O
entendimento dos estereótipos como distorção e falsidade pressupõe que exista uma
fronteira bem delineada entre a estereotipia e a própria realidade. Isto é, as
simplificações colocadas em curso pelos estereótipos estariam em contradição com a
realidade de fato, que aqui poderíamos tomar, provisoriamente, como algo equivalente à
vivência concreta dos indivíduos e grupos sociais quando afastada de imagens
equivocadas. Dito de outra forma, entender que os estereótipos são distorções equivale a
vê-los como uma espécie de nuvem de fumaça que impede o acesso à realidade, mas
que, ainda que fique impregnada por algum tempo aos objetos, poderá ser afastada.
(grifos no original).

Mais adiante, a autora irá questionar o postulado de que esses esquemas dariam conta,

por assim dizer, de mediar as experiências vividas, i.e., as relações do sujeito com o real – ao

menos em sua totalidade. Isso não significa, contudo, negar a importância ou mesmo a “validade”

dos estereótipos. Para a autora, seria possível assumir

que os estereótipos não são capazes de dar sentido à totalidade das experiências, mas
funcionam como uma interpelação concreta para que os indivíduos e grupos [...], a cada
geração, orientem seu comportamento de acordo com esses padrões, confirmando as
habilidades aí envolvidas. Internalizadas, as imagens estereotípicas produzem padrões
reais de comportamento que confirmam, potencialmente, os estereótipos. Estes passam,
assim, a coincidir com aspectos constatados e verificáveis da realidade. O conflito dos
indivíduos com os papéis que são chamados a desempenhar pode aparecer, então, como
um desvio, em vez de ser tomado como confirmação de que a realidade é mais complexa
do que a tipificação. (BIROLI, 2011, p. 78; grifos no original).

Não é diverso o entendimento da psicologia social, apresentado por Amossy e Pierrot

(2005). Discutindo a questão da adequação ao real, as autoras apontam que mesmo que diversos

estudos naquela área já tenham mostrado que os estereótipos podem se propagar sem qualquer

base “objetiva” — i.e., sem qualquer ancoragem na “realidade” —, a observação direta não é

vista nas ciências sociais em geral como a ferramenta ideal para validar ou invalidar os

estereótipos: “lo que percibimos está moldeado de entrada por las imágenes colectivas que

tenemos incorporadas en nuestra mente” (AMOSSY & PIERROT, 2005, p. 41). Ou seja, a

“realidade” enquanto tal não é acessível “objetivamente” — o que vemos, segundo Lippmann

70
([1922]2008), é o que nossa cultura definiu previamente por nós. E como se daria, então, o acesso

a essas construções prévias?

Amossy e Pierrot (2005) destacam o papel das mídias na sociedade contemporânea. A

televisão e a publicidade, advertem as autoras, contribuem para forjar uma ideia acerca de um

grupo nacional, por exemplo, com o qual não se tem contato algum; os adolescentes e crianças,

por seu turno, têm contato com seriados, livros escolares e de história, por meio dos quais

circulam um sem-número de representações. Tomando exemplo até certo ponto corriqueiro — as

representações da mulher — Amossy e Pierrot (2005) relatam que alguns estudos chegaram

mesmo a analisar a relação entre as horas passadas diante da televisão e os estereótipos sexuais

dominantes interiorizados pelas crianças. A visão que se tem, portanto, de determinados grupos

— concluem — resulta de um contato repetido com representações inteiramente construídas ou

bem filtradas pelo discurso dos meios de comunicação. Em resumo, os estereótipos seriam

principalmente resultado de uma aprendizagem social (AMOSSY & PIERROT, 2005, p. 41).

Também nessa direção, Leitão (2007) aponta que, na moda, as relações entre temas “tropicais” e

“brasilidade” não é “natural”, mas fruto da circulação de um determinado discurso:

O uso de tais de imagens da natureza pela moda brasileira poderiam, portanto, ser
percebidos como simples reflexos de “tendências de moda” mais gerais, sem qualquer
referência ao nacional. Os vínculos entre elementos imagéticos que retratam natureza e o
Brasil não são, fazendo um jogo de palavras, “naturais”. Parece ser muito mais através
do discurso midiático, mais especificamente aquele do jornalismo de moda brasileiro,
que se (re)estabelecem semelhantes vínculos. (LEITÃO, 2007, p. 141).

Diremos, então, do ponto de vista teórico aqui adotado, que interessa analisar o modo

de circulação das representações, compreender o modo como as imagens cristalizadas integram

os discursos sob análise. Em outras palavras, será preciso perguntar-se, a partir do quadro teórico

da Análise de Discurso francesa, como este estereótipo é retomado, negado, posto a circular nos

discursos de que faz parte. Então, às análises!

71
72
Capítulo 3 – Terra brasilis

73
Pessoas simpáticas: de fato, essa é a
marca do Brasil no mundo [...]. Outro
ponto forte é que é um país lindo, um país
que tem praias [...], que tem belezas
naturais, que tem a Amazônia como uma
referência. (Flávio Dino, presidente da
EMBRATUR, sobre pesquisa realizada
durante a Rio +20 em torno da imagem
do estrangeiro sobre o Brasil)

1. Palavras iniciais

A partir do interesse por discursos de construção/legitimação de um espaço nacional,

a escolha do cenário turístico parece, até certo ponto, “natural”, pois há uma relação quase direta

com as paisagens típicas dos lugares apresentados. No final de 2007 tomando a escolha do

Brasil para sediar a Copa de 2014 como um marco , iniciamos o levantamento de material

referente ao turismo no Brasil. Diante desse fato, esperava-se, pensando especificamente nas

revistas de turismo nacionais, que haveria alguma repercussão daquela escolha no número de

pacotes nacionais e que, eventualmente, atualizassem o mito apresentado no capítulo anterior.

Não houve, porém, qualquer impacto: o número de matérias com destinos nacionais chegou, em

algumas revistas, a diminuir52. Além disso, muitas das matérias sobre o Brasil convidavam os
52
Vide tabela no anexo 1, em que apresentamos uma parte da coleta – suficiente para que se verifique o afirmado
aqui: duas das principais revistas de turismo que circulam no Brasil e o levantamento das edições de dois anos, que
são representativos dos demais anos compreendidos no corpus.
74
leitores a conhecer um “novo” Brasil, um “pedacinho da Europa” no Brasil, enfim, uma dimensão

considerada “surpreendente” do país algo que, pensamos, poderia estar na direção oposta à

hipótese proposta inicialmente. Seria preciso considerar esses dados.

Retomando o ponto de partida, há que se dizer que a hipótese de que o espaço

nacional brasileiro é construído apoiando-se fortemente na relação com a natureza não é original;

muito pelo contrário, aliás, como o capítulo anterior tratou de mostrar. Em nossa defesa,

diríamos, em primeiro lugar, que se tratava de hipótese — e como tal, sujeita ao aceite ou à

recusa, conforme caminhassem as análises. Entretanto, mais importante que isso era o caráter até

certo ponto “óbvio” que suscitava o incômodo.

Também Foucault ([1971]2004, [1988]2009) parte de uma “obviedade” — a de que o

“sexo” é assunto interdito na sociedade — para descobrir posteriormente que é “mais interessante

e mais rico fazer a história da sexualidade a partir do que a motivou e impulsionou do que a partir

daquilo que a proibiu” (FOUCAULT, 2006, p. 63).

Este trabalho tem, sem dúvida, objetivos muito mais modestos que os de Foucault.

Mas é preciso reconhecer que olhar para fenômenos aparentemente evidentes pode mostrar

funcionamentos insuspeitos.

2. O corpus: primeiros contatos

O conjunto de textos relacionados ao turismo é resultado do primeiro recorte

empreendido; diremos, então, que esta é uma primeira “focagem”. Deste universo fazem parte

75
matérias de revistas de turismo53, guias turísticos54, materiais de divulgação elaborados pelo

Ministério do Turismo e EMBRATUR55, bem como pelo Itamaraty56, matérias publicadas em

periódicos não-especializados em turismo (jornais e revistas — ainda que eventualmente sejam

da seção de turismo dos periódicos em questão)57 e uma série de informes publicitários —

publicados em veículos diversos da imprensa nacional — pelos governos das cidades candidatas

a sedes da Copa de 2014.

Como dissemos no primeiro capítulo, uma questão fundamental para o analista está

em encontrar uma entrada no corpus. Tal entrada pode ser — e frequentemente é — “modesta”

(MAINGUENEAU, 2009), algo aparentemente insignificante que permite ao analista enxergar o

texto para além do seu conteúdo. No conjunto aqui reunido para análise, encontramos uma

modalidade turística que, embora não constasse em grande número no corpus, permitiu apreender

uma forma de atualização da imagem do “Brasil-paraíso”. Para tanto, recorreu-se à noção de

vontade de verdade formulada por Foucault e que retomamos a seguir.

***

53
Tanto revistas especializadas (Viagem & Turismo, Viaje Mais e Próxima Viagem – todas as edições de 2007 a
2013) quanto revistas de companhias aéreas (Tam nas nuvens, Revista da Avianca, Revista da Azul, Revista Gol),
além da Revista da Bancorbrás, um consórcio de turismo. Há ainda algumas edições especiais produzidas pelo Guia
4 rodas (que também é responsável pela publicação da Viagem & Turismo).
54
Os roteiros turísticos reunidos aqui foram coletados em diversas agências de turismo, de maneira um tanto
aleatória, mas há também roteiros publicados por agências de turismo em seus respectivos sites (sempre citados ao
longo do trabalho). A exceção aqui é o guia, para estrangeiros, The rough guide to Brazil (2009, ed. Rough Guides).
55
Brasil Central, Roteiros do Brasil: 87 belos motivos para viajar pelo Brasil, Balanços semestrais do Ministério do
Turismo (de 2007 a 2012).
56
A coleção “Textos do Brasil”, publicação organizada pelo Itamaraty, que reúne temas que objetivam divulgar a
imagem do Brasil dentro e fora do país (a revista é publicada em português, espanhol, inglês e francês). Há números
sobre a música, a gastronomia, esportes, moda etc. As primeiras edições traziam diversos textos sobre turismo em
cidades e Estados brasileiros; para este trabalho, foram analisados textos dos números 1 a 5, todos disponíveis em:
<http://dc.itamaraty.gov.br/imagens-e-textos/revista-textos-do-brasil/portugues>.
57
Revistas Veja, Isto é, Época (referendadas sempre que citadas), cadernos de turismo dos jornais O Globo, Estadão
e Folha de S.Paulo, algumas matérias em outras revistas (igualmente referendadas quando citadas), por exemplo na
revista feminina Elle. Todas essas revistas integram o mesmo recorte temporal assumido para os demais materiais:
partindo de 2007 até 2013.
76
Partindo da tese de que

em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,


organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função
conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua
pesada e temível materialidade (FOUCAULT, [1971]2004, p. 8-9; grifamos),

Foucault propõe que, juntamente com a interdição de que se falou acima, como um sistema de

exclusão dos discursos, é preciso considerar ainda a segregação da loucura e a vontade de

verdade. Diferentemente dos dois primeiros – que são mutáveis, já que se organizam em torno de

contingências históricas, e exercidos com uma certa dose de violência –, a vontade de verdade

por vezes “mascara-se” e não é percebida como uma “prodigiosa maquinaria destinada a excluir

todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de

verdade e recolocá-la em questão contra a verdade” (FOUCAULT, [1971]2004, p. 20). E o seu

funcionamento em nossa sociedade, observa Foucault, comporta ainda uma outra dimensão que

interessará para nossas análises: a vontade de verdade exerce uma certa pressão sobre outros

discursos, o que tem como um de seus efeitos a recorrência a enunciados de “verdade” ainda que

não se esteja no interior do campo que os produziu ou ainda que os campos invadidos não sejam

“de verdade”:

Penso na maneira como a literatura ocidental teve de buscar apoio, durante séculos, no
natural, no verossímil, na sinceridade, na ciência também — em suma, no discurso
verdadeiro. Penso, igualmente, na maneira como as práticas econômicas, codificadas
como preceitos ou receitas, eventualmente como moral, procuraram, desde o século
XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificar-se a partir de uma teoria das riquezas e
da produção; penso ainda na maneira como um conjunto tão prescritivo quanto o sistema
penal procurou seus suportes ou sua justificação, primeiro, é certo, em uma teoria do
direito, depois, a partir do século XIX, em um saber sociológico, psicológico, médico,
psiquiátrico: como se a própria palavra da lei não pudesse mais ser autorizada, em nossa
sociedade, senão por um discurso de verdade. (FOUCAULT, [1971]2004, p. 18-19).

As reflexões de Foucault sobre a vontade de verdade podem ser de grande valia para

compreender os discursos que circulam no turismo e que tocam a questão da construção/

legitimação do espaço nacional; ou melhor, para analisar um fenômeno que começa a ganhar

77
fama no fim dos anos 1990 e ao qual se costuma chamar de turismo científico58. Nesse sentido,

pretendeu-se verificar, num primeiro momento, em que medida a questão da verdade importa

para a compreensão do discurso acerca desse tipo de turismo em nossa sociedade.

Entrevistando Foucault, juntamente com Nemoto, Watanabe relata um fato que

ocorria à época da entrevista (1978) no Japão. Segundo ele, ars erotica e scientia sexualis59

haviam passado a se relacionar de forma curiosa, por meio de um discurso que pode ser

sintetizado na seguinte formulação de Watanabe: “mais saber sobre o sexo garante mais gozo”.

Nas revistas femininas japonesas, por exemplo, é possível encontrar, segundo aponta Watanabe,

suplementos especiais do tipo: “Tudo o que você não sabe sobre o corpo masculino” ou ainda

“Aquilo que você ignora a respeito da homossexualidade”. Respondendo a isso, Foucault admite

que, de fato, “esse saber se situa entre ars erotica e scientia sexualis” (FOUCAULT,

[1978b]2006, p. 30; grifamos). Em outras palavras, ocorre uma invasão das verdades produzidas

no interior de um campo de saber (a scientia sexualis) em outro campo (a ars erotica), em razão

do que se disse mais acima: a pressão exercida pelos discursos de verdade sobre os outros

discursos.

Este fenômeno é cada vez mais comum em nossa sociedade. Do Danoninho – que

traz em sua embalagem o texto “fórmula baseada em estudo científico” – aos cosméticos – por

exemplo à marca Valmari, cujo slogan é “cosmética científica em cosmético natural” –, recorrer a

enunciados de verdade tornou-se um expediente comum no campo publicitário. Como diz


58
A primeira vez que se registrou o uso do termo “turismo científico” foi em 1980, mas, na verdade, como
modalidade mesmo de turismo, só em fins dos anos 1990 é que começa a ganhar força e a ter contornos, digamos,
mais “comerciais” — inicialmente era direcionado para pesquisadores em intercâmbio. Atualmente, o turismo
científico é apontado por diversos turismólogos como um espaço promissor para desenvolvimento no campo.
59
A respeito da distinção entre elas, Foucault observa que “no Ocidente não temos a arte erótica. Em outras palavras,
não se ensina a fazer amor, a obter o prazer, a dar prazer aos outros, a maximizar, a intensificar seu próprio prazer
pelo prazer dos outros. [...] Em compensação, temos ou tentamos ter uma ciência sexual — scientia sexualis — sobre
a sexualidade das pessoas, e não sobre o prazer delas, alguma coisa que não seria como fazer para que o prazer seja o
mais intenso possível, mas sim qual é a verdade dessa coisa que, no indivíduo, é seu sexo ou sua sexualidade:
verdade do sexo, e não intensidade do prazer.” (FOUCAULT, [1978a]2006, p. 61).
78
Possenti (2009, p. 179; grifos o original), “propaganda com ciência é um bom negócio”. De certa

forma, é essa imbricação que aqui nos interessa. Vamos, então, a ela.

2.1 Férias com ciência

O caso apresentado por Watanabe (FOUCAULT, [1978a]2006) mostra que a ars

erotica, pressionada pela scientia sexualis, vale-se de enunciados produzidos no interior daquele

saber para explicar o gozo, numa relação que ele descreve como sendo algo como quanto mais se

sabe sobre o sexo maior o prazer.

Nossa hipótese aqui é que se possa pensar algo semelhante, mas para o turismo. Dito

de outra forma, é como se a forma “quanto mais se sabe ... maior (o prazer, o deleite)” pudesse

ser aplicada também nesse meio. Isso porque a nova modalidade de turismo a que se vem

denominando “turismo científico” ou “turismo cultural” – e que se opõe a um “turismo básico,

em que você faz um tour rápido pelos museus e se dá por satisfeita[o]”60 – também possibilita

observar uma mudança significativa: não mais somente “curtir”, “aproveitar”, “passear”, mas

“aprender”, “saber” (mais sobre) para aproveitar melhor a viagem.

O turismo científico associa fortemente, em sua origem, ciência e destinos

ecológicos, sendo possível encontrar em textos e pacotes mais antigos a categorização como

sendo uma modalidade de ecoturismo. Atualmente não se passa mais assim; a título de exemplos:

i) site da empresa de viagens portuguesa Ecoceanus traz o seguinte texto de apresentação:

“empresa sedeada no Algarve que pretende oferecer diversos serviços em áreas como a

Investigação Científica, o Ecoturismo e o Turismo Científico”61; ii) a empresa francesa Escursia


60
EMBARQUE de cabeça. Elle, ano XXII, n. 11, nov. 2009, p. 238.
61
Disponível em: <http://www.ecoceanus.com>. Acesso em: 07/04/2011.
79
organiza seus pacotes segundo três categorias, a saber: voyages naturalistes, voyages

scientifiques e voyages écosolidaires62.

Em Portugal, o turismo científico é bastante difundido (para os portugueses e no

próprio país). O Ministério da Ciência e Tecnologia do país criou, na década de 1990, uma

agência responsável pelo “apoio a acções dirigidas para a promoção da educação científica e

tecnológica na sociedade portuguesa”63. Desde 1996, a agência promove eventos durante o verão

– atualmente são conhecidos como Ciência Viva no Verão, mas no início os nomes variavam –

que visam a promover o turismo científico pelo país, já que esse evento ocorre em diversas

cidades portuguesas simultaneamente. De 1996 a 2001, os eventos resumem-se à astronomia:

62
Disponível em: <http://www.escursia.fr>. Acesso em: 07/04/2011.
63
Disponível em: <http://www.cienciaviva.pt/cienciaviva/agencia.asp>. Acesso em: 15/04/2011.
80
Em 2001, há dois eventos paralelos: o indicado pelo cartaz acima e que faz parte da

continuidade dos anos anteriores e mais um, cujo nome é Biologia no Verão.

A partir de 2002, o nome passa a ser fixo, Ciência Viva no Verão, e novas áreas de

conhecimento passam a integrá-lo: em 2002, além da astronomia e biologia, acrescenta-se a

geologia e “faróis” (que seria a visita a faróis e estudos com engenheiros) – a partir de 2005, a

engenharia é colocada separadamente dos faróis, porque passa a incluir visitas a outras obras. Em

2011, uma nova categoria é incluída: os castelos: visitas com engenheiros, geógrafos, físicos,

arquitetos e historiadores (“vamos conhecer melhor a geografia da localização dos castelos, os

princípios físicos da sua arquitectura, a pedra usada na sua construção e as batalhas que lá se

travaram”64).

64
Disponível em: <http://www.cienciaviva.pt/veraocv/2011/cverao2011.asp>. Acesso em: 17/11/2011.
81
O que parece interessante nas imagens acima é que, enquanto os primeiros cartazes

do programa Ciência Viva apresentam astros, planetas, microorganismos, pinturas rupestres e

fósseis, i.e., aquilo que é objeto das atividades, os últimos cartazes mostram – especialmente os

de 2009 a 2011 – a relação com as paisagens “típicas” de férias (família brincando na praia, carro

abarrotado de bagagem e mesmo a “ilha” isolada), mas com elementos que remetem ao caráter

científico dessas férias: fósseis de dinossauros, copo de laboratório, microscópios, lunetas etc. As

imagens marcam, assim, a mudança que o próprio slogan já sintetizava: de ciência nas férias para

férias com ciência.

Mas, se o turismo científico na Europa é uma realidade, no Brasil (especialmente para

brasileiros) ainda é incipiente. Agências de turismo da Europa organizam diversos pacotes para

todos os continentes destinados a europeus – sendo que algumas delas especializam-se nessa

modalidade. Ou seja, os pacotes em turismo científico no Brasil ainda são francamente voltados

para estrangeiros (a maioria dos guias são estrangeiros residentes no Brasil). Há exceções, como

82
o roteiro de caminhadas pelo Centro de São Paulo, organizadas por uma agência brasileira e para

brasileiros, nas quais se aprende, por exemplo, “sobre o uso de pedras e rochas nas estruturas,

fachadas e acabamentos”65 (com o acompanhamento de um geólogo e um historiador). A empresa

de turismo brasileira Latitudes também organiza viagens para brasileiros (dentro e fora do país)

com especialistas: os pacotes oferecidos no site sempre apontam com que especialista a viagem

será realizada66.

A atração que a modalidade exerce sobre os estrangeiros pode ser observada na

matéria intitulada “Olha o passarinho”, publicada na revista TAM nas nuvens (mai. 2009). A

publicação destaca o birdwatching como “uma atividade que atrai cada vez mais estrangeiros ao

Brasil – e mostra aos brasileiros por que nossos ecossistemas devem ser preservados”. A matéria

apresenta várias considerações que têm fundamento na ornitologia (ramo da biologia que estuda

os pássaros, sua distribuição no planeta, sua alimentação etc.). O guia de birdwatching, segundo a

matéria, tem pontos em comum com o ornitólogo, pois sabe, por exemplo, como se distribuem

determinadas espécies de aves pelo planeta, de que se alimentam, a que família pertencem, classe

etc. É isso, aliás, que o diferencia de um “observador comum”. Há, porém, um aspecto que

consideramos ainda mais importante abordado pela matéria, a saber: o fato de que o birdwatching

surge como uma alternativa à caça. Nesse sentido, poderíamos dizer que o prazer, o deleite

advém de saber mais sobre pássaros (seu habitat, sua alimentação, seus hábitos...), o que remete

à observação de Watanabe apresentada anteriormente. Além disso, as práticas dos birdwatchers

são bastante semelhantes às do ornitólogo: expedições de busca e reconhecimento, filmagens,

gravações dos cantos, fotografias, catalogações.

65
Disponível em: <http://araribacultural.wordpress.com>. Acesso em: 17/11/2011.
66
Por exemplo: “México: arte, cultura e religiosidade mesoamericana com Márcia Arcuri”.
83
Embora incipiente, como dissemos, o turismo científico começa, contudo, a ganhar

divulgação por aqui. A revista Época, por exemplo, publica em outubro de 2008, matéria de capa

intitulada “O guia do turista verde”, em que oferece vinte indicações de “paraísos ecológicos”, no

Brasil e no exterior, a serem visitados pelos turistas. O nono destino indicado é a Amazônia. O

texto explicativo que “recomenda” o local é o seguinte:

Um destino-vitrine que não foi devidamente descoberto pelos brasileiros. Para nós, a
região ainda é sinônimo do Ariaú, hotel de selva famoso, porém menos confortável e
autêntico que outros. Um exemplo: o Tiwa, que fica em frente a Manaus, na margem
oposta do Rio Negro, e une conforto e boas experiências de selva. Se eu só pudesse ter
uma experiência de selva, iria para a Pousada Uacari, parte de um projeto científico na
Reserva Mamirauá. (O guia do turista verde, Época, 27/10/08, p. 90; grifamos).

Se há outros motivos para ficar na pousada recomendada, não sabemos, mas o fato de

fazer parte de um projeto científico parece ser, segundo esse discurso, o mais relevante. A reserva

é, aliás, atração de um outro roteiro proposto pela já mencionada agência francesa Escursia:

De l'archipel des Anavilhanas à la réserve de Mamirauá


Depuis Manaus, au cœur de l'Amazonie, nous embarquons à bord d'un bateau
spécialement aménagé pour des croisières photographiques et naturalistes. En remontant
le mythique Rio Negro, nous pénétrons dans la forêt, pour aller à la rencontre de ses
habitants. Une région pleine de contrastes, que saura vous décrire Sylvia votre
accompagnatrice, écologue dans l'âme et experte des questions socio-environnementales
en Amazonie.67

A agência, além da programação diária da viagem, inclui no site o currículo dos guias

locais. Dentre eles há arqueólogos, astrônomos, especialistas em biodiversidade, antropólogos

culturais, botânicos, geólogos e enólogos. Na programação, filmes, documentários, exposições,

visitas acompanhadas de arqueólogos e debates. É certo que muitos dos pacotes são voltados para

a natureza de maneira geral, mas há os roteiros de vinhos e os astronômicos – ainda que se possa

67
Disponível em: <http://www.escursia.fr/voyage-nature-Bresil-autrement-79.html>. Acesso em 07/04/2011. “Do
arquipélago de Anavilhanas à reserva de Mamirauá. De Manaus, no coração da Amazônia, subimos à bordo de um
barco especialmente preparado para cruzeiros fotográficos e naturalistas. Navegando o místico Rio Negro,
penetramos a floresta para encontrar seus habitantes. Uma região de contrastes, que será descrita por Sylvia, sua
guia, ecologista e especialista em questões sócio-ambientais na Amazônia” (tradução nossa).
84
querer enquadrar esse último na relação com a natureza, não estou bem certa de que essa seria a

melhor categoria, pois a principal questão aqui é a visão e estudo dos astros.

Mais um exemplo: em matéria publicada na seção Viagem da revista feminina Elle e

destinada a divulgar a modalidade entre as leitoras, encontramos alguns exemplos de roteiros

para “embarcar de cabeça”68:

Destino Aprender sobre... Especialista


Professor de música especialista
Nova York Jazz
no gênero
Grécia Mitologia Professor de mitologia grega
Galápagos Fauna e flora Biólogos
História antiga e cultura
Egito Professor de história e arqueólogo
egípcia
Mestres de meditação e ioga;
Ioga e medicina
Índia e Butão especialistas em medicina
ayurvédica
ayurvédica
França69 Vinhos Enólogo
Nova York, Londres, Berlim,
Museus Professor de História da Arte
Frankfurt, Barcelona e Veneza

Antes de mais nada, é preciso ressaltar que nem todos os pacotes da tabela acima

evidenciam o fenômeno da invasão de verdades produzidas pelos saberes devido à pressão por

eles exercida sobre campos que não são de verdade. Nem todas as áreas acima enquadram-se na

concepção “restritiva” segundo a qual se definem os campos de saber – é o caso, por exemplo,

dos especialistas em ioga. No entanto, outros exemplos mostram que a relação com os saberes é

bastante estreita: com a história, com a biologia, com a arqueologia. Um turismólogo português

que se dedica a essa modalidade de turismo, Couteiro (2003), observa que se trata, nesse caso, de

“pensar a aplicação específica de várias disciplinas interpretativas do território a uma actividade

económica: o turismo”, e cita como exemplo as seguintes disciplinas: climatologia, ecologia,

68
O título da matéria é “Embarque de cabeça”. ELLE, ano XXII, n. 11, nov. 2009, p. 238-246.
69
O mesmo guia organiza também o mesmo tipo de roteiro para países como Chile, Argentina, Portugal, Espanha,
Itália, Austrália e África do Sul.
85
geomorfologia, antropologia, história, arqueologia, ciências agrárias, geografia. Na grande

maioria dos pacotes encontrados, de fato, são áreas como essas que predominam; daí pensar na

invasão de que falamos anteriormente.

Nos materiais sobre turismo científico há grande destaque dado às práticas de cada

um dos campos com os quais se relacionam – como vimos mais acima a respeito de

birdwatching, por exemplo. No caso da proposta de pacote com biólogos para Galápagos

apresentada por Elle, a viagem comporta expedições, palestras, aulas etc. No roteiro do Egito, por

seu turno, a matéria convida: “que tal aprender história antiga, os detalhes da cultura egípcia e os

mistérios dessa civilização no próprio Egito, percorrendo cada cantinho do país?” (p. 246). O

pacote inclui visitas a sítios arqueológicos em horários diferentes dos turistas (!). É preciso

lembrar, contudo, que esses roteiros com especialistas não são para especialistas. Antes, dirigem-

se ao público comum, leigo, interessado em aprender, conhecer mais sobre determinado tema.

Esse caráter, digamos, “pedagógico” que esse tipo de turismo implica fica evidente não só nos

textos que acompanham os pacotes ou nas matérias – em que encontramos frequentemente verbos

como os acima citados – mas também em depoimentos dos viajantes: não é raro a referência a

“aulas” durante as viagens70.

Ainda que a ênfase seja na aquisição de conhecimento acerca do local visitado, é

preciso reforçar que não há uma mera substituição de modalidades de turismo, i.e., sai o “turismo

básico” e entra o “turismo científico”. O que ocorre, na verdade, é que, ao “turismo básico”

acrescentam-se práticas que agreguem conhecimento ao turista – e essas práticas são

apresentadas por experts em cada área. O roteiro de história da arte proposto na matéria, por

exemplo, prevê visitas a museus (dez dias no total); a matéria destaca, contudo, que “apesar da

70
Por exemplo: “A viagem foi ótima, o anfitrião Latitudes Marcelo é muito gentil e eficiente e as aulas do Pondé
foram maravilhosas.” (grifamos), disponível em: <http://www.latitudes.com.br/depoimentos.php>.
86
programação intensa de arte, sempre sobra um tempinho para quem quer comer bem, fazer umas

compras e dar uma voltinha de gôndola, claro” (p. 244) – atividades típicas do “turismo básico”.

Ainda assim, o componente “educacional” é enfatizado, pois, como adverte a matéria, o principal

objetivo de quem embarca nesse roteiro é “aprender mais sobre a arte contemporânea”. Lembre-

se, contudo, que isso só pode ser conseguido com especialistas de cada área: “conhecer vinícolas

e vinhedos e experimentar vinhos especiais num roteiro acompanhado por quem entende do

assunto” (p. 242; grifamos), como demonstra o trecho referente ao roteiro de vinhos.

Outro pacote de turismo científico no Brasil é para o Pantanal.

Au pays du jaguar et du grand ara hyacinthe Véritable réserve pour les centaines
d'espèces d'oiseaux, de mammifères et autres reptiles, le Pantanal offre des occasions
exceptionnelles d'observer facilement la nature, omniprésente dans cette région du
Brésil. Les Fazendas, grandes fermes d'élevage brésiliennes, nous permettent de
découvrir la richesse et la diversité des lieux, chacune à sa manière, et toujours dans un
cadre majestueux qui vous propulse au cœur de la nature. 71

As atividades no Pantanal incluem explicações sobre a fauna local com especialistas

que estudam “há anos” os hábitos dos animais que ali vivem.

Enfim, a partir desses dados, algumas questões puderam ser formuladas não só nos

termos da pergunta inicialmente feita – em que medida a questão da verdade importa para a

compreensão do discurso acerca desse tipo de turismo em nossa sociedade –, mas também no que

diz respeito mais propriamente ao objeto desta tese.

Olhar para o turismo como um espaço que – não sendo nem um saber nem uma

ciência72 –, pressionado por discursos produtores de verdades, passa a incorporar enunciados e

71
Disponível em: <http://www.escursia.fr/detail-voyage-Bresil-descriptif-24.html>. Acesso em: 05/12/2011. “No
país da onça-pintada e da arara azul. Verdadeira reserva para certas espécies de aves, mamíferos e outros répteis, o
Pantanal oferece oportunidades excepcionais para se observar facilmente a natureza, onipresente nessa região do
Brasil. As Fazendas, grandes propriedades de gado brasileiras, nos permitem descobrir a riqueza e a diversidade de
lugares, cada qual a sua maneira, e que sempre num cenário majestoso coloca você no coração da natureza”
(tradução nossa).
72
Em razão disso é que se pode trazer esse tipo de reflexão para o turismo: não se produzem “verdades” no seu
interior.
87
práticas advindas desses campos em uma nova forma de viajar, permitiu observar que, de maneira

geral, os pacotes montados referem-se, via de regra, a imagens cristalizadas dos países — e em

muitos casos isso toca a construção dos espaços nacionais. Assim, em Galápagos estuda-se a

fauna; no Egito, a história de uma civilização cuja imagem “ideal” é marcada por esfinges e

pirâmides; em boa parte da Europa (França, Alemanha, Espanha etc.), os roteiros são pelos

museus. No caso do Brasil, os pacotes de turismo científico são majoritariamente para a

Amazônia e para o Pantanal (conforme exemplos mostrados) e envolvem a atuação de biólogos,

antropólogos culturais e arqueólogos.

A partir dessa constatação, as primeiras questões em torno do funcionamento dos

discursos do turismo que contribuem para a construção de um Brasil “genuíno” nos direcionavam

de volta à hipótese inicial, de que o Brasil “típico” é “uma paisagem”, um lugar “exótico”, ou “o”

paraíso. Trata-se, em outras palavras, de um modo de circulação do estereótipo do espaço

nacional, de mais uma forma de retomada e atualização dessa cristalização. Essa primeira análise

dos dados permitiu formalizar a cristalização do estereótipo acima, de uma vez por todas, como

um elemento sempre já-lá – o que, como se verá, é de particular importância para as análises que

seguem, uma vez que estamos diante do estabelecimento de uma regularização, que põe uma

memória discursiva a funcionar, e “é nessa colocação em série dos contextos, não na produção

das superfícies ou da frase tal como ela se dá, que vemos o exercício da regra” (ACHARD,

[1983]2007, p. 16; grifamos).

Amossy e Pierrot apontam que, no quadro da AD francesa, os estereótipos poderiam

ser estudados por meio da noção de pré-construído incorporada por Pêcheux ([1975]1997) a

partir dos estudos de Henry: “la noción de preconstruido [...] constituye un aporte teórico

88
importante, que tal vez haya sido insuficientemente utilizado en el estudio de los estereotipos”

(AMOSSY & PIERROT, 2005, p. 112).

É, pois, com base nessa noção que a inscrição do estereótipo no fio do discurso será

explorada. A partir da tese de que o pré-construído a respeito do espaço nacional “genuíno” é o

“Brasil-paisagem” ou o “Brasil-paraíso” – como o turismo científico permitiu formalizar –,

descreveremos a seguir o modo de inscrição dessa cristalização nos enunciados.

3. Pré-construído: testando a produtividade da noção para o estudo dos estereótipos

Formulada a partir de uma reflexão crítica empreendida por Henry acerca do

tratamento dos implícitos na linguagem, em especial o quadro para estudo da pressuposição

desenvolvido no seio da Semântica da Enunciação, a noção de pré-construído é frequentemente

descrita como uma alternativa discursiva à abordagem linguística proposta por Ducrot. E, de fato,

aí reside um ponto de discordância – talvez o principal – de Henry em relação à proposta

ducrotiana: para Henry ([1975]1992), a questão da pressuposição reclama por uma abordagem

discursiva, o que implicaria considerá-la “como um modo de funcionamento possível do

enunciado e não como uma característica da frase correspondente” (HENRY, [1975]1992, p. 73).

Para explicitar essa tese, o autor volta seu olhar para as estruturas relativas, uma vez

que, para ele, o que define se tais estruturas serão interpretadas como explicativas ou restritivas –

mais que a presença ou ausência de vírgulas ou alguma entonação característica (HENRY,

[1975]1992, p. 71) – é a “opinião” de cada um. Assim, um enunciado como “Os sindicatos que

defendem os trabalhadores conclamam à greve”

89
é interpretado de duas maneiras diferentes, se se considera que todos os sindicatos
defendem os trabalhadores (de fato ou por definição) e portanto também conclamam à
greve, ou que unicamente certos sindicatos conclamam à greve, aqueles precisamente
que defendem os trabalhadores, enquanto os outros de fato não os defendem. (HENRY,
[1975]1992, p. 71).

Ou seja, se é uma questão de “opinião”, Henry contesta a hipótese de Ducrot segundo

a qual os processos para interpretação da pressuposição deveriam ser “considerados como

fazendo parte da significação literal dos enunciados” (HENRY, [1975]1992, p. 76). Ainda que

essa discordância não signifique uma negação absoluta de que haja o que Ducrot designa por

significações literais e não-literais, o que Henry contesta é, mais precisamente, “a ideia de que

seja possível falar de uma semântica da língua cujo processo de constituição está implicitamente

contido na própria noção de significação literal tal como foi definida por Ducrot” (HENRY,

[1975]1992, p. 79; grifos no original).

A pressuposição envolveria, assim, segundo defende Henry, um aspecto nodal para a

Análise do Discurso, a saber: o sujeito. Em decorrência de tal imbricação, falar em pré-construído

remete, como aponta Pêcheux ([1975]1997, p. 170-172), às questões da própria constituição do

sujeito – e dos esquecimentos que o determinam. Tratando das relações que se estabelecem entre

o que chamou a “forma-sujeito” e o sujeito, Pêcheux postula que o modo de acesso do sujeito ao

“real” se dá por meio da relação estabelecida/imposta pela forma-sujeito, que se dá pela forma de

um desconhecimento, que, por seu turno, funda-se sobre um reconhecimento. Embora possa

parecer paradoxal em um primeiro momento, o autor explica que “é nesse reconhecimento que o

sujeito se ‘esquece’ das determinações que o colocaram no lugar que ele ocupa – entendamos

que, sendo ‘sempre-já’ sujeito, ele ‘sempre-já’ se esqueceu das determinações que o constituem

como tal” (PÊCHEUX, [1975]1997, p. 170).

É, pois, essa relação constitutiva do sujeito com a ideologia que, segundo Pêcheux,

permite compreender que o pré-construído


90
remete simultaneamente “àquilo que todo mundo sabe”, isto é, aos conteúdos de
pensamento do “sujeito universal” suporte da identificação e àquilo que todo mundo, em
uma “situação” dada, pode ser e entender, sob a forma das evidências do “contexto
situacional”. (PÊCHEUX, [1975]1997, p. 171).

Para Henry, há, portanto, uma impossibilidade de tratar a questão do sentido – própria

da semântica – sem remissão ao sujeito. Nesse ponto, afirma o autor, é que se encontram as

“dificuldades teóricas e práticas” da linguística, o que faz com que as teorias tentem “evacuar por

todos os meios, mas sem nunca conseguir”, a questão do sentido e, consequentemente, a do

sujeito (HENRY, [1975]1992, p. 136). Exemplo dessa dificuldade é a análise de Frege de

sentenças como “aquele que salvou o mundo morrendo na cruz nunca existiu”, em que se nega a

existência daquele mesmo que é pressuposto como existente na subordinada73. É nesse sentido

que Henry ([1975]1992, p. 136) alerta que a pressuposição recoloca em pauta precisamente

aquilo que se tentou excluir, “na medida em que esta demonstra de maneira sintomática a

impossibilidade de se construir uma sintaxe eliminando toda referência ao sentido”.

A noção de pré-construído, proposta por Henry para “designar o que remete a uma

construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é ‘construído’ pelo

enunciado” (apud PÊCHEUX, [1975]1997, p. 99), é, assim, uma reformulação da

pressuposição74, consideradas aí as questões referentes ao sentido e ao sujeito a partir de um

fenômeno ligado ao encaixe sintático (PÊCHEUX, [1975]1997, p. 99).

Ao invés, então, de declarar uma sentença tal como “aquele que salvou o mundo

morrendo na cruz nunca existiu” como “absurda” ou “desprovida de qualquer sentido”, a noção

de pré-construído permite postular “que há separação, distância ou discrepância na frase entre o

73
Cf. Pêcheux, [1975]1997, p. 97-99.
74
Embora seja, de fato, uma reformulação da noção, o pré-construído, uma noção essencialmente discursiva, permite
assumir essa imagem de um “Brasil-paraíso” como tal, o que nem sempre – nos dados analisados mais adiante – se
enquadra como pressuposição, noção, por seu turno, essencialmente linguística. Como se verá, não é sempre que
temos marcadores linguísticos da pressuposição; mas é inegável a presença de uma construção anterior ao enunciado
que vem nele se inscrever.
91
que é pensado antes, em outro lugar ou independentemente, o que está contido na afirmação

global da frase” (PÊCHEUX, [1975]1997, p. 99; grifos no original).

Nessa perspectiva, a “ilusão” de que fala Frege não é o puro e simples efeito de um
fenômeno sintático que constitui uma “imperfeição da linguagem”: o fenômeno
sintático da relativa determinativa é, ao contrário, a condição formal de um efeito de
sentido cuja causa material se assenta, de fato, na relação dissimétrica por
discrepância entre dois “domínios de pensamento”, de modo que um elemento de
um domínio irrompe num elemento de outro sob a forma do que chamamos “pré-
construído”, isto é, como se esse elemento já se encontrasse aí. (PÊCHEUX,
[1975]1997, p. 99; grifamos).

A noção de pré-construído encontra-se, assim, intimamente relacionada à de

interdiscurso, na medida em que permite relativizar a “oposição entre o exterior e o interior de

uma formação discursiva, em benefício da noção de imbricação entre discursos e de relações com

outras formações discursivas exteriores e anteriores – que entram no discurso de um sujeito”

(MAINGUENEAU & CHARAUDEAU, 2004, p. 401). Assim, não é porque “o sujeito se

constitui pelo ‘esquecimento’ daquilo que o determina” (PÊCHEUX, [1975]1997, p. 163), que

esse processo não deixa “rastros” na linguagem:

a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do


sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como
sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apoia-se no
fato de que os elementos do interdiscurso (sob sua dupla forma, descrita [...] enquanto
“pré-construído” e “processo de sustentação”) que constituem, no discurso do sujeito, os
traços daquilo que o determina, são re-inscritos no discurso do próprio sujeito.
(PÊCHEUX, [1975]1997, p. 163; grifamos).

Mais adiante, o autor irá afirmar que o interdiscurso enquanto pré-construído

“fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito se constitui como ‘sujeito falante’,

com a formação discursiva que o assujeita” (PÊCHEUX, [1975]1997, p. 167). Tais elementos

são, ainda segundo o autor, “atravessados” e postos em “conexão” entre si por meio do discurso-

transverso (tanto nas relações de equivalência quanto de implicação), que se encontra

profundamente ligado ao que Pêcheux chama “articulação” ou “efeito de sustentação”:

92
Diremos, então, que o “pré-construído” corresponde ao “sempre-já-aí” da interpelação
ideológica que fornece-impõe a “realidade” e seu “sentido” sob a forma da
universalidade (o “mundo das coisas”), ao passo que a “articulação” constitui o sujeito
em sua relação com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que
determina a dominação da forma-sujeito. (PÊCHEUX, [1975]1997, p. 164; grifos no
original).

No fio do discurso do sujeito (intradiscurso) é que o discurso-transverso é linearizado

ou sintagmatizado por meio da articulação (ou processo de sustentação); é, pois, nesse sentido

que se pode dizer, juntamente com Pêcheux ([1975]1997, p. 167), que “o intradiscurso, enquanto

‘fio do discurso’ do sujeito, é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma

‘interioridade’ inteiramente determinada como tal do ‘exterior’”.

Com base no quadro acima exposto, Amossy e Pierrot (2005, p. 113) consideram que

a noção de estereótipo encontra-se duplamente relacionada ao pré-construído: em primeiro lugar,

no sentido de que designa um tipo de construção sintática que põe em cena algo afirmado antes,

independentemente; e, em segundo lugar, no sentido mais amplo de que o pré-construído seria

uma espécie de “rastro” no enunciado individual, de discursos e juízos prévios cuja origem

enunciativa foi esquecida.

É a partir dessa proposição que serão analisados os dados que integram esse primeiro

“foco”, o turismo. Partiremos de uma exposição preliminar dos dados para, em seguida,

retomarmos a questão teórica que envolve o pré-construído – e também o discurso transverso.

3.1 “Muito mais que sol e praia”: estereótipo e deslocamento

Em 2009, o Ministério do Turismo lançou um material intitulado Roteiros do Brasil:

87 belos motivos para viajar pelo Brasil – que faz parte do Programa de Regionalização do

Turismo, lançado em 2004 – e distribuído gratuitamente para agências e operadores de turismo e

também em alguns eventos (não necessariamente associados a turismo). Os objetivos do


93
programa são “estruturar, diversificar e qualificar a oferta turística brasileira, efetivar a inserção

competitiva do produto turístico no mercado internacional e aumentar seu consumo” (BRASIL,

2009, p. 4). Ou seja, o material aqui analisado integra uma proposta que vai além do mercado

nacional. A relevância dele para este trabalho encontra-se no fato de que foi através dele que

encontramos a entrada para o corpus.

Como deixa claro o título, nesse material são encontradas 87 sugestões de roteiros

turísticos pelo Brasil, separados por região (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul) e, em

sua maioria, por Estados – há alguns poucos roteiros “integrados”, isto é, que abrangem mais de um

Estado. Cada roteiro corresponde a uma página do material, que apresenta, dentre outras

informações, um mapa com o itinerário, suas principais informações, ícones no topo da página dos

principais atrativos (a saber: artesanato, bares, culinária, casario, compras, praias, fauna, flora,

folclore, igrejas, passeios e pesca) e uma seção denominada “imperdível”, que destaca um ou outro

ponto de cada roteiro. A ilustração abaixo apresenta a distribuição dos elementos nas páginas:

(Fonte: Roteiros do Brasil: 87 belos motivos para viajar pelo Brasil, 2009, p. 5)

94
Além disso, como se pode ver na página ilustrativa acima, todos os roteiros têm (pelo

menos) uma foto de algum ponto.

Mas há ainda outros dois aspectos que, num primeiro contato com o encarte, se

destacaram: i) quase todos (98,8%) os roteiros têm mais de três dos “ícones de atrativos” no topo

da página; ii) quase a metade dos roteiros (44,8%) não tem entre os ícones os de fauna e flora 75 –

profundamente ligados à dimensão ecológica do turismo. Uma leitura mais atenta mostraria,

posteriormente, que aquilo que era representado iconicamente materializava-se também em

determinadas construções linguísticas.

No âmbito lexical, por exemplo, verbos com carga semântica inclusiva – tais como

“completar”, “reunir” “combinar”, “somar”, “complementar”, “encontrar-se (com)”, “incluir” e

“conjugar” – estão presentes em abundância em todo o material, como se pode observar nos

recortes abaixo:

(1) O projeto Economia da Experiência – Costa do Descobrimento é uma proposta


inovadora no turismo nacional. Proporciona momentos de grande envolvimento para os
turistas, graças a uma abordagem histórico-cultural que inclui ainda sol e praia.
(BRASIL, 2009, p. 115; grifamos)

(2) A Região Sul reúne a exuberância da geografia brasileira com a influência da


imigração europeia. (BRASIL, 2009, p. 93; grifamos)

(3) [...] o percurso de buggy por praias e vilarejos de pescadores até Mangue Seco, no
município de Jandaíra, com direito a descida de sand board nas dunas, completam o
roteiro com história e natureza na dose certa. (BRASIL, 2009, p. 38; grifamos)

(4) A capital cearense combina qualidades de cidade colonizada pelos europeus e forte
influência indígena. (BRASIL, 2009, p. 42; grifamos)

(5) A esse patrimônio natural somam-se monumentos históricos, a culinária à base de


frutos do mar, artesanato, trabalhos dos artistas plásticos residentes no arquipélago,
histórias e crenças dos nativos, além de eventos religiosos e esportivos. (BRASIL, 2009,
p. 49; grifamos)

(6) Esse espetáculo da arquitetura [centro histórico de Olinda] soma-se à beleza da


natureza tropical. (BRASIL, 2009, p. 50; grifamos)

75
Mais precisamente: 34 roteiros (39%) não têm nenhum dos ícones (fauna e flora); 4 roteiros (4,6%) não têm
somente o ícone correspondente à fauna; 1 roteiro apenas (1,1%) não tem somente o ícone correspondente à flora.
95
(7) A Serra Verde Imperial, que compreende as cidades de Petrópolis, Itaipava, Nova
Friburgo e Teresópolis, conjuga a beleza de sua vegetação e de suas escarpas com o
charme de sua gastronomia requintada, seus atrativos histórico-culturais e as
oportunidades de compras. (BRASIL, 2009, p. 84; grifamos)

(8) Na ilha [de Florianópolis], de colonização açoriana, vive-se tanto sua história quanto
a beleza de suas praias e da Lagoa da Conceição. O roteiro inclui os encantos da Serra
Catarinense, repleta de montanhas, cânions e quedas d’água. (BRASIL, 2009, p. 102;
grifamos)

A partir da identificação desses lexemas, passamos a uma espécie de “decomposição”

dos enunciados a fim de identificar os elementos presentes no entorno de tais verbos. Faremos o

mesmo com os excertos apresentados acima para exemplificar o trabalho realizado em todo o

corpus:

(1’) abordagem histórico-cultural + natureza (sol e praia)

(2’) natureza (exuberância geográfica) + influência europeia

(3’) história + natureza

(4’) influência europeia + influência indígena

(5’) natureza (patrimônio natural) + monumentos históricos, gastronomia, artesanato,


artes plásticas...

(6’) arquitetura + natureza (tropical)

(7’) natureza (beleza de sua vegetação e escarpas) + gastronomia, história, compras...

(8’) história + natureza (praias, lagoas, montanhas, cânions...)

Os dados acima mostram que, em geral, os elementos relacionados ao mito do

“Brasil-paraíso” (que chamamos genericamente de “natureza”) estão presentes e a eles são

agregados outros traços: história, gastronomia, arquitetura etc. Esse processo de “inclusão” é que

direcionou uma nova incursão pelo encarte na busca de outros possíveis rastros deixados no

intradiscurso. E, de fato, uma série de estruturas sintáticas a que se pode atribuir esse estatuto

“inclusivo” estava ali presente:

(9) O Brasil é um país de superlativos. Estima-se que seu litoral ostente mais de 1.500
praias. Só isso bastaria para fazer dele um destino turístico inevitável. Acontece que o
território brasileiro tem também o rio mais caudaloso da Terra, o Amazonas, e a maior

96
floresta tropical do planeta, a Amazônia. Realiza o maior carnaval do mundo. São Paulo
é simplesmente a terceira maior cidade do globo. Ainda que não reunisse tantos
superlativos, o Brasil encantaria qualquer visitante, graças, principalmente, à sua
diversidade — em todos os aspectos: clima, fauna, flora, relevo, história, arte,
gastronomia. Sem contar, claro, o povo brasileiro. [...] O Brasil fascina por sua beleza
natural. Da mesma forma que as marcas históricas deleitam o turista [...]. (BRASIL,
2009, p. 6; grifamos).

(10) A selva, por si só, já vale a visita. Mas o folclore indígena também seduz.
(BRASIL, 2009, p. 15; grifamos).

(11) Oferece passeios, com condutores locais em canoas, lagos e trilhas para observação
da fauna amazônica [...], além da oportunidade de conhecer o trabalho de um projeto de
conservação pioneiro no Brasil. (BRASIL, 2009, p. 19; grifamos)

(12) A Ilha de Marajó guarda verdadeiros tesouros turísticos. Danças típicas, assim
como a cerâmica e a culinária marajoaras, ajudam a enriquecer o cenário paradisíaco.
(BRASIL, 2009, p. 23; grifamos)

(13) Rico tanto em paisagens naturais quanto em construções humanas, o roteiro Serras
do Lago [Tocantins] encanta o turista. A arquitetura de Palmas, cidade planejada, dá o
tom moderno e arrojado. Ao mesmo tempo, a capital tocantinense é rodeada de natureza
exuberante. (BRASIL, 2009, p. 28; grifamos)

(14) Alagoas é muito mais que sol e praia. São rios, mangues, lagoas e o majestoso Rio
São Francisco. [...] a história se confunde com a aventura. (BRASIL, 2009, p. 32;
grifamos)

(15) Mas se engana quem pensa que o roteiro [Circuito das águas paulista] se resume a
“sombra e água fresca”. Em todo o itinerário é possível praticar 22 modalidades de
esportes de aventura; aprender mais história do Brasil nas fazendas que abrigaram sinhás
e escravos; ordenhar vacas; acompanhar a produção artesanal de queijos, vinhos e
cachaças; e, claro, beber muita água mineral direto da fonte. (BRASIL, 2009, p. 87;
grifamos)

Estruturas sintáticas diversas como as que apresentamos acima foram encontradas ao

longo de todo o encarte do Ministério do Turismo. Mas não é apenas aí que esse fenômeno

ocorre; uma varredura pelo restante do corpus mostrou que, de fato, essa parecia ser nossa

“modesta entrada”. Vejamos abaixo recortes de outros materiais do corpus:

(16) [Manaus] A capital verde. Porta da maior floresta tropical do planeta, a cidade
ostenta também um modelo econômico de sucesso. Prédios históricos em ótima
conservação e a exuberante beleza amazônica de rios e matas arrebatam os olhos e os
corações de turistas extasiados. Um elenco de opções verdes, além de uma estrutura
arquitetônica bem conservada no centro da capital, são os atrativos turísticos de Manaus.
(Istoé. Ano 32, n. 2053. 18 mar. 2009. Informe publicitário; grifamos)

(17) Ninguém discorda de que a grande atração de Floripa são as praias, mas o centro
também tem seus encantos. Entre as novidades da temporada está a reabertura da
Catedral Metropolitana, um dos símbolos da cidade [...]. A volta da catedral reativou os

97
arredores da Praça 15 de Novembro. (Revista Viagem e Turismo. Ano 15, n. 12, ed. 170,
dez. 2009, p. 128; grifamos)

(18) [Brasília] Muito além da arquitetura. (Revista Gol, n. 97, abr. 2010, p. 36;
grifamos)

(19) Segundo a diretora [do Departamento de Articulação, Estruturação e Ordenamento


Turístico do MTur, Tânia Brizolla], o programa mostrou que o País não tem apenas sol
e praia, mas produtos que oferecem ecoturismo e cultura. (BRASIL. Balanço semestral
de ações do Ministério do Turismo. Ano 2, jan.-set. 2010, p. 6; grifamos)

(20) Mergulhe nas águas cristalinas de Bonito (MS) e, ainda, experimente as delícias da
culinária sul-matogrossense. O passeio continua na Serra do Cipó. [...] Além do
potencial ecoturístico, a região é conhecida pela história retratada pelas pinturas
rupestres e pelo misticismo. (Revista Bancorbrás. Ano 16, n. 65, out.-dez. 2010, p. 22;
grifamos)

(21) Não só comida chama a atenção na cidade centenária. A produção artística e


cultural é uma das marcas registradas de Belo Horizonte. [...] Os parques ecológicos e as
mais de 500 praças também são um convite para um tour especial pela capital que
ostenta o título de “Cidade Jardim”. (Istoé. Ano 32, n. 2053. 18 mar. 2009. Informe
publicitário; grifamos)

(22) Com cerca de 40 km de praias paradisíacas, piscinas naturais, um mar de águas


mornas, tranquilas e de cor inigualável, Maceió destaca-se por sua exuberante beleza e
por seus monumentos históricos, com um notável conjunto arquitetônico. (Revista Bem
vindo a bordo: a revista de bordo da Azul Linhas Aéreas, n. 11, p. 8; grifamos)

Repetindo o processo de “decomposição” feito mais acima, temos:

(9’) natureza (beleza natural) + marcas históricas

(10’) natureza (selva) + folclore indígena

(11’) natureza (fauna amazônica) + projeto científico de conservação

(12’) natureza (cenário paradisíaco) + danças típicas, cerâmica e culinária marajoaras

(13’) natureza (paisagens naturais) + construções humanas

(14’) natureza (sol, praia, rios, mangues...) + história e aventura

(15’) natureza (sombra e água fresca) + prática de esportes, história, agroturismo

(16’) natureza (maior floresta tropical do planeta) + modelo econômico

natureza (opções verdes) + arquitetura

(17’) natureza (praias) + centro histórico

(19’) natureza (sol e praia) + ecoturismo e cultura

(20’) natureza (águas cristalinas) + culinária regional

98
natureza (potencial ecoturístico) + história (pinturas rupestres) e misticismo

(22’) natureza (exuberante beleza) + monumentos históricos

Como se pode verificar, há adjuntos adverbiais, orações reduzidas, conjunções etc. –

consideradas aí as categorias da gramática tradicional. É possível identificar, contudo, na

variedade dos recortes de (9) a (21), uma certa “convergência”, uma vez que é possível

parafraseá-los, em geral, por meio de estruturas inclusivas. Esse é um ponto crucial para este

trabalho e, para apresentá-lo, tomemos para uma análise um texto integral de roteiro no Espírito

Santo (Rota do mar e das montanhas), como segue:

(23) Que tal aproveitar o clima quente das praias e, a apenas 40 minutos dali, desfrutar o
clima frio das montanhas? É a principal característica desse roteiro singular. A viagem
pode começar pelas belas praias de Vitória e Vila Velha ou com um passeio de escuna
pela Baía de Vitória, tendo, no alto, o Convento da Penha. É a oportunidade, também,
de saborear a tradicional moqueca capixaba, feita na panela de barro.
No município de Serra, suas praias bucólicas convidam a um simples banho de mar ou à
prática do surf, além de oferecer diversas manifestações folclóricas e culturais, como a
Festa de São Benedito. Seguindo viagem, em direção às montanhas, a primeira atração é
Domingos Martins. A influência dos colonizadores alemães e italianos deu o tom no
local, particularmente na culinária e na arquitetura. O Parque Estadual Pedra Azul é
referência da região, com trilhas e piscinas naturais. Ainda na cidade, vários eventos
merecem atenção, como o Encontro Internacional dos Amigos do Vinho e o Festival
Internacional de Inverno.
O agroturismo capixaba também é referência nacional. Em Venda Nova do Imigrante, é
impossível resistir aos pratos típicos e deixar de degustar o socol, salame feito de lombo
de porco. Vale a pena passear pelas propriedades rurais, que oferecem grande variedade
de produtos e permitem conhecer o processo de produção dos alimentos e o dia-a-dia da
vida no campo. (BRASIL, 2009, p. 79; grifamos).

O primeiro parágrafo do texto que apresenta o roteiro em tela parte – como ocorre na

grande maioria dos roteiros – de uma referência aos elementos “naturais” dos locais (as praias, as

montanhas, o clima). Ao final desse mesmo parágrafo já se observa a inclusão de outro atrativo: a

gastronomia. Na sequência do texto, novamente as praias são o ponto de partida, mas logo depois

ganham destaque atrativos culturais: festas populares, a arquitetura de influência europeia e, mais

uma vez, a gastronomia. No parágrafo final do texto, a menção ao agroturismo do local: embora a

modalidade seja descrita como “referência nacional”, o Espírito Santo não tem sua imagem

99
fortemente vinculada a esse tipo de turismo (como é o caso de outros lugares, como o Mato

Grosso ou Mato Grosso do Sul, por exemplo).

Mas o que cumpre destacar aqui é que o entorno dos “acréscimos” feitos aos

destaques comumente associados ao “Brasil-paraíso” revela a presença de determinadas

estruturas linguísticas que grifamos no excerto: também e além de. Ou seja, esse tipo de estrutura

parece incluir os traços que não estão associados à imagem cristalizada do local que, em geral,

retoma metonimicamente a cristalização do espaço “típico” brasileiro: a natureza, o paraíso.

Isso também pode ser observado quando se tomam roteiros no Brasil que são

(re)conhecidos como exceção a esse estereótipo. O roteiro no Centro-Oeste que combina Brasília,

Bonito e o Pantanal, permite observar o funcionamento desse tipo de construção quando a

imagem cristalizada do local não é a de “paraíso natural”, como é o caso de Brasília:

(24) Brasília tem como principal atração seu traçado urbanístico e sua inconfundível
arquitetura modernista, povoada de obras de artistas renomados. Mas os encantos da
cidade não param por aí. Brasília é também privilegiada por sua natureza exuberante,
que proporciona aos moradores e visitantes o prazer de desfrutar atrativos do Bioma
Cerrado, considerado, em biodiversidade, a savana tropical mais rica do mundo.
(BRASIL, 2009, p. 65; grifamos)

Note-se que à imagem consolidada de destino urbano é agregado o lado “natural”, da

riqueza do cerrado; lado esse que não é prontamente associado a Brasília enquanto destino

turístico. A adversativa introduzida pelo “mas” admite a seguinte paráfrase: para além dos

conhecidos atrativos de Brasília, há ainda outros. E novamente encontra-se o advérbio também no

entorno do atrativo “inesperado” (no sentido de não ser comumente vinculado ao local

apresentado). No texto abaixo, extraído de uma propaganda institucional, novamente o aspecto

“arquitetônico” da capital federal é ponto de partida para um deslocamento:

(25) Brasília é um museu a céu aberto. E que céu. O traçado urbanístico e os


monumentos fizeram de Brasília Patrimônio Mundial. Mas a nossa capital impressiona
também pelas suas opções de lazer e diversão. Além de convidar você para dar
deliciosos mergulhos e praticar esportes aquáticos, o Lago Paranoá também oferece

100
bares, restaurantes e cenários inesquecíveis. (Propaganda da Secretaria de Turismo do
Distrito Federal; grifamos)

Nos recortes (18) e (21) já apresentados – e que não foram objeto do processo de

“decomposição” como os demais por não partirem da cristalização “natureza” – é possível

observar esse mesmo funcionamento no caso de elementos cristalizados, digamos, não-verdes em

relação a Brasília e a Belo Horizonte, respectivamente; retomemos:

(18) [Brasília] Muito além da arquitetura. (Revista Gol, n. 97, abr. 2010, p. 36;
grifamos)

(21) Não só comida chama a atenção na cidade centenária. A produção artística e


cultural é uma das marcas registradas de Belo Horizonte. [...] Os parques ecológicos e as
mais de 500 praças também são um convite para um tour especial pela capital que
ostenta o título de “Cidade Jardim”. (Istoé. Ano 32, n. 2053. 18 mar. 2009. Informe
publicitário; grifamos)

O excerto (18) reafirma a imagem cristalizada de Brasília em torno de sua arquitetura.

Já em (21), o aspecto cristalizado de Belo Horizonte é sua culinária – de fato, a cidade é

conhecida por seus inúmeros botecos, que preparam comidas, inclusive para concorrerem em um

festival de “comidas de boteco”. A esse elemento, somam-se, então, os parques ecológicos e as

praças da cidade.

Do conjunto de dados apresentados até aqui é possível extrair, como adiantamos, uma

convergência: o estatuto inclusivo tanto das estruturas sintáticas quanto dos verbos listados. Os

diversos recortes, ao mesmo tempo em que colocam em cena o estereótipo do espaço nacional,

assumido como pré-construído – ou, em alguns casos, o de certas cidades brasileiras a que esse

estereótipo não é associado (Brasília, Belo Horizonte, São Paulo) – também promovem, por meio

das estruturas destacadas acima, um deslizamento dessa cristalização por meio da inserção de

outros elementos.

Até o momento falou-se genericamente em “estruturas inclusivas”; é, preciso,

contudo, uma discussão mais pormenorizada em torno da questão.

101
***

A importância da paráfrase para o quadro teórico-metodológico da AD é amplamente

conhecida: ela seria a matriz do sentido76. Achard ([1983]2007), refletindo sobre a memória

discursiva, observa que é a partir das paráfrases – consideradas como “derivações de possíveis

em relação ao dado” – que se estabelecem “séries” de uma determinada ocorrência e seus

segmentos, i.e., que se cria uma regularização. A partir disso, conclui que a memória discursiva

“não restitui frases escutadas no passado mas julgamentos de verossimilhança sobre o que é

reconstituído pelas operações de paráfrase” (ACHARD, [1983]2007, p. 16; grifamos). Como

já dito anteriormente, é precisamente o modo de inscrição de uma regularização que se pretende,

em última análise, descrever aqui.

A primeira focagem, o turismo, forneceu um conjunto de dados em que a inclusão de

elementos novos a uma imagem cristalizada do Brasil mostrou-se consistente independentemente

do tipo de material analisado (propagandas, institucionais ou não; matérias; encartes

institucionais; pacotes etc.). Embora haja uma diversidade de expressões de tal inclusão, elas

podem ser abrigadas sob uma “paráfrase aditiva”; e aí reside um ponto crucial para esta pesquisa.

A conjunção aditiva prototípica é o e77, sabe-se. No entanto, não é por meio dela que a

paráfrase dos enunciados acima se estrutura. Dada sua larga utilização, o e situa-se em meio a um

debate: para alguns, seria uma espécie de “item coringa”, enquanto, para outros, teria uma carga

semântica bem definida. Vilela & Koch (2001) podem ser citados como representantes da

primeira vertente; os autores elencam sete usos distintos daquele que consideram ser seu “valor

76
Cf. Pêcheux & Fuchs, [1975]1997.
77
A esse respeito vide, por exemplo, Guimarães (1987), Novaes (2000), Pezatti e Longuin-Thomazi (2008), para
ficar em poucos autores.
102
normal e prototípico” – a adição ou inclusão. A tabela abaixo resume os diferentes “valores” de

que falam Vilela & Koch (2001, p. 263) seguidos de exemplos:

Carga semântica Exemplo


1. Valor adversativo Ele fala muito e não diz nada.
2. Valor de causa ou efeito, consequência ou O livro era interessante e li tudo numa
resultado sentada.
3. Valor de implicação Não trabalhes e depois vês as
consequências.
4. Valor distintivo entre N e N Há carros e carros!
5. Valor intensivo ou enfático Ele viu a atriz e beijou-a e pediu-lhe em
namoro e vão se casar em breve.
6. Valor de ênfase ou exortação (no início e E a hora é de trabalhar, mas todos
desligado do pré-texto) fazem apenas política eleitoreira.
7. Integra-se numa sucessão temporal ou de ordem Ele veio e partiu em seguida.

Os gramáticos, por sua vez, encontram-se, em sua maioria, no grupo dos que

atribuem à conjunção e uma carga semântica bastante específica, i.e., exclusivamente o valor de

adição. Nesse rol pode-se citar, por exemplo, Bechara (1999), para quem – em definição um tanto

tautológica – “a aditiva apenas indica que as unidades que une [...] estão marcadas por uma

relação de adição” e cita o conectivo e como aquele que une “unidades positivas”. Outro

gramático de língua portuguesa que compartilha dessa visão é Napoleão de Almeida: “a

conjunção e é o tipo das conjunções aditivas e indica mera relação de nexo; por isso é comumente

suprimida, sem prejuízo para o sentido, em uma série coordenada e só é expressa entre o

penúltimo e último termo” (ALMEIDA, 2004, p. 349).

Esses debates, longe de terem um fim consensual, acabam, como entendemos, por

apontar – de um lado e de outro – para um certo efeito de “neutralidade”78 da conjunção: para

78
Empregamos a palavra “neutralidade” aqui por falta de outra melhor. Com ela queremos dizer que é difícil precisar
um valor para a conjunção (ou mesmo vários, mas determináveis de maneira mais ou menos formal), de modo que,
mesmo recorrendo ao contexto, é possível atribuir-lhe significados diversos. Enfim, como observa Guimarães (1987,
p. 123), a conjunção e é, no português brasileiro, “muito frequente, independente do registro e do tipo de discurso”.
103
uns, porque teria muitas possibilidades de significação; para outros, ao contrário, porque tem um

valor fixo a tal ponto que não deixa espaço para outras interpretações. É, pois, também em

decorrência disso que não foi o e utilizado nas paráfrases que apresentaremos mais abaixo. Além

disso, mesmo quando tal conjunção aparece nos recortes, sua interpretação envolve determinadas

relações interdiscursivas que, conforme se buscará mostrar mais adiante “exigem”/ “impõem”

uma leitura que ultrapassa os limites de uma “mera” adição.

As gramáticas costumam colocar, ao lado dessa conjunção, uma série de outras como

não só... mas também79, nem, tanto... quanto, bem como e as variantes dessas. Negrão et al

(2002), por exemplo, observam, a respeito da estrutura não só X mas também Y, que se trata de uma

estrutura de inclusão que poderia ser parafraseada por meio da utilização de conjunções

coordenativas aditivas (como no par: Fomos não só à praia mas também ao museu/ Fomos na

praia e no museu). Há, porém, uma discussão acerca da natureza dos processos implicados por tais

conjunções, i.e., se se trata de coordenação ou de correlação. Para alguns autores, trata-se de

funcionamentos distintos; para outros, porém, a correlação estaria abrigada sob a coordenação e a

subordinação. Os que distinguem os três processos costumam apontar, como Rodrigues (2007), as

seguintes diferenças: enquanto na subordinação estamos diante orações “sintaticamente

dependentes” e na coordenação de orações “sintaticamente independentes” umas das outras, a

correlação marca – por meio do uso de estruturas específicas, chamadas correlatas – a união de

orações “formalmente interdependentes”. No grupo de expressões correlatas estariam, dentre

outras, “não só... mas também”, “ou... ou”, “quer... quer”, “tanto... quanto”. Há muitas outras, posto

que as construções correlativas variam muito de autor para autor; nesse sentido, algumas construções

encontradas comumente são alternativas, comparativas, proporcionais, consecutivas e aditivas.

79
Como aponta Guimarães (1987, p. 123; grifos no original): não só... mas também, “quando referida nas gramáticas
do Português, vem classificada como coordenativa aditiva, junto da conjunção e”.
104
Mattoso Câmara, diferentemente de Rodrigues (2007), encontra-se entre aqueles que

não admitem a existência da correlação como processo à parte da subordinação e da coordenação:

Os adeptos da correlação, à força de explorar o conceito, chegaram à demonstração por


absurdo de que ele é falso, quando criaram a “correlação alternativa” como faz
Gladstone Chaves de Melo atendendo a uma sugestão do jovem professor Maximiano de
Carvalho. Assim, dois professores excelentes (e Gladstone Chaves de Melo é uma
pessoa que muito admiro, como já frisei mais de uma vez) aboliram a coordenação
alternativa com — “ou...ou...”, “quer... quer...” sob alegação de que uma oração de “ou”
ou “quer” não se justifica sem a outra. Mas isso é normal em toda coordenação: na
adversativa, na explicativa, na conclusiva e até na aditiva, em que cada oração se
compreende em função da anterior: “mas preguiçoso”, “preguiçoso pois” e assim por
diante não formam “sentido completo”. A ser válido o raciocínio dos dois dignos
professores, não há coordenação, e em seu lugar teremos a correlação. (MATTOSO
CÂMARA JR., [1960]2004, p. 111-112)

Desse debate – que não esmiuçaremos aqui – interessa reter alguns pontos. O

primeiro deles é que, admitindo ou não a possibilidade de um processo à parte, estruturas como

as que citamos acima são chamadas correlativas 80 e, o que é aqui mais relevante, são consideradas

por muitos autores como “enfáticas”. Bechara (1999, p. 321; grifamos), a esse respeito, observa

que “a expressão enfática da conjunção aditiva e pode ser expressa pela série não só... mas

também e equivalentes”; Luft (2000, p. 51; grifamos), por seu turno, considera essas estruturas

como “aditivas enfáticas”; já Mattoso Câmara ([1960]2004, p. 111; grifamos) afirma que, na

“alegada ‘correlação’, o que se tem na realidade é uma coordenação aditiva enfática”. Por ora

diremos apenas que, com base nos dados apresentados até aqui, o uso de estruturas correlativas

aditivas não parece ser simples questão de ênfase. Voltaremos a esse aspecto mais adiante.

Um segundo ponto a se reter do debate diz respeito a uma das propriedades atribuídas à

correlação: o caráter binário das conjunções. A correlação apresenta “conjunções que vêm aos pares,

cada elemento do par em uma oração” (RODRIGUES, 2007, p. 232). Para Mateus et al (2003, p.

563), trata-se de “locuções conjuncionais que assumem a forma de uma expressão descontínua”. Essa

característica pareceu, desde o início, crucial para as paráfrases do corpus: como as “decomposições”
80
Mesmo quem não considera a correlação um processo distinto, costuma denominar conjunções como “não só...
mas também”, “tanto...quanto”, “ou...ou” etc. de (coordenativas) correlativas.
105
acima procuraram mostrar, há sempre um elemento dado, o estereótipo, e um novo, que desloca a

imagem cristalizada; ou seja, é possível considerar que eles vêm, digamos, “aos pares”. Por isso a

estrutura não só X mas também Y (considerada por diversos autores como, de certa forma, a estrutura

“genérica” das aditivas correlativas) será utilizada nas paráfrases.

Além de encontrar no corpus construções com essa estrutura – como é possível ver

em (17), (19) e (21) acima –, há outras que podem ser consideradas variantes. Nesse sentido,

Rosário (2012), analisando discursos proferidos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro

entre os anos de 2007 e 2009, lista um conjunto de estruturas que se podem considerar

“equivalentes” a não só X mas também Y, como mostra a tabela a seguir:

Fonte: Rosário, 2012, p. 189.

106
Além dessas, Rosário (2012) ainda cita algumas outras que, também implicam,

segundo constata, correlação aditiva, a saber: mas também, assim como e como também (sem

outra estrutura lexicalmente preenchida na prótase), bem como, assim como... também, desde...

até (ou de... até/a) , tanto... quanto, nem... nem. Nossos dados apresentam algumas dessas

construções também, exemplificadas nos recortes que seguem:

(12) A Ilha de Marajó guarda verdadeiros tesouros turísticos. Danças típicas, assim
como a cerâmica e a culinária marajoaras, ajudam a enriquecer o cenário paradisíaco.
(BRASIL, 2009, p. 23; grifamos)

(25) Brasília é um museu a céu aberto. E que céu. O traçado urbanístico e os


monumentos fizeram de Brasília Patrimônio Mundial. Mas a nossa capital impressiona
também pelas suas opções de lazer e diversão. Além de convidar você para dar
deliciosos mergulhos e praticar esportes aquáticos, o Lago Paranoá também oferece
bares, restaurantes e cenários inesquecíveis. (Propaganda da Secretaria de Turismo do
Distrito Federal; grifamos)

(26) Ao longo dos 457 km de extensão desse trecho da BR-101 [Rio-Santos] estão
algumas das mais belas praias fluminenses e paulistas. Mas não é só para o mar que
você vai olhar durante a viagem: Santos tem o maior jardim de orla do mundo, São
Sebastião tem badalação à beira-mar, Parati é cheia de história e o Rio de Janeiro, bem, é
maravilhoso mesmo. (GUIA 1001 maneiras bacanas de conhecer o Brasil. Guia 4 rodas,
São Paulo, Ed. Abril, p. 55, 2010; grifamos)

(27) As cidades de João Pessoa, capital da Paraíba, Conde e Cabedelo são bem próximas
e oferecem opções que vão das belas e paradisíacas praias até igrejas, casarios e
monumentos históricos típicos do início da colonização brasileira. (BRASIL, 2009, p.
46; grifamos)

(28) You will feel the extraordinary forcefulness of nature in each corner of this vast
region. From the spectacular richness of wild species in the Mato Grosso Pantanal to the
caves crossed by crystal-clear rivers in Bonito. From the mysticism that surrounds the
Chapada dos Guimarães to the thermal water resorts in Goiás. From the immensity of
Jalapão, in Tocantins, with its amazingly rich fauna, to the bold architecture of Brasilia –
Brazil’s capital-city and cultural heritage of manking. Central Brazil is a region of
contrasts. The old and the new. From nature at its purest to modern cities with frenetic
nightlife. From popular festivals of century-old traditions, with their typical “soul food”,
to world-class restaurants.81 (BRASIL, s/d, p. 2; grifamos)

(29) O arquipélago de Fernando de Noronha coroa o passeio graças a sua exuberância


tanto em terra quanto no mar. (BRASIL, 2009, p. 51; grifamos)

81
Você irá sentir a extraordinária força da natureza em cada canto dessa vasta região. Da espetacular riqueza das
espécies selvagens do Pantanal mato-grossense até as cavernas atravessadas por rios de água cristalina em Bonito.
Do misticismo que cerca a Chapada dos Guimarães até os resorts de água quente em Goiás. Da imensidão do
Jalapão, no Tocantins, com sua fauna incrivelmente rica, até a arrojada arquitetura de Brasília – capital do Brasil e
patrimônio cultural da humanidade. O Brasil Central é uma região de contrastes. O velho e o novo. Da natureza em
seu estado mais puro até as modernas cidades com sua frenética vida noturna. De festivais populares de tradições
seculares, com suas comidas típicas, até restaurantes de primeira classe. (tradução nossa)
107
Especificamente em relação à estrutura tanto... quanto, Rosário (2012) esclarece que,

mesmo sendo comumente considerada uma estrutura comparativa, a análise dos dados mais

recentes demonstra que a ideia mais premente é de adição:

Segundo Almeida (2004, p. 357) os pares tanto... quanto e tanto...como instanciam


orações que devem ser analisadas como subordinadas adverbiais comparativas.
Defendemos outra possibilidade de análise para esse tipo de construção, visto que o
processo de abstratização das partículas quanto e como esmaeceu seus sentidos
primários, em sucessivos deslizamentos semânticos. No estágio atual da língua, pelo
menos nas ocorrências que analisamos, a carga semântica emergente ou mais prototípica
é de adição. (ROSÁRIO, 2012, p. 124; grifos no original).

Retomando o excerto apresentado anteriormente em (13), vê-se que o efeito aqui

também é o de adição e, por isso, a paráfrase com a estrutura não só X mas também Y:

(13) Rico tanto em paisagens naturais quanto em construções humanas, o roteiro Serras
do Lago [Tocantins] encanta o turista. A arquitetura de Palmas, cidade planejada, dá o
tom moderno e arrojado. Ao mesmo tempo, a capital tocantinense é rodeada de natureza
exuberante. (BRASIL, 2009, p. 28; grifamos)

O Tocantins é rico não só em paisagens naturais mas também em construções humanas.

Assim, o Brasil retratado – ele mesmo ou, metonimicamente, por cidades que o

representam do ponto de vista turístico – em alguns dos excertos apresentados até aqui é:

NÃO SÓ... MAS TAMBÉM...


(1’’) história e cultura sol e praia
(2’’) exuberância da geografia influência da imigração europeia
(4’’) colonização europeia influência indígena
(5’’) patrimônio natural monumentos históricos, culinária, artesanato,
história e crenças, eventos religiosos e esportivos
(6’’) a beleza da natureza tropical espetáculo da arquitetura
(7’’) a beleza da vegetação gastronomia, atrativos histórico-culturais e
compras
(9’’) praias o rio mais caudaloso, a maior floresta tropical, a
terceira maior cidade do mundo
beleza natural marcas históricas
(10’’) selva folclore indígena
(11’’) fauna projeto de conservação

108
(12’’) cenário paradisíaco danças típicas, cerâmica e culinária marajoaras
(13’’) paisagens naturais construções humanas
(14’’) sol e praia rios, mangues, lagoas, história e aventura
(15’’) sombra e água fresca esportes de aventura, história e atividades rurais
(16’’) a maior floresta tropical do mundo um modelo econômico de sucesso
opções verdes estrutura arquitetônica bem conservada
(17’’) praias centro da cidade
(19’’) sol e praia ecoturismo e cultura
(20’’) águas cristalinas culinária
potencial ecoturístico história
(21’’) comida produção artística e cultural
(22’’) praias paradisíacas, piscinas monumentos históricos
naturais, água morna

Apresentada a estrutura das paráfrases em não só X mas também Y, é preciso falar um

pouco mais a respeito de suas características, especialmente porque há um certo debate para o

qual esperamos poder contribuir.

Falaremos, primeiramente, numa abordagem que se dedicou por um tempo ao estudo

dos conectivos, a saber: a semântica argumentativa. Os estudos de Ducrot para o francês

encontraram no Brasil alguns seguidores (Vogt e Guimarães são dois expoentes) que assumiram a

empreitada no português. Tomada, assim, uma categoria como a dos operadores argumentativos

(proposta por Ducrot), que abrangem outras diversas categorias da gramática tradicional, uma vez

que são encarados do ponto de vista da conclusão para a qual os enunciados apontam, poder-se-ia

dizer que tanto e como o não só X mas também Y são operadores cuja função é somar argumentos

em favor de uma mesma conclusão, conforme classificação proposta por Koch (1998).

Guimarães (1987), contudo, opta por um caminho distinto: para ele, não só X mas também Y tem

características de conjunções segmentativas/correlativas (e não coordenativas, como é o caso do

109
e), por um lado e, por outro, não pode integrar o grupo dos operadores que somam argumentos

em direção a uma mesma conclusão – ao menos não sem algumas ressalvas:

Sabemos [...] que não só... mas (também) é um operador cuja frequência não é muito
grande e cujo uso parece se dar em textos de registro mais formal, ou com forte
caracterização argumentativa. Nisto também ela diferiria da conjunção e, muito
frequente, independente do registro e do tipo de discurso. (GUIMARÃES, 1987, p. 123).

Reiteramos aqui nossa posição de que as conjunções do grupo não só X mas também

Y têm diferenças importantes em relação a outras aditivas como o e. Nesse sentido também se

posicionou Vogt (1977). Para ele,

quando um locutor diz “não só p mas q” ele procede como se pressupusesse no seu
interlocutor a intenção de acrescentar, como é próprio deste operador, um caráter de
exclusividade; não só é a marca desta ausência. A recusa do locutor encontra, enfim, a
sua razão argumentativa no fato de q ser apresentado como um argumento de igual força
que p, isto é, como um argumento que, por ser igual, opõe-se de certa forma a p: mas
também q”. (VOGT apud GUIMARÃES, 1987, p. 125).

Em outras palavras, Vogt defende que, ao utilizar o operador não só X mas também Y,

o locutor reconhece a intenção argumentativa de seu interlocutor – aquela de apresentar uma

argumento como sendo “definitivo” ou mais forte – e, em certa medida, recusa-se a entrar nesse

mesmo “jogo”, para usar a metáfora de Ducrot, acrescentando a este argumento um outro que ele

julga tão relevante/forte quanto aquele de seu interlocutor. É com base na hipótese de Vogt que

Guimarães (1987, p. 125) explica a intenção argumentativa na enunciação de “Não só Pedro veio

mas também João veio”; é como se o locutor dissesse:

Você pretende que Pedro veio é o argumento mais forte para [a conclusão] r. Não é isso,
pois não só Pedro mas também João veio. Ou seja, João veio é argumento de igual força
que Pedro veio para r. (grifos no original).

Rosário (2012), embora de uma perspectiva teórica distinta (o funcionalismo)

também compartilha da ideia de que essa estrutura permite o que chama de crescendum

argumentativo: o argumento pousado sobre Y seria o mais forte, ou aquele de que se lança mão

para “um maior convencimento” (ROSÁRIO, 2012, p. 119). Em decorrência desse crescendum,

110
para ele, a estrutura correlativa não só X mas também Y apresenta como característica, dentre

outras, a impossibilidade de inversão dos elementos que ocupam X e Y. Como exemplo,

poderíamos citar o trecho abaixo, extraído de Rosário (2012, p. 153):

Augusto Boal construiu o famoso Teatro do Oprimido — que se difundiu não apenas no
Brasil mas também em várias partes do mundo, sobretudo nas três últimas décadas do
século XX —, entendido como instrumento de emancipação política, de despertar da
consciência sobre o mundo e sobre a capacidade de cada um dos seres humanos de atuar
coletivamente a fim de transformar a realidade. (grifos no original)

X e Y são, respectivamente, preenchidos por Brasil e várias partes do mundo, “em

flagrante relação de crescendum”, nas palavras de Rosário, tanto em termos de “escala

imaginária” com várias partes do mundo ocupando lugar mais à direita, quanto em termos

argumentativos.

Na esteira das análises de Vogt, Guimarães afirma que pretende avançar sobre

algumas questões referentes ao funcionamento das duas conjunções (e e não só X mas também

Y). Para além dos pontos em comum entre elas – ambas articulam argumento com argumento e

conclusão com conclusão –, há uma diferença fundamental no que diz respeito ao funcionamento

de uma e outra:

o funcionamento do e exige condições diversas das que exige o funcionamento de não


só...mas (também). [...] o não só...mas (também) tem nas suas regularidades um lugar
próprio para a perspectiva do outro. Já as enunciações com e precisam de outros
elementos para relacionar-se com esta outra perspectiva, já que as enunciações com e
não representam, necessariamente, um lugar para esta duplicidade de perspectivas.
(GUIMARÃES, 1987, p. 129).

Dito de outro modo, “a significação dos recortes enunciativos com não só...mas

(também) é polifônica, ao contrário das enunciações com e” (GUIMARÃES, 1987, p. 129) e “isto

quer dizer que usar não só... mas (também) é lançar mão de uma construção linguística que tem a

polifonia como constitutiva da significação de sua enunciação” (GUIMARÃES, 1987, p. 137).

Essa polifonia tem, contudo, uma particularidade que, como entendemos, não é expressa por

111
Guimarães: o “só” não é, via de regra, dito pelo interlocutor, mas é a ele “atribuído” pelo

responsável pela enunciação da estrutura. Tomando um exemplo: se A diz “A pobreza gera

violência” ao que B responde “Não só a pobreza mas também a ganância”, o que fica claro é que

A não diz “só a pobreza”, mas B – para ficar no mesmo quadro teórico ducrotiano – toma como

exaustiva82 a afirmação de A e, por isso, atribui-lhe o só83. A polifonia é marcada, na estrutura,

pela presença do não84, considerado o operador polifônico por excelência (DUCROT,

[1973]1981), que contrapõe, ao que considera exaustivo de A, um outro enunciador, um novo

argumento.

Além disso, Guimarães (1987, p. 138) aponta um certo “caráter avaliativo” que essas

estruturas parecem ter e que não é encontrado no uso do e: o locutor avalia, de sua perspectiva, a

perspectiva de seu interlocutor, o que, de certa forma, Vogt (1977) parecia indicar.

A proposta de Guimarães (1987) para a análise do operador não só X mas também Y,

em comparação com o e, pode, assim, ser sintetizada no quadro a seguir:

Significação
Tipo de Natureza dos elementos
Operador do recorte Avaliação
conjunção articulados
enunciativo
não só X mas Segmentativa argumentos/argumentos Polifônica Tem caráter
também Y conclusão/conclusão avaliativo
Coordenativa argumentos/argumentos Não polifônica Não tem caráter
e
conclusão/conclusão avaliativo

A vantagem da distinção proposta por Guimarães (1987) em relação a outras

classificações está, a nosso ver, em reconhecer as particularidades de uma estrutura


82
Ducrot (1977) propõe seis leis do discurso que buscam dar conta do que o autor considera um “quadro jurídico e
psicológico imposto” no interior do qual se desenvolve o ato de comunicação. Dentre elas, a lei da exaustividade
“exige que o locutor dê, sobre o tema do qual fala, as informações mais fortes que possui, e que sejam suscetíveis de
interesse ao destinatário” (DUCROT, 1977, p. 131).
83
Esse tipo de funcionamento lembra, em certa medida, o dos simulacros (vide capítulo 4), embora, tecnicamente,
não seja a mesma coisa, já que se trata de “acrescentar” um só ao que o outro diz.
84
Lembremos que mesmo com uma série de variações apresentadas mais acima (cf. ROSÁRIO, 2012), a estrutura
mantém, em todos os casos, o não.
112
frequentemente apresentada ao lado do e. De fato, não parece haver uma equivalência total entre

as duas estruturas; as diferenças, contudo, não podem ser, segundo apontam as análises de

Guimarães, estritamente linguísticas:

a partir da caracterização do Não só... mas (também) como polifônico, podemos dizer
que pensar como se constrói, ou construiu, a expressão em estudo é pensar em que
relação com outro dizer ela se constitui. Então a questão não é de escopo de operador,
nem tampouco componencial, mas de relação interdiscursiva numa situação de
enunciação. Ou seja, que dizer do outro o funcionamento de não só... mas (também)
representa ou resgata. (GUIMARÃES, 1987, p. 143-144; grifos no original).

A partir do quadro teórico da AD, que opera na imbricação da língua com a história, a

questão deve ser analisada a partir da relação interdiscursiva, como aponta o autor. Isso não

implica, entretanto, uma exclusão de questões consideradas mais “linguísticas”, como o escopo,

por exemplo.

Há que se dizer, contudo, que, ainda que defenda “que o sentido não é o resultado do

alcance de uma forma linguística, mas é o resultado histórico das enunciações em que esteve

envolvida” (GUIMARÃES, 1987, p. 141), o autor não deixa de ver nos empregos do operador

não só X mas também Y um funcionamento aditivo, posto que, da mesma forma que o e, ele

acrescentaria “algo ao que se disse antes, estabelecendo uma equivalência entre os elementos

articulados” (GUIMARÃES, 1987, p. 147). Como bem observa Krieg-Planque (2010b), estudos

como esse (sejam eles de natureza retórica, lógica, argumentativa etc.) tendem a centrar a atenção

sobre os marcadores – mesmo que se considere, como é o caso de Guimarães (1987), algum

“exterior”. No quadro de uma Análise do Discurso, a articulação entre língua e história é fundante

e, nesse sentido, será preciso pensar, sim, em termos de escopo do operador, por exemplo, e

também a partir da relação interdiscursiva mantida pelo enunciado.

Dessa perspectiva teórica, Mussalim (2003) argumenta – analisando a semântica

discursiva do movimento modernista brasileiro – que, no interdiscurso, as relações dialógicas que

113
se estabelecem podem nos levar a ler os enunciados acima num “enquadre” distinto daquele da

inclusão. Ou seja, não bastaria, de fato, descrever tais estruturas da língua, mas assumi-las como

materializações das relações mantidas no interdiscurso. Nesse sentido, o corpus analisado por

Mussalim contém estruturas “inclusivas” do tipo não só X mas também Y que não têm, muitas

vezes, um efeito de sentido de inclusão, mas de concessão. Exemplificando esse tipo de

funcionamento, a autora destaca um enunciado de Mário de Andrade, em que o poeta diz: “Isso é

muito importante: sentir e viver o Brasil não só na sua realidade física mas na sua emotividade

histórica também”. Contrastando duas paráfrases “possíveis”, uma num nível estritamente

estrutural e outra numa perspectiva discursiva,

Paráfrase estruturalParáfrase discursivaOs modernistas devem sentir e viver o

Brasil na sua realidade física e na sua emotividade históricaMesmo fazendo arte como os

acadêmicos, isto é, mesmo representando o Brasil na sua realidade física, os modernistas diferem

dos artistas acadêmicos, visto que a representação física da realidade brasileira é superada, na arte

dos modernistas, pela emotividade/ subjetividade do artista.

Mussalim aponta para a impossibilidade de uma leitura inclusiva dado que

representar o Brasil na sua realidade física não é um dos objetivos que simplesmente se
soma ao objetivo central da proposta modernista, que, inserida em um espaço discursivo
de ruptura, busca a construção da nacionalidade por meio de um processo de contra-
aculturação realizado através da subjetividade do artista. (MUSSALIM, 2003, p. 143).

Em outras palavras, a leitura não é de aliança entre as duas posições implicadas no

enunciado – o academicismo naturalista e o modernismo – a respeito do modo de conceber a

construção da realidade nacional, mas de “superação” do discurso modernista frente à arte

acadêmica cujo efeito de sentido

é de concessão: o discurso modernista faz concessões à posição do discurso acadêmico,


assumindo que, em certa medida, os modernistas também realizam uma “cópia fiel” da
realidade nacional, mesmo que esta seja uma prática fortemente combatida pelo

114
movimento (na verdade, é justamente por este motivo que se trata de uma concessão!).
(MUSSALIM, 2003, p. 144).

As análises de Mussalim (2003) colocam em evidência um dos pressupostos mais

caros da escola francesa de Análise de Discurso, a saber: aquele de que há uma relação entre os

discursos e as estruturas linguísticas que os materializam (Pêcheux 1975/1997), ainda que essa

relação não seja, como aponta Possenti (2002), biunívoca – i.e, uma mesma estrutura não

materializa sempre um determinado discurso e vice-versa. Além disso, mostram também que as

paráfrases são fruto das relações que historicamente constituem os discursos e que, como aponta

Guimarães (1987), esse tipo de estrutura abre espaço para o dizer de um “outro” – ainda que a

autora não faça menção aos estudos de Guimarães. E é precisamente este o ponto que permitirá

avançar a respeito do funcionamento dos discursos que contribuem para a construção e/ou

legitimação de um espaço nacional, por ora no âmbito turístico.

Assumindo, então, que as estruturas linguísticas dão suporte às relações existentes

entre os discursos no interdiscurso, será preciso retomar algumas das questões envolvidas no

processo de construção/legitimação de um espaço brasileiro “por excelência”.

Como visto, Holanda ([1959]2010) aponta que uma certa imagem do Brasil se

cristalizou desde o período do descobrimento, a saber: a do paraíso terreal. Tal cristalização tem

seus ecos até os dias de hoje, como fica evidente nas remissões às paisagens paradisíacas do

Brasil, por exemplo, nos recortes de roteiros turísticos85. Somem-se a isso as declarações feitas

por jornalistas da imprensa internacional e membros da FIFA à época do anúncio do país-sede

para a Copa de 2014: naquela época, o Brasil foi elogiado por pautar sua proposta para sediar a

Copa numa ideia de “Copa Ecológica” ou “Copa Verde”. O próprio presidente da FIFA, J. Blatter,

observou que tal proposta o havia “impressionado” e que “só o Brasil” poderia fazer uma

85
Vide capítulo 2 desta tese.
115
proposta assim. Outros veículos midiáticos destacaram que sediar uma copa com preocupações

ecológicas era mesmo o “perfil” do país. Ou seja, é possível observar uma certa imagem já

consolidada em torno de um Brasil “natureza”, “ecologia”. O que se pode notar também nas

análises apresentadas em torno da modalidade de turismo conhecida como turismo científico-

cultural.

Essa cristalização aparece, como procuramos mostrar mais acima, frequentemente ao

lado de outros elementos que não são, por seu turno, prontamente associados à imagem do Brasil.

Esse processo é marcado no fio do discurso por determinadas estruturas que podem ser retomadas

pela paráfrase geral em não só X mas também Y, que permite marcar linguisticamente o lugar de

“inscrição” de tal cristalização ou estereótipo do Brasil no tocante ao seu espaço. O pré-

construído, o estereótipo da imagem do espaço nacional “típico” ocupa – como é possível

observar nos recortes apresentados neste capítulo – a posição de X (prótase), enquanto o

elemento “novo”, aquele que desliza tal imagem, pousa sobre Y (apódose). Esquematicamente:

não só PRÉ-CONSTRUÍDO mas também DESLOCAMENTO


Prótase Apódose

4. Considerações finais

Pêcheux ([1983]2007, p. 52) sugere que a questão dos estereótipos poderia estar

relacionada à repetição sobre a qual se daria “a formação de um efeito de série pelo qual uma

‘regularização’ [...] se iniciaria, e seria nessa própria regularização que residiriam os implícitos,

sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrase”. E neste ponto, para ou autor,

reside a importância da noção de memória discursiva que – diferentemente de uma concepção

psicologista –, seria aquilo que,

116
face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos”
(quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados,
discursos transversos etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação
ao próprio legível. (PÊCHEUX, [1983]2007, p. 52)

Este é, portanto, o estatuto do pré-construído e dos discursos transversos: trata-se do

que se chama, de maneira geral, de implícitos. Por serem, assim, uma espécie de “presença

ausente”, Pêcheux ([1983]2007, p. 52) destaca que, para a Análise de Discurso, uma questão

crucial seria saber “onde residem esses famosos implícitos, que estão ‘ausentes por sua presença’

na leitura da sequência”.

No caso do presente trabalho, a paráfrase por meio da estrutura não só X mas também

Y parece indicar, como visto mais acima, o local da cristalização ou, nos termos de Achard 86, da

“regularização”. Mais que isso, tal estrutura permite também o deslocamento que, pela força do

acontecimento discursivo, vem fazer ruir a regularização e “perturbar a memória” (PÊCHEUX,

[1983]2007, p. 52). Nesse sentido:

haveria [...] sempre um jogo de força na memória, sob o choque do acontecimento:


- um jogo de força que visa manter uma regularização pré-existente com os implícitos
que ela veicula, confortá-la como “boa forma”, estabilização parafrástica negociando a
integração do acontecimento, até absorvê-lo e eventualmente dissolvê-lo;
- mas também, ao contrário, o jogo de força de uma “desregulação” que vem perturbar a
rede dos “implícitos”. (PÊCHEUX, [1983]2007, p. 53).

Esse quadro permite, portanto, assumir os estereótipos não como algo “engessante”

ou redutor, mas como uma regularização, efeito de retomadas, paráfrases e repetições que levam

ao “esquecimento” da origem enunciativa, fazendo dos estereótipos um elemento do interdiscurso

cuja entrada no fio do discurso deixa suas marcas, ou seja, os efeitos da articulação dessas

cristalizações e do seu deslocamento são detectáveis linguisticamente. Assim, assumindo,

juntamente com Pêcheux ([1975]1997, p. 167), que “o interdiscurso enquanto discurso-transverso

atravessa e põe em conexão entre si os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso

86
“A regularização se apoia necessariamente sobre o reconhecimento do que é repetido. Esse reconhecimento é da
ordem do formal […]”, (ACHARD, [1983]2007, p. 16).
117
enquanto pré-construído”, diremos que é por meio de estruturas do tipo não só X mas também Y

que o elemento estereotipado, cristalizado, referente ao espaço nacional é linearizado; ou seja, é

por meio de tais estruturas que se articulam o dado e o novo, o estereótipo e seu deslocamento.

A leitura, porém, desses enunciados não parece ser sempre meramente aditiva 87,

considerando o que foi dito mais acima acerca das condições de produção desse discurso, i.e, não

se trata de novos “traços” de um espaço nacional que seriam incluídos aos já conhecidos. Trata-

se, na verdade, de um movimento discursivo que desloca a imagem cristalizada do espaço

nacional para um outro “elemento”. O tema recorrente de “diversidade”, da “pluralidade”, do

caráter “superlativo” do país – retomado em outros espaços (economia, antropologia e cultura,

para ficar em poucos exemplos) – surge também no que diz respeito à construção/legitimação do

espaço brasileiro “por excelência”. É como se – a partir das considerações em torno das análises

de Guimarães (1987) – às declarações acerca de uma paisagem “genuína” brasileira se

“acrescentasse” o só (colocando a lei da exaustividade de Ducrot a funcionar) para, em seguida,

dizer que isso não é tudo que há para dizer a respeito do Brasil. Nesse sentido, a paráfrase das

estruturas acima é algo como: “embora o Brasil seja pródigo em belezas naturais, não é apenas

isso que o país oferece ao turista” ou ainda “mesmo que tenha diversas belezas naturais, há

outros elementos a serem valorizados no país”. As análises apresentadas aqui mostram, portanto,

que a leitura dessa estrutura — como de outras, aliás — deve ser discursiva.

87
Por mais que procurem dar um novo estatuto à estrutura da paráfrase aqui analisada, estudos como os de
Guimarães (1987) e Rosário (2012) consideram não só X mas também Y invariavelmente como sendo “aditiva”.
Contrariamente a eles, Mussalim (2003) mostrou que, dadas as relações mantidas no interdiscurso, a leitura pode ser
bastante distinta.
118
Capítulo 4 – Moda brasilis

119
É bem verdade que nossa floresta
amazônica, ocupando importante parcela
do território brasileiro, tem merecido
destaque nesse imaginário que relaciona
o Brasil à natureza. Bem longe dela,
entretanto, em grandes centros urbanos
do Sudeste do país, como Rio de Janeiro
e São Paulo, também é a natureza (dessa
vez ainda mais idílica e menos hostil) que
brota nos discursos sobre o que há de
mais “brasileiro” em nossa moda.
(LEITÃO, 2007, p. 131).

1. Palavras iniciais

Do turismo à moda. Este capítulo apresenta as análises referentes a essa que se

poderia chamar segunda “focagem”. Desde a etapa de construção do corpus desta pesquisa, esses

dois espaços apareciam, volta e meia, relacionados. Vimos no capítulo anterior que foi uma

revista “de moda” (Elle) que chamou a atenção para o fenômeno do turismo científico-cultural e,

em 2008, novamente esses espaços voltam a se encontrar, mas agora numa ação da Embratur:

durante duas semanas de moda internacionais (Mercedes-Benz Fashion Week, em Nova York, e

Who’s Next Paris, no Showroom do Crillon) foram distribuídos brindes88 com imagens de

destinos turísticos no Brasil. A presidente da Embratur à época, Jeanine Pires, justificou a ação
88
Em Nova York, eram chaveiros com imagens, segundo a Embratur, “representativas das cinco regiões”: Cristo
Redentor, berimbau, frutos de guaraná, chimarrão e o Congresso Nacional”. Em Paris, eram almofadas e ecobags
com imagens de Brasília, da Chapada Diamantina e de Foz do Iguaçu.
120
dizendo que eventos como esses “reúnem formadores de opinião, além de contar com forte

presença da imprensa internacional, o que reforça a divulgação do País mundo afora” 89. Ou seja, a

distância entre turismo e moda não é tão grande como se poderia supor.

Esses pontos de contato entre os espaços nos levaram a investigar, num primeiro

momento, se a moda poderia, de fato, ser um espaço em que circulavam discursos de

construção/legitimação de uma paisagem “típica” nacional. Essa primeira incursão mostrou que

as representações do Brasil na moda pareciam envolver, em diversos casos, certas imagens que

remetem a uma “tropicalidade” que, por sua vez, caracterizaria o espaço nacional brasileiro e,

para alguns, a própria moda nacional.

Este é, aliás, outro aspecto a ser abordado neste capítulo: os debates em torno de uma

identidade da moda nacional floresceram nos últimos anos e, consequentemente, não é difícil

encontrar editoriais, programas de televisão, matérias em suportes não especializados e mesmo

documentários produzidos com o intuito específico de tratar desse tema. Embora não seja essa

identidade nosso objeto, os debates em torno da possibilidade do estabelecimento de uma moda

brasileira característica acabam por tocar questões relativas à construção/ legitimação de um

espaço nacional brasileiro. Trata-se, também aqui, de descrever e analisar o funcionamento dos

discursos acerca desse espaço “genuíno” a partir do modo de circulação de uma certa imagem

cristalizada desse mesmo espaço.

Para tanto, o corpus referente a este campo inclui matérias jornalísticas da imprensa

especializada e também não especializada90, além de editoriais de moda91, blogs (posts e

89
Nota da Assessoria de Comunicação do Ministério do Turismo, disponível em:
<http://www.turismo.gov.br/turismo/noticias/todas_noticias/20080908.html>. Acesso em: 18 dez. 2009.
90
As matérias foram coletadas em veículos variados, tanto da mídia impressa quanto online. Em razão dessa
variedade, optamos por apresentar as referências das matérias analisadas ao longo do trabalho.
91
Os editoriais foram extraídos essencialmente das revistas especializadas (Elle, Vogue), embora houvesse alguns
editoriais em blogs, sempre referendados no corpo do trabalho.
121
comentários)92, campanhas publicitárias de artigos de moda cujo tema é o Brasil93, programas de

televisão que tratam da questão94, um documentário produzido pela TV Cultura a respeito da

moda brasileira95, o número 18 da revista produzida pelo Itamaraty Textos do Brasil (dedicado à

moda nacional), desfiles das semanas de moda brasileiras das edições de 2005 a 2012 e, por fim,

alguns itens de coleções de designers e estilistas internacionais que tomam o Brasil por mote 96.

2. “Mas aqui é aqui mesmo?”: moda, identidade e espaço nacional

A indústria da moda no Brasil não tem a mesma tradição que a de países como a

França ou os Estados Unidos. As semanas de moda por aqui começam somente no final da

década de 1990, algo que há muito já se faz lá fora. E, embora o Brasil tenha estilistas de certo

renome já há algumas décadas, ainda hoje se discute uma “identidade” para suas criações na

busca por uma “unidade” para a moda nacional.

Nesse sentido, o conhecido estilista brasileiro Amir Slama destaca que

“internacionalmente ainda se tem uma visão míope da moda brasileira. Em termos de identidade,

nossas marcas mais internacionalizadas não passam uma imagem homogênea, tal como os belgas

92
Aqui também, dada a imensa variedade, optamos por referenciar ao longo do trabalho.
93
Enquadram-se aqui, por exemplo, uma campanha da loja americana Macy's que, como se verá nas análises,
produziu uma série de três catálogos com peças de estilistas e marcas diversas a homenagear o Brasil. Mas há
também algumas outras propagandas que circularam de maneira, digamos, mais isolada (é o caso de uma coleção das
Havaianas com temática da fauna e flora nacionais).
94
Aqui é preciso falar do canal GNT que, durante as semanas de moda brasileiras, tem uma programação especial
que inclui: “Pílulas” dos desfiles ao longo da programação diária, um programa ao final do dia com convidados que
comentam “O melhor do dia” do evento, programas especiais do “GNT Fashion” que cobre os eventos de moda no
mundo todo e, nesse período, as semanas nacionais. Mas há ainda outros canais que comentam os desfiles, alguns na
internet (UOL e Terra, por exemplo, têm esse tipo de cobertura), no Youtube é possível encontrar vídeos do programa
“M de moda”, que também se especializa na cobertura dos eventos e estilistas nacionais.
95
História da moda no Brasil. Direção: João Braga, Luís André do Prado, Tatiana Lohmann. 2012. Documentário.
96
A esse respeito, cabe uma rápida observação: não nos pareceu interessante distinguir uma visão “nacional” de uma
“internacional”, i.e., assumir as representações de estilistas nacionais, de um lado, e de estilistas estrangeiros, de
outro. Isso porque, como será possível notar, não há diferenças significativas nas representações de uns e de outros.
122
ou os japoneses”97. Por outro lado, Tufi Duek, também estilista brasileiro, pondera que “moda não

tem pátria [...]. O que existe é moda de influência do Brasil, moda criada por estilistas brasileiros,

moda inspirada no nosso país, seja através da nossa cultura, dos nossos materiais ou de qualquer

outra coisa que você possa se inspirar”98. Mas nesse caso é possível enxergar que, ainda que não

se “exija” dos estilistas brasileiros que façam uma “moda brasileira”, Duek admite uma “moda de

influência do Brasil”, “inspirada” no Brasil; este é um aspecto que pode interessar aqui.

Robic (2007), estudioso de moda, na mesma direção de Duek, afirma que a definição

de uma “moda brasileira” não faz muito sentido em um mundo globalizado e, analisando o

percurso da moda no mercado brasileiro, acaba abordando essa dimensão identitária. Após citar

os números da moda no mercado econômico brasileiro, i.e., sua participação no mercado

nacional, o autor conclui que, embora os números possam levar “muitas pessoas e empresas a

acreditar que existe uma moda brasileira assombrando o mundo, que mal pode esperar pelas

próximas tendências ditadas pelos estilistas brasileiros” (ROBIC, 2007), o impacto desses

números sobre a moda nacional não tem maiores repercussões. Robic chega ainda a questionar a

“validade” das representações do Brasil – feitas por brasileiros mesmos — no mercado externo,

passando da economia (em tópico a que ele chama “onde estamos?”) aos estereótipos do nacional

(tópico por sua vez denominado “mas aqui é aqui mesmo?”). Esse questionamento chama a

atenção para a representação do lugar, o “aqui”, que o Brasil é, ou, em outras palavras, para os

estereótipos mobilizados nos discursos acerca do Brasil, de seu espaço nacional – questionados

do ponto de vista de sua “validade” como imagem do país pelo próprio autor.

97
Internacionalização da moda brasileira: o exemplo da moda praia. In: BRASIL. Textos do Brasil. Moda. Brasília:
2011, n. 18. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/temas/difusao-cultural/ textos-do-brasil/18-moda/>.
Acesso em: 15 jan. 2012.
98
História da moda no Brasil. Direção: João Braga, Luís André do Prado, Tatiana Lohmann. 2012. Documentário.
123
Dois posicionamentos distintos emergem daí, e que veremos ao longo deste capítulo:

ou se nega a existência de uma moda brasileira por completo ou, alternativamente, não se aceita

que uma moda nacional seja representada por esses elementos, mas por outros.

A respeito desse debate, Érika Palomino, jornalista de moda, aponta que a discussão

em torno da constituição de uma “moda nacional” surgiu no início dos anos 2000, quando os

jornalistas estrangeiros começam a chegar ao país para acompanhar nossas semanas de moda. É

possível, contudo, identificar, muito antes disso, manifestações desse debate. Estilista importante

já na década de 1940, Alceu Penna — que também foi ilustrador da antiga revista Cruzeiro (a

partir dos anos 1950) — já punha em causa as escolhas nacionais vinculadas a elementos

estrangeiros, como já havia acontecido na literatura brasileira com o movimento modernista, por

exemplo99. Nas palavras do estilista:

(1) Na estação em curso, a moda está se inspirando em trajes de Espanha, nas listras
indianas e nas de Marrocos. Em grande evidência, o bordado Inglês. Ora, por que o
bordado Inglês? E por que não o do Ceará? Por que Espanha, Índia, Marrocos e não o
Brasil? (PENNA apud OST, 2006).

É verdade que Penna escreve em um momento em que a moda brasileira ainda

“engatinhava” e que lutava ainda para se constituir independentemente dos grandes estilistas e

das marcas estrangeiras, pois como lembra Chataignier (2011), a década de 1950 foi marcada no

Brasil pela busca de costureiros que replicassem moldes dos grandes nomes do design francês:

O Brasil, em especial o Rio de Janeiro, foi palco de expressivas vendas de moldes


assinados pelos chamados “grandes costureiros”, o que acontecia nas lojas de tecidos de
luxo. É bom lembrar que as linhas de tendências de moda eram totalmente ditadas pela
alta-costura, que assim colocava em pauta o refinamento aristocrático, grande referência
para empolgar multidões loucas por moda, o que existe até hoje. Em pequenos envelopes
marfins, encobriam-se os moldes em papel de seda com seus riscados tradicionais em
azul, esmiuçando todos os detalhes da modelagem e da costura. Na capa dos envelopes,
os belos croquis franceses assinados por Christian Dior, Jacques Fath, Jeanne Lanvin ou
outro monstro sagrado da moda. E a grade dos moldes podia ser escolhida livremente,
em geral entre os manequins 42 e 48. Cópia autenticada e sem passar por cartórios.
(CHATAIGNIER, 2011).

99
Cf. MUSSALIM, 2003.
124
A desvinculação do elemento estrangeiro foi, assim, um momento importante para a

constituição de uma indústria de moda nacional – mais que de uma moda nacional propriamente

dita.

O fato é que esse debate acaba, como adiantamos mais acima, por tocar a questão da

representação do Brasil também no que tange a sua paisagem. Isso porque quando se discute a

questão de uma identidade nacional, há um certo rol de elementos comumente elencados e a

partir dos quais se definiria uma nação100, como, por exemplo: uma língua comum, uma religião,

os atletas, o território, a economia etc. Além desses, alguns autores, dentre os quais Löfgren

(2000), destacam ainda uma paisagem nacional típica. É, então, em razão deste último elemento

apontado que tais debates em torno da identidade nacional permeiam o campo da moda. Como

destaca Leitão (2007, p. 143), “o uso de elementos que compõem o cenário natural tem sido

sublinhado pela imprensa de moda brasileira e francesa como um dos aspectos que concedem

singularidades a uma moda brasileira” (grifamos).

Assim, quer se negue ou se aceite a possibilidade mesma de uma moda

“genuinamente” nacional, o aspecto que merece destaque, para os fins desta pesquisa, é o fato de

a moda ser um campo em que as representações do nacional encontram-se bastante vinculadas

com a representação de um espaço brasileiro “por excelência” ou “exemplar”. Cumpre mostrar,

portanto, como uma (debatida) identidade do Brasil na moda está associada, essencialmente, às

representações de uma paisagem nacional típica — um dos elementos implicados na definição da

nação.

100
Por se tratar de um conceito eminentemente político, a nação define-se de maneira fluida, na medida em que,
mudando os estudiosos, variam também ao menos em parte os elementos que a definem. Nesse sentido, podem-
se citar alguns autores frequentemente reportados quando estão em pauta esses elementos que concorrem para a
definição do conceito de nação: Hobsbawm (2004), Anderson (1994), Renan (1947), Hall (2005), Löfgren (2000)
dentre outros.
125
Matéria publicada em Veja101, que tem como tema a moda nacional, é exemplar dessa

imbricação com os debates de uma identidade nacional: “Existe uma moda tipicamente

brasileira?”, pergunta a jornalista Bel Moherdaui na primeira linha da reportagem. A “resposta” à

pergunta — embora seja tachada pela jornalista de “inútil” e “irrespondível” — sugere que todos

os criadores querem distância do que chama de “moda folclórica do ‘país dos papagaios’”. No

entanto, ao explicitar os elementos dos quais os estilistas nacionais desejam se afastar, a jornalista

não inclui aqueles “da natureza”. Ao contrário, segundo ela, o “típico” do Brasil — e do que se

deve tomar distância — envolveria “chitas, balangandãs, fitinhas, rendas rústicas e outras

obviedades” (p. 128). Esse discurso é bastante forte no meio da moda. Em documentário

intitulado História da moda no Brasil, exibido em 2011 na TV Cultura, grandes nomes da moda

brasileira, questionados sobre a possibilidade de uma moda “genuinamente” nacional,

responderam:

(2) Não preciso incluir ícones e temas folclóricos para dizer que ela [a moda que eu
faço] é brasileira. Mesmo porque lá fora ninguém sabe quem é o Saci Pererê. (Alexandre
Herchcovitch)

(3) A moda brasileira vai existir porque ela é feita por brasileiros, não porque ela usa
elementos folclóricos e culturais. Não há necessidade disso. (Walter Rodrigues)

(4) Não é verdade que quem faça uma roupa cheia de fuxico, de rendinha, de bordado
está fazendo uma moda lindamente brasileira e que isso é a nossa cara. (Paulo Borges)

O que chama a atenção nesses recortes — e em outros que vão nesse mesmo sentido

— é que, ao recusar o rótulo de “moda nacional”, os estilistas o fazem a partir daquele rol de

elementos mencionados por Moherdaui e que seriam frequentemente atrelados à ideia de

“brasilidade”: representações folclóricas, rendas, bordados, fuxicos. Essa recusa suscita, por sua

vez, um debate relevante que irá tocar a questão da estereotipia a partir de uma perspectiva

discursiva e sobre a qual se falará a seguir.

101
MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 128-131.
126
2.1 Simulacro e moda: implicações para a noção de estereótipo

Possenti (2003, p. 146) distingue os simulacros dos pré-construídos102 por não

pertencerem, aqueles, “a discurso nenhum”, i.e., enquanto o pré-construído encontra-se

“disponível” aos sujeitos de determinada formação discursiva, o simulacro só existe a partir da

relação polêmica. Esmiucemos.

Como visto no capítulo precedente, o pré-construído relaciona-se ao “encaixe

sintático”, uma vez que “corresponde a uma sequência encaixada em uma outra de modo invisível,

com um efeito de evidência prévia” (PAVEAU, 2007, p. 316). Aquilo que foi construído antes e

alhures aparece, então, no fio do discurso como sempre já-lá, evidente. Problematizando o conceito

a partir do contraste com a noção de interdiscurso formulada por Pêcheux ([1975]1997), Possenti

(2003) considera que o pré-construído não pode ser, em certa medida, da ordem do interdiscurso103,

posto que o efeito de evidência que a noção impõe só pode funcionar no nível das formações

discursivas — como as concebe Pêcheux. Para o autor, a dependência com a formação discursiva é

ainda mais clara quando os pré-construídos são articulados sob a forma de discursos transversos,

dado que tanto a equivalência quanto a implicação só se dão – só funcionam – no


interior de FDs definidas (científicas ou ideológicas) – isto é, jamais em uma FD
antagonista. Em outras palavras, o “todo complexo” põe à disposição um conjunto X de
pré-construídos, mas, para cada sujeito, ou para cada “comunidade” de sujeitos (ou,
ainda, para cada FD), só são selecionáveis os pré-construídos aceitáveis para essa FD.
Dizendo de outro modo, só estão disponíveis, para cada FD, os pré-construídos cujo
sentido é evidente para essa FD. (POSSENTI, 2003, p. 141; grifamos)

Consequência importante dessa leitura empreendida por Possenti é o fato de que

aquilo que “‘pertence’ a uma formação discursiva ou é retomado, afirmado, ou, alternativamente,

denegado. Mas o que pertence a outra formação discursiva, mesmo fazendo parte do interdiscurso

(o que é óbvio, dada a definição), só pode ser recusado, ironizado, parodiado, tornado simulacro”
102
Vide capítulo anterior.
103 “
A não ser naquilo que é por demais óbvio, ou seja, sem a necessária relevância”, como bem observa o autor.
127
(POSSENTI, 2003, p. 141). O simulacro é fruto, portanto, de uma polêmica entre formações

discursivas antagônicas. Isso fica bastante claro se se toma a noção a partir do quadro teórico-

metodológico proposto por Maingueneau ([1984]2005) de uma semântica global.

Para o que interessa neste ponto — e em linhas bastante gerais —, a partir da

proposta do autor, no interior do interdiscurso, haveria “zonas” em que as formações discursivas

(no sentido de posicionamento discursivo de uma comunidade discursiva no campo) estariam

disputando espaço entre si para preencher uma mesma função social; a essas zonas ele chama

campos discursivos. É no interior dos campos que os discursos se constituem. Daí a tese da

precedência do interdiscurso sobre o discurso, em que a relação de um discurso com seu Outro é

constitutiva da rede semântica do discurso em questão. Ou, nas palavras do autor,

reconhecer este tipo de primado do interdiscurso é incitar a construir um sistema no qual


a definição da rede semântica que circunscreve a especificidade de um discurso
coincide com a definição das relações desse discurso com seu Outro.
(MAINGUENEAU, [1984]2005, p. 38, grifos do autor).

A própria figura do Outro ganha, nesse quadro, maior especificidade, posto que ele se

encontra no interior do discurso, deixando de ser um mero “envelope”, para utilizar a feliz

expressão de Maingueneau ([1984]2005, p. 39):

No espaço discursivo, o Outro não é nem um fragmento localizável, uma citação, nem
uma entidade exterior; não é necessário que seja localizável por alguma ruptura visível
na compacidade do discurso. (…) É o que faz sistematicamente falta a um discurso e lhe
permite fechar-se em um todo. É aquela parte do sentido que foi necessário que o
discurso sacrificasse para constituir sua identidade. (MAINGUENEAU, [1984]2005, p.
39).

Decorre daí o caráter dialógico de cada enunciado, de sorte que se torna impossível

dissociar a interação dos discursos do funcionamento intradiscursivo. Em outras palavras, a

unidade de uma formação discursiva apoia-se num conflito regrado, pois, “ao delimitar a zona do

dizível legítimo, [uma FD] atribuiria por isso mesmo ao Outro a zona do interdito, isto é, do

dizível errado” (MAINGUENEAU, [1984]2005, p. 39). Esse caráter constitutivo da relação que

128
um discurso mantém com seu interdiscurso desemboca no conceito de interincompreensão

cunhado pelo autor: um desentendimento recíproco, constitutivo da relação de um discurso com

seu Outro. A polêmica deve, segundo a proposta de Maingueneau, ser entendida como

interincompreensão, um processo de tradução dos enunciados do Outro em categorias do registro

negativo do discurso em questão. Dessa forma, pode-se dizer que o Outro somente integra o

fechamento de um discurso enquanto simulacro, já que seus enunciados passam por um

“tradutor” e são lidos a partir do registro negativo daquele discurso. Maingueneau ([1984]2005,

p. 113) descreve a polêmica como uma “homeopatia pervertida: ela introduz o Outro em seu

recinto para melhor conjurar sua ameaça, mas esse Outro só entra anulado enquanto tal,

simulacro”. É, pois, nesse sentido que Possenti (2003) afirma que o simulacro não pertence, a

rigor, a discurso algum: ele é, na verdade, fruto da tradução que um dado discurso efetua de seu

Outro. O simulacro não se encontra, então, no interdiscurso, mas seu efeito “é idêntico ao do pré-

construído” (POSSENTI, 2003, p. 146).

A partir daí, cabe perguntar se, nos excertos de (2) a (4), estamos diante de pré-

construídos propriamente ditos ou se, por outro lado, são simulacros que estão linearizados no

intradiscurso.

O primeiro cenário — i.e., no caso de assumi-los como pré-construídos — implica

encontrar manifestações de um discurso segundo o qual a moda nacional seria, de fato,

representada pelos elementos a que se referem os estilistas citados — folclore, fuxicos, rendas

rústicas etc. Ou seja, é preciso que esse discurso tenha um “corpo” em um outro espaço que não

aquele a partir do qual os estilistas enunciam. Caso contrário — ou seja, em não se encontrando

materializações desse discurso — estaríamos diante de simulacros da moda nacional “por

excelência”.

129
O enunciado de Penna apresentado em (1), e retomado abaixo, pode ser tomado como

uma materialização desse discurso, pensamos:

(1) Na estação em curso, a moda está se inspirando em trajes de Espanha, nas listras
indianas e nas de Marrocos. Em grande evidência, o bordado Inglês. Ora, por que o
bordado Inglês? E por que não o do Ceará? Por que Espanha, Índia, Marrocos e não o
Brasil? (PENNA apud OST, 2006; grifamos)

É possível encontrar ainda outras manifestações desse discurso, como nos trechos das

músicas a seguir, de Dorival Caymmi (O que é que a baiana tem?) e de Ary Barroso (Aquarela

do Brasil), respectivamente:

(5) O que é que a baiana tem?


O que é que a baiana tem?
Tem torso de seda tem (tem)
Tem brinco de ouro tem (tem)
Corrente de ouro tem (tem)
Tem pano da Costa tem (tem)
Tem bata rendada tem (tem)
Pulseira de ouro tem (tem)
E tem saia engomada tem (tem)
Tem sandália enfeitada tem (tem)
E tem graça como ninguém...!
[…]
O que é que a baiana tem?
Um rosário de ouro, uma bolota assim
Ai, quem não tem balangandãs
não vai no Bonfim
Oi, quem não tem balangandãs
Não vai no Bonfim
Oi, não vai no Bonfim. (grifamos)

(6) [...] Quero ver essa dona caminhando


Pelos salões arrastando
O seu vestido rendado
Brasil! Brasil!
Pra mim, pra mim Brasil! (grifamos)

Algumas ressalvas, porém, terão de ser feitas aqui. Em primeiro lugar, é bem verdade

que todos os exemplos da manifestação de tal discurso são bastante antigos — as músicas são do

final da década de 1930 e o texto de Penna é da década de 1950 e quase não se encontram

manifestações atuais. Além disso, um outro ponto que parece ser mais relevante aqui é que,

embora se possa verificar a existência de um “corpo” para os discursos que consideram rendas,

130
bordados etc. representativos de uma moda “genuinamente” brasileira, não cremos ser possível

dizer que sejam casos prototípicos de pré-construídos, mas de simulacros. Tome-se a declaração a

seguir que, aparentemente, atualiza aquele discurso presente em (1), (5) e (6):

(7) a gente tem um uso de cores muito interessante na moda brasileira, trabalha muito
bem com a manufatura, que é sinônimo de novo luxo no mundo, e a gente tem essa
vocação pra ser sensual naturalmente. (Jackson Araújo, analista de tendências;
grifamos)104

Veja que a “manufatura” — que também pode ser encontrada com mais frequência

como handmade — é apresentada aqui como algo positivo, valorizado. Não é, contudo, esse

handmade que é recusado pelos estilistas nacionais, mas fitinhas, balangandãs, fuxicos. Ou seja,

o que um posicionamento considera efetivamente nacional (o chamado handmade) é — por meio

do processo de interincompreensão regrada — traduzido pelo outro posicionamento não como o

que ele de fato é, mas como algo “menor”: fitinhas e rendinhas (uso do diminutivo), rendas

rústicas (qualificador, que indica uma oposição, no caso, à “alta costura”), uso de chita

(considerado um tecido “menor”) etc. Dito de outro modo, a retomada se opera por meio de um

processo de tradução; trata-se, portanto, de simulacros.

Também os simulacros estão relacionados, como entendemos, com a noção de

estereótipo105, mas de outro modo. Amossy e Pierrot (2005) destacam o caráter “bivalente” que a

noção assume frequentemente: ora visto como importante ou fundamental para as relações

humanas ora visto sob uma ótica pejorativa. O estereótipo formado via pré-construído parece

relacionar-se à ideia de “cristalização”, algo até certo ponto “necessário”, algo que quase passa

“despercebido”, como se procurou mostrar nas análises do turismo; por outro lado, o estereótipo

formado por meio de simulacro parece ser responsável pelas conceituações negativas atribuídas à

noção.

104
Programa M de moda, disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=_r0F9UViejQ>.
105
Da mesma forma que os pré-construídos podem estar, como mostrado no capítulo anterior.
131
A esse respeito, vejamos ainda um outro exemplo, exterior à temática aqui trabalhada

e extraído de Possenti (2004b). Analisando um conjunto de piadas em que a identidade de grupos

é colocada em cena (gaúchos e loiras), Possenti parte da assunção de que identidades e

estereótipos são sociais, imaginários e construídos – ainda que tenham algum amparo no real.

Ele considera ainda que os estereótipos são reduções e anota: frequentemente negativas – fruto

eventualmente de simulacros. Os casos analisados por Possenti mostram, de fato, que tanto a

identidade de gaúchos quanto de loiras nas piadas são fruto de um simulacro, i.e. “uma espécie de

identidade pelo avesso – digamos, uma identidade que um grupo em princípio não assume, mas

que lhe é atribuída de um outro lugar, eventualmente, pelo seu Outro” (POSSENTI, 2004b, p.

156). A noção de estereótipo com a qual se opera na análise desses exemplos assume

frequentemente uma conotação negativa (como o próprio autor reconhece), o que, a nosso ver, é

mais uma evidência de que os estereótipos construídos a partir de simulacros acabam por

consolidar a concepção segundo a qual seriam “reduções negativas”.

Os exemplos apresentados a partir das discussões acerca de uma (possível?)

identidade para a moda brasileira mostram que os simulacros de uma “moda brasileira”, ou de

peças “tipicamente” brasileiras, acabam por colocar em cena um certo estereótipo do nacional,

mas que não é “aceito” pelos estilistas nacionais. Talvez esses elementos sejam recusados em

virtude de serem considerados “menores” ou “simplórios” para a alta-costura, o que acaba, de

certa forma, por refletir num estereótipo do Brasil como lugar ainda atrasado, que não partilha

das tendências de vanguarda da moda mundial. O que parece interessante na polêmica identitária

em tela é que se, por um lado, a ideia de um “Brasil-paraíso” não é propriamente recusada pelos

estilistas em geral – como exploraremos a seguir –, por outro lado, a referência a um “Brasil-

exótico” (por meio dos elementos “artesanais”) – simulacro do “Brasil-paraíso”? – é, via de

regra, posta de lado.


132
2.2 Brasil-paisagem: reflexos na moda

Se fitinhas, balangandãs, fuxicos, rendas rústicas e chitas são elementos por demais

folclóricos para representarem a “alta costura” nacional – como também aponta Moherdaui –, o

mesmo não se pode dizer dos elementos naturais – representados pela fauna e flora,

especialmente – do Brasil. A matéria de Veja, por exemplo, não economiza nas explicações

relativas ao clima e à vegetação nacionais para justificar as “linhas mestras” de trabalho dos

estilistas brasileiros. A criatividade tupiniquim passa, segundo Moherdaui, por uma

(8) intimidade natural com a luz, a cor e a exuberância que fazem parte do
patrimônio visual nacional.106 (grifamos).

A imagem de uma paisagem típica nacional (“patrimônio visual”) é apontada como

responsável por características da moda brasileira. Esses elementos naturais serão mencionados

diversas vezes pelos estilistas nacionais como aquilo que influencia o trabalho deles: do

“colorido” das paisagens para o colorido nas roupas; da “exuberância” para o “exagero” (over)

nas peças e nas estampas. As declarações de estilistas entrevistados por Veja dão a dimensão

desse aspecto:

(9) Muitas pessoas nem sabem que sou brasileira. Mas sei que se fosse sueca minhas
roupas nunca teriam esse colorido, esse bordado, esse tempero.107 (Isabela Capeto;
grifamos).

(10) Uma pessoa que cresceu na Amazônia, com aquelas árvores gigantes, não tem como
não ser over.108 (André Lima; grifamos)

A “exuberância” da natureza – um pré-construído que, como mostram Holanda

([1959]2010) e Chauí (2006), remonta à época do descobrimento do Brasil 109 – não é o único

106
MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 128.
107
In: MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 130.
108
MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 130.
109
Vide capítulo 2.
133
aspecto relacionado ao espaço nacional “genuíno” que justifica outras escolhas aparentemente

aleatórias. Além deste, também se pode detectar a presença de um outro tema apontado por

Holanda ([1959]2010) em seus estudos e profundamente imbricado com a “exuberância” das

paisagens: o aspecto climático.

Como dito antes, Holanda ([1959]2010) observa que a temperança dos ares do novo

continente era fator frequentemente utilizado como evidência de que no Brasil encontrava-se o

paraíso terreal. A diferença é que o clima retratado na moda não é ameno; ao contrário, a

representação do Brasil nesse campo é mais próxima da ideia de “Rio 40 graus” que da

temperança. Adriana Degreas, estilista brasileira de moda praia, também toca essa questão, como

mostra o recorte a seguir:

(11) Consigo enxergar, com mais clareza, uma identidade brasileira muito forte na moda
praia. Acredito que faça parte do universo brasileiro, pelo comportamento, pela situação
climática que nos é favorável, pelo corpo da mulher brasileira, pela riqueza tropical.110
(grifamos).

O que parece interessante é que o clima aqui é atrelado à ideia de praia, numa

passagem quase “evidente” – que é, aliás, muito revelador do funcionamento dos discursos. No

mesmo sentido, o já citado estilista Walter Rodrigues revela:

(12) Eu acredito muito na questão do entorno, como eu sempre falo. O calor que atinge
a gente por oito meses nesse país, isso nos faz diferentes dos europeus. Só isso já é
um ponto, independente se a gente vai por periquito, papagaio... essa diferença já está
embutida no nosso DNA.111 (grifamos).

A declaração acima permite notar, mais uma vez, que são esses motivos naturais os

responsáveis pelo tipo de moda que é feita no Brasil: a moda europeia é diferente da nossa porque

não é o clima dos trópicos que os estilistas de lá vivenciam. Glória Kalil, consultora de moda,

também retoma a questão climática:

110
Qual é a identidade da moda brasileira, 9 jun. 2010. Disponível em: <http://vilamulher.terra.com.br/qual-e-a-
identidade-da-moda-brasileira-14-1-35-305.html>. Acesso em: 15 jul. 2011.
111
História da moda no Brasil. Direção: João Braga, Luís André do Prado, Tatiana Lohmann. 2012. Documentário.
134
(13) Quando a gente fala em Brasil, todo mundo lembra de sol, lembra de uma coisa
mais leve, mais alegre [...] sobretudo menos formal: uma grande informalidade. Eu acho
que isso tudo se transmite na nossa moda. (grifamos).

Também o renomado editor de moda da revista Vanity Fair, Michael Roberts, credita

a identidade da moda brasileira ao fator climático. Segundo ele, as edições mais recentes das

semanas de moda brasileiras têm apresentado uma moda mais brasileira porque deixaram de fazer

“cópias do que acontece lá fora” e passaram a criar

(14) muitas coisas que têm a ver com o clima do Brasil. (Michael Roberts; grifamos).

Além de ser o “entorno” responsável pela criação dos estilistas, a natureza é também

responsável por manifestações mais “diretas” nas coleções, por exemplo, nas estampas, como

afirma Leitão (2007):

(15) A natureza exuberante, quase arrebatadora, que germina e impregna-se por toda
parte, é uma sedutora representação do Brasil em nossa moda de vestir, assim como
é metáfora do país fora de suas fronteiras. Fauna e flora inspiram diretamente
motivos figurativos em nossas estampas e padronagens. Ao mesmo tempo, a natureza
percebida como molde para um caráter nacional brasileiro (ou como sua segunda
natureza), serve de linha mestra para coser nossa moda. (LEITÃO, 2007, p. 130;
grifamos).

A declaração de Tufi Duek abaixo marca uma passagem igualmente interessante: a

questão tropical, que já havia aparecido com Adriana Degreas (11):

(16) Eu ponho samba, Carnaval, Maria Bonita e Lampião, o cangaço, a cultura do


Pantanal, das nossas praias. Eu tenho orgulho de dizer que eu já fiz todas essas buscas
inspiracionais no nosso Brasil. Hoje todo mundo fala da nossa tropicalidade, do
nosso colorido, nossa sensualidade. Eu me sinto bastante orgulhoso em dizer [...] que
eu sou pioneiro nisso.112 (grifamos).

A “tropicalidade” é, como se verá no próximo tópico, uma espécie de “liga” entre os

diversos temas que são costumeiramente associados a uma moda brasileira: o clima (não mais

ameno, mas quente) que influencia uma paisagem exuberante se reflete, por sua vez, na

exuberância das peças das coleções de estilistas brasileiros. Essa exuberância é representada por

meio do colorido; pela leveza ou pela nudez do corpo, evidencia-se a sensualidade – que também

112
História da moda no Brasil. Direção: João Braga, Luís André do Prado, Tatiana Lohmann. 2012. Documentário.
135
decorre do clima, que, por seu turno, leva os brasileiros à praia: uma de nossas paisagens

“típicas”113.

Todos esses elementos encontram-se altamente imbricados, numa relação que leva –

como dito mais acima, de forma quase “evidente” – de um a outro e sustenta o funcionamento

dos discursos de construção/legitimação de um espaço nacional “genuíno” nesse campo.

Por ser bastante emblemático de todas as discussões que foram apresentadas até aqui

por meio de recortes, o texto a seguir será analisado integralmente, destacando-se, especialmente,

as relações estabelecidas entre os temas acima tratados. As caixas com setas indicam os tópicos

de cada parágrafo.

A identidade brasileira na moda114


Por Bruno Ost
Em 1960, Alceu Penna, ilustrador da revista Cruzeiro, refletindo sobre a identidade
A relação com o da moda nacional, disse: “Na estação em curso, a moda está se inspirando em trajes de
elemento Espanha, nas listras indianas e nas de Marrocos. Em grande evidência, o bordado
estrangeiro Inglês. Ora, por que o bordado Inglês? E por que não o do Ceará? Por que Espanha,
Índia, Marrocos e não o Brasil?”
Acredito que esta questão é excelente para pensar o que poderia ser uma identidade
Introdução da brasileira na moda. Quais características estilísticas ou materiais identificariam a
questão identitária moda brasileira como original? É possível limitar esses elementos para identificar-se
uma moda com a cara do Brasil?
A moda brasileira é recente. Apesar de grandes nomes surgirem desde a década de
Início da 30, a preocupação com uma identidade brasileira começou apenas na segunda metade
preocupação com do século XX. Somente com a organização da indústria têxtil e da criação de eventos
uma identidade para os desfiles é que a moda tornou-se parte da cultura brasileira e deu início à busca
para a moda pelos estilistas da diferenciação de suas criações das estrangeiras.
nacional Designers brasileiros parecem divergir sobre o que seria uma moda à brasileira.
Enquanto uns buscam diferenciar suas roupas com elementos da nossa cultura
Diferentes opiniões popular, outros buscam uma moda sem rótulos. De um lado Carlos Miele e suas
sobre o que é uma criações com fuxicos e búzios, de outro Alexandre Herchcovitch e suas criações sem
moda “genuína” rótulos regionais. Porém, Carlos Miele reclamou à revista Exame, de 16 de outubro de
brasileira 2002, que foi somente após os críticos verem cocares no desfile de Galliano e fuxicos
na coleção de Jean-Paul Gaultier, que a crítica aceitou suas criações.
Cocares, fuxicos, rendas, penas e plumas, texturas e cores brasileiras. A questão da
identidade não deve caracterizar uma busca por quais elementos devem fantasiar as
Os elementos em si
roupas do país. Deve-se (sic) trazer os elementos de nossa cultura popular à vanguarda
não caracterizam da moda. É o modo como usa-se a renda que faz da peça de roupa um item de moda.
a moda nacional Voltando para Alceu Penna, por que a renda inglesa e não a do Ceará? Essa questão é
“típica” fundamental para que os profissionais de moda prestem atenção que no Brasil existem

113
Vide item 3 deste capítulo.
114
OST, Bruno. A identidade brasileira na moda, 2006. Disponível em: <http://www.modamanifesto.com/index.php?
local=detalhes_moda&id=134>. Acesso em: 22 mar. 2011.
136
materiais, cores, texturas e técnicas similares às diversas culturas do mundo. As rendas
são apenas um exemplo, mas podemos citar o bordado, o couro, o algodão, o jeans, a
Como deve ser a moda praia e tantas outras criações e apropriações que receberam um toque brasileiro.
moda brasileira Deve-se preocupar em refletir não só a riqueza natural, mas também nossa riqueza
para que reflita as cultural. O Brasil é um país tropical cujas capitais, em sua maioria, estão na costa.
características do Também, os diferentes climas, as diferentes misturas étnicas com a Europa e a África
sugerem uma moda plural, sensual, vibrante, rica em texturas, cores, materiais e
país imagens. Elementos que ao longo dos séculos foram trazidos pelos estrangeiros para o
país e refletem, não somente nossa arte popular e nossa natureza exuberante, mas
Se o Brasil é um nossas cidades, nossas mazelas sociais, nossos luxos e exageros, nosso lifestyle.
O Brasil é um país de diversidade cultural e natural. A busca por uma identidade na
país plural, sua
moda deve abranger essa pluralidade. Dessa forma, o que identificaria as criações do
moda também deve Brasil seriam os elementos que representassem a cultura brasileira em todos os seus
ser aspectos, e não aqueles que transformassem as roupas em fantasias étnicas.
O Brasil está na moda, vê-se isso nas inúmeras exposições sobre o país nas mais
A imagem externa diferentes lojas do mundo, mas são exposições de características estereotipadas. É a
do Brasil é praia com mulheres de biquíni, o futebol e tantas outras imagens que não são o reflexo
estereotipada e de nossa cultura como um todo. Isso não caracteriza uma identidade na moda, mas
não dá conta da uma imagem de como vêem o país. Por isso a busca de uma identidade brasileira
diversidade do parece estar apenas começando, pois ela precisa se apresentar ao mundo com sua face
país plural, que vai do campo à cidade, da floresta à praia.

O título já indica que o tema central a ser abordado diz respeito à identidade na moda:

uma identidade pressuposta, i.e., inquestionável do ponto de vista de sua existência, como indica

o artigo definido (“A identidade brasileira na moda”); trata-se, portanto, de investigar o que

constrói essa identidade. As perguntas que introduzem essa questão apontam para dois elementos

que poderiam representá-la: características estilísticas, de um lado, e materiais, de outro (2º

parágrafo).

As características estilísticas que fariam com que a moda fosse feita “à brasileira”,

como aponta o autor, aparecem como sendo aquilo que diferenciaria as criações nacionais das de

estilistas estrangeiros; há, assim, estilistas que querem fazer uma moda “com a cara do Brasil” e

outros que, por oposição, desejam uma moda “sem rótulos”. No entanto, mesmo quando fala em

“características estilísticas”, o autor acaba por elencar uma série de “materiais” (fuxicos, búzios,

cocares) que, em sendo utilizados pelos estilistas, representariam o país.

137
Esses materiais, como foi possível detectar nos excertos apresentados anteriormente,

são um ponto de grande polêmica e sobre eles costuma incidir a negação, como mostram os

recortes 2 a 4, reapresentados a seguir:

(2) Não preciso incluir ícones e temas folclóricos para dizer que ela [a moda que eu
faço] é brasileira. Mesmo porque lá fora ninguém sabe quem é o Saci Pererê. (Alexandre
Herchcovitch; grifamos)

(3) A moda brasileira vai existir porque ela é feita por brasileiros, não porque ela usa
elementos folclóricos e culturais. Não há necessidade disso. (Walter Rodrigues;
grifamos)

(4) Não é verdade que quem faça uma roupa cheia de fuxico, de rendinha, de bordado
está fazendo uma moda lindamente brasileira e que isso é a nossa cara. (Paulo Borges;
grifamos)

A polêmica entre os dois posicionamentos está colocada nos seguintes termos: para os

que acreditam que se perguntar sobre uma identidade brasileira na moda é uma questão superada,

a busca por ela acaba produzindo “fantasias”, uma vez que, para esse posicionamento, isso

levaria à utilização de elementos “folclóricos”; para o outro posicionamento, uma moda “com a

cara do Brasil” não significa necessariamente usar determinados materiais – embora eles também

possam ser utilizados (a leitura deve ser feita, portanto, num enquadre concessivo). Essa questão

materializa-se no texto de Ost – representante do segundo posicionamento – de modo exemplar:

(17) A questão da identidade não deve caracterizar uma busca por quais elementos
devem fantasiar as roupas do país. Deve-se (sic) trazer os elementos de nossa cultura
popular à vanguarda da moda.

O excerto acima recusa a “busca” por elementos característicos, mas isso não

significa abandoná-los: é preciso apropriar-se deles para torná-los objetos de moda. Trata-se de

uma visão que se poderia chamar “antropofágica”, i.e., é o artista, no caso o estilista, que irá

transformar elementos originários da cultura popular em “obras de arte”. O que temos em (17) é,

então, uma denegação, pois, como define Indursky (1990), a denegação discursiva é um tipo de

negação em que aquilo que é negado só o é por razões conjunturais, ou seja, poderia mesmo ser

138
afirmado. Assim, o posicionamento representado no texto acima poderia até mesmo defender

uma busca por materiais considerados típicos brasileiros, mas não o faz – ou melhor, não o faz

sem concessões – para não ser tachado de folclorista na polêmica instaurada. Daí também a

utilização do verbo “fantasiar” em (17): a acusação de que, ao utilizar elementos “típicos”

nacionais, tornam-se as roupas “arremedos de fantasias”, como veremos mais adiante, é

contestada. Nesse contexto aparecem as concessões: fazer peças “tipicamente” brasileiras sem

que sejam “folclóricas”.

A “pluralidade” considerada um traço característico do Brasil é defendida – como

também se viu no turismo – e almejada para a construção de uma identidade nacional na moda. E

também aqui essa “ampliação” de uma imagem que vá além do “estereótipo” nacional deixa

rastros na sintaxe:

(18) Deve-se preocupar em refletir não só a riqueza natural, mas também nossa riqueza
cultural. O Brasil é um país tropical cujas capitais, em sua maioria, estão na costa.
Também, os diferentes climas, as diferentes misturas étnicas com a Europa e a África
sugerem uma moda plural, sensual, vibrante, rica em texturas, cores, materiais e
imagens. Elementos que ao longo dos séculos foram trazidos pelos estrangeiros para o
país e refletem, não somente nossa arte popular e nossa natureza exuberante, mas
nossas cidades, nossas mazelas sociais, nossos luxos e exageros, nosso lifestyle.

O uso das estruturas correlativas do tipo não só X mas também Y obedece também

aqui ao mesmo funcionamento mostrado no capítulo anterior: em X pousa o pré-construído e em

Y o deslocamento. Assim, a “riqueza natural” do Brasil que se reflete nas coleções é assumida

como elemento “dado” e até certo ponto “inquestionável”, mas é preciso refletir também a

“riqueza cultural”, que aqui guarda relação com os materiais, por exemplo (vide recortes 2 a 4

acima). Da mesma forma, esses elementos que representariam o Brasil em sua “pluralidade” são

relacionados, em X, à “arte popular” e à “natureza exuberante” para depois (na posição de Y)

serem chamados a representar também “nossas cidades, nossas mazelas sociais, nossos luxos e

exageros, nosso lifestyle”.

139
Aí reside o ponto que parece crucial para o que interessa nesta pesquisa: na discussão

em torno da questão identitária no universo da moda nacional, o que é questionado é o uso de

determinados materiais (fuxicos, rendas etc.) como sendo representativos da moda brasileira. Por

outro lado, o tema da “exuberância” natural e sua representação (por exemplo nas estampas) não

é posto em causa; ao contrário, é assumido como algo válido e que, de fato, representa o Brasil.

Em outras palavras, parece-nos que o “aqui” que o Brasil representa não é ponto de “disputa”. As

representações do Brasil na moda envolvem, então, em boa medida, certas cenas validadas

(MAINGUENEAU, 2006) que evocam uma “tropicalidade” considerada característica do espaço

nacional brasileiro. E sobre isso se falará no tópico seguinte.

3. O Brasil em cena

A Análise do Discurso, sabe-se, “teve como primeiro objetivo querer rearticular o que

o ‘corte saussuriano’ havia separado, fazer ressurgir o que a instituição de uma linguística formal

havia removido para fora do campo da ciência da linguagem: as condições de emprego da língua”

(COURTINE, 1999, p. 7-8). Pautava-se, para tanto, no pressuposto de que haveria uma relação

entre língua e história, de modo que, já no texto inaugural da disciplina, Pêcheux ([1969]1997, p.

78) formula a “proposição geral” segundo a qual

os fenômenos linguísticos de dimensão superior à frase podem efetivamente ser


concebidos como um funcionamento mas [...] este funcionamento não é
integralmente linguístico [...] e [...] não podemos defini-lo senão em referência ao
mecanismo de colocação dos protagonistas e do objeto de discurso, mecanismo que
chamamos “condições de produção” do discurso. (grifos no original)

Assim, dado um estado das condições de produção, haveria um conjunto de discursos

possíveis de serem engendrados. Decorre disso que “é impossível analisar um discurso como um

140
texto, isto é, como uma sequência linguística fechada sobre si mesma”, é preciso, ao contrário,

“referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de

produção” (PÊCHEUX, [1969]1997, p. 79).

Um possível efeito desse postulado fundador talvez tenha sido o fato de que a Análise

do Discurso tenha sempre preferido “formular as instâncias de enunciação em termos de

‘lugares’, visando a enfatizar a preeminência e a preexistência da topografia social sobre os

falantes que aí vêm se inscrever” (MAINGUENEAU, 1997, p. 32), o que fez com que, por muito

tempo, ela tomasse corpora constituídos

independentemente dos atos de enunciação que os haviam tornado possíveis. Ao


proceder assim, não tinha o intuito de negligenciar as “circunstâncias”, o “quadro” de
enunciação, mas por entender tais fatos mais como um conjunto de elementos
moduladores do que como uma dimensão constitutiva do discurso.
(MAINGUENEAU, 1997, p. 29; grifamos)

O texto, contudo, como afirma Maingueneau (2002, p. 85), “não é um conjunto de

signos inertes, mas o rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada”; e tal

“‘encenação’ não é uma máscara do ‘real’, mas uma de suas formas, estando este real investido

pelo discurso” (MAINGUENEAU, 1997, p. 34). No campo literário, Maingueneau (2001, p. 122)

exemplifica a vinculação entre a situação de enunciação e as condições institucionais dizendo que

“o romance ‘realista’ não é apenas ‘realista’ por seu conteúdo, mas também pela maneira como

institui a situação de enunciação narrativa que o torna ‘realista’”.

Maingueneau (2002; 2006; 2008b) propõe, então, que as instâncias da enunciação de

um texto sejam estudadas a partir de três cenas interdependentes, a saber: i) a cena englobante; ii)

a cena genérica; e iii) a cenografia. Assim, à pergunta “qual a cena de enunciação deste texto” é

possível dar três respostas distintas, dependendo do ponto de vista que se assuma: uma relativa ao

tipo de discurso; outra ao gênero; ou ainda outra voltada para a “cena” mobilizada no interior do

141
quadro cênico – constituído pelo tipo e o gênero juntos. Por esta razão, o autor propõe considerar

a cena da enunciação decomposta naquelas três cenas acima mencionadas, de modo a permitir

que se veja o ato de enunciar para além da expressão de um certo conteúdo: “é também tentar

construir e legitimar o quadro de sua enunciação” (MAINGUENEAU, 2002, p. 93).

Nesse contexto, a cena englobante corresponderia ao que o autor chama de “tipos de

discurso”: religioso, publicitário, político etc. Situar um fragmento de discurso numa cena

englobante significa reconhecer o modo pelo qual ele interpela o seu leitor (como fiel,

consumidor, eleitor etc.). É preciso, contudo, alertar, juntamente com Maingueneau (2008b, p.

116), que esta caracterização “nada tem de intemporal: ela define o estatuto dos parceiros e certo

quadro espaciotemporal”, ou seja, há que se lembrar que a cena englobante é regulada pelos

limites do interdiscurso.

Sem negar a relevância da cena englobante, Maingueneau (2006, p. 251) adverte que

“não se tem contato com um literário, político ou filosófico não especificado”, mas com um

determinado gênero do discurso que participa, num nível superior, de uma cena englobante

específica. Nesse sentido, pode-se dizer que os gêneros do discurso associam-se a determinadas

cenas genéricas, que prescrevem, por seu turno, um modo de inscrição no tempo e no espaço, um

suporte material, uma finalidade, papéis etc.

Estas duas cenas – englobante e genérica – definem, conjuntamente, o que o autor

chama de quadro cênico, “o espaço estável no interior do qual o enunciado ganha sentido”

(MAINGUENEAU, 2008b, p. 116). Este quadro pode ser, contudo, deslocado por uma terceira

cena (quando esta é “eficiente”): a cenografia. Isto porque nem sempre é com o quadro cênico

que o leitor lida diretamente, mas com uma cenografia, que não é imposta nem pelo tipo nem

pelo gênero, sendo instituída pelo próprio discurso. Segundo Maingueneau (2002), há alguns

142
tipos de discurso cujas cenas genéricas impõem rotinas relativamente fixas, como a

correspondência administrativa ou os relatórios periciais, por exemplo. Outros tipos, como o

publicitário, não permitem a antecipação das cenografias mobilizadas, sendo, assim, “suscetíveis

de inspirar cenografias que se afastam de um modelo preestabelecido” (MAINGUENEAU, 2002,

p. 88).

Há que se notar ainda que

a escolha da cenografia não é indiferente: o discurso, desenvolvendo-se a partir de sua


cenografia, pretende convencer instituindo a cena de enunciação que o legitima. O
discurso impõe sua cenografia de algum modo desde o início; mas, de outro lado, é por
intermédio de sua própria enunciação que ele poderá legitimar a cenografia que ele
impõe. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 117)

Daí decorre o que Maingueneau (2008b, p. 118) denomina de “processo de

enlaçamento paradoxal” que a cenografia implica: ao mesmo tempo origem e produto do

discurso. Ainda em relação à cenografia, é preciso dizer que é ela que valida os estatutos do

enunciador e do co-enunciador, o espaço (topografia) e o tempo (cronografia) a partir dos quais a

enunciação se desenvolve. Isso porque é preciso separar “as circunstâncias empíricas da produção

do enunciado” – que pouco interessam de um ponto de vista estritamente linguístico – do “foco

de coordenadas que serve de referência diretamente ou não à enunciação”, como adverte

Maingueneau (2001, p. 121). Trata-se, como explica o autor,

de três polos indissociáveis: em certo discurso político, por exemplo, a determinação da


identidade dos parceiros da enunciação (“os defensores da pátria”, “cidadãos honestos”,
“administradores competentes”, “excluídos” etc.) está em sintonia com a definição de
um conjunto de lugares (“a França eterna”, “o país dos direitos do homem”, “a
encruzilhada da Europa”, “a Europa cristã” etc.) e com momentos de enunciação (“um
momento de crise profunda”, “uma fase de mutação econômica” etc.) a partir dos quais o
discurso pretende ser proferido, de modo a fundar seu direito à palavra.
(MAINGUENEAU, 2008b, p. 117-118).

A cenografia pode “apresentar-se” de variadas maneiras: por meio de marcas textuais,

paratextuais (título, a menção a um gênero, um prefácio etc.) ou pode ainda apoiar-se em cenas

validadas, no sentido de serem “já instaladas na memória coletiva, seja a título de modelos que se
143
rejeitam ou de modelos que se valorizam” (MAINGUENEAU, 2002, p. 92). As cenas validadas

são, portanto, compartilhadas por uma determinada comunidade e funcionam não como discursos

propriamente ditos, mas como “um estereótipo autonomizado, descontextualizado, disponível

para reinvestimentos em outros textos” (MAINGUENEAU, 2002, p. 92). Um exemplo dado pelo

autor é a “Carta a todos os franceses” escrita por F. Mitterand e divulgada à época das eleições

presidenciais da França de 1988. A cenografia instaurada sobrepõe-se às coordenadas do quadro

cênico (um programa eleitoral) para apresentar o candidato como pai por meio de uma cena

validada: a refeição em família. Eis o trecho que instaura essa cena:

Ao começar esta carta, eu escrevi que falaria a vocês como em volta da mesa, em
família. Essa última palavra não surgiu ao acaso da minha caneta. Nasci e vivi minha
infância no seio de uma família numerosa. (MITTERAND apud MAINGUENEAU,
2002).

As cenas validadas são muitas e de naturezas diversas. Outro exemplo extraído de

análise do autor é a imagem da palavra vinda da “Origem”, da boca dos deuses115. São cenas

validadas também certos eventos de fala únicos, mas suficientemente “cristalizados” e instalados

no conjunto de saberes coletivos, como o icônico discurso de M. Luther King iniciado com “I

have a dream...”.

Acreditamos que a noção de cena validada pode ser produtiva para o estudo das

representações do espaço nacional, especialmente no campo da moda: há um certo estereótipo da

paisagem nacional “genuína” que é frequentemente atualizado em desfiles, catálogos, estampas

e também nas matérias, comentários de blogs, editoriais etc. A pergunta que fazemos aqui é: seria

uma (ou algumas) cena(s) validada(s) que, especialmente no campo da moda, atualizaria(m) o

mito do “Brasil-paraíso”? A noção parece ainda dar conta de um aspecto bastante peculiar da

115
“Sentado no tripé das Musas, o poeta, diz Platão, verte com fúria tudo o que lhe vem à boca, como a gárgula de
uma fonte, sem ruminá-lo ou enviscá-lo, e escapam-lhe coisas de cor diversa, de substância contrária e de um fluxo
interrompido. Ele próprio é todo poética, e a velha teologia, poesia, dizem os sábios, e a primeira filosofia.
É a linguagem original dos Deuses” (trecho de Ensaios, de Montaigne).
144
moda: as imagens (seja nas estampas, nos catálogos ou nos desfiles). Naturalmente, não se trata,

no caso de imagens, de um pré-construído, na medida em que tal noção é essencialmente

linguística, ligada ao encaixe sintático. Mas é preciso analisar em que medida a cena validada

pode mesmo dar conta dos casos presentes no corpus.

É bem verdade que existem ocorrências no corpus que são bastante prototípicas, i.e.,

a utilização de cenas validadas é evidente e não suscita muitas dúvidas. Robic (2007), por

exemplo, sem tratar especificamente de questões referentes ao espaço nacional representado na

moda, mas de outros elementos fortemente associados ao Brasil, tece crítica ao que chama de

“aprisionamento” do Brasil em um ou alguns “estereótipos” quando se debate uma moda

nacional. Para ele,

(19) a questão da moda brasileira é bastante antiga, mas faz cada vez menos sentido num
mundo globalizado. A condensação do estilo de vida de um determinado local dentro de
um conceito de moda pode ser muito bem-vinda, mas o aprisionamento desse mesmo
estilo dentro de um ou alguns estereótipos pode se tornar um imenso equívoco.
Infelizmente, esse equívoco pode ser visto frequentemente em pequenos e grandes
eventos internacionais destinados a promover a moda brasileira, regados a mulatas,
samba, caipirinhas, feijoadas e afins, num menu extremamente indigesto para o
desenvolvimento de nossa indústria de moda. (grifamos).

O que se pode destacar da narrativa de Robic é o fato de que os eventos de moda

destinados a promover uma certa “moda tipicamente brasileira” apelam para certas cenas

validadas a respeito do Brasil. Assim, esses eventos se tornam pequenos “carnavais” ou “rodas de

samba”, que remeteriam à “brasilidade” que se pretende, em última análise, vender.

Outro exemplo: a rede de lojas norte-americana Macy’s lançou em março de 2012

uma campanha com estilistas diversos a homenagear o Brasil em suas criações. A capa do

terceiro volume do catálogo da loja pauta-se também, como vemos abaixo, na cena carnavalesca:

145
A imagem acima retoma, portanto, o Carnaval carioca116 como uma cena validada. A

locação da foto é o calçadão de Ipanema, com a praia ao fundo num dia de sol – esta, aliás, outra

cena validada (e não só a respeito do Brasil): praia com sol.

Para além de casos prototípicos de cenografias que se apoiam sobre cenas validadas,

existe um conjunto de dados no corpus coletado que pensamos estar, em certa medida,

relacionado às cenas de enunciação propostas por Maingueneau. Dito de outro modo, essa noção

pode provar ser produtiva para analisar elementos não verbais que são abundantes na moda e que

acreditamos que não possam ser postos de lado.


116
Aqui falamos “carioca” porque é esse o Carnaval que mais representa o Brasil no exterior, mesmo havendo uma
festa semelhante, por exemplo, em São Paulo ou outras festas de rua na região Nordeste como um todo. Apenas a
título de exemplo da forte vinculação existente entre Rio de Janeiro – Brasil – Carnaval, citamos a troca de posts em
um blog de moda de uma arquiteta italiana. Um dos comentários a um post sobre a moda brasileira afirma: “brazil is
fabulous..you have to visit Rio...amazing city!” (sic). A resposta da blogueira é: “Rio is my dream! Probably during
Carnival, next year?!?!?”.
146
A referência ao espaço nacional “por excelência” via praias, por exemplo, pode ser

construída pelo grafismo da estampa117 abaixo:

Assumindo a imagem acima como um texto e analisando-a a partir da noção de cenas

de enunciação apresentada mais acima, é possível descrever a dêixis discursiva da cenografia

instaurada, que, dada a sua definição, estabelece o lugar (topografia) e o tempo (cronografia) da

enunciação bem como o estatuto do enunciador e do co-enunciador. Em primeiro lugar, a estampa

(guarda-sóis vistos do alto) instaura a topografia, a saber, a praia; mais que isso: uma praia cheia,

badalada, afinal são muitos guarda-sóis. As cores do cenário, por seu turno, remetem a um dia de

calor, numa referência ao clima, que é, como vimos, um aspecto fortemente ligado ao espaço

brasileiro, pois favorece a “exuberância natural” da paisagem. Já o modelo do traje de banho é

responsável pela cronografia: trata-se de um modelo “retrô”, mais antigo, com cintura alta, quase

um short e com babadinhos na barra; ou seja, a dêixis aqui remete à década de 1950, o que

117
Peça desfilada pela marca Salinas no Fashion Rio Verão/2012, em 31/05/2011.
147
representa no desfile uma certa nostalgia. Outras peças da mesma coleção também situam o

espaço nas areias cariocas, por meio do desenho do calçadão de Copacabana. Abaixo

apresentamos um look com as estampas repetidas em mais peças:

Embora seja um biquíni menor que o anterior, o modelo também é “retrô”, pois a

calcinha é considerada grande para os padrões atuais. Da mesma forma, a blusa (que tem a

mesma estampa da calcinha, mas em um padrão bem menor) combina duas tendências de

momentos distintos: os babados altamente valorizados nas décadas de 1970 e 1980 com o

comprimento mais curto e revelador compatível com momentos mais recentes. A utilização de

grafismos dos calçadões cariocas já havia aparecido antes. No Fashion Rio Verão/2006, já havia

passado pelas passarelas outra estampa inspirada nele. Trata-se de peça da marca Lenny, em que

também é possível observar uma cronografia de fins da década de 1940 e início da década de

1950 por meio do modelo da saia inspirado na estética do New Look de Dior118, com

118
A coleção responsável pelo lançamento do New Look é de 1947.
148
comprimento “mídi” (i.e., que, no mínimo, cubra os joelhos) e rodada. As figuras a seguir são, da

esquerda para a direita, da peça da Lenny e de uma peça Dior, da coleção de 1947:

A respeito da cronografia instaurada, é interessante observar que a remissão à década

de 1950 nas praias cariocas não é um “acaso”. Em 1946 o biquíni é “inventado” e a década de

1950 é, então, marcada por uma “invasão” deles nas praias pelo mundo, sendo que, no Brasil,

isso se dá mais nos anos finais daquela década. Além disso, trata-se de um momento em que,

especialmente na praia de Copacabana, reuniam-se vedetes usando a peça, o que contribuiu para

tornar o local ainda mais célebre nacional e mundialmente.

O uso dos calçadões cariocas, que atualizam toda uma memória de praia e, em

decorrência disso, de um espaço nacional “por excelência”, não se dá apenas nas estampas ou,

como se poderia argumentar, na moda praia. As fotos a seguir, extraídas do catálogo da Macy’s

(volumes 1 e 3, respectivamente), mostram a relevância que esse imaginário tem em relação à

construção/legitimação de uma paisagem nacional “típica”, especialmente a segunda imagem,

149
uma vez que não há qualquer outra referência “paisagística” acompanhando os produtos (bolsas,

no caso), mas apenas o desenho do calçadão de Copacabana estampado no violão:

A topografia construída pelas estampas das coleções acima e pela imagem do violão

que dá suporte às bolsas remete, assim, a elementos de um espaço que é frequentemente

assumido, metonimicamente, como representativo de uma paisagem “genuína” do Brasil: o Rio

150
de Janeiro. A página do já mencionado catálogo da Macy’s (volume 3) apresentada a seguir dá a

dimensão dessa proximidade:

É o Brasil que “chama” e a imagem é da praia de Ipanema, no Rio de Janeiro;

coqueiros à beira-mar, montanhas ao fundo e céu azul: parece-nos que essa pode ser mesmo

considerada, de certa forma, uma cena validada do Rio de Janeiro, na medida em que

Maingueneau (2013, p. 191) a define, como vimos, não necessariamente como “valorizada”, mas

instalada “no universo de saber e de valores do público”, além de ser constantemente

“reinvestida” em outros “textos”. Trata-se, segundo o próprio autor, de um evento

suficientemente cristalizado – ainda que seja único (lembremo-nos do exemplo dado do discurso

de M. Luther King iniciado por “I have a dream...”) – e esse parece ser o caso da paisagem

acima, como tentaremos mostrar através de outros exemplos.

Na estampa do barrado do biquíni a seguir, há praticamente o mesmo cenário

retratado na foto do catálogo acima, o que mostra o poder da “cristalização” de tal imagem:
151
No Fashion Rio Verão/2013, a Blue Man desfilou em sua moda praia o maiô abaixo

em que, mais uma vez, temos a imagem do calçadão carioca, numa padronagem bastante

figurativa:

152
O Rio de Janeiro é, então, uma referência importante do Brasil no exterior. Imagens

da cidade são frequentemente utilizadas para campanhas publicitárias brasileiras – e não

necessariamente cariocas – aqui e lá fora (o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, os calçadões, os

arcos da Lapa etc.). Lembremos ainda que a letra da música de Jorge Ben Jor “País tropical”, por

exemplo, começa falando em “país”, mas traz outras referências a elementos típicos cariocas: o

Carnaval, o Flamengo (time carioca). Também a marchinha “Cidade maravilhosa” exalta o Rio

de Janeiro como o “coração do Brasil”.

Além do Rio de Janeiro, outra importante referência do Brasil para estrangeiros é a

floresta Amazônica. E ela é atualizada não só pelas imagens de sua flora mas também da fauna da

região. O cenário do desfile da marca Blue Man, no Fashion Rio Verão/2012119, a campanha das

jóias brasileiras da Macy’s e a coleção das Havaianas lançada em 2005 (não apenas no Brasil,

vale dizer) aludem a essa mesma cena:

119
Os desfile aconteceu em 1º/06/2011, lançando a campanha da marca para a temporada do verão 2012.
153
Há que se ressaltar que esse tipo de estampa não é exclusividade da moda praia. A

coleção de Pedro Lourenço (SPFW Verão/2012), representada nas peças que seguem, é marcada

por uma urbanidade e, ao mesmo tempo, por referências à fauna e flora brasileiras – ainda que

sejam menos “exageradas”.

O universo tecnológico atual permite ainda novas formas de instauração de

cenografias pautadas nas cenas validadas. A já mencionada campanha da loja americana Macy’s

inclui também um aplicativo para celulares que interage com os clientes nas lojas permitindo que

eles “experimentem” uma viagem à Amazônia, o carnaval, um jogo de futebol e uma interação

com um tucano. Trata-se, portanto, da construção de um Brasil por meio da mobilização de

cristalizações variadas da imagem “típica” do país, muitas delas relacionadas, em alguma medida,

à representação da paisagem nacional típica:

(20) Paired with large, artfully crafted Brazil-shaped floor markers installed throughout
Macy's stores, the application interacts with map markers, each triggering a unique
augmented reality experience including a trip to the Amazon, Carnival, a soccer
game and interaction with a toucan.120 (grifamos).

120
Notícia sobre a campanha da Macy’s no site USA Today, disponível em:
154
Além do Carnaval – que, como já apresentado, acaba também por evocar o Rio de

Janeiro – e do futebol, outras cenas validadas para representar o Brasil envolvem a representação

de paisagens naturais, seja por meio da fauna ou da flora (ou ambas), em geral relacionadas à

floresta amazônica. Nesse sentido, a “apresentação” do Brasil na campanha da Macy’s é bastante

reveladora da imagem que o país tem lá fora, inclusive no que tange a sua paisagem “típica”.

Relacionada a essa representação, encontramos, em um dos materiais que integram o

corpus referente ao turismo, o enunciado que segue: “De certo que somos o país do Pantanal –

uma região bela e de ricas fauna e flora. Somos também o país de um dos mais belos litorais do

mundo, de tantas e tão diversas belezas. Mas é na Amazônia que está o foco do planeta”121

(grifamos). Trata-se de declaração do governador do Amazonas, Eduardo Braga, quando da

escolha das cidades-sede da Copa de 2014. Essa declaração é particularmente interessante se

tomarmos a estampa das peças da Gucci abaixo:

<http://www.usatoday.idmanagedsolutions.com/news/story.idms?
ID_NEWS=28557889&ID_SUPPLIER_CATEGORY=18614,18686,45864,18689>. Acesso em: 27 mai. 2012. “Ao
lado de grandes marcadores no chão com o formato do Brasil e artisticamente trabalhados instalados pelas lojas da
Macy’s, o aplicativo interage com pontos no mapa, cada um desencadeando uma experiência única em realidade
aumentada incluindo uma viagem à Amazônia, Carnaval, um jogo de futebol e interação com um tucano” (tradução
nossa).
121
Informe publicitário publicado na revista Istoé, ano 32, n. 2053, 18 mar. 2009.
155
De acordo com a marca, no release mandado para a imprensa, “o novo patropi da

moda é o Pantanal”122, o que faz, segundo o site Globo.com, com que a Amazônia perca espaço

“como a estampa tropical que melhor define o Brasil”. No entanto, sites de notícias dos dois

Estados brasileiros por cujos territórios se estende o Pantanal (Mato Grosso do Sul e Mato

Grosso) observam que a estampa não é muito próxima da “realidade”:

(21) O conjunto combina tons de verde, amarelo e azul em estampas com uma arara
sobre folhagens que lembram mais uma floresta tropical do que o bioma
pantaneiro.123 (grifamos);

(22) A fauna e a flora da região inspiraram uma coleção especial de acessórios da grife
italiana, com bolsas de couro e echarpes de seda. A equipe de Frida Giannini, diretora
criativa da marca, pintou sobre fundo branco araras coloridas e folhagem verde bastante
exuberante – e bem mais alegre que a da vida real, já que as cores escuras do
pântano foram abandonadas nos desenhos da marca.124 (grifamos).

Ou seja, apesar de a inspiração não ser propriamente a Amazônia, o que é retomado é,

de fato, uma certa cristalização do que é “típico” do espaço brasileiro; nem mesmo a ave típica do

Pantanal, o tuiuiú, aparece na estampa, e sim uma arara125. É nesse sentido que se pode dizer que

a estampa é ela também investida pelo discurso e, portanto, não se encontra atrelada ao “real”.

Assim, por mais que as inspirações sejam “diversas”, a imagem que ecoa nas representações do

espaço nacional brasileiro “por excelência” é quase sempre a floresta amazônica.

Na moda, reiteramos, a questão das padronagens está bastante imbricada com a

construção/legitimação de um espaço nacional e um aspecto central que surge quando as

estampas são de folhagens, flores e, até certo ponto, de animais da fauna brasileira diz respeito à

122
Gucci cria coleção inspirada no Pantanal, Repórter MT. Disponível em: <http://reportermt.com.br/
ultimas_noticias/noticia/16731>. Acesso em: 23 mar. 2012.
123
Gucci lança coleção 'inspirada' no Pantanal com bolsas de couro e custo de R$ 6 mil, Midiamax News.
Disponível em: <http://www.midiamax.com.br/noticias/790730-gucci+lanca+colecao+inspirada+pantanal+com+
bolsas+couro+custo+r+6+mil.html>. Acesso em: 27/03/2012.
124
Gucci cria coleção inspirada no Pantanal, Repórter MT. Disponível em:
<http://reportermt.com.br/ultimas_noticias/noticia/16731>. Acesso em: 23/03/2012.
125
Como visto no capítulo 2, o mapa estereotipado do “mundo como o conhecemos” traz, na referência ao Brasil, a
figura de uma arara.
156
“tropicalidade” considerada característica do país. Como visto, o site Globo.com fala, a respeito

das peças anteriores, de uma “estampa tropical que melhor define o Brasil” (grifamos).

A ideia de um “país tropical” será analisada de maneira mais detida no próximo

tópico.

3.1 Moramos num país tropical: mesmo?

Quando se pensa em uma moda “com a cara do Brasil”, é-se, naturalmente, levado a

pensar se essa é uma pergunta válida para outras nacionalidades e esse questionamento talvez

tenha pairado pela cabeça do leitor até aqui sem ter sido respondido diretamente. As observações

de Glória Kalil abaixo vão justamente nessa direção:

(23) “Os italianos têm design, os franceses têm marcas, os norte-americanos têm
mercado interno, os chineses têm preço. E nós, temos o quê?” Será que a moda
brasileira não tem algum tipo de identidade que a distinga e que a faça ser reconhecida e
desejada, não como uma roupa folclórica, um traje típico, mas como uma roupa que
traga em seu DNA algumas características que atraiam e encantem consumidores
nacionais e internacionais?126 (grifamos).

Seria possível, então, opor aos elementos característicos da moda italiana, francesa,

americana, chinesa uma moda brasileira “genuína”? Sem ser “folclorística”, a moda nacional

deve representar um Brasil que encante e venda. De acordo com Glória Kalil, a música brasileira

já conquistou essa “façanha”: “A música brasileira soube dar esse pulo do gato: é uma música

com uma personalidade totalmente identificada com o país e ao mesmo tempo respeitada por sua

sofisticação127 e peso cultural”, afirma a consultora de moda. No caso da moda nacional, segundo

ela, seria preciso incorporar elementos que são próprios do Brasil e admirados mundo afora; não

126
KALIL, Glória. Panorama da indústria de moda brasileira. In: BRASIL. Ministério das Relações Exteriores.
Textos do Brasil: moda, n. 18, 2011.
127
Note-se que a “sofisticação” é tomada aqui como um elemento valorizado, o que nos remete, por contraposição, à
questão do “exótico” apresentada o item 2.1 deste capítulo, quando se falou dos simulacros do nacional.
157
por acaso, traços de uma paisagem nacional típica são retomados aqui: “Temos um lifestyle

reconhecido e apreciado no mundo todo, temos um país amistoso e ensolarado, temos uma arte

e uma música respeitadas” (grifamos), continua Kalil.

O aspecto climático mencionado por Glória Kalil remonta ao período do

descobrimento128 e é tomado como uma das “evidências” para que se situasse o paraíso terreal por

aqui. O sol dos trópicos é, como se viu, responsável pela “exuberância” das paisagens e pela

saúde e longevidade dos habitantes dessas terras. Um “país tropical”: eis aí uma característica que

não é contestada nos debates sobre uma (possível) identidade para a moda brasileira; e ela parece

funcionar, como dissemos, como uma espécie de “liga” para uma série de traços considerados

“típicos” do Brasil na sua representação na moda. Na moda, as coleções inspiradas pelo Brasil

são sempre comentadas a partir da “tropicalidade” que representam ou deveriam representar.

Partiremos, então, de alguns recortes em que se evoca o tropical e, mais ou menos explicitamente,

o Brasil para refletir sobre uma questão formulada quando do contato com esse campo: é possível

assumir o “tropical” como uma cena validada que, como tal, poderia ser considerada uma

representação “genuína” do espaço brasileiro?

***

O catálogo da Macy’s (volume 2) propõe uma viagem por três destinos brasileiros:

São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. O texto que convida os consumidores a “embarcar em uma

viagem ao Brasil” nesse catálogo instaura a cenografia de um guia de viagens, em que se

128
Vide capítulo 2.
158
apresentam os pontos turísticos do destino129. A contracapa do primeiro volume do catálogo da

loja apresenta, inclusive, uma “lista” de itens necessários para a viagem:

Por essa cenografia, o leitor é interpelado como viajante (e não como consumidor de

moda); o destino é o Brasil, passando pelo Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo, locais, segundo o

texto, de “belezas naturais e charme cosmopolita”. As peças anunciadas tornam-se paisagens

(inclusive pela escolha do substantivo em inglês “sights”). O aposto, situado entre os travessões,

é o responsável por estabelecer a relação com a moda, dada a maneira como categoriza os pontos

turísticos ou paisagens: “de acessórios de inspiração tropical a designs de edições limitadas”. A

referência ao clima quente fica por conta das cores na figura abaixo, que, na página, é rodeada

por diversas imagens dos destinos mencionados – locações das fotos com as peças da campanha.

129
Sobre isso é preciso fazer ainda uma rápida observação: cremos ser possível dizer que os desfiles que têm como
inspiração um lugar (um país, uma cidade, uma região) instauram, em geral, essa mesma cenografia, uma vez que
eles “convidam” a plateia a “conhecer” esse local e muitos comentaristas dizem coisas do tipo: “a marca nos convida
a fazer uma viagem por X”.
159
(24) Our magical journey continues through
the spectacular country of Brasil. Join Macy’s
as we celebrate the natural beauty &
cosmopolitan charm of Rio de Janeiro, Bahia
and São Paulo. So, come in and discover all
the amazing sights – from tropical-inspired
accessories to limited-edition designs – Brasil
has to offer.130 (grifamos)

Outro ponto que chama a atenção em todo o catálogo e que é visível na imagem

anterior é a grafia de Brasil, com s e não com z, como é em inglês; ou seja, trata-se do “Brasil”

dos brasileiros e não de um “Brazil” para estrangeiros: é, portanto, “genuíno”. Além disso, o

tempo (a cronografia, nos termos de Maingueneau) estabelecido aqui é de um Brasil

contemporâneo, na medida em que há, nas cidades citadas, um “charme cosmopolita”; no

entanto, as belezas naturais do Brasil, um pré-construído, não são esquecidas. E essas belezas

tropicais inspiraram, por exemplo, os acessórios.

Nesse mesmo catálogo, a coleção da Calvin Klein (marca norte-americana) inspirada

no Brasil abusa de duas características relacionadas ao “tropicalismo”: cores fortes (em geral

quentes, como laranja, vermelho, amarelo), que são associadas, por um lado, ao clima e, por

outro, às cores da flora; e estampas de folhagens:

130
“Nossa viagem mágica continua pelo espetacular país que é o Brasil. Junte-se à Macy’s enquanto celebramos a
beleza natural & o charme cosmopolita no Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo. Então, entre e descubra todas as vistas
maravilhosas – de acessórios de inspiração tropical a designs de edições limitadas – que o Brasil tem a oferecer”
(tradução nossa).
160
(volume 1) (volume 3) (volume 3)

O cenário das fotos do terceiro volume do catálogo, em sintonia com as estampas,

remete ainda à vegetação tropical brasileira por meio das folhagens.

Outra coleção pautada no Brasil – e muito citada pelos fashionistas – é a do estilista

inglês Alexander McQueen, para a primavera-verão/2003, inspirada na Amazônia brasileira. Nas

roupas, o colorido de penas, folhagens, cocares de acessórios (que os comentaristas

internacionais consideraram ser chapéus imitando flores tropicais), e inúmeras referências à fauna

amazônica, especialmente papagaios. Os tons de verde utilizados em muito lembram aqueles das

bolsas e echarpes da Gucci, comentadas anteriormente. A respeito da coleção de McQueen, uma

jornalista de moda britânica observa:

(25) A breathtaking “parrot dress”, which looked as if it had been made from hundreds
of thousands of feathers, had in fact been cut and flounced by hand from 250 metres of
scarlet, cobalt, orange and yellow chiffon.
The clear plastic wedge shoes had butterflies set in the heels; the hats were
extraordinary, resembling giant tropical flowers, made by the London-based milliner,
Philip Treacy.131 (Flamboyant McQueen dazzles, 07 out. 2002; grifamos).

131
Disponível em: <http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/europe/france/1409414/Flamboyant-McQueen-
dazzles.html>. Acesso em: 15/09/2011. “Um ‘vestido papagaio’ de tirar o fôlego, que parecia ter sido feito de
centenas de milhares de penas, havia, na verdade, sido cortado e debruado [formando babados] a mão a partir de 250
metros de chiffon escarlate, cobalto, laranja e amarelo. Os sapatos de plástico transparente tinham borboletas
colocadas nos saltos; os chapéus eram extraordinários, parecendo flores tropicais gigantes, feitos pelo ‘chapeleiro’
londrino Philip Treacy” (tradução nossa).
161
As imagens abaixo são da referida coleção de McQueen, sendo que o vestido

“papagaio” a que se refere o texto acima é o do canto direito abaixo:

Fonte: <http://conceptoff.blogspot.com.br/2011/12/alexander-mcqueen-complete-runway.html>

Ainda que fortemente ligado ao verão, o “tropicalismo” considerado característico do

espaço nacional não aparece apenas nas peças dessa estação – o que não significa que seja

abundante no inverno. Na edição do Fashion Rio Inverno/2012, por exemplo, a marca 2 nd Floor,

que produz moda urbana, apresentou em algumas de suas peças a estampa de folhagens (vide foto

abaixo). O cenário do desfile é “frio”, lembrando o concreto de calçadas e a iluminação sugere um

dia sem sol. Mas a estampa da foto suscita o seguinte comentário da editora de moda Lilian Pacce:

(26) E essa estampa... uma estampa super feliz,


tropical, de folhagens que eu acho que tem
tudo a ver com a nossa história. (Melhor do
dia, canal GNT, 11 jan. 2012; grifamos).

162
A declaração de Lilian Pacce mostra como o “tropical” e o “Brasil” são próximos. O

uso do possessivo “nosso(a)” também aparece no recorte abaixo e reitera a relação quase direta

entre cores, fauna e sensualidade feminina com o Brasil. O comentário é de um jornalista de

moda gaúcho (apud LEITÃO, 2007, p. 133) em programa transmitido ao vivo do Fashion Rio em

junho/2005:

(27) Quando um estilista coloca as cores do Brasil, nossos pássaros, as nossas


borboletas [...] não há quem não se emocione. [...] a galera está se esmerando em
mostrar o nosso tropicalismo, a nossa brasilidade, as cores que a gente curte no
Brasil, a sensualidade da mulher brasileira. (grifamos)

Os excertos que seguem, por sua vez, têm em comum o fato de usarem como

referência a coleções, estilistas/marcas ou mesmo à moda brasileira o sintagma “tropical”,

acompanhado ou não de qualificadores – o que está relacionado às discussões sobre identidade da

moda brasileira, por um lado, e, por outro, a questões de autoria que hoje ganham o campo:

(28) “O novo tropical: no maiô da Lenny,


estampas de folhagens tipicamente
brasileiras” (legenda de foto em blog de
Marcelo Formiga)

(29) “Coleção tropical: Após


Paris, Pedro Lourenço volta à
SPFW” (chamada no site
globo.com, em 18 jun. 2011)

(30) “Neon mostra seu


‘Bauhaus tropical’” (chamada no
site globo.com, em 17 jun. 2011)

163
(31) “estampas inspiradas no Brasil, que ecoam o
projeto Terra Brasilis, lançado pela label nos anos
1970, com o intuito de valorizar justamente o que é
nosso – leia-se modelagens menores, prints
tropicais e detalhes handmade [...]. Para completar
o show, cenário à la Rio, o filme”. (site da revista
Elle, http://elle.abril.com.br/ desfiles/blue-man/blue-
man-fashion-rio-verao-2012-628658.shtml#6)

(32) “São essas fontes coletivas que alimentam uma espécie de tropicalismo revisitado
que hoje congrega um punhado de estilistas” (Alegres trópicos, Veja, 1º nov. 2006)

(33) “o tropical está na moda, e o pessoal faz uma coisa bem brasileira, com as nossas
plantas e cores, pra mostrar que é brasileeeeeiro” (assessor de estilista no SPFW 2005,
apud LEITÃO, 2007, p. 139)

A utilização de “tropical” envolve características que vão, a cada dado, se reiterando e

formando um conjunto de elementos que se pode considerar representativo da moda “típica” não

do mas sobre o Brasil. O excerto (31) acima, por exemplo, define o que pode ser compreendido

como “brasileiro” na moda, e as estampas tropicais estão entre esses elementos. Nisso estão

implicadas, como mostra (33), plantas e cores “brasileiras”, ou, como se vê em (28),

“tipicamente brasileiras” (grifamos).

O segundo volume do catálogo da Macy’s tem muitas páginas que remetem, mais ou

menos explicitamente à floresta brasileira. A página apresentada abaixo chama ainda a atenção

em virtude da citação de Burle Marx no canto direito superior: “E a planta é, para um paisagista,

não apenas uma planta – rara, incomum, ordinária ou condenada a desaparecer – mas é também

uma cor, uma forma, um volume ou um arabesco em si” (tradução nossa; grifamos). A visão

do artista é que é responsável por apropriar-se das inspirações “naturais” e transformá-las em

arte. A citação explicita ainda a relação entre a paisagem e as suas representações na moda.

164
As cores fortes e as estampas gráficas são mesmo consideradas uma característica do

modo de se vestir brasileiro, como mostra o enunciado abaixo 132:

(34) Local dress code: punchy colors, graphic patterns133. (grifamos)

A “exuberância natural” do Brasil é, assim, assumida na moda não apenas a partir de

estampas gráficas de paisagens, mas também como “inspiração” para as cores e as formas

utilizadas. Também assumida como fonte de “inspiração” para os estilistas nacionais é a “mulher

brasileira”, que, não obstante uma insistência na heterogeneidade dos tipos, é quase sempre

subsumida por essa expressão homogeneizante (“a” mulher brasileira).

No que diz respeito a essa figura, a propalada “sensualidade” que lhe seria própria,

aproxima-se bastante dos tradicionais estudos sobre estereótipos, na medida em que eles

costumam centrar a atenção em grupos de pessoas, como apontamos anteriormente. Aqui, a

relação entre a sensualidade da mulher brasileira – a princípio desconexa da ideia de um espaço

132
Retirado do catálogo da Macy’s, disponível em: <http://www1.macys.com/campaign/ social?
campaign_id=315&channel_id=1&cm_sp=brasil-_-n-_-n>. Acesso em: 28 mai. 2012.
133
“Modo de vestir local: cores chamativas e estampas gráficas” (tradução nossa).
165
nacional – e o cenário tropical dá-se a ver exemplar e explicitamente nas palavras do estilista

brasileiro Amir Slama134:

(35) Sintetizar a moda brasileira é sem duvida traduzir a síntese da mistura racial,
social, cultural e religiosa única que se deu no Brasil e que teve início ainda no período
colonial, continuando na posterior busca incessante do período imperial e republicano
por se criar um ideal de identidade nacional. Este ideal foi encontrado – e não
construído ou ainda inventado – nesta nossa mulher. Uma mulher extremamente
sensual e feminina, seja loira ou morena, branca ou negra, que caminha e se movimenta
de um modo todo particular, e único. E é na praia, e de biquíni, que se encontra sua
melhor tradução. (SLAMA; grifamos).

A capa do primeiro volume do catálogo da Macy’s parece dialogar com Amir Slama

de maneira explícita: o primeiro plano da imagem traz a figura de uma mulher de biquíni que

“deixa ver”, ao fundo, a praia e as montanhas.

134
In: BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Textos do Brasil: moda, n. 18, 2011.
166
A sensualidade da mulher brasileira é, então, associada à praia, uma das “belezas

naturais” que constituem o cenário “paradisíaco” brasileiro como já destacado. Tanto assim que a

página do catálogo da Macy’s (volume 1) resume as atrações locais: sol, areia e belezas se

banhando:

A praia é, aliás, um ponto de passagem central quando se fala em “tropicalidade”,

como se pode ver na declaração da estilista Adriana Degreas que reapresentamos abaixo:

(11) Consigo enxergar, com mais clareza, uma identidade brasileira muito forte na moda
praia. Acredito que faça parte do universo brasileiro, pelo comportamento, pela
situação climática que nos é favorável, pelo corpo da mulher brasileira, pela
riqueza tropical.135 (grifamos).

A declaração de Tufi Duek retomada a seguir também põe em evidência alguns desses

traços tidos como próprios do Brasil:

(16) Eu ponho samba, Carnaval, Maria Bonita e Lampião, o cangaço, a cultura do


Pantanal, das nossas praias. Eu tenho orgulho de dizer que eu já fiz todas essas buscas
inspiracionais no nosso Brasil. Hoje todo mundo fala da nossa tropicalidade, do

135
Qual é a identidade da moda brasileira, 9 jun. 2010. Disponível em: <http://vilamulher.terra.com.br/qual-e-a-
identidade-da-moda-brasileira-14-1-35-305.html>. Acesso em: 15 jul. 2011.
167
nosso colorido, nossa sensualidade. Eu me sinto bastante orgulhoso em dizer [...] que
eu sou pioneiro nisso.136 (grifamos).

O recorte abaixo137 mostra a “mistura” entre esses elementos: a sensualidade passa a

ser da “cultura e da música”:

(36) A rockin’ limited-edition collection that fuses the sensuality of Brasilian culture
and music in a unique, chic way.138 (grifamos)

O trecho de uma matéria sobre as estampas tropicais, extraída de um site de moda,

explica o que se pode entender por esse adjetivo: não apenas os motivos, mas também as cores

são características desse tipo de padronagem. Além disso, fica claro que elas são tomadas como

uma “legítima” representação do Brasil (“a cara do Brasil”):

(37) As estampas com folhagens, frutinhas, pássaros e todo tipo de natureza são a
nova tendência para o verão. As estampas tropicais são coloridas e exuberantes e
estão presentes em blusas, saias, vestidos, calças, shorts e até mesmo no tão “formal”
blazer.
Essa moda além de ser a cara do Brasil também pode ser usada por quem está com
aqueles quilinhos a mais. […] Deixe o Brasil e a alegria das estampas tropicais
invadirem seu guarda-roupa!139 (grifamos).

O final da matéria parece servir de síntese para o que analisamos até aqui: é o Brasil

que invade o guarda-roupa por meio das estampas tropicais.

Assim, vê-se que características associadas ao “tropical” que é, por seu turno,

relacionado a uma “brasilidade”, são constantemente (re)utilizadas no campo da moda para, em

última análise, representar o espaço nacional, articulando os elementos de que falamos aqui: as

cores, o clima, a vegetação, a fauna, a sensualidade da mulher brasileira.

136
História da moda no Brasil. Direção: João Braga, Luís André do Prado, Tatiana Lohmann. 2012. Documentário.
137
Retirado do catálogo da Macy’s, disponível em: <http://www1.macys.com/campaign/social?campaign
_id=315&channel_id=1&cm_sp=brasil-_-n-_-n>. Acesso em: 28 mai. 2012.
138
“Uma coleção arrasadora de edição limitada que combina a sensualidade da cultura e da música brasileiras de
maneira única e chique” (tradução nossa).
139
Disponível em: <http://www.oficinadamoda.com.br/moda/tendencias/estampa-tropical-saiba-tudo-sobre-essa-
tendencia-17474.html>. Acesso em: 29 nov. 2012.
168
4. Considerações finais

Antes de mais nada, é preciso dizer que não se trata aqui de dizer que todo “tropical”

deve ser prontamente associado ao Brasil – e, consequentemente, a seu espaço. É bem verdade

que há, no campo da moda, muitas coleções que se valem da inspiração “tropical” sem que isso

signifique que está em pauta uma representação do Brasil.

No entanto, e isso esperamos ter deixado claro, as representações do Brasil na moda

acabam tocando esses elementos “tropicais” que remetem a uma paisagem nacional típica do

país. Em torno do tema, Leitão esclarece que,

de acordo com Thiesse (2001) o uso da natureza e das paisagens nacionais é freqüente na
construção das nações e das identidades nacionais. No caso brasileiro, entrentanto,
recorre-se não apenas a idéia de “uma natureza” e “uma paisagem” tipicas, mas
igualmente “A Natureza” como constitutiva daquilo que há de mais típico no país.
Corriqueiras são as falas do senso comum e da mídia que nomeiam o Brasil, graças as
suas florestas, como “pulmão do mundo”. (LEITÃO, 2007, p. 131).

Como apresentado no capítulo 2, a imagem de um “Brasil-paraíso” fortemente

atrelada à paisagem edênica encontrada quando do descobrimento é, há mais de 500 anos,

bastante produtiva para a “narrativa” da nação. Essa imagem é fonte de reinvestimentos

constantes e o campo da moda é apenas um dos lugares em que os discursos de

construção/legitimação desse espaço nacional encontram eco. O quadro apresentado até o

momento permite, assim, observar o modo de circulação dessa cristalização.

Essa segunda “focagem” suscitou algumas questões em torno da melhor forma de

apreensão de certos dados do corpus, uma vez que há muitos materiais não-verbais. Por mais que

a análise desse tipo de material não seja um “impedimento” para a AD, é preciso reconhecer que

ainda não são muitos os trabalhos da área que olham para materialidades não linguísticas. Além

169
disso, grande parte das categorias de análise foram e são pensadas para dar conta de fenômenos –

se não exclusivamente, ao menos preferencialmente – linguísticos.

Ainda que as peças venham acompanhadas de uma profusão de material linguístico

(seja proveniente da crítica, da imprensa ou mesmo dos próprios estilistas), não era nossa

intenção deixar de analisar os aspectos não-verbais. Nesse sentido, foi preciso pensar em

conceitos/noções que pudessem dar conta de nossos dados. A abordagem por meio das cenas de

enunciação formuladas por Maingueneau mostrou-se bastante produtiva, dentre outros motivos,

por permitir assumir as peças como texto e descrever as estampas em termos de dêixis discursiva,

esmiuçando, a partir da cenografia instaurada, a cronografia e, principalmente, a topografia que

acabava por remeter à construção/legitimação de um espaço nacional “genuíno”.

Por haver dentre os dados a utilização de certas cenas validadas – tais como o

carnaval e as praias, por exemplo – para representação do Brasil, a pergunta formulada era se

seria possível assumir a “tropicalidade” de que tanto se falava a respeito das estampas como uma

dessas cenas que caracterizariam o espaço nacional. Embora não parece ser esse o caso, não se

trata, queremos deixar claro, de anular a relevância do que foi alcançado até aqui. Isso porque

ainda que as análises tenham mostrado que tal “tropicalidade” é mais um conjunto de traços que

propriamente uma cena – e, correndo o risco de dizer o óbvio, uma cena é uma cena – há um

conjunto de outras cenas que estão ligadas a essa ideia de “tropicalidade”. Tomemos um

exemplo: a imagem de uma praia “instaurada no universo de saber e de valores do público”

(MAINGUENEAU, 2006, p. 256) é uma praia com areias brancas, coqueiros, águas cristalinas,

sob um céu azul com o sol brilhando. É possível dizer, nesses termos, que há uma tal cristalização

sobre a “tropicalidade” evocada para explicar as coleções inspiradas no Brasil? Cremos que não.

Por outro lado, como chegamos a afirmar no tópico precedente, parece ser possível dizer que há

170
cenas validadas do Rio de Janeiro – e que remetem à ideia de Brasil –, como, por exemplo, o

calçadão de Copacabana com a praia e as montanhas ao fundo, e o Carnaval.

O que esses dados mostram é que certas cenas validadas de praias e florestas, por

exemplo, remetem ou evocam essa “tropicalidade” que é tomada como característica do Brasil –

especialmente em relação ao seu espaço. Mas não só elas: há outros traços que compõem uma

estampa “tropical” e que não operam por meio de cenas validadas e, por isso, pensamos que a

“tropicalidade” como tal não pode ser considerada uma cena validada. Em resumo, se a

“tropicalidade” como tal não pode ser considerada uma cena validada, isso não significa descartar

a noção nas análises.

As análises mostraram ainda que enquanto a “tropicalidade” – fortemente relacionada

a uma paisagem nacional típica – é tomada como uma característica, digamos, “válida” para

representar o Brasil, o mesmo não se dá com elementos considerados representativos da “cultura”

nacional (rendas, bordados, fuxicos e ícones folclóricos).

171
172
Capítulo 5 – Costurando paisagens:
diálogos entre moda e turismo

173
Só quem está em estado de palavra pode
enxergar as coisas sem feitio. (Manoel de
Barros)

1. Palavras iniciais

Até o momento, privilegiamos uma abordagem separada dos corpora provenientes do

turismo e da moda. Duas foram as razões para isso: em primeiro lugar, desejávamos manter a

cronologia do contato com cada um deles explícita para o leitor e, em segundo lugar, os conceitos

mobilizados inicialmente numa e noutra “focagem” eram suficientemente distintos para justificar

tal divisão. Além disso – olhando para trás –, talvez um certo excesso de didatismo também tenha

contribuído para essa disposição dos capítulos.

Este capítulo, porém, vai em outra direção. Aqui apresentamos os pontos de contato

entre esses dois espaços que, como já dissemos, não estão tão distantes como se poderia supor.

Trata-se aqui de verificar, de maneira mais integrada, o modo de circulação dos estereótipos do

nacional – especialmente no que concerne a sua paisagem “típica” – na imbricação existente

entre o espaço aqui desenhado pelo turismo e pela moda. Nesse sentido, as análises têm por

objetivo mostrar como, na moda, se dá a circulação do pré-construído que remete ao espaço

174
nacional “genuíno” – analisado no turismo – e como, no turismo, é possível verificar a existência

de cenas validadas – conceito explorado, por sua vez, na moda.

Apresentar esses pontos de contato tem também como objetivo verificar se se poderia

argumentar em favor da constituição de uma formação discursiva unifocal ou se, ao contrário, a

plurifocalização permanece sendo a maneira mais adequada de lidar com essa configuração –

lembremos que esta foi uma questão que, segundo entendemos naquele momento, não poderia ser

decidida de maneira definitiva.

Cuidaremos para não sermos levados a buscar, como adverte Maingueneau, uma

“coerência escondida”, mas esperamos também estar, como diz o poeta, em “estado de palavra”

para enxergar o que não se dá a ver facilmente.

2. Turismo e moda: aproximações

Escolhido primeiramente por considerarmos um lugar privilegiado para a circulação

de discursos de construção/legitimação de um espaço nacional “genuíno”, o turismo possibilitou

descrever o modo de funcionamento do estereótipo da paisagem nacional a partir da noção de

pré-construído. A imagem cristalizada de um “Brasil-paraíso” (CHAUÍ, 2006) remonta, como se

viu, à época do descobrimento do país e, de lá para cá, tem sido objeto de inúmeras atualizações.

Nos textos provenientes do turismo foi possível identificar um deslocamento: da cristalização

para novos traços. Além de estruturas sintáticas específicas, identificou-se também um conjunto

de termos que remetem a uma imagem “plural” do Brasil.

175
Assim como no turismo, na moda também é possível detectar a presença dessas

referências à diversidade (seja ela cultural, étnica, climática etc.) do Brasil – como mostram os

recortes abaixo –, fazendo dele um país “plural”:

(1) A estilista Vanilda Reimer, que está à frente da coleção da grife LemonLight, de
moda praia, acha que a diversidade da cultura brasileira caminha de mãos dadas com
a identidade da moda nacional.
(2) Em primeiro lugar, devemos lembrar que os povos que formaram a cultura do país
são os mais diversificados possíveis. Além disso, o Brasil é um país enorme em termos
territoriais, possuindo, assim, os mais diversos hábitos e os mais variados climas.
Portanto, de homogeneidade não há nada, ao contrário, o que não nos falta são misturas,
o que não significa que devemos ter uma moda visualmente poluída. No Brasil podemos
encontrar diferentes estilos oriundos dessas múltiplas e ricas referências culturais.140
(3) A moda brasileira, de um modo geral, é diversa, como nosso país, e ainda tem
visto o processo de internacionalização como uma alternativa ao mercado interno.
(4) Em termos de identidade, nossas marcas mais internacionalizadas não passam uma
imagem homogênea, tal como os belgas ou os japoneses. Isto não é uma crítica, apenas a
constatação de que somos um país múltiplo, e devemos utilizar isso a nosso favor.
(5) O caldo cultural que temperou o vestuário com influências mouras, portuguesas,
indígenas e africanas resultou em uma receita saborosa. Pode-se dizer que houve um
casamento entre tradição, exotismo e sensualidade, fatores visíveis com mais força
nos tempos atuais.
(6) Está na hora de empresários e governo sentarem juntos para equacionar a questão e
desatar os nós que ainda a amarram, pois temos nas mãos o principal: uma criatividade
muito própria, muito variada que deve sua riqueza à nossa diversidade biológica e
cultural. Em resumo: o Brasil tem um “jeitão”, um estilo, feito de todas estas
características que podem e devem passar para sua moda fazendo dela um produto
desejado, diferenciado e comercialmente valorizado.

Esse discurso se materializa linguisticamente por meio de palavras que revelam essa

“variedade” (diversos, variados, múltiplos, combinação, casamento etc.) e também por meio de

estruturas sintáticas específicas. Assim, vimos que, linearizado, enquanto discurso transverso,

aquele pré-construído é posto em cena por meio de determinadas estruturas sintáticas que têm em

não só X mas também Y a sua paráfrase geral. E isso não é por acaso: esse tipo de estrutura

apresenta um lugar específico para a inserção desse pré-construído, conforme o esquema

retomado abaixo:

140
Ana Carolina ACOM, O made in Brazil da moda brasileira. Blog Modamanifesto. Disponível em:
<modamanifesto.com/index.php?local=detalhes_moda&id=557>. Acesso em: 15 mar. 2011.
176
não só PRÉ-CONSTRUÍDO mas também DESLOCAMENTO
Prótase Apódose

No campo da moda, como vimos, esse mesmo pré-construído da “exuberância” das

paisagens nacionais aparece, por exemplo, nas discussões sobre questões autorais que

envolveriam a busca por uma identidade para a moda brasileira:

(7) Deve-se preocupar [a moda nacional] em refletir não só a riqueza natural, mas
também nossa riqueza cultural. O Brasil é um país tropical cujas capitais, em sua
maioria, estão na costa. Também, os diferentes climas, as diferentes misturas étnicas com
a Europa e a África sugerem uma moda plural, sensual, vibrante, rica em texturas, cores,
materiais e imagens. Elementos que ao longo dos séculos foram trazidos pelos
estrangeiros para o país e refletem, não somente nossa arte popular e nossa natureza
exuberante, mas nossas cidades, nossas mazelas sociais, nossos luxos e exageros, nosso
lifestyle. (Bruno Ost, blog Moda Manifesto, 2006; grifamos).

Tais estruturas devem, como defendemos, ser lidas a partir de um enquadre

concessivo; a paráfrase nesse caso é a seguinte: embora a moda brasileira deva refletir a nossa

riqueza natural, ela deve também retratar outros aspectos porque o Brasil é mais que isso. Trata-

se, portanto, de retratar um Brasil “plural”, além daquele conhecido – e reconhecido –

mundialmente (apresentado na prótase), que tem outros aspectos a serem valorizados

(apresentados, por sua vez, na apódose). O dado acima deve ser lido, portanto, integrando um

discurso a respeito da moda nacional que deixa entrever as representações do Brasil, dentre as

quais aquelas de um espaço nacional.

Sobre as estruturas concessivas, Krieg-Planque (2010b) afirma que sua característica

argumentativa consiste em apresentar como “acidentais” os elementos que ela mesma põe em

tensão, já que ela apresenta tais elementos como podendo parecer contraditórios, mas já não

sendo mais. O que a sintaxe da concessão revela, portanto, é que, não querendo/podendo abrir

mão de um “Brasil-paraíso”, esse discurso apresenta outros pontos que superam ou vão além

desse imaginário acerca do país.

177
No caso da moda, uma representação puramente idílica do país pode não dar a

credibilidade necessária para que as coleções produzidas aqui sejam recebidas com seriedade nos

grandes centros mundiais – afinal, a moda também é considerada uma “expressão artística” e,

como tal, fortemente ligada à ideia de “civilidade”, contrária, portanto, a um certo “primitivismo”

que pode perdurar do período colonial; para o turismo, em se tratando de uma questão

essencialmente comercial, não é interessante que o Brasil tenha uma imagem “restritiva”, mas

que ofereça as mais diversas opções para atrair vários tipos de turistas (aventureiros,

contemplativos, amantes da cena urbana etc.).

Também nas peças desfiladas é possível notar essa mesma “sintaxe”. A natureza

representada na estampa abaixo (2nd Floor), por exemplo, aparece num look bastante urbano.

Assim, se a estampa remete ao pré-construído sintetizado, nas palavras de Chauí (2006), pelo

sintagma “Brasil-paraíso”, o estilo da roupa – uma espécie de chemise sem mangas,

acompanhado por um sapato mais “pesado”, i.e., fechado e de salto grosso, além de bolsa e

óculos escuros – reúne traços de urbanidade.

Outro exemplo que retomamos aqui é a coleção de Pedro Lourenço da qual fazem

parte as peças abaixo. Com estampas figurativas que remetem à fauna e flora diretamente

178
associadas ao imaginário do espaço nacional, o estilista privilegia modelagens urbanas, com

calças de alfaiataria e tubos de comprimento ligeiramente alongado; além de camisetas e blusas

pouco decotadas.

Assim, pode-se dizer que as peças acima – tanto as de Pedro Lourenço quanto a da 2 nd

Floor – materializam o que se dá nos enunciados do tipo apresentado em (7): não só a

exuberância natural mas também a urbanidade das cidades. Ou ainda, como se viu no catálogo da

Macy’s141, não só belezas naturais mas também um charme cosmopolita.

As diversas estruturas analisadas que, como se mostrou, demandam uma leitura num

enquadre concessivo, encontram-se relacionadas a um outro aspecto presente na sintaxe dos

enunciados provenientes do campo da moda, a negação.

Já apontamos anteriormente que existe, por grande parte dos estilistas nacionais, uma

recusa em falar a respeito de uma “identidade da moda brasileira”. Isso decorre, em boa medida,

do fato de que “identidade” é lida como sinônimo de “homogeneidade” pelos designers – o que

não é nada desejável quando se trata de uma esfera em que o “único” e o “exclusivo” são a meta.

141
Vide capítulo 4.
179
Assim, os artistas deslocam a questão da “identidade” de uma moda nacional para a

“individualidade” do artista:

(8) A moda – eu estou falando de criação do estilista – tem que refletir o que o estilista é,
a individualidade dele. [...] Eu considero que minha moda é brasileira só pelo fato de eu
ter nascido aqui. Pronto e acabou. (Alexandre Herchcovitch)
(9) [...] são olhares individuais sobre uma cultura que é muito maior. (Ronaldo Fraga)

A moda é brasileira, portanto, porque é feita por brasileiros, mas não porque

represente alguma característica peculiar do país. Ao recusar a possibilidade dessa associação,

recusa-se também: a) que apenas o Brasil seja tomado por mote nas coleções de estilistas

brasileiros; b) a identificação (direta?) do Brasil com determinados estereótipos de sua cultura,

impedindo a “criatividade” do artista de se desenvolver. Os excertos abaixo – alguns dos quais já

foram apresentados no capítulo precedente – explicitam esses aspectos:

(10) Não preciso incluir ícones e temas folclóricos para dizer que ela é brasileira.
Mesmo porque lá fora ninguém sabe quem é o saci pererê. (Alexandre Herchcovitch)
(11) A moda brasileira vai existir porque ela é feita por brasileiros, não porque ela usa
elementos folclóricos e culturais. Não há necessidade disso. (Walter Rodrigues)
(12) Não é verdade que quem faça uma roupa cheia de fuxico, de rendinha, de bordado
está fazendo uma moda lindamente brasileira e que isso é a nossa cara. (Paulo Borges)
(13) Moda brasileira não é pena de índio. [...] Minha inspiração é ter vivido e morado
aqui, mas não vem das baianas nem das festas juninas. (Adriana Barra)

Embora as discussões em torno da questão identitária na moda não sejam

propriamente objeto da presente pesquisa, elas interessam aqui na medida em que contribuem

para a compreensão dos discursos de construção/legitimação de um espaço nacional “genuíno”.

Nesse sentido, é possível observar que a negação incide sobre elementos essencialmente atrelados

ao folclore nacional.

Além dos elementos folclóricos, as negações também atingem elementos brasileiros

considerados artesanais, o que guarda proximidade com algo que, para além de exótico ou

folclórico, é quase “amador”. Esse aspecto pode ser explicitado por um excerto da referida

180
matéria de Veja, em que a relação da moda nacional atual com esses elementos outrora

reivindicados – lembremos da crítica de Alceu Penna na década de 1950 – fica bem demarcada:

(14) Existe uma moda tipicamente brasileira? A pergunta é inútil, e provavelmente


irrespondível, numa era em que as informações atravessam o globo com hipervelocidade
e todo mundo sabe o que todo mundo está fazendo. Sem contar que o advérbio
“tipicamente” evoca chitas, balangandãs, fitinhas, rendas rústicas e outras
obviedades. É a moda folclórica do “país dos papagaios” – dessa, todos os criadores
querem distância142. (grifamos)

A partir do escopo da negação empregada nos discursos que circulam no campo da

moda, é possível, então, reconhecer sobre quais elementos recai a recusa de uma moda

identificada ao Brasil, ou seja, haveria um rol de elementos dos quais os “criativos” brasileiros

“querem distância” – referências folclóricas (Saci Pererê, Iemanjá, bumba-meu-boi etc.), um

certo artesanato (especialmente aquele mais “rústico”, sem uma leitura autoral: rendas, fitinhas

etc.), temas “étnicos” (os índios, as baianas, o nordestino etc.). É preciso dizer, porém, que não há

uma “proibição” ao uso de quaisquer desses elementos, mas somente daqueles que não são

considerados como propriamente representativos – ou seja, são quase simulacros de um Brasil

“típico”, aqui lido como “exótico”. No entanto, sempre que são mencionados, verifica-se a sua

introdução por meio de estruturas cuja leitura é sempre a partir de uma relação de concessão,

como no recorte abaixo, por exemplo:

(15) A estilista Vanilda Reimer, que está à frente da coleção da grife LemonLight, de
moda praia, acha que a diversidade da cultura brasileira caminha de mãos dadas com a
identidade da moda nacional. “A moda mineira, por exemplo, tem características
marcantes pela aplicação de trabalhos manuais nas peças sem perder o apelo fashion”,
acredita. (grifamos).

(15’) Embora se valha da aplicação de trabalhos manuais nas peças, a moda mineira não
deixa de ter apelo fashion – que, em última análise, é o que faz com que se possa
caracterizá-la como moda.

Assim, uma estilista como Isabela Capeto, que é conhecida como uma das grandes

representantes de uma moda “com cara de Brasil”143 e que se vale do artesanato (chamado, nesses
142
MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 128.
143
Exemplo da representatividade de Isabela Capeto é a declaração de Michael Roberts – editor de moda da revista
181
casos, de handmade) brasileiro, não seria “excluída”, pois faz uso desses elementos a partir de

sua individualidade. A peça a seguir é da estilista e mostra de maneira exemplar o seu trabalho

com aplicação de bordados “bem brasileiros” em roupas de alta-costura:

A peça, mais uma vez, é também a materialização da mesma sintaxe apresentada mais

acima, já que reúne características da alta-costura – peças exclusivas produzidas em escala

artesanal com tecidos finos e, em geral, bordadas (com metais ou pedras preciosas, inclusive) – e

bordados “típicos” do Brasil, feitos a partir de crochê e fuxicos. Nesse sentido, pode-se dizer que

ela usa não só materiais “tipicamente” nacionais mas também técnicas de costura valorizadas

internacionalmente.

Os recortes abaixo evidenciam o mesmo tipo de funcionamento concessivo:

(16) A questão da identidade nacional para a moda brasileira vai além de abordagens
étnicas e folclóricas.
(17) Eu acho que a gente ainda sofre muito desse olhar gringo sobre o samba, a
caipirinha, o carnaval. Nada contra; fantástico! Mas a gente não é só isso.
(18) A discussão é como trazer esse DNA [brasileiro] à tona sem cair no folclore,
atendendo às necessidades do mercado internacional em relação a uma cultura
brasileira e preservando a identidade nacional. (Erika Palomino)

Vanity Fair: “Uma grande e forte identidade de moda brasileira é a Isabela Capeto”. (Disponível em:
<colheradacultural.com.br/print.news.php?register=20100531233237.000&section=3 &type=N>. Acesso em: 15
mar. 2011.)
182
O movimento modernista também viveu esse debate em torno do folclore nacional,

como aponta Mussalim (2003): os modernistas recusavam-se a aceitar o rótulo de “folcloristas”,

i.e., “reveladores ou estudiosos de folclore”. O uso de elementos do folclore, diz a autora, não era

“lido” pela semântica do discurso modernista como folclorismo, porque esse uso submetia-se à

subjetividade criadora do artista. É possível vislumbrar esse mesmo embate na moda atual: não é

porque os estilistas se “rendem”, por exemplo, ao uso de elementos do folclore brasileiro que

suas criações seriam “folclóricas”; trata-se de moda, e, como tal, submetida à “individualidade”

do estilista.

As relações concessivas presentes nos debates em torno de uma identidade para a

moda brasileira revelam, assim, aspectos relacionados à criação, à autoria nas coleções dos

estilistas nacionais, de modo que a moda brasileira não se valha apenas de alguns elementos

tipicamente associados à “brasilidade”. No entanto, o que também se deixa ver nesse campo é o

fato de que as representações do Brasil – e não de uma moda brasileira, portanto – ligam-se quase

exclusivamente a uma paisagem nacional típica. O dado a seguir é, nesse sentido, bastante

representativo:

(19) [Um designer de verdade precisa] Olhar, absorver, processar e imprimir uma visão
única [para/da sua própria cultura]. Desse processo pode sair, com excelentes resultados,
um adepto do preto total ou da pureza arquitetônica. Mas o DNA nacional sempre
vibrará mais com um belo, assumido, vibrante e modernamente interpretado
papagaio.144 (grifamos).

Esses dados parecem caminhar de mãos dadas com aqueles apresentados no capítulo

referente ao turismo. As estruturas apresentam, de um lado, o estereótipo do “típico” espaço

nacional para, em seguida, contrapor-lhe uma nova dimensão, algo que diga, assim como (17),

acima, “mas a gente não é só isso”. Mas mesmo pautado por uma lógica de “deslocamento” do

pré-construído da “exuberância” paisagística, os materiais do turismo apresentam, a respeito dos

144
MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 131.
183
locais, fotos de paisagens “naturais” e de outro aspecto a ser destacado. A seguir, selecionamos

dois roteiros bastante emblemáticos do Brasil para exemplificar o que dissemos. Na primeira

imagem, o Rio de Janeiro; na segunda, São Paulo.

O roteiro do Rio de Janeiro apresenta, na imagem maior, diversos cartões postais da

capital carioca, mas boa parte da foto mostra as construções humanas que circundam as “belezas

naturais”; além disso, há ainda uma foto menor em que se vê uma feijoada cercando um copo de

caipirinha.

Já o roteiro por São Paulo, ao contrário do imaginário principal da cidade, apresenta

no primeiro plano da imagem, todo o verde do Parque do Ibirapuera para, somente ao fundo,

mostrar os prédios que fazem a cidade famosa.

184
É preciso falar ainda de um outro pré-construído a respeito do Brasil que, embora não

pareça estar relacionado com o espaço nacional, tem vínculo bastante estreito com uma certa

paisagem “típica” do país. Trata-se da “sensualidade” da mulher brasileira, que, na moda, chamou

a atenção por sua relação mais próxima com a moda praia, considerada por muitos como

fortemente identificada com o Brasil nas discussões acerca da possibilidade de uma moda

brasileira. Retomemos a declaração do badalado estilista brasileiro Amir Slama a esse respeito:

(20) Sintetizar a moda brasileira é sem duvida traduzir a síntese da mistura racial,
social, cultural e religiosa única que se deu no Brasil e que teve início ainda no período
colonial, continuando na posterior busca incessante do período imperial e republicano
por se criar um ideal de identidade nacional. Este ideal foi encontrado – e não
construído ou ainda inventado – nesta nossa mulher. Uma mulher extremamente
sensual e feminina, seja loira ou morena, branca ou negra, que caminha e se movimenta
de um modo todo particular, e único. E é na praia, e de biquíni, que se encontra sua
melhor tradução. (SLAMA; grifamos).

A mulher brasileira, naturalmente sensual, evoca, como vimos, uma cena validada

sobre a qual se apoiam os discursos de construção/legitimação de um espaço nacional: a praia.

Essa relação também se mostra – de maneira até surpreendente – no turismo. A revista Viagem e

185
Turismo (mai. 2009) traz matéria de capa intitulada As 31 maravilhas naturais do Brasil, em que

apresenta “os lugares mais fantásticos do país, onde, quanto mais verde e selvagem melhor” (p.

56; grifamos). Em sétimo lugar, a mulher brasileira, considerada a “verdadeira maravilha”. No

texto que justifica a escolha, um depoimento do cantor Wando – “um grande especialista”:

Aqui encontra-se estabelecida a relação feita na moda: “a sensualidade” (na

nominalização o pré-construído prototípico) dá-se a ver na praia e o Rio de Janeiro é o “melhor”

símbolo dessa paisagem no Brasil: “No Brasil, você encontra mulheres bonitas o tempo todo. O

melhor lugar para vê-las é no Rio, na praia, onde a sensualidade é mais evidente. Estonteante”.

No depoimento, Wando cita Juliana Paes como “imagem perfeita da mulher brasileira”, cuja foto

selecionada pela revista (no topo da página, acima do texto) traz, ao fundo, uma praia:

186
O pré-construído em tela é, assim, extremamente relevante para esta pesquisa, uma

vez que funciona como uma espécie de síntese: a sensualidade da mulher brasileira – que é, por si

só, um estereótipo dessa mulher – encontra-se atrelado a uma representação do espaço nacional

“genuíno”, a praia; esta, por sua vez, por meio de uma cena validada, evoca o Rio de Janeiro

como símbolo dessa paisagem brasileira cuja “exuberância” – representada por traços de uma

“tropicalidade” – inspira as coleções de moda que têm como mote o Brasil.

Uma cena validada de praia também pode ser observada no turismo. A cristalização

de uma imagem de praia (areias brancas, águas cristalinas, coqueiros etc.) é atualizada não só por

meio de fotos (imagens propriamente ditas), mas também linguisticamente evoca-se esse

imaginário – profundamente imbricado com a representação da paisagem nacional “típica”

brasileira. O dado abaixo (apresentado primeiramente no capítulo 2) é exemplar dessa

materialização:

(21) Três Estados [da região Sudeste] têm litoral e, portanto, ostentam ilhas e praias
paradisíacas. (BRASIL, 2009, p. 77; grifamos).

O conectivo destacado demonstra que a possibilidade de uma praia “feia” não é

sequer considerada. Assim, se há praias elas são, “logicamente”, paradisíacas. E, no caso

brasileiro, nelas encontramos as mulheres brasileiras.


187
Se o estereótipo da mulher brasileira assume tamanha importância tanto no turismo

como na moda, este último campo vale-se, paradoxalmente, da figura de mulheres que

dificilmente se pode dizer que exibem silhuetas “típicas” dessa “mulher brasileira”. A capa do

catálogo da Macy’s, reapresentada abaixo, por exemplo, permite confrontar a modelo (de short,

ao centro) com as passistas:

Já as fotos abaixo, de um desfile de Ronaldo Fraga (SPFW verão/2013), mostram

que, em meio a um cenário “tipicamente” brasileiro, modelos (também “típicas”, i.e., bastante

magras) desfilam estampas “tropicais”.

188
Trata-se, como entendemos, também aqui de uma relação de concessão: é uma

exigência do campo. É a “moda” que desfila o “Brasil”. Assim, se temos uma moda urbana

combinada com estampas tropicais, vemos também silhuetas “internacionais” aliadas às mesmas

estampas.

Diante das aproximações apresentadas aqui, é preciso, então, retomar a questão

metodológica deixada em suspenso no primeiro capítulo.

3. E agora, José?

No primeiro filme da trilogia De volta para o futuro, Marty McFly, personagem

vivido por Michael J. Fox, ao acionar a máquina do tempo de Doc Brown (Christopher Lloyd)

retorna aos anos 1950 e lá conhece sua mãe, que, antes de se casar com seu pai, apaixona-se (sem

suspeitar) pelo “futuro” filho, Marty. Mas, para que possa existir no futuro, Marty precisa fazer

com que seus pais se apaixonem. Esse enredo fez lembrar, em alguma medida, o processo de

apreensão do corpus descrito no primeiro capítulo e retomado aqui.

Decidir se o conjunto de textos reunido para esta pesquisa constitui uma formação

discursiva unifocal ou plurifocal – aspecto que ficou, até certo ponto, pendente lá atrás – não

coloca em risco, como no caso de Marty McFly acima, nem a existência nem a validade das

análises realizadas. Não é, portanto, com esse intuito que retomamos aqui essa questão. Trata-se,

antes, de problematizar e refletir sobre uma etapa do processo que é crucial para qualquer analista

e que nem sempre recebe uma solução a contento. Em última análise, a pergunta que tentamos

responder aqui é como garantir que não foi “puro delírio” (MAINGUENEAU, 2011, p. 28) a

configuração proposta “no passado”.

189
A proposta de Maingueneau (2006) para a noção de formação discursiva visa a dar

uma maior especificidade a ela, uma vez que, segundo o autor, essa noção acabou por esvaziar-se

e tornou-se uma espécie de termo “coringa” para nomear um “excedente” na constituição de

corpora: “na maioria das vezes emprega-se ‘formação discursiva’ ‘na falta de uma expressão

melhor’, nas situações em que o analista encontra um conjunto de textos que não corresponde a

uma categorização clara” (MAINGUENEAU, 2006, p. 13).

No entanto, longe de encerrar as discussões, vimos que a definição proposta pelo

autor também coloca dificuldades para o analista. Uma delas, a nosso ver, é que, aparentemente,

nem sempre é possível, de uma vez por todas, decidir pela unifocalização ou pela

plurifocalização antes das análises. O espaço constituído nesta pesquisa, formado pelo turismo e

pela moda, é um exemplo dessa dificuldade.

Não se trata, primeiramente, de um recorte “nomeável”, no sentido de não

corresponder a unidades como “o discurso racista” ou “o discurso patronal” – alguns dos casos de

formação unifocal apresentado por Maingueneau. Outro exemplo desse tipo de formação é, como

vimos, o corpus reunido por Foucault para a pesquisa publicada n’As palavras e as coisas: para o

espaço aqui delineado, não se formulou inicialmente a hipótese de um mesmo sistema de regras

responsável por gerar os discursos na moda e no turismo. Diante disso, pensamos, de partida,

numa abordagem plurifocal, mas essa não foi – e não poderia mesmo ser – uma decisão

definitiva.

Mesmo depois das análises, é preciso admitir, a situação não parece ainda

suficientemente clara para nós. As próximas linhas são, então, uma espécie de exercício

argumentativo em torno das duas possibilidades. Mais que uma tentativa de solução para o

problema imposto pela pesquisa, queremos aqui tentar contribuir, na esteira de Maingueneau,

190
para uma maior clareza da noção. Para tanto, voltaremos rapidamente aos exemplos dados pelo

autor na tentativa de compreender melhor sua proposta. Fazemos isso porque concordamos com a

tese de Maingueneau de que é preciso pensar e problematizar a maneira de construir corpora em

AD.

3.1 Formação discursiva unifocal

Refletindo acerca das unidades propostas por Maingueneau (2006) com o objetivo de

verificar se, de fato, estaríamos diante de uma plurifocalização (como pensamos inicialmente),

nos pareceu que talvez a maior dificuldade na diferenciação proposta pelo autor para os

diferentes tipos de formação discursiva residisse na noção de foco sugerida por ele. A partir de

alguns dos exemplos dados por Maingueneau (2006) de formações discursivas unifocais –

“discurso racista” e a análise contida em As palavras e as coisas, de Foucault –, podemos inferir

que esse “foco” significa, minimamente, duas coisas distintas:

i. no caso do “discurso racista”, a noção de foco parece aproximar-se mais da

ideia de um “sistema de regras único”, na medida em que uma mesma

semântica rege as diversas manifestações do racismo, seja no campo político,

no jurídico, no humorístico etc. Mas cabe aqui uma observação: talvez seja

mais fácil visualizar essa “unidade” porque o racismo é, na imensa maioria do

mundo, um crime e, como tal, tipificado legalmente, o que contribui para que

se possa identificar um conjunto de “textos” que materializam esse

posicionamento;

191
ii. no caso do trabalho de Foucault, ele discorre sobre como o “homem” funciona

como um centro de convergência para as positividades da linguagem, da vida

e do trabalho; em outras palavras, como a “invenção” do homem inscreve-se

na economia do conhecimento e dos saberes. Nesse sentido, a noção de foco

deve ser pensada como “semelhança” – é, aliás, o próprio Foucault

([1966]2007) que diz que o referido trabalho é, na verdade, uma “história de

semelhança” –, ou seja, há uma “condição de possibilidade” em comum entre

as positividades consideradas.

Com base nessas considerações, é possível dizer que a ideia de foco elaborada por

Maingueneau exige, em boa medida, uma “atitude” unificadora do analista e esta, por sua vez,

parece – pelo menos nos exemplos dados por ele – ser definida “de partida”, i.e., quando da

formulação da hipótese que reúne um dado conjunto de textos. Assim, o foco deve ser

compreendido, a nosso ver, como um princípio de convergência mais que como “um mesmo

sistema de regras”. O objetivo, nesses casos, é o de analisar o modo de funcionamento de um

dado discurso – ou de vários – partindo de um princípio comum: a semântica desse(s)

discurso(s), a maneira como um aspecto (aí compreendidos conceitos, por exemplo, o “homem”

para Foucault) unifica um conjunto aparentemente disperso de positividades. Postular “um

mesmo sistema de regras” para um conjunto de textos aí reunidos é, assim, uma das

possibilidades na unifocalização.

Assim, embora as aproximações entre turismo e moda empreendidas neste capítulo

possam sugerir uma unifocalização – a concessão torna, nesse sentido, tentadora a hipótese de

que haveria “um mesmo conjunto de regras” regendo os discursos de um e outro domínio – é

preciso ter cuidado. De fato, penso que, em certa medida, é possível defender uma

192
unifocalização, ainda que – até contrariamente, em parte, ao que foi dito acima – não tenhamos

definido a priori esse conjunto de textos aqui apresentado. Para esse cenário, o princípio

unificador seria, como entendemos, o fato de termos – e aí sim desde o início – definido como

objetivo analisar os discursos de construção/legitimação de um espaço nacional “genuíno”.

Esses discursos são postos em cena, como vimos, por meio de estruturas cuja leitura é feita a

partir de um enquadre concessivo de modo que, juntamente com um certo estereótipo do espaço

nacional, outros traços são “acrescidos”.

É preciso perguntar-se agora em que medida essa concepção da unifocalização afeta,

de um lado, a definição de plurifocalização e, de outro, os rumos desta pesquisa.

3.2 Formação discursiva plurifocal

Diferentemente da unifocalização, no caso de se optar pela definição de uma

formação discursiva plurifocal, o analista não dispõe, segundo Maingueneau (2006, p. 17), de um

princípio que force a convergência do conjunto de textos ali reunido. Ainda de acordo com o

autor, tal opção tem por objetivo “aumentar a inteligibilidade dos discursos envolvidos” e coloca

em relevo a “pergunta” do pesquisador.

Se entendermos foco como um princípio unificador dado até certo ponto

anteriormente a qualquer análise, a diferença entre a plurifocalização e a unifocalização residiria

no fato de que as análises neste cenário teriam por objetivo central mostrar, ou até mesmo

justificar, o princípio que originou o agrupamento, enquanto na plurifocalização – considerando

que em momento algum se tentou “unificar” os materiais reunidos – o analista deve “apenas”

responder as questões inicialmente propostas. Daí a afirmação de Maingueneau (2006) de que

193
nesse tipo de formação a ênfase está na pergunta feita pelo pesquisador. Nesse sentido, seria

possível dizer, então, que a própria pergunta de pesquisa na unifocalização visa a explicitar as

razões que tornaram possível uma determinada formação.

Os exemplos dados por Maingueneau (2006) de formações plurifocais parecem ir ao

encontro dessa interpretação:

i. em Gênese dos discursos ([1984]2005), o autor, ao estabelecer uma unidade

formada pelo Humanismo Devoto e pelo Jansenismo, desejava analisar o

modo de interação polêmico desses dois posicionamentos no interior de um

campo discursivo religioso;

ii. a configuração formada pelos romances de Júlio Verne e os manuais da escola

republicana, por seu turno, revela o modo de circulação de uma ideologia, um

discurso, da superioridade da Europa Ocidental que circulava no século XIX.

Assim, não se reduz a heteronímia dos conjuntos discursivos reunidos na

plurifocalização (MAINGUENEAU, 2006, p. 18) justamente porque o conjunto em si não é o

objeto/objetivo, mas sim aquilo que a sua interação permite colocar em evidência.

Com isso em mente, é possível sustentar a plurifocalização para o corpus aqui

reunido? Ou, de outro modo, quais os argumentos para defender uma configuração plurifocal

para o conjunto de textos aqui reunidos?

Por mais que se possa dizer, como fizemos acima, que o foco estabelecido para o

agrupamento de textos analisados aqui tenha sido assumi-los enquanto materialização de

discursos de construção/legitimação de um espaço nacional “genuíno”, parece-nos mais

proveitoso insistir na plurifocalização. E isso em decorrência de uma série de razões:

194
1) a reunião de textos provenientes do turismo e da moda num mesmo espaço

tinha por objetivo colocar em evidência o modo de circulação de um certo

estereótipo do espaço nacional e que tem, como repetimos por diversas vezes,

nesses domínios um “lugar” privilegiado;

2) após o abandono da hipótese de que um “discurso ecológico” seria a forma de

validação para um espaço nacional “típico” (o que nos levaria a uma

unifocalização indubitável), passamos a considerar que haveria um estereótipo

do Brasil no que diz respeito a sua paisagem “típica” e que interessaria

descrever as diversas formas de atualização de tal estereótipo nos dias de hoje.

Assim, não é propriamente diante de um “princípio de convergência” entre

esses dois domínios que estaríamos;

3) a heteronímia do conjunto é integralmente mantida, mesmo diante daquilo que

os aproxima; turismo e moda são mantidos como domínios distintos, com

modos de funcionamento distintos (a questão autoral é um exemplo dessa

distância), com públicos e gêneros distintos etc.;

4) além disso, olhar para as atualizações do “mito” que remete ao “verdadeiro”

espaço nacional, permitiu compreender melhor os discursos de

construção/legitimação desse espaço.

As análises mostraram que esse estereótipo é linearizado por meio de estruturas

específicas que têm por característica principal deslocar uma imagem cristalizada para aspectos,

em tese, novos acerca do Brasil (não necessariamente ligados ao seu espaço). Isso mostra o quão

importante é, no caso brasileiro, a paisagem para a definição de uma certa identidade nacional:

trata-se de algo do qual não se pode abrir mão.

195
4. Considerações finais

As aproximações feitas entre os domínios colocados em relação para que se pudesse

descrever o modo de circulação de um certo estereótipo do espaço nacional mostram que tanto no

turismo como na moda há uma certa imagem cristalizada do Brasil no que tange ao seu espaço

que é atualizada de diversas maneiras e posta a circular “ao lado” de outros elementos,

contribuindo para uma imagem “plural” do país.

As discussões sobre a “pluralidade” que o Brasil representa, ou deveria representar,

ganharam recentemente novos capítulos justamente por uma questão relacionada à moda. Trata-

se do debate desencadeado pela aprovação de projetos de moda (desfiles, coleções) junto ao

Ministério da Cultura para a captação de recursos via Lei Rouanet. Em síntese, a polêmica

instaurou-se em torno da equivalência estabelecida entre moda e cultura. A própria ministra da

cultura, Marta Suplicy, em artigo publicado na Folha de S.Paulo (Opinião 29 ago. 2013),

defende, já no título – Moda é cultura – essa relação de identidade. Ao longo de seu texto,

Suplicy insiste na importância da moda para a construção da identidade de um país e também sua

relevância do ponto de vista econômico. Mas o que interessa mais de perto aqui é a seguinte

passagem:

Como ministra, chamei para mim a decisão, pela simbologia de quebrar um paradigma
na afirmação que moda é cultura; por entender a importância da repercussão de um
brasileiro estar nesse desfile (cobertura midiática), abertura e interesse pela nossa
indústria da moda e para a construção de uma imagem de um Brasil criativo, moderno e
atraente. Queremos um Brasil que transcenda o país do Carnaval, sol e biquíni.
(grifamos)

Dois são os aspectos que merecem comentários. O primeiro deles é que também aqui

verifica-se a ideia de deslocamento de elementos fortemente associados ao Brasil (Carnaval, sol e

biquíni), ainda que fique implícita a outra “ponta” desse processo. O segundo é que, a partir das

196
análises mostradas aqui, a moda é um campo em que precisamente Carnaval, sol e biquíni –

atrelados à representação de um espaço nacional “típico” – são elementos altamente valorizados

como representativos do país.

As relações presentes na sintaxe dos debates em torno de uma identidade para a moda

brasileira – que aqui nos serviram para analisar o modo de funcionamento dos discursos acerca da

construção/legitimação de um espaço nacional “genuíno” – encontram-se altamente interligadas.

A negação incide sobre certos elementos da cultura brasileira que fariam da moda que os

utilizasse “folclórica”. Além disso, a moda nacional não deveria reduzir-se a isso, pois o Brasil é

um país plural. Assim, as relações de concessão evidenciam uma questão autoral que tem se

apresentado fortemente no campo. No entanto, as representações do Brasil revelam ainda o uso

de um “cenário” nacional “exemplar” cuja síntese é a “tropicalidade”. Se o lema é “nada de

papagaiada”145, é preciso reconhecer que, na verdade, não é à ave-símbolo do tropicalismo que

ele se aplica, mas ao folclore e ao handmade nacionais.

145
MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 128.
197
198
Conclusões

199
Tudo não pode ser dito. (Milner)

Embora tenha iniciado de maneira um tanto incomum, i.e., sem uma introdução, esta

pesquisa encaminha-se para o seu fim de maneira mais típica – influência do corpus, talvez. Mas

a sensação é ainda de muito a dizer, seja porque o corpus reunido a partir da configuração aqui

proposta pode, ele mesmo, ser explorado por outros vieses, seja porque a partir dele surgiram

outras possibilidades. Com tanto ainda por dizer, organizamos esta parte final em dois momentos

distintos, separados por tópicos: o que foi e o que poderá vir a ser.

1. O que foi...

Este trabalho começou relatando algumas das “angústias” surgidas ainda no início da

etapa de levantamento do corpus e que envolviam não apenas “o que” e “onde” procurar mas,

principalmente, “como” apreender o conjunto que se ia reunindo. Não se trata de mera questão

terminológica — definir qual unidade, no caso —; a construção de corpora é, na verdade, um

problema que nos leva aos fundamentos da AD, e “é ao nível dos fundamentos que tudo se passa”

(MAINGUENEAU, 1990, p. 65).

200
Boutet et al observam a esse respeito que

l’analyse du discours s’est construite, en France, dans un rapport étroit au corpus, dont
elle s’est attachée à formuler les conditions méthodologiques de validité. Dans la mesure
où le corpus renvoyait à des repérages extralinguistiques préalables, qui tendaient à faire
des locuteurs les purs représentants de rapports de places ou de conditions de production,
il était généralement constitué à partir de discours préexistants et ne posait guère qu’à la
marge des problèmes de choix et de découpage. 146 (BOUTET et al, 1995).

Para Maingueneau (1976, p. 18), esse momento inicial da teoria — em que as

escolhas colocam poucos problemas ao pesquisador — é necessário justamente para que se possa

“trabalhar com a máxima eficácia” e, consequentemente, fazer com que a teoria deslanche. No

entanto, as escolhas iniciais, alerta o autor, não significam “uma exclusão dos outros tipos de

discursos, mas uma escolha ‘estratégica’ que deve permitir um alargamento progressivo dos

tipos de discurso tomados em consideração” (grifamos). Isso significa, como argumenta

Possenti (2004a, p. 30), optar por dados “cruciais”, aqueles que colocam “à prova uma teoria”:

Não indo ao que chamo aqui de dados cruciais, a AD se recusa ao teste. Ela permanece
no material estrategicamente escolhido em sua origem, para ter segurança do que diz. O
resultado é que muitas análises acabam por redizer o dito, confirmando uma das
asserções de base da teoria, segundo a qual o enunciado é raro, embora sejam infinitas
suas enunciações. (POSSENTI, 2004a, p. 31).

Se os dados analisados aqui enquadram-se no que Possenti chamou de “cruciais” não

saberemos dizer, mas podemos afirmar que em momento algum se procurou permanecer numa

zona de conforto teórica, redizendo o já dito.

Assim, chegado o momento de olhar para trás, é possível sumariar as discussões de

cunho teórico-metodológico travadas aqui: de um lado, o modo de apreensão do corpus reunido

e, de outro, a abordagem dos estereótipos.

146
A análise do discurso se construiu, na França, em uma estreita relação com o corpus, sobre o qual ela se dedicou a
formular as condições metodológicas de validade. Como o corpus remetia a coordenadas extralinguísticas prévias —
que tendiam a tornar os locutores os representantes puros das relações de lugares ou das condições de produção —
ele era geralmente constituído a partir de discursos preexistentes e que raramente colocavam, e como que à margem,
problemas de escolha e de recorte. (tradução nossa).
201
Refletindo sobre uma questão que, reiteramos, apresentava um componente “óbvio”,

desejávamos inicialmente — além de analisar o modo de circulação do que pensávamos ser um

determinado discurso acerca do espaço nacional brasileiro — verificar em que medida era

possível operar com uma determinada forma de construção de corpora tal como proposta por

Maingueneau (2006). E isso por dois motivos centrais. Em primeiro lugar porque a proposta do

autor debruçava-se sobre um aspecto relevante em AD, como dissemos, que é a construção de

corpora, uma etapa fundamental para a pesquisa. Em segundo lugar, e especialmente, porque o

conceito de formação discursiva proposto por Maingueneau (2006) objetivava dar uma

especificidade maior à noção que, conforme aponta o autor — e com o que concordamos —,

havia perdido lugar na teoria em decorrência de uma “definição confusa”. No entanto, as

tentativas de operacionalizar essa nova proposta vinham acompanhadas sempre de uma série de

questionamentos, na medida em que, ao confrontar o novo conceito com os dados empíricos,

surgiam dúvidas em relação à focalização.

Porém, o mais importante da proposta de Maingueneau (2006) acerca das unidades

com as quais operam os analistas na construção de corpora é, a nosso ver, a reflexão

empreendida sobre as fronteiras para tal tarefa. De fato, o corpus de uma pesquisa nem sempre é

uma questão problemática, mas quando não se trata de uma delimitação “dada” previamente —

por exemplo, a análise de um romance ou das obras de um artista, de uma escola etc. — é

preciso, como foi o caso neste trabalho, justificar o recorte feito, mostrar, como fala Maingueneau

(2011), que não se trata de um “delírio”.

Para esta pesquisa, havia, em linhas gerais, as seguintes possibilidades: i) assumir que

há um princípio unificador entre todos os espaços analisados; ii) reconhecer que, embora pontos

de contato existam entre esses espaços, não há um princípio que force a convergência entre os

202
conjuntos reunidos. Ambas as possibilidades parecem legítimas diante do corpus aqui reunido. A

opção pela segunda abordagem (i.e., pela plurifocalização) foi, nesse sentido, em razão do que

acreditamos ser um aspecto crucial na distinção proposta por Maingueneau (2006), a saber: a

pergunta do pesquisador.

De fato, a pergunta é o pontapé inicial da pesquisa e, por isso, defendemos que a

unifocalização tem como uma de suas principais características o fato de que, desde o início,

assume-se — ainda que como hipótese — um princípio de convergência que é, em última análise,

o próprio objeto da investigação. Embora a hipótese inicial fosse nesse sentido, logo percebemos

que ela precisaria ser reformulada, bem como o objetivo.

Com a reformulação, o interesse passou a ser em torno da atualização de um certo

estereótipo do Brasil em dois espaços distintos. Ao compararmos com a pesquisa de

Maingueneau (2011), em que se investigou a circulação de uma ideologia da superioridade

europeia em dois suportes distintos (manuais escolares e romances), é possível vislumbrar uma

proximidade, uma vez que aqui buscamos analisar as retomadas de um estereótipo nacional em

dois espaços (turismo e moda). O foco parece, portanto, estar mais diretamente ligado ao

“analista” que ao “discurso”: é como o pesquisador define sua pergunta que acaba por determinar,

em última análise, a focalização da formação discursiva.

Por isso parece mais adequado considerar o conjunto aqui reunido como uma

formação discursiva plurifocal, uma vez que — dentre outras razões já apresentadas — o objetivo

central da pesquisa era observar como, no turismo e na moda, circulava um certo estereótipo do

espaço nacional. Ainda que tenhamos feito aproximações entre um e outro, elas decorrem mais

do modo de atualização de tal estereótipo do que, propriamente, de uma tentativa de unificação

desses dois espaços.

203
O trabalho sobre a noção de estereótipo é, aliás, outro aspecto teórico-metodológico

debatido especialmente nos capítulos de análises. A esse respeito, Amossy e Pierrot (2005) fazem

um levantamento bastante detalhado da noção tanto de um ponto de vista histórico quanto em

termos de áreas em que a noção desperta algum interesse. Para as autoras, os estereótipos

representam um terreno particularmente profícuo para a AD, podendo ser estudados a partir da

noção de pré-construído. Nesse sentido, para as análises do corpus mobilizamos inicialmente o

conceito, a fim de testar a sua produtividade.

É, contudo, Paveau (2007, p. 317) que, traçando um breve histórico da noção de pré-

construído na Análise do Discurso francesa, observa que

essa questão dos discursos anteriores se enfraqueceu um pouco nos trabalhos posteriores
da análise do discurso, ou porque as noções de pré-constructo e de interdiscurso se
simplificaram e congelaram, como mostram as entradas do Dicionário de análise do
discurso (Charaudeau, Maingueneau, 2002), ou porque noções vindas de outras
orientações constituíram respostas mais facilmente mobilizáveis, como a competência e
suas declinações (linguística, cultural, enciclopédica, interacional etc.), ou ainda porque
certas etiquetas, como “saberes compartilhados”, “estereótipos” ou “senso comum” têm
contribuído para resolver o problema, nomeando-o . Mas em todos os casos, parece ter-
se perdido o que fazia a riqueza e a exatidão da proposta de origem: o fato de que o pré-
constructo, como aliás o interdiscurso, não depende da materialidade discursiva, e por
isso não pode ser identificado como um conjunto de discursos concretamente proferidos,
embora sendo linguisticamente passíveis de análise.

As “etiquetas” de que fala Paveau, dentre as quais encontramos a de “estereótipos”,

de fato podem contribuir para um apagamento ou um esvaziamento de conceitos caros à escola

francesa, como o de pré-construído. Mas se, por um lado, os pré-construídos constituem um

aparato relevante para o estudo dos estereótipos, por outro, as análises aqui apresentadas mostram

que não se pode resumir a eles o estudo da estereotipia. Isso significa, então, que não pode haver,

para o estudo dos estereótipos, uma relação direta — ou exclusiva — com os pré-construídos.

O estereótipo de um espaço nacional brasileiro está relacionado, como se viu, a pré-

construídos, simulacros e cenas validadas. Nesse sentido, a proposta de Amossy e Pierrot (2005)

204
de se assumir, no quadro da Análise do Discurso, os estereótipos por meio da noção de pré-

construído não daria conta das análises aqui empreendidas. A distinção dos modos de inscrição do

estereótipo no fio discursivo possibilitou ainda compreender melhor a bivalência (AMOSSY &

PIERROT, 2005) que a noção de estereótipo condensa. Defendemos aqui que o estereótipo

formado via pré-construído relaciona-se à concepção “positiva” dos estereótipos, algo até certo

ponto “necessário” e que, em termos de funcionamento, quase passa “despercebido”, como se

procurou mostrar nas análises do turismo; por outro lado, o estereótipo formado por meio de

simulacro parece ser responsável pelas conceituações negativas atribuídas à noção, assumido

como algo excessivamente redutor.

De uma maneira ou de outra, o que as análises apontam é que tomar uma categoria

como a de estereótipos, concebendo-a essencialmente como uma “cristalização”, tal como sugere

Lippmann ([1922]2008), não exime o analista de verificar de que modo essa cristalização é posta

a funcionar no discurso.

Mas, se este trabalho dedicou-se à análise de um estereótipo do Brasil no que toca a

sua paisagem “típica”, os seus caminhos nos levam — para futuras pesquisas — a um quadro

mais amplo e que envolve, de maneira genérica, a questão de uma identidade nacional que pode

ser abrigada sob a denominação de “brasilidade”147. Isso porque o espaço nacional é, no caso

brasileiro, um aspecto de grande relevância para a imagem do país. O futebol, que abandonamos

para esta pesquisa, mas que é, indiscutivelmente, um elemento fortemente associado ao Brasil, dá

mais um exemplo da importância que a paisagem “típica” assume no caso brasileiro: a bola da

Copa de 2014148 tem seu desenho inspirado nas curvas do Rio Amazonas.

147
O termo abarca um conjunto de ideias bastante variadas a respeito do Brasil, mas uma característica fundamental
é que essas ideias são sempre “positivas”, i.e., referem-se sempre a características valorizadas acerca do país.
148
A esse respeito, vide, por exemplo, matéria disponível em: <http://epocanegocios.globo.com/Essa-E-
Nossa/noticia/2013/12/adidas-apresenta-brazuca-bola-oficial-da-copa-do-mundo-2014.html>.
205
“Brazuca” – bola da Copa do Mundo 2014

Olhando para a construção/legitimação de um espaço nacional “típico”, foi possível

descrever um modo de circulação de um certo estereótipo nacional que remete, em última análise, a

uma ideia de “brasilidade”, i.e., daquilo que “genuinamente” representa o Brasil — e aqui não mais

apenas sua paisagem típica. Essa opção implica também algumas outras considerações, dentre elas

a de que as análises de diversos espaços, para além do turismo e a moda, apresentados aqui, devem

mostrar que há traços valorizados assumidos como representativos de uma certa “brasilidade”.

As perspectivas para futuros trabalhos serão abordadas no tópico seguinte, a partir de

alguns exemplos que — embora não tenham a pretensão de ser detalhados do ponto de vista de

análise — podem contribuir para as discussões em torno da identidade nacional.

2. O que poderá vir a ser...

A temática identitária ganhou nas últimas décadas grande notoriedade e os estudos a

esse respeito cresceram vertiginosamente. Bauman (2005, p. 23), por exemplo, afirma que ela se

tornou “o papo do momento”. Se esse interesse crescente pode, de um lado, aprofundar os

trabalhos à medida que se desenvolvem, pode também, por outro lado, dissipar o tema por tantas

áreas que ele perde qualquer especificidade e corre-se o risco, neste último caso, de banalizá-lo.

No caso da AD, o interesse não é na identidade em si, mas, antes, no funcionamento dos

discursos, no seu modo de circulação, na sua semântica etc.


206
Assim sendo, a identidade não é propriamente o tema desta pesquisa. Ela entra em

cena em razão da vinculação que o estereótipo do Brasil assume com os discursos de

construção/legitimação de um espaço nacional “genuíno” — este um “traço” considerado

constitutivo das identidades nacionais. A relevância da paisagem no caso brasileiro é, como

procuramos mostrar, bastante marcante e atravessa uma série de lugares, dos quais analisamos

com mais vagar a moda e o turismo. Mas, conforme caminhavam as análises, surgiam também

outros lugares que, por diversas razões, não receberam um tratamento mais profundo ainda.

Exemplo disso é a gastronomia.

O turismo, além de ter sido um lugar que desde o início supúnhamos produtivo para a

circulação de um estereótipo do espaço nacional, contribuiu também indiretamente, i.e.,

apontando outros espaços em que essa circulação ocorreria. Foi assim com a moda, objeto de um

de nossos capítulos, e com a gastronomia, que abordaremos em linhas gerais aqui como

perspectiva para futuros trabalhos.

O título de um livro de culinária — Brasil: gastronomia, cultura e turismo149 —,

despertou interesse pela relação estabelecida entre o turismo, espaço de onde vieram os primeiros

materiais do corpus, e a gastronomia. Os pratos foram selecionados de modo a retratar as cinco

regiões brasileiras, segundo aponta Eva Steinbruch. Para cada região, um breve texto

apresentando os Estados que as integram e, na sequência, as receitas. As ilustrações do livro são

fotos dos pratos, naturalmente, e de paisagens representativas dos lugares (foto de rio e floresta

para representar a região Norte e vista panorâmica do Rio de Janeiro com a imagem do Cristo

Redentor para a região Sudeste são alguns exemplos). O que poderia parecer uma característica

peculiar de um livro que estabelece um paralelo entre turismo e gastronomia é, na verdade, até

149
STEINBRUCH, Eva Ribenboim. Brasil: gastronomia, cultura e turismo. São Paulo: Bei Comunicação, 2010.
207
comum nos (muitos) livros sobre culinária “tipicamente” brasileira: não são poucos os que se

valem de imagens de paisagens nacionais — seja como “pano de fundo” para apresentar o prato,

seja como referência da origem da comida ou dos ingredientes.

As ilustrações do livro Sabor do Brasil150 também mostram a convergência entre os

temas das paisagens e da gastronomia; há muitas fotos de lugares e do povo das regiões de onde

vêm os pratos selecionados. A página que segue é significativa dessa relação; se observarmos a

primeira foto, o foco está na paisagem ao fundo e a comida, embora esteja em primeiro plano,

está desfocada

150
GRANATO, Alice, PAGANO, Sergio. Sabor do Brasil. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.
208
Esse mesmo livro traz ainda em sua apresentação — de autoria de Laurentino Gomes

— uma referência explícita à questão paisagística do Brasil 151, colocando em cena mais uma vez

o mito da exuberância de nossas paisagens:

Neste Sabor do Brasil o país que se desvenda ao leitor é o território exuberante e


divertido que ao longo de nossa história sempre fascinou os viajantes destas terras
tropicais. (p. 10; grifamos).

A exuberância da natureza é, por seu turno, pródiga em ingredientes e eles são

fundamentais na definição de uma cozinha “genuinamente” nacional152. A incorporação desses

ingredientes à gastronomia brasileira é, de acordo com a jornalista e crítica de gastronomia,

Alexandra Forbes, um “redescobrimento do Brasil”:

Mais recentemente, vimos o redescobrimento do Brasil. A carne-seca, a mandioquinha,


a jabuticaba, a cachaça, relegadas a segundo plano enquanto durou o encanto por tudo
que era estrangeiro, voltaram à moda. Constatou-se o óbvio: nossos pratos nativos não
ficavam nada a dever a toda aquela comida vinda de fora. Chefs de renome [...] puseram
os frutos da terra de volta onde sempre mereceram estar – nas melhores mesas –,
priorizando ingredientes esquecidos, como o quiabo, a alfavaca, a goiaba, a tapioca.
Assim, quinhentos anos mais tarde, voltamos às nossas origens.153 (p. 13, grifamos).

Se as paisagens encantaram os descobridores de outrora, para os chefs desbravadores

são os ingredientes “naturais” que se mostram particularmente convidativos. Viajar pelo Brasil e

conhecer sua gastronomia é, como grande parte desses livros esmera-se em defender, conhecer

também a sua cultura. À semelhança dos debates recentes no campo da moda, gastronomia

também é cultura, ao menos como defendem os chefs e críticos.

Também em Viagem gastronômica através do Brasil154 encontramos a referência à

cultura por trás das receitas:

151
Aqui também mais uma evidência da importância que uma paisagem nacional “típica” assume no caso brasileiro.
152
Não há nada de óbvio nesse tipo de afirmação: uma cozinha “genuinamente” francesa é marcada principalmente
pelas técnicas utilizadas, mais que pelos ingredientes (o que não significa, por outro lado, que não haja ingredientes
mais ou menos recorrentes ou característicos do país).
153
In: LEITE, Morena. Brasil: ritmos e receitas. São Paulo: Gaia, Editora Boccato, 2006.
154
FERNANDES, Caloca. Viagem gastronômica através do Brasil. São Paulo: Editora Senac/Editora Estúdio
Sonia Bobatto, 2012.
209
A mesa do brasileiro é uma obra de arte: uma gastronomia ao mesmo tempo simples e
exótica. Uma explosão de cores, sabores, história e temperos, no temperamento de uma
nação miscigenada. Se da mistura de origens resultou um país de rica cultura, essa
riqueza estendeu-se também à mesa, como uma toalha feita por rendeira, tecida com
receitas tradicionais adicionadas à nossa característica primeira: a criatividade.

Os pratos típicos da cozinha brasileira “de raiz” representam, ou devem representar,

uma mistura cultural que faz do povo brasileiro uma nação miscigenada. Se a moda tem na figura

da mulher brasileira um elemento altamente significativo para a representação do Brasil, na

gastronomia não é propriamente essa mulher que é evocada como uma espécie de “fiadora”, mas

“o povo” como um todo.

A referência à mistura do europeu, do índio e do negro combina os dois aspectos

centrais numa cozinha: as técnicas e os ingredientes. “Três povos, uma só cozinha” anuncia a

crítica Alexandra Forbes155:

O que é a nossa comida senão resultado dessa mesma mistura de raças? As primeiras
portuguesas trouxeram o gosto pelo azeite de oliva, o arroz e os tabuleiros de doces,
bolos e manjares, e com o tempo foram incorporando nas receitas os frutos da terra de
adoção: coco, milho e castanha-de-caju... Sem a escrava negra não teríamos a feijoada, o
caruru e tantos pratos perfumados com o azeite de dendê, de palmeira importada da
África. E as índias, elas sim as primeiras cozinheiras desse Brasil, ensinaram às outras a
pegar peixe de rio, a bater farinha de mandioca no pilão, a tirar da mata ervas, frutas,
pimentas e sementes. (grifamos)

As brevíssimas considerações apresentadas aqui sobre a gastronomia mostram que há

ainda o que escavar. Da mesma maneira que aí também encontramos dados que colocam em cena

“um verdadeiro Brasil” — seja remetendo às paisagens, seja por meio de elementos outros —, há

ainda diversos outros espaços que podem ser explorados na análise da construção discursiva

desse “Brasil”: o futebol, a música etc.

O que fez com que deixássemos de lado, por ora, esses outros discursos deve-se, em

boa medida, ao fato de não haver uma relação mais direta com a constituição de um espaço

nacional — o que não é definitivo, mas as análises precisariam ser mais aprofundadas. No caso
155
In: LEITE, Morena. Brasil: ritmos e receitas. São Paulo: Gaia, Editora Boccato, 2006.
210
do futebol, por exemplo, inicialmente a questão dos estádios da Copa 2014 parecia promover esse

laço, mas esse aspecto desapareceu da mídia. Por outro lado, é possível identificar uma discussão

que há alguns anos ganha espaço nas mesas e colunas esportivas: o que representaria um

“verdadeiro” futebol brasileiro. A criatividade, a irreverência, o toque de bola, enfim, um

conjunto de elementos que costumam figurar juntamente com a expressão futebol-arte.

Ese conjunto de discursos acerca de um “verdadeiro” Brasil pode ser abarcado sob o

termo generalista de brasilidade e desdobra-se por uma infinidade de espaços e campos que, ao

longo desta pesquisa, insistiam em aparecer em meio aos dados reunidos no corpus aqui

construído. Não foi possível aqui entrar por todas as portas que se abriram, mas, por outro lado,

elas permanecem abertas e esperamos saber explorar as possibilidades surgidas.

De fato, se “tudo não pode ser dito”, não devemos nos angustiar, pois é preciso

colocar um ponto final. Mas, pensando melhor, com tanto ainda por dizer, é melhor que sejam

reticências...

211
212
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220
Anexos

221
Revista Próxima Viagem
Editora Peixes
Periodicidade: mensal

Edição Capa Total de matérias Matérias Matérias destinos


(além de seções com destinos internacionais
curiosidades, dados de nacionais
viagens, dicas de
destinos ...)
92 (06/2007) 115 refúgios nas 2 2
montanhas (SP, RJ, (capa e Espírito (estações de esqui
4
MG, RS) Santo) América do Sul e
Hollywood)
93 (07/2007) Chile e Argentina 5 2 2
(a 5ª é uma eleição (Monte Verde e (Lagos Andinos e
das maravilhas do Santa Catarina) Lagos Alpinos)
mundo moderno)
94 (08/2007) Índia 2 3
(Diamantina e (Argentina, Índia,
5
lugares indianos Alemanha)
no Brasil)
95 (09/2007) Espanha 4 1 1
(crise aérea, hotéis de (Recife – praia) (Andaluzia)
grifes)
96 (10/2007) Cidades que os 1 3
brasileiros amam (Linha Verde, (Toscana, Capa,
4
(fora do Brasil) norte de Nova Inglaterra)
Salvador)
97 (11/2007) Santa Catarina 2 2
(Santa Catarina, (França, Alemanha)
4
resorts no
Nordeste)
98 (12/2007) Pipa 3 2
(Pipa, Rio- (Nova York,
5
Santos, Cruzeiro Santiago-Mendoza)
São Francisco)
99 (01/2008) Bahia 1 4
(sul da Bahia) (Atacama, França,
5
Dubai, Neve no
hemisfério norte)
100 100 programas no 1
1
(02/2008) Brasil
101 Londres 2 2
(03/2008) (Serra da (Londres,
4
Bocaina, resorts Colômbia)
em lagos)
102 Barcelona 1 2
4
(04/2008)
103 Miami 1 2
3
(05/2008)

222
104 Europa 1 2
4
(06/2008)
105 Pequim 2 3
5
(07/2008)
106 Chile/Peru/Nova 3
4
(08/2008) Zelândia
107 49 viagens 1
(09/2008)

223
Revista Viagem e Turismo
Editora Abril
Periodicidade: mensal

Edição Capa Total de Matérias destinos Matérias destinos


matérias nacionais internacionais
135 Litoral norte de SP 3 3
6
(01/2007)
136 Caribe 3 4
7
(02/2007)
137 Buenos Aires 1 5
8
(03/2007)
138 Sul da Bahia 2 3
7
(04/2007)
139 Orlando 2 3
8
(05/2007)
140 Esqui 2 4
6
(06/2007)
141 Portugal 3 3
6
(07/2007)
142 Espanha 2 5
7
(08/2007)
143 Taiti 1 3
7
(09/2007)
144 Pousadas de praia 2 2
6
(10/2007) no Brasil
145 Santa Catarina 3 2
7
(11/2007)
146 Verão do dólar 3 1
6
(12/2007)
147 Rio-Santos 2 2
6
(01/2008)
148 Fernando de 3 1
4
(02/2008) Noronha
149 Itália 2 3
5
(03/2008)
150 Nova York 1 4
5
(04/2008)
151 Bariloche 1 5
7
(05/2008)
152 Relax na serra Parte da capa 5
5
(06/2008)
153 Europa 0 7
7
(07/2008)
154 São Paulo e 2 4
6
(08/2008) Londres
155 Argentina e Chile 1 4
5
(09/2008)
156 Disney 1 3
6
(10/2008)

224
157 Melhores praias do As praias da capa 2
4
(11/2008) mundo
158 Resorts e pousadas 3 1
6
(12/2008) Brasil

225

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