Você está na página 1de 73

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

CAMPUS BAIXADA SANTISTA


INSTITUTO DE SAÚDE E SOCIEDADE
CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

LORENA MARTHA ROBERTO

ENTRETEMPOS INTENSIVOS:
FORMAÇÃO E VIDA

SANTOS
2022
LORENA MARTHA ROBERTO

ENTRETEMPOS INTENSIVOS:
FORMAÇÃO E VIDA

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao


curso de Psicologia da Universidade Federal de
São Paulo - Campus Baixada Santista

Orientador: Prof. Dr. Alexandre de Oliveira Henz

SANTOS
2022
Ficha catalográfica elaborada por sistema automatizado
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

Roberto, Lorena Martha.


R642e Entretempos intensivos: formação e vida . / Lorena
Martha Roberto; Orientador Alexandre de Oliveira
Henz; Coorientador . -- Santos, 2022.
73 f. p. ; 30cm

TCC (Graduação - Psicologia) -- Instituto Saúde e


Sociedade, Universidade Federal de São Paulo, 2022.

1. Entretempos Intensivos. 2. Formação. 3. Mapa


Afetivo. 4. Encontros. 5. Comum. I. Henz, Alexandre
de Oliveira, Orient. II. Título.

CDD 150
AGRADECIMENTOS

Foram muitas as companhias em pensamento, corpo e ação neste processo de pesquisa,


ora mais próximas, ora mais distantes e, neste caso, a distância é apenas uma variação também
de suma importância. Agradeço às presenças compositoras das linhas que atravessam este
trabalho em intensidades, tempos e espaços diversos, tornando-o possível. E espero que cada
um, cada uma, possa sentir seus toques, ouvir suas falas nas entrelinhas e no caso de não notá-
los, tenha certeza que estão aí, pois o invisível e o inaudito têm nosso maior interesse.
Alexandre Henz, Adriana Barin de Azevedo, Rafaela Camargo, Conrado Federici,
Mara Martha, José Roberto Filho, Enrico Roberto, Rita Utida, Bruna Avelino, Jacqueline
Magalhães, Isabella Gonçalves, Giovana Fantinatti, Luisa Borges, Maria Luisa Lima, Gabriela
Borges, Lucca Simões, Eduardo Martins, Matheus Bohnenstengel, Carla Dias, Guilherme
Ferraz, Rogério, Fábio, Edjânio, Brendon, Gabriela Toledo, Gabriel Schwebel, Sulamita
Batista, Rafael Neves, Fernanda Vaidergorn, Amanda Sayuri, Felipe Galdino, Rodrigo
Oliveira, Jessica Portela, Laiany Emiliano, Sabrina Vale, Edvan Washington, Isabela Muniz,
Ana Beatriz Dutra, Laura Camara, Creusa, Neuza, Augusto, Simone Ramalho, Angela
Capozzolo, professoras(es) do Instituto Saúde e Sociedade, professoras(es) do eixo Trabalho
em Saúde, monitoras e monitores do eixo Trabalho em Saúde, participantes do grupo de
estudos de Espinosa, participantes do grupo de orientação, participantes do LEPETS, turma 12
de psicologia, minhas fortes amizadesda vida e meus familiares.
RESUMO

Este trabalho propõe-se, com o método cartográfico, a acompanhar traçados afetivos e


encontros no decurso de uma formação. Percorrerei trajetos por rodas de música, por arredores
e corredores da universidade, por andanças e visitas em alguns territórios de Santos, por
fechamentos dentro de casa em reuniões e grupos virtuais. Um mapa extensivo é preenchido
por trajetos intensivos que interessam a esta investigação e que constituem-se de afetos, de
variações de potência, em conexão com os problemas e ideias percebidas, infletidas e
inventadas nos encontros. Um eixo importante à produção da presente pesquisa foi o de
encontros em rodas de música na bacia do mercado municipal de Santos, os quais duraram cerca
de um ano e meio e contaram com a presença de estudantes, professores e técnico do curso de
psicologia da UNIFESP e daqueles que habitam e constituem os territórios da Vila Nova e Vila
Mathias. Outros eixos de experimentação foram integrando a pesquisa, em ressonância com a
aposta de pensar uma formação sempre em relação, que não se separa da vida e que se dá
também em entretempos intensivos, em rasgos fora da órbita do mero produtivismo acadêmico.
A estratégia metodológica de escrita de narrativas faz parte da tentativa de pensar com os
lampejos, com aquilo que nos dá uma espécie de susto, criando imagens verossímeis onde
algum deslocamento acontece, por menor que possa parecer. Sublinho a importância das
alianças para a construção deste trabalho: com histórias, com pensamentos, com simpatias, com
ruas, músicas e vidas. Neste plano comum e imanente de produção, os relatos, que opto por
chamar de vozes das alianças, fazem parte de uma multidão de vozes impessoais e singulares
que estão em nós mesmo quando não nos damos conta, enunciando, desta maneira, certa
formação em rede. Com isso, a aposta central deste trabalho é que os deslocamentos provocados
nos encontros ao longo da formação e da vida arrastam intensidades, produzem pensamentos e,
desta maneira, vão constituindo certo corpo ético e político.

Palavras-chaves: Formação; Entretempos Intensivos; Mapa Afetivo; Encontros; Corpo;


Comum.
SUMÁRIO

0. AMBULANDO...................................................................................................................... 6
1. FIOS INICIAIS ..................................................................................................................... 8
1.1 Cria-se um terreno que sustenta os pés........................................................................ 9
1.2 Uma vida produz seus arranjos .................................................................................. 11
1.3 Desafinando o coro e afinando relações ..................................................................... 15
2. OS VAIS E VENS DA MARÉ .......................................................................................... 24
2.1 Quem me navega .......................................................................................................... 24
2.2 Que embarcações? ....................................................................................................... 28
3. NÃO SE SABE MUITO BEM COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI ............................... 36
4. UM CORPO ENTRE SENTIR E PENSAR UM CLIMA .............................................. 48
5. ÚLTIMAS COSTURAS, POR ORA ................................................................................ 60
6. A VIDA DERRAMA ......................................................................................................... 64
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 69
6

0. AMBULANDO

Este trabalho é composto nos encontros,


alegres, duros, sensíveis, à flor da pele.

Convido o(a) leitor(a) a percorrê-los sem muita pretensão de


linearidade, já que o tempo da escrita, da formação e da vida é
pouco cronológico.
Espero que os problemas apresentados possam gerar
ressonâncias, novas conversas.
As palavras aqui tecidas escoam por um afluente de rio em
aberturas sem finalidades.
7

Sinto que carrego em minhas mãos uma bela concha cheia de perolinhas. Tão pequenas,
efêmeras, brilhantes… procuro carregar com delicadeza para que não caiam de uma vez na
areia, se percam ou deixem de receber a devida atenção. Juntas cintilam e alguns que caminham
pela praia, mesmo de longe, conseguem avistar a imagem que se forma e se confunde com um
espelho. Não sei bem se pouso a concha sobre a areia, se vou espalhando pérolas pela praia. Por
enquanto, seguro-a com receio de arriscar. Que relação complicada é esta quando vemos algo
muito bonito pela frente.

"É talvez essa ambição de querer reter pra gente essas coisas que são muito
bonitas, querer continuar com elas de alguma forma, querer que elas existam
pra gente. […] Ao mesmo tempo que eu queria muito usar aquilo pra alguma
coisa, eu fiquei paralisada com a ideia de que talvez eu não tenha que fazer
nada com aquilo. Talvez só porque uma coisa é bonita, não necessariamente
eu tenho que ter essa ambição de querer transformar ela em outra coisa […]
Ela vai continuar ressoando de alguma forma, não sei como, talvez eu esqueça,
mas talvez continue reverberando em outras coisas que eu não sei nem bem
quais são." (voz das alianças)

Não estou falando tudo isso à toa, apesar de parecer que sim. E se fosse? A imagem ressoa com
a maneira que me chegam os relatos e situações que caminham por este trabalho. Há um percurso longo
e intensivo entre as pulgas que vão surgindo atrás da orelha em perguntas, ideias e sensações e as
palavras que vão escorrendo pelas páginas. Talvez o vento e o mar possam levar algumas das pérolas a
outros cantos, a areia sujar a superfície de outras e, ainda assim, elas continuam em boa companhia1.
Nem tudo o que me aconteceu, portanto, estará aqui de forma palpável e visível, já que uma boa parte
dos processos de vida e aprendizagem se fazem em conexões pouco conscientes.
Enquanto alguém que pesquisa, arriscarei alguma combinação possível e certamente
poderia haver infinitas outras. Há sempre uma linha tênue entre reter e abarrotar as questões e
querer cuidar com certa ética do que aparece; aqui faço uma tentativa de operar com essa
problemática. No fim das contas, nem sei o que brilhará mais para quem lê: se serão as pérolas
ou bem a areia, as conchas, os cascalhos ou mesmo os lacres de latinhas…

1
"Como um vaga-lume, ela acaba por desaparecer de nossa vista e ir para um lugar onde será, talvez, percebida
por outra pessoa, em outro lugar, lá onde sua sobrevivência poderá ser observada ainda." (DIDI-HUBERMAN,
2011, p.119)
8

1. FIOS INICIAIS

Acontece também que uma forma musical


dependa de uma relação complexa entre
velocidades e lentidões das partículas sonoras.
Não é apenas uma questão de música, mas de
maneira de viver: é pela velocidade e lentidão
que a gente desliza entre as coisas, que a gente se
conjuga com outra coisa: a gente nunca começa,
nunca se recomeça tudo novamente, a gente
desliza por entre, se introduz ao meio, abraça-se
ou se impõe ritmos.
(Gilles Deleuze)

1.1 Cria-se um terreno que sustenta os pés

Venha cá, chegue mais. Esta pesquisa só existe porque está em relação. Para não te jogar
logo de cara em cena, procurarei introduzir brevemente – ou nem tanto – os caminhos que me
trouxeram até aqui, o que me faz falar com certo conjunto de palavras, pensar com alguns
autores, e principalmente, com as narrativas que aparecerão aos poucos. O que nos traz e nos
leva, que forças são essas? Este trabalho acompanhou os trajetos que fui percorrendo no decurso
da formação, ao mesmo tempo que criou e inventou outros percursos e jeitos de estar na vida.
Escrevo, portanto, com os encontros que tive e que tenho e talvez seja sempre assim.
Começo pelos acordos, acordes2, que beirando o final do processo de pesquisa se
retiram do título do trabalho após a percepção de alguns fios de maior espessura e destaque
neste percurso. Foi, entretanto, pela música que os primeiros passos foram percorridos. Certo
dia caminhava ao lado do professor Alexandre Henz, aquele que foi orientando-me e, de algum

2
"[…] a alma só se realiza tomando a estrada, sem outro objetivo, exposta a todos os contatos, sem jamais tentar
salvar outras almas, desviando-se das que emitem um som demasiado autoritário ou gemente demais, formando
com seus iguais acordos/acordes mesmo fugidios e não resolvidos […]" (DELEUZE, p.101, 1997)
9

jeito, desorientando-me também – meio ao modo Tom Zé3 – e ali umas palavrinhas eram soltas
sem muito pensar:
— Gosto muito de música… sempre gostei, sempre me interessei por essa sensação de
estar em uma roda de música e na vida fui me conectando com as pessoas dessa forma, com
amigos, paixonites. Talvez pudesse fazer uma pesquisa que tivesse a ver com essa ambiência
que a música pode criar?
Não saberia afirmar com convicção quais foram as palavras que usei, mas não importa,
foi mais ou menos assim. Alexandre convidou-me para um projeto-interferência de rodas de
música na bacia municipal de Santos, território muito próximo à universidade e pelo qual,
paradoxalmente, pouco caminhamos ao longo da graduação. Eu me juntei ao grupo formado
por alguns estudantes e professores que estavam por ali experimentando sessões de cinema a
céu aberto.
— Por que não fazer umas rodas de música por lá também?
As rodas de música duraram um ano e meio. Íamos para a bacia do mercado
quinzenalmente, levávamos instrumentos de percussão, de sopro e de cordas; alguns
instrumentos poucos conheciam. As rodas eram compostas por estagiários do curso de
psicologia, professores, por aqueles que viviam em cortiços ou na rua e por transeuntes que
passavam por ali. Alguns voltavam no decorrer das semanas e foram tornando-se figuras
essenciais para a feitura das rodas, já outros não avistávamos nunca mais. Nesses encontros eu
geralmente tocava com o violão e cantava junto com o coro. Colegas permaneciam mais nas
margens, observávamos e compúnhamos com diversos movimentos na roda a depender do
topos4, da percepção, da própria distribuição dos corpos. Eu escrevia narrativas após estes
encontros, assim como outros colegas que também tentavam pensar com o que se passava ali,
em nós.
Aos poucos, fomos criando certo território no qual havia conversas breves e longas,
músicas e danças. Interessa uma atenção ao modo mais topográfico do que psicológico que
criávamos ali, onde transitávamos a depender das relações que eram tecidas entre aqueles
corpos, gerando movimentos frente a um pedido de escuta em certo momento, a uma briga que

3
“Eu tô te explicando pra te confundir, tô te confundindo pra te esclarecer” é trecho da canção Tô, composição de
Tom Zé e Elton Medeiros, 1976.
4
A respeito da noção de topos nas proposições de Fernand Deligny, Azevedo, Henz & Rodrigues (2019, p. 113)
propõem: "definir estes modos de vida […] menos pela nomeação de um sujeito e mais pelo topos, pelo lugar
ocupado, pelos trajetos que os constituem." No mesmo sentido, segundo Miguel (2016, p. 268, tradução livre):
"Ao invés de definir o sujeito a partir de uma psicologia segundo a qual se é sujeito – ou um indivíduo incapaz de
o ser – Deligny escolhe o definir enquanto algo que opera, que funciona através e a partir de um topos."
10

surgia no meio da roda, a acordos para decidir que música seria tocada etc. A estagiária
Jacqueline, por exemplo, passou a acompanhar trajetos de alguns que viviam na região em
outros dias e horários. Havia bifurcações, entradas e saídas no mapa que, sem muita
intencionalidade, estávamos a criar. Naquele momento não percebia muito bem, mas com o
passar dos encontros a importância da construção de um território comum vai se fazendo
presente nesta pesquisa.
Este espaço-tempo da roda de música não era estável, isso é o que menos era, funcionava
um pouco ao modo de uma jangada. Criamos certa atenção coletiva aos processos, às tensões,
procurávamos perceber quando interferir para que a jangada não desabasse, buscávamos
acordos sem reter as questões, sem tentar resolvê-las ou apertar os troncos da embarcação de
tal forma que esta não pudesse mais navegar. Pensamos muito com a imagem que (DELIGNY,
2003, p.90) constrói de jangada:

Usei a imagem da jangada para evocar o que está em jogo nessa tentativa, nem que
seja para dar a ver que ela deve evitar ser sobrecarregada, sob pena de afundar ou de
virar, caso a jangada esteja mal carregada, a carga mal distribuída […] uma jangada,
sabem como é feita: há troncos de madeira ligados entre si de maneira bastante frouxa,
de modo que quando se abatem as montanhas de água, a água passa através dos
troncos afastados. Dito de outro modo: não retemos as questões. Nossa liberdade
relativa vem dessa estrutura rudimentar, e os que a conceberam assim – quero dizer,
a jangada – fizeram o melhor que puderam, mesmo que não estivessem em condições
de construir uma embarcação. Quando as questões se abatem, não cerramos fileiras –
não juntamos os troncos – para constituir uma plataforma concertada. Justo o
contrário. Só mantemos do projeto aquilo que nos liga. Vocês veem a importância
primordial dos liames e dos modos de amarração, e da distância mesma que os troncos
podem ter entre eles. É preciso que o liame seja suficientemente frouxo e que ele não
se solte.

Insisti por certo tempo na música em si mesma enquanto dispositivo, tomava-a como
liame, como modo de amarração. As canções que cantávamos ali juntos, como poderiam
proporcionar aproximações e distanciamentos entre mundos? Elas, evidentemente, também
faziam parte da trama complexa de conexões:

Fazia frio, o início da noite vinha junto das luzes que acendiam pouco a pouco.
Sentados em uma pequena roda ali na bacia do mercado, cantávamos junto de
Guilherme que tocava no violão com um toque leve sobre as cordas. A canção
ressoava pela calçada vazia:
A verdade é que você tem sangue crioulo, tem cabelo duro, sarará crioulo.
— Meu cabelo é enrolado, não duro.
11

— Caraca, essa ficou foda, ein! — diz Bruno depois de batermos palmas para
nós mesmos.
E um homem que havia chegado há pouco, com o pandeiro na mão, comenta:
— Cara, isso é terapia estética.

As canções repetiam-se nos encontros e foram tornando-se clássicos: essa é bem roda
de música, hein?!”, dizíamos quando escutávamos ou tocávamos Anunciação de Alceu
Valença em outros espaços. Entre e compondo com as experiências, deparava-me com o
conceito de ritornelo: “o ritornelo é o ritmo e a melodia territorializados, porque devindo
expressivos – e devindo expressivos porque territorializantes” (DELEUZE, 2012, p.130).
Havia algo pelo meio das palavras que me provocava. O Alexandre também não me contava
tudo, a ideia parecia justamente de deixar ruminando5 em mim tudo o que eu gostaria de saber
rapidamente, ruminar feito uma vaca que permanece com o alimento por muitas horas, sem
pressa, no meu caso por meses, anos.

1.2 Uma vida produz seus arranjos

Com um tempo largo de encontros fui me dando conta que o que mais me interessava ou
o que começava sutilmente a me interessar era o jogo de relações entre corpos que fazem saltar
singularidades, provocando arranjos e desarranjos, aproximações e distanciamentos. Arranjos
que já não diziam respeito apenas à música em si, mas a combinações sutis entre elementos que
aumentam ou diminuem nossa capacidade de afetar e ser afetado, que constituem certo território
comum oscilante, com variações a cada vez e a cada caso. A música foi servindo de pretexto6
para criação de um lugar de passagem, para pensar e sentir um campo relacional que extrapola
as delimitações do tempo cronológico. Ainda acerca do ritornelo, que começa a dar sinais do
que poderíamos conceber enquanto situações onde há algum contágio, diz (DELEUZE, 2012,
p. 125):

5
Acerca da ideia de ruminar, diz (NIETZSCHE, 2009, p. 14): “faz-se preciso algo que precisamente em nossos
dias está bem esquecido – e que exigirá tempo […] – para o qual é imprescindível ser quase uma vaca e não um
homem moderno: o ruminar…”
6
Há certa noção interessante de pretexto, a qual ecoa com as experiências de Fernand Deligny, no que (AZEVEDO,
A., 2018, p.173) diz: “O território está para ser construído a cada experiência, é nele que nos constituímos como
modos de pensar e agir. Nesse sentido, todo o projeto pensado – seja o projeto terapêutico singular como estratégia
de cuidado em saúde, seja o projeto dos módulos curriculares que garante determinada formação profissional, seja
o projeto de pesquisa com seus objetivos de identificar as redes de cuidado em saúde no município de Santos –
pode ser um pretexto para pesquisar, para descobrir circunstâncias, inventar tentativas frágeis. A própria escrita
deste texto se faz uma tentativa de tecer algumas linhas de um território acadêmico procurando suas brechas.”
12

“Entre a noite e o dia, entre o que é construído e o que cresce naturalmente, entre as
mutações do inorgânico ao orgânico, da planta ao animal, do animal à espécie humana,
sem que esta série seja uma progressão…” É nesse entre-dois que o caos devém ritmo,
não necessariamente, mas tem uma chance de devir ritmo. O caos não é o contrário
do ritmo, é antes o meio de todos os meios. Há ritmo desde que haja passagem
transcodificada de um para outro meio, comunicação de meios, coordenação de
espaços-tempos heterogêneos.

Algum ritmo se cria a partir do momento que dois ou mais elementos, fragmentos de
um todo aberto, partes do caos, entram em relação. Ritmos que podem variar de infinitas
maneiras e que dizem mais das velocidades e lentidões que operam a cada encontro do que de
uma diversidade de gêneros musicais. Na roda de música, quais combinações provocavam
alegrias, fazendo com que mundos pudessem se expressar em gestos e vozes?
Recordo dos dias chuvosos em que ninguém parecia estar muito a fim:

— Ai… será que vamos hoje? A chuva não passa. — Seguíamos pela rua um
pouco cabisbaixos, passos lentos, até chegar no mercado. Avistávamos alguns
conhecidos que dormiam na calçada, iam chegando lentamente até nós. Aos poucos
íamos mexendo, batucada de lá e cá. A Jacque com seu chocalho amarrado na
canela, dava saltinhos coordenados, Florêncio balançava um chocalho que chamava
de seu: o pote de aspirinas preenchido de grãos de arroz. Quando voltávamos para
a universidade depois de muitas saideiras:
— Caraca… o que foi hoje, hein? Eu tô me sentindo tão cansada, mas um
cansaço intenso. — dizia Rita.

Também sentíamos certas combinações que davam impressão de peso e sobrecarga:

— Hoje parece que vocês tocaram para uma plateia, foi diferente, distante. —
disse a professora Simone enquanto voltávamos para a universidade.

Os encontros em rodas de música não permaneciam ali, provocavam deslocamentos. O


que são experiências como essas, em que alguma marca perdura, passando a transitar por outras
vias, a atravessar-nos em outras situações? Nesse sentido, há partes do percurso que não são tão
conscientes em processos de pesquisa, vida e aprendizagem; partes que, justamente, interessam
ser investigadas neste trabalho.
13

Em formação, somos tomados por uma pressa em saber por onde seguir, com certa
ilusão de que um aperfeiçoado arcabouço teórico-conceitual poderá dar conta das inúmeras
perguntas que fazemos acerca de como agir e de como portar-se. Todavia, uma dimensão mais
intensiva dos encontros vai criando entradas e saídas, afinando e desafinando caminhos e sem
nem percebermos algumas experiências vão nos fazendo permanecer em certos espaços,
caminhar por determinados percursos, constituir atenções e presenças. O que é e como opera
esta faísca que nos faz chorar ao ouvir alguém falar, ao ouvir uma música, ou que pica o corpo
causando insônia, que nos permite apreender um clima, permanecer em algum silêncio
compartilhado e desacelerado, que salta em nós, provocando sensações inusitadas. Luiz Orlandi
(2019, p. 230 e 235) diz, acerca dos questionamentos vitais presentes em processos de
aprendizagem e vida:

[…] a gente não consegue isolar a vida do próprio campo problemático em que ela se
contorce na imanência do seu enrosco com o resto […] a atenção estudiosa volta-se
cada vez mais para uma espécie de detecção de conexões mínimas capazes de efeitos
potentes ao passar pelos nexos que tecem problemas. É nesse sentido que se
compreende as constantes retomadas do problema do nexo entre o dinamismo de um
clandestino questionamento vital e o processamento de um aprendizado, problema ao
qual a consciência tem, a rigor, um limitado acesso, como foi suficientemente
acentuado. O sinal de que a consciência tem certo acesso, embora limitado, a esse
dinamismo clandestino, se evidencia na expressão do seu susto: não sei como aprendi
tal coisa, não sei como consegui chorar esse choro que me fez bem…

Uma atenção aos movimentos na formação foi constituindo-se e, por vezes, ainda é
difícil dar palavra à sensação de habitar este campo de circulação criado pelos encontros, menos
individual e composto por sucessivas conexões com tempos e larguras diversas. Questiono-me:
que caldo é este que forma em nós, que nos constitui em termos de práticas e gestos, jeitos de
ver e escutar? Um caldo que vez ou outra sentimos frio ou morno, onde é difícil achar algo que
nos ligue e em outros momentos sentimos quente, onde sentimos confiança em afirmar-nos.
Sempre oscilante, pouco coeso, com variações de temperatura em um mesmo encontro.
Bem, você pode se perguntar: mas de que maneira as rodas de música não permaneciam
ali? A dimensão dos encontros escapa do tempo extensivo, aquele que podemos contar no
relógio, e concentra-se em sucessivas passagens intensivas, mudanças de estado e durações que
se alargam em nós. Com certo encontro que aumenta ou diminui a capacidade de um corpo de
afetar e ser afetado, este mesmo corpo (não apenas individual e humano) continua sendo afetado
e afetando outros corpos de diferentes e ilimitadas maneiras.
Um campo de formação em múltiplas ligações é construído a partir dos rastros que
carregamos no corpo, daquilo que nos passa e que faz parte de um conjunto, não tanto de
14

qualidades e predicados de cada indivíduo, mas de elementos singulares7. Em meio a tais


condições, cada um cria seu caminho? Talvez seja mais interessante pensar que cada um
compõe com certos campos relacionais e, assim, participa, faz parte. De que maneira um
processo formativo permite que certo corpo encontre aquilo que o potencializa, que possa fazer
aliança com outros saberes, com histórias, com as marcas que carrega?8 Há uma dose de acaso
naquilo que vai acontecendo em nós e nos afetando, ao mesmo tempo que vão ocorrendo sutis
seleções afetivas a depender de aproximarmo-nos do que nos fortalece ou nos decompõe.
Acerca deste problema em Espinosa (DELEUZE, 2019, p.188):, diz

É toda uma espécie de aprendizagem para avaliar ou ter os signos […] organizar ou
encontrar os signos me dizem um pouco quais relações me convêm e quais relações
não me convêm. É preciso tentar, é preciso experimentar. E minha experiência, a mim,
eu não posso mesmo transmitir porque pode ser que isto não convenha a outro. A
saber, é como uma espécie de apalpadelas para que cada um descubra ao mesmo
tempo o que ama e o que suporta. Bom, é um pouco como aquilo que vimos quando
tomamos remédios: é necessário encontrar as doses, seus truques, é necessário fazer
seleções, e o que não é prescrição do médico que baste. Ela lhes servirá. Há alguma
coisa que ultrapassa uma simples ciência, ou uma simples aplicação da ciência. É
necessário encontrar seu truque, é como a aprendizagem de uma música, encontrar ao
mesmo tempo o que lhes convém, o que vocês são capazes de fazer. É isto já o que
Spinoza chamará, e este será o primeiro aspecto da razão, uma espécie de duplo
aspecto selecionar-compor.

A famosa pergunta que Espinosa evocou e que até hoje nos provoca: o que pode um
corpo? pode ajudar nesses exercícios de apalpadelas e tateamentos. Para isso talvez seja preciso
passar por um tempo mais lento de modo a não espantar o que vem e precisamente atento às
reações e ativações do corpo. São raras as vezes que entramos em contato com esta pergunta já
que um excesso produtivista – que se enreda nos sucessivos entrecruzamentos das não mais
impermeáveis dimensões do trabalho, da clínica, das relações afetivas, do lazer, da relação com

7
Acerca dos embates entre o singular e o individual, diz (ZOURABICHVILI, 2004, p.54): “em geral, o indivíduo
supõe a convergência de certo número de singularidades, determinando uma condição de fechamento sob a qual
se define uma identidade: o fato de que certos predicados sejam escolhidos implica que outros sejam excluídos.
[…] Ora, o sentido é por si mesmo indiferente à predicação ("verdejar" é um acontecimento como tal, antes de se
tornar a propriedade possível de uma coisa, "ser verde"); por conseguinte, comunica-se de direito com qualquer
outro acontecimento, independentemente da regra de convergência que o apropria a um eventual sujeito. O plano
onde se produz o sentido é assim povoado de singularidades "nômades", ao mesmo tempo inatribuíveis e não
hierarquizadas, constituindo puros acontecimentos. […] podem igualmente ser nomeadas "intensidades", "afectos"
[…]; sua distribuição corresponde portanto ao mapa afetivo de um agenciamento."
8
Com relação aos processos de aproximação à potência vital de um corpo, àquilo que ele é capaz, diz
(AZEVEDO, 2013, p.60-61): "Quando aumentamos nossa capacidade de afetar e sermos afetados de muitas
maneiras, tornamo- nos capazes de ajudar o outro a traçar seu mapa afetivo. [...] o traçado do mapa vai delineando
como uma potência atual está preenchida e o quanto o indivíduo é capaz de aprender a respeito do que pode
experimentando novos territórios existenciais."
15

o tempo etc. – costuma caracterizar processos contemporâneos de vida e formação, impedindo


muitas vezes que nos aproximemos das variações intensivas que aumentam ou diminuem nossa
potência de agir (PELBART, 2010, p.2).

Às vezes sinto uma tremedeira, as bochechas quentes, como naquele momento


em que alguns olhos se entreolharam, a professora Adriana se aproximou da câmera
e disse:
— E olhem isso aqui agora… isso aqui é lindo! Bem, eu acho lindo, porque
vejam bem: só é possível pensar quando a gente sente algo, sente. Quando não nos
sentimos separados deste campo comum, quando sentimos que somos parte. É aí
que a gente tá dentro.

Certas alianças afetivas com pensamentos, professores e grupos foram possibilitando


que eu arriscasse algumas palavras para dar corpo à ideia de um campo imanente de formação,
de uma formação em devir, em passagens e atravessamentos de um estado a outro. Somos
habitados por uma multidão de vozes e é sempre junto dela que dizemos, pensamos e sentimos,
até mesmo quando não fazemos sequer ideia disto.

É por isso que há sempre muitos movimentos infinitos presos uns nos outros, dobrados
uns nos outros, na medida em que o retorno de um relança um outro instantaneamente,
de tal maneira que o plano de imanência não para de se tecer, gigantesco tear
(DELEUZE, 2010, p. 49).

1.3 Desafinando o coro e afinando relações

Com o início de 2020 e o recolhimento dos corpos pelo isolamento social, algumas
problemáticas tornaram-se escancaradas. Havíamos perdido os territórios de convívio e
contágio, nos encontrávamos em situações de solidão, com medo da morte e da contaminação,
é preciso reforçar a imunidade, é preciso reforçar a imunidade9, repetíamos constantemente.

9
É evidente que o isolamento social se configurou como importante estratégia de combate à pandemia de Covid-
19, ao mesmo tempo em que é possível analisar criticamente a maneira como foi realizado ao implicar-se muito
pouco com dimensões sociais de classe, por exemplo, e ao reforçar políticas da dita liberdade individual onde o
corpo, cada vez mais ensimesmado e reduzido ao mínimo biológico, protege-se e empreende-se por conta própria.
Acerca desta problemática, diz (PRECIADO, 2020, p.8): “A COVID-19 deslocou as políticas da fronteira que
estavam tendo lugar no território nacional ou no superterritório europeu até o nível do corpo individual. O corpo,
seu corpo individual, como espaço vivo e como trama de poder, como centro de produção e consumo de energia,
se converteu no novo território em que as agressivas políticas da fronteira que viemos desenhando e ensaiando
durante anos se expressam agora em forma de barreira e guerra ao vírus.”
16

Sensação de nostalgia pelas marcas em nós que naquele momento, aparentemente, poderíamos
acessar apenas pela memória. Rompia-se o chão que estabiliza e sustenta. Não havia mais
cheiros, ruídos e paisagens comuns. Nas primeiras reuniões online falávamos muito:
— Quando será que vai acabar?
Repetição, sensação de ir, vir, ir e vir, cada dia de um jeito, baixo, baixos, um alto bem
minúsculo e ridículo, ínfimo.
— Quando será?
— Quando será que vamos poder se abraçar?
Encontros com pouca textura, nem ásperos, nem macios, lisos. Corpos soltos e
solitários fazendo de tudo para se sentirem um pouco mais próximos. Vivemos certo vacúolo
no tempo e espaço e nesse contexto sentia enorme dificuldade em criar e participar de algum
espaço-tempo. Sutis espessuras10 instalavam-se brevemente dentro das duas horas de certos
encontros virtuais.


Consegue abrir o microfone após algumas tentativas:
— Hoje foi impossível pra mim. Tenho muito medo de morrer.
Silêncios e choros compartilhados. Com este tempo muito bem estabelecido não
circulamos antes nem depois da aula, ou seja, não há corredor, nem cafezinho, nem bar, nem
rua, nem muito papo furado. Por onde se passa, então, a vida? Que dimensão é esta que cria
espessuras em um processo de formação e que vai mostrando-se de suma importância à
construção de experiências vivas?
Talvez seja nesse ponto em que se apresenta a ambiência dos encontros, dos entretempos
e entretantos que quando menos esperamos, nos surpreendem pela pequena diferença que
instalam. Encontramos alguém, um cheiro, uma cor, um barulho, um gosto, não entendemos
muito bem de que maneira, mas aquele conjunto de elementos nos afeta e pode provocar um
deslocamento, uma mudança de lugar. Acerca das conexões intermináveis que nos constituem,
Suely Rolnik (1993, p.3) diz:

10
Em A Espessura do Encontro, Luis Eduardo Aragon (2003), percorre delicadas espessuras de um encontro em
um consultório médico que provocam desvios em certas posições pré-estabelecidas de saber-poder: “Sob uma
determinada perspectiva, as questões e comunicações colocadas no momento do encontro, asseguram o papel
social dos personagens. Médico e paciente. Apesar disto, há ao mesmo tempo um atravessamento de signos que
tem limites mais imprecisos, e que mergulha o encontro em uma outra área de sentido. Este atravessamento supera
a capacidade verbal de comunicação por sua complexidade e/ou pela impropriedade das palavras em fazê-lo. É um
campo predominantemente regido pelo afeto” (ARAGON, 2003, p. 17).
17

E assim vamos nos criando, engendrados por pontos de vista que não são nossos
enquanto sujeitos, mas das marcas, daquilo em nós que se produz nas incessantes
conexões que vamos fazendo. Em outras palavras, o sujeito engendra- se no devir:
não é ele quem conduz, mas sim as marcas. O que o sujeito pode, é deixar-se estranhar
pelas marcas que se fazem em seu corpo, é tentar criar sentido que permita sua
existencialização – e quanto mais consegue fazê-lo, provavelmente maior é o grau de
potência com que a vida se afirma em sua existência.

Habitamos um campo relacional de contágio, ou seja, não estamos sós no mundo, criamos
codependências e coincidências a todo tempo entre corpos em seu sentido mais amplo e não
apenas humano. Ao mesmo tempo, apesar de já estarmos compondo, sem sequer dar-nos conta,
este campo relacional também de antemão e para além das noções de bem e de mal, ou seja,
sem querer dizer que esse “pertencimento” garanta bons encontros, não parece possível pensar
uma formação que se dê na imanência de forma contínua, dada e final. No entanto, talvez
possamos ativar e estar à espreita de entretempos intensivos em que experienciamos algo que
nos faça sentir parte e constituintes deste plano comum de pensamento e ação.
Há políticas que engendram diversas formações. O funcionamento neoliberal dominante
constituinte de um suposto homem livre e independente que se forma e se cuida sozinho incide
em nós e faz com que muitas vezes não nos atentemos aos intervalos e buracos em uma
formação “completa”, àquilo que se passa entre uma tarefa e outra. Certos processos de criação
singular e em rede inserem-se nesta teia, desatinando o curso linear do dito progresso individual
e provocando interferências ético-clínico-estético-políticas. Este palavrão pode ajudar na
medida em que interferências de tais ordens aparecem vivas no decorrer do trabalho.
Uma vez que os caminhos se expandiam, e, considerando a possibilidade de um pesquisar
cartográfico11, é importante apresentar outros itinerários que foram compondo os trajetos da
pesquisa. Escrevo também desde um lugar que muito me acompanhou no decurso da graduação,
que se compreende enquanto um dos eixos comuns do Instituto Saúde e Sociedade: o Eixo
Trabalho em Saúde, mais conhecido como TS12. Ao longo de três anos, o TS nos faz passar por

11
O “método” da cartografia prima pelo caminhar e constituir uma meta – há uma inversão, ao invés de meta-
hodos, um rigoroso hódos-meta –, ou seja, a orientação da pesquisa se dá no trajeto, não lança mão de regras
prontas ou prescrições. A ênfase recai sobre o traçado das metas no decorrer do percurso considerando os efeitos
do próprio processo de pesquisar. Passos e Kastrup (2013) esclarecem ainda que a cartografia propõe outra relação
sujeito-objeto em pesquisa, rejeitando a ideia positivista de que o pesquisador vá coletar dados que estariam lá
para serem descobertos e sim, que ocorre uma produção de dados nos encontros à medida em que a pesquisa
acontece.
12
O projeto político pedagógico do Instituto Saúde e Sociedade do campus Baixada Santista da Universidade
Federal de São Paulo aposta em uma formação interdisciplinar e interprofissional composta por eixos específicos
a cada curso: psicologia, nutrição, fisioterapia, terapia ocupacional, educação física e serviço social, e por eixos
comuns aos diferentes cursos que são: Eixo Trabalho em Saúde (TS), Eixo O Ser Humano em sua Dimensão
Biológica (BIO) e Eixo O Ser Humano e Sua Inserção Social (IS).
18

diferentes módulos que nos aproximam de contextos e conceitos referentes ao campo da saúde
coletiva e, principalmente, de diversos territórios e modos de vida.
Neste contexto de formação, convivemos com estudantes e professores vindos de outros
cursos da área da saúde e a proposta é sempre que possamos criar diálogos entre diferentes
saberes e mais precisamente realidades. Não é sempre, contudo, que se cria um espaço comum
nesses casos; tampouco há garantias, apesar do projeto pensado interdisciplinar e
interprofissional. Mas em certos momentos, com os pretextos que tais dimensões podem criar,
ultrapassamos-as e esquecemos brevemente quem é quem é, de que curso falamos, qual é nossa
“referência”. Há algo que produz furos nos muitos "já sabidos", fazendo saltar um encontro
entre elementos com menos nomeações, que passa por intensidades: simpatias, diferenças,
partilhas.

— Ah, pera, qual de vocês é a psicóloga mesmo? — dona Vera pergunta depois de
várias semanas de visitas que minha colega de fisioterapia e eu estávamos fazendo em
sua casa.
— Sou eu, dona Vera.
— Me confundi…
— Ah, algumas pessoas até acham que eu sou da psicologia também, ou da terapia
ocupacional… — responde Giovana, sorrindo.
E:
— De qual curso é aquela professora? Ela é mesmo de nutri? Sempre achei que fosse
de terapia ocupacional, não sei porque.
E:
— Luana, de que curso você é mesmo? — pergunto a uma monitora da TS com quem
convivo e trabalho junto há cerca de um ano.
E:
— Eu dei aula pra uma moça um semestre inteiro e não sabia de que curso ela era…
imaginei que fosse de psicologia, era de educação física. — diz uma professora em um
encontro da universidade.

Em alguns momentos, pouco importa a que curso pertencemos. Não se trata apenas,
portanto, de uma somatória de especialidades para tratar de um caso, mas de conversas e
19

composições entre mundos.13 Este relativo esquecimento requer um enorme rigor, pois
relaciona-se à importante camada de um processo formativo que vai além da aquisição de
saberes teóricos e técnicos: a criação de certo corpo ético e político que se forma através de
sutis pactuações e alianças. Ao colocar em suspensão temporária as nomeações de disciplina e
profissão ou ao menos não as antepor aos encontros, é possível conceber e olhar para uma
formação que se dá em rede, na qual uma vida múltipla pode afirmar-se em sua potência de agir
e pensar. Acerca de uma concepção de vida que acontece em relação, Azevedo e Sanches
(2020,
p. 99) dizem:

Uma vida, em seus aspectos orgânicos e inorgânicos, não é uma unidade isolada, mas
relações, que por sua vez envolvem composições e decomposições, maior ou menor
expressão de potência, variações afetivas.

A expansão dos trajetos é acompanhada de certo campo problemático que vai se abrindo
a partir daquilo que me força a pensar14; com isso algumas narrativas vão integrando o trabalho.
Junto a elas e com a intenção de percorrer outras espessuras em/na formação, algumas
provocações foram sendo construídas a partir de indagações que fazíamos em orientações:
como estão os corpos neste período de formação à distância? Muitas vezes de forma apressada,
eu pensava: não há corpo e por isso não se pode pensar. Entretanto, não é tão fácil solucionar
esta questão criando dicotomias rápidas entre o presencial e o virtual, entre a presença ou não
de corpo. Sempre há corpo, a questão talvez seja: que políticas passam por este corpo e
enunciam certo modo de vida e formação e, ao mesmo tempo, quais modos de existência
necessitam de certo corpo para se perpetuar?
As perguntas implicam tensionamentos entre um corpo reduzido ao mínimo biológico,
onde a vida se alinha à busca incessante da prometida completude e aperfeiçoamento constante,
colando rapidamente no consumismo de lives, matchs, conhecimentos, informações de como
relacionar-se, comer, ler, beber etc. e aquele que se permite abrir desaceleradamente, em fendas
pelas quais alguns fluxos vitais podem, enfim, passar. Não nos esqueçamos que nunca há apenas

13
Talvez seja interessante pensar em termos de uma formação entreprofissional. Acerca dos problemas que
envolvem este campo, Henz, Capozzolo e Casetto (2020, p.249) dizem: “[…] cada profissional é uma espécie de
síntese aberta, singular, de aprendizagens teórico-técnicas, história, experiências, crenças, posições políticas etc.
Isto faz que uma equipe de saúde não se componha somente de diversas áreas profissionais, mas de mundos
multifacetados de visão. Esta multiplicidade de facetas produz possibilidades de estranhamento, rejeição e
intolerância, mas também de simpatias e alianças em aspectos que não os conceituais”.
14
Conforme Deleuze (1988, p. 230): “Não contemos com o pensamento para fundar a necessidade relativa do que
ele pensa; contemos, ao contrário, com a contingência de um encontro com aquilo que força a pensar, a fim de
elevar e instalar a necessidade absoluta de um ato de pensar, de uma paixão de pensar”.
20

uma política em questão, mas um jogo complexo de vais e vens, instalações e desinstalações,
forças em combate e que também podem coexistir.15
Há algo do momento que vivemos que parece enunciar e evidenciar questões de
formação que vão saltando pelas dobras de um cotidiano ultra atarefado. Gritam algumas
perguntas: por onde passa certa formação intensiva? Com o que têm se conectado e que políticas
vêm incidindo nestes corpos em formação? Em quais momentos nos tornamos mais permeáveis,
lembramo-nos que sentimos e, consequentemente, podemos pensar? Como podem pensar
corpos que se vêm muitas vezes enclausurados e com uma superfície de contato restrita? Acerca
da relação entre corpo e mente, lemos na proposição 14 da Ética II: "A mente humana é capaz
de perceber muitas coisas, e é tanto mais capaz quanto maior for o número de maneiras pelas
quais seu corpo pode ser arranjado” (SPINOZA, 2008, p. 107).
Para além das suposições e indagações, começou a ser espalhado o seguinte dispositivo
de sondagem:
“Te convido para me enviar um áudio… pra uma conversa fiada, sem pressa alguma ou
necessidade de final, sem finalidade. Se puder me conte um causo, uma situação banal,
cotidiana, aquele naco de vida que te deu um susto, fazendo chegar a uma sensação inesperada,
de quando chorou, riu… me conte um momento repetitivo e/ou um momento em que sentiu que
algo saiu de órbita e que, talvez, você pudesse pensar que nem é tão importante assim. Um
gosto no café da manhã. Um rosto que aparece entre, nas telas. Uma música que faz coçar a
garganta ou os pés. Vontade de dançar, cantarolar? Tem sentido algum arrepio? O que te faz
ficar em alguns espaços e o que te faz fugir de outros? Por onde você caminha? Pés tensionados,
gastos, balançando nas cadeiras, impacientes? Com o que você tem se relacionado? Me conte
com alguns detalhes, alguma ou algumas dessas situações.”
Aposto no caráter anônimo dos relatos que foram ecoando a partir das provocações
acima, o qual não anula seus traços singulares, mas, justamente, ajuda a construir um
pensamento onde importa menos a pessoalidade das situações e mais as modulações e
composições pelas quais passa um corpo que sempre participa de determinado campo

15
Um texto não tão recente no tempo linear ecoa com os eventos que vêm se sucedendo no contemporâneo e,
mais especificamente, no contexto de pandemia em que vemos operando uma paradoxal aceleração sem freios.
Acerca de políticas implicadas nas relações que tecemos com o tempo, diz (PELBART, 1993, p.34): “Uma
cronopolítica está em curso, cujos desdobramentos ainda são desconhecidos, mas que implica necessariamente no
declínio de uma profundidade de campo nas nossas atividades as mais cotidianas. Um achatamento temporal que
proporciona um presente eterno, sem história para trás nem para frente, sem passado nem futuro. Presente sem
espessura, ilusão da imortalidade que ignora o começo e o fim, a morte e o imprevisto, que só integra o
desconhecido enquanto probabilidade calculável. O paradoxo é que a desmaterialização provocada pela velocidade
absoluta equivale a uma inércia absoluta. Estranha equação em que coincidem velocidade máxima e imobilidade
total.”
21

relacional. O conjunto das cenas enuncia certos modos de vida sendo afetados por movimentos
imóveis e de paralisação, contínuos, barulhentos, silenciosos, sutilmente disruptivos, ou seja,
diversos, e provoca vizinhanças com/entre cotidianos que participam de diferentes territórios –
em classes, raças, gêneros, práticas e alianças – e se encontram em pontos de divergência e
convergência.
Trata-se de um recorte que contém realidades – o qual engloba principalmente
estudantes da graduação e mestrado não apenas da Unifesp – mas que não dá conta da totalidade
das experiências que vêm ocorrendo no contexto que vivemos. Trago esta ressalva ao mesmo
tempo que reafirmo a condição sempre limitante de uma pesquisa que expressa experiências
reais com efeitos reais16, nos dá pistas no traçar de determinados caminhos, nos ajuda a pensar
e, compondo com outras investigações, pode contribuir com movimentações e transformações.
É igualmente importante ressaltar que não se sabe o que pode vir quando se lança tais
provocações: um caso singular, um início de conversa, uma tentativa de resumo e síntese dos
movimentos que operam… lança-se uma garrafa ao mar17. Com a invasão dos relatos que vão
avizinhando-se pelos entremeios do trabalho e, talvez, fazendo fugir um mundo, busco dar
vivacidade à dimensão investigativa de uma formação na imanência. Foge-se um mundo por
situações com pouca luz e êxito que caminham deixando a poeira subir.

Fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do
imaginário. É também fazer fugir, não necessariamente os outros, mas fazer alguma
coisa fugir, fazer um sistema vazar como se fura um cano. […] O grande erro, o único
erro, seria acreditar que uma linha de fuga consiste em fugir da vida; a fuga para o
imaginário ou para a arte. Fugir, porém, ao contrário, é produzir algo real, criar vida
[…] Em geral, é em um mesmo falso movimento que a vida é reduzida a alguma coisa
de pessoal e que a obra deve encontrar seu fim em si mesma, seja como obra total,
seja como obra em andamento, e que remete sempre a uma escritura da escritura
(DELEUZE & PARNET, p.30, 1998).

Qual é o espaço que temos para produzir algo real, criar vida, entrar em contato com a
própria potência, fazer rearranjos e recuos, perceber o que fortalece e enfraquece? Como não
passar por cima do inacabado, das fragilidades, dos enjoos e desvios? Uma vez que a formação

16
Esta questão foi tratada por James (1991) em Variedades da Experiência Religiosa: Um Estudo Sobre a Natureza
Humana, onde propõe que pensemos as coisas mais pelos efeitos, pelos frutos (há uma experiência real de Deus
na cultura, existe, portanto, é real) do que pela "raiz". Tudo é real uma vez que expressa experiências reais,
precisamos pensar os efeitos ético-clínico-políticos a cada vez e a cada caso.
17
Também não seria o intuito saber a priori o que viria com os relatos, mas analisar os efeitos das provocações e
com elas compor uma colagem. Acerca de como portamo-nos diante das experiências, François Zourabichvili
(2004, p. 29) diz: “nunca podemos falar antecipadamente para toda a experiência – a menos que lhe falte sua
essencial variação, sua inerente singularidade e lhe apliquemos um discurso excessivamente genérico a fim de não
deixar o conceito e a coisa numa relação de indiferença mútua.”
22

não se separa da vida, interessa lançar atenção aos cotidianos que se relacionam diretamente
com certas éticas que construímos em conjunto. É também com isso que nos damos conta que
um pensamento não parte exatamente de um autor criador ou lugar fixo, mas de encontros que
estão a todo tempo atualizando-o, somando novas linhas em sensações e ideias.
Os pequenos e corriqueiros gestos enunciam sutis acontecimentos que pouco se
relacionam com grandes feitos da história da humanidade, mas com movimentações pelas quais
sente-se que já não se é o mesmo. A eclosão de sensibilidades pode se dar em instantes – não
necessariamente instantâneos – em que algo sai de órbita suscitando um estado inusitado, pelo
qual não se passou até então, ainda que a mesma ação já tenha se repetido inúmeras vezes. Em
um encontro de roda de música na rua, e, talvez, em um passeio de bicicleta até o mercado:

"Depois de passar umas duas semanas em casa, que eu consegui juntar uma boa
quantidade de alimento pra ficar mais quietinha, eu tive que ir no mercado de novo,
e peguei minha bicicleta pra ir… e era uma semana que eu tava me sentindo muito
esquisita, não sei dizer, estressada… um pouco em pânico de estar vivendo essas
coisas todas. Daí eu saí e senti aquela lufada de ar na cara, no peito, foi uma
sensação muito doida, parecia que as baterias tinham sido recarregadas. Apreciar
de estar podendo respirar ainda…" (voz das alianças)

Após uma não tão breve apresentação dos problemas que movem os itinerários desta
investigação, deixo-os com algumas cenas em narrativas de formação e relatos, os quais chamo
de vozes das alianças em ressonância com a ideia de alianças afetivas apresentada por
(KRENAK, 2016, p. 172), enredados a tentativas de análises que não buscarão explicar as
experiências, mas compô-las e fazer com que permaneçam ressoando em sempre atualizáveis
provocações.
Boa parte do plano conceitual permanece, sobretudo, em notas de rodapé, sendo que ora
as articulações entre conceitos e experiências conseguiram se modelar, ora foram pinceladas e
continuam em curso após um suposto fim deste trabalho. Talvez seja uma problemática que
envolva o campo das pesquisas em geral, em que se leva um tempo para que se possa dar liga,
incorporar uma matéria composta de experiências em afetos e ideias. Ao procurar fazer um
exercício de costura entre alguns conceitos e o que é vivido, nem sempre há tempo suficiente
para tecer determinados planos conceituais que em algum momento fazem parte das nuvens de
virtuais que chegam em nós.
23

Considerando, portanto, certas insuficiências sempre inerentes às pesquisas que


igualmente só existem porque estão em relação com outras, partimos às situações com as quais
tentaremos pensar alguns problemas que, seguramente, não se esgotam aqui.
24

2. OS VAIS E VENS DA MARÉ

2.1 Quem me navega18

"Teve uma experiência que mudou a órbita, tirou da órbita, que foi quando eu tava
andando de barco, há uns dois meses atrás e nesse último final de semana. Eu tenho
problema de estômago desde muito pequena e aos doze anos eu tive que fazer uma
cirurgia […] e desde que eu fiz eu nunca mais vomitei e o médico depois da cirurgia
contou, né, pra mim, pra minha família, que eu não vomitaria mais, então eu teria que
tomar muito cuidado com o quê eu comia, se caso eu tivesse uma intoxicação
alimentar e precisasse provocar o vômito ia ser muito difícil eu vomitar e eu tive
algumas situações que eu precisei vomitar e realmente, de fato, eu não consegui. E
estava lá no barco, tentando focar no horizonte pra não passar mal, não marear, mas
aí fiquei mareada e de súbito, muito inesperadamente, tava conversando e de repente
eu senti um movimento muito forte assim e eu me debrucei sobre o barco e vomitei.
Assim, sem pensar, sem perceber antes. […] E aí nessa segunda vez a mesma cena,
sem aviso, eu tava já vomitando e foram duas experiências muito novas porque eu
tinha esse aviso do médico que “eu nunca mais ia vomitar” e eu vomitei." (voz das
alianças)

Um simples episódio cotidiano com pouca fama faz escapar um encontro entre corpos,
neste caso entre o aparelho digestivo e o mar. Pode parecer sem cabimento a imagem, mas são
justamente sutis experiências que pouco cabem em projetos prescritos formativos que nos
ajudam a pensar processos de formação menos determinados por um “eu”19 com limites bem
estabelecidos e que comanda os caminhos que serão traçados por sua própria força de vontade,
e mais por acasos e encontros que vão tecendo uma trama complexa de relações. Não se
despreza a dimensão organizativa de pesquisas, aprendizados e projetos político-pedagógicos,
já que são também fundamentais à garantia de determinado espaço institucional pelo qual

18
O título remete ao trecho "não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar" da canção Timoneiro de
composição de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho em 1993.
19
"Quem me navega" também ressoa com a questão "Quem?", posta por Nietzsche, que coloca em xeque a questão
metafísica "o que é". Vemos em Deleuze (2016, p 188.): "[...] é um dos caráteres mais originais da filosofia de
Nietzsche, ter transformado a questão “o que é...?” em “quem é...?”. Por exemplo, dada uma proposição, quem é
capaz de enunciá-la? Antes é preciso se desfazer de qualquer referência “personalista”. “Aquele que...” não remete
a um indivíduo, a uma pessoa, mas sim a um acontecimento, ou seja, às forças em entrelace numa proposição ou
num fenômeno [...]".
25

lutamos, mas neste trabalho lança-se atenção ao que acaba, justamente, por fugir desta
delimitação.
Um encontro com o mar provoca movimentos inusitados no corpo que sente uma
sensação que até então não poderia ser concebida. O vômito no barco desloca a certeza que o
médico havia lhe dado anos atrás, certeza que não pertence a ninguém, já que estas estão
atravessando-nos, são forças – dentre elas a hegemonia do saber biomédico – que sustentam
certos modos de operar no contemporâneo. Entre o que é certo e vem caducando, importa
perceber onde se dão experiências sem aviso e, paradoxalmente, instalá-las, o que não é tarefa
simples já que ao mesmo tempo que não se dão espontaneamente, também não criam-se a partir
de receitas pré-estabelecidas. As experiências sem aviso prévio podem se dar na rua, em casa,
em uma aula, em um sonho, ou seja, em qualquer lugar, mas talvez não seja em qualquer
momento que nos deixamos afetar por elas.

As semanas de novembro de 2019 andavam chuvosas e frias, não parecia


Santos se aproximando do verão. Decidimos ir até a bacia do mercado, mesmo
debaixo de uma garoa fina.
Esta seria nossa última roda do ano, fato que contribuiu para que fôssemos
mesmo assim ao encontro de alguns que por ali quase sempre estão, como Erasmo
Carlos que, segundo Marcelo, já estava nos esperando. Eu me sentia cansada, com
o corpo fechado como algumas vezes sinto. Quando chegamos, permaneci debaixo
da marquise, um pouco quieta, esperávamos que a chuva passasse.
Um homem dormia no chão, perto de nós. Jacque olhou pelos cantos e
averiguou:
— Esse é o Bruno? Acho que é… — ao ouvir seu nome, ele acorda meio
desnorteado, mas rapidamente se levanta. Parecia que tinha dormido por dias.
— Sou eu mesmo…
— É o vô! — os dois se abraçam.
Ele pega uma flauta doce da sacola e toca uma melodia bonita, muito
conhecida. É tão conhecida que seu nome me passa despercebido, me foge à escrita.
Algo interessante acontece sob a marquise, alguns vão se achegando e de repente
todos os instrumentos estão fora das sacolas. Eu balançava um chocalho e
observava.
— Ó, cês que me acordaram hein, vamos fazer música então. — diz Bruno.
26

A chuva fina continuava, tão fina que só conseguia percebê-la quando olhava
para a luz cansada e amarelada que saía do poste na calçada. Percebi Sérgio que já
chegou pulando, quase um porta-estandarte, ele puxava alegrias. Cantávamos e nos
sacudíamos.
Corpo colado de suor e garoa. Marcelo de repente chega perto do portão do
mercado e faz uma batucada que ecoa por todos. Tremem os portões.

Há algo nesta experiência de corpos colados de suor sob a garoa fina que segue
ressoando certa falta de aviso prévio, desde em relação a quem estaria ali nos esperando até à
chegada súbita de alguém, que apesar de podermos prever que viria, não sabíamos de que jeito:
sorridente e saltitante, curvando-se e sério; os encontros provocam variações de correnteza,
temperatura e ritmo. Há uma tentativa de relacionar-se com determinado encontro, com as
singularidades que aparecem e não querer domá-lo. Não sou tanto eu quem me navego ou
navego esta situação e mais os encontros que me navegam, que pulsam em mim. Não se trata,
entretanto, de uma experimentação sem implicação – apesar de sempre se estar implicado com
algo – mas pelo contrário de um trabalho atento e rigoroso; é preciso tempo e espaço para que
seja possível afetar e se deixar afetar.
Não se é simplesmente levado pelo mar, completamente ao acaso, mas navega-se nele,
compõe-se com seus movimentos. Participamos da instalação de um território comum em
processos de formação e vida que contêm sonoridades, diálogos, possíveis cuidados, ao mesmo
tempo que a cada vez que deixamos certo espaço-tempo, nos sentimos diferentes, podendo
dizer, mas sem sempre, que se deu uma desterritorialização. Os territórios não são estáticos ou
apenas físicos, portanto, mas estão em constante deslocamento; carregamos territórios
sociopolíticos e afetivos em nós.

[…] cada um com seu território, há territórios. Mesmo numa sala, escolhemos um
território. Entro numa sala que não conheço, procuro o território, lugar onde me
sentirei melhor. E há processos que devemos chamar de desterritorialização, o modo
como saímos do território. Um agenciamento tem quatro dimensões: estados de
coisas, enunciações, territórios, movimentos de desterritorialização. E é aí que o
desejo corre… (DELEUZE, 1995, p.20)

Os relatos que recebo carregam em si territórios, suscitam em mim alguns


deslocamentos. É interessante recebê-los, muitas vezes escutando de início a necessidade prévia
de esperar a poeira baixar para enviarem; esperam a poeira baixar para, enfim, fazerem a poeira
subir – ou o mar agitar – com estes casos e cacos que desviam do curso linear e formal da
27

formação. Em mim alguns movimentos também operam; percebi que precisava igualmente
parar para conseguir escutar e nem sempre foi fácil, já que os intervalos são cada vez mais raros.
Também navega em nós o deslizar ininterrupto do controle em saltos incessantes de tarefas e
ofertas de todo tipo; uma onda atrás da outra, movimento sem desvio, liso.20 Lembro-me de
quando escutei alguns desses áudios de cinco, dez, quinze minutos em um longo percurso de
ônibus depois de quase dois anos sem subir em ônibus de viagem, finalmente cinco horas sem
ter o que fazer; fecho os olhos e escuto.
O vômito, a chegada estilo porta estandarte de Sérgio, a batucada no portão do mercado,
o momento em que se escuta e se envia algum áudio, são situações em que, justamente, certo
entretempo se instala. Correm e pingam pelos intervalos alguns sustos, contágios, polinizações.
Em que momentos pode-se tornar sensível a determinada passagem, ativar um corpo que seja
suficientemente firme para sustentar-se de pé na instável parede cheia d’água e
insuficientemente inteiro para confundir-se com a onda, ser parte dela?

"[…] essa experiência de estar ali, ver o sol nascer sozinha e em silêncio, enfrentar
diversas condições, às vezes tá chovendo e não tem raio então dá pra gente surfar…
A chuva ela acaba sendo um elemento importante pra gente, o vento, as marés,
então você entra e você sente quando tá puxando pra um lado, pro outro, quando dá
pra remar, não dá, é… e vem um silêncio muito grande. É um momento que não é
repetitivo, você sai da órbita. você tá ali. sai da órbita porque não há preocupações,
não há julgamentos, não há nada, é um outro universo, sabe? você tá ali e você tem
que se conectar com a frequência da onda, e quando você tá em pé naquela parede
cheia de água, totalmente instável, que muda em frações de segundos, o mundo, o
tempo para… Esse ato do tempo parar e nada mais importa, você acaba sendo parte
da onda também porque se você não se conecta com o movimento da onda você
não entra nela. Você sai dali sendo a onda, também. Isso, pros meus dias, é o que
vem contribuindo bastante, pra essa, pra esses movimentos do meu corpo no dia a

20
Acerca desse problema, diz Ferraz (2014, p.65): "Nessa pele lisa os possíveis encontros parecem tão-somente
esbarrar para escorrer. A sensação de deslizar sobre superfícies lisas tem por efeito bloquear a penetração nos
poros e a inscrição efetiva de acontecimentos no corpo. Esse movimento deslizante e contínuo, o funcionamento
ondulatório, orbital, já tinha sido apontado por Deleuze nos breves textos sobre o controle do início dos anos 1990
(que soam tão antecipatórios)”.
28

dia. O mar muda em frações de segundos então você acaba compreendendo que um
corpo enrijecido dentro do mar dói muito mais." (voz das alianças)

Quais as condições necessárias para que se conecte com algo, para sair dali sendo a
onda? Talvez não haja condições prévias, programadas, mas alguma combinação que faz com
que uma parte da onda permaneça no corpo após o encontro, podendo daqui a pouco se
modificar, se esvair, se atualizar. Também não se trata de um acúmulo, uma sede incessante de
precisar guardar tudo em si. Sai dali sendo a onda, logo conjuga-se e choca-se com outra coisa,
muitas vezes em frações de segundos, dias, semanas, anos. Conjuga-se, choca-se, vai e vem,
baixa e sobe a maré. Mas um corpo enrijecido no mar dói muito mais, ou talvez, se permita
doer menos.

"Aprender a nadar, aprender uma língua estrangeira, significa compor os pontos


singulares de seu próprio corpo ou da sua própria língua com os de uma outra figura,
de um outro elemento que nos desmembra, que nos leva a penetrar num mundo de
problemas até então desconhecidos, inauditos" (DELEUZE, 1988, p. 310).

2.2 Que embarcações?

Jangada vai sair pro mar21


Eram meados de outubro de 2019. Me atrasei um pouco para a roda. Parei em
uma padaria, tomei um café para conter o sono e caminhando em direção à bacia
do mercado avistei o pessoal de longe que já estava por lá, tocando os primeiros
acordes. Com a vinda de muitas nuvens, a lua se escondeu e o ar ficou úmido, frio.
Reconheci alguns rostos e me acomodei em uma almofada entre Carla e Reginaldo.
Nos abraçamos. Reginaldo disse que estava bem, que estava melhor, sem mochila
nas costas já segurava o djembê, seu djembê.
Sentia a expectativa de me encontrar com Laís, havia ensaiado a música que
ela sempre pedia nas rodas, mas naquele dia ela não apareceu. Há algumas
presenças fortes que também não vejo há tempos, como por exemplo a de Bruno e
de sua companheira Carlota. Perguntei deles a Reginaldo que disse, apontando para
o canal:

21
Trecho da canção Suíte do Pescador, composição de Dorival Caymmi, 1957.
29

— Eles saíram da casinha que tavam morando por ali. Eles não tão muito bem
não, viu…
Reparo numa figura nova, um homem branco, alto e forte, de boné. Ele se sentou
no chão quase em frente a Carla de forma a fechar um pouco a roda em nossa
direção. Ouvi quando disse:
— Sou bandido mano, sou da pesada, eu sou pum pum pum.
Com as mãos faz um gesto de arma que aponta para cima. O homem chegava
perto de mim, pedia que eu olhasse em seus olhos. Ele deitava e olhava para o céu,
sorria, cantava alto.
— Posso ir comprar bebida? Eu te respeito, você me respeita também? — me
disse.
— Respeito sim.
Ensaiava ir embora, mas talvez a música lhe fizesse ficar. Quando virava as
costas para sair, dava um giro, voltava a cantar, se jogava no chão, cada vez mais
perto de nós.
— Ai, toca um Zé Ramalho aí!
— Pode ser Chão de Giz?
— Nossa… essa mesmo?
— Por que, não pode ser?
— É que essa mexe com o meu coração.
— Ah… mexe com o meu também.
Tocamos, cantamos alto e Sérgio cantou comigo. Ele havia chegado há pouco,
dessa vez sem dançar ou cantarolar como em outras vezes, sentou-se em uma
cadeira de plástico que carregou pra mais perto de nós. Cabisbaixo, disse:
— Tô morando em um quarto há um tempo, mas não largo esse pessoal, não fico
muito longe não…
Entre os acordes de chão de giz vi os olhos do homem à nossa frente se
encherem de lágrimas. Ao final da canção, virou-se e finalmente saiu para comprar
a bebida; voltou pouco tempo depois, se sentando novamente em frente a Carla. Em
certos momentos chegava muito perto de mim. Reginaldo chamava sua atenção:
— Ou, deixa ela tocar suave, mano, é nosso estudo isso aqui. Na boa, é coisa
séria.
— Só quero cantar também, mermão, me deixa.
30

Ele se afastava, logo se aproximava, pedia que olhássemos em seus olhos. Eu


não queria olhar, queria distanciar também, mas acabei permanecendo. O homem
de boné cheira o pescoço de Reginaldo que se irrita, levanta rapidamente e pede que
ele vá embora:
— Isso é sério, cara!
Sérgio interfere dizendo:
— Deixa o cara aí, o cara é gente boa, meu… deixa ele participar também…
Um clima de tensão continuava no ar, não sabia bem como interferir, talvez nem
pudesse. Às vezes, recebemos cargas que ameaçam a sustentação do conjunto, mas
buscamos não reter a questão, nem sobrecarregá-la. Olhava para os que estavam no
entorno, procuravam manter a atenção no conjunto da roda. Eu me lembro que o
homem de boné tinha pedido uma música:
— Toca Charlie Brown!
Sei que Reginaldo também curte Charlie Brown. Começo a tocar… Toda a
positividade eu desejo a você, pois precisamos disso em dias de luta22. Quase todos
cantavam alto, a jangada navegava com seus liames e modos de amarração
singulares. Emendei com Tim Maia. Ao som de Você, tenho vontade de chorar.
Talvez um choro de intensidade, alguma alegria por estar junto em tempos
sombrios.
Você é algo assim, é tudo pra mim… Avisto um homem um pouco distante que,
com lágrimas nos olhos, canta e aponta para mim. Não me sinto mal, nem
intimidada, me questiono: que signos emitimos em um encontro? No meu caso,
arrastando comigo um lugar de mulher branca de classe média.

A maré subiu demasiada


E tudo aqui está que é água
Que é água23
Em certas canções Adamastor chega perto. Ele sorri e canta com a gente. Me
lembro de quando ficava sentado, longe, observando. Adamastor gosta de cinema,
essa é sua praia. Quanto à música ele pisa na areia e avista o mar de longe, aos
poucos vai se achegando e coloca os pés na água.

22
Trecho da canção Só os loucos sabem, composição de Chorão e Thiago Castanho, 2010.
23
Esse e outros trechos desta narrativa são entrecortadas por fragmentos da letra da canção Água, composição de
Djavan, 1982.
31

Enquanto cantamos, uma mulher passa pela calçada e tropeça levemente na


capa do violão. Ela nos mira com os olhos arregalados e diz:
— Isso aqui é uma calçada! — Continua nos olhando por alguns segundos,
repete a mesma frase três vezes.
— Isso mesmo, é uma calçada, é pública. Tamo ocupando o espaço da cidade24
— Wesley lhe responde.
Seguia uma cifra no celular com a cabeça abaixada e quando a levanto percebo
que Reginaldo tinha sumido da minha frente. O homem de boné se aproxima de
mim, com as pernas abertas me cerca. Com um salto, fico de pé. Os outros muito
rapidamente reagem, se levantando também:
— Sai daí cara, deixa a gente em paz, deixa ela em paz.
O homem se irrita:
— Cês tão tudo tirando comigo né, mano, caralho.
Wesley e ele começam a brigar, cada um avançando para cima do outro com
uma cadeira da abordagem social na mão. A cadeira voa, mas não atinge ninguém.
Jacqueline tenta conter os dois: pô gente, não vamos pesar, meu! O cachorro vai de
lá pra cá, interage. O homem atravessa a rua e segue gritando: essa gente, um bando
de vagabundo…
A jangada vira, ou pelo menos é o que parece. Penso que, naquela noite úmida,
ela não poderia ser retomada. Aos poucos, entretanto, encontramos outro ritmo
possível. Edvaldo chega perto de mim, pergunta se estou bem e diz:
— Poxa, bem agora que queria escutar umas músicas… vamos mais uma, vai…
Alguns começam a empilhar as cadeiras de plástico, outros vão recolhendo os
inúmeros instrumentos dispostos no centro da roda. Jacque e Alê se olham rápido:
— Não vamos embora ainda não, vamos mais uma!

Uma ligação suficientemente frouxa não se solta


Wesley também pede pra gente tocar mais uma. É nesse momento que pergunto
seu nome.
— Bora a saideira então?

24
“[…] Ainda vão me matar numa rua. Quando descobrirem, principalmente, que faço parte dessa gente que pensa
que a rua é a parte principal da cidade” (LEMINSKI, p.24, 2013).
32

Começamos a tocar Anunciação e Sérgio pula da cadeira, já balançando os


ombros. Ele dá um tapinha no meu braço e diz:
— Eu tenho uma parceira pra tocar essa música! Vamos gravar e postar no
facebook, vamo virar sucesso!
— Já escuto os teus sinais! A voz de quem?! — grita e canta, regendo o coro.
O seu corpo dançante anima, retomo alguma energia. Tocamos e cantamos em
uma não tão grande roda. Simone chega perto e me conta que é aniversário de
Florêncio, que balançava seu pote de aspirinas e chocalho.
Quando os inúmeros laiá laiá laiá laiá chegam ao fim, começamos a tocar
parabéns pra você. Todos cantam, Florêncio vai ao centro da roda, sorri, com os
braços alçando voo, ele gira de um lado pro outro e seus olhos ligeiramente
vermelhos se enchem de lágrimas.

Tudo que se passa aqui


Não passa de um naufrágio
Eu me criei no mar
E foi lá que eu aprendi a nadar
Pra nada
Eu aprendi pra nada (DJAVAN, 1978)

Um episódio na rua ajuda a dar cor, som e ritmo a limiares intensivos que se passam
entre os encontros e expressa variações afetivas; algumas sustentamos, outras suportamos
menos. Alguns corpos se aproximam, se estranham, outros mesmo distantes estão em alerta,
atentos. Sentimos o cheiro, captamos e emitimos signos, alguns inauditos saltam à pele, outros
saltam aos olhos, aos ouvidos.
A chegada do homem que não sabemos o nome, as negociações para que se toque
determinada canção, a insatisfação de Reginaldo que não quer que atrapalhem “nosso estudo”,
a mulher que tropeça em nós na calçada que, segundo ela, deveria estar vazia, mas é local de
morada de muitos, em jogo posições de saber-poder de gênero, raça e classe que se entrecruzam;
são todos acordos/acordes ético-estético-políticos que infletem do encontro. Criamos um corpo
possível para estar ali e mesmo havendo alguns liames de sustentação da jangada, não sabemos
a priori o que virá a passar entre eles e de que maneira.
São muitas as embarcações que coproduzimos a depender daquilo que nos toma em
determinado encontro. Apesar de não desconsiderarmos uma necessidade de segurança prévia
33

– em corpo-teoria-conceitos – este ímpeto pode nos levar a acreditar que se pode conter o que
está por vir. Desta maneira, corre-se o risco de permanecer na ponte que cruza o rio apenas
observando-o, distante de onde a vida passa. Os encontros, no entanto, estão sempre pedindo
por improvisações. Talvez seja o caso de encontrar as dosagens a cada vez, de modo a não
atrapalhar o curso singular dos movimentos que vão se compondo.
Pode haver misturas, mudanças de embarcação, recuos, saltos no rio, já que raramente
encontramos um único e mesmo elemento, mas um jogo complexo de corpos em conjunto que
nos afetam de diferentes modos em uma multiplicidade de encontros25: uma fala, um cheiro,
um olhar, um gesto, uma cor. A embarcação que criamos interessa, mas o que mais importa é
de que maneira chega a água através dela – em gotículas, braçadas, goles, enxurradas – ou, até
mesmo, se este corpo chega a se molhar.

"[…] eu acho que foi uma semana importante porque foi uma daquelas que te joga
num… num… numa água assim, num lago, que você olha há muito tempo e passa
por ele há muito tempo, você sabe que ele tá lá e você já conhece as dimensões dele,
você já colocou o pé pra ver se a água é fria e… você sabe mais ou menos de alguns
peixes que tem por lá, mas você nunca entrou, e… e aí aconteceu alguma coisa que
te fez cair nele, essa semana foi um pouco assim. E aí eu tive que pensar algumas
coisas meio doloridas, […] que trazem muitos afetos […] eu acabei chegando num
lugar diferente […] e apesar de ter sido um processo meio tenso, eu tô um pouco
esperançoso de ter aprendido um pouco mais sobre esse laguinho, sabe, eu não
sabia, por exemplo, o quão fundo ele era, agora eu sei porque eu acho que eu nadei
mais nele e…" (voz das alianças)

Lado a lado – o que não quer dizer que não sejam distintas – estão a solitária cena de
um estudante em isolamento social e a roda de música a céu aberto. Que doses de deslocamento
existem em ambas, cada uma a seu modo? Parece evidente certa insistência que vai surgindo
em se molhar, em entrar neste laguinho, passar por algo que desestabilize as fronteiras do corpo.
Processos de aprendizagem a partir das reverberações que geram determinados encontros não
são ilesos a estranhezas e incômodos, mas pelo contrário, engendram-se também a partir delas26.

25
Spinoza (2008, p. 105) diz no postulado 3 da proposição 13 da Ética 2 que “os indivíduos que compõem o corpo
humano e, consequentemente, o próprio corpo humano, são afetados pelos corpos exteriores de muitas maneiras.”
26
“Tais composições, a partir de um certo limiar, geram em nós estados inéditos, inteiramente estranhos em relação
àquilo de que é feita a consistência subjetiva de nossa atual figura. Rompe-se assim o equilíbrio desta nossa atual
figura, tremem seus contornos. Podemos dizer que a cada vez que isto acontece, é uma violência vivida por nosso
34

Um bom encontro não se relaciona apenas a situações harmoniosas, mas principalmente a


melodias dissonantes que fazem cair em um estado inusitado, causando perturbações e levando,
talvez, a novas percepções e ideias (HENZ et al, 2019, p. 143).
Por onde passam entretempos em que sentimos que somos jogados na água? Como e
em que momentos se instalam tais experiências na formação e na vida? Como podem surgir,
uma vez que, por exemplo, suspende-se certa terra fértil que sustenta possibilidades de
contágio? Vivemos isso com a chegada do isolamento social decorrente da pandemia de covid-
19; nossos pés são arrancados de muitos trajetos por onde costumávamos caminhar.
Aparentemente, mesmo em situações de enorme assepsia, o corpo continua suscetível ao acaso
e farejando, sentindo sem saber muito bem o quê, abre-se a alguma centelha de vida que lhe
atravessa; às vezes em meio ao silêncio e à solidão.

"[…] Eu comecei a tomar banho de luz apagada, às vezes eu colocava uma vela ou
às vezes eu só ficava no escuro e meu olho captava alguma luz de outro ambiente
ou ia se adaptando. E aí eu tomava banho e era um cuidado mesmo que eu fui
desenvolvendo, de uma coisa banal assim que eu sempre fiz. Tinha vezes que eu
ficava tentando sentir cada gota que caía no meu corpo, onde ela caía, que
temperatura tava […] e aí a outra coisa foi que eu comecei a beber água enquanto
eu tomava banho e foi uma coisa que eu fiquei pensando: será que as pessoas já
beberam água tomando banho em algum momento de suas vidas? E eu achei uma
sensação muito gostosa, sentia a água por fora e por dentro passando e acho que era
um momento de cuidado também, tendo muita dificuldade de me cuidar na
pandemia, muito isolada […] eu acho que às vezes eu não tava tão bem e pensava:
ah, vou beber água… […] às vezes dentro do apartamento eu tinha pouco acesso ao
mundo, o mundo tava muito longe olhando do décimo terceiro andar, não batia
muito sol, então eu me sentia muito fechada, então eu acho que essa coisa da água
foi talvez uma tentativa de trazer algo da natureza assim, um resgate de algo que eu
não tava tendo muito acesso… tava distante do céu, das árvores, do mar, mas a água
tava ali […] E aí até hoje eu estranho ter que acender a luz artificial do banheiro pra

corpo em sua forma atual, pois nos desestabiliza e nos coloca a exigência de criarmos um novo corpo - em nossa
existência, em nosso modo de sentir, de pensar, de agir etc. - que venha encarnar este estado inédito que se fez em
nós. E a cada vez que respondemos à exigência imposta por um destes estados, nos tornamos outros” (ROLNIK,
1993).
35

tomar banho e de vez em quando ainda levo uma garrafa de água pra beber no
banho." (voz das alianças)

Tentando sentir a água por fora e por dentro passando, cada gota que caía no corpo, a
estudante escuta os afetos que lhe atravessam e por alguma fenda em meio a tantos fechamentos,
algo pede passagem. É com as gotas d’água que este corpo pode conjugar-se neste momento,
combatendo, no escuro e silenciosamente, certas forças reativas que não apenas têm a ver com
a situação crítica epidemiológica em questão, mas sobretudo com as rígidas incidências de um
poder perverso que subtrai a pulsão vital, direcionando-a a políticas de subjetivação individuais,
onde cada um é gestor de sua própria potência pulsional (ROLNIK, 2018, p. 78 e 91).
Praticamente em solo árido, do topo do décimo terceiro andar e com o mundo muito longe,
uma experiência desinvestida de objetivo. Em meio à seca, algumas remadas contra a maré do
produtivismo a todo custo27, tentativas de puxar algum fio que ligue à vida ou emitir um som macio
na aspereza28. Quando emergem vãos pelos quais passam devires inesperados e que, neste caso,
não são rapidamente tamponados, um corpo permanece quase imóvel e direciona-se ao mínimo
gesto corriqueiro e banal de tomar banho, o qual torna-se outro, novo. Também pode haver na
impotência e no vazio, aproximações com o desejo em sua dimensão mais ativa. “É preciso não se
mexer demais para não espantar os devires” (DELEUZE, 1992, p.172).
A criação de embarcações diz mais dos modos pelos quais passamos e nos permitimos
viver certos processos na formação e vida, do que de escolhas voluntárias. Tampouco trata-se
de um espontaneísmo ingênuo que desconsidera o enorme trabalho que é passar por encontros
de todo tipo, ou ainda, deixá-los passar por nós. Em práticas que exigem uma abertura para o
novo, parece interessante encontrar saídas mais permeáveis aos problemas que surgem a cada
vez e a cada caso, entretanto, é apenas no encontro que os corpos inventam um possível sempre
provisório. Entre a abertura completa que pode levar a um naufrágio e o fechamento reativo
que não deixa a água passar, entre a exposição total ao caos e a blindagem asfixiante do guarda-
sol sem furos29: um intervalo de rasgos e variações intensivas.

27
Importante lembrar que quando consideramos o atual contexto que vivemos, e não apenas ele, para além e aquém
de qualquer imagem poética, fica clara a diversidade de embarcações no que concerne às condições de vida tão
desiguais presentes no Brasil. Não estamos, portanto, no mesmo barco.
28
“Eu busco o som macio na aspereza, dos dias com ruídos de metal […] eu levo o barco em meio ao temporal”
é trecho da canção Sutilezas, composição de Rosa Passos, 2003.
29
Questão tratada por D. H Lawrence em Caos em poesia (2016, s/p.): “O homem constrói um edifício assombroso
a partir de si, erguido entre ele mesmo e o caos selvagem, tornando-se gradualmente, empalidecido e asfixiado sob
o tecido do seu guarda-sol. Então vem um poeta, o inimigo das convenções, e faz um rasgão no guarda-sol; e
vejam! O lampejo de caos é agora uma visão, uma janela para o sol. Em breve, porém, por se acostumar à visão,
e por não suportar aquela dose de caos, o homem-lugar-comum pinta um simulacro, […] nós temos remendado o
36

3. NÃO SE SABE MUITO BEM COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI

Lançamo-nos, arriscamos uma improvisação.


Mas improvisar é ir ao encontro do Mundo,
ou confundir-se com ele. Saímos de casa no fio
de uma cançãozinha. Nas linhas motoras,
gestuais, sonoras que marcam o percurso
costumeiro de uma criança, enxertam-se ou se
põem a germinar “linhas de errância”,
com volteios, nós, velocidades, movimentos,
gestos e sonoridades diferentes.
(Gilles Deleuze)

O cheiro de peixe que vinha das docas nos dava vontade de ir embora do
campus muitas vezes. De vez em quando confundia-se com os sinais da tilápia que
seria servida no R.U30 um pouco mais tarde. Com o passar dos anos não ouvia e
nem reclamava mais sobre, o azedo não tão mais azedo assim foi fazendo parte das
manhãs, das tardes.
Os burburinhos chiavam pouco antes da hora do almoço, já as bundas mexiam-
se nas cadeiras desde o início da aula, ajeitavam-se mais ou menos a depender da
temperatura da cidade, da aula e do encontro. Saía um para reabastecer o crachá, e
outro, e outro. Captava um sinal, e acredito que não apenas eu, de que já estava na
hora da aula acabar. Mesmo escutando de longe a falação estilo bar lotado, a
surpresa era a mesma quando me deparava com a fila quilométrica que
provavelmente traria algum atraso pras saídas aos campos de TS. Uns desistiam:
— Vou comer algum lanche na cantina.
Uns não podiam desistir, se sim, ficariam sem comer:
— só tenho 2,50 pra passar o dia.
Algumas rodinhas de conversas se formavam ali, iam se achegando.

rasgão. […] O guarda-sol tornou-se tão grande, os remendos e rebocos estão tão apertados e duros, que ele não
pode ser mais rasgado […]”
30
R.U é sigla para Restaurante Universitário, refeitório que serve almoço e jantar dentro do campus e faz parte
dos recursos destinados à permanência estudantil da UNIFESP.
37

A temperatura das aulas… A cada vez saíamos de um jeito. Um dia, quando


saltitantes, Isa disse:
— Amiga, nem parece que é possível pensar uma clínica desse jeito sabe… Sei
lá, pra mim nunca fez muito sentido… ouvir essa mulher falar sobre um projeto de
coral aberto me dá força. Posso querer misturar as coisas e tá tudo bem. Um coral
pode ser clínico também…
Outros dias, arrastadas e curvadas:
— Ai que aula demorada… e estão cortando tudo, permanência, R.U vai fechar,
funcionário não tá recebendo salário, não tem mais grana pra pagar as vans, água,
luz.
Quando sobrava um tempo depois do almoço, investíamos perdendo-o no
saguão lateral, jogadas em algum corredor de concreto, encostadas num canto de
parede, na frente da biblioteca ou às vezes fugíamos dali pra circular o corpo e as
ideias. Íamos caminhando até o café das meninas sob um sol quente e o cheiro de
peixe que não cessava.
— Preciso de um café, minha gente, senão vou dormir…
Quando chegamos, uma das meninas nos conta, sorrindo:
— Acabou de sair uma fornada de pão de queijo quentinho…
É claro que pedimos logo cinco (um para cada uma) e cinco cafés, alguns eram
pingados. Arrastei duas cadeiras para a mesa perto da calçada e sentamos ali meio
apertadas. Giovana tirou um livro da bolsa, era um de Galeano, aquele dos abraços.
Não é raro lermos umas para as outras, acho que aprendemos com Rita que
sempre leu para nós desde o início da graduação. Abríamos o livro em alguma
página qualquer e líamos o que vinha, ao acaso. Em certo momento li:

[...] Cada promessa é uma ameaça; cada perda, um encontro. Dos medos nascem as
coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível e
os delírios, outra razão. Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos.
A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa
síntese das contradições nossas de cada dia… (GALEANO, 2020)

Interessa lançar atenção às temperaturas dos encontros na formação, a variações


intensivas que, no decorrer do tempo, constituem percursos e trajetos; são mapas afetivos com
os quais compomos – e que nos compõem – que pedem passagem pela escrita, pelos gestos,
pela fala. Vão sendo pisados, adubados, construídos certos chãos que nem sempre são muito
concisos e determinados, muito menos conscientes, mas que vão sustentando um corpo, criando
38

firmezas para que se possa agir, afirmar certas posições, questionar outras, construir uma ética.
Nestes terrenos, água e terra não se separam, o que faz com que os problemas aqui trazidos não
deixem de ressoar com regas, fluidos, embarcações das quais vamos fazendo parte; espero,
nesse sentido, que as imagens se misturem, ajudem a pensar a formação, a clínica e a vida, sem
abarrotar ideias, fixando-as demasiadamente. Acerca da noção de mapa afetivo que ressoa com
as experiências de Fernand Deligny com crianças autistas, Adriana de Azevedo (2020, p. 161)
diz:

Os mapas começaram a ser utilizados nesta experiência por diferentes motivos, mas
uma das funções importantes era a de registrar o cotidiano de existência das crianças.
Os mapas registravam traços dos trajetos, as variações dos gestos, destacavam
acontecimentos particulares, indicavam a distribuição de objetos em uma determinada
peça, enfim se apresentavam como linhas e coordenadas que indicavam um território
de existência comum às crianças e aos cuidadores, chamados de presenças próximas.

Há algo desta noção e prática de traçar mapas com crianças autistas que pode ajudar a
pensar as experiências na formação e vida que dizem mais de movimentos de aproximação,
conjugação, distanciamento, choque etc. que vão constituindo certo mapa afetivo, do que de
somatórias de vivências individuais, impermeáveis. Uma vez que afetamos e somos afetados a
todo tempo, mais ou menos intensamente, com afetos ora alegres ora tristes31, com aumentos e
diminuições da potência de agir, interferimos constituindo mais um fio de ligação em
determinado campo de relações. Os traçados cotidianos de um corpo entre o R.U, os corredores,
os caminhos que percorre até sua casa, até lugares desconhecidos entre tantos outros percursos,
referem-se a determinado campo afetivo que está a todo tempo se atualizando, devindo outro e
outro e outro32.
Em certa ocasião, ao compartilhar impressões acerca da pesquisa com o grupo de
orientação, escutei, após a leitura da narrativa acima, algo como: “me vi ali, sentindo o cheiro
de peixe, de alguma forma pessoas que não passaram por essa cena em específico poderiam ter
passado, de outros jeitos”. Esta frase coloca em análise um jogo de relações entre o comum, o

31
“[…] o poder de ser afetado pode ser realizado de duas maneiras. Quando sou envenenado meu poder de ser
afetado é realizado completamente, mas é realizado de tal maneira que minha potência de agir tende a zero; isto é,
ela é inibida. Inversamente, quando experimento alegria; isto é, quando encontro um corpo que compõe sua relação
com o meu, meu poder de ser afetado é realizado igualmente e minha potência de agir aumenta […]” (DELEUZE,
2019, p. 53)
32
Spinoza (2008, p. 105) diz na demonstração do lema 3 da proposição 13 da Ética II que: “Os corpos são coisas
singulares, que se distinguem entre si pelo movimento e pelo repouso. Assim, cada corpo deve ter sido
necessariamente determinado ao movimento ou ao repouso por uma outra coisa singular, isto é, por um outro
corpo, o qual também está em movimento ou em repouso. Ora, este último, igualmente (pela mesma razão), não
pode ter se movido nem permanecido em repouso a não ser que tenha sido determinado ao movimento ou ao
repouso por um outro, e este último (pela mesma razão), por sua vez, por um outro e, assim, sucessivamente, até
o infinito.”
39

singular e o que é chamado de pessoal. Trata-se de um trabalho árduo o de perceber e construir


liames entre comum, singular, e, muitas vezes, vi-me/vejo-me nesta complicação. Há sempre
de nós/em nós e das marcas que carregamos em uma pesquisa, o que não quer dizer, entretanto,
que elas sejam pessoais33, já que nos constituímos por atravessamentos de forças:

Em nossa condição de viventes somos constituídos pelos efeitos das forças do fluxo
vital e suas relações diversas e mutáveis que agitam as formas de um mundo. Tais
forças atingem singularmente todos os corpos que o compõem – humanos e não
humanos –, fazendo deles um só corpo, em variação contínua, quer se tenha ou não
consciência disto. Podemos designar esses efeitos por “afetos” (ROLNIK, 2018, p.
110).

Há algo que diz quando escrevemos, que age em nós quando agimos; compondo uma
assombrosa síntese muitas vezes pouco sintetizada e em constante transformação34, a escrita de
cenas singulares faz um arrastão de signos que circulam entre e dizem de mundos, de certos
mapas afetivos; arrastam-se traços que não pertencem a determinados sujeitos, mas perpassam
situações, recolhem, criam intensidades. Ao confundir-se com o mundo, se participa de certo
território que não é fixo, homogêneo, circunscrito. Na partilha de pensamentos também escuto:
“Quando lemos o texto corrido há uma confusão do que é seu, de outros, o que é narrativa, o
que você escreveu depois da narrativa.” Penso acerca do que poderia, talvez, enunciar esta
confusão, talvez complicação? Na vida também pode ser assim, não se sabe muito bem como
chegamos até aqui, já que é sempre no encontro que movimentos vão se engendrando com
zonas de indecidibilidade e, muitas vezes, a consciência é a última a saber.
Tampouco se forma só, na verdade, é possível formar-se bem, com alto polimento das
peças e em fôrmas muitas vezes de alta complexidade teórica35. É evidente que não se despreza

33
Acerca deste problema, diz Tedesco (2005, p. 142): “Escrever não é narrar uma lembrança de um sujeito, não é
descrever sentimentos pessoais, pois a descrição da vida íntima, da forma privada da subjetividade, em suas rotas
redundantes, distancia-se da criação. Só é possível escrever traindo a pessoalidade. A escrita expressa não o
sentimento de alguém, mas o acontecimento, o indeterminado.”
34
A própria construção do chamado sujeito íntimo, interiorizado e moderno faz parte de uma política de
subjetivação histórica e datada, a qual, evidentemente, também incide episodicamente em nós. Acerca da
construção de um modo-indivíduo, Benevides (1993, p.146) diz: “Desenvolvemos algumas idéias sobre a
construção da categoria de indivíduo presente, inicialmente no cenário europeu, desde os séculos XVI/XVII, num
primeiro momento de forma dispersa mas ganhando cada vez mais destaque ao longo dos séculos XVIII/XIX.
Postulávamos, ainda, sobre o processo de "interiorização" imputado ao indivíduo que, ao ser incitado em seus
direitos de "livre cidadão" autônomo e único, é remetido à pesquisa das características peculiares que definiram
sua identidade autocentrada. O espaço de casa, da família, ganham também novas formas e sentidos, posto que se
separam do lugar de trabalho e passam a concentrar a afetividade em seu interior. Esta tecnologia do
enclausuramento fabrica, de modo magistral, mais do que o indivíduo, o "individual", isto é, um registro de sentido
que marca formas de estar, sentir, pensar e viver o mundo.”
35
Acerca deste problema na formação e na clínica e pensando com as experiências do módulo de Clínica
Integrada: produção do cuidado que faz parte do eixo Trabalho em Saúde e no qual um trio de estudantes de
cursos diferentes da área da saúde acompanha uma família e constrói um projeto terapêutico singular para aquela
40

a teoria, por uma análise rápida poderia soar que sim, mas o ponto é outro: suspeita-se de que
certo enrijecimento teórico-conceitual possa atrapalhar os bons encontros, tamponar a
indeterminação e o acaso inerentes à vida, na busca de controle das variáveis ou até mesmo da
"aplicação" de determinada teoria na prática36. Tendo a pensar, contudo, que por mais
ensimesmados que alguns processos formativos possam ser, haverá sempre vias e fluxos
múltiplos de afetação. O entretempo foge, encontra jeitos de acontecer; por vezes não sabemos
muito bem o quê, mas sentimos que algo do clima muda.
Na maioria das vezes, ao longo da formação, falamos e pensamos criticamente acerca
dos territórios que visitamos, produzimos e percorremos em estágios, projetos de extensão,
campos do eixo Trabalho em Saúde. Interessa pensar também em como se constrói um campo
comum e heterogêneo a partir destes e de outros encontros, em sucessivos processos não
lineares de circulação intensiva que ocorrem quase que concomitantemente: arrastão de
territórios consigo, deslocamentos, constituição de outro/novo território, ainda que
momentâneo37.
Pode-se viver processos de desterritorialização-reterritorialização também entre rápidas
andanças ou paradas mais longas em um banco em frente à biblioteca da universidade, por seus
arredores e em relação com quem por ali circula e vive, ou mesmo no restaurante universitário

situação, Casetto e Federici (2020, p. 139) dizem: “é que em nossos sonhos profissionais, teríamos as rédeas do
processo na mão. Conhecimentos confiáveis nos dariam o mapa do processo terapêutico, e nossos instrumentos
nos guiariam ao resultado previsto. Assim, estaríamos quase sempre localizados e seríamos capazes de conduzir
os acontecimentos. Ora, tudo indica que, no trabalho em saúde, estamos lidando com tal complexidade de
determinantes, que nossas intervenções são melhores quando não se pretendem exclusivas. É como se tentássemos
interferir em certas faixas de frequência, embora sem saber, exatamente, a direção da resultante de forças. […] É
que não somos maestros do concerto da saúde, mas apenas músicos da orquestra. E mesmo sem nenhum maestro
à vista, a música se faz.”
36
São complexas as relações entre teoria e prática. Talvez não se trate de aplicar uma teoria na prática, nem de
criar uma teoria a partir da prática.. Acerca desta questão em uma conversa entre Deleuze e Foucault (FOUCAULT,
2002, p.77): “A teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática. Sem totalização,
as relações teoria-prática são parciais e fragmentárias, com revezamentos, uma multiplicidade de componentes ao
mesmo tempo teóricos e práticos. Às vezes se concebia a prática como uma aplicação da teoria, como uma
consequência; às vezes, ao contrário, como devendo inspirar a teoria, como sendo ela própria criadora com relação
a uma forma futura de teoria. De qualquer modo, se concebiam suas relações como um processo de totalização,
em um sentido ou em um outro.”
37
Desterritorialização e reterritorialização são noções produzidas por Gilles Deleuze e Félix Guattari que nos
ajudam a pensar à medida que esses movimentos ganham corpo e espessura. Linhas de fuga, abertura e
embaralhamento dos signos, linhas de recolhimento, recombinações. Na entrevista concedida à Claire Parnet em
1995, Deleuze diz que "não são fenômenos puramente opostos, mas não há território sem um vetor de saída do
território e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se
reterritorializar em outra parte." Acerca da mesma questão, diz Zourabichvili (2004, p.24): "que relação com o
estranho, que proximidade do caos suporta o território? Qual é seu grau de fechamento ou, ao contrário, de
permeabilidade (crivo) ao fora (linhas de fuga, pontas de desterritorialização)?"
41

que acompanha, cotidianamente, o transitar dos estudantes: um chega, depois o outro, depois o
outro e, assim, vão ficando na mesa durante todo o intervalo que têm.

"[…] e aí, eu lembro muito da minha relação com os corredores da UNIFESP, que
eu ficava sentado, […] e… a gente ficava criando algumas teorias mirabolantes
entre nós. […] e aí também fui relatando né, no diário de campo, de como... kkk eu
tinha uma relação com o R.U né, comecei a lembrar das filas, que às vezes eram
difíceis pra mim mas também poderiam ser pontos de encontro né […] a gente
combinava de entrar na fila e bater papo, […] e às vezes eu também ficava rodeando
os corredores e encontrando pessoas pra papear até que a fila desse aquela acal,
acalmada né. Ahn… Eu começava a sentar nos bancos né, da UNIFESP e daí tinha
aquelas pedrinhas né que às vezes eu ficava brincando de tacar de um lado pro outro
[…] e às vezes tinham pessoas lá, fazendo nada e elas começavam a puxar assunto
e a gente começava a conversar… e, e eu ia relatando nesse diário de campo que o
restaurante universitário sempre foi um universo à parte pra mim, é, […] às vezes
eu ficava até depois de terminar de comer, eu ficava circulando e, é, entre as mesas,
procurando pessoas pra ficar papeando e o tempo ia passando e ficava praticamente
todo o intervalo né, dentro do restaurante universitário, tanto que um amigo até
falava, brincava comigo, nossa, você mora no restaurante universitário, né." (voz
das alianças)

A narrativa que abre o capítulo e o relato de um estudante que recorda de vivências na


universidade conversam pela desaceleração característica que os move, junto a um
desinvestimento na finalidade das experiências. Apesar das longas filas de espera pela comida,
permanecem ali papeando com quem vier, presenciando o acaso também por não se saber ao
certo quem pode chegar; de lá pra cá, durante as duas horas e meia de abertura do restaurante
universitário, ziguezagueando em busca de encontros, circulando entre as mesas, o tempo vai
passando. Fazem parte dos trajetos de uma formação, alguns momentos entre tarefas, em
trânsito; tratam-se de intervalos intensivos que constituem texturas na/de formação. Constrói-
se, nestas experiências, outras relações com o tempo: “[…] a possibilidade de uma
temporalidade diferenciada, onde a lentidão não seja impotência, onde a diferença de ritmos
não seja disritmia, onde os movimentos não ganhem sentido apenas pelo seu desfecho […]”
(PELBART, 1993, p. 40-41).
42

Orbitam nestes entretempos ideias, afecções que, de alguma maneira, impulsionam os


deslocamentos. De que jeito, por exemplo, ao deixar um território após uma visita de TS,
também constituímos territórios? Poderíamos pensar que o território afetivo e expressivo não
termina ali, em uma determinada visita. As marcas a partir de um encontro imprimem-se em
corpos que continuam afetando e sendo afetados, o que faz com que vá sendo constituída uma
ação-ideia de certa formação também entre os burburinhos que permanecem ressoando nas
vans, pelos corredores, nas filas. Os encontros entre mundos, acontecem muitas vezes apesar,
antes, para além de certo projeto político pedagógico, transbordando seus limites. Entretanto, é
importante ressaltar que determinado projeto pedagógico, neste caso de uma universidade
pública, também pode sustentar e dar a deixa para alguns possíveis em termos de experiências
de ensino-aprendizagem e apesar de parecer garantido, está sempre em vias de desmonte,
ameaçado por fechamentos de diversas ordens: física, afetiva, financeira etc.

Hoje pela manhã, lembrávamos, em uma reunião online de extensão, das vans
da universidade que costumavam nos levar para muitos cantos da cidade de Santos.
Um fio de memória vai passando. Era uma das primeiras vezes que
atravessávamos os morros para chegar à Zona Noroeste. Entre subidas, curvas e
descidas, ia percebendo uma outra Santos. Quando descemos da van, senti um
cheiro de cidade do interior, um vento muito quente cheirando a pão recém assado,
só faltava um coreto no meio da pequena pracinha arborizada ao lado da policlínica
para atender as minhas expectativas ilusórias. A sensação de entrar na Unidade de
Saúde da Família (USF) com ar-condicionado era de alívio frente ao sol sufocante.
A brisa do mar não chegava, mas o sol era o mesmo.
Saímos caminhando pelas ruelas que foram ficando cada vez mais estreitas.
— Sai da frente, tia! — um menino de bicicleta desviou de nós enquanto
passávamos pela pracinha tão tranquila.
— Opa! Vê por onde anda.
Fui perceber que estava bem no meio da ciclovia.
— Kkk…. já tá começando como?! — riu e disse Giovana.
Paramos em algumas casas. Palmas na calçada:
— Ô Dona Cleeeeeeeeide — a professora Angela era abraçada com carinho
pelos que encontrávamos.
— Nossa, pensei que vocês não iam mais voltar…
43

Conversavam meio de lado, não ouvíamos todo o papo, tem muitas histórias
que já parecem vir de outras épocas. Outras vezes ficávamos em volta feito estátuas
ou bonecos de posto meio desajeitados, mas com muitos sorrisos:
— Hihihi, hehehe, o prazer é nosso de te conhecer, dona…
Ali de pé, escutando as novidades, era como se alguns daqueles viventes já nos
conhecessem, ou talvez não importasse tanto assim quem fôssemos, éramos as
meninas da universidade. Esferas de confiança com raios ora mais distantes, ora
mais próximos.
Algumas vezes as palmas batiam em vão, já que ninguém botava a cabeça pra
fora da janela.
— Não deve ter ninguém em casa… — pensávamos, falávamos.
— Bom, é possível que ela tenha falecido também… — disse a professora
Angela.
Aos poucos fomos decorando o caminho e já nos próximos encontros íamos,
Giovana e eu, até a rua em que morava a família que acompanhamos – e que nos
acompanhou – durante o semestre. A cada quarta ao cruzarmos com a porta da
padaria:
— Humm… esse cheirinho, na volta pegamos um pãozinho?
O cheiro do pão ia misturando-se ao cheiro de esgoto conforme nos
aproximávamos das palafitas. Reparava no portão quase sempre aberto da casa de
dona Vera. Íamos chegando perto, seu Antônio com os pés na calçada, acenava e
sorria.
— Entra, entra, meninas. Vem pra cozinha que eu vou passar um café pra gente.
Cês querem né?
— Claro, claro, dona Vera.
— E tem bolo que eu fiz quentinho, meu irmão já comeu um pedaço enorme
de tão bom que tá.
— Eta nóis… não tem como recusar. É claro que queremos.
Reparo em Antônio que, neste meio-tempo, já ia retirando as peças de dominó
de sua caixinha de madeira de mais de vinte anos e as espalhando sobre a mesa...
44

Caminhando pelas ruelas com as professoras que nos acompanham, penso com o que
conta Deleuze (2006, p. 48): "Nada aprendemos com aquele que nos diz: faça como eu. Nossos
únicos mestres são aqueles que nos dizem "faça comigo" e que, em vez de nos propor gestos a
serem reproduzidos, sabem emitir signos a serem desenvolvidos no heterogêneo.” Passamos
por algumas situações em que recebemos uma espécie de convite – apesar dos objetivos mais
burocráticos de determinado módulo – para participar de certa rede de cuidado e pensamento.
Caminhamos juntos com alianças mais longas ou episódicas entre estudantes de diferentes
cursos, viventes, alguns docentes, também com estranhezas provocadas pelas diferenças,
desenlaces; há sempre um jogo de distâncias e proximidades em questão que enredam os
encontros. Se dá uma formação entre os cheiros de pão, esgoto, café, partidas de dominó, um
quase atropelamento, uma possível morte, corpos hesitantes, entreabertos.
Ao pararmos para conversar em frente à casa, ao nos sentarmos à mesa para tomar um
café, ao entrarmos em determinada unidade de saúde, carregamos em nós experiências das quais
não participamos, necessariamente, enquanto corpo na dimensão palpável de tempo e espaço,
mas afetivamente e de forma expressiva. Este é um exemplo de que não são apenas um usuário
e um trio de estudantes, no sentido de indivíduos, que estão em questão na construção conjunta
de um projeto terapêutico singular, mas todo um campo comum que se arrasta pelas redes que
são tecidas por determinada vida e suas companhias38 em lugares, passagens, gostos, com
familiares, amizades, profissionais, conhecidos, estudantes, vizinhos...
Nesse sentido, a experiência de esbarrar literalmente e afetivamente com o imprevisível,
com o desconhecido, puxa fios e suscita em nós novas linhas, podendo gerar também estados
de estranheza. Não é simples entrar em contato com as implicações ético-políticas que surgem
a cada encontro, construí-las, mas de certa maneira, é também por esse percurso que os pés vão
ganhando confiança e firmeza para caminhar em solo instável. Para que seja possível
experimentar, é preciso um campo comum de sustentação da jangada que está para além e
aquém da dimensão instituída da formação. Não se pode dizer ao certo onde se encontra e como
se cria este campo que é engendrado a todo momento: pelos tons, tatos, olhares, ritmos, em
experiências sem receita pelas quais sentimos sutis instalações de diferença de estado, ainda
que pequenas, que podem passar despercebidas.

38
relaciono esta ideia – que também conversa com as problematizações entre o singular e o comum – com o que
dizem Deleuze & Guattari (1996, p.24-25) acerca da noção de corpo sem órgãos: “Porque o CsO (corpo sem
órgãos) é tudo isto: necessariamente um Lugar, necessariamente um Plano, necessariamente um Coletivo
(agenciando elementos, coisas, vegetais, animais, utensílios, homens, potências, fragmentos de tudo isto, porque
não existe “meu” corpo sem órgãos, mas “eu” sobre ele, o que resta de mim, inalterável e cambiante de forma,
transpondo limiares).”
45

"[…] eu pensei em quando eu mudei pra Santos né… e… eu achei muito estranho
ter um trem que andava no meio da rua, sabe? Porque eu sempre morei em São
Paulo, e… […] e aqui em Barueri a gente só vê carros andando na rua, a gente não
vê muito nem bicicleta. E aí, um dia eu tava andando na rua, né, tinha acabado de
me mudar e me dei conta que tinha um trem atravessando a cidade né e que eu
poderia ser atropelada por uma bicicleta, então eu tava na ciclovia, desatenta, fui
atravessar a rua e me dei conta dessas duas coisas e percebi que não tava mais na
casa dos meus pais, foi ali que eu percebi que tinha mudado de cidade, que agora
eu moraria sozinha." (voz das alianças)

Em cena o caminho que percorre uma estudante até a universidade; a ambiguidade não é
à toa. Produz-se um território a partir de um choque, de uma surpresa com a presença, neste
caso, de um trem e de bicicletas que mudam o curso, forçando o corpo a parar, a atentar-se, a
pensar. No relato, há um terreno recém pisado, vão se fazendo alguns primeiros passos e uma
desterritorialização se dá, se reconfigura um território com muitas misturas: filha, casa, Barueri,
estudante, Santos, trens, bicicletas; são modos de vida que passam a coexistir. Em alguns
momentos torna-se mais difícil notar a abertura de entretempos, como em situações de
recolhimento e ensino à distância onde uma espécie de blindagem se ergue, tendendo a impedir
a passagem de algo que desestabilize, que rompa com as fronteiras de um corpo que, nestas
situações, encontra-se muitas vezes solitário, retraído, entristecido. É rara a chegada de algum
traço que faça passar outros signos em nós, que constitua um comum temporário entre as telas;
se faz pelas frestas, pelos parênteses.

[…]
Faz um tempo bonito lá fora. Um dia meio típico de outono em que os cheiros
de comida, café, bolo, torta ou não sei bem do quê, tomam conta da rua, roubam o
cheiro do suor, das fuligens dos carros, dos perfumes fortes que me fazem espirrar.
Mas eu não cheiro nem café nem bolo, nem caminho pela rua, pego uma água na
cozinha e me dirijo pro computador. Dor nas costas, tensão concentrada no pescoço.
Olho o horário: 16:59. Vou esperar um pouco para entrar, penso: estamos tão
46

pontuais nesses compromissos online. 17h02, peço permissão pra entrar na sala do
meet39 que se faz de espaço para o grupo de estudos de Espinosa.
Peço licença para abrir um parêntese, é nele que o pensamento se dá (ouvia de
algum professor ou professora esses dias, não me lembro mais quem foi que disse).
O grupo tem me acompanhado de forma muito próxima desde, praticamente, o
início da pandemia, fortalecido, permitido conversas e se faz presente entre as linhas
que vou tecendo aqui, do início ao fim.
Depois de fechar o parêntese, entro na reunião. Com aqueles minutos de atraso
perdi o início da conversa e não sei como chegaram em certa musicalidade entre as
falas:
— Nossa, eu sou suuuuuper desafinada e olha que eu já tentei, acho tão bonito
quem canta…
— Ah… Eu sei de mais gente que toca aqui nesse grupo, hein, hehehe…
Nos olhamos, alguns se vêm, outros vêm aqueles que se vêm, mas não são
vistos em contrapartida. Damos alguns sorrisinhos…. Começa a contar um
participante que não conheço, nunca nem vi o rosto, a “bolinha” treme indicando
seu microfone que se abre.
— Hahaha, é… Eu toco desde pequeno, desde uns 8 anos, era moleque,
comecei a aprender violão nessa idade, depois fui tentando outros, cavaquinho,
flauta, piano. Sei um pouco de tudo, mas nada muito bem, hahaha… Mas gosto, sou
bem chegado com a música assim…
Os sorrisos continuam… Quando alguém fala sem a câmera eu me coloco a
imaginar, olho pro teto, mas também pros que reagem. Há um estalo de silêncio e
abertura que se coloca ali entre as telas e ele continua:
— Mas nesses últimos tempos eu fui tentar cantar, me aventurar. É uma coisa
meio engraçada, acho muito abstrato, trabalhar essa tal da caixa de ressonâncias.
Nos instrumentos vamos tirando as notas, é uma coisa mais palpável, no canto o
instrumento é nosso próprio corpo.
— Puxa, que bacana… acho que podíamos cantar algum dia juntos aqui, eu
adoraria — responde Adriana que conduz os encontros tocando delicadamente
nossos ombros com alfinetes macios, finos. Com um pouco mais de papo furado:

39
Meet é abreviação de Google Meet, plataforma digital para encontros em vídeo-chamada.
47

— Eu fiquei um pouco abismada quando a professora de canto me disse que eu


não tinha ouvido, sei lá, não consigo perceber as notas, as escalas, dó, ré, mi, fá…
Tenho uma dificuldade. E penso, como posso não ter ouvido se justamente o que
faço é escutar as pessoas?
— Aí é que tá a beleza… A gente escuta com o corpo e não com o ouvido…
escuta um gesto, uma cor, um signo.
Agora sim, fecho o parêntese.

Abre-se um entretempo nos minutos iniciais de uma reunião online, causando um desvio
no projeto já pré-concebido de, neste caso, estudar a obra de determinado autor.
Paradoxalmente, são justamente nesses momentos que parecemos criar um território aberto ao
pensamento. Surge uma espécie de corredor por acasos que são sustentados coletivamente.
Oscilamos entre a assepsia, o contágio, alguns possíveis; os ambientes estéreis em termos de
pensamento e ação tornam-se mais presentes, diminuem potências de agir, mas há faíscas de
vez em quando.
Sorrateiros que são, sempre à espreita40, os entretempos vão se dando e, de certa
maneira, configuram um território comum com a chegada de eventuais movimentos que o
fazem fugir41, modificar-se – vice-versa e sucessivamente – em processos de vida e formação.
Carregamos no corpo as reverberações dos encontros, com eles pensamos e produzimos
espaços-tempo que se fazem vivos ao serem habitados pelas intensidades que nos atravessam.

Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo


pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar espaços-tempo, mesmo de
superfície e de volume reduzidos. […] É ao nível de cada tentativa que se avaliam a
capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se
ao mesmo tempo de criação e de povo (DELEUZE, 1998, p. 213).

40
"Sabemos que precisamos estar à espreita de surpreendentes entretantos que vagalumeiam nos aprendizados e
nas pesquisas, pois estas não deixam de ser variantes de aprendizados." (ORLANDI, L., 2016). Disponível em:
https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2016/06/28/problemas-em-estado-fetal-e-entretantos-
intensivos-luiz-orlandi-video-6-minutos-e-49-segundos/ acesso em: 12/12/2021)
41
Certa prudência é necessária à experimentação; não trata-se, portanto, de processos que desprezam paradas e
recolhimentos, mas justamente o contrário. Importa criar antenas para aquilo que pode um corpo a cada vez e a
cada caso, que por vezes pede menos exposição às forças do caos, pois as feridas podem estar demasiadamente
abertas. Conforme Deleuze e Guattari (1997, p.27): “O pior não é permanecer estratificado – organizado,
significado, sujeitado – mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós,
mais pesados do que nunca. Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar as
oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização,
linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por
segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra.”
48

4. UM CORPO ENTRE SENTIR E PENSAR UM CLIMA

"Eu vi uma lagartixa no banheiro né. E nesse dia, vendo a lagartixa no banheiro eu
pensei, que ela mora ali com a gente né, porque eu já tinha visto ela em outros dias,
em outros lugares, às vezes na sala, no corredor, às vezes pelo prédio, na minha
cabeça é a mesma que tá morando com a gente. E aí nesse dia ela tava no banheiro
e eu ia tomar um banho e ela se aproximou perto do box e ficou paradinha. Eu me
abaixei pra ver ela bem de perto, e fiquei um tempo observando ela. Eu fiquei vendo
o corpo dela, a transparência dela, as patas dela que eu nunca tinha visto desse jeito
e eu achei muito bonitinhas e também a respiração dela, e isso foi muito
impressionante. Eu não sei, a gente vê uma lagartixa e às vezes não consegue ver a
complexidade assim desse ser vivo né e eu fiquei ali observando a respiração dela
e eu nunca tinha feito isso e já fiz por exemplo de observar a respiração do meu
cachorro, ficar vendo o corpo dele subindo e descendo e às vezes tentando conciliar
a minha respiração na dele como se isso me ajudasse a fazer uma espécie de
meditação, e aí eu me vi fazendo isso com a lagartixa. E aí depois ela se mexeu e
entrou pra dentro do box e tinha uma água assim paradinha como se fosse uma
piscininha pra ela, e aí quando ela tava nessa água paradinha eu vi o efeito da
presença dela ali naquela água, e a respiração dela também fazia a água mexer,
pequenos gestos que dava pra perceber na água. E eu fiquei fascinada um tempo
por aquela visão que eu tava tendo, muito concentrada e admirando algo que eu
nunca tinha parado pra admirar, sabe, e que talvez eu nem achasse que fosse alvo
de admiração. Depois ela se mexeu, acho que ela se entediou de ficar ali, eu entrei
pra tomar meu banho e ela ficou num cantinho. E naquele dia eu fiquei pensando
que eu tava tomando banho com a lagartixa que mora com a gente." (voz das
alianças)

São por efêmeros e pequenos gestos que dá pra perceber um encontro entre a estudante,
a água, a lagartixa, a respiração… faz-se uma espécie de meditação ao entrar em contato com
outro corpo, neste caso com o da lagartixa, buscando lentamente certa sincronia – neste caso –
entre os ritmos das respirações. Um corpo sente as intensidades que lhe chegam uma vez que
se conjuga com outro, experimentando variações provocadas nessa relação. Parece instaurar-se
um instante gordo de tempo quando a estudante permanece observando o movimento da água
na pequena piscininha em que se encontra a lagartixa e, segundo ela, é o bicho que se entedia.
49

Deleuze (1992, p. 53) diz: “que não pensamos sem nos tornarmos outra coisa, algo que não
pensa, um bicho, um vegetal, uma molécula, uma partícula, que retornam sobre o pensamento
e o relançam.”
Talvez possamos questionar a ideia de que um bicho e um vegetal não pensam, já que
podem pensar a seu modo de existência, a partir de sua natureza e composição, considerando
também outras concepções de pensamento e conhecimento que não só o dito racional e mental
e, sobretudo, ocidental. Apesar e com isso, uma questão que parece estar presente em processos
de formação – também porque a sondamos – relaciona-se à evidente importância de combinar-
se com outro corpo para que se possa pensar. Acerca destas alianças com todas as
possibilidades, em um conjunto de elementos que não se referem tão somente às relações ditas
humanas baseadas em certa noção de sujeito psicológico separado do mundo e da natureza:

Possibilidades de aliança não se dão só no plano das relações sociopolíticas, no plano


das ideias, no que é possível estabelecer de colaboração entre uma nação e outra, entre
uma sociedade e outra. Quando eu vou a um riacho, a uma fonte, a uma nascente e
sinto beleza e fico comovido com a água que está naquela fonte, naquela nascente, eu
estabeleço uma relação com ela, converso com ela, eu me lavo nela, bebo aquela água
e crio uma comunicação com aquela entidade água que, para mim, é uma dádiva
maravilhosa, que me conecta com outras possibilidades de relação com as pedras, com
as montanhas, com as florestas. As relações não são percebidas como potência que
ocorre só entre pessoas, no sentido comum em que nós entendemos as pessoas, as
relações humanas, as relações sociais. Elas são alianças com muitas outras potências
que estão dadas, que são possíveis. O raio, a chuva, o vento, o sol, a brisa, as paisagens.
Aliança é troca com todas as possibilidades, sem nenhuma limitação (KRENAK,
2016, p. 172).

Na cena deste encontro com a lagartixa, que para quem lê retoma certamente outros
traços singulares, percebe-se que, a despeito de já partirmos da ideia de que formação e vida
são inseparáveis, a vida faz questão de aparecer não apenas no título do trabalho, mas,
principalmente, insistindo entre as situações e análises. Digo que insiste pois em processos de
pesquisa vamos, muitas vezes, distanciando-nos dos afetos suscitados por algum encontro,
soltando os fios que nos conectam com experiências vitais; uma dimensão viva pode ir se
perdendo não somente nas pesquisas, como também em processos de ensino-aprendizagem e,
evidentemente, no cotidiano já que políticas ativas e reativas incidem e criam diferentes modos
de existência.
Corremos o risco de esquecer as narrativas em águas turvas de turbilhões de conceitos
e aqui não é diferente. É, entretanto, em instantes como o de um banho com uma lagartixa que
somos invadidos por alguma centelha de vida que movimenta sensações e ideias. A travessia
de algum signo, fazendo remexer um corpo, pode acontecer quando se menos espera e na
50

maioria das vezes passa menos pelo registro da “compreensão” racional e mais pela ativação
de um corpo vibrátil que afeta e é afetado e nesse caso também se compreende algo (ROLNIK,
1989, p.25). Em certas situações sentimos vibrações de tais ordens como que nos picando;
chegam em nós por doses de violência que não destroem um corpo, mas rearranjam seus limites.

Uma felicidade cheia de an, cheia de in, cheia de on42


Chegamos na Bacia do Mercado por volta das 17h30 e já estava anoitecendo.
Éramos cinco estudantes, dois professores e logo a roda foi se abrindo com a
chegada e passagem de alguns. Reginaldo que nos esperava foi sugerindo músicas:
— Vamo de Cazuza, aquela lá que a gente tocou da última vez!
Ele se sentou sobre um dos pufes e segurou o djembê. Permaneceu com ele
durante quase todo o encontro.
É difícil me lembrar e descrever alguns acontecimentos. Em meio às músicas
uma mulher me chama atenção, seus gestos. Olhava para baixo, balbuciava palavras
que eu não conseguia escutar direito. Mexia o corpo para frente e para trás. Pude
compreender o que disse quando cantamos a música Pais e Filhos de Legião
Urbana. Para ela, o refrão era diferente:
— É preciso odiar o presidente como se não houvesse amanhã…
Continua:
— Esse que não gosta de pobre, não liga pra gente. A gente que sabe o que é
ser pobre nesse país.
Nós continuamos com a música. A professora Simone estava ao seu lado, de
vez em quando trocavam algumas palavras.
Um pouco depois, um homem pede Maluco Beleza, canção frequente nas rodas.
Começamos a cantar praticamente todos juntos: enquanto você se esforça pra ser
um sujeito normal… A mulher pega no meu braço com muita força e me diz:
— Você que se esforça pra ser normal! Eu sou louca mesmo e assumo!
Continuava a segurar meu braço. Naquele momento nada passava pela cabeça,
mas pelo corpo muita coisa. Não fiz nada, deixei que segurasse meu braço até soltar.

42
Um encontro com tensões, nada redondo, idílico e puro. Acerca da problematização do isso ou aquilo, do ame-
o ou deixe-o, ver a canção de Tom Zé de 1972 que desnaturaliza a pureza da missão da felicidade, a figura
romântica em nós da genuína, autêntica felicidade na composição “menina amanhã de manhã” que diz: […] a
felicidade, é cheia de praça, é cheia de traça, é cheia de lata […] é cheia de an, é cheia de en, cheia de in, é cheia
de on […] Ver também em Tom Zé Menina Amanhã de Manhã + Explicação sobre história da música. Disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=HsYGpCVSa6A. Acesso em 05/12/2021.
51

Olhei para ela, mas não imediatamente. Tive medo. Procurei em volta para ver se
alguém via o que se passava. Por instantes desengatei da roda. O que ela dizia e seu
gesto entrava no corte e intervalo da música, era alguma outra música.43
Nesse momento Jonas estava lá, pude ouvir sua voz forte e potente de novo.
Enquanto ele cantava, a mulher solta meu braço, vira pra mim e aponta para Jonas:
— Aquele é meu filho.
— Ele canta muito bem! — eu digo a ela.
Ela sorri, dizendo:
— Precisamos de cultura aqui, mostrar o quê que é música mesmo pra esse
povo. Cadê Cartola, Tom Zé… tanta coisa boa pra tocar, tem que tocar cultura!
Toca uma dessas?
— Qual você quer do Tom Zé? Vou tocar uma aqui. — Eu deslizava o dedo
pela tela do celular, buscando a primeira cifra que aparecesse e ela solta:
— Eu só quero que você deixe de ser falsa.
Sem saber o que responder, encontro a cifra de Menina, Amanhã de Manhã e
começo a tocar apressada. Ela canta comigo, junto da professora e de alguns
estudantes.

Menina a felicidade
é cheia de graça
é cheia de lata
é cheia de praça
é cheia de traça.
Menina, a felicidade
é cheia de pano,
é cheia de pena
é cheia de sino
é cheia de sono.
(Tom Zé)

43
“Em uma conversa, às vezes, o que conta não é tanto o que se diz, mas o corte e a sequência, a marcação das
sequências, o que interessa é escutar as sequências de uma espécie de música, e, frequentemente, o que se diz no
interior dela não tem importância maior” (TOSQUELLES, 1985).
52

Como se conjugam os corpos nesta narrativa pouco consonante? Talvez relações


diferentes de distância e aproximação poderiam ter lhe dado outro tom, ao mesmo tempo, não
controlamos os gestos da mulher; o encontro acontece e estamos ali, no meio. O intervalo entre
os acordes cria outra música que coloca em questão alguns tensionamentos referentes à
presença de corpos bem arrumados, brancos, limpos e supostamente sábios da universidade em
meio à loucura, às fuligens dos caminhões que passam, aos que chegam bêbados, às vezes com
fome. É preciso odiar o presidente que não gosta de pobre e de certa maneira nós também
estamos dentro do jogo já que carregamos conosco posições de saber-poder. Corpos são sempre
políticos, mas nem sempre nos damos conta disso.
Com esse conjunto de problemas, o próprio dispositivo da roda de música coloca em
curto-circuito arranjos pré-estabelecidos de como poderiam se dar essas relações. Os gestos da
mulher vão ao encontro disso, colocando em xeque regimes morais de representação que criam
simples dicotomias e consideram um modo de vida mediano enquanto bom, verdadeiro, puro;
ela entoa: Você que se esforça pra ser normal! Eu sou louca mesmo e assumo! e Quero que
você deixe de ser falsa. O braço que dói ao ser apertado pensa e naquele momento pouca coisa
passa pela cabeça. Um arrastão de signos e nenhum deles é a interpretação e saída derradeira
do que ocorre.
O encontro é cheio de praça, cheio de en, cheio de in, uma alegria momentânea. Há a
tentativa de estabelecer acordos, cria-se uma conversa possível pela canção de Tom Zé que a
qualquer momento pode, novamente, tomar outros rumos. Nesse sentido, interessa uma ética
que busca investigar o que nos atravessa em termos de forças e afetos em cada situação,
distanciando-nos de uma estrutura ou armação prévia que julgará determinado encontro
enquanto bom, mau etc.
Há limiares de exposição muito distintos entre o acontecimento na rua e aquele relatado
pela estudante. Uma vizinhança entre os dois juntamente com as outras situações relatadas
desde o início do trabalho pode, entretanto, nos dar pistas acerca de um saber que se constrói a
partir daquilo que chega até o corpo, um saber que podemos chamar de pático e que “não
procede de uma discursividade concernente a conjuntos bem delimitados, mas antes por
agregação de territórios existenciais” (GUATTARI, 1992, p. 161). Apreende-se e se cria um
clima nos encontros e pela escrita das narrativas; “lendo a narrativa a gente capta um clima”
escutei certa vez de um dos participantes do grupo de orientação. Ativa-se um saber do pático
53

em momentos de maior permeabilidade, onde um corpo se deixa afetar por algumas coisas, por
outras menos, preserva uma fragilidade, uma abertura ao encontro44.
Na formação, na vida, na clínica – instâncias fluídas que coexistem – interessa buscar o
que pode ativar um corpo vibrátil, quais os fatores de afetação singulares e como podemos notá-
los, deixar que se expressem, ao mesmo tempo que instalá-los também ativamente: “encontrar
algo que desperte teu corpo vibrátil, algo que funcione como uma espécie de fator de
a(fe)tivação em tua existência. Pode ser um passeio solitário [...] um cheiro ou um gosto…
pode ser a escrita, a dança, um alucinógeno, um encontro amoroso – ou ao contrário, um
desencontro…” (ROLNIK, 1989, p. 36). O clima que captamos também diz respeito às redes
que tecemos que, como já foi dito anteriormente, variam de temperatura. Entre variações, ir
percebendo que arranjos no/do território aumentam sua potência de agir, por quais fios a vida
busca insistir.

Entreconversas
Olhos para baixo. Um sorrisinho no canto da boca. Percebo uma inclinação sutil
e os movimentos dos dedos que digitam algo…
Digitando…
Digitando…
Alguma entreconversa há ali. Algum cochicho no meio da aula, da reunião,
bilhetinho ou a estratégia quer for. Geralmente são dois ou mesmo três sorrindo na
tela, levantando sobrancelhas, arregalando os olhos, mão na boca pra segurar o riso.
Tem vezes que quando acontece comigo até desligo a câmera. Vão pensar que é
deboche. Bruna digita… digita… eu mudo de aba, leio o que ela escreveu, mas o
que mais gosto é voltar rapidamente pra tela do meet pra ver sua reação. Que
gostoso é ver sua reação.
A gente saca quando é com a gente, mas tem um olhar e um riso que salta pelos
quadradinhos e que também pode chegar em qualquer um que engate e queira
participar do lance, às vezes sem nem estar na aba paralela. hihihi, hihihi…

44
Com relação à abertura ao saber pático que passa por certo registro sensível no pensamento (PELBART, 2013,
p.31) diz: “Como então preservar a capacidade de ser afetado, senão através de uma permeabilidade, uma
pas•sividade, até mesmo uma fraqueza? E como ter a força de estar à altura de sua fraqueza, ao invés de permanecer
na fraqueza de cultivar apenas a força? […] para dar passagem a outras forças que um corpo excessivamente
“blindado” não permitiria.”
54

Outro dia, em uma aula de TS, uma colega abre a câmera depois de certa
insistência por parte dos docentes de fazermos uma rodada de partilha de sensações
e diz:
— É raro eu me sentir à vontade. Geralmente assisto todas as aulas deitada, não
tenho vontade de participar, de ler. E me sinto culpada de não conseguir… Tenho
tudo, tenho um espaço pra estudar, pra conseguir me concentrar, muita gente não
tem isso.
Eu prestava atenção em um gato preto que deslizava atrás dela, pelo sofá, pelo
teclado, pelo murinho da janela, ele se exibia pros telespectadores. Permaneceram
ali por perto até o final da aula o gato, ela e eu.

Às vezes aferimos temperaturas mais frias em situações de ensino-aprendizagem,


presenças protocolares45, e para que não caiamos em rápidas conclusões, isso não ocorre
somente no ambiente virtual. As situações vivenciadas neste contexto, entretanto, podem nos
ajudar a levantar perguntas importantes para pensar processos formativos: como está o corpo
de uma estudante que assiste todas as aulas deitada, que não percorre mais os trajetos de sua
casa até a universidade; que afetos são possíveis a cada vez e quais estão passando por ela neste
momento? Podemos pensar, ainda, com o que diz (DELEUZE, 1988): “Qual é a natureza das
relações entre elementos para que haja desejo, para que eles se tornem desejáveis?” Que
combinações de afetos fazem com que uma aula, por exemplo, torne-se um espaço de
pensamento? O conhecimento pático não se refere tão somente ao campo dos afetos, mas
sobretudo à ativação do sensível enquanto potência do pensamento46.
Somos atravessados por hihihi, trocas de olhares, conversinhas na aba paralela,
compartilha-se uma paisagem com o gato que desliza pela tela; as entreconversas abrem sutis
intervalos entre os "objetivos” de determinada aula, reunião, visita de campo. Na narrativa há
imagens dos traços inauditos de um encontro entre elementos arrastados por cada um ali
presente e que se misturam, orbitam em torno de uma atmosfera comum; não se sabe ao certo

45
Os autores Federici, Liberman e Guzzo (2021, p. 4) vêm estudando a instalação e ativação do que chamam de
presença, questionando-a enquanto molde protocolar em experiências de ensino-aprendizagem e suscitando outros
problemas relacionados sobretudo aos encontros no ambiente virtual, mas não apenas: “existiria uma presença
ideal? Não seria essa mais uma imposição do nosso tempo? Quem está de câmera fechada, não está presente? E
quem está na aula, lavando a louça ao mesmo tempo, está ausente? Existe uma presença melhor que a outra? […]
ela não é imposta. Ela acontece pela via do desejo, do prazer, da necessidade de estar e partilhar questões comuns.”
46
"Ora, segundo tal perspectiva, o desafio para Deleuze não seria apenas privilegiar o sensível ou o afeto, porém
o sensível e o afeto no pensamento, o sensível e o afeto como uma potência do pensamento - em suma, potência
sensível e inconsciente […]” (PELBART, 2013, p. 298).
55

o quê é de quem, são intensidades. O corpo intui uma conversa, passa por ele fluxos de afetação
em um encontro que é sempre múltiplo, também sentimos dissonâncias emitidas pelos tons das
vozes e dos gestos, interferências chegam de todos os lados.
Bem, se desejamos em um conjunto de elementos, o que faz pensar pode ser a presença
de um ponto deste conjunto que, justamente, ativa o corpo. Isso acontece quando encontramos
alguém ou algo – uma música, um poema, um cheiro, um som – que cabeceia a bola do
pensamento, muitas vezes inesperadamente, participando daquela conversação que também se
faz em silêncios e pausas. Alguns tons rígidos com suas palavras de ordem buscam impedir as
aberturas, outros tons fazem ruir certezas, instauram hesitações, novas perguntas. Interessa
perceber que afetos, em súbitas lufadas de vento, fazem acender as chispas outra vez,
impulsionando o pensar47.

Abrindo alguma porta e câmera


Estamos em 2021. Primeira semana de aula, alguns dias e uns quebrados de
janeiro. Nem parece que virou o ano entre tudo que vira e atropela. Sinto como se
todo movimento que fizéssemos implicasse em cambalhotas às vezes difíceis de
virar. Está fazendo um calor insuportável para ficar dentro de casa diante do
computador e tenho a impressão de que ninguém aguenta mais. É desse jeito meio
cambaleante que vamos indo.
Comi um prato de arroz e feijão reforçado antes de entrar na chamada de vídeo
com uma docente e duas estudantes que vão acompanhar48 uma mulher de meia
idade que já tem seus caminhos envolvidos há algum tempo com redes de seu
território.
Enquanto monitora chego meio sem saber como seria, as estudantes também
pareciam não saber.
Sem muitas delongas, Marina chega já com a câmera aberta. Se movimentando
em direção a seu quarto (em suas palavras), ela diz:
— O que vocês querem saber? Posso contar um pouco de mim…

47
Romain Rolland (2020, p. 25) ao contar de seu encontro com o pensamento de Espinosa, que poderia relacionar-
se com os encontros em geral: em uma aula, em práticas, no cotidiano etc., relata: “O maior livro não é aquele cujo
comunicado se imprime no cérebro tal como a mensagem telegráfica sobre um rolo de papel, mas aquele cujo
choque vital desperta outras vidas e, de uma a outra, propaga seu fogo, que se alimenta das essências diversas e,
tornando-se incêndio, de floresta em floresta se alastra.”
48
Trata-se de uma experiência no módulo de Clínica Integrada: produção do cuidado que como já fora citado
anteriormente, tem como proposta principal a criação de um projeto terapêutico singular construído entre
estudantes de diferentes cursos, juntamente com as pessoas e/ou grupos acompanhados.
56

— Sim, Marina, é isso mesmo… se puder contar um pouco de você, a ideia do


encontro de hoje é que a gente possa se conhecer um pouco.
— Então… Eu cuido de muita gente aqui em casa. Sou mãe de um filho de dez
anos, outro de três, esse tem dificuldade de ficar quieto, ele não para quieto, então
é bem difícil… Mas eu tô acostumada, pra mim não é tudo isso como o povo fala
não, que ele tem problema… Cês vão ver, daqui a pouco ele tá aqui gritando mamãe,
mamãe. Minha mãe me ajuda, mas ela já tá velha, coitada…
— Pelo o que você diz parece que tem muita coisa pra você dar conta aí, né…
e você consegue ter momentos mais seus, fazer coisas que gosta?
— É, meninas… isso é o que eu posso contar de mim porque é o tempo todo
cuidando dos moleques, do marido, não sobra muito tempo pra mim não. Às vezes
o que sobra é pra eu pensar enquanto limpo as escadas aqui dos prédios, o dono
aqui é gente boa e conseguiu esse trabalho pra mim. Não é bem um trabalho oficial,
mas…
As estudantes escutavam, faziam perguntas interessadas, corpo inclinado em
direção à câmera, olhos que desviavam pouco. Os silêncios, entretanto, tínhamos
dificuldade em sustentar. Nas pausas entre as frases, as telas se observam com
algum estranhamento.
— Bom, você trabalha muito né. Tudo o que você faz em casa já é um trabalho
importante… E pode se sentir à vontade para estar aqui quando puder, e quando
não sentir que é possível, fala pra gente, esse é um espaço pra você, não é pra ser
mais uma tarefa.
— Sim, mas eu fiz um compromisso com vocês, também não vou ficar
deixando vocês na mão. Eu preciso de um horário estabelecido, se não eu não paro
mesmo. E eu não posso deixar o menino com o pai né…
— Por que?
— O pai tem problema com drogas. Mas eu cuido dele, não tenho coragem de
colocar ele pra fora, se eu colocar ele vai pra onde? Não tenho coragem… — Ela
chora um choro curto, algumas lágrimas escorrem.
Certo silêncio se faz necessário…
— Eu choro porque às vezes é difícil, mas eu já tô acostumada, viu? Eu e
minhas primas, a gente chora junto, elas tão sempre aqui pra me ajudar, é tipo uma
terapia em grupo e se uma tem uma dificuldade financeira a outra vai lá, ajuda…
57

no condomínio também. Esses dias uma vizinha bateu aqui e disse que tava
passando fome, eu sou pessoa de ver o outro passar fome e não ajudar? Daí a gente
fez uma vaquinha né e comprou uma cesta pra ela… Assim a gente vai se ajudando.
Eu sentia um alívio de estar ali, certa alegria em estar mais próxima da vida.
Me perguntava o que fazia Marina abrir a porta e a câmera de sua casa para este
encontro conosco. A sensação de movimento veio mais forte quando um estudante,
durante a supervisão que ocorreu pouco tempo depois junto às professoras daquele
campo, fez uma pergunta acerca do encontro que viveu em um outro
acompanhamento online naquele mesmo dia.
— Ela é muito simpática. Eu tava muito ansioso sem saber como seria, se ela
ia aparecer, mas ela foi tão aberta e alegre… Mas eu tô com uma dúvida, eu queria
saber o que eu faço. O que eu digo pra ela. Eu vou receitar os exercícios pro joelho?
Porque nos outros módulos a gente tem um objetivo mais claro né? Fazer dinâmicas
pro grupo, escutar e fazer a narrativa da pessoa…
— Arrisco dizer que não temos resposta pra isso. É com a dona Célia que você
vai descobrir. — responde a docente.
— Mas, tipo, eu pergunto então pra ela o que ela espera? Eu posso fazer essa
pergunta?
— Se você sentir que sim, pode ser importante. Mas talvez ela não saiba ainda
qual é a demanda dela, ela pode dizer o que você quer ouvir enquanto profissional
de saúde. Vocês podem construir alguma intervenção possível juntos.
Ele abre a câmera, olhos concentrados, agradece.
Não sei o que chegou ali, se chegou. Entretanto, quando a partir de uma
angústia colocada a resposta que damos não pode aliviar a incerteza, mas puxar fios
de inconstâncias e aberturas necessárias para construir algum cuidado e certa
formação, percebo que vamos caminhando.

É em encontros entre territórios diversos que se pode entrar em contato com o


desconhecido, buscar sustentá-lo um pouco mais e, diante dele, colocar perguntas que muito
provavelmente não seriam feitas em ambientes restritos a aulas expositivas e reuniões. O
encontro com as dores e alegrias de uma vida convida a pensar, apesar de parecer difícil que
possa fluir certa conexão entre as telas bidimensionais, com eco, cachorro latindo, carro dos
ovos passando, internet travando. Talvez esses elementos, paradoxalmente, escancarem uma
58

realidade de precariedade e falha importantes à percepção e criação de redes de cuidado em


certa clínica rugosa, de vais e vens. Nesse sentido, Deligny (2018, p.30) diz que: "o único
suporte que possibilita a rede é a brecha, a falha. Se se tratar de uma janela, a rede se torna
cortina."
A dificuldade de expressão em ambientes virtuais serve de deixa para levarmos nossa
atenção aos gestos que vão sendo milimetricamente moldados e polidos ao longo da formação.
Nos deparamos com um campo do fazer por objetos de estudo, onde as perguntas acerca dos
objetivos do "projeto pensado", os para quê serve?, antepõem-se, muitas vezes, às variações e
possíveis que um encontro pode suscitar. Nesse sentido, a formação também cria corpos cheios
de si e munidos de teorias pelas quais buscam compreender e nomear rapidamente as
experiências. Acerca dessa problemática, Adriana de Azevedo (2018, p. 32-33) relata:

Este hábito do fazer, da finalidade é constitutivo de nosso cotidiano. O próprio


processo de formação é marcado pela ansiedade de dar sentido a cada módulo e
atividade proposta. Mesmo os estudantes incorporam esta lógica ao questionarem:
“para que serve um módulo curricular, uma atividade de ensino?” ou “o que isso tem
a ver com a formação da área profissional que escolhi?”. Muitos deles colocam a
necessidade de aproveitar seu tempo de formação da maneira mais útil possível. É
essa capacidade de estar presente, à espreita na experiência, que parece tão difícil de
ser conquistada, já que, comumente, é tida como sem sentido para uma formação em
saúde. A pista de Deligny está na luta contra o imperativo da finalidade, convocando
a uma capacidade de rastrear, localizar trajetos e gestos novos. O que está colocado é
o embate entre o projeto pensado e o agir.

O fazer e o agir misturam-se, compõem-se nos encontros. Há em nós uma ânsia em


responder apressadamente perguntas acerca do que fazer com determinado caso, de como
encaminhá-lo e resolvê-lo, ao mesmo tempo em que se inclinam corpos e ouvidos atentos, que
abrem igualmente alguma porta-câmera do lado de cá. Um conhecimento pático está sempre
presente e suas dosagens dependem dos estados de determinado corpo, passando por
necessidades supostamente básicas como comida, água, descanso e por ativações, reações,
defesas e aberturas que nele incidem. Neste embate de forças, aprendizados disparados a partir
de um deslocamento não se referem àquilo que é "processado" pela cognição consciente, mas a
questionamentos vitais. Luiz Orlandi (2016) diz que:

Enquanto este ou aquele aprendizado vai ocorrendo ao longo de um tempo


cronológico, criam-se entretantos inesperados, acontecem entretempos intensivos.
[…] cria um meio-tempo dinâmico, tensionado no jogo de forças do questionamento
vital, jogo favorável ao aprendizado, sim, mas que a consciência aprendiz não
tematiza simultaneamente e, muitas vezes, nem depois.
59

Nos encontros experimentar junto, sentir o cheiro e o clima, recuar, avançar, ouvir os
tons, encontrar espaço e fazer algo fugir. Pensamos porque somos afetados, e às vezes,
anestesiados pelos impulsos incessantes do contemporâneo, esquecemos que sentimos e que
também é possível revirar aqui e ali, tentar outro jeito, apertar um pouco a barriga, saber que
às vezes dá pra você fazer diferente, de vez em quando.

"Você já ouviu eu dando risada né? aquela minha risada silenciosa. Mas agora na
pandemia eu não sei o que eu tava assistindo que eu comecei a dar essa risada
silenciosa e daí eu decidi experimentar um pouco do corpo assim, apertar um pouco
a barriga, mudar um pouco a respiração, não sei exatamente o que que foi e aí a
minha risada começou a fazer um sonzão e eu achei aquilo tão engraçado… que eu
continuava a rir por causa disso, tava rindo por causa da minha risada, de poder
ouvir um som da minha risada. Eu sempre achei muito legal a minha risada ser
silenciosa né, mas é bom saber que às vezes dá pra você, de alguma forma, fazer
diferente, com que o seu corpo emita som e eu gosto de ouvir de vez em quando."
(voz das alianças)
60

5. ÚLTIMAS COSTURAS, POR ORA

Com os pingos gelados que engrossavam cada vez mais sobre nossas costas,
caminhávamos tão rápido quanto a noite que caía. Eu já sabia mais ou menos onde
estávamos pelo cheiro doce, maduro, quase estragando, que tomava conta daquele
trecho com pés de jaca aos montes. Giovana fala, de repente, quase sussurrando:
— Gente, desliga a lanterna, desliga a lanterna!
Paramos, fechamos e abrimos os olhos algumas vezes. Deixamos que caíssem a
chuva e a noite e permanecemos ali, assistindo o sutil cintilar de uma trupe de
vaga-lumes...

Precisei esperar um tempo sensível e cronológico até finalmente conseguir escrever as


linhas que se seguem. Não sei ao certo o porquê, talvez não quisesse acabar ou sentisse uma
dificuldade em o fazer por notar que o trabalho não está pronto, se abre sem cessar a outras
questões. Muitas vezes fugi deste estado, quis dar conta de tudo, e o problema da insuficiência
ainda me perturba e certamente não só a mim. Entretanto, com o passar das variações do
percurso, pude ir afirmando o caráter de inacabamento da pesquisa ao passo que percebia que
este se refere justamente a processos de formação e vida em que não se está totalmente
constituído e formatado.

Gombrowicz referia-se a um inacabamento próprio à vida, ali onde ela se encontra


em estado mais embrionário, onde a forma ainda não “pegou” inteiramente e a atração
irresistível que exerce esse estado de Imaturidade, no qual está preservada a liberdade
de “seres ainda por nascer”… Porém, será possível dar espaço a tais “seres ainda por
nascer” em um corpo excessivamente musculoso, em meio a uma atlética autos-
suficiência, demasiadamente excitada, plugada, obscena, perfectível? (PELBART, p.
31, 2013)

Certa imaturidade nos convoca à experimentação, a uma abertura a mundos. Ganho


coragem e escrevo as últimas costuras, o que não quer dizer que se fechem completamente os
pontos. Fechamentos por completo não se dão nunca, mas a peça precisa de certa firmeza para
poder seguir. Escrevo, então, com a intenção de colocá-la em circulação, ouvir outras ideias e
sensações, fazer respirar. E, ainda assim, este é só um começo.
Dar espaço a algo ainda por nascer parece trabalhoso nos tempos que vivemos,
demandantes de prontidão, aperfeiçoamento e performance constantes ainda que o planeta
esteja suplicando por uma trégua. Com o enxugamento da pulsão vital por um poder que visa
61

nos invadir de paixões tristes, pensei que em muitos momentos já não havia mais corpo e que
havíamos perdido a espessura dos acontecimentos que nos fazem sentir vivos. Nesse cenário,
as provocações que enviei por whatsapp foram uma tentativa de continuar afetando e sendo
afetada e de, então, continuar pesquisando, ou de criar uma maquininha de dialogar e escutar,
como disse certa vez uma amiga querida.
Com a germinação lenta e irregular de outro corpo, vou percebendo que sim, o corpo
insiste e, mais do que nunca, me vejo forçada a pensar em como seguem os processos de
formação e em que indagações podemos fazer diante dos movimentos que operam muitas vezes
nos paralisando. Em alguns dias não parece haver luz no fim do túnel e, paradoxalmente, o mais
assustador não é o escuro49, mas a luz ofuscante que por tantas e tantas noites não deixa dormir,
uma luz que faz da noite um período de vigília incansável de um mundo iluminado por
projetores que varrem outros mundos.
De vez em quando desviamos da luz em demasia e, ao fecharmos e abrirmos os olhos,
alguma imagem nos surpreende. Uma pequena imagem, às vezes de um choro, de um grito, de
um apertão no braço, de um vômito no barco, de uma lagartixa supostamente insignificante.
Com menos pressa, deixamos cair a noite e observamos a delicada e intermitente coreografia
dos vaga-lumes, dos entretempos de frágil luminosidade; uma dança que "se efetua justamente
no meio das trevas. E que nada mais é do que uma dança do desejo formando comunidade"
(DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 55).
Surgem muitas vezes por acaso, precisam de pouca luz para que possam ser vistos e
também parecem pedir um ajuste-reajuste constante da visão e do foco. Brincam com nosso
corpo: percebemos um ponto na noite escura que acende aqui e depois ali, e... permanecemos à
espreita esperando para ver onde é que vai piscar novamente, e... nos deslocamos, desviamos o
olhar de lá pra cá, às vezes somem de repente. Talvez as experiências de formação e vida que
atravessam o trabalho tenham algo deste lampejo encantador e efêmero dos vaga-lumes.
Obscuras, se passam entre e compõem a espessura do cotidiano, são a matéria viva e
efervescente dos dias, dizem respeito àquilo que chama nossa atenção e que muitas vezes a

49
São sempre os encontros que fazem escrever. Coincidentemente – ou nem tanto assim – na mesma semana do
episódio dos vaga-lumes, encontro com o texto de Didi-Huberman (2011) acerca da sobrevivência dos vaga-lumes
e com um escrito de Jaider Esbell (2021, p. 88 e 90) publicado no catálogo da 34ª Bienal de São Paulo – Faz escuro
mas eu canto, onde ele diz: "Como bichos do lusco-fusco, estamos juntos a cantar, pois somos artistas de entremeios,
ainda. Flanamos, bem devagarinho, unindo versos que surgem. [...] não, o escuro não é o problema. Se há problema é
com a nossa falta de visão. Quem anda em mundos paralelos sabe regular o foco à ocasião. Foi muita luz, luz em
demasia. [...]"
62

trapaceia em sustos. Sabemos que seremos surpreendidos por outros tantos sustos em situações
que fazem sumir nossas certezas. Quando surgirem, podemos lhes dar nomes e acabar logo com
isso ou, talvez, buscar sustentá-las e estranhá-las um pouco mais. Mas para poder ver outra
coisa entre a luz ofuscante do tempo presente, é preciso criar um corpo em relação, em
inusitadas combinações que vão lhe dando sinais do que pode este corpo, de como ele afeta e é
afetado; " [...] sinais, singularidades, pedaços, brilhos passageiros, ainda que fracamente
luminosos." (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 43).
A recolha e a escrita de relatos e narrativas ativaram em mim uma espécie de antena
para alguns destes sinais, algumas das questões acerca da formação. Aqui narrei e pensei com
estes causos, mas a pesquisa surge e permanece como um convite para que sejam contadas e
criadas narrativas de encontros com outros territórios existenciais, ora muito próximos, ora mais
distantes, até então desconhecidos. Um convite para dar espaço aos entretempos que com seus
movimentos fugidios, quase imperceptíveis, vivem nos rodeando. Algumas pequenas luzinhas,
entretanto, não veremos nunca, o que não quer dizer que elas não estejam emitindo seu brilho
sutil e rendendo boas histórias em outras bandas.
Nunca pretendi escrever um trabalho pessoal, acerca da minha formação e também não
busquei perguntas derradeiras, que se pretendessem universais. Falo, então, desde certo mapa
afetivo que me atravessa e me compõe e que diz de alguns mundos, há muitos outros por aí. As
multidões que me habitam e me acompanham – também nas solitárias horas a fio passadas
diante do computador – permitem que nasça, cresça e siga por outros caminhos a pesquisa. E é
neste campo de relações que me percebi ativando esta anteninha de criança, daquelas tardes em
que permanecia sentada à mesa ou mexendo nos cabelos de minhas tias enquanto escutava a
conversa dos adultos, sem nem muito entender e, na maioria das vezes, sem dizer uma palavra
sequer.
Os silêncios também fizeram parte deste movimento de ir parindo um parágrafo por
50
vez , lentamente, a partir daquilo que era e continua a ser engendrado em mim e, agora, sinto
que pedem espaço novamente. Por sinal, o que seriam das conversações se não fossem as pausas

50
Algumas experiências vão nos ajudando a dar palavra àquilo que de certa forma já nos habitava em estados
fetais. Aqui, há um eco com o que diz Lygia Clark (1997, p. 18): "na medida em que quase todos os artistas hoje
vomitam a si mesmos em um processo de grande extroversão eu, solitária, engulo cada vez mais em um processo
de introversão para depois realizar a ovulação que é miseravelmente dramática, um ovo por vez. Depois é um
engolir novamente, um introverter-se quase até a loucura, para colocar um único ovo que não tem nada de
inventado mas sim de engendrado… loucura? Não sei. Só sei que minha maneira de atar-me ao mundo é sendo
fecundada e ovular."
63

e os intervalos nos quais, justamente, algum pensamento se dá? Ainda assim, neste hiato que se
instala, as coisas continuam lá, "fervurando" e se aprontando...

"Eu tava fazendo almoço e aí, sabe aquele momento em que tá tudo encaminhado e
aí só resta esperar alguma coisa tá mais pronta pra tirar, enfim… é, e aí nisso eu
parada, olhando as panelas borbulharem, ouvindo o som das fervuras e sentindo o
cheirinho das coisas ficando prontas… a Isa apareceu na janela falando que tinha
uma rolinha construindo um ninho… e aí eu deixei as coisas lá encaminhando e fui
ver a rolinha construindo o ninho! Dá pra acreditar? Ela voava pra cima aqui do, do
telhado do bar, do toldo e ela ia caçando galinhos, ela arrancava um… acho que era
grande e precisava de mais aí ela ia… procurava outro e aí ela ia mordiscando
vários, vários até ela achar algum que ela segurava, voava até um pontinho mais
alto do toldo e depois voava aqui pra cima da janela que ela tava construindo um
ninhozinho aí ela deixava lá, voltava, procurava por outro e aí assim ia… enquanto
as coisas continuavam lá fervurando e se aprontando..." (voz das alianças)
64

6. A VIDA DERRAMA…

Diego López fazia quatro anos e naquela manhã


a alegria saltava em seu peito, a alegria era
uma pulga saltando sobre uma rã saltando sobre
um canguru saltando sobre uma mola, enquanto
as ruas voavam ao vento e o vento batia as
janelas. E Diego abraçou sua avó Gloria e em
segredo, junto ao ouvido, ordenou:
– Vamos entrar no vento.
E a arrancou de casa
(Eduardo Galeano)

Após as análises, peço licença a alguns relatos/narrativas para deixá-los soltos por aqui.
Com outros fios eles serão certamente costurados por quem lê e também já são costuras de
antemão, são tecidos destes mundos. Com a vida que continua e ultrapassa a pesquisa, as pérolas
permanecem espalhadas pelas páginas seguintes, brilhando com seu cintilar fosco, quase
invisível. Soltos como elas, outros entretempos estão sempre à espreita, prontos para escapulir.
Quando sentir um destes, agarre.

"Eu não sinto muita fome, mas sinto vontade de tomar café da manhã. Ficar sem
café da manhã não dá… E o meu café não precisa ser nada demais, eu gosto do café
com leite adoçado, pão com manteiga e tá ótimo já, aquele pão francês que você
põe na torradeira ou que acabou de sair ali quentinho, mas… Eu faço uma coisa que
algumas pessoas acham meio nojento, eu não ligo, eu gosto, eu nem consigo tomar
café de outro jeito, que é: molhar o pão no café com leite. Eu adoro isso. Essa é uma
das coisas que onde eu vou eu faço, eu não tenho problema com isso não. Vou na
padaria tomar café da manhã? Faço… faço em casa? Faço. Faço na casa dos meus
pais? Enfim… […] e aí, é assim… se é misto quente, opa, mergulha também, se é
só o pão com manteiga, mergulho também. Não é mergulho tipo deixa super
ensopado, mas cê só dá um pumba e já era, é o suficiente pra molhar e não perder a
crocância, entendeu, kkkk…"
65

***

"Hoje de manhã eu tava em um encontro virtual que envolve alguns processos


artísticos e… sensibilidade, corpo e eu fui me apresentar… e aí eu acho engraçado
que eu não consigo me apresentar de uma única maneira. Nunca consigo seguir um
script, às vezes eu até tento, comecei pela minha idade, falei de onde eu era e de
onde eu tinha vindo. […] Mas… aí eu falei que eu era apaixonada pela arte e pela
vida e… eu já tinha falado algumas vezes de uns tempos pra cá que eu tinha a arte
como uma paixão, mas… eu não tinha falado em um lugar assim com pessoas que
eu não conhecia que eu era apaixonada pela vida, acho que eu nunca falei que era
em lugar algum, mesmo sabendo que eu sou. E…"

***

"Foi a penúltima vez que eu vi um amigo meu antes dele decidir que ele ia deixar
esse mundo, que não ia fazer mais parte desse mundo. […] a gente foi andando até
a praia […] sentamos num banco que tem de frente pro mar né, porque tem os
bancos que são, tipo, de frente pra rua e tem os bancos que são de frente pro mar,
fica aquele negócio meio termo de tipo cê não sabe se cê ouve o mar, se cê ouve os
carros assim. é… […] e aí… chegou num momento que eu reparei que ele tinha
feito uma tatuagem nova, que, tipo, imagina uma pessoa fazendo muque assim, sei
la, do popai, sabe aquela parte gordinha que fica do braço no muque, então, era
nessa parte, e era uma tatuagem de um copo americano, bem simples assim, só os
traços mesmo […] e daí eu falei, cê fez uma tatuagem de copo, tipo, não, não é
possível e ele falou… não, eu fiz, e… aí, assim, uma coisa do Marcelo é que ele era
muito bom vendedor, ele conseguia vender qualquer coisa que você quisesse, juro
pra você […] e ai ele falou “não, porque esse copo, o nome desse copo é americano,
só que esse copo não é americano dos estados unidos, esse copo é brasileiro, e ele
sabia tipo, dados, sei la, científicos, da criação daquele copo, tipo: não, porque esse
copo foi criado por não sei quem, e teve premiação não sei da onde e ele é brasileiro
porque a gente toma café e cerveja nesse mesmo copo, e também porque é uma
coisa típica do Brasil, em nenhum outro país se toma café e cerveja nesse copo. […]
e no fim da explanação dele eu falei: caralho, essa é a coisa mais genial que eu já
66

vi. […] toda vez que eu vejo agora um copo americano, que, tipo, e nem tem na
minha casa um copo americano, mas sempre que eu vejo no mercado, ou em
qualquer coisa eu falo assim, nossa, Marcelo, pode crer. […] Olha, amiga, eu
mandei o áudio às 23h31, são 23h54 e eu não consigo parar de pensar no fato que
eu mandei esse áudio, porque… eu acho que não se encaixa na proposta que você
pediu rsrs mas eu acho que se… cê fala assim sobre o que te move ultimamente e
eu acho que eu tô muito na base da repetição, sabe? repetir, repetir, repetir, trinta
vezes a mesma coisa pra ver se eu elaboro alguma coisa nessa merda dessa
pandemia."

***

"Esses tempos pra trás eu tava com muita vontade de raspar o cabelo né, a parte de
baixo, só que eu tava morrendo de medo… já era uma vontade que eu tinha há muito
tempo […] e eu conversando com pessoas mais próximas todo mundo falando ah
faz, cabelo cresce, não sei o que tem, tá tudo bem, porque eu tava com muitos
receios né… […] e aí mesmo assim eu morrendo de medo. Aí teve um dia que eu
tava fazendo grupo com adolescentes do estágio né e aí… uma das meninas
comentou que tinha raspado o cabelo também, mostrou e tudo mais, falou que tava
super feliz, aí eu comentei né, “ah eu também morro de vontade, tava querendo
muito fazer só que eu tô com muito medo não sei o que tem” aí ela virou e falou
“ah, menina, fica tranquila, cabelo cresce, faz logo, só se vive uma vez…” […] e aí
eu não sei amiga, isso só fez eu ir e raspar o cabelo no mesmo dia, sabe? […] e aí
eu fui no mesmo dia, eu saí do grupo e fui no salão e… e, raspei […]”

***

"[…] e… vim aqui no centro bater uma sandália, me perder um pouco pelas ruas,
é… tomar um café enquanto eu ando, entrei numa catedral, numa igreja católica,
curti um pouco aquele silêncio, aquela vastidão que o pé direito dá né, rs, e aquele
brilho todo e… agora tô voltando, vendo as coisas fecharem, o povo se despedir,
falar bom fim de semana e ver o dia laboral dessas pessoinhas se encerrando, vendo
a vida cotidiana acontecer, rs. […] E… outra coisa que eu tô há um tempão já, de
67

te responder e… você já me cutucou algumas vezes pra ver se saía algum suco… e
eu aqui me esquecendo, me enrolando, é, que eu tô sempre lembrando dessa sua
pirinha aí, de compartilhar narrativa, não sei bem o que é que você tá aprontando,
mas de compartilhar alguma sensibilidade e bla bla bla kkkk “e bla bla bla”, é…
mas tá difícil, viu? Eu, eu não tô conseguindo, é… ocupar espaço, fiquei pirando
nisso hoje, assim, pensando nisso, sabe assim, às vezes parece que não é muita coisa
que tá rolando na semana pra fazer, o compromisso, é o contrário, é muito espaço
vazio, parece que a mente não tá ocupando com o que a gente gosta, a gente deixa,
parece, que ficar mais poroso, mais vulnerável, pra deixar a onda de setas do mundo
perfurarem a gente assim, né […] mas é sobre o tumulto dos vazios né que a gente
abre assim, é… encher demais, esvaziar demais parece que confunde a gente."

***

"Minha vó não interage […] esse dia eu cheguei, ela não interage assim, ela fica lá
longe, parece que… ela não tá aqui… ela tem Alzheimer né. Ela não lembra o nome
de ninguém, ela não lembra quem a gente é, ela não sabe mais nada… […] e aí
quando eu vou cantar com ela, ela fica bem, parece que… ela, não sei, ela volta, a
música faz ela voltar, assim. E são essas músicas de roda, essas cantigas de fui no
itororó beber água não achei, é… se essa rua se essa rua fosse minha, […] ela sabe
a letra de todas e ela canta todas, sem errar, e depois que para de cantar música ela
não interage mais."

***

"[…] ouvir o meu avô recitando versos, porque quando eu era criança, lembro dele
recitando muitos versos gaúchos […] que é um costume assim da tradição, nos
bailes, as pessoas terem os versinhos decorados. […] e eu não achava que ele
tinha… condições assim, pra voltar a declamar e… […] mas eu pedi, encontrei,
assim, uma fresta onde eu pude pedir pro meu avô recitar, declamar um verso,
perguntar se ele se lembra. Eu tinha um receio que ele não se recordasse e ficasse
triste por não conseguir recordar, não ter mais memória pra recordar de versos e…
[…] mas, ele conseguiu lembrar, ele demorou um pouco, ele… logo em que eu fiz
68

a pergunta ele disse que não conseguia lembrar, respondeu rápido assim: bah não
me lembro, não consigo lembrar. Mas ele ficou pensando, eu fiquei em silêncio, e,
ele ficou pensando e logo em seguida ele declamou o verso e depois conseguiu
lembrar de outro ainda, declamou outro […] e eu tenho os áudios e eu quero
compartilhar contigo: tu tem o sabor da mata molhada pelo sereno, e a cuia, seio
moreno, que passa de mão em mão, traduz o meu chimarrão a véia hospitalidade
da gente do meu rincão… hehe, êta filho!"

***

"Uma situação que me deu um naco de vida e um susto ao mesmo tempo… esse
ano eu perdi uma pessoa muito muito especial pra mim, uma tia muito próxima.
Essa minha tia era vó do meu afilhado, né. E… daí esse processo do luto, que enfim,
a gente vai passando por várias situações… E aí, acho que foi a primeira vez que
eu pude, acho que… tá acompanhando processos de luto enquanto estudante de
psicologia. Eu fiquei prestando muita atenção em como eu tava sentindo esse
processo e como as outras pessoas próximas de mim tavam passando também por
isso, minhas primas, tias, as crianças… tentando, enfim, ver pontos em comum,
jeitinhos mais particulares de cada um, e aí eu me dei conta que a pessoa que melhor
elaborou foi justamente meu afilhado. A saída dele pra lidar com a falta, com uma
perda violenta foi que… a mãe dele tinha dito pra ele que a vó tinha virado
estrelinha e eu consegui acompanhar as engrenagens nos olhinhos dele assim, o quê,
como assim virar estrelinha do nada? aí ele virou pra outro priminho nosso que
tem a idade dele também, 3 anos, e disse:
Bruno, eu já sei, eu já sei como a gente resolve essa coisa da vovó ter virado
estrelinha: quando a gente crescer, a gente vira astronauta, constrói uma nave e
vai até a lua visitar ela, e depois a gente volta."
69

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAGON, L. A espessura do encontro. Interface - Comunic, Saúde, Educ, São Paulo, v.7,
n.12, p.11-22, 2003.

AZEVEDO, A. A Intuição Clínica - entre Espinosa e Deleuze. Tese (Doutorado) - Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2013.

. Como narrar o corpo mínimo? Criar Educação, Criciúma, v.9, nº3, p. 148,
2020.

. Traços de uma experiência de pesquisa e formação acadêmica: fazer do projeto


pensado um agir. Cadernos Deligny, Rio de Janeiro, v.1, p. 153, 2018.

; SANCHES, A. Pensar a vida a partir de uma perspectiva imanente. Lampião,


Maceió, v.1, n.1, p. 99, 2020.

BARROS, R. Grupo e Produção. In: SaúdeLoucura, nº4: grupos e coletivos. São Paulo:
HUCITEC, p.145, 1993.

CASETTO, S; FEDERICI, C. Na periferia do cuidado: acasos em saúde. In: CAPOZZOLO,


A; MAXIMINO, V; CASETTO, S; JUNQUEIRA, V. (Org.) Clínica Comum: fragmentos de
formação e cuidado. São Paulo: Hucitec, 2020. pp. 129-140.

CLARK, L. Anotações. In: BORJA-VILLEL, M. J. et al. Lygia Clark: catálogo. Barcelona:


Fundació Antoni Tàpies, 1997.

DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981)/Gilles deleuze; Tradução de


Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Francisca Evilene Barbosa de Castro, Hélio Rebello
Cardoso Júnior e Jefferson Alves de Aquino. – 3. ed. – Fortaleza: EdUECE, 2019.

Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.

Diferença e Repetição. Tradução de Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado.


Rio de Janeiro: Graal, 1988.

Espinosa: Filosofia Prática. Tradução de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins.


São Paulo: Escuta, 2002.

Prefácio Para a Edição Americana de Nietzsche e a Filosofia [1983]. In


DELEUZE, G. Dois regimes de loucos: textos e entrevistas (1975-1995). São Paulo: Editora
34, 2016.

; GUATTARI, F. Mil Platôs. V. 3 São Paulo: Editora 34, 1996.

; GUATTARI, F. Mil Platôs. V. 4 São Paulo: Editora 34, 1997.


70

; GUATTARI, F. O que é a filosofia. Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto


Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2010.

; PARNET, C. Diálogos. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta,


1998.

DELIGNY, F. Jangada. São Paulo: Cadernos de Subjetividade, 2013.

. O aracniano e outros textos. Tradução de Lara Christina de Malimpensa. São


Paulo: n-1 edições, 2018.

DIDI-HUBERMAN, G. Sobrevivência dos vaga-lumes. Tradução de Vera Casa Nova e


Márcia Arbex. Belo Horizonte: editora UFMG, 2011.

ESBELL, J. O encontro à beira do abismo – o grito da AIC é por mais vida. In: OSE, E.;
VISCONTI, J.; MIYADA, P. Catálogo/34ª Bienal de São Paulo: Faz escuro mas eu canto.
São Paulo, 2021.

FEDERICI, C; LIBERMAN, F; GUZZO, M. A presença na sala de aula virtual - notas sobre


a presença e o saber da presencial. Santos/SP: Unifesp. Anais Simpósio Reflexões Cênicas
Contemporâneas: LUME e PPG Artes da Cena nº 6, 2021.

FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder : conversa entre Michel Foucault e Gilles


Deleuze. In: MACHADO, Roberto (org.) Microfísica do poder. Organização, Introdução e
Revisão Técnica de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2002.

GALEANO E. Bocas do Tempo. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2018.

. O livro dos Abraços. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM,


2020.

GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira


e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1992.

HENZ, A. et al. Entre mundos, experiências e profissões. In: CAPOZZOLO, A; MAXIMINO,


V; CASETTO, S; JUNQUEIRA, V. (Org.) Clínica Comum: fragmentos de formação e
cuidado. São Paulo: Hucitec, 2020. pp. 244-258.

. Pesquisar no lugar infame, obscuro e mudo. In: AZEVEDO, A; MENDES, R;


FRUTUOSO, M. (Org.) Pesquisar com os pés: deslocamentos no cuidado e na saúde. São
Paulo: Hucitec, 2019. pp 99-117.

JAMES, W. Variedades Da Experiência Religiosa: Um Estudo Sobre a Natureza Humana.


São Paulo: Editora Cultrix, 1991.

KRENAK, A. As Alianças Afetivas. Entrevista concedida à Pedro Cesarino em 21/08/2016.

LAWRENCE, D.H. Caos em poesia. Tradução Wladimir Garcia. Florianópolis: Cultura e


Barbárie, 2016.
LEMINSKI, P. Toda Poesia/Paulo Leminski. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
71

MIGUEL, M. À la marge et hors champ – L’humain dans la pensée de Fernand Deligny.


Tese (Doutorado). Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis – ED 159 – Esthétique, Sciences
et Technologies des Arts / EA 4010 – Arts des Images et Art Contemporain e Universidade
Federal do Rio de Janeiro – Programa de Pós- Graduação em Filosofia da UFRJ (PPGF). Paris,
2016.

NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:


Companhia das Letras, 2009.

ORLANDI, L. Com que verbos cuidar do verbo pesquisar? In: AZEVEDO, A; MENDES, R;
FRUTUOSO, M. (Org.) Pesquisar com os pés: deslocamentos no cuidado e na saúde. São
Paulo: Hucitec, 2019. pp 225-252.

PASSOS, E; KASTRUP, V; ESCÓSSIA, L. Pistas do método da cartografia: Pesquisa-


intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015.

PELBART, P. A Nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro:
Imago, 1993.

. Elementos para uma Cartografia da Grupalidade. São Paulo, 2010.

. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 Edições,


2013.

PRECIADO, P. Aprendendo do vírus. Tradução de Ana Luiza Braga e Damian Kraus.


Pandemia Crítica, n-1 Edições, 2020.

ROLLAND, R. O clarão de Espinosa. Tradução de Carla Ferro. São Paulo: n-1 edições, 2020.

ROLNIK, S. Cartografia Sentimental: transformações do desejo contemporâneo. São


Paulo: Estação Liberdade, 1989.

Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1
edições, 2018.

Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no


trabalho acadêmico. São Paulo: Cadernos de Subjetividade, 1993, v.1.

SPINOZA, B. Ética. Tradução e notas de Tomaz Tadeu. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2008.

TEDESCO, S. Literatura e clínica: ato de criação e subjetividade. In: MACIEL, A;


KUPERMANN, D; TEDESCO, S. (Org). Polifonias: clínica, política e criação. Rio de
Janeiro: Contra Capa, 2005.

ZOURABICHVILI, F. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.


72

REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS

DELEUZE, G. (entrevista): L’Abécédaire de Gilles Deleuze, entrevista concedida à Claire


PARNET realizada em 1988 e transmitida em série televisiva a partir de novembro de 1995,
pela TV-ARTE, Paris, video. Disponível em: <https://vimeo.com/439544173>. Acesso em 05
jan. 2022.

ORLANDI, Luiz. Problemas em estados fetais e entretantos intensivos. Laboratório de


Sensibilidades. Youtube, 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=vh9Q0u-
NTig&t=169s>. Acesso em: 12 dez. 2021.

TOSQUELES, F. Uma política da loucura. Documentário de Daniele Sivadon e Jean-Claude


Pollack. Youtube, 1989. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kT9REbBckRI
>. Acesso em: 7 jul. 2021

DISCOGRAFIA

CAYMMI, D; TELLES, S. Suíte do Pescador. Caymmi e o mar. Odeon, 1957. 1 disco sonoro,
faixa 1.

CHORÃO; CASTANHO, T. Só os Loucos Sabem. Camisa 10 (Joga Bola até na Chuva). Sony
Music, 2009. 1 CD, faixa 3.

DJAVAN. Água. Djavan. São Paulo: EMI-Odeon, 1978. 1 disco sonoro, faixa 3.

Legião Urbana. Pais e Filhos. As Quatro Estações. Brasília, EMI, 1989. 1 disco sonoro, faixa 2.

MACAU. Olhos Coloridos. Intérprete: Sandra de Sá. Olhos Coloridos. Rio de Janeiro: Som
Livre, 1995. 1 CD, faixa 9.

MAIA, Tim. Você. Tim Maia. Rio de Janeiro: CBD-Philips, 1971. 1 disco sonoro, lado B, faixa
1.

MEDEIROS, E.; TOM ZÉ. Tô. Intérprete: Tom Zé. Estudando o Samba, 1976. 1 disco sonoro,
lado A, faixa 4.

PASSOS, R.; NATUREZA, S. Sutilezas. Rosa. Telarc, 2006. 1 CD, faixa 3.

PAULINHO DA VIOLA; CARVALHO, Hermínio. Timoneiro. Bedadosamba. Rio de Janeiro:


Cia Dos Técnicos, 1996. 1 CD, faixa 2.

PERNA; TOM ZÉ. Vai (Menina Amanhã de Manhã). Intérprete: Tom Zé. Estudando o
Samba, 1976. 1 disco sonoro, lado A, faixa 5.

SEIXAS, Raul. Maluco Beleza. O Dia em que a Terra parou. São Paulo: WEA/WarnerBros,
1977. 1 disco sonoro, faixa 2.

VALENÇA, Alceu. Anunciação. Anjo Avesso, 1983. 1 disco sonoro.

Você também pode gostar