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Carlos Franchl

Esmeralda Vailati Negrão


Ana Lúcia M üller

Sírio P ossen ti
A torsanizaçãoj
ii

mas o que é mesmo

“GRAMÁTICA"?

-33.
E ditor: Marcos Mardonllo
Andréia Custódio
C apa e P rojeto G rAf k o :
Ilustração d a c apa : Detalhe do frontlsptcio de A gramática da linguagem portu­
guesa deFernõo de Oliveira, por Maria Leonor Carvalhâo Buescu,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 197S.
C onselho E ditorial: Ana Stahl Ztlles [Unislnos]
Carlos Alberto Faraco [UFPR]
Egon de OBvelra Rangel [PUCSP]
Gltvan Müiler de Oliveira [UFSQ Ipoí}
Henrique Monteagudo [Universidade de Santiago de Compostela]
José Carlos Sebe Bom Melhy [NEHOAJSP]
Kanaviíll! Rajagopalan [Unlcamp]
Marcos Araújo Bagno [UnB]
Maria Marta Pereira Scherre [UFRJ, UnB]
Rachel Gazolla de Andrade (PUCSPJ
Salma Tannus Muchail [PUCSP]
Stella Maris Bortonl-Rlcardo [UnB]

OP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RI

FrandiE,Carlos, 1932-2001

Ma$oqueémesmo'gramátlca'?/Carlos FrancM; [com]EsmeraldaVaflati Negrão


&AnaLúciaMOlIer.-SSoPaulo:ParábolaEditorial,2006
-(Mapontada língua; 15)

ISBN85-88456-55-6

l.Ungua portuguesa-Grarnítica.2.Ling(llstta.l.Negrâo,EsmefaldaV.
(EsmeraldaValiatO. li.MOIIer,Ana Lúda de Paula.!ILTItulo.lV.Séiie.

06-2921 (DD4695
________ J____________ _____________________ (PU821.1343'36

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ISBN: 978-85-884S6-55-6
O da edição: Parábola Editorial, São Paulo, setem bro de 2006
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO................................................. 7
Sírio Possmti

MAS O QUE É MESMO “GRAMÁTICA’? ....................... 11


1 Vamos com eçar pelo estudo de um caso bem prático: 12

aEOAITVDDADEEGRAMÁTrCA..................................... 34
1 Algumas notas sobre criatividade............................. 39
2. O que se faz quando se faz gram ática como se faz.. 51
3. Indicações p ara um a renovação dos estudos
gram aticais................................................................... 79
4. Um resum o, à m oda de conclusão............................. 99

O USO DE RELAÇÕES SEMÂNTICAS NA ANÁLISE


GRAMATICAL..................................................... 102
com Esmeralda Vailati Negrão e Ana Lúcia Müller
Introdução......................................................................... 102
1. U m a noção de sem ântica e de suas relações com a
sin tax e.......................................................................... 104
2. A construção de cen ário s........................................... 108
3. Relações de p aráfrase.................................................. 111
4. O uso de outras relações sem ânticas n a argum entação
g ram atical.................................................................... 114
C onclusões........................................................................ 123
6 M AS O O U E É M E S M O "G R A M Á T IC A ” ?

UM EXEMPLO DE ANÁLISE E DE ARGUMENTAÇÃO


EM SINTAXE........................ 126
com Esmeralda Vailati Negrão e A na Lúcia Müller
Introdução.................................. 126
1. E studo de um caso ......................................................... 127
2. A análise tradicional desse c a so ................................. 132
3. Buscando argum entos sintáticos em favor dessa
a n á lise ............................................................. 139
4 E xplorando um a idéia da argum entação precedente 144
APRESENTAÇÃO

Faz tem po que eu queria ver editados, em con­


ju n to (e, para isso, ainda não se encontrou um substi­
tuto para o livro), alguns textos de Carlos F ranchi es­
critos para serem lidos por professores. N a década de
80, quando as condições para certas form ulações so­
bre ensino de língua na escola se tom aram possíveis,
por um lado, e um a exigência, p o r outro, F ranchi era
certam ente o lingüista m ais aparelhado para form u­
la r os textos necessários para pensar o lugar da língua
n a escola, porque acum ulava as experiências de um
professor extrem am ente com petente e inovador e um a
so fisticad íssim a form ação teó rica, som adas a um a
posição política lúcida e longe de ser aventureira.
Quando li pela prim eira vez Mas o que ê mesmo “gra-
mâtica”?, m e dei conta de que estava diante de um texto
no qual ao mesmo tempo se põe em questão o que h á de
pior no que se faz com gram ática n a escola e o que h á de
m elhor n a tradição gram atical. É, assim , um texto que
rom pe sem rom per: obriga o leitor a não ver apenas pro­
blem as em textos não “corretos” e a ver tam bém proble­
m as em textos “corretos” Talhado para nossos professo­
res. Ao mesmo tempo, estabelece um liam e forte e interes­
sante entre questões de gram ática e de texto/discurso.
A ^sensação produzida p or esse texto m e fez re ­
to m a r a Criatividade e gramática, um trabalho m ais
a M AS 0 Q U E É M E S M O "G R A M Á T IC A "?

longo que, além de retom ar posições solbre como operar


com e sobre extratos basicam ente oradonais, no inte­
rior, portanto, da tradição de ensinar gram ática, recu­
pera questões cruciais de psicologia/pedagogia, e, m ais
do que ;sso, explicita com m ais m inúcia procedim entos
propriam ente “pedagógicos” relacionados ao trabalho
com linguagem. Aqui, com m ais detalhe, a recepção da
gram ática na escola é duram ente criticada, ao mesmo
tempo em que são explidtadas intuições m ais ou m enos
duradouras de várias épocas a respeito das construções
lingüísticas, o que é tam bém a indicação de um a saída
para o professor. O fundam ental desse texto é a posição
explicitam ente assum ida em relação à natureza das re­
gras gram aticais (e, portanto, da criatividade): as regras
de um a língua são produto de um trabalho antropológi­
co, histórico. Por isso, não é necessário ser inatista para
adm itir gram áticas de falantes. M as, ao mesmo tenrpo,
a posição perm ite dizer com todas as letras — e Franchi
o diz è repete — que a língua, e n a m edida mesmo em
que é sistem ática, é um lugar de jogo inventivo, sem que
isso im plique um a espécie de m arginalidade.
E u achava que, para professores, esses dois textos
eram indispensáveis. Estando fora do m ercado p or ra ­
zões históricas (foram editados originalm ente pela CENP
e, assim , sua circulação não é comercial), tornava-se im­
perativo que fossem editados e postos em circulação.
Depois entrei em contato com dois textos que Franchi
escreveu, com a colaboração de Esm eralda Negrão e A na
Lúcia M üller, professoras de linguística n a USP, destina­
dos tam bém a m ostrar (de novo!) que se pode fazer boa
obra de gram ática apurando e sistem atizando intuições
— tanto as do falante da língua como as da tradição
APRESENTAÇÃO 9

gram atical Esses dois textos são excelentes dem onstra­


ções de como sintaxe e sem ântica podem ser aproxim a­
das sem que se tenha que aceitar que um a m apeia a ou­
tra, e, principalm ente, sem que seja necessário agarrar-se
à hipótese de que um a e outra mapeiam 0 m undo.
R eunir esses textos em livro é, ao m esm o tem po,
um a satisfação pessoal, e um a form a de fazer ju stiça
a C arlos F ran ch i, cujas idéias sobre ensino são fre­
quentem ente repetidas sem que se diga ou saiba de on­
de vieram . A lém disso, pareceu-m e fundam ental colo­
car à disposição de professores (mas não só, como os
leitores perceberão facilm ente) alguns textos que os
valorizam , porque exigem deles um trabalho que vai
n a direção contrária de todos quantos im aginam que
se tra ta de pobres coitados p ara os quais se devem
escrever textos ‘Tacinhos e coloridos”
Os trabalhos de Franchi situam seu leitor-modelo
no patam ar relativam ente exigente dos estudiosos, dos
verdadeiram ente interessados. N ada é previam ente di­
gerido. Também por isso ele m erecia a reedição dessa
parcela de sua obra voltada para a formação do profes­
sor competente e do estudante em busca de um a acuidade
m ais sofisticada em relação aos fatos de língua
É p or isso tudo que aqui estão reunidos esses tex­
tos, que, no m esm o espírito de C arlos F ran ch i, não
vou resum ir para os leitores. P refiro fazer-lhes á sim ­
ples oferta da sofisticação com que foram e devem ser
tratados. Pelo m enos por outros professores.
Agradeço a Eglê Franchi, a Esm eralda V. N egrão
e a A na Lúcia MÜUer por terem facilitado ao m áxim o
esta reunião.
SírioPossenti
MAS O QUE É MESMO “GRAMÁTICA” ?

Vamos refletir um pouco sobre a gramática e so­


bre o ensino âe gramática . M as será que ainda se deve
pensar em gram ática no ensino do prim eiro grau? Os
colegas professores estão, de um m odo geral, m uito
confusos a respeito disso. E com certa razão.
Tom e-se, como -exem plo, um a das afirm ações,
hoje correntes, que podem explicar essa confusão.
0 objetivo fundamental da escola é o de levar a criança a
produzir textos e compreendê-los de um modo criativo e críti­
co. Assim, são mais importantes, na escola, as noções relativas
ao texto e ao discurso e a análise textual e não as noções grama­
ticais e as análises sintáticas.
A gramática não tem nada a ver nem com texto, nem com
discurso, e muito menos com os processos de produção e com­
preensão do texto.

E m bora todas essas considerações contenham


um a parte de verdade, elas sem pre podem levar a con­
clusões equivocadas e desorientar o professor, quando
isoladas dos .contextos teóricos em que foram produ­
zidas. Elas dependem m uito do que se entende p or
“gram ática”, “gram atical”, “saber gram ática”. Por isso,
vale a pena rever o que sabem os e devem os saber so-
12 M AS O Q U E t M E S M O "G R A M Á T IC A "?

bre gram ática e p ro cu rar en tender m elhor como ela é


praticada n a atividade escolar.

X. Vamos começar pelo estudo de um caso


bem prático:
Suponham os que devem os avaliar o conhecim en­
to gram atical de nossos alunos. E querem os ver, ain­
da, como esse conhecim ento se m anifesta nos seus
próprios textos.
Para isso, vam os propor p ara exam e duas reda­
ções. T rata-se de redações de dois alunos de um a 3 a
série do prim eiro grau (que foram reescritas som ente
no que dia respeito à pontuação e à acentuação):

TEXTO 1
Era uma vez um passarinho que vivia em uma árvore na frente
da casa de João. E o João tem tava pegalo todos os dias mas
não com siguia. A té que um dia ele tem tou muito, mas
muito, que ele acabou catando o passarinho.

E ele prendeu na gaiola bem na frente de uma janela. B e pois


que ele prendeu o passarinho, ele chamou seu irmão Marinho
para ver.João e seu irmão ficô vendo até cançar e o Marinho
achava que o passarinho estava com fome.

João foi no mercadinho do japonês comprar comida de passari­


nho. Os dois irm ão v iv ia sempre debriga. Quando ele voltou
Mário pidiuf?) e foi dar anpiste pro passarinho. M ais ele
colocou a comida e dechou a portinha aberta e o passarinho
fdgil e foi dereto para a árvore denovo.

— D iscupa, que foi sem querê.

E o João tem tou pegar ele denovo e conseguiu e o João


prendeu ele na gaiola denovo. Depois de dois dia João foi
M AS 0 QUE É M E S M O “ G R A M Á TIC A ” ? 13

ver se tin h a comida para o passarinho e não tin h a e o João


colocou(?) e aí foi ele que não fechou direito a portinha e o
passarinho fugiu mas não foi para a árvore.

Seu irmão perguntou onde que estava o passarinho mas o


João nem foi procurar porque o João tinha certesa (de) que de
não estava por perto.
— Agora, vai você pegá!

TEXTO 2
Lá na fazenda do meu avô tem cavalos, galinha, pato, vaca, boi e
porcos. Quando eu vou lá, eu ando de cavalo e tomo leite de vaca.
Os anim ais gostam muito de carinho e amor.
Eu gosto muito dos animais.
De noite os anim ais já estavam todos dormindo.
Mas meu avô teve que vender a fazenda. Eu fui dizer adeus aos
animais.
Eu fiquei muito triste. Mas meu avô falou que ele compra a
fazenda de novo.
Daí, no outro dia o meu avô comprou a fazenda de volta. Daí,
nos fizemos uma festa para os animais e os animais ficaram
muito felizes.

1.1 . A m aioria dos professores, consultados so­


b re essas redações, considerou a prim eira redação, a
do passarinho, um desastre e a avaliou de form a m ui­
to negativa. E isso p o r duas razões principais (além
de letra, apresentação etc.).
Em prim eiro lugar, esse aluno foi m al alfabetizado:
troca A ’ por ‘m’ (comsiguia, tem tou), T por ‘u 5 e V por
T (voutou, aupiste, fiigil...), Y por V (comsiguia, pidiu, ''<?'
discupa...), ‘ch’ por ‘x ’ (dechou), V por V (certesa),
come letras (ficoju], discu[l]pa, querê), põe letras a m ais <■/'
(m a[i]s), separa o que deve u n ir (De pois) e une o que
deve separar (pegalo, denovo).
* Üf > f f t
14 M AS O Q U E É M E S M O "G R A M A T tC A " ?

M as o pior: mesmo deixando as questões de grafia,


a redação desse aluno m ostra que ele não conhece a
gram ática de sua língua. Vejam só quantos erros!
a) O aluno não sabe u sa r corretam ente as for­
m as áto n as p ro n o m in ais (os clíticos). U m a
vez, usa o pronom e átono de terceira pessoa
l o \ m as não o separa do verbo:
E oJoão tentava pegalo...
O utras vezes, u sa em lugar dessa form a de bom
português, o pronom e tônico, de caso reto , n a função
de objeto direto:
E oJoão teratou pegar ele de novo e conseguiu e prendeu ele na ..
gaiola denovo...
O u deixa, sim plesm ente, o objeto direto em branco:
João foi ver se tinha comida para o passarinho e não tinha e
João colocou (o quê?)...

b) N ão sabe concordância verbal nem concordân­


cia nom inal:
João eseu irmão ficô vendo até cançar...
Os doisirmãovivia sempre debriga...
Depois dedoisâia...
c) Tem problem as de regência, pois em prega a
preposição ‘em ’ n a expressão de lu g ar para
onde, como em:
João foi no mercadinho dojaponês...
usa o verbo ‘ter* como im pessoal, em lugar de ‘haver",
no.sentido de ‘ex istir’:
João foi ver se tinha comida para o passarinho e não tinha...
M AS O Q U E É M E S M O "G R A M Á T IC A "? 15

engole a preposição ‘de’ n a oração que funciona como


com plem ento nom inal de ‘certeza’: em
João tinha certeza [de] que ele não estava por perto...

Ao contrário dessa, a redação (2) sobre “a fazen­


da dos anim ais” não tem nenhum erro de ortografia e,
m ais im portante, nenhum erro de gram ática (a não
ser por um pequeno deslize no em prego do verbo ‘te r’
em — “n a fazenda de m eu avô tem cavalos, galinha...”) .
Talvez valha a pena transcrever a observação de
um a professora:
Esse aluno [o aluno da redação do passarinho] escreve como
fala. Eisso a gente pode ver na grafia (consíguia, pidiu, discupa,
pro) e nos seus erros de concordância. Eu não aceito essa onda
de que não tem mais certo e errado. A redação fica horrível
nessa linguagem vulgar, com esse “soledsmos” [erros contra as
regras de sintaxe]. Há regras e normas para tudo e as crianças
têm que aprender a escrever de acordo com o que foi estabele­
cido pelos bons escritores e pelos que conhecem a língua. O
aluno tem direito de conhecer as belezas da sua própria língua.
A redação da menina pode parecer mais pobre; mas é um texto
limpinho, em bom português.

1 .2 . Vamos ao que nos in teressa m ais aqui: no


contexto dessa avaliação, o que significam “gram áti­
ca”, “regras gram aticais”, “saber gram ática?”
A concepção de gram ática que transparece nas
avaliações acim a dos textos das crianças está baseada
em um conjunto de pressupostos bem claros:
I o. E xistem diferen tes m odalidades de uso da
linguagem ou de um a língua n atu ral qualquer. Um a, a
m odalidade culta e bela; outra, as m odalidades colo­
quiais, feias e vulgares porque em uso pelas pessoas
m ais sim ples do povo.
16 M AS O Q U E É M E S M O "G R A M Á T IC A ” ?

2 °. Um padrão com parativo, para estabelecer as


diferenças entre essas m odalidades, consiste em tom ar
por base a prática dos bons escritores e dos que “sabem
usar essa língua” como os especialistas ou professores,
contrapondo-a à linguagem popular ou vulgar.
3 o. Com base no uso consagrado pelos bons escri­
tores e o referendo dos especialistas e professores, sabe-
se o que se pode e o que não se pode falar ou escrever:
autoriza-se o uso de algum as expressões (as expressões
corretas, de bom português, p o r exemplo) e se desautori­
zam outras (classificadas como soleásm os, desvios de
linguagem , erros, ou m au português).
4 o. F alar e escrever bem , sobretudo escrever bem ,
um a habilidade a ser desenvolvida n a escola, depen­
de, pelo m enos em grande parte, da obediência às n or­
m as assim estabelecidas: do uso dessa lín g u a culta,
tom ada como padrão de adequação.
5 o. Saber gram ática significa não som ente conhe­
cer essas norm as de bem falar e escrever, m as ainda
usá-las ativam ente n a produção dos textos. O respeito
à gram ática tam bém é condição de beleza do texto. E
essa é a relação fundam ental entre gram ática e texto.
1.3 . Em resum o, a concepção de gram ática, que
preside a avaliação que se fez das redações até aqui,
corresponde ao que se cham a de gram ática norm ativa
de uso da língua:
Gramática é o conjunto sistemático de normas parabém falar e
escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da
língua consagrado pelosbons escritores.
Dizer que álguém “sabe gramática” significa dizer que esse al­
guém “conhece essas normas e as domina tanto norionahnente
quanto operacionalmente”
M AS O Q U E É M ESM O “ G R A M Á TIC A ” ? 17

Essa concepção de gram ática tem raízes m uito


antigas. Um bom gram ático seria aquele que diz como
se deve escrever, seja baseado em um a certa ‘ló g ica”,
seja baseado no “uso “legitim ado" p or algum critério.
A prim eira form a de c o n stru ir um a gram ática
norm ativa (que certam ente tem origens m ais antigas)
aparece nos gram áticos de Port-Royal, no século XVH,
que vinculavam o bom uso da linguagem à arte de pen­
sar. Esses gram áticos inspiraram , por exemplo, o nosso
Soares Barbosa.
Ao contrário deles, ainda antes no mesmo século, em
pleno período da fundação da Academia Francesa, estão
gramáticos como Vaugelas (em-Remarques sur la langue
française [1647]) que evitam um ponto de partida lógico e
procuram “anotar”, com base no que observam, os dife­
rentes usos da linguagem. Essa neutralidade, entretanto, é
aparente, porque “uso da linguagem” tem, nesse contexto,
um caráter privilegiado e acadêmico.
Som ente para exem plificar, vejam os o que diz esse
autor. Ele insistia em que, ao contrário de querer cons-
titu ir-se em ju iz das querelas linguísticas, visava so­
m ente a m anifestar seu testem unho sobre o que viu e
ouviu. M as, do que v iu e ouviu, diferenciava um m au
uso e um bom uso da linguagem , este como o “m estre,
p o r excelência, da lín g u a ”. E o que lh e p arecia “le
m auvais usage” e ‘l e bon usage"?
D iz ele que “o m au uso da linguagem é form ado
pelo m aior núm ero de pessoas”, ao contrário do “bom
u so”, que corresponde a um a elite de m anifestações
verbais. Este, o bom uso,
é maneira de falar da parte mais sadia da corte, de acordo com o
modo de escrever da parte mais sadia dos escritores de seu tempo,

com preendendo n a corte tam bém


18 M A S O O U E É M E S M O “ G R A M Á T IC A "?

as mulheres e os homens e muitas pessoas da vila em que o


príncipe reside, que pelo acesso às pessoas da corte, participam
de sua polidez.

O povo, dizia ele,


não é senão o mestre do mau emprego da língua.

Não liá dúvida de que os gram áticos norm ativos


partem de um fato da linguagem que todos estão dis­
postos a reconhecer: o fato de que, no uso da lingua­
gem, existem diferen tes m odalidades e dialetos, de­
pendendo de condições regionais, de idade e sexo e,
principalm ente, de condições sociais (econôm icas e po­
líticas). M as tam bém fica m uito evidente, nessa con­
cepção, um a valorização não estritam ente, linguística
dessas m odalidades: existem subjacentes nela precon­
ceitos de todo tipo, elitistas e acadêm icos e de classe.
A pesar das declarações de princípio em contrá­
rio, essa concepção, m atizada de diversos m odos (subs­
tituindo-se, p o r exem plo, a corte real pela corte dos
doutos), ainda predom ina n a m aioria de nossas p ráti­
cas escolares sobre a linguagem .
1 .4 . A lguém poderia reclam ar qué a concepção
norm ativa de gram ática, desenhada acim a, não corres­
ponde exatam ente ao que se faz nas escolas em m atéria
gram atical. P a i^ o jd u n o v er os desvios gram aticais en­
contrados n a réaçao,x> professor teria que lançar m ão
de um a porção de noções descritivas como nom e, ver­
bo, a d je tiv o ,... sujeito, predicado, adjuntos e comple­
m entos, ... orações subordinadas de diferentes tipos.
Para ilu stra r isso, vejam os como se costum a m os­
tra r o diferente em prego das form as do pronom e pes­
soal, p ara ev itar erros de gram ática como
M AS 0 O U E É M E S M O " G R A m A T IC A "? \9

João tentou pegar ele e conseguiu e o João prendeu ele na


gaiola...

Prim eiro seria preciso que os alunos “aprendessem ”


o que é pronom e e> dentre os pronom es, distinguissem os
pronom es pessoais. Estes, por sua vez, teriam que ser
subcategorizados em, pelo m enos, dois grupos:
os pronomes pessoais do caso reto:
— Ia pessoa singular: ‘eu’, plural: ‘nós’
— 2a pessoa singular: ‘tu’, plural: Vós’

e assim p or diante;
os pronomes pessoais do caso oblíquo:
1 a pessoa — ‘me’, ‘mim’, ‘comigo’,
2a pessoa— ‘te’, ‘ti’, ‘contigo’,
3 a pessoa— ‘0’, ‘a’/ ‘no’, ‘n a W , Ja’, ‘lhe’,
3a pessoa reflexiva— ‘se5, ‘si’, ‘consigo5

e assim por diante.


E tam bém , é preciso utilizar essas diferentes cate­
gorias e form as para form ular regras de emprego como:
a) os pronom es do caso reto se em pregam todos
como sujeito; os pronom es do caso reto ‘ele’,
‘eles’, ‘nós’ e Vós’ se em pregam tam bém como
com plem entos de preposições (deles, p or eles,
p or nós etc.);
b) os pronom es ‘m im ’ e ‘ti’ se em pregam como
com plem entos de preposição:
c) os pronom es ‘o’, ‘a’ e suas variantes se em­
pregam como objeto direto e o pronom e ‘lh e’
como objeto indireto;
e assim p o r diante.
E de “assim por diante” em “assim por d ian te”
se vai em purrando p ara os alunos toda a gram ática.
20 M AS O O U E É M E S M O "G R A M Á T IC A "?

A í sim podem os corrigir os nossos alunos e m ostrar


p or que não se pode dizer:
Vou pegar ele,
Isso fica entre eu e vocês,
Estou falando consigo [com vocês],
Eu estava Qie vendo,
João e seu irmão ficou triste,

e assim p or diante.
1.5. N esses sim ples exem plos já podem os ver que
a gram ática tradicional não contém som ente “norm as”:
ela possui tam bém um com ponente descritivo.
Vejamos o que ocorre nesse novo m odo de ver a
gram ática. Para co n stru ir esse com ponente descritivo
da gram ática, os estudiosos da língua procedem m ais
ou m enos assim :
Io. A nalisam a estru tu ra das expressões de um a
língua (ou m ais), dividindo-a em unidades sim ples e
associando cada um a dessas unidades, p o r diferentes
critérios categoriais, a diferentes classes. N um a ora­
ção como:
Os dois irmão vivia sempre de briga,

se identificam os nom es (irm ão, briga), o verbo (vi­


via), os determ inantes — artigo e num eral (os, dois),
o advérbio (sem pre), a preposição (de).
2 o. Organizam essas diferentes classes em subclasses
(nom e comum, como ‘irm ão’; nom e próprio, como ‘João’)
e em paradigm as flexionais (de caso, de gênero, de nú­
m ero, de pessoa, de tem po etc.) como as conjugações e as
declinações. Desse modo, p or exemplo, os pronom es pes­
soais foram agrupados em dois diferentes grupos — os
do caso reto e os do caso oblíquo.
M AS O Q U E É M E S M O "G R A M Á T IC A ” ? 21

3 °. Verificam quais as relações (os m odos de co­


nexão) que se estabelecem en tre essas diferentes u n i­
dades e classes, possibilitando a construção de unida­
des com plexas. Desse modo, relacionam como adjun­
to adnom inal "dois7 a irm ão para form ar ‘dois irm ão’
e depois a ‘os’ para form ar o sintagm a nominal.
Os dois irmão;

de m odo sem elhante, form am a locução ‘sem pre de


b riga’, que relacionam ao verbo para form ar o sintag­
m a verbal
“vivia [sempre de briga]”

e, fm ahnente, pela relação predicativa que se estabele­


ce en tre o nom e e o verbo, form a-se um a oração
[os dois irmão] [vivia [sempre de briga]].

4o. D efinem os papéis específicos que essas un i­


dades desem penham ao e n trar nas construções com­
plexas em que se relacionam (como as funções de su­
jeito e de predicado definidas, respectivam ente, para
o sintagm a nom inal e o sintagm a verbal).
5o. Enfim , consultam como se em pregam , n a lín ­
gua considerada', as diferentes palavras, locuções, for­
m as, paradigm as, construções, funções, estabelecen­
do a p a rtir desse uso um conjunto de regras de boa
form ação ou de bom uso das expressões, ou seja, di­
zem quais são as expressões autorizadas e quais as
expressões não autorizadas pela gram ática da língua.
D esse m odo, estabelecem , p o r exem plo, que
— o verbo concorda com o sujeito em pessoa e número;
— o nome próprio se emprega sem artigo;
22 M AS 0 QUE É M ESM O "G R A M Á T IC A "?

— o pronome do caso reto “ele” não se emprega como objeto


direto,

e, com base nessas regras, excluem do conjunto das


expressões gram aticais ou de bom uso, tan to a oração
que nos serviu aqui de exem plo, quanto — “e o João
prendeu ele n a gaiola”.
1.6. Em bora tenham os sim plificado m uito o pro­
cesso de “construção da gram ática”, pode-sé perceber que
ela constitui um sistem a de noções, de descrições estru­
turais e de regras que perm item falar da língua, descrevê-
la, dizer como ela funciona no processo comunicativo e
m ostrar como é que se fala e se escreve nessa língua.
M as agora, estam os usando o term o “gram ática”
de um m odo bem diferente do que fizem os quando fala­
m os em gram ática norm ativa acim a. A qui, já não se
trata, som ente, de um conjunto de norm as para bem
M ar e escrever, m as de todo um processo descritivo. A
noção de gram ática corresponde, aproxim adam ente, a:
Gramática é um sistema de noções mediante as quais se descre­
vem os fatos de umalíngua, permitindo associar a cada expres­
são dessa língua uma descrição estrutural e estabelecer suas
regras de uso, de modo a separar o que é gramatical do que não
é gramatical
“Saber gramática” significa, no caso, ser capaz de distinguir,
nas'expressões de uma língua, as categorias, as funções e as
relações que entram em sua construção, descrevendo com elas
sua estrutura interna e avaliando sua gramaticalidade.

A gram ática descritiva parece m ais n eu tra, m ais


científica que a gram ática norm ativa. M as as coisas
não são n ec essa ria m e n te assim . O p o n to de v ista
norm ativo pode introduzir-se, sorrateiram ente, n a gra­
m ática descritiva pelo m enos de dois m odos.
M AS O Q U E É M ESM O “ G R A M Á T IC A "? 23

Prim eiro, devem os lem brar que há fatos e fatos.


Quem está descrevendo um a língua pode, m uito bem ,
sim plesm ente d esco n sid erar os fato s da linguagem
coloquial e popular como devendo ser “a p rio ri” rejei­
tadas p or vulgares. Como se elas não existissem ou
não devessem existir como fatos. E não é assim que
procede a gram ática tradicional e escolar, referindo-
se, exclusivam ente, aos fatos e exemplos da língua “abo­
nados” p o r um grupo selecionado de escritores?
Segundo, ao passar pelo nosso ponto 5o acim a, o
gram ático pode rein tro d u zir os critérios sociais de uso
p a ra excluir com o não gram aticais todas as expres­
sões que não correspondam a esse “uso consagrado”.
Portanto, em bora a gram ática descritiva não pres­
suponha necessariam ente a m anutenção dos m esm os
preconceitos da gram ática n o rm ativa, o que ocorre
habitualm ente n a p rática escolar é que ela os incorpo­
ra: a gram ática descritiva se transform a em um ins­
trum ento para as prescrições da gram ática norm ativa.
O quadro que descrevem os acim a é, n a realida­
de, bem m ais complexo e sofisticado; além disso, exis­
tem inúm eros outros m odos de considerar a gram áti­
ca n a p rática contem porânea dos professores. Pensa­
m os, porém , que o que foi dito corresponde, de perto,
ao que m ais com um ente se entende p or “gram ática”
n a escola brasileira.

2 . Vamos contrapor um a noção m ais contem porâ­


nea de gram ática às concepções anteriores. lim itar-nos-
emos aos aspectos m ais consensuais, sem discutir pon­
tos controvertidos, para evitar alongar-nos m uito e subme­
ter os leitores a um núm ero m uito grande de questões.
24 M AS 0 OUE É M ESM O “ G R A M Á T IC A "?

Reduzindo-nos aos problem as fundam entais, perdem os


em rigor o que esperam os ganhar em comtmicabílidade.
Todos os linguistas estariam , boje, de acordo em
considerar que um a perspectiva norm ativa ou p u ra­
m ente descritiva está longe de d ar conta da n atureza
da gram ática, das regras gram aticais e do m odo pelo
qual as crianças as dom inam . Vamos com eçar p o r le­
v a n ta r algum as das questões m ais im portantes com
que esses pesquisadores lidam .
2 .1 . A linguagem , seja pela convergência de fato­
res de n atureza antropológica, seja p o r força de um a
dotação genética específica, é um patrim ônio caracterís­
tico de toda a hum anidade. Um a propriedade do hom em ,
independentem ente de fatores sociais, de raça, de cul­
tu ra, de situação econôm ica, de circunstâncias de nasci­
m ento ou de diferentes m odos de inserção em sua com u­
nidade. Q ualquer criança, tendo acesso à linguagem , do­
m ina rapidam ente, logo nos prim eiros anos de vida,
todo um sistem a de princípios e regras que lhe peim item
ativar ou construir inteiram ente a gram ática de sua lín ­
gua. (Pensem um pouco n a história de seus filhos.)
A linguagem não é algo que se aprende ou algo que
se faz: é algo que desabrocha e se desenvolve como um a
flor (na bonita m etáfora de Noam Chomshy), que ama­
durece no curso dos anos, desde que se assegurem à crian­
ça m ínim as condições de acesso às m anifestações linguís­
ticas de seus pais e de sua com unidade lingüística.
Tanto é assim que qualquer criança logo compreende
e produz inúm eras expressões que jam ais ouviu, operan­
do ela mesma sobre essas novas orações com os recursos
próprios do sistema "computacional” de produção e inter­
pretação de seu cérebro (uma outra m etáfora chomskyana).
MAS 0 Q U E É M E S M O "G R A M Á T IC A ” ? 2S

M esmo sem tom ar partido m s questões m ais com­


plexas relativas a esses m ecanism os e processos in ter­
nos, o que se pode dizer, em resum o, é que todo falante,
independentem ente da m odalidade de linguagem de que
se sirva, possui um a gram ática in tern a (de n atureza
biológica e psicológica) ou, pelo m enos, a interioriza já
em ten ra idade, a p a rtir de suas próprias experiências
linguísticas. Um a consequência disso: toda criança já
chega à escola dom inando com perfeição um a compli­
cadíssim a gram ática (que os lingüistas tentam descre­
ver sem sucesso cabal h á m ais de quarenta anos).
O colega professor deve. estar percebendo que os
term os “gram ática”, “regra gram atical”, “saber gra­
m atical” ganham sentidos com pletam ente diferentes
nessa nova perspectiva:
Gramática corresponde ao saber linguístico que o falante de
uma língua desenvolve dentro de certos limites impostos pela
sua própria dotação genética humana, em condições apropria­
das de natureza social e antropológica.

“Saber gram ática” não depende, pois, em princípio, da


escolarização, ou de quaisquer processos de aprendizado sistemá­
tico, mas da ativação e amadurecimento progressivo (ou da cons­
trução progressiva), na própria atividadelmgmstica, de hipóteses
sobre o que seja a linguagem e de seus princípios e regras.

Se quiserem , a gram ática é um a práaris ou se de­


senvolve n a práxis p or um processo de balizam ento
das possibilidades e virtualidades da m anifestação ver­
bal, feitas ou aceitas pela com unidade lingüística de
que o falante participa.
2 .2 . Podemos voltar aos textos que nos servem de
exemplo com um novo olhar. Se não nos preocuparm os
26 M A S O O U E é M E SM O “ G R A M Á T IC A "?

exclusivam ente com os ‘desvios’ de linguagem, a redação


(1) nos m ostrará um razoável grau de am adurecim ento
linguístico e textual (reconhecendo que deve prosseguir
por longo tempo o processo de alfabetização).
Vejam como o aluno é capaz de co n stru ir, p o r
um a série de operações e obedecendo a inúm eros p rin ­
cípios gram aticais, expressões com plexas, com o, en­
tre outras:
o sintagm a nominal: “p a ssa rin h o que v iv ia em
um a árvore n a fren te da casa
de João”;
o sintagm a verbal: “pren d eu n a gaiola bem n a
fren te de um a janela".
(A prim eira, por exem plo, envolve a operação de
construir a especificidade do passarinho pela m odifica­
ção adjetiva da oração relativa, de ser capaz de in serir
esse term o em outra oração; de reconhecer n a subordi­
nada a retom ada anafórica de ‘passarinho’ como sujei­
to oculto de ‘v iv ia’, m odificar sucessivam ente esse
predicado com os adjuntos de lugar complexos etc. etc.)
Ou então, como ele lida espertam ente (e experta-
m ente) com diferentes relações entre as sentenças:
tem porais: “E o João tentava pegá-lo todos os dias,
m as não conseguia. A té que, um dia,
ele tentou m uito, m as m uito...”;
consecutivas: “A té que, um dia, ele ten to u m uito,
m as m uito, que ele acabou catando
0 p assarin h o ”;
explicativas: “D esculpa, que foi sem querer";
com pletivas: “D epois de dois dias, João foi ver se
tin h a com ida p ara o p assarinho...”,
“Seu irm ão perguntou onde que es­
tav a o p a s s a rin h o ...”;
M AS O G U E É M E S M O "G R A M Á T IC A "? 27

adversativas: “M ário pediu e foi dar alpiste para o


passarinho. M as ele colocou a comi­
da e deixou a portm ha aberta...”, “João
■ foi ver se tin h a com ida para o pas­
sarinho e não tin h a ”,
etc.
A lém disso, o aluno já m anipula diferentes re ­
cursos expressivos, com certa habilidade estilística,
como quando assinala com ênfase as tentativas de “ca­
ta r o passarinho”:
Até que um dia ele tentou muito, mas muito, que ele acabou
catando o passarinho,

ou quando expressa em dois discursos diretos e abrup­


tos a pequena m alandragem de M ário e de João:
— Desculpa que foi sem querer,
— Agora, vai você pegar.

N ão precisam os alongar m uito esta análise para


entender o que significa, neste contexto, “saber gra­
m ática”, dom inar os princípios e regras pelos quais se
constroem as expressões de sua língua. N este particu­
lar, o aluno da redação (l) exibe um controle de sua lín ­
gua e de sua gram ática m uito superior ao da aluninha
da redação (2). Em parte p o r isso m esm o, ele tam bém
estru tu ra m uito m elhor o seu texto, am arrando hem
os dois conflitos (com o passarinho e com o irm ão)
que ele resolve divertidam ente afinal.
[Isto não significa, necessariam ente, que a aluna
da redação (2) tivesse um m enor dom ínio de sua gra­
m ática. Talvez ten h a sido levada a fazer um a hipótese
estereotipada do que seja um “texto” e se conteve nos
clichês e n a série de oraçõezinhas justapostas. O alu­
28 M AS O Q U E É M ESM O “ G R A M Á T IC A "?

no é m ais independente ou, como nos disse su a pro­


fessora: “Iiüi! U m diabo!”].

2 .3 . A concepção de gram ática que estam os des­


crevendo não ignora, como n as anteriores concepções,
os problém as da variação lingüística. É claro que se
reconhecem as diferenças en tre a m odalidade culta
escrita e a m odalidade coloquial. H á, no entanto, de­
sacordos profundos de conceituação e de atitude.
I o. N o novo ponto de vista, deve-se reconhecer a
existência de princípios e regras tan to em um a como
em o u tra m odalidade. Vamos exem plificar com as re ­
gras de concordância nom inal.
N a gram ática que determ ina a m odalidade culta,
todos sabem os que a m arca de pluralidade se estende
ao núcleo nom inal do sintagm a e a seus adjuntos-adje-
tivos. Por isso dizem os e escrevem os, obedecendo à re­
gra de concordância:
Os .dois irmãos espertos...

N a gram ática que preside a construção das ex­


pressões n a m odalidade coloquial considerada, as coi­
sas se passam de o u tro m odo, mas não sem regras.
Vamos m arcar com um asterisco as expressões que
não seriam aceitas nem pela com unidade que fala como
nosso aluno escreve, para com pará-las com a expres­
são de pluralidade p o r ele utilizada:
a) Os dois irmão esperto
b) * O dois irmãos esperto
c) * O doisirmão espertos
d) * O dois irmãos espertos

Observa-se que, em um sintagm a nom inal comple­


xo, a m odalidade coloquial se contenta em assinalar
MAS O QUE É M ESM O “ G R A M A T IC A ” 7 29

morfologicamente a pluralidade em um só de seus cons­


tituintes (sem considerar a pluralidade inerente de ‘dois’).
Nisso ele se distingue claram ente da modalidade culta.
M as tam bém se seguem “regras”; não é qualquer consti­
tu in te que pode receber a m arca de pluralidade; esta
incide, praticam ente sem exceções, sobre o prim eiro
determ inante compatível com essa m arca.
P or isso, das quatro expressões acim a, som ente
(a) — *os dois irm ão esperto7— está autorizada pela
gram ática do aluno; (b), (c) e (d) seriam não-gram ati-
cais nessa m esm a gram ática.
E star em desacordo com -a regra gram atical não
significa, pois, ser um a expressão excluída p o r não
co rresp o n d er a um a “no rm a-p ad rão ”, de n a tu re z a
social, m as ser excluída pela gram ática lingüística do
falar próprio de um a com unidade.
2o. No dom ínio da gram ática de um a outra lín ­
gua ou de um a m odalidade de língua diferente daque­
la a que teve acesso, a criança não depende de um apren­
dizado externo, m ediante a form ulação explícita de
norm as e regras a serem seguidas. Ao contrário, de­
pende, sobretudo de um a atividade lingüística diver­
sificada, que perm ita à criança te r acesso a novos m o­
dos de dizer e a outros recursos expressivos equiva­
lentes aos de sua linguagem .
A ssim , o objetivo fundam ental da escola em le­
var a criança a dom inar tam bém a m odalidade culta-
escrita de sua língua se realiza, principalm ente, ofere­
cendo-se à criança condições, instrum entos e ativida­
des que a façam te r acesso às form as linguísticas dife­
renciadas e operar sobre elas.
30 M AS O Q U E É M ESM O "G R A M Â T 1 C A "7

Isso é que leva a propor, para as prim eiras séries


do ensino fundam ental, um a ênfase especial em dife­
ren tes atividades linguísticas (orais, escritas, de pro­
dução e leitu ra de textos, ou m esm o outros exercícios
que a im aginação construa) em que os princípios e re ­
gras da m odalidade culta ou padrão se evidenciem e
se com parem com os da m odalidade coloquial.
3o. A concepção de linguagem e gram ática, que ago­
ra consideram os, tem bases fortem ente hum anistas: todo
homem, sejam quais forem suas condições, nasce dotado
de um a faculdade da linguagem, como parte de sua pró­
pria capacidade e dignidade hum anas. M esmo que res­
tem m uitos pontos obscuros quanto à natureza e exten­
são dessa faculdade, isso significa que, sem distinção, todas
as crianças desenvolvem um a gram ática interna,
Fica excluída, assim , toda valoração de um a lín ­
gua ou m odalidade de língua em relação a o u tra e qual­
quer form a de discrim inação preconceituosa da m o­
dalidade popular.
N ão faz sentido contrapor um a linguagem erudi­
ta a um a linguagem vulgar, nem ten ta r su b stitu ir um a
pela outra. T rata-se de levar a criança a dom inar um a
outra linguagem , p o r razões culturais, sociais e políti­
cas bastante justificáveis.
4o. N ão se pretende, adotando-se esta nova pers­
pectiva, que a gram ática in te rn a se to m e im ediata­
m ente operacional. Seria ignorar o desenvolvim ento
tem poral, rápido, em bora, da linguagem .
Ao contrário, deve-se diagnosticar a nível de deta­
lhe a realidade linguística de nossos alunos, o estágio
em que se encontram p ara levá-los a am pliar suas ex­
periências linguísticas e suas hipóteses gram aticais; para
M AS 0 Q U E É M ESM O "G R A M Á T IC A "? 3 1

fazê-los dispor não som ente de um a gram ática passiva,


m as de um a gram ática cada vez m ais rica e operativa.
Q uerem os dizer que, além de u m trabalho gra­
m atical que ofereça à criança as condições de dom ínio
da m odalidade culta, existe um trabalho contínuo e
persistente a ser feito para que ela am plie o conjunto
dos recursos expressivos de que dispõe para a produ­
ção e com preensão dos textos.
Lem brem os: o processo de ativação ou constru­
ção dessa gram ática é um processo de am adurecim en­
to. Q uanto se tem a fazer, p o r exem plo, p a ra que a
aluna da redação (2) perca as. inibições e opere com
procedim entos m ais complexos e diferenciados de cons­
trução de suas expressões.

2.4. É preciso distinguir, ainda, com m uito cuida­


do, o sentido de “gram ática interna” do sentido de “gra­
m ática”, construção teórica dos gram áticos e linguistas.
Neste caso, como já vimos antes ao falar da gramáti­
ca descritiva, trata-se de construir um sistema de noções e
um a metalinguagem que perm itam falar da linguagem e
descrever (ou explicar) os seus princípios de construção.
Isto é, trata-se de um trabalho analítico e reflexivo sobre a
linguagem e da construção teórica de um “modelo”, de
um a representação da estrutura da linguagem e de seu
funcionamento. Uma atividade metalingüística.
No caso da gram ática interna, trata-se de um siste­
m a de princípios e regras que correspondem ao próprio
saber lingüístico do falante: ele se constrói n a atividade
linguística e n a atividade linguística se desenvolve.
Têm razão, pois, os que afirm am que estudar esta
gram ática dos gram áticos e lingüistas não co ntribui
32 ' M AS O Q U E t M E S M O “ G R A M Á T IC A ” ?

em quase nada p a ra o am adurecim ento e desenvolvi­


m ento da linguagem oral ou escrita de nossos alunos.
Talvez se pudesse p e n sar em um proveito in d ireto ,
em períodos bem m ais avançados de construção do
texto, quando esta se to rn a um trabalho de reestru tu ­
ração e recom posição.
Isto não exclui o interesse pelo aprendizado des­
sa gram ática, enquanto ciência de um aspecto da lin ­
guagem, em m om entos m ais avançados da escolarida­
de. Como em outras áreas de investigação e conheci­
m ento, pode-se antecipar ao aluno de prim eiro e se­
gundo graus o exercício sobre um cam po que m ais ta r­
de escolham para sua especialização.
Pelo m enos, um a coisa é certa; os professores de­
vem conhecer e m uito bem esta gram ática. N ão, neces­
sariam ente, para ensiná-la a todo custo aos seus alunos
infantes. M as para usá-la como instrum ento analítico e
explicativo da linguagem de seus próprios alunos.
(Pensem , p or exem plo, que não poderiam os pro­
d u zir sequer este texto desconhecendo a gram ática
neste últim o sentido.)
H á, portanto, um a grande diferença en tre o que
o professor ensina (e as atividades de linguagem e de
gram ática que coordena) e o que ele deve saber, em
m atéria gram atical:
— deve saber m uito bem a gram ática da m odali­
dade culta;
— deve saber com preender a gram ática da m o­
dalidade de seus alunos (e todas as questões
relativas à variação linguística);
— deve dispor de um bom aparelho descritivo
(pelo m enos o que nos oferece a gram ática tra-
M AS 0 QUE É M E SM O “ G R A M Á T IC A "? 33

dicional) p a ra ser capaz de an alisar expres­


sões nessas diferentes m odalidades, com pará-
las, identificar os seus contrastes e, eventual­
m ente, discorrer sobre tudo isso,
Voltamos um pouco para nossas questões iniciais.
Pelo que vim os, um a certa m aneira de conceber “gra­
m ática”, “gram atical", “saber gram ática” tem tudo a
ver com texto e com discurso. Precisam os retom ar esses
estudos. Sobretudo o professor.

F onte do t e x t o
"Mas o que é mesmo “gramática’'?” São Paulo: Secretaria da Educação/
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas - CENP, 1991.

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