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A DIMENSÃO CONTEMPLATIVA DA VIDA CRISTÃ

Don Emanuele Bargellini

Aprender a olhar a realidade com os olhos de Deus

Partimos seguindo as pegadas de duas testemunhas surpreendentes: o camponês Cura de Ars


(precisa explicar quem é e contar um pouco sobre ele e porque ele é um modelo de vida
contemplativa) que dizia sobre o seu relacionamento com Jesus: Eu olho para Ele....e Ele olha para
mim! E o monge teólogo e pai espiritual camaldolense, Dom Benedetto Calati que no final de sua
vida de eremita afirmava aos que lhe perguntavam: Qual a sua oração depois de tantos anos de
vida monástica e de estudo? Ele respondia: A oração de um pobre velho. De vez em quando um Pai
Nosso...Uma Ave Maria...um Gloria ao Pai... e escuto música. Dois mundos aparentemente
distantes, mas que se encontram na mesma peregrinação e com a mesma meta: a passagem do
conhecimento pelo intelecto à relação de amor, que vai além do intelecto e cria unidade com o
amado. São duas testemunhas da passagem da complexidade da vida à sua unificação no essencial:
- Deixar-se olhar e responder olhando para Jesus!
- Escutar e balbuciar como criança diante do Pai
Na subida até Deus, pode-se chegar a um ponto em que a razão já não enxerga mais. Porém,
na noite do intelecto, o amor se estende muito além da razão, vê mais, entra mais profundamente no
mistério de Deus. É o mistério da cruz, na qual resplandece a potência e a sabedoria de Deus,
loucura para os homens. A vida cristã é essencialmente “relação reciproca” com Deus: ser olhados e
amados... olhar e amar... (cf Ef 1, 1-14).
A vida cristã é “vida contemplativa”, processo de unificação no Senhor e de simplificação
no essencial, fruto e alimento desta relação especial. A oração é reconduzida à relação filial com o
Pai, pela ação do Espirito, doado aos simples de coração, como diz Jesus nas Escrituras:
*Eu te louvo, ó Pai, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste
aos pequeninos (Lc 10,21-22).
*O Espirito socorre nossa fraqueza. Pois não sabemos o que pedir como convém; mas o
próprio Espirito intercede por nós com gemidos inefáveis, e aquele que perscruta os corações sabe
qual o desejo do Espírito; pois é segundo Deus que ele intercede pelos santos (Rm 8, 26-27)

Duas histórias emblemáticas

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Há dois filmes relativamente recentes que relatam a vida de duas comunidades de vida
contemplativa. Ambos tocantes na linguagem e eficazes ao transmitir uma mensagem comum: a
primazia absoluta de Deus na vida, e a transformação radical da existência que a experiência do
encontro com Deus determinou na vida desses monges: O grande silêncio” (Diretor: Philip
Groening - 2005) e Homens e Deuses (Diretor: Xavier Beauvois - 2010). Representam dois modos
de viver a dimensão contemplativa na vida monástica. Um deles, conta a vida quotidiana de monges
cartuxos que vivem solitários, e em absoluto silêncio, e são a expressão de uma tradição milenar
que permaneceu imutável ao longo dos séculos. O outro relata as vicissitudes de um mosteiro que
vive no meio do fogo da guerra e do islamismo.
A vida contemplativa pode ser vivida de muitas formas; através dos inúmeros modelos de
vida monástica, mas também como um padre que vive em uma pequena paróquia num vilarejo no
meio do campo.

O que têm em comum estes modelos variados de vida contemplativa?

A relação com o Senhor, como única fonte e meta, uma mesma e radical exigência
(permanecer em contato com a fonte e olhar para a meta), a mesma e variada irradiação ao serviço
dos irmãos. (não se compreende esta frase). Da relação de intimidade com o Espírito do Senhor
nasce aquela luz interior que “abre os olhos” de quem acredita, e lhe dá a capacidade de perceber a
verdadeira profundidade de si mesmo, das coisas, e se deixar surpreender pelas novidades de Deus.
Como aconteceu ao cego de nascença curado por Jesus (cf Jo 9, 1-7).
Na pessoa que cultiva esta relação de intimidade com Deus se desenvolve um olhar que
penetra na profundidade da realidade. Se torna um olhar profético e que determina um agir
alternativo: Aquele que se une ao Senhor, constitui com ele um só espírito (1Cor 6, 17). É o reino
obscuro e fascinante da liberdade espiritual, de quem vive peregrinando na fé, e não se detém nos
condicionamentos aparentes e meramente humanos. Diz também São Gregório Magno: Nós
estamos unidos ao Senhor quando recebemos a abundante graça do Espírito Santo. Formamos com
ele um só Espírito, quando estamos em sintonia com ele, na maneira de pensar, de falar e de agir
(Lib. 1Re, IV, 179-180; CCL CXLIV, 393-394).

Permanecer no essencial

A dimensão contemplativa, em sua tríplice articulação é constitutiva de toda experiência


espiritual cristã: experiência de intimidade com Deus, cultivo constante desta relação que

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transforma a vida e a conforma ao Senhor, e irradiação desta nova maneira de ser e de agir,
conforme a vocação de cada um. É fruto da presença e a ação misteriosa do Espirito derramado de
Cristo crucificado e ressuscitado em nós. O dom do Espirito nos gera à vida divina e, pela sua ação,
nos transforma aos poucos à imagem de Cristo, em cujo rosto resplandece a imagem do Pai. E,
enquanto estamos progredindo no processo de conformação a Cristo, voltamos, de fato, ao projeto
original, segundo o qual Deus nos criou à sua própria imagem e semelhança, chamando o homem e
a mulher a partilhar sua própria vida e a ser quase reflexo seu no mundo.
A dimensão contemplativa da existência cristã é alimentada em nós graças ao batismo, que
nos mergulha na páscoa de Cristo, (morte-ressurreição), pela relação cotidiana com sua Palavra
viva, acolhida no segredo da consciência e na meditação da Escritura santa, pela graça de se
alimentar de sua carne e seu sangue, e pela pratica do amor nas relações. Esse processo dinâmico
nos transmite a energia da vida eterna e nos faz permanecer em Cristo e viver por Ele e para Ele.
Em linguagem leiga a palavra “contemplação” (vida contemplativa) significa um estado de
bem estar psicológico, procurado e produzido pela pessoa. Mesmo no âmbito eclesiástico, evoca
habitualmente algo de extraordinário, uma experiência excecional de contato com o divino, que
acompanha o cume da vida espiritual. E, enquanto tal, é considerada como uma experiência que
toca poucas pessoas eleitas e se concentra na sua vida de oração e nas práticas ascéticas que a
acompanham. Nesta concepção, a vida contemplativa, é reduzida a um âmbito muito restrito.
Este modo de conceber a vida contemplativa, além de reduzir sua dimensão a algo de
excecional e de limitado a algumas pessoas, realiza uma separação, colocando em contraposição, a
dimensão espiritual presente em toda pessoa humana e o conjunto das expressões da sua vida.
Como sair desta divisão aparentemente insuperável, mas sobretudo, não condizente com a
realidade?

Novas criaturas em Cristo

É preciso olhar para o fundamento “objetivo e dinâmico” da dimensão contemplativa, que


caracteriza não somente a vida consagrada e dos monges e monjas, mas toda a vida cristã. Segundo
os padres da igreja, a vida de Adão e Eva, era atraída para Deus e orientada para a sua constante
procura, na harmonia global das relações paradisíacas. Esta constante procura, constituía a atitude
fundamental ou dimensão contemplativa do casal original, e continua sendo a estrutura fundamental
da pessoa humana. Assim, a dimensão contemplativa constitui uma capacidade e aspiração inatas,
que permanecem no fundo do coração de cada ser humano. A promessa divina da sua recuperação a

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mantêm viva (cf Gn 3,17), e reaparece continuamente como exigência inalienável, mesmo numa
sociedade secularizada e pós-moderna.
Em Cristo, novo Adão, tal capacidade reencontra seu resgate pleno como relação renovada e
filial. Esta “tenção inata para Deus” faz o ser humano viver na história, não como numa prisão da
qual fugir, mas como um lugar em que Deus atua e se revela, e como o jardim entregue à
operosidade responsável do ser humano, agora laboriosa e sofrida, mas sustentada por Deus e
partilhada com seus companheiros de aventura.
Esta visão teológica da história e da pessoa permite superar a divisão entre a história humana
e a história de Deus, fazendo da relação recíproca uma história de salvação, guiada por Deus.
Permite superar a divisão entre o chamado que Deus faz ao ser humano para exercitar com
responsabilidade sua obra no mundo, e a dimensão espiritual e contemplativa da sua existência.
Permite superar a contraposição, ainda presente em certos ambientes “espirituais” mesmo atuais,
entre corpo e espirito.
Essa contraposição, não pertence ao patrimônio da revelação bíblica. Ela é, antes, herança de
uma concepção antropológica, com raízes na filosofia neoplatônica, que considera o mundo
material como decadência do espirito e sua prisão, da qual é preciso se libertar o máximo possível.
À primeira vista, esta visão das coisas pareceria favorecer a primazia e a liberdade do espírito em
relação ao mundo material e às paixões desordenadas da alma.
Na visão bíblica e cristã, porém, a pessoa na sua totalidade e integridade é reconduzia pela
ação do Espírito, a pensar, julgar e agir, segundo os impulsos profundos do Espírito. Sob a ação do
Espirito de Cristo, a inteira existência do discípulo se torna a existência de quem foi “ressuscitado
em Cristo”, morto ao ser humano velho e renascido como ser humano novo (cf Ef 2,15; 2 Cor 5,17;
Rm 8, 5-11; Gl 5, 16 -25). São Bento e o monaquismo ocidental por ele inspirado, exprime muito
bem a recomposição da unidade da vida do monge em Cristo, com duas afirmações sintéticas: Nada
antepor ao amor de Cristo (Regra de São Bento 4,21; 72,11) – Ora et labora – Rezar e trabalhar.
Esta ação do Espírito que recria a unidade é o fundamento objetivo da dimensão
contemplativa da vida, isto é, da existência orientada conscientemente e por amor a Deus. Mas
fundamenta também a capacidade e a alegria de o reconhecer como fonte da vida, seu centro de
unificação, e horizonte ideal para o qual a vida se desenvolve rumo à sua meta.
Esta tensão ou dimensão contemplativa está presente em toda experiência religiosa
autêntica, não somente cristã. Ainda mais, ela está presente em toda pessoa que busca sinceramente
o sentido da vida, embora às vezes em maneira confusa, como acontece em muitas pessoas nas
nossas sociedades secularizadas.

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Ver se precisa acrescentar essas informações, no caso seria preciso desenvolvê-las (dialogo
ecumênico – interreligioso - com não crentes)
“Existe uma espiritualidade sem Deus?” (Palestra de Fr Rogerio – Mogi 8/5/15)

Uma revisão crítica do estilo de vida e das prioridades da vida contemplativa (verificar
este título, se é o que o sr. quer dizer)

Hoje dimensão contemplativa pode, e deveria, ser atualizada como nova prioridade - na vida de
cada um e das nossas comunidades, partilhada e promovida no novo contexto cultural e religioso do
nosso tempo. Homens e mulheres sedentos de Deus e do sentido da vida batem às portas das nossas
comunidades, ou esperam que alguém ande ao encontro deles, nas periferias existenciais onde
tentam sobreviver, numa busca sofrida para uma experiência mais profunda de Deus ou do sentido
da vida. É o desafio da nova evangelização que só pode ocorrer através do testemunho.
Hoje não é mais suficiente salvaguardar e conservar o que existe. Trata-se de focalizar o
essencial: as raízes da experiência de fé. Revela-se extremamente útil a afirmação atribuída a Karl
Rahner: O homem do século XXI será um místico, ou não será religioso. A tensão contemplativa da
vida é uma “potencialidade”. Certo, é potencialidade recebida como dom de Deus. Mas, de nossa
parte, necessita de condições adequadas, interiores e exteriores, para se desenvolver e dar seus
frutos. Éfeta! - Abre-te! foi proclamado sobre nós, como cura da surdez interior e convite a abrir a
vida ao mestre interior que é o Espírito (ref. Santo Agostinho).
Toda potencialidade precisa de condições favoráveis para se desenvolver. Os passos deste
caminho podem ser delineados:
* Ficar algum tempo em silêncio, é o primeiro passo. Não se trata simplesmente de abster-se de
falar ou da ausência de ruídos, mas sim do silêncio interior, aquela dimensão que nos restitui a nós
mesmos, nos coloca diante do essencial. É aquele silêncio que encontra o seu próprio âmbito vital
no coração, lugar da intimidade e da luta espiritual contra os pensamentos negativos (?) precisa
qualificar o que entende por luta espiritual (cf. São Romualdo, Pequena regra de ouro - Rodulfo II,
Prior do Sacro Eremitério de Camaldoli - ano 1180 - Consuetudo Camaldulensis, 1-3; 9.- A. Grun,
O poder do silencio, Vozes 2010 – Simone di Taibuteh, Abitare la solitudine; Bose 2004). Pelo que
é habitada/ocupada nossa casa e, sobretudo, a cela interior do nosso coração? Quantos concorrentes!
*Escutar. O silêncio não é fim em si mesmo, mas para dar lugar ao escutar a voz do Senhor,
que vem a nós através inúmeros canais, a partir do segredo da consciência, dos acontecimentos, da
sua Palavra viva, lida, meditada, rezada, contemplada na Lectio Divina (meditação da Palavra

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divina através da leitura quotidiana da Sagrada Escritura), para ser interiorizada e transformada em
vida nova. Que prioridade e fidelidade tem a Lectio Divina no ritmo efetivo dos nossos dias?
*A liturgia eucarística do domingo e a eventual celebração de uma ou outra parte da liturgia
das Horas, consegue integrar-se no ritmo interior da nossa lectio divina/oração pessoal e com
nossas atividades quotidianas? (cf J. Castellano, Liturgia e Vida Espiritual; Paulinas 2008)
*Como conseguimos nos relacionar com os acontecimentos quotidianos: simples informação ou
procura de uma leitura iluminada e espiritualmente crítica?
Pensar como Cristo, olhar com os olhos misericordiosos do Pai, atuar em sintonia com os
impulsos interiores do Espirito: eis o âmago da vida cristã. Esta é Vida autenticamente “espiritual”.
Esta é vida autenticamente “contemplativa”, enquanto animada e orientada pelo Espírito como fonte
como meta para Deus! Por ele a capacidade de olhar e avaliar as coisas e as situações é reconduzida
à sua original unidade segundo o Espirito de Cristo, e não segundo as aparências ou os critérios
humanos. A pessoa espiritual e contemplativa olha para a profundidade e a verdade das coisas,
segundo Deus.
Quem tem esta “inteligência” do mistério de Deus atuante na história, graças ao “sentir com
Cristo e como Cristo”, descobre na cruz a sabedoria e a força autêntica de Deus. Tendo seu olhar
fixo em Jesus, que o precede no caminho da fé e da esperança rumo à plenitude do reino de Deus
(cf Hebr 12,1-2), o contemplativo, solidário com seu tempo, perscruta e indica o sentido autêntico
da história e a direção que nos dá a esperança, iluminada pela luz que vem de Cristo.
Como conseguia vivê-la o camponês Cura de Ars...como descreve, no fim de sua vida, o
monge teólogo Dom Benedetto!

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