Você está na página 1de 16

1

A (PSICO)PATOLOGIA (DO SUJEITO) E SUAS INCIDÊNCIAS CLÍNICAS


PROF. DR. MARIO EDUARDO COSTA PEREIRA

CAMPINAS/SP
2022
2

PREÂMBULO

Laboratório de Psicopatologia: Sujeito e Singularidade (LaPSuS) do Departamento de


Psicologia Médica e Psiquiatria (DPMP) da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

Prof. Dr. Mario Eduardo Costa Pereira.

Diretor Científico do Laboratório de Psicopatologia: Sujeito e Singularidade (LaPSuS).


Psicanalista, Médico-Psiquiatra. Professor Titular de Psicopatologia Clínica e Ex-diretor do
Laboratoire de Psychopathologie Clinique et Psychanalyse da Aix-Marseille Université
(França). Professor Livre-Docente em Psicopatologia do Departamento de Psicologia
Médica e Psiquiatria (DPMP) da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). Diretor do Núcleo de São Paulo do Corpo Freudiano –
Escola de Psicanálise. Membro da Associação Universitária de Pesquisas em Psicopatologia
Fundamental.
3

SOBRE O LAPSUS

O LaPSuS, Laboratório de Psicopatologia: Sujeito e Singularidade, da UNICAMP,


foi criado em 2013 e faz regularmente os seminários de pesquisa em que a sua perspectiva
é abordar o problema da psicopatologia sob a perspectiva do sujeito, daquilo que no
sujeito faz impasse.
Nesse período todo temos desenvolvido um pensamento, uma reflexão continuada
de qual o efeito que ocorre para a psicopatologia se nós começarmos a tratar dessa questão,
não apenas sob a perspectiva da descrição do que se chama habitualmente de transtorno
mental - doença mental -, mas da perspectiva do impasse do sujeito nas suas possibilidades
de realização no interior do laço social.
Não é algo que se contrapõe a uma perspectiva de que existam fatores biológicos,
psicológicos ou sociais no surgimento da condição psicopatológica, mas a ideia é descrever
a psicopatologia a partir desses vários fatores que acabam impedindo ou paralisando a
possibilidade de uma realização do sujeito na sua condição de sujeito singular no interior
do laço social.
Neste ano veremos quais são as consequências clínicas, se temos como ponto de
partida essa visão da psicopatologia, de sua descrição a partir do impasse do sujeito, e se
essa chega então ao campo da clínica1, e como podemos conceber uma organização do
tratamento, do projeto terapêutico, da concertação das diversas disciplinas - que trabalham
no que se convencionou chamar de área da saúde mental - quando o ponto de foco e de
intersecção, de fundamento, tanto ético quanto técnico e descritivo, é aquilo que para o
sujeito constitui impasse ou impedimento da sua realização possível.
A grande questão clínica para nós é de como localizar esses impasses; como
concertar, no sentido de concerto numa orquestra, as diversas posições do sujeito de
maneira a poder melhorá-las, tendo isso como o foco do tratamento.
Vejam então que temos como ponto de partida, primeiro, uma concepção ética do
que faz problema e que leva esse sujeito a procurar auxílio clínico nas diversas clínicas; e
segundo, somos obrigados a pensar de que maneira as diferentes disciplinas que se
ocupam desse sujeito em pane2, podem organizar suas interrelações no campo da
pesquisa sobre o sujeito em impasse na sua realização possível, como também no plano da

1
Observasse que não é apenas uma clínica psicoterapêutica, psiquiátrica, psicanalítica e sim as clínicas em geral.
2
Em falha.
4

concepção de um programa de assistência, dos objetivos do tratamento e na constituição


de um projeto terapêutico.
5

A (PSICO)PATOLOGIA (DO SUJEITO) E SUAS INCIDÊNCIAS CLÍNICAS

O objetivo do seminário desse ano é a psicopatologia do sujeito visto da


perspectiva das incidências clínicas. Mas o que isso significa? Esse é o momento em que o
psiquiatra, o psicólogo, o assistente social e o psicanalista, ou até mesmo quando esse
grupo de profissionais que trabalham no campo de saúde mental, passam a abordam a
questão daquilo que leva o sujeito a buscar ajuda sob a perspectiva da psicopatologia dos
olhares voltados para aquilo, que naquele sujeito singular faz impasse. É disso que vamos
tratar.

Ao longo do ano será esmiuçado em detalhes essa proposta, pois a ideia é realmente
deixar claro o que significa uma (psico)patologia do (sujeito), e como isso incide em cada
Comentado [A1]: Incidências pat(h)ológicas de pathos ou
campo3, pois vocês verão que em última instância a (psico)patologia do (sujeito) é uma patológicas de nosos?

outra maneira de se pensar e definir o que constitui patologia, sofrimento e padecimento Se o nosos (patologia, doença) – a mesma - age em sujeitos
singulares = pode haver incidências patológicas (no
para um sujeito singular. Essa exposição inicial será feita por meio de tópicos, sendo eles: nosos/campo do corpo) ou pode haver incidências
path(o)lógicas (no pathos/ campo do sujeito), muito
diferentes.

Os gregos estudavam a doença. Olhavam para a dimensão


A) Definição e campo da psicopatologia em geral: a disciplina fundamental e a direção nosos e pathos da doença. Olhavam para o campo do corpo e
campo do sujeito sob o qual a doença agia.
do tratamento. Iremos especificar na psicopatologia e em sua tradição, o que a gente
“A doença age sobre o antropos”. “Vemos que incide sobre o
tenta trazer como contribuição sob a égide de uma (psico)patologia do (sujeito). nosos – campo do corpo – e o pathos – campo do sujeito – do
antropos”.

B) Separação do campo da doença. Como os gregos definiam essa como nosos em Doença | Nosos | Pathos |
Doença e Nosos = distintos.
relação àquilo que da doença era pathos. Nós veremos o quanto que o nosos tem a Doença, Nosos e Patologia = distintos.

ver com a definição materialista, física e biológica, isto é, com a dimensão corporal Doença => Antropos > Campo do Homem.
Pathos => Pat(h)ologia > Campo do Sujeito.
da doença; o pathos por sua vez tem a ver com a doença sob a perspectiva do Nosos => Patologia > Campo do Corpo.

sofrimento e do padecimento provocado num sujeito. O nosos e o pathos é o que dá Doença = (campo do homem) > repercusão no antropos.

origem aos termos nosologia, nosografia, patologia e psicopatologia. Nosos = ? (campo do corpo) > repercusão fisiológica da
doença.
C) A ideia central. Enquanto a nosologia diz respeito a alteração fisiológica, mórbida e Pathos = (campo do sujeito) > repercusão psicológica da
doença?
a doença que pode incidir no corpo de uma pessoa; a patologia incide no campo do
sujeito4. Esse é sempre singular de modo que uma nosologia – a mesma - pode em
indivíduos/sujeitos diferentes ter incidências patológicas muito diferentes, e nós,
vamos tentar mostrar que o sujeito não é o que costumamos pensar em termos de

3
Psiquiatria, psicologia, psicanálise e na clínica médica geral.
4
Campo do sujeito = pathos | Campo do corpo = nosos.
6

indivíduo.

D) Definição do que é a (psico)patologia do (sujeito). A partir da questão do sujeito e


dos seus impasses.

E) Consequências teóricas e, principalmente, clínicas de estudarmos a psicopatologia


sob a ótica do sujeito.

DEFINIÇÃO E CAMPO DA PSICOPATOLOGIA EM GERAL: A DISCIPLINA


FUNDAMENTAL E A DIREÇÃO DO TRATAMENTO.

Quando a gente pensa no termo psicopatologia, espontaneamente, o que nos vem à


cabeça é um termo old fashion, um pouco fora de moda, um pouco decadente.
Principalmente no campo da saúde mental que é extremamente marcado pela tradição
psiquiátrica e por sua posição hegemônica.
A psicopatologia é uma disciplina, de certa maneira, vista como antiga, pois cada
vez mais, cede espaço para as nosografias que respondem a certas lógicas práticas ou de
natureza biológica e que visam muito mais operacionalizar uma intervenção técnica e
eficaz. Então a psicopatologia que evoca esse campo da psiquiatria, em primeiro lugar, é
uma disciplina que nos leva a pensar sobre o que faz com que o sujeito procure ajuda
clínica em situação de compadecimento de sua natureza5, e que incide no campo psíquico e
em última instância no campo mental. E ao mesmo tempo, quando a gente pensa em
psicopatologia, lembramos em primeiro lugar do tratado de Karl Jaspers (1883-1969),
Psicopatologia Geral (1913), que vai ser uma espécie de marco fundador da teoria que vai
orientar toda a prática psiquiátrica.
Espontaneamente, quando a gente pergunta para as pessoas uma definição do que
elas entendem por psicopatologia, em geral, a primeira coisa que vem à mente é essa daqui:
“é a teoria a respeito das diferentes formas de apresentação clínica, e sobre as causas e
mecanismos que conduzem às doenças mentais”. Essa é a ideia, então, de uma disciplina
descritiva e com um esforço explicativo de mostrar os fundamentos do que se chama
doença mental.
Nessa tradição psiquiátrica, a psicopatologia é considerada6 como uma ciência base

5
Corpo biológico.
6
Já estava em Jaspers em sua Psicopatologia Geral (1913).
7

da psiquiatria. A psicopatologia estaria para a psiquiatria, como a patologia estaria para as


especialidades médicas em geral. Seria uma teoria da doença do ponto de vista dos seus
fundamentos, do ponto de vista das suas bases que permitiria pensarmos uma abordagem
clínica.
Os nossos colegas, Banzato & Zorzanelli (2020) propõe no lugar da ciência de
base, uma disciplina nuclear. Na ciência de base, a psiquiatria e todas as áreas da saúde
mental teriam como ponto de partida o assentamento em uma teoria da doença, sendo que
a partir daí se declinaria a sua clínica. Já a ideia de disciplina nuclear, por outro lado, é que
menos que um fundamento, o que ela traria são as questões decisivas da disciplina. Eles
evocam nessa perspectiva de estudo das doenças mentais os seus mecanismos biológicos
envolvidos, a sua fisiopatologia e uma eventual etiologia biológica. Ela está envolvida com
uma ideia de semiologia psiquiátrica, o estudo dos sinais e sintomas dos fenômenos
mentais patológicos, além de nos trazer o questionamento que nós vamos desenvolver ao
decorrer de nossa reflexão.
Quando estudamos psicopatologia e ao se referir a noção de doença mental, nos
questionamos se o estatuto de doença no campo mental é o mesmo que do campo
orgânico.... Uma nosologia equivale a uma patologia? Ou correlativamente, a mera
descrição dos sinais e dos sintomas das manifestações clínicas de uma condição mórbida
explica a sua patologia? O que naquilo, da patologia, constitui impasse para o paciente?
O termo psicopatologia tem como seu núcleo essa ideia, a noção grega de pathos, e
de fato pathos remete a noção de doença que é evocada em doença mental, mas de uma
maneira muito colateral pois o pathos grego se refere, a princípio, ao sofrimento, a
passividade e a paixão; exemplo é quando se diz: “eu estou sofrendo” ou “eu estou
padecendo”.
A passividade no campo da medicina se expressa quando você recebe um pas-
ciente7. Um pas-ciente quer dizer que ele padece e está numa posição passiva, pois sofre. Comentado [A2]: 1 Latim: Patiēns | Pati = passando,
suportando, sofrer | Ens = sendo | Pati + Ens = aquele que
Mas ele é leigo nos fundamentos daquilo que o levam ao sofrimento, assim se endereça ao suportando está; aquele que suporta – sofre - passivamente.
Essa condição de suportar e ser passivo impulsiona a busca
campo da clínica na suposição que alguém tenha algum saber a respeito desse sofrer, e por alguma forma de actio, atividade.

assim vai consultar esse saber.


Por isso que é uma relação de um douto – doutor - com um paciente em busca de
uma consulta e que no final das contas resultará em uma prescrição; obterá uma receita,
algo que vem a partir de uma posição de conhecimento, de uma ciência e de um saber. É
8

isso que interviria no seu campo para o qual é passivo, em que está sofrendo e que está
com uma paixão8. Então é nesse sentido que o pathos grego remete a doença, porque em Comentado [A3]: Paixão tanto no sentido amoroso, quanto
no sentido ... (?).
geral a doença por sua perspectiva física conduz ao impasse do sujeito, conduz ao
OBS: Seria interessante buscar maiores esclarecimentos para
sofrimento do sujeito. Mas a noção de pathos que gostaria de transmitir é aquela que essa passagem com o Prof.

descreve esse estado de thymós, de humor, desse estado de disposição de um sujeito, a Comentado [A4]:
OBS: Seria interessante buscar maiores esclarecimentos para
partir do qual ele vai padecer de algo. essa passagem com o Prof.

Quando os gregos queriam falar da dimensão física-natural ligada ao sofrimento,


eles se referiam ao nosos, sendo que esse tem uma conotação concretamente material. Por
isso que se levarmos os termos as últimas consequências, a nosologia não seria um
sinônimo de patologia, pois a primeira é em si a perspectiva material dos fenômenos
envolvidos num quadro de sofrimento, enquanto a patologia se refere a maneira que aquele Comentado [A5]: Patologia = Pat(h)ologia? Patologia de
pathos.
paciente padece de uma certa condição.
Será que não haveria necessidade de diferenciar o termo
Assim sendo, literalmente “psicopatologia” diz respeito ao discurso racional sobre patologia que é comumente utilizado e que se refere as
doenças em geral do conceito de pat(h)ologia a que estamos
os sofrimentos próprios ao espírito, ou de que maneira algo incide nesse pathos humano. nos referir e que deriva dos gregos? De Pathos.

Esse pathos incidiria numa psykhé. Uma psykhé é a alma. Patologia = medicina moderna.

Essa é a ideia, uma psicopato-logia é o logos, o estudo racional que fornece provas Pat(h)ologia = modo de padecimento do sujeito ou a
manifestação do seu sofrer (pathos) em distinção à
da sua racionalidade. Em nosso caso contemporâneo é o discurso científico e dedicado ao manifestação física-natural, seu nosos.

pathos, ao sofrimento, aos padecimentos e naquilo que eles incidem no espírito. Essa seria
uma definição mais literal a partir dessa matriz filológica grega.
Quando o pathos entra no campo médico contemporâneo, é cada vez mais
absorvido pela sua concepção reinante de que definindo um adoecer é definido suas bases
materiais. Nós veremos que isso mostra um certo momento histórico, sendo que Lacan
chamava isso de uma fenda epistemo-somática, o momento da história da medicina e da
história da ciência que você começa a definir um padecimento humano que leva à procura
de um médico ou um clínico. Ocorre uma fusão dessa dimensão da patologia com a Comentado [A6]: Pathos? Ou patologia sem (H) mesmo.

nosologia. Comentado [A7]:


- Explorar o conceito de fenda epistemo-somática.
O termo psicopatologia nunca foi um termo da língua comum. Sempre foi um
- Necessidade de mencionar historicamente essa passagem da
termo técnico, um neologismo formado no final do século XIX. A primeira indicação transição de um padecimento em que não se buscava um
médico para um momento que se passa a buscá-lo.
que se tem do uso técnico desse termo foi feita em 1878 pelo médico alemão Hermann
Emminghaus (1845-1904). Concebia a psicopatologia como um sinônimo de psiquiatria
clínica. Por isso que psicopatologia e psiquiatria parecem termos “irmãos-grudados”. É a
partir disso que vai ocorrer o desdobramento de todas as primeiras abordagens médico-

8
Paixão aqui no sentido amoroso, que conduzem ao sofrimento e nos leva a pedir ajuda.
9

psiquiátricas do fenômeno do sofrimento mental.


Então vai ser a partir do final do século XVIII e começo do XIX que nós vamos ter
as primeiras metodologias de tratar esse padecimento como sendo da ordem dos fenômenos
naturais. Nós vamos ter o Philippe Pinel (1745-1826) que em 1798 publica a Nosografia
filosófica, ou um método de análise aplicado a medicina9, este “método de análise” –
racional - já vinha sendo aplicada na botânica, na zoologia e passaria a ser aplicado não
apenas na psiquiatria, mas ao conjunto da medicina. Ou seja, como é que se faz descrições
fiéis de quadros e de recortes temporais de uma certa realidade clínica. Nesse contexto, em
questão, se fornece um nome, faz uma nosos-grafia e os classifica. Isso é o que vai ser a
nosografia filosófica.
Então ele vai tentar definir o que chamava de espécies do gênero “loucura”. Ver a
partir de critérios clínicos como é que você observa diferentes formas daquilo que
globalmente se chama loucura, sendo que isso permite então um primeiro passo para uma
abordagem tanto científica quanto clínica do gênero loucura.
O próprio Jean-Martin Charcot (1825-1893), criador da neurologia, é uma espécie
de paradigma desse método e em específico, anátomo-clínico, em que acompanhava e
descrevia a condição de modo minucioso dos seus pacientes. Quando o paciente morria
fazia o exame cadavérico, o exame patológico no cadáver e via as relações entre a lesão
identificada e a descrição clínica que havia feito, a partir disso obtinha as correlações.
Vejam que isso institui uma lógica, uma maneira de pensar, uma certa racionalidade
e mais do que isso, uma concepção do que se deve fazer de uma maneira correta para esse
campo derivado da medicina dos gregos tornar-se um campo de racionalidade ancorada em
razão e ciência. A medicina psiquiátrica contemporânea surge assim.
Essa é a abordagem que o Charcot coloca da histeria - o que é muito interessante -.
A histeria é uma das categorias psicopatológicas onde os fatores emocionais são mais
claramente evidenciáveis. Ainda assim, tentava descrever uma espécie de “fotografia do
quadro clínico”, uma descrição com a linguagem do quadro e chegava a busca nas
iconografias, mesmo nas obras de arte do passado, artistas que teriam captados certos
momentos do que chamava de “ataque histérico”, do “grande ataque histérico”, ou seja,
fazer uma abordagem racional da psicopatologia era descrevê-la de uma maneira precisa,
classificá-la e eventualmente isso nos daria a matriz para se encontrar as suas correlações
biológicas.

9
Nosographie philosophique, ou la méthode de l’analyse appliquée à la médecine (1798).
10

É o Wilhelm Griesinger (1817-1868), esse grande médico-psiquiatra alemão e que


escreve um dos tratados mais importantes sobre a loucura, sobre a medicina psiquiátrica e
que Freud leu profundamente, pois encontrou-se os escritos de Griesinger na biblioteca de
Freud todo anotado e cheio de comentários10 (PEREIRA, 2007), é dele essa ideia de que as
doenças mentais são doenças cerebrais. Vejam então o paradoxo e a dificuldade que a
noção de doença mental vai trazer para própria constituição do campo da psiquiatria. O que
que significa uma doença mental? Griesinger dá um primeiro assentamento, sendo que:
falar de doenças mentais, é falar em última instância de doenças cerebrais.
Nós vimos que quando começa essa psiquiatria contemporânea na sua vertente
francesa, depois na perspectiva dos alemães, o que interessava mais era fazer uma boa
descrição e uma boa classificação de fenômenos que servia na clínica psiquiátrica. Se isso Comentado [A8]: Servir = de útil?

corresponde a lesões biológicas ou não, isso seria um passo seguinte, seria apenas uma OU

hipótese de trabalho. Sê via = De olhar, de observar, de vê, de ver.

Então chamo a atenção disso porque o que encontramos no Esquirol (1772-1840),


no Pinel e nos primeiros grandes autores, é o objetivo que tinham de trazer fundamentos
para uma racionalidade no campo das perturbações mentais, mas a noção de doença
mental vai surgir mais tarde, quase meio século depois, sendo que os grandes autores
basicamente começam no contexto francês com Jean-Pierre Falret (1794-1870), Jules
Baillarger (1809-1890) e Bénédict Augustin Morel (1809-1873) e no contexto alemão o
grande nome foi o Griesinger. Esses últimos pensam em como podemos descrever aquilo
que era apenas loucura e padecimento em termos de uma doença mental.
Vejam que para descrever a psicopatologia e compreender o campo do sofrimento
humano com uma abordagem que vem da área médica, a noção de doença é fundamental,
porém desde o início traz um problema de definição. O que que significa a noção de
doença naquilo que se refere ao mental, ao psíquico?
Vemos que o Emil Kraepelin (1856-1926) faz a mesma coisa. O que busca não é
tanto fazer uma nosologia, o estudo da doença e sim uma nosografia. Basicamente cria um
método de abordagem rigorosa de observação, descrição, nomeação e de classificação dos
fenômenos mentais patológicos. Pensava que quanto melhor conhecermos as formas típicas
desses fenômenos, não apenas como os franceses faziam com a ênfase no quadro clínico e
na “foto” daquele momento, mas acompanhando como se desdobra ao longo do tempo, de

10
O conceito de recalcamento que Freud importa para a sua metapsicologia quase que de uma maneira literal é a
descrição que o Griesinger faz.
11

fato poderíamos conhecer em profundidade. Nós encontraremos essa dimensão diacrônica


que o Kraepelin coloca como fundamental na psicopatologia: acompanhar o
desdobramento do fenômeno mental ao longo do tempo, de modo ininterrupto em seus
estudos. Buscava uma descrição e classificação naturalista dos fenômenos mentais, e com
uma aposta que no futuro essas purificadas, depuradas e precisas seriam a base para se
encontrar eventuais substratos biológicos ligados a esse tipo de alteração.
O Freud (1856-1939) entra nesse debate mais ou menos nesse período. Nasceu em
1856 tal como o Kraepelin, são contemporâneos e vão ter obras paralelas. Por um lado,
Kraepelin vai escrever as bases da nosografia psiquiátrica, por isso que se fala do DSM
(Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) como um neo-kraepelianismo,
isto é, como fazer classificação de fenômenos que vão se organizar segundo descrições
clínicas. Por outro, Freud traz várias contribuições para o campo do patológico na saúde
mental, mas uma ou duas que são particularmente decisivas é quando se diz de uma
psicopatologia da vida quotidiana. Enquanto na tradição médica a tendência era de ligar a
patologia a doença na sua dimensão biológica e física, Freud jamais negou que poderia
haver a possibilidade de fatores biológicos associados ao padecimento mental. Não se trata
disso. Mas vai fazer uma separação, pois não é porque você tem a nosologia que se
entende a patologia, e se pôde ter patologia sem que haja nosologia, por exemplo, na
histeria. Veremos posteriormente outros exemplos, outras situações clínicas que você não
encontra base material explicativa suficientemente convincente para descrever algo que
intuitivamente poderíamos denominar de psicopatologia.
Então, Freud não faz do pathos uma prerrogativa da nosologia, porque pode haver o
pathos em todas as situações clínicas, seja ela com matriz biológica ou sem uma matriz
biológica ligada causalmente ao fenômeno estudado, inclusive nos permite pensar mais
radicalmente ainda o campo da psicopatologia, pois fala numa psicopatologia da vida
quotidiana: existiria, então, condições a-psicopatológicas em que o sujeito simplesmente
de nada padece? Em que não tem pathos nenhum?
Aqui colocasse o nosso problema da direção do tratamento. O tratamento seria
então eliminar o pathos do sujeito? Seria estoico? De tirar a paixão do sujeito e deixá-lo
em estado de apatia, de boa adaptação social, de não-sofrimento, de produtividade, mas
sem pathos? Essas questões todas estão na base da clínica e de como se conceber um
projeto terapêutico racional, de como se otimizar os recursos da ciência e da técnica a
serviço de um certo objetivo clínico do tratamento. Uma coisa é orientar o tratamento
apenas no sentido de aplacar a paixão, o sofrimento e o desajuste e a outra é como que o
12

sujeito pode se ressituar em relação ao seu pathos. E isso modifica a posição do clínico, e
não apenas do clínico psicanalista, como Freud. De qualquer clínico. Veremos mais
detalhes adiante.
O Théodule-Armand Ribot (1839-1916) vai criar o método e a disciplina, a
psicopatologia do século XX no contexto universitário terá em Ribot uma espécie de
paradigma. Cria a primeira disciplina universitária de psicopatologia no contexto francês e
concebe, a definição de psicopatologia dizendo que do ponto de vista metodológico, a
psicopatologia deveria ser pensada como uma psicologia patológica.
Vamos ver que isso é um grande debate na história da psicopatologia, com posições
muito divergentes, mas a posição original do Ribot é que a psicopatologia é uma
psicologia patológica, ou seja, o sujeito funciona mentalmente como qualquer um, porém o
seu funcionar mental entra em impasse e em incapacidade de funcionamento. Sua
psicologia começa a funcionar mal. Nós vamos ver que tem muitos outros pesquisadores
que verão isso a partir de outras óticas.
Um dos problemas principais é: o que que vem primeiro? É a psicologia que vai
funcionar patologicamente ou você tem um fenômeno doentio que nós vamos chamar de
patológico e que levaria então a essas alterações psíquicas? Dentro da tradição da
psicopatologia essas duas posições se digladiaram desde o início e tanto Freud, na vertente
psicanalítica, quanto os que vão trabalhar com uma vertente mais fenomenológica, ou
mesmo existencial-heideggeriana vão se confrontar muito sob essa perspectiva.
13

SEPARAÇÃO DO CAMPO DA DOENÇA: “NOSOS” E “PATHOS”.

Mais uma vez nós vamos retomar as principais posições, e vamos fazer de uma
maneira meio intuitiva, no sentido de ver o que se apresenta como as principais posições no
campo da psicopatologia.
Uma das posições marcantes é uma tradição nosográfica naturalista, como vimos
em Pinel, Esquirol, e depois em Kraepelin. A ideia é tratar o fenômeno psicopatológico
através de um momento de observação natural como fora feito nas ciências tradicionais. O
Kraepelin tinha como hobby a botânica. O próprio Pinel seguiu os cursos do Auguste
Comte (1798-1857) em Paris, que pensava então o método científico com base na
observação, descrição e classificação. É esse método que ele aplica para tratar da loucura, a
partir de um olhar de fora e tomando a loucura e o louco em posição de objeto de
conhecimento. Essa posição nosográfica e naturalista é uma das tradições.
Outra tradição é a de Freud, por exemplo, quando se refere a psicopatologia da
vida quotidiana, em que separa patologia da necessidade da descrição de uma doença,
embora uma condição de doença biológica está, certamente, implicada no campo da
patologia, ou seja, de certa maneira Freud introduz o problema da incidência no campo do
sujeito, dos seus impasses e eventualmente de alterações biológicas. Comentado [A9]: Dificuldade semântica e nominal com o
conceito de patologia e pathoslogia.
Tem uma tradição fenomenológica que vai ter em Jaspers e Eugène Minkowski
Freud estaria trazendo de volta a noção dos gregos de pathos
(1885-1972) seus grandes nomes. Vamos explicar um pouco mais a posição do Jaspers e e nosos. Estaria dizendo que é possível estudar algo que é da
ordem do pathos sem que para isso precise de falar de nosos.
veremos como esse, Freud e Kraepelin; desenvolveram abordagens distintas e como no
final das contas, pontos de partidas diferentes sobre o que constitui o fenômeno
psicopatológico.
O Ludwig Binswanger (1881-1966) vai ser o criador da análise existencial. Ele foi
um discípulo do Freud, e depois progressivamente vai abandonando, se afastando de uma
psicanálise freudiana, vai se aproximando cada vez mais de uma leitura da fenomenologia.
Por um lado, vai ler muito Edmund Husserl (1859-1938) e por outro, vai se aproximar cada
vez mais de Martin Heidegger (1889-1976). Vai fazer um outro tipo de descrição do
fenômeno psicopatológico e que vamos ver como se contrasta com a posição de Jaspers e
Freud.
Contemporaneamente nós vamos ter o surgimento de duas posições fundamentais,
uma e outra, se afastam dessa tradição da psicopatologia psiquiátrica que se pensava como
uma disciplina do estudo do mecanismo da doença mental.
A princípio teremos uma nosografia pragmático-operacional, que visa fazer com a
14

linguagem um recorte de uma realidade clínica, de modo a estabelecer um código em um


manual para ser compartilhado por uma comunidade técnica, de modo que quando
utilizarmos uma certa etiqueta diagnóstica, teremos algum tipo de garantia que o referente
no campo da realidade clínica é compartilhado pelos participantes daquela comunidade.
Um outro ponto importante dessa lógica do DSM é que os fenômenos têm que ser descritos
em posição de objeto empírico, ou seja, que se tenha o olhar de observador que observa o
fenômeno de fora e o descreve segundo coordenadas que são codificadas no manual.
Então há os critérios explícitos que dizem quais condições clínicas é preciso ter para
aplicar uma certa etiqueta diagnóstica. Essa é a matriz do DSM. Vejam que o DSM não
tem qualquer compromisso com a noção de doença mental. Ele sequer utiliza esse termo!
Ele fala de mental disorder e justamente a disorder ela fica em contraste com a disease.
Ele não descreve mental disease, descreve mental disorder, assumindo o caráter
meramente convencional. Comentado [A10]: Exploração do “mental disorder”: o que
nele nos indica sua convencionalidade?
Veremos o que uma certa comunidade científica-clínica e mesmo a comunidade em
geral, considera ser problemas recortáveis no campo empírico, ou seja, suscetível aos
métodos de controle de verificação empírico-experimental da ciência hegemônica
contemporânea. Como é que se recorta esses fatos? Dessa maneira! Aplicando esse tipo de
método que permite operar para certos objetivos técnicos e científicos de modo preciso.
Por exemplo, precisamos fazer estatística - o DSM é um manual de diagnóstico e de
estatística -, como é que recorto o fenômeno para que ele seja abordável por técnicas
estatísticas úteis? O exemplo que sempre dou para vermos a diferença da noção entre o
diagnóstico de uma doença e o diagnóstico de um alvo-clínico, é que podemos ter um
cirurgião-plástico e este por necessidades práticas e clínicas tem que lidar com a categoria
nariz feio. Ora, nariz feio não é doença, mas se pode recortar aquele fenômeno nariz feio
da mesma maneira que Pinel recortava o fenômeno loucura. Você não precisa deliberar se
é uma doença, mas se pode recortar nariz feio com critérios muito precisos, além de
diferentes formas de nariz feio e isso me orienta em diferentes técnicas. Existe um nariz
feio em que tenho de fazer um certo tipo de técnica cirúrgica; um segundo que posso
classificar com critérios clínicos precisos e que vão dar origem a um outro tipo de técnica;
e um terceiro em que o diagnóstico mostra que a cirurgia não é bom, é melhor fazer
tratamento dermatológico; além de outros que é melhor fazer tratamento nenhum. Essa é a
racionalidade do DSM em que consideramos o que é disorder - merecedor de uma
intervenção de natureza psiquiátrica -, mas se isso não tem uma matriz biológica ou sim,
não é decisivo para a classificação, pois se recorta de uma maneira que se possa intervir
15

como um cirurgião-plástico intervém biologicamente em fenômenos que em si mesmo não


são necessariamente doentios, mas que permitem uma classificação. Eis a lógica do DSM.
Veja que dispensa a necessidade da tradição da psicopatologia de pensar nos mecanismos
intrínsecos a constituição da doença e a relação da alteração biológica com o campo do
mental. Apenas se pensa como intervir em alvos que se define enquanto dignos de
tratamento psiquiátrico.
Isso se opõe a uma outra perspectiva contemporânea e que de certa maneira é quase
o seu oposto, e em que temos assim um naturalismo psiquiátrico ainda mais radical do que
a tradição inicial de descrever e fazer uma abordagem racional e científica do fenômeno
mental. Estamos a falar do Research Domain Criteria (RDoC), quer dizer, a proposta seria
uma descrição em suas matrizes neurológicas, de genes, neurotransmissores e circuitos
cerebrais, ou seja, as categorias devem estar conectadas a fisiopatologia do sistema nervoso
central.
Muitas vezes acusa-se o DSM de biologizante, mas a biologia está lá dentro como
outras teorias estão, inclusive a psicanálise. Na verdade, tem um multi-teorismo
implicado no DSM, porém sua lógica é de recortar disorders para poder agir. É uma
lógica diferente do RDoC que busca alterações mórbidas biológicas para classificar.
E hoje nós temos um terceiro passo, ainda mais radical, que é o chamado fenótipo
digital. Observou-se que um sujeito utilizando os meios contemporâneos de comunicação
digital e de informática etc., deixa marcas nesse dispositivo, na rede, que indicam certas
posições de sujeito. Podemos com a inteligência artificial, por exemplo, com mais precisão
do que qualquer clínico, identificar o risco de suicídio e a possibilidade do
desencadeamento de um quadro psicótico. Apenas pela alteração do padrão, da velocidade,
da aceleração e pela mudança de ângulo da falange, isso é indicativo de alterações de
início de depressão. Quando o sujeito adentra em um site pornográfico, é possível ver
numa cena onde o olho dele focaliza, o que atrai a sua atenção naquela cena, e assim se
pode ter um perfil do sujeito com base nessas tendências de interesse visualizadas na cena.
Cada vez mais se fala de algo que não tem a ver nem apenas com alvos práticos, muito
menos com uma descrição da sua materialidade em termos de doença, e sim com marcas
que se registram por meio dessa linguagem codificada do mundo digital.
Talvez quem melhor expresse, o ponto em que quero chegar, é o Kurt Schneider
(1887-1967), esse grande psiquiatra e psicopatólogo alemão, sucessor do Jaspers e que não
pode, de forma alguma, ser acusado de ser um psicologista, pois é da tradição médico-
psiquiátrica. Ele mesmo em especial no seu tratado Psicopatologia Clínica (1959), um
16

clássico da psicopatologia, começa colocando em questão a própria noção que sempre


organizou a psicopatologia, de doença mental. Acha que é uma contradição dos termos.
A ideia de doença mental embute um dualismo cartesiano e que cria então impasses
entre esses dois mundos que não se comunicam. Se é doença, não pode ser mental, pois a
doença lida com a res extensa, com as coisas materiais do mundo; e se é espiritual, não
pode ser doença. Ou é doença, ou é mental. Mas não é os dois ao mesmo tempo! Por isso
vai tomar uma postura mais próxima do Griesinger, no sentido de que aquilo que nós
convencionamos chamar de psicopatologia, são as incidências no campo do mental
quando ocorre, e apenas quando ocorre, lesão no campo do funcionamento cerebral. Esse
seria o plano médico da psicopatologia para o Kurt Schneider.

Você também pode gostar