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CAMPINAS,
2014
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
CAMPINAS,
2014
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RESUMO
A partir do modo de circulação da cristalização do que chamamos aqui de espaço nacional, este trabalho
debruçou-se sobre o estudo dos estereótipos, assumidos não como algo “engessante” ou redutor, mas
como uma regularização, efeito de retomadas, paráfrases e repetições que levam ao “esquecimento” da
origem enunciativa. Entendemos o espaço nacional como uma paisagem “típica” associada a um país, ou,
em outros termos, aquilo que é tomado como sendo a melhor representação do espaço físico desse país.
No caso brasileiro, historicamente, a imagem construída é a do próprio “paraíso terreal” e ela tem
particular importância na medida em que, como aponta Chauí (2006), funciona como um “mito fundador”,
uma narrativa que não cessa de ser retomada e que impõe um vínculo interno com um passado de origem
que, paradoxalmente, nunca cessa de existir, mantendo-se sempre perene. O corpus reunido para esta
pesquisa – proveniente do turismo e da moda – atesta essa perenidade. Para analisá-lo, mobilizamos, de
início, o conceito de pré-construído que, conforme sugerem Amossy & Pierrot (2005), é um aporte teórico
importante – e talvez insuficientemente explorado – para o estudo dos estereótipos do interior do quadro
teórico-metodológico da Análise do Discurso (AD). Embora tenha, de fato, mostrado ser um conceito
relevante para a apreensão do modo de funcionamento dos estereótipos, os dados provam também que não
pode haver uma relação direta – ou exclusiva – entre estereótipos e pré-construídos. Para além destes, os
estereótipos relacionam-se, como mostram as análises do corpus, a simulacros e cenas validadas
(Maingueneau, 2002). Do ponto de vista metodológico, a apreensão do corpus reunido suscitou um
conjunto de reflexões em torno da proposta de Maingueneau (2006) para a noção de formação discursiva
enquanto uma unidade não tópica de análise.
Palavras-chave: Estereótipo; Pré-construído; Simulacro; Cena validada; Unidade não tópica de análise
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ABSTRACT
From the circulation mode of crystallization of what we here call a national space, this work focused on
the study of stereotypes, undertaken not as something “limiting” or as a reducer, but as a regularization,
due to retakes, paraphrases and repetitions that lead to “oblivion” of the original enunciation. We
understand the national space as a “typical” landscape associated with a country, or, in other terms, that
which is taken as being the best representation of the physical space of this country. In the Brazilian case,
historically, the image is built from the “earthly paradise” and it is of particular importance to the extent
that, as observed by Chauí (2006), works as a “founding myth”, a narrative that does not cease to be
retaken and imposing an internal link with a past of origin which, paradoxically, never ceases to exist,
remaining perennial. The corpus assembled for this study – from tourism and fashion – testifies this
perpetuity. To analyze it, we mobilized, at first, the concept of pre-construed, that, as suggested by
Amossy & Pierrot (2005), is an important theoretical contribution – and perhaps insufficiently explored –
for the study of stereotypes within the theoretical methodological framework of Discourse Analysis (DA).
Although, in fact, shown to be a relevant concept for the apprehension of the mode of operation of the
stereotypes, the data prove also that there cannot be a direct – or exclusive – relationship between
stereotypes and the pre-construed. In addition to these, stereotypes relate, as shown by the analysis of the
corpus, the simulacra and validated scenes (Maingueneau, 2002). From the methodological point of view,
the gathering of the corpus brought about a set of reflections around the proposition of Maingueneau
(2006) for the notion of the discursive formation as a non topic analysis unit.
Keywords: Stereotype; Pre construed; Simulacra; Validated Scene; Non topic analysis unit
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SUMÁRIO
CAPÍTULO 1 – (Des)Caminhos..................................................................................................................... 01
1. Palavras iniciais..................................................................................................................................... 02
2. Entre pedras... ....................................................................................................................................... 03
2.1 A noção de fórmula: reformulações para a pesquisa?........................................................................ 08
3. O corpus: uma questão de teoria e de método....................................................................................... 17
3.1 Unidades tópicas e não tópicas de análise......................................................................................... 19
3.1.1 As unidades não tópicas: delimitações...................................................................................... 23
3.2 “Ajuntando” as pedras... ................................................................................................................... 40
xi
CAPÍTULO 5 – Costurando paisagens: diálogos entre moda e turismo........................................................ 173
1. Palavras iniciais................................................................................................................................... 174
2. Turismo e moda: aproximações........................................................................................................... 175
3. E agora, José?...................................................................................................................................... 189
3.1 Formação discursiva unifocal.......................................................................................................... 191
3.2 Formação discursiva plurifocal....................................................................................................... 193
4. Considerações finais............................................................................................................................ 196
CONCLUSÕES.................................................................................................................................................199
1. O que foi... .......................................................................................................................................... 200
2. O que poderá vir a ser... ...................................................................................................................... 206
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................................................................213
ANEXOS........................................................................................................................................................221
xii
À Daniela e ao Ricardo,
Que fazem tudo valer a pena...
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AGRADECIMENTOS
A Deus, em primeiro lugar. Companheiro de todas as horas e que me faz dizer “posso!”.
Aos meus pais, Ana Lúcia e Raimundo, pelo apoio e amor incondicional que me devotam e que tento
replicar.
Ao meu irmão, Roberto, que me “abrigou” no seu apartamento durante o período em que cursei as
disciplinas do doutorado e que, depois, acompanhou de longe – embora parecesse sempre perto –, dando
força e “assistência técnica” nos momentos necessários.
À vovó Laura, que mesmo diante das provações que a vida lhe apresentou ao longo desses anos,
permaneceu forte – muitas vezes bem mais que eu – e, em suas orações, inclui sempre a mim e minha
família.
Aos meus sogros, Ari e Adélia, e ao meu cunhado, Rodrigo, pelo interesse e apoio proporcionados.
À madrinha Noyde e à vó Lia, exemplos de força, superação e destemor que carrego comigo.
À Janice, pelo cuidado e amor com a Daniela nos momentos de minha ausência.
Aos amigos, que por serem tantos não caberão nominalmente aqui, mas que sabem a importância que têm,
tanto nas conversas sérias e mesmo teóricas quanto nas horas de distração.
xv
À Juliana Sabatin, por me ceder gentilmente seus dados para o trabalho de qualificação de área e por ser
mais que amiga em todos os momentos.
À Sonia Cyrino, cuja leitura criteriosa dá a certeza de que a aprovação é fruto de um trabalho bem feito.
As aulas de sintaxe foram uma experiência fascinante e, não fosse a vocação para a AD, teriam certamente
feito mais uma sintaticista.
À Fernanda e à Suzy que, na qualificação, fizeram uma leitura fina do trabalho, apontando com precisão
os pontos a serem aprofundados, as possibilidades e as potencialidades.
Aos membros da banca, Fernanda, Suzy, mais uma vez, e também Sonia, Júlia, Carolina, Eduardo e Jorge
– escolhidos cuidadosamente – por terem aceitado o convite e, certamente, poderem contribuir com suas
leituras.
Aos colegas do FEsTA (Fórmulas e Estereótipos: Teoria e Análise), pelas trocas constantes, nos encontros
presenciais e no grupo de e-mails.
Aos colegas da UFMS, pela torcida e, especialmente, ao Geraldo – amigo e colega de sala que com suas
palavras amigas e sua família encantadora (Edvânia e Emanuel) tornam a jornada mais aprazível – e ao
Daniel, cuja “ínfima”, como ele insiste, contribuição veio em momento decisivo.
Aos meus alunos e alunas, que me fazem querer voltar logo para a sala de aula.
xvi
AGRADECIMENTO ESPECIAL
Ao Sírio.
Sei que corro riscos ao reservar este lugar especial pra você, mas vou corrê-los porque você fez jus a ele...
Pela orientação certeira de quem sabe que Os limites do discurso precisam ser postos à prova
constantemente para que a teoria possa caminhar.
Pelas correções pontuais das questões de língua e de discurso, quase sempre com humor, mostrando que,
de fato, Humor, língua e discurso são velhos conhecidos seus.
Pela propriedade com que apresenta diversas Questões para analistas do discurso e incita-nos a enfatizar
mais “análise” que “discurso”.
Pela maneira como leva às últimas consequências o poema-pílula de Oswald de Andrade (amor/ humor) e
revela, através d’Os humores da língua, o amor por essas Mal comportadas línguas.
Pela aparente contradição entre o desejo de colocar a Língua na mídia sem querer que os holofotes te
alcancem.
E – como se não bastasse tudo isso – pela pessoa íntegra, correta, serena, atenciosa e amiga que me
acompanhou em todos os momentos (principalmente nos mais difíceis) dessa jornada. A convivência ao
longo desses anos mostra que nem tudo se resume a Questões de linguagem e, por isso, sua amizade é
também algo que levo para o resto do caminho.
Obrigada! Por tudo...
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xviii
nada foi
feito o sonhado
mas foi bem-vindo
feito tudo
fosse lindo
(Paulo Leminski)
xix
xx
Capítulo 1 – (Des)Caminhos
1
Tinha uma pedra no meio do caminho
(Carlos Drummond de Andrade)
1. Palavras iniciais
Os trabalhos acadêmicos – como as teses, por exemplo – têm, em geral, uma rotina
bastante fixa na qual a introdução tem um “lugar cativo”. Maingueneau (2002; 2006; 2008) diria,
a partir de sua forma de conceber um texto como o entrelaçamento de cenas enunciativas, que
2
este seria um gênero que não permitiria a instauração de cenografias muito variadas. Nesse caso,
é preciso fazer uma advertência ao leitor: não faremos aqui uma introdução “típica”; optamos por
explicitar com um pouco mais de detalhe os caminhos trilhados ao longo da pesquisa. Essa
decisão, por si só, não excluiria a presença da “introdução”, é fato; no entanto, poucas páginas –
sucintas – provaram ser, para nós, tarefa das mais ingratas, uma pedra no meio do caminho.
opções se impõem diante do tema eleito. Ao final, corre-se o risco de ver esse percurso – muito
ou pouco – apagado, de modo que a tese apresenta-se como que “higienizada”, i.e., sem as
angústias que marcaram o caminho do pesquisador. E em nosso caso foram muitas: mudança de
pesquisa; trata-se, assim, de mais uma opção feita: a de não “varrer para debaixo do tapete” os
“pedaços” (quase digo “cacos”) que, um a um, construíram a tese que ora apresentamos.
Diríamos, então, que Drummond teve mais sorte: ele encontrou uma pedra em seu caminho...
2. Entre pedras...
“Entre pedras cresceu minha poesia”, escreve Cora Coralina; também entre elas este
Brasil nos mais diversos campos, seria preciso eleger uma temática. Num cenário até certo ponto
1
Cf. item 2 deste capítulo.
2
Cf. itens 2.1 e 3 também deste capítulo.
3
Cf. itens 3.1 e 3.2 adiante.
3
inusitado, uma declaração do presidente da FIFA sobre a escolha do Brasil para sede da Copa de
2014 – citada mais adiante – funciona como “pontapé inicial” para a problemática que
apresentaremos aqui, a saber: a representação de um Brasil “genuíno” no que diz respeito ao seu
espaço.
Alguns diriam que estaríamos diante de uma problemática identitária que, nos últimos
anos, perpassa os mais variados campos de estudo – deixando de ser um tema de preferência dos
sociólogos, por exemplo –, pois, como observa Bauman (2005, p. 22-23), “a ‘identidade’ é o
que ela tem cada vez mais “vazado”4 para outros campos, uma consequência disso é que esses
debates permeiem também a linguística. Há aí, porém, um grande risco: o de tudo tratar como
Por cautela, procuramos, num primeiro momento, não entrar no mérito da questão –
isto é, não decidir se se tratava ou não de uma pesquisa sobre identidade; o objetivo era, assim, a
funcionamento de certos discursos acerca de um espaço nacional, ou, como querem alguns
autores (LÖFGREN, 2000, por exemplo), de uma paisagem nacional típica do Brasil; trata-se,
em última análise, daquilo que é tomado como sendo a melhor representação do espaço físico
de um país.
da Copa de 2014, entre comemorações e declarações, uma frase chama a atenção; Joseph Blatter,
presidente da FIFA, declara-se “impressionado” com a proposta de uma “copa ecológica” que,
4
E isso ocorre há tempos, como se pode facilmente comprovar pela publicação resultante do encontro organizado em
Paris, na década de 1970, por Lévi-Strauss e Benoist e que intitulou-se L’identité. O encontro reuniu profissionais
das mais diversas áreas para discutir o tema: biólogos, antropólogos, linguistas, psicanalistas, sociólogos e filósofos.
4
segundo ele, só poderia ter sido feita pelo Brasil. A declaração de Blatter parece indiciar aspecto
fortemente relacionado a uma representação do Brasil, especialmente no que diz respeito ao seu
espaço: só o Brasil poderia falar em uma “copa ecológica” porque o Brasil seria, em tese, o lugar
das “belezas naturais”. Seguindo esse raciocínio, o Brasil não poderia, por outro lado, propor uma
“copa tecnológica”, por exemplo – o que ficaria a cargo dos alemães ou dos japoneses? Esse tipo
América do Sul, é possível destacar uma “senha” para o entendimento de vários aspectos da
civilização latina, a saber: o motivo edênico. No caso do Brasil, o autor aponta que os motivos
edênicos explicam muitos dos aspectos da “formação nacional” ainda atuantes nos dias de hoje.
Essa visão será compartilhada por Chauí (2006) por meio da proposta de um mito fundador: uma
Chauí aponta que a natureza ocupa lugar privilegiado – no caso do Brasil – como obra de Deus5.
Também a figura a seguir – que circulou na internet recentemente – pode ser tomada
que interessa mais de perto aqui: o Brasil toma quase toda a América do Sul, representado por
três símbolos: o café, o futebol e uma arara. A recorrência à fauna e à flora (metonimicamente
discursiva, é preciso considerar de que modo tais estereótipos são mobilizados pelos discursos –
5
Essa questão será aprofundada no capítulo seguinte.
6
Vide capítulo 2 desta tese.
5
em nosso caso, nos discursos que contribuem para a construção/legitimação desse espaço
nacional.
partida era, então, a de que a emergência de um “discurso ecológico” seria a principal forma de
“genuinamente” nacional apoiada sobre certos traços “ecológicos”7, especialmente voltados para
a valorização das belezas naturais do Brasil – tanto as mais “intocadas” como também as
“recuperadas”.
7
Embora seja preciso reconhecer uma distância entre “ecologia” e “natureza”, no sentido de que um discurso
ecológico não é o mesmo que um discurso de exaltação da natureza, a ideia de uma “Copa Ecológica” –
especialmente se considerarmos a declaração de Blatter – parece “suturar” esse distanciamento. Assim, quando
falarmos aqui em “discurso ecológico”, é pensando nessa “sutura”, até porque, como se verá adiante, esse caminho
investigativo não prosperará na construção do corpus.
6
Inicialmente, acreditava-se que, após o anúncio do Brasil como sede da Copa de 2014
– mais de sessenta anos depois de sediar o mundial pela primeira vez —, haveria um
investimento alto em torno da tão falada “Copa Ecológica” proposta na candidatura brasileira e
que, em assim sendo, o cenário esportivo seria um lugar interessante para observar e analisar o
ideia de “Copa ecológica” foi perdendo força e não mais se referiu ao evento daquela maneira: a
última vez que, no corpus coletado, encontramos alguma referência ao aspecto ecológico como
que integra uma série de informes publicitários das cidades então candidatas à sede da Copa,
publicados na revista Istoé, em 18 mar. 2009. Nesse texto, escreve Eduardo Braga: “Mas seria
também, e acima de tudo, a Copa da Preservação Ambiental, no país que possui um grande
Uma possível explicação para isso talvez seja o fato de que as cidades-sede
escolhidas para a competição não tenham investido no aspecto ecológico ou por não ser esse um
ponto muito forte (como é o caso de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, para ficar em
poucos exemplos) ou porque, ao contrário, a natureza é um aspecto “cristalizado” a tal ponto que
E, até certo ponto, essa explicação estava certa. O que o acontecimento em pauta
evidenciava era, na verdade, o funcionamento de uma fórmula, como mostra pesquisa de Krieg-
sustentável” como fórmula, a autora irá observar, por exemplo, que a questão “ecológica” torna-
7
2.1 A noção de fórmula: reformulações para a pesquisa?
corpora, Maingueneau (2006) propõe que as unidades a partir das quais os analistas do discurso
operam podem ser de dois tipos, a saber: tópicas e não tópicas. Oportunamente trataremos em
mais detalhes dessa proposta do autor. Por ora, interessa dizer que, dentre as chamadas unidades
não tópicas – isto é, unidades cuja constituição não é resultante de espaços pré-delineados, seja
pelas práticas verbais seja por categorias não discursivas (comunicacionais, funcionais ou
linguísticas, segundo o autor) – Maingueneau (2006) inclui o que chama de percursos. Esse novo
pesquisa realizada por Krieg-Planque (1996) que tem na fórmula “purificação étnica” a entrada
do corpus. Operar com uma categoria como a de fórmula é, assim, uma maneira de transgredir as
fronteiras postas pelos discursos e por seus produtores para tornar visíveis a retomada, a
i) caráter cristalizado; ii) inscrição em uma dimensão discursiva; iii) o fato de funcionarem como
um referente social; iv) a sua dimensão polêmica. Todas essas propriedades encontram-se
profundamente imbricadas na definição da noção, como se verá a seguir – mas, vale dizer, não se
encontram sempre com a mesma “força”, sendo preciso avaliar caso a caso.
8
Das quatro propriedades de uma fórmula, tais como propostas por Krieg-Planque
(2010b), o caráter cristalizado é o que está mais diretamente ligado à língua. Krieg-Planque
(2010a, p. 61) é, a esse respeito, categórica: “a fórmula tem um caráter cristalizado”, isto é, “ela é
sustentada por uma forma significante relativamente estável”. No entanto, isso não quer dizer que
a fórmula deva ser, por exemplo, uma unidade lexical simples (como “perestroika”); a fórmula
pode ser também uma unidade lexical complexa, uma unidade léxico-sintática ou ainda uma
“retomada”, “exclusão”). O que importa aqui é que, em quaisquer dos casos anteriores, ela deve
tender à cristalização, o que implica também um certo nível de concisão. Afinal, é isso que fará,
em última análise, com que a fórmula possa circular: “é a concisão [...] que permite à sequência
estável o seu suporte, é preciso insistir sobre seu caráter discursivo. É, pois, nesse sentido que a
autora observa que “a fórmula não existe sem os usos que a tornam uma fórmula” (KRIEG-
PLANQUE, 2010a, p. 81). Em outras palavras, uma fórmula não é só uma cristalização, ela é
principalmente um determinado “uso” dessa cristalização; o que torna uma fórmula uma fórmula
são, reitere-se, os seus usos. Estamos, portanto, diante de uma noção que articula profundamente
língua e discurso: se, por um lado, temos uma estrutura linguisticamente descritível, por outro,
essa mesma estrutura não pode ser analisada sem que se leve em conta o acontecimento
discursivo (PÊCHEUX, [1983]2002) que a torna uma fórmula. E isso tem reflexos nos recortes
9
que o analista opera no que diz respeito às variantes de uma dada fórmula, já que, a título de
exemplo, “não é por parentesco lexical – uma vez que não há – que ‘ethnique’ é aproximado de
‘racial’, mas por recobrimento nos usos do primeiro termo pelo segundo” (KRIEG-PLANQUE,
2010a, p. 81).
na maior parte das vezes, a sequência preexiste formalmente a sua chegada à condição
de fórmula. Não é, então, uma forma nova que o analista deve buscar, mas um uso
particular, ou uma série de usos particulares, por meio dos quais a sequência assume um
movimento, torna-se um jogo de posições, é retomada, comentada, para de funcionar no
modo “normal” das sequências que nomeiam pacificamente e que usamos sem nem
mesmo nos dar conta delas. (KRIEG-PLANQUE, 2010a, p. 82)
enunciados atestados, ou, nas palavras de Krieg-Planque (2010a, p. 89), quando o enriquecimento
desse corpus por novos enunciados “não traz mais dados novos do ponto de vista da problemática
adotada, pelo menos não mais dados novos suscetíveis de modificar os resultados de maneira
substancial”.
No que diz respeito às duas outras propriedades da fórmula – seu caráter de referente
social e sua dimensão polêmica – sua interdependência é algo que precisa ser posto em relevo.
Gestadas nos trabalhos de Fiala e Ebel, como aponta Krieg-Planque (2010a), essas propriedades
porquê.
De maneira sintética, atestar o caráter de referente social de uma fórmula nada mais é
que reconhecer nela uma espécie de “lugar de passagem obrigatório” em um dado momento.
O caráter de referente social “traduz seu aspecto dominante, num dado momento e
num dado espaço sociopolítico” (KRIEG-PLANQUE, 2010a, p. 90). Ou, para usar as palavras de
10
Fiala e Ebel, trata-se de “um signo que significa alguma coisa para todos em um momento dado”.
E significar “alguma coisa” não é, observe-se, sinônimo de significar “a mesma coisa”, pois,
É, pois, nesse sentido que Krieg-Planque (2010a, p. 90) observa que considerar a
fórmula como um referente social “não implica que a significação de que a fórmula se investe
seja homogênea” – possibilidade essa de leitura para a qual, aliás, Courtine (apud KRIEG-
PLANQUE, 2010a) alerta. Ao contrário disso, suas significações são múltiplas, às vezes
contraditórias.
(2010a, p. 56),
é porque se põe como dominante que ela não é aceita por todos, é porque se impõe que
ela faz tanto barulho. A distinção “referente social”/ “polêmica” pode, então, ser vista
como um artifício a serviço da análise, permitindo descobrir os lugares de instalação ou,
ao contrário, de fragilização da fórmula. Mas, na massa de discursos que se respondem,
construção da fórmula como referente social e construção da fórmula como objeto
polêmico são indissociáveis.
questões políticas e sociais que essas expressões contribuem, ao mesmo tempo, para construir”
11
Esperamos mostrar, ao fim dessa resenha, a relação estreita da fórmula em questão com a
referente social e de sua dimensão polêmica, aspectos esses destacados no texto de Krieg-Planque
(2010b).
Um dos índices de que uma sequência se tornou uma fórmula é, segundo Krieg-
Planque, o aumento da frequência de sua utilização. Afinal, dizer que a fórmula é um referente
social é, como vimos, reconhecer que ela significa alguma coisa para todos. E, obviamente, “para
que esse signo evoque alguma coisa para todos, é necessário que ele seja conhecido por todos”
transborde, por exemplo, os limites dos discursos especializados: uma fórmula precisa circular
por entre os mais variados tipos de discurso; se originária de uma formação discursiva, deve sair
evidente: ela circula do setor energético ao educacional, passando pela arquitetura, construção,
transportes, agricultura e turismo – para ficar em poucos. Além disso, muitos são os gêneros nos
quais ela se faz presente (veremos que as fórmulas são apreendidas como unidades não-tópicas,
como propõe Maingueneau). A autora aponta ainda casos de mudança no nome de pastas
ministeriais na França – que passaram a incluir o sintagma 8 –, de fomento a pesquisas com essa
temática etc.
8
Em 2002, criaram-se uma secretaria de Estado de Desenvolvimento Sustentável e um ministério da Ecologia e do
Desenvolvimento Sustentável (no lugar do que era anteriormente um ministério de Gestão do território e do meio
ambiente).
12
Mas, como vimos, o fato de se tornar uma “passagem obrigatória”, longe de garantir
uma homogeneidade de sentidos, abre espaço para a polêmica. Em outras palavras, é porque há
um “território partilhado” que a polêmica existe, uma vez que as fórmulas “estão investidas de
questões sociopolíticas, questões que têm como consequência usos polêmicos e conflituosos da
acepções nos enunciados definidores, por exemplo, ou nos vários suportes em que o sintagma
aparece (comunicados da Air France, trabalhos das Semanas Sociais da França, ou documentos
da Oxfam). Em suma, se a fórmula circula, é porque ela traz consigo posicionamentos múltiplos,
(2006), descobrir relações insuspeitas no interdiscurso. Então, a pergunta que fica é: que relações
humanas e sociais, mostram que a fórmula em questão tornou-se um termo-chave nos discursos
políticos e busca exprimir uma conciliação entre desenvolvimento e proteção ao meio ambiente,
ou seja, ocupa um lugar, até certo ponto, de mediador, apagando a dimensão conflituosa
necessariamente implicada no debate, uma vez que muitos são os sentidos que a expressão pode
ter. Mas o que Krieg-Planque explora aqui é o fato de que tal dimensão consensual e legitimante
13
É assim, então, que a autora observa que as estruturas concessivas9 são bastante
comuns no entorno da fórmula “desenvolvimento sustentável”, estruturas essas que têm por
característica argumentativa apresentar como “acidentais” os elementos que ela mesma põe em
tensão, já que ela apresenta os elementos como podendo parecer contraditórios, mas já não sendo
mantém no interdiscurso, uma contradição que ele pode resolver. Mas, ao mesmo tempo, esse
sintagma tende a dissimular essa contradição pela dimensão formulaica que adquire: a fórmula
“desenvolvimento sustentável” é uma oposição que ela não representa mais de forma transparente
“desenvolvimento sustentável” consegue, por seu turno, neutralizá-lo. É, pois, nesse sentido que a
9
Alguns exemplos de construções desse tipo são: “...modo de desenvolvimento que responde às necessidades do
presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de responder as suas”; “...melhorar as condições de
existência das comunidades humanas, mantendo-se dentro dos limites da capacidade dos ecossistemas”; “...oferecer
aos consumidores uma solução completa para fazer brilhar sua casa respeitando o meio ambiente”.
10
A noção de contexto de uma fórmula refere-se não à realidade mundana cuja descrição pelo pesquisador forneceria
a conjuntura esclarecedora da fórmula; trata-se da ordem do real discursivo e simbólico de onde surge a fórmula.
(KRIEG-PLANQUE, 2010b, p. 11).
14
parfois en rapport étroit avec la « responsabilité sociale de l’entreprise » : « soutenabilité
faible », « épargne responsable », « politiques de durabilité », « gestion durable et
équitable de l’eau », « aménagement responsable et durable des territoires et de
l’environnement ».11 (KRIEG-PLANQUE, 2010b, p. 11).
com “eco” e “bio”. É precisamente nesse ponto que a proposta da “Copa Ecológica” entra e ela
parece bastante reveladora do funcionamento dessa fórmula como um referente social. Assim, a
proposta de “Copa Ecológica” que inicialmente julgamos ser promissora para estudar a
nossos fins: o sintagma evidenciava, na verdade, o caráter de referente social da fórmula estudada
proximidade com esta pesquisa. A relevância do trabalho de Krieg-Planque (2010b) para nós está
no fato de que a autora mostra que “sustentabilidade” tornou-se um referente social, um ponto de
de um espaço nacional “genuíno” o “discurso ecológico” de que falamos no início. Desse modo,
talvez não fosse produtivo considerar que a dimensão “ecológica” fosse, ainda na atualidade, um
11
Quem se interessasse em detalhe pelo inventário da fórmula “desenvolvimento sustentável” seria levado a
identificar, no interior dos corpora circunscritos, diferentes formulações, quer tenham sido produzidas por
comutação nominal (“alimentação sustentável”, “estilo de vida sustentável”, “bairro sustentável”), por comutação
adjetiva (“desenvolvimento viável”, “desenvolvimento ético”, “desenvolvimento próprio”), por coordenação
(“desenvolvimento sustentável e solidário”, “Desenvolvimento e Crescimento Sustentável”), através da inserção
(“desenvolvimento urbano sustentável”, “desenvolvimento humano sustentável”), ou ainda sobre um adjetivo, por
derivação imprópria (o “sustentável”) ou por nominalização (“Sustentabilidade”, “durabilidade”). As formulações
produzidas por combinação de várias dessas operações figuram também no inventário, às vezes em relação estreita
com a “responsabilidade social da empresa”: “baixa sustentabilidade”, “poupança responsável”, “políticas de
sustentabilidade”, “gestão sustentável e justa da água”, “gerenciamento responsável e sustentável dos territórios e do
ambiente”. (tradução nossa)
12
Exemplo de que a fórmula em questão tornou-se esse “ponto de passagem obrigatório” é o fato de que,
na ocasião do anúncio do Brasil como sede da Copa de 2014, surpreendentemente, nada se disse, por exemplo, sobre
o futebol estar voltando para a terra do maior campeão, ou do “rei” do futebol – i.e., elementos que estariam mais
diretamente ligados ao tema da Copa. Ao contrário, ganhou relevo a proposta de uma “Copa Ecológica”.
15
traço tão fortemente associado ao espaço nacional brasileiro – afinal, não seria, por exemplo, o
“turismo sustentável”, uma das variantes da fórmula acima, algo suficientemente espalhado a
ponto de não remeter diretamente ao Brasil? Nesse caso, não seria a fórmula “desenvolvimento
etc.) que constituiria nossa “modesta”13 entrada no corpus – até porque, como esperamos mostrar
mais adiante, a fórmula não daria conta do que pensamos ser um ponto crucial do funcionamento
A ideia de “Copa Ecológica”, ponto de partida deste trabalho, saía, assim, de cena;
isso não significava, porém, a derrocada da hipótese inicial – ou do projeto como um todo –;
significava, tão-somente, que esse não parecia um caminho muito promissor para trilhar. Mas se o
futebol é um importante “canal” para representar o Brasil no exterior, também o são o turismo e a
moda – ainda mais no que diz respeito a uma paisagem nacional típica. Assim, esses passaram a
ser os espaços onde buscar material para o corpus desta pesquisa. O turismo, aliás, já havia sido
“sondado” anteriormente, pois imaginamos que, após o anúncio da sede da Copa de 2014, haveria
13
“Uma pesquisa boa é aquela que transforma as hipóteses iniciais, que descobre coisas novas e isso implica uma
entrada, achar uma entrada e muitas vezes uma entrada modesta, através de uma fórmula, de um conector, de uma
metáfora, de uma frase, não sei, da tipografia, não sei, uma coisa que parece humilde, pode ser muito mais rentável,
porque é uma maneira de ver o texto não através do conteúdo, porque senão o conteúdo sempre vai ter interpretação”
(grifamos). Entrevista dada por Maingueneau e publicada na revista eletrônica Linguasagem (n. 10, set./out. 2009).
Disponível em: <http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao10/ index.php>. Acesso em: 18 nov. 2010.
14
A hipótese era a de que haveria muito investimento em “destinos verdes” e valorização de “ecoturismo”, mas isso
também encontra-se bastante vinculado à fórmula “desenvolvimento sustentável”, o que significa usos mais
generalizados, i.e., não restritos apenas a lugares em que a natureza é um forte elemento, como se poderia supor
sobre o caso brasileiro, por exemplo.
16
Neste ponto, talvez fosse necessário reformular a hipótese inicial – e,
constituição do corpus.
Construir corpora em Análise do Discurso não é tarefa simples. De fato, essa etapa
em Análise do Discurso sempre foi um ponto crucial para a disciplina. Se, no início, na chamada
primeira época da AD, a noção de maquinaria discursiva privilegiava corpora mais estabilizados
interdiscurso (na terceira época) abrem-se muitos caminhos para a construção dos corpora, o que
não significa que não possa haver “preferências” de formato por parte dos analistas 16.
como já anunciava Pêcheux ([1983]2002), seguir uma espécie de movimento espiral em que o
analista vai constantemente da teoria ao corpus e dele novamente à teoria, tantas vezes quantas
forem necessárias. Ou seja, construir o corpus de uma pesquisa não é necessariamente uma tarefa
pontual, podendo estender-se por todo o processo. Esse é um ponto que não desejamos “apagar”
nesta pesquisa; não apenas a constituição do corpus, mas a forma de apreendê-lo mostraram-se
desafios de ordem teórica e metodológica. Afinal, não era um recorte previamente dado que
15
Um exemplo seria um manifesto partidário voltado para os membros do próprio partido. Nesse caso, o famoso
esquema do jogo de imagens explicaria a maior estabilidade desse discurso (PÊCHEUX, [1969]1997).
16
Sabe-se, por exemplo, que pesquisas empíricas, com questionários etc., são relativamente raras em AD. A esse
respeito, vide, por exemplo, levantamento empreendido por Courtine ([1981]2009, p. 58-61), em que encontram-se
listados os tipos de corpora analisados nas pesquisas de vários analistas de discurso e a dominância de determinadas
formas de constituição de corpora em AD.
17
tínhamos diante de nós, mas uma configuração original que, como tal, exigia, minimamente, uma
justificativa17.
uma “apreciação especificamente discursiva” antes de serem transpostos para o quadro teórico-
metodológico da AD: “em relação a quê se pode avaliar uma exaustividade, representatividade e
homogeneidade discursivas?”, pergunta-se o autor. Citando Gardin & Marcellesi (1974), Courtine
([1981]2009, p. 56) aponta que a exigência de exaustividade “prescreve que não se deixe na
sombra nenhum fato discursivo que pertença ao corpus, devendo ele ‘incomodar o pesquisador’.
A exigência de representatividade indica ‘que não se deve tirar uma lei geral de um fato
constatado uma única vez’”. Sobre o critério da homogeneidade – divergindo dos autores citados,
para quem o estudo dos contrastes discursivos excluiria a homogeneidade –, Courtine afirma que
(p. 56-57). Nessa mesma direção, Maingueneau (2006, p. 20-21) destaca que “diante de um texto
da constituição do corpus, uma vez que não se estava diante de uma zona previamente
delineada pelas práticas linguageiras. Diante disso, se a constituição do corpus não passaria,
17
Penso que, com ainda poucas exceções, muitos trabalhos em AD tendem a não explicitar a tensão envolvida na
construção de corpora. Há casos em que, de fato, não há tensão, i.e., o corpus não coloca problemas para sua
delimitação ou apreensão; mas há muitos outros em que a constituição do corpus resulta de uma configuração inteira
ou parcialmente nova que coloca sim problemas para o analista. Este é o caso aqui e não desejamos deixar esse ponto
à margem das discussões, apresentando, ao final — como geralmente se faz — uma solução “milagrosa” que apague,
como já dissemos, as “angústias” do processo. Sobre essa questão, Boutet et al (1995) observam que, não raro, os
analistas acabam por deixar à margem os problemas colocados pelo corpus e atribuem isso ao histórico da AD em
trabalhar com corpora altamente institucionalizados.
18
então, pela noção de percurso proposta por Maingueneau (2006); melhor dizendo, não seria a partir
de uma fórmula que se condensariam os materiais mais relevantes para descrever o funcionamento
dos discursos de construção/legitimação do espaço nacional brasileiro, era preciso encontrar uma
nova categoria que se provasse produtiva. Essa busca – quase obsessiva, dirão alguns – tem sua
razão de ser, que pode ser assim resumida: “como ter certeza de que o agrupamento de textos que
[1984]2005). Assim, como dissemos mais acima, a hipótese inicial era a de que houvesse um
“genuinamente” brasileiro. O que ainda não foi dito é como se poderia pensar algo como um
capazes de identificar (ou não) esse discurso. Para abordar essa questão será preciso entender a
proposta feita por Maingueneau (2006) em decorrência do que ele acredita ser uma “fissura
constitutiva” da AD: “é impossível fazer a síntese entre uma abordagem que se apoia sobre as
fronteiras e uma que se nutre dos limites pelos quais a primeira se institui” (MAINGUENEAU,
2006, p. 23). Trata-se para o autor, respectivamente, de abordagens integradoras (que mostram a
relacionam a uma nova identidade discursiva). Partindo dessa distinção, o autor irá propor, então,
por sua vez, de um emprego bastante variado –, empreende uma reflexão em torno das unidades
de análise de que se valem os analistas do discurso em suas pesquisas e propõe, a partir daí, um
estatuto novo e, segundo ele, mais preciso para a noção em pauta. É, aliás, o próprio autor que,
tendo adotado a noção em Gênese dos discursos ([1984]2005) sem o que pensa ser uma maior
especificidade, confessa, no prefácio à edição brasileira, ter sido esse um “emprego frouxo” do
termo19. E conclui que melhor teria sido empregar “posicionamento” em vez de “formação
discursiva”.
discursiva, é preciso delimitar “o conjunto de termos que designam as categorias sobre as quais a
analistas do discurso, que ora operam na articulação dos planos do discurso ora os desarticulam
para dar-lhes uma nova identidade. São esses, portanto, como ilustra o quadro abaixo
(MAINGUENEAU, 2006, p. 22), os tipos de unidades de que os analistas se valem nas suas
pesquisas:
Discorreremos, a partir desse quadro, acerca das unidades propostas pelo autor.
19
Maingueneau (2006, p. 13) observa que “na maioria das vezes emprega-se ‘formação discursiva’ ‘na falta de uma
expressão melhor’, nas situações em que o analista encontra um conjunto de textos que não corresponde a uma
categorização clara”; trata-se, assim, de uma forma de nomear o excedente. Ele mesmo confessa seu embaraço diante
da necessidade de definir a expressão: “quando redigi o verbete ‘Formação discursiva’ para o Dictionnaire d’analyse
du discours, co-dirigido com P. Charaudeau, eu mesmo substituí ‘formação discursiva’ por ‘posicionamento’, devido
à incapacidade em que me encontrava de atribuir-lhe um estatuto bem claro” (MAINGUENEAU, 2006, p. 14).
20
As unidades tópicas comportam – na definição de Maingueneau (2006) – uma
“pré-delineados” pelas práticas verbais que podem ser definidos tanto do ponto de vista de
Note-se, a respeito das unidades territoriais, que elas são instituídas não pelo analista,
mas, antes, pelas práticas da sociedade; é como se estivessem sempre já-lá. Contudo, ainda que
essas unidades sejam, de certa forma, “dadas”, a opção pela forma de abordá-las é do analista.
político como discurso de aparelho: nesse caso são os gêneros de discurso ligados ao
dentre as unidades tópicas, as unidades transversas, que são, por sua vez, aquelas que atravessam
textos de múltiplos gêneros de discurso, podendo ser definidas a partir de registros linguísticos
(por exemplo, a tipologia de Benveniste que distingue discurso e história e as tipologias fundadas
etc.). Maingueneau (2010), a respeito desses registros, observa que não se trata de categorias
21
propriamente discursivas, mas definidas segundo critérios ora de ordem linguística/enunciativa
A constituição do corpus desta pesquisa não passou, como se pode imaginar, pela
discursos acerca de um espaço nacional “genuíno” não obedece à lógica das unidades territoriais,
em primeiro lugar, porque não se trata de pensar em discursos ligados a determinadas instituições
(como seria o caso de um “discurso hospitalar”, por exemplo) nem produzidos a partir de certos
sentido, ainda que o turismo tenha sido apresentado inicialmente como um lugar privilegiado
um “discurso turístico”, por exemplo, mas, ao contrário, de ver o modo de circulação nesse
Além disso, como veremos mais adiante, outros lugares mostram-se produtivos nesse aspecto. As
transversas, por seu turno, também não se apresentavam como o melhor alternativa, uma vez que
mais à lógica das unidades tópicas, “que se apoiam sobre cartografias dos usos linguageiros”
(MAINGUENEAU, 2006, p. 23), mas sim à das unidades ditas não tópicas, cujas fronteiras não
são instituídas por outros que não o próprio analista: “o princípio que as agrupa é uma decisão
tomada exclusivamente pelo analista” (MAINGUENEAU, 2006, p. 22) – o que não significa que
tal decisão seja fruto de “caprichos” do analista, pois as fronteiras “devem ser especificadas
22
historicamente” 20 (MAINGUENEAU, 2006, p. 16). Afinal, é preciso lembrar sempre que o dado
pesquisador”, mas isso “não significa dizer que ele determine as opções e ações do investigador”
Essa decisão traz, assim, algumas implicações importantes, como se verá mais
adiante, para a constituição do corpus e, em razão disso, falaremos de maneira um pouco mais
demorada acerca desse tipo de unidade. Vale dizer, porém, que o trajeto percorrido até aqui não
tem por objetivo encontrar um conceito no qual o tipo de pesquisa realizada possa “encaixar-se”.
Sendo o processo de levantamento do corpus uma etapa crucial em AD, é preciso constantemente
sumarizada no quadro apresentado anteriormente, tem, a nosso ver, a vantagem de tornar mais
palpável e visível as maneiras por meio das quais se constroem corpora em AD.
Isso não significa, como se verá ao longo deste trabalho, que a questão esteja
“resolvida” de uma vez por todas. Esperamos, na verdade, que a apresentação da questão
contribua, primeiramente, para uma maior clareza do tema, e, naturalmente, para uma maneira
20
Ainda em torno do tema, Maingueneau (2006, p. 22) reitera: “a construção de formações discursivas ou de
percurso não está submetida só ao capricho dos pesquisadores: há um conjunto de princípios, de técnicas que
regulam esse tipo de atividade hermenêutica”.
23
posicionamentos no interior de um campo discursivo (MAINGUENEAU, [1984]2005); mais ou
menos heterogêneo; relacionado a uma tipologia de tipo X etc. –, é preciso decidir por um tipo de
abordagem, sem esquecer, contudo, de confrontar essas opções com os objetivos da pesquisa, as
hipóteses e, obviamente, os dados levantados, afinal “o dado é freio para a divagação sem
Antes de mais nada, lembremo-nos de que a pergunta inicial desta pesquisa gira
a hipótese de partida é a de que tal processo apoia-se sobre um discurso ecológico, segundo
denominamos. A partir daí, vimos na seção anterior que não se poderia pretender neste trabalho
construir um corpus a partir de uma lógica pautada em fronteiras pré-estabelecidas pelas práticas
linguageiras da sociedade, o que levaria esta pesquisa a operar com as unidades tópicas. A opção,
por outro lado, por constituir uma nova unidade, uma nova configuração imporia algumas
restrições. A circulação para além dos limites de tais “fronteiras” sugere, em primeiro lugar, uma
certa heterogeneidade dos corpora construídos, sejam eles agrupados com base em percursos ou
em formações discursivas.
No caso dos percursos, Maingueneau afirma que eles fazem parte de uma prática em
24
Um exemplo de pesquisa realizada em que se estabeleceu um percurso é a de Krieg-
pesquisadora não privilegiou gêneros ou posicionamentos, mas explorou “uma dispersão, uma
heteronímia do corpus, sem pretender reduzi-lo a uma unidade, o que não significa, reiteremos,
conhecimentos históricos.
em torno de percursos:
É com efeito muito sedutor atravessar múltiplas fronteiras, circular no interdiscurso para
fazer aparecer relações invisíveis particularmente propícias às interpretações fortes. Mas
o reverso da medalha é a dificuldade em justificar as escolhas operadas e, então, corre-se
o risco, como já mencionado, daquilo que chamamos, habitualmente, de delírio
interpretativo, ou, mais simplesmente, o risco de se encontrar na conclusão aquilo que se
propôs no início. (MAINGUENEAU, 2006, p. 21).
operador de neutralização do conflito. Tal conclusão é possibilitada, por seu turno, pela
também não são produzidas por instituições correspondentes – ao menos totalmente – a espaços
previamente constituídos pelas práticas verbais. Trata-se igualmente de um recorte que deriva de
25
uma decisão tomada pelo analista: o pesquisador reúne um conjunto de textos que, segundo seus
propósitos, suas hipóteses, julga relevante colocar em relação. Para Maingueneau, é preciso
gênese do conceito, ainda que uma “situação confusa” seja apontada pelo autor decorrente da sua
dupla paternidade: Foucault e Pêcheux. Para Maingueneau, tanto o conceito de Foucault quanto o
de Pêcheux procuram dar conta da possibilidade de se operar com corpora situados no limite das
fronteiras.
Maingueneau (2006, p. 10), “a duas injunções contraditórias: definir os sistemas e desfazer toda
uma mesma ‘regularidade’ [...] e ‘dispersão’ que excede toda ‘coerência’” (MAINGUENEAU,
2006, p. 11). Para assumir a noção nos moldes foucaultianos é-se, então, obrigado a constituir
corpora que sejam, além de heterogêneos, relativamente extensos, a fim de que se possa
coisas, que demonstra que, por detrás de uma variedade de conjuntos discursivos, atua um
formação discursiva determina “o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma
arenga, um sermão, um panfleto, uma exposição, um programa etc.) a partir de uma posição
dada numa conjuntura” (PÊCHEUX, [1975]1997, p. 161; grifamos). Aqui, o termo posição
26
refere-se ao espaço da luta de classes. A definição de Pêcheux permite, como aponta
Maingueneau,
uma dupla leitura, segundo se dá ênfase “àquilo que pode e deve ser dito” ou “articulado
sob a forma de uma arenga”. Na primeira leitura, a menção a diversos gêneros é
acessória; na segunda, o discurso não pode ser “articulado” senão por meio de um
gênero de discurso; e é preciso, então, pensar a relação entre “posição”, de uma parte, e
“arenga”, “sermão” etc., de outra parte. [...] o conhecimento do pensamento de Pêcheux
incitam a optar pela primeira leitura, que relega a segundo plano a problemática do
gênero. É a “posição” que é determinante, e o gênero de discurso não parece ser outra
coisa além do lugar onde se manifesta alguma coisa que, por essência, está escondida,
seguindo nesse aspecto o modelo psicanalítico dominante na época. (MAINGUENEAU,
2006, p. 12).
discursividade: ao mesmo tempo submetida a processos tópicos – inscritas numa cartografia dos
em Pêcheux como em Foucault, os tipos de corpora construídos demonstram essa tensão: se, por
previamente nas sociedades (sejam eles no nível de campos, de posições ideológicas etc.); por
outro, a configuração é estabelecida pelo analista, é ele quem decide por em relação aquele
ou menos cartográficos procura dar conta daquilo que ele chama, como visto, de “falha
27
propostas para a pesquisa. No caso da presente pesquisa, se, por um lado, descartar o trabalho
com as chamadas unidades tópicas – em função das próprias hipóteses iniciais formuladas – foi
tarefa difícil, por outro, “enquadrar” a pesquisa em uma das unidades não tópicas provou ser uma
empreitada das mais árduas. Uma razão para isso está na subdivisão proposta por Maingueneau
***
Ao propor que se reserve o termo formação discursiva para aquelas unidades cuja
configuração dependeria de uma intervenção direta do analista (tais como o “discurso racista” ou
o “discurso colonial”, por exemplo) e cujos corpora correspondentes poderiam reunir tipos e
gêneros do discurso bastante variados – podendo mesmo misturar corpus de arquivo e corpus
construído pela pesquisa, tais como entrevistas e questionários (MAINGUENEAU, 2006, p.16) –,
Maingueneau percebe que seria necessário precisar melhor esse tipo de categoria. E isso porque,
segundo relata, um agrupamento de materiais sob o rótulo de “discurso racista”, por exemplo,
tem no racismo onisciente que governa a fala dos locutores um “foco único” que os faz convergir.
Nesse contexto, seria preciso dar conta daquelas unidades que, embora obedecendo os, digamos,
Com base nessa demanda, Maingueneau (2006) propõe que, diante de uma reunião,
maneiras distintas, a saber: i) realizar uma simples comparação entre diversos sub-corpora
independentes uns dos outros, de modo a colocar em relevo determinadas características suas; ii)
definir uma formação discursiva unifocal dentro da qual os sub-corpora são governados por um
mesmo sistema de regras; iii) construir uma formação discursiva plurifocal, que não reduz os
28
diversos sub-corpora a um mesmo sistema de regras, preservando, assim, a sua heterogeneidade.
O ponto em comum entre as três possibilidades de formação do corpus está, reitere-se, no fato de
agrupamento de materiais não dado a priori, mas reunido intencionalmente pelo analista.
No caso de se tomar uma unidade como o “discurso racista”, por exemplo, é-se
constante presença de um racismo a governar a fala dos enunciadores. Segundo um exemplo dado
pelo próprio autor a partir da pesquisa de Foucault, que há um mesmo sistema de regras que rege
a fala desses enunciadores, não importando quão variado seja o conjunto de textos colhidos.
um estudo que se esforça por encontrar a partir de que foram possíveis conhecimentos e
teorias; segundo qual espaço de ordem se constituiu o saber; na base de qual a priori
histórico e no elemento de qual positividade puderam aparecer ideias, constituir-se
ciências, refletir-se experiências em filosofias, formar-se racionalidades, para talvez se
desarticularem e logo desvanecerem. [...] Trata-se, em suma, de uma história da
semelhança. (FOUCAULT, [1966]2007, p. XVIII-XXI).
convergência desse conjunto de textos não foi dada de início e “produz acontecimentos cujo
interesse será tanto maior quanto mais inesperada for a configuração de textos da qual tal
convergência – como se dá no caso das unifocais, isto é, as diferenças são mantidas e não
anuladas em proveito de uma unidade superior. Maingueneau ilustra a oposição entre os dois
tipos de formações a partir de uma comparação com a noção de polifonia bakhtiniana. Nos
29
romances polifônicos, segundo Bakhtin ([1963]2008), não há o predomínio do ponto de vista do
narrador, de modo que “o que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande
Ou seja, não basta reunir um conjunto discursivo variado para que se tenha uma
formação plurifocal; tomando como exemplo o corpus reunido na tese de Oger (2002),
três concursos públicos para cargos de altos funcionários franceses 21, opta por uma abordagem
contrastiva. De acordo com Oger (2005, p. 122), seu projeto consistia principalmente em
identificar as leis do discurso bem formado segundo a banca que presidia a seleção dos
candidatos. Sua hipótese era a de que as restrições de boa formação diziam menos respeito ao
gênero, por exemplo, e mais a um vasto conjunto que integrava, por exemplo, a produção de um
raciocínios etc. A partir daí, a autora empreende uma “busca”, no conjunto de textos reunidos,
pautada pelos conceitos elencados em sua hipótese inicial para ver, em cada banca, como se
21
Trata-se de três instituições distintas: as Écoles de Administração, da Magistratura e de Guerra.
30
Distinta desse tipo de análise é o que Maingueneau chama de plurifocalização, que
pode ser exemplificada inicialmente pela análise apresentada em Gênese dos discursos
Quando construí um “espaço discursivo” que relacionava duas unidades tópicas, neste
caso, dois posicionamentos em um mesmo campo — o humanismo devoto e o
jansenismo —, não era para comparar esses dois posicionamentos, mas para construir
uma unidade bifocal, uma interação fundada sobre um processo de “interincompreensão”
regrada. (MAINGUENEAU, 2006, p. 19).
Como havia aí dois conjuntos discursivos distintos, temos, portanto, uma formação
bifocal. Com essa reformulação em relação ao que se encontra reportado em Gênese dos
discursos22, Maingueneau pretende estabelecer critérios mais precisos para se utilizar a noção de
por Maingueneau, encontramos algumas dificuldades para colocar em prática tais categorias: as
distinções entre os dois tipos de formação discursiva e entre a análise contrastiva pareciam por
demais fluidas para serem operacionalizadas. Em muitos momentos, quando o conceito parecia
abaixo, com um pouco mais de minúcias, um exemplo extraído das análises do próprio autor.
aos “indígenas” – de uma perspectiva discursiva, i.e., sem passar pelas vias clássicas da
propostas por Maingueneau (unifocais e plurifocais), de modo que, conforme argumenta, há entre
os manuais e os romances uma visão educativa, o que faz com que tanto o foco dos manuais
quanto o dos romances estejam “ligados (do contrário, o fato de relacioná-los seria arbitrário),
mas suas diferenças não [são] anuladas em proveito de uma unidade superior”
(MAINGUENEAU, 2006, p. 17). Assim, a heterogeneidade dos conjuntos de textos que integram
discurso são distintos em cada conjunto, conforme argumenta o autor. Mas também essa
heterogeneidade, nos parece, pode ser mantida nos recortes unifocais – tome-se como exemplo a
pesquisa foucaultiana citada pelo próprio Maingueneau mais acima – e nas análises contrastivas.
promove a adesão à ideologia da superioridade da Europa ocidental repousa, nos materiais sob
manuais; e ii) entre os manuais e os romances. Nos manuais, o autor destaca a constante interação
existente entre as diversas matérias, seja por meio de referências de uma a outra, seja por meio do
que ele chama invariantes semânticas transversais, i.e., cada enunciado tomado individualmente
apoia-se sobre uma mesma rede de sentidos, o que contribui fortemente para lhe conferir o
deste nível;
b) aquela da retórica clássica, segundo a qual analisam-se textos em termos de teses defendidas e de argumentos
trocados sobre uma dada “questão”;
c) aquela de Amossy (2000) sobre a “dimensão argumentativa” de textos que não são propriamente
“argumentações”, i.e., textos que assumem uma determinada posição acerca de um debate na sociedade; diversos
gêneros podem estar aí incluídos: o artigo científico, a reportagem, as informações televisionadas, testemunho,
autobiografias etc. (MAINGUENEAU, 2011, p. 26).
32
estatuto de evidência24 (MAINGUENEAU, 2011, p. 30). Vejamos, no quadro abaixo, como o
Manifestações da Exemplos
interdiscursividade
uma lição sobre a fabricação de manteiga conduz a um curso de
higiene; os livros de moral aconselham utilizar os livros de
Referências de uma
história como um repertório de ilustrações de determinadas
disciplina a outra
virtudes (cf. a biografia dos “grandes homens”), e assim por
diante.
FRANCÊS/COLONIZADO >> ROMANOS/ GAULESES >>
RACIONALISTAS/SUPERSTICIOSOS >> PROFESSORES/
Existência de invariantes ALUNOS
semânticas transversais um enunciado de gramática >> um enunciado de geografia
um enunciado sobre os gauleses >> um enunciado sobre os
professores da 3ª República
Existe uma forte imbricação entre o discurso escolar e a narrativa ficcional25, de modo que esse
discurso apoia-se sobre uma narrativa, a história da França, não mais uma disciplina como as
outras, mas a legitimação mesma da República francesa. Um exemplo citado por Maingueneau
imagem de um avô rodeado de crianças, com a seguinte legenda do próprio autor: “O ensino de
história a todos os pequenos deve ser como uma série de histórias contadas de avós para os netos”
(tradução nossa).
Além disso, muitos são os romances produzidos nesse período com o mesmo caráter
didático das Viagens extraordinárias de Júlio Verne: a metáfora da viagem é, nesse sentido,
cego da atividade enunciativa”, posto que “não cessa de legitimar o texto que a contém” –
manifesta-se tanto no interior dos manuais como nos romances. Trata-se do enlaçamento entre o
conteúdo enunciado e a cena de enunciação mobilizada. Neste ponto reside uma significativa
afirma Maingueneau (2011, p. 29-30), o discurso seria uma espécie de veículo de uma certa
ideologia que ele, por meio de uma leitura atenta, decifra. Ao contrário, a AD não negligencia os
meios pelos quais uma organização textual pode ter uma eficácia ideológica. E é justamente aí
História”26, nas palavras de Maingueneau (2011, p. 29) – era preciso legitimá-la na consciência
das massas, papel este que cabia à escola (gratuita, obrigatória e laica) e, consequentemente, aos
manuais. Nessa conjuntura, a escola gratuita, obrigatória e laica surge como o “coroamento” do
“Progresso” que regia a história da França e da humanidade como um todo. Nesse sentido, a
reflexividade de que fala o autor reside precisamente nessa espécie de “circularidade”: “através
de seu discurso, a escola engendra-se a si mesma”27 (MAINGUENEAU, 2011, p. 31) e, por seu
(com suas salas de aula, seus cadernos, seus livros, seus professores, seus horários...); ii) um
lugar produzido pelos próprios manuais (que, continuamente, põem em cena de múltiplas formas
26
“La III° République y apparaissait comme la finalité profonde de l’Histoire”.
27
“A travers son discours, l'école s'engendre ainsi elle-même”.
34
interior da qual o discurso mesmo é enunciado (como prática discursiva que associa intimamente
célebres episódios em que um pequeno grupo de ocidentais privilegiados viaja em algum meio de
transporte (submarino, balão, jangada...) – Maingueneau chama de “Esfera” tais meios – através
de um espaço a ser descrito/descoberto. Por meio da Esfera, descobre-se um mundo; também por
meio da leitura isso pode ser feito. Assim, a leitura é essa “Esfera última que permite viajar por
Seja no discurso escolar, seja nos romances, a Esfera passa, por vezes, por situações
Esfera) e selvagem (i.e., não civilizada). Tais episódios de ataque da Esfera são relevantes para
que se visualize a relação entre os manuais escolares e os romances, apresentada pelo autor por
meio de dois recortes, cada um pertencente a um dos conjuntos discursivos: o episódio do Forte
28
Esse enlaçamento que vai da cena de enunciação aos conteúdos se manifesta de maneira particularmente exemplar
nos livros de história, nos quais o último capítulo não deixa de mostrar as crianças da escola republicana
silenciosamente sentadas em uma sala moderna, imagem frequentemente associada, em contraste, àquela da escola
de outrora, suja, caótica. Compreende-se a eficácia de tal discurso: para além de toda argumentação, a escola é a
evidência primeira na qual a criança é apreendida, e ela transforma, por seu turno, em evidência um ensino que,
quando fala da natureza, da história, do bem e do mal, em última instância fala também da própria escola. (tradução
nossa).
29
“Cette Sphère ultime qui permet de voyager tout en restant immobile”.
35
No curso elementar de História da França, de Lavisse, uma das páginas apresenta a
figura de um forte, situado no alto de um morro e em segundo plano, de modo que, no primeiro
plano da imagem, revela-se um combate entre cavaleiros árabes e soldados franceses. O texto
Le combat de Mazagran - Pendant cette guerre, il y eut bien des batailles. L'Algérie est
habitée par des Arabes qui sont des soldats très braves. Une des plus célèbres batailles
fut celle de Mazagran. Cent vingt-trois français occupèrent un fort qui portait ce nom. Ils
y furent attaqués par les Arabes. L'image vous montre des Arabes qui arrivent au grand
galop de leurs chevaux. Ils sont vêtus d'un manteau blanc, qu'on appelle un burnous.
Vous en voyez qui tirent des coups de fusil vers le haut du mur. Nos soldats répondent.
Derrière les Arabes que vous voyez, d'autres arrivèrent. Ils furent bientôt douze mille.
Pendant trois jours, ils demeurèrent autour de Mazagran. Ils essayèrent de grimper à des
échelles pour atteindre le haut du mur. Mais nos soldats les repoussaient à coups de
crosse. Les douze mille Arabes virent qu'ils ne viendraient jamais à bout des cent vingt-
trois Français, et ils s'en allèrent. Dans toute la France, on parla du combat de Mazagran.
Tout le monde fut fier de la vaillance de nos soldats.30
Os indígenas continuavam na praia, mas em número bem superior aos que eu vira na
véspera. Agora seriam uns quinhentos ou seiscentos. Aproveitando a maré baixa alguns
deles tinham avançado pelos corais e estavam a menos de quatrocentos metros do
submarino. Eu podia vê-los muito bem. Eram papuas, de porte atlético, homens de uma
bela raça, de testa alta, nariz grosso mas não achatado e dentes brancos. Em geral,
andavam nus. Notei a presença de algumas mulheres, vestidas com uma verdadeira saia
30
O combate de Mazagran – Durante esta guerra, houve muitas batalhas. A Argélia era habitada pelos Árabes, que
são soldados muito corajosos. Uma das batalhas mais célebres foi a de Mazagran. Cento e vinte e três franceses
ocupavam um forte que tinha esse nome. Eles foram atacados pelos árabes. A imagem mostra os árabes que
chegaram a cavalo. Eles estão vestidos com uma capa branca que chamamos “burnous”. Vejam que atiram com fusis
em direção ao muro. Nossos soldados respondem. Atrás dos árabes que vemos, outros chegaram. Eram 12 mil.
Durante três dias, eles permaneceram em torno de Mazagran. Tentaram subir as escadas para chegar ao alto
do muro. Mas nossos soldados os afastaram com golpes de espada. Os 12 mil árabes viram que jamais venceriam os
123 franceses, e se foram. Por toda a França, se falava do combate de Mazagran. Todo mundo estava orgulhoso da
valentia de nossos soldados. (grifos do original; tradução nossa).
31
Disponível em: <http://www.virtualbooks.com.br/v2/ebooks/pdf/00854.pdf>.
36
de ervas presa na cintura cobrindo até os joelhos. Quase todos os homens estavam
armados de arcos, flechas e portavam escudos. Traziam ao ombro uma espécie de rede
que continha as pedras arredondadas que atiram certeiramente com as fundas.
construído: “verdadeiros” papuas, o uso das aspas em “mado”, seguido da justificativa pautada
sobre um saber já estabelecido. A dêixis memorial evocada pelo artigo “as”, em “as pedras
arredondadas...”, que implica uma certa conivência com o locutor. Neste episódio, não há um
combate propriamente dito: o cabo elétrico – algo da ordem da magia para os papuas – serve
como arma.
conjunto do dispositivo, condição de uma colonização que permite precisamente eliminar o que
torna possível a existência de tais Hordas”32 (MAINGUENEAU, 2011, p. 42; tradução nossa).
Nas palavras do autor, a plurifocalização não é nem uma simples comparação e nem a
L’analyste ne rassemble pas des données textuelles qui seraient « représentatives » d’une
« réalité » préexistante, mais, en fonction des objectifs sa recherche, il institue
souverainement une configuration originale. Une formation discursive plurifocale place
ainsi au premier plan les interrogations du chercheur, qui construit une certaine
configuration de textes pour répondre aux questions qu’il élabore, au lieu d’attendre que
la « réalité » discursive immédiate lui impose ses découpages.33 (MAINGUENEAU,
2011, p. 28).
Duas são, assim, as exigências com que o analista deve se preocupar ao construir um
32
“L’épisode critique de l’attaque de la Sphère par la Horde, au-delà, de son intérêt dramatique, met en évidence ce
qui soutient tacitement l’ensemble du dispositif, condition d’une colonisation qui permet précisément d’éliminer ce
qui rend possible l’existence de telles Hordes.”
33
“O analista não reúne os dados textuais que seriam “representativos” de uma “realidade” preexistente, mas, em
função dos objetivos de sua pesquisa, ele cria soberanamente uma configuração original. Uma formação discursiva
plurifocal coloca assim em primeiro plano os questionamentos do pesquisador, que constrói uma certa configuração
de textos para responder as questões que elaborou, em vez de esperar que a “realidade” discursiva imediata lhe
imponha suas camadas.” (tradução nossa).
37
Em síntese, apresentamos no quadro que segue as características referentes, de acordo
com a proposta de Maingueneau apresentada até aqui, às diferentes posturas que um analista do
discurso pode ter diante de um corpus constituído por conjuntos discursivos variados:
A noção de foco é, como parece, crucial para que se compreenda a distinção proposta
pelo autor. As reflexões empreendidas até o momento levam a conclusão de que foco, para o
autor, deve ser entendida como sinônimo de sistema de regras34. Nesse sentido, a formação
34
Como se verá mais adiante neste trabalho, essa definição proposta pelo autor não se mostra satisfatória. Afinal, a
própria definição do que seria um “sistema de regras” carece de maior especificidade. Entretanto, uma primeira
38
unifocal tem por meta evidenciar quais as regras a reger um conjunto heterogêneo de discursos.
Por outro lado, na formação plurifocal, não se busca encontrar uma “coerência escondida”, uma
vez que o objetivo do analista é compreender melhor o modo de funcionamento dos diversos
discursos envolvidos – para o que a colocação em relação desse mesmo conjunto contribui – mas
sem que, para isso, ele precise propor que haja um mesmo sistema de regras. De acordo com
Maingueneau, no caso de uma FD plurifocal, o que ganha destaque é a “pergunta” que o analista
propõe. No caso dos romances de Júlio Verne e dos manuais da escola republicana, por exemplo,
a pergunta era: de que modo é possível pensar a argumentação de uma perspectiva discursiva –
isto é, para além das considerações da retórica, da semântica etc. – de modo a apreender a
circulação de uma certa ideologia europeia no século XIX? O que ele mostra nas análises é,
justamente, que tal ideologia encontra-se disseminada tanto na escola quanto nos manuais, mas
não chega a propor um mesmo sistema de regras nem para os manuais nem para os romances.
Embora se possa perceber um certo tom crítico à ideia de uma “coerência escondida”, como
entendemos, Maingueneau parece não escapar daquelas rotinas acadêmicas; afinal, o que seriam
plurifocalização parece haver ainda maior chance de confusão. Isso porque Oger (2005) não
considera que esse tipo de análise mantenha – ou deva manter – blocos autônomos no interior do
conjunto discursivo reunido, característica esta que, para Maingueneau (2006), é distintiva entre
as duas abordagens.
leitura feita dos textos de Maingueneau em torno do tema nos levou a essa definição provisória.
39
contrastiva, trata-se de analisar, no interior do corpus reunido, o funcionamento de certas
categorias (como é o caso do ethos, por exemplo, na pesquisa da autora). Talvez seja por isso que,
para Maingueneau, as partes do conjunto acabem por manter uma certa autonomia: por mais que
a abordagem procure integrar os diversos grupos analisados, o que se tem, ao final, é sempre a
busca por um “discurso bem formado” a partir de categorias específicas de cada banca analisada.
por um dos tratamentos acima expostos. Embora tenhamos dito que não procuramos um modelo
para “encaixar” o material a ser analisado aqui, o leitor pode ficar com a impressão contrária. É
preciso esclarecer, nesse caso, que se trata, antes, de um exercício que visa colocar a questão da
constituição de corpus em AD em pauta, o que, como alerta Maingueneau (2006, p. 9), acaba por
As discussões apresentadas aqui não são definitivas, especialmente porque não parece
ser possível garantir, antes das análises, a não ser como hipótese, se um conjunto de textos é
regido ou não por um mesmo sistema de regras. Apresentaremos as hipóteses que foram
formuladas num momento inicial de contato com o corpus, sem que análises mais aprofundadas
tivessem sido levadas a termo. Nos próximos capítulos, as análises serão apresentadas e, ao final
40
Se a questão nesta pesquisa é analisar como se constrói uma imagem do espaço
nacional brasileiro, a lógica é – e quanto a isso não cremos que haja dúvidas – a das unidades
não tópicas, posto que não há uma unidade estabelecida de antemão na sociedade na qual se
encaixaria o corpus reunido. A unidade construída não é, porém, aleatória: ela resulta, como
unidades tópicas e não tópicas dão conta de interesses muito diferentes por parte dos analistas.
tópicas, por sua vez, servem a propósitos do tipo: i) compreender as propriedades do “discurso
colonial” de uma dada época; ii) localizar, no interdiscurso, enunciados em torno de uma dada
***
abandonado, como dito anteriormente. Mas foi a partir dele que surgiu o interesse em estudar a(s)
representação(ões) do Brasil no que concerne seu espaço. Assim como o futebol, o turismo e a
moda são espaços que projetam o Brasil interna e externamente e, ademais, valem-se fortemente
das imagens de paisagens “tipicamente” nacionais. É essa configuração – que certamente não é
35
O capítulo 2 procurará mostrar que, de fato, há uma formação discursiva – historicamente constituída – acerca de
um imaginário para o espaço nacional “típico” do Brasil.
41
dada de antemão – que será confrontada com as unidades não tópicas tais como propostas por
Maingueneau. Pareceu, assim, produtivo reunir em um mesmo espaço um conjunto de textos que
universos bastante distintos à primeira vista: do turismo e da moda. Os textos aí reunidos não
pertencem a um mesmo gênero, não são todos de um mesmo veículo nem de um mesmo autor ou
instituição; também não são destinados a um mesmo público. Em suma, trata-se de um universo
como uma formação discursiva unifocal. Parecia, nesse sentido, proveitoso construir um corpus
Enunciado Fonte
“Flávio Dino diz que mega-eventos esportivos Entrevista do Presidente da
desempenham um papel político relevante. A Copa da EMBRATUR Flávio Dino a Paulo
África do Sul mostrou que a democracia se tinha Henrique Amorim, em 14/09/2011.
instalado, depois do apartheid. A Alemanha da Copa Disponível em:
mostrou um pais cordial e pacífico, que contrastou com o <http://www.conversaafiada.com.b
passado belicista e invasor. A China mostrou que já era r/brasil/2011/09/14/dino-e-copa-
uma potência. Daí, o tema das Olimpíadas de Beijing ser um-brasil-lindo-e-competente>.
“um mundo, um sonho”. Essa é a tarefa da Embratur, Acesso em: 20/09/2011.
segundo Dino: mostrar um Brasil mais do que lindo.
Competente, também.”
“Mais que uma prainha bonita: Santa Catarina tem, em Revista Viagem e Turismo, n. 181,
Florianópolis, uma capital agora sofisticada que pode até nov. 2010.
dar as costas para o mar e cidades como Garopaba e
Balneário Camboriú”
“El sociólogo recifense Gilberto Freyre decía que sus Revista Viajar (Espanha), ago.
paisanos pernambucanos han formado una sociedad 2011.
introvertida, que no se entrega al primer contacto. Sin
embargo, el colorido de la terminal de llegadas del
aeropuerto internacional de Recife apunta a todo lo
contrario; su vitalidad, también. Y el paisaje, la costa, el
clima, la playa, y todo.
42
“O litoral norte do Espírito Santo é uma mistura de Revista Bancorbrás, ano XVI, n.
paisagens do Brasil [...]. Praias paradisíacas, enfeitadas 58, jan.fev.mar. 2009, p. 6.
por montanhas, dunas e por vestígios da colonização do
Brasil”.
“O produto turístico brasileiro caracteriza-se por oferecer TURISMO brasileiro. Wikipédia.
tanto ao turista brasileiro quanto ao estrangeiro uma Acesso em: 12/08/2009.
gama diversificada de opções, com destaque aos
atrativos naturais, aventura e histórico-cultural.”
“Desde o início da história do Brasil, a Amazônia foi um ROTHER, Larry. Deu no New
domínio de paisagens fantásticas e grande número de York Times: o Brasil segundo a
fábulas e lendas”. ótica de um repórter do jornal mais
influente do mundo. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2008, p. 282.
“[São Paulo, Rio de Janeiro and Belo Horizonte] are CLEARY, David, JENKINS,
worth visiting but Rio, which really is as beautiful as it Dilwyn, MARSHALL, Oliver. The
seems in pictures, is the one essential destination. [...] rough guide to Brazil. 7. ed.
The spectacular Iguaçu Falls on the border with Londres: Rough guides, 2009, p. 9-
Argentina is one of the great natural wonders of South 10.
America. [...] the Pantanal, the largest wetlands in the
world and the richest wildlife reserve anywhere in the
Americas”.
“Da floresta amazônica, no Norte, com forte presença BRASIL. Encarte Min. Turismo
indígena, aos Pampas, no Sul, passando pelo exuberante
Pantanal, no Centro-Oeste, e pela biodiversidade
incomparável da Mata Atlântica, na faixa litorânea, o
Brasil fascina por sua beleza natural.”
“No Brasil a exuberância da natureza está por toda Blog Agradece Brasil. Disponível
parte. Aqui você encontra uma imensidão das areias em:
desérticas dos Lençóis Maranhenses, mais de sete mil <http://www.agradecebrasil.com.br
quilômetros de praias e depara-se com rios que mais /?p=941>. Acesso em: 15/11/2011.
parecem mar. O Brasil é o país da maior floresta do
planeta, do impressionante Pantanal e de uma reserva
natural privilegiada.”
“Esse país, que é o único no mundo com nome de árvore, Programa No astral, do canal
reúne entre 15% e 20% de todas as espécies conhecidas GNT, exibido em 04/12/2011. O
e catalogadas. Não é pouca coisa. Algumas dessas excerto é extraído de entrevista
espécies só ocorrem aqui, no bioma amazônico, na maior com o jornalista André Trigueiro.
floresta tropical úmida do mundo, na caatinga, no Na chamada do vídeo no site,
cerrado, no Pantanal, na Mata Atlântica, no pampa encontra-se “André Trigueiro fala
gaúcho... Isso é de uma riqueza incomensurável [...]”. sobre a riqueza do nosso meio
ambiente”
“Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito Letra da música “País tropical”, de
por natureza” Jorge Ben Jor.
O “discurso ecológico” que, segundo a hipótese inicial de pesquisa, pudesse permear
identificamos no princípio no turismo: as referências ao ecoturismo poderiam ser lidas por essa
ótica. Assim, ainda que houvesse um, digamos, traço “verde” na caracterização do espaço
“genuinamente” brasileiro, seria ele o foco a unir os discursos analisados? Com efeito, não parece
que esses discursos estejam submetidos a algo que se pudesse chamar de um mesmo sistema de
regras. Além disso, não se trata em nosso caso de analisar propriamente o funcionamento de um
“discurso ecológico” em si, mas sim de verificar em que medida um tal discurso contribui para a
espaço. E nesse sentido – alguns dos recortes acima podem nos ajudar a ver isso, como o título de
matéria da revista Viagem e turismo: “Mais que uma prainha bonita” – não parece que a
“ecologia” possa ser apontada como um foco unificador dos discursos sobre o espaço brasileiro: é
certo que as belezas naturais estão pressupostas (afinal, Santa Catarina tem praias bonitas), mas
Por outro lado, não se trata igualmente de perseguir os usos de uma determinada
objetiva-se descrever certas categorias no interior dos campos levantados – no caso de se ter a
hipótese de que o funcionamento dos discursos sobre o espaço nacional obedecesse, de algum
modo, certas rotinas mais ou menos fixas em cada campo – ou seja, não era uma análise
44
Mas, ainda assim, a construção do corpus apoia-se sobre uma configuração original,
isto é, um recorte não dado a priori, mas soberanamente criado a partir de algumas hipóteses;
resta ainda a opção de organizá-lo como uma formação discursiva plurifocal. Uma configuração
plurifocal sempre nos pareceu de apreensão mais difícil, especialmente ao se considerar que se
poderia acabar fazendo uma comparação entre os materiais coletados. Além disso, a própria
extraordinárias” de Júlio Verne pode deixar a impressão de que haja um mesmo “foco”, na
medida em que o autor propõe as figuras da Esfera e das Hordas. Será preciso, ao longo desta
pesquisa, tentar estabelecer uma distinção mais precisa entre ter focos “ligados” ou ter o
“mesmo” foco.
diversos momentos a repensar a melhor forma de apreendê-lo. Em nosso caso, talvez não seja
possível definir de uma vez por todas se se trata de uma formação discursiva unifocal ou
plurifocal. Por ora, o cenário parece ser o de uma plurifocalização – em que a heteronímia do
conjunto será mantida, embora haja, naturalmente, pontos de contato relevantes sobre a questão
proposta.
45
46
Capítulo 2 – A “invenção” do Brasil
47
A América não estava aqui à espera de
Colombo, assim como o Brasil não estava
aqui à espera de Cabral. Não são
“descobertas” ou, como se dizia no
século XVI, “achamentos”. São
invenções históricas e construções
culturais. [...] O Brasil foi instituído
como colônia de Portugal e inventado
como “terra abençoada por Deus” [...].
(CHAUÍ, 2006, p. 57)
1. Palavras iniciais
relação entre Brasil e natureza são necessárias — e serão retomadas nas análises. Trata-se de
mostrar que estamos, de fato, diante de uma temporalidade que permite a formulação da hipótese
de uma formação discursiva. Neste capítulo olharemos para um conjunto de materiais que, ainda
que não integrem o corpus propriamente dito, serve de evidência de que há um discurso acerca do
Brasil no que concerne ao seu espaço que remonta ao período de seu descobrimento.
“paradisíaco” fazem parte daquilo a que Chauí (2006) denominou mito fundador: uma espécie de
narrativa que impõe um vínculo interno com um passado de origem que, paradoxalmente, nunca
cessa, mantendo-se sempre perene. Isso significa, portanto, que “um mito fundador é aquele que
48
não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias,
de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo”
relacionadas àquilo a que chamamos aqui de espaço nacional – isto é, o que é tomado como
sendo a melhor representação do espaço físico de um país ou ainda uma “paisagem nacional
típica” (LÖFGREN, 2000) – e parecem ser aspecto bastante relevante de um ponto de vista
histórico. Com isso não se pretende dizer que esse traço não seja importante para outras (todas?)
Brasil que, como aponta Chauí (2006, p. 62), a bandeira brasileira – em franca dissonância com
as bandeiras nacionais pós-Revolução Francesa, “insígnias das lutas políticas por liberdade,
igualdade e fraternidade” – é quadricolor e não guarda qualquer relação política, por um lado,
nem narra, por outro lado, a história do país: é um símbolo da natureza, “é o Brasil-jardim, o
Brasil-paraíso”. O verde das matas, o amarelo das riquezas (o ouro), o azul do céu e as estrelas,
brancas. A imagem seguinte evoca de maneira ainda mais evidente a relação entre a bandeira
Fonte: <http://www.materiaincognita.com.br/o-melhor-do-lugar-do-mundo-e-aqui-e-agora/#axzz2xH6jj31P>.
36
Chauí (2006) chama “verdeamarelismo” a elaboração – por parte da classe dominante brasileira de um certo período
– de uma imagem celebrativa de um “país essencialmente agrário”. Tal imagem visava a legitimar, segundo a autora, o
que havia restado do sistema colonial e a hegemonia dos proprietários de terra no Império e início da República. Nessa
imagem, condensam-se o culto à natureza rica e bela do Brasil e a imagem de um povo pacífico e ordeiro.
49
Apresentaremos, então, neste capítulo algumas considerações acerca dessa
“invenção” do Brasil. O objetivo aqui não é ser exaustivo, mas oferecer alguns exemplos
ao rei D. Manuel assim afirma — dentre outras coisas que deixamos de citar aqui:
Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra
ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que
haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em
algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima
toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito
chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a
estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos – terra que nos parecia muito
extensa.
Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro;
nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados
como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d’agora assim os achávamos
como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a
aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! (CAMINHA,
[1500]1963; grifamos).
O verde das matas, as belas praias, o clima agradável, as águas: elementos da natureza
pródiga com que o Brasil foi abençoado já se faziam presentes na carta que dava notícias sobre o
“achamento” da nova terra. De fato, o Brasil “paraíso” é uma imagem fortemente cristalizada,
colonização da América do Sul, Holanda ([1959]2010) aponta que a “senha” para o entendimento
50
de diversos aspectos da civilização latina no Novo Mundo é o “motivo edênico”; desde o começo
das viagens de Colombo, “a crença na proximidade do Paraíso Terreal não é apenas uma sugestão
metafórica ou uma passageira fantasia, mas uma espécie de ideia fixa”, de modo que a “tópica
das ‘visões do paraíso’ impregna todas as suas [de Colombo] descrições daqueles sítios de magia
Os relatos dos que no Novo Mundo estiveram nos primeiros anos — recortes dos
quais são apresentados e analisados por Holanda ([1959]2010) — são marcados por tentativas de
aproximação com elementos que pudessem de alguma forma remetê-los ao Éden bíblico — os
textos do Gênesis funcionam neste caso como uma espécie de “mapa do tesouro” dos
navegadores37. Três são os topoi recorrentes apontados pelo autor, a saber: i) a perene primavera e
temperança dos ares; ii) a longevidade dos seus nativos; iii) a ausência de pestilências e
consequente vida longeva dos índios eram, em boa medida, atribuídas ao caráter ameno do clima
Falando sobre o Brasil, por exemplo, podem-se citar – além da Carta de Caminha,
como vimos acima – passagens em que a amenidade do clima é destacada, como a seguinte, de
Gandavo (apud HOLANDA, [1959]2010, p. 26): “nesta província de Santa Cruz de tal maneira
se comediu a natureza na temperança dos ares, ‘que nunca se sente frio ou quentura excessiva’”;
ou a de Anchieta, para quem “não faltavam no tempo do inverno os calores do sol para
37
As passagens do Gênesis dão conta de características climáticas, de localização (por meio de elementos como rios)
e dos “residentes”. Uma delas que é inclusive recortada para comparações de Holanda está em Gênesis, 2: 10: “E
saía um rio do Éden para regar o jardim; e dali se dividia e se tornava em quatro braços”. Holanda ([1959]2010, p.
118-119), acerca dessa questão, observa: “Não é bem um eco desse pensamento, agora convertido em visão
premonitória e futurista, o que ressoa já no século XIX nas palavras de Hipólito da Costa, quando coloca a capital
imaginada do Brasil naquelas mágicas paragens, onde encontra ainda um sítio singularmente privilegiado a que não
faltam sequer as velhas sugestões edênicas? Lá aparecem os homens a encaminhar-se para um ‘país do interior
central e imediato à cabeceira dos grandes rios’”.
51
contrabalançar os rigores do frio, nem no estio para tornar mais agradáveis os sentimentos, as
bíblica “non ibi frigus non aestus” — permitia o florescimento de uma vegetação “exuberante” e
a obsessão dessa paisagem verdejante, de tão bons céus e ares que, se não liberta seus
moradores da lei da morte, imuniza-os, ou quase, de mortais pestilências e outros danos
cruéis, capazes de fazer definhar e padecer os homens em muitos lugares – com o que
atingem esses moradores excessiva longevidade – se enlaça estreitamente aos motivos
edênicos, tão populares durante as grandes navegações da época. (HOLANDA,
[1959]2010, p. 374).
dos patriarcas bíblicos e sucedâneo plausível, além disso, da imortalidade, própria do estado de
inocência em que foram postos os nossos primeiros pais no Paraíso Terrestre” (HOLANDA,
[1959]2010, p. 357).
proporcionada pelo clima temperado, responsável por garantir aos seus habitantes uma vida
não admira se, em contraste com o antigo cenário familiar de paisagens decrépitas e
homens afanosos, sempre a debater-se contra uma áspera pobreza, a primavera
incessante das terras recém-descobertas devesse surgir aos seus primeiros visitantes
como uma cópia do Éden. Enquanto no Velho Mundo a natureza avaramente regateava
suas dádivas, repartindo-as por estações e beneficiando os previdentes, os diligentes, os
pacientes, no paraíso americano ela se entregava de imediato em sua plenitude, sem a
dura necessidade – sinal de imperfeição – de ter de apelar para o trabalho dos homens.
(HOLANDA, [1959]2010, p. 13).
O tema das cores que dominam o cenário brasileiro seria retomado anos mais tarde,
52
cromático” que é o Brasil: “parece que Deus derramou tinta por tudo”, escreve ele. Do
“escândalo” de cores da natureza — do céu aos animais — o autor faz um paralelo com mistura
de raças que formam o povo brasileiro: “todas as cores raciais na paisagem humana”.
elementos “verdadeiramente” nacionais, desvinculados até certo ponto da antiga metrópole, foi
período marcado pela exaltação dos índios e da natureza. Em ensaio breve, Gonçalves de
O Brasil, tão fértil em produtos naturais, não o é menos em gênios raros. Teve seus
poetas, essa nação nascida ontem; aliás, o brasileiro nasce poeta e músico: à sombra de
suas altas palmeiras, ao som do violão agreste, sua imaginação se expande em acordes
melodiosos como a brisa de suas florestas virgens.
os artistas nacionais. Como se verá nas análises, também no campo da moda destaca-se a
influência desses elementos sobre o caráter criador/criativo dos estilistas nacionais. A imagem
apresentada acima reitera as imagens paradisíacas das florestas virginais com brisas que tornam o
clima ameno.
Gonçalves Dias:
38
Essa escola é apontada por muitos críticos literários como a primeira verdadeiramente nacional, i.e., independente
de Portugal. Candido (1981, p. 23-24) observa, sobre esse tema, que só se pode considerar “literatura brasileira” – ou
de qualquer outra nacionalidade – quando há um sistema em que três elementos encontram-se consolidados, a saber:
i) obra; ii) autor; iii) público. No caso de haver autores cientes de seu papel, que escrevam obras capazes de despertar
o interesse e a formação de um público, um sistema se formará de modo a haver uma “continuidade literária” – em
oposição a um “movimento literário”, quando nem todos aqueles elementos encontram-se consolidados.
53
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
exaltam-se os pássaros, as árvores, as flores, as várzeas, o céu: todo o cenário idílico que se
oferece ao “desfrute”. Na exaltação às cores do país, Cassiano Ricardo, quase um século depois
de Gonçalves Dias, irá também, no já citado romance Marcha para o oeste (1940), falar do céu
anil, das flores e das aves que gritam o amarelo avermelhado do ouro e do sol.
merece destaque também o período compreendido entre o final do século XIX (especialmente a
última década) e início do século XX (as duas primeiras décadas, principalmente). Nesse período,
infantil. Entre os escritores que se dedicaram a essa literatura, encontramos Olavo Bilac, que
39
A primeira edição da revista data de 11 de outubro de 1905.
40
Esse mesmo poema pode ser encontrado também com o título de “A pátria”. Optamos por apresentá-lo com o
título “Brasil” por assim estar em coletânea de textos “patrióticos”, de Frederico dos Reys Coutinho, que será
54
Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! Não verás nenhum país como este!
Olha que céu! Que mar! Que rios! Que floresta!
A natureza, aqui, perpetuamente em festa,
É um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! Vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!
Boa terra! Jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha...
Quem com o seu suor a fecunda e umedece,
Vê pago o seu esforço, é feliz, e enriquece!
Criança! Não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste! (grifamos)
Paraíso Terreal tão avidamente procurado pelos navegadores. Esse poema bebe no ufanismo de
Afonso Celso, que, em 1901, publica o não menos célebre Porque me ufano do meu país, com
motivos que vão da natureza à história, passando pelo povo. Chauí (2006, p. 51-52) assim
apresentada mais adiante. Nessa mesma coletânea, há um outro poema de Bilac com o título de “Pátria”.
55
quanto pode dar, mostrando-se-lhe sempre magnânima, meiga, amiga, maternal!”.
(grifamos).
Dos cinco motivos acima citados – e que grifamos – encontramos referência a dois
topoi descritos por Holanda ([1959]2010), a saber: a temperança dos ares e a ausência de
pestilências e enfermidades (em Afonso Celso não se fala em “ausência”, mas aqui seriam mais
amenas, ou com cura mais rápida). Além disso, encontramos aqui a exaltação das belezas e das
riquezas naturais, bem como da grandeza do país – ecos do que lemos no excerto da carta de
de Afonso Celso: a natureza “maternal” (que oferece as condições para o crescimento de todos –
qualquer posição almejada é alcançada com trabalho), a “grandeza” da terra (a ser imitada) e, não
Durante a chamada Era Vargas (1930-1945), o ufanismo também teve forte presença.
É dessa época o movimento na música popular brasileira que ficou conhecido como samba-
exaltação e que teve na Aquarela do Brasil o seu marco inaugural, em 1939. De autoria de Ary
Barroso, a canção articula dois grandes temas da “grandeza” nacional: a natureza e o povo, aqui
atualizada por meio da referência ao verde, às noites enluaradas, ao coqueiro, às fontes. Não se
pode esquecer ainda que a “terra abençoada por Deus” – presente inicialmente na carta de
Caminha (“Nosso senhor não nos trouxe sem causa”) – também encontra ecos na canção de
56
[…]
Brasil, terra boa e gostosa
Da moreninha sestrosa
De olhar indiferente.
A canção de Ary Barroso destaca o “verde” do Brasil que o mundo admira e “inveja”,
como diz Casimiro de Abreu, e que nas palavras de Bilac “não tem rival”. O coqueiro, as fontes e
a noite enluarada: elementos da natureza do país que são frequentemente atualizados nas páginas
de nossa história. Mesmo quando se valorizam outros elementos do “caráter” nacional – o povo,
Exemplo disso é a antologia organizada por Frederico dos Reys Coutinho, em 1954,
intitulada As mais belas poesias patrióticas e de exaltação ao Brasil. Trata-se de período em que
houve muitos avanços tecnológicos (as transmissões pela televisão, por exemplo), além de ser
período marcado por conflitos internacionais e, em tal contexto, os aspectos acima poderiam ser,
saber: i) A pátria e a bandeira; ii) A raça e a natureza; iii) Vultos ilustres e páginas da história
brasileira; iv) Diversas, hinos e canções. A antologia é composta de 140 peças, dentre hinos,
canções e poemas de autores variados, dentre os quais podemos citar Olavo Bilac, Cassiano
Ricardo, Castro Alves, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela. Mesmo havendo seção específica
57
para tratar das grandezas naturais do Brasil, é possível encontrar referências a ela em todas as
demais seções – mesmo não sendo tema das peças, a natureza se faz presente em grande número
dos poemas e canções. Um exemplo é “Minha terra”, de C. de Abreu, da primeira seção, que,
sua “grandeza” natural, “do mundo todo invejada” porque “Deus fadou-a/ dentre todas – a
primazia destacada acima evoca memórias do Éden bíblico, a primeira casa do homem. Sua
juntamente com a natureza, que, embora não ocupe a “primeira posição” na compilação, reúne
muitos materiais que atualizam os motivos edênicos da época do descobrimento. Um dos poemas
Parece-nos interessante apresentar duas estrofes aqui: a primeira delas inicia apresentação das
grandezas do país, de modo que as que a seguem irão esmiuçar os diversos rios e alguns artigos
“cobiçados” naquela época (cana e tabaco); já a segunda a ser citada aqui é justamente a última
presente na antologia de Coutinho, que retoma o “em se plantando tudo dá” que — embora não
58
Sobre as nuvens na cima recrescida,
A serra de Aimorés, que ao pólo é raia,
As de Ibo-ti-catu e Itatiaia.
país. Em agosto de 1969, é lançada música que até os dias de hoje é lembrada quando se trata de
exaltar as belezas nacionais: País tropical, de Jorge Ben Jor. A música encaixa-se perfeitamente
no ufanismo (militarista) que se vivia: “Moro num país tropical/ Abençoado por Deus/ E bonito
por natureza [...]”. No entanto, a imagem típica do “verdeamarelismo” não era tão forte assim
nesse período. E isso decorre, até certo ponto, do fato de que a exaltação das características mais
que a ênfase na atividade industrial era maior. Chauí (2006) observa que, nesse contexto, o
“verdeamarelismo” permanece, porém; e isso se dá, segundo a autora, por dois motivos:
em primeiro lugar, ele permitia enfatizar que o país possuía recursos próprios para o
desenvolvimento e que a abundância da matéria-prima e de energia baratas vinha
justamente de sermos um país de riquezas naturais inesgotáveis; em segundo lugar, ele
assegurava que o mérito do desenvolvimentismo se encontrava na destinação do capital
e do trabalho para o mercado interno e, portanto, para o crescimento e progresso da
nação contra o imperialismo ou a antinação. (CHAUÍ, 2006, p. 40).
59
Assim, o verdeamarelismo constituiu-se, nesse período, um pano de fundo até certo
outro lado, significando alienação. No entanto, nunca chegou a ser totalmente abandonado ou
Com letras que incorporavam, em sua maioria, os slogans militares, o carnaval do Rio de Janeiro
197041, quando a escola traz para a avenida o enredo Um cântico à natureza. É possível notar na
traz em sua letra a exaltação das forças militares e, tal como o samba enredo acima, também traz
referências explícitas ao civismo pregado por Bilac (em itálico), bem como à “dádiva” de Deus a
que Caminha referia-se (sublinhado). Bastante sugestivo é o título: Riquezas do Brasil. Vejamos:
O percurso feito até aqui permite observar as diversas retomadas que são feitas das
Brasil, bem como dos topoi que marcaram a era dos descobrimentos segundo as análises de
Holanda ([1959]2010); além dos versos que, em nossa literatura, tornaram-se sinônimo de
objetivo aqui não foi, como se pode notar, ser exaustivo — trata-se, antes, de mostrar como, ao
longo do tempo e em diversos campos, se foi construindo um imaginário do Brasil no que diz
61
Segundo Chauí (2006) — apoiando-se em e referendando, em parte, os estudos de
elementos que constroem o mito fundador nacional: “a obra de Deus, isto é, a Natureza, a palavra
de Deus, isto é, a história, e a vontade de Deus, isto é, o Estado” (CHAUÍ, 2006, p. 58). O mito
no presente, pois, em certa medida, não permite operar sobre a diferença temporal, impedindo o
entendimento do presente enquanto tal: “nosso passado assegura nosso futuro num continuum
temporal que vai da origem ao porvir”, já que, “se o Brasil é ‘terra abençoada por Deus’, se é
paraíso reencontrado, então somos berço do mundo, pois somos o mundo originário e original”
Ao qualificar tais narrativas de mito fundador, Chauí pretende dar conta do fato de
que ele “oferece um repertório inicial de representações da realidade e [...] sob novas roupagens,
o mito pode repetir-se indefinidamente” (2006, p. 10) e foi o que tentamos mostrar até aqui: os
O próximo tópico trará alguns exemplos coletados nos materiais que compõem o
corpus desta pesquisa a fim de explicitar a relação entre o que foi exposto até o momento e as
propriamente ditas engloba turismo e moda, ambos bastante representativos do Brasil no exterior,
i.e., são cenários que contribuem grandemente para a construção de representações do Brasil,
62
inclusive no que tange a uma paisagem típica. Daí sua escolha. Se insistimos na construção do
imaginário sobre esse espaço nacional é porque ele parece ser fator importante para a identidade
nacional42, como mostra a declaração de Joseph Blatter, presidente da FIFA, que afirmou estar
“impressionado” com a proposta de uma “copa ecológica”43 que, segundo ele, só poderia ter sido
feita pelo Brasil. Tal declaração funcionou, já dissemos, como “pontapé inicial” para a
problemática aqui apresentada: a construção de um Brasil “genuíno” no que diz respeito ao seu
espaço. O que chama a atenção nela é que mesmo diante de elemento tão constitutivo da
especificamente do Brasil, foi marcada pela busca de “evidências”44 de que aqui estava o paraíso
terreal, como aponta obra de Holanda ([1959]2010). E essa imagem permanece ainda muito forte
no imaginário acerca do Brasil, como revela Carvalho (1998) em trabalho mais recente, mas
fortemente influenciado pela obra de Holanda ([1959]2010). Diferentemente deste último autor 45,
Carvalho (1998) detecta, num corpus constituído de pesquisas de opinião de 1997, que, ao lado
dos mesmos motivos edênicos levantados por Holanda, há uma oposição — que ele chama de
42
O tema da identidade nacional já foi tratado em outra pesquisa nossa (VILELA-ARDENGHI, 2007), mas o
enfoque lá era em torno da relação com a língua. A questão identitária, portanto, é de particular interesse para nós.
43
Quando da proposição do Brasil como candidato à Copa de 2014 da FIFA, o marketing da candidatura girou em
torno da ideia de uma “copa ecológica”.
44
De acordo com Holanda, a partir do século XVI, os escritos portugueses tornam-se cada vez menos “sóbrios e
realistas” e ganham ares de “efusões mais desvairadas” (p. 27). Exemplo disso é obra do português Antonio León
Pinelo que, sem hesitar, aponta, com base no texto bíblico, que o paraíso terreal encontrava-se na América. Além
dele, Simão de Vasconcelos, ao escrever “Notícias curiosas e necessárias das coisas do Brasil” (que abre a Crônica da
Companhia de Jesus), colocava “nos sete últimos parágrafos [...] a teoria de que estava na América o Paraíso, e mais
precisamente no Brasil” (p. 28).
45
Para Holanda, as “imagens negativas” ou “negadoras” da visão edênica não eram suficientemente relevantes para
fazerem frente “aos mesmos extremos a que chegou sua [da América do Sul] idealização. Ou melhor, não
conseguiram cristalizar-se, salvo como opiniões individuais e sem muita força de contágio” (HOLANDA,
[1959]2010, p. 32)
63
razão satânica — responsável pelas representações negativas do brasileiro: sua pequenez diante
da natureza e seu pouco engajamento político e social. Note-se, porém, que essa imagem negativa
recai sobre o povo, mas não modifica a concepção do espaço nacional “típico” do Brasil. Ao
contrário, a grandeza da natureza funciona aí como elemento que cerca o povo brasileiro,
([1959]2010) vai com o tempo se diluindo, ainda atualmente a ideia de que no Brasil se tem um
natureza, às belezas naturais, como bem se pode observar nos recortes que seguem 47, extraídos do
turismo:
(1) Praias paradisíacas, enfeitadas por montanhas, dunas e por vestígios da colonização
do Brasil. Assim é o Espírito Santo [...]. (Revista Bancorbrás, ano XVI, n. 58,
jan./fev./mar. 2009, p. 6)
(2) Ano novo: momento de renovação, férias e aventuras sob o generoso sol do verão
brasileiro! [...] Os diversos vôos diários ao Rio de Janeiro, por exemplo, tornam mais
acessível um dos paraísos turísticos brasileiros: Angra dos Reis [...], que oferece 365
ilhas, uma para cada dia do ano, oito baías e mais de duas mil praias compondo um
cenário deslumbrante para o turista em busca de belezas naturais. (Avianca em Revista,
ano III, n. 19, 2010, p. 10)
(3) [Uma das baías de Angra] abriga inúmeras ilhas, praias paradisíacas e um mar de
águas transparentes [...]. (Avianca em Revista, ano III, n. 19, 2010, p. 52)
(4) Little by little, however, we start to discover paradisiacal places filled with
attractions such as waterfalls, caves and lagoons, all endowed with complete infra-
structure for visitors of all ages who look for adventure, radical sports and all the thrill
the Brazilian Central Plateau has to offer. (Brasil Central, encarte EMBRATUR e
Ministério do Turismo do Brasil, s/d)
46
Segundo relata Holanda ([1959]2010, p. 28), em texto de Pinelo, impresso pela primeira vez em 1663, “nos sete
últimos parágrafos vinha explanada a teoria de que estava na America o Paraíso, e mais precisamente no Brasil. Já se
achavam prontos dez exemplares da obra quando veio ordem superior para se riscarem aqueles parágrafos”. A ordem
superior, bem entendido, vinha da Igreja Católica. Vê-se, assim, que a havia na época uma necessidade de localizar
efetivamente na Terra o Paraíso. Além disso, Holanda ([1959]2010) aponta também que as indicações para que se
pudesse encontrar geograficamente o paraíso eram extraídas da Bíblia.
47
Dada a imensa quantidade de referências como essas nos materiais de nosso corpus, apresentaremos aqui alguns
recortes apenas.
64
(5) Mato Grosso presents an enormous diversity of natural landscapes: the cerrado, the
Amazon rainforest and the Pantanal. A paradise for rare bird species. (Brasil Central,
encarte EMBRATUR e Ministério do Turismo do Brasil, s/d)
(6) In Caldas Novas, Rio Quente, Lagoa Santa, Jataí and Cachoeira Dourada, you will
feel the pleasure of a unique experience: relaxing in hot water right in the middle of
paradise. (Brasil Central, encarte EMBRATUR e Ministério do Turismo do Brasil, s/d)
(7) Porto de Galinhas é um verdadeiro paraíso tropical! São quilômetros de areias finas,
banhadas por águas de uma gama de tons de verde impressionante. Neste local mágico,
onde o sol brilha muito,há maravilhosos arrecifes que formam deliciosas piscinas
naturais. (Revista de Turismo, disponível em:
<http://www.revistaturismo.com.br/passeios/p-galinhas.htm>)
(8) [Cabo de Santo Agostinho] Pertence à zona metropolitana de Recife e basta percorrer
37 quilômetros rumo ao sul para alcançar esse pedaço do paraíso. (Revista da
Bancorbrás, ano XVI, n. 65, out./nov./dez. 2010, p. 13)
Como se pode ver nos recortes acima, quase sempre as referências ao paraíso dizem
respeito às praias, mas sempre às belezas naturais. Julgamos não ser necessária a apresentação de
mais recortes na medida em que eles reiteram os aqui apresentados em que tentamos mostrar a
Além desses exemplos acima, há ainda um outro encarte48 produzido pelo Ministério
(9) A Ilha de Marajó guarda verdadeiros tesouros turísticos. Danças típicas, assim como
a cerâmica e a culinária marajoaras, ajudam a enriquecer o cenário paradisíaco. (p. 23)
(12) A partir de Jeri, pode-se visitar várias outras praias nas redondezas. O que não falta
são lugares paradisíacos para o turista desfrutar. (p. 41)
(13) As cidades de João Pessoa, capital da Paraíba, Conde e Cabedelo são bem próximas
e oferecem opções que vão das belas e paradisíacas praias até igrejas, casarios e
monumentos históricos típicos do início da colonização brasileira. (p. 46)
48
Este encarte (BRASIL. Ministério do Turismo. Roteiros do Brasil: 87 belos motivos para viajar pelo Brasil,
2009.) será objeto de análises mais detidas no capítulo seguinte.
65
(14) As cidades de Miranda, Corumbá e Bonito são os portais de dois dos mais
espetaculares paraísos ecológicos: o Pantanal Sul-Matogrossense e as águas cristalinas
de Bonito. (p. 71)
(15) Três Estados [da região Sudeste] têm litoral e, portanto, ostentam ilhas e praias
paradisíacas.
(16) A Costa Verde, no sul, ostenta dezenas de ilhas paradisíacas, praias, enseadas
sinuosas e montanhas. [...] Situada no Médio Vale do Rio Paraíba, a Região das Agulhas
Negras alia vegetação exuberante, cachoeiras e recantos paradisíacos a um imponente
conjunto de formações rochosas. (p. 85)
No campo da moda, esse paraíso vem representado, por exemplo, pelas ricas flora e
fauna que aparecem não apenas nas estampas, mas também nos cenários dos desfiles e catálogos:
por exemplo, na Marcha para o oeste, de Cassiano Ricardo: o colorido nacional (“parece que
Deus derramou tinta por tudo”; “berreiro cromático”). Vai nessa direção a declaração da estilista
(18) Muitas pessoas nem sabem que sou brasileira. Mas sei que se fosse sueca minhas
roupas nunca teriam esse colorido, esse bordado, esse tempero.49 (grifamos).
Tufi Duek, outro estilista nacional, também destaca a relevância das cores para a
moda brasileira:
49
In: MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 130.
66
(19) Hoje todo mundo fala da nossa tropicalidade, do nosso colorido, nossa
sensualidade. Eu me sinto bastante orgulhoso em dizer [...] que eu sou pioneiro nisso.50
(grifamos).
nacional:
tropical” — é possível ver essas referências em (19) e (20) acima. Essas cores estão presentes
também nas estampas que costumam aparecer nas coleções inspiradas pelo “Brasil”:
a natureza exuberante, quase arrebatadora, que germina e impregna-se por toda parte, é
uma sedutora representação do Brasil em nossa moda de vestir, assim como é metáfora
do país fora de suas fronteiras. Fauna e flora inspiram diretamente motivos figurativos
em nossas estampas e padronagens. Ao mesmo tempo, a natureza percebida como
molde para um caráter nacional brasileiro (ou como sua segunda natureza), serve de
linha mestra para coser nossa moda. (2007, p. 130; grifamos).
Para a presente pesquisa, assumiremos que tanto o motivo edênico quanto os demais
temas que, de algum modo dele derivam e que acabam por construir um imaginário do espaço
50
História da moda no Brasil. Direção: João Braga, Luís André do Prado, Tatiana Lohmann. 2012. Documentário.
51
Declaração de um jornalista gaúcho durante edição do Fashion Rio (apud LEITÃO, 2007, p. 133).
67
nacional têm, ainda hoje, ecos na construção de um espaço nacional “genuíno”; não é objetivo
aqui, contudo, detectar os eventuais topoi sobre os quais se assentaria tal construção. Dito de
outro modo, os temas edênicos que motivaram em parte os relatos da época do descobrimento
contribuíram para que se cristalizasse — para usar o mesmo termo de Holanda ([1959]2010) —
uma certa imagem do Brasil. Considerando que os estereótipos são “representações cristalizadas,
esquemas culturais preexistentes através dos quais cada um filtra a realidade a seu redor”
(LIPPMANN apud AMOSSY & PIERROT, 2005, p. 31-32), então é um estereótipo do espaço
tomada como uma construção redutora e nociva, ora como um ponto de ancoragem para a relação
do sujeito com o real. Frequentemente, os estudos ligados a tal noção são feitos tendo como
mulheres etc.); não será essa a abordagem aqui. Trata-se, como já dito, de analisar os usos, a
Uma concepção pioneira de estereótipos nas ciências sociais data da década de 1920,
segundo Amossy e Pierrot (2005, p. 31). A obra Opinião pública, de Lippmann apresenta os
estereótipos como imagens indispensáveis para a vida em sociedade, pois permitiriam aos
sujeitos categorizarem o real, atuando sobre ele: “¿Cómo examinar cada ser, cada objeto en su
apud AMOSSY & PIERROT, 2005, p. 32). Seriam, assim, uma espécie de imagem fictícia, mas
não por serem mentirosas: tais imagens expressariam um imaginário social (LIPPMANN,
[1922]2008). Assim, ainda que sejam por vezes excessivamente redutoras, tais imagens são
68
Aqueles que compartilham dessa posição veem nos estereótipos uma importância
1975). As questões referentes ao processamento cognitivo são certamente pouco relevantes para a
Análise do Discurso francesa o que talvez tenha feito com que durante muito tempo os
analistas se interessassem pouco pelo estudo dos estereótipos (AMOSSY & PIERROT, 2005, p.
112), o que não significa, porém, que sejam os estereótipos desinteressantes ou mesmo
comuns que tornam o estudo dos estereótipos um terreno profícuo (AMOSSY& PIERROT,
el sentido de las palabras no es independiente de los contextos en las que están insertas
(contextos sinctáticos, enunciativos, genéricos, géneros como la noticia policial, la
conferencia, la editorial, etc.) ni del lugar de los locutores en el campo sociohistórico e
institucional. (AMOSSY & PIERROT, 2005, p. 112).
como uma imagem fictícia mediadora da relação do sujeito com o real, traz outras questões à
69
baila. Biroli (2011, p. 76), por exemplo, ainda que não concorde integralmente com tal
Mais adiante, a autora irá questionar o postulado de que esses esquemas dariam conta,
por assim dizer, de mediar as experiências vividas, i.e., as relações do sujeito com o real – ao
menos em sua totalidade. Isso não significa, contudo, negar a importância ou mesmo a “validade”
que os estereótipos não são capazes de dar sentido à totalidade das experiências, mas
funcionam como uma interpelação concreta para que os indivíduos e grupos [...], a cada
geração, orientem seu comportamento de acordo com esses padrões, confirmando as
habilidades aí envolvidas. Internalizadas, as imagens estereotípicas produzem padrões
reais de comportamento que confirmam, potencialmente, os estereótipos. Estes passam,
assim, a coincidir com aspectos constatados e verificáveis da realidade. O conflito dos
indivíduos com os papéis que são chamados a desempenhar pode aparecer, então, como
um desvio, em vez de ser tomado como confirmação de que a realidade é mais complexa
do que a tipificação. (BIROLI, 2011, p. 78; grifos no original).
(2005). Discutindo a questão da adequação ao real, as autoras apontam que mesmo que diversos
estudos naquela área já tenham mostrado que os estereótipos podem se propagar sem qualquer
base “objetiva” — i.e., sem qualquer ancoragem na “realidade” —, a observação direta não é
vista nas ciências sociais em geral como a ferramenta ideal para validar ou invalidar os
estereótipos: “lo que percibimos está moldeado de entrada por las imágenes colectivas que
tenemos incorporadas en nuestra mente” (AMOSSY & PIERROT, 2005, p. 41). Ou seja, a
“realidade” enquanto tal não é acessível “objetivamente” — o que vemos, segundo Lippmann
70
([1922]2008), é o que nossa cultura definiu previamente por nós. E como se daria, então, o acesso
televisão e a publicidade, advertem as autoras, contribuem para forjar uma ideia acerca de um
grupo nacional, por exemplo, com o qual não se tem contato algum; os adolescentes e crianças,
por seu turno, têm contato com seriados, livros escolares e de história, por meio dos quais
representações da mulher — Amossy e Pierrot (2005) relatam que alguns estudos chegaram
mesmo a analisar a relação entre as horas passadas diante da televisão e os estereótipos sexuais
dominantes interiorizados pelas crianças. A visão que se tem, portanto, de determinados grupos
bem filtradas pelo discurso dos meios de comunicação. Em resumo, os estereótipos seriam
principalmente resultado de uma aprendizagem social (AMOSSY & PIERROT, 2005, p. 41).
Também nessa direção, Leitão (2007) aponta que, na moda, as relações entre temas “tropicais” e
O uso de tais de imagens da natureza pela moda brasileira poderiam, portanto, ser
percebidos como simples reflexos de “tendências de moda” mais gerais, sem qualquer
referência ao nacional. Os vínculos entre elementos imagéticos que retratam natureza e o
Brasil não são, fazendo um jogo de palavras, “naturais”. Parece ser muito mais através
do discurso midiático, mais especificamente aquele do jornalismo de moda brasileiro,
que se (re)estabelecem semelhantes vínculos. (LEITÃO, 2007, p. 141).
Diremos, então, do ponto de vista teórico aqui adotado, que interessa analisar o modo
os discursos sob análise. Em outras palavras, será preciso perguntar-se, a partir do quadro teórico
da Análise de Discurso francesa, como este estereótipo é retomado, negado, posto a circular nos
71
72
Capítulo 3 – Terra brasilis
73
Pessoas simpáticas: de fato, essa é a
marca do Brasil no mundo [...]. Outro
ponto forte é que é um país lindo, um país
que tem praias [...], que tem belezas
naturais, que tem a Amazônia como uma
referência. (Flávio Dino, presidente da
EMBRATUR, sobre pesquisa realizada
durante a Rio +20 em torno da imagem
do estrangeiro sobre o Brasil)
1. Palavras iniciais
a escolha do cenário turístico parece, até certo ponto, “natural”, pois há uma relação quase direta
com as paisagens típicas dos lugares apresentados. No final de 2007 tomando a escolha do
Brasil para sediar a Copa de 2014 como um marco , iniciamos o levantamento de material
referente ao turismo no Brasil. Diante desse fato, esperava-se, pensando especificamente nas
revistas de turismo nacionais, que haveria alguma repercussão daquela escolha no número de
Não houve, porém, qualquer impacto: o número de matérias com destinos nacionais chegou, em
algumas revistas, a diminuir52. Além disso, muitas das matérias sobre o Brasil convidavam os
52
Vide tabela no anexo 1, em que apresentamos uma parte da coleta – suficiente para que se verifique o afirmado
aqui: duas das principais revistas de turismo que circulam no Brasil e o levantamento das edições de dois anos, que
são representativos dos demais anos compreendidos no corpus.
74
leitores a conhecer um “novo” Brasil, um “pedacinho da Europa” no Brasil, enfim, uma dimensão
considerada “surpreendente” do país algo que, pensamos, poderia estar na direção oposta à
nacional brasileiro é construído apoiando-se fortemente na relação com a natureza não é original;
muito pelo contrário, aliás, como o capítulo anterior tratou de mostrar. Em nossa defesa,
diríamos, em primeiro lugar, que se tratava de hipótese — e como tal, sujeita ao aceite ou à
recusa, conforme caminhassem as análises. Entretanto, mais importante que isso era o caráter até
“sexo” é assunto interdito na sociedade — para descobrir posteriormente que é “mais interessante
e mais rico fazer a história da sexualidade a partir do que a motivou e impulsionou do que a partir
Este trabalho tem, sem dúvida, objetivos muito mais modestos que os de Foucault.
Mas é preciso reconhecer que olhar para fenômenos aparentemente evidentes pode mostrar
funcionamentos insuspeitos.
empreendido; diremos, então, que esta é uma primeira “focagem”. Deste universo fazem parte
75
matérias de revistas de turismo53, guias turísticos54, materiais de divulgação elaborados pelo
publicados em veículos diversos da imprensa nacional — pelos governos das cidades candidatas
Como dissemos no primeiro capítulo, uma questão fundamental para o analista está
em encontrar uma entrada no corpus. Tal entrada pode ser — e frequentemente é — “modesta”
texto para além do seu conteúdo. No conjunto aqui reunido para análise, encontramos uma
modalidade turística que, embora não constasse em grande número no corpus, permitiu apreender
***
53
Tanto revistas especializadas (Viagem & Turismo, Viaje Mais e Próxima Viagem – todas as edições de 2007 a
2013) quanto revistas de companhias aéreas (Tam nas nuvens, Revista da Avianca, Revista da Azul, Revista Gol),
além da Revista da Bancorbrás, um consórcio de turismo. Há ainda algumas edições especiais produzidas pelo Guia
4 rodas (que também é responsável pela publicação da Viagem & Turismo).
54
Os roteiros turísticos reunidos aqui foram coletados em diversas agências de turismo, de maneira um tanto
aleatória, mas há também roteiros publicados por agências de turismo em seus respectivos sites (sempre citados ao
longo do trabalho). A exceção aqui é o guia, para estrangeiros, The rough guide to Brazil (2009, ed. Rough Guides).
55
Brasil Central, Roteiros do Brasil: 87 belos motivos para viajar pelo Brasil, Balanços semestrais do Ministério do
Turismo (de 2007 a 2012).
56
A coleção “Textos do Brasil”, publicação organizada pelo Itamaraty, que reúne temas que objetivam divulgar a
imagem do Brasil dentro e fora do país (a revista é publicada em português, espanhol, inglês e francês). Há números
sobre a música, a gastronomia, esportes, moda etc. As primeiras edições traziam diversos textos sobre turismo em
cidades e Estados brasileiros; para este trabalho, foram analisados textos dos números 1 a 5, todos disponíveis em:
<http://dc.itamaraty.gov.br/imagens-e-textos/revista-textos-do-brasil/portugues>.
57
Revistas Veja, Isto é, Época (referendadas sempre que citadas), cadernos de turismo dos jornais O Globo, Estadão
e Folha de S.Paulo, algumas matérias em outras revistas (igualmente referendadas quando citadas), por exemplo na
revista feminina Elle. Todas essas revistas integram o mesmo recorte temporal assumido para os demais materiais:
partindo de 2007 até 2013.
76
Partindo da tese de que
Foucault propõe que, juntamente com a interdição de que se falou acima, como um sistema de
verdade. Diferentemente dos dois primeiros – que são mutáveis, já que se organizam em torno de
contingências históricas, e exercidos com uma certa dose de violência –, a vontade de verdade
por vezes “mascara-se” e não é percebida como uma “prodigiosa maquinaria destinada a excluir
todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de
funcionamento em nossa sociedade, observa Foucault, comporta ainda uma outra dimensão que
interessará para nossas análises: a vontade de verdade exerce uma certa pressão sobre outros
discursos, o que tem como um de seus efeitos a recorrência a enunciados de “verdade” ainda que
não se esteja no interior do campo que os produziu ou ainda que os campos invadidos não sejam
“de verdade”:
Penso na maneira como a literatura ocidental teve de buscar apoio, durante séculos, no
natural, no verossímil, na sinceridade, na ciência também — em suma, no discurso
verdadeiro. Penso, igualmente, na maneira como as práticas econômicas, codificadas
como preceitos ou receitas, eventualmente como moral, procuraram, desde o século
XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificar-se a partir de uma teoria das riquezas e
da produção; penso ainda na maneira como um conjunto tão prescritivo quanto o sistema
penal procurou seus suportes ou sua justificação, primeiro, é certo, em uma teoria do
direito, depois, a partir do século XIX, em um saber sociológico, psicológico, médico,
psiquiátrico: como se a própria palavra da lei não pudesse mais ser autorizada, em nossa
sociedade, senão por um discurso de verdade. (FOUCAULT, [1971]2004, p. 18-19).
As reflexões de Foucault sobre a vontade de verdade podem ser de grande valia para
legitimação do espaço nacional; ou melhor, para analisar um fenômeno que começa a ganhar
77
fama no fim dos anos 1990 e ao qual se costuma chamar de turismo científico58. Nesse sentido,
pretendeu-se verificar, num primeiro momento, em que medida a questão da verdade importa
ocorria à época da entrevista (1978) no Japão. Segundo ele, ars erotica e scientia sexualis59
haviam passado a se relacionar de forma curiosa, por meio de um discurso que pode ser
sintetizado na seguinte formulação de Watanabe: “mais saber sobre o sexo garante mais gozo”.
Nas revistas femininas japonesas, por exemplo, é possível encontrar, segundo aponta Watanabe,
suplementos especiais do tipo: “Tudo o que você não sabe sobre o corpo masculino” ou ainda
“Aquilo que você ignora a respeito da homossexualidade”. Respondendo a isso, Foucault admite
que, de fato, “esse saber se situa entre ars erotica e scientia sexualis” (FOUCAULT,
[1978b]2006, p. 30; grifamos). Em outras palavras, ocorre uma invasão das verdades produzidas
no interior de um campo de saber (a scientia sexualis) em outro campo (a ars erotica), em razão
do que se disse mais acima: a pressão exercida pelos discursos de verdade sobre os outros
discursos.
Este fenômeno é cada vez mais comum em nossa sociedade. Do Danoninho – que
traz em sua embalagem o texto “fórmula baseada em estudo científico” – aos cosméticos – por
exemplo à marca Valmari, cujo slogan é “cosmética científica em cosmético natural” –, recorrer a
forma, é essa imbricação que aqui nos interessa. Vamos, então, a ela.
erotica, pressionada pela scientia sexualis, vale-se de enunciados produzidos no interior daquele
saber para explicar o gozo, numa relação que ele descreve como sendo algo como quanto mais se
Nossa hipótese aqui é que se possa pensar algo semelhante, mas para o turismo. Dito
de outra forma, é como se a forma “quanto mais se sabe ... maior (o prazer, o deleite)” pudesse
ser aplicada também nesse meio. Isso porque a nova modalidade de turismo a que se vem
em que você faz um tour rápido pelos museus e se dá por satisfeita[o]”60 – também possibilita
observar uma mudança significativa: não mais somente “curtir”, “aproveitar”, “passear”, mas
ecológicos, sendo possível encontrar em textos e pacotes mais antigos a categorização como
sendo uma modalidade de ecoturismo. Atualmente não se passa mais assim; a título de exemplos:
“empresa sedeada no Algarve que pretende oferecer diversos serviços em áreas como a
próprio país). O Ministério da Ciência e Tecnologia do país criou, na década de 1990, uma
agência responsável pelo “apoio a acções dirigidas para a promoção da educação científica e
tecnológica na sociedade portuguesa”63. Desde 1996, a agência promove eventos durante o verão
– atualmente são conhecidos como Ciência Viva no Verão, mas no início os nomes variavam –
que visam a promover o turismo científico pelo país, já que esse evento ocorre em diversas
62
Disponível em: <http://www.escursia.fr>. Acesso em: 07/04/2011.
63
Disponível em: <http://www.cienciaviva.pt/cienciaviva/agencia.asp>. Acesso em: 15/04/2011.
80
Em 2001, há dois eventos paralelos: o indicado pelo cartaz acima e que faz parte da
continuidade dos anos anteriores e mais um, cujo nome é Biologia no Verão.
A partir de 2002, o nome passa a ser fixo, Ciência Viva no Verão, e novas áreas de
geologia e “faróis” (que seria a visita a faróis e estudos com engenheiros) – a partir de 2005, a
engenharia é colocada separadamente dos faróis, porque passa a incluir visitas a outras obras. Em
2011, uma nova categoria é incluída: os castelos: visitas com engenheiros, geógrafos, físicos,
princípios físicos da sua arquitectura, a pedra usada na sua construção e as batalhas que lá se
travaram”64).
64
Disponível em: <http://www.cienciaviva.pt/veraocv/2011/cverao2011.asp>. Acesso em: 17/11/2011.
81
O que parece interessante nas imagens acima é que, enquanto os primeiros cartazes
fósseis, i.e., aquilo que é objeto das atividades, os últimos cartazes mostram – especialmente os
de 2009 a 2011 – a relação com as paisagens “típicas” de férias (família brincando na praia, carro
abarrotado de bagagem e mesmo a “ilha” isolada), mas com elementos que remetem ao caráter
científico dessas férias: fósseis de dinossauros, copo de laboratório, microscópios, lunetas etc. As
imagens marcam, assim, a mudança que o próprio slogan já sintetizava: de ciência nas férias para
brasileiros) ainda é incipiente. Agências de turismo da Europa organizam diversos pacotes para
todos os continentes destinados a europeus – sendo que algumas delas especializam-se nessa
modalidade. Ou seja, os pacotes em turismo científico no Brasil ainda são francamente voltados
para estrangeiros (a maioria dos guias são estrangeiros residentes no Brasil). Há exceções, como
82
o roteiro de caminhadas pelo Centro de São Paulo, organizadas por uma agência brasileira e para
brasileiros, nas quais se aprende, por exemplo, “sobre o uso de pedras e rochas nas estruturas,
de turismo brasileira Latitudes também organiza viagens para brasileiros (dentro e fora do país)
com especialistas: os pacotes oferecidos no site sempre apontam com que especialista a viagem
será realizada66.
matéria intitulada “Olha o passarinho”, publicada na revista TAM nas nuvens (mai. 2009). A
publicação destaca o birdwatching como “uma atividade que atrai cada vez mais estrangeiros ao
Brasil – e mostra aos brasileiros por que nossos ecossistemas devem ser preservados”. A matéria
apresenta várias considerações que têm fundamento na ornitologia (ramo da biologia que estuda
os pássaros, sua distribuição no planeta, sua alimentação etc.). O guia de birdwatching, segundo a
matéria, tem pontos em comum com o ornitólogo, pois sabe, por exemplo, como se distribuem
determinadas espécies de aves pelo planeta, de que se alimentam, a que família pertencem, classe
etc. É isso, aliás, que o diferencia de um “observador comum”. Há, porém, um aspecto que
consideramos ainda mais importante abordado pela matéria, a saber: o fato de que o birdwatching
surge como uma alternativa à caça. Nesse sentido, poderíamos dizer que o prazer, o deleite
advém de saber mais sobre pássaros (seu habitat, sua alimentação, seus hábitos...), o que remete
65
Disponível em: <http://araribacultural.wordpress.com>. Acesso em: 17/11/2011.
66
Por exemplo: “México: arte, cultura e religiosidade mesoamericana com Márcia Arcuri”.
83
Embora incipiente, como dissemos, o turismo científico começa, contudo, a ganhar
divulgação por aqui. A revista Época, por exemplo, publica em outubro de 2008, matéria de capa
intitulada “O guia do turista verde”, em que oferece vinte indicações de “paraísos ecológicos”, no
Brasil e no exterior, a serem visitados pelos turistas. O nono destino indicado é a Amazônia. O
Um destino-vitrine que não foi devidamente descoberto pelos brasileiros. Para nós, a
região ainda é sinônimo do Ariaú, hotel de selva famoso, porém menos confortável e
autêntico que outros. Um exemplo: o Tiwa, que fica em frente a Manaus, na margem
oposta do Rio Negro, e une conforto e boas experiências de selva. Se eu só pudesse ter
uma experiência de selva, iria para a Pousada Uacari, parte de um projeto científico na
Reserva Mamirauá. (O guia do turista verde, Época, 27/10/08, p. 90; grifamos).
Se há outros motivos para ficar na pousada recomendada, não sabemos, mas o fato de
fazer parte de um projeto científico parece ser, segundo esse discurso, o mais relevante. A reserva
é, aliás, atração de um outro roteiro proposto pela já mencionada agência francesa Escursia:
A agência, além da programação diária da viagem, inclui no site o currículo dos guias
visitas acompanhadas de arqueólogos e debates. É certo que muitos dos pacotes são voltados para
a natureza de maneira geral, mas há os roteiros de vinhos e os astronômicos – ainda que se possa
67
Disponível em: <http://www.escursia.fr/voyage-nature-Bresil-autrement-79.html>. Acesso em 07/04/2011. “Do
arquipélago de Anavilhanas à reserva de Mamirauá. De Manaus, no coração da Amazônia, subimos à bordo de um
barco especialmente preparado para cruzeiros fotográficos e naturalistas. Navegando o místico Rio Negro,
penetramos a floresta para encontrar seus habitantes. Uma região de contrastes, que será descrita por Sylvia, sua
guia, ecologista e especialista em questões sócio-ambientais na Amazônia” (tradução nossa).
84
querer enquadrar esse último na relação com a natureza, não estou bem certa de que essa seria a
melhor categoria, pois a principal questão aqui é a visão e estudo dos astros.
Antes de mais nada, é preciso ressaltar que nem todos os pacotes da tabela acima
evidenciam o fenômeno da invasão de verdades produzidas pelos saberes devido à pressão por
eles exercida sobre campos que não são de verdade. Nem todas as áreas acima enquadram-se na
concepção “restritiva” segundo a qual se definem os campos de saber – é o caso, por exemplo,
dos especialistas em ioga. No entanto, outros exemplos mostram que a relação com os saberes é
bastante estreita: com a história, com a biologia, com a arqueologia. Um turismólogo português
que se dedica a essa modalidade de turismo, Couteiro (2003), observa que se trata, nesse caso, de
68
O título da matéria é “Embarque de cabeça”. ELLE, ano XXII, n. 11, nov. 2009, p. 238-246.
69
O mesmo guia organiza também o mesmo tipo de roteiro para países como Chile, Argentina, Portugal, Espanha,
Itália, Austrália e África do Sul.
85
geomorfologia, antropologia, história, arqueologia, ciências agrárias, geografia. Na grande
maioria dos pacotes encontrados, de fato, são áreas como essas que predominam; daí pensar na
Nos materiais sobre turismo científico há grande destaque dado às práticas de cada
um dos campos com os quais se relacionam – como vimos mais acima a respeito de
birdwatching, por exemplo. No caso da proposta de pacote com biólogos para Galápagos
apresentada por Elle, a viagem comporta expedições, palestras, aulas etc. No roteiro do Egito, por
seu turno, a matéria convida: “que tal aprender história antiga, os detalhes da cultura egípcia e os
mistérios dessa civilização no próprio Egito, percorrendo cada cantinho do país?” (p. 246). O
pacote inclui visitas a sítios arqueológicos em horários diferentes dos turistas (!). É preciso
lembrar, contudo, que esses roteiros com especialistas não são para especialistas. Antes, dirigem-
se ao público comum, leigo, interessado em aprender, conhecer mais sobre determinado tema.
Esse caráter, digamos, “pedagógico” que esse tipo de turismo implica fica evidente não só nos
textos que acompanham os pacotes ou nas matérias – em que encontramos frequentemente verbos
como os acima citados – mas também em depoimentos dos viajantes: não é raro a referência a
preciso reforçar que não há uma mera substituição de modalidades de turismo, i.e., sai o “turismo
básico” e entra o “turismo científico”. O que ocorre, na verdade, é que, ao “turismo básico”
apresentadas por experts em cada área. O roteiro de história da arte proposto na matéria, por
exemplo, prevê visitas a museus (dez dias no total); a matéria destaca, contudo, que “apesar da
70
Por exemplo: “A viagem foi ótima, o anfitrião Latitudes Marcelo é muito gentil e eficiente e as aulas do Pondé
foram maravilhosas.” (grifamos), disponível em: <http://www.latitudes.com.br/depoimentos.php>.
86
programação intensa de arte, sempre sobra um tempinho para quem quer comer bem, fazer umas
compras e dar uma voltinha de gôndola, claro” (p. 244) – atividades típicas do “turismo básico”.
Ainda assim, o componente “educacional” é enfatizado, pois, como adverte a matéria, o principal
objetivo de quem embarca nesse roteiro é “aprender mais sobre a arte contemporânea”. Lembre-
se, contudo, que isso só pode ser conseguido com especialistas de cada área: “conhecer vinícolas
e vinhedos e experimentar vinhos especiais num roteiro acompanhado por quem entende do
assunto” (p. 242; grifamos), como demonstra o trecho referente ao roteiro de vinhos.
Au pays du jaguar et du grand ara hyacinthe Véritable réserve pour les centaines
d'espèces d'oiseaux, de mammifères et autres reptiles, le Pantanal offre des occasions
exceptionnelles d'observer facilement la nature, omniprésente dans cette région du
Brésil. Les Fazendas, grandes fermes d'élevage brésiliennes, nous permettent de
découvrir la richesse et la diversité des lieux, chacune à sa manière, et toujours dans un
cadre majestueux qui vous propulse au cœur de la nature. 71
que estudam “há anos” os hábitos dos animais que ali vivem.
Enfim, a partir desses dados, algumas questões puderam ser formuladas não só nos
termos da pergunta inicialmente feita – em que medida a questão da verdade importa para a
compreensão do discurso acerca desse tipo de turismo em nossa sociedade –, mas também no que
Olhar para o turismo como um espaço que – não sendo nem um saber nem uma
71
Disponível em: <http://www.escursia.fr/detail-voyage-Bresil-descriptif-24.html>. Acesso em: 05/12/2011. “No
país da onça-pintada e da arara azul. Verdadeira reserva para certas espécies de aves, mamíferos e outros répteis, o
Pantanal oferece oportunidades excepcionais para se observar facilmente a natureza, onipresente nessa região do
Brasil. As Fazendas, grandes propriedades de gado brasileiras, nos permitem descobrir a riqueza e a diversidade de
lugares, cada qual a sua maneira, e que sempre num cenário majestoso coloca você no coração da natureza”
(tradução nossa).
72
Em razão disso é que se pode trazer esse tipo de reflexão para o turismo: não se produzem “verdades” no seu
interior.
87
práticas advindas desses campos em uma nova forma de viajar, permitiu observar que, de maneira
geral, os pacotes montados referem-se, via de regra, a imagens cristalizadas dos países — e em
muitos casos isso toca a construção dos espaços nacionais. Assim, em Galápagos estuda-se a
fauna; no Egito, a história de uma civilização cuja imagem “ideal” é marcada por esfinges e
pirâmides; em boa parte da Europa (França, Alemanha, Espanha etc.), os roteiros são pelos
discursos do turismo que contribuem para a construção de um Brasil “genuíno” nos direcionavam
de volta à hipótese inicial, de que o Brasil “típico” é “uma paisagem”, um lugar “exótico”, ou “o”
nacional, de mais uma forma de retomada e atualização dessa cristalização. Essa primeira análise
dos dados permitiu formalizar a cristalização do estereótipo acima, de uma vez por todas, como
um elemento sempre já-lá – o que, como se verá, é de particular importância para as análises que
seguem, uma vez que estamos diante do estabelecimento de uma regularização, que põe uma
memória discursiva a funcionar, e “é nessa colocação em série dos contextos, não na produção
das superfícies ou da frase tal como ela se dá, que vemos o exercício da regra” (ACHARD,
ser estudados por meio da noção de pré-construído incorporada por Pêcheux ([1975]1997) a
partir dos estudos de Henry: “la noción de preconstruido [...] constituye un aporte teórico
88
importante, que tal vez haya sido insuficientemente utilizado en el estudio de los estereotipos”
É, pois, com base nessa noção que a inscrição do estereótipo no fio do discurso será
descrita como uma alternativa discursiva à abordagem linguística proposta por Ducrot. E, de fato,
ducrotiana: para Henry ([1975]1992), a questão da pressuposição reclama por uma abordagem
enunciado e não como uma característica da frase correspondente” (HENRY, [1975]1992, p. 73).
Para explicitar essa tese, o autor volta seu olhar para as estruturas relativas, uma vez
que, para ele, o que define se tais estruturas serão interpretadas como explicativas ou restritivas –
[1975]1992, p. 71) – é a “opinião” de cada um. Assim, um enunciado como “Os sindicatos que
89
é interpretado de duas maneiras diferentes, se se considera que todos os sindicatos
defendem os trabalhadores (de fato ou por definição) e portanto também conclamam à
greve, ou que unicamente certos sindicatos conclamam à greve, aqueles precisamente
que defendem os trabalhadores, enquanto os outros de fato não os defendem. (HENRY,
[1975]1992, p. 71).
fazendo parte da significação literal dos enunciados” (HENRY, [1975]1992, p. 76). Ainda que
essa discordância não signifique uma negação absoluta de que haja o que Ducrot designa por
significações literais e não-literais, o que Henry contesta é, mais precisamente, “a ideia de que
seja possível falar de uma semântica da língua cujo processo de constituição está implicitamente
contido na própria noção de significação literal tal como foi definida por Ducrot” (HENRY,
sujeito – e dos esquecimentos que o determinam. Tratando das relações que se estabelecem entre
o que chamou a “forma-sujeito” e o sujeito, Pêcheux postula que o modo de acesso do sujeito ao
“real” se dá por meio da relação estabelecida/imposta pela forma-sujeito, que se dá pela forma de
um desconhecimento, que, por seu turno, funda-se sobre um reconhecimento. Embora possa
parecer paradoxal em um primeiro momento, o autor explica que “é nesse reconhecimento que o
sujeito se ‘esquece’ das determinações que o colocaram no lugar que ele ocupa – entendamos
que, sendo ‘sempre-já’ sujeito, ele ‘sempre-já’ se esqueceu das determinações que o constituem
É, pois, essa relação constitutiva do sujeito com a ideologia que, segundo Pêcheux,
Para Henry, há, portanto, uma impossibilidade de tratar a questão do sentido – própria
da semântica – sem remissão ao sujeito. Nesse ponto, afirma o autor, é que se encontram as
“dificuldades teóricas e práticas” da linguística, o que faz com que as teorias tentem “evacuar por
sentenças como “aquele que salvou o mundo morrendo na cruz nunca existiu”, em que se nega a
existência daquele mesmo que é pressuposto como existente na subordinada73. É nesse sentido
que Henry ([1975]1992, p. 136) alerta que a pressuposição recoloca em pauta precisamente
aquilo que se tentou excluir, “na medida em que esta demonstra de maneira sintomática a
A noção de pré-construído, proposta por Henry para “designar o que remete a uma
construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é ‘construído’ pelo
Ao invés, então, de declarar uma sentença tal como “aquele que salvou o mundo
morrendo na cruz nunca existiu” como “absurda” ou “desprovida de qualquer sentido”, a noção
73
Cf. Pêcheux, [1975]1997, p. 97-99.
74
Embora seja, de fato, uma reformulação da noção, o pré-construído, uma noção essencialmente discursiva, permite
assumir essa imagem de um “Brasil-paraíso” como tal, o que nem sempre – nos dados analisados mais adiante – se
enquadra como pressuposição, noção, por seu turno, essencialmente linguística. Como se verá, não é sempre que
temos marcadores linguísticos da pressuposição; mas é inegável a presença de uma construção anterior ao enunciado
que vem nele se inscrever.
91
que é pensado antes, em outro lugar ou independentemente, o que está contido na afirmação
Nessa perspectiva, a “ilusão” de que fala Frege não é o puro e simples efeito de um
fenômeno sintático que constitui uma “imperfeição da linguagem”: o fenômeno
sintático da relativa determinativa é, ao contrário, a condição formal de um efeito de
sentido cuja causa material se assenta, de fato, na relação dissimétrica por
discrepância entre dois “domínios de pensamento”, de modo que um elemento de
um domínio irrompe num elemento de outro sob a forma do que chamamos “pré-
construído”, isto é, como se esse elemento já se encontrasse aí. (PÊCHEUX,
[1975]1997, p. 99; grifamos).
uma formação discursiva, em benefício da noção de imbricação entre discursos e de relações com
constitui pelo ‘esquecimento’ daquilo que o determina” (PÊCHEUX, [1975]1997, p. 163), que
“fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito se constitui como ‘sujeito falante’,
com a formação discursiva que o assujeita” (PÊCHEUX, [1975]1997, p. 167). Tais elementos
são, ainda segundo o autor, “atravessados” e postos em “conexão” entre si por meio do discurso-
92
Diremos, então, que o “pré-construído” corresponde ao “sempre-já-aí” da interpelação
ideológica que fornece-impõe a “realidade” e seu “sentido” sob a forma da
universalidade (o “mundo das coisas”), ao passo que a “articulação” constitui o sujeito
em sua relação com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que
determina a dominação da forma-sujeito. (PÊCHEUX, [1975]1997, p. 164; grifos no
original).
ou sintagmatizado por meio da articulação (ou processo de sustentação); é, pois, nesse sentido
que se pode dizer, juntamente com Pêcheux ([1975]1997, p. 167), que “o intradiscurso, enquanto
Com base no quadro acima exposto, Amossy e Pierrot (2005, p. 113) consideram que
no sentido de que designa um tipo de construção sintática que põe em cena algo afirmado antes,
uma espécie de “rastro” no enunciado individual, de discursos e juízos prévios cuja origem
É a partir dessa proposição que serão analisados os dados que integram esse primeiro
“foco”, o turismo. Partiremos de uma exposição preliminar dos dados para, em seguida,
87 belos motivos para viajar pelo Brasil – que faz parte do Programa de Regionalização do
2009, p. 4). Ou seja, o material aqui analisado integra uma proposta que vai além do mercado
nacional. A relevância dele para este trabalho encontra-se no fato de que foi através dele que
Como deixa claro o título, nesse material são encontradas 87 sugestões de roteiros
turísticos pelo Brasil, separados por região (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul) e, em
sua maioria, por Estados – há alguns poucos roteiros “integrados”, isto é, que abrangem mais de um
Estado. Cada roteiro corresponde a uma página do material, que apresenta, dentre outras
informações, um mapa com o itinerário, suas principais informações, ícones no topo da página dos
principais atrativos (a saber: artesanato, bares, culinária, casario, compras, praias, fauna, flora,
folclore, igrejas, passeios e pesca) e uma seção denominada “imperdível”, que destaca um ou outro
ponto de cada roteiro. A ilustração abaixo apresenta a distribuição dos elementos nas páginas:
(Fonte: Roteiros do Brasil: 87 belos motivos para viajar pelo Brasil, 2009, p. 5)
94
Além disso, como se pode ver na página ilustrativa acima, todos os roteiros têm (pelo
Mas há ainda outros dois aspectos que, num primeiro contato com o encarte, se
destacaram: i) quase todos (98,8%) os roteiros têm mais de três dos “ícones de atrativos” no topo
da página; ii) quase a metade dos roteiros (44,8%) não tem entre os ícones os de fauna e flora 75 –
profundamente ligados à dimensão ecológica do turismo. Uma leitura mais atenta mostraria,
No âmbito lexical, por exemplo, verbos com carga semântica inclusiva – tais como
“conjugar” – estão presentes em abundância em todo o material, como se pode observar nos
recortes abaixo:
(3) [...] o percurso de buggy por praias e vilarejos de pescadores até Mangue Seco, no
município de Jandaíra, com direito a descida de sand board nas dunas, completam o
roteiro com história e natureza na dose certa. (BRASIL, 2009, p. 38; grifamos)
(4) A capital cearense combina qualidades de cidade colonizada pelos europeus e forte
influência indígena. (BRASIL, 2009, p. 42; grifamos)
75
Mais precisamente: 34 roteiros (39%) não têm nenhum dos ícones (fauna e flora); 4 roteiros (4,6%) não têm
somente o ícone correspondente à fauna; 1 roteiro apenas (1,1%) não tem somente o ícone correspondente à flora.
95
(7) A Serra Verde Imperial, que compreende as cidades de Petrópolis, Itaipava, Nova
Friburgo e Teresópolis, conjuga a beleza de sua vegetação e de suas escarpas com o
charme de sua gastronomia requintada, seus atrativos histórico-culturais e as
oportunidades de compras. (BRASIL, 2009, p. 84; grifamos)
(8) Na ilha [de Florianópolis], de colonização açoriana, vive-se tanto sua história quanto
a beleza de suas praias e da Lagoa da Conceição. O roteiro inclui os encantos da Serra
Catarinense, repleta de montanhas, cânions e quedas d’água. (BRASIL, 2009, p. 102;
grifamos)
dos enunciados a fim de identificar os elementos presentes no entorno de tais verbos. Faremos o
mesmo com os excertos apresentados acima para exemplificar o trabalho realizado em todo o
corpus:
agregados outros traços: história, gastronomia, arquitetura etc. Esse processo de “inclusão” é que
direcionou uma nova incursão pelo encarte na busca de outros possíveis rastros deixados no
intradiscurso. E, de fato, uma série de estruturas sintáticas a que se pode atribuir esse estatuto
(9) O Brasil é um país de superlativos. Estima-se que seu litoral ostente mais de 1.500
praias. Só isso bastaria para fazer dele um destino turístico inevitável. Acontece que o
território brasileiro tem também o rio mais caudaloso da Terra, o Amazonas, e a maior
96
floresta tropical do planeta, a Amazônia. Realiza o maior carnaval do mundo. São Paulo
é simplesmente a terceira maior cidade do globo. Ainda que não reunisse tantos
superlativos, o Brasil encantaria qualquer visitante, graças, principalmente, à sua
diversidade — em todos os aspectos: clima, fauna, flora, relevo, história, arte,
gastronomia. Sem contar, claro, o povo brasileiro. [...] O Brasil fascina por sua beleza
natural. Da mesma forma que as marcas históricas deleitam o turista [...]. (BRASIL,
2009, p. 6; grifamos).
(10) A selva, por si só, já vale a visita. Mas o folclore indígena também seduz.
(BRASIL, 2009, p. 15; grifamos).
(11) Oferece passeios, com condutores locais em canoas, lagos e trilhas para observação
da fauna amazônica [...], além da oportunidade de conhecer o trabalho de um projeto de
conservação pioneiro no Brasil. (BRASIL, 2009, p. 19; grifamos)
(12) A Ilha de Marajó guarda verdadeiros tesouros turísticos. Danças típicas, assim
como a cerâmica e a culinária marajoaras, ajudam a enriquecer o cenário paradisíaco.
(BRASIL, 2009, p. 23; grifamos)
(13) Rico tanto em paisagens naturais quanto em construções humanas, o roteiro Serras
do Lago [Tocantins] encanta o turista. A arquitetura de Palmas, cidade planejada, dá o
tom moderno e arrojado. Ao mesmo tempo, a capital tocantinense é rodeada de natureza
exuberante. (BRASIL, 2009, p. 28; grifamos)
(14) Alagoas é muito mais que sol e praia. São rios, mangues, lagoas e o majestoso Rio
São Francisco. [...] a história se confunde com a aventura. (BRASIL, 2009, p. 32;
grifamos)
(15) Mas se engana quem pensa que o roteiro [Circuito das águas paulista] se resume a
“sombra e água fresca”. Em todo o itinerário é possível praticar 22 modalidades de
esportes de aventura; aprender mais história do Brasil nas fazendas que abrigaram sinhás
e escravos; ordenhar vacas; acompanhar a produção artesanal de queijos, vinhos e
cachaças; e, claro, beber muita água mineral direto da fonte. (BRASIL, 2009, p. 87;
grifamos)
longo de todo o encarte do Ministério do Turismo. Mas não é apenas aí que esse fenômeno
ocorre; uma varredura pelo restante do corpus mostrou que, de fato, essa parecia ser nossa
(16) [Manaus] A capital verde. Porta da maior floresta tropical do planeta, a cidade
ostenta também um modelo econômico de sucesso. Prédios históricos em ótima
conservação e a exuberante beleza amazônica de rios e matas arrebatam os olhos e os
corações de turistas extasiados. Um elenco de opções verdes, além de uma estrutura
arquitetônica bem conservada no centro da capital, são os atrativos turísticos de Manaus.
(Istoé. Ano 32, n. 2053. 18 mar. 2009. Informe publicitário; grifamos)
(17) Ninguém discorda de que a grande atração de Floripa são as praias, mas o centro
também tem seus encantos. Entre as novidades da temporada está a reabertura da
Catedral Metropolitana, um dos símbolos da cidade [...]. A volta da catedral reativou os
97
arredores da Praça 15 de Novembro. (Revista Viagem e Turismo. Ano 15, n. 12, ed. 170,
dez. 2009, p. 128; grifamos)
(18) [Brasília] Muito além da arquitetura. (Revista Gol, n. 97, abr. 2010, p. 36;
grifamos)
(20) Mergulhe nas águas cristalinas de Bonito (MS) e, ainda, experimente as delícias da
culinária sul-matogrossense. O passeio continua na Serra do Cipó. [...] Além do
potencial ecoturístico, a região é conhecida pela história retratada pelas pinturas
rupestres e pelo misticismo. (Revista Bancorbrás. Ano 16, n. 65, out.-dez. 2010, p. 22;
grifamos)
98
natureza (potencial ecoturístico) + história (pinturas rupestres) e misticismo
variedade dos recortes de (9) a (21), uma certa “convergência”, uma vez que é possível
parafraseá-los, em geral, por meio de estruturas inclusivas. Esse é um ponto crucial para este
trabalho e, para apresentá-lo, tomemos para uma análise um texto integral de roteiro no Espírito
(23) Que tal aproveitar o clima quente das praias e, a apenas 40 minutos dali, desfrutar o
clima frio das montanhas? É a principal característica desse roteiro singular. A viagem
pode começar pelas belas praias de Vitória e Vila Velha ou com um passeio de escuna
pela Baía de Vitória, tendo, no alto, o Convento da Penha. É a oportunidade, também,
de saborear a tradicional moqueca capixaba, feita na panela de barro.
No município de Serra, suas praias bucólicas convidam a um simples banho de mar ou à
prática do surf, além de oferecer diversas manifestações folclóricas e culturais, como a
Festa de São Benedito. Seguindo viagem, em direção às montanhas, a primeira atração é
Domingos Martins. A influência dos colonizadores alemães e italianos deu o tom no
local, particularmente na culinária e na arquitetura. O Parque Estadual Pedra Azul é
referência da região, com trilhas e piscinas naturais. Ainda na cidade, vários eventos
merecem atenção, como o Encontro Internacional dos Amigos do Vinho e o Festival
Internacional de Inverno.
O agroturismo capixaba também é referência nacional. Em Venda Nova do Imigrante, é
impossível resistir aos pratos típicos e deixar de degustar o socol, salame feito de lombo
de porco. Vale a pena passear pelas propriedades rurais, que oferecem grande variedade
de produtos e permitem conhecer o processo de produção dos alimentos e o dia-a-dia da
vida no campo. (BRASIL, 2009, p. 79; grifamos).
O primeiro parágrafo do texto que apresenta o roteiro em tela parte – como ocorre na
grande maioria dos roteiros – de uma referência aos elementos “naturais” dos locais (as praias, as
montanhas, o clima). Ao final desse mesmo parágrafo já se observa a inclusão de outro atrativo: a
gastronomia. Na sequência do texto, novamente as praias são o ponto de partida, mas logo depois
ganham destaque atrativos culturais: festas populares, a arquitetura de influência europeia e, mais
uma vez, a gastronomia. No parágrafo final do texto, a menção ao agroturismo do local: embora a
modalidade seja descrita como “referência nacional”, o Espírito Santo não tem sua imagem
99
fortemente vinculada a esse tipo de turismo (como é o caso de outros lugares, como o Mato
Mas o que cumpre destacar aqui é que o entorno dos “acréscimos” feitos aos
estruturas linguísticas que grifamos no excerto: também e além de. Ou seja, esse tipo de estrutura
parece incluir os traços que não estão associados à imagem cristalizada do local que, em geral,
Isso também pode ser observado quando se tomam roteiros no Brasil que são
(re)conhecidos como exceção a esse estereótipo. O roteiro no Centro-Oeste que combina Brasília,
(24) Brasília tem como principal atração seu traçado urbanístico e sua inconfundível
arquitetura modernista, povoada de obras de artistas renomados. Mas os encantos da
cidade não param por aí. Brasília é também privilegiada por sua natureza exuberante,
que proporciona aos moradores e visitantes o prazer de desfrutar atrativos do Bioma
Cerrado, considerado, em biodiversidade, a savana tropical mais rica do mundo.
(BRASIL, 2009, p. 65; grifamos)
riqueza do cerrado; lado esse que não é prontamente associado a Brasília enquanto destino
turístico. A adversativa introduzida pelo “mas” admite a seguinte paráfrase: para além dos
entorno do atrativo “inesperado” (no sentido de não ser comumente vinculado ao local
100
bares, restaurantes e cenários inesquecíveis. (Propaganda da Secretaria de Turismo do
Distrito Federal; grifamos)
Nos recortes (18) e (21) já apresentados – e que não foram objeto do processo de
(18) [Brasília] Muito além da arquitetura. (Revista Gol, n. 97, abr. 2010, p. 36;
grifamos)
conhecida por seus inúmeros botecos, que preparam comidas, inclusive para concorrerem em um
praças da cidade.
Do conjunto de dados apresentados até aqui é possível extrair, como adiantamos, uma
convergência: o estatuto inclusivo tanto das estruturas sintáticas quanto dos verbos listados. Os
diversos recortes, ao mesmo tempo em que colocam em cena o estereótipo do espaço nacional,
assumido como pré-construído – ou, em alguns casos, o de certas cidades brasileiras a que esse
estereótipo não é associado (Brasília, Belo Horizonte, São Paulo) – também promovem, por meio
das estruturas destacadas acima, um deslizamento dessa cristalização por meio da inserção de
outros elementos.
101
***
conhecida: ela seria a matriz do sentido76. Achard ([1983]2007), refletindo sobre a memória
discursiva, observa que é a partir das paráfrases – consideradas como “derivações de possíveis
segmentos, i.e., que se cria uma regularização. A partir disso, conclui que a memória discursiva
“não restitui frases escutadas no passado mas julgamentos de verossimilhança sobre o que é
institucionais; pacotes etc.). Embora haja uma diversidade de expressões de tal inclusão, elas
podem ser abrigadas sob uma “paráfrase aditiva”; e aí reside um ponto crucial para esta pesquisa.
A conjunção aditiva prototípica é o e77, sabe-se. No entanto, não é por meio dela que a
paráfrase dos enunciados acima se estrutura. Dada sua larga utilização, o e situa-se em meio a um
debate: para alguns, seria uma espécie de “item coringa”, enquanto, para outros, teria uma carga
semântica bem definida. Vilela & Koch (2001) podem ser citados como representantes da
primeira vertente; os autores elencam sete usos distintos daquele que consideram ser seu “valor
76
Cf. Pêcheux & Fuchs, [1975]1997.
77
A esse respeito vide, por exemplo, Guimarães (1987), Novaes (2000), Pezatti e Longuin-Thomazi (2008), para
ficar em poucos autores.
102
normal e prototípico” – a adição ou inclusão. A tabela abaixo resume os diferentes “valores” de
Os gramáticos, por sua vez, encontram-se, em sua maioria, no grupo dos que
atribuem à conjunção e uma carga semântica bastante específica, i.e., exclusivamente o valor de
adição. Nesse rol pode-se citar, por exemplo, Bechara (1999), para quem – em definição um tanto
tautológica – “a aditiva apenas indica que as unidades que une [...] estão marcadas por uma
relação de adição” e cita o conectivo e como aquele que une “unidades positivas”. Outro
conjunção e é o tipo das conjunções aditivas e indica mera relação de nexo; por isso é comumente
suprimida, sem prejuízo para o sentido, em uma série coordenada e só é expressa entre o
Esses debates, longe de terem um fim consensual, acabam, como entendemos, por
78
Empregamos a palavra “neutralidade” aqui por falta de outra melhor. Com ela queremos dizer que é difícil precisar
um valor para a conjunção (ou mesmo vários, mas determináveis de maneira mais ou menos formal), de modo que,
mesmo recorrendo ao contexto, é possível atribuir-lhe significados diversos. Enfim, como observa Guimarães (1987,
p. 123), a conjunção e é, no português brasileiro, “muito frequente, independente do registro e do tipo de discurso”.
103
uns, porque teria muitas possibilidades de significação; para outros, ao contrário, porque tem um
valor fixo a tal ponto que não deixa espaço para outras interpretações. É, pois, também em
decorrência disso que não foi o e utilizado nas paráfrases que apresentaremos mais abaixo. Além
disso, mesmo quando tal conjunção aparece nos recortes, sua interpretação envolve determinadas
relações interdiscursivas que, conforme se buscará mostrar mais adiante “exigem”/ “impõem”
As gramáticas costumam colocar, ao lado dessa conjunção, uma série de outras como
não só... mas também79, nem, tanto... quanto, bem como e as variantes dessas. Negrão et al
(2002), por exemplo, observam, a respeito da estrutura não só X mas também Y, que se trata de uma
estrutura de inclusão que poderia ser parafraseada por meio da utilização de conjunções
coordenativas aditivas (como no par: Fomos não só à praia mas também ao museu/ Fomos na
praia e no museu). Há, porém, uma discussão acerca da natureza dos processos implicados por tais
funcionamentos distintos; para outros, porém, a correlação estaria abrigada sob a coordenação e a
subordinação. Os que distinguem os três processos costumam apontar, como Rodrigues (2007), as
correlação marca – por meio do uso de estruturas específicas, chamadas correlatas – a união de
outras, “não só... mas também”, “ou... ou”, “quer... quer”, “tanto... quanto”. Há muitas outras, posto
que as construções correlativas variam muito de autor para autor; nesse sentido, algumas construções
79
Como aponta Guimarães (1987, p. 123; grifos no original): não só... mas também, “quando referida nas gramáticas
do Português, vem classificada como coordenativa aditiva, junto da conjunção e”.
104
Mattoso Câmara, diferentemente de Rodrigues (2007), encontra-se entre aqueles que
Desse debate – que não esmiuçaremos aqui – interessa reter alguns pontos. O
primeiro deles é que, admitindo ou não a possibilidade de um processo à parte, estruturas como
as que citamos acima são chamadas correlativas 80 e, o que é aqui mais relevante, são consideradas
por muitos autores como “enfáticas”. Bechara (1999, p. 321; grifamos), a esse respeito, observa
que “a expressão enfática da conjunção aditiva e pode ser expressa pela série não só... mas
também e equivalentes”; Luft (2000, p. 51; grifamos), por seu turno, considera essas estruturas
como “aditivas enfáticas”; já Mattoso Câmara ([1960]2004, p. 111; grifamos) afirma que, na
“alegada ‘correlação’, o que se tem na realidade é uma coordenação aditiva enfática”. Por ora
diremos apenas que, com base nos dados apresentados até aqui, o uso de estruturas correlativas
aditivas não parece ser simples questão de ênfase. Voltaremos a esse aspecto mais adiante.
Um segundo ponto a se reter do debate diz respeito a uma das propriedades atribuídas à
correlação: o caráter binário das conjunções. A correlação apresenta “conjunções que vêm aos pares,
cada elemento do par em uma oração” (RODRIGUES, 2007, p. 232). Para Mateus et al (2003, p.
563), trata-se de “locuções conjuncionais que assumem a forma de uma expressão descontínua”. Essa
característica pareceu, desde o início, crucial para as paráfrases do corpus: como as “decomposições”
80
Mesmo quem não considera a correlação um processo distinto, costuma denominar conjunções como “não só...
mas também”, “tanto...quanto”, “ou...ou” etc. de (coordenativas) correlativas.
105
acima procuraram mostrar, há sempre um elemento dado, o estereótipo, e um novo, que desloca a
imagem cristalizada; ou seja, é possível considerar que eles vêm, digamos, “aos pares”. Por isso a
estrutura não só X mas também Y (considerada por diversos autores como, de certa forma, a estrutura
Além de encontrar no corpus construções com essa estrutura – como é possível ver
em (17), (19) e (21) acima –, há outras que podem ser consideradas variantes. Nesse sentido,
entre os anos de 2007 e 2009, lista um conjunto de estruturas que se podem considerar
106
Além dessas, Rosário (2012) ainda cita algumas outras que, também implicam,
segundo constata, correlação aditiva, a saber: mas também, assim como e como também (sem
outra estrutura lexicalmente preenchida na prótase), bem como, assim como... também, desde...
até (ou de... até/a) , tanto... quanto, nem... nem. Nossos dados apresentam algumas dessas
(12) A Ilha de Marajó guarda verdadeiros tesouros turísticos. Danças típicas, assim
como a cerâmica e a culinária marajoaras, ajudam a enriquecer o cenário paradisíaco.
(BRASIL, 2009, p. 23; grifamos)
(26) Ao longo dos 457 km de extensão desse trecho da BR-101 [Rio-Santos] estão
algumas das mais belas praias fluminenses e paulistas. Mas não é só para o mar que
você vai olhar durante a viagem: Santos tem o maior jardim de orla do mundo, São
Sebastião tem badalação à beira-mar, Parati é cheia de história e o Rio de Janeiro, bem, é
maravilhoso mesmo. (GUIA 1001 maneiras bacanas de conhecer o Brasil. Guia 4 rodas,
São Paulo, Ed. Abril, p. 55, 2010; grifamos)
(27) As cidades de João Pessoa, capital da Paraíba, Conde e Cabedelo são bem próximas
e oferecem opções que vão das belas e paradisíacas praias até igrejas, casarios e
monumentos históricos típicos do início da colonização brasileira. (BRASIL, 2009, p.
46; grifamos)
(28) You will feel the extraordinary forcefulness of nature in each corner of this vast
region. From the spectacular richness of wild species in the Mato Grosso Pantanal to the
caves crossed by crystal-clear rivers in Bonito. From the mysticism that surrounds the
Chapada dos Guimarães to the thermal water resorts in Goiás. From the immensity of
Jalapão, in Tocantins, with its amazingly rich fauna, to the bold architecture of Brasilia –
Brazil’s capital-city and cultural heritage of manking. Central Brazil is a region of
contrasts. The old and the new. From nature at its purest to modern cities with frenetic
nightlife. From popular festivals of century-old traditions, with their typical “soul food”,
to world-class restaurants.81 (BRASIL, s/d, p. 2; grifamos)
81
Você irá sentir a extraordinária força da natureza em cada canto dessa vasta região. Da espetacular riqueza das
espécies selvagens do Pantanal mato-grossense até as cavernas atravessadas por rios de água cristalina em Bonito.
Do misticismo que cerca a Chapada dos Guimarães até os resorts de água quente em Goiás. Da imensidão do
Jalapão, no Tocantins, com sua fauna incrivelmente rica, até a arrojada arquitetura de Brasília – capital do Brasil e
patrimônio cultural da humanidade. O Brasil Central é uma região de contrastes. O velho e o novo. Da natureza em
seu estado mais puro até as modernas cidades com sua frenética vida noturna. De festivais populares de tradições
seculares, com suas comidas típicas, até restaurantes de primeira classe. (tradução nossa)
107
Especificamente em relação à estrutura tanto... quanto, Rosário (2012) esclarece que,
mesmo sendo comumente considerada uma estrutura comparativa, a análise dos dados mais
também é o de adição e, por isso, a paráfrase com a estrutura não só X mas também Y:
(13) Rico tanto em paisagens naturais quanto em construções humanas, o roteiro Serras
do Lago [Tocantins] encanta o turista. A arquitetura de Palmas, cidade planejada, dá o
tom moderno e arrojado. Ao mesmo tempo, a capital tocantinense é rodeada de natureza
exuberante. (BRASIL, 2009, p. 28; grifamos)
Assim, o Brasil retratado – ele mesmo ou, metonimicamente, por cidades que o
representam do ponto de vista turístico – em alguns dos excertos apresentados até aqui é:
108
(12’’) cenário paradisíaco danças típicas, cerâmica e culinária marajoaras
(13’’) paisagens naturais construções humanas
(14’’) sol e praia rios, mangues, lagoas, história e aventura
(15’’) sombra e água fresca esportes de aventura, história e atividades rurais
(16’’) a maior floresta tropical do mundo um modelo econômico de sucesso
opções verdes estrutura arquitetônica bem conservada
(17’’) praias centro da cidade
(19’’) sol e praia ecoturismo e cultura
(20’’) águas cristalinas culinária
potencial ecoturístico história
(21’’) comida produção artística e cultural
(22’’) praias paradisíacas, piscinas monumentos históricos
naturais, água morna
pouco mais a respeito de suas características, especialmente porque há um certo debate para o
encontraram no Brasil alguns seguidores (Vogt e Guimarães são dois expoentes) que assumiram a
empreitada no português. Tomada, assim, uma categoria como a dos operadores argumentativos
(proposta por Ducrot), que abrangem outras diversas categorias da gramática tradicional, uma vez
que são encarados do ponto de vista da conclusão para a qual os enunciados apontam, poder-se-ia
dizer que tanto e como o não só X mas também Y são operadores cuja função é somar argumentos
em favor de uma mesma conclusão, conforme classificação proposta por Koch (1998).
Guimarães (1987), contudo, opta por um caminho distinto: para ele, não só X mas também Y tem
109
e), por um lado e, por outro, não pode integrar o grupo dos operadores que somam argumentos
Sabemos [...] que não só... mas (também) é um operador cuja frequência não é muito
grande e cujo uso parece se dar em textos de registro mais formal, ou com forte
caracterização argumentativa. Nisto também ela diferiria da conjunção e, muito
frequente, independente do registro e do tipo de discurso. (GUIMARÃES, 1987, p. 123).
Reiteramos aqui nossa posição de que as conjunções do grupo não só X mas também
Y têm diferenças importantes em relação a outras aditivas como o e. Nesse sentido também se
quando um locutor diz “não só p mas q” ele procede como se pressupusesse no seu
interlocutor a intenção de acrescentar, como é próprio deste operador, um caráter de
exclusividade; não só é a marca desta ausência. A recusa do locutor encontra, enfim, a
sua razão argumentativa no fato de q ser apresentado como um argumento de igual força
que p, isto é, como um argumento que, por ser igual, opõe-se de certa forma a p: mas
também q”. (VOGT apud GUIMARÃES, 1987, p. 125).
Em outras palavras, Vogt defende que, ao utilizar o operador não só X mas também Y,
argumento como sendo “definitivo” ou mais forte – e, em certa medida, recusa-se a entrar nesse
mesmo “jogo”, para usar a metáfora de Ducrot, acrescentando a este argumento um outro que ele
julga tão relevante/forte quanto aquele de seu interlocutor. É com base na hipótese de Vogt que
Guimarães (1987, p. 125) explica a intenção argumentativa na enunciação de “Não só Pedro veio
Você pretende que Pedro veio é o argumento mais forte para [a conclusão] r. Não é isso,
pois não só Pedro mas também João veio. Ou seja, João veio é argumento de igual força
que Pedro veio para r. (grifos no original).
também compartilha da ideia de que essa estrutura permite o que chama de crescendum
argumentativo: o argumento pousado sobre Y seria o mais forte, ou aquele de que se lança mão
para “um maior convencimento” (ROSÁRIO, 2012, p. 119). Em decorrência desse crescendum,
110
para ele, a estrutura correlativa não só X mas também Y apresenta como característica, dentre
Augusto Boal construiu o famoso Teatro do Oprimido — que se difundiu não apenas no
Brasil mas também em várias partes do mundo, sobretudo nas três últimas décadas do
século XX —, entendido como instrumento de emancipação política, de despertar da
consciência sobre o mundo e sobre a capacidade de cada um dos seres humanos de atuar
coletivamente a fim de transformar a realidade. (grifos no original)
imaginária” com várias partes do mundo ocupando lugar mais à direita, quanto em termos
argumentativos.
Na esteira das análises de Vogt, Guimarães afirma que pretende avançar sobre
algumas questões referentes ao funcionamento das duas conjunções (e e não só X mas também
Y). Para além dos pontos em comum entre elas – ambas articulam argumento com argumento e
conclusão com conclusão –, há uma diferença fundamental no que diz respeito ao funcionamento
de uma e outra:
Dito de outro modo, “a significação dos recortes enunciativos com não só...mas
(também) é polifônica, ao contrário das enunciações com e” (GUIMARÃES, 1987, p. 129) e “isto
quer dizer que usar não só... mas (também) é lançar mão de uma construção linguística que tem a
Essa polifonia tem, contudo, uma particularidade que, como entendemos, não é expressa por
111
Guimarães: o “só” não é, via de regra, dito pelo interlocutor, mas é a ele “atribuído” pelo
violência” ao que B responde “Não só a pobreza mas também a ganância”, o que fica claro é que
A não diz “só a pobreza”, mas B – para ficar no mesmo quadro teórico ducrotiano – toma como
argumento.
Além disso, Guimarães (1987, p. 138) aponta um certo “caráter avaliativo” que essas
estruturas parecem ter e que não é encontrado no uso do e: o locutor avalia, de sua perspectiva, a
perspectiva de seu interlocutor, o que, de certa forma, Vogt (1977) parecia indicar.
Significação
Tipo de Natureza dos elementos
Operador do recorte Avaliação
conjunção articulados
enunciativo
não só X mas Segmentativa argumentos/argumentos Polifônica Tem caráter
também Y conclusão/conclusão avaliativo
Coordenativa argumentos/argumentos Não polifônica Não tem caráter
e
conclusão/conclusão avaliativo
as duas estruturas; as diferenças, contudo, não podem ser, segundo apontam as análises de
a partir da caracterização do Não só... mas (também) como polifônico, podemos dizer
que pensar como se constrói, ou construiu, a expressão em estudo é pensar em que
relação com outro dizer ela se constitui. Então a questão não é de escopo de operador,
nem tampouco componencial, mas de relação interdiscursiva numa situação de
enunciação. Ou seja, que dizer do outro o funcionamento de não só... mas (também)
representa ou resgata. (GUIMARÃES, 1987, p. 143-144; grifos no original).
A partir do quadro teórico da AD, que opera na imbricação da língua com a história, a
questão deve ser analisada a partir da relação interdiscursiva, como aponta o autor. Isso não
implica, entretanto, uma exclusão de questões consideradas mais “linguísticas”, como o escopo,
por exemplo.
Há que se dizer, contudo, que, ainda que defenda “que o sentido não é o resultado do
alcance de uma forma linguística, mas é o resultado histórico das enunciações em que esteve
envolvida” (GUIMARÃES, 1987, p. 141), o autor não deixa de ver nos empregos do operador
não só X mas também Y um funcionamento aditivo, posto que, da mesma forma que o e, ele
acrescentaria “algo ao que se disse antes, estabelecendo uma equivalência entre os elementos
articulados” (GUIMARÃES, 1987, p. 147). Como bem observa Krieg-Planque (2010b), estudos
como esse (sejam eles de natureza retórica, lógica, argumentativa etc.) tendem a centrar a atenção
sobre os marcadores – mesmo que se considere, como é o caso de Guimarães (1987), algum
“exterior”. No quadro de uma Análise do Discurso, a articulação entre língua e história é fundante
e, nesse sentido, será preciso pensar, sim, em termos de escopo do operador, por exemplo, e
113
se estabelecem podem nos levar a ler os enunciados acima num “enquadre” distinto daquele da
inclusão. Ou seja, não bastaria, de fato, descrever tais estruturas da língua, mas assumi-las como
materializações das relações mantidas no interdiscurso. Nesse sentido, o corpus analisado por
Mussalim contém estruturas “inclusivas” do tipo não só X mas também Y que não têm, muitas
funcionamento, a autora destaca um enunciado de Mário de Andrade, em que o poeta diz: “Isso é
muito importante: sentir e viver o Brasil não só na sua realidade física mas na sua emotividade
histórica também”. Contrastando duas paráfrases “possíveis”, uma num nível estritamente
Brasil na sua realidade física e na sua emotividade históricaMesmo fazendo arte como os
acadêmicos, isto é, mesmo representando o Brasil na sua realidade física, os modernistas diferem
dos artistas acadêmicos, visto que a representação física da realidade brasileira é superada, na arte
representar o Brasil na sua realidade física não é um dos objetivos que simplesmente se
soma ao objetivo central da proposta modernista, que, inserida em um espaço discursivo
de ruptura, busca a construção da nacionalidade por meio de um processo de contra-
aculturação realizado através da subjetividade do artista. (MUSSALIM, 2003, p. 143).
114
movimento (na verdade, é justamente por este motivo que se trata de uma concessão!).
(MUSSALIM, 2003, p. 144).
caros da escola francesa de Análise de Discurso, a saber: aquele de que há uma relação entre os
discursos e as estruturas linguísticas que os materializam (Pêcheux 1975/1997), ainda que essa
relação não seja, como aponta Possenti (2002), biunívoca – i.e, uma mesma estrutura não
materializa sempre um determinado discurso e vice-versa. Além disso, mostram também que as
paráfrases são fruto das relações que historicamente constituem os discursos e que, como aponta
Guimarães (1987), esse tipo de estrutura abre espaço para o dizer de um “outro” – ainda que a
autora não faça menção aos estudos de Guimarães. E é precisamente este o ponto que permitirá
avançar a respeito do funcionamento dos discursos que contribuem para a construção e/ou
entre os discursos no interdiscurso, será preciso retomar algumas das questões envolvidas no
Como visto, Holanda ([1959]2010) aponta que uma certa imagem do Brasil se
cristalizou desde o período do descobrimento, a saber: a do paraíso terreal. Tal cristalização tem
seus ecos até os dias de hoje, como fica evidente nas remissões às paisagens paradisíacas do
Brasil, por exemplo, nos recortes de roteiros turísticos85. Somem-se a isso as declarações feitas
para a Copa de 2014: naquela época, o Brasil foi elogiado por pautar sua proposta para sediar a
Copa numa ideia de “Copa Ecológica” ou “Copa Verde”. O próprio presidente da FIFA, J. Blatter,
observou que tal proposta o havia “impressionado” e que “só o Brasil” poderia fazer uma
85
Vide capítulo 2 desta tese.
115
proposta assim. Outros veículos midiáticos destacaram que sediar uma copa com preocupações
ecológicas era mesmo o “perfil” do país. Ou seja, é possível observar uma certa imagem já
consolidada em torno de um Brasil “natureza”, “ecologia”. O que se pode notar também nas
cultural.
lado de outros elementos que não são, por seu turno, prontamente associados à imagem do Brasil.
Esse processo é marcado no fio do discurso por determinadas estruturas que podem ser retomadas
pela paráfrase geral em não só X mas também Y, que permite marcar linguisticamente o lugar de
elemento “novo”, aquele que desliza tal imagem, pousa sobre Y (apódose). Esquematicamente:
4. Considerações finais
Pêcheux ([1983]2007, p. 52) sugere que a questão dos estereótipos poderia estar
relacionada à repetição sobre a qual se daria “a formação de um efeito de série pelo qual uma
‘regularização’ [...] se iniciaria, e seria nessa própria regularização que residiriam os implícitos,
sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrase”. E neste ponto, para ou autor,
116
face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos”
(quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados,
discursos transversos etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação
ao próprio legível. (PÊCHEUX, [1983]2007, p. 52)
que se chama, de maneira geral, de implícitos. Por serem, assim, uma espécie de “presença
ausente”, Pêcheux ([1983]2007, p. 52) destaca que, para a Análise de Discurso, uma questão
crucial seria saber “onde residem esses famosos implícitos, que estão ‘ausentes por sua presença’
na leitura da sequência”.
No caso do presente trabalho, a paráfrase por meio da estrutura não só X mas também
Y parece indicar, como visto mais acima, o local da cristalização ou, nos termos de Achard 86, da
“regularização”. Mais que isso, tal estrutura permite também o deslocamento que, pela força do
Esse quadro permite, portanto, assumir os estereótipos não como algo “engessante”
ou redutor, mas como uma regularização, efeito de retomadas, paráfrases e repetições que levam
cuja entrada no fio do discurso deixa suas marcas, ou seja, os efeitos da articulação dessas
86
“A regularização se apoia necessariamente sobre o reconhecimento do que é repetido. Esse reconhecimento é da
ordem do formal […]”, (ACHARD, [1983]2007, p. 16).
117
enquanto pré-construído”, diremos que é por meio de estruturas do tipo não só X mas também Y
por meio de tais estruturas que se articulam o dado e o novo, o estereótipo e seu deslocamento.
A leitura, porém, desses enunciados não parece ser sempre meramente aditiva 87,
considerando o que foi dito mais acima acerca das condições de produção desse discurso, i.e, não
se trata de novos “traços” de um espaço nacional que seriam incluídos aos já conhecidos. Trata-
para ficar em poucos exemplos) – surge também no que diz respeito à construção/legitimação do
espaço brasileiro “por excelência”. É como se – a partir das considerações em torno das análises
dizer que isso não é tudo que há para dizer a respeito do Brasil. Nesse sentido, a paráfrase das
estruturas acima é algo como: “embora o Brasil seja pródigo em belezas naturais, não é apenas
isso que o país oferece ao turista” ou ainda “mesmo que tenha diversas belezas naturais, há
outros elementos a serem valorizados no país”. As análises apresentadas aqui mostram, portanto,
que a leitura dessa estrutura — como de outras, aliás — deve ser discursiva.
87
Por mais que procurem dar um novo estatuto à estrutura da paráfrase aqui analisada, estudos como os de
Guimarães (1987) e Rosário (2012) consideram não só X mas também Y invariavelmente como sendo “aditiva”.
Contrariamente a eles, Mussalim (2003) mostrou que, dadas as relações mantidas no interdiscurso, a leitura pode ser
bastante distinta.
118
Capítulo 4 – Moda brasilis
119
É bem verdade que nossa floresta
amazônica, ocupando importante parcela
do território brasileiro, tem merecido
destaque nesse imaginário que relaciona
o Brasil à natureza. Bem longe dela,
entretanto, em grandes centros urbanos
do Sudeste do país, como Rio de Janeiro
e São Paulo, também é a natureza (dessa
vez ainda mais idílica e menos hostil) que
brota nos discursos sobre o que há de
mais “brasileiro” em nossa moda.
(LEITÃO, 2007, p. 131).
1. Palavras iniciais
poderia chamar segunda “focagem”. Desde a etapa de construção do corpus desta pesquisa, esses
dois espaços apareciam, volta e meia, relacionados. Vimos no capítulo anterior que foi uma
revista “de moda” (Elle) que chamou a atenção para o fenômeno do turismo científico-cultural e,
em 2008, novamente esses espaços voltam a se encontrar, mas agora numa ação da Embratur:
durante duas semanas de moda internacionais (Mercedes-Benz Fashion Week, em Nova York, e
Who’s Next Paris, no Showroom do Crillon) foram distribuídos brindes88 com imagens de
destinos turísticos no Brasil. A presidente da Embratur à época, Jeanine Pires, justificou a ação
88
Em Nova York, eram chaveiros com imagens, segundo a Embratur, “representativas das cinco regiões”: Cristo
Redentor, berimbau, frutos de guaraná, chimarrão e o Congresso Nacional”. Em Paris, eram almofadas e ecobags
com imagens de Brasília, da Chapada Diamantina e de Foz do Iguaçu.
120
dizendo que eventos como esses “reúnem formadores de opinião, além de contar com forte
presença da imprensa internacional, o que reforça a divulgação do País mundo afora” 89. Ou seja, a
distância entre turismo e moda não é tão grande como se poderia supor.
Esses pontos de contato entre os espaços nos levaram a investigar, num primeiro
construção/legitimação de uma paisagem “típica” nacional. Essa primeira incursão mostrou que
as representações do Brasil na moda pareciam envolver, em diversos casos, certas imagens que
remetem a uma “tropicalidade” que, por sua vez, caracterizaria o espaço nacional brasileiro e,
Este é, aliás, outro aspecto a ser abordado neste capítulo: os debates em torno de uma
identidade da moda nacional floresceram nos últimos anos e, consequentemente, não é difícil
documentários produzidos com o intuito específico de tratar desse tema. Embora não seja essa
espaço nacional brasileiro. Trata-se, também aqui, de descrever e analisar o funcionamento dos
discursos acerca desse espaço “genuíno” a partir do modo de circulação de uma certa imagem
Para tanto, o corpus referente a este campo inclui matérias jornalísticas da imprensa
89
Nota da Assessoria de Comunicação do Ministério do Turismo, disponível em:
<http://www.turismo.gov.br/turismo/noticias/todas_noticias/20080908.html>. Acesso em: 18 dez. 2009.
90
As matérias foram coletadas em veículos variados, tanto da mídia impressa quanto online. Em razão dessa
variedade, optamos por apresentar as referências das matérias analisadas ao longo do trabalho.
91
Os editoriais foram extraídos essencialmente das revistas especializadas (Elle, Vogue), embora houvesse alguns
editoriais em blogs, sempre referendados no corpo do trabalho.
121
comentários)92, campanhas publicitárias de artigos de moda cujo tema é o Brasil93, programas de
moda brasileira95, o número 18 da revista produzida pelo Itamaraty Textos do Brasil (dedicado à
moda nacional), desfiles das semanas de moda brasileiras das edições de 2005 a 2012 e, por fim,
alguns itens de coleções de designers e estilistas internacionais que tomam o Brasil por mote 96.
A indústria da moda no Brasil não tem a mesma tradição que a de países como a
França ou os Estados Unidos. As semanas de moda por aqui começam somente no final da
década de 1990, algo que há muito já se faz lá fora. E, embora o Brasil tenha estilistas de certo
renome já há algumas décadas, ainda hoje se discute uma “identidade” para suas criações na
“internacionalmente ainda se tem uma visão míope da moda brasileira. Em termos de identidade,
nossas marcas mais internacionalizadas não passam uma imagem homogênea, tal como os belgas
92
Aqui também, dada a imensa variedade, optamos por referenciar ao longo do trabalho.
93
Enquadram-se aqui, por exemplo, uma campanha da loja americana Macy's que, como se verá nas análises,
produziu uma série de três catálogos com peças de estilistas e marcas diversas a homenagear o Brasil. Mas há
também algumas outras propagandas que circularam de maneira, digamos, mais isolada (é o caso de uma coleção das
Havaianas com temática da fauna e flora nacionais).
94
Aqui é preciso falar do canal GNT que, durante as semanas de moda brasileiras, tem uma programação especial
que inclui: “Pílulas” dos desfiles ao longo da programação diária, um programa ao final do dia com convidados que
comentam “O melhor do dia” do evento, programas especiais do “GNT Fashion” que cobre os eventos de moda no
mundo todo e, nesse período, as semanas nacionais. Mas há ainda outros canais que comentam os desfiles, alguns na
internet (UOL e Terra, por exemplo, têm esse tipo de cobertura), no Youtube é possível encontrar vídeos do programa
“M de moda”, que também se especializa na cobertura dos eventos e estilistas nacionais.
95
História da moda no Brasil. Direção: João Braga, Luís André do Prado, Tatiana Lohmann. 2012. Documentário.
96
A esse respeito, cabe uma rápida observação: não nos pareceu interessante distinguir uma visão “nacional” de uma
“internacional”, i.e., assumir as representações de estilistas nacionais, de um lado, e de estilistas estrangeiros, de
outro. Isso porque, como será possível notar, não há diferenças significativas nas representações de uns e de outros.
122
ou os japoneses”97. Por outro lado, Tufi Duek, também estilista brasileiro, pondera que “moda não
tem pátria [...]. O que existe é moda de influência do Brasil, moda criada por estilistas brasileiros,
moda inspirada no nosso país, seja através da nossa cultura, dos nossos materiais ou de qualquer
outra coisa que você possa se inspirar”98. Mas nesse caso é possível enxergar que, ainda que não
se “exija” dos estilistas brasileiros que façam uma “moda brasileira”, Duek admite uma “moda de
influência do Brasil”, “inspirada” no Brasil; este é um aspecto que pode interessar aqui.
Robic (2007), estudioso de moda, na mesma direção de Duek, afirma que a definição
de uma “moda brasileira” não faz muito sentido em um mundo globalizado e, analisando o
percurso da moda no mercado brasileiro, acaba abordando essa dimensão identitária. Após citar
nacional, o autor conclui que, embora os números possam levar “muitas pessoas e empresas a
acreditar que existe uma moda brasileira assombrando o mundo, que mal pode esperar pelas
próximas tendências ditadas pelos estilistas brasileiros” (ROBIC, 2007), o impacto desses
números sobre a moda nacional não tem maiores repercussões. Robic chega ainda a questionar a
“validade” das representações do Brasil – feitas por brasileiros mesmos — no mercado externo,
passando da economia (em tópico a que ele chama “onde estamos?”) aos estereótipos do nacional
(tópico por sua vez denominado “mas aqui é aqui mesmo?”). Esse questionamento chama a
atenção para a representação do lugar, o “aqui”, que o Brasil é, ou, em outras palavras, para os
estereótipos mobilizados nos discursos acerca do Brasil, de seu espaço nacional – questionados
do ponto de vista de sua “validade” como imagem do país pelo próprio autor.
97
Internacionalização da moda brasileira: o exemplo da moda praia. In: BRASIL. Textos do Brasil. Moda. Brasília:
2011, n. 18. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/temas/difusao-cultural/ textos-do-brasil/18-moda/>.
Acesso em: 15 jan. 2012.
98
História da moda no Brasil. Direção: João Braga, Luís André do Prado, Tatiana Lohmann. 2012. Documentário.
123
Dois posicionamentos distintos emergem daí, e que veremos ao longo deste capítulo:
ou se nega a existência de uma moda brasileira por completo ou, alternativamente, não se aceita
que uma moda nacional seja representada por esses elementos, mas por outros.
A respeito desse debate, Érika Palomino, jornalista de moda, aponta que a discussão
em torno da constituição de uma “moda nacional” surgiu no início dos anos 2000, quando os
jornalistas estrangeiros começam a chegar ao país para acompanhar nossas semanas de moda. É
possível, contudo, identificar, muito antes disso, manifestações desse debate. Estilista importante
já na década de 1940, Alceu Penna — que também foi ilustrador da antiga revista Cruzeiro (a
partir dos anos 1950) — já punha em causa as escolhas nacionais vinculadas a elementos
estrangeiros, como já havia acontecido na literatura brasileira com o movimento modernista, por
(1) Na estação em curso, a moda está se inspirando em trajes de Espanha, nas listras
indianas e nas de Marrocos. Em grande evidência, o bordado Inglês. Ora, por que o
bordado Inglês? E por que não o do Ceará? Por que Espanha, Índia, Marrocos e não o
Brasil? (PENNA apud OST, 2006).
“engatinhava” e que lutava ainda para se constituir independentemente dos grandes estilistas e
das marcas estrangeiras, pois como lembra Chataignier (2011), a década de 1950 foi marcada no
Brasil pela busca de costureiros que replicassem moldes dos grandes nomes do design francês:
99
Cf. MUSSALIM, 2003.
124
A desvinculação do elemento estrangeiro foi, assim, um momento importante para a
constituição de uma indústria de moda nacional – mais que de uma moda nacional propriamente
dita.
O fato é que esse debate acaba, como adiantamos mais acima, por tocar a questão da
representação do Brasil também no que tange a sua paisagem. Isso porque quando se discute a
partir dos quais se definiria uma nação100, como, por exemplo: uma língua comum, uma religião,
os atletas, o território, a economia etc. Além desses, alguns autores, dentre os quais Löfgren
(2000), destacam ainda uma paisagem nacional típica. É, então, em razão deste último elemento
apontado que tais debates em torno da identidade nacional permeiam o campo da moda. Como
destaca Leitão (2007, p. 143), “o uso de elementos que compõem o cenário natural tem sido
sublinhado pela imprensa de moda brasileira e francesa como um dos aspectos que concedem
“genuinamente” nacional, o aspecto que merece destaque, para os fins desta pesquisa, é o fato de
portanto, como uma (debatida) identidade do Brasil na moda está associada, essencialmente, às
nação.
100
Por se tratar de um conceito eminentemente político, a nação define-se de maneira fluida, na medida em que,
mudando os estudiosos, variam também ao menos em parte os elementos que a definem. Nesse sentido, podem-
se citar alguns autores frequentemente reportados quando estão em pauta esses elementos que concorrem para a
definição do conceito de nação: Hobsbawm (2004), Anderson (1994), Renan (1947), Hall (2005), Löfgren (2000)
dentre outros.
125
Matéria publicada em Veja101, que tem como tema a moda nacional, é exemplar dessa
imbricação com os debates de uma identidade nacional: “Existe uma moda tipicamente
pergunta — embora seja tachada pela jornalista de “inútil” e “irrespondível” — sugere que todos
os criadores querem distância do que chama de “moda folclórica do ‘país dos papagaios’”. No
entanto, ao explicitar os elementos dos quais os estilistas nacionais desejam se afastar, a jornalista
não inclui aqueles “da natureza”. Ao contrário, segundo ela, o “típico” do Brasil — e do que se
deve tomar distância — envolveria “chitas, balangandãs, fitinhas, rendas rústicas e outras
obviedades” (p. 128). Esse discurso é bastante forte no meio da moda. Em documentário
intitulado História da moda no Brasil, exibido em 2011 na TV Cultura, grandes nomes da moda
responderam:
(2) Não preciso incluir ícones e temas folclóricos para dizer que ela [a moda que eu
faço] é brasileira. Mesmo porque lá fora ninguém sabe quem é o Saci Pererê. (Alexandre
Herchcovitch)
(3) A moda brasileira vai existir porque ela é feita por brasileiros, não porque ela usa
elementos folclóricos e culturais. Não há necessidade disso. (Walter Rodrigues)
(4) Não é verdade que quem faça uma roupa cheia de fuxico, de rendinha, de bordado
está fazendo uma moda lindamente brasileira e que isso é a nossa cara. (Paulo Borges)
O que chama a atenção nesses recortes — e em outros que vão nesse mesmo sentido
— é que, ao recusar o rótulo de “moda nacional”, os estilistas o fazem a partir daquele rol de
“brasilidade”: representações folclóricas, rendas, bordados, fuxicos. Essa recusa suscita, por sua
vez, um debate relevante que irá tocar a questão da estereotipia a partir de uma perspectiva
101
MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 128-131.
126
2.1 Simulacro e moda: implicações para a noção de estereótipo
sintático”, uma vez que “corresponde a uma sequência encaixada em uma outra de modo invisível,
com um efeito de evidência prévia” (PAVEAU, 2007, p. 316). Aquilo que foi construído antes e
alhures aparece, então, no fio do discurso como sempre já-lá, evidente. Problematizando o conceito
a partir do contraste com a noção de interdiscurso formulada por Pêcheux ([1975]1997), Possenti
(2003) considera que o pré-construído não pode ser, em certa medida, da ordem do interdiscurso103,
posto que o efeito de evidência que a noção impõe só pode funcionar no nível das formações
discursivas — como as concebe Pêcheux. Para o autor, a dependência com a formação discursiva é
ainda mais clara quando os pré-construídos são articulados sob a forma de discursos transversos,
aquilo que “‘pertence’ a uma formação discursiva ou é retomado, afirmado, ou, alternativamente,
denegado. Mas o que pertence a outra formação discursiva, mesmo fazendo parte do interdiscurso
(o que é óbvio, dada a definição), só pode ser recusado, ironizado, parodiado, tornado simulacro”
102
Vide capítulo anterior.
103 “
A não ser naquilo que é por demais óbvio, ou seja, sem a necessária relevância”, como bem observa o autor.
127
(POSSENTI, 2003, p. 141). O simulacro é fruto, portanto, de uma polêmica entre formações
discursivas antagônicas. Isso fica bastante claro se se toma a noção a partir do quadro teórico-
disputando espaço entre si para preencher uma mesma função social; a essas zonas ele chama
campos discursivos. É no interior dos campos que os discursos se constituem. Daí a tese da
precedência do interdiscurso sobre o discurso, em que a relação de um discurso com seu Outro é
A própria figura do Outro ganha, nesse quadro, maior especificidade, posto que ele se
encontra no interior do discurso, deixando de ser um mero “envelope”, para utilizar a feliz
No espaço discursivo, o Outro não é nem um fragmento localizável, uma citação, nem
uma entidade exterior; não é necessário que seja localizável por alguma ruptura visível
na compacidade do discurso. (…) É o que faz sistematicamente falta a um discurso e lhe
permite fechar-se em um todo. É aquela parte do sentido que foi necessário que o
discurso sacrificasse para constituir sua identidade. (MAINGUENEAU, [1984]2005, p.
39).
Decorre daí o caráter dialógico de cada enunciado, de sorte que se torna impossível
unidade de uma formação discursiva apoia-se num conflito regrado, pois, “ao delimitar a zona do
dizível legítimo, [uma FD] atribuiria por isso mesmo ao Outro a zona do interdito, isto é, do
dizível errado” (MAINGUENEAU, [1984]2005, p. 39). Esse caráter constitutivo da relação que
128
um discurso mantém com seu interdiscurso desemboca no conceito de interincompreensão
seu Outro. A polêmica deve, segundo a proposta de Maingueneau, ser entendida como
negativo do discurso em questão. Dessa forma, pode-se dizer que o Outro somente integra o
“tradutor” e são lidos a partir do registro negativo daquele discurso. Maingueneau ([1984]2005,
p. 113) descreve a polêmica como uma “homeopatia pervertida: ela introduz o Outro em seu
recinto para melhor conjurar sua ameaça, mas esse Outro só entra anulado enquanto tal,
simulacro”. É, pois, nesse sentido que Possenti (2003) afirma que o simulacro não pertence, a
rigor, a discurso algum: ele é, na verdade, fruto da tradução que um dado discurso efetua de seu
Outro. O simulacro não se encontra, então, no interdiscurso, mas seu efeito “é idêntico ao do pré-
A partir daí, cabe perguntar se, nos excertos de (2) a (4), estamos diante de pré-
construídos propriamente ditos ou se, por outro lado, são simulacros que estão linearizados no
intradiscurso.
representada pelos elementos a que se referem os estilistas citados — folclore, fuxicos, rendas
rústicas etc. Ou seja, é preciso que esse discurso tenha um “corpo” em um outro espaço que não
aquele a partir do qual os estilistas enunciam. Caso contrário — ou seja, em não se encontrando
excelência”.
129
O enunciado de Penna apresentado em (1), e retomado abaixo, pode ser tomado como
(1) Na estação em curso, a moda está se inspirando em trajes de Espanha, nas listras
indianas e nas de Marrocos. Em grande evidência, o bordado Inglês. Ora, por que o
bordado Inglês? E por que não o do Ceará? Por que Espanha, Índia, Marrocos e não o
Brasil? (PENNA apud OST, 2006; grifamos)
É possível encontrar ainda outras manifestações desse discurso, como nos trechos das
músicas a seguir, de Dorival Caymmi (O que é que a baiana tem?) e de Ary Barroso (Aquarela
do Brasil), respectivamente:
Algumas ressalvas, porém, terão de ser feitas aqui. Em primeiro lugar, é bem verdade
que todos os exemplos da manifestação de tal discurso são bastante antigos — as músicas são do
final da década de 1930 e o texto de Penna é da década de 1950 e quase não se encontram
manifestações atuais. Além disso, um outro ponto que parece ser mais relevante aqui é que,
embora se possa verificar a existência de um “corpo” para os discursos que consideram rendas,
130
bordados etc. representativos de uma moda “genuinamente” brasileira, não cremos ser possível
dizer que sejam casos prototípicos de pré-construídos, mas de simulacros. Tome-se a declaração a
seguir que, aparentemente, atualiza aquele discurso presente em (1), (5) e (6):
(7) a gente tem um uso de cores muito interessante na moda brasileira, trabalha muito
bem com a manufatura, que é sinônimo de novo luxo no mundo, e a gente tem essa
vocação pra ser sensual naturalmente. (Jackson Araújo, analista de tendências;
grifamos)104
Veja que a “manufatura” — que também pode ser encontrada com mais frequência
como handmade — é apresentada aqui como algo positivo, valorizado. Não é, contudo, esse
handmade que é recusado pelos estilistas nacionais, mas fitinhas, balangandãs, fuxicos. Ou seja,
que ele de fato é, mas como algo “menor”: fitinhas e rendinhas (uso do diminutivo), rendas
rústicas (qualificador, que indica uma oposição, no caso, à “alta costura”), uso de chita
(considerado um tecido “menor”) etc. Dito de outro modo, a retomada se opera por meio de um
estereótipo105, mas de outro modo. Amossy e Pierrot (2005) destacam o caráter “bivalente” que a
noção assume frequentemente: ora visto como importante ou fundamental para as relações
humanas ora visto sob uma ótica pejorativa. O estereótipo formado via pré-construído parece
relacionar-se à ideia de “cristalização”, algo até certo ponto “necessário”, algo que quase passa
“despercebido”, como se procurou mostrar nas análises do turismo; por outro lado, o estereótipo
formado por meio de simulacro parece ser responsável pelas conceituações negativas atribuídas à
noção.
104
Programa M de moda, disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=_r0F9UViejQ>.
105
Da mesma forma que os pré-construídos podem estar, como mostrado no capítulo anterior.
131
A esse respeito, vejamos ainda um outro exemplo, exterior à temática aqui trabalhada
estereótipos são sociais, imaginários e construídos – ainda que tenham algum amparo no real.
Ele considera ainda que os estereótipos são reduções e anota: frequentemente negativas – fruto
eventualmente de simulacros. Os casos analisados por Possenti mostram, de fato, que tanto a
identidade de gaúchos quanto de loiras nas piadas são fruto de um simulacro, i.e. “uma espécie de
identidade pelo avesso – digamos, uma identidade que um grupo em princípio não assume, mas
que lhe é atribuída de um outro lugar, eventualmente, pelo seu Outro” (POSSENTI, 2004b, p.
156). A noção de estereótipo com a qual se opera na análise desses exemplos assume
frequentemente uma conotação negativa (como o próprio autor reconhece), o que, a nosso ver, é
mais uma evidência de que os estereótipos construídos a partir de simulacros acabam por
identidade para a moda brasileira mostram que os simulacros de uma “moda brasileira”, ou de
peças “tipicamente” brasileiras, acabam por colocar em cena um certo estereótipo do nacional,
mas que não é “aceito” pelos estilistas nacionais. Talvez esses elementos sejam recusados em
certa forma, por refletir num estereótipo do Brasil como lugar ainda atrasado, que não partilha
das tendências de vanguarda da moda mundial. O que parece interessante na polêmica identitária
em tela é que se, por um lado, a ideia de um “Brasil-paraíso” não é propriamente recusada pelos
estilistas em geral – como exploraremos a seguir –, por outro lado, a referência a um “Brasil-
Se fitinhas, balangandãs, fuxicos, rendas rústicas e chitas são elementos por demais
folclóricos para representarem a “alta costura” nacional – como também aponta Moherdaui –, o
mesmo não se pode dizer dos elementos naturais – representados pela fauna e flora,
especialmente – do Brasil. A matéria de Veja, por exemplo, não economiza nas explicações
relativas ao clima e à vegetação nacionais para justificar as “linhas mestras” de trabalho dos
(8) intimidade natural com a luz, a cor e a exuberância que fazem parte do
patrimônio visual nacional.106 (grifamos).
responsável por características da moda brasileira. Esses elementos naturais serão mencionados
diversas vezes pelos estilistas nacionais como aquilo que influencia o trabalho deles: do
“colorido” das paisagens para o colorido nas roupas; da “exuberância” para o “exagero” (over)
nas peças e nas estampas. As declarações de estilistas entrevistados por Veja dão a dimensão
desse aspecto:
(9) Muitas pessoas nem sabem que sou brasileira. Mas sei que se fosse sueca minhas
roupas nunca teriam esse colorido, esse bordado, esse tempero.107 (Isabela Capeto;
grifamos).
(10) Uma pessoa que cresceu na Amazônia, com aquelas árvores gigantes, não tem como
não ser over.108 (André Lima; grifamos)
([1959]2010) e Chauí (2006), remonta à época do descobrimento do Brasil 109 – não é o único
106
MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 128.
107
In: MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 130.
108
MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 130.
109
Vide capítulo 2.
133
aspecto relacionado ao espaço nacional “genuíno” que justifica outras escolhas aparentemente
aleatórias. Além deste, também se pode detectar a presença de um outro tema apontado por
Como dito antes, Holanda ([1959]2010) observa que a temperança dos ares do novo
continente era fator frequentemente utilizado como evidência de que no Brasil encontrava-se o
paraíso terreal. A diferença é que o clima retratado na moda não é ameno; ao contrário, a
representação do Brasil nesse campo é mais próxima da ideia de “Rio 40 graus” que da
temperança. Adriana Degreas, estilista brasileira de moda praia, também toca essa questão, como
(11) Consigo enxergar, com mais clareza, uma identidade brasileira muito forte na moda
praia. Acredito que faça parte do universo brasileiro, pelo comportamento, pela situação
climática que nos é favorável, pelo corpo da mulher brasileira, pela riqueza tropical.110
(grifamos).
O que parece interessante é que o clima aqui é atrelado à ideia de praia, numa
passagem quase “evidente” – que é, aliás, muito revelador do funcionamento dos discursos. No
(12) Eu acredito muito na questão do entorno, como eu sempre falo. O calor que atinge
a gente por oito meses nesse país, isso nos faz diferentes dos europeus. Só isso já é
um ponto, independente se a gente vai por periquito, papagaio... essa diferença já está
embutida no nosso DNA.111 (grifamos).
A declaração acima permite notar, mais uma vez, que são esses motivos naturais os
responsáveis pelo tipo de moda que é feita no Brasil: a moda europeia é diferente da nossa porque
não é o clima dos trópicos que os estilistas de lá vivenciam. Glória Kalil, consultora de moda,
110
Qual é a identidade da moda brasileira, 9 jun. 2010. Disponível em: <http://vilamulher.terra.com.br/qual-e-a-
identidade-da-moda-brasileira-14-1-35-305.html>. Acesso em: 15 jul. 2011.
111
História da moda no Brasil. Direção: João Braga, Luís André do Prado, Tatiana Lohmann. 2012. Documentário.
134
(13) Quando a gente fala em Brasil, todo mundo lembra de sol, lembra de uma coisa
mais leve, mais alegre [...] sobretudo menos formal: uma grande informalidade. Eu acho
que isso tudo se transmite na nossa moda. (grifamos).
Também o renomado editor de moda da revista Vanity Fair, Michael Roberts, credita
a identidade da moda brasileira ao fator climático. Segundo ele, as edições mais recentes das
semanas de moda brasileiras têm apresentado uma moda mais brasileira porque deixaram de fazer
(14) muitas coisas que têm a ver com o clima do Brasil. (Michael Roberts; grifamos).
Além de ser o “entorno” responsável pela criação dos estilistas, a natureza é também
responsável por manifestações mais “diretas” nas coleções, por exemplo, nas estampas, como
(15) A natureza exuberante, quase arrebatadora, que germina e impregna-se por toda
parte, é uma sedutora representação do Brasil em nossa moda de vestir, assim como
é metáfora do país fora de suas fronteiras. Fauna e flora inspiram diretamente
motivos figurativos em nossas estampas e padronagens. Ao mesmo tempo, a natureza
percebida como molde para um caráter nacional brasileiro (ou como sua segunda
natureza), serve de linha mestra para coser nossa moda. (LEITÃO, 2007, p. 130;
grifamos).
diversos temas que são costumeiramente associados a uma moda brasileira: o clima (não mais
ameno, mas quente) que influencia uma paisagem exuberante se reflete, por sua vez, na
exuberância das peças das coleções de estilistas brasileiros. Essa exuberância é representada por
meio do colorido; pela leveza ou pela nudez do corpo, evidencia-se a sensualidade – que também
112
História da moda no Brasil. Direção: João Braga, Luís André do Prado, Tatiana Lohmann. 2012. Documentário.
135
decorre do clima, que, por seu turno, leva os brasileiros à praia: uma de nossas paisagens
“típicas”113.
Todos esses elementos encontram-se altamente imbricados, numa relação que leva –
como dito mais acima, de forma quase “evidente” – de um a outro e sustenta o funcionamento
Por ser bastante emblemático de todas as discussões que foram apresentadas até aqui
por meio de recortes, o texto a seguir será analisado integralmente, destacando-se, especialmente,
as relações estabelecidas entre os temas acima tratados. As caixas com setas indicam os tópicos
de cada parágrafo.
113
Vide item 3 deste capítulo.
114
OST, Bruno. A identidade brasileira na moda, 2006. Disponível em: <http://www.modamanifesto.com/index.php?
local=detalhes_moda&id=134>. Acesso em: 22 mar. 2011.
136
materiais, cores, texturas e técnicas similares às diversas culturas do mundo. As rendas
são apenas um exemplo, mas podemos citar o bordado, o couro, o algodão, o jeans, a
Como deve ser a moda praia e tantas outras criações e apropriações que receberam um toque brasileiro.
moda brasileira Deve-se preocupar em refletir não só a riqueza natural, mas também nossa riqueza
para que reflita as cultural. O Brasil é um país tropical cujas capitais, em sua maioria, estão na costa.
características do Também, os diferentes climas, as diferentes misturas étnicas com a Europa e a África
sugerem uma moda plural, sensual, vibrante, rica em texturas, cores, materiais e
país imagens. Elementos que ao longo dos séculos foram trazidos pelos estrangeiros para o
país e refletem, não somente nossa arte popular e nossa natureza exuberante, mas
Se o Brasil é um nossas cidades, nossas mazelas sociais, nossos luxos e exageros, nosso lifestyle.
O Brasil é um país de diversidade cultural e natural. A busca por uma identidade na
país plural, sua
moda deve abranger essa pluralidade. Dessa forma, o que identificaria as criações do
moda também deve Brasil seriam os elementos que representassem a cultura brasileira em todos os seus
ser aspectos, e não aqueles que transformassem as roupas em fantasias étnicas.
O Brasil está na moda, vê-se isso nas inúmeras exposições sobre o país nas mais
A imagem externa diferentes lojas do mundo, mas são exposições de características estereotipadas. É a
do Brasil é praia com mulheres de biquíni, o futebol e tantas outras imagens que não são o reflexo
estereotipada e de nossa cultura como um todo. Isso não caracteriza uma identidade na moda, mas
não dá conta da uma imagem de como vêem o país. Por isso a busca de uma identidade brasileira
diversidade do parece estar apenas começando, pois ela precisa se apresentar ao mundo com sua face
país plural, que vai do campo à cidade, da floresta à praia.
O título já indica que o tema central a ser abordado diz respeito à identidade na moda:
uma identidade pressuposta, i.e., inquestionável do ponto de vista de sua existência, como indica
o artigo definido (“A identidade brasileira na moda”); trata-se, portanto, de investigar o que
constrói essa identidade. As perguntas que introduzem essa questão apontam para dois elementos
parágrafo).
As características estilísticas que fariam com que a moda fosse feita “à brasileira”,
como aponta o autor, aparecem como sendo aquilo que diferenciaria as criações nacionais das de
estilistas estrangeiros; há, assim, estilistas que querem fazer uma moda “com a cara do Brasil” e
outros que, por oposição, desejam uma moda “sem rótulos”. No entanto, mesmo quando fala em
“características estilísticas”, o autor acaba por elencar uma série de “materiais” (fuxicos, búzios,
137
Esses materiais, como foi possível detectar nos excertos apresentados anteriormente,
são um ponto de grande polêmica e sobre eles costuma incidir a negação, como mostram os
(2) Não preciso incluir ícones e temas folclóricos para dizer que ela [a moda que eu
faço] é brasileira. Mesmo porque lá fora ninguém sabe quem é o Saci Pererê. (Alexandre
Herchcovitch; grifamos)
(3) A moda brasileira vai existir porque ela é feita por brasileiros, não porque ela usa
elementos folclóricos e culturais. Não há necessidade disso. (Walter Rodrigues;
grifamos)
(4) Não é verdade que quem faça uma roupa cheia de fuxico, de rendinha, de bordado
está fazendo uma moda lindamente brasileira e que isso é a nossa cara. (Paulo Borges;
grifamos)
A polêmica entre os dois posicionamentos está colocada nos seguintes termos: para os
que acreditam que se perguntar sobre uma identidade brasileira na moda é uma questão superada,
a busca por ela acaba produzindo “fantasias”, uma vez que, para esse posicionamento, isso
levaria à utilização de elementos “folclóricos”; para o outro posicionamento, uma moda “com a
cara do Brasil” não significa necessariamente usar determinados materiais – embora eles também
possam ser utilizados (a leitura deve ser feita, portanto, num enquadre concessivo). Essa questão
(17) A questão da identidade não deve caracterizar uma busca por quais elementos
devem fantasiar as roupas do país. Deve-se (sic) trazer os elementos de nossa cultura
popular à vanguarda da moda.
O excerto acima recusa a “busca” por elementos característicos, mas isso não
significa abandoná-los: é preciso apropriar-se deles para torná-los objetos de moda. Trata-se de
uma visão que se poderia chamar “antropofágica”, i.e., é o artista, no caso o estilista, que irá
transformar elementos originários da cultura popular em “obras de arte”. O que temos em (17) é,
então, uma denegação, pois, como define Indursky (1990), a denegação discursiva é um tipo de
negação em que aquilo que é negado só o é por razões conjunturais, ou seja, poderia mesmo ser
138
afirmado. Assim, o posicionamento representado no texto acima poderia até mesmo defender
uma busca por materiais considerados típicos brasileiros, mas não o faz – ou melhor, não o faz
sem concessões – para não ser tachado de folclorista na polêmica instaurada. Daí também a
contestada. Nesse contexto aparecem as concessões: fazer peças “tipicamente” brasileiras sem
também se viu no turismo – e almejada para a construção de uma identidade nacional na moda. E
também aqui essa “ampliação” de uma imagem que vá além do “estereótipo” nacional deixa
rastros na sintaxe:
(18) Deve-se preocupar em refletir não só a riqueza natural, mas também nossa riqueza
cultural. O Brasil é um país tropical cujas capitais, em sua maioria, estão na costa.
Também, os diferentes climas, as diferentes misturas étnicas com a Europa e a África
sugerem uma moda plural, sensual, vibrante, rica em texturas, cores, materiais e
imagens. Elementos que ao longo dos séculos foram trazidos pelos estrangeiros para o
país e refletem, não somente nossa arte popular e nossa natureza exuberante, mas
nossas cidades, nossas mazelas sociais, nossos luxos e exageros, nosso lifestyle.
O uso das estruturas correlativas do tipo não só X mas também Y obedece também
Y o deslocamento. Assim, a “riqueza natural” do Brasil que se reflete nas coleções é assumida
como elemento “dado” e até certo ponto “inquestionável”, mas é preciso refletir também a
“riqueza cultural”, que aqui guarda relação com os materiais, por exemplo (vide recortes 2 a 4
acima). Da mesma forma, esses elementos que representariam o Brasil em sua “pluralidade” são
serem chamados a representar também “nossas cidades, nossas mazelas sociais, nossos luxos e
139
Aí reside o ponto que parece crucial para o que interessa nesta pesquisa: na discussão
determinados materiais (fuxicos, rendas etc.) como sendo representativos da moda brasileira. Por
outro lado, o tema da “exuberância” natural e sua representação (por exemplo nas estampas) não
é posto em causa; ao contrário, é assumido como algo válido e que, de fato, representa o Brasil.
Em outras palavras, parece-nos que o “aqui” que o Brasil representa não é ponto de “disputa”. As
representações do Brasil na moda envolvem, então, em boa medida, certas cenas validadas
3. O Brasil em cena
A Análise do Discurso, sabe-se, “teve como primeiro objetivo querer rearticular o que
o ‘corte saussuriano’ havia separado, fazer ressurgir o que a instituição de uma linguística formal
havia removido para fora do campo da ciência da linguagem: as condições de emprego da língua”
(COURTINE, 1999, p. 7-8). Pautava-se, para tanto, no pressuposto de que haveria uma relação
entre língua e história, de modo que, já no texto inaugural da disciplina, Pêcheux ([1969]1997, p.
possíveis de serem engendrados. Decorre disso que “é impossível analisar um discurso como um
140
texto, isto é, como uma sequência linguística fechada sobre si mesma”, é preciso, ao contrário,
Um possível efeito desse postulado fundador talvez tenha sido o fato de que a Análise
falantes que aí vêm se inscrever” (MAINGUENEAU, 1997, p. 32), o que fez com que, por muito
signos inertes, mas o rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada”; e tal
“‘encenação’ não é uma máscara do ‘real’, mas uma de suas formas, estando este real investido
pelo discurso” (MAINGUENEAU, 1997, p. 34). No campo literário, Maingueneau (2001, p. 122)
“o romance ‘realista’ não é apenas ‘realista’ por seu conteúdo, mas também pela maneira como
um texto sejam estudadas a partir de três cenas interdependentes, a saber: i) a cena englobante; ii)
a cena genérica; e iii) a cenografia. Assim, à pergunta “qual a cena de enunciação deste texto” é
possível dar três respostas distintas, dependendo do ponto de vista que se assuma: uma relativa ao
tipo de discurso; outra ao gênero; ou ainda outra voltada para a “cena” mobilizada no interior do
141
quadro cênico – constituído pelo tipo e o gênero juntos. Por esta razão, o autor propõe considerar
a cena da enunciação decomposta naquelas três cenas acima mencionadas, de modo a permitir
que se veja o ato de enunciar para além da expressão de um certo conteúdo: “é também tentar
discurso”: religioso, publicitário, político etc. Situar um fragmento de discurso numa cena
englobante significa reconhecer o modo pelo qual ele interpela o seu leitor (como fiel,
consumidor, eleitor etc.). É preciso, contudo, alertar, juntamente com Maingueneau (2008b, p.
116), que esta caracterização “nada tem de intemporal: ela define o estatuto dos parceiros e certo
quadro espaciotemporal”, ou seja, há que se lembrar que a cena englobante é regulada pelos
limites do interdiscurso.
Sem negar a relevância da cena englobante, Maingueneau (2006, p. 251) adverte que
“não se tem contato com um literário, político ou filosófico não especificado”, mas com um
determinado gênero do discurso que participa, num nível superior, de uma cena englobante
específica. Nesse sentido, pode-se dizer que os gêneros do discurso associam-se a determinadas
cenas genéricas, que prescrevem, por seu turno, um modo de inscrição no tempo e no espaço, um
chama de quadro cênico, “o espaço estável no interior do qual o enunciado ganha sentido”
(MAINGUENEAU, 2008b, p. 116). Este quadro pode ser, contudo, deslocado por uma terceira
cena (quando esta é “eficiente”): a cenografia. Isto porque nem sempre é com o quadro cênico
que o leitor lida diretamente, mas com uma cenografia, que não é imposta nem pelo tipo nem
pelo gênero, sendo instituída pelo próprio discurso. Segundo Maingueneau (2002), há alguns
142
tipos de discurso cujas cenas genéricas impõem rotinas relativamente fixas, como a
publicitário, não permitem a antecipação das cenografias mobilizadas, sendo, assim, “suscetíveis
p. 88).
discurso. Ainda em relação à cenografia, é preciso dizer que é ela que valida os estatutos do
enunciação se desenvolve. Isso porque é preciso separar “as circunstâncias empíricas da produção
paratextuais (título, a menção a um gênero, um prefácio etc.) ou pode ainda apoiar-se em cenas
validadas, no sentido de serem “já instaladas na memória coletiva, seja a título de modelos que se
143
rejeitam ou de modelos que se valorizam” (MAINGUENEAU, 2002, p. 92). As cenas validadas
são, portanto, compartilhadas por uma determinada comunidade e funcionam não como discursos
para reinvestimentos em outros textos” (MAINGUENEAU, 2002, p. 92). Um exemplo dado pelo
autor é a “Carta a todos os franceses” escrita por F. Mitterand e divulgada à época das eleições
cênico (um programa eleitoral) para apresentar o candidato como pai por meio de uma cena
Ao começar esta carta, eu escrevi que falaria a vocês como em volta da mesa, em
família. Essa última palavra não surgiu ao acaso da minha caneta. Nasci e vivi minha
infância no seio de uma família numerosa. (MITTERAND apud MAINGUENEAU,
2002).
análise do autor é a imagem da palavra vinda da “Origem”, da boca dos deuses115. São cenas
validadas também certos eventos de fala únicos, mas suficientemente “cristalizados” e instalados
no conjunto de saberes coletivos, como o icônico discurso de M. Luther King iniciado com “I
have a dream...”.
Acreditamos que a noção de cena validada pode ser produtiva para o estudo das
e também nas matérias, comentários de blogs, editoriais etc. A pergunta que fazemos aqui é: seria
uma (ou algumas) cena(s) validada(s) que, especialmente no campo da moda, atualizaria(m) o
mito do “Brasil-paraíso”? A noção parece ainda dar conta de um aspecto bastante peculiar da
115
“Sentado no tripé das Musas, o poeta, diz Platão, verte com fúria tudo o que lhe vem à boca, como a gárgula de
uma fonte, sem ruminá-lo ou enviscá-lo, e escapam-lhe coisas de cor diversa, de substância contrária e de um fluxo
interrompido. Ele próprio é todo poética, e a velha teologia, poesia, dizem os sábios, e a primeira filosofia.
É a linguagem original dos Deuses” (trecho de Ensaios, de Montaigne).
144
moda: as imagens (seja nas estampas, nos catálogos ou nos desfiles). Naturalmente, não se trata,
linguística, ligada ao encaixe sintático. Mas é preciso analisar em que medida a cena validada
É bem verdade que existem ocorrências no corpus que são bastante prototípicas, i.e.,
a utilização de cenas validadas é evidente e não suscita muitas dúvidas. Robic (2007), por
moda, mas de outros elementos fortemente associados ao Brasil, tece crítica ao que chama de
(19) a questão da moda brasileira é bastante antiga, mas faz cada vez menos sentido num
mundo globalizado. A condensação do estilo de vida de um determinado local dentro de
um conceito de moda pode ser muito bem-vinda, mas o aprisionamento desse mesmo
estilo dentro de um ou alguns estereótipos pode se tornar um imenso equívoco.
Infelizmente, esse equívoco pode ser visto frequentemente em pequenos e grandes
eventos internacionais destinados a promover a moda brasileira, regados a mulatas,
samba, caipirinhas, feijoadas e afins, num menu extremamente indigesto para o
desenvolvimento de nossa indústria de moda. (grifamos).
destinados a promover uma certa “moda tipicamente brasileira” apelam para certas cenas
validadas a respeito do Brasil. Assim, esses eventos se tornam pequenos “carnavais” ou “rodas de
uma campanha com estilistas diversos a homenagear o Brasil em suas criações. A capa do
terceiro volume do catálogo da loja pauta-se também, como vemos abaixo, na cena carnavalesca:
145
A imagem acima retoma, portanto, o Carnaval carioca116 como uma cena validada. A
locação da foto é o calçadão de Ipanema, com a praia ao fundo num dia de sol – esta, aliás, outra
Para além de casos prototípicos de cenografias que se apoiam sobre cenas validadas,
existe um conjunto de dados no corpus coletado que pensamos estar, em certa medida,
relacionado às cenas de enunciação propostas por Maingueneau. Dito de outro modo, essa noção
pode provar ser produtiva para analisar elementos não verbais que são abundantes na moda e que
instaurada, que, dada a sua definição, estabelece o lugar (topografia) e o tempo (cronografia) da
(guarda-sóis vistos do alto) instaura a topografia, a saber, a praia; mais que isso: uma praia cheia,
badalada, afinal são muitos guarda-sóis. As cores do cenário, por seu turno, remetem a um dia de
calor, numa referência ao clima, que é, como vimos, um aspecto fortemente ligado ao espaço
responsável pela cronografia: trata-se de um modelo “retrô”, mais antigo, com cintura alta, quase
um short e com babadinhos na barra; ou seja, a dêixis aqui remete à década de 1950, o que
117
Peça desfilada pela marca Salinas no Fashion Rio Verão/2012, em 31/05/2011.
147
representa no desfile uma certa nostalgia. Outras peças da mesma coleção também situam o
espaço nas areias cariocas, por meio do desenho do calçadão de Copacabana. Abaixo
Embora seja um biquíni menor que o anterior, o modelo também é “retrô”, pois a
calcinha é considerada grande para os padrões atuais. Da mesma forma, a blusa (que tem a
mesma estampa da calcinha, mas em um padrão bem menor) combina duas tendências de
momentos distintos: os babados altamente valorizados nas décadas de 1970 e 1980 com o
comprimento mais curto e revelador compatível com momentos mais recentes. A utilização de
grafismos dos calçadões cariocas já havia aparecido antes. No Fashion Rio Verão/2006, já havia
passado pelas passarelas outra estampa inspirada nele. Trata-se de peça da marca Lenny, em que
também é possível observar uma cronografia de fins da década de 1940 e início da década de
1950 por meio do modelo da saia inspirado na estética do New Look de Dior118, com
118
A coleção responsável pelo lançamento do New Look é de 1947.
148
comprimento “mídi” (i.e., que, no mínimo, cubra os joelhos) e rodada. As figuras a seguir são, da
esquerda para a direita, da peça da Lenny e de uma peça Dior, da coleção de 1947:
de 1950 nas praias cariocas não é um “acaso”. Em 1946 o biquíni é “inventado” e a década de
1950 é, então, marcada por uma “invasão” deles nas praias pelo mundo, sendo que, no Brasil,
isso se dá mais nos anos finais daquela década. Além disso, trata-se de um momento em que,
especialmente na praia de Copacabana, reuniam-se vedetes usando a peça, o que contribuiu para
O uso dos calçadões cariocas, que atualizam toda uma memória de praia e, em
decorrência disso, de um espaço nacional “por excelência”, não se dá apenas nas estampas ou,
como se poderia argumentar, na moda praia. As fotos a seguir, extraídas do catálogo da Macy’s
149
uma vez que não há qualquer outra referência “paisagística” acompanhando os produtos (bolsas,
A topografia construída pelas estampas das coleções acima e pela imagem do violão
150
de Janeiro. A página do já mencionado catálogo da Macy’s (volume 3) apresentada a seguir dá a
coqueiros à beira-mar, montanhas ao fundo e céu azul: parece-nos que essa pode ser mesmo
considerada, de certa forma, uma cena validada do Rio de Janeiro, na medida em que
Maingueneau (2013, p. 191) a define, como vimos, não necessariamente como “valorizada”, mas
suficientemente cristalizado – ainda que seja único (lembremo-nos do exemplo dado do discurso
de M. Luther King iniciado por “I have a dream...”) – e esse parece ser o caso da paisagem
retratado na foto do catálogo acima, o que mostra o poder da “cristalização” de tal imagem:
151
No Fashion Rio Verão/2013, a Blue Man desfilou em sua moda praia o maiô abaixo
em que, mais uma vez, temos a imagem do calçadão carioca, numa padronagem bastante
figurativa:
152
O Rio de Janeiro é, então, uma referência importante do Brasil no exterior. Imagens
arcos da Lapa etc.). Lembremos ainda que a letra da música de Jorge Ben Jor “País tropical”, por
exemplo, começa falando em “país”, mas traz outras referências a elementos típicos cariocas: o
Carnaval, o Flamengo (time carioca). Também a marchinha “Cidade maravilhosa” exalta o Rio
floresta Amazônica. E ela é atualizada não só pelas imagens de sua flora mas também da fauna da
região. O cenário do desfile da marca Blue Man, no Fashion Rio Verão/2012119, a campanha das
jóias brasileiras da Macy’s e a coleção das Havaianas lançada em 2005 (não apenas no Brasil,
119
Os desfile aconteceu em 1º/06/2011, lançando a campanha da marca para a temporada do verão 2012.
153
Há que se ressaltar que esse tipo de estampa não é exclusividade da moda praia. A
coleção de Pedro Lourenço (SPFW Verão/2012), representada nas peças que seguem, é marcada
por uma urbanidade e, ao mesmo tempo, por referências à fauna e flora brasileiras – ainda que
cenografias pautadas nas cenas validadas. A já mencionada campanha da loja americana Macy’s
inclui também um aplicativo para celulares que interage com os clientes nas lojas permitindo que
eles “experimentem” uma viagem à Amazônia, o carnaval, um jogo de futebol e uma interação
cristalizações variadas da imagem “típica” do país, muitas delas relacionadas, em alguma medida,
(20) Paired with large, artfully crafted Brazil-shaped floor markers installed throughout
Macy's stores, the application interacts with map markers, each triggering a unique
augmented reality experience including a trip to the Amazon, Carnival, a soccer
game and interaction with a toucan.120 (grifamos).
120
Notícia sobre a campanha da Macy’s no site USA Today, disponível em:
154
Além do Carnaval – que, como já apresentado, acaba também por evocar o Rio de
Janeiro – e do futebol, outras cenas validadas para representar o Brasil envolvem a representação
de paisagens naturais, seja por meio da fauna ou da flora (ou ambas), em geral relacionadas à
reveladora da imagem que o país tem lá fora, inclusive no que tange a sua paisagem “típica”.
corpus referente ao turismo, o enunciado que segue: “De certo que somos o país do Pantanal –
uma região bela e de ricas fauna e flora. Somos também o país de um dos mais belos litorais do
mundo, de tantas e tão diversas belezas. Mas é na Amazônia que está o foco do planeta”121
<http://www.usatoday.idmanagedsolutions.com/news/story.idms?
ID_NEWS=28557889&ID_SUPPLIER_CATEGORY=18614,18686,45864,18689>. Acesso em: 27 mai. 2012. “Ao
lado de grandes marcadores no chão com o formato do Brasil e artisticamente trabalhados instalados pelas lojas da
Macy’s, o aplicativo interage com pontos no mapa, cada um desencadeando uma experiência única em realidade
aumentada incluindo uma viagem à Amazônia, Carnaval, um jogo de futebol e interação com um tucano” (tradução
nossa).
121
Informe publicitário publicado na revista Istoé, ano 32, n. 2053, 18 mar. 2009.
155
De acordo com a marca, no release mandado para a imprensa, “o novo patropi da
moda é o Pantanal”122, o que faz, segundo o site Globo.com, com que a Amazônia perca espaço
“como a estampa tropical que melhor define o Brasil”. No entanto, sites de notícias dos dois
Estados brasileiros por cujos territórios se estende o Pantanal (Mato Grosso do Sul e Mato
(21) O conjunto combina tons de verde, amarelo e azul em estampas com uma arara
sobre folhagens que lembram mais uma floresta tropical do que o bioma
pantaneiro.123 (grifamos);
(22) A fauna e a flora da região inspiraram uma coleção especial de acessórios da grife
italiana, com bolsas de couro e echarpes de seda. A equipe de Frida Giannini, diretora
criativa da marca, pintou sobre fundo branco araras coloridas e folhagem verde bastante
exuberante – e bem mais alegre que a da vida real, já que as cores escuras do
pântano foram abandonadas nos desenhos da marca.124 (grifamos).
de fato, uma certa cristalização do que é “típico” do espaço brasileiro; nem mesmo a ave típica do
Pantanal, o tuiuiú, aparece na estampa, e sim uma arara125. É nesse sentido que se pode dizer que
a estampa é ela também investida pelo discurso e, portanto, não se encontra atrelada ao “real”.
Assim, por mais que as inspirações sejam “diversas”, a imagem que ecoa nas representações do
estampas são de folhagens, flores e, até certo ponto, de animais da fauna brasileira diz respeito à
122
Gucci cria coleção inspirada no Pantanal, Repórter MT. Disponível em: <http://reportermt.com.br/
ultimas_noticias/noticia/16731>. Acesso em: 23 mar. 2012.
123
Gucci lança coleção 'inspirada' no Pantanal com bolsas de couro e custo de R$ 6 mil, Midiamax News.
Disponível em: <http://www.midiamax.com.br/noticias/790730-gucci+lanca+colecao+inspirada+pantanal+com+
bolsas+couro+custo+r+6+mil.html>. Acesso em: 27/03/2012.
124
Gucci cria coleção inspirada no Pantanal, Repórter MT. Disponível em:
<http://reportermt.com.br/ultimas_noticias/noticia/16731>. Acesso em: 23/03/2012.
125
Como visto no capítulo 2, o mapa estereotipado do “mundo como o conhecemos” traz, na referência ao Brasil, a
figura de uma arara.
156
“tropicalidade” considerada característica do país. Como visto, o site Globo.com fala, a respeito
das peças anteriores, de uma “estampa tropical que melhor define o Brasil” (grifamos).
tópico.
Quando se pensa em uma moda “com a cara do Brasil”, é-se, naturalmente, levado a
pensar se essa é uma pergunta válida para outras nacionalidades e esse questionamento talvez
tenha pairado pela cabeça do leitor até aqui sem ter sido respondido diretamente. As observações
(23) “Os italianos têm design, os franceses têm marcas, os norte-americanos têm
mercado interno, os chineses têm preço. E nós, temos o quê?” Será que a moda
brasileira não tem algum tipo de identidade que a distinga e que a faça ser reconhecida e
desejada, não como uma roupa folclórica, um traje típico, mas como uma roupa que
traga em seu DNA algumas características que atraiam e encantem consumidores
nacionais e internacionais?126 (grifamos).
Seria possível, então, opor aos elementos característicos da moda italiana, francesa,
americana, chinesa uma moda brasileira “genuína”? Sem ser “folclorística”, a moda nacional
deve representar um Brasil que encante e venda. De acordo com Glória Kalil, a música brasileira
já conquistou essa “façanha”: “A música brasileira soube dar esse pulo do gato: é uma música
com uma personalidade totalmente identificada com o país e ao mesmo tempo respeitada por sua
sofisticação127 e peso cultural”, afirma a consultora de moda. No caso da moda nacional, segundo
ela, seria preciso incorporar elementos que são próprios do Brasil e admirados mundo afora; não
126
KALIL, Glória. Panorama da indústria de moda brasileira. In: BRASIL. Ministério das Relações Exteriores.
Textos do Brasil: moda, n. 18, 2011.
127
Note-se que a “sofisticação” é tomada aqui como um elemento valorizado, o que nos remete, por contraposição, à
questão do “exótico” apresentada o item 2.1 deste capítulo, quando se falou dos simulacros do nacional.
157
por acaso, traços de uma paisagem nacional típica são retomados aqui: “Temos um lifestyle
reconhecido e apreciado no mundo todo, temos um país amistoso e ensolarado, temos uma arte
descobrimento128 e é tomado como uma das “evidências” para que se situasse o paraíso terreal por
aqui. O sol dos trópicos é, como se viu, responsável pela “exuberância” das paisagens e pela
saúde e longevidade dos habitantes dessas terras. Um “país tropical”: eis aí uma característica que
não é contestada nos debates sobre uma (possível) identidade para a moda brasileira; e ela parece
funcionar, como dissemos, como uma espécie de “liga” para uma série de traços considerados
“típicos” do Brasil na sua representação na moda. Na moda, as coleções inspiradas pelo Brasil
Partiremos, então, de alguns recortes em que se evoca o tropical e, mais ou menos explicitamente,
o Brasil para refletir sobre uma questão formulada quando do contato com esse campo: é possível
assumir o “tropical” como uma cena validada que, como tal, poderia ser considerada uma
***
O catálogo da Macy’s (volume 2) propõe uma viagem por três destinos brasileiros:
São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. O texto que convida os consumidores a “embarcar em uma
128
Vide capítulo 2.
158
apresentam os pontos turísticos do destino129. A contracapa do primeiro volume do catálogo da
Por essa cenografia, o leitor é interpelado como viajante (e não como consumidor de
moda); o destino é o Brasil, passando pelo Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo, locais, segundo o
(inclusive pela escolha do substantivo em inglês “sights”). O aposto, situado entre os travessões,
é o responsável por estabelecer a relação com a moda, dada a maneira como categoriza os pontos
referência ao clima quente fica por conta das cores na figura abaixo, que, na página, é rodeada
por diversas imagens dos destinos mencionados – locações das fotos com as peças da campanha.
129
Sobre isso é preciso fazer ainda uma rápida observação: cremos ser possível dizer que os desfiles que têm como
inspiração um lugar (um país, uma cidade, uma região) instauram, em geral, essa mesma cenografia, uma vez que
eles “convidam” a plateia a “conhecer” esse local e muitos comentaristas dizem coisas do tipo: “a marca nos convida
a fazer uma viagem por X”.
159
(24) Our magical journey continues through
the spectacular country of Brasil. Join Macy’s
as we celebrate the natural beauty &
cosmopolitan charm of Rio de Janeiro, Bahia
and São Paulo. So, come in and discover all
the amazing sights – from tropical-inspired
accessories to limited-edition designs – Brasil
has to offer.130 (grifamos)
Outro ponto que chama a atenção em todo o catálogo e que é visível na imagem
anterior é a grafia de Brasil, com s e não com z, como é em inglês; ou seja, trata-se do “Brasil”
dos brasileiros e não de um “Brazil” para estrangeiros: é, portanto, “genuíno”. Além disso, o
entanto, as belezas naturais do Brasil, um pré-construído, não são esquecidas. E essas belezas
no Brasil abusa de duas características relacionadas ao “tropicalismo”: cores fortes (em geral
quentes, como laranja, vermelho, amarelo), que são associadas, por um lado, ao clima e, por
130
“Nossa viagem mágica continua pelo espetacular país que é o Brasil. Junte-se à Macy’s enquanto celebramos a
beleza natural & o charme cosmopolita no Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo. Então, entre e descubra todas as vistas
maravilhosas – de acessórios de inspiração tropical a designs de edições limitadas – que o Brasil tem a oferecer”
(tradução nossa).
160
(volume 1) (volume 3) (volume 3)
internacionais consideraram ser chapéus imitando flores tropicais), e inúmeras referências à fauna
amazônica, especialmente papagaios. Os tons de verde utilizados em muito lembram aqueles das
(25) A breathtaking “parrot dress”, which looked as if it had been made from hundreds
of thousands of feathers, had in fact been cut and flounced by hand from 250 metres of
scarlet, cobalt, orange and yellow chiffon.
The clear plastic wedge shoes had butterflies set in the heels; the hats were
extraordinary, resembling giant tropical flowers, made by the London-based milliner,
Philip Treacy.131 (Flamboyant McQueen dazzles, 07 out. 2002; grifamos).
131
Disponível em: <http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/europe/france/1409414/Flamboyant-McQueen-
dazzles.html>. Acesso em: 15/09/2011. “Um ‘vestido papagaio’ de tirar o fôlego, que parecia ter sido feito de
centenas de milhares de penas, havia, na verdade, sido cortado e debruado [formando babados] a mão a partir de 250
metros de chiffon escarlate, cobalto, laranja e amarelo. Os sapatos de plástico transparente tinham borboletas
colocadas nos saltos; os chapéus eram extraordinários, parecendo flores tropicais gigantes, feitos pelo ‘chapeleiro’
londrino Philip Treacy” (tradução nossa).
161
As imagens abaixo são da referida coleção de McQueen, sendo que o vestido
Fonte: <http://conceptoff.blogspot.com.br/2011/12/alexander-mcqueen-complete-runway.html>
espaço nacional não aparece apenas nas peças dessa estação – o que não significa que seja
abundante no inverno. Na edição do Fashion Rio Inverno/2012, por exemplo, a marca 2 nd Floor,
que produz moda urbana, apresentou em algumas de suas peças a estampa de folhagens (vide foto
dia sem sol. Mas a estampa da foto suscita o seguinte comentário da editora de moda Lilian Pacce:
162
A declaração de Lilian Pacce mostra como o “tropical” e o “Brasil” são próximos. O
uso do possessivo “nosso(a)” também aparece no recorte abaixo e reitera a relação quase direta
moda gaúcho (apud LEITÃO, 2007, p. 133) em programa transmitido ao vivo do Fashion Rio em
junho/2005:
Os excertos que seguem, por sua vez, têm em comum o fato de usarem como
moda brasileira, por um lado, e, por outro, a questões de autoria que hoje ganham o campo:
163
(31) “estampas inspiradas no Brasil, que ecoam o
projeto Terra Brasilis, lançado pela label nos anos
1970, com o intuito de valorizar justamente o que é
nosso – leia-se modelagens menores, prints
tropicais e detalhes handmade [...]. Para completar
o show, cenário à la Rio, o filme”. (site da revista
Elle, http://elle.abril.com.br/ desfiles/blue-man/blue-
man-fashion-rio-verao-2012-628658.shtml#6)
(32) “São essas fontes coletivas que alimentam uma espécie de tropicalismo revisitado
que hoje congrega um punhado de estilistas” (Alegres trópicos, Veja, 1º nov. 2006)
(33) “o tropical está na moda, e o pessoal faz uma coisa bem brasileira, com as nossas
plantas e cores, pra mostrar que é brasileeeeeiro” (assessor de estilista no SPFW 2005,
apud LEITÃO, 2007, p. 139)
formando um conjunto de elementos que se pode considerar representativo da moda “típica” não
do mas sobre o Brasil. O excerto (31) acima, por exemplo, define o que pode ser compreendido
como “brasileiro” na moda, e as estampas tropicais estão entre esses elementos. Nisso estão
implicadas, como mostra (33), plantas e cores “brasileiras”, ou, como se vê em (28),
O segundo volume do catálogo da Macy’s tem muitas páginas que remetem, mais ou
menos explicitamente à floresta brasileira. A página apresentada abaixo chama ainda a atenção
em virtude da citação de Burle Marx no canto direito superior: “E a planta é, para um paisagista,
não apenas uma planta – rara, incomum, ordinária ou condenada a desaparecer – mas é também
uma cor, uma forma, um volume ou um arabesco em si” (tradução nossa; grifamos). A visão
arte. A citação explicita ainda a relação entre a paisagem e as suas representações na moda.
164
As cores fortes e as estampas gráficas são mesmo consideradas uma característica do
estampas gráficas de paisagens, mas também como “inspiração” para as cores e as formas
utilizadas. Também assumida como fonte de “inspiração” para os estilistas nacionais é a “mulher
brasileira”, que, não obstante uma insistência na heterogeneidade dos tipos, é quase sempre
No que diz respeito a essa figura, a propalada “sensualidade” que lhe seria própria,
aproxima-se bastante dos tradicionais estudos sobre estereótipos, na medida em que eles
132
Retirado do catálogo da Macy’s, disponível em: <http://www1.macys.com/campaign/ social?
campaign_id=315&channel_id=1&cm_sp=brasil-_-n-_-n>. Acesso em: 28 mai. 2012.
133
“Modo de vestir local: cores chamativas e estampas gráficas” (tradução nossa).
165
nacional – e o cenário tropical dá-se a ver exemplar e explicitamente nas palavras do estilista
(35) Sintetizar a moda brasileira é sem duvida traduzir a síntese da mistura racial,
social, cultural e religiosa única que se deu no Brasil e que teve início ainda no período
colonial, continuando na posterior busca incessante do período imperial e republicano
por se criar um ideal de identidade nacional. Este ideal foi encontrado – e não
construído ou ainda inventado – nesta nossa mulher. Uma mulher extremamente
sensual e feminina, seja loira ou morena, branca ou negra, que caminha e se movimenta
de um modo todo particular, e único. E é na praia, e de biquíni, que se encontra sua
melhor tradução. (SLAMA; grifamos).
A capa do primeiro volume do catálogo da Macy’s parece dialogar com Amir Slama
de maneira explícita: o primeiro plano da imagem traz a figura de uma mulher de biquíni que
134
In: BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Textos do Brasil: moda, n. 18, 2011.
166
A sensualidade da mulher brasileira é, então, associada à praia, uma das “belezas
naturais” que constituem o cenário “paradisíaco” brasileiro como já destacado. Tanto assim que a
página do catálogo da Macy’s (volume 1) resume as atrações locais: sol, areia e belezas se
banhando:
como se pode ver na declaração da estilista Adriana Degreas que reapresentamos abaixo:
(11) Consigo enxergar, com mais clareza, uma identidade brasileira muito forte na moda
praia. Acredito que faça parte do universo brasileiro, pelo comportamento, pela
situação climática que nos é favorável, pelo corpo da mulher brasileira, pela
riqueza tropical.135 (grifamos).
A declaração de Tufi Duek retomada a seguir também põe em evidência alguns desses
135
Qual é a identidade da moda brasileira, 9 jun. 2010. Disponível em: <http://vilamulher.terra.com.br/qual-e-a-
identidade-da-moda-brasileira-14-1-35-305.html>. Acesso em: 15 jul. 2011.
167
nosso colorido, nossa sensualidade. Eu me sinto bastante orgulhoso em dizer [...] que
eu sou pioneiro nisso.136 (grifamos).
(36) A rockin’ limited-edition collection that fuses the sensuality of Brasilian culture
and music in a unique, chic way.138 (grifamos)
explica o que se pode entender por esse adjetivo: não apenas os motivos, mas também as cores
são características desse tipo de padronagem. Além disso, fica claro que elas são tomadas como
(37) As estampas com folhagens, frutinhas, pássaros e todo tipo de natureza são a
nova tendência para o verão. As estampas tropicais são coloridas e exuberantes e
estão presentes em blusas, saias, vestidos, calças, shorts e até mesmo no tão “formal”
blazer.
Essa moda além de ser a cara do Brasil também pode ser usada por quem está com
aqueles quilinhos a mais. […] Deixe o Brasil e a alegria das estampas tropicais
invadirem seu guarda-roupa!139 (grifamos).
O final da matéria parece servir de síntese para o que analisamos até aqui: é o Brasil
Assim, vê-se que características associadas ao “tropical” que é, por seu turno,
última análise, representar o espaço nacional, articulando os elementos de que falamos aqui: as
136
História da moda no Brasil. Direção: João Braga, Luís André do Prado, Tatiana Lohmann. 2012. Documentário.
137
Retirado do catálogo da Macy’s, disponível em: <http://www1.macys.com/campaign/social?campaign
_id=315&channel_id=1&cm_sp=brasil-_-n-_-n>. Acesso em: 28 mai. 2012.
138
“Uma coleção arrasadora de edição limitada que combina a sensualidade da cultura e da música brasileiras de
maneira única e chique” (tradução nossa).
139
Disponível em: <http://www.oficinadamoda.com.br/moda/tendencias/estampa-tropical-saiba-tudo-sobre-essa-
tendencia-17474.html>. Acesso em: 29 nov. 2012.
168
4. Considerações finais
Antes de mais nada, é preciso dizer que não se trata aqui de dizer que todo “tropical”
deve ser prontamente associado ao Brasil – e, consequentemente, a seu espaço. É bem verdade
que há, no campo da moda, muitas coleções que se valem da inspiração “tropical” sem que isso
acabam tocando esses elementos “tropicais” que remetem a uma paisagem nacional típica do
de acordo com Thiesse (2001) o uso da natureza e das paisagens nacionais é freqüente na
construção das nações e das identidades nacionais. No caso brasileiro, entrentanto,
recorre-se não apenas a idéia de “uma natureza” e “uma paisagem” tipicas, mas
igualmente “A Natureza” como constitutiva daquilo que há de mais típico no país.
Corriqueiras são as falas do senso comum e da mídia que nomeiam o Brasil, graças as
suas florestas, como “pulmão do mundo”. (LEITÃO, 2007, p. 131).
apreensão de certos dados do corpus, uma vez que há muitos materiais não-verbais. Por mais que
a análise desse tipo de material não seja um “impedimento” para a AD, é preciso reconhecer que
ainda não são muitos os trabalhos da área que olham para materialidades não linguísticas. Além
169
disso, grande parte das categorias de análise foram e são pensadas para dar conta de fenômenos –
(seja proveniente da crítica, da imprensa ou mesmo dos próprios estilistas), não era nossa
intenção deixar de analisar os aspectos não-verbais. Nesse sentido, foi preciso pensar em
conceitos/noções que pudessem dar conta de nossos dados. A abordagem por meio das cenas de
enunciação formuladas por Maingueneau mostrou-se bastante produtiva, dentre outros motivos,
por permitir assumir as peças como texto e descrever as estampas em termos de dêixis discursiva,
Por haver dentre os dados a utilização de certas cenas validadas – tais como o
carnaval e as praias, por exemplo – para representação do Brasil, a pergunta formulada era se
seria possível assumir a “tropicalidade” de que tanto se falava a respeito das estampas como uma
dessas cenas que caracterizariam o espaço nacional. Embora não parece ser esse o caso, não se
trata, queremos deixar claro, de anular a relevância do que foi alcançado até aqui. Isso porque
ainda que as análises tenham mostrado que tal “tropicalidade” é mais um conjunto de traços que
propriamente uma cena – e, correndo o risco de dizer o óbvio, uma cena é uma cena – há um
conjunto de outras cenas que estão ligadas a essa ideia de “tropicalidade”. Tomemos um
(MAINGUENEAU, 2006, p. 256) é uma praia com areias brancas, coqueiros, águas cristalinas,
sob um céu azul com o sol brilhando. É possível dizer, nesses termos, que há uma tal cristalização
sobre a “tropicalidade” evocada para explicar as coleções inspiradas no Brasil? Cremos que não.
Por outro lado, como chegamos a afirmar no tópico precedente, parece ser possível dizer que há
170
cenas validadas do Rio de Janeiro – e que remetem à ideia de Brasil –, como, por exemplo, o
O que esses dados mostram é que certas cenas validadas de praias e florestas, por
exemplo, remetem ou evocam essa “tropicalidade” que é tomada como característica do Brasil –
especialmente em relação ao seu espaço. Mas não só elas: há outros traços que compõem uma
estampa “tropical” e que não operam por meio de cenas validadas e, por isso, pensamos que a
“tropicalidade” como tal não pode ser considerada uma cena validada. Em resumo, se a
“tropicalidade” como tal não pode ser considerada uma cena validada, isso não significa descartar
a uma paisagem nacional típica – é tomada como uma característica, digamos, “válida” para
171
172
Capítulo 5 – Costurando paisagens:
diálogos entre moda e turismo
173
Só quem está em estado de palavra pode
enxergar as coisas sem feitio. (Manoel de
Barros)
1. Palavras iniciais
turismo e da moda. Duas foram as razões para isso: em primeiro lugar, desejávamos manter a
cronologia do contato com cada um deles explícita para o leitor e, em segundo lugar, os conceitos
mobilizados inicialmente numa e noutra “focagem” eram suficientemente distintos para justificar
tal divisão. Além disso – olhando para trás –, talvez um certo excesso de didatismo também tenha
Este capítulo, porém, vai em outra direção. Aqui apresentamos os pontos de contato
entre esses dois espaços que, como já dissemos, não estão tão distantes como se poderia supor.
Trata-se aqui de verificar, de maneira mais integrada, o modo de circulação dos estereótipos do
entre o espaço aqui desenhado pelo turismo e pela moda. Nesse sentido, as análises têm por
174
nacional “genuíno” – analisado no turismo – e como, no turismo, é possível verificar a existência
Apresentar esses pontos de contato tem também como objetivo verificar se se poderia
plurifocalização permanece sendo a maneira mais adequada de lidar com essa configuração –
lembremos que esta foi uma questão que, segundo entendemos naquele momento, não poderia ser
Cuidaremos para não sermos levados a buscar, como adverte Maingueneau, uma
“coerência escondida”, mas esperamos também estar, como diz o poeta, em “estado de palavra”
viu, à época do descobrimento do país e, de lá para cá, tem sido objeto de inúmeras atualizações.
para novos traços. Além de estruturas sintáticas específicas, identificou-se também um conjunto
175
Assim como no turismo, na moda também é possível detectar a presença dessas
referências à diversidade (seja ela cultural, étnica, climática etc.) do Brasil – como mostram os
(1) A estilista Vanilda Reimer, que está à frente da coleção da grife LemonLight, de
moda praia, acha que a diversidade da cultura brasileira caminha de mãos dadas com
a identidade da moda nacional.
(2) Em primeiro lugar, devemos lembrar que os povos que formaram a cultura do país
são os mais diversificados possíveis. Além disso, o Brasil é um país enorme em termos
territoriais, possuindo, assim, os mais diversos hábitos e os mais variados climas.
Portanto, de homogeneidade não há nada, ao contrário, o que não nos falta são misturas,
o que não significa que devemos ter uma moda visualmente poluída. No Brasil podemos
encontrar diferentes estilos oriundos dessas múltiplas e ricas referências culturais.140
(3) A moda brasileira, de um modo geral, é diversa, como nosso país, e ainda tem
visto o processo de internacionalização como uma alternativa ao mercado interno.
(4) Em termos de identidade, nossas marcas mais internacionalizadas não passam uma
imagem homogênea, tal como os belgas ou os japoneses. Isto não é uma crítica, apenas a
constatação de que somos um país múltiplo, e devemos utilizar isso a nosso favor.
(5) O caldo cultural que temperou o vestuário com influências mouras, portuguesas,
indígenas e africanas resultou em uma receita saborosa. Pode-se dizer que houve um
casamento entre tradição, exotismo e sensualidade, fatores visíveis com mais força
nos tempos atuais.
(6) Está na hora de empresários e governo sentarem juntos para equacionar a questão e
desatar os nós que ainda a amarram, pois temos nas mãos o principal: uma criatividade
muito própria, muito variada que deve sua riqueza à nossa diversidade biológica e
cultural. Em resumo: o Brasil tem um “jeitão”, um estilo, feito de todas estas
características que podem e devem passar para sua moda fazendo dela um produto
desejado, diferenciado e comercialmente valorizado.
Esse discurso se materializa linguisticamente por meio de palavras que revelam essa
“variedade” (diversos, variados, múltiplos, combinação, casamento etc.) e também por meio de
estruturas sintáticas específicas. Assim, vimos que, linearizado, enquanto discurso transverso,
aquele pré-construído é posto em cena por meio de determinadas estruturas sintáticas que têm em
não só X mas também Y a sua paráfrase geral. E isso não é por acaso: esse tipo de estrutura
retomado abaixo:
140
Ana Carolina ACOM, O made in Brazil da moda brasileira. Blog Modamanifesto. Disponível em:
<modamanifesto.com/index.php?local=detalhes_moda&id=557>. Acesso em: 15 mar. 2011.
176
não só PRÉ-CONSTRUÍDO mas também DESLOCAMENTO
Prótase Apódose
paisagens nacionais aparece, por exemplo, nas discussões sobre questões autorais que
(7) Deve-se preocupar [a moda nacional] em refletir não só a riqueza natural, mas
também nossa riqueza cultural. O Brasil é um país tropical cujas capitais, em sua
maioria, estão na costa. Também, os diferentes climas, as diferentes misturas étnicas com
a Europa e a África sugerem uma moda plural, sensual, vibrante, rica em texturas, cores,
materiais e imagens. Elementos que ao longo dos séculos foram trazidos pelos
estrangeiros para o país e refletem, não somente nossa arte popular e nossa natureza
exuberante, mas nossas cidades, nossas mazelas sociais, nossos luxos e exageros, nosso
lifestyle. (Bruno Ost, blog Moda Manifesto, 2006; grifamos).
concessivo; a paráfrase nesse caso é a seguinte: embora a moda brasileira deva refletir a nossa
riqueza natural, ela deve também retratar outros aspectos porque o Brasil é mais que isso. Trata-
(apresentados, por sua vez, na apódose). O dado acima deve ser lido, portanto, integrando um
discurso a respeito da moda nacional que deixa entrever as representações do Brasil, dentre as
argumentativa consiste em apresentar como “acidentais” os elementos que ela mesma põe em
tensão, já que ela apresenta tais elementos como podendo parecer contraditórios, mas já não
sendo mais. O que a sintaxe da concessão revela, portanto, é que, não querendo/podendo abrir
mão de um “Brasil-paraíso”, esse discurso apresenta outros pontos que superam ou vão além
177
No caso da moda, uma representação puramente idílica do país pode não dar a
credibilidade necessária para que as coleções produzidas aqui sejam recebidas com seriedade nos
grandes centros mundiais – afinal, a moda também é considerada uma “expressão artística” e,
como tal, fortemente ligada à ideia de “civilidade”, contrária, portanto, a um certo “primitivismo”
que pode perdurar do período colonial; para o turismo, em se tratando de uma questão
essencialmente comercial, não é interessante que o Brasil tenha uma imagem “restritiva”, mas
que ofereça as mais diversas opções para atrair vários tipos de turistas (aventureiros,
Também nas peças desfiladas é possível notar essa mesma “sintaxe”. A natureza
representada na estampa abaixo (2nd Floor), por exemplo, aparece num look bastante urbano.
Assim, se a estampa remete ao pré-construído sintetizado, nas palavras de Chauí (2006), pelo
acompanhado por um sapato mais “pesado”, i.e., fechado e de salto grosso, além de bolsa e
Outro exemplo que retomamos aqui é a coleção de Pedro Lourenço da qual fazem
parte as peças abaixo. Com estampas figurativas que remetem à fauna e flora diretamente
178
associadas ao imaginário do espaço nacional, o estilista privilegia modelagens urbanas, com
pouco decotadas.
Assim, pode-se dizer que as peças acima – tanto as de Pedro Lourenço quanto a da 2 nd
exuberância natural mas também a urbanidade das cidades. Ou ainda, como se viu no catálogo da
As diversas estruturas analisadas que, como se mostrou, demandam uma leitura num
Já apontamos anteriormente que existe, por grande parte dos estilistas nacionais, uma
recusa em falar a respeito de uma “identidade da moda brasileira”. Isso decorre, em boa medida,
do fato de que “identidade” é lida como sinônimo de “homogeneidade” pelos designers – o que
não é nada desejável quando se trata de uma esfera em que o “único” e o “exclusivo” são a meta.
141
Vide capítulo 4.
179
Assim, os artistas deslocam a questão da “identidade” de uma moda nacional para a
“individualidade” do artista:
(8) A moda – eu estou falando de criação do estilista – tem que refletir o que o estilista é,
a individualidade dele. [...] Eu considero que minha moda é brasileira só pelo fato de eu
ter nascido aqui. Pronto e acabou. (Alexandre Herchcovitch)
(9) [...] são olhares individuais sobre uma cultura que é muito maior. (Ronaldo Fraga)
A moda é brasileira, portanto, porque é feita por brasileiros, mas não porque
recusa-se também: a) que apenas o Brasil seja tomado por mote nas coleções de estilistas
(10) Não preciso incluir ícones e temas folclóricos para dizer que ela é brasileira.
Mesmo porque lá fora ninguém sabe quem é o saci pererê. (Alexandre Herchcovitch)
(11) A moda brasileira vai existir porque ela é feita por brasileiros, não porque ela usa
elementos folclóricos e culturais. Não há necessidade disso. (Walter Rodrigues)
(12) Não é verdade que quem faça uma roupa cheia de fuxico, de rendinha, de bordado
está fazendo uma moda lindamente brasileira e que isso é a nossa cara. (Paulo Borges)
(13) Moda brasileira não é pena de índio. [...] Minha inspiração é ter vivido e morado
aqui, mas não vem das baianas nem das festas juninas. (Adriana Barra)
propriamente objeto da presente pesquisa, elas interessam aqui na medida em que contribuem
Nesse sentido, é possível observar que a negação incide sobre elementos essencialmente atrelados
ao folclore nacional.
considerados artesanais, o que guarda proximidade com algo que, para além de exótico ou
folclórico, é quase “amador”. Esse aspecto pode ser explicitado por um excerto da referida
180
matéria de Veja, em que a relação da moda nacional atual com esses elementos outrora
reivindicados – lembremos da crítica de Alceu Penna na década de 1950 – fica bem demarcada:
moda, é possível, então, reconhecer sobre quais elementos recai a recusa de uma moda
identificada ao Brasil, ou seja, haveria um rol de elementos dos quais os “criativos” brasileiros
certo artesanato (especialmente aquele mais “rústico”, sem uma leitura autoral: rendas, fitinhas
etc.), temas “étnicos” (os índios, as baianas, o nordestino etc.). É preciso dizer, porém, que não há
uma “proibição” ao uso de quaisquer desses elementos, mas somente daqueles que não são
“típico”, aqui lido como “exótico”. No entanto, sempre que são mencionados, verifica-se a sua
introdução por meio de estruturas cuja leitura é sempre a partir de uma relação de concessão,
(15) A estilista Vanilda Reimer, que está à frente da coleção da grife LemonLight, de
moda praia, acha que a diversidade da cultura brasileira caminha de mãos dadas com a
identidade da moda nacional. “A moda mineira, por exemplo, tem características
marcantes pela aplicação de trabalhos manuais nas peças sem perder o apelo fashion”,
acredita. (grifamos).
(15’) Embora se valha da aplicação de trabalhos manuais nas peças, a moda mineira não
deixa de ter apelo fashion – que, em última análise, é o que faz com que se possa
caracterizá-la como moda.
Assim, uma estilista como Isabela Capeto, que é conhecida como uma das grandes
representantes de uma moda “com cara de Brasil”143 e que se vale do artesanato (chamado, nesses
142
MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 128.
143
Exemplo da representatividade de Isabela Capeto é a declaração de Michael Roberts – editor de moda da revista
181
casos, de handmade) brasileiro, não seria “excluída”, pois faz uso desses elementos a partir de
sua individualidade. A peça a seguir é da estilista e mostra de maneira exemplar o seu trabalho
A peça, mais uma vez, é também a materialização da mesma sintaxe apresentada mais
artesanal com tecidos finos e, em geral, bordadas (com metais ou pedras preciosas, inclusive) – e
bordados “típicos” do Brasil, feitos a partir de crochê e fuxicos. Nesse sentido, pode-se dizer que
ela usa não só materiais “tipicamente” nacionais mas também técnicas de costura valorizadas
internacionalmente.
(16) A questão da identidade nacional para a moda brasileira vai além de abordagens
étnicas e folclóricas.
(17) Eu acho que a gente ainda sofre muito desse olhar gringo sobre o samba, a
caipirinha, o carnaval. Nada contra; fantástico! Mas a gente não é só isso.
(18) A discussão é como trazer esse DNA [brasileiro] à tona sem cair no folclore,
atendendo às necessidades do mercado internacional em relação a uma cultura
brasileira e preservando a identidade nacional. (Erika Palomino)
Vanity Fair: “Uma grande e forte identidade de moda brasileira é a Isabela Capeto”. (Disponível em:
<colheradacultural.com.br/print.news.php?register=20100531233237.000§ion=3 &type=N>. Acesso em: 15
mar. 2011.)
182
O movimento modernista também viveu esse debate em torno do folclore nacional,
i.e., “reveladores ou estudiosos de folclore”. O uso de elementos do folclore, diz a autora, não era
“lido” pela semântica do discurso modernista como folclorismo, porque esse uso submetia-se à
subjetividade criadora do artista. É possível vislumbrar esse mesmo embate na moda atual: não é
porque os estilistas se “rendem”, por exemplo, ao uso de elementos do folclore brasileiro que
suas criações seriam “folclóricas”; trata-se de moda, e, como tal, submetida à “individualidade”
do estilista.
moda brasileira revelam, assim, aspectos relacionados à criação, à autoria nas coleções dos
estilistas nacionais, de modo que a moda brasileira não se valha apenas de alguns elementos
tipicamente associados à “brasilidade”. No entanto, o que também se deixa ver nesse campo é o
fato de que as representações do Brasil – e não de uma moda brasileira, portanto – ligam-se quase
exclusivamente a uma paisagem nacional típica. O dado a seguir é, nesse sentido, bastante
representativo:
(19) [Um designer de verdade precisa] Olhar, absorver, processar e imprimir uma visão
única [para/da sua própria cultura]. Desse processo pode sair, com excelentes resultados,
um adepto do preto total ou da pureza arquitetônica. Mas o DNA nacional sempre
vibrará mais com um belo, assumido, vibrante e modernamente interpretado
papagaio.144 (grifamos).
Esses dados parecem caminhar de mãos dadas com aqueles apresentados no capítulo
nacional para, em seguida, contrapor-lhe uma nova dimensão, algo que diga, assim como (17),
acima, “mas a gente não é só isso”. Mas mesmo pautado por uma lógica de “deslocamento” do
144
MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 131.
183
locais, fotos de paisagens “naturais” e de outro aspecto a ser destacado. A seguir, selecionamos
dois roteiros bastante emblemáticos do Brasil para exemplificar o que dissemos. Na primeira
capital carioca, mas boa parte da foto mostra as construções humanas que circundam as “belezas
naturais”; além disso, há ainda uma foto menor em que se vê uma feijoada cercando um copo de
caipirinha.
no primeiro plano da imagem, todo o verde do Parque do Ibirapuera para, somente ao fundo,
184
É preciso falar ainda de um outro pré-construído a respeito do Brasil que, embora não
pareça estar relacionado com o espaço nacional, tem vínculo bastante estreito com uma certa
paisagem “típica” do país. Trata-se da “sensualidade” da mulher brasileira, que, na moda, chamou
a atenção por sua relação mais próxima com a moda praia, considerada por muitos como
fortemente identificada com o Brasil nas discussões acerca da possibilidade de uma moda
brasileira. Retomemos a declaração do badalado estilista brasileiro Amir Slama a esse respeito:
(20) Sintetizar a moda brasileira é sem duvida traduzir a síntese da mistura racial,
social, cultural e religiosa única que se deu no Brasil e que teve início ainda no período
colonial, continuando na posterior busca incessante do período imperial e republicano
por se criar um ideal de identidade nacional. Este ideal foi encontrado – e não
construído ou ainda inventado – nesta nossa mulher. Uma mulher extremamente
sensual e feminina, seja loira ou morena, branca ou negra, que caminha e se movimenta
de um modo todo particular, e único. E é na praia, e de biquíni, que se encontra sua
melhor tradução. (SLAMA; grifamos).
A mulher brasileira, naturalmente sensual, evoca, como vimos, uma cena validada
Essa relação também se mostra – de maneira até surpreendente – no turismo. A revista Viagem e
185
Turismo (mai. 2009) traz matéria de capa intitulada As 31 maravilhas naturais do Brasil, em que
apresenta “os lugares mais fantásticos do país, onde, quanto mais verde e selvagem melhor” (p.
texto que justifica a escolha, um depoimento do cantor Wando – “um grande especialista”:
símbolo dessa paisagem no Brasil: “No Brasil, você encontra mulheres bonitas o tempo todo. O
melhor lugar para vê-las é no Rio, na praia, onde a sensualidade é mais evidente. Estonteante”.
No depoimento, Wando cita Juliana Paes como “imagem perfeita da mulher brasileira”, cuja foto
selecionada pela revista (no topo da página, acima do texto) traz, ao fundo, uma praia:
186
O pré-construído em tela é, assim, extremamente relevante para esta pesquisa, uma
vez que funciona como uma espécie de síntese: a sensualidade da mulher brasileira – que é, por si
só, um estereótipo dessa mulher – encontra-se atrelado a uma representação do espaço nacional
“genuíno”, a praia; esta, por sua vez, por meio de uma cena validada, evoca o Rio de Janeiro
como símbolo dessa paisagem brasileira cuja “exuberância” – representada por traços de uma
Uma cena validada de praia também pode ser observada no turismo. A cristalização
de uma imagem de praia (areias brancas, águas cristalinas, coqueiros etc.) é atualizada não só por
meio de fotos (imagens propriamente ditas), mas também linguisticamente evoca-se esse
materialização:
(21) Três Estados [da região Sudeste] têm litoral e, portanto, ostentam ilhas e praias
paradisíacas. (BRASIL, 2009, p. 77; grifamos).
como na moda, este último campo vale-se, paradoxalmente, da figura de mulheres que
dificilmente se pode dizer que exibem silhuetas “típicas” dessa “mulher brasileira”. A capa do
catálogo da Macy’s, reapresentada abaixo, por exemplo, permite confrontar a modelo (de short,
que, em meio a um cenário “tipicamente” brasileiro, modelos (também “típicas”, i.e., bastante
188
Trata-se, como entendemos, também aqui de uma relação de concessão: é uma
exigência do campo. É a “moda” que desfila o “Brasil”. Assim, se temos uma moda urbana
combinada com estampas tropicais, vemos também silhuetas “internacionais” aliadas às mesmas
estampas.
3. E agora, José?
vivido por Michael J. Fox, ao acionar a máquina do tempo de Doc Brown (Christopher Lloyd)
retorna aos anos 1950 e lá conhece sua mãe, que, antes de se casar com seu pai, apaixona-se (sem
suspeitar) pelo “futuro” filho, Marty. Mas, para que possa existir no futuro, Marty precisa fazer
com que seus pais se apaixonem. Esse enredo fez lembrar, em alguma medida, o processo de
Decidir se o conjunto de textos reunido para esta pesquisa constitui uma formação
discursiva unifocal ou plurifocal – aspecto que ficou, até certo ponto, pendente lá atrás – não
coloca em risco, como no caso de Marty McFly acima, nem a existência nem a validade das
análises realizadas. Não é, portanto, com esse intuito que retomamos aqui essa questão. Trata-se,
antes, de problematizar e refletir sobre uma etapa do processo que é crucial para qualquer analista
e que nem sempre recebe uma solução a contento. Em última análise, a pergunta que tentamos
responder aqui é como garantir que não foi “puro delírio” (MAINGUENEAU, 2011, p. 28) a
189
A proposta de Maingueneau (2006) para a noção de formação discursiva visa a dar
uma maior especificidade a ela, uma vez que, segundo o autor, essa noção acabou por esvaziar-se
corpora: “na maioria das vezes emprega-se ‘formação discursiva’ ‘na falta de uma expressão
melhor’, nas situações em que o analista encontra um conjunto de textos que não corresponde a
autor também coloca dificuldades para o analista. Uma delas, a nosso ver, é que, aparentemente,
nem sempre é possível, de uma vez por todas, decidir pela unifocalização ou pela
plurifocalização antes das análises. O espaço constituído nesta pesquisa, formado pelo turismo e
corresponder a unidades como “o discurso racista” ou “o discurso patronal” – alguns dos casos de
formação unifocal apresentado por Maingueneau. Outro exemplo desse tipo de formação é, como
vimos, o corpus reunido por Foucault para a pesquisa publicada n’As palavras e as coisas: para o
espaço aqui delineado, não se formulou inicialmente a hipótese de um mesmo sistema de regras
responsável por gerar os discursos na moda e no turismo. Diante disso, pensamos, de partida,
numa abordagem plurifocal, mas essa não foi – e não poderia mesmo ser – uma decisão
definitiva.
Mesmo depois das análises, é preciso admitir, a situação não parece ainda
suficientemente clara para nós. As próximas linhas são, então, uma espécie de exercício
argumentativo em torno das duas possibilidades. Mais que uma tentativa de solução para o
problema imposto pela pesquisa, queremos aqui tentar contribuir, na esteira de Maingueneau,
190
para uma maior clareza da noção. Para tanto, voltaremos rapidamente aos exemplos dados pelo
autor na tentativa de compreender melhor sua proposta. Fazemos isso porque concordamos com a
AD.
Refletindo acerca das unidades propostas por Maingueneau (2006) com o objetivo de
verificar se, de fato, estaríamos diante de uma plurifocalização (como pensamos inicialmente),
nos pareceu que talvez a maior dificuldade na diferenciação proposta pelo autor para os
diferentes tipos de formação discursiva residisse na noção de foco sugerida por ele. A partir de
alguns dos exemplos dados por Maingueneau (2006) de formações discursivas unifocais –
no jurídico, no humorístico etc. Mas cabe aqui uma observação: talvez seja
mundo, um crime e, como tal, tipificado legalmente, o que contribui para que
posicionamento;
191
ii. no caso do trabalho de Foucault, ele discorre sobre como o “homem” funciona
as positividades consideradas.
Com base nessas considerações, é possível dizer que a ideia de foco elaborada por
Maingueneau exige, em boa medida, uma “atitude” unificadora do analista e esta, por sua vez,
parece – pelo menos nos exemplos dados por ele – ser definida “de partida”, i.e., quando da
formulação da hipótese que reúne um dado conjunto de textos. Assim, o foco deve ser
compreendido, a nosso ver, como um princípio de convergência mais que como “um mesmo
discurso(s), a maneira como um aspecto (aí compreendidos conceitos, por exemplo, o “homem”
mesmo sistema de regras” para um conjunto de textos aí reunidos é, assim, uma das
possibilidades na unifocalização.
possam sugerir uma unifocalização – a concessão torna, nesse sentido, tentadora a hipótese de
que haveria “um mesmo conjunto de regras” regendo os discursos de um e outro domínio – é
preciso ter cuidado. De fato, penso que, em certa medida, é possível defender uma
192
unifocalização, ainda que – até contrariamente, em parte, ao que foi dito acima – não tenhamos
definido a priori esse conjunto de textos aqui apresentado. Para esse cenário, o princípio
unificador seria, como entendemos, o fato de termos – e aí sim desde o início – definido como
Esses discursos são postos em cena, como vimos, por meio de estruturas cuja leitura é feita a
partir de um enquadre concessivo de modo que, juntamente com um certo estereótipo do espaço
formação discursiva plurifocal, o analista não dispõe, segundo Maingueneau (2006, p. 17), de um
princípio que force a convergência do conjunto de textos ali reunido. Ainda de acordo com o
autor, tal opção tem por objetivo “aumentar a inteligibilidade dos discursos envolvidos” e coloca
no fato de que as análises neste cenário teriam por objetivo central mostrar, ou até mesmo
que em momento algum se tentou “unificar” os materiais reunidos – o analista deve “apenas”
193
nesse tipo de formação a ênfase está na pergunta feita pelo pesquisador. Nesse sentido, seria
possível dizer, então, que a própria pergunta de pesquisa na unifocalização visa a explicitar as
objeto/objetivo, mas sim aquilo que a sua interação permite colocar em evidência.
reunido? Ou, de outro modo, quais os argumentos para defender uma configuração plurifocal
Por mais que se possa dizer, como fizemos acima, que o foco estabelecido para o
194
1) a reunião de textos provenientes do turismo e da moda num mesmo espaço
estereótipo do espaço nacional e que tem, como repetimos por diversas vezes,
específicas que têm por característica principal deslocar uma imagem cristalizada para aspectos,
em tese, novos acerca do Brasil (não necessariamente ligados ao seu espaço). Isso mostra o quão
importante é, no caso brasileiro, a paisagem para a definição de uma certa identidade nacional:
195
4. Considerações finais
descrever o modo de circulação de um certo estereótipo do espaço nacional mostram que tanto no
turismo como na moda há uma certa imagem cristalizada do Brasil no que tange ao seu espaço
que é atualizada de diversas maneiras e posta a circular “ao lado” de outros elementos,
ganharam recentemente novos capítulos justamente por uma questão relacionada à moda. Trata-
Ministério da Cultura para a captação de recursos via Lei Rouanet. Em síntese, a polêmica
cultura, Marta Suplicy, em artigo publicado na Folha de S.Paulo (Opinião 29 ago. 2013),
defende, já no título – Moda é cultura – essa relação de identidade. Ao longo de seu texto,
Suplicy insiste na importância da moda para a construção da identidade de um país e também sua
relevância do ponto de vista econômico. Mas o que interessa mais de perto aqui é a seguinte
passagem:
Como ministra, chamei para mim a decisão, pela simbologia de quebrar um paradigma
na afirmação que moda é cultura; por entender a importância da repercussão de um
brasileiro estar nesse desfile (cobertura midiática), abertura e interesse pela nossa
indústria da moda e para a construção de uma imagem de um Brasil criativo, moderno e
atraente. Queremos um Brasil que transcenda o país do Carnaval, sol e biquíni.
(grifamos)
Dois são os aspectos que merecem comentários. O primeiro deles é que também aqui
biquíni), ainda que fique implícita a outra “ponta” desse processo. O segundo é que, a partir das
196
análises mostradas aqui, a moda é um campo em que precisamente Carnaval, sol e biquíni –
As relações presentes na sintaxe dos debates em torno de uma identidade para a moda
brasileira – que aqui nos serviram para analisar o modo de funcionamento dos discursos acerca da
A negação incide sobre certos elementos da cultura brasileira que fariam da moda que os
utilizasse “folclórica”. Além disso, a moda nacional não deveria reduzir-se a isso, pois o Brasil é
um país plural. Assim, as relações de concessão evidenciam uma questão autoral que tem se
145
MOHERDAUI, Bel. Alegres trópicos. Veja, n. 1980, 1º nov. 2006, p. 128.
197
198
Conclusões
199
Tudo não pode ser dito. (Milner)
Embora tenha iniciado de maneira um tanto incomum, i.e., sem uma introdução, esta
pesquisa encaminha-se para o seu fim de maneira mais típica – influência do corpus, talvez. Mas
a sensação é ainda de muito a dizer, seja porque o corpus reunido a partir da configuração aqui
proposta pode, ele mesmo, ser explorado por outros vieses, seja porque a partir dele surgiram
outras possibilidades. Com tanto ainda por dizer, organizamos esta parte final em dois momentos
distintos, separados por tópicos: o que foi e o que poderá vir a ser.
1. O que foi...
Este trabalho começou relatando algumas das “angústias” surgidas ainda no início da
etapa de levantamento do corpus e que envolviam não apenas “o que” e “onde” procurar mas,
principalmente, “como” apreender o conjunto que se ia reunindo. Não se trata de mera questão
problema que nos leva aos fundamentos da AD, e “é ao nível dos fundamentos que tudo se passa”
200
Boutet et al observam a esse respeito que
l’analyse du discours s’est construite, en France, dans un rapport étroit au corpus, dont
elle s’est attachée à formuler les conditions méthodologiques de validité. Dans la mesure
où le corpus renvoyait à des repérages extralinguistiques préalables, qui tendaient à faire
des locuteurs les purs représentants de rapports de places ou de conditions de production,
il était généralement constitué à partir de discours préexistants et ne posait guère qu’à la
marge des problèmes de choix et de découpage. 146 (BOUTET et al, 1995).
escolhas colocam poucos problemas ao pesquisador — é necessário justamente para que se possa
“trabalhar com a máxima eficácia” e, consequentemente, fazer com que a teoria deslanche. No
entanto, as escolhas iniciais, alerta o autor, não significam “uma exclusão dos outros tipos de
discursos, mas uma escolha ‘estratégica’ que deve permitir um alargamento progressivo dos
Possenti (2004a, p. 30), optar por dados “cruciais”, aqueles que colocam “à prova uma teoria”:
Não indo ao que chamo aqui de dados cruciais, a AD se recusa ao teste. Ela permanece
no material estrategicamente escolhido em sua origem, para ter segurança do que diz. O
resultado é que muitas análises acabam por redizer o dito, confirmando uma das
asserções de base da teoria, segundo a qual o enunciado é raro, embora sejam infinitas
suas enunciações. (POSSENTI, 2004a, p. 31).
saberemos dizer, mas podemos afirmar que em momento algum se procurou permanecer numa
146
A análise do discurso se construiu, na França, em uma estreita relação com o corpus, sobre o qual ela se dedicou a
formular as condições metodológicas de validade. Como o corpus remetia a coordenadas extralinguísticas prévias —
que tendiam a tornar os locutores os representantes puros das relações de lugares ou das condições de produção —
ele era geralmente constituído a partir de discursos preexistentes e que raramente colocavam, e como que à margem,
problemas de escolha e de recorte. (tradução nossa).
201
Refletindo sobre uma questão que, reiteramos, apresentava um componente “óbvio”,
determinado discurso acerca do espaço nacional brasileiro — verificar em que medida era
possível operar com uma determinada forma de construção de corpora tal como proposta por
Maingueneau (2006). E isso por dois motivos centrais. Em primeiro lugar porque a proposta do
autor debruçava-se sobre um aspecto relevante em AD, como dissemos, que é a construção de
corpora, uma etapa fundamental para a pesquisa. Em segundo lugar, e especialmente, porque o
conceito de formação discursiva proposto por Maingueneau (2006) objetivava dar uma
especificidade maior à noção que, conforme aponta o autor — e com o que concordamos —,
tentativas de operacionalizar essa nova proposta vinham acompanhadas sempre de uma série de
empreendida sobre as fronteiras para tal tarefa. De fato, o corpus de uma pesquisa nem sempre é
uma questão problemática, mas quando não se trata de uma delimitação “dada” previamente —
por exemplo, a análise de um romance ou das obras de um artista, de uma escola etc. — é
preciso, como foi o caso neste trabalho, justificar o recorte feito, mostrar, como fala Maingueneau
Para esta pesquisa, havia, em linhas gerais, as seguintes possibilidades: i) assumir que
há um princípio unificador entre todos os espaços analisados; ii) reconhecer que, embora pontos
de contato existam entre esses espaços, não há um princípio que force a convergência entre os
202
conjuntos reunidos. Ambas as possibilidades parecem legítimas diante do corpus aqui reunido. A
opção pela segunda abordagem (i.e., pela plurifocalização) foi, nesse sentido, em razão do que
acreditamos ser um aspecto crucial na distinção proposta por Maingueneau (2006), a saber: a
pergunta do pesquisador.
unifocalização tem como uma de suas principais características o fato de que, desde o início,
assume-se — ainda que como hipótese — um princípio de convergência que é, em última análise,
o próprio objeto da investigação. Embora a hipótese inicial fosse nesse sentido, logo percebemos
europeia em dois suportes distintos (manuais escolares e romances), é possível vislumbrar uma
proximidade, uma vez que aqui buscamos analisar as retomadas de um estereótipo nacional em
dois espaços (turismo e moda). O foco parece, portanto, estar mais diretamente ligado ao
“analista” que ao “discurso”: é como o pesquisador define sua pergunta que acaba por determinar,
Por isso parece mais adequado considerar o conjunto aqui reunido como uma
formação discursiva plurifocal, uma vez que — dentre outras razões já apresentadas — o objetivo
central da pesquisa era observar como, no turismo e na moda, circulava um certo estereótipo do
espaço nacional. Ainda que tenhamos feito aproximações entre um e outro, elas decorrem mais
203
O trabalho sobre a noção de estereótipo é, aliás, outro aspecto teórico-metodológico
debatido especialmente nos capítulos de análises. A esse respeito, Amossy e Pierrot (2005) fazem
termos de áreas em que a noção desperta algum interesse. Para as autoras, os estereótipos
representam um terreno particularmente profícuo para a AD, podendo ser estudados a partir da
É, contudo, Paveau (2007, p. 317) que, traçando um breve histórico da noção de pré-
essa questão dos discursos anteriores se enfraqueceu um pouco nos trabalhos posteriores
da análise do discurso, ou porque as noções de pré-constructo e de interdiscurso se
simplificaram e congelaram, como mostram as entradas do Dicionário de análise do
discurso (Charaudeau, Maingueneau, 2002), ou porque noções vindas de outras
orientações constituíram respostas mais facilmente mobilizáveis, como a competência e
suas declinações (linguística, cultural, enciclopédica, interacional etc.), ou ainda porque
certas etiquetas, como “saberes compartilhados”, “estereótipos” ou “senso comum” têm
contribuído para resolver o problema, nomeando-o . Mas em todos os casos, parece ter-
se perdido o que fazia a riqueza e a exatidão da proposta de origem: o fato de que o pré-
constructo, como aliás o interdiscurso, não depende da materialidade discursiva, e por
isso não pode ser identificado como um conjunto de discursos concretamente proferidos,
embora sendo linguisticamente passíveis de análise.
aparato relevante para o estudo dos estereótipos, por outro, as análises aqui apresentadas mostram
que não se pode resumir a eles o estudo da estereotipia. Isso significa, então, que não pode haver,
para o estudo dos estereótipos, uma relação direta — ou exclusiva — com os pré-construídos.
construídos, simulacros e cenas validadas. Nesse sentido, a proposta de Amossy e Pierrot (2005)
204
de se assumir, no quadro da Análise do Discurso, os estereótipos por meio da noção de pré-
construído não daria conta das análises aqui empreendidas. A distinção dos modos de inscrição do
estereótipo no fio discursivo possibilitou ainda compreender melhor a bivalência (AMOSSY &
PIERROT, 2005) que a noção de estereótipo condensa. Defendemos aqui que o estereótipo
formado via pré-construído relaciona-se à concepção “positiva” dos estereótipos, algo até certo
procurou mostrar nas análises do turismo; por outro lado, o estereótipo formado por meio de
simulacro parece ser responsável pelas conceituações negativas atribuídas à noção, assumido
De uma maneira ou de outra, o que as análises apontam é que tomar uma categoria
como a de estereótipos, concebendo-a essencialmente como uma “cristalização”, tal como sugere
Lippmann ([1922]2008), não exime o analista de verificar de que modo essa cristalização é posta
a funcionar no discurso.
sua paisagem “típica”, os seus caminhos nos levam — para futuras pesquisas — a um quadro
mais amplo e que envolve, de maneira genérica, a questão de uma identidade nacional que pode
ser abrigada sob a denominação de “brasilidade”147. Isso porque o espaço nacional é, no caso
brasileiro, um aspecto de grande relevância para a imagem do país. O futebol, que abandonamos
para esta pesquisa, mas que é, indiscutivelmente, um elemento fortemente associado ao Brasil, dá
mais um exemplo da importância que a paisagem “típica” assume no caso brasileiro: a bola da
Copa de 2014148 tem seu desenho inspirado nas curvas do Rio Amazonas.
147
O termo abarca um conjunto de ideias bastante variadas a respeito do Brasil, mas uma característica fundamental
é que essas ideias são sempre “positivas”, i.e., referem-se sempre a características valorizadas acerca do país.
148
A esse respeito, vide, por exemplo, matéria disponível em: <http://epocanegocios.globo.com/Essa-E-
Nossa/noticia/2013/12/adidas-apresenta-brazuca-bola-oficial-da-copa-do-mundo-2014.html>.
205
“Brazuca” – bola da Copa do Mundo 2014
descrever um modo de circulação de um certo estereótipo nacional que remete, em última análise, a
uma ideia de “brasilidade”, i.e., daquilo que “genuinamente” representa o Brasil — e aqui não mais
apenas sua paisagem típica. Essa opção implica também algumas outras considerações, dentre elas
a de que as análises de diversos espaços, para além do turismo e a moda, apresentados aqui, devem
mostrar que há traços valorizados assumidos como representativos de uma certa “brasilidade”.
alguns exemplos que — embora não tenham a pretensão de ser detalhados do ponto de vista de
esse respeito cresceram vertiginosamente. Bauman (2005, p. 23), por exemplo, afirma que ela se
trabalhos à medida que se desenvolvem, pode também, por outro lado, dissipar o tema por tantas
áreas que ele perde qualquer especificidade e corre-se o risco, neste último caso, de banalizá-lo.
No caso da AD, o interesse não é na identidade em si, mas, antes, no funcionamento dos
procuramos mostrar, bastante marcante e atravessa uma série de lugares, dos quais analisamos
com mais vagar a moda e o turismo. Mas, conforme caminhavam as análises, surgiam também
outros lugares que, por diversas razões, não receberam um tratamento mais profundo ainda.
O turismo, além de ter sido um lugar que desde o início supúnhamos produtivo para a
apontando outros espaços em que essa circulação ocorreria. Foi assim com a moda, objeto de um
de nossos capítulos, e com a gastronomia, que abordaremos em linhas gerais aqui como
despertou interesse pela relação estabelecida entre o turismo, espaço de onde vieram os primeiros
regiões brasileiras, segundo aponta Eva Steinbruch. Para cada região, um breve texto
fotos dos pratos, naturalmente, e de paisagens representativas dos lugares (foto de rio e floresta
para representar a região Norte e vista panorâmica do Rio de Janeiro com a imagem do Cristo
Redentor para a região Sudeste são alguns exemplos). O que poderia parecer uma característica
peculiar de um livro que estabelece um paralelo entre turismo e gastronomia é, na verdade, até
149
STEINBRUCH, Eva Ribenboim. Brasil: gastronomia, cultura e turismo. São Paulo: Bei Comunicação, 2010.
207
comum nos (muitos) livros sobre culinária “tipicamente” brasileira: não são poucos os que se
valem de imagens de paisagens nacionais — seja como “pano de fundo” para apresentar o prato,
temas das paisagens e da gastronomia; há muitas fotos de lugares e do povo das regiões de onde
vêm os pratos selecionados. A página que segue é significativa dessa relação; se observarmos a
primeira foto, o foco está na paisagem ao fundo e a comida, embora esteja em primeiro plano,
está desfocada
150
GRANATO, Alice, PAGANO, Sergio. Sabor do Brasil. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.
208
Esse mesmo livro traz ainda em sua apresentação — de autoria de Laurentino Gomes
— uma referência explícita à questão paisagística do Brasil 151, colocando em cena mais uma vez
são os ingredientes “naturais” que se mostram particularmente convidativos. Viajar pelo Brasil e
conhecer sua gastronomia é, como grande parte desses livros esmera-se em defender, conhecer
também a sua cultura. À semelhança dos debates recentes no campo da moda, gastronomia
151
Aqui também mais uma evidência da importância que uma paisagem nacional “típica” assume no caso brasileiro.
152
Não há nada de óbvio nesse tipo de afirmação: uma cozinha “genuinamente” francesa é marcada principalmente
pelas técnicas utilizadas, mais que pelos ingredientes (o que não significa, por outro lado, que não haja ingredientes
mais ou menos recorrentes ou característicos do país).
153
In: LEITE, Morena. Brasil: ritmos e receitas. São Paulo: Gaia, Editora Boccato, 2006.
154
FERNANDES, Caloca. Viagem gastronômica através do Brasil. São Paulo: Editora Senac/Editora Estúdio
Sonia Bobatto, 2012.
209
A mesa do brasileiro é uma obra de arte: uma gastronomia ao mesmo tempo simples e
exótica. Uma explosão de cores, sabores, história e temperos, no temperamento de uma
nação miscigenada. Se da mistura de origens resultou um país de rica cultura, essa
riqueza estendeu-se também à mesa, como uma toalha feita por rendeira, tecida com
receitas tradicionais adicionadas à nossa característica primeira: a criatividade.
uma mistura cultural que faz do povo brasileiro uma nação miscigenada. Se a moda tem na figura
gastronomia não é propriamente essa mulher que é evocada como uma espécie de “fiadora”, mas
centrais numa cozinha: as técnicas e os ingredientes. “Três povos, uma só cozinha” anuncia a
O que é a nossa comida senão resultado dessa mesma mistura de raças? As primeiras
portuguesas trouxeram o gosto pelo azeite de oliva, o arroz e os tabuleiros de doces,
bolos e manjares, e com o tempo foram incorporando nas receitas os frutos da terra de
adoção: coco, milho e castanha-de-caju... Sem a escrava negra não teríamos a feijoada, o
caruru e tantos pratos perfumados com o azeite de dendê, de palmeira importada da
África. E as índias, elas sim as primeiras cozinheiras desse Brasil, ensinaram às outras a
pegar peixe de rio, a bater farinha de mandioca no pilão, a tirar da mata ervas, frutas,
pimentas e sementes. (grifamos)
ainda o que escavar. Da mesma maneira que aí também encontramos dados que colocam em cena
“um verdadeiro Brasil” — seja remetendo às paisagens, seja por meio de elementos outros —, há
ainda diversos outros espaços que podem ser explorados na análise da construção discursiva
O que fez com que deixássemos de lado, por ora, esses outros discursos deve-se, em
boa medida, ao fato de não haver uma relação mais direta com a constituição de um espaço
nacional — o que não é definitivo, mas as análises precisariam ser mais aprofundadas. No caso
155
In: LEITE, Morena. Brasil: ritmos e receitas. São Paulo: Gaia, Editora Boccato, 2006.
210
do futebol, por exemplo, inicialmente a questão dos estádios da Copa 2014 parecia promover esse
laço, mas esse aspecto desapareceu da mídia. Por outro lado, é possível identificar uma discussão
que há alguns anos ganha espaço nas mesas e colunas esportivas: o que representaria um
Ese conjunto de discursos acerca de um “verdadeiro” Brasil pode ser abarcado sob o
termo generalista de brasilidade e desdobra-se por uma infinidade de espaços e campos que, ao
longo desta pesquisa, insistiam em aparecer em meio aos dados reunidos no corpus aqui
construído. Não foi possível aqui entrar por todas as portas que se abriram, mas, por outro lado,
De fato, se “tudo não pode ser dito”, não devemos nos angustiar, pois é preciso
colocar um ponto final. Mas, pensando melhor, com tanto ainda por dizer, é melhor que sejam
reticências...
211
212
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250 f. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2012.
220
Anexos
221
Revista Próxima Viagem
Editora Peixes
Periodicidade: mensal
222
104 Europa 1 2
4
(06/2008)
105 Pequim 2 3
5
(07/2008)
106 Chile/Peru/Nova 3
4
(08/2008) Zelândia
107 49 viagens 1
(09/2008)
223
Revista Viagem e Turismo
Editora Abril
Periodicidade: mensal
224
157 Melhores praias do As praias da capa 2
4
(11/2008) mundo
158 Resorts e pousadas 3 1
6
(12/2008) Brasil
225