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Eugénio Onéguin

Romance em Verso
Relógio D' Água Editores
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Título: Eugénio Onéguin


Título origi nal: Evguéni Onéguin (1833)
Autor: Aleksandr Púchkin
Tradução (a partir do russo): Nina Guerra e Filipe Guerra
Revisão de texto: Ana Matoso
Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com)
sobre Duelo de Onéguin e Lênski (1899), de Ilya Repin

©Relógio O' Água Editore s , Outubro de 2016

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Publ icado com o apoio do lnstitute for Literary Translation (Rússia).

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ISBN 978-989-641-629-4

Composição e paginação: Relógio O' Á gua Editores


Impressão: Europress
Depósito Legal n.": 416743116
Aleksandr Púchkin

Eugénio Onéguin
Romance em Verso

Tradução de
Nina Guerra e Filipe Guerra

Clássicos
Preâmbulo

Aleksandr Púchkin (1799-1837) - poeta , escritor, dramaturgo,


criador da língua literária russa moderna, é para os russos o mes­
mo que Shakespeare para os ingleses, Dante para os italianos,
Cervantes para os espanhóis, Camões para os portugueses .
Nasceu em Moscovo e pertencia , por parte do pai, à antiga li­
nhagem dos Púchkin; e, por parte da mãe , era bisneto do africano
Abram Hannibal, afilhado e educando do imperador Pedro, o
Grande .
Em 1811- 1817, estudou no Liceu de Tsárskoe Seló, escola de ele­
vado nível de ensino, destinada à formação de altos .funcionários
públicos . Foi aqui que o seu talento se revelou e se desenvolveu .
Depois do Liceu, Púchkin serviu no Ministério dos Negócios Es­
trangeiros . Tinha muitos amigos entre os membros de sociedades
secretas (futuros dezembristas), lia-lhes as suas poesias com subs­
trato de livre-pensamento . Em 1820 foi publicado o seu primeiro
grande poema, Russlan e Liudmila. Na Primavera do mesmo ano,
foi despedido do serviço e por pouco não foi exilado para a Sibéria
ou para as ilhas de Solovki(devido aos epigramas escarnecendo do
arquimandrita Fóti e do próprio imperador Alexandre 1). Porém,
graças à protecção de alguns amigos influentes, foi apenas transfe­
rido de serviço, para Kichiniov. Em Kichiniov, e depois em Odessa,
viveu até 1824 . A sua poesia, inclusivamente os poemas românticos
(O Prisioneiro do Cáucaso , Vadim , Os Irmãos Bandidos, A Fonte de
B akhtchissarai ,'Os Ciganos), teve grande êxito entre o público lei­
tor. Em 1824, sofreu mais uma punição por parte das autoridades:
foi exilado para a sua herdade de Mikháilovskoe, na província de
Pskov. Esses dois anos passados na aldeia, longe do bulício da vida
mundana , foram muito frutíferos: o poeta criou cerca de cem poe­
sias, dois poemas grandes, a tragédia Boris Godunov, e continuou
a escrever Eugénio Onéguin .
Em Setembro de 1826, foi chamado a Petersburgo para uma au­
diência com o novo imperador, Nicolau 1. Depois da audiência,
Púchkin obteve a protecção suprema : Nicolau reservou para si o
direito de ser o censor do poeta .
Em Outono de 1830, passou três meses em Bóldino, herdade que
lhe foi oferecida pelo pai . Durante este famoso « Outono de Bóldi­
no» , considerado o auge da sua obra, escreveu Novelas de Bélkin,
Pequenas Tragédias, os últimos capítulos de Eugénio Onéguin e
muitas outras obras .
Em 183 1, Púchkin casou-se com Natália Gontcharova .
Em Janeiro de 1833, foi eleito membro da Academia Russa . No
mesmo ano, o imperador concedeu-lhe o título inferior de cortesão ,
o de Kammerjunker; foi para o poeta uma grave ofensa, porque
este título era dado normalmente aos jovens nobres imberbes. Pas­
sado um ano , Púchkin pediu demissão, mas foi obrigado a ficar no
serviço para não perder o acesso aos arquivos, indispensável para
as suas investigações históricas . Em 1836, fundou o almanaque
Sovreménnik, em que se publicavam obras de A . Turguénev, N. Gó­
gol, V. Jukóvski, P. Viázemski .
No Outono de 1836, Púchkin vivia num estado extremamente
deprimido . Para tal havia bastantes razões : dívidas cada vez mais
elevadas, dificuldades no trabalho editorial, desentendimento com
os parentes por causa da herança da sua mãe . As intrigas organi­
zadas por Heeckeren, embaixador holandês, e o comportamento
indecoroso de D 'Anthes, enteado deste , que cortejava a esposa do
poeta , foram a última gota . Púchkin desafiou o seu ofensor para um
duelo , que se realizou em 27 de Janeiro de 1837 . O poeta foi mor­
talmente ferido e, em 29 de Janeiro, morreu.

O Romance em verso Eugénio Onéguin é considerado a mais no­


tável obra de Aleksandr Púchkin . No início, era publicado em fascí­
culos, por capítulos, à medida que eram escritos; na íntegra, foi pu-

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blicado pela primeira vez em 1833, e a segunda edição saiu pouco
tempo antes da sua morte, em 1837. Durante o processo de publica­
ção, Púchkin retirava algumas estrofes (indicando o que omitia com
os respectivos números), o que foijeito por várias razões, inclusiva­
mente pela antecipação dos ataques da censura . Este último motivo
levou-o a retirar «A Viagem de Onéguin» (que inicialmente devia ser
o oitavo capítulo do romance) e a refazer ainda algumas estrofes e
versos .
Púchkin começou a escrever o seu romance em verso em Maio de
1823, em Kichiniov, e em Setembro já acabara o primeiro capítulo
e quase todo o segundo. Partindo de Odessa, em Julho de 1824,
para a sua herdade Mikháilovskoe, já levava consigo metade do
terceiro capítulo.
O primeiro capítulo foi publicado em Fevereiro de 1825 em Pe­
tersburgo, sendo acompanhado por um pequeno prefácio do autor,
em que escreve : «0 primeiro capítulo( . . .) apresenta uma descrição
da vida mundana de um jovem senhor petersburguense ( . . . ) e lem­
bra o Beppo, obra irónica do sombrio Byron .»
O segundo capítulo saiu do prelo em Outubro de 1826, o terceiro
em Outubro de 1827, o quarto e o quinto em Janeiro de 1828, o
sexto em Março do mesmo ano . Em Março de 1830,joi publicado
o sétimo capítulo . Tencionando publicar conjuntamente os últimos
dois capítulos («A Viagem» e «A Alta Sociedade»), Púchkin escre­
veu para eles um longo prefácio, em que respondia aos críticos que
receberam com hostilidade o sétimo capítulo de Onéguin . Esta hos­
tilidade pareceu-lhe «estranha depois dos louvores desmedidos e
não merecidos às primeiras seis partes da mesma obra » . O argu­
mento da crítica consistia em que «O século e a Rússia progridem,
mas o poeta marca passo». Púchkin respondeu : «Se o século pode
avançar, se as ciências, as filosofias e o civismo podem aperfeiçoar­
-se e mudar, a poesia continua na mesma, não envelhece nem muda .
A finalidade e os meios da poesia são sempre os mesmos . E enquan­
to os conceitos, as obras e as descobertas dos grandes representan­
tes da astronomia, da física, da medicina e da filosofia antigas
envelhecem e são, todos os dias, substituídos por outros , as cria­
ções dos verdadeiros poetas permanecem jovens e eternamente
frescas . . . »

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Contudo, Púchkin acabou por desistir de incluir «A Viagem de
Onéguin» no corpo do romance . O motivo desta decisão, na opinião
do crítico literário P. Katénin, foi o risco que o poeta correria se
publicasse esta parte do romance cheia de invectivas, muito direc­
tas, contra certos lados negativos da realidade russa . Na edição
completa do romance, de 1833, «A Viagem» foi inserida na última
secção, e só emjragmentos .
No entanto, em 1830 Púchkin escreveu algumas estrofes de mais
um capítulo(o décimo), queimado mais tarde pelo próprio. De acor­
do com alguns documentos da época, o poeta falava nesse capítulo
na revolta de Dezembro de 1825 . Antes de queimar o manuscrito,
Púchkin cifrou-o em várias folhas . Em 1910, uma destas folhas, con­
tendo apenas os primeiros quartetos de várias estrofes,joi encontra­
da e decifrada por P. Morózov, investigador da obra de Púchkin .
O romance foi organizado em capítulos formados por estrofes
(cerca de 50 por cada capítulo), as chamadas «estrofes de Oné­
guin » , de 14 versos jâmbicos de quatro pés, com rimas cruzadas no
primeiro quarteto, rimas emparelhadas no segundo, rimas interpo­
ladas no terceiro e um dístico final. Tanto a métrica como a rima,
fluidas e sem rigores nem esmeros forçados, criam a estrutura fóni­
ca ideal para enquadrar o que o poeta quer transmitir, e Eugénio
Onéguin não seria o mesmo nem transmitiria o mesmo sem estes
dois apoios formais . A presente tradução procura assim manter uma
métrica e uma rima o mais próximas que nos foi possível da música
que enforma o poema .
A afirmação dos «estilos» variados de que se serve o poeta, como
o próprio aponta na Dedicatória, na sua forma de dizer concisa e
clara , é a pura das verdades: «aceita , indulgente, estes / capítulos
assim variegados, / ou meio jocosos ou meio tristes, / em fala vulgar
ou em tom elevado . . . » .
Eugénio Onéguin apreende-se desde as primeiras estrofes como
uma sátira, nunca violenta ou gratuita, mesclada de tristezas . A
ironia (e a auto-ironia) da sua linguagem apelam à inteligência e
ao espírito crítico do leitor.
A ligeireza da sua fala, que permite uma leitura fácil e sem tensão,
combina-se com uma grande profundidade de ideias, exprimidas
sempre como que a brincar, com uma enorme abrangência na descri-

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ção da realidade - pessoas, lugares, estações do ano, actividades,
costumes, vida cultural, etc . Diz Andrei Siniávski, crítico literário
russo, no seu livro Passeios com Púchkin: « Uma ligeireza - é a im­
pressão que nos produzem as suas obras, a sensação geral e instan­
tânea . (. . .) Mal ele apareceu na poesia, a crítica falou da "fluência e
ligeireza extraordinárias dos seus versos", de que "eles, aparente­
mente, não lhe custaram trabalho nenhum".» E sobre a variedade
dos temas: « Todos os temas lhe eram acessíveis como as mulheres e,
percorrendo-os, abriu caminhos às letras russas para muitos séculos
futuros .» A maneira desembaraçada da narração, os saltos inespera­
dos de um tema para outro, o modo de o poeta se desviar da sequên­
cia dos acontecimentos para reflexões ou recordações que, aparente­
mente, não têm nada que ver com o enredo principal, comunicam ao
texto um carácter dinâmico, o tom e o ritmo de correria ou de voo;
por vezes, uma simples enumeração de objectos (por exemplo, vistos
do coche em movimento) cria uma impressão tão forte de velocidade
que o leitor se sente a viajar em tempo real: «Relampejam guaritas,
estancos, / mulheres, garotos e as avós, / vendas, cossacos, hortas,
trenós, / mercadores de Bukhará, mosteiros, / palácios, jardins, vastos
ferreiros, / comerciantes, cabanas, mujiques, / torres, bulevares, lam­
piões, / varandas, leões nos portões, / tascas, casas de moda, boti­
cas . . . » «A realidade media-se com as listas de objectos cantados . ( . . . )
Nos escritos de Púchkin, vive a alegria primeva da nominação do
objecto, transformando-o em poesia apenas pelo chamamento mági­
co» , diz Siniávski . E mais:
«A meticulosidade nos pormenores servia-lhe de acompanha­
mento à envergadura do plano geral. ( . . .) A ilusão da plenitude é
alcançada , mencionando os pormenores ínfimos, insignificantes, do
ambiente . ( . . .) Em Eugénio Onéguin, não faz outra coisa a não ser
esquivar-se das obrigações do narrador. O romance é composto de
esquivas que desviam a nossa atenção do campo da página poética
e não deixam que o enredo se desenvolva .»
«0 pensamento da estrofe de Onéguin não se movimenta para
frente, mas pela diagonal em relação ao curso escolhido . . . »
« . . . Púchkin, tanto nos gestos como no estilo, guardava ainda
hábitos aristocráticos e acreditava na hierarquia dos géneros . Pre­
cisamente por isso a violava . Nunca teria escrito Eugénio Onéguin

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se não soubesse que não se podia escrever assim . Os seus prosaís­
mos, a descrição do quotidiano, as trivialidades, a fala popular
construíam-se, em grande parte , como uma técnica proibida, desti­
nada a escandalizar o público.»
«Mesmo em loucura , conhece a medida que se chama bom gosto
e que aprendeu numa escola perfeitamente organizada, a natureza .»

Organização do volume:

Este volume contém as notas do próprio Púchkin, apensas ime­


diatamente a seguir ao poema, com as respectivas chamadas mar­
cadas no corpo do texto (por números) .
Contém notas de rodapé (poucas), com a tradução de palavras e
expressões estrangeiras ao russo ou ao português, assinaladas com
um*.
Inclui ainda «Fragmentos da Viagem de Onéguin» e, no final do
livro, « Comentários» , dos tradutores, sem marcação de chamada
no corpo do texto, mas com a indicação do capítulo e da estrofe .

Os tradutores

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Eugénio Onéguin
Romance em Verso
Pétri de vanité il avait encare plus de cette espece
d'orgueil quijait avouer avec la même indif.férence les
bonnes comme les mauvaises actions, suite d'un sentiment
de supériorité, peut-être imaginaire.
Tiré d ' une lettre particuliere *

Não quero divertir-te , escol soberbo ,


mas pelo gosto e em penhor da amizade ,
desejaria em tom menos acerbo
outra oferenda mais digna aqui doar-te ,
a mais digna da tua alma nobre ,
tão cheia daquele sonho sagrado,
de poesia viva, clara e sóbria,
de alta ideia e de simplicidade;
nada a fazer - aceita , indulgente , estes
capítulos assim variegados ,
o u meio jocosos o u meio triste s ,
e m fala vulgar o u e m tom elevado ,
fruto leviano do passatempo ,
da insónia, da leve inspiração ,
do imaturo , e do murcho , tempo ,
de um frio exame da razão ,
das marcas dolentes no coração .

* Cheio de vaidade, tinha ainda em maior grau essa espécie de orgulho que leva a con­
fessar com a mesma indiferença tanto as boas como as más acções, consequência de um
sentimento de superioridade, talvez imaginário.
Extraído de uma carta particular.
PRIMEIRO CAPÍTULO

Tem pressa de viver, tem pressa de sentir.


Princ. Viázemski

I
«Meu tio , homem honrado e direito ,
quando caiu seriamente enfermo ,
exigiu para com ele o respeito
- uma óptima ideia, há que dizê-lo .
O seu exemplo é ciência de vida,
mas , Deus meu , que maçada imerecida
ficar noite e dia junto ao doente
sem arredar o pé por um instante !
E que perfídia ignóbil , que tormento
amimar o meio morto , diverti-lo ,
ajeitar-lhe almofadas , isto e aquilo ,
dar-lhe com tristeza o medicamento ,
suspirar e desejar com enfado:
guarido te leva daqui o diabo?»

II
Assim pensava estouvadamente
o moço no carro envolto em poeira ,
e pela graça de Zeus omnipotente
de todos os parentes o herdeiro .
Amigos de Russlan e Liudmila!
Apresento-vos já sem mais aquela
nem perda de tempo , de relance ,
'
o preclaro herói do meu romance :
Eugénio Onégui n , meu bom amigo ,
dado ao mundo nas margens do Nevá,
onde igualmente o meu leitor quiçá
tenha nascido , brilhado , e onde vos digo
que também outrora me passeei .
O norte a mim, contudo , não cai bem'.

III
Seu pai , perfeito e nobre no serviço ,
afogado em dívidas permanentes ,
dava três bai les por ano e com i sso
foi ao fundo e arruinou-se finalmente .
Protegia a Onéguin o destino:
tratou dele uma Madame em menino,
depois um Monsieur em seu lugar.
O moço era traquina, mas bom de amar.
Monsieur l 'abbé, cómoda personagem,
para não extenuar muito o miúdo ,
não via nos estudos dele uma virtude
nem nas moralizações grande vantagem .
Dava só um ralho meigo à traquinada
e ao Jardim de Verão em passeio o levava.

IV
E quando a juventude inquieta chega
e para o meu Onéguin se insinua
o tempo de esperança e terna tristeza ,
puseram Monsieur no olho da rua .
E e i s o meu Onéguin à rédea solta;
cabelo à ultima moda , a roupa
de figurino como dandy2 londrino -
e ele a entrar por fim no meio fino .
Saem-lhe perfeitas a conversação

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e a escrita em língua francesa;
solta-se-lhe a mazurca com ligeireza ,
e a expedita vénia na perfeição ;
que mais querem? Delibera a sociedade:
é um querido , de alta sagacidade .

V
Todos estudámos mais ou menos
alguma coisa e de qualquer jeito ,
e entre nós é fácil , convenhamos,
brilhar pela instrução com belo efeito .
Onéguin era, no parecer de muitos
(juízes severos e resolutos) ,
rapaz erudito mas afectado:
num colóquio despreocupado
tinha o engenho feliz, espalhado a esmo ,
de aflorar pela rama todo o assunto ,
ou , com ar de conhecedor sisudo ,
no alto debate manter o mutismo
e de incitar o sorriso das damas
ao fogo de súbitos epigramas .

VI
A língua latina hoje em dia
passou de moda, muito caducada;
no entanto , verdade seja dita ,
o latim de Onéguin chegava
para umas epígrafes traduzir,
sobre o Juvenal discutir,
para apor o vale no fim da carta,
e dois versos da Eneida, que maltrata ,
também sabe de cor. Tocante à história,
ao pó cronológico do cronicão
da nossa terra dizia não;
mas guardava bem firmes na memória
as peripécias menores de antigamente ,
desde Rómulo até ao presente .

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VII
Sem a alta paixão de não poupar
a vida pelos sons , não distinguia
o coreu do jambo , apesar
dos nossos esforços dia após dia.
Maldizia Teócrito , Homero;
mas lia Adam Smith , claro ,
versado que era em economia ,
o u seja, arengar e l e sabia
sobre como um Estado enriquecer,
do que viver e por que circunstância
o ouro não lhe causará carência
se tem o produto simples em seu poder.
O pai não compreendia tais regras
e punha em hipoteca as suas terras .

VIII
Para enumerar tudo o que Eugénio
sabia ainda , não chega o tempo ;
no que ele era um verdadeiro génio ,
a ciência que regia a contento ,
melhor do que toda outra ciência,
desde jovem seu tormento e delícia,
labor de sempre que o libertava
da sua preguiça angustiada -
era a da terna paixão , a enaltecida
por Ovídio , o da vida em tormenta
e em luz que por paixão se ausenta
e em sofrimento finda a vida
na estepe moldova desolada
longe da sua Itália amada.

IX

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X
Que cedo aprendeu a hipocrisia,
a calar uma esperança, fingir ciúme ,
obrigar a acreditar, dissuadir,
dar-se o ar de quem sombrio se consome
de tristeza , inventar-se obediente ,
orgulhoso, atento ou indiferente !
No seu silêncio , quanto langor,
na sua eloquência, tanto ardor,
nas suas cartas , que descuido esforçado !
Respirando um só ar, só esse amando ,
como sabia ir-se de si esquecendo !
Que púdicas miradas , ou ousadas ,
que fugaz e temo olhar onde em seu dia
uma lágrima obediente luzia!

XI
Em mostrar-se novo fazia gala,
e a inocência turvava: sabia
com desespero ensaiado assustá-la ,
diverti-la com a lisonj aria ,
vencer com o coração e a mente
os preconceitos da idade inocente ,
agarrar-lhe o instante de ternura,
o mimo impensado que ele captura
para a rogar, lhe exigir que confesse .
Assim persegue o amor, do coração
colhe finalmente o primeiro som ,
e o encontro secreto acontece . . .
Lá fica a sós com ela e depois
no silêncio escuro dá-lhe lições !

XII
De coquetes famosas , desde cedo
desinquietava corações vários !
E quando o assediava o mau vezo
de arrasar os seus adversários ,

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que vozes levantava, viperinas !
Que logros lhes montava, que armadilhas !
Vós , tranquilos maridos , no entanto ,
a amizade com ele fostes mantendo:
tanto o ameigava o rodado esposo ,
discípulo antigo de Faublas ,
como o velho , embora desconfiasse ,
e também o corno manso majestoso ,
consigo próprio sempre sati sfeito
e com o almoço e a esposa e o leito .

XIII , XIV

XV
É frequente estar ainda no quente ,
já lhe trazem bilhetinhos à cama .
É o quê? Convites? Exactamente:
em três casas à noite , o dever chama .
Numa baile , noutra festa infantil .
Que escolhes , meu traquina, onde irás?
Vais começar por onde? Oh , tanto faz:
qual o problema, ir a uma, ir a mil ?
Sob a s largas abas d o bolivar3
Onéguin sai para já ao bulevar
onde , em fato de passeio, respira
o bom ar livre enquanto espera
que o seu fiel breguet* insonioso
lhe anuncie a hora do almoço .

XVI
Escureceu já; senta-se no trenó .
«A trote , eh , cuidado , gente ! » - brada .

* Breguet (do nome do seu fabricante , o francês Abraham-Louis Breguet) é um relógio

de luxo com alarme sonoro.

22
Cintila a sua gola de castor,
pela geada de prata salpicada .
Corre ao Talon4 e sabe que não erra
prevendo o Kavérin ali à espera.
Mal entra já salta ao tecto a rolha
e o champanhe do cometa jorra;
o roast-beef em sangue à sua frente ,
trufas , do jovem tempo a delicadeza
e a melhor flor da cozinha francesa;
eterno , o pâté de Estrasburgo entre
um certo queijo vivo limburguês
e o fresco , dourado ananás .

XVII
A sede pede mais copos para regar
a gordura da costeleta quente ,
mas já soa o breguet a anunc iar
a estreia do bailado - é urgente .
Em teatro , legislador implacável ,
adorador inconstante e volátil
de suas actrizes encantadoras ,
emérito cidadão dos bastidores ,
voa o veloz Onéguin ao teatro
onde cada um, se lhe dá no goto ,
para apupar um entrechat está pronto ,
vaiar Cleópatra e Fedra sem recato
e pra chamar Moína ao palco vozeia
(só para ser ouvido na plateia) .

XVIII
Mágico reino ! Ali brilhou , noutro tempo ,
Fonv ízin , da liberdade o cultor,
da sátira o corajoso portento ,
e Kniajnin , o imitador;
Ali , Ó zerov partilhou por tabela
as lágrimas e aplausos que ela,
a jovem Semiónova, ganhou;

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ali , Katénin ressuscitou
o génio de Corneille sublime ;
ali , Chakhovskói deu soltas rédeas
ao seu ruidoso enxame de comédias ,
ali teve Didelot sua coroa insigne ,
ali , ali , à sombra dos bastidores ,
corriam meus dias jovens , meus amores.

XIX
Como estais? Onde estais , deusas minhas?
Esta minha voz tão triste ouvis?
Sois as mesmas? Ou outras mocinhas
vos renderam , ó insubstituíveis?
Tornarei a escutar vossos corais ,
a alma em voo não verei mais
da Terpsícore russa bailando?
Ou os meus olhos tristes desde quando
não encontram no palco enfadonho
os rostos familiares e diviso
gente alheia c' o óculo desiludido
e, indiferente à alegria , ponho
um bocejo mudo e magoado
e recordo os dias do passado?

XX
Teatro cheio , as frisas brilham como dia;
tudo ferve , poltronas e plateia;
palmas impacientes na galeria,
o pano farfalha ruidoso , ondeia.
Meio etérea, resplandecente ,
ao violino mágico obediente ,
por uma nuvem de ninfas rodeada,
eis que a lstómina é chegada;
com um pé o chão do palco tocando ,
gira o outro suave, lentamente ,
e logo um salto , e voa de repente

24
- penugem ao sopro d ' É olo planando ;
ora espirala, ora endireita o corpo ,
os pés batendo céleres um no outro .

XXI
Atroar de palmas . Onéguin entra ,
passa entre as filas , pisa alguns pés ,
vê nas frisas damas novas em que atenta
apontando-lhes o óculo de viés ;
passou pelos balcões um olhar desenganado ,
viu tudo e não ficou nada agradado
com as caras , com as toilettes;
com os homens trocou vénias correctas
para todos os lados, depois olhou
distraidamente para o tablado ,
torceu a cara, bocejou de enfado ,
e a si próprio disse: «Acabou !
Tempo demais com balés , com teatro ,
até já do Didelot estou farto .»5

XXII
Cupidos , serpentes e diabos
inda saltam no palco , se alvoriçam;
inda dormem os lacaios cansados
junto à entrada, sobre as peliças ;
ainda não se parou de patear,
assoar, tossir, aplaudir, vaiar;
por todo o lado a festa não finda,
dentro e fora os lampiões brilham ainda;
cheios de frio , ainda os cavalos
patejam , se fartam dos arreios ,
e à volta das fogueiras os cocheiros
maldizem os amos com as mãos aos estalos . -
Mas Onéguin já bateu com a porta.
Saiu para casa, mudar de roupa.

25
XXIII
Vej amos se pinto um quadro real
daquele solitário gabinete
onde o discípulo da moda exemplar
se veste , se despe e se reveste .
Tudo o que a Londres perfumosa
vende para a fantasia faustosa
e pelas ondas bálticas nos encaminha,
em troca da madeira e do toucinho;
tudo o que o gosto de Paris inova
- negócio útil nunca saciado -
com vista ao luxo requintado
e à esmerada fru ição da moda -
tudo isso que ali contemplamos
é do filósofo de dezoito anos .

XXIV
Cachimbos de Tsaregrad ambarinos ,
na mesa bronzes , porcelanas ao lado
e, suprema del ícia dos sentidos,
perfumes no cristal facetado;
pentes , limas de aço , tesourinhas ,
ou direitas ou curvas , se alinham ;
escovas de trinta tipos diferentes ,
ou para as unhas ou para os dentes .
Rousseau (observo de passagem)
não percebia como Gri mm , tão solene ,
ousou limpar as unhas em frente dele6•
A arrogante , loquaz personagem
defende direitos , liberdade e, em suma ,
neste caso não tem razão nenhuma.

XXV
Pode ser-se homem vál ido e grave
sem descurar a beleza das unhas :
porque negar em vão a modernidade?
Que déspotas são usos e costumes !

26
Era a crítica invejosa, a aleivosia,
que , tal Tchaadáev, mais temia,
daí o ter a roupa em estima alta
e ser o que chamamos um peralta .
Três horas , pelo menos , consumia
em frente dos espelhos e, quando
abandonava o gabinete impando ,
com a Vénus leviana se parecia
depois de a deusa à homem ter trajado
e ir bailar ao baile mascarado .

XXVI
Para vos divertir o olhar curioso ,
podia descrever, sábia alta roda,
a toilette dele e assim dar um esboço
do que é realmente a última moda;
seria, claro , pretensão atrevida ,
mas descrever é o meu modo de vida .
Pantalon, frac e gilet contudo são ,
no russo , termos sem circulação;
vejo a minha culpa e confesso agora:
já sem isso este meu pobre escrito
podia dispensar tanto enfeite bonito
de palavras forasteiras , embora
no passado eu fizesse algum uso
do dicionário académico russo .

XXVII
De momento outro tema se requer:
vamos até ao baile velozmente ,
para onde , num coche de aluguer,
o meu Onéguin está já correndo .
Frente aos prédios de luzes apagadas ,
pela rua sonolenta enfileiradas ,
derramam o seu clarão alegre
e lançam arcos-íris sobre a neve
as duplas lanternas das carruagens;

27
rodeada de tochas , a mansão rutila,
magnificente e , atrás das j anelas ,
vagueiam sombras , fugazes imagens ,
relanceiam silhuetas flutuantes
de senhoras e excêntricos elegantes .

XXVIII
O nosso herói já parou à entrada;
voou como flecha c 'o lacaio à beira
pelo mármore polido da escada ,
ajeitou com a mão a cabeleira .
Entrou . O salão a abarrotar;
a música já cansada de tocar;
entrega-se à mazurca a multidão;
reina o aperto , o alto diapasão ;
o cavaleiro da guarda tine esporas ;
em voo , os pezinhos queridos dançam ;
olhos afogueados que se lançam
no encalço dos pezinhos das senhoras ,
e o rugido dos violinos incomoda
a murmuração das esposas à moda .

XXIX
No tempo da alegria e do desejo,
eu era dos bailes adorador:
para uma carta furtiva não vejo
sítio melhor, ou declarar o amor.
Ó vós , mui respeitáveis esposos !
Aceitai meus préstimos , são vossos ;
nas minhas palavras ponde siso:
cuidado ! - é este o meu aviso .
E vós , mãezinhas , antes que seja tarde ,
vigiai vossas fi lhas com rigor:
apontai o vosso óculo melhor !
Senão . . . ai , senão , que Deus nos guarde !
Se o escrevo , vede em tudo isto o eco
de que eu próprio há muito não peco .

28
XXX
Desgraça ! Folguei tanto , de modo tal -
tantos dias se perdem , a vida foge - ,
que , se não fosse em dano da moral ,
adoraria os bailes ainda hoje !
Gosto da juventude endiabrada ,
da confusão e brilho , da foliada,
do bem pensado adorno feminino ;
seus pés venero; mas já desanimo
de na Rússia ver ao menos três pares
dos finos pés do meu alembramento .
Ah ! Não alcancei durante muito tempo
esquecer dois pezinhos . . . Com pesares ,
nos meus sonhos ainda os apercebo
e o coração bate-me em desassossego .

XXXI
Quando e onde , em que deserto longe ,
vais tu esquecê-los , meu louco? Diz !
Ah , pezinhos, pezinhos ! Andais onde?
Onde pisais as flores primaveris?
Amimados pelo deleite oriental ,
não deixaram pegadas nem sinal
na melancólica neve nortenha:
porventura mais lhes convenha
do tapete macio a sensualidade .
Teria sido há muito que por vós esquecia
as ânsias da fama , da honraria ,
d a terra e dos pais , e a catividade?
A felicidade jovem partiu tão breve
como no prado o vosso rasto leve .

XXXII
Os seios de Diana, as faces de Flora
são adorávei s , amigos , já se vê !
Mas o pezinho de Terpsicore
encanta-me muito mai s , sei lá porquê .

29
É para os olhos uma profecia
de oferenda fina, uma epifania -
tanta beleza solta um enxame
estouvado de desejos . Amiga estreme ,
amo teu pezinho, Elvina, à tua beira,
debaixo do toalhão de mesa largo ,
na Primavera , sobre as ervas do prado ,
no Inverno , no morilho da lareira ,
n o parqué dos salões a brilhar,
nas rochas de granito à beira-mar.

XXXIII
Recordo o mar antes da tempestade :
a inveja que eu tinha das ondas gris
correndo numa fila apressada
para lamberem com amor seus pés !
Ansiava com todos os sentidos
aflorar meus lábios nos pés queridos !
E nem no tempo de mais ebriedade
da minha fogosa mocidade
desejei com anseio parecido
beijar na boca as Armidas ardentes ,
ou as rosas das faces flamejantes,
ou um seio já elanguescido ;
não , nunca ímpeto de paixão tão forte
dilacerou minha alma desta sorte !

XXXIV
Na memória, é outro o tempo que vivo !
É frequente , nos meus sonhos secretos
segurar aquele ditoso estribo . . .
e sentir o pezinho entre os dedos ;
de novo a imaginação ferve , louca,
de novo o sangue , quando o pezinho toca,
reacende meu coração estiolado ,
de novo o amor, do amor a saudade ! . . .
B asta , não vos glorifiquemos mais

30
com a minha lira tagarela, ó altivas ;
vós não valeis as nossas paixões vivas
nem os cantos que nos inspirais .
Vossas palavras e olhos feiticeiros
são como vossos pezinhos: traiçoeiros !

XXXV
Pois bem , e o meu Onéguin? Ensonado ,
depois do baile está a voltar para a cama,
enquanto Petersburgo , já acordado
pelo tambor, infatigável se azafama.
Já a pé o mercador, o bufarinheiro ,
já vai para a sua praça o cocheiro ,
a moça traz de Okhta o leite na bilha,
range-lhe aos pés a neve da manhãzinha.
Ricos sons da manhã! Portadas abrindo ,
fumo azul sobe em volutas , o alemão
da padaria , barrete de algodão ,
pontual , meticuloso e desmentindo
que alguma vez se atrasasse
a abrir o postigo , o seu vasistas* .

XXXVI
Mas o barulho do baile maçou tanto
o nosso filho do luxo e do gozo
que , a manhã em noite transformando ,
dorme em deleite no quarto penumbroso .
À tarde acorda e tem já a vida corrente
del ineada até à manhã seguinte ,
igual e colorida sempre , não contem
que amanhã seja diferente de ontem.
Mas seria Onéguin feliz , seria?
Seria feliz assim livre , na idade em flor,

* Vasistas (fr.) - palavra francesa deturpada, «postigo», germanismo da l íngua fran­


cesa. Ao mesmo tempo , é uma alcunha do alemão na gíria urbana russa (do ai. Was ist
das? - O que é isto?). Aqui , o alemão já abriu várias vezes o postigo , ou seja , vendeu
pão a vários compradores.

31
com brilhantes vitórias no amor
e no meio dos prazeres dia após dia?
Na sua vida em festa serviam de nada
a saúde , a atitude despreocupada?

XXXVII
Não : cedo lhe esfriou o sentimento;
da alta-roda cansou o bulício;
deixaram as beldades de ser centro
da sua ideia constante , seu vício;
das traições se fartou , dos seus apelos;
de amigos e amizade ficou pelos cabelos
pois nem sempre podia alegremente
regar com o champanhe esfuziante
beefsteaks e pâtés de Estrasburgo ,
e metralhar chalaças em cadeia
com a dor de cabeça forte e feia;
ademais , embora brigão-mor do burgo ,
desapaixonou-se afinal das disputas ,
dos sabres , das pistolas e outras lutas .

XXXVIII
Há um mal que fortemente oprime
(não sabemos o que o engendrará) ,
maleita idêntica ao inglês spleen ,
em suma: a melancolia, a russa khandrá,
que se apoderou dele a pouco e pouco .
Graças a Deus não se lembrou , não foi louco ,
de se matar a tiro num dia pior,
mas perdeu pela vida todo o amor.
Qual Childe Harold , melancólico , sombrio ,
penava pelos salões; e nem o jogo ,
nem mexericos mundanos ou o fogo
de um olhar, nem o indiscreto suspiro
o interessavam absolutamente ,
a tudo , tudo , era indiferente .

32
XXXIX , XL , XLI

XLII
Ó senhoras da alta fugidias !
A vós ele abandonou primeiro;
também é verdade que em nossos dias
o bom tom é do tédio prisioneiro ;
haja embora damas que dissecam , e u sei ,
algo de um Bentham ou de um Say,
por norma tarelam insuportavelmente ,
embora numa parlenda inocente;
ainda por cima são tão virginais ,
tão majestosas e tão convencidas ,
de virtude pia tão possuídas ,
tão escrupulosas , tão prudenciai s ,
pondo o s homens a distância tão sublime ,
que basta olhá-las pra apanhar spleen 7.

XLIII
Também vós , belas meninas coquetes ,
que à hora tardia, inconveniente ,
sois levadas nas céleres charretes
por aquela calçada petersburguense ,
fostes por meu Eugénio abandonadas .
Renegando volúpias e noitadas ,
fechou-se Onéguin portas adentro
para , bocejante e lamuriento ,
pegar na pena - mas trabalho a fio ,
com perseverança , é uma maçada
e da sua pluma não saiu nada .
Assim, não caiu no clã, que não avalio,
da gente afoita , onde não falta quem caia,
porque eu próprio pertenço à mesma laia.

33
XLIV
De novo entregue ao ócio lamentável ,
num vazio espiritual que o derreia,
empreendeu - desígnio louvável -
apossar-se da inteligência alheia;
encheu uma estante de livros a eito ,
leu , leu e leu , mas sem proveito:
ou era tédio , ou absurdo , ou falsidade ;
este é desvergonha , aquele é nulidade ;
em tudo , o cilício que não queres;
se o antigo caducou de revelho ,
o novo ainda sonha com o velho ;
deixou os livros como as mulheres,
tapou o pó da estante , resoluto ,
com o véu de tafetá do luto .

XLV
Também eu alijara o fardo mundano
das vaidades , do convencionalismo ,
e fiquei seu amigo naquele ano .
Agradavam-me os seus traços , aquele prisma
da fidelidade involuntária aos sonhos,
sua estranheza inimitável , os escolhos
do seu intelecto frio , escarpado .
Ambos rodados - ele soturno , eu amargo -
no jogo da paixão , hoje dormente ,
a vida a ambos muito estarrecia;
em ambos a chama do amor se extinguia;
ambos tínhamos a maldade pela frente ,
a da Fortuna cega e a dos homens ,
logo na aurora dos nossos dias jovens .

XLVI
Quem muito viveu pensando , não pode
deixar de desprezar os indivíduos;
quem sentiu , nada mais o incomoda
que o fantasma dos dias perdidos :

34
para ele o encanto já não existe ,
a memória é serpente de língua em riste ,
rói o remorso , o arrependimento .
Tudo isso confere no entanto
à conversa um fascínio singular.
A princípio embaraçava-me muito
o modo de Onéguin abordar um assunto ,
a sua forma mordaz de contestar,
mas habituei-me aos acintes, aos brios ,
ao sarcasmo dos epigramas sombrios .

XLVII
Tantas veze s , quando nas noites de estio
o céu por cima do Nevá8 se ergue
transparente , claro , luzidio
e o espelho d ' água, buliçoso , alegre ,
não reflecte o rosto de Diana,
nossa memória liberta encena
aventuras de outrora, amores passados;
e , de novo sensíveis , despreocupados ,
fruímos em silêncio e sem medo
o alento da noite benfazej a !
Como um grilheta dormindo que seja
levado da masmorra ao bosque verde ,
assim voávamos pelo sonho fora
à vida jovem , à sua primeira hora .

XLVIII
A alma cheia de lamento contido ,
«apoiado ao granito» (como o poeta)9 ,
estava o meu Eugénio pensativo ,
no coração da noite quieta .
Tudo silêncio; soavam apenas
os alertas das noctumas sentinelas
e, súbito , o rodar de um coche
na rua Milliónnaia, longe ;
batendo os remos , só uma barcaça

35
pelo rio sonolento prosseguia:
e o som do corno e uma canção bravia
encantavam-nos de longe com sua graça . . .
Mais doce em festas da noite , todavia,
é dos versos de Tasso a melodia !

XLIX
Ondas do Adriático , ó B renta !
Não , hei-de ver-vos , vai chegar a hora,
e com meu estro novo , minha prenda,
ouvirei vossa voz encantatória !
Para o s netos de Apolo é sagrada;
pela altiva lira de Albion cantada -
donde lhe conheço a voz querida .
Vou deleitar em liberdade a vida
com a dourada Itália, luminosa;
com ela, a veneziana donzela,
ou loquaz ou muda, sempre bela ,
na gôndola navegando , misteriosa .
Com ela, meus lábios sorvem com ardor
a l íngua de Petrarca e do amor.

L
Chegará da minha liberdade o tempo?
É hora , vem ! - não canso de invocar;
espero essa hora boa, aceno , lento ,
às velas dos barcos na beira-mar 1 0•
Na tormenta dos mares em fúria, na luta
contra as ondas , perseguindo a rota
do mar livre e duro que sulcarei ,
minha corrida livre quando a farei?
É hora de deixar a terra daninha,
as margens de fastídio abandonar
e , no tempestuoso ar austral ,
suspirar, sob o céu de África minha 1 1 ,
pela Rússia sombria onde amei ,
sofri e o coração enterrei .

36
LI
Onéguin , pronto a rumar comigo
a outros países , foi no entanto
contrariado pelo destino
que nos separou por longo tempo .
Seu pai dera a alma ao Criador.
Um ávido batalhão de credores
cercou Onéguin . Cada um entenderia
as contas como bem lhe conviria,
e Eugénio , à sorte resignado ,
e que detestava as querelas ,
não esteve com mais aquelas :
entregou-lhes os bens , sem mais cuidado .
Ou pressentia , certamente ,
a morte do velho tio doente .

LII
Nem de propósito , o triste recado
do feitor não tardou a surgir:
o tio no leito da morte , coitado ,
e queria vê-lo para se despedir.
Onéguin leu a plangente missiva
e decidiu-se pela mais veloz partida
nos cavalos da posta . E bocejava
antecipadamente já na estrada,
ensaiando , pelo dinheiro à espera,
os suspiros , o tédio , a hipocrisia
(com isto , aliás , meu livro se inicia) ;
mas , chegado à aldeia, eis o que observa:
o tio já estendido na mesa austera ,
como um dom preparado para a terra .

LIII
Viu a casa cheia de apoiantes .
Amigos , inimigos , gente para tudo ,
de belos funerais os amantes
acorriam de todo o lado ao defunto .

37
O morto foi enterrado como convém.
Popes e outros comeram , beberam bem
e despediram-se em solene pose ,
como se assunto sério aquilo fosse .
Eis o nosso Onéguin homem do campo ;
de águas , bosques , terras proprietário ,
embora de seu natural contrário
à ordem , e esbanjador. Entretanto ,
bem feliz por ter mudado , há que dizer,
sua vida antiga por outra qualquer.

LIV
Durante dois dias ainda sentiu
a novidade do campo ameno ,
a frescura do bosque sombrio ,
o murmúrio do riacho sereno;
ao terceiro , bosque , colina, pomar
deixaram de o interessar;
em breve lhe davam sonolência;
depois não viu qualquer diferença
da cidade: tédio aqui , tédio lá,
mesmo sem ruas nem bailes travessos ,
nem jogo de cartas , nem mansões , nem versos .
Esperava-o de emboscada a khandrá
e , nebulosa, corria atrás dele
como uma sombra ou uma esposa fiel .

LV
Nasci para a vida calma na aldeia:
o sonho criador é mais vivo ,
a voz da lira mais se alteia
no ermo recanto esquecido .
Escolhi o lazer inocente - sei
que fiz do far niente a minha lei -
e assim vagueio ao longo do lago .
Acordo todas as manhãs virado
para a liberdade e o sentir doce:

38
leio pouco , durmo muito , não me cativa
correr atrás da fama fugitiva .
Como se no passado assim não fosse ,
quando , à sombra ociosa, nessa idade
vivia meus dias de felicidade !

LVI
Flores, amor, ócio , aldeia, seara !
Campos ! A vós , com todo o ser, me devoto .
Marco sempre a diferença, nada rara,
entre mim e Onéguin , e aqui a anoto ,
para que o malicioso leitor
ou algum desvergonhado editor
de calúnias , as mais esmeradas ,
deixando eu aqui minhas pegadas ,
não repita com todas as letras
que pintei meu retrato alguma vez ,
como Byron , poeta do orgulho , fez ,
como se não fosse dado , a nós poetas ,
escrever um poema que não fora
sobre a nossa única pessoa.

LVII
Direi a propósito : todos os poetas
acarinham o sonho de amor.
Há por vezes criaturas , as mais dilectas ,
surgindo-me no sonho com tal vigor
que a alma grava a sua imagem secreta
e a Musa, depois , a vida lhes completa;
foi assim que celebrei , afinal ,
uma moça dos montes ideal
e as cativas das ribeiras de Salguir.
Amigos , não é raro que eu ouça,
legítima, esta pergunta vossa:
«Por quem está a suspirar a tua lira?
Dentre as meninas ciumentas servia
a quem , a quem, a tua melodia?

39
LVIII
Que olhos te inspiraram , cantor,
e da ternura fizeram recompensa
ao teu sentido canto cismador?
A quem afinal o teu canto i ncensa?»
Eh , amigos , a ninguém , juro por tudo !
Experimentei do amor a inquietude ,
mas em vão e infortunadamente .
Feliz é quem ao amor acrescente
o fogo das rimas : redobra então
a febre do canto , sua sagrada marca,
seguindo os passos do nosso Petrarca
.
que assim mitigou penas do coração ,
tomando de passagem fama e bolo;
mas eu , amando , era mudo e tolo .

LIX
Morre o amor, ressuscita a Musa.
Aclara-se a minha mente toldada ,
torna-se livre , já não confusa,
e de novo procura a laçada
dos milagrosos sons com o sentir
e o pensar; já sem se afligir
o coração , e a pena descuidada
já não traça ao pé da linha inacabada
pezinhos nem silhuetas de mulher.
Cinza apagada já não se desperta .
Resta a saudade , lágrimas não . Está perto
o fim da praceia, sem vestígios sequer:
vou encetar então um poema sem prantos ,
de vinte e cinco , mais ou menos , cantos .

LX
Pensava então no plano a traçar
e no nome a dar ao meu herói ,
quando , quase sem reparar,
o primeiro capítulo se conclui .

40
Revi tudo com muito rigor:
muitas contradições , é de supor,
mas não quero emendá-las ,
desconto-as como alcavalas
à censura . E entrego o fruto da obra
aos jornalistas vorazes . Que vá:
voa , voa para as margens do Nevá,
ó criatura minha toda nova ,
e ganha para mim o bolo da fama:
boatos , celeuma, invectiva, sanha !

41
SEGUNDO CAPÍTULO

O rus! . . .
Horácio
Ó Rússia!

1
A aldeia onde Eugénio se aborrecia
era um recanto calmo , encantador;
um amigo dos prazeres simples daria,
posto ali , as graças ao Salvador.
A solitária casa senhorial ,
protegida por um monte do vendaval ,
erguia-se sobranceira ao rio .
Ao longe , prados e campos floriam ,
dourados , variegados de cor;
aqui e ali viam-se os povoados ;
o gado vagueava pelos prados ,
e o parque , descuidado , sonhador,
de merencórias dríades moradia,
a densa, larga sombra espargia .

II
O respeitável solar foi construído
como se devem construir os solares:
muito sólido , muito tranquilo ,
ao gosto dos antigos titulares .
Um pé-direito alto e , no salão ,
paredes adamascadas ; o fogão ,
forrado de azulejos coloridos ;
retratos dos czares distribuídos
pelas paredes . Tudo , hoje , ultrapassado ,
não sei porquê , muito francamente ,
problema que Eugénio , aliás , não sente ,
visto que , não estando para aí virado ,
bocejava pelo mesmo sistema
na sala antiga como na moderna.

III
Instalou-se no quarto onde o terratenente
passara quarenta anos refilando
com a despenseira impertinente ,
pela janela olhando , moscas matando .
Tudo simples: chão de carvalho , e apenas
dois armários , mesa, divã de penas ,
nem um borrão de tinta . Ó néguin abriu
os armários ; num deles descobriu
o livro das despesas e , afoito ,
passou ao outro: licores em fileira ,
jarros d e sidra noutra prateleira
e o almanaque de mil oitocentos e oito ;
tantos afazeres o velho teria
que de outros livros se não servia.

IV
Eugénio , sozinho nos seus domínios ,
para não ver só o tempo a correr,
empreendeu modificar destinos ,
uma nova ordem estabelecer.
Sábio retirado no seu deserto ,
o velho jugo do trabalho , o seu aperto ,
mudou por um tributo leve e honrado ,
abençoando seu destino o escravo .

44
Entretanto , o vizinho calculista ,
vendo nisso forte malfeitoria,
no seu cantinho se melindraria;
um outro vizinho sorriu , trocista ,
e decidiram unanimemente
que ele era um perigoso extravagante .

V
De início , todos queriam visitá-lo;
mas como , por manha costumeira,
já estava preparado um cavalo
à porta da casa, mas na traseira,
mal se ouviam na estrada os guizinhos
das charretes das herdades vizinhas -
toda a gente , ressentida e agastada,
foi rompendo com ele a amizade .
«Ü nosso vizinho é um calhordas ,
malcriado , livre-pensador; bebe
só vinho aos copos, um almocreve ,
um rude , não beija a mão das senhoras ;
o labrego diz sim-sim , não-não ,
nunca s 'nhor - foi a geral opinião .

VI
A uma outra aldeia chegou entretanto
outro rapaz e seu jovem senhor,
e logo deu azo na vizinhança
ao mesmo tratamento de rigor:
Vladímir Lênski , assim era chamado ,
de corpo e alma em Gõttingen formado ,
na flor da vida, bonito , pose esbelta,
admirador de Kant e poeta .
Trouxe do ar tedesco nebuloso
da erudição os frutos e a vontade :
os sonhos do amor pela liberdade ,
um espírito assaz estranho e fogoso ,

45
o discurso exaltado , cabelo farto
até aos ombros e encaracolado .

VII
De alma límpida , poupado à alta roda
e à sua fria depravação ,
um gesto de amigo , um carinho de moça
ainda lhe aqueciam o coração ,
um coração ignaro mas não estiolado ,
querido , pela esperança embalado .
E o brilho novo e o barulho do mundo
ainda eram fascínio profundo
no seu jovem pensamento . Pelo sonho ,
meigo sonho acordado , distraía
as dúvidas do coração ; e via
o desígnio da vida como , suponho ,
enigma que a cabeça lhe quebrava ,
tentador, e milagres pressagiava.

VIII
Tinha a fé de que uma alma gémea
o acharia , com ele se uniria,
alma torturada de dor e pena
e que o esperava a cada dia;
tinha fé na prontidão dos amigos
em sujeitarem-se à prisão , a castigos ,
pela sua honra e , com pundonor,
quebrarem a taça do caluniador;
e de que tínhamos amigos sagrados ,
eleitos pelo destino; manancial
de uma grande família i mortal ,
e que seríamos iluminados
pelo seu raio imparável , fecundo ,
agraciando de beatitude o mundo .

46
IX
Excitavam-lhe o sangue desde cedo
a compaixão , a indignação em chama,
o amor puro pelo Bem , o desejo
atormentado e doce da fama.
Andou pelo mundo de l ira desperta;
sob o céu de Schiller e de Goethe
sua alma ardeu em fogos , ateados
pelo fogo poético destes bardos ;
e não envergonhou , poeta feliz ! ,
as Musas sublimes da sua arte:
altivo , guardou no canto , intacto ,
o seu mais nobre sentir de raiz,
impulso da fantasia cândida,
encanto da singeleza esplêndida.

X
Cantava o amor, ao amor obedecendo
e - como devaneios de ingénua menina,
como fantasia de criança sonhando ,
como a lua quando peregrina
pelo sereno deserto do firmamento ,
deusa de mistérios , de encantamento
e suspiros ternos - seu canto era claro .
Cantava as brumas , o vago, o raro ,
o triste adeus e as rosas românticas ;
cantava aquelas terras distantes
onde seu pranto verteu torrentes
no seio do silêncio ; e cânticos
à flor murcha da vida , nada menos,
e não contava ainda dezoito anos .

XI
Somente Onéguin , naquele deserto ,
aos seus dons podia abonar valor;
e detestava os banquetes , e o resto ,
dos senhores das aldeias em redor;

47
fugia da sua bulhenta conversa,
palavrório ajuizado que só versa
sega de feno , vinho , canil e um tal
dos seus parentes, que por sinal . . .
Ó bvio que assim não brilhava ao vivo ,
nem pelo sentimento nem pelo fogo poético ,
nem pelo espírito nem pelo intelecto ,
nem pela arte menor do convívio;
pior ainda quando as esposas excelsas
entabulam suas próprias conversas .

XII
Lênski , rico e bem-apessoado ,
era acarinhado como um bom partido
(costu me da aldeia russa) em todo o lado ;
queriam casar as filhas , faz sentido ,
com o estrangeirado quase russo;
mal chega, a conversa, como é de uso ,
desvia-se , subtil mas de imediato ,
para o tédio da vida em celibato ;
convidam-no para a mesa gentilmente ,
a jovem Dúnia serve o chá e cora ,
segredam-lhe: «Dúnia, é agora ! »
Pega a menina n a viola plangente ,
e lança num chilrear (oh , meu Deus ! ) gritado :
Entra no meu palácio dourado! . . . 12

XIII
Lênski não quer cair na armadilha
matrimon ial , evidentemente ,
mas uma ideia sincera ele acarinha:
ter com Onégu in bom relacionamento .
Ficaram am igos . A pedra e a onda ,
o gelo e a chama , o verso e a prosa
não são assim tão dissemelhantes .
De início , suas posturas diferentes
cavaram entre eles a maçadoria;

48
depois entenderam-se e , depois
dos passeios a cavalo a doi s ,
já ia um para onde o outro ia.
Assim , os homens (confesso o meu pecado)
tornam-se amigos por ócio partilhado .

XIV
Mas nós rejeitamos até este mero
preconceito da dita amizade
e vemos os outros como algarismo zero
e só nós seríamos unidade .
Todos queremos ser Napoleões;
os outros seres bípedes , aos milhões ,
são para nós apenas um instrumento;
achamos um risível absurdo o sentimento .
Eugénio não era dos piores que havia;
embora conhecesse , é certo , os humanos
e em geral os desprezasse - pelo menos
(não há regra sem excepção) , fazia
justiça a alguns deles sem preconceito
e , sem sentir, respeitava o sentimento .

XV
Escutava Lênski com um sorriso .
O poeta arengando em tom exaltado ,
a sua mente de juízo impreciso ,
e aquele olhar sempre inspirado -
tudo lhe era novo , original ;
e a bruta palavra glacial
que lhe esfriaria a fogosidade ,
Onéguin calava: é cruel necedade
turvar-lhe a cândida , efémera ilusão;
chegará o dia do seu desengano
sem a minha ajuda; que viva sem dano
na crença da terrena perfeição ;
à febre dos verdes anos imputemos
seus ardores e delírios , e perdoemos .

49
XVI
Entre eles , a discussão era habitual
e tudo lhes dava azo a brigas :
o fruto da ciência, o bem e o mal ,
as alianças das tribos antigas ,
o secular preconceito , o segredo
e mistério do além , os seus medos ,
o destino e a vida - tudo era sujeito
aos seus juízos , tudo levavam a peito .
O poeta , para apoiar sua defesa ardente ,
a longos fragmentos recorria
das sagas nórdicas que enlevado lia;
e um Eugénio condescendente ,
apesar de às vezes não perceber nada,
ouvia, atento , a réplica versejada.

XVII
Eram as paixões , contudo , a dominar
as mentes dos meus caros eremitas .
Onéguin , depois de já se livrar
do poder inquieto das malditas ,
falava delas com um suspiro lento
e involuntário de lamento :
feliz quem suas emoções conheceu
e lhes virou as costas , como eu ;
e mais feliz , sem saber o que tal seja,
quem se curou do amor pela ausência,
da discórdia pela maledicência,
quem ao pé da mulher e amigos boceja,
sem ciúme ; quem não confia à perfídia
dum duque de ouros os bens da família.

XVIII
Quando já estamos à sombra da bandeira
do sossego prudente e assisado ,
quando das paixões se apaga a fogueira,
seus ímpetos e arbitrariedade ;

50
e quando a sua tardia ressonância
já nos parece burle�ca à distância ,
nós , vencidos , embora lamentando ,
gostamos de ouvir de vez em quando
a língua exaltada da paixão alheia
que o coração murcho nos desperta .
Assim o velho veterano de guerra,
esquecido no pobre abrigo da aldeia,
escuta as peripécias , muito agradado ,
do mata-sete com bigode galhardo .

XIX
Ora a fogosa juventude é aquela
idade em que não se esconde nada .
Pronta a soltar a língua, revela
amor, tristeza, alegria, hostilidade .
Na condição de veterano do amor,
Onéguin ouvia com ar protector
o poeta exprimindo os sentimentos ,
soltando o coração aos quatro ventos ,
ingénuo , a alma confiante despindo .
Assim ficou Eugénio a par
do amor de Lênski , sem ter que forçar;
um sentimento tão forte , tão lindo ,
mas que para nós , com pesar o digo ,
é já caduco sentimento antigo .

XX
Ah , como ele amava ! Como já não resta
capacidade de amar na nossa idade ,
como só a alma louca do poeta
é destinada a amar: por todo o lado ,
e sempre , o mesmo sonho recorrente ,
o mesmo desej o , único , pungente
e aquela tristeza noite e dia.
Nem as viagens longas com que esfria
o seu fogo , nem os anos de ausência,

51
nem a beleza das terras estrangeiras ,
nem festas ru idosas nem brincadeiras ,
nem as horas dadas à Musa e à ciência
o transformaram , e nada lhe dizem
à alma aquecida a fogo virgem .

XXI
Sem tormentos de alma, criança quase ,
o inelutável destino quis
que uma menina, Olga , o cativasse :
das suas brincadeiras infantis
é o enternecido espectador,
e no sombrio bosque protector
partilham jogos , encontram abrigos .
Natural que seus pai s , vizinhos amigos ,
futurem das crianças casamento .
Na aldeia esquecida , seu ninho doce ,
Olga floria como se fosse
um lírio-do-vale secreto , si lente ,
entre as ervas altas resguardado ,
nem por abelha ou mariposa tocado .

XXII
Ofereceu ao poeta o primeiro voo ,
a faísca donde o sonho salta;
foi o pensamento nela que inspirou
o primeiro gemido da sua flauta .
Adeus jogos , brincadeiras douradas !
Tomou gosto pel as brenhas cerradas ,
a solidão , o silêncio , a fundura
da noite , das estrelas , da Lua.
Lua, a lamparina dos céus pretos ,
a que dedicávamos as saídas
para a noite escura e as lágrimas vertidas ,
del ícia dos tormentos secretos . . .
E dizer que hoje não vemos nela mais
que suplente dos lampiões banais !

52
XXIII
Sempre obediente , sempre modesta
e , como a manhã , sempre em fulgor,
ingénua como a vida de um poeta,
querida como um beijo de amor;
olhos como o céu , azul-clarinhos ,
o sorriso , caracóis estrigas de linho ,
o gesto , a voz , a figurinha leve ,
tudo em Olga . . . mas , por favor, pegue
em qualquer romance e de imediato
vê o seu retrato obrigatoriamente:
belo , e também eu , como toda a gente ,
o prezava , mas enjoei , fiquei farto .
Então , se ao leitor mal não venha,
passarei a falar da irmã mais velha.

XXIV
Chamava-se essa irmã Tatiana . . . 1 3
É a primeira vez que num romance
alguém de renome assim se chama -
ousamos , pode dizer-se , o lance .
Que mal tem? É sonoro , simpático ,
embora traga o ferrete atávico ,
eu sei , das épocas mais recuadas
ou , agora, do quarto das criadas !
Reconheçamos : em dar nomes de jeito ,
entre nós não se faz muita gala
(nas poesias então nem se fala) ;
a instrução não nos trouxe proveito ,
calhou-nos da cultura iluminada
o requebro exterior e mais nada .

XXV
Chamava-se portanto Tatiana.
Nunca nos atrairia a vista
por uma beleza como a da mana,
nem pela frescura nem pelas cores desta.

53
Fechada, taciturna, triste e esquiva,
tímida como uma corça furtiva,
parec ia, na sua famíl ia de sempre ,
rapariga de fora e não parente .
Não tinha a arte meiga dos carinhos,
não os fazia ao pai nem à mãe ;
com outras crianças , o seu entretém
não era saltar, brincar, os joguinhos ,
e muitas vezes se isolava ela,
sentadinha em silênc io à janela.

XXVI
Devaneio - o nome do seu donzel ,
desde o berço companheiro e irmão;
com ela morava o sonho fiel
no lento curso do viver aldeão .
Não conhece agulha a sua mão fina,
seu dorso frágil não se inclina
ao bastidor nem o fio de seda traça
o bordado que aviva a talagarça.
Já se manifesta em toda a criança
um sinal da fome de poder:
a menina à boneca já requer
as conveniências , e que obedeça;
na boneca prevê o seu amanhã,
repetindo-lhe as lições da mamã .

XXVII
Ora Tatiana , na meninice ,
boneca ao colo é que nunca levava;
não lhe contava os zunzuns , as tolices ,
de adornos e trapos não lhe falava .
Nem com os outros , traquina, corria;
já as histórias de medo , a negra fantasia,
a fascinavam mai s , intranquilas ,
nas noites de Inverno , ao ouvi-las .
E quando a ama-seca arrebanhava

54
o seu grupo de amigas ariscas
e no prado vasto , como levandiscas ,
jogavam bulhentas à apanhada,
Tatiana não . Risos , tropelia,
como tudo isso a aborrecia.

XXVIII
Agrada-lhe sair para a varanda
à espera que desabroche a aurora ,
quando a roda de estrelas desanda
para dentro do céu pálido ; é a hora
de o extremo da terra , devagar,
ir clareando , de o vento soprar,
mensageiro da manhã, de o dia
levantar aos poucos a gelosia.
No Inverno , quando a sombra nocturna
possui o mundo demoradamente
e , no silêncio passivo , o oriente
preguiça mais tempo sob a fosca lua,
Tatiana acorda à hora do costume ,
ergue-se à luz das velas , espevita o lume .

XXIX
De muito cedo adorava os romances :
substituíam-lhe o mundo , mau e bom ,
apaixonada pelas ilusões , os transes ,
de um Rousseau e de um Richardson .
Seu pai era bom homem , tinha parado
lá bem atrás , no século passado ;
nos livros , sem alguma vez os ter lido ,
não pressentia qualquer perigo ,
mas antes inócua brincadeira vã,
e não o esquentava nem arrefecia
saber que volume secreto dormia
na cama da filha até de manhã.
Quanto à esposa, ela própria dava o tom:
estava louca pelo Richardson .

55
XXX
A esposa adorava o Richardson ,
não porque os seus l ivros devorasse
ou considerasse mais ou menos bom
o Grandison do que o Lovelace ; 14
mas porque a princesa Alina outrora,
sua prima de Moscovo e leitora ,
lhe falara deles abundantemente .
Seu futuro esposo naquele entremente
era ainda noivo , pela força imposto ,
e ela suspirava pelo outro , alguém -
mente e coração comandam - por quem
tinha claramente muito mais gosto :
o seu Grandison era um janota ideal ,
jogador e sargento da guarda imperial .

XXXI
Como ele , vestia pela última colecção
e com tudo o que lhe ia a matar;
mas , sem lhe pedirem a opinião ,
arrastaram a menina a casar.
Para lhe dissipar a tri steza, o marido
levou-a, célere e sensato , consigo
para a longínqua aldeia onde ela,
rodeada por esta e por aquela,
de início chorava e estrebuchava,
à beira de uma separação;
depois dispôs-se a tratar da mansão
e já feliz cantava, habituada.
O hábito Deus o manda, é verdade ,
para fazer as vezes da felicidade 1 5•

XXXII
O hábito foi um bálsamo , uma aberta
na sua inconsolável amargura;
e não tardou a grande descoberta
que a curou por completo nessa altura:

56
entre afazeres , lazer, cuidar do lar,
viu que podia o esposo subjugar
(encontrou o segredo e a pista)
ao seu poder absolutista,
e tudo começou a correr bem .
Mestre de obras , salga dos cogumelos ,
gerir despesas , escolher os mancebos
para a tropa , banhos ao sábado também ,
se zangada, bater nas criadas o devido -
tudo isto sem o parecer do marido .

XXXIII
Escrever com sangue no álbum de menina;
arrastar muito a fala mais óbvia;
apertar ao máximo o espartilho;
chamar Pauline a uma Praskóvia;
o «n» russo na perfeição pronunciado
à francesa, betn nasalizado -
pois bem , tudo isto em breve foi esquecido:
os versinhos sentimentais floridos ,
o espartilho , o álbum de sangue ,
a princesa Alina de Moscovo , a culta,
Céline voltou a ser a sua besta Akulka ,
a fala modulada, o ar exangue .
E a touca caseira estreou de bom grado ,
e o roupãozinho de algodão forrado .

XXXIV
O marido em nada interferia
nas suas coisas , só a amava do coração ,
confiava em tudo o que ela fazia.
Ele come , bebe , ciranda em roupão ,
vive pachorrento a sua vida ,
pelas tardes às vezes convida
amigos bondosos da vizinhança
e o tempo passa numa toada mansa,
bisbilhotando , lamentando , rindo

57
de tudo e de nada e é tempo já
de a Olga preparar o chá,
depois é o jantar e, jantar findo
e todos já um pouco ensonados ,
saem e vão para casa os convidados .

XX X V
Na vida tranquila seguiam em tudo
os bons velhos costumes e usos;
nos dias gordos , chegado o Entrudo ,
não faltavam em casa os crepes russos;
a abstinência de lei duas vezes ao ano;
do baloiço-carrossel o gosto ingénuo ,
e do canto natalício , do baile de roda;
na Trindade , quando a igreja toda
não ouvia o Te Deum que não bocejasse ,
três lágrimas lhes brotavam , enternecidas ,
sobre o ramo de ranúnculos caídas ;
como do ar, precisavam do kvass *
e o serviço à mesa não prescindia
da rigorosa lei da hierarquia.

XXXVI
Viviam e envelheciam desta sorte ,
até que para o esposo se fecharam
as portas da vida e se abriram as da morte ,
e com a nova coroa o coroaram .
Antes do almoço se finou
e toda a vizinhança o chorou ,
e ainda mais e com maior verdade
os filhos e a esposa fiel , com saudade .
Foi um singelo e bondoso senhor,
e onde repousam seus restos mortais
lêem-se na pedra estes dizeres finais :

* Bebida não alcoólica, feita à base d e pão negro d e centeio e água.

58
Dmítri Lárin, humilde pecador,
servo de Deus e brigadeiro - aqui jaz .
Sob esta lápide descanse em paz .

XXXVII
Em seus penates procurando alento ,
Vladímir Lênski , num dos seus giros ,
visitou-o no humilde monumento
e dedicou às cinzas uns suspiros .
De mágoa na alma não há quem não fique !
Disse tristemente: «Poor Yorick ! 1 6
Pegavas-me ao colo . E a tua medalha ,
que ganhaste em Otchákov, na batalha,
quantas vezes brinquei com ela em menino !
Davas-me Olga em casamento , dizias :
mas viverei para ver esse dia? . . . »
E , presa de um sofrimento genuíno ,
Vladímir compôs-lhe mesmo no lugar
um comovido madrigal tumular.

XXXVIII
Banhado em lágrimas honrou também ,
ali mesmo , num epitáfio sentido ,
o pó e as cinzas do pai e da mãe . .
.

É triste ! No lavradio da vida ,


as gerações , como em efémera seara,
e a secreta providência declara,
brotam , amaduram e vão cair;
outras colheitas virão a seguir . . .
Assim, nossa leviana tribo agora
cresce , fervilha e , forte de madura ,
empurra os avós para a sepultura .
Virá, virá também a nossa hora,
e em boa hora aos netos caberá
a obra de nos desalojar de cá !

59
XXXIX
Embriagai-vos , amigos , entrementes ,
com esta vida assim ligeira !
Sei que nada vale e , pessoalmente ,
nenhum afecto ela me requeira:
aos fantasmas fechei olhos e ouvidos ;
mas esperanças e desejos furtivos
ainda me inquietam a espaços -
seria triste para mim baixar os braços
e partir sem deixar qualquer veio .
Não que eu viva para ser louvado ,
nem para tal escreva; por outro lado ,
glorificar meu tri ste fado anseio ,
nem que seja um som único , perdido ,
a recordar-me , como fiel amigo .

XL
Algum coração há-de sensibilizar;
e, salvaguardada pelo destino ,
talvez minha estrofe , afinal ,
não se afunde no Letes mofino;
talvez (oh , deleitosa esperança ! )
u m futuro néscio tenha a lembrança
de apontar à minha efígie selecta
e dizer: este é que era um poeta !
Aceita, pois , a minha gratidão ,
ó admirador da poética deidade ,
ó tu , de quem a memória talvez guarde
a minha volátil criação ,
de quem a mão benévola um dia venha
tocar-me os louros na cabeça velha.

60
TERCEIRO CAPÍTULO

*
Elle était filie, elle était amoureuse .
Malfilâtre

1
«Onde vais? Oh , estes meus poetas ! »
- Adeus , Onéguin , tenho de i r embora .
«Não te atraso; mas em que secretas
paragens passas as tardes agora?»
- Em casa das Lárin. - «Mas que fino !
Por Deus ! E não te importas , menino ,
de matar ali todo o teu tempo?»
- Não , de modo algum. «Não compreendo .
E já estou daqui a ver como é:
primeiro (diz lá se não é verdade) ,
uma boa família russa que há-de
receber muito bem , senão vê:
doce s , a eterna conversa cordial
sobre a chuva, o linho , o curral . . . »

II
- Não vejo que traga mal ao mundo .
«Mas é um grande tédio , meu amigo .»

* Era rapariga, estava apaixonada (fr.) . A epígrafe de Malfilâtre (1732-1767) é tirada de


Narcisse dans l 'fle de Vénus (1769)·.
- Odeio o vosso mundo à moda , no fundo
prefiro o familiar, singelo e digno . . .
« É cloga pastoril outra vez não !
Poupa-me , amigo . Com que então
vais mesmo , não é? Lamento muito .
Mas ouve , Lênski , o meu intuito . . .
Não poderei eu também, afinal ,
conhecer essa Fíl is que , em suma,
abarca os teus pensamentos , a tua pluma,
lágri mas , rimas , et caetera e tal ? . . .
Apresenta-ma.» - Brincas? - «Não .» - Com prazer.
- «Quando?» - Agora, queres? Vão-nos receber.

III
- Vamos lá. -
E os amigos voaram ,
e chegaram ; com a famosa
hospital idade à antiga os regalaram ,
por vezes até embaraçosa .
Dos comes e bebes o ritual costumeiro:
toda a gama de doces nos pires , primeiro
e , sobre a mesa encerada de fresco ,
de arando-vermelho um jarro de refresco .

IV
Voam para casa 1 7 a toda a brida ,
pelo mais curto atalho e falam os dois ;
d e forma sorrateira , atrevida,
escutemos a conversa dos heróis:
- Então , Onéguin? O que tu bocejas . -
«Ü costume , Lênski .» - Embora estejas

62
pior que nunca. - «Não , sempre igual , eu .
Olha , no campo já escureceu ;
Mais rápido , Andriuchka ! Solta a brida !
Vê , Lênski , que lugares mais idiotas !
A propósito : a Lárina, se não te importas ,
é uma velhota simples mas querida;
receio que aquela água de arando
me deu volta ao estômago , nunca fiando .

V
Então , diz: qual delas é Tatiana?»
- Mas é aquela, sempre triste
e taciturna, como a S vetlana,
a que se sentou à janela , viste? -
«E foi pela mais nova que te apaixonaste?
Não me digas ! » - Porque perguntaste? -
«Vê que , apesar de não ter nada contra ,
se fosse poeta como tu escolhia a outra .
Nos traços de Olga não há vida, é tal qual
a Madona de Van Dick: cara redonda,
corada como esta Lua hedionda
neste estúpido céu sempre igual .»
Lênski , depois da resposta seca dada,
guardou silêncio todo o resto da estrada .

VI
A visita de Onéguin , entretanto ,
no lar das Lárina deu azo
a um frémito i mpressionante
e ao reparo de todos, ou quase .
Suposição atrás de suposição .
Toda a gente a segredar, confusão ,
a brincar, julgar, e até com malícia
se dava como certa a notícia:
Tatiana achara noivo; houve mesmo quem
garantisse: casamento já tratado
mas temporariamente adiado

63
por falta de alianças à moda . Ora bem ,
mas quanto ao d e Lênski e prometida,
há muito que desse ninguém duvida .

VII
Tatiana ouvia, incomodada ,
tais boatos, mas não resistia
àquela delícia incontrolada
de cismar muito nessa fantasia;
e penetrou-lhe a alma como se fosse
uma semente - apaixonou-se .
Assim o grão caído na terra
ganha vida ao calor da Primavera.
Há muito que a imaginação
lhe ardia em saudade e quebranto ,
ansiando pelo fatal alimento ;
há muito que a ânsia do coração
lhe oprimia o peito jovem e soltou-se;
a alma esperava . . . fosse quem fosse .

VIII
E chegou . . . Ela abriu os olhos como
se acordasse . E pensou : é ele !
Desgraça: agora o inflamado sono
e a vigília, noite e dia, falam dele
e não largam a nossa menina,
assombrada pel a força que a domina.
Aborrecem-na as falas ameigadas
e os olhares carinhosos das criadas .
Abismada na melancolia nervosa,
não ouve o que dizem as visitas ,
maldi-las como se foram parasitas ;
se chega alguma , inesperada , ociosa,
ao vê-la sentada no seu lugar
parece-lhe que veio para ficar.

64
IX
Com que extremada atenção lê agora
o doce enredo sentimental ;
com que encantamento ela devora
o engano tentador, irreal !
As criaturas de romance animadas
pelo feliz poder do sonho , e bem-amadas:
o amante de Julie de Wolmar,
Malek-Adhel , Gustave de Linart ,
Werther, o mártir sem pavor,
e Grandison 1 8 , o incomparável ser
(que aliás nos dá um sono de morrer) -
todos eles, para a terna sonhadora ,
se fundiram numa só personagem,
ganhando de Onéguin a imagem.

X
Imaginando-se uma heroína
dos seus autores idolatrados -
Clarissa, Julie , Delphine - ,
Tatiana, nos bosques isolados ,
em silêncio , sozinha , vagueia
e no livro perigoso tacteia
e encontra o secreto ardor
que é o dela, os sonhos de amor,
frutos do coração em plenitude;
suspira e sôfrega se apropria
do enlevo e tristeza alheios que lia;
e sussurra de cor, esquecida de tudo ,
a carta para o seu herói querido . . .
que não é Grandison , bem entendido .

XI
Para o tom sublime o estilo afinado ,
o criador em fogo , por convenção ,
mostrava-nos o seu herói pintado
como um modelo de perfeição .

65
Atribuía ao sujeito querido ,
sempre injustamente perseguido ,
alma sensível , intelecto excelente
e uma fisionomia atraente .
Chi spando fogo de puríssima paixão ,
o herói , exaltado sem parar,
estava pronto ao sacrifício exemplar,
e, no fi m da última parte , conclusão:
o vício era sempre , sempre punido
e o bem ganhava o prémio merecido .

XII
Mas hoje enevoaram-se as mentes ,
a moral dá-nos sono e não faz hi stória ,
o vício atrai e , como é evidente ,
no romance também canta vitória.
A Musa britânica, com o que inventa ,
inquieta o sono da adolescente ,
e agora o seu ídolo preferido
é o Vampiro meditativo,
ou Mel moth , sombrio vagabundo ,
ou o Judeu Errante , ou o Corsário,
ou o misterioso Jean Sbogar19•
Um capricho de Byron corre mundo:
vestiu de um tri stonho romantismo
também o incorrigível egoísmo .

XIII
Meus amigos , que sentido isto tem?
Talvez que , por desígnio do Céu ,
eu deixe de ser poeta e alguém
meta um diabo novo no peito meu
e, desprezando de Febo a voz grossa,
eu me rebaixe até à humilde prosa;
então , um romance à moda antiga
vai alegrar o ocaso da minha vida.
Não vou descrever, pavorosamente ,

66
os ocultos tormentos da malvadez ,
mas simples histórias , o era uma vez ,
de uma família russa decente ,
dos encantados sonhos de amor e amigo
e os usos do nosso viver antigo .

XIV
Na língua do pai , do velho tio , singela,
contarei os encontros de amor-primeiro
que o rapaz combina com ela
perto das velhas tílias , do ribeiro;
do desgraçado ciúme as penas ,
as zangas constantes e as serenas
lágrimas das pazes e, como final ,
irei guiá-los ao nó nupcial . . .
Da paixão delejtosa vou lembrar
as palavras certas , o enfeitiçado
falar do amor angustiado ,
as que tão bem sabia entoar
aos pés da bela amante de outrora
e cujo hábito perdi agora .

XV
Tatiana, gentil Tatiana!
Verto as minhas lágrimas contigo;
ao homem da moda , à mão tirana,
j á entregaste o teu destino .
Estás perdida, menina; no entanto ,
ainda a esperança é teu deslumbramento
e clamas pela embriaguês obscura,
descobres o deleite da vida, a ternura ,
o veneno d o desejo está contigo ,
ainda os sonhos te perseguem , vês recantos
por todo o lado para os teus encontros ,
imaginas os felizes abrigos ;
por todo o lado avistas o sinal
do teu fugaz tentador fatal .

67
XVI
Empurrada pelo amor e o tormento ,
leva para o jardim sua tristeza:
os pés fraquejam-lhe e, de repente ,
pára , fecha os olhos como quem reza .
O peito a erguer-se , as faces em fogo
e logo pálidas , esmorece-lhe o fôlego ,
os ouvidos de súbito a zumbir,
nos olhos um brilho , clarão febri l . . .
Cai a noite ; a Lua sentinela
faz a ronda do longínquo firmamento ,
e o rouxinol solta o sonoro canto
na escuridão dos ramos , e ela,
no berço da noite que a não embala,
com a ama velha baixinho fala:

XVII
«Não tenho sono , mãe , que ar abafadiço !
Abre a janela e senta aqui comigo .»
- O que tens , minha Tânia, o que é isso? -
«Estou triste , fala-me do viver antigo .»
- Mas de quê , Tânia? Já lá vai o tempo
em que eu guardava no meu pensamento
tanta , tanta história, sobre a mocidade ,
umas de encantar, outras de verdade ,
espritos mal ignos , mocinhas , mocinhos;
mas parece agora que um pano escuro
me cobriu a memória; bem procuro:
esquec i tudo , chegaram tempos daninhos !
«Conta , mãe , no teu tempo chegaste . . .
diz , alguma vez te apaixonaste?»

XVIII
- Linda conversa, Tânia ! Olha, olha !
Não se falava disso , era um desdoiro;
não , que a minha falecida sogra ,
em sabendo , dava-me cabo do coiro . -

68
«Mas como te casaste tu , mãe-ama?»
- Casei como Deus manda. O meu Vânia
era mais novo que eu , um rapazote ,
e eu tinha treze . A casamenteira a trote ,
numa fona a falar com as famílias
duas semanas inteiras , e o meu pai
lá me deu a bênção , disse-me : vai .
Muito chorei de medo e pena ali nas tílias ,
destrançaram-me a trança chorando ,
levaram-me à igreja cantando .

XIX
Foi assim que entrei na casa alheia . . .
Mas tu não escutas , criatura . . . -
«Ah , mãe , mãe , estou que nem sei ,
uma angústia tão grande , uma amargura,
só me apetece chorar, chorar ! . . . »
- Ó filha, estás doente , vai passar,
Deus misericordioso , rogai . . .
diz o que precisas , vai passar, já vai . . .
j á te deito água benta, pobrezinha,
estás a arder. . . - «Oh , mãe , não , não é nada:
eu . . . escuta, mãe . . . estou apaixonada.»
- Por amor de Deu s , minha rica filha ! -
E a ama súplice , mão trémula da idade ,
benzia a menina com solenidade .

XX
«Estou apaixonada» - amargamente
continuava Tatiana a murmurar.
- Filhinha querida , tu estás doente .
«Estou apaixonada, deixa-me estar.»
Entretanto , a Lua alta no céu
brilhava e envolvia num véu
de langorosa luz branco-dourada:
Tatiana, a beleza desmaiada
do seu rosto , solto o seu cabelo,

69
e as gotas de lágrimas e , em frente
da jovem heroína a velha tremente ,
de casacão quente , lenço singelo
na cabeça cã. E a lua inspirava
silêncio e sono , tudo dormitava .

XXI
E o coração de Tatiana voava
até longe , olhando para a Lua . . .
e já súbita ideia a assediava . . .
«Deixa-me sozinha, não é culpa tua;
mas antes dá-me a pena e o papel
e põe esta mesa aqu i ao pé ;
desculpa, mas deves estar cansada,
vai , eu deito-me daqui a nada .»
E já Tatiana está sozinha .
Silêncio . A Lua a luzir para ela .
Escreve . Só Eugénio ocupa a mente dela.
É uma carta mal pensada , mas respira
puro amor. Finda a carta , dobra-a bem .
E essa carta , Tatiana, é para quem?

XXII
Conheci beldades tão altivas ,
frias e , como o Inverno , puras ,
implacáveis, incorruptívei s ,
inacessíveis à compreensão , duras ;
sua soberba à moda derrotei ,
e a sua virtude inata feita lei ;
mas confesso também que fugi delas ;
lia acima das suas sobrancelhas ,
aterrado , as palavras do Inferno:
Abandonai toda a esperança . . . 20
Despertar amor, para elas , é desgraça,
assustar a gente é o seu prazer supremo .
Nas margens do Nevá , leitor prezado ,
não terás tais senhoras encontrado?

70
XXIII
Entre os seus dóceis admiradores,
outras caprichosas v i , indiferentes
aos suspiros fundos , aos louvores
dos seus vassalos obedientes.
E o que descobri então , espantado?
Assustando o tímido apaixonado
com seu modo austero , até hostil ,
sabiam chamá-lo de novo ao redil
com , bastava, um gesto de compaixão ,
um tom que parecia mais carinhoso
dado às vozes. E o seguidor zeloso
voltava, extravasando paixão ,
qual jovem , cego , crédulo pajem
correndo atrás da querida miragem .

XXIV
Será Tatiana mais culpada que elas?
Só porque sob o ternurento véu
da candidez não vê as quimeras
e acredita no sonho que elegeu?
Porque sem arte de amar se rende
apenas ao apelo do que sente?
Por ser tão confiante e aberta ,
dotada de imaginação inquieta ,
dos céus benévolos obra e graça?
Pelo seu ânimo voluntarioso ,
mente viva, coração fogoso ,
pela ternura que o alaga e abrasa?
Ireis execrar-lhe , sem clemência,
das paixões a generosa imprudência?

XXV
Uma coquete pensa friamente .
Tatiana ama em confiança
e é sem reservas que se rende
ao amor, como uma cnança .

71
Não congemina: vamos adiar -
assim o preço do amor vai aumentar,
armemos a cilada à nossa presa;
mantenhamos a chama acesa
com uma esperança, depois envenenemos
seu coração de incerteza e, sem tardar,
o fogo do ciúme há que espevitar;
doutro modo , em tais remansos amenos ,
o manhoso cativo ganha ideias
e está pronto a libertar-se das cadeias .

XXVI
Outro problema: a honra a salvar
da terra-mãe donde a língua emana:
terei sem dúvida que trasladar
a carta escrita por Tatiana .
Não lendo nossas revistas nem jornais ,
dominava mal a língua dos pai s ,
s ó a custo e l a dava algum uso
ao nosso belo idioma russo .
Assim , escreveu em francês a carta . . .
Nada a fazer ! São os nossos dramas :
a língua do amor das nossas damas
não tem sido a russa, como se constata .
Até hoje , a nossa língua sem par
não se afez à prosa epistolar.

XXVII
Eu sei : querem obrigar as senhoras
a ler em russo . Oh , por piedade !
Não as posso imaginar, pensadoras ,
folheando o Bem-Intencionado ! 2 1
Não é verdade que - dizei , poetas - ,
quando as vossas rimas mais secretas
às gentis criaturas ofertastes
e o coração a elas dedicastes
por mal dos vossos pecados , não é certo

72
que todas elas , dominando mal
a nossa prezada língua nacional ,
a deturpavam com um acento
muito querido e , na sua boca terna,
a fala alheia se tornou materna?

XXVIII
Deus me livre de esbarrar num baile
ou no fim dele , tudo a debandar,
com seminarista de amarelo xaile
ou académico de touca e colar !
Tal como de lábios rubros sem sorriso ,
não gosto da fala russa, aviso ,
sem o errozinho gramatical .
Talvez , para o meu grande mal ,
a geração de belas vinda a terreiro ,
cedendo às súplicas da revista ,
nos afaça à gramática benquista
e os versos sejam de uso rotineiro .
Mas . . . quero lá saber, não vou na cantiga !
Mantenho-me fiel à moda antiga.

XXIX
O balbuciar errado e descuidado ,
o articulado das palavras imperfeito
vão causar, como sempre têm causado ,
o tremor do coração no meu peito ;
de nada me consigo arrepender,
dos galicismos fruirei prazer,
como dos pecados jovens o encanto ,
ou de Bogdanóvitch o canto .
Mas basta. É já tempo de cumprir:
a carta de Tatiana pendente ;
dei a palavra, mas . . . francamente ,
estou mesmo tentado a desistir.
Eu sei: a pena do terno Parny
já está fora de moda por aqui .

73
XXX
Ó cantor dos Festins e da tristeza22 ,
se estivesses ainda comigo
iria maçar-te , de certeza ,
com um pedido indiscreto e amigo:
que fizesses música milagrosa
da toada forasteira da moça
toda em paixão a arder no peito .
Onde estás? Vem: com todo o respeito ,
dos meus direitos eu te invisto . . .
Mas , entre esses penedos sombrios ,
de coração alheio a elogios ,
sob o céu finlandês , sozinho e triste ,
a sua alma errante não dá cura
de tão longe à minha amargura .

XXXI
A carta de Tatiana não a largo ,
leio estas linhas agora sem pressa,
religiosamente a guardo
e volto a lê-la com tristeza.
Quem lhe sugeriu esta ternura
e esta franqueza livre e pura?
O comovente disparate à solta,
do coração a conversa louca
que seduz e ao mesmo tempo fere?
Não sei . Mas arrisco uma tradução
imperfeita , fraca reprodução
do que o quadro vivo requer,
ou como dedos tímidos de alunas
tocando Der Freishütz com lacunas :

74
A CARTA DE TATIANA A ON É GUIN

Escrevo-lhe - é tudo . Que poderia


ter ainda para explicar?
E o senhor tem o direito , agora sei ,
de , com o desprezo , me castigar.
Mas se guardar no seu coração
uma gota que seja de compaixão ,
não me vai abandonar sem nada.
Acredite : ainda quis calar-me , e assim
nunca veria esta vergonha em mim
se não estivesse esperançada
em vê-lo aqui na nossa aldeia,
uma vez por semana vai bastar,
para ouvir sua voz , querida ideia,
só para eu lhe poder também falar,
e, depois , ficar tempo sem conto
a pensar sempre o mesmo , noite e dia,
até um próximo feliz encontro .
Mas dizem-no esquivo , que se entedia
na aldeia, que tudo o aborrece
e nós . . . nada oferecemos de brilho ,
mas é do coração o que se oferece .

Porque teve de nos visitar?


Esquecida neste torrão perdido ,
eu nunca o teria conhecido ,
nem este sofrimento ia amargar.
Acalmaria com o tempo (quem sabe?)
da minha alma ignara esta ansiedade ,
acharia um amigo e , já sem inquietude ,
seria uma esposa fiel e dedicada
e uma boa mãe cheia de virtude .

Um outro ! . . . Não , a ninguém mais daria


o coração ! É assim que a lei dura
do juízo supremo providencia;

75
é por vontade dos Céus: sou tua;
toda a minha vida foi a promessa
deste encontro fatal contigo;
Deus mandou-te a mim, com certeza o digo ,
para me guardares até que a morte venha . . .
Já aparecias nos meus sonhos ,
já me atormentavam os teus olhos ,
já a tua voz era a secreta senha
para entrares na minha alma à espera ,
sem nunca te ver já me eras querido .
Não , não era um sonho , era deveras !
Mal entraste pela porta reconheci-te
E, aturdida, com arrepios na pele ,
febri l , disse para mim: é ele !
Não é verdade que há muito te ouvia?
Que em silêncio me falavas à alma
quando aj udava os pobres, ou rezava
para mi tigar a emoção aflita?
E naquela mesma ocasião
não serias tu , querida aparição ,
o clarão fazendo do escuro dia,
caindo sobre a minha cabeceira?
Não eras tu , amor, à minha beira ,
a dar-me a esperança sussurrada?
Quem és - o meu anjo-da-guarda
ou pérfido demónio tentador?
Resolve a minha inquieta incerteza.
Ou será nada? Só visão aparente
na alma inexperiente e sem defesa
e o destino seja muito diferente . . .
Não sei ! Mas aos teus pés aqui deponho
a partir desta hora o meu destino ,
em lágrimas à tua frente ; e sonho
com a tua protecção , suplico . . .
Imagina-me : estou tão sozinha,
Ninguém aqui me compreende ,
a mente esgotada como que definha

76
e vivo calada - é a morte lenta .
Espero-te: com um único olhar
ressuscita-me a esperança esvaída
ou , com censura, ai de mim ! , merecida,
mata-me o sonho que ando a sonhar !

Termino ! Tenho mt!do de reler . . .


hirta de vergonha e de medo . . .
mas à sua honra me vou submeter -
minha garantia e meu credo . . .

XXXII
Suspira e geme Tatiana, em vão
tenta molhar na língua em fogo
o selo seco; treme-lhe na mão
o papel da carta . A pouco e pouco
inclina a cabeça e a leve camisa
do ombro encantador lhe desliza . . .
Mas já se vai dissipando o luar
e o vale , ao longe , a aclarar
no nevoeiro . Ali , já o rio
tem revérberos de prata; e o pastor,
com seu corno, acorda tudo em redor;
começa o lento despertar do dia .
Manhã: a vida já toda levantada ,
o que à minha Tatiana não diz nada .

XXXIII
Não repara na aurora; com enfado ,
continua sentada , abstraída
e cabisbaixa; e o sinete talhado
da carta não aperta, esquecida.
Mas abre-se a porta lenta , furtiva:
é a mãe-ama Filípievna, encanecida,
com o chá na bandej a . «Levantar,
são horas . . . Mas é de admirar,
já pronta , pássaro madrugador !

77
Ontem pregaste-me um susto , filha !
Hoje, Deus louvado , que maravilha !
Foi-se a tristeza da noite , que horror !
Assim está bem , minha rica moçoila,
essa carinha como uma papoila.»

XXXIV
- Ah , mãe , faz uma coisa para mim . -
«Então não hav ia de fazer, cruzes ! »
- Não penses que . . . suspeitas o u assim . . .
estás a ver. . . ah ! Mas não mo recuses . -
«Deus é testemunha, meu amorzinho .»
- Ouve , manda o teu neto , de caminho
e em segredo , ao senhor O . . .
com este bi lhete , diz-lhe só . . .
que é aquele . . . aquele vizinho . . .
e que não diga mais nada e que torne ,
sobretudo que não diga o meu nome . . .
«Mas quem é esse afinal , amorzinho?
Ele há tantos nomes por aí à volta . . .
que nem me cabem na cabeça tonta .»

XXXV
- Ah , mãe , que não és nada esperta ! -
«Oh , filha, de cabeça já pouco valho;
a gente , em velha , já não fica certa;
dantes sim , era fina como um alho ,
bastava uma palavrinha e a cabeça . . . »
- Ah , mãe , mãe , agora não interessa !
Deixa lá a cabeça . . . do que se trata
é que é preciso entregar a carta
ao Onéguin , é isso o principal .
- «Está bem , está bem , não te zangues , alminha ,
é a minha cabeça, a culpa não é minha . . .
Mas . . . estás outra vez branca como a cal ! »
- Não estou nada branca , oh , tanto faz ,
manda lá duma vez o teu rapaz .

78
XXXVI
Um dia se passou , não há resposta,
outro dia chegou , e ainda nada;
pálida como sombra, indisposta,
j á vestida desde a madrugada,
Tatiana espera: chegará quando?
O galanteador de Olga, entretanto ,
chegou : «E então , o seu grande amigo?» -
perguntou a senhora Lárina. - « É um castigo
vê-lo cá. Acho que nos esqueceu .»
Lênski : - Prometeu vir hoje, mas devia
pôr a correspondência em dia.
Tatiana tremeu , corou , empaleceu .
Baixou os olhos , como se picada
pelo ferrão de uma censura velada.

XXXVII
Anoitecia; estralej a ao de leve
o brilhante , nocturno samovar,
sobre ele o bule chinês referve ,
por baixo um vapor ligeiro a pairar,
e já o fio escuro do chá corria
cheiroso para os copos , Olga servia,
o criado jovem passava as natas
e, com suas aparências abstractas ,
Tatiana está parada à janela,
a boca soprando na v idraça fria
enquanto o dedo fino escrevia
no vidro embaciado o que ela
cismava de mais fundo e adorado:
o monograma E O entrelaçado .

XXXVIII
Mas dói-lhe a alma, uma lágrima lânguida
mareja-lhe os olhos . De repente ,
o bater de cascos ! . . . Gela-lhe o sangue .
Mais perto ! Chegam . . . e Tatiana sente

79
que é Eugénio a entrar no pátio !
«Ah ! » - e de um salto já está noutro átrio
e , mais leve que a sombra , na saída,
depois no jardim , sem travar a corrida;
corre , corre , corre sem ousar
olhar para trás , galga canteiros ,
parte os ramos dos lilaseiros ,
a alameda já está a atravessar,
pisa flores até ao rio , corre tanto
que não pode mais e cai ofegante

XXXIX
num banco . . .
«Veio, está cá! O Eugénio veio !
Oh , Deus ! Que pensará de mim, que pensa?»
Do seu peito torturado espreita o enleio
do fosco , vago sonho da esperança;
treme e arde em febre ao mesmo tempo ,
e espera: virá? O tempo passa, lento .
No morangal o coro das criadas
levanta-se enquanto colhem as bagas
(cumprem uma ordem muito antiga:
cantando não ocupam a boca gulosa
c 'os morangos senhoriais ; a nossa
astúcia aldeã a quanto obriga ! )
Cantam pois e m coro a s raparigas
e não comem bagas , lançam cantigas .

80
CANTIGA DAS CRIADAS

Brincai l indas raparigas


que o tempo vai de feição ,
brincai , brincai , ó amigas ,
animai o coração !
Animai-vos , esmeraldas !
Cantai lá uma canção ,
vinda do fundo das almas ,
pr ' a tentar o rapagão
a entrar na nossa roda.
Quando ao longe se avistar,
fugimos em debandada,
atiramos-lhe cerejas ,
cerejas e framboesas ,
ginj as , groselhas vermelhas .
Não venhas pr ' a cá escutar,
nossas cantigas são nossas ,
não venhas pr ' a cá espiar
as brincadeiras das moças .

XL
Cantavam as moças e , indiferente
ao seu cantar sonoro e loução ,
Tatiana esperava , impaciente ,
que lhe sossegasse o coração ,
que o fogo do rosto se extinguisse;
mas a tremura no peito persiste ,
e as chamas na face não dão sinais
de se apagar e ardem mais e mais . . .
Assim a borboleta a brilhar,
batendo a asa iriada fina,
quando a apanha o pequeno traquina;
assim treme a lebre no trigal ,
ao ver ao longe , de emboscada ,
o caçador de arma apontada.

81
XLI
Tatiana , por fim , suspirou
levantou-se do banco , hesitante ,
foi andando e , mal virou
para a alameda, surgiu-lhe à frente -
Eugénio , de olhos a cintilar,
como aparição espectral .
Como por um raio de fogo queimada,
Tatiana parou , petrificada.
Meus caros amigos , lamento muito ,
hoje não me sinto com resistência
para contar do lance a consequência;
depois de tantas voltas ao assunto
preciso eu de uma volta, descansar;
fica para outro dia, noutro lugar.

82
QUARTO CAPÍTULO

La morale est dans la nature des choses .


Necker*

I , II , III , IV, V, VI

VII
A mulher, quanto menos amor lhe temos ,
mais lhe cativamos o coração
e mais facilmente a enredaremos
na trama montada da sedução .
Deste modo , andavam dantes a par
o deboche e a arte de amar;
a libertinagem a sangue-frio
assim se vangloriava com brio
dum suposto gozo , sem que amasse ,
digno dos velhos macacos que outrora
tiveram seu tempo de ouro . Mas agora:
fanou-se a glória dos Lovelace ,
como a dos tacões vermelhos , das perucas ,
majestosas em tempos , hoje caducas .

* A moral está na natureza das coisas (fr.) .


VIII
A quem não aborrece a hipocrisia,
bater no mesmo de forma diferente ,
tentar convencer com sobrançaria
do que já se convenceu toda a gente?
Ouvir sempre o mesmo contraditório ,
lutar contra o preconceito ilusório
que nunca, mas nunca observamos
sequer numa moça de treze anos !
A quem não cansam ameaças , juras ,
súplicas , mentiras , fingidos medos ,
bilhetinhos de seis folhas , enredo s ,
boatos , anéis , lágrimas , amarguras ,
de mães e tias o zelo sem piedade ,
de maridos a penosa amizade?

IX
Assim pensava Eugénio . Remoía
os tormentosos enganos , o alude
de paixões desvairadas que sofria
nos anos da primeira juventude .
Amimado pelos hábitos de vida ,
ciuma coisa se encantava, de fugida ,
e duma outra se desencantava ,
seu desejo lentamente s e gastava
como também o êxito cediço ,
ouvindo , no silêncio e no fragor,
da alma viva o eterno rumor,
reprimindo o bocejo com o riso:
assim matou oito anos de vida,
a idade em flor murchou , perdida .

X
Por beldades já não se apaixonava ,
s ó a s cortejava, sem grande apego ;
Negavam-se? Logo se consolava.
Traíam-no? Pois bem , era um sossego .

84
Procurava-as sem arrebatamento ,
abandonava-as sem um lamento ,
quase esquecendo delas raiva e amor.
Assim o apático jogador,
para um serão de whist convidado ,
abanca a jogar e , terminado o jogo ,
levanta-se , vai-se embora logo ,
adormece em casa sossegado
e de manhã não tem qualquer ideia
onde irá à noite , onde fará ceia.

XI
Mas a carta de Tânia, por força,
comoveu Onégui n sinceramente ;
a expressão dos sonhos jovens da moça
soltou-lhe um enxame de pensamentos;
reviu a palidez de Tatiana,
aquele ar tão triste de quem ama;
e, sem pecado , livre , entregou-se
com toda a alma a um sonho doce .
Talvez a chama antiga, por um instante ,
lhe atiçava o velho sentimento?
Mas não queria mentir, ao mesmo tempo ,
àquela alma ingénua e confiante .
Voemos ao jardim e vejamos
como foi o seu encontro . Vamos .

XII
Dois minutos de silêncio , e Onéguin
aproximou-se dela e falou :
«A menina escreveu-me , não o negue .
Li a carta, vi como confessou
no papel a sua alma confiante ,
o seu amor puro e inocente ;
e nada existe que mais me agrade
do que essa aberta sinceridade
que me ressuscitou o sentimento

85
há tão longo tempo emurchecido;
mas louvá-la não está no meu sentido;
pagar sua franqueza é meu intento
com a minha confissão também leal :
assim a acolha o seu juízo cordial .

XIII
«Se qui sesse limitar a minha vida
ao estreito círculo familiar,
se me fosse marcada a boa sina
de ser esposo, pai e ter um lar,
se me cativasse por um instante
o cenário caseiro , esse ambiente -
a ninguém mais procuraria , juro ,
senão à menina em todo o mundo .
Digo , sem madrigais nem fantas ias:
a menina é o meu sonho do passado ,
o ideal que me passou ao lado ,
seria a amiga dos meus tristes dias ,
penhor do belo que nunca fenece ,
e eu seria feliz . . . se tal pudesse !

XIV
«Mas felicidade não é comigo ,
é alheia à minha alma, tudo é vão .
Da sua entrega me sinto indigno
e da sua pureza e perfeição .
Creia-me - não é apelo, é jura - ,
o casamento seria tortura ,
não tardaria que entre nós pairasse
do hábito o nefando enlace
e amor se mudasse em desamor.
Dia em que chorasse , não me comovia,
antes me amargava ainda mais o dia.
Que rosas Himeneu iria pôr,
julgue-o por si , em nosso caminho
que de longe tão longo adivinho?

86
XV
«0 que pode haver de mais maligno
que um lar onde a mulher se acoite ,
esperando um marido indigno ,
sozinha e triste de manhã à noite?
Onde ele , sabendo o valor da esposa ,
arvora aquela feição tediosa ,
maldiz o destino , sempre zangado ,
ciumento sem razão , fero e calado?
Sou tal qual . Seria um homem assim
digno da alma pura e ardente
de quem tão sábia e singelamente
escreveu aquela carta para mim?
Quem lhe pode assim ter decretado
tão severo quanto cruel Fado?

XVI
«Minha alma velha não rejuvenesce ,
o tempo corre , o sonho não perdura . . .
é fraterno este amor que me aquece ,
ou mais que fraterno , com mais ternura .
Oiça-me , então , sem ressentimento:
sonho de moça voa leve ao vento
e tantas vezes troca um sonho fugaz
por outro novo que o vento lhe traz;
assim cai a folha ao arvoredo
e a cada Primavera se renova.
Um dia amará e, nessa paixão nova,
não vão entendê-la como eu entendo .
Então . . . domine o sentimento - é fatal
que da ingenuidade nasça o mal .

XVII
Assim Eugénio a sermoneava .
Tatiana , com a vista enevoada
pelas lágrimas , mal respirava
e ouvia-o sem responder nada .

87
Ele ofereceu-lhe o braço . Triste e lenta
(como soe dizer-se , maquinalmente) ,
Tânia, em silêncio e baixando a cabeça,
lânguida, a ele se aconchega;
escaparam-se contornando a horta;
chegaram juntos a casa e ninguém ,
ao vê-los , terá achado por bem
censurá-los ao entrarem pia porta:
o direito à liberdade é igual
no campo e na soberba capital .

XVIII
Concorde , meu leitor, que o nosso amigo
se comportou assaz amavelmente
com a triste Tatiana; foi digno
e, no caso , não foi indiferente
ao brio de alma , ao invés do que pensa
a perversa humana malquerença ,
afeita a nada lhe perdoar:
inimigos e amigos (se calhar,
frutos idênticos da mesma flor)
injuriavam-no de todo o modo .
Quem não tem inimigos neste mundo?
Mas salva-nos dos amigos, Senhor !
Oh , amigos , que amigos aqueles !
Não é um acaso lembrar-me deles .

XIX
Porquê? Por nada. Por adormentar
os meus pensamentos negros , vagos ;
e entre parênteses observar
que não existem abjectos agravos ,
pelo impostor no seu desvão urdidos ,
e pela ralé da alta admitidos ,
nem disparate vil , provocação ,
nem epigrama reles, invenção
que o nosso amigo , com um sorriso ,

88
nunca maldoso , mal-intencionado
(ele é , de resto , o nosso bom aliado) ,
não espalhe cem vezes ou mais que isso ,
sem querer, visto que só tem em mente
gostar muito de nós . . . como um parente .

XX
Pois muito bem , meu tão nobre leitor !
E a sua parentela como passa?
Espere : talvez queira, e seja melhor,
que um quadro preciso aqui lhe faça
do que são a família, os parentes .
Devemos aos queridos exigentes:
do fundo da alma acarinhá-los ,
amá-los , respeitá-los , venerá-los
e, pela tradição do povo atenta ,
visitá-los ao menos pelos natais
ou dar-lhes as boas-festas postai s ,
para que , n o resto d o ano que entra ,
se não lembre de nós a gente querida . . .
Bom , Deus lhes dê longos anos de vida !

XXI
Mais compensa o amor de amigas belas
que a afeição de parentes e amigos:
mesmo no meio das maiores procelas
os direitos do amor são-nos devidos .
Mas o turbi lhão da moda, direis ,
d a natureza o s caprichos e a s leis ,
a mundana opinião , em suma . . .
e o gentil sexo é leve como pluma .
P'ra não falar dos gostos do marido ,
sem falta respeitados por esposa
que se preze de leal e virtuosa.
Deste modo , nosso amor fiel e querido
nos trocará por outro num fulgor:
assim brinca Satã com o amor.

89
XXII
Quem amar então? Confiar em quem?
Afinal quem não nos atraiçoa?
Quem nos julga actos e falas sem
desfavorecer a nossa pessoa?
Quem não diz mal de nós nem calunia,
mas nos cuida com zelo e cortesia?
P ' ra quem nossos vícios são coisa pouca?
De quem não nos iremos fartar nunca?
Não busque esse fantasma inutilmente ,
não perca tempo nesse esforço vão :
ame a si mesmo d e alma e coração ,
meu estimado leitor e confidente !
O amor de si próprio é o bom desígnio:
não achará ninguém mais querido e digno .

XXIII
A triste consequência do encontro?
Ora , não custa nada adivinhar !
Do amor o fero sofrimento louco
não desistiu de lhe atormentar
a alma em ânsias de tri steza;
com mais força ainda , mais aspereza,
arde em paixão árida Tatiana;
o sono foge-lhe , esquivo , da cama;
tudo - saúde , a doce flor da vida,
o sorri so, a pura mansidão -
se cala nela , qual som curto e vão ;
a mocidade vê escurecida:
como por sombra de tormenta certa
turvando o dia que apenas desperta .

XXIV
Que pena ver a murcha Tatiana ,
sempre pálida, apagada e muda !
Nada a d istrai , lhe atiça a chama ,
não há nada que a alma lhe sacuda .

90
Murmura a vizinhança e badala
com as cabeças , grave : «Era casá-la . . . »

Sei que já chega e agora urgiria


aliviar a mente com a alegria
de um cenário de amor feliz.
Contudo , involuntariamente ,
aperta-me esta compaixão latente
que tão normal desejo contradiz .
Perdão : é veza de quem muito ama ,
quanto eu amo , a querida Tatiana !

XXV
Cativo mais e mais a cada hora ,
Vladímir entrega-se por inteiro
aos encantos de Olga e feliz mora
no seu delicioso cativeiro .
A sós no quarto dela conversando ,
no jardim de mãos dadas desfrutando
a hora matinal do seu passeio ,
vive assim o amor, e com que enleio:
o seu arroubo é terno , extasiado ,
mas o pudor só um instante breve
lhe dá folga e ele se atreve ,
pelo sorriso de Olga encorajado ,
a tocar-lhe num caracol querido
ou a beijar-lhe a fímbria do vestido .

XXVI
Entretém-na às vezez com a leitura
de algum romance moralizador,
em que o autor conhece a natura
como um Chateaubriand , ou melhor,
e, corando , omite , precavido ,
duas , três páginas - faz sentido
(tolices ocas ou fantasiosas
são para peitos virgens perigosas) .
Apartados de toda a companhia,

91
jogam ao xadrez sem grandes zelos ,
apoiando na mesa os cotovelos ,
muito pensativos todavia,
e à mão lenta de Lênski ocorre
tomar c ' o peão a própria torre .

XXVII
Já em casa , Olga ainda domina
o seu espírito , Olga reina ainda:
Lênski abre o álbum da menina
e apl icadamente o alinda.
Ora desenha paisagens rurais ,
o templo de Cípri s , pedras campais ,
o u u m pombinho n a lira pousado ,
à pena e suavemente tintado ;
ora , nas folhas da «Memória» ,
por baixo das outras assinaturas ,
deixa um verso cheinho de ternuras ,
silente monumento , do sonho a história,
rasto longo de um pensamento breve
que ainda longos anos se conserve .

XXVIII
O leitor tem por certo folheado
algum álbum de moça provincial ,
pelas amiguinhas enodoado
de iníc io ao fim , e no qual ,
com desrespeito pela ortografia ,
e m verso manco e sem poesia,
alongado , abreviado , incerto ,
há poemas amávei s , mas sem metro .
Na pri meira folha decifraremos :
Qu 'écrirez-vous sur ces tablettes ?
E assinado: toute à vous Annette ;
e , na última , o convite leremos:
« Quem de ti mais do que eu gostar
venha aqui depois de mim grafar» .

92
XXIX
Dois corações , tocha, flores aos centos ,
é inevitável encontrar;
aqui lerá decerto juramentos
de amor até à pedra tumular;
algum poeta do exército , inspirado ,
rabiscou um versículo celerado .
Confesso , amigos , que num álbum assim
dá prazer escrever também a mim ,
com a certeza na alma e na mente
de que um qualquer meu disparate ,
desde que grafado com toda a arte ,
vai merecer um olhar benevolente
e ninguém - ar perito , rir maldoso -
opinará se é ou não espirituoso.

XXX
Quanto a vós , tomos desarticulados
das bibliotecas infernais ,
vós , sumptuosos álbuns dos diabos ,
tortura dos rimadores actuai s ,
vós , retocados à pressa c ' o pincel
milagreiro de Tolstói ou , a par dele ,
co ' a pena de Baratínski sublime ,
que o relâmpago de Deus vos fulmine !
Quando brilhante dama , superior,
me estende vivamente o seu in-quarto ,
no fundo da minha alma , de um jacto ,
crescem a raiva surda e o tremor
e ferve dentro de mim um epigrama,
mas é madrigal o que me reclama !

XXXI
Madrigais é que Lênski não burila
no álbum da sua Olga; é prece
de amor o que a sua pena respira
e com graça sem frieza resplandece;

93
tudo o que nela nota ou dela escuta
põe nos seus versos em catadupa:
e com verdade viva, corredias ,
vão seus rios largos de elegias .
Assim tu , Iazíkov inspirado ,
nos lances do teu coração também
celebraste só Deus sabe a quem ,
e tuas elegias são legado
que do teu destino fará história
e da tua vida guardará memória .

XXXII
Mas , chiu! Um crítico severo , sabias ? ,
manda-nos tirar d a cabeça a s flores
da pobre coroa das elegias
e grita à nossa gente , os rimadores:
«Deixai de vos carpir, de chorar,
de coaxar sempre o mesmo , repisar,
lamentar o passado, o inexistente:
basta , cantai-nos coisa diferente ! »
- Tens razão . E o teu dedo a indicar
a corneta , a máscara e o punhal ,
e , das ideias , o morto capital
mandarás sem falta ressuscitar.
Não é verdade , amigo? - Nada disso:
«Escrever odes , senhores , é preciso ,

XXXIII
como na grande época dos anai s ,
como s e estabeleceu antigamente . . . »
- Só odes solenes e triunfais !
B asta, amigo ; «O que há nisso tão diferente?»
Lembra-te do que afirma o satírico !
Será para ti o manhoso lírico
do «Parecer alheio» mais convincente
que a nossa triste rimadora gente?
«Mas tudo é tão oco em elegia,

94
tão fútil e pobre o seu objectivo ,
enquanto o da ode é farol erguido
e nobre . . . » Aqui bem se poderia
discutir, mas calo-me e assim fico:
não quero pôr dois séculos em conflito .

XXXIV
Amando Lênski glória e liberdade ,
com alto pensamento e fantasia,
teria escrito odes , é verdade ,
mas Olga decerto as não leria.
Acaso os poetas lacrimejantes
liam já às suas damas amantes
as próprias obras? Sim , e ouvi dizer:
maior recompensa não pode haver.
Ditoso é o amante modesto
lendo os sonhos de que é autor
ao objecto do seu canto e seu amor,
à bela posta em lânguido gesto !
Ditoso . . . bem , se não for o avesso
e algo a distraia mui diverso .

XXXV
Quanto a mim , tenho por confidente
de meu sonho e harmónica veleidade
a minha velha ama tão somente ,
companheira da minha mocidade ;
ou , após um ágape tedioso,
agarro pela aba algum vizinho nosso
e longamente o estrangulo a um canto
com uma tragédia. Entretanto
(fora de brincadeiras) , torturado
pela mágoa e pelas rimas , vagueio
pela margem do lago e de permeio
assusto um bando de patos bravos:
ouvindo das estrofes a voz canora ,
levantam voo e vão-se embora .

95
XXXVI , XXXVII
E Onéguin? Nem de propósito , irmãos !
Mas tende paciência , pelo menos:
vou agora mesmo lançar mãos
ao rol dos seus afãs quotidianos .
Vida de anacoreta , frugal ;
no Verão erguia-se às seis e tal
e , de roupa leve , ia ligeiro
até ao rio sob o outeiro .
Imitando o cantor de Gulnare ,
atravessava a nado este Helesponto ,
depois o café , algum jornal tonto
à sua frente para folhear,
e vestia-se . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

XXXVIII , XXXIX
Sonos profundos , passeios , leitura,
sombra do bosque , canto do ribeiro ,
da loira jovem a fresca ventura
de uns olhos negros e de um beijo,
cavalo brioso mas obediente ,
almoço esmerado o bastante ,
na companhia de um bom e leal vinho ,
a sol idão , o si lêncio divino:
esta a vida santa de Eugénio, sem mais .
A ela se entregou , despreocupado ,
sem o desejo de estar noutro lado ,
sem contar os dias , belos , estivais ,
esquecendo a cidade , os amigos ,
o tédio dos eventos festivos .

XL
O nosso Verão nortenho , todavia,
dos invernos do sul caricatura,
embora não queiramos admiti-lo ,
é um pobre verão de pouca dura.

96
Já o céu respirava um ar de Outono ,
já tudo brilhava pouco em torno ,
o dia mais curto , mais branda a luz ,
já a sombra misteriosa se reduz
nos bosques nus com sons angustiados ,
a névoa leitosa cobre os campos ,
estendem-se as caravanas de gansos ,
estridentes, rumo ao sul ; são chegados
os dias tristes , quase a estação morta;
é o Novembro a bater à porta .

XLI
Desponta a aurora na bruma fria;
nos lavradios calou-se a restolhada;
com a sua loba faminta , saía
o lobo à boca da estrada;
rincha e bufa a montada aflita
ao cheirá-lo , e o ginete , a toda a brida ,
fá-la subir a colina escarpada .
O pastor não madruga e , à alvorada,
já não leva as vacas do curral ,
já não toca a corneta ao meio-dia
a juntar o gado que longe pascia;
a donzela23 fia na isbá ,
cantando , e a crepitante estilha ,
amiga das noites invernais , brilha.

XLII
Já corta e racha o ar o frio
e nos campos tudo é prateado
(o leitor espera aqui a rima «rio» -
pois bem , toma lá o desejado ! )
Mais cuidado que u m parqué d e estilo ,
brilha o rio , coberto de gelo .
A tribo alegre das gentes infantis
risca-o com os rangentes patins24;
um ganso gordo , patas rubras , tem ganas

97
de entrar na água e de nadar,
pisa o gelo , moroso , devagar,
escorrega e cai de pantanas ;
esvoaça, rodopia, alegre ,
como estrelas caindo , a primeira neve .

XLIII
Que fazer neste deserto gelado?
Passear? Mas a aldeia e a redondeza
aborrecem os olhos (demasiado)
com a monótona , crua nudeza .
Andar a cavalo na estepe dura?
Mas o cavalo ali não se segura,
escorrega no gelo irregular,
tropeça e é capaz de tombar.
Enfia-te então sob o tecto triste ,
lê: tens aqui Pradt, Walter Scott .
Não te apetece? Bem , é pouca sorte ,
faz contas , ira-te , bebe , insiste
e , em dias de tédio eterno ,
passarás lindamente o teu inverno .

XLIV
Onéguin , um Childe Harold modelo ,
entrega-se à pensativa preguiça:
acorda, entra na banheira com gelo ,
depois mergulha numa vida lisa
e sozinha à volta do bilhar -
cálculos infindos e , para tacar,
duas bolas só , o taco embotado ,
a solidão incómoda a seu lado .
Já a noite rural vai caindo ,
o taco é esquecido . A mesa à lareira,
Lênski não tarda ali à sua beira,
a troika dele já se está ouvindo .
O soturno Eugénio ergue a cabeça -
venha de lá a ceia , e depressa !

98
XLV
É trazido o Moet num breve instante ,
ou a Veuve Clicquot abençoada,
mas em honra do poeta somente ,
na sua grossa garrafa gelada.
O vinho cintila como Hipocrene ,25
borbulha, crepita, espuma e treme
como . . . (escolham-se as comparações) ,
brilham seus reflexos como sói s .
Dantes e u era dele um cativo ,
levava-me o ú ltimo dinheiro ,
e que loucuras , que alegre devaneio ,
que poemas , lembras-te , meu amigo? ,
seu jorro milagroso disparava,
que disputas , que asneirada brava !

XLVI
Mas a sua espuma crepitante ,
com o tempo , meu estômago atraiçoou
e hoje não sou dele um praticante ,
prefiro-lhe o sensato Bordeaux.
Nem o Ay, muito menos , eu tolero ,
não o bebo , não posso e não quero .
Ay, digo-te , és espampanante
como leviana, ági l amante ,
fútil , voluntariosa e tola . . .
Tu , Bordeaux , és como um bom amigo
e pode-se contar sempre contigo ,
a tua presença sossega e consola,
em todo o lado és parceiro perfeito .
Ah , Bordeaux , nosso amigo do peito !

XLVII
As brasas mortiças - o fogo morre -
estão cobertas de cinza ligeira;
O fumo é um fio leve que sobe
quase invisível , e a lareira

99
respira tepidez . O espevitado
fuminho dos cachimbos é aspirado
pela chaminé . Na sala o dia fi nda ,
uma taça clareia e borbulha ainda . . .
(Que bom tagarelar com um amigo
diante do copo de vinho amistoso
nesta hora de nome duvidoso
«entre chien et loup» - não consigo
entender tal denominação .)
Ouça-se a conversa amena então :

XLVIII
«Como está Tatiana? As vizinhas?
A tua Olga traquina como passa?»
- Serve aí me io copo . . . Pois . . . estão finas . . .
chega, só meio . . . Tudo bem lá em casa;
mandam-te cumprimentos , saudades.
Ah , querido amigo , que beldades !
Olga então , que belos ombros e peito !
E que alma ela tem ! . . . Mas eu repito :
tens de as visitar, vão ficar felizes .
Algum dia, íamos lá os dois ,
senão vê: vais lá duas vezes e depois
não apareces mais nem nada dizes .
Oh . . . mas estou a ser parvo eu também !
Convidam-te para a semana que vem .

XLIX
«A mim? - A ti . No sábado que vem
é o aniversário de Tatiana.
Mandaram-me dizer-te a Olga e a mãe .
Deves ir, a data o reclama . -
«Mas vai estar lá um mar de gente
de toda a espécie e , por mais que eu tente . . . »
- Nada disso , ninguém , qual quê !
Quem? Só a família, já se vê .
Diz que sim , vá lá, faz-me esse favor !

1 00
Então? - «De acordo .» - Ah , és um bom amigo ! -
Brindou a Tatiana de copo erguido ,
esvaziou-o num gesto de fulgor
e logo voltou , como era previsto ,
ao tema de Olga: o amor é isto !

L
Exultava e suportava mal
a espera do dia feliz. Ansioso
pelo segredo da cama nupcial
e a coroa do amor delicioso ,
pesavam-lhe os quinze dias de espera .
Seu fascinante sonho não considera
agruras , tristezas , fileiras frias
de bocejos , disputas , arrelias
do Himeneu . Mas nós , tendo descrido ,
vemos só na vida familiar
cansaço sucessivo , sem parar,
romance à la Lafontaine26 aborrecido . . .
Pobre Lênski , o seu coração crente
nasceu para esta vida exactamente .

LI
Era amado . . . pelo menos , assim pensava,
e feliz . Quem crê incondicionalmente ,
quem , com a razão fria aquietada ,
mantém em doce repouso permanente
o coração - é cem vezes ditoso ,
como viajante ébrio em gozo
da pernoita ou , dito com ternura ,
como borboleta que s e segura
à flor primaveril; mas desgraçado
o que tudo prevê , não perde a cabeça,
vê o lado feio , a mente que processa
gestos , palavras , sem lhe escapar nada.
Coração esfriado por tanto tormento
que lhe está vedado o esquecimento !

101
QUINTO CAPÍTULO

Oh , não tenhas esses terríveis sonhos ,


minha S vetlana !
Jukóvski

I
Naquele ano , um outono de veneno
durava sem fim e com rigidez .
A natureza bem esperou o Inverno ,
mas só nevou em Janeiro , dia três ,
à noite . De manhã cedo , ao acordar,
Tatiana pôde contemplar
pela janela o quintal alvacento ,
canteiros , cerca, muros - tudo branco ,
nas vidraças ramagens delicadas ,
árvores, de prata invernal tingidas ,
no pátio brincam as pegas divertidas ,
as colinas estão todas recamadas
pelo tapete luzidio e terno
da deslumbrante neve do Inverno .

II
Inverno ! . . . O camponês , encantado ,
estreia no trenó o caminho branco;
o cavalinho , em trote descuidado ,
fareja a neve e vai avançando ;
uma charrete audaz corre , corre ,
abrindo sulcos na neve vaporosa,
o cocheiro atroa na boleia,
de peliça e cinta vermelha .
Como o filho dos criados se diverte:
põe no trenó o cãozinho Suspiro
e transforma-se em cavalo de tiro .
Já tem a mão gelada o diabrete ,
dói-lhe , mas como se regozija,
da janela a mãe abana o dedo , avisa . . .

III
Bom , talvez as cenas neste tom menor,
de tão vulgar e humilde proveniência ,
não atraiam muito o meu leitor:
baixa natureza , nenhuma elegância.
Aquecido pelo deus inspirador,
um outro poeta, em estilo maior,
pintou para nós a primeira neve
e os encantos invernais como se deve ;27
decerto vos cativa ao reproduzir
em ardentes versos irrequietos
os passeios de trenó secretos;
mas não tenciono competir
para já, nem com ele , ora essa,
nem c' o cantor da jovem finlandesa !28

IV
Tatiana (o porquê não sabia,
russa como era até à alma)
amava, com a sua beleza fria ,
o inverno russo , esta gelada calma ,
a geada brilhando ao sol , a neve ,
o trenó e , na aurora tardia, o leve
esplendor das neves cor-de-rosa
e, da Epifania, as tardes brumosas .

1 04
Lá em casa, por um costume arcano ,
celebram-se estas tardes de adivinhas :
as criadas lêem a sina às meninas
e prometem-lhes ano após ano
que cada uma delas apanha
marido militar e uma campanha .

V
Tatiana tem granítica fé
nas antigas crenças populares;
nos sonhos e nas cartas ela crê
e nos vaticínios lunares .
Os presságios apertam-lhe o peito ,
cada coisa tem misterioso efeito .
O gato dengoso ronronando
em cima do fogão e lavando
o focinho com a pata: sinal certo
de visita iminente para ela.
Ao ver de súbito , à janela,
à esquerda do céu , ali tão perto ,
os dois cornos finos da lua nova,
Tatiana vê nisso uma prova

VI
de desgraça e treme , empalidece .
Ora, quando uma estrela cadente
voa célere pelo céu e fenece ,
Tânia toda se afoba e , urgente ,
segreda-lhe um desejo bom
enquanto a estrela vem ainda em voo .
Quando lhe acontece cruzar um frade ,
ou uma lebre a grande velocidade
no caminho se lhe atravessa ,
de medo , não sabe o que há-de fazer
e , com pressentimentos de estarrecer,
espera, amarga e opressa,

1 05
pálida , menos viva do que morta ,
que a desgraça lhe bata à porta.

VII
Pois bem , mas encontrava um encanto
no próprio terror: assim nos cria
a natureza, em nós cultivando
a propensão para a antinomia.
Alegria! O Natal em festa é chegado !
Lê a boa ou má sina a mocidade ,
a quem nada pesa, a quem a vida
se abre luminosa e infinda;
com óculos , lê a sina a velha guarda,
a caminho da infalível cova,
com tudo perdido , nada retoma;
não importa, a esperança calada
mente , mesmo presa por um fio,
a todos, num infantil balbucio .

VIII
Tatiana observa, curiosa,
a cera a transformar-se , derretida:
a sua ramagem maravilhosa
promete-lhe maravilha na vida;
são tirados da água dum prato
os anéis ; o dela calhou no acto
em que se entoava uma trova
das mais antigas , à velha moda:
«Ricos homens há lá, gente abastada
carregando à pazada o seu ouro:
a quem calhar esta moda auguro
glória e fortuna ! » Mas a toada
da trova só prevê perda daninha;
às moças agrada mais a «Gatinha»29 •

1 06
IX
Noite de gelo. No céu limpo , quieto ,
melodioso , tão afinado ,
o coro de astros navega em sossego . . .
Tânia , de vestido decotado ,
sai ao terreiro amplo e na rua
aponta um espelhinho para a lua,
mas no vidro escuro só pode ver
a lua triste a estremecer. . .
A neve range . . . vem alguém . . . Cauta,
na ponta dos pés , vai ao seu encontro
e a sua vozinha fala para o outro
mais terna do que meiga flauta:
Como se chama ? 30 Ele olha e , bom ,
diz o seu nome simples: Agafon .

X
Para as artes da noite (a ama ensinou-a) ,
mandou pôr em segredo mesa p ' ra dois
na cabana dos banhos , mas assustou-a
o que podia acontecer depois . . .
Também eu , lembrando Svtelana,
me apavorei . Assim , nós e Tatiana
não lemos o futuro desta vez .
O laço da faixa de seda desfez ,
despiu a roupa e , triste , deitou-se .
Paira o deus Lei sobre a Tatiana
e, sob a almofada macia da cama,
para um sonho adivinho e doce ,
o seu espelhinho . Tudo conforme .
Calou-se o mundo . Tatiana dorme .

XI
Que sonho misterioso ela teve:
caminha numa clareira , à sorte ,
atapetada com lençol de neve ,
no meio da névoa triste do norte ;

1 07
por entre as lombas de neve , em frente ,
ruge uma escura e forte corrente ,
ci nzenta, livre do gelo invernal ;
uma pontezinha frágil , mortal -
tábuas trémulas coladas pelo frio - ,
atravessa de margem a margem ,
periclitante como uma miragem ,
aquele estranho e tormentoso rio .
Tânia, perplexa, olha para as tábuas ,
parada à beira das revoltas águas .

XII
Que empecilho i rritante , Virgem nossa -
maldiz Tatiana o rio selvagem;
e ninguém à vista , ninguém que possa
estender-lhe a mão da outra margem .
Mas uma lomba ondula, mexe ,
e quem lá de dentro lhe aparece?
Um urso enorme e todo eriçado .
Tânia grita . O urso ruge um brado
e estende a pata de garras agudas ;
ela aceita - o seu ânimo abranda,
mas tinha de passar para a outra banda
e não havia ali outras ajudas - ,
atravessa num tímido passo ,
segue . . . e o urso vai-lhe no encalço !

XIII
Tatiana nem ousa olhar para trás ,
estuga o passo , mas bem o sente
pelas costas e vê que não é capaz
de fugir ao criado i mpertinente .
De bafo roufenho , aquela praga
definitivamente não a larga.
Em frente é um pinhal . Não a ajuda
aquela beleza imóvel , carrancuda;
os ramos arreiam sob a carga

108
da neve ; através das copas fendidas
de álamos , tílias , bétulas despidas
raia dos astros da noite a luz magra;
tudo se afunda no nevão espesso:
caminho , moita , ravina, cabeço .

XIV
No bosque o urso segue-a, persistente ;
macia, a neve chega-lhe ao joelho;
um galho ora se lhe prende
ao pescoço , orelhas , ao cabelo ,
e lhe arranca até os brincos de ouro;
ora o sapato , que foi leve e duro ,
se atola, encharcado e mole , na neve ;
ora deixa cair o lenço e deve
apanhá-lo - não pode , tanto medo sente - ,
ouve o urso atrás dela a arfar
e até tem vergonha de levantar
a aba do vestido com a mão tremente ;
ela corre , o urso corre ; quer avançar,
não pode , fica presa ao lugar.

XV
Cai e logo o urso acorre , lhe pega
e para cima do lombo a atira ,
Tânia nem dá conta que ele a leva,
não se mexe , mole , não respira;
mas sente que ele se orienta
por uma senda do bosque , fica atenta .
De súbito , numa brenha cerrada:
uma pobre cabana cambada
num deserto de neve onde arde
uma luz forte que sai pelo postigo ;
e gritos , pancadas , grande alarido .
Diz o urso : «Está lá o meu compadre :
vai e aquece-te .» Entra de rajada
e pousa Tânia no chão da entrada.

1 09
XVI
Tânia cai em si: já não vê o urso ,
ouve atrás do tabique divisório
gritos de uma bebedeira em curso ,
como num grandioso velório .
Espreita a medo pela frincha , para ver,
e o que vê? À mesa, a comer e a beber,
. . .

estão mostrengos sem comparação:


um é cornudo com focinho de cão ,
h á outro com cabeça de galo,
uma bruxa com barbicha de bode ,
um esqueleto que , tanto quanto pode ,
se faz soberbo e grave; e a ladeá-lo ,
um anão com caudinha de rato
e um ser meio grou e meio gato .

XVII
Ainda mais lhe arrepia o cabelo:
um caranguejo uma aranha montando ,
um crânio de barrete vermelho
num pescoço de ganso girando .
Um moinho que dança, dobra o joelho
e range as asas de moinho velho;
um ladrar, rir, cantar sem intervalos ,
vozear humano, tropel de cavalos !3 1
Mas Tatiana pensa o quê
quando , entre a horrenda companhia,
aquele que tanto amava e temia,
herói deste romance , ela vê?
Onéguin preside ao ágape , altaneiro ,
e lança à porta u m olhar sorrateiro .

XVIII
A um sinal - todos se desunhavam ;
bebia - todos gritavam , bebiam;
ria - todos, eufóricos , gargalhavam;
franzia o cenho - todos emudeciam;

1 10
com que então ele era o mestre , claro .
E já o medo dela era mais raro
e até curiosa se sentiu
e a porta levemente entreabriu . . .
Então um vento forte , repentino ,
apagou todas as luzes da sala
e a corja horrorosa ficou sem fala;
Onéguin chispa do olhar aquilino ,
levanta-se , brusco , da mesa torta;
todos se erguem; ele vai até à porta.

XIX
Que medo ! Tatiana, aflita,
tenta fugir: tentativa baldada.
Em pânico , abre a boca e grita,
mas da boca não lhe sai nada.
Eugénio empurra então a porta,
e a pobre menina fica exposta
à vista dos fantasmas infernais;
soam risos selvagens , animais .
Todos os olhos , cascos , trombas tortas ,
rabos com borlas , línguas sangrentas ,
dedos descarnados , mãos purulentas ,
bigodes , cornaduras , carnes mortas
apontam para ela o esgar ruim ,
tudo grita: é para mim , para mim !

XX
Para mim ! - corta Eugénio com ameaça,
e a corja desaparece num instante .
Na escuridão gelada fica a moça
a sós com ele na espera angustiante .
Onéguin leva em braços32 com cautela
a Tânia para um canto , cuida dela ,
deita-a num frágil banco corrido ,
sobre o seu ombro fala-lhe ao ouvido .
De súbito entra Olga e Lênski atrás ,

111
bri lha uma luz , Onégu in ergue a mão ,
seus olhos lançam um brilho malsão ,
n inguém sabe do que será capaz .
Impreca a parelha intrometida;
Tatiana está quase sem vida .

XXI
Sobe a disputa de tom; surge , tenso ,
na mão de Eugénio um punhal comprido ,
Lênski tomba - o escuro fica mais denso
e terrível , um grito desmedido
soa . . . a choça balança , qual barca incerta . . .
e , em terror, Tatiana desperta . . .
Vê que entra já no quarto a claridade ;
na vidraça gelada já arde
e brinca o raio rubro da aurora;
abre-se porta . Olga, as faces coradas ,
mais vivas que nórdicas alvoradas ,
mais leve que andorinha, entra agora .
«Diz - pergunta num tom claro , risonho - ,
esta noite quem viste no teu sonho?»

XXII
Folheia um livro na cama deitada
e não lhe presta atenção Tatiana,
folheia, folheia e não diz nada.
O li vro que levava para a cama ,
nada de sublime oferecia:
nem sábias verdades , nem poesia -
a doce fantasia do poeta -
nem qualquer cena aos olhos predilecta .
Mas ninguém - nem Virgílio , nem Racine ,
nem Byron , nem Séneca, nem Scott -
exerceram uma atracção tão forte
(nem mesmo o Moda Magazine)
como Zadeka33 , autor do livrinho:
caldeu , leitor de sonhos , adivinho .

1 12
XXIII
Este Martin Zadeka sedutor,
obra de profunda sabedoria ,
fo i trazida por um mercador
e caiu nas mãos de Tânia um dia .
Com uma desconjuntada Malvina,
além de três rublos e meio ainda,
o ambulante levou , ao todo ,
duas Petríadas , fábulas para o povo,
uma gramática, o tomo terceiro
de Marmontel . Martin Zadeka
tornou-se de Tânia a obra predilecta . . .
Lenitivo das tristezas que veio
trazer remédio a Tatiana
e dorme , infalível , na sua cama .

XXIV
Inquieta com o sonho , sem atinar
no que significa, qual o seu apelo ,
Tatiana tenta encontrar
o sentido de tão ruim pesadelo .
N o índice breve ela procura ,
por ordem alfabética: «abertura ,
abeto , bruxa, nevasca , ouriço ,
pinhal , ponte , tábua , urso» , mas isso
nada resolve . O Martin Zadeka
não lhe dá pistas , mas o agoirento,
lúgubre sonho dá-lhe o sentimento
de um futuro triste que se acerca.
Depois , no seu dia-a-dia tristonho ,
ainda a inquietava o sonho .

XXV
Mas já a mão púrpura da aurora34
traz , com o Sol , dos vales matinais ,
a alegre festa de Tânia, é agora
o seu «dia de anjo» . Pontuais ,

1 13
chegaram famílias completas
de convidados: nas charretes ,
britchkas , trenós , como puderam ,
e pela casa toda se dispuseram .
São recebidos na sala de estar
por latidos de cães , beijos de meninas ,
alarido , risos , pantominas .
Vénias , rapapés de quem está a entrar,
aperto à porta , confusão danada,
gritos de amas , choros da criançada.

XXVI
Com a sua esposa corpulenta
chegou Pustiakov, o gordo ;
Gvozdin , senhor de terra sumarenta
e de muj iques na miséria em desacordo ;
os Skotínin , velho casal e a fi lharada
de todos os tamanhos e idades ,
dos dois aos trinta e tal anos;
Petuchkov, janota provinciano ;
o meu parente , primo Buiánov,
de boné , fato de ci scos coberto35
(tal como o conheceis , decerto) ;
e o conselheiro na reforma Fliánov,
velhaco , intriguista, velho madraço ,
guloso , corrupto e palhaço .

XXVII
Com a família de Panfil Kharl ikov
chegou também mossiú Triquet ,
brincalhão vindo há pouco de Tambov,
de óculos e peruca, perito no couplet.
Como bom francês , arranjou maneira
de trazer versos para Tânia na algibeira,
com base na famosa ária infantil :
Réveillez-vous , belle endormie .
Estas estrofes foram incluídas ,

1 14
entre outras , num velho almanaque ;
Triquet , poeta de engenho e arte ,
tirou-as da tumba para a luz, brunidas :
em vez do defunto belle Nina ,
introduziu belle Tatiana .

XXVIII
E já, das redondezas cercanas ,
chega das meninas maduras o alento ,
o ai-jesus das mamãs provincianas :
o comandante do regimento .
Entra e . . . Ah , que boa novidade ,
virão os músicos da unidade !
O próprio coronel deu a ordem .
Podem contar com o baile? Podem !
Aos saltinhos todas as raparigas ;36
mas a mesa está posta: em procissão ,
vão aos pares , braço dado o u mão n a mão .
Junto de Tatiana sentam-se as amigas ,
os homens em frente . Afã que se repete ,
com muito sinal da Cruz e apetite .

XXIX
Por algum tempo cessam as conversas ;
as bocas mastigam . Só se ouve no ar
o som dos pratos , talheres , travessas
e o cristal dos copos a tilintar.
Aos poucos , ergue-se a tagarelice ,
os convidados começam a exprimir-se .
E já ninguém ouve ninguém: refilam ,
riem, gritam , discutem e pipilam .
Abrem-se os batentes de rompante:
entra Lênski , por Onéguin seguido .
«Ah , graças a Deus ! » é o grito sentido
da dona de casa. «Finalmente ! »
Apertam-se , ajeitam-lhes lugar
para que os dois se possam sentar.

1 15
XXX
Sentam-se . Tânia está do outro lado ,
mais pálida que a Lua matinal ,
mais trémula que um gamo acossado ,
de olhos baixos , turvados - está mal ;
queima-a um calor em todo o corpo ,
sufoca, tem vertigens , o olhar morto ;
não ouve os parabéns dos dois amigos ,
a lágrima à flor dos olhos , zumbidos;
está à beira do desfalecimento ,
mas chama a si a força de vontade
e domina-se . Com debilidade ,
esconde a pontada do sofrimento ,
sussurra duas palavras , opressa,
e continua, sofredora, à mesa .

XXXI
Fenómenos neuro-trágicos não .
Há muito que Eugénio não suportava
lágrimas , desmaios , sufocação
das meninas . Viu demai s , fartava .
Ver-se naquele banquete enorme
irritou-o . E quando viu a disforme ,
trémula reacção da débil moça ,
baixou os olhos , melindrou-se .
Cresceu nele a pura indignação ,
mas contra Lênski , e jurou , solene ,
enraivecê-lo , vingar-se dele .
E , rejubilando de antemão ,
começou a desenhar mentalmente
caricaturas de todos ali presentes .

XXXII
Não só Onégui n , como é bom de ver,
percebeu a turvação de Tatiana;
só que nesse momento estava a ser
alvo de olhares e opiniões a trama

1 16
dum empadão gorduroso cortado
(que pena, demasiado salgado)
e duma garrafa lacrada que se vê ,
entre a carne assada e o blanc-manger,
dum espumante a que não levam a palma;
e os copos longos e estreitos , menina,
como a tua cinturinha fina,
ó Zizi , cristal da minha alma,
musa dos meus versos , ó sedutora
taça do amor que me embriagou outrora !

XXXIII
Liberta da rolha húmida a garrafa,
com um estoiro alegre , o vinho esfuzia;
e um Triquet solene que há muito abafa
de tormento pela sua poesia,
levanta-se - fim da impaciência;
guarda fundo silêncio a assistência.
Meio morta a Tânia; Triquet que a olha,
empunhando bem alto a folha,
ergue a voz , desafina . . . e embala.
Palmas , exclamações , «muito bem ! »
Tatiana obriga-se , sabe que tem
de fazer-lhe a reverência . Fá-la.
O poeta modesto , mas grande , em pé ,
brinda-lhe à saúde e dá-lhe o couplet.

XXXIV
Felicitações - começa a desfilada
ante Tânia, no seu triste proscénio ,
ainda mais confusa, inerte e cansada
quando chega a vez de Eugénio.
Aquele ar perdido de aflição
despertou nele a compaixão:
fez-lhe uma vénia silenciosa,
mas nos seus olhos alguma coisa
brilhou de ternura , oh , milagre .

1 17
Fosse sincero este sentimento
ou só um lev iano fingimento ,
fosse involuntário ou de verdade ,
Tânia viu ternura nesse olhar
e fez-lhe o coração ressuscitar.

XXXV
O estrondo de cadeiras arrastadas ,
os convidados em chusma , com fragor,
correndo ao salão em revoadas -
assim um enxame ruidoso , zumbidor,
voa do mel da colmeia à campina.
Um conv iva saciado rumina
de prazer, ronrona em frente do parceiro ;
a s senhoras a o lume ; um cantinho cheio
de meninas a cochichar; as mesas verdes
prontas : boston e hombre , fora de moda,
e o whist de sempre , para gente nova -
não há grande variedade , como vedes ,
deste fruto do tédio predador
que seduz o ardente jogador.

XXXVI
Fizeram os heróis do whist, em forma,
oito róberes já, oito mudas de lugar;
servem o chá , como é de norma .
É do meu agrado ritmar
as horas pelo almoço , chá e ceia;
não é difícil sabermos , na aldeia,
as horas : o estômago é aquele ,
dos nossos relógios , o mais fiel .
Entre parênteses, e a este respeito ,
falo , nas minhas poéticas fainas ,
de banquetes , pratos, comezainas ,
e rolhas de garrafas a eito ,
como tu , ó Homero sagrado ,
trinta séculos idolatrado .

1 18
XXXVII , XXXVIII , XXXIX
Enfim o chá: mal as donzelas pegam
nos pires com esmero e delicado porte ,
da sala grande , pela porta , chegam
os sons da flauta e do fagote .
Rejubilando com a música , já
(arredando a chávena de rum com chá)
Petuchkov, Páris das redondezas ,
convida Olga; e Lênski , sem pressas ,
busca Tânia; à bem madura, mas um mimo ,
menina do clã dos Kharlikov,
leva-a o meu poeta de Tambov;
e, à jovem Pustiakova, o meu primo .
Assim entrou na sala toda a gente
e o baile anima-se , resplendente .

XL
No início queria descrever
(primeiro caderno , consulte ali) ,
um baile de Petersburgo a valer,
à boa maneira de Albani;
distraído porém com fúteis sonhos ,
dei-me às lembranças e só tinha olhos
para os pezinhos do meu encanto .
Ah , pezinhos, basta entretanto
de vagar por vossas finas pegadas !
Já que a juventude me veio a trair
é tempo da sensatez , de corrigir
minha conduta , estilo, qualidades
e depurar sem contemplações
este quinto caderno das digressões .

XLI
Gira monótono e alucinado ,
como a vida moça a rodopiar,
o turbilhão da valsa desvairado ;
relanceia aos olhos , par atrás de par.

1 19
A hora da vingança estando perto ,
Onéguin sorri para dentro e , no aperto ,
encontra Olga . Sorrisos a rodos
e não tarda , à frente de todos ,
a valsar veloz com ela. Pausa.
Senta-a na cadeira, conversa
dois minutos que passam depressa
e de novo voltam velozes à valsa.
O pasmo é geral . Mas isto é o quê?
Lênski nem acredita no que vê .

XLII
Rebentou a mazurca. Outrora,
quando a mazurca travejava ,
tudo tremia na sala sonora ,
o tacão no parqué martelava ,
abanavam tinindo as molduras ;
hoje não: como damas inseguras ,
deslizamos pelo parqué , suaves .
Nas aldeias e pequenas cidades ,
a mazurca ainda conservou
sua rude beleza pioneira:
tacões , sapateado , bigodeira
são os mesmos: não os deturpou
a moda, nossa tirana eleita,
dos russos moderníssimos maleita .

XLIII , XLIV
Meu primo B uiánov, em suor e fogo ,
levou a Onéguin o par,
Olga ou Tânia, e ele escolheu logo
a Olga e levou-a a dançar;
condu-la, deslizando sem esforço ,
inclina-se para o seu pescoço
e segreda-lhe um madrigal vulgar,
aperta-lhe a mãozinha devagar -
as faces de Olga ardem, vaidosas ,

1 20
num fogo novo. Lênski viu esse lume:
corou de indignação e ciúme ,
esperou pelo fim das voltas estrondosas
da mazurca e, em trémulo tom ,
foi convidar Olga para o cotillon .

XLV
Olga não pode , lamenta, prometeu . . .
Não pode? A quem? Isso não s e faz .
Prometeu a Onéguin? Oh , deuses do céu !
O que está a ouvir? Como foi capaz . . .
Mal saiu da casca, pinto leviano ,
e já coquete , perita no engano !
Já sabe usar da manha, já endromina ,
já aprendeu a traição viperina!
Lênski não suporta o golpe , espuma;
e, com a raiva a empurrá-lo ,
execra as mulheres , pede o cavalo.
Galopa . Solução só vê uma:
pistolas , duas balas à hora de alba -
destino resolvido , a honra salva.

121
SEXTO CAPÍTULO

Là , sotto i giorni nubilosi e brevi ,


nasce una gente a cui l ' morir non dole . *
Petrarca

1
Ao ver que Vladímir tinha partido ,
Onéguin , de novo desmotivado ,
cisma ao lado de Olga, aborrecido ,
mas , pelo menos, sente-se vingado .
Com ele boceja Olga também,
procura Lênski com os olhos sem
ver o fim ao cotillon enfadonho
como indesejável , penoso sonho .
Acabou , vão para a mesa da ceia.
Desde o vestíbulo ao quarto das criadas
esvoaçam roupas , lençóis , almofadas :
fazem as camas , toda a gente anseia
por um sono tranquilo - uma festa arrasa.
Só o meu Onéguin foi dormir a casa.

* Lá, sob os dias nebulosas, breves ,


nasce uma gente a quem morrer não dói .
II
Chega a calma: numa sala, com alarde ,
ressona o pesado Pustiakov
junto à pesada cara-metade .
Gvozdin , Buiánov, Petuchkov
e Fl iánov, um pouco indisposto ,
improvisam em cadeiras o repouso
na sala de jantar, e Triquet no chão ,
c ' o barrete velho e o camisolão .
O sono abraça todas as meninas
nos quartos de Olga e Tatiana.
Alumiada pela luz de Diana,
olhando a escura campina,
está Tânia triste e só à janela.
Todas as outras dormem menos ela.

III
Aquela imprevisível chegada,
o lampejo nos olhos , de ternura,
a conduta com Olga , inexplicável ,
atormentam-na até à fundura
da alma: não pode compreendê-lo;
é como se a queimasse o gelo
da angústia ciumenta e mão fria
lhe cerrasse o coração ; sentia
por baixo dela um abismo negro
e turbulento . . . Tatiana diz:
«Assim me perco, oh , sina infeliz ,
mas , vinda dele , com doçura a carrego .
Queixar-me? Mas se não pode dar-me
agora e nunca a felicidade ! »

IV
Avante , avante , minha história!
Nova personagem nos desafia.
A uma légua de Krasnogórie ,
a aldeia de Lênski , vivia

1 24
e vive são e salvo até hoje
no seu filosófico refojo
um tal Zarétski , outrora estroina,
cabecilha de afamada corja
de jogadores, mestre pandegueiro ,
tribuno de tasca, mas de momento
pacato senhor de terras , atento
pai de família, mas solteiro ,
bom amigo e até homem honrado:
como o século se tem regenerado !

V
Em tempos, a voz pública lisonjeira
gabava-lhe as piores arremetidas :
acertava num ás à primeira
co ' a pistola a cinco braças medidas .
Era verdade . E também em combate
se distinguiu um dia: num rebate ,
vai no cavalo calmuque , tão borracho
que cai na lama do cavalo abaixo ,
corajosamente . Prisioneiro
dos franceses : ah , precioso troféu !
Régulo moderno , da honra corifeu ,
sonha voltar de novo ao cativeiro
e cada noite emborcar ali
três litros a crédito no Véry37 •

VI
À s vezes tinha piada, sabia
pregar belas partidas aos patetas ,
enganar o esperto com mestria,
sorrateiramente ou às abertas ;
às vezes os outros não eram brandos
e castigavam-lhe os desmandos;
outras , arranjava sarilho grave
com alguma ingenuidade .
Sabia a arte alegre da disputa,

1 25
dando um troco ora tolo, ora engraçado ,
ou mantendo um mutismo calculado ;
por vezes acirrava à luta
dois jovens desavindos e, sem apelo,
punha-os frente a frente num duelo

VII
ou , ao invés , obrigava-os às pazes,
tomavam o pequeno-almoço juntos
e , pelas costas , difamava os rapazes
com pilhérias , mentiras e insultos .
Sed alia temporal * A ousadia
(como o sonho de amor, outra fantasia)
a par da juventude se fenece .
Zarétski , como atrás se esclarece ,
abrigado por fim dos temporai s ,
vive à sombra das árvores, faz cultivo ,
vero fi lósofo meditativo,
de couves como Horácio , cria animais -
o ganso , a galinha, o pato marreco -
e ensina às crianças o alfabeto .

VIII
Parvo não era; e o meu herói cordato ,
sem lhe apreciar o coração ,
respeitava o seu juízo sensato
com os olhos frios da razão .
Como se viam de quando em quando
e se demoravam conversando
com prazer, Onéguin não estranhou
quando uma manhã o outro entrou
para o ver. Cumprimentos , a conversa,
que Zarétski breve interrompeu
e, com certo gozo nos olhos , deu
a Onégui n um bilhete do poeta .

* Mas os tempos são outros ! (lat.)

1 26
Eugénio afastou-se um pouco dele ,
foi à janela e leu o papel .

IX
Era o que se chama um «Cartel» -
curto , cortês, claro e frio
onde Lênski lançava àquele
que fora seu amigo o desafio .
Onéguin , num impulso primeiro ,
. .

Vlfa-se para o mensageiro


e diz: à inteira disposição .
Levanta-se o outro de supetão ,
não quer esclarecer mais nada ,
devia tratar de uns assuntos ,
em casa os afazeres eram muitos . . .
e sai . A sós coa alma abalada,
ficou Onéguin reflectindo ,
consigo mesmo desavindo .

X
E com razão: vendo rigorosamente ,
chamando-se a si mesmo a juízo ,
era réu culpado sem atenuante :
ponto um: de haver perdido o siso
ao brincar sem pundonor
com um sensível , tímido amor.
Dois : que o poeta cometa asnidade
aos verdes dezoito anos de idade
só merece perdão . Mas ele , maduro ,
apreciando o jovem com afecto ,
não devia ter cedido ao preconceito
nem fazer de garoto imaturo ,
irritado , brigão , atoleimado ,
mas ser homem de razão , honrado .

XI
Deveria pôr a nu o sentimento ,
em vez de se eriçar como uma fera;

1 27
desarmar-lhe naquele momento
o coração jovem . «Mas a espera . . .
Já é tarde , agora , o momento passou . . .
No caso , ainda por cima - lamentou -
se intrometeu o velho espadachim;
é intriguista , linguareiro , ruim . . .
Dá-lo ao desprezo , quem nos dera ,
e ao seu floreado subti l ,
mas o falatório , o riso imbecil . . . »
A opinião pública impera ! 38
Mola da honra , nosso ídolo e culto !
É ela que faz girar o mundo !

XII
O poeta aguarda a resposta em casa
a ferver de raiva impaciente ;
e já o vizinho loquaz
lha traz solene e triunfalmente .
Que festa para o ciumento , que festa !
Já não teme que o garnachão desista
se esqu ive com alguma brincadeira ,
invente manha , léria, frioleira
para salvar o peito da pistola .
Sendo assim, dúvida desfeita:
amanhã têm de ir sem falta
ao moinho ao romper da aurora,
apontarem-se as armas sem pressa
e alvejarem-se , coxa ou cabeça.

XIII
Odiar a coquete sem apelo -
decidira em raivoso alvoroço;
e não a ver antes do duelo .
Olhava o Sol , o relógio de bolso ,
até que . . . ah , são manias minhas ,
e ei-lo já em casa das vizinhas .
Esperava uma Olga perturbada,

1 28
queria impressioná-la, mas nada:
para o bardo infeliz salta , dança
a Olga alegre desde a soleira ,
ági l , despreocupada, ligeira;
como leviana esperança ,
assim lhe dança a Olga inocente ,
tal como dantes , tal como sempre .

XIV
«Ontem, porque se foi daqui tão cedo?» -
perguntou-lhe Olga para começar.
Lênski , c ' os sentimentos num novelo ,
baixa a cabeça e prefere calar
a resposta ao ver o límpido lume
daqueles olhos e já sem ciúme
ante a simplicidade radiante
daquela alma viva e amante ! . . .
Olha-a com enternecimento
e sente-se leve , desarmado ,
ao ver que ainda é amado;
e já, movido pelo arrependimento ,
quer pedir perdão , treme , feliz ,
fogem-lhe as palavras , não as diz . . .

XV, XVI , XVII ·

sente-se quase salvo mas . . . triste


de novo frente ao seu amor,
falta-lhe o ânimo e desiste
de lhe lembrar o dia anterior;
«Assim a vou salvar» , diz para s i ,
«evitarei , não vou consentir
que um depravado queime com a chama
de suspiros e louvores quem ama
de coração jovem e não peca;
que um verme desprezível , venenoso
corroa o caule do lírio formoso;
· que fresca flor de dois dias seque ,

1 29
ainda botão de tenro labelo» .
Ou seja, em suma: vou ao duelo .

XVIII
Ah , se ele soubesse que ferida
queimava Tânia no coração !
Se à Tatiana fosse consentida
do dia de amanhã a previsão
de Eugénio e Lênski , dantes pares ,
disputando as trevas tumulares !
Quem sabe , o amor dela poderia
juntar os amigos naquele dia !
Mas o amor de Tânia nem por sorte
alguém o poderia adivinhar.
O princípio de Onéguin era calar
e Tânia afligia-se de morte
em segredo . Só a ama era capaz . . .
mas não , não era tão perspicaz .

XIX
Lênski esteve toda a santa tarde
ora an imado , ora distraído ,
ora taciturno - é este o fado
de um discípulo da Musa cativo:
de cenho franzido o dia todo .
Ora se senta ao clavicórdio
e só os acordes exercita ,
ora os olhos na sua Olga fita
e sussurra: serei na verdade feliz?
Mas são horas de partir, já é tarde .
Cerra-lhe o coração a ansiedade ,
rasga-lho a partida. E nada diz .
Ela olha-o , nunca assim o viu .
«Ü que tem?» - Nada, nada. - E saiu .

XX
Chegado a casa acendeu a vela ,
examinou as pistolas , a seguir

1 30
repô-las na caixa com cautela,
despiu-se , abriu o Schiller por abrir
pois só um pensamento o consome ;
o seu coração triste não dorme:
a beleza inefável de Olga é tanta
e aos seus olhos tanto se agiganta
que Vladímir fecha o livro e logo
pega na pena, correm-lhe os versos,
desvairados , de amor possessos .
Lê-os em voz alta num afogo
de febre lírica e funesta,
como Delvig , ébrio , numa festa.

XXI
Bom , os versos não se extraviaram ,
tenho-os aqui , leitor, à tua espera:
«Onde , em que túmulo expiraram
os dias d ' oiro da minha primavera?
O que me prepara o dia de amanhã?
Meus olhos perseguem-no - ânsia vã,
esconde-se numa bruma negra .
Que importa , se a lei do destino é cega?
Tudo está bem - acordar e dormir,
se caio pela flecha trespassado
ou se a flecha me passa ao lado ,
tudo tem sua hora e seu devir.
Bendito o dia terreno que levas ,
e bendito o advento das trevas !

XXII
«De manhã brilha o raio da aurora
e o dia luminoso se levanta,
mas talvez eu desça nessa hora
ao abrigo misterioso da campa
e o vagaroso Letes devore
do jovem poeta a memória.
O mundo me esquece , mas tu , ó pura ,

131
vais verter-me na precoce sepultura
uma lágrima? Vais pensar, quem sabe :
ele amava-me e só a mim fazia
o dom da triste aurora sombria
da sua vida em tempestade ! . . .
Amiga do coração , meu desejo ansioso ,
é hora, vem , oh , vem: sou teu esposo ! . . . »

XXIII
Assim , em tíbio e obscuro modo
(esti lo romântico , ao que ouvi dizer,
embora eu não lhe entreveja de todo
romantismo algum; mas quero lá saber ! ) ,
compunha e , antes d e raiar o sol ,
deixa cair a cabeça e , mole ,
escreve a palavra em voga: ideal,
e adormece ; mas ainda mal
caiu no esqueci mento do sono
e já o seu vizinho se intromete
no silencioso gabinete
e acorda Lênski com entono:
«Passa das seis . Temos de ir agora ,
Onégu in já está lá a esta hora .»

XXIV
Enganava-se: Onéguin dormia
um sono de pedra . Sem acordá-lo ,
a sombra da noite já se diluía ,
o Héspero era saudado pelo galo
e Onéguin ferrado a dormir;
já o Sol começara a subir
e o nevão esvoaçante a brilhar
no seu i ntrincado rodopiar,
e ainda o sono nele se colava;
é dia claro e o sono porfia
em prendê-lo à cama macia.
Acordava enfim, o dossel afastava;

1 32
de olhos abertos e ainda encolhido ,
viu que há muito devia ter saído .

XXV
Toca à campainha. Entra Guillot ,
o criado francês , traz preparada
a roupa , pantufas , o paletó
e também a camisa engomada .
Onéguin não demora a aprontar-se ,
manda o criado preparar-se
para o acompanhar e pede
que o estojo das armas também leve .
Tempo de partir, o trenó preparado .
Atiram-se velozes ao caminho ,
chegam finalmente ao moinho .
As fatais Lepage39 vão com o criado ,
são mandados afastar os cavalos
até ao campo entre dois carvalhos .

XXVI
Lênski , encostado à barreira ,
impaciente , aceita mal
a demora, e à sua beira
Zarétski , mecânico rural ,
critica a mó do moinho , incorrecta.
Onéguin , com desculpas , se acerca.
«Mas onde - diz Zarétski espantado
- está o seu padrinho , que diabo?»
Quanto a duelos , clássico e rigoroso ,
não permite que a outrem se mate
sem as regras exactas da arte ,
sem método - acha isso ominoso ,
e exige o culto da velha tradição
(o que só nos merece louvação) .

1 33
XXVII
«Ü meu padrinho? - diz o visado - ,
é Monsieur Gui llot , um amigo meu , de resto .
Suponho que este meu convidado
não dê azo a qualquer protesto .
Não tem renome , não é falado ,
mas é sem dúvida rapaz honrado .»
Zarétski mordeu o lábio , assentiu .
Onéguin para Lênsk i , quando o viu:
«Começamos?» - Começamos , pois .
Vão para trás do moinho . Noutro lado
estão Zarétski e o rapaz honrado ,
longe deles , e entabulam os dois
uma importante conversação .
Os ini migos esperam , de olhos no chão .

XXVIII
Inimigos ! Há muito os separou
esta febre de sangue homicida?
Já vai longo o tempo que passou
desde que partilhavam na vida
ideias , convívio , lazeres diários?
Hoje , como inimigos hereditários ,
preparam - pesadelo , frio desnorte -
cada qual ao outro a morte . . .
Despedirem-se como amigos , rindo ,
enquanto o sangue não lhes suja a mão ,
não seria melhor? Para o grão mundo , não:
o opróbrio , se falso para o desavindo ,
causa receio, o que é dizer pouco . . .
causa um medo louco ao mundo louco .

XXIX
Já bri lham as armas , é tocado
o martelo na vareta; metido
o projéctil no cano facetado
e o cão dá o primeiro estalido .

1 34
A pólvora já corre em fieira
e cai na caçoleta . A pederneira
ainda engatilhada . Guillot,
receoso e tímido recuou
para trás de um cepo ali perto .
Despem as capas os inimigos .
Trinta e dois passos são medidos
por Zarétski com precisão de experto ,
depois coloca os amigos nas pontas ,
ambos já com as pistolas prontas .

XXX
«Avancem» . Com frieza de gelar,
não apontando ainda, os inimigos ,
a passo lento , firme , regular,
dão quatro passos bem medidos,
quatro degraus na escaleira da morte .
Onéguin , sem travar o passo forte ,
foi o primeiro a levantar
o braço , sem brusquidão , devagar.
Mais cinco passos dados e, agora ,
cerrando o olho esquerdo , já fazia
também Vladímir a pontaria
- mas Onéguin atirou . . . Bateu a hora
derradeira: em silêncio , ao poeta
tomba a pistola da mão aberta,

XXXI
leva os dedos ao peito lentamente
e cai . Pelo seu olhar nublado
desliza a morte , não o sofrimento .
Assim o bloco de neve gelado ,
aos raios do Sol faiscando ,
pela encosta , lento , vai rolando .
Onéguin , de súbito transido
por um frio gélido , corre aturdido
até ao companheiro e com medo

1 35
o olha, o chama . . . em vão o chama:
já não vive , apagou-se a chama
do poeta-menino tão cedo !
O vento varreu a flor ao dealbar
e o fogo apagou-se no altar ! . . .

XXXII
Jazia imóvel e, na feição , o aspecto
era o duma estranha paz inquietante .
A bala atravessara- lhe o peito ;
da ferida corria o sangue , fumegante .
Daquele peito ainda há pouco o jorro
era o da inspiração em fogo ,
o da luta , amor, esperança, ousadia,
ali brincava a vida, o sangue fervia:
agora , como em casa abandonada,
tudo nele era cal ma e escuridão;
calado para sempre o coração .
Janelas cegas , portadas caiadas .
A dona saiu , já não volta mai s .
Onde está? Quem sabe ! Não deixou sinais .

XXXIII
É bom enfurecer um adversário
com um epigrama repentino ,
afrontoso , cruel , temerário;
é bom ver-lhe o corno em riste , ferino ,
pronto ao ataque e , perplexo ,
ver no espelho o seu fiel reflexo
e de si mesmo se envergonhar;
melhor ainda vê-lo , asno , a uivar:
sou eu ! Mas bom , muito bom , direi
que é antevê-lo no caixão honroso
gozando da honra o eterno repouso
c ' uma bala na fronte segundo a lei ;
mas já não será bom calar-lhe a voz
e mandá-lo para o mundo dos avós .

1 36
XXXIV
Que dizer se , pela vossa pistola,
tombou um jovem amigo ao qual ,
só num olhar, numa resposta tola,
buscais o peso de ofensa mortal ,
ou noutra qualquer ninharia
quando bebíeis em companhia,
ou se é ele , a rugir com desgosto ,
que vos atira a luva ao rosto?
Dizei : que funesto sentimento
da vossa alma se apodera
quando o vedes ali na terra ,
imóvel , com a morte no peito ,
cada vez mais frio , surdo e calado
ao vosso clamor desesperado?

XXXV
Eugénio , de remorso atormentado ,
crispa os dedos na coronha . Só via
Lênski . Zarétski chega a seu lado :
«Então e agora? Morto» - sentencia.
Morto ! . . . Onégui n treme , sufocado ,
ao ouvi-lo , sai dali , chama o criado .
Zarétski , com jeito , carregou
o cadáver gelado no trenó;
leva para casa o terrível tesouro .
Nervosos , farejam morte os cavalos ,
rouquejam , i mpossível acalmá-los ,
molham de espuma os freios de aço , o couro ,
e arrancam de narinas dilatadas ,
voando céleres como flechadas .

XXXVI
Amigos , faz-vos pena o poeta:
a flor da boa , feliz esperança ,
tão longe de lhe atingir a meta,
mal saído da roupinha de criança,

1 37
murchou ! Onde a emoção ardendo?
Onde a ideia e o sentimento
jovens , elevados, audaciosos
ternos , nobres e impetuosos?
Onde os desejos de amor, inquietos ,
e a ânsia de trabalho e de estudo ,
e do víc io e vergonha o repúdio ,
e vós onde parais , sonhos secretos
da vida não terrena, fantasia,
fantasmas da sagrada poesia?

XXXVII
Para bem do mundo ou , mais limitada,
para bem da sua honra e glória,
talvez a sua lira silenciada
nascesse para guardar da memória
dos séculos o som trovejante
e ininterrupto . Um passo de gigante
o levasse a um degrau de honra
na escadaria do mundo . A sua sombra
sofredora arrastou talvez com ela
um mistério sagrado e para nós
morreu , da fonte da vida, uma voz;
e ao lado de cá da tumular janela
não chegará a bênção dos povos ,
o hino dos tempos , velhos e novos.

XXXVIII , XXXIX
Ou talvez só estivesse marcado
um destino vulgar ao meu poeta ,
o fulgor jovem se tivesse apagado
na vida estagnante , ociosa e quieta .
O fogo da alma se extinguiria,
das Musas breve se despediria;
casava-se e mudaria tudo ,
viveria na aldeia feliz e cornudo ,
usaria roupão acolchoado;

1 38
na vidinha real , aos quarenta
vinha a gota , o tédio , a digestão lenta
e, obeso , na sua cama, acabado ,
entre médicos , filhos e nostalgia
de mulheres chorosas se finaria.

XL
Seja como for, é triste , leitor,
que um jovem apaixonado e vivo ,
poeta , pensativo sonhador,
tenha morrido à mão do amigo !
À esquerda da aldeia há um lugar:
Dois pinheiros amigos , a par,
correm-lhes , límpidas , por baixo
as águas murmurantes dum riacho ,
lugar dilecto do poeta morto .
Aqui vem o lavrador descansar
e as ceifeiras com o cântaro tirar
a água fresca . Aqui foi posto ,
à sombra espessa, em saudoso memento ,
o singelo tumular monumento .

XLI
Ao seu abrigo (quando desata
na Primavera a chover nos lenteiros) ,
canta o pastor - trançando a alpargata - ,
o Volga, os pescadores , os barqueiros;
e uma jovem citadina quando ,
na aldeia ao lado veraneando ,
galopa célere e sozinha
pela infindável campina ,
pára o cavalo esticando a rédea
e, levantando rápida o véu
poeirento do seu chapéu
e lê o epitáfio - acomete-a
a compaixão e, rasos de água,
seus olhos enevoam-se de mágoa .

1 39
XLII
E continua a passo o seu cami nho ,
mergulhada em sonhos , e a ideia
abraçada em Lênski , no seu destino ,
enquanto , muito tempo , devaneia.
«E Olga?» , pensa, «sofreu ainda muito
ou o tempo das lágri mas foi curto?
Que é da irmã? E daquele que desertou
dos outros e do mundo e se refugiou
na aldeia , o inimigo grã-fino
das beldades em voga , da moda,
o extravagante sombrio da alta-roda
e do jovem poeta o assassino?»
A seu tempo far-vos-ei de bom grado
um relatório pormenorizado ,

XLIII
mas não para já. Embora me agrade
cordi almente o meu herói pedante ,
embora volte à sua causa mais tarde ,
agora não estou para ele , adiante .
A idade tende-me à severa prosa,
nega a rima travessa e sinuosa
e eu próprio - suspiro - , nesta liça ,
já a namoro com maior preguiça.
A pena não tem o antigo desejo
de nas folhas voláteis escrevinhar;
outros sonhos , frios sonhos , estão no ar,
outras inquietudes , outro ensejo,
tiram o sono à minha alma ,
ou no barulho mundano ou na calma .

XLIV
Conheci de outros desejos o apelo
e deles perdi toda a esperança,
duma tristeza nova me desvelo ,
mas pena-me , da antiga, a lembrança .

1 40
Sonhos ! Onde a vossa terna ingenuidade?
onde a rima que vos cola - mocidade?
Terá a sua coroa tombado já
da minha fronte e murchado , terá?
Será mesmo verdade , vou perguntando ,
que a primavera da minha vida,
sem figura elegíaca, está perdida?
(Dantes repetia-o brincando .)
Que não volta mai s , nem cedo nem tarde?
Que vou fazer trinta anos de idade?

XLV
Bom, o meio-dia da minha vida
soou , já v i , queira ou não queira .
Façamos como amigos a despedida,
ó minha juventude tão ligeira !
Agradeço-te a tristeza , os prazeres ,
os queridos tormentos , os lazeres ,
o bulício, festas e tempestades ,
tudo , teus dons , tuas novidades;
agradeço . Contigo me dei ,
na paz e na inquietude ardente ,
me deliciei . . . e plenamente ;
chega! Hoje, de alma limpa, farei
uma viagem nova, sem cuidado ,
para descansar do meu passado .

XLVI
Deixai-me olhar para trás . Adeus campo ,
abrigo de sombra onde corriam
meus dias de paixão , ócio , encanto ,
onde os sonhos da alma não morriam .
Mas tu , jovem e eterna inspiração ,
fere-me ainda a imaginação ,
agita-me o coração sonolento ,
visita mais vezes o meu recanto ,
não deixes que a alma do poeta

141
vá esfriando e ele enfi m se petrifique
e, no ímpeto do mundo , pedra a pique
se atole inerte na vasa infecta
do pântano em que , amigos meu s ,
estamos mergulhados , vós e eu !4º

1 42
S ÉTIMO CAP ÍTULO

Moscovo , filha querida da Rússia,


como tu não há igual !
Dmítriev

Será possível não amar a Moscovo, nossa mãe?


Baratínski

Desestimar Moscovo ! O que dá andar na alta-roda !


Mas onde é melhor?
O nde não estamos .
Griboiédov

1
Aquecida pelo sol da Primavera
a neve das colinas circundantes
em riachos turvos já descera
aos prados empapados , fumegantes.
A natureza, com sorriso lhano ,
recebe ensonada a manhã do ano ;
o céu , azulando , resplende ,
o bosque , ainda transparente ,
é de penugem verde salpicado .
Da cela cérea sai a abelha, é tempo
de ir cobrar o tributo ao campo .
O vale seco j á sarapintado;
rumorejam os rebanhos e, afoito ,
o rouxinol já cantou de noite .

II
Que tri ste para mim tua chegada,
Primavera , quando o amor rebenta !
Que langorosa comoção conturbada
a alma e o sangue me atormenta !
No silêncio do campo o teu sopro
é deleite a respirar-me no rosto !
Então porque esta brisa amena
tanto me enternece quanto pena?
Talvez de mim o prazer tenha fugido
e tudo o que a vida desperta ,
tudo o que bri lha alegre e alerta
amoleça , enlanguesça , amortecido ,
a alma há muito morta de secura
e a vida toda lhe pareça escura .

III
Ou talvez não nos excite ou agrade
este regresso vivo da folhagem
morta no Outono e, da perda amarga,
nos vem memória ao sentirmos a aragem
e o som novos do bosque renascido?
Ou o nosso pensamento contundido
confronte a refeita natureza
com o estiolar da correnteza
dos nossos anos , sem ressurreição?
Ou no sonho poético persevere
uma outra , antiga Primavera
que nos acode à imaginação ,
miragem de terra longe , duma rua,
duma noite divina, duma lua . . .

1 44
IV
É tempo: queridos mandriões ,
e vós , sábios epicuristas ,
e vós , felizardos bonacheirões,
e vós , de Lévchin4 1 seguidistas ,
e vós , ó Príamos rurais ,
e vós , senhoras sensuais ,
a Primavera chama-vos à aldeia,
tempo de calor, flores, a colmeia,
tempo dos passeios inspirados
e das cálidas noites tentadoras .
Ao campo , amigos ! Rápido , são horas ,
nos coches sobrecarregados ,
vossos ou da posta, com celeridade
passai , passai as portas da cidade .

V
Que também o leitor benevolente
na sua caleche estrangeira e lesta
largue da urbe sempre estridente
onde passou o Inverno em festa;
levamos a minha Musa connosco
e vamos escutar juntos o bosque ,
sobre um rio sem nome , no lugar
onde Eugénio resolveu ficar,
e ainda esteve no Inverno passado ,
cenobita melancólico , outrora
vizinho de Tatiana , a sonhadora ,
mas onde já não é visto nem achado
e onde não deixou na aldeia mais . . .
que , do infortúnio , os tristes sinai s .

VI
Por entre a meia roda das colinas
chega-se a um ribeiro corredio
serpenteando pelas ervas finas
do prado e entre as tílias até ao rio .

1 45
Al i , onde o rouxinol cantante
e da Primavera o amante
trina toda a noite , a fonte rumoreja
e a roseira-brava em flor viceja -
está uma laje tumular, à sombra
de dois pinheiros velhos . Leiamos:
«Aqui jaz Vladímir Lênski . Choramos
sua morte precoce no campo de honra
no ano tal , aos tantos anos . Nesta lousa
te lembramos , poeta ! Em paz repousa.»

VII
No pinheiro , numa sua ramada,
à bri sa leve da manhã bulia
mi steriosa coroa entrançada
por cima da humilde moradia .
Por vezes , duas amigas , j á tarde ,
demoravam-se aqui por saudade ,
e choravam abraçadas , só elas ,
com a lua nascente a envolvê-las .
Hoje . . . tudo ao abandono , esquecido:
o caminho é só ervas , na ramada
já não está a coroa entrançada.
Agora só o pastor encanecido
canta ao lado da campa , desolado ,
e trança o seu pobre calçado .

VIII , IX , X
Pobre Lênski ! Ainda há pouco ela fora
tão saudosa e chorosa de tormento !
Infelizmente , moça casadoira
não é fiel à tristeza muito tempo .
Outro lhe atraiu logo o olhar,
outro alcançou adormentar
a sua dor com a lisonja, a doce fala -
um bravo ulano soube encantá-la,
ganhar-lhe a alma e o amor . . .

1 46
E já está no altar com o seu ulano
sob a coroa nupcial , na mão o ramo ,
a cabeça baixa, toda pudor.
Mas fogo nos olhos , e um sorriso leve
nos lábios vermelhos se lhe atreve .

XI
Meu pobre Lênski ! Na sepultura ,
feriu-o a traição , teve dela sinal ?
Lá , na sua eternidade obscura ,
perturbou-o a notícia fatal?
Ou , adormecido no Letes profundo ,
não tem notícia deste mundo
e na ditosa insensibilidade
já não o perturba nada , nada?
O mundo fechou e não lhe responde?
É verdade ! Após a morte , o olvido .
Vozes de amante , amigo , inimigo ,
tudo se cala cerce . E apenas onde
há herança e herdeiros , há lutas
pelo quinhão , com infames disputas .

XII
A voz de Olga cristalina em breve
se cala na casa Lárin , o momento
é de partir, o ulano deve
levá-la com ele para o regimento .
Casar é despedir-se - é a lei dura:
a mãe , em lágrimas de amargura,
morre de aflição e pesar;
mas Tatiana não pode chorar,
no seu rosto tão triste apenas
se acentuou a palidez .
Saem ao pátio, abraçam-se as três ,
no afã da partida escondem as penas
à volta da carruagem dos seu s .
Tatiana acena-lhes um adeus .

1 47
XIII
Como através do nevoeiro , a minha
Tatiana segue-os com os olhos . . .
Está agora sozinha , sozinha !
Que dias se adivinham tão tristonhos !
A sua pombinha , companheira
de tantos anos, falta à sua beira;
levou-lhe a amiga íntima, a confidente ,
o destino ladrão - para sempre .
Erra como sombra por todo o lado
ou pára olhando o jardim deserto . . .
Nada lhe abranda aquele aperto
do choro no peito a ferros trancado .
Os olhos secos e branca a face ,
tem o coração pronto a rasgar-se .

XIV
Talvez que nesta solidão cruel
a força da sua paixão aumente ,
o coração grite mais alto por ele ,
pelo Onéguin distante e . . . presente .
Nunca o verá; é sua obrigação
odiá-lo , pois matou-lhe o irmão .
O poeta morreu . . . mas já ninguém
o lembra; a noiva, por mal ou por bem ,
entregou-se a outro bem depressa .
A memória do poeta é fogo ardido ,
fumo azul no céu azul perdido ,
e só em dois corações permaneça ,
talvez , a saudade d e o lembrar
e chorar ainda . . . E porquê chorar?

XV
Fim da tarde , o céu a apagar-se ,
o ribeiro manso , o besouro zumbe ,
a roda das bailadeiras desfaz-se ,
os pescadores acendem o lume

1 48
à beira do rio , o fumo , o cheiro .
Tatiana, em fundo devaneio ,
à luz argêntea da Lua , sozinha,
longa e demoradamente caminha.
Andou , andou e, do alto dum monte ,
vê à frente a aldeia, o solar,
o rio claro e na margem o pomar,
o bosquezinho onde o sol se esconde .
Ver de súbito a aldeia, a mansão ,
faz-lhe disparar, louco , o coração .

XVI
Olha e vacila muito: «Vou lá
ou volto para trás? . . . Acontece
que eu sei que ele não está
e que lá dentro ninguém me conhece . . .
Então vou , pr ' a ver a casa , o j ardim .»
Desce o monte , mal respira e por fim
vê-se em baixo e passa, desamparada,
os olhos à volta, triste mirada . . .
e entra no terreiro deserto .
Os cães , latindo , atiram-se a ela,
Tatiana grita e, de susto , gela .
A rapaziada estava por perto ,
acode , trava a fúria canina
e protege , valente , a menina.

XVII
«Poderia ver a casa grande?» -
pergunta Tânia. O rapazio acedeu
e foi em chusma à Aníssia no instante
pedir a chave . A própria apareceu ,
abriu a porta e com simpatia
fez entrar Tânia na casa vazia
que ainda até há pouco foi
a moradia do nosso herói .
Olha: na sala, um taco esquecido

1 49
repousa sobre a mesa de bilhar,
um ch icote equestre fora parar
ao canapé , sobre o pano encard ido .
A velha guia: «Aqu i , a esta lareira ,
o amo , sem ninguém à s u a beira ,

XVIII
no Inverno, hora atrás de hora ,
ficava sentado . À s vezes aconteci a
o Lênski almoçar com ele . Agora ,
o gabinete , onde ele dormia ,
tratava das coi sas com o feitor,
tomava o café e lia um ror
de l ivros , sempre , toda a manhã . . .
Já o velho amo dormia nesse divã:
punha os óculos , sentava-se à janela,
chamava-me e , cada domingo ,
jogava muito às cartas comigo .
Nosso Senhor lhe dê a paz singela ,
que a santa terra nossa mãe lhe proteja
os ossos na campa. Assim sej a ! »

XIX
Tâni a olhava tudo ao seu redor
com ternura , embevecida,
e tudo lhe era um tesouro ,
lhe av ivava a alma elanguescida
de deleite e tortura ao mesmo tempo:
a mesa, o candeeiro c inzento ,
apagado , os l ivros em pilha ,
ao lado da janela a camilha,
a colcha , a vista até à lonjura ,
ao crepúsculo claro , luarento ,
a sombra pál ida do aposento ,
o retrato de Byron e a figura
em bronze de sombrio aspecto ,
chapéu e braços cruzados no peito .

1 50
XX
Tatiana, nesta cela à moda,
demora-se , como enfeitiçada,
e já é tarde , o vento frio roda,
escureceu já na veiga cansada ,
o bosque dorme e sobre o rio
paira um nevoeiro sombrio ,
a Lua esconde-se atrás da colina;
há muito que a moça peregrina
já deveria regressar.
Sufocando a emoção , suspira
e mete-se a caminho . Antes pedira
autorização para voltar
e ler no castelo abandonado
os livros que l ia o seu amado .

XXI
Tânia despediu-se da despenseira
ao portão . Passou apenas um dia
e já voltava, cedinho e ligeira,
à triste , desertada moradia,
e no gabinete silencioso ,
finalmente sozinha, deixou-se
chorar, de tudo , tudo , esquecida.
Depois , a princípio desprendida,
examinou os livros . De repente ,
estranhou muito aquela selecção
e , com a ânsia no coração ,
embrenhou-se neles , veemente .
Então foi-se-lhe abrindo a janela
de um mundo diferente para ela.

XXII
Sabendo nós que Eugénio pouco lia,
já que a leitura há muito desamara,
a certos volumes , todavia,
fizera excepção e não rejeitara:

151
de Don Juan e de Giaour o cantor;
dois , três romances em que o autor
retrata o século bastante fielmente
e o homem moderno , a sua gente ,
são esboçados com certa precisão:
sua alma imoral , egoísta e seca,
entregue sem medida ao sonho , cega;
e a sua exasperada razão
fervilhando sem profundidade
numa fútil actividade .

XXIII
A marca indelével de uma unha
riscava muitas páginas e, nessas ,
Tatiana, emocionada, punha
mais atenção e lia-as sem pressas .
Descobria o que o impressionara,
que observação , que ideia rara
o surpreenderam , com que noção
terá concordado em silêncio , ou não .
Em todos os livros deixou pegadas ,
as marcas do seu lápis são mensagens
da sua alma largadas nas margens ,
involuntariamente grafadas
como palavra curta, como risco ,
ponto de interrogação , asterisco . . .

XXIV
E a minha Tatiana começa
pouco a pouco a compreender
- graças a Deus - com mais clareza
o homem por quem se viera a perder,
danada pelo destino poderoso:
extravagante , triste e perigoso .
Criatura do céu ou infernal ,
anjo ou diabo altivo , afinal?
Talvez não passe de uma imitação ,

1 52
nulo fantasma em lençol de Harold ,
ficção da ficção do seu molde ,
de capricho alheio a encarnação ,
lista completa do léxico na moda? . . .
Não será porventura uma paródia?

XXV
Terá Tânia descoberto o segredo ,
a palavra de senha descortinado?
As horas correm, já não é cedo ,
esqueceu que a esperam em cuidado .
Em casa fala-se entre vizinhos
sobre Tatiana. - Oh , quem tem filhos !
Que fazer? Tânia já não é criança -
suspira a velha com desesperança. -
A minha Olga é mais nova e olhe . . .
É tempo de casar a outra, amigo ,
mas esta rapariga é um castigo .
Diz não a todos , não quer, não escolhe .
E anda sozinha por essas florestas ,
sempre triste . . . Uma coisa destas . . .

XXVI
- «Estará apaixonada?» - Mas por quem?
Buiánov pediu-a: recusado .
Ivan Petuchkov - recusa também .
Passou por c á o Pikhtin , o hussardo ,
ficou louco por ela, de certeza,
desfazia-se em gentileza !
Talvez ela aceite , ainda pensei ,
mas nada ! Olhe , não sei , não sei .
- «Ora , amiga . . . não veja aí desgraça:
para Moscovo , à feira das noivas , j á !
Dizem que é grande a procura por lá.»
- Oh , amigo ! A nossa receita é escassa.
- «Para um inverno ainda deve dar.
Se não , também lhe posso emprestar.»

1 53
XXVII
A velha ficou muito agradada
com o conselho úti l e fraterno;
a decisão , depois de ponderada,
foi largar pra Moscovo no Inverno .
Informam Tatiana . Ah , ele é isso !
Sujeitar ao imperioso juízo
do tribunal da sociedade
a provinciana simpl icidade ,
a estranha , ultrapassada toilette ,
o falar em esti lo fora de moda,
e à ironia da cidade toda
de janotas e Circes submeter-te ! . . .
Que horror ! Não , é mais seguro e sensato
perder-me no abandono do mato .

XXVIII
Ergue-se agora ao dealbar,
corre aos campos e, já saudosa
de tudo o que lhe alcança o olhar,
despede-se com ternura chorosa:
«Adeus várzeas cal mas , onduladas ,
adeus famil iares cumeadas ,
e tu , meu querido bosque , adeus;
abandono-te , beleza dos céus;
ó natureza alegre , vou pr ' a cidade ,
troco a luz serena destes campos ,
pelas vaidades ruidosas , ofuscantes . . .
Adeus também , ó minha l iberdade !
Porquê e para onde me desatino?
O que me promete o meu destino?»

XXIX
Alongava mais e mai s o passeio .
Sem querer parava, era o feitiço
quer dum riacho , quer dum outeiro ,
era toda a natureza em viço

1 54
a quem tinha ainda de falar
como a velhos amigos do lugar -
prados verdes, searas amarelas .
O Verão é curto , já cerra as janelas ,
chega o trémulo , requintado outono ,
veste de luxo a natureza dourada
como para o sacrifício trajada . . .
E já puxa as nuvens o vento norte ,
sopra , abana forte , uiva e zoa -
vem lá o bruxo Inverno em pessoa .

XXX
Chegou e alastrou ; os brancos flocos
cobrem a nudeza dos carvalhos ;
o tapete ondulado , aos poucos
tapa os campos e as árvores , só galhos;
ocultou , cobriu com manto macio ,
as margens do já imóvel rio;
brilha o frio de rachar, que alegrias
nos dão do Inverno as picardias .
Só o coração de Tânia, insatisfeito ,
não dá as boas-vindas à invernada ,
não sai a sorver o pó de geada
e a lavar a cara , os ombros e o peito
c ' oa primeira neve do tecto dos banhos:
é a viagem , que medos tamanhos !

XXXI
Já passara o prazo da partida,
fizeram tudo à última hora .
A carruagem há muito esquecida
foi consertada, forrada e agora
está pronto o comboio habitual :
três carros com trastes , o trivial ,
panelas , cadeiras , baú s , colchões
doces em frascos , potes, edredões ,
gaiolas com galos , alguidares ,

1 55
enfim, tudo o que al i coubesse
e mais ainda o que aparecesse .
E os criados atroavam os ares
na sua isbá, choros , as despedidas ,
no terreiro seis troicas reunidas .

XXXII
Atrelam-nos à grande carruagem ,
os cozinheiros cozinham por cerca,
amontoam nos carros a bagagem ,
criadas e cocheiros - tudo alterca.
Um postilhão gordo e barbudo
monta um cavalo gordo e felpudo ,
as senhoras já estão na carruagem ,
ao portão junta-se a criadagem
para a definitiva despedida.
E a respeitável procissão
desl iza para fora do portão .
«Adeus meu lar, minha terra perdida !
Voltarei a ver-te . . ?» E um rio emana
.

dos olhos chorosos de Tatiana.

XXXIII
Se um dia ao benéfico progresso
abrirmos bem abertas as janelas ,
(a seu tempo , pois pelo que conheço
dos peritos em cálculos e tabelas ,
só daqui a uns quinhentos anos) ,
tudo mudará muito e veremos :
a Rússia atravessada e unida
por uma rede de estradas , e erguida
uma infinidade de pontes em arco
sobre as águas e , sob elas e os montes ,
abóbadas ousadas . Horizontes
novos se alargarão também no trato:
a cristandade abrirá , doce miragem ,
em cada estação de muda uma estalagem .

1 56
XXXIV
Agora as nossas estradas são más42 ,
as pontes apodrecem sem cuidados ,
percevejos e pulgas é o que há mais
nas estações - toda a noite acordados ;
não h á estalagens . Numa isbá gelada
afixam uma ementa empolada
mas faminta, para que nos excite
inutilmente o apetite ,
enquanto os cíclopes rurais
curam o artigo fino das europas
com os russos martelos e bigornas
e, de prontidão , não dão sinais ,
bendizendo buracos e armadilhas
da nossa terra pátria em suas trilhas .

XXXV
No Inverno , viajar até acalma ,
é fácil e bom . Tal como o verso
na cantiguinha sem ideia nem alma,
o caminho invernal é liso e terso.
Os nossos automedontes são lume ,
as troicas não cansam ; a prumo ,
os marcos à beira da estrada
correm velozes, como paliçada43 ,
distraindo os olhos às janelas .
Não as de Lárina, com aquele arrasto:
receando os preços , o enorme gasto ,
não tinham bestas da posta, mas delas .
Tânia gozou do tédio até fartar:
sete longos dias sempre a andar.

XXXVI
Já chegam , vêem ao longe as luzes .
Já se avistam os zimbórios dourados
da Moscovo branca, as suas cruzes
já ardem como fogos estilhaçados .

1 57
Amigos , ah , que júbi lo, que sonhos
ao ver abrirem-se à frente dos olhos
a meia-lua dos parques invernais ,
campanários , palácios , catedrais !
No meu desti no vagabundo ,
na triste separação , recordo
tantas vezes a minha Moscovo !
No nome Moscovo há tanto mundo
a bater num russo coração ,
no som querido há tanta paixão !

XXXVII
Ei s , cercado pelo seu carvalhal ,
o Castelo de Pedro , sombra orgulhosa
da recente glória imperial .
Napoleão em vão antegoza
(pelo ú ltimo sucesso iludido)
as chaves do Kremlin rendido ,
entregues pe la Moscovo ajoelhada;
mas tal festa não lhe é ofertada:
não é de cabeça baixa, é com o fogo
dum fero incêndi o , magnífico ,
que é pago o tributo mirífico
ao impac iente herói , por Moscovo .
Daqu i , em pensamentos te enredas
ol hando , Bonaparte , as labaredas .

XXXVIII
Adeus , Castelo de Pedro e seus bosques .
Avante , antes que a noite caia !
E já luzem perto os brancos postes
das Portas e já pela Tverskaia
a carruagem corre aos solavancos .
Relampejam guaritas , estancos ,
mulheres , garotos e as avós ,
vendas , cossacos , hortas , trenós ,
mercadores de Bukhará , mosteiros ,

1 58
palácios , jardins , vastos terreiros ,
comerciantes, cabanas , muj iques ,
torres , bule vares , lampiões ,
varandas , leões nos portões ,
tascas , casas de moda, boticas ,
carroças , guardas de arcabuzes,
bandos de gralhas em cima das cruzes .

XXXIX , XL
Leva o rude passeio cansativo
uma, duas horas . Finalmente
pára a carruagem no destino -
é o Kharitóni , e na viela, em frente
dum portão , casa da velha tia
que , há quatro anos já, sofria
de tísica. Espreita a cabeça cã
dum calmuque de roto cafetã ,
óculos e uma meia na mão leve .
Abre-lhes a porta de par em par
e já um grito na sala de estar
da princesa prostrada , as recebe .
Abraçam-se as velhas primas , emoções,
a avalancha de exclamações .

XLI
- Pri ncesa , mon ange ! - «Pachette ! » - Alina ! -
«Quem imaginava? Há que eternidade !
Vieste por muito tempo? Querida prima !
Incrível ! Senta-te , fica à vontade !
Mesmo como num romance . . . E ela . . . »
- É Tatiana, a minha mais velha . -
«Ah , Tatiana ! Vem ao pé de mim .
É como um sonho , uma coisa assim . . .
Prima, lembras-te do Grandison?»
- Grandison? . . . ah , Grandison , espera . . .
sim , lembro . Mas onde é que ele pára? -
«Em Moscovo , rua São Simeon ;

1 59
visitou-me pela consoada;
casou há pouco o filho , e mais nada .

XLII
E aquele . . . mas falamos mais tarde ,
de acordo? Amanhã vamos mostrar
à Tânia os parentes na cidade .
É pena eu não ter forças para andar,
mal arrasto os pés , nada de visitas .
Mas estais mu ito cansadas , coitaditas . . .
uma viagem dessas . . . descansamos . . .
oh , estou sem forças . . . o peito . . . há anos . . .
Agora até a alegria me dói ,
não só a tri steza . . . s i m , alminha ,
na velhice , fiquei uma ruína . . .
viver é um castigo . . . isto destrói . . . »
Lacrimosa , num cansaço infinito ,
acometeu-a a tosse como um grito .

XLIII
Tânia comove-se com o carinho
da princesa, que a doença arrasa,
mas falta-lhe o seu próprio cantinho
e não se sente bem na nova casa .
Debaixo do baldaquim de seda
do novo leito , o sono tarda
e o bater dos sinos matinai s ,
dos trabalhos d o d i a o s sinai s ,
fazem-na saltar d a cama cedo .
Tânia senta-se à janela a olhar
a noite a ir-se e o dia voltar;
não vê o campo amado , vê a medo :
um pátio , u m estábulo , um tapume
e uma cozinha ainda sem lume .

1 60
XLIV
E já a minha Tânia é arrastada
a almoçar com a vasta parentela.
Lânguida , distraída, é apresentada
a este , àquele , a esta, àquela .
Tânia, com enfado e cortesia,
vê velhas e velhos dia após dia.
Recebem-na com carinho em todo o lado ,
com brados , a boa hospitalidade .
«Como cresceu ! Parece que foi ontem
que te baptizei ! E eu te levei ao colo !
E eu puxei-te as orelhas e em consolo
dei-te um pão-de-mel ! » E, claro , contem
com o coro das avós , tremebundo:
«Üs anos voam , fica-te mundo ! »

XLV
Não mudaram nada todavia;
tudo à antiga, o chá no mesmo bule ,
a princesa Elena, a velha tia,
tem a mesmíssima touca de tule ,
Lukéria Lvovna o pó-de-arroz de sempre ,
Liubov Petrovna , como antes , mente ,
Ivan Petróvitch - o mesmo estulto raro ,
Semion Petróvitch - o mesmo avaro ,
Pelagueia Nikoláevna conserva
monsieu ' Finemouche como amigo ,
o mesmo lulu e o mesmo marido
membro do clube sempre e sem reserva
que , manso e surdo na mesma , por norma
come e bebe por dois da mesma forma .

XLVI
As filhas abraçam Tatiana .
Primeiro , as jovens Graças de Moscovo
examinam a provinciana
. . .

do cabelo ao calçado novo;

161
acham-na um pouco acanhada,
campestre e algo amaneirada,
um tanto magra , palidez ligeira ,
d e resto nada mal , nada feia;
depois , como a natureza ensina,
levam-na aos quartos , tornam-se amigas ,
beijam-na, apertam-lhe as mãos, meigas ,
armam-lhe os caracóis à moda fina
e confiam-lhe em vozes cantadas
segredos de meninas namoradas ,

XLVII
as suas vitórias e as alheias ,
esperanças , sonhos , travessuras .
As conversas fluem sem peias ,
enfeitadas de calúnia e agruras .
Depois fazem-lhe meigas exigências ,
em paga das suas confidências :
que Tânia diga também, que lhes conte . . .
Mas ela tem a mente não sabe onde ,
como num sonho , e mal as escuta ,
guarda o tesouro , sua preciosidade
de lágrimas e de felicidade ,
com uma discrição absoluta .
Segredo do coração não tem
de ser partilhado ninguém .

XLVIII
Tatiana procura atentar
nos diálogos , nas díspares conversas ;
mas toda a gente na sala de estar
paira em futilidades desconexas ,
tudo tão indiferente , vaporoso
e, até na calúnia, tedioso ;
no di scurso geral , estéri l , seco ,
no zunzum , na atoarda e mexerico ,
nem a ponta de uma ideia espreita,

1 62
mesmo involuntária ou por engano ,
nem que esperes pela ideia um ano ;
não sorri , ó fúteis , mente rarefeita,
nem o peito treme , e sai gorada
a procura de tolice com piada.

XLIX
Os jovens funcionários dos Arquivos
olham Tânia, em chusma sorumbática,
e falam dela entre si , furtivos ,
com uma crítica nada simpática .
Um triste palhaço qualquer
acha que ela é o ideal de mulher
e, encostado à parede , porfia,
em sua honra, numa elegia.
Viázemski sentou-se um dia ao lado dela
na sala aborrecida de uma tia
e deu-lhe alma nova , divertiu-a.
E , ao vê-lo a falar com ela,
um velho senhor ajeita a peruca
e sobre Tatiana deita inculca.

L
Mas onde soa o uivo prolongado
da Melpómene tempestuosa,
onde o manto de ouropel é agitado
em frente da chusma fria e pomposa,
onde Tália dormita serenamente
às ovações amigas indiferente ,
onde o jovem espectador
admira tão-só Terpsicore
(o mesmo acontecia no passado ,
no vosso tempo como no meu tempo) :
nem lornhão d e senhora , ciumento ,
nem óculo de dandy , interessado ,
apontavam à Tatiana alheia
das frisas e poltronas da plateia.

1 63
LI
Na Assembleia dos Nobres marca o ponto .
Aperto , calor, inquietação ,
brilho das velas , da música o estrondo ,
dos pares dançantes o furacão ;
onde a beldade etérea se atavia,
mar de gente e cor na galeria,
a roda de casadoiras aos centos -
tudo impressiona os sentimentos.
Aqui exibe o peralta aos brados
o seu atrevimento , o seu colete
e o seu óculo displ icente .
Aqui passam a correr os hussardos
de licença ribombante em Moscovo:
brilham , encantam e fogem de novo .

LII
Tanta estrela tem a noite quanto .
Moscovo beldades e maravilha.
A Lua no céu safira no entanto
é , das amigas do céu , a que mais brilha.
Aquela que não ouso incomodar
com a minha lira não tem par
e, como a Lua única, brilha,
entre moças e mulheres , sozinha .
Com que orgulho celeste ela vagueia ,
beijando a superfície da terra !
que deleite o seu peito encerra !
Que divino olhar nos enleia ! . . .
Mas deixa-te disso , cabeça dura:
já pagaste o teu tributo à loucura.

LIII
Risos , barulho , vén ias , correria,
valsa, galope , mazurca . . . Entremente -
postada de cada lado uma tia - ,
Tânia, ignorada por toda a gente ,

1 64
olha e não vê . Agora já odeia
o barulho social . . . e anseia,
sufocada, pelo viver antigo ,
o campo , a aldeia, o seu abrigo
onde o riacho claro murmura;
pelas suas flores , as suas novelas ,
as gentes pobres e singelas ,
a vida, e a inesquecível ventura
da alameda de tílias e daquela
sombra onde ele se abrigou com ela

LIV
Assim o pensamento lhe vagueia,
longe do baile, do barulho ambiente .
Entretanto um general , volta e meia ,
assesta nela um olhar insistente .
As tias piscam-se o olho: - Olha, ali . . . -
e acotovelam Tânia - à esquerda , sim -
sussurram . - «Onde? À esquerda o quê?»
- Não importa o quê , à esquerda, vê . . .
naquele grupo , dois senhores de uniforme ,
rápido , olha, agora está ao lado ,
pôs-se de perfi l , aquele fardado . . .
não sei quem é , nem sei o nome . . .
agora afastou-se . . . já não se vê todo . . .
«Quem? Aquele general gordo?»

LV
Felicitemos pela sua vitória
a minha Tatiana , meu encanto ,
e mudemos o rumo desta história,
não vá esquecer-me do herói que canto . . .
Duas palavras sobre isto aqui deixo:
cantar o jovem amigo é meu desejo,
seus muitos caprichos e bizarrias .
Ó Musa épica, que bem farias
abençoando o meu longo encargo!

1 65
Dá-me o fiel bordão e ordena
que não vagueie nem me desvie um trema .
E chega . Alijei este fardo !
Paguei ao classicismo a caução:
embora tardia, eis a i ntrodução .

1 66
OITAVO CAPÍTULO

Fare thee wel l , and if for ever


*
Still for ever fare thee wel l .
Byron

1
Nos dias em que eu , despreocupado ,
nos jardins do Liceu florescia,
lia Apuleio mas , por outro lado ,
o Cícero quase não abria;
naqueles dias , pela Primavera
de águas luzentes e cisnes em fileira
gritando amores , a Musa silente
era minha visita frequente .
Brilhou a minha cela estudantil
num fulgor, e a Musa instalou-se ,
serviu-me o banquete farto e doce
das fantasias , da alegria infantil ,
dos sonhos de amor novos , da glória
do tempo antigo a incerta memória.

* Adeus, e s e fo r para sempre ,


Adeus para sempre .
II
O mundo sorriu-lhe , e esta primícia
de triunfo deu-nos asas e sorte ,
Derjávin notou-a e bendisse-a
quando estava à beira da morte .

III
Então , tornando em minha lei
somente o arbítrio da paixão ,
sentimentos íntimos partilhei ,
perdulário , com a multidão .
Levei a minha Musa estouvada
aos banquetes , à disputa gritada -
terror dos guardas nocturnos - e a louca ,
bacante de cantiga na boca,
dava-se aos convivas que bebiam ,
e a juventude amiga de outrora
cortejava-me a Musa a toda a hora
e com ela, alegre , se expandia.
No meio dessa amizade fraterna ,
orgulhava-me d a amiga leviana.

IV
Cortei essa união estrepitosa,
fui para longe . . . e a Musa comigo .
E tantas vezes ela, carinhosa ,
m e enfeitiçava o mudo caminho

1 68
com a magia de um conto secreto !
Tantas vezes no Cáucaso, no tecto
dos montes comigo galopou
à luz da Lua, como Leonor !
No mar de Táurida quantas horas
na bruma nocturna me deixei levar
pela sua mão para ouvir o mar,
o sussurro das Nereidas , os coros
das ondas , eternos , profundos ,
o hino de louvor ao pai dos mundos .

V
Esquecida do brilho , a Musa persiste ,
longe da capital e suas prendas ,
e no deserto da Moldávia triste
visita nómadas nas pobres tendas ;
entre eles se asselvajou , esqueceu-se
da língua preclara dos deuses
para aprender outras mais singelas ,
estranhas e pobre s , e as belas
canções da estepe , o seu novo amor . . .
De súbito tudo mudou e a Musa
já no meu jardim se fez intrusa
qual provinciana em pudor,
de olhos triste s , corada a tez ,
e nas mãozinhas um livro francês .

VI
Levo hoje pela primeira vez
a minha Musa a um rout44 grã-fino ;
sensível , olho com timidez
seu ar de estepe , belo mas sem brilho .
Desliza por entre as chusmas compactas
de janotas militares , aristocratas ,
diplomatas e senhoras altivas ;
senta-se e , modesta, admira as divas ,
a mole barulhenta, o relampejo

1 69
de vestidos e conversas , a morosa
apresentação dos convivas , a airosa
e jovem anfitriã que entrevejo
entre as damas cercadas pela moldura
dos homens , elegante e escura .

VII
Ela gosta da ordem rigorosa
das altas , oligárquicas conversas
e da fria soberba fleumosa,
da mi stura de idades diversas
e das patentes indiscriminadas .
Mas aquele ali , de costas voltadas
para toda a gente , é quem? Silencioso ,
sozinho , melancólico e moroso
no meio da elitária multidão?
Como fantasmas maçadores em fila
cintilam-lhe as caras na pupi la.
Mostra spleen , doentia presunção?
Quem é? Eugénio? Será verdade?
- É ele . - E há muito terá voltado?

VIII
Sempre o mesmo ou já se regenerou?
Faz de excêntrico da mesma maneira?
Em que personagem se encarnou ?
Vai-nos representar que brincadeira?
Que homem é ele? É um Melmoth ,
um cosmopolita , um patriota,
Childe Harold , hipócrita , um quaker,
ou porá outra máscara qualquer,
ou será bom sujeito e mais nada,
como vós e eu e toda a gente?
Para ele , um conselho pertinente :
que largue essa moda ultrapassada,
chega de enganar o mundo , o pavão . . .
- Mas o senhor conhece-o? - Sim e não .

1 70
IX
- Mas porquê tanta malevolência
no juízo sobre ele , por que motivo
costumamos com tanta insistência
julgar a todos, por trás ou ao vivo?
Uma ardorosa alma imprudente
que faz rir e incomoda , porque ofende
o medíocre de amor-próprio inchado?
E a inteligência, amante do espaço largo ,
porque nos fica apertada? E a conversa
é tomada por actos reais?
E ser fútil e maldoso são sinais
da estupidez? E porque só interessa
aos grandes do mundo a futilidade
e só não estranham a vulgaridade?

X
Ditoso quem foi jovem quando jovem ,
e quem vê a tempo amadurar seus dias ,
quem sabe aguentar quando chovem,
sobre ele , da vida as águas frias .
Quem aos vinte foi janota ou olho-vivo ,
aos trinta deu o nó , lucrativo ,
as dívidas saldou aos cinquenta;
e em toda a sua vida lisa e lenta
nunca a ralé mundana repeliu;
quem de modo fáci l e em tempo útil ,
dinheiro , patente e a fama fútil ,
como estava previsto , conseguiu;
de quem toda a vida se dizia:
homem excelente , que categoria.

XI
Mas é triste pensar que os verdes anos
nos foram dados em vão , para nada,
que continuamente os atraiçoamos
e eles atraiçoam-nos em paga,

171
que os sonhos e os desejos mais viçosos
que na juventude foram os nossos ,
logo apodreceram ao abandono
como as folhas mortas no Outono .
É insuportável ver pela frente
uma série de almoços e mais nada ,
a vida como ritos à desfilada
e seguir uma multidão cinzenta
sem partilharmos paixões , sofrimento ,
uma alegria, uma ideia, um lamento .

XII
É penoso (concordem , é um facto)
que , julgando alguém ruidosamente ,
o mundo proclamado sensato
o faça passar por um triste birrento ,
ou por um extravagante fingido ,
ou por satânico monstro pervertido ,
ou pelo meu Demónio , suponho .
Onéguin (voltar a ele me proponho) ,
tendo matado o amigo em duelo
e até aos vinte e seis anos vivido
sem actividade , sem objectivo ,
num ócio vazio e sem apelo ,
sem ocupação , esposa, casa montada,
não sabia dedicar-se a nada.

XIII
Apossou-se dele a inquietação ,
a ânsia de mudar de lugar
(torturante marca, cruz, maldição ,
que poucos se resignam a levar) .
Abandonou a aldeã moradia,
campos , bosques , onde o perseguia,
a toda a hora a sombra ensanguentada,
e começou a viajar, assim, por nada,
por impulso , mania, sem destino;

1 72
e , tal como do resto (era fatal) ,
cansou-se de viaj ar afinal
e pôs termo ao capricho peregrino .
Voltou e , como Tchátski , foi parar
ao baile , logo ao desembarcar.

XIV
A multidão ondeia, move-se agora,
corre a sala uma onda sussurrante . . .
la ter com a anfitriã uma senhora
e atrás dela um general importante .
Ela caminhava leve e sem pressa,
sem verbosidade nem frieza,
sem o olhar atrevido sobre todos ,
sem os trejeitos , aqueles modos
de quem pretende ao brilho social ,
sem qualquer gesto de afectação ,
tudo nela era mansidão . . .
Parecia uma amostra ideal
du comme il faut . . . (Chichkov, hélas! ,
não sei o equivalente desta frase .)

XV
Queriam as damas , maduras e jovens ,
estar mais perto , sorriam-lhe as velhas ,
rasgavam-se em vénias os homens ,
procuravam-lhe o s olhos; e as donzelas
passavam mais lentas pela generala;
o general marchava pela sala
empinando os ombros e o nariz .
Ela não brilhava, como se diz ,
pela grande beleza deslumbrante ,
mas ninguém com algum tino diria
que nela, da cabeça aos pés , havia
aquilo que na moda dominante
da alta esfera londrina se costuma
apelidar de vulgar. (Mais uma . . .

1 73
XVI
das palavras que muito aprecio
mas não consigo traduzir em russo;
é por enquanto nova e desconfio
que por cá não se divulgue o seu uso .
Mas daria bem para um epigrama . . . )
Volto atrás , à minha ilustre dama .
Cheia de encanto despreocupado ,
estava à mesa e tinha a seu lado
a bri lhante Nina Voronskaia,
Cleópatra do Nevá . Amigo ,
estás decerto em acordo comigo
que por mais que a Nina sobressaia ,
marmórea e bela, jamais suplanta
a vizinha que ao pé dela se senta .

XVII
Eugénio não cai em s i , estupefacto:
«Será ela? Sim . . . Mas . . . interessante . . .
de uma aldeia da estepe , um buraco . . . »
E o óculo pasmado , a cada instante ,
aponta para aquela que lhe traz
os traços de alguém , uns anos atrás .
«Príncipe , tu não saberias , diz,
que dama é a de coifa carmesim ,
ali com o embaixador espanhol?»
O príncipe olha Onéguin e sorri .
- Pois ! Há muito não andas por aqui .
Espera , vou apresentar-te , é melhor,
não tarda, já ficarás a saber.
«Mas quem é ela?» - É a minha mulher. -

XVIII
«Casado? Não sabia! Que surpresa !
E há muito?» - Dois anos e um pouquinho . -
« É quem?» - Lárina. - «Tatiana ! A mesma ! »
- Mas conhecem-se? - « S i m , sou o vizinho .»

1 74
- Oh , então vamos. - O príncipe sorridente
levou até à mulher o parente
e amigo . A princesa olhou-o , calma . . .
Por mais que lhe estonteasse a alma
a inesperada visão , o choque ,
não mostrou surpresa, não vacilou ,
Tatiana mal pestanejou ,
nada lhe traiu o habitual porte:
guardou o mesmo tom , o mesmo gesto ,
calma na vénia , no sorriso , no resto .

XIX
Juro ! Nem um estremecimento leve ;
o rosto , nem pálido nem corado . . .
Não lhe buliu um sobrolho , não teve
o gesto tenso de apertar o lábio .
Onéguin , por mais que a fixasse ,
não conseguia ver naquela face
sinais da Tânia antiga da aldeia.
Quis falar - ficou sem fala e sem ideia .
«Chegara h á muito?» , ela perguntou ,
«donde , da sua aldeia, talvez?» ,
em voz firme e neutra mas cortês;
uns olhos cansados ao esposo lançou
e foi-se embora depois de o ter dito . . .
Deixou lá especado Onéguin , hirto .

XX
Será aquela a Tatiana do lance
em que ele a sós com ela na alameda,
no início do nosso romance ,
lá na terra longínqua e esquecida,
num ardor virtuoso aparente
sermoneou um dia moralmente?
Será ela a da pungente carta
onde fala o coração , que ele guarda?
Em que tudo é sincero e aberto?

1 75
Aquela menina . . . ou será que sonha? . . .
A menina . . . ah , como s e envergonha
de a ter deixado em desconcerto
e menosprezo . Foi mesmo ela, agora ,
tão indiferente com ele , tão segura?

XXI
Sai do rout, tão ruim de suportar,
e vai para casa, foge da turba:
o sono tarda e um sonho invulgar
ora triste , ora mágico lho perturba .
Acorda. Dão-lhe uma carta , abre-a, treme
lendo o convite do príncipe N .
para estar n o serão e m sua casa.
«Oh , Deus ! Vê-la ! . .. S i m ! » E não se atrasa,
rabisca a confirmação respeitosa.
Que tem ele? Que sensações estranhas !
O que acordou , se mexeu nas entranhas
da sua alma fria e preguiçosa?
Desgosto? Vaidade? Ou um rumor
da inquietude jovem , do amor?

XXII
Onégu in conta o tempo , hora a hora ,
o dia parece não acabar.
Batem as dez da noite , sai agora,
voa e j á está no patamar
da porta da morada da princesa ,
entra, ansioso , a toda a pressa,
a tremer e vê-se de repente ,
sozinho com ela, frente a frente .
Nem uma palavra lhe sai da boca,
de jeito ou de conveniência oca,
mal pode à Tatiana responder.
A Onégu in uma única ideia,
teimosa , na cabeça lhe vagueia.
Fixa os olhos nela, como a querer

1 76
fundir-se nessa dama tão diferente ,
calma, altiva, desprendida, ausente .

XXIII
O marido põe fim às constrangidas
farsas deste penoso tête-à-tête ;
e velhas aventuras e partidas
os dois amigos lembram com deleite .
Com o sal grosso da malícia começa
a salgar-se a mundana conversa
entre os convidados que entram , a rir-se ;
junto à princesa a tagarelice
fluía leve , sem preciosismo;
corria o debate , há que confessar,
em raciocíno , sem tema vulgar,
sem verdade eterna, sem pedantismo ,
sem que o seu tom livre , aberto e vivo
nos estarrecesse o ouvido .

XXIV
A fina-flor da capital brilhava,
e a moda ímpar, a alta fidalguia,
caras novas ou batidas , e a praga
da imprescindível idiotia;
velhas senhoras de coifa , com rosas ,
caras caiadas , caretas maldosas ;
várias meninas alardeando viço ,
algumas caras sérias sem sorriso ;
estava presente um embaixador
brandindo o alto tema estatal ;
um velho e perfumado general
praticava à velha moda , com primor
e finura a piada inteligente
que já soa grotesca à nossa gente .

XXV
Presente um amante de epigramas ,
agastado com tudo o que via:

1 77
a vulgaridade de homens e damas ,
o chá, açucarado em demasia,
um romance turvo e o que dele se diz ,
a guerra , a jóia dada pela imperatriz
às irmãs tal , a notícia mentirosa,
a neve e a sua própria esposa.

XXVI
Presente Prolássov que granjeou
fama de alma baixa , torpe e triste
e que tantos álbuns conspurcou
embotando o teu lápi s , ó St .-Priest;
outro ditador dos bailes se recorta ,
de figura estática e muda , à porta ,
qual boneco de revista ou pasquim,
as faces coradas de querubim
e o fatinho justo bem moldado ;
e um forasteiro insolente ,
muito engomado e imponente ,
fazia sorrir cada conv idado -
uma troca de olhares com i ndiferença
ditou-lhe a unânime sentença .

XXVII
O meu Onéguin não via nada ,
só tinha olhos para Tatiana,
não a moça simples , apaixonada,
a tímida e frági l provinciana,
mas para aquela princesa intangível ,
para a deusa altiva e impassível
do Nevá luxuoso , imperial .

1 78
Tal como com a Eva ancestral ,
todos vós , homens , vos comportais :
o que vos é dado não vos inflama
e a bruxa serpente sempre vos chama
ao mistério da árvore , e ansiais
o fruto proibido , o seu feitiço:
Éden , sem ele , não é paraíso .

XXVIII
Oh , como a Tatiana mudou !
Que firme no seu papel opulento !
Que depressa as maneiras adoptou
do nobre título , sem constrangimento !
À terna rapariga de outrora,
quem a veria assim legisladora
dos salões, tão solta e majestática?
Incrível que a alma enigmática
outrora lhe abriu e com Tânia varou
a noite escura até chegar Morfeu !
Que os olhos virgens e tristes ergueu
para a Lua e, lânguida, sonhou
percorrer com ele , ingénua iludida,
o caminho humílimo da vida !

XXIX
Está sujeita ao amor toda a idade ,
mas para as almas jovens , virginais ,
é benfazejo, como e m campo e prado
na Primavera são os temporais .
Sob a chuva das paixões reverdecem,
renovam-se e amadurecem -
e a vida dá-lhe s , com o seu vigor,
o doce fruto e a fresca flor.
Mas na estação estéril e tardia
(à viragem dos anos quem resiste?)
o rasto da paixão morta é triste :
assim no Outono a tempestade fria

1 79
torna em pântano o prado e desnuda
a floresta que foi leda e é já muda .

XXX
Não há dúvida, ai ! Está apaixonado
como um rapaz por Tatiana;
passa a noite e o dia magoado
de desej o , amor, paixão insana .
À severa razão não dá ouvidos ,
ronda a porta dela dias seguidos
e no seu vestíbulo envidraçado
se apresenta sem ser convidado ;
é a sua sombra , um empecilho;
fica feliz quando lhe põe a estola
felpuda nos ombros , quando cola
a sua mão à dela , abrindo caminho
entre as librés - multicor legião ,
ou quando lhe apanha o lenço do chão .

XXXI
Por mais que Eugénio tente (nem que morra) ,
ela não faz caso dele na mansão ,
onde o recebe com neutra pachorra;
nem fora: três palavras , gesto de mão ,
ou só uma vénia indiferente ,
ou nem repara nele simplesmente ;
nela, nem gota de coquetaria ,
a alta-roda não lho admitiria.
Já se nota em Eugénio a lividez ,
mas ela não vê , ou não tem piedade ;
Onéguin mirra, definha e lhe invade
já o peito a tísica , talvez .
Dizem: vai aos médicos ou enfermas ,
e ainda o mandam em coro às termas .

XXXII
Ele não vai ; já está pronto a marcar
encontro em breve c ' os avós; não quer

1 80
a Tatiana cruel reparar
em nada disso (é assim a mulher) ;
ora ele é persistente , não desiste ,
ainda uma esperança lhe assiste;
doente mais audaz que um sadio
escreve , com as forças por um fio ,
uma carta de paixão à princesa.
Embora, e com toda a razão ,
visse a epistolar comunicação
sem qualquer proveito ou certeza,
já não suportava viver assim.
Eis a carta dele , do princípio ao fim.

A C ARTA DE ON ÉGUIN A TATIANA

Antevejo como a vai insultar


a confissão do meu segredo triste .
Que desprezo amargo vai reflectir-se
no seu espantado e orgulhoso olhar !
Que pretendo? Que instante ousadia
me leva a abrir aqui a alma ao vivo?
Para que maliciosa alegria
dou à senhora , quem sabe , um motivo !

Quando o acaso me levou um dia


a vê-la , era a ternura que eu lia
nos seus olhos , mas não ousei confiar
naquela chama; não me atrevi ,
ao hábito antigo resisti
de me deixar levar pelo coração;
e não quis perder por veleidade
a minha tão odiosa liberdade .
Outro drama nos separou então . . .
Lênski morreu , vítima da desgraça . . .
E arranquei à força tudo o que enlaça
coração a coração; e assim fiquei
alheio , sem laços , e pensei :

181
fel icidade é sossego e liberdade .
Deus ! Como errei e fui castigado !

Não . Vê-la em toda a ocasião ,


segui-la sempre por todos os lados ,
com os olhos abrasados de pai xão ,
apanhar- lhe o olhar, o sorriso dos lábios ,
ouvi-la sem fim, descer à raiz
da sua perfeição , de alma plena,
enlanguescer de tormento e pena,
apagar-me , pálido . . . é ser feliz !

Até disto sou privado : arrasto


meus passos por aqui tentando vê-la;
em cada instante precioso me gasto
num tédio i nútil , perco aquela
réstea de vida que o destino avaro
me marcou ; sei bem que o meu tempo
está contado , mas o maior tormento
é que de manhã não seja verdade
que me encontrarei consigo à tarde . . .

Temeria que nesta humi lde prece


a sua ideia mais não visse , dura,
que ardil infame que se escondesse -
já lhe ouço a irada censura .
Ah , se soubesse que dor lancinante
é suportar a sede de amor,
arder - e a cada hora opor
resistência à tormenta do sangue ;
desejar abraçar-lhe os joelhos
e, rojado aos seus pés derramar
súpl icas , confissões , queixas , anseios ,
tudo o que eu tenha a força de mostrar,
e em vez disso cobrir tudo o que digo
e o que ouço de um frio fingido ,

1 82
manter uma conversa calma , leve
e, triste , olhá-la com olhar alegre .

Seja assim: já não posso lutar,


resistir a mim próprio , e peço
para à sua vontade me entregar:
e ao meu destino obedeço .

XXXIII
Não há resposta . Volta a escrever:
nem à segunda, nem à terceira carta
ela responde , não quer saber.
Vai a um salão e, mal se precata . . .
vem na sua direcção quem? Ela.
Que ar tão severo , que distância aquela !
Nem uma palavra , nem um olhar;
uff, como se o gelo polar
a envolvesse , e os lábios cerrados
mal contêm a indignação !
Crava os olhos nela com atenção .
Perturbada, tem os olhos manchados
do choro , pena? . . . Não ! Só a ira
do rosto fechado lhe transpira . . .

XXXIV
Talvez também o medo social ,
que o marido possa desconfiar
de aventura, fraqueza ocasional . . .
tudo ao Eugénio tão familiar . . .
Não ! Sem esperança, Onéguin vai-se ,
maldiz a sua loucura , retrai-se -
e , profundamente ensimesmado ,
a sociedade volta a pôr de lado .
E no gabinete mudo , sim, aquele ,
volta a recordar e sofrer o tempo
em que , no ambiente barulhento
da mundanidade , o tédio cruel

1 83
o agarrou pelo cachaço , bem seguro ,
e o fechou no seu canto escuro .

XXXV
Voltou a ler tudo sem escolher,
leu ou releu o Gibbon , o Rousseau ,
o Manzon i , o Chamfort, o Herder,
Madame de Stae l , Bichat, Tissot ,
leu o céptico, incrédulo Beyle ,
leu Bernard Le Bouyer de Fontenelle ,
leu alguns dos nossos russos também ,
sem rejeitar nada nem ninguém:
nem qualquer almanaque nem revista ,
onde nos edificam , sermões compondo ,
onde hoje me desancam forte e abondo ,
mas onde por vezes me içavam à crista
com madrigais ao meu nome e louvores:
e sempre bene , meus gentis senhores .

XXXVI
E quê? Seus olhos liam tudo e todos
mas o pensamento não os seguia;
desejo, muita tristeza, os sonhos
faziam da sua alma moradia.
Entre as linhas impressas encontrava
outras linhas e nelas sondava
com os olhos do espírito o segredo
da escura antiguidade , o enredo
das lendas secretas , os interiores
do coração , os sonhos desligados
de tudo , e de todos os lados
ameaças , vaticínios , rumores ,
ou dum conto vivo e longo os dislates ,
ou da jovem moça os disparates.

XXXVII
Cai pouco a pouco em letargia,
a pensar e sentir não se atreve ,

1 84
dá cartas multicores a fantasia.
Ora vê , meio derretida , a neve ,
e um jovem imóvel , estendido ,
como um viaj ante adormecido
e ouve uma voz: Está morto , está morto;
ou vê os inimigos ao seu encontro ,
que já havia esquecido , os cobardes
e malevolentes caluniadores;
ou as joven s , tantas , enxames traidores;
a roda vil das suas falsas amizades;
ou o solar da aldeia - e à janela
a figura dela . . . sempre ela ! . . .

XXXVIII
Por pouco não o enlouquecia
perder-se neste hábito de quimera,
ou não se fez poeta , quem diria -
francamente , essa era boa, não era?
Certo é que o meu aluno falhado
quase compreendeu , naquele estado ,
a força magnética do discurso
poético , o metro do verso russo .
Pálido , tinha muito de poeta
quando sentado num canto , sozinho ,
o lume a arder, o copo de vinho ,
cantarolava a Benedetta ,
o Idol mio , e lhe caía à lareira
a pantufa, a revista, a cigarreira .

XXXIX
Correm os dias , já o ar amorna,
findo o Inverno , aclara o céu -
poeta , Onéguin não se torna,
tão-pouco enlouquece , nem morreu .
Abre as janelas duplas , as portas
da casa onde , como as marmotas ,
hibernou; era o primeiro dia

1 85
de lareira apagada , e já saía ,
ani mado pela Primavera viva,
ao rio de trenó . O sol dá
no gelo azu l , retalhado , do Nevá;
derrete a neve suja, revolvida ,
nas ruas por onde Onéguin se apressa.
Onde vai ele , que azáfama é essa?

XL
O leitor já adivinhou . Está certo:
o excêntrico incorrigível corre
à sua Tatiana, já está perto ,
chega com ar ainda de quem morre ,
entra no vestíbulo - ninguém ,
segue , vai à sala, nada também .
Abre uma porta . O que o choca tanto?
À frente dele a princesa em pranto ,
sozinha , pálida , a tremer,
(mas não esconde , não se recata) ,
a roupa em desalinho , lê uma carta,
deixando as lágrimas correr,
a cabeça apoiada na mão -
imagem da sua triste aflição .

XLI
Oh , quem não teria apercebido
a sua dor muda ali i nteira !
E nesta princesa reconhecido
a Tatiana antiga da aldeia !
Com lamentações loucas outra vez ,
Eugénio soçobrou aos seus pés ;
ela estremeceu e , calada,
olha para Onéguin , desarmada,
sem espanto , sem ira , sem troça . . .
O olhar apagado dele , malsão ,
súplica , censura , consternação -
tudo ela vê . A ingénua moça

1 86
dos sonhos , da antiga alma singela ,
renascera finalmente nela .

XLII
Tânia não lhe diz que se levante ,
não tira dele os olhos dolorosos ,
e a mão insensível , pendente ,
abandona aos seus lábios sequiosos . . .
Que pensará ela neste momento?
Corre um silêncio longo e lento ,
por fim diz baixinho: «Ouça, agora
chega , levante-se . Esta é a hora
de lhe falar com sinceridade .
Lembra-se , Onéguin , olhe para mim ,
quando , na alameda, n o jardim ,
o destino nos juntou naquela tarde
e eu lhe ouvi o sermão que me fez?
Pois muito bem , hoje é a minha vez .

XLIII
«Eu era mais nova naquela altura ,
talvez melhor. Amava-o, e então?
O que esperava, jovem imatura ,
e o que encontrei no seu coração?
Que resposta? Só a severidade .
Diga-me , é ou não é verdade
que o amor de uma ingénua assim
não era novidade para si?
Hoje o meu sangue gela e a alma chora
quando recordo o seu gélido olhar
e o sermão . . . Não o estou a acusar:
foi nobre naquela terrível hora .
Teve razão falando assim comigo .
Grata do fundo da alma, amigo . . .

XLIV
«Naquele tempo , naqueles confins ,
longe dos enredos da sociedade ,

1 87
das vaidades , não gostou de mim . . .
Porquê então , agora , na cidade ,
sou atraente para o senhor Onéguin ,
porque me procura e me persegue?
Não será porque saio à alta-roda,
sou rica, aristocrata e na moda ,
o meu marido é ferido de guerra
e assim temos os favores da corte?
Não será porque o meu desnorte
andaria nas bocas desta terra
e lhe traria mundano louvor,
uma bela fama de sedutor?

XLV
« S i m , estou a chorar . . . mas se não esqueceu
aind.a a sua Tatiana de então ,
saiba que se tivesse escolha , eu ,
escolhia a ferroada, o sermão ,
a sua crítica fria, impiedosa,
a esta paixão tão insultuosa,
às cartas , ao choro , ao joelho no chão .
Na altura, ao menos , teve compaixão
pelos meus sonhos infanti s , talvez ,
respeito à minha idade , ou o que fosse . . .
Mas hoje ! - que desalinho o trouxe
a rojar-se aos meus pés? Que pequenez !
Seu coração e mente - que descaminho
os leva a sentimento tão mesquinho?

XLVI
«Este luxo , Onégui n , este ouropel
da vida fastidiosa , os saraus ,
o meu brilho social , o tropel
de máscaras nos bailes , os degraus
dourados da minha casa, que é isso?
Todo este brilho , este fulgor cediço ,
trajo à moda , barulho , confusão ,

1 88
trocava pela nossa pobre habitação ,
uma prateleira de livros , o jardim
asselvajado , o ditoso lugar
onde trocámos o primeiro olhar -
seria a felicidade para mim .
E pelo cemitério humilde , a ramada
e a cruz, sombras da ama adorada . . .

XLVII
«E a felicidade ali ao lado ,
tão possível ! . . . Mas o meu destino
fora decidido . Mal ponderado ,
talvez , o que fiz com desatino:
minha mãe implorou-mo chorando;
mas para a pobre Tânia, desde quando
os destinos todos não são iguais? . . .
Casei-me . Agora, antes de mai s ,
deve deixar-me em paz , é o que digo ;
há no seu coração um grande apego
ao orgulho e à honra , não lho nego .
Ainda o amo , fingir seria indigno ,
mas fui dada a outro e a ele
serei para sempre mulher fiel .»

XLVIII
Saiu . Eugénio fica aturdido
como que por estrondosa trovoada.
Em que procela se afundou , ferido ,
que emoções o assaltam em cavalgada !
Mas o som repentino de esporas
soou , o príncipe chegava a horas .
E aqui, meu leitor, abandonemos
o meu herói , nestes lances extremos
por que passa, no momento cruel ,
e por muito tempo . . . para sempre . . .
Muito mundo tem corrido a gente
a navegar à toa atrás dele .

1 89
Damos à costa, hurra ! , temos maré !
Já não era sem tempo (é , não é?) .

XLIX
De ti , quem quer que sejas , meu leitor,
amigo , inimigo , amargo ou doce ,
despedir me quero com calor.
Adeu s , amigo . Fosse o que fosse
que nestas estrofes descuidadas
buscaste : recordações agitadas ,
descanso do trabalho , a cena viva,
o dito de espírito , a rima esquiva,
ou o errozinho gramatical ,
queira Deus que no l ivro que aqui ponho ,
para o divertimento , para o sonho ,
o coração , o debate no jornal ,
encontres ao menos uma migalha.
E agora adeus , e que Deus nos valha !

L
Adeus também , meu i nconsequente
companheiro . E tu , fiel ideal ,
e tu , trabalho vivo e permanente ,
apesar de pequeno . Bem ou mal ,
convosco vi o que no poeta é vivo:
das tormentas do mundo , o olvido ,
das conversas de amigo , o leni mento .
Muitos dias correram , muito tempo ,
desde que , pela primeira vez ,
me surgiu Tânia, e Onéguin com ela,
num sonho impreci so à janela -
e o horizonte , ainda sem nitidez ,
do romance livre entrevia mal
através do mágico cristal .

LI
Aqueles a quem , em roda de amigos ,
as primeiras estrofes eu l i . . .

1 90
uns estão longe , outros já não são vivos ,
como disse noutros tempos Saadi .
O retrato de Onéguin completei
sem eles , e o modelo donde pintei
a querida Tatiana , o ideal . . .
Oh , tanto me rouba o destino fatal !
Ditoso é quem cedo abandonou
a festa da vida, sem amargar
o seu cálice até o esgotar,
e o romance da vida não findou ,
sabendo largá-lo quando qui s ,
como e u com meu Onéguin fiz .

191
No tas de Aleksandr Púchkin

1 Foi escrito na Bessarábia .


2 Dandy - janota.
3 Chapéu à Bolívar.
4 Restaurante famoso .
5 Sinal de sentimento frio , digno de Childe Harold . Os bailados de Didelot
caracterizam-se por uma viva imaginação e um encanto extraordinário . Um
dos nossos escritores românticos achou neles muito mais poesia do que em
toda a literatura francesa.
6 Tout le monde sut qu ' il mettait du blanc ; et moi , qui n ' en croyais rien , je
commençai de le croire , non seulement par l 'embellissement de son teint et
pour avoir trouvé des tasses de blanc sur sa toilette , mais sur ce qu'entrant
un matin dans sa chambre , je le trouvai brossant ses ongles avec une petite
vergette faite expres, ouvrage qu ' il continua fierement devant moi . Je jugeai
qu 'un homme qui passe deux heures tous les matins à brosser ses ongles,
peut bien passer quelques instants à remplir de blanc les creux de sa peau .
(Confessions de J .-J . Rousseau)
(Toda a gente sabia que ele branqueava a sua cara; e eu, que não acre­
ditava em nada nisso, comecei a descobri-lo não só pelas melhores cores da
sua tez, ou porque vi frasquinhos de branco no seu toucador, mas porque,
ao entrar uma manhã no seu quarto, o apanhei a limpar as unhas com uma
escovinha especial; continuou a fazê-lo, orgulhosamente, na minha presen­
ça . Achei que um homem que, todas as manhãs, passava duas horas a lim­
par as unhas era capaz de gastar alguns minutos cobrindo com branco os
defeitos da tez (J . J . Rousseau , Confissões) .
-

Grimm adiantou-se ao seu século: hoje em dia toda a Europa iluminada


limpa as unhas com uma escovinha especial .
7 Toda esta estrofe irónica não é senão um esmerado louvor às nossas belas
compatriotas . Assim, Boileau , com uma censura fingida, louva Luís XIV.
As nossas damas combinam a educação com a amabilidade e a rigorosa
pureza moral com um encanto oriental que cativou muito Mme de Stael (ver
Dix années d 'éxil) .
8 Os leitores lembrar-se-ão da lindíssima descrição da noite petersburguense
no idílio de Gnéditch:
É noite ; mas não se apagam as faixas douradas das nuvens.
Sem estrelas , sem lua todos os horizontes estão alumiados .
Nas longínquas águas costeiras vêem-se velas prateadas
Das naves quase indistintas que navegam como que pelo céu azu l .
O céu nocturno fulge com um brilho sem crepúsculo ,
E a púrpura do ocaso funde-se com o ouro do levante :
Como se a aurora trouxesse , atrás do anoitecer,
A manhã de faces coradas . - Era um ano dourado ,
Como os dias estivais que roubam o domínio da noite ,
Como os olhos do forasteiro fica cativado do céu nortenho
Pelo resplendor mágico da sombra e da doce luz ,
Com que o céu d o meio-dia nunca é adornado ,
Aquela clareza , semelhante aos encantos de uma moça nórdica,
Cujos olhos azuis e faces coradas
Estão mal ensombrados pelas ondas de madeixas ruças .
Então , por cima do Nevá e da Petrópolis pomposa vê-se
O entardecer sem crepúsculo e as noites curtas sem sombra;
E Filomela, mal acaba as canções da meia-noite ,
Começa as canções que saúdam o dia que desponta .
Mas já é tarde ; a frescura soprou nas tundras do Nevá;
O orvalho caiu;
Eis a meia-noite : depois do barulho nocturno de milhares de remos,
O Nevá está imóvel; os visitantes urbanos recolheram a casa;
Nem uma voz na margem, nem uma onda na água, tudo está calmo ;
Apenas d e vez em quando u m ruído surdo das pontes passa por cima da
água,
Apenas um grito arrastado chega de uma aldeia distante ,
Onde de noite os guardas armados trocam alertas .
Tudo dorme .
9 De novo vê o poeta exaltado
A deusa benevolente ,
Passando o poeta a noite sem sono ,
Apoiado no parapeito de granito .
(Muraviov, À Deusa do Nevá)
1 O Escrito em Odessa.
1 1 Ver a primeira edição do Eugénio Onéguin .
1 2 Da primeira parte de A Sereia do Dniepre .

1 94
1 3 Os mais lindos e sonoros nomes gregos , por exemplo, Agafon , Filat , Fedo­
ra, Fiokla etc . , na Rússia usam-se só entre o povo simples .
1 4 Grandison e Lovelace , heróis de dois famosos romances .
1 5 Si j ' avais l a folie de croire encore au bonheur, j e ! e chercherais dans
l ' habitude (Chateaubriand) .
1 6 «Pobre Yorick ! » - exclamação de Hamlet sobre o crânio do bobo (Ver
Shakespeare e Sterne) .
1 7 Na edição anterior, em vez de «voam para casa» foi , por engano , impresso
«voam no Inverno» (o que não tem sentido nenhum) . Os críticos não o
perceberam e acharam anacronismo nas estrofes seguintes . Acreditem que
no nosso romance o tempo foi calculado pelo calendário .
1 8 Julie de Wolmar Julie ou la Nouvelle Heloise . Malek Ade! - personagem
-

de um romance medíocre de M-me Cottin . Gustave de Linart é uma perso­


nagem de uma bela novela da baronesa Krudener.
1 9 O Vampiro - uma novela erradamente atribuída a Lorde Byron . Melmoth
é uma obra genial de Matiúrin. Jean Sbogar romance famoso de Charles
-

Nodier.
20 Lasciate ogni speranza voi ch 'entrate . O nosso modesto autor traduziu
apenas a primeira parte deste belo verso .
2 1 Revista que , em tempos, A . Izmáilov editava de modo bastante irregular.
Em certa ocasião , o editor apresentou as suas desculpas perante o público ,
alegando que se divertira à grande nas festas .
22 E . A . B aratínski .
23 As revistas exprimiram o seu espanto: como era possível chamar «donzela»
a uma simples camponesa, enquanto as meninas nobres , a seguir, foram
chamadas «raparigas» !
24 «Isto significa - observa um dos nossos críticos - que os rapazes pati­
nam .» Certo .
25 Nos meus belos anos
Gostava do Ay poético
Pela sua espuma crepitante ,
Essa similitude do amor
Ou de juventude louca etc .
26 Auguste Lafontaine , autor de numerosos romances sobre a vida familiar.
27 Ver A Primeira Neve , poesia do príncipe Viázemski .
28 Ver a descrição do Inverno finlandês na Eda de B aratínski .
29 O gato chama a gata
Para dormir no fogão .
É o vaticínio do casamento; quanto à primeira cantiga, prediz a morte .
30 Deste modo descobrem o nome do futuro noivo .
3 1 Nas revistas censuraram as palavras «khlop» («O bater das palmas»),
«molv» («rumorejo») e «top» («O bater dos pés») como uma inovação infe-

1 95
liz . Mas estas palavras são genuinamente russas . «Bová saiu da tenda para
tomar ar fresco e ouviu no campo o rumorejo humano e o bater dos cascos
de cavalos.» (História sobre o príncipe Bová) . «Khlop» utiliza-se na lingua­
gem do povo em vez de «khlópanie» , como «chip» em vez de «chi pénie»
(«chiado») . Não se deve constrangir a liberdade da nossa rica e bela língua.
3 2 Um dos nossos críticos encontra nestes versos, ao que parece , uma obsce­
nidade para nós incompreensível .
33 Os livros de adivinhação do destino editam-se entre nós atribuídos a Martin
Zadeka, homem respeitável que nunca escreveu este género de livros , pela
observação de B . M . Fiódorov.
34 Paródia aos versos famosos de Lomonóssov :
A aurora, com a sua mão rubra,
Leva o sol das águas
Calmas matinais etc .
35 Buiánov, meu vizinho ,

Veio ontem à minha casa com bigode não rapado ,


Despenteado , com roupa coberta de penugem, de boné com pala . . .
(0 Vizinho Perigoso)
36 Os nossos críticos , fiéis admiradores do belo sexo , censuraram muito a
indecência deste verso .
37 Restaurador francês .
3 8 U m verso de Griboiédov.
39 O famoso armeiro .
4 0 N a primeira edição , o sexto capítulo acabava d e modo seguinte:
E tu , inspiração jovem,
Emociona a minha imaginação,
Anima o coração sonolento ,
Visita nas asas o meu canto mais vezes ,
Não deixes a alma do poeta arrefecer,
Exacerbar-se , tornar-se dura
E empedernir-se definitivamente
No arrebatamento mortificante da alta-roda ,
No meio de orgulho sem alma,
No meio da estupidez brilhante ,

XLVII
No meio das crianças manhosas ,
Pusilânimas , desvairadas , mimadas ,
Canalhas ridículas e entediantes ,
Juízes lorpas e importunos ,
No meio de coquetes piedosas ,

1 96
No meio de lacaios voluntários ,
No meio de cenas de moda , sempre iguai s ,
D e traições educadas e carinhosas ,
No meio de sentenças frias
Da vaidade cruel ,
No meio de irritante vazio
Dos cálculos , ideias e conversas ,
No pântano em que , amigos
Estamos atolados , todos nós .
4 1 Lévchin , autor de muitas obras dedicadas à economia doméstica.
42 Os nossos caminhos são um paraíso para os olhos:
Á rvores , aterro coberto de ervas , valetas;
Muito trabalho , muita fama,
Mas infelizmente muitas vezes são intransitáveis .
Os viajantes tiram pouco proveito
Das árvores-sentinelas ao longo do caminho;
Diremos: o caminho é bonito -
E logo nos lembramos: para os transeuntes !
A viagem russa fica livre
Só em dois casos : quando
O nosso Mac-Adam ou Mac-Eva
Está completado com a incursão arrasadora
Do Inverno , rangente de ira ,
Quando reforça o caminho com o ferro de gelo,
Quando a neve precoce cobre
As suas pegadas com neve felpuda .
Ou quando quando se apodera
Dos campos uma seca tão quente
Que uma mosca pode atravessar
Um charco com olhos fechados .
(Estação de Muda , de príncipe Viázemski)
43 Comparação emprestada ao sr. K* * , muito famoso pela jocosidade da sua
imaginação . K** contou que , sendo uma vez mandado como correio do
príncipe Potiómkin à imperatriz , correu tão depressa que a sua espada ,
assomando-se da carruagem, batia nos marcos como nas varas da paliçada.
44 Rout - reunião noctuma sem baile , na verdade significa «multidão» .

1 97
Fragmentos da Viagem de Onéguin

O último capítulo de Eugénio Onéguin foi publicado à parte , com


o prefácio seguinte:
«As estrofes omitidas foram , muitas vezes , motivo de censura e
gozo (aliás , bastante justos e espirituosos) . O autor confessa com
toda a sinceridade que tirou do seu romance um capítulo inteiro , em
que descreveu a viagem de Onégui n pela Rússia. Dependia dele
assinalar este capítulo omitido com pontinhos ou um número; mas ,
por precaução , resolveu dar ao último capítulo de Eugénio Onéguin
o número oito e sacrificar uma das estrofes finais:

Está na hora: a pena pede descanso;


nove cantos escrevi , a nona onda
lança num suave balanço
o meu barco à costa jucunda -
Louvo-vos , nove Camenas . . . etc .»

P. A. Katénin (cujo excelente talento poético não o impede de ser


também um fino crítico) observou que a dita omissão , provavel­
mente vantajosa para os leitores , prejudica contudo o plano da obra
na sua integridade , porque neste caso a transformação de Tatiana ,
menina provinciana, numa Tatiana senhora aristocrática se torna
demasi ado abrupta e sem explicação . - É uma observação que
denota um artista experiente . O autor também sentiu a razoabilida­
de desta observação , mas resolveu omitir esse capítulo por razões
importantes para ele , e não para o público . Alguns fragmentos fo-
ram publ icados; colocamo-los aqui , acrescentando ainda algumas
novas estrofes .

Onéguin vai de Moscovo a Níjni Nóvgorod:

. . . . . . . . . . . . à sua frente
a feira de Makáriev é uma loucura ,
fervilha e brilha abundante .
O indiano trouxe pérolas , tem procura,
o europeu zurrapas a granel ,
cavalos reprovados o coudel ,
o jogador baralhos renitentes
e mancheias de dados obedientes ,
o lavrador as filhas todas ,
as filhas , roupas finas , velhas modas .
Cada um ferve e mente por mil ,
Reina o espírito mercantil .
*

Que aborrecimento ! . . .

Onéguin vai a Astracã e , dali , ao Cáucaso .

Vê: do Térek a corrente caprichosa


cava as suas margens escarpadas;
paira no ar a águia majestosa,
pára um veado de hastes inclinadas ;
deitado à sombra da rocha, um camelo;
um cavalo circassiano em pêlo
galopa no prado; e à volta das tendas
pastam ovelhas calmuques , lentas .
Ao longe , as caucasianas montanhas ,
já c ' o caminho até elas aberto:
a tropa rompeu com muito acerto
a barreira perigosa, com manhas ,
e os acampamentos russos vêem já

200
as margens do Arágvi e do Kurá.
*

E já, eterno guarda do deserto ,


pelas colinas à sua volta apertado ,
se erguem o Bechtau de pico erecto
e o grande Machuk esverdeado ,
doador de águas curativas ;
à volta das suas nascentes vivas
o enxame de enfermos é grosso:
um é vítima do combate honroso ,
de hemorróidas , ou de Cípris, outro;
pensam reforçar o fio da vida
na água milagrosa revolvida,
a coquete , deixar no fundo o conto
das ofensas , e o velho deseja
rejuvenescer - um pouco que seja.
*

Alimentando triste reflexão


no meio desta família triste ,
Onéguin olha com lamentação
o vapor a pairar e não resiste
à tristeza e ao despeito:
porque não fui baleado no peito?
Porque não sou velho e precário
como este pobre concessionário?
E , como aquele assessor de Tula, eu
não estou a jazer, paralisado?
Porque não sinto eu no costado
ao menos o reumatismo? - Ah , Deus meu !
Sou jovem , pela vida bafejado ;
Que posso esperar? Que tédio , que enfado ! . . .

Onéguin, a seguir, visita a Táurida:

Para a imaginação reino sagrado:


ali Pilades com Atridas se disputou ,

20 1
Mitrídates morreu lá esfaqueado ,
Mickiewicz inspirado ali andou ,
e entre as rochas da costa que galgava,
a sua Lituânia recordava.
*

Ó costas de Táurida , sois belas


quando , ao longe , do navio as vês
à luz de Cípris por entre as velas
como eu vos vi pela primeira vez
num brilho nupcial à minha frente :
No céu azu l e transparente
as suas montanhas reluziam
e aos meus olhos vales se estendiam
e os ornatos de árvores e aldeias .
E foi al i , na noite de murmúrios ,
no meio dos tártaros tugúrios . . .
Que ardor me despertou , que ideias !
Tristeza, milagre no peito afogueado !
Mas , ó Musa ! Esquece o passado .
*

Fossem quais fossem os meus sentimentos


naquelas horas , já nada mos traz:
morreram ou mudaram com os tempos . . .
Inquietude passada , repousa em paz !
As orlas perladas das ondas , os desertos
pareciam-me então necessários , certos ,
e o mar, a ressaca fragorosa,
e o ideal duma donzela orgulhosa ,
e os sofrimentos sem nome . . .
Outros dias , outros sonhos e cuidados;
resignastes, ó sonhos empolados
da minha Primavera , taça enorme ,
e à taça poética quase enxuta
acrescentei muita água , muita .
*

Preci so de outros ares, outras paisagens ,


da ladeira arenosa e , em frente

202
da pequena isbá, de outras imagens:
duas sorveiras , cancela rangente ,
cerca partida; da nuvem ligeira ,
de medas de palha junto à eira
e , sob os salgueiros , do meu lago ,
delícia dos patos novos, do afago
da balalaika que aprecio agora,
da dança ébria sapateada
à porta da taberna degradada.
Meu ideal é o lar, já não lá fora,
o sossego , o pote de sopa e , enfim,
o meu desejo é ser senhor de mim .
*

Há dias , durante a chuvada,


ao virar para o curral , encolhido . . .
Fuu ! Mas que prosa disparatada,
da escola flamenga lixo colorido !
Em jovem eu não era assim , notai !
Confirma-o , ó fonte de Bakhtchissarai !
Era bem diferente a ideia, e o escrito ,
que me inspirou o teu som infinito
quando , imaginei , silencioso ,
a figura de Zarema ao teu lado . . .
No salão deserto , encerado ,
três anos depois , vagueando ocioso
pelas terras donde há muito vim,
Onéguin lembrou-se de mim .
*

Vivi então na Odessa poeirenta . . .


Ali , o céu fica claro até desoras ,
ali , o comércio abundante
ergue as velas sem trégua nem demoras ;
Ali respira-se Europa, a Europa vive ,
o Sul faz brilhar tudo e exibe
toda a cor viva e variegada.
A língua da Itália dourada
canta na rua cheia de alegria,

203
onde andam sob o mesmo Sol ,
o francês , o arménio , o espanhol
o grego , o eslavo com galhardia,
o moldavo ; e o egípcio derreado
Maure-Ali , corsário reformado .
*

O amigo Tumánski , em tom de madrigal ,


já cantara Odessa, seu mar, sua natura ,
mas via-a com olho nada i mparcial ,
nada do que ela era na altura .
Chegou , feito um verdadeiro poeta,
foi passear sua figura selecta ,
sozinho , de óculo , à beira-mar -
e pôs a pena encantada a cantar
glórias aos jardins de Odessa.
Tudo bem , só que al i , na realidade ,
é estepe nua à volta sem mais nada;
só agora nalguma zona, e só nessa,
plantaram verde , e as jovens ramadas
lançam umas sombras esforçadas .
*

Bem, onde andas , narração desconexa?


- Na poeira desta Odessa quente .
Poderia dizer: na suja Odessa -
e não mentiria, certamente .
Cinco , sei s semanas ao ano , por grosso ,
por vontade do Zeus tempestuoso ,
inunda-se , intransitável , Odessa ,
toda coberta de lama espessa:
um côvado - quem o disser não mente ,
só de andas o transeunte andando
ousa passar a rua vadeando;
Atolam-se , afundam-se carros e gente ,
e só o boi forte é que se mete ,
em vez do cavalo fraco , à charrete .
*

Mas o martelo quebra pedra agora

204
e muito em breve a cidade salvada
vai cobrir-se de calçada sonora,
como se fora de couraça forjada .
Mas nesta húmida, alagada Odessa,
outra carência maior nos interessa;
carência de quê? - de água, nem mais .
São necessários trabalhos brutais . . .
Não importa, não é grande a desgraça,
sobretudo porque o vinho e o mosto
são trazidos para aqui sem imposto .
E há o sol do Sul , o mar com sua graça . . .
Que mais querem, meus caros camaradas?
São terras santas , abençoadas !
*

Quando o canhão dos navios atroa


de manhã , com a aurora a raiar,
desço a falésia correndo à toa
e chego depressa à beira-mar.
Com a incandescente cachimbada,
animado pela onda salgada ,
como um muçulmano no paraíso
sorvo um café oriental espesso .
Passeio . Abre o casino neste momento ,
acolhedor; já tine a louça ,
o marcador, com a vassoura, roça
o chão da varanda, sonolento .
À entrada, ainda a porta se cerra,
já estão dois comerciantes à espera.
*

A praça ganha logo colorido .


Tudo se anima , reina a alegria;
corre-se cá e lá, com ou sem motivo ,
mas por negócios a maioria.
Filho do risco e dos cifrões ,
vai o mercador ver os pavilhões ,
ver se o céu lhe mandou as velas
que sabe de cor. Que lhe trazem elas

205
neste dia de quarentena?
E se chegaram as tão ansiadas
pipas de vinho? Ou famigeradas
notícias da peste? E se vale a pena?
E onde há incêndios ? E se há fome ,
ou guerra , ou más novas sem nome?
*

Mas nós , rapazes despreocupados


entre os preocupados grossistas ,
esperávamos só as ostras , coitados ,
de Constanti nopla , as mais benquistas .
Então , as ostras? Vieram ! Que alegri a !
E a juventude gulosa corria
a devorar das conchas grosseiras
as gordas e vivas prisioneiras
com umas gotinhas de limão .
Grita-se , discute-se - e o vinho vivo
das caves para a mesa é trazido
pelo obsequioso Othon .
As horas correm, e a conta dolorosa
imperceptivelmente engrossa.
*

Mas já a tarde azul escurece ,


vamos à ópera , está na hora:
dão Rossini , e o Orfeu que parece
ser favorito da Europa agora .
Sem à crítica dar ouvidos , aprovo:
é sempre o mesmo e sempre novo ,
derrama os sons - e eles fervilham ,
jorram , ardem e como fogo brilham ,
como de jovem o beijo fogoso ,
como salpicos de orvalho vivo ,
crepitante , leve e incontido
do Ay espumante , voluptuoso . . .
Mas é l ícito comparar aqui
um vinho com o si-dó-ré-mi?
*

206
E as maravilhas que há ali , os amores !
Então , e o óculo descarado?
E os encontros nos bastidores?
E a prima donna? E o bailado?
E a frisa onde , em beleza brilhante ,
uma jovem mulher de negociante ,
lânguida, presunçosa, nada feia,
duma chusma de escravos se rodeia?
Ela ouve e não ouve a cavatina,
as súplicas , a frase brincada ,
com l isonja amável misturada . . .
E atrás dela, no canto , rumina
o marido , grita «fora ! » a dormir,
boceja - e volta no sono a cair.
*

O final traveja, a sala esvazia;


o público parte aos encontrões;
a multidão à praça acorria,
à luz das estrelas e dos lampiões .
Os filhos da Ausónia feliz, gozosa,
cantarolam uma música jocosa ,
involuntariamente decorada,
e nós rugi mos o recitativo .
É tarde . Odessa dorme , suspira;
a noite silente não respira.
Bri lha a Lua , cobre o céu um crivo
fulgente . A noite enfim se calava;
só o Mar Negro , leve , marulhava . . .
*

Portanto , vivi então em Odessa . . .

207
Comentários para Eugénio Onéguin

Dedicatória - «Não quero divertir-te , escol soberbo . . . » : dedica­


tória a Piotr Pletniov ( 1 792- 1 865) , amigo de Púchkin , editor, poeta
e crítico literário .

PRIMEIRO CAPÍTULO

Epígrafe - da poesia A Primeira Neve de Piotr Viázemski ( 1 792-


- 1 87 8 ) , poeta , crítico literário e um dos amigos mais chegados de
Púchkin .

Estrofe II - Russlan e Liudmila ( 1 820) - o primeiro poema de


Púchkin .
«Nas margens do Nevá» - o u seja, e m Petersburgo .
«Ü norte a mim , contudo , não cai bem» - em Maio de 1 820 ,
Púchkin foi exilado de Petersburgo para o sul pelas suas poesias
satíricas e políticas .

Estrofe III - Jardim de Verão - parque em Petersburgo , de ma­


nhã era lugar de passeios de crianças .

Estrofe VIII - Ovídio , que figura aqui como autor da Arte de


Amar, foi exilado pelo imperador Augusto e enviado para as mar­
gens do Mar Negro , não muito longe de Kichiniov, para onde o
poeta também foi enviado contra sua vontade .
Estrofe IX - Estrofe omitida no texto publicado .

Estrofe XII - Faublas - personagem do romance libertino Les


amours du chevalier de Faublas do escritor francês J .-B . Louvet de
Couvray ( 1 760- 1 797) .

Estrofes XIII, XIV - Estrofes omitidas . Encontram-se nos ma­


nuscritos .

Estrofe XV - Bolivar - chapéu de abas largas , do nome de Si­


mon Bolívar ( 1 7 83- 1 830) , líder do movimento de libertação nacio­
nal na América Latina.
Bulevar - Avenida Névski em Petersburgo , que , até ao ano de
1 820 , tinha no centro uma alameda de tílias .

Estrofe XVI - O restaurante Talon encontrava-se no n .º 1 5 da


Avenida Névsk i .
Piotr Kavérin ( 1 794- 1 855) - amigo d e Púchkin , famoso estroina
e livre-pensador.
Champanhe do ano do cometa , 1 8 1 1 .
O pâté de Estrasburgo - pâté de fígado de ganso , «eterno» por­
que era importado em conserva.
Queijo vivo limburguês - queijo macio , a derreter-se (por isso
«vivo» ) , trazido de Bélgica .

Estrofe XVII - Fedra - personagem da ópera de Steibelt, base­


ada na tragédia de Racine .
Moína - personagem da tragédia Fingal do poeta e dramaturgo
Vladislav Ó zerov ( 1 769- 1 8 1 6) .
Cleópatra - personagem, pelos visto s , de alguma peça traduzida.

Estrofe XVIII - Denis Fonvísin ( 1 745- 1 792) - dramaturgo rus­


so, autor das comédias O Brigadeiro e O Adolescente .
Iákov Kniajnin ( 1 742- 1 79 1 ) - dramaturgo russo . É caracteriza­
do como «imitador» porque imitava argumentos do repertório do
teatro francês .
Ekaterina Semiónova ( 1 7 86- 1 849) - actriz trágica russa.

210
Pável Katénin ( 1 792- 1 853) - poeta e dramaturgo russo .
Aleksandr Chakhovskói ( 1 777- 1 846) - dramaturgo e encenador
russo .
Charles Didelot ( 1 767- 1 837) - famoso coreógrafo petersbur­
guense de origem francesa .

Estrofe XX - Avdótia lstómina ( 1 799- 1 848) - célebre bailarina


do bailado petersburguense .

Estrofe XXIV- Tsaregrad - Istambul .


Frederick-Melchior Grimm ( 1 723- 1 807) - escritor do círculo
dos enciclopedistas .

Estrofe XXV - Piotr Tchaadáev ( 1 794- 1 856) - escritor e filóso­


fo russo, amigo de Púchkin . Vestia-se com elegância e era exigente
em relação às regras dos cuidados a ter com o corpo .

Estrofe XXVI - «Pantalon , frac e gilet» : puristas rigorosos (como


Chichkov, ver Oitavo Capítulo , XIV) faziam a caça às palavras es­
trangeiras . O dicionário da Academia adaptara o seu ponto de vista
e propunha equivalentes puramente russos .

Estrofe XXXII - Elvina é um nome poético convencional na po­


esia desde o fim do séc . XVII até ao início do séc . XIX , ligado so­
bretudo à lírica erótica .

Estrofe XXXIII - Armida - personagem central d o poema Jeru­


salém Libertada do poeta italiano Torquato Tasso ( 1 544- 1 595) .
Significa «feiticeira» , «sedutora» .

Estrofe XXXV - « . . . acordado pelo tambor» - ou seja, pelo si­


nal de alvorada nas casernas dos regimentos da guarda imperial .

Estrofe XXXVIII - A origem de khandrá é o grego : a palavra


russa perdeu o prefixo de «hipocondria» .
Childe Harold é a primeira personagem a fazer a glória de
Byron ; passeia através da Europa o seu incurável desencantamento .

21 1
Onéguin (ver «Viagem de Onéguin») imita-o vagueando através da
Rússia.

Estrofes XXXIX, XL, XLI - Estas estrofes , pelos vistos , nunca


foram escritas . Na opinião de Vladímir Nabókov, a colocação no
texto dos números das estrofes como que omitidas cria uma sensa­
ção de pausa para reflexão , de um falso desconhecido , de marcação
de um ilusório horizonte dos sentimentos .

Estrofe XLII - Jeremy Bentham ( 1 748- 1 832) : publicista liberal


e jurista inglês .
Jean-Baptiste Say ( 1 767- 1 832) - publicista e economista francês .

Estrofe XLVII - Diana: aqu i , Lua.

Estrofe XLVIII - «Apoiado ao granito» (como o poeta) - o po­


eta é Mikhaíl Muraviov ( 1 757- 1 807 ) , o qual Púchkin cita nas suas
notas .

Estrofe XLIX - B renta: rio , em cujo delta se situa Veneza .


«Altiva lira de Albion» - Byron .

Estrofe L - « . . . sob o céu de Á frica minha» - na primeira edi­


ção deste capítulo Púchkin inseriu a nota autobiográfica seguinte:
«Ü autor, da parte da mãe , é de origem africana. O seu bisavô ,
Abram Petróvitch Hannibal , com a idade de oito anos , foi raptado
nas terras africanas e levado para Constantinopla . Um embaixador
russo resgatou-o e enviou-o como oferenda a Pedro , o Grande , que
o baptizou em Vilna . O irmão do rapaz foi atrás dele , primeiro a
Constantinopla, depois a Petersburgo , oferecendo por ele um resga­
te; mas Pedro 1 não aceitou devolver-lhe o seu afilhado . Hannibal ,
até à velhice profunda, não esqueceu Á frica, a vida luxuosa do seu
pai , os seus dezanove irmãos , dos quais era o mais novo ; lembrava­
-se de que os irmãos eram levados à presença do pai com as mãos
atadas atrás das costas , enquanto ele era o único que andava livre e
nadava sob os repuxos da casa do pai ; recordava também a sua irmã
preferida , Lagan , que foi a nado atrás do navio em que o levavam .

212
Hannibal tinha dezoito anos quando foi enviado pelo czar a Fran­
ça, onde começou o seu serviço no exército do regente; voltou para
a Rússia com uma cicatriz na cabeça e a patente de tenente francês .
Desde então , estava permanentemente junto ao imperador. No reina­
do da czarina Ana , Hannibal , inimigo pessoal de E . J . von B iron
(favorito da imperatriz - N. da T.) , foi mandado para a Sibéria sob
um pretexto plausível . Esgotado pelo ambiente árido e pelo clima
cruel , voltou sem autorização a Petersburgo e foi ter com o seu ami­
go Münnich . Münnich ficou espantado e aconselhou-o a esconder
imediatamente . Hannibal retirou-se para a sua herdade , onde iria
viver durante todo o reinado de Ana, sendo muito prezado tanto no
serviço como na Sibéria. A czarina Isabel , ao subir ao trono , cobriu­
-o de favores. Abram Hannibal morreu já no reinado de Catarina II ,
afastado de serviços importantes , tendo patente de general-em-chefe
e 92 anos de idade .
O seu filho Ivan Hannibal era , incontestavelmente , uma das mais
brilhantes personalidades da época de Catarina (morreu em 1 800) .
Na Rússia, onde a memória de pessoas notáveis desaparece rapi­
damente , devido à ausência de registos históricos , a vida estranha de
Hannibal é conhecida somente por meio das lendas de família.Temos
esperança de , a seu tempo , editarmos a sua biografia completa .»

Estrofe LVII - « . . . uma moça dos montes» - circassiana , perso­


nagem do poema O Cativo do Cáucaso ( 1 82 1 ) de Púchkin .
« . . . e as cativas das ribeiras de Salguir» - trata-se do poema
A Fonte de Bakhtchissarai ( 1 823) , de Púchkin .

SEGUNDO CAPÍTULO

Epígrafe - Ó rus! - Ó aldeia ! (lat.) . A epígrafe é extraída de


Sátiras , II , 6 . Este calembour passa em português porque «Rus» é o
antigo nome da Rússia.

Estrofe VI - Gottingen era famosa pela sua universidade , uma


das mais liberais na Europa.

213
Estrofe XXIV - Tatiana: nos anos quando foi escrito Eugénio
Onéguin , este nome usava-se mais frequentemente no meio campo­
nês do que entre os fidalgos , e não se encontrava de facto na tradição
literária .

Estrofe XXIX - Samuel Richardson ( 1 689- 1 76 1 ) : romancista in­


glês , autor dos romances Pamela , ou a Virtude recompensada, Cla­
risse Harlowe , A História de Charles Grandison . E stes romances
eram muito populares na Rússia e estavam , até , traduzidos para a
l íngua russa. Tatiana , pelos vistos , leu traduções para o francês .
Quanto a Rousseau , trata-se do seu romance Julie , o u la nouvelle
HéloiSe .

Estrofe XXXVII - « . . . medalha que ganhaste em Otchákov» -


ou seja, pela participação na tomada da fortaleza turca de Otchákov
em 1 78 8 .

TERCEIRO CAP ÍTULO

A epígrafe: do poema Narcisse dans l 'fle de Vénus do poeta fran­


cês Jacques-Charles-Louis Clinchamps de Malfi lâtre ( 1 732- 1 767) .

Estrofe II - Fílis: nome poético convencional que muitas vezes


aparece em éclogas da antiga poesia grego-latina.

Estrofe III - «A mesa encerada de fresco» : os marceneiras rus­


sos enceravam os móveis, em vez de os envernizarem, como faziam
os marceneiras ocidentais .
No manuscrito a estrofe prossegue :
Servem doces nos pires
Com uma colher para todos .
Na aldeia , depois do almoço
Não há outro passatempo e divertimento .
Apertando as mãos, acorreram à porta
As jovens criadas , tendo grande pressa
De ver o novo vizinho, enquanto

214
Uma multidão de servos no terreiro
Fazia crítica aos cavalos dos convidados .

Estrofe V - S vetlana é personagem de uma balada do poeta rus­


so Vassíli Jukóvski ( 1 783- 1 852) , adaptação bastante livre da balada
«Leonor» do poeta alemão G. A. Bürger ( 1 749- 1 794) .
Madona de Van Dick - não se trata de uma tela concreta do pin­
tor flamengo , mas de um determinado tipo de pintura .

Estrofe IX - O amante de Julie de Wolmar: St. Preux , persona­


gem do romance Julie, ou la nouvelle Héloi'se de Jean-Jacques
Rousseau ( 1 7 1 2- 1 778) .
Malek-Adehl - personagem do romance Mathilde da escritora
francesa Marie Cottin ( 1 770- 1 807) .
De Linard - personagem do romance Valérie da baronesa von
Krüdener ( 1 764- 1 824) .
Werther - personagem do romance de Johann Wolfgang von
Goethe ( 1 749- 1 832) .

Estrofe X - Clarissa: personagem do romance Clarisse Harlowe


de Samuel Richardson , escritor inglês ( 1 689- 1 76 1 ) .
Delphine - personagem do romance Delphine da escritora fran­
cesa Madame de S tael ( 1 7 66- 1 8 1 7) .

Estrofe XII - Vampiro: novela do escritor inglês John Polidori


( 1 795- 1 82 1 ) .
Melmoth - personagem do «romance de horrores» Melmoth the
Wanderer do escritor inglês Charles Robert Maturin ( 1 782- 1 824) .
Judeu Errante - Aasvero que repeliu Cristo quando este , na sua
via sacra , quis descansar junto da sua casa; por isso o Judeu Errante
foi condenado à imortalidade e eterna vagabundagem . Aparece no
romance O Manuscrito Encontrado em Saragoça do escritor polaco
Jan Potocki ( 1 76 1 - 1 8 1 5) .
Corsário - poema de Byron .
Sbogar - personagem do romance Jean Sbogar, do escritor fran­
cês Charles Nodier ( 1 780- 1 844) .

215
Estrofe XVIII - «Destrançaram-me a trança . . . » : as raparigas
solteiras usavam uma só trança e , antes do casamento , faziam-lhes
duas tranças .

Estrofe XXII - «Abandonai toda a esperança . . . » : a primeira me­


tade do terceiro verso do Terceiro Canto de «0 Inferno» da Divina
Comédia de Dante Alighieri ( 1 265 - 1 32 1 ) - Lasciate ogni speran­
za , voi ch 'entrate .

Estrofe XXVII - Bem-Intencionado: revista editada em 1 8 1 8-


- 1 826 pelo escritor satírico Aleksandr Izmáilov ( 1 779- 1 83 1 ) .

Estrofe XXIX - Ippolit Bogdanóvitch ( 1 7 43- 1 803) - poeta rus­


so . Viam nele o fundador da «poesia ligeira» russa.
É vari ste Parny ( 1 753- 1 8 1 4) - poeta francês , autor de elegias de
amor.

Estrofe XXX - « Ó cantor dos Festins e da tristeza . . . »: trata-se do


poeta russo Evguéni Baratínski ( 1 800- 1 844) , amigo de Púchkin .

Estrofe XXXI - Der Freishütz - ópera de Karl Weber ( 1 7 86-


- 1 826) .

QUARTO CAPÍTULO

Epígrafe : do tratado histórico-político Considérations sur les prin­


.
cipaux événements de la Révolution française ( 1 8 1 8) de Madame de
Stael , a qual cita uma frase proferida pelo pai , Jacques Necker.

Estrofes !, li, Ili, IV, V, VI - As primeiras quatro estrofes foram


publicadas separadamente na revista Moskóvski véstnik («Noticiário
de Moscovo») em Outubro de 1 827 (a V e a VI não foram aparente­
mente escritas) .

Estrofe VII - Os saltos vermelhos e as perucas altas e empoadas


estavam na moda entre a aristocracia francesa na primeira metade
do século XVIII .

216
Estrofe XXX - Fiódor Tolstói ( 1 783- 1 873) - artista plástico russo .

Estrofe XXXI - Nikolai Iazíkov ( 1 803- 1 847) - poeta romântico


russo; Púchkin apreciava muito a sua poesia.

Estrofe XXXII A corneta, a máscara e o punhal : atributos sim­


-

bólicos de Melpómene , Musa da tragédia .

Estrofes XXXVI, XXXVII Gulnare : personagem d o poema


-

O Corsário de Byron .
Helesponto - nome grego antigo do estreito dos Dardanelos .
Excelente nadador, em 1 8 1 0 Byron atravessou a nado este estreito .
«E vestia-se . . . » a seguir, no manuscrito:
-

« .. mas eu duvido muito


.

Que use o leitor semelhante trajo .

Andava de camisa russa,


Cingida com um lenço de seda,
De armiak tártaro desabotoado
E de chapéu muito parecido
Com uma casa móvel . » . .

Estrofe XLIII - Dominique Pradt ( 1 759- 1 837) - publicista


francês .

Estrofe XLVII - Entre chien et loup (fr.): crepúsculo.

Estrofe L - August Hei nrich Lafontaine ( 1 759- 1 8 3 1 ) - roman­


cista alemão , muito popular no fim do século XVIII .

QUINTO CAPÍTULO

Epígrafe: da balada Svetlana de Vassíli Jukóvski .

Estrofe VIII - Cera derretida: vertiam a cera derretida na água


fria . A figura de cera que se formava predizia o destino da respecti­
va pessoa.

217
. . . os anéis
- as raparigas punham os seus anéis num prato com
água; os anéis eram tirados à sorte , o que era acompanhado pelo
canto , e cada cantiga predizia o destino daquela a quem pertencia o
anel tirado neste momento .

Estrofe IX - Nesta e nas estrofes que se seguem são descritos


rituais de adivinhação . Como nestes rituais se invocavam as forças
do mal , as raparigas precisavam da aj uda e orientação de mulheres
mai s velhas e experientes .
Como se chama ? . . . «Agafon» - trata-se de mais um método de
adivinhar o futuro: a pergunta era feita ao primeiro homem que a
rapariga encontrasse na rua , e o futuro noivo teria, supostamente , o
mesmo nome . Aqui , o nome que Tatiana ouviu em resposta era uti­
lizado apenas entre o povo simples , e não se adequava às expectati­
vas dela , e assim a cena adquire um sentido irónico .

Estrofe X - . . . eu, lembrando Svetlana . . . - Svetlana, do poema


de Vassíli Jukóvski , também lê a sorte , para saber quem será o futu­
ro noi vo.
O laço da faixa de seda desfez . . . - durante os rituais de adivi­
nhação , as raparigas tiravam as cruzes de peito e os cintos (objectos
mágicos de protecção contra as forças do mal) .
Lei é um antigo deus eslavo , bom , sorridente , uma espécie de
Cupido .

Estrofes XI-XII - A travessia do rio é um símbolo de casamento


na poesia tradicional das bodas . Ao mesmo tempo , é um símbolo da
morte .
A imagem do urso também está ligada à simbologia do casa­
mento .

Estrofe XXII - Moda Magazine : trata-se do Journal des dames


et des modes , edição periódica francesa entre 1 797- 1 83 8 .

Estrofe XXIII - Malvina : romance e m seis partes d e Marie


Cottin .

218
Duas Petríadas - um destes livros é o poema Petríada de A .
Gruzíntsev ( 1 779- 1 840) , o outro é provavelmente u m dos poemas
sobre Pedro , o Grande (de S .Chirínski-Cikhmátov, ou de R. Slad­
kóvski) .
Jean-François Marmontel ( 1 723- 1 799) - escritor francês .

Estrofe XXIV - Héspero: estrela d a madrugada (grego) , Vénus .

Estrofe XXVII - . . . Triquet, brincalhão vindo há pouco de Tam­


bov - Tambov era uma das cidades para onde eram enviados os
prisioneiros franceses em 1 8 1 2 .

Estrofe XXXII - Blanc-manger: prato doce , geleia de leite de


amêndoa.
Zizi - nome com que era tratada, em criança, Evpraksia Wulf
( 1 8 1 0- 1 883) , filha de P. Ó ssipova, vizinha e amiga de Púchki n .

Estrofe XXXV - . . . a s mesas verdes . . . Mesas para o jogo das


cartas , forradas de pano verde , em que se apontavam a giz as contas
do jogo .

Estrofes XXXVII, XXXVIII, XXXIX - A primeira edição continha


as estrofes XXXVII e XXXVIII .

Estrofe XL - Francesco Albano ( 1 578- 1 660) , pintor italiano .

Estrofes XLIII, XLIV - A primeira destas estrofes encontra-se na


íntegra no manuscrito .

SEXTO CAPÍTULO

Epígrafe - Trata-se da Canção 28 do Canzoniere de Petrarca.


Entre os dois versos que Púchkin cita, há um outro: Nemica natural­
mente di pace . Não será só a Alemanha que Petrarca designa , mas
todo o Norte da Europa.

219
Estrofe V - Régulo:- cabo-de-guerra romano do século III a . C .
Foi feito prisioneiro pelos cartagineses e enviado a Roma para trans­
mitir uma proposta de paz . Contudo , aconselhou os romanos que
continuassem a guerra . Depois , cumpriu a promessa de voltar a
Cartago .
Véry é um restaurador do Palais-Royal . Encontra-se este nome
com frequência em, por exemplo , B alzac .

Estrofe VII - . . . faz cultivo . . . de couves como Horácio . . . - Em


francês , «aller planter ses choux» significa retirar-se para o campo .
Quanto a Horácio , cantou nos seus poemas a vida rural quando , de­
pois de ter participado na guerra civil , se retirara para a sua herdade .

Estrofes XV, XVI, XVII - Existem cópias das primeiras duas es­
trofes , de carácter autobiográfico .

Estrofe XX - Anton Delvig ( 1 798- 1 83 1 ) : poeta russo , amigo


próximo de Púchkin .

Estrofe XXIV - Héspero , o mesmo que Vénu s .


Lepage - pistolas d e marca Lepage , armeiro parisiense .

SÉTIMO CAPÍTULO

Estrofe IV - . . . de Lévchin seguidistas - ou seja, proprietários


rurais . Vassíli Lévchin ( 1 746- 1 826) era escritor, folclorista e econo­
mista.

Estrofe XXII - . . . de Don Juan e de Giaour o cantor . . . - ou


seja, Lorde Byron .

Estrofe XXVII - Circe : feiticeira, personagem da Odisseia de


Homero , que atraía e enfeitiçava os viajantes.

Estrofe XXXIV - . . . o s ciclopes rurais . . . - ou seja, os ferreiros .

220
Estrofe XXXVII - O Castelo de Pedro , o Grande , foi construído
em 1 766 na estrada de Petersburgo , perto das portas de Moscovo .
Em 1 8 1 2 , antes de entrar na cidade abandonada pelas tropas russas ,
Napoleão esperou inutilmente a entrega cerimonial das chaves de
Moscovo . Quando deflagrou o incêndio , Napoleão saiu do Kremlin
e instalou-se no Castelo de Pedro .

OITAVO CAPÍTULO

Estrofe I - . . . nos jardins do Liceu . . . - o Liceu era uma escola


com um vasto programa de ensino , sem análogos no sistema de
ensino na Rússia daquela época. Foi fundado em 1 8 1 1 em Tsárskoe
Seló , residência imperial nas proximidades de Petersburgo . Púchkin
estudou no Liceu em 1 8 1 1 - 1 8 1 7 .
. . . a Musa . . . era minha visita frequente . . . - Púchkin começou a
escrever poesia nos anos do Liceu .

Estrofe II - «Derjávin notou-a e bendisse-a . . . » Gavriil Derjávin


( 1 743- 1 8 1 6) : poeta russo de grande renome naquela época . Em 8 de
Janeiro de 1 8 1 5 , no exame , o jovem Púchkin leu , na presença de
Derjávin , a sua poesia «Recordação de Tsárskoe Seló» . O velho
poeta ficou fascinado , abraçou e abençoou Púchkin .

Estrofe IV - . . . fui para longe . . . - Trata-se do exílio de Pú­


chkin para o sul da Rússia em 1 820 .
Leonor - heroína da balada «Leonor» de G . A . Bürger. Na bala­
da, o noivo morto vai buscar Leonor e leva-a consigo .
Táurida - nome antigo da Crimeia.

Estrofe V - . . . visita nómadas nas pobres tendas . . . - ou seja,


visita a acampamentos ciganos .
. . . mas tudo mudou . . . - referência velada ao novo exílio: em
1 824 , Púchkin foi mandado de Odessa para a aldeia de Mikháilo­
vskoe , sua herdade na província de Pskov.

Estrofe XIII - Tchátski é a personagem central d a comédia


A Desgraça de Ser Inteligente de Aleksandr Griboiédov ( 1 790-

22 1
- 1 829); Tchátski regressa após três anos de viagens e logo vai parar
a uma festa .
Estrofe XIV - . . . du comme il faut . . (Chichkov, hélas! . ) -
. .

Aleksandr Chichkov ( 1 754- 1 84 1 ) , almirante , literato , presidente da


Academia Russa, era adversário da utilização de léxico estrangeiro
na língua russa.

Estrofe XXVI - Emmanuel St .-Priest ( 1 806- 1 828): conde , hus­


sardo , conhecido caricaturista .
. . . muito engomado e imponente . . - ou seja, de gravata dema­
.

siadamente engomada , o que era considerado de mauvais ton .

Estrofe XXXV - Edward Gibbon ( 1 737- 1 794) , historiador inglês .


Alessandro Manzoni ( 1 785- 1 873) - poeta e romancista român­
tico ital iano .
Johann Gottfried von Herder ( 1 744- 1 803) - fi lósofo , historiador
e folclorista alemão .
Sébastien Roch Nicolas Chamfort ( 1 7 40- 1 794) - escritor e pu­
blicista francês , autor de aforismos .
Xavier Bichat ( 1 77 1 - 1 802) - célebre médico francês , autor de
livros de anatomia e fisiologia.
Simon-André Tissot ( 1 728- 1 797) - médico suíço , autor de livros
de medicina muito populares no século XVIII .
Pierre Bey le ( 1 647- 1 706) - filósofo francês .
Bernard Le Bovier de Fontenelle ( 1 657- 1 7 57) - filósofo racio­
nalista francês .

Estrofe XXXIX - . . . no gelo azul cortado do Nevá . . . - no In­


verno , partiam o gelo no Nevá, para a conservação de alimentos e
outros fins .

FRAGMENTOS DA VIAGEM DE ONÉGUIN

Camenas - o mesmo que Musas .


Estrofe 4 , 4.ª linha - «Ü vapor a pairar» indica-nos que se trata
de uma nascente de água quente , vulgo «caldas» .

222
Estrofe 11, / .ª linha- Vassíli Tumânski ( 1 800- 1 860) - poeta
russo , amigo de Púchkin .
Estrofe 19, 4 .ª linha
- Ausónia: nome antigo de Itália. No século
XIX , muitos italianos viviam em Odessa.

223
Índice

Preâmbulo 7

Eugénio O négui n

Primeiro Capítulo 17
Segundo Capítulo 43
Terceiro C apítulo 61
Quarto Capítulo 83
Quinto Capítulo 1 03
Sexto Capítulo 1 23
Sétimo Capítulo 1 43
Oitavo Capítulo 1 67

Notas de Aleksandr Púchkin 1 93


Fragmentos da Viagem de Onégui n 1 99
Comentários para Eugénio Onéguin 209
ÜBRAS DO AUTOR NESTA EDITORA

Aleksandr Púchkin - Contos


NESTA COLECÇÃO

l . Johann W. Goethe: Fausto


2 . Choderlos de Laclos : As Ligações Perigosas
3 . Jean-Jacques Rousseau : Confissões
4. Herman Melville: Moby Dick
5 . Oscar Wi lde : O Retrato do Sr. W. H.
6 . Gustave Flaubert: Madame Bovary
7 . Stendhal : A Cartuxa de Parma
8 . S . Masoc h: A Vénus de Kaz.abaika
9 . Edith Wharton: Ethan Frome
1 0 . Heinrich Heine: O Livro de Le Grand
1 1 . Rainer Maria Rilke: Ewald Tragy
1 2 . Oscar Wilde: O Retrato de Dorian Gray
1 3 . Montaigne : Ensaios (Antologia)
1 4 . W. B . Yeats : Onde Nada Existe
1 5 . Hermann Melville: As Ilhas Encantadas
1 6 . Hõlderl i n: A Morte de Empédocles
1 7 . Oscar Wilde : De Profundis
1 8 . Emily B ronte : O Monte dos Vendavais
1 9 . Anton Tchékhov: Contos ( Volume /)
20 . Anton Tchékhov : Contos ( Volume II)
2 1 . Anton Tchékhov : Contos ( Volume III)
22 . Oscar Wilde : O Crime de Lorde Artur Savile e Outros Contos
23 . Giacomo Leopardi: Pequenas Obras Morais
24 . Benjamin Constant : Adolfo
25 . Marcel Proust: Do Lado de Swann (Vol . I de Em Busca do Tempo
Perdido)
26 . Marcel Proust: À Sombra das Raparigas em Flor (Vol . II de Em Busca
do Tempo Perdido)
27 . Marcel Proust: O Lado de Guermantes (Vol . III de Em Busca do Tempo
Perdido)
28 . Marcel Proust: Sodoma e Gomorra (Vol . IV de Em Busca do Tempo
Perdido)
29 . Marcel Proust: A Prisioneira (Vol . V de Em Busca do Tempo Perdido)
30 . Marcel Proust: A Fugitiva (Vol . VI de Em Busca do Tempo Perdido)
3 1 . Marcel Proust: O Tempo Reencontrado (Vol . VII de Em Busca do Tempo
Perdido)
3 2 . Edith Wharton: verão
3 3 . R . M . Rilke: As Anotações de Malte Laurids Brigge
34. Franz Kafka: O Desaparecido
3 5 . Anton Tchékhov : Contos ( Volume IV)
3 6 . I van B ú n i n : O Amor de Mítia
3 7 . Anton Tchékho v : Novelas (Drama na Caça e O Duelo)
3 8 . Rainer Maria Ri lke: A Balada da Vida e da Morte do Alferes Cristoph
Rilke e Outros Contos de Juventude
3 9 . M iguel de Cervante s : D. Quixote de La Mancha
40 . Franz Kafka: A Metamorfose
4 1 . Franz Kafka: Contos
42 . Giovan n i Boccaccio: Decameron (Vo l s . 1 e II)
43 . Charles B audelaire : A Invenção da Modernidade (Sobre Arte, Litera-
tura e Música)
44 . Franz Kafka: O Castelo
45 . Anton Tchékhov : Contos ( Volume V)
46 . Honoré de B al zac : A Rapariga dos Olhos de Ouro
47 . Anton Tchékho v : Contos ( Volume VI)
48 . Lev Tol stoi : Anna Karénina
49 . Gustave Flaubert: Salammhô
50 . Hugo von Hofman nsthal : Andreas
5 1 . Ivan Turguén iev : Pais e Filhos
5 2 . Anton Tchékho v : Contos ( Volume VII)
5 3 . Wi l l a Cather: Uma Mulher Perdida
54. Lev Tolstói : A Sonata de Kreutzer
5 5 . Honoré de B al zac : Pierrette seguido de O Padre de Tours
5 6 . M ikhai l B ulgákov: Margarita e o Mestre
57 . Lev Tolstó i : A Morte de Ivan lliitch
5 8 . Murasaki Shikibu: O Romance do Genji (Tomo 1 )
5 9 . Ivan Turguéne v : O Primeiro Amor
60 . Mikhail Lérmontov : O Herói do Nosso Tempo
6 1 . Murasaki S h i kibu: O Romance do Genji (Tomo 2)
62 . Lev Tol stó i : O Diabo e Outros Contos
63 . Gustave Flaubert: A Educação Sentimental
64. Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba
65 . Machado de Assis: Dom Casmurro e Esaú e Jacó
66 . Lev Tol stói : Hadji-Murat
67 . Fiódor Dostoiev ski: Crime e Castigo
68 . Fiódor Dostoievsk i : O Jogador
69 . Stendhal : Do Amor
70 . Lev Tol stói : Cossacos - Novela do Cáucaso
7 1 . Ivan Turguéne v : Fumo
7 2 . Ivan Turguénev : Cadernos de Um Caçador
7 3 . Lev Tol stói : Dois Hussardos e A Felicidade Familiar
74 . Fiódor Dostoievsk i : Os Demónios
75 . Stendhal : O Vermelho e o Negro
7 6 . S altykov-Shchedrin: A Família Golovliov
77 . Ivan Turg uénev: Águas da Primavera
7 8 . Ivan Turg uéniev : Solo Virgem
7 9 . Andrei Béli: Petersburgo
80 . Anton Tchékhov: O Duelo
8 1 . Charlotte B ronte : Jane Eyre - Uma Autobiografia
8 2 . George Eliot: O Moinho à Beira do Floss
8 3 . Charles Dickens: David Copperfield
84. Guy de Maupassant: Bel-Ami
85 . George Eliot: Middlemarch
86. Joseph Conrad : Coração de Trevas e No Extremo Limite
8 7 . Guy de Maupassant: Mademoiselle Fifi e Contos da Galinhola
8 8 . Fiódor Dostoievski : Os Irmãos Karamázav
8 9 . Lev Tol stói : Infância, Adolescência e Juventude
90 . Jane Auste n : Orgulho e Preconceito
9 1 . Lev Tol stoi : Anna Karénina (Ed . brochada)
92 . Johann W. Goethe: Fausto (Ed . brochada)
93 . Lev Tol stoi : Guerra e Paz (Vols . 1 e II)
94 . Charles Dickens: História em Duas Cidades
95 . Anton Tchékhov : Contos ( Volume VIII)
96. Anton Tchékhov : Contos ( Volume IX)
97 . Jane Austen: Lady Susan
9 8 . Franz Kafka: Diários - Diários de Viagem
99 . Jane Austen: Persuasão
1 00 . Fiódor Dostoievski : O Idiota
1 0 1 . Jane Austen: Sensibilidade e Bom Senso
1 02 . Jane Austen: Mansfield Park
1 03 . Lev Tol stói : Contos de Guerra
1 04 . Franz Kafka: O Processo
1 05 . Ivan Chmeliov : O Sol dos Mortos
1 06 . Nikolai Go go l: Contos de Petersburgo
1 07 . Lev Tol stói : De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos
1 08 . Charles Dickens : O Amigo Comum
1 09 . Elizabeth Gaskell: Norte e Sul
1 1 0 . Jane Austen: Emma
1 1 1 . Charles Dickens : Tempos Difíceis

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