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A dimensão Missionária Evangelizadora da Contemplação

em Clara de Assis e suas Irmãs


Ir. Mônica de Azevedo FPCC

A missão se alimenta da contemplação, do mesmo modo que a contemplação move


para a missão. Ambas se exigem reciprocamente. A contemplação e a missão são duas
realidades do mesmo movimento do Espírito, de saída de si mesmo para dar a vida e
transformar.
A contemplação para Clara é um processo constante, em que a pessoa trabalha com
alegria para ser semelhante a Cristo e para amar à sua semelhança. A contemplação clariana
consiste em estar e viver unida/o ao Senhor, conforme as palavras de Clara na Bênção: “O
Senhor esteja sempre com vocês e oxalá estejam vocês sempre com Ele”.1 A unidade com
Jesus Cristo na contemplação constrói a unidade com todas as demais pessoas. A
contemplação do Cristo Pobre vai se expressando na capacidade de enxergá-lo, amá-lo e
servi-lo nos irmãos e nas irmãs.
A comunidade clariana, “no ato de ocultar-se manifesta-se como vida exemplar, no
retirar-se gera muitos filhos e muitos discípulos espirituais”.2 Desta forma, a vida das Irmãs
se tornou anúncio, profecia e espelho para Igreja e para a sociedade da época.

Missão de ser espelho para os outros


Ao refletirmos sobre a dimensão missionária na vida de Clara de Assis e de suas
Irmãs, destacamos sua riqueza espiritual contemplativa, na imagem do espelho. Para Clara, o
espelho é o sacramento de uma presença3. “O próprio Senhor nos colocou não só como
modelo, exemplo e espelho para os outros, mas também para nossas irmãs, que ele vai
chamar para a nossa vocação, para que também elas sejam espelho e exemplo para os que
vivem no mundo. Portanto, se o Senhor nos chamou a coisas tão elevadas que em nós possam
espelhar-se as que deverão ser exemplo e espelho para os outros, estamos bem obrigadas a
bendizer e louvar a Deus, dando força maior umas às outras para fazer o bem no Senhor”.4
Ser espelho é uma expressão que faz parte da literatura mística da Idade Média. Clara
a utiliza com predileção e sabedoria para traduzir, de forma simbólica, a profundidade da sua
experiência e compreensão da vida e da relação com Jesus Cristo. Dozzi afirma que, nos
Escritos de Clara, o espelho se refere a realidades diversas, mas sempre se trata de pessoas:
Cristo, Francisco, Clara, Inês, as primeiras Irmãs, as Irmãs futuras. Os diversos ‘espelhos’
de que Clara fala estão relacionados até ser um sacramento, sinal e instrumento do outro, e
assim até chegar ao Espelho por antonomásia que é Cristo”.5 Uma é espelho para a outra, um
é espelho para outro, e mutuamente são convidados a se ajudar e dar força na prática do bem e
do melhor no Senhor, isto é, ajudar-se a chegar no próprio Cristo – O Espelho.
O Senhor chamou Clara e suas Irmãs para a missão de ser espelho e exemplo de Jesus
Cristo para o mundo, para as pessoas, para a Igreja, e juntos fazer o bem no Senhor. Do
mesmo modo, a comunidade clariana acolhia tudo que acontecia no mundo exterior como

1
BenC 16
2
BARTOLI, Marco. Clara de Assis. Petrópolis, RJ: Vozes e FFB, 1998, p.102.
3
Conforme DOZZI, Dino. In: PEDROSO, Frei José Carlos Corrêa. Abrace o Cristo Pobre, Piracicaba: Centro
Franciscano de Espiritualidade, 2012, p. 157.
4
TestC 19 - 22
5
PEDROSO, 2012, p.157
preocupações e interesses, para intercessão e diálogo espiritual com todos os que chegavam a
São Damião.
O espelho de vida de Clara reflete a imagem de filha, que reconhece a sua vocação
como dádiva do Pai de toda a Misericórdia; de esposa totalmente entregue ao Esposo, que se
fez para nós o Caminho, e de irmã e mãe aberta à iluminação do Espírito, que a transforma,
pela contemplação, Naquele que é seu Espelho: o Cristo Pobre.
A contemplação, para Clara, é aquela que nos transforma à imagem de quem
contemplamos – Jesus Cristo. Ele é o Espelho que revela e visibiliza o Pai. É a Imagem da
Divindade. "Ponha a mente no espelho da eternidade, coloque a alma no esplendor da glória.
Ponha o coração na figura da substância divina e transforme-se inteira, pela contemplação,
na imagem da divindade. Desse modo também você vai experimentar o que sentem os amigos
quando saboreiam a doçura escondida, que o próprio Deus reservou desde o início para os
que o amam. Deixe de lado tudo que neste mundo falaz e perturbador prende seus cegos
amantes e ame totalmente o que se entregou inteiro por seu amor, aquele cuja beleza o sol e a
lua admiram, cujos prêmios são de preciosidade e grandeza sem fim. Falo do Filho do
Altíssimo, que a Virgem deu à luz...”6 A ação da transformação é de Deus, porém cabe a nós
abrir-nos à transformação, colocando nosso olhar, nossa mente e nosso coração nele,
concentrando-nos em Jesus Cristo. Contemplar é colocar-se inteira/o diante de Cristo Esposo
até ser transformada/o nele.
Seguir Jesus Cristo e viver o seu Evangelho implica em tornar-nos a nós mesmos
outros Cristos e ajudar as outras pessoas a serem outros Cristos. É fazer nesta vida um
Processo de Cristificação. É trazer Jesus Cristo espiritualmente em nosso corpo do mesmo
modo como Maria O trouxe materialmente ao mundo, conforme escreveu Clara a Inês de
Praga.7
Clara partilha com Inês o caminho da identificação com Cristo como um contínuo
olhar para Ele, espelhar-se nele todos os dias e assumir interior e exteriormente o seu projeto:
"Olhe dentro desse espelho todos os dias, ó rainha, esposa de Jesus Cristo, e espelhe nele,
sem cessar, o seu rosto, para enfeitar-se toda, interior e exteriormente, vestida e cingida de
variedade, ornada também com as flores e roupas das virtudes todas, ó filha e esposa
caríssima do sumo Rei. Pois nesse espelho resplandecem a bem-aventurada pobreza, a santa
humildade e a inefável caridade, como, nele inteiro, você vai poder contemplar com a graça
de Deus. Preste atenção no princípio do espelho: a pobreza daquele que, envolto em panos,
foi posto no presépio! Admirável humildade, estupenda pobreza! O Rei dos anjos repousa
numa manjedoura. No meio do espelho, considere a humildade, ou pelo menos a bem-
aventurada pobreza, as fadigas sem conta e as penas que suportou pela redenção do gênero
humano. E, no fim desse mesmo espelho, contemple a caridade inefável com que quis padecer
no lenho da cruz e nela morrer a morte mais vergonhosa”.8 Clara anuncia o Evangelho da
vida de Jesus, que contemplou e se tornou sua vida e sua missão.

Auxiliar do próprio Deus e sustentáculo dos que vacilam


Frei José Carlos Pedroso afirma: “A contemplação está unida à missão, pois na
medida em que se realizou o que é Deus, e se experimentou até que ponto o fato de conhecer
e amar a Deus é constitutivo de um humanismo total e de uma existência completa, nessa
medida se sofre e fica surpreso de que Deus não seja conhecido e não seja amado. Por isso
podemos afirmar que a delicada, profunda e extensa contemplação esponsal de Clara,
permitiu-lhe entrar em comunhão missionária com todos os ‘gemidos’ da humanidade e da

6
3In 12-17.
7
3In 24-26
8
4In 15-24
Igreja, nos membros que vacilam e caem”.9 Nesta perspectiva se compreende o ardor
missionário, identificado com a missão do próprio Cristo, que fez Clara acolher, aliviar e
curar as dores e os sofrimentos de suas Irmãs, dos frades e de tantas pessoas enfermas física,
psíquica e moralmente, que a procuravam em São Damião.
À luz da imagem do Corpo Místico, de que fala Paulo em sua Primeira Carta à
comunidade de Corinto (ICor 12, 12-31), Clara escreve para Inês: “Eu a considero, num bom
uso das palavras do Apóstolo, auxiliar do próprio Deus, sustentáculo dos membros vacilantes
de seu corpo inefável”.10 Cada irmã e cada irmão é colaboradora e colaborador em Cristo. A
contemplação leva à comunhão missionária com todos os frágeis, vacilantes e sofridos da
humanidade e da Igreja.
Um dos testemunhos marcantes da missão de Clara é a de ser sustentáculo para os que
estavam à frente da Igreja no seu tempo, e que demonstravam fraqueza diante da sua missão.
“Clara sabe que os membros da Igreja, sobretudo bispos e o papa, são ‘vacilantes’, porém
não os julga; ao contrário, oferece o seu serviço e o das irmãs, através da contemplação e
oração, em favor da Igreja. A bela e singular visão de Clara elimina qualquer suspeita de
uma possível ‘inutilidade’ da vida das irmãs. Elas são nada mais que ‘auxiliares do próprio
Deus’”.11 A vida contemplativa para Clara e suas Irmãs foi missão.
O cardeal Hugolino, depois Papa Gregório IX, deixou um belo escrito de
reconhecimento e de confiança, naquela que chama de irmã em Cristo e mãe de sua salvação,
Clara:
“À caríssima irmã em Cristo e mãe de sua salvação, dona Clara, serva de Cristo, Hugolino,
ostiense, indigno e pecador, recomenda-se em tudo que é e pode ser. Querida irmã em Cristo.
(...) Entrego-te minha alma e te recomendo meu espírito, para que, como Jesus entregou o
espírito a seu Pai na cruz, tu também respondas por mim no dia do juízo, se não tiveres sido
solícita e atenta por minha salvação. Estou certo de que conseguirás do sumo Juiz tudo que
pedires com insistência de tanta devoção e abundância de lágrimas”.12
“À dileta filha abadessa e à comunidade das monjas reclusas de São Damião de Asssis... (...)
como, no meio das numerosas amarguras e infinitas angústias que sem cessar nos afligem,
vós sois nossa consolação (...) fareis com que Deus seja glorificado em vós e nos enchereis de
gozo, pois vos abraçamos com íntimo amor como filhas prediletas, ou melhor, se podemos
dizê-lo, como senhoras, pois são esposas de nosso Senhor. Mas porque, como confiamos, vos
fizestes um só espírito com Cristo, pedimos que em vossas orações, lembrando-se sempre de
nós, eleveis as piedosas mãos ao céu, suplicando insistentemente que Aquele que sabe que
nós, colocados no meio de tantos perigos, não podemos aguentar por nossa fragilidade, nos
dê força por sua virtude, conceda-nos dar conta tão dignamente do ministério que nos
confiou que redunde em glória para Ele, alegria para os anjos e salvação para os que foram
confiados ao nosso governo”.13
Pela contemplação esponsal de Jesus, Clara realizou sua missão de aproximar às
pessoas concretas, ao mundo concreto, à Igreja concreta o rosto de um Deus Pai de toda a
Misericórdia, Cristo Esposo, amoroso, que ilumina os corações, nas situações de amargura e
escuridão pelas quais podem passar a humanidade e a Igreja. “São Damião tornou-se desse
modo um lar aberto para todos: pobres, enfermos, frades, prelados. Cada qual em sua

9
PEDROSO, 2012, p. 158-159.
10
3In 8
11
FREIRE, Frei José Carlos. In: https://www.ofm.org.br/artigo/a-eclesialidade-criativa-de-clara-de-assis-
10082017-101937.
12
Carta pessoal do Cardeal Hugolino para Clara de Assis. In: PEDROSO, Frei José Carlos Corrêa. Fontes
Clarianas. 4.ed. Piracicaba: Centro Franciscano de Espiritualidade, 2004, p. 247.
13
Carta do Papa Gregório IX para Clara de Assis. In: PEDROSO, 2004, p. 227.
medida ou necessidade, encontrou em São Damião a bênção e a luz que Deus repartia pelas
mãos daquela que foi esposa para Cristo, e mãe e irmã para todos os que nele amou”.14
O testemunho da vida de Clara e suas Irmãs expressa sua missionaridade, pela
autêntica vida de seguimento a Jesus Cristo, de entrega confiante na vontade do Pai, de
vivência da pobreza evangélica, de profunda comunhão e de amor e serviço aos irmãos e
irmãs. Pela sua forma de vida anunciaram o Evangelho de Jesus Cristo.

Referências Bibliográficas e Bibliografia

BARTOLI, Marco. Clara de Assis. Petrópolis, RJ: Vozes e FFB, 1998.

BRUNELLI, Delir. Ele se fez Caminho e Espelho – O seguimento de Jesus Cristo em Clara
de Assis. Petrópolis, RJ: Vozes e FFB, 1998.
FONTES FRANCISCANAS E CLARIANAS. Trad. Celso Márcio Teixeira... [et al.].
Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

PEDROSO, José Carlos Corrêa. Fontes Clarianas. 4ª ed. Piracicaba: Centro Franciscano de
Espiritualidade, 2004.

________. Abrace o Cristo. Piracicaba: Centro Franciscano de Espiritualidade, 2012.

14
PEDROSO, 2012, p. 161.

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