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A queda do cérebro

16-21 minutes

Isadora Martini gostava de ler poemas. Separava os mais bonitos para declamar nos
eventos do Centro de Tradição Gaúcha na cidade de Chapecó, em Santa Catarina, onde
mora com o marido. Dona de uma memória fotográfica afiada, decorava todos versos em
poucos minutos. Também era fã dos romances de Paulo Coelho, lia livros de aventura,
crônicas, literatura espírita e, para a faculdade de medicina veterinária, artigos científicos e
textos sobre fisiologia e bioquímica. Mas há um ano o prazer da leitura desapareceu.
Martini, uma jovem de 28 anos, desenvolveu problemas de concentração e memória – e
acompanhar as frases de um texto de repente se tornou impossível. Nos picos de confusão
mental, cada vez mais frequentes, ela olha para as letras espalhadas no papel e não
consegue juntá-las em palavras que façam sentido. Quando, com sorte, Martini forma
palavras, simplesmente não consegue entender o significado delas. “Não posso mais
confiar no meu cérebro”, lamenta. “Se estiver escrito ‘vassoura’, minha cabeça vai dizer
que é ‘tesoura’, ‘cenoura’, ou qualquer coisa parecida. É muito angustiante ver a palavra e
não conseguir entender”, diz ela.
Ela sente que sua mente está sempre lhe pregando peças, tentando enganá-la e confundi-
la. Agora ela troca os nomes de objetos, se perde nos dias da semana, tem dificuldade de
entender e absorver o que as outras pessoas falam, como se alguma coisa se perdesse no
caminho entre os ouvidos e o cérebro. “Uma vez eu estava no meu quarto e fiquei
desorientada, esqueci onde eu estava. Olhava para os lados e não reconhecia nada”, diz,
com a voz embargada e os olhos marejados. “Às vezes eu acho que estou com Alzheimer
ou demência, e eu só tenho 28 anos. E se esses sintomas piorarem, como eu vou viver?
Quem vai cuidar de mim?” Todos esses problemas neurológicos apareceram depois que
Martini teve Covid e ficou doze dias internada, em março de 2021.
A ação do vírus no cérebro ainda é um mistério. Mas os cientistas estão cada vez mais
perto de desvendá-lo. Um estudo publicado em janeiro por pesquisadores da Universidade
de São Paulo mostrou que o Sars-CoV-2 consegue entrar no cérebro humano. A análise foi
feita a partir de imagens de altíssima resolução, com ultrassom, ressonância magnética e
tomografia, aliadas à autópsia minimamente invasiva do tecido cerebral de seis vítimas que
desenvolveram a forma grave da Covid e precisaram de internação em UTI. Até então, o
consenso na comunidade científica era de que o cérebro apenas era afetado por uma
inflamação em resposta à presença do vírus no corpo. Os pesquisadores brasileiros
mostraram que o buraco é mais embaixo. “Fazendo uma biópsia, é possível identificar o
vírus nas células microgliais e endoteliais, que revestem a superfície interna dos vasos”, diz
o patologista Paulo Saldiva, professor da USP e responsável pelas autópsias do estudo. A
análise do tecido cerebral mostrou resquícios da presença do vírus até em cérebros que,
nas imagens, pareciam incólumes. “Posso garantir que não é boa ideia pegar Covid,
especialmente sem estar vacinado. Eu não gostaria de ter um vírus andando no meu
cérebro.” Mesmo que seja de forma assintomática ou leve, este é um vírus para não se ter.
A ideia de que o coronavírus é capaz de se infiltrar no cérebro está apenas começando a
se consolidar. Poucos pesquisadores no mundo foram capazes de analisar o tecido
cerebral de pessoas que tiveram Covid. Isso porque só a investigação post mortem pode
levar o cérebro para as mãos dos cientistas – e a autópsia é uma técnica cada vez mais
rara nos laboratórios. O cérebro está localizado na região mais protegida do corpo humano:
além do crânio, que reveste o encéfalo na parte exterior, a meninge forma uma espécie de
capa protetora na parte interna, filtrando praticamente todo invasor que chega à região
cerebral. É como um cofre superprotegido – mas, de alguma forma, o coronavírus
encontrou a chave para transpor essa barreira.
Outros vírus, como o do HIV, conseguem atingir o cérebro, e eles próprios desencadeiam
uma série de inflamações. Mas esse é um movimento atípico para vírus respiratórios. A
influenza, por exemplo, é uma doença restrita ao sistema respiratório, e seu foco central é
o pulmão. “Foi uma surpresa porque imaginávamos que a Covid seria uma doença do
sistema respiratório. Mas me parece que a habilidade do Sars-CoV-2 é justamente ter uma
chave que abre as portas de praticamente todos os órgãos”, explica Saldiva. No meio
científico, a Covid já é chamada de “doença sistêmica”. É possível encontrar partículas
virais em praticamente todo o corpo humano.
No estudo da USP, os pesquisadores identificaram pequenos infartos agudos, hemorragias
e lesões visíveis na substância branca – a parte mais interna do cérebro, formada por
prolongamentos neurais que fazem a conexão entre diferentes partes do órgão. Na região
posterior, aparecem edemas cerebrais e sinais de sangramento. Ou seja, pelo menos nos
pacientes graves – que foram o foco da pesquisa – existem alterações estruturais
detectáveis. Para as pessoas que sobreviveram à internação, como Isadora Martini, essas
lesões podem permanecer no cérebro – e não se sabe exatamente quais são as
consequências. Mas ainda é possível que pacientes com essas sequelas se recuperem:
como as alterações são pequenas, os neurônios talvez consigam se regenerar. “Eu espero
que isso tenha pouco impacto para quem sobrevive”, diz Saldiva. “Mas toda inflamação
cerebral é um desgaste e acelera o envelhecimento do cérebro. Qual vai ser o risco de
acelerar a incidência de Alzheimer, por exemplo? A gente não sabe ainda.”
Os mecanismos que o coronavírus usa para atingir a região cerebral – e o que exatamente
ele faz quando chega lá – ainda não estão totalmente descritos na literatura científica. O
que dá para saber é que ele chega até lá através dos vasos sanguíneos e do nervo
olfatório, o que nos permite sentir odores. Tanto que uma das manifestações mais comuns
da Covid é a perda do olfato. Existe uma ligação direta entre o nariz e o sistema nervoso
central. E como o vírus está ali, nas terminações do nervo e dentro do epitélio olfativo, ele
pode simplesmente pegar o elevador e chegar à cabeça.
Isadora Martini, aquela que agora tem dificuldade para entender as palavras, perdeu o
olfato nos primeiros dias de infecção. Depois teve febre, tosse e dificuldade para respirar. A
obesidade era um fator de risco, e ela ficou doze dias internada no hospital de campanha
de Chapecó, em março de 2021. Não chegou a ser intubada, mas precisou de suporte de
oxigênio. Martini viu sete pessoas de sua ala morrerem pela doença e ficou aliviada quando
finalmente teve alta. “Achei que eu tivesse vencido a batalha”, lembra ela. Depois de fazer
fisioterapia, ele conseguiu se recuperar rapidamente das sequelas físicas. As mentais
ficaram e, às vezes, Martini sente que passou por um tipo de lavagem cerebral. “Eu preferia
que minha cabeça estivesse 100% e meu corpo mais ou menos. Se eu pudesse escolher,
gostaria de ter as outras sequelas.”
Por causa dos problemas cognitivos que adquiriu no pós-Covid, Martini precisou trancar a
faculdade de medicina veterinária porque não conseguiu dar prosseguimento aos estudos.
Ela agora trabalha em uma loja de estética animal, no estilo pet shop. Se antes ela era
capaz de decorar até a roupa que alguém vestia, hoje tem dificuldade para se lembrar dos
clientes que passam pela loja. “Tudo que eu queria era voltar a estudar, mas não consigo”,
lamenta. Enquanto conversava com a piauí nesta semana, por videochamada, com
frequência perdia a linha de raciocínio e esquecia sobre o que estava falando. Vez ou
outra, a jovem é tomada por uma sensação estranha, que ela define como uma “tristeza
inexplicável e profunda”. “Parece que a pessoa que eu era no passado foi tirada do meu
corpo e colocaram uma outra no lugar”, ela explica. “Eu não me reconheço mais.” Martini
tentou suicídio duas vezes no último ano e foi salva pelo marido.
Em um estudo publicado no ano passado, pesquisadores norte-americanos e britânicos
descreveram, ao todo, 203 sintomas de Covid longa em diversas áreas (dermatológica,
pulmonar, gastrointestinal, neuropsiquiátrica etc). Foram coletadas respostas de 3762
pacientes de 56 países. Quase metade dos participantes apresentaram dificuldade para
encontrar as palavras corretas e problemas de comunicação, como os de Martini. Mais de
70% tiveram problemas de memória. Pouco mais de 60% apresentaram dificuldade para
pensar. “Disfunção cognitiva e de memória, junto com outros sintomas neuropsiquiátricos
comumente reportados, podem indicar maiores problemas neurológicos envolvendo o
sistema nervoso central e periférico”, afirma o artigo.
Alguns participantes reportaram alucinações visuais e auditivas. Depressão, ansiedade e
irritabilidade foram as maiores sequelas no subgrupo de “emoções e comportamento”. Os
pesquisadores também relataram a ocorrência de apatia, despersonalização e
agressividade. Na Califórnia, ficou famoso o caso de um menino de 14 anos que
desenvolveu psicose depois de ter Covid. Cerca de 10% dos participantes do estudo
apresentaram tendências suicidas. “O tamanho da encrenca nós só vamos saber depois”,
reconhece o patologista Paulo Saldiva. “Já temos muita gente incapaz no país por acidente
de trânsito e violência. Vamos ter uma carga grande de pessoas incapazes por causa da
Covid – pelo menos é o que se espera.” São pessoas que vão precisar de assistência
domiciliar, hospitalar, financeira e psicológica. Por enquanto, é impossível avaliar a
dimensão do problema e quais serão as consequências no médio e longo prazo. Mas os
pesquisadores têm cada vez mais certeza de que a Covid, essa caixinha de surpresas, é
diferente de tudo que a ciência já viu.
Os pesquisadores da USP, que analisaram o cérebro de pacientes graves, agora se
dedicam a um estudo com pacientes com Covid que não precisaram de internação em UTI
– incluindo os infectados com a variante Ômicron. Isso porque parte das lesões
identificadas no estudo recém-publicado poderiam estar relacionadas ao tempo de
internação e às estratégias de prolongamento da vida na UTI, que podem ser prejudiciais
ao corpo. O foco agora são os pacientes que não estavam com a forma grave da doença,
que se recuperavam casa e morreram de repente. “Já temos dois casos, que a gente ainda
não estudou a fundo, que desenvolveram cefaleia e o quadro principal da Covid foi
cerebral”, conta o patologista Paulo Saldiva. “Isso acontece mais com jovens, crianças e
adolescentes, que têm uma formação cerebral mais primária.” São aqueles que não
passaram pela catástrofe da UTI, não ficaram dias sedados, não fizeram diálise e
morreram exatamente por complicações cerebrais. Essas vítimas vão dar uma pista do
tamanho do estrago que o coronavírus pode fazer num cérebro saudável. “Com esse
estudo a gente vai poder ver que a inflamação da UTI não foi o principal causador dessas
lesões”, diz Saldiva.
Um outro estudo publicado esta semana na revista Nature mostrou que a Covid pode
causar perda de substância cinza – a parte mais externa do cérebro, formada pelos
neurônios e responsável pelo processamento de informação. Os pesquisadores
compararam tomografias (antes e depois da infecção) de pacientes de 51 a 81 anos que
tiveram a doença e pessoas que não se infectaram. Algumas áreas do cérebro foram
simplesmente reduzidas em pacientes que tiveram Covid – inclusive a forma leve da
doença. Os cientistas alertaram que as implicações dessas mudanças cerebrais ainda são
incertas: ou seja, não é possível concluir que as alterações identificadas afetam a memória,
o pensamento e outras funções cerebrais. E não se pode afirmar também se os danos são
duradouros. O principal achado desse estudo, que envolveu a análise de mais de
setecentos exames, foi a confirmação de que a doença de fato altera a anatomia cerebral.
Mas o que isso significa, na prática, ainda é um mistério. “A gente está estudando a mesma
doença há dois anos – e estamos levando um baile dela”, lamenta o patologista Paulo
Saldiva.
“As pessoas falam ‘para de ficar assim, você deveria estar feliz porque sobreviveu, muita
gente não teve essa oportunidade’. Mas é desesperador não conseguir recuperar a vida
que eu tinha antes”, diz Martini. A médica que a acompanhou no pós-Covid, num posto de
saúde de Chapecó, disse que as sequelas poderiam passar com o tempo. Agora só resta
esperar. Isadora Martini já está há um ano com os sintomas e não dá para garantir quando
– ou se – a vida voltará ao normal. Como o tratamento é feito pelo SUS, é preciso que a
médica solicite formalmente uma consulta com um neurologista. Até agora, relata Martini, a
clínica geral não viu necessidade de encaminhá-la a um especialista. “Se eu tivesse
dinheiro para uma consulta particular, com certeza eu já teria ido para investigar, porque
agora eu estou no escuro”, ela diz.
Mas os neurologistas também estão de mãos atadas. A estudante Nicoli de Matos, de 22
anos, procurou um especialista em Porto Alegre depois que começou a sentir dificuldade
para se lembrar das palavras. Ela sequer foi internada quando teve Covid, no começo de
2021, desenvolveu apenas a forma leve da doença. Mesmo assim, as sequelas
neurológicas vieram com tudo. “Eu não consigo mais fazer os trabalhos da faculdade, nem
falar em público seguindo uma linha de raciocínio”, diz ela. Alguns meses depois da
doença, Matos começou a perceber que esquecia as palavras com uma frequência
preocupante e se embaralhava na hora de falar. Antes da doença, ela tinha diagnóstico de
depressão e fobia social, mas os sintomas pioraram significativamente no pós-Covid. A
ponto de ela começar a ficar com vergonha de participar das aulas da faculdade de
Jornalismo. “Deixei de cursar várias disciplinas e já pensei até em desistir”, conta.
Depois da tomografia, em fevereiro deste ano, o neurologista foi direto: ele simplesmente
não sabia o que fazer para melhorar o quadro da estudante gaúcha. Os exames de
imagem não mostraram alterações no cérebro. Os sintomas neurológicos podem ficar por
poucos meses ou muitos anos, ninguém sabe dizer. Não era a primeira vez que ele atendia
pacientes com sequelas neurológicas da Covid, e a resposta era a mesma para todos.
“Nesse momento eu fiquei com medo. Quando o neurologista diz que ele não tem noção do
que pode ser feito, é de apavorar”, diz ela. “Na época eu fiquei feliz porque foi um caso
leve. Eu não imaginava que ia ficar assim, agora tenho medo do futuro.” Nicoli de Matos
decidiu fazer novos exames e insiste em voltar ao neurologista em busca de respostas.
Além dela, a mãe e a tia também ficaram com sequelas neurológicas e hoje têm problemas
de memória.
Isadora Martini não encontra apoio na família. Muitos tentam diminuir a gravidade dos
sintomas relatados por ela. “Meu marido fala que é coisa da minha cabeça. Eu digo: ‘sim, é
literalmente coisa da minha cabeça’”, conta, rindo. A jovem encontrou conforto num grupo
de Facebook dedicado a pessoas que sofrem com as mesmas sequelas. Um desses
grupos tem quase 40 mil membros, que desabafam sobre sua condição. “Alguém de vcs
está com dificuldades para reconhecer as coisas?”, questionou Martini em um desses
fóruns. A postagem teve 71 comentários. “Às vezes eu sinto como se não fosse mais eu”,
respondeu uma mulher. “A pessoa me fala uma coisa e se pedir pra repetir eu não consigo
formular a frase toda”, comentou outra. “É uma coisa que me conforta, sabe?”, diz Martini
sobre o grupo online. “É como se fosse um alcoólicos anônimos. As pessoas desabafam.
Eu já sei o que eu tenho, mas é confortante saber que eu não estou sozinha, que está todo
mundo assim.” Como se trata de uma doença relativamente recente, é incerto o futuro do
batalhão de sequelados que a Covid deixou. Até esta semana, o Brasil somou 654 mil
vítimas da doença. Ao todo, foram 30 milhões de infectados. Em relação aos
sobreviventes, não se sabe quantos carregam sequelas.

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