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Axiomatização dos números reais Professor Ion Moutinho Gonçalves

Axiomatização dos números reais

As propriedades fundamentais dos números reais são apresentadas a seguir. Qualquer


outra propriedade que conhecemos, ou que eventualmente precisemos usar, pode ser deduzida a
partir destas propriedades básicas.
Vale lembrar que esta é uma apresentação axiomática, ou seja, não é construtiva, ou seja,
é assumido simplesmente que existe um conjunto com as propriedades enunciadas a seguir em
vez de apresentá-lo explicitamente, através de algum processo construtivo.

O conjunto dos números reais possui duas importantes operações, a saber, a soma e o
produto, e suas propriedades básicas estão listadas a seguir.

Boa definição das operações


i) a=xeb=y⇒a+b=x+y
ii) a=xeb=y⇒a.b=x.y

Propriedades da Soma
S1) a + (b + c) = (a + b) + c associatividade da soma
S2) a + 0 = 0 + a = a elemento neutro da soma
S3) a + (−a) = (−a) + a = 0 elemento inverso da soma ou simétrico
S4) a + b = b + a comutatividade da soma

Propriedades do Produto
P1) a.(b.c) = (a.b).c associatividade do produto
P2) a.1 = 1.a = a elemento neutro do produto
P3) a.a−1 = a−1.a = 1, ∀a≠0 elemento inverso do produto
P4) a.b = b.a comutatividade do produto

Relação entre soma e produto


D) a.(b + c) = a.b + a.c distributividade
(a + b).c = a.c + a.b

Notação: ab = a.b e a − b = a + (−b).

Em Álgebra, um conjunto munido de uma operação soma e uma operação produto que
satisfaçam as propriedades acima é chamado um corpo.
Uma vez que admitamos estas propriedades, poderemos provar quase toda relação
numérica envolvendo soma e produto, bastando fazer uso da lógica dedutiva. Vejamos alguns
exemplos.

a) (a + b)2 = a2 + 2ab + b2
b) (a – b)(a + b) = a2 – b2
c) a+x=b ⇒ x=b–a
d) a + b = a + c ⇒ b = c (lei do cancelamento da soma)
e) a+x=0 ⇒ x=–a
f) a+x=a ⇒ x=0
g) 0.a = 0
h) a ≠ 0 e ax = ay ⇒ x = y (lei do cancelamento do produto)
i) ab = 0 ⇒ a = 0 ou b = 0
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j) x2 = x ⇒ x = 0 ou x = 1
k) x2 = 1 ⇒ x = 1 ou x = – 1
l) x2 = a2 ⇒ x = ± a
m) – (ab) = (– a)b
n) – 1.a = – a
o) – (a + b) = – a – b
p) – (– a) = a
q) (– 1)(– 1) = 1
r) a ≠ 0 e a.x = 1 ⇒ x = a−1
s) a ≠ 0 e b ≠ 0 ⇒ (ab)−1 = a−1b−1
t) a ≠ 0 e a ≠ 1 ⇒ a−1 – (a+1)−1 = a−1(a+1)−1

Como foi dito, a justificativa de cada propriedade enunciada acima deve ser baseada nos
axiomas de corpo. Contudo, uma vez que uma propriedade seja provada pelo estudante, ela pode
ser incorporada como resultado da teoria e, portanto, pode ser usada na justificativa de outros
resultados a serem provados ainda.
Pode-se justificar as propriedades da seguinte forma (conhecida como prova por passos):

a) 1. (a + b)2 = (a + b)(a + b) , por def. de potência;


2. (a + b)(a + b) = (a + b)a + (a + b)b , por D);
3. (a + b)a + (a + b)b = aa + ba + ab + bb , por D);
4. aa + ba + ab + bb = a2 + ab + ab + b2 , por S4);
5. ab + ab = 1.ab + 1.ab , por S2);
6. 1.ab + 1.ab = (1 + 1)ab , por D);
7. (1 + 1)ab = 2ab , por definição de + e ii);
8. ab + ab = 2ab , por 5, 6 e 7;
9. a2 + ab + ab + b2 = a2 + 2ab + b2 , por 8 e i);
10. (a + b)2 = a2 + 2ab + b2 , de 1, 2, 3, 4 e 9.

Observação: Note como foi provado um resultado dentro da prova principal. Mais precisamente,
foi preciso usar o fato de que ab + ab = 2ab para terminar a prova. Mas, este fato não faz parte
da lista de axiomas, nem de resultados anteriores. Portanto, para que a prova ficasse correta, foi
preciso provar também esta afirmação.

c) 1. a + x = b , hipótese;
2. (−a) + (a + x) = (−a) + b , por i) e S3) - existência do simétrico;
3. ((−a) + a) + x = b + (−a) , por S1) e S4);
4. 0 + x = b – a , S3) e notação;
5. x = b – a , por S2);
6. a + x = b ⇒ x = b – a , de 1, 5 e fato lógico.

e) 1. a + x = 0 , hipótese;
2. a + (−a) = 0 , por S3);
3. a + x = a + (−a) , de 1) e 2);
4. x = −a , de 3), d) e fato lógico;
5. a + x = 0 ⇒ x = – a , de 1, 5 e fato lógico.

Observação: É possível provar o item e) de outra maneira mais fácil (basta usar o item c), já
provado).

g) 1. 0 = 0 + 0 , por S2);
2. a0 = a(0 + 0) , por ii);
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3. a0 = a0 + a0 , por D);
4. a0 = a0 + 0 , por S2;
5. a0 + 0 = a0 + a0 , de 3 e 4;
6. 0 = a0 , por d), 5 e fato lógico;
7. a0 = 0a , por P4);
8. 0 = 0a , de 6 e 7.

Exercício: Tente provar as outras propriedades. Depois, verifique se é possível apresentar uma
prova diferente.

O conjunto dos números reais possui uma noção de ordem. Para isto, admitimos que
existe um subconjunto dos reais formado por elementos chamados positivos e denotado por R+
com as seguintes:

Propriedades de Ordem
O1) x, y∈R+ ⇒ x + y∈R+ e x.y∈R+.
O2) ∀x∈R, uma, e só uma, das três alternativas ocorre: ou x = 0, ou x∈R+ ou −x∈R+.

Em Álgebra, um corpo que satisfaça estas propriedades é chamado corpo ordenado.

Observação: Note que, de acordo com o estudo axiomático proposto, não estamos preocupados
em mostrar quem é, ou o que significa, o subconjunto dos números positivos. Apenas estamos
admitindo que existe um tal subconjunto de R e que este satisfaz as propriedades O1 e O2. Este
tipo de estudo matemático (o estudo axiomático) tem a desvantagem de perder a intuição e de
não deixar claro qual é o tipo de objeto com o qual estamos trabalhando (e, portanto, gerar
inseguranças e etc.). Por outro lado, deixa claro qual é a base de informações que temos para
poder justificar os mais variados fatos sobre os números reais, no caso.

Notação: Escreve-se x < y, se y − x∈R+. Em particular, x > 0 se, e só se, x∈R+ e x < y se, e só se,
y − x > 0. Escreve-se x ≤ y para significar que x < y ou x = y. O símbolo R− denota o conjunto
formado pelos simétricos dos números positivos, chamados de números negativos. Pela
condição O2, R = R+ ∪ R− ∪ {0}. É comum também usar a notação R+ = R+ ∪ {0} para
denotar os reais não-negativos. Assim, x∈R+ se, e só se, x ≥ 0. Analogamente, R− = R− ∪ {0}
denota os reais não-positivos.

Com a notação estabelecida, podemos reescrever os axiomas de ordem.

O1) x, y > 0 ⇒ x + y > 0 e x.y > 0.


O2) ∀x∈R, uma, e só uma, das três alternativas ocorre: ou x = 0, ou x > 0 ou −x > 0.

As seguintes propriedades decorrem das propriedades básicas da noção de ordem.

a) x < y e y < z ⇒ x < z.


b) ∀x, y∈R, exatamente uma das seguintes possibilidades ocorre: x = y, x < y ou y < x.
c) x < y ⇒ ∀z∈R, x + z < y + z.
d) x < y ⇒ ∀ z∈R+, xz < yz
e) x < y ⇒ ∀ z∈R−, yz < xz.
f) x ≠ 0 ⇒ x2 > 0.
g) 1 > 0.
h) x < 0 e y > 0 ⇒ xy < 0.
i) x > 0 ⇒ x−1 > 0.
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j) x, y > 0 e x < y ⇒ y−1 < x−1.


l) ∀x∈R, x < x + 1.

Exemplo: Prova do item a)


1. x < y e y < z , hipótese;
2. x < y , de 1 e fato lógico;
3. y − x∈R+ , de 2 e notação;
4. y < z , de 1 e fato lógico;
5. z − y∈R+ , de 4 e notação;
6. y − x, z − y∈R+ , de 3, 5 e fato lógico;
7. (y − x) + (z − y)∈R+ , de 6, O1 e Regra Modus Ponens (MP);
8. (y − x) + (z − y) = z − x , de axiomas de corpo;
9. z − x∈ R+ , de 7 e 8;
10. x < z , de 9 e notação;
11. x < y e y < z ⇒ x < z , de 1, 10 e fato lógico.

Observação: O fato lógico usado na linha 2 é o seguinte: Se vale p e q então vale p. O fato
lógico usado na linha 6 é: Se vale p e se vale q então vale p e q. A manipulação do "e" não trás
muitos problemas, o que dá mais trabalho é quando aparece o "ou".

Exercício: Prove as propriedades de ordem.

Exercício: Prove que, para quaisquer x, y ∈ R, x < y ⇒ x < (x + y)/2 < y.

Uma noção importante num corpo ordenado é a de intervalo.

Definição: Dados a, b ∈ R, com a < b, considera-se a noção de intervalo, isto é, o subconjunto


de K formado pelos pontos que estão entre a e b. Para distinguir o intervalo que contém, ou não,
os pontos extremos a e b, usa-se os termos fechado ou aberto, à direita ou à esquerda.

[a,b] = {x∈ R | a ≤ x ≤ b} (−∞,b] = {x∈ R | x ≤ b}


(a,b) = {x∈ R | a < x <b} (−∞,b) = {x∈ R | x < b}
[a,b) = {x∈ R | a ≤ x < b} [a,+∞) = {x∈ R | a ≤ x}
(a,b] = {x∈ R | a < x ≤ b} (a,+∞) = {x∈ R | a < x}
(−∞,+∞) = R
Quando a = b, vale que [a,b] = {a} e chama-se intervalo degenerado.

Exercício: Mostre que todo intervalo não-degenerado é um conjunto infinito.

Definição: Dado x∈R, o valor absoluto (ou módulo) de x é o número |x| = máx{x, −x}.

Proposição: Dados x, a∈R, a > 0, as seguintes afirmações são equivalentes:


i) −a ≤ x ≤ a;
ii) |x| ≤ a.

Prova: (Exercício)

Corolário: Dados a, x, δ ∈ R, tem-se |x − a| ≤ δ ⇔ a − δ ≤ x ≤ a + δ.

Prova: (Exercício)

Os resultados acima ainda valem com < no lugar de ≤. Assim, vale a relação
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x∈(a − ε, a + ε) ⇔ a − ε < x < a + ε ⇔ |x − a| < ε

Observação: Quando R é interpretado geometricamente, o valor |x − y| representa a distância


entre os pontos x e y.

Exercício: Mostre que:


a) |x + y| ≤ |x| + |y|;
b) |xy| = |x||y|;
c) |x| − |y| ≤ | |x| − |y| | ≤ |x − y|;
d) |x − z| ≤ |x − y| + |y − z|.

Definição: Um subconjunto X ⊂ R é dito limitado superiormente se existe b ∈ R tal que, ∀x∈X,


x ≤ b. Cada b ∈ R com esta propriedade chama-se uma cota superior de X.

Exemplo: X = {−100, 0, 2, 3} é limitado superiormente.

Prova: Por exemplo, 5 é uma cota superior de X, pois 5 é maior do que qualquer elemento de X.
Logo, vale a afirmação.

Exemplo: [a,b) é limitado superiormente.

Prova: Vamos mostrar que b é uma cota superior.


Seja x∈[a,b). Então, por definição, a ≤ x < b. Em particular, x ≤ b.
Logo, ∀x∈[a,b), x ≤ b.

Exemplo: [a,+∞) não é limitado superiormente.

Prova: Suponha que exista uma cota superior para [a,+∞), digamos b∈R. Então, pela definição
de cota superior, ∀x∈[a,+∞), x ≤ b. Em particular, como a∈[a,+∞), temos a ≤ b < b + 1. Logo,
por definição de intervalo, temos que b + 1∈[a,+∞). Neste caso, temos que b é menor do que um
elemento de [a,+∞) (b < b + 1), o que é uma contradição com o fato de b ser uma cota superior.
Chegamos a um absurdo depois de supor que [a,+∞) possuía uma cota superior. Logo,
resta que não existe uma cota superior para o conjunto [a,+∞).

Exercício: Refaça a prova do exemplo acima organizando-a por passos.

Exercício:
a) Seja A⊂R. Mostre que se A é limitado superiormente e B⊂A então B é limitado
superiormente.
b) Seja A⊂R um subconjunto limitado superiormente e B⊂A. Mostre que se b é cota superior
de A então b é cota superior de B. Vale a recíproca?
c) Escreva simbolicamente: X⊂R não é limitado superiormente.
d) Mostre que o subconjunto ∅ é limitado superiormente.
e) Sejam A, B⊂R. Defina o conjunto A + B = {x + y∈R | x∈A e y∈B}. Mostre que se A e B são
limitados superiormente então A + B é limitado superiormente.
f) Mostre que um subconjunto X⊂R é limitado superiormente se, e só se, existe b∈R tal que
X⊂(−∞,b].
g) Mostre que todo subconjunto de R finito é limitado superiormente.
h) Defina subconjunto limitado inferiormente e conjunto limitado.
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i) Enuncie e prove resultados análogos aos dos exercícios acima para os conceitos da questão
anterior.
j) Mostre que X⊂R é limitado se, e só se, existe k∈R+ tal que, ∀x∈X, |x| ≤ k.
k) Sejam a, b∈R. Mostre que a2 + b2 = 0 ⇔ a = b = 0.
l) Seja x ≠ 0. Mostre que |x−1| = |x|−1.
m) Sejam a, b, ε∈R. Mostre que: |a − b| < ε ⇒ |b| − ε < |a| < |b| + ε.
x+ y
n) Sejam x, y∈R+. Mostre que xy ≤ .
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o) (Desigualdade de Bernoulli) ∀x∈R, ∀n∈N, x ≥ −1 ⇒ (1 + x)n ≥ 1 + nx.
p) (∀ε > 0, a < ε) ⇒ a ≤ 0.
q) (∀ε > 0, a < b + ε) ⇒ a ≤ b.
r) a > 1 ⇒ a2 > a.
s) 0 < a < 1 ⇒ a2 < a.
t) Mostre que a < b < c < d ⇒ 0 < c − b < d − a. Interprete este resultado geometricamente.
u) Mostre que se |x − a| < r e |y − b| < r então |(x + y) − (a + b)| < 2r. Este resultado diz que se x
e y diferem de a e b, respectivamente por um erro menor do que r então x + y difere de a + b
por um erro menor do 2r.
v) Suponha que |x − a| < r e |y − b| < r. Dê uma estimativa de erro para xy em comparação com
ab.

É interessante poder apreciar este estudo axiomático com mais calma. O leitor deve
observar que estamos estudando um conjunto chamado conjunto dos "números" reais e que
vimos várias propriedades, definições e exemplos. Contudo, não falamos até agora nos números
naturais. Primeiro, devemos notar que as primeiras propriedades enunciadas para R, que o
caracterizam como corpo, não garantem que R contenha os números naturais. Por exemplo, Zp,
com p número primo, é também um corpo, mas não contém N. O que vai garantir a inclusão de
N em R são as propriedades de ordem que admitimos. Segundo, apesar de parecer natural que
N⊂R, a justificativa deste fato não é nada trivial. Por isto, enunciamos o seguinte

Teorema: N⊂R (o conjunto dos números naturais está contido no conjunto dos números reais).

Prova: (Este é só um esboço de prova.)


Pela propriedade l) de ordem, temos 1 < 1 + 1 < 1 + 1 + 1 < ... . Considerando f:N→R
definida por f(n) = n.1 = 1 + 1 + ... + 1 (n vezes), é possível mostrar que f é injetiva.
Identificando n.1 com n, podemos afirmar que N⊂R.

Observação: Continuando a apreciar o estudo axiomático, veja o enunciado do exercício k) e


note que o problema não envolve a relação de ordem, aparentemente só envolve a estrutura de
corpo. Contudo, sua resolução depende dos axiomas de ordem postulados aqui. Um bom
exercício é encontrar um exemplo de corpo que satisfaça a equação a2 + b2 = 0 com a e b
diferentes de 0.

As propriedades assumidas até agora ainda são insuficientes para justificar vários fatos
que conhecemos e que até parecem naturais. Por exemplo, apesar de provarmos que N⊂R, só
com a estrutura de corpo e a noção de ordem, não podemos provar um fato super simples, que
ninguém duvidaria, a saber, que N é um subconjunto ilimitado superiormente em R. Para provar
este fato, ainda é preciso admitir mais uma propriedade sobre os números reais, pois existe
exemplo de corpo ordenado onde N é um subconjunto limitado superiormente (veja [Li1],
página 59, exemplo 9).

Corolário: R é um conjunto infinito.

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Prova: Pois, R contém N, que é um conjunto infinito.

Observação: Perceba a relação entre os fatos. Os axiomas sobre as operações soma e produto,
que caracterizam R como um corpo, não são suficientes para se justificar várias propriedades.
No caso, para garantir que R é um conjunto infinito, que é um fato óbvio, mas que precisa ser
justificado, é preciso usar as propriedades de ordem (através do teorema acima). Por exemplo, se
p é primo, Zp é um corpo que é finito.

Exercício: Prove o corolário acima a partir de outro fato (visto em exercício anterior).

Corolário: Z ⊂ R (o conjunto dos números inteiros está contido no conjunto dos números reais).

Prova: (Exercício)

Corolário: Q ⊂ R (o conjunto dos números racionais está contido no conjunto dos números
reais).

Prova: (Exercício)

Definição: Seja X ⊂ R um subconjunto limitado superiormente. Um elemento b ∈ R chama-se


supremo de X se é a menor das cotas superiores de X. Notação: sup X = b. Em linguagem
simbólica, temos que
b = sup X

S1) ∀x ∈ X, x ≤ b; (b é cota superior)
S2) ∀c ∈ R, ((∀x ∈ X, x ≤ c) ⇒ b ≤ c). (b é a menor das cotas)

Exemplo: O supremo de [a,b] é b.

Prova: Seja x∈[a,b]. Então, por definição de intervalo fechado, a ≤ x ≤ b. Em particular, x ≤ b.


Assim, S1) está provada.
Seja c∈R. Suponha que, ∀x∈[a,b], x ≤ c. Como b ∈ [a, b], pela hipótese, temos que b ≤
c. Logo, vimos que, dado c∈R, ∀x∈X, x ≤ c ⇒ b ≤ c. Ou seja, vale S2).

Exemplo: sup (a, b) = b.

Prova: Seja x ∈ (a, b). Então, por definição de intervalo aberto, a < x < b. Em particular, x ≤ b.
Assim, S1) está provada.
Seja c ∈ R. Suponha que, ∀x ∈ (a,b), x ≤ c. Suponha agora que c < b. Vamos mostrar
que esta possibilidade é absurda.
Seja x = (c + b)/2. Então, de resultado anterior, c < x < b. Além disso, devemos ter a < c,
pois, dado y∈(a,b) temos, por definição, a < y e, por hipótese, y ≤ c. Assim, x∈(a,b), donde, por
hipótese, x ≤ c, o que é uma contradição com o fato de que c < x < b.
Logo, não podemos ter c < b, ou seja, temos b ≤ c.
Portanto, vale S2).

Exercício: Refaça as provas destes dois exemplos, organizando-as por passos.

Compare as provas dos dois exemplos. O primeiro exemplo é uma boa inspiração para o
seguinte resultado.

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Exercício: Seja X ⊂ R limitado superiormente. Suponha que existe b ∈ X que também é uma
cota superior de X. Mostre que b = sup X.

Exercício:
a) Mostre que a condição S2) é equivalente a condição:
S2') ∀c∈R, (c < b ⇒ ∃x∈X; c < x).
b) Escreva a condição S2') com palavras.
c) Mostre que a condição S2) é equivalente a condição:
S2'') ∀ε > 0, ∃x∈X; b − ε < x.
d) Mostre novamente que b = sup (a,b) de duas maneiras diferentes, usando os enunciados
equivalentes S2') e S2'').
e) Usando o conceito de conjunto limitado inferiormente, defina ínfimo de um conjunto e
prove, para ínfimo, resultados análogos aos obtidos para supremo.
f) Mostre que inf [a,b] = inf (a,b) = b.
g) Mostre que ∅ não possui supremo nem ínfimo.

O conceito de supremo é fundamental para a área de estudo da Matemática chamada


Análise Matemática. Contudo, os axiomas enunciados até agora não garantem existência de
supremo. Por exemplo, o conjunto dos racionais, Q, possui todas as propriedades enunciadas até
agora, ou seja, Q é um corpo ordenado, da mesma maneira que R. Por outro lado, nem todo
subconjunto limitado superiormente possui supremo. Um exemplo clássico é o conjunto X =
{x∈Q : x2 < 2}. Pode-se provar que X é limitado superiormente e que se a é o supremo de X em
Q então a2 = 2, o que é um absurdo. Assim, para concluir a apresentação axiomática do conjunto
dos números reais, enunciamos a próxima propriedade.

Propriedade de Completamento
O conjunto dos reais, R, é completo, isto é, todo subconjunto não-vazio e limitado
superiormente possui supremo em R.

É interessante entender como que esta última propriedade serve para provar um resultado
fundamental, e altamente intuitivo (muitos diriam até que não é preciso prová-lo). Contudo, sem
esta propriedade, tal resultado intuitivo seria de fato falso. O resultado é o seguinte

Teorema: O conjunto dos naturais, N, é ilimitado superiormente.

Prova: Suponha que N seja limitado superiormente. Como N também é diferente de vazio,
segue, da propriedade acima, que o supremo de N existe.
Seja b = sup N. Como b é a menor das cotas superiores de N e b − 1 < b, temos que b − 1
não é uma cota superior de N. Logo, existe n∈N tal que b − 1 < n, donde b < n + 1. Mas, n + 1
também pertence a N e a última desigualdade contraria o fato de b ser uma cota superior de N.
Esta contradição surgiu da suposição de que N é limitado superiormente. Assim, N é
ilimitado superiormente.

Exercício: Dado ε > 0, existe n∈N tal que 0 < 1/n < ε.

Este teorema tem conseqüências profundas. Por exemplo, vale a

Proposição: Dados a, b∈R, com a < b, sempre existe x∈Q tal que a < x < b.

Prova: Sejam a, b∈R, com a < b. Então, 0 < b − a, donde, pelo exercício anterior, existe n∈N tal
que 0 < 1/n < b − a.

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Considere agora o subconjunto de R, X = {x∈Z : x ≤ na}. Então, X é limitado


superiormente (na é uma cota superior de X) e X ≠ ∅ (temos que (n − 1)a∈X), donde existe o
supremo de X. Seja m = sup X. Como X⊂Z, vale que sup X∈X (confira exercício a seguir),
donde m∈Z.
m +1
Afirmação: a < < b.
n
m +1 m +1
De fato, como m + 1 > sup X, temos que m + 1∉X, donde a < . Se fosse b ≤ ,
n n
m m +1
teríamos ≤a<b≤ , e, portanto, 0 < b − a ≤ 1/n, o que é um absurdo. Logo, verificamos
n n
a afirmação, o que conclui a prova.

Outro resultado que é muito utilizado na justificativa de outros resultados e exemplos é a


seguinte

Proposição: inf {1/n : n∈N} = 0.

Prova: O ínfimo é a maior das cotas inferiores. É claro que 0 é uma cota inferior, isto é, 0 < 1/n
para todo n∈N. Vejamos que 0 é a maior das cotas inferiores.
Seja b > 0. Como N é ilimitado superiormente, existe n∈N tal que 1/b < n. Então, de
resultado anterior de ordem, 1/n < b, donde b não é cota inferior. Logo, todo número maior do
que 0 não é cota inferior de {1/n : n∈N}, ou seja, não existe uma cota inferior maior do que 0.
Assim, 0 é o ínfimo de {1/n : n∈N}.

Exercício:
a) Suponha que X é um subconjunto de R limitado superiormente e que sup X∉X. Então, X é
infinito.
b) Seja X⊂Z um conjunto limitado superiormente. Mostre que supX∈X (em particular,
supX∈Z).

Resumo
Concluindo, foram apresentadas algumas propriedades básicas sobre os números reais a
fim de montar uma base de conhecimento que serve para provar qualquer outra afirmação que se
queira fazer sobre este conjunto. Estas propriedades foram organizadas em três grupos. Um que
garante que R é um corpo, outro que diz que R é ordenado e o terceiro grupo que diz que R é
completo. Na verdade, as propriedades básicas apresentadas aqui caracterizam o conjunto dos
números reais.

Axioma: Existe um corpo ordenado completo, chamado conjunto dos números reais.

Um resultado importantíssimo na teoria que admite esta hipótese é o seguinte

Teorema: O conjunto dos naturais, N, é ilimitado superiormente.

Outro conhecimento admitido na Análise Matemática é o seguinte grupo de axiomas que


define matematicamente a idéia natural de contagem, conhecida como conjunto dos números
naturais.
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Axioma: Existe um conjunto, chamado conjunto dos números naturais, que satisfaz as seguintes
propriedades:
1. Existe uma função injetiva s:N→N.
2. Existe um único elemento de N, denotado por 1, tal que 1 ≠ s(n), ∀n∈N.
3. Se X ⊂ N, 1∈X e s(X) ⊂ X então X = N.

Em suma, estes axiomas, juntos com a teoria dos conjuntos e a lógica formal, são a base
do conhecimento matemático necessário para se ingressar no mundo da Análise Matemática. O
avanço neste estudo depende principalmente da capacidade de manipular estas informações.

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