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A Peregrinação

de Fernão Mendes Pinto


e a Perenidade
da Literatura de Viagens
Coordenação de João Carlos Carvalho

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais


Universidade do Algarve – Campus de Gambelas – Faro
CLEPUL – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
A Peregrinação de
Fernão Mendes Pinto
e a Perenidade da Literatura
de Viagens
Ficha Técnica

Título: A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e a Perenidade da Literatura


de Viagens
Coordenação: João Carlos Carvalho
Composição & Paginação: Luís da Cunha Pinheiro
Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa e Instituto Europeu Ciências da Cultura Padre
Manuel Antunes
Lisboa, novembro de 2015

ISBN – 978-989-8814-20-3

Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação
para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do Projecto «UID/ELT/00077/2013»
João Carlos Carvalho
(coordenação)

A Peregrinação de Fernão
Mendes Pinto e a Perenidade
da Literatura de Viagens

CLEPUL

Lisboa

2015
Índice

Intervenção do Coordenador na Sessão de Abertura


João Carlos Carvalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Intervenção do Cónego César Chantre
César Chantre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Uma viagem por 4 Séculos da Peregrinação
Alexandra Rodrigues Gonçalves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Interpretações de Peregrinação: João David Pinto Correia, Antó-
nio José Saraiva e Rebecca Catz
Miguel Real . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Fernão Mendes Pinto: «pobre de mim», «fora de mim», «ainda
este sou». . .
João Carlos Firmino Andrade de Carvalho . . . . . . . . . . . . . . 23
Peregrinação, Uma Narrativa Várias Perspetivas
José Ruy . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
Jean Baudoin: tradutor-fantasma de Fernão Mendes Pinto
Patrícia Couto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
Matias da Maia, um jesuíta português na China do século XVII e
a construção de entrelaços culturais e religiosos na vastidão do
império
Adriano Milho Cordeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
O narrador cronista na trilogia alemã de Louis-Ferdinand Céline
Daniel Teixeira da Costa Araujo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
A propósito do romance tradicional «Nau Catrineta»: peregrina-
ções no tempo e no espaço
Sandra Boto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

3
4 João Carlos Carvalho

O Turista acidental: o cinema como lugar da memória


Mirian Tavares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
O Itinerário Espiritual do Herói (Metamorfoses, de Apuleio, e
Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto)
António Manuel de Andrade Moniz . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
Le thème du voyage dans Astérix: altérité et «parodie des iden-
tités»
Otília Pires Martins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
Francisco Xavier na Peregrinaçam: o percurso de um santo se-
gundo Fernão Mendes Pinto
Fernando Alberto Torres Moreira e António Teixeira . . . . . . . . 131
Literatura da viagem em tonalidade modernista
Dionísio Vila Maior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
A História Trágico-Marítima: suas características no âmbito da
História do Livro
Kioko Koiso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
Carlos Ríos e sua Fábrica de Realidade
Flávia Walter e Alexandra Filomena Espindola . . . . . . . . . . . 179
A relevância de Peregrinação no contexto da apresentação do
Budismo aos Europeus
Bruno Miguel Gouveia Antunes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191
Quand un voyage en Orient en cache un autre
Régine Atzenhoffer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
Mia Couto: viagem e metaficção
José Paulo Cruz Pereira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221
As Viagens de Fialho
João Minhoto Marques . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239
Exílios, refúgios e desenganos dos pastores peregrinos
Artur Henrique Ribeiro Gonçalves . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253
Pelo País dos Romances com o Padre Bougeant
Ana Alexandra Seabra de Carvalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
Peregrinação de Fernão Mendes Pinto no sistema de ensino por-
tuguês
Clara Anunciação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 275
Por Este Rio Acima ou a Peregrinação revisitada
Sara Vitorino Fernandez . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289

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A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e a Perenidade da
Literatura de Viagens 5

A sede de conhecer — Uma revisão da herança literária das via-


gens no Diário de Miguel Torga
Lenka Kroupová . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 299
Agustina Bessa-Luís: narrativa de viagens e diálogos da lusofonia
Maria do Carmo Cardoso Mendes . . . . . . . . . . . . . . . . . . 311
Alexandra David-Néel: l’écriture d’un voyage personnel
Ana Fernandes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 323
A Tradução da Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto em Espa-
nha, França, Inglaterra e Alemanha no século XVII
Sandra Pina Gonçalves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 339
Um olhar estrangeiro: as impressões de Francis de Castelnau em
sua viagem pelo Brasil
Flávia Lúcia Espíndola Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 349
Cartografar a Literatura: contributos da abordagem geocrítica
para a perenidade da Literatura de Viagens
Sara Cerqueira Pascoal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359
A viagem imaginária do humanista Luis Vives (Somnium Vivis,
1520)
Alexandra de Brito Mariano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 387
Peregrinação: o ideário humanista de Fernão Mendes Pinto
Elisama Soraia Sousa de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . 401
A China e o Japão na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto:
entre utopia realizada e utopia realizável
Stéphanie De Jésus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 417
A Tra[d]ição do Cronista Viajante: uma Viagem por Outros Mares
Semânticos
Thaís do Socorro Pereira Pompeu . . . . . . . . . . . . . . . . . . 431
Miguel Torga e Agustina: viagens, memória e espírito do lugar
Álvaro Manuel Machado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 445
A Escrita e as «Oralidades» na Peregrinaçam de Fernão Mendes
Pinto (breves notas de leitura)
João David Pinto Correia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 459
Viagens e peregrinações da língua portuguesa
Manuel Célio Conceição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 479

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Exm.a Sr.a Directora da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais
(em representação do Sr. Reitor da Universidade do Algarve),
Exm.o Sr. Presidente da Câmara Municipal de Faro,
Exm.a Sr.a Directora Regional da Cultura,
Exm.a Sr.a Presidente da Associação 8 Séculos da Língua Portuguesa.
Exms. Srs. Convidados: Directora Regional do Serviço de Estran-
geiros e Fronteiras; Presidente da Associação do Comércio e Serviços
da Região do Algarve; Cônsul Honorário do Canadá; Representante da
Câmara Municipal de Loulé,
Exmos. Srs. Docentes e Discentes da Universidade do Algarve,
Caros e caras conferencistas e participantes,

Na qualidade de Coordenador do Colóquio Internacional A Peregrina-


ção de Fernão Mendes Pinto e a Perenidade da Literatura de Viagens,
gostaria de começar por dizer que é com muita satisfação que vejo hoje
concretizar-se a sua Abertura, projecto que responde ao desafio lançado
à Universidade do Algarve pela Associação 8 Séculos de Língua Portu-
guesa, cuja Presidente (a Dr.a Maria José Maya) temos a honra de ter
entre nós, e que só se tornou possível realizar pela excelente parceria
que se formou entre esta Universidade e dois centros de investigação de
referência nacional e internacional: o CLEPUL (isto é, o Pólo da Uni-
versidade do Algarve do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e
Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) e o CIAC
(isto é, o Centro de Investigação em Artes e Comunicação da Universi-
dade do Algarve). Aos seus respectivos Directores, o Doutor José Eduardo
Franco, e a Doutora Mirian Tavares, o meu mais profundo agradecimento.
Comemoramos, durante o ano de 2014 e em particular durante estes
dois dias do Colóquio, os quatro séculos da 1a edição da obra de Fernão
Mendes Pinto, cujo título abreviado todos conhecemos por Peregrinação,
8 João Carlos Carvalho

embora ele seja muito mais longo como, aliás, era muito comum naque-
les tempos. Trata-se de uma obra fundamental da cultura e da literatura
portuguesas e europeias, por todas as singularidades de que se reveste
e que deixarei aos especialistas as respectivas análises e interpretações.
Sob o signo da Peregrinação, este Colóquio estende ainda a sua abor-
dagem a um género – o da Literatura de Viagens – cuja universalidade
se demonstra na transtemporalidade e transespacialidade dos exemplos
possíveis. Para além disso, decidiu a organização abrir ainda as inter-
venções ao tema da Viagem na Literatura e noutras formas de expressão
artística, enriquecendo assim as temáticas deste evento científico.
Permitam-me, antes de terminar, uma palavra de agradecimento a to-
dos quantos tornaram possível este momento, começando pelos membros
da Comissão Organizadora (em especial, à Mestre Ana Catarina Ramos, à
Doutora Sandra Boto, ao Dr. Jorge Carrega e à Doutora Sara Fernandez,
infatigáveis em todo o trabalho organizativo interno, ao Dr. Luís Pinheiro
do CLEPUL e à Dra Isa Mestre do CIAC, insubstituíveis na relação com
o exterior) e ainda aos membros da Comissão Científica, constituída por
especialistas de diversas Universidades. Estendo este agradecimento à
Reitoria da minha Universidade, à minha Faculdade e à sua Direcção, aos
seus funcionários (muito em particular, à D.a Isabel Afonso), aos docentes
e estudantes por todo o apoio prestado ao longo destes meses de prepa-
ração. Das instituições exteriores sublinho toda a colaboração prestada
pela Associação 8 Séculos da Língua Portuguesa, pela Região de Turismo
e pela Câmara Municipal de Faro. Finalmente, à empresa OMVS Segu-
ros, esta última repetente no patrocínio a eventos desta natureza, bem
como ao Hotel Santa Maria, o meu agradecimento pelos diversos tipos
de apoio e colaboração efectivados.
Espero muito sinceramente que todos os participantes, no fim
destes dois dias, possam sentir que valeu a pena a vinda até Faro, ao
Campus de Gambelas da Universidade do Algarve por ter sido um evento
científico produtivo e multiplicador de boas ideias e de bons projectos de
investigação futuros. Bem vindos e votos de bom trabalho em torno da
Viagem e da Escrita!

João Carlos F. A. de Carvalho

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Ao solicitarem este pequeno apontamento, começo por felicitar os res-
ponsáveis da Universidade do Algarve por terem desencadeado este opor-
tuno Colóquio sobre a magnífica obra literária de Fernão Mendes Pinto,
Peregrinação. Parabéns! É o único comentário credível que posso fazer
perante um leque tão variado e tão valioso de personalidades de relevo na
análise da questão literária. De facto, Fernão Mendes Pinto agiganta-se
no momento em que se reduz a si próprio, quase ridículo, para dar lugar a
uma viagem geográfica, afetiva e de memórias que nos estimulam a refletir
sobre os sonhos das nossas peregrinações pessoais. Também nos ajuda à
observação atenta do fantástico do ser humano. Permito-me referir José
Tolentino de Mendonça quando lemos o desafio da contemplação de algo
que é um mistério: «vida é o imenso laboratório para a atenção, a sensi-
bilidade e o espanto que nos permitem reconhecer, em cada instante, uma
fantástica presença: os passos do próprio Deus».
Ao avivarmos a memória, sublinho o paradoxo do tempo presente que
vive tão rapidamente e deixa escapar a própria beleza da vida no seu
sonho de fantásticos e na elaboração do pensamento da história por meio
das estórias. Fernão Mendes Pinto não deixou de fazer memória para
as gerações seguintes. Utilizando a fantasia, transmite uma literatura
sibilina de sabor empolgante. Na nossa Europa, tão cética, tão fria, até a
sua memória histórica, por vezes, é subvertida. O cristianismo, que poderia
ser a alma e o rosto deste mosaico de nações, está permanentemente a ser
preterido por nada. . . Quando um povo rejeita ou regateia o seu próprio
rosto, terá dificuldades em dialogar com outros povos ou culturas.
Nada como fazer peregrinações à Peregrinação da memória tão rica
contida neste Continente. E Jesus Cristo é a base desta memória. Dá
unidade na diversidade das nações que compõem as nossas culturas. O
10 Cónego César Chantre

cristianismo tem o bónus e o ónus da História. Fernão Mendes Pinto


obrigou-nos a pensar.

Cónego César Chantre

Capelão da UAlg

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Uma viagem por 4 Séculos da
Peregrinação1

Alexandra Rodrigues Gonçalves

Directora Regional de Cultura do Algarve


Professora Adjunta da Escola Superior de Gestão, Hotelaria e Turismo
da Universidade do Algarve

Comemoram-se oito séculos da Língua Portuguesa e quatro séculos


da publicação da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. A revisitação
da obra de Fernão Mendes Pinto e do género literário da literatura de
viagem no âmbito do Colóquio Internacional emergiu como uma oportuni-
dade fascinante de reflexão pessoal, para quem desenvolveu um percurso
académico na relação entre o turismo, as viagens e o património cultural.
Talvez esta obra literária tenha estado nas origens do desenvolvimento do
gosto pelas viagens e na oportunidade que representam de conhecimento
cultural e patrimonial in situ. As Viagens de Marco Polo ou a Peregri-
nação de Fernão Mendes Pinto fazem parte das referências obrigatórias
de leitura de obras de literatura de viagens.
A obra de Fernão Mendes Pinto é inserida no género de literatura de
viagens na medida em que se baseia no relato de viagens. A literatura de
1
Este texto assume-se como um artigo de reflexão, não correspondendo a uma investi-
gação autónoma ou a um ensaio científico sobre a obra do cronista Fernão Mendes Pinto
e a literatura de viagens.
12 Alexandra Rodrigues Gonçalves

viagens tem a particularidade de cruzar e integrar duas coisas distintas:


o espírito do viajante e a narrativa de um autor literário. Neste género
literário, os factos e a sua exactidão são menos importantes do que a
forma utilizada para os descrever. Há uma expectativa de que os factos
relatados correspondam à realidade, mas o fascínio recai sobretudo sobre
o discurso, de grande e apurada descrição, e que se traduz também numa
viagem interior.
A releitura desta grande obra, revelam-nos hoje um novo olhar sobre a
nota preliminar de Aquilino Ribeiro, que nos diz: «Formoso livro de aven-
turas, como não há segundo na língua portuguesa (. . . ) O autor, depois
de andar vinte anos pela Ásia, soldado, negociante, pedinte, embaixador,
cortesão, jesuíta, pirata, “três vezes cativo, dezassete vendido” mune-se
então de uma pena e resolve escrever. Escreve na sua pequena casa do
Pragal, frente ao Tejo, pobre e desiludido, saudoso dos bons e aventuro-
sos tempos, e já distante dos acontecimentos, construindo uma narrativa
onde se desconhece onde começa e acaba a realidade, mas em que os
pormenores nos parecem vivos» (Ribeiro, 1933: 4).
A Peregrinação foi escrita entre 1570 e 1578 e só conheceu publicação
em 1614, já a título póstumo. Não se sabendo se a obra sofreu alterações,
relata as viagens de Fernão Mendes Pinto e fala-nos das aventuras e
desventuras do autor no Oriente (Índia, China e Japão).
Fernão Mendes Pinto retrata uma experiência por vezes fictícia e mui-
tas vezes questionada pela falta de referências dos seus leitores em re-
lação ao Oriente, à sua geografia, aos seus conflitos armados, à sua pai-
sagem e às suas gentes. Eduardo Lourenço refere-se a Fernão Mendes
Pinto como um percursor de Montesquieu ou de Voltaire, pela sua imensa
curiosidade e ingenuidade reveladas na escrita (Lourenço, 1989).
Confesso que a sua eloquente narrativa acerca das experiências, des-
cobertas e reflexões perpetuavam na minha pessoa o desejo de viajar e de
possuir aquela aventura pessoal de conhecer os «novos mundos», tal era
a forma real, e por vezes tenebrosa, que aquelas descrições assumiam na
mente de leitora adolescente, na sua primeira leitura da obra.
Nas memórias mais acesas dessa leitura escolar permaneceram as
histórias dos seus naufrágios e das suas fantásticas descrições, mas não
faltou quem o apelidasse de impostor, pela forma como desenvolveu a sua
narrativa, entre o maravilhoso e a ficção, entre o fabuloso e o real. De tal

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Uma viagem por 4 Séculos da Peregrinação 13

forma que a frase mais emblemática que se associa a estas descrições e


que a nossa memória melhor deteve foi: «Fernão, Mentes? Minto!».
Arnaldo Saraiva faz uma enumeração de vários ensaios que se debru-
çaram sob aspectos particulares de Fernão Mendes Pinto (2010), cen-
trando-se numa variedade expressiva de aspectos que analisam desde o
discurso literário (Maria Alzira Seixo); à representação espacial (Alberto
Carvalho); ao léxico marítimo (Maria Luísa Cusati); ao exotismo linguís-
tico (Erilde Reali); aos conhecimentos etnográficos do Oriente (José Go-
mez Tabanera); ou até à multiplicidade de sentidos da escrita do cronista
(Saraiva, 2010).
Tem-se escrito muita coisa sobre esta obra – que é autobiográfica que
assume um espírito de cruzada, que faz uma sátira social, que possui ine-
gável riqueza histórica, que se desconhece onde termina o mito e começa
a realidade. A associação à viagem religiosa também não é unânime en-
tre os seus estudiosos, apesar de uma referência insistente a Deus, às
missões e aos padres, e mesmo a rituais religiosos, não há no entanto um
destino ou lugar sagrado. Fala-nos de perigos, medos e obstáculos e de
um viajante especial que se desdobra em muitas aventuras, nem sempre
felizes na procura do Oriente e do conhecimento, e do encontro com o
outro.
António José Saraiva (1981) classifica a obra como anti-epopeia, pois
não descreve apenas o processo de construção do império, mas também
a resistência, a dificuldade e o custo desta construção, indo muito para
além da coleção de feitos históricos e contribuindo para a criação do mito.
Numa tese de mestrado recente (2006) José Carlos Machado afirma:
«uma das virtualidades da obra, será a de espelhar com grande nitidez e
realismo as contradições do homem quinhentista, renascentista, dividido
pelo seu poderio, mas ao mesmo tempo, plenamente convencido da sua
pequenez e da premente necessidade de refazer o seu percurso essencial
e existencial».
Eduardo Lourenço na sua análise da obra literário diz-nos que: «Des-
contentes com o presente, mortos como existência nacional imediata, nós
começamos a sonhar simultaneamente o futuro e o passado.» (1978: 20).
Outros, por sua vez, apontam uma grande semelhança entre este ho-
mem das Peregrinações e a matriz identitária do Homem português con-
temporâneo.

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14 Alexandra Rodrigues Gonçalves

Então se é verdade que o contexto sócio-político e cultural é condicio-


nante da literatura de viagens, o que se traduz em perenidade, também
é verdade que se assiste a uma narrativa sobre a viagem ao interior
do indivíduo e a um questionamento existencial que contribuem para o
sucesso da sua contínua leitura e assim conduziram à imortalidade da
obra e do seu autor (facto amplamente reconhecido e defendido, conforme
Saraiva, 2010).
É hoje incontornável o seu valor enquanto obra da cultura e da lite-
ratura nacional, e um elemento fundamental para a melhor compreensão
da realidade de um viajante naquela época em que nem tudo eram ro-
sas. Transmite-nos a perenidade do tempo vivido, a fantasia da aventura
dos navegadores portugueses e a religiosidade nas suas várias formas e
manifestações próprias daqueles tempos. Na Peregrinação de Fernão
Mendes Pinto todas as viagens têm um lugar.
Tal como disse Eduardo Lourenço que estas palavras nos sirvam para
sonharmos mais com o futuro do que com o passado.

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Referências bibliográficas

Lourenço, Eduardo (1978), O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mí-


tica do Destino Português, Lisboa, Círculo de Leitores.
Lourenço, E. (1989 ), “Peregrinação e crítica cultural indirecta”.
Fernão Mendes Pinto, Peregrinação e Cartas. Comentários Críticos, 2o
vol., Lisboa, Edições Afrodite, pp. 1053-1062.
Machado, José Carlos (2006), A Peregrinação: mito(s), símbolos, reali-
dade e utopia, Dissertação de Mestrado em Ensino da Língua e Literatura
Portuguesas, https://repositorio.utad.pt/bitstream/10348/77/1/msc_jcoma
chado.pdf, Outubro de 2014.
Ribeiro, A. (1933), “Peregrinação de Fernão Mendes Pinto” (adap. de
Aquilino Ribeiro), Lisboa, Livraria Sá da Costa.
Saraiva, A. J. (1981), “Os mitos portugueses”, Jornal de Letras, Artes
e Ideias, no 2 de 17 a 30 de Março de 1981, pp. 9-10.
Saraiva, A. (2010), “A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto revi-
sitada. A sua teoria moderna das viagens”, Revista Cultura Espaço e
Memória, pp. 129-142.
Interpretações de Peregrinação:
João David Pinto Correia, António José
Saraiva e Rebecca Catz

Miguel Real
Escritor, Professor, Ensaísta

João David Pinto Correia, num brilhante texto que opera a conver-
gência de diversas leituras de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto,
apresenta esta obra como uma «tessitura textual muito complexa», uma
sorte de «confluência de várias espécies de discursos que se cruzam e se
fundem numa vasta ordenação» dominada pelas categorias de «discurso
narrativo» e discurso «autobiográfico»1 .
Neste sentido, e tendo em conta a dominância daqueles dois tipos de
discurso, evidenciar-se-ia no texto de Fernão Mendes Pinto uma espécie
de síntese de múltiplas categorias discursivas, do cruzamento e fusão das
quais nasce justamente o texto literário: o discurso histórico ou historio-
gráfico, o descritivo, o oratório, o dramático, o poético, de timbre lírico, o
litúrgico e o epistolar2 .
Assim, enquanto texto autobiográfico e narrativo e devido ao seu tema
principal (a vida do autor-narrador nas longínquas paragens do Extremo
1
João David Pinto Correia, Autobiografia e Aventura na Literatura de Viagens. A
Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Lisboa, Seara Nova / Editorial Comunicação,
1979, p. 51.
2
Idem, ibidem, pp. 53-54.
18 Miguel Real

Oriente), Peregrinação entronca no vasto acervo da Literatura de Viagem


escrita no século XVI: «um itinerário, ou uma relação de viagem, em que
se apontaria, etapa por etapa, o conhecimento de lugares e populações»
estranhas à mentalidade europeia3 , cujo título indicia uma espécie de
provação existencial individual por terras incógnitas e exóticas de um
«pecador peregrino», uma sorte de «romagem de devoção», na qual e pela
qual o sofrimento vivido limparia os erros e pecados do autor-narrador4 .
Deste modo, João David Pinto Correia chama a atenção para o facto
de Peregrinação não se constituir apenas como uma enumeração de factos
(reais ou ficcionais), mas de apresentar igualmente «marcas de literarie-
dade»5 que testemunham estarmos de facto perante uma obra literária,
apresentando «uma tensão entre um discurso coloquial (. . . ) sem grandes
pretensões estéticas, por um lado, e, por outro, um discurso literário, já
narrativamente adequado ao suspense da narrativa e ao exotismo das
descrições, já poeticamente organizado, de um barroquismo metafórico,
ou então obediente aos cânones literários do classicismo»6 .
António José Saraiva, na introdução que escreveu para a edição de
Peregrinação em quatro volumes da Editora Sá da Costa em 19617 , real-
ça ser o herói da narrativa um anti-herói ou um herói pícaro de timbre
positivo, já que, com os lamentos do «coitado de mim», suscitando o es-
pírito sarcástico, coexistem «lágrimas e enternecimentos»8 . Peregrinação
estatuir-se-ia, assim, como expressão do esboroamento social e da deca-
dência histórica da mentalidade feudal senhorial e cavaleiresca, activa-
dos por grupos soltos de mercadores portugueses não controlados pelo
vice-reinado da Índia, mercadores que actuavam com o fito exclusivo de
enriquecimento.
Segundo António José Saraiva, o autor, enquanto herói do seu livro,
«tem a franqueza de nos declarar que a sua única preocupação é fazer
3
Idem, ibidem, p. 26
4
Idem, ibidem, p. 25.
5
Idem, ibidem, p. 77.
6
Idem, ibidem, p. 77.
7
Cf. igualmente António José Saraiva, “Fernão Mendes Pinto e o romance picaresco”,
in Para a História da Cultura em Portugal [1961], 3a edição, Lisboa, Europa-América,
1972, pp. 117-136.
8
António José Saraiva, “Prefácio” a Fernão Mendes Pinto, Peregrinação e Outras
Obras, Lisboa, Sá da Costa, 1961, 1o vol., p. XLIV.

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Interpretações de Peregrinação: João David Pinto Correia,
António José Saraiva e Rebecca Catz 19

fortuna. Conta as suas necessidades, misérias, fugas e os seus ataques


de medo: “as carnes tremiam-me”, diz frequentemente. Para salvar a
vida é capaz não só de fugir, mas até de se rojar no pó, de caluniar o
amigo, de beijar os pés do assassino»9 ; «desta forma, o herói principal
de Peregrinação, como escravo, como miserável, como bobo, oferece-se ao
riso dos leitores. É justamente um anti-herói, irmão de Sancho Pança.
Não tem sombra de orgulho, de brio, de preceito. A noção de “honra”
é-lhe inteiramente desconhecida. Dir-se-ia que o nosso Fernão Mendes
Pinto quis apresentar o contraste, o avesso dos heróis empertigados de
Camões e João de Barros, Este carácter do herói central é, porventura,
a chave [de leitura] de Peregrinação e explica-nos numerosos episódios
deste livro que de outra forma são incompreensíveis»10 .
Rebecca Catz, embora concorde quanto à natureza satírica de Pere-
grinação, tem, porém, sobre este livro, uma leitura muito diferenciada da
de António José Saraiva.
Com efeito, esta autora critica de um modo muito sólido a vertente
picaresca atribuída por António José Saraiva ao livro de Fernão Mendes
Pinto, já que o facto de um texto ser autobiográfico, desenhar uma espécie
de anti-herói, evidenciar episódios de miséria social e de cinismo narrativo
não caracteriza necessariamente o texto de pícaro11 , embora seja comum
à maioria dos textos satíricos.
Concordando que Peregrinação possui elementos pícaros avulsos, ou
episódios em que o pícaro é dominante, a autora entende que o discurso
dominante no texto possui as características da sátira. Escreve Rebecca
Catz: «Sátira é, quanto a nós, retórica moral, e o seu propósito o de
reformar [a sociedade, os costumes]. Ao mesmo tempo que critica males
[descrevendo-os, narrando-os de um modo exemplar], estabelece o mo-
delo positivo e aponta inexoravelmente o caminho para normas de moral
elevada»12 . E acrescenta, na Peregrinação «anda o diabo à solta; mas
trata-se de um universo [social e literário] em que crime é um pecado
contra Deus e o pecador ou se arrepende ou tem de responder perante
9
Idem, ibidem, pp. XXII-XXIII.
10
Idem, ibidem, p. XXVI.
11
Rebecca Catz, A Sátira Social de Fernão Mendes Pinto. Análise Crítica de Pere-
grinação, Lisboa, Prelo Editora, 1978, pp. 94-95.
12
Idem, ibidem, p. 95.

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20 Miguel Real

Ele. Isto é, em nosso entender, o que o afasta do picaresco, um género


literário isento de qualquer padrão moral normativo»13 .
Rebecca Catz critica igualmente a teoria sócio-económica de António
José Saraiva relativa à origem histórica do pícaro como «filho de uma
ordem social agonizante, nutrido no solo espanhol, onde as suas energias
[de origem cavaleiresca, fidalga, senhorial] se viam restringidas pelos va-
lores de um sistema feudal já ultrapassado»14 , mormente transplantado
para o ambiente social exógeno da Índia portuguesa e do Extremo Oriente.
A autora considera forçada a extrapolação ou transplantação do pícaro,
de origem eminentemente espanhola, para terras, ambientes e costumes
radicalmente diferentes.
Em «Para uma compreensão de Peregrinação» (1989), Rebecca Catz
regista ser este texto «uma obra de profunda filosofia moral e religiosa. A
tese da obra, expressa simplesmente, é o pecado e o castigo. O impulso
satírico que está nela patente é dirigido contra a ideologia de cruzada,
que foi a maior força unificadora da história de Portugal. É isso, pre-
cisamente, que separa Fernão Mendes Pinto dos seus contemporâneos
– porque só ele, no desabrochar da era do imperialismo europeu, teve
a grande coragem, o discernimento e a perspicácia de pôr em dúvida a
moralidade das conquistas ultramarinas, as quais condena como actos de
bárbara pirataria, em ofensa a Deus»15 .
Por via do conceito retórico de «persona» (capacidade pela qual o au-
tor literal ou histórico assume diversas vozes e/ou personagens), Rebecca
Catz suplanta a visão picaresca de Peregrinação de António José Saraiva.
Assim, por via deste conceito, o autor-narrador do livro assume uma
quádrupla dimensão:

a) a de voz moral, homem basicamente virtuoso e generoso;

b) a de voz ingénua, como ser inocente, de coração simples, que suscita


piedade;

c) a de voz heróica, capaz de desafiar e vencer o mal;


13
Idem, ibidem, p. 15.
14
Idem, ibidem, p. 95.
15
Rebecca Catz, “Para uma compreensão de Peregrinação”, in Fernão Mendes Pinto,
Peregrinação & Cartas, Lisboa, Edições Afrodite, 1989, p. 1033.

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Interpretações de Peregrinação: João David Pinto Correia,
António José Saraiva e Rebecca Catz 21

d) finalmente, a de voz pícara, a «que revela a tolice e a patifaria dos


outros dissimulando uma aprovação, pela participação nele, do mal
que deseja condenar»16 .

8 de Outubro de 2014

16
Idem, ibidem, p. 1033.

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Fernão Mendes Pinto: «pobre de mim»,
«fora de mim», «ainda este sou». . .

João Carlos Firmino Andrade de Carvalho

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve


Investigador do CLEPUL
Colaborador do CIAC

Resumo: O texto que a seguir se apresenta destaca três expressões de Fer-


não Mendes Pinto – «pobre de mim», «fora de mim», «ainda este sou» – para
explorar uma linha interpretativa que insiste na ideia de que, para além do sen-
tido aventureiro e mundano, o sentido espiritual e religioso da peregrinação do
eu errante / sujeito deambulante pelas labirínticas geografias do Oriente é tam-
bém incontornável no processo de significação e na construção do significado da
narrativa Peregrinaçam. A vida e a obra do autor quinhentista são atravessadas
por esta tensão dramática entre a inclinação para o pragmatismo e o materia-
lismo mundanos e a inclinação para o espiritual e o religioso. Dialéctica que
Fernão Mendes Pinto parece ter resolvido com a escolha de um certo rumo para
o resto da sua vida, após o regresso ao país de origem.

Palavras-chave: Peregrinação; Aventura; Mundanidade; Espiritualidade;


Religiosidade

Há alguns anos, um programa de larga audiência do principal canal


televisivo estatal português colocava Fernão Mendes Pinto relativamente
bem colocado na votação dos portugueses. É interessante ainda notar que
24 João Carlos Firmino Andrade de Carvalho

uma fatia significativa das figuras históricas que surgia mais bem posicio-
nada em tal votação pertencia aos séculos XVI e XVII, demonstrando-se,
desse modo, o peso dos Descobrimentos e do período imperial português
no imaginário colectivo lusitano. Não tenho a certeza que a figura de
Fernão Mendes Pinto e a sua obra Peregrinaçam continuem vivos no
imaginário colectivo português pelo menos entre as novas gerações, uma
vez que a sua actual ausência dos programas escolares do ensino pré-
-universitário decerto contribuirá para o progressivo apagamento quer da
figura autoral quer da obra, cuja interdependência indirecta resulta da na-
tureza autobiográfica desta narrativa em que as fronteiras entre a história
e a ficção são não raro mal definidas. A singularidade desta autobiogra-
fia romanceada, genologicamente compósita, escrita na primeira pessoa
do anti-herói indivíduo, fica desde logo patente no próprio facto de o seu
autor ter ficado para a história da cultura e da literatura portuguesas
com a publicação da sua Peregrinaçam. Não é que na história cultural
e literária das nações não haja outros autores que devam a perpetuação
do seu nome a uma única obra, mas não é muito comum. Mas este reco-
nhecimento da excepcionalidade da obra é algo que começa muito cedo,
logo após a sua primeira publicação, não só entre os leitores nacionais
mas também entre os leitores das muitas traduções feitas para as prin-
cipais línguas europeias (o espanhol, o francês, o inglês, o holandês e o
alemão). Acompanhando a sua rápida difusão, também desde cedo surge
o problema da recepção / leitura desta obra, isto é, a questão da credi-
bilidade histórica versus a da verosimilhança narrativa. De facto, a obra
parece ter interessado os seus leitores quer como narrativa de aventura
e ensinamento moral, quer como fonte de informação considerada útil so-
bretudo para os novos impérios marítimos e comerciais europeus. Esta
duplicidade (história – ficção) é, sem dúvida, algo de intrínseco à natu-
reza complexa desta narrativa, que joga com eventos factuais trabalhados
pela memória e pela imaginação. Separar com clareza o factual do ima-
ginado não só não nos parece tarefa fácil como se nos afigura ingrata e
inútil. A Peregrinaçam, desde o momento em que foi publicada, sempre
esteve sujeita a esta variabilidade hermenêutica, variando entre o valor
documental e o valor monumental. Mas a variabilidade hermenêutica não
se ficou apenas por este aspecto referido. No século XX-XXI, a dicotomia
entre as leituras anti-épicas, de sátira anti-cruzada, de obra pícara ou

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Fernão Mendes Pinto: «pobre de mim», «fora de mim»,
«ainda este sou». . . 25

do erasmismo, por um lado, e as leituras do providencialismo cristão, da


obra de edificação moral, do contra-reformismo católico, por outro, ani-
mou grande parte do debate apaixonado e inflamado que os contendores,
de todos bem conhecidos, travaram. Parece-nos óbvio que para a com-
plexidade e variabilidade interpretativas contribuiu uma questão chave e
de partida: não é possível asseverar com confiança que o formato final
da narrativa, tal como surgiu aquando da sua publicação e chegou até
aos leitores de então e todos os outros até nós, seja da inteira e única
responsabilidade de Fernão Mendes Pinto. Pelo contrário: sabemos hoje
que a obra sofreu a intervenção de outras mãos, desde logo, as de Fran-
cisco de Andrade. Título final e divisão em capítulos, por exemplo. Mas
outras intervenções são plausíveis. Escrever, criar, naqueles tempos muito
anteriores aos valores e códigos românticos, implicava uma noção dife-
rente de originalidade, não excluindo a partilha de informações por via
oral ou escrita, de opiniões e conselhos de um círculo restrito de leito-
res competentes, amigos ou conhecidos do autor. Isto para só falar do
tempo em que a obra foi sendo redigida pelo autor. Após a sua morte e
até à data da publicação, outras eventuais intervenções não podem ser
totalmente excluídas, no plano das hipóteses. Isto para já nem falar, claro
está, nas transformações operadas pelas traduções da obra portuguesa,
de acordo com os códigos tradutológicos da época, pois aqui já estamos
noutro plano.
Nenhuma interpretação da obra pode negligenciar a relação entre a
produção, o contexto e a recepção, para além da natureza específica da
estrutura e processos de significação textuais, sob pena de cair no delírio
interpretativo por sobrevalorização de um dos factores sobre os outros.
Refiro-me aqui quer às interpretações de teor mais literário, quer às de
teor mais histórico-cultural.
O que propomos, em seguida, não é uma nova interpretação, mas sim
um contributo que tem em conta diferentes interpretações anteriores em-
bora não se reconheça cabalmente em cada uma delas e que parte das
palavras de Fernão Mendes Pinto citadas no título desta nossa interven-
ção.
A expressão «pobre de mim» é familiar a todos os leitores da Pere-
grinaçam, pois surge recorrentemente ao longo da obra. É inegável que
existe nela um tom de queixume e autocomiseração que alguns poderão

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26 João Carlos Firmino Andrade de Carvalho

interpretar como algo, afinal, tão tipicamente português ou, então, como
uma marca de anti-heroísmo de feição pícara. Note-se que «de feição
pícara» não significa uma narrativa confundível com o género pícaro (o da
picaresca espanhola) – interpretação que me parece abusiva. Contudo,
este «pobre de mim» tem uma conotação bem mais própria da mundivi-
dência cristã-católica do português do século XVI que se vê a si mesmo
como dependente da vontade do destino ou da providência divina, apesar
da humanista crença na vontade e capacidade do indivíduo. A verdade é
que a religião é, no século XVI, para todo o europeu, para toda a cristan-
dade, a marca de identidade mais funda que os caracteriza. Ora, e aqui
chegamos ao meu ponto, creio que se tem desvalorizado o peso da espiri-
tualidade e especificamente da religiosidade na obra de Fernão Mendes
Pinto. Não que a queira agora hipervalorizar, mas tão só insistir que, para
além do sentido aventureiro e mundano, o sentido espiritual e religioso da
peregrinação do eu errante / sujeito deambulante pelo Oriente é também
incontornável no processo de significação e na construção do significado
da obra em apreço. Não se trata, claro está, de uma peregrinação a luga-
res santos (como nas narrativas medievais de peregrinação), mas trata-se
de uma peregrinação a lugares infectos do mundo não cristão, habitado
pelos incréus, em busca do sentido da vida e do lugar de Deus na vida
dos homens. E isto não esquecendo que é perspectivado por alguém cuja
cultura religiosa é a de um português cristão-católico do século XVI.
Eu diria, para sintetizar este ponto, que é precisamente na tensão
entre a materialidade e a espiritualidade / religiosidade que se encontra
uma das linhas de sentido mais importante da obra. O que leva Fernão
Mendes Pinto a sair do seu país? O mesmo que à grande maioria dos
portugueses de então: o de procurar melhor fortuna no promissor Oriente.
E, de preferência, não no Oriente controlado pela Coroa e pela Igreja por-
tuguesas – a Índia – mas o Oriente mais extremo, o dos transfrontiermen,
dos aventureiros e negociantes pouco escrupulosos, onde é possível enri-
quecer em pouco tempo (ou seja, para além de Malaca). Contudo, as coi-
sas não surgem assim de forma tão rectilínea para Fernão Mendes Pinto.
As voltas do destino ou da providência tornam-se mais emaranhadas e
o desejado enriquecimento rápido transforma-se em vinte e tal anos de
altos e baixos na vida deste aventureiro-peregrino. A narrativa conta com
dois momentos bem conhecidos dos leitores: o momento até ao suposto

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Fernão Mendes Pinto: «pobre de mim», «fora de mim»,
«ainda este sou». . . 27

desaparecimento de António de Faria num malfadado naufrágio (num dos


muitos naufrágios da obra) – o herói-cavaleiro-cristão-dos-mares idola-
trado por Fernão Mendes Pinto e que se transformará aos olhos deste
como vilão-pirata e traidor aos valores da ética cristã-católica – e o mo-
mento posterior ao referido evento e que nos mostra um Fernão Mendes
Pinto em processo de purificação espiritual e de redenção enquanto va-
gabundo, pedinte e prisioneiro em território chinês. O ponto alto deste
segundo momento constituir-se-á aquando do posterior encontro e conví-
vio de Fernão Mendes Pinto com o Padre Francisco Xavier – o novo herói
santo aos olhos do nosso autor-narrador e personagem. O trabalhoso mas
eficaz ofício de evangelização de Francisco Xavier no Japão e o sonho ou
utopia de Xavier da cristianização da deslumbrante China (a tal que para
ser perfeita só lhe faltava ser cristã), impressionaram Fernão Mendes
Pinto, que colaborará activamente com o investimento do seu pecúlio pró-
prio no empreendimento evangélico, primeiro com Xavier e, depois, com
o Padre Melchior. Do empreendedorismo, materialista e sem escrúpulos,
passa-se ao empreendedorismo espiritual e religioso, num processo de
desejo de remissão do pecado e da culpa, enfim, de desejo em tornar-se
num homem melhor, de consciência cristã absolvida.
Ora é aqui que entra com toda a pertinência a segunda expressão do
meu título – o «fora de mim», que extraímos de uma conhecida Carta do
nosso autor, datada de Dezembro de 1554. Claro que poderíamos alar-
gar o sentido próprio em que ela foi proferida e escrita pelo seu autor à
experiência de relativo descentramento e outramento cultural e religioso
vivida por Fernão Mendes Pinto no Extremo-Oriente e, em particular, na
China. De facto, tais experiências sensoriais e emocionais equivalem a um
sair de si mesmo, ou pelo menos a um seu simulacro convincente, sendo
sentido e descrito pelo próprio como um perigo ou uma ameaça ao quadro
identitário do sujeito. Mas não é esse o sentido próprio das palavras de
Fernão Mendes Pinto na citada Carta. Na verdade, elas referem-se à
marcante experiência e efeitos decorrentes da visão do corpo incorrupto
do Santo Padre Francisco Xavier chegado a Goa, onde Fernão Mendes
Pinto já se encontrava antes do seu projectado regresso a Portugal. Tal
momento, bem como os imediatamente consequentes, mostrarão uma in-
contida e intraduzível vontade em responder ao insondável e misterioso
chamamento divino, que parece levar Fernão Mendes Pinto a percorrer

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28 João Carlos Firmino Andrade de Carvalho

algumas das fases dos exercícios espirituais inacianos até ao momento


em que o culminar de tal processo se frustra e o iniciado recua no pro-
pósito de um ingresso na vida de irmão da Companhia. O extraordinário
pormenor na narração e descrição desta invulgar experiência vivida por
Fernão Mendes Pinto não pode deixar de tocar fundo o leitor que, desse
modo, assiste de forma privilegiada àquela que seria a sua derradeira
transmutação ou o seu derradeiro desnudamento.
Contudo, do mesmo modo que é com genuína sinceridade que se as-
siste a esta elevação espiritual de Fernão Mendes Pinto, também é com
frontalidade genuína que Fernão Mendes Pinto, na Carta de 1555 diri-
gida ao Reitor do Colégio de Goa, confessa – não sem um certo embaraço
de quem procura a absolvição – «ainda este sou». E afinal quem é este
que afirma ser quem ainda é? Naturalmente, é o Fernão Medes Pinto
preso à materialidade da vida humana (o «amor do dinheiro» e a «afeição
da pedraria»), com todas as suas imperfeições e pecados, que se sabe ao
lado da Igreja mas fora dela.
De tudo isto nos falam as suas Cartas, não a sua obra Peregrinaçam,
mas é inegável ser esta uma narrativa cheia de movimento, acção e vi-
talismo virada toda ela para o mundo e os homens; o Deus de Fernão
Mendes Pinto, sendo evidentemente cristão e católico, é um Deus para os
homens e para o mundo; não é tanto o Deus do templo, do culto regrado
e dos livros sagrados. Entre a tese do contra-reformismo, defendida pelo
meu caro colega e amigo António Rosa Mendes, e a tese do erasmismo
(defendida por António José Saraiva), a Peregrinaçam mostra-nos, creio,
uma moral cristã mais humana e mundana, um sujeito que se sabe ou
descobre imperfeito, um «pobre de mim» pecador, mostra-nos, enfim, a
condição humana entre o desejo de perfeição divina e a liberdade para o
erro.
Contudo, e para terminar, também será pertinente acrescentar que
Fernão Mendes Pinto regressa a Portugal como parece ter sido sempre o
seu desiderato, e com um pecúlio não tão insignificante como se poderá
julgar. Aqui casou e teve filhos (ou filhas). Aqui desempenhou funções
administrativo-judiciais e enquanto Irmão da Misericórdia de Almada, vi-
vendo respeitado pela comunidade, e escrevendo, na sua quinta do Pragal,
uma autobiografia recreada pela memória, enriquecida com muita infor-
mação recolhida de viajantes recém-chegados do Oriente e de autores

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Fernão Mendes Pinto: «pobre de mim», «fora de mim»,
«ainda este sou». . . 29

de referência da época e, finalmente, por alguma imaginação criadora


ajudada por evidente domínio das letras e apurado sentido para a escrita.

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Bibliografia

Carvalho, João Carlos Firmino Andrade de, Ciência e Alteridade na


Literatura de Viagens. Estudo de Processos Retóricos e Hermenêuticos,
Lisboa, Edições Colibri, 2003.
Mendes, António Rosa, A Peregrinação e a peregrinação de Fernão
Mendes Pinto, Tavira, Gente Singular Editora Lda, CELL – UALG, 2011.
Pinto, Fernam Mendez, Peregrinaçam, Maia, Castoliva Editora Limi-
tada, 1995 (edição fac-similada da edição de 1614, com Apresentação de
José Manuel Garcia).
Pinto-Correia, João David, Peregrinação de Fernão Mendes Pinto,
apresentação crítica, antologia e sugestões para análise literária, Lisboa,
Edições Duarte Reis, 2002.
Saraiva, António José, “Cartas de Fernão Mendes Pinto aos padres e
irmãos da Companhia de Jesus”, Fernão Mendes Pinto e Outras Obras,
Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1984, vol. IV, pp. 307-347.
Peregrinação,
Uma Narrativa Várias Perspetivas

José Ruy

Autor de Banda Desenhada

«Peregrinação, Uma Narrativa Várias Perspetivas» é o título que dou


a esta intervenção, pois as memórias de Fernão Mendes Pinto têm servido
como ponto de partida para muitas interpretações em diversas áreas, como
a da Banda Desenhada, da Música, da Poesia e do Teatro.
Pela minha parte, apaixonei-me pelo texto de Fernão Mendes Pinto e
adaptei-o para Banda Desenhada que publiquei no jornal infanto-juvenil
Cavaleiro Andante nos finais dos anos 50 do século XX. O Fausto Bordalo
Dias, com 12 anos de idade na altura, vivia em África e descobriu este
autor e personagem através dessa BD. De tal maneira ficou impressionado
que dedicou grande parte da sua vida a compor o poema sinfónico «Por
Este Rio Acima» que o catapultou, entre nós, para uma posição cimeira
no campo da música.
No início dos anos 80 procurou-me para partilhar o lançamento do seu
vinilo quando curiosamente esta minha BD estava também a ser editada
em álbum, recuperada do jornal. Tornámo-nos bons amigos e realizámos
em Almada eventos em conjunto, ele tocando e eu desenhando ao vivo.
Posso dizer que devo ao Fernão Mendes Pinto esta amizade alicerçada
pelo mesmo sonho.
32 José Ruy

Também em 1982, o encenador Hélder Costa do Teatro «A Barraca»,


levou à cena a Peça «Fernão, mentes?» e declarou-me há pouco que se
tinha igualmente inspirado na Banda Desenhada para a encenação das
cenas.
Nessa época, o Fausto numa entrevista concedida a um jornalista
demonstrou o seu desejo de ver a sua música ligada à Banda Desenhada
que o tinha inspirado, numa realização em filme. Goradas várias tentativas
para essa concretização, por desinteresse das entidades que o poderiam
apoiar, passados estes anos e como domino já as novas tecnologias resolvi
fazer um videograma, não com animação mas utilizando o movimento de
câmara e de zoom, narrando a Peregrinação numa simbiose da música,
poema e voz do Fausto com as vinhetas da minha Banda Desenhada.
Tem a duração de 27 minutos e vai ser projetado de seguida, agrade-
cendo desde já a vossa generosa atenção.

Após a projeção e na sequência de intervenções da assistência:


Como curiosidade, lembro que, nos anos 50 do século XX, o «Fer-
não Mendes Pinto» era considerado, pelas autoridades que orientavam
o ensino, um escritor «maldito», pois declarava que tinha sido pirata nos
mares da China o que manchava o perfil do português que se cantava
como o herói perfeito e de exemplo ao mundo.
Quando mostrei desejo de desenhar a Peregrinação na sequência das
histórias que publicava no Cavaleiro Andante, o diretor do jornal torceu
o nariz e aconselhou-me a fazer em vez disso «Os Fumos da Índia» de
Henrique Lopes de Mendonça. Mas eu estava determinado e fui tentando
convencê-lo até que cedeu. Foi publicada durante 75 semanas.
No entanto, tive o cuidado, para não despertar a atenção da censura,
de não recriar a personagem com barbas desalinhadas e cabelo hirsuto,
aspeto que seria natural de quem andava semanas no mar sob tempes-
tades, pois o cinema e as séries de BD de origem inglesa tinham criado,
entre nós, a figura padrão do pirata, de grandes barbas e pala no olho.
Assim, fiz o Fernão Mentes Pinto de cara lavada e escorreito, de modo a
não acicatar os censores na época.

Faro, 9 de outubro de 2014

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Jean Baudoin:
tradutor-fantasma de Fernão Mendes Pinto

Patrícia Couto
Centro de Estudos Comparatistas
Faculdade de Letras
Universidade de Lisboa

Resumo: Em 1628 é publicada em Paris a tradução francesa da Peregri-


naçam sob o título: Les voyages advantvrevx de Fernand Mendez Pinto. As
viagens foram «Fidellement traduicts de Portugais en françois par le Sieur Ber-
nard Figuier Gentil-Homme Portugais». Segundo um contrato firmado em 1626,
Bernard Figuier vende a sua tradução literal da Peregrinaçam a Jean Baudoin
que se compromete, em nome de Figuier, a apresentar uma tradução segundo
as normas retóricas em vigor. Para compreender a razão que levou os dois ho-
mens a assinar o contrato, é preciso contextualizar a tradução e os tradutores
intervenientes.

Palavras-chave: Fernão Mendes Pinto; Bernard Figuier; Jean Baudoin; Es-


tudos de Tradução.

Em 1628 é publicada em Paris por Mathurin Henavlt a tradução fran-


cesa da Peregrinaçam. O título reza: Les voyages advantvrevx de Fernand
Mendez Pinto. No título vem ainda mencionado que a obra foi:
Fidellement traduicts de Portugais en françois par le Sieur Bernard
Figuier Gentil-Homme Portugais. Et dediez a Monseigneur Le Car-
dinal de Richelieu. Le contenu de la presente histoire se verra à la
34 Patrícia Couto

page suivante. À Paris. Chez Mathurin Henavlt, rue Clopin, deuant


le petit Nauarre: & à sa boutique en la Cour de Palais, à costé de
la Chapelle sainct Michel, proche de la fontaine. MDCXXVIII. Avec
Privilege du Roy.

A publicação ocorre catorze anos após a publicação da Peregrina-


çam em Lisboa e oito anos após a publicação da tradução castelhana de
Herrera Maldonado intitulada Historia oriental de las peregrinaciones de
Fernan Mendez Pinto português (reedições em 1620, 1627, 1645, 1664,
1666) (Laborinho, 2006, 2o vol.: lxxiii). Tal como a tradução castelhana,
a tradução francesa foi um sucesso, ela foi reeditada em 1645 e 18301 .
Serviu ainda de texto fonte para a tradução neerlandesa de 1652 (reim-
pressão em 1653), e indirectamente para a tradução alemã de 1671 (duas
reedições em 1671) que foi traduzida do neerlandês (Laborinho, 2006, 2o
vol.: xcvii). Henry Cogan, o tradutor da versão inglesa publicada em 1653
(reimpressões em 1663, 1692 e edições fac-similadas em 1969 e 2013),
menciona a tradução francesa e a castelhana das quais se terá servido.
Excertos da tradução francesa são ainda publicados em colectâneas de
viagens (Laborinho, 2006, 1o vol.: 174; 2o vol.: cxix-cxx, cxxii-cxxiii)2 .
Ao longo do século XVII e início do século XVIII, a tradução francesa é
frequentemente referida quando a Peregrinaçam ou o seu autor são men-
cionados, este é o caso do alemão Erasmus Francisci, do holandês Simon
de Vries ou do francês Jean Frederique Bernard (Couto, 2012: 220-224;
243).
Do tradutor Bernard Figuier, porém, pouco sabemos. Em 1741, Bar-
bosa de Machado menciona na sua Bibliotheca Lusitana que «Bernardo
Figueyra [foi] Assistente na Corte de Pariz onde adquiriu profunda in-
telligencia da lingua Francesa na qual traduziu da materna a Peregri-
naçao» (Machado, 1741, tomo I: 530-531). Cita como fontes António de
Leon Pinelo (1737) e Cornelis à Beughem (1685) mas Leon Pinelo men-
ciona apenas que Figuier foi o tradutor francês enquanto Beughem nem
1
Em 1968 foram publicados os capítulos 71 a 142, se bem que em francês modernizado.
2
Também os excertos publicados em Historische beschrijving der reizen, Amsterdam,
1756, intitulados “Reizen van Fernando Mendez Pinto” foram traduzidos das “Voyages
de Fernand Mendez Pinto” publicados na colectânea Nouvelle Collection publicada por
Abbé Prévost (1751) e baseadas em Voyages advantureux.

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Jean Baudoin: tradutor-fantasma de Fernão Mendes Pinto 35

sequer o menciona. A Geographie, Voyages, Chronologie, Histoire Uni-


verselle, Histoire Sacrée et Histoire Écclesiastique diz que a tradução
francesa feita pelo português Figuier «manque d’élégance, mais non de
fidelité», mas que o interesse factual compensa a aridez do estilo (Geo-
graphie, 1819: 175). Na Nouvelle biographie génerale somos informados
que «Figueyra ou Figuier (Bernard)» nasceu no final do século dezas-
seis e morreu no século dezassete. Parece-nos evidente, estamos a falar
de uma tradução que foi publicada em 1628 (Nouvelle biographie, 1856:
674-675). Ainda acrescenta que Figuier veio em jovem para Paris onde
terá aprendido francês a fim de traduzir as célebres aventuras de Fernão
Mendes Pinto, livro que dedicou ao Cardeal Richelieu. A fonte citada é
novamente Barbosa de Machado mas já vimos que ele menciona apenas
que Figuier foi assistente na corte francesa.
Não foram encontradas outras traduções ou obras da autoria de Fi-
guier e não possuímos outros dados acerca dele. Como terá Figuier adqui-
rido a experiência para fazer uma tradução desta envergadura que gozou
de tanto prestígio? Basta olharmos para os outros tradutores da Pere-
grinaçam. O castelhano Herrera Maldonado tem obra própria e outras
traduções em seu nome (Couto, 2012: 122). No caso do tradutor neerlan-
dês, J. H. Glazemaker, tanto ele como as suas traduções – entre as quais
se encontram traduções clandestinas de Espinosa – foram alvo de estudo
(Couto, 2012: 42-207). A tradução alemã da Peregrinaçam é anónima e
por isso torna-se mais difícil saber quem terá sido o seu autor. Já Henry
Cogan, o tradutor inglês, publicou mais cinco traduções num período de
três anos (Catz, 1989: xxix).
Encontrei a resposta de forma inesperada. Num artigo publicado em
1975, o bibliógrafo francês Christian Péligry faz uma análise da divulga-
ção do livro castelhano em França durante o século XVII e referindo-se
ao estatuto do tradutor, a certa altura afirma:

Le cas de Jean Baudoin nous aidera à mieux comprendre encore


ce qu’était, au temps de Louis XIII, la condition d’un traducteur.
En 1626, il prit contact avec un gentilhomme portugais, Bernard
Figuier, et lui promit de traduire du portugais Les Voyages advan-
tureux de Méndez Pinto. La traduction serait publiée sous le nom
de Figuier, lequel recevrait pour la peine qu’il n’avait pas prise trois
douzaines d’exemplares! Quant à Baudoin, il se contenterait pour

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36 Patrícia Couto

ce travail peu reluisant, d’une somme de cent livres (Péligry, 1975:


168-169).

Péligry refere em nota o arquivo onde encontrou o contracto entre


os dois homens3 . Segundo este contrato firmado no dia 17 de Julho de
1626 perante o notário parisiense Jean Deman, Jean Baudoin (c. 1584-
-1650) «interprette du Roy en Langues estrangeuiers» recebe das mãos
de Figuier «fonctionnaire de sa Ma.te » um texto intitulado “Les voyages
advantureux de Fernand Mendez Pinto gentilhomme portugais”. O texto
de Figuier ou «paráfrase» servirá de tradução preliminar para Baudoin
reescrever segundo as normas retóricas em vigor. Para tal Baudoin recebe
cem libras enquanto Figuier tem direito a três dúzias de exemplares e o
seu nome figurar como sendo o tradutor.
Não era invulgar autores que desconheciam a língua fonte servirem-
-se de uma tradução documental ou literal feita por um falante nativo a
quem não se reconhecia o talento para criar um texto segundo as nor-
mas da época4 . Geralmente o autor da versão preliminar nem sequer é
mencionado, o prestígio vai para o autor da versão final. Não é este o
caso presente. Para saber quais terão sido as razões que levaram os dois
homens a firmar o contrato é preciso contextualizar a publicação de Les
Voyages Advantureux e saber quem eram Figuier e Baudoin.
O Verão de 1626 foi uma época conturbada na corte francesa e para
as relações entre a França e a União Ibérica. Anteriormente, em 1615,
Luís XIII fora obrigado por vontade da sua mãe e regente, Maria de Medici
a casar-se com a Infanta de Espanha e Portugal. Em 1617 Luís XIII sobe
ao trono e sete anos mais tarde o Cardeal Richelieu é nomeado primeiro-
-ministro. O Rei e o Cardeal decidem casar o Duque d’Orleans, irmão do
rei e herdeiro ao trono, com Maria de Bourbon. Porém, o Duque recusa
o casamento e revolta-se contra o rei e o primeiro-ministro. Em Junho de
1626, a conspiração de Chalais, é gorada. A intenção era assassinar Ri-
chelieu, levar Luís XIII a abdicar do trono a favor do Duque d’Orleans que
casar-se-ia com a sua cunhada espanhola também envolvida no complô.

3
Archives Nat. Minutier Central, xxxi, 109, 1626, 17 juillet.
4
Segundo a definição de Nord, uma tradução documental funciona como um metatexto
centrado no texto fonte que reproduz de forma literal (Nord, 1997: 52-53).

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Jean Baudoin: tradutor-fantasma de Fernão Mendes Pinto 37

É neste clima de intriga e hispanofobia que os dois protagonistas se vêm


obrigados a (sobre)viver.
O contrato entre Figuier e Baudoin é firmado um mês após a cons-
piração falhada. É sabido que tradutores ou escritores beneficiavam da
protecção de uma figura influente dedicando-lhe o seu trabalho (Péli-
gry, 1975: 168). Como a tradução de Mendes Pinto ostenta o privilégio
real e é dedicada ao Cardeal Richelieu, agora reforçado no seu poder,
podemos concluir que Figuier procurava a atenção da corte e do Car-
deal, fazendo-se passar por homem de cultura e tradutor segundo as re-
gras da boa retórica francesa. Porém, consciente das suas limitações,
vende a Baudoin a sua tradução documental a troco de seu nome figurar
como tradutor. Quereria Figuier, que faz questão em identificar-se como
«Gentil-Homme Portugais», provar possuir qualidades para excercer um
cargo mais elevado ou, mais provável ainda, convencer o cardeal da sua
lealdade e demarcar-se da entourage espanhola da mulher de Luís XIII?
A ideia é reforçada na dedicatória a Richelieu assinada por Figuier que
afirma:

Ce qui m’a obligé de le traduire en François, a esté pour découurir


plusieurs singularitez que les autres Historiens n’ont point touchées
en leur Ouurages, & monstrer par mesme moyen les grandes choses
que les Portugais ont faites aux Indes Orientales, quoy que la reuo-
lution du temps leur en ait depuis dérobé le fruict, & qu’auiourd’huy
les Espagnols s’en attribuent toute la gloire (Figuier, 1628: “A Mon-
seignevr le Cardinal de Richeliev”).

Richelieu é comparado a «ce vray Athlas, sur la vigilance duquel se


repose cette Monarchie, . . . qui affermit les armes des bons François, & les
fait tomber des mains des rebelles». Figuier parece referir-se ao golpe
de estado contra Richelieu em 1626. Ficamos ainda a saber que conhecia
pessoalmente o cardeal: «Quand ie ne serois point si heureux que d’estre
cogneu de vous, ny d’auoir part à la bien-vueillance qu’il vous a pleu me
tesmoigner plusieurs fois» e uma vez que Figuier menciona não ter patron
é provável que procurava a protecção do Cardeal.
Ao analisar Les voyages advantureux verificamos que há inúmeros
vestígios do texto original. Os resumos no início de cada capítulo são
geralmente escritos na primeira pessoa na tradução francesa tal como no

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38 Patrícia Couto

original, ao contrário da tradução de Herrera Maldonado que utiliza a


terceira pessoa:

Chapitre Premier Capitvlo I. Capitulo Primero.

De quele façon i’ay passé De que passey em minha Cuenta el Autor su nas-
ma ieunesse dans le mocidade neste Reyno cimiento, mocedad, y su-
Royaume de Portugal, ate que me embarquey cessos en el Reyno de
iusques au iour de mon para a India (P. I). eeio Portugal, hasta embarcar
embarquement pour aller kjhhu eeio kjhhu eeio se para la India (H.O. I).
aux Indes (V.A. I). kjhhu eeio kjhhu eeio kjhhu

Também a omissão na tradução francesa de «su nascimiento» e «y


sucessos» que surgem no texto castelhano parece-nos inspirado na Pere-
grinaçam.
No primeiro capítulo, a «rude & tosca escritura» é traduzido por «dis-
cours rude & mal poli» enquanto Herrera Maldonado opta por «mal limado
discursos». No mesmo capítulo o tradutor espanhol introduz uma longa
descrição da sua autoria sobre a cerimónia da quebra dos escudos que
não aparece na versão francesa que segue o texto original.
Ao contrário do que é sugerido no frontispício «fidellement traduicts
de Portugais» não há dúvida que a tradução castelhana de Herrera Mal-
donado também serviu de fonte para Les voyages advantureux (Catz, 1988:
76; Couto, 2012: 125, 167-168, 170, 180, 300)5 . Tudo leva a crer que
Baudoin utilizou a tradução fornecida por Figuier bem como a tradução
castelhana para a sua reescrita.
Jean Baudoin, que terá nascido por volta de 1584, foi um tradutor de
latim, italiano, castelhano, grego e inglês. Entre os mais de cinquenta
títulos traduzidos por ele figuram autores como Tasso, Lipsius, Bacon,
Sidney, Tácito, Séneca, Inca Garcilaso de la Vega e Francis Godwin.
Um conjunto ecléctico de autores embora as suas traduções mostrem uma
predilecção pelas obras edificantes, mas também de ficção e livros de
emblemas. Baudoin foi também um dos primeiros membros da Académie
Française, instituída pelo cardeal Richelieu com o objectivo de elevar a
5
Isto explica as semelhanças com o texto de Herrera Maldonado que existem na tra-
dução neerlandesa, inglesa e alemã feitas directa ou indirectamente a partir da tradução
francesa (Laborinho, 2006: 156).

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Jean Baudoin: tradutor-fantasma de Fernão Mendes Pinto 39

língua vernácula a uma língua de cultura como era o latim. Uma das
formas para alcançar esse objectivo era através da actividade tradutória,
por isso não é de estranhar que muitos dos primeiros académicos tenham
sido tradutores. Além de tradutor, editor e organizador, Baudoin foi autor
de dezassete obras de ficção. Plazenet desmonta o mito de que ele terá
morrido na miséria. Pelo contrário, com os anos ganhou renome (Plazenet,
1998: 7-8). O facto de muitas das suas obras terem sido publicadas por
Pierre Rocolet, especialista em livros de luxo confirma o seu prestígio. Em
1644 foi nomeado historiador oficial pelo Trésor de l’Epargne (Plazenet,
1998: 40).
Ainda jovem terá viajado por Espanha, Itália e Alemanha. No início
da segunda década do século XVII, Baudoin encontra-se ao serviço da
Rainha Margarida de Valois e por desejo dela começa a traduzir obras
do castelhano. Depois da morte da sua protectora, é enviado para a In-
glaterra pela Rainha-mãe Maria de Médici com o objectivo de traduzir
a Arcadia de Sir Philip Sidney. Permanece na Inglaterra dois anos e
regressa em 1624. Nos anos de 1624 e 1625, a sua tradução é publicada
em três volumes por Theodore du Bray, em Paris. Praticamente em simul-
tâneo, é dada à luz uma outra tradução da mesma obra, igualmente em
três volumes, da autoria de Geneviève Chappelain e publicada por Robert
Fouët6 . O que se segue é uma verdadeira batalha literária com insultos,
acusações de plágio, um manuscrito roubado e traduções a contrarrelógio.
O escândalo termina num processo em que Baudoin é condenado a pagar
a elevada soma de 1200 libras7 . Numa carta de 1625 ao seu amigo Jean
de Lannel, Baudoin mostra-se amargurado, queixando-se das críticas le-
vianas e do desprezo a que o tradutor se tem que sujeitar (Plazenet, 1998:
36-37).

6
O facto de tanto Theodore du Bray como Robert Fouët terem obtido o privilégio real
que garantia a exclusividade da publicação da obra ainda adensa mais os contornos deste
caso.
7
Albert W. Osborn critica os dois tradutores pelas omissões, sobretudo no caso de
Chappelain, e pelos erros crassos e por falta de atenção. No entanto, é provável que
Chappelain tenha copiado Baudoin e não o contrário. Por sua vez, Baudoin ter-se-á
servido duma tradução parcial de Tourval (Osborn, 1974 (1932): 92-122).

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40 Patrícia Couto

Curiosamente, Baudoin refere-se a Mendes Pinto no prólogo da sua


tradução de Commentaire royal, ou Histoire des Yncas rois du Péru de
Garcilaso de la Vega:

Avec tout cela neantmoins, je ne doute pas que plusieurs ne s’efarou-


chent des veritez de ce Livre, de ses noms estranges, et des gran-
des choses que son titre leur promet, y croyant trouver possible
les Adventures de Fernand Mendez, qui pour leur estre suspec-
tes de mensonge, ne laissent pas toutefois de paroistre ageables,
et divertissntes. Mais quoy qu’il en soit, si leur incredulité leur
faict choquer cet Ouvrage, je seray bien aise qu’ils sçachent mon
intention. Elle n’a jamais esté que de le traduire en faveur des
hommes, raisonables, et non pas de leurs contraíres [. . . ]. Pour moy,
de quelque façon que je considere cette Histoire, elle me semble
tres-veritable, s’il en faut croire l’apparence, et le bon sens de celuy
qui lá escrite (Baudoin, 1633: “Av Lectevr”).

Baudoin considera as “Adventures de Fernand Mendez”, como lhe


chama, como ficção ou mentirosas apesar de agradáveis e divertidas, ao
contrário da escrita de Garcilaso que considera verídica. O facto de Gar-
cilaso ser um cronista educado na corte do rei Inca torna-o digno de
confiança. A razão que fez Baudoin associar as duas obras é a descrição
duma realidade tão diferente que se torna difícil ao leitor aceita-la como
fidedigna.
O título francês Commentaire royal, ou Histoire des Yncas rois du Péru
da obra de Garcilaso é claramente inspirado no castelhano: Commentarios
reales que tratan del origen de los Yncas. No caso da obra de Mendes
Pinto, logo no contrato firmado entre Figuier e Baudoin, optou-se por algo
diferente: «Les voyages advantureux» realçando o aspecto aventureiro e
ficcional da obra em detrimento do religioso e autêntico.
A ambiguidade em relação à veracidade de Les voyages advantureux
é revelada na segunda edição de 1645, quando é retirada a «Deffence
apologétique» publicada em 1628 e que era a tradução da «Apologia en
favor de Fernan Mendez Pinto, y desta Historia Oriental» que Herrera
Maldonado escrevera para a versão castelhana, precisamente com o ob-
jectivo de justificar a veracidade do relato. A «Deffence» é substituída por
um «Advertissement au lecteur» onde é feita uma tipologia de leitores a
fim de explicar que todos podem encontrar algo de interesse ou de agrado

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Jean Baudoin: tradutor-fantasma de Fernão Mendes Pinto 41

na obra8 . Assim, a tipologia serve para legitimar uma obra que é consi-
derada ficcional e parece ser a resposta aos que criticavam Les voyages
advantureux por ser inverosímil. A atitude reflecte as reticências da época
em relação à ficção vista como uma fraude. Como divertimento era uma
perda de tempo já que impedia o leitor de cumprir as suas obrigações.
Era ainda visto como algo corruptivo, quando a partir de finais do século
XVI, os romances geralmente possuíam uma trama amorosa em que uma
certa imoralidade e rebeldia eram apresentadas de forma sedutora (Pla-
zenet, 2002/2003: 398-399). Todavia, Baudoin traduziu obras ficcionais
e é ele próprio autor de vários romances. Mas o desconforto em relação à
ficção revela-se até nas suas obras originais, onde frequentemente cria a
ilusão de se tratar de um texto não da sua autoria ao apresentar-se como
o tradutor ou editor.
Todavia, a razão fundamental do «Advertissement» encontra-se nas
primeiras linhas onde o tradutor responde aos que criticaram a tradução
e justifica as escolhas feitas enquanto pede para não julgar com severi-
dade os erros e não culpar o tradutor que tudo fez por apresentar uma
obra perfeita e que não poupou esforços, estudos e diligências. Explica
que esta foi uma tarefa que demorou sete ou oito anos durante os quais
pesquisou livros sobre a história das Índias Orientais para melhor ex-
primir os pensamentos do autor. O tradutor vê-se confrontado com uma
realidade nunca antes vista, radicalmente diferente do mundo ao qual
pertence. A dificuldade foi a de encontrar palavras que pudessem re-
presentar novas realidades mas que ainda não possuíam uma existência
textual. O desabafo é característico de Baudoin, que revela ser muito
sensível às críticas do público que considera injustas. Em praticamente
todas as suas traduções queixa-se das vicissitudes da vida de tradutor
e da ignorância do público em relação ao seu trabalho (Plazenet, 1998:
37). Curioso é a menção de ter demorado sete a oito anos na preparação.
Nesse caso, Baudoin terá começado a interessar-se pela obra por volta
de 1620, justamente o ano em que foi publicada a tradução castelhana
e na altura do contrato já estaria ocupado com a tradução do texto de
Herrera Maldonado.
8
Na tradução espanhola a «Apologia» é assinada por Herrera Maldonado, a «Deffence
apologétique» e o «Advertissement» não trazem assinatura.

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42 Patrícia Couto

A noção que Baudoin tinha acerca da tradução era muito diferente das
normas actualmente em vigor. Ele dedicou-se a dois tipos de tradução,
uma feita a partir de traduções existentes, como explica na introdução
da tradução de Tácito (1619): «En cette traduction de Tacite, que j’ay
esbauchée après un homme qui entendoit mieux que moy, je me suis
content de luy faire parler nostre langue le plus clairement qu’il m’a esté
possible» (Plazenet, 1998: 50)9 .
A atitude de Baudoin é transparente, só não menciona o nome do
predecessor que louva por desconhece-lo, o que pretende é actualizar a
linguagem e torná-la clara. Seu contemporâneo Charles Sorel sugere que
estas traduções, encomendadas por livreiros, foram feitas por necessidade,
já que Baudoin não possuía uma fortuna pessoal.
Todavia, Baudoin dedicou-se também à tradução de obras que ainda
não tinham sido traduzidas antes para o francês (Plazenet, 1998: 50-52).
Na já referida carta a Jean de Lannel, Baudoin define o que considera
a sua tarefa: «je tâcheray de monstrer combien est ridicule l’opinion de
plusieurs, qui croyent que traduire, & et faire de son invention soient deux
choses incompatibles» (Plazenet, 1998: 37).
Para Baudoin a fronteira entre tradução e criação literária era ténue.
Na sua opinião, a «invention» complementa a tradução. No prólogo da sua
tradução de Defence des droits de Daniel Priézac (1639) menciona que
recusa ser «esclave de ses [Priézac] mots». Cita São Jerónimo que é fiel ao
sentido do autor em vez de se sujeitar às palavras. E mais adiante explica:
«lors qu’en s’attachant servilement à la Phrase estrangere, on ne s’avise
pas qu’on la fait Barbare, quand on pense la naturaliser Françoise». Para
Baudoin um bom tradutor não é mais escravo das palavras mas interpreta-
-as segundo o pensamento do autor (Plazenet, 1998: 57-60). Assim, a
linguagem é secundária, é preciso ser fiel ao conteúdo.
Numa época de transição para um novo paradigma de tradução, Bau-
doin procura o termo para distinguir o seu modo de traduzir da tradição
literalista do século anterior10 . Ora refere-se a sua tradução como «in-

9
Actualmente sabe-se que foi Claude Fauchet o tradutor de Tácito (1552) que preferiu
manter anonimato. No frontispício figura o nome: Pyrame de Candolle.
10
Ao reescrever traduções existentes, talvez Baudoin quisesse adapta-las às novas
normas tradutórias.

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Jean Baudoin: tradutor-fantasma de Fernão Mendes Pinto 43

vention», ora como «imitation». Na introdução de Nouvelles morales de


d’Agreda (1621) Baudoin explica:
J’ay à t’advertir, Lecteur, que je n’appelle pas ce livre une Traduc-
tion, ains plustost une fidelle imitation; puis que sans m’arrester
au caprice de l’Autheur, j’en ay retranché plusieurs choses, qui sont
vrayement loüables en son païs, mais ridicules au nostre (Plazenet,
1998: 53).

A imitação recria a obra segundo os parâmetros da cultura alvo. O


tradutor reescreve uma obra equivalente, uma «fidelle imitation» do texto
fonte. Não se trata de uma mera transferência linguística mas sim cultu-
ral. Ao tradutor é permitido omitir o que não é de bom-tom. Apesar de
não seguir os caprichos do autor, o tradutor tem que ser fiel ao seu pen-
samento. No já referido prólogo à tradução de Tácito, Baudoin menciona
que é preciso traduzir de forma clara as ideias do autor, por isso há que
evitar um estilo demasiado ornamental:
Je veux dire par là que c’est un vice de bigarrer ses escrits de tant
d’ornemens et de fleurs, qu’on apporte de la confusion à ce qu’on veut
dire. Il vaut beaucoup mieux explicquer nettement sa conception ou
celle de l’Autheur qu’on traduit, que la desguiser par des paroles
fardées (Plazenet 1998: 61).

Numa época em que, por uma questão de gosto e de orgulho da cultura


alvo, as boas traduções eram consideradas «belles infidèles»11 , Baudoin
era reconhecido como um grande tradutor/intérprete ou métaphraste. O
Dictionnaire de Trévoux (1704-1771) dá como definição de métaphraste:
Celui qui interprète un Auteur. [Gilles] Ménage dans la Requête des
Dictionnaires a appelé Baudoin le Métaphraste à cause que c’estoit
un grand Traducteur. Métaphraste signifie quelque chose de plus
que Paraphrase et Traduction (Dictionnaire universel francois-latin,
vulgairement appelé Dictionnaire de Trevoux, 1771: 971).

Assim, a métaphrase era considerada superior à paraphrase ou à tra-


dução. De acordo com a definição do dicionário os termos franceses me-
taphrase e paraphrase são dois conceitos diferentes. Segundo o contrato,
11
Metáfora criada por Giles Ménage que posteriormente ganha uma conotação nega-
tiva.

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44 Patrícia Couto

Figuier entregou a Baudoin uma «paráfrase» ou uma simples transferên-


cia linguística, a partir da qual Baudoin reescreve a sua metaphrase e
também, como verificamos, a partir da tradução castelhana.
Na tradução de Mendes Pinto, Baudoin interpreta, omite, explica e
adapta o texto ao gosto literário e aos bons costumes em vigor. Na
Peregrinaçam, Mendes Pinto usa uma linguagem oral, um estilo sóbrio,
simples, directo, lacónico até. O narrador geralmente não julga, descreve
apenas, mostrando o lado negativo ou positivo tanto dos portugueses como
dos seus inimigos. O carácter anti-heróico e não-canônico, o estilo sim-
ples e ingénuo e a objectividade com que o narrador descreve o que teste-
munhou constituíram um obstáculo para os tradutores seiscentistas como
é o caso de Herrera Maldonado e Baudoin. Muito do texto acrescentado
por Herrera Maldonado foi traduzido por Baudoin. Ambos convertem a
escrita de Mendes Pinto a um estilo ornamental segundo os preceitos da
boa retórica do cânone vigente12 . Confrontando a tradução castelhana
com a francesa verificamos que Baudoin acrescentou cerca de 40.000 pa-
lavras (Couto, 2012: 139). A fim de a sua tradução obter a licença do
privilégio real que só era concedido depois do acordo dos censores re-
ais, dedicá-la ao Cardeal Richelieu e ser aceite com agrado pelo público,
Baudoin vê-se obrigado, tal como Herrera Maldonado antes, a transfor-
mar a linguagem «rude e tosca» em um estilo elaborado, interpretativo,
mesmo tendencioso. Adiciona adjectivos, hipérboles ou longas explicações
que deixam clara as más intenções dos inimigos dos portugueses (Couto,
2012: 166-167). Manipula a interpretação dos seus leitores para a que
considera ética e moralmente correcta, para que os portugueses, apesar
de alguns actos menos nobres, sejam heróis cristãos. Um dos objectivos
de Baudoin como tradutor era a de edificar o leitor.
Do acima descrito ficou claro que a tradução não é uma cópia mas
uma reescrita, um outro texto. Por sua vez, o tradutor é um coautor, com
agenda própria, inserido num determinado contexto e constrangido por
um cânone. O impacto da tradução na cultura alvo e a função do tradu-
tor são geralmente ignorados devido à lógica normativa da tradução que
implica que para uma tradução ser considerada bem-sucedida ela tem
12
Herrera Maldonado acrescentou cerca de 33.000 palavras em relação a Peregrinaçam
(Laborinho, 2006: 154; Couto, 2012: 139).

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Jean Baudoin: tradutor-fantasma de Fernão Mendes Pinto 45

que ser fluente, como se não fosse uma tradução. Consequentemente, o


tradutor torna-se invisível (Venuti, 1995: 1-42). Ao estudarmos a recep-
ção seiscentista da Peregrinaçãm é preciso ter em conta o impacto das
diversas traduções no público-alvo e saber o que motivou os tradutores,
sobretudo tendo em consideração que a fortuna de Mendes Pinto se fez
principalmente através das dezasseis (re)edições das traduções que foram
publicadas na Europa, ao longo do século XVII, ao passo que houve apenas
duas edições portuguesas (1614, 1678). Dos cinco tradutores seiscentis-
tas da Peregrinaçam, apenas Herrera Maldonado e Figuier admitem ter
tido acesso ao texto original. A celebridade de Mendes Pinto no século
XVII deveu-se em grande parte ao tradutor castelhano e francês. Com
este artigo pretendi chamar a atenção para a importância da tradução e
do tradutor que até há pouco, raras vezes eram objecto de estudo.

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Matias da Maia, um jesuíta português na
China do século XVII e a construção de
entrelaços culturais e religiosos na
vastidão do império

Adriano Milho Cordeiro

Investigador da FLUC1

Resumo: Matias da Maia era natural de Atalaia vila pertencente ao Pa-


triarcado de Lisboa, à época Título de Condado, hoje freguesia do concelho de
Vila Nova da Barquinha. Entrou para o Noviciado da Companhia de Jesus em
Lisboa, a 20 de Março de 1629. Foi Procurador-Geral da Província do Japão
e Missionário nos Reinos de «Tunquim» e Cochinchina. A obra de M. Maia é
muito semelhante ao das Cartas Ânuas de António Gouveia, na forma de expor
e de apresentar os assuntos relativos às missões religiosas jesuíticas na Ásia
Extrema. O que mais se destaca no seu texto é a descrição da violenta evolução
política da China sua contemporânea e a queda da dinastia Ming que governou
entre 1368 e 1644, substituída por uma outra composta por Tártaros, ou mongóis
e que governará até à chegada dos republicanos ao poder em 1912. Desde 1644
até 1912 o domínio do Celeste Império caberá à última dinastia imperial, denomi-
nada de Qing. Viagens de outrora que se ligam ao mundo hodierno. . . itinerários
1
Investigador da FLUC – UI&D-CLP (Faculdade de Letras da Universidade de Coim-
bra – Unidade de Investigação e Desenvolvimento do Centro de Literatura Portuguesa).
Investigador da FLUC – UI&D-CECH (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
– Unidade de Investigação e Desenvolvimento do Centro de Estudos Clássicos e Huma-
nísticos). Membro do Centro de Investigação Joaquim Veríssimo Serrão.
50 Adriano Milho Cordeiro

de vida que contribuíram para a construção de entrelaços culturais na vastidão


dos impérios.

Matias da Maia, a Portuguese Jesuit, in China of the 17th


century and the edification of cultural and religious ties in the
vastness of the empire
Abstract: Matias da Maia was from Atalaia of Lisbon Patriarchate, at the
time Title of County, today a parish of Vila Nova da Barquinha township. He
joined the noviciate of the Society of Jesus in Lisbon, in 20th March 1629.
He was an Attorney General in the Province of Japan and missionary in the
realms of «Tunquim» and Cochinchina. Matias da Maia’s work is very similar
to António Gouvea’s Cartas Anuas, in the manner of expressing and presenting
the subjects related to religious Jesuit missions in Extreme Asia. Nevertheless
what stands out in his text is the description of the violent political evolution
of his contemporary China and the fall of the Ming dynasty which ruled from
1368 until 1644, replaced by another made up by Tatars, or Mongols, which
will govern until 1912, the year of the republicans arrival to power. From that
moment power will be of the last imperial dynasty, called Qing that controlled
the Celestial Empire between 1644 and 1912. Journeys from other times that
bind to the hodiernal world. . . life itineraries that contributed to the construction
of cultural ties in the vastness of empires.

O estado da arte
Marco Aurélio
«Quem viu o presente viu todas as coisas: as que aconteceram
no insondável passado e as que irão acontecer no porvir»
(apud Borges, 2012: 90).

Um dos maiores estudiosos sobre as relações entre Portugal e o Orien-


te certifica nas suas obras, a importância dos documentos existentes nas
nossas bibliotecas e arquivos sobre as interessantes relações estabeleci-
das pelos nossos antepassados com as terras de Oriente. A esse propósito

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Matias da Maia, um jesuíta português na China do século XVII e a
construção de entrelaços culturais e religiosos na vastidão do império 51

afirma Peixoto de Araújo: «como consequência directa do seu próprio per-


curso histórico, Portugal é hoje um dos países mais privilegiados no que
toca à conservação de testemunhos escritos sobre o estabelecimento dos
primeiros contactos entre a Europa e o Oriente, bem como sobre a cons-
trução e intensificação do tecido de relações culturais, religiosas e comer-
ciais que ligou estes “dois mundos”, particularmente durante os séculos
XVI e XVII» (Araújo, 1998: 16). Segundo o mesmo autor «acresce ainda
que, na sua maioria, tais testemunhos não só se encontram registados
em língua portuguesa, como dão conta de acontecimentos e situações que
tiveram como protagonistas e / ou personagens intervenientes cidadãos
portugueses» (Ibidem).
Segundo Araújo, Charles Boxer é até hoje o mais importante inves-
tigador estrangeiro da presença lusa no Oriente e «a saga dos Jesuítas
portugueses na China aguarda ainda o seu historiador. Essa história me-
rece bem ser contada, apesar do facto dos portugueses terem sido vítimas
da ênfase dada pelos escritores estrangeiros aos feitos dos seus colegas
franceses e flamengos» (Araújo, 1998: 10). Todavia, se a acção dos Jesuí-
tas lusos na China foi desconsiderada ou mal narrada, «isso deve-se em
larga escala à ignorância ou indiferença dos seus próprios compatriotas»
(Ibidem).
Nas últimas décadas são de realçar os estudos dos portugueses Ho-
rácio Peixoto de Araújo e de Leonor Diaz de Seabra sobre a saga dos
Jesuítas lusos por terras da Índia e da Ásia Extrema. Declara Araújo que
«os principais estudos vindos a público nas últimas décadas sobre al-
guns ilustres missionários portugueses que laboraram no Oriente trazem
a assinatura de autores estrangeiros» (Araújo, 1998: 10)2 . A saga dos
2
Graças ao formidável e erudito trabalho de Horácio Peixoto de Araújo conseguimos
perceber melhor a relação que desde logo se estabeleceu entre o Homem Europeu e o
Homem Asiático na era da primeira globalização, na qual os Portugueses tiveram um pa-
pel preponderante. A título de curiosidade refira-se que, no ano de 1555, o Pe. Belchior
Nunes Barreto, S. J., foi o primeiro missionário português jesuíta que entrou na China. So-
bre o assunto veja-se http://www.library.gov.mo/macreturn/DATA/PP280/NOTES.HTM,
capítulos II, III e IV. Há que referir que o caminho missionário começara muito
antes dos Portugueses terem chegado à Ásia Extrema. Assim podemos registar
em http://www.library.gov.mo/macreturn/DATA/PP280/PP280163.HTM – oportuno docu-
mento eletrónico que resume de forma bastante notável os primeiros contactos missionários
europeus no Oriente.

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Portugueses e da evangelização cristã no Oriente foi longa e arquitetada


paulatinamente por se tratar de uma parte do Império com uma dimensão
verdadeiramente incrível3 .
É preciso navegar pelas águas da consciência e do sentido histórico.
Esse desígnio, nas palavras de Gadamer só se apreende «pela disponibili-
dade e talento do historiador que compreende o passado, por vezes mesmo
‘exótico’, a partir do contexto de que emerge» (Gadamer, 1998: 18-19).
Na senda reflexiva do filósofo alemão é nossa incumbência apreender o
modus cogitandi de outras eras, interpretando-as. Embora distantes no
tempo, é determinante que consigamos perspetivar os valores epocais vi-
vidos e experienciados pelos Padres Franciscanos e Jesuítas dos séculos
XVI, XVII e XVIII ao serviço da Igreja de Roma e da Coroa Portuguesa na
Índia e na Ásia Extrema4 .
As hermenêuticas que fizermos sobre tempos ulteriores devem respei-
tar a consciência histórica, privilégio do homem moderno. Todos com-
preendemos o que representa hoje a palavra interpretação nas modernas
ciências humanas. Quando a significação de um texto não se alcança
de imediato, a interpretação torna-se necessária, ou seja, é imprescindí-
vel efectivar uma reflexão explícita que nos permite compreender que um
texto tem esta significação e não outra. Mais do que nunca urge uma mu-
dança de paradigma no que respeita à compreensão dos seres humanos
de outras eras.
Concordamos com Gadamer quando afirma que «possuir sentido his-
tórico é vencer de maneira consequente a ingenuidade natural que nos
faria julgar o passado segundo critérios supostamente evidentes da nossa
vida actual, na perspectiva das nossas instituições, dos nossos valores e
verdades adquiridas» (Gadamer, 1998: 19). Segundo este autor «possuir
sentido histórico, significa: pensar expressamente no horizonte histórico
que é coextensivo à vida que vivemos e à experiência vivida» (Ibidem).
3
Vide http://www.library.gov.mo/macreturn/DATA/PP280/PP280118.HTM e ss.
4
Segundo Gadamer «a consciência histórica já não escuta beatamente a voz que lhe
chega do passado, mas, reflectindo sobre ela, recoloca-a no contexto de onde surgiu para
verificar a significação e o valor relativo que contém. Este comportamento reflexivo face
à tradição chama-se interpretação» (Gadamer, 1998: 19).

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Matias da Maia, um jesuíta português na China do século XVII e a
construção de entrelaços culturais e religiosos na vastidão do império 53

Vida e obra do padre Matias da Maia

Não chegaram até nós copiosos dados acerca da vida e obra do Padre
Jesuíta Matias da Maia, antes pelo contrário. As escassas informações a
respeito desta ilustre personagem resumem-se praticamente ao que nos
legou Machado que declara: «P. Mathias da Maya, natural da Villa de
Atalaya do Patriarchado de Lisboa, e Titulo de Condado. Foraõ seus Pays
Simaõ da Maya, e Martha Rodrigues. Entrou em o Noviciado de Lisboa
da Companhia de Jesus a 20 de Março de 1629» (Machado, 1966: 454).
Acresce Machado sobre M. da Maia: “Foy Procurador geral da Provincia
do Japaõ, e Missionario em os Reinos de Tunquim, e Cochichina. Publicou
em nome Relaçaõ da Conversaõ da Rainha, e Principe da China á nossa
Santa Fé com a de outras pessoas da Casa Real, que se bautisaraõ no
anno de 1647. Lisboa 1650. 4. Sem nome do Impressor” (Machado, 1966:
454).
Esta é a única referência bibliográfica impressa em livro, colhida até
ao momento, em Portugal, sobre a vida e obra do Padre Jesuíta Matias
da Maia, natural de Atalaia, hoje freguesia do concelho de Vila Nova da
Barquinha.
Não encontrámos quaisquer outras referências a Matias da Maia, quer
na Biblioteca da Ajuda, onde existe um importante acervo de documen-
tos relativos à Missão dos Jesuítas na China e no Oriente, quer noutros
arquivos. Nada se achou nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, na
Biblioteca Pública de Évora, Arquivos da Casa de Bragança em Vila Vi-
çosa, na Bibiloteca Geral da Universidade de Coimbra, no Arquivo Distri-
tal de Santarém ou no notável acervo da Biblioteca Municipal Brancamp
Freire em terras escalabitanas. Na Biblioteca Nacional apenas consta o
documento H.G. 1840//3 V., intitulado RELAÇÃO DA CONVERSÃO a
nossa Sancta Fè da Rainha, &Principe da China, & de outras pessoas
da casa Real, que se baptizarão o anno de 1648. Todavia não se exclui a
hipótese de que em Roma surjam novos e relevantes dados sobre o Padre
Jesuíta Matias da Maia e a sua obra, ou, de que mesmo em Portugal

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54 Adriano Milho Cordeiro

possam aparecer a qualquer momento documentos sobre esse ilustre ho-


mem de saber, objecto deste estudo5 .
Matias da Maia não se refere às fontes que utilizou para a elaboração
da sua Relaçaõ. Na composição, assemelha-se muito às Cartas Ânuas.
Se lermos o Padre António de Gouvea, contemporâneo e companheiro de
Maia nas jornadas da Ásia, ficamos a saber como eram elaboradas essas
importantes epístolas e «o que os Padres apontarão, notarão e escreverão
em todos estes 60 annos, pêra cada hum delles mandarem os Superiores
huma Carta Annua a Roma, como se costuma na Companhia em todos
os Reynos, terras e missoens que ella cultiva» (António de Gouvea apud
Araújo, 1998: 11).

5
No mundo da WEB no documento intitulado Os Jesuítas em Macau, na parte alusiva
ao ANNEX refere-se que M. da Maia faleceu em 1667 no Mar da China. Em http://www.
library.gov.mo/macreturn/DATA/PP280/NOTES.HTM, no documento em linha, intitulado
«Os jesuítas em Macau – ANNEX : Primeiro Período (1552-1762), [folha 2] no número
53 está escrito: «Nomes: Pe. Matias da Maia; Terra natal: Atalaia; Ano de apostolado:
1656-1667; Lugar do falecimento: naufragou; Sítio da sepultura: No Mar da China». No
mesmo documento da WEB encontramos ainda as seguintes referências ao P. Matias da
Maia: «O visitador da província do Japão e da vice-província da China era o Pe. Manuel
de Azevedo (1644-50), o qual faleceu em Macau a 26 de Janeiro ou a 3 de Fevereiro de
1650. O vice-provincial da China era o Padre Álvaro Semedo, que o foi duas vezes (1645-
-50; e 1654-57). Semedo nasceu em Nisa, embarcou para o Oriente em 1608, entrando
na China em 1613. Em 1636, foi a Roma como procurador; em Julho de 1645, aportou
de novo a Macau, falecendo em Cantão a 18 de Julho de 1658. Compôs 2 vocabulários,
chinês-português e português-chinês; mas o seu livro mais conhecido é o Império da
China, impresso primeiro em espanhol por Faria e Sousa, e depois em várias línguas. O
provincial do Japão era o Padre Matias da Maia, natural de Atalaia, o qual embarcou
para a Índia em 1640. Foi vice-reitor do Colégio da Madre de Deus em Macau, desde
Setembro de 1651 até 16 de Março de 1653; a seguir, foi missionar em Kwantung e em
Hainan. Reitor do Colégio de Macau e provincial do Japão em 19 de Agosto de 1658,
conservando o primeiro cargo mês e meio e o segundo até 26 de Janeiro de 1661, data em
que foi nomeado superior e vice-provincial da Missão da China, de que tomou posse ano
e meio depois, deixando esse cargo em 1666. No ano seguinte, embarcou com o Padre
António Lopes ‘na nau de Timor cõ Jeronymo dÁbreu capitão da dita nao, e depois de
partirẽ de Macau aos 11 de Janeiro deste ano de 667, aos 15 do mesmo no quarto dálva
se acharão junto da terra da Cochinchina defronte de Faifo onde fizerão naufragio; os
mais morrerão nelle, incluindo o Padre Maia, varão apostolico que era tido por santo».
O Pe. Lopes escapou e regressou a Macau (Ccf. Ta-Ssi-Yang-Kuo, Lisboa, 1900, p. 695).
Em 1670, ao abrirem-se as vias de sucessão, saiu nomeado em 1.o lugar para visitador
das missões da China e Japão o Pe. Maia, o que não teve efeito, por ter já falecido.

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construção de entrelaços culturais e religiosos na vastidão do império 55

O estilo do texto da Relação da Conversão tal como o das Cartas


Ânuas «constitui um género literário próprio» (Araújo, 1998: 13). M. da
Maia preocupa-se em informar bem o leitor, que «devia aperceber-se que
tais relatórios eram destinados a fornecer não apenas informações, mas
também edificação moral» (Michael Cooper apud Araújo, 1998: 13). O
texto do Padre Matias da Maia apresenta «uma estrutura organizacional
relativamente constante, bipolarizada sobre ‘o estado secular do Reino’ e
sobre ‘o estado da Missão’» (Araújo, 1998: 14).
A narração contida na Relação compreende uma época muito contur-
bada do ponto de vista político, pois alude à queda da dinastia Ming,
ocorrida entre 1644 e 1652 (Boxer, 1938). O autor dá-nos conta dos
eventos políticos e sociais de maior saliência, ocorridos por aquela al-
tura, bem como de certas particularidades religiosas ou culturais mais
singulares das regiões de efetuação da missão.
O mesmo sucede normalmente nas Cartas Ânuas (Araújo, 1998: 14).
Pelo relato de M. da Maia ficamos a saber quão grande e rica era a China
em meados do século XVII, a sua abundância em ouro, prata, número
de pessoas, de vilas e de cidades. São ainda feitas menções relativas
ao número de batizados, nomes de Padres residentes na missão, casos
particulares de edificações de igrejas e histórias envolvendo a luta pelo
poder entre os chineses.
Cristãos e gentios assumem os papéis de atores e espectadores de
pequenas histórias e de grandes dramas, de partos bem-sucedidos pela
força da fé ou da oração. Sonhos ou visões podem transformar vidas ou
prenunciar catástrofes e traições de mandarins pervertidos e traiçoeiros.
Fala-se também das disputas entre cristãos e pagodentos. O que mais se
destaca no texto do Padre Matias da Maia é a violenta evolução política
da China sua contemporânea e a queda de uma dinastia, substituída por
uma nova composta por Tártaros, ou seja, mongóis que irão governar até à
chegada dos republicanos ao poder em 1912. Aluiu a dinastia Ming que
governou entre 1368 e 1644. A partir daí o poder caberá à última dinastia
imperial, denominada de Qing e com origem manchú que governará o
Celeste Império entre 1644 e 1912.

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56 Adriano Milho Cordeiro

Matias da Maia na sua Relação da Conversão faz também referência


aos típicos cortes de cabelo dos Tártaros6 . Em momentos demarcados da
Relação tal como nas Cartas Ânuas o leitor «é confrontado com um mundo
em que forças misteriosas se substituem às leis normais da natureza ou
em que o maravilhoso invade a monotonia dos dias, enchendo de espanto
os incrédulos e confirmando os ‘bons cristãos’ na fé» (Araújo, 1998: 15)7 .
A leitura de tão importantes relatos permitia ao leitor um contacto
quase visual com regiões e culturas exóticas, uma tomada de consciência
para os acontecimentos em tão longínquas paragens. A mudança de di-
nastia foi para os religiosos da Companhia de Jesus algo marcadamente
divino, uma repetição do que havia acontecido no Império Romano na
época de Constantino, o possível reconhecimento pelo novo poder man-
chú da religião cristã. Não foi ao acaso que os Jesuítas elegeram nomes
cristãos para alguns dos recém-chegados ao poder e para os seus des-
cendentes. Provavelmente essas escolhas requereram muita expetativa e
atenção por parte dos leitores ocidentais. Para os ‘confrades’ jesuítas era
um novo império cristão que naquele momento conhecia a sua génese.
Acrescentar ao ‘rebanho de Cristo’ tantas almas era algo de edificante8 .
No pensamento dos jesuítas valia a pena o esforço e conhecer o outro,
lutar contra as forças do mal, atravessar oceanos revoltos, suportar calo-
res sufocantes ou o frio terrível das estepes, sofrer a fome e o mau trato
a fim de se tornarem dignos da coroa do martírio. Importava sobretudo
perceber os acontecimentos da Ásia Extrema.
A obra era imensa e o engenho esplêndido. A relação entre povos era
efectiva. Haw afirma que Ricci «teve um grande sucesso pessoal, e a sua
morte em Pequim em 1610 representou um enorme contratempo para a
6
Vide de Matias da Maia, Capítulo III da Relação da Conversão: «chegàram vinte dos
Tartaros por aventureiros às portas da Cidade, que logo se lhe abrìram, & ficando nella
doze, & oito foram entrando confiadamente, dizendo, que cortassem o cabello em sinal de
sogeiçam ao Tartaro, porque se o nam fizessem lhes avia de custar caro, por quanto ficava
a tras hum grosso exercito».
7
Diz-nos Araújo logo de seguida: «É possível avaliar o enorme interesse que, ao
longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, este tipo de literatura despertou em diversos países
europeus» (Araújo, 1998: 15).
8
Araújo narra a este respeito o seguinte: «para os devotos, lá estavam os exem-
plos corajosos dos fiéis das novas cristandades, cujo fervor, generosidade e arrojo eram
frequentemente postos em paralelo com os dos ‘primitivos cristãos’» (Araújo, 1998: 15).

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Matias da Maia, um jesuíta português na China do século XVII e a
construção de entrelaços culturais e religiosos na vastidão do império 57

missão jesuíta. Ainda assim, esta continuou ativa e os jesuítas foram de


grande utilidade para a dinastia Ming nos seus últimos anos, uma vez que
os ajudaram a fundir os seus canhões para usar contra os inimigos» (Haw,
2008: 170). Acrescenta ainda que «a par das actividades comerciais eu-
ropeias, foram feitas tentativas de converter os chineses ao cristianismo.
Neste período inicial, os jesuítas foram os mais ativos» (Ibidem). Resolve-
ram os seguidores de Sto. Inácio de Loyola encetar o sistema, aprendendo
a língua e os hábitos da China; com essas acções obtiveram uma posi-
ção ilustre de êxito. «Tendo chegado a Macau em 1577, avançaram para
a província de Guangdong e, em 1601, Matteo Ricci estabeleceu-se em
Pequim, onde foi aclamado e atingiu uma elevada posição social, graças
ao seu conhecimento científico» (Ibidem). Adita Haw: «o seu domínio
da astrologia, em particular, fez com que conseguisse regular melhor o
calendário do que os astrónomos locais. Ricci não só alcançou as graças
imperiais, como deu início à conversão de altos funcionários» (Ibidem).
Matias da Maia fala-nos também «da conversão de muitas pessoas Reais
deste Imperio da China á nossa Santa Fê Catholica, & do augmento della,
que para gloria de Deos» logo no início do I Capítulo da sua obra.
Apesar dos Portugueses possuírem uma técnica de fundir canhões que
interessava aos Chineses (e posteriormente a Manchus), isso não bastou
para salvar os Ming9 . Souberam os Portugueses respeitar as revoluções
internas no grande império chinês e as suas tradições. Diz-nos Haw
que os eunucos controlavam quase toda a corte e havia grandes rupturas
na administração pública «devido a invejas entre facções e as despesas
ultrapassavam os rendimentos. A corte desperdiçava somas astronómicas
em cerimónias extravagantes e na renovação do palácio. [. . . ] Os eunucos
do palácio eram, nesta época, mais de 70 mil e as mulheres chegavam às
9000» (Haw, 2008: 170-171).
Matias da Maia faz referência a essa enormidade de eunucos logo no
início do Capítulo I e da corrupção de muitos deles10 . Sobre os múltiplos
9
Ander Permanyer no artigo intitulado «La conquista de China por los manchúes» (in
Historia – National Geografic, N.o 105, Diagonal, Barcelona, 2012, pp. 14-15) afirma
que «en la década de 1630, la dinastia que gobernaba China desde el siglo XIV, los Ming,
se estaba tambaleando».
10
«O levantado Li depois de se fazer coroar Emperador da China na Metropoli de
Xersy, chamada Singansu, tratou de senhorerar a Pekim Corte do verdadeiro Emperador.

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58 Adriano Milho Cordeiro

acontecimentos ocorridos diz-nos Haw que «as campanhas da Coreia,


que duraram vários anos até à retirada dos japoneses, foram particu-
larmente dispendiosas. Aumentaram-se sensivelmente os impostos para
pagá-las, provocando um asfixiamento da actividade económica e o cres-
cimento da agitação social» (Ibidem). Verificou-se assim a partir de 1590
um imenso crescimento do dispêndio militar, com os conflitos na Mon-
gólia, uma guerra contra o Japão na Coreia e nas guerras contra povos
aborígenes no sudoeste.
As vitórias de Li Zicheng – um revoltoso contra os Ming – não duraram
muito. Poucas semanas depois foi obrigado a retirar-se de Pequim e cerca
de um ano mais tarde depois de derrotadas as suas forças suicidou-se.
Algumas fontes afiançam que depois de fugir do campo de batalha Li se
tornou monge. Porém, não foram tropas fiéis aos Ming que entretanto
se haviam rebelado que levaram à queda da penúltima dinastia reinante
no Celeste Império, mas sim uma nova potência vinda do noroeste, que
invadiria toda a China, impondo mais dois séculos e meio de administração
estrangeira. Os manchus, descendentes dos jurched, que tinham antes
estabelecido a dinastia Jin no norte da China, iniciaram, a partir de 1590,
a sua ascensão gradual ao poder.
Todavia os poderes iriam mudar de mãos. Segundo Haw «os jur-
ched tinham sido subjugados pelo poder mongol na primeira metade do
século XIII, permanecendo seus súbditos até à queda da dinastia Yuan.
[. . . ] Ainda que tivessem de prestar habitualmente tributo na corte chinesa,
voltaram sob os Ming a usufruir de um considerável grau de indepen-
dência» (Haw, 2008: 172). Entretanto disputas internas entre os jurched
levaram à ascensão do líder Nurhaci. Na opinião de Haw, foi Nurhaci
um «manipulador nato e vigoroso» (Ibidem), nas negociações conseguiu
através de alianças conjugais e actuações bélicas, subir depressa em do-
mínio e status. Segundo Haw, o líder Nurhaci «em 1600, já empreendera
o início da conquista de todas as tribos jurched e já era influente entre os
As traças, & peitas forão o meo, que tomou para effeituar seus intentos; achou modo
para meter dentro na Cidade muitos cẽtos de soldados com capa de mercadores, abrindo
ricas tendas, & conquistando com grossas peitas os animos, nam só de algus Mandarins
naturaes, mas dos mesmos Eunucos, q sẽpre estam em guarda das portas do paço; &
como nam ha cousa, a que nam avaçale o ouro, nesta occasiam rendeo tanto os cobiçosos
animos destes Eunucos, que teve o tyranno o sucesso q desejava».

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Matias da Maia, um jesuíta português na China do século XVII e a
construção de entrelaços culturais e religiosos na vastidão do império 59

seus vizinhos mongóis. Em 1607, estes intitularam-no de Kundulen Khan


(‘o Imperador Respeitado’)»(Ibidem). De tal forma era reverenciado que
acordou com o general Ming de Liaoding as fronteiras do seu território na
parte mais sul da Manchúria interditando os Chineses de as transporem.
Em 1613 só uma tribo jurched não era dominada por Nurhaci. O tempo
decorria e cada vez mais chineses e mongóis ficavam sob o seu comando.
Foram concebidas oito faixas chinesas e oito mongóis. De acordo com
Haw estabelecido um sistema básico de governo com registo, cobrança de
impostos e «recrutamento de membros para as faixas» (Haw, 2008: 172).
Nurhaci fundou a sua própria dinastia em 1616 e com isso o renascimento
do título dinástico de Jin. Em 1626 «foi repelido um novo ataque às forças
Ming, graças à utilização dos canhões manufacturados sob direcção dos
jesuítas» (Haw, 2008: 173). Entretanto Nurhaci pereceria. O seu filho
Abahai continuou as campanhas do seu antecessor. Depois de atacar a
Coreia, obrigou-a a pagar um tributo anual em prata11 . Encontravam-se
os Manchus, em 1644, na fronteira da China prontos para progredir para
sul. Entretanto, Pequim foi conquistada pelo poder de forças rebeldes
comandadas por Li Zicheng, como já referimos anteriormente, o que cons-
tituiu uma oportunidade soberana para a intervenção dos Manchus (Haw,
2008: 174-175)12 .

11
No ano da restauração da soberania de Portugal, Abahai na Ásia Extrema toma
todos os territórios que subsistiam a nordeste da Grande Muralha, batendo amplas forças
chinesas. Entrementes, em 1643, a saúde de Abahai definhou e este acabou por morrer.
Foi sucedido por um filho com seis anos, somente. Ficaram como regentes Jirgalang e
Dorgon.
12
Cf. Matias da Maia, no Capítulo I da Relação: «Forão com tudo nestes nove annos
mais chegados tantas as miserias, que por seus peccados, & injustiças o perseguirão,
principalmente fomes, & guerras, que além de o pór em lastimoso estado, acabárão de
todo a casa Real, que nelle se tinha conservado com summa paz, & prosperidade, por
espaço de duzentos & oitenta anos em desasete Reys; ficando hoje grãde parte desta
Monarchia em as mãos, & governo dos Tartaros Orientaés».

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60 Adriano Milho Cordeiro

Importância da Relação da Conversão

As Cartas Ânuas ou a Relação da Conversão ocupam um espaço


excepcional. Afirma Araújo que bem cedo estas Cartas ostentaram um
lugar «entre os textos de edificação ou literatura moralizante, quer ao
nível da leitura individual, quer ao nível da leitura comunitária, como
acontecia, nos conventos e, de modo particular, nas diversas casas da
formação da Companhia de Jesus. Não faltam elementos concretos que
atestam a divulgação desta prática, não só em Portugal mas também nos
principais países do Sul da Europa» (Araújo, 1998: 16).
Eram frequentes as edições destes documentos sobre o Oriente em
língua portuguesa e a sua tradução e divulgação em diversos países (Lima,
1993: 16). A partir das dissertações de Horácio Peixoto de Araújo a que
já aludimos amiúde, é possível compreender a contextualização histórico-
-literária da missão jesuítica da China de 1582 a 168013 .
A narração de Matias da Maia segue o esquema retórico clássico do
seu tempo, ou seja: «a narratio, como componente da dispositio (parte
da técnica retórica que se ocupava da organização global do discurso e
da sua economia interna)» (Reis e Macário, 1987: 239), empregue pelo
jesuíta «desempenha, então, uma função marcadamente activa, de pre-
paração da argumentação: ‘A narração, portanto, não é uma história (no
sentido fabuloso ou desinteressado do termo), mas uma prótase argumen-
tativa» (Ibidem), que nos remete para eventos reais. Claro que a apódose
da retórica de Matias da Maia será o panegírico dos trabalhos e sacrifí-
cios efetuados em nome da religião cristã e da sua propagação, contudo,
respeitando sempre os detentores do poder.
É célebre a primeira embaixada europeia à China realizada por Tomé
Pires entre 1517 e 152214 . Não se pode duvidar que os Religiosos da
13
Interessantes e deslumbrantes são também os primeiros textos escritos por europeus
sobre o ‘tecto’ do mundo, o Tibete. Exemplo disso é a fascinante leitura da obra do Pe.
António de Andrade intitulada Descobrimento do Tibete, contendo um estudo histórico
efectuado por Francisco Maria Esteves, edição fac-simile, publicada em 2005, em Lisboa,
pela editora Alcalá.
14
Sobre o assunto veja-se www.safp.gov.mo/safppt/download/WCM_004377. De Tamão

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Matias da Maia, um jesuíta português na China do século XVII e a
construção de entrelaços culturais e religiosos na vastidão do império 61

Companhia de Jesus que partiram de Lisboa e do Tejo que a ameiga esta-


beleceram, nos séculos XVI e XVII XVIII, relações duradouras de cultura
profícua entre Portugal e a Ásia Extrema.
O Tejo que acaricia Vila Nova da Barquinha e Atalaia é o mesmo
rio que viu partir Matias da Maia. O Tejo é no imaginário português
símbolo e metáfora de partidas e de chegadas adiadas. Segundo Ricoeur
«os símbolos [. . . ] porque mergulham as suas raízes nas constelações
duradoiras da vida do sentimento e do universo, e porque têm uma tão
incrível estabilidade, levam-nos a pensar que um símbolo nunca morre,
apenas se transforma» (Ricoeur, 2009: 91). A transmutação continua hoje
apesar dos Oceanos que nos separam das terras da Ásia Extrema; para
o bem e para o mal, os laços interculturais e comerciais estabelecidos há
mais de quinhentos anos pelos Portugueses em terras do Oriente e da
Ásia Extrema facilitam ainda agora as relações entre os Homens.
Vivemos na era do computador mas ainda não podemos prever se-
gundo Gadamer, todo o significado deste maravilhoso mundo onde as
novas tecnologias são rainhas, embora haja hoje certo tipo de circulações
que isolam os seres humanos; o filósofo alemão dá como exemplo desse
isolamento a moderna circulação automóvel (Gadamer, 1998: 104).
A primeira globalização pertence-nos. Fernão Mendes Pinto também
por lá andou naquela exótica Ásia Extrema. Foi preciso sofrer. . . suportar
muito para alcançar uma ‘espécie’ de salvação. Afirma Gadamer que tomar
parte «no comum, que é o nosso destino humano, será sempre a nossa
tarefa. Hoje ela significa recordar-nos a nós e aos outros, em especial aos
que pensam e escolhem de outro modo, as mutualidades inevitáveis que
as tarefas futuras da humanidade para todos nós significam» (Gadamer,
1998: 104).
Os laços alicerçados e criados por aqueles Homens de antanho, – uns
artistas na arte de comerciar, outros artesãos de palavras – permanecem
hoje marcados nos traços monumentais físicos e espirituais de Macau que
Matias da Maia conheceu, porta de entrada para a vasta e exótica China
dos mil e um contrastes e enlevos. Uma Peregrinação – nos antípodas
junto ao mar até Pequim temos uma longa distância. Longa foi também a permanência
dos jesuítas pelas terras do Império Celeste. Muito longe do hodierno mundo da WEB os
Missionários da Companhia acompanharam o ritmo da época, relataram acontecimentos,
introduziram novas visões do universo, compararam estilos de vida.

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62 Adriano Milho Cordeiro

d’Os Lusíadas – afirmam erroneamente alguns auto-apelidados de sábios.


Luisa Nóbrega, num estudo intitulado “Um poema, duas viagens: dicção
e contradicção n’Os Lusíadas”, citando Eduardo Lourenço, afirma: «se é
fácil falar daquilo de que Os Lusíadas falam, já o é menos falar daquilo
que são, pois eles não são aquilo de que falam, mas a maneira como disso
falam»15 .
Proclamamos na senda de Gadamer que tomar parte «no comum, que
é o nosso destino humano, será sempre a nossa tarefa. Hoje ela significa
recordar-nos a nós e aos outros, em especial aos que pensam e esco-
lhem de outro modo, as mutualidades inevitáveis que as tarefas futuras
da humanidade para todos nós significam» (Gadamer, 1998: 104).
A Relação da Conversão de Matias da Maia é uma obra de comu-
nicação polifigurativa no sentido clássico da expressão. Certos aspectos
numa primeira análise aproximam-se de um relatório histórico ou de uma
carta, porém, se observarmos com mais atenção «certos aspectos densifi-
cados da linguagem» (Ricoeur. 2009: 271), logo perscrutamos «níveis de
sentido empilhados, retidos e contidos» (Ibidem). Já o referimos: faz-se
a apologia da fé cristã e ao mesmo tempo relatam-se actos de violência
extrema. As palavras de Matias da Maia transportam-nos para aconte-
cimentos singulares, «algo que, pela sua particularidade, se destacou do
grande fluxo de experiências e imagens que, por assim dizer, [desfilaram]
diante da humanidade» (Gadamer, 1998: 105). «Ao penetrar no mundo
da experiência quotidiana para a refazer a partir do interior» (Gadamer,
1998: 272), Matias da Maia como artista da língua, refigura na escrita
os acontecimentos da China sua coeva. Relação da Conversão como obra
de arte literária – quase como uma pintura16 – ajuda-nos a entender o
15
Cf. http://www.realgabinete.com.br/revistaconvergencia/pdf/1137.pdf.
16
Em http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=20
&Itemid=2 pode ler-se: “UT PICTURA POESIS” – «expressão usada por Horácio [verso
361] na sua Arte Poética (c. 20 a. C.), que significa ‘como a pintura, é a poesia’ e
que, apesar de não possuir um significado estrutural, veio a ser interpretada como um
princípio de similaridade entre a pintura e poesia. A afinidade entre as duas artes já fora
mencionada por Plutarco, o qual atribuiu ao poeta Simónides de Céos o dito segundo o
qual ‘a pintura é poesia calada e a poesia, pintura que fala’ (De gloria Atheniensium, 346
F). Na mesma obra (17 F - 18 a), Plutarco esclarece ainda que tal comparação se baseia
no facto de pintura e poesia serem, supostamente, imitações da natureza, princípio este
que se revelaria fulcral nas reformulações sofridas pela analogia entre ambas as artes ao

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Matias da Maia, um jesuíta português na China do século XVII e a
construção de entrelaços culturais e religiosos na vastidão do império 63

mundo a que se reporta. A mimese «não consiste em reproduzir o real,


mas em reestruturar o mundo do leitor, confrontando-o com o mundo da
obra» (Gadamer. 1998: 105).
Na obra de Matias da Maia sentimos a sapiência intensa e admirá-
vel de um singular teólogo e filólogo, de um repórter avant la lettre, a
investigação candente do seu pensamento, a causa de certos aconteci-
mentos ocorridos em eras já longínquas para nós, nas quais as ondas de
destruição e de reconstrução foram delineando os percursos nas ondas
da Navegação do devir histórico e das relações entre civilizações ances-
trais, porque como afirma Sophia de Mello Breyner Andresen, Distância
da distância derivada / Aparição do mundo: a terra escorre / Pelos olhos
que a vêem revelada. / E atrás um outro longe imenso morre (Andresen,
2010: 105).
Talvez tenhamos de ser de novo cultores de palavras e de poesia
num mundo demasiado mercantilizado. Deixemos para trás os ‘priapescos’
deuses do ‘vil metal’, a fim de alcançarmos a mística que a literatura nos
oferece – fonte para nos conhecermos melhor – que possibilita um melhor
entendimento sobre as alteridades de um mundo globalizado e ainda pleno
de biodiversidades étnicas e socioculturais, onde urge efectivar pontes de
palavras. . . actos e trabalho! Percorramos de novo Mares e Oceanos em
solene Pereginação. . . e celebremos com Palavras a grande aventura da
vida. Ainda que perpetuamente o Caos espreite em redor, o remanescente
avirá em harmonia. E se, assim suceder o Verbo há-de encarnar e alienar
toda a luxúria da ganância e opróbrio, nascentes de todos os males. . .

longo da Antiguidade clássica».

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66 Adriano Milho Cordeiro

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O narrador cronista na trilogia alemã de
Louis-Ferdinand Céline

Daniel Teixeira da Costa Araujo


Universidade Federal do Rio de Janeiro / Université de Nantes

Resumo: Louis-Ferdinand Céline (1894-1961) perde a notoriedade conse-


guida com seu romance de estréia, Voyage au bout de la nuit, de 1932, com
a publicação dos panfletos antissemitas dos anos 1930 e com denúncias de
colaboração durante a ocupação alemã na Segunda Guerra Mundial. Após o
desembarque dos Aliados na Normandia, em junho de 1944, Céline foge para
a Alemanha. Boicotado pelo meio literário da França liberta, em 1950, Céline
é julgado pela Depuração e condenado à indignidade nacional. Esse périplo é
relatado na trilogia alemã em cujos romances Céline se declara um cronista da
débâcle do regime de Vichy. O objeto deste trabalho será esse narrador que
se dispõe, a posteriori, a retraçar o caminho de fuga da França e a contar o
cotidiano difícil da guerra. A noção de viagem ganha assim nuances que ultra-
passam a ideia de deslocamento, tecendo uma trama rapsódica entre anedotas
do cotidiano da guerra e digressões que confrontam tempo passado e presente.
O Céline cronista se mostra problemático ao misturar personagens e episódios
reais e fictícios, mas que parece se colocar ao lado da efabulação dos antigos
cronistas.

Palavras-chave: Trilogia alemã; Louis-Ferdinand Céline; narrador cronista.

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961) teve sua notoriedade literária


atribuída em grande medida a seu romance de estréia, Voyage au bout
de la nuit, de 1932 – que já trazia literal e metaforicamente a questão
68 Daniel Teixeira da Costa Araujo

da viagem – no qual narra, através dos personagens Ferdinand Bardamu


e Robinson, a experiência da Primeira Guerra Mundial, do colonialismo
europeu na África e do fordismo americano. O revés dessa notoriedade
se deu com a publicação dos virulentos panfletos Bagatelles pour un
massacre (1937), L’école de cadavres (1938) e Les beaux draps (1941),
marcados por injúrias e ataques de todo tipo, dentre os quais o antisse-
mitismo, somando-se posteriormente a denúncias de colaboração com o
regime de Vichy e com o Nazismo durante a ocupação alemã na Segunda
Guerra Mundial. Após o desembarque dos aliados na Normandia, em 6
de junho de 1944, dando início ao processo de Liberação, Céline parte,
em companhia de sua mulher Lili e do gato Bébert, em direção à Alema-
nha com o objetivo de chegar à Dinamarca, onde havia guardado parte de
sua fortuna em um banco. Boicotado desde então pelo meio literário da
França liberta, em 1950, Céline é julgado e condenado pelo tribunal da
Depuração com base principalmente nos parágrafos 2o e 5o do artigo 75
do código civil da época por traição à nação, tendo sido posteriormente
anistiado por ser veterano da Primeira Guerra.

Art. 75. Sera coupable de trahison et puni de mort:


2o Tout Français qui entretiendra des intelligences avec une puis-
sance étrangère, en vue de l’engager à entreprendre des hostilités
contre la France, ou lui en fournira les moyens, soit en facilitant la
pénétration de forces étrangères sur le territoire français, soit en
ébranlant la fidélité des armées de terre, de mer ou de l’air, soit de
toute autre manière;
5o Tout Français qui, en temps de guerre, entretiendra des intelli-
gences avec une puissance étrangère ou avec ses agents, en vue de
favoriser les entreprises de cette puissance contre la France (apud
CÉLINE, 2011a: 348-9).

Esse périplo, que compreende o período de junho de 1944 a março de


1945, é relatado na trilogia alemã, composta pelos romances D’un châ-
teau l’autre (1957), Nord (1960) e Rigodon (1969 – póstumo), nos quais
o narrador céliniano alterna aventuras e eventos do cotidiano vividos na
guerra, resgatados pela memória ou trabalhados pela efabulação, com
comentários feitos no tempo da narração sobre sua penosa situação de
médico sem pacientes e escritor explorado por seu editor, se colocando

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O narrador cronista na trilogia alemã de Louis-Ferdinand Céline 69

como a grande vítima da história. Cabe explicitar que a trilogia será tra-
tada neste artigo como um todo, sem a devida atenção às particularidades
de cada romance por razões meramente metodológicas. Enquanto em D’un
château l’autre, esse narrador se dispõe, após um acesso de paludismo,
a contar o cotidiano do alto escalão do governo de Vichy refugiado no
castelo de Sigmaringen, no sul da Alemanha, em Nord retraça o caminho
de fuga da França até Baden-Baden, no sudoeste da Alemanha, a ida
para Berlin, a estada em Zornhof e as tentativas de partida para a Dina-
marca, enfatizando o difícil cotidiano dos tempos de guerra, enquanto, em
Rigodon, destaca os riscos corridos ao cruzar a Alemanha de sul a norte
nos mais precários trens sob os bombardeis aliados.
Os romances da trilogia formam um conjunto indissociável por sua
inter-relação interna explícita, como por exemplo em Rigodon, o narrador
retoma a ação interrompida no fim de Nord, quando do recebimento da
autorização para viajar a Rostock, o que possibilitaria a passagem para
a Dinamarca: «Nous voici!. . . hommage au lecteur!. . . révérence!. . . nous
nous retrouvons à l’endroit même. . . Harras vient de partir. . . maintenant
c’est agir ou jamais!. . . nous possédons l’essentiel, le permis signé, tam-
ponné Reichsbevoll. . . et l’idée, la même, le Danemark. . . » (CÉLINE,
2011b: 733). Em uma das cenas finais de Nord, Céline descreve a assi-
natura e carimbo da autorização:

[. . . ] voulez-vous signer, cher ami?


Harras signe. . .
«Vous aussi voulez-vous confrère?»
Mon tour . . .
«Et puis Kracht!»
Il signe . . .
«À présent confrère, je tamponne!»
[. . . ] Harras me parle . . .
«Dites confrère!. . . pour votre voyage à Rostock? c’est le moment!»
Certes, j’y pensais, mais je n’osais pas. . . lui ose! même il expli-
que. . . «nous voulons aller à la mer!. . . voir la plage. . . Warnemünde. . .
Lili et moi. . . trois jours!. . . vacances!. . . quatre jours!. . . touristes!. . . »
(CÉLINE, 2011b: 701).

Porém, os três romances não apresentam a ação de forma linear, além


do fato de Céline, como lembra Christine Sautermeister (2013), mani-

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70 Daniel Teixeira da Costa Araujo

pular a cronologia dos fatos históricos, descrevendo ou mencionando-os


sem a preocupação de verificar se aconteceram durante o tempo da nar-
ração, de forma que o mais importante é, antes de tudo, que o evento
integre o intuito do texto. Assim, a visão subjetiva do narrador-cronista
céliniano se sobrepõe à objetividade do historiador: «m’en veuillez pas si
je vous raconte tout en désordre. . . la fin avant le commencement!. . . belle
histoire! la vérité seule importe!. . . » (CÉLINE, 2011b: 310), dirá o nar-
rador em Nord, em função de o período retratado nesse segundo romance
ser anterior ao que fora apresentado em D’un château l’autre, o romance
precedente.
O fato de a redação desses romances se situar no final da vida do
autor e constituir uma resposta pública por meio da literatura às acu-
sações sofridas na França quando da Liberação, tratou-se, para Céline,
de uma ocasião para compor uma mistura de memória, crônica e autobio-
grafia, problemática na medida em que não representa fielmente os fatos
históricos, pois é na trilogia que Céline traça um balanço definitivo de
seu destino, procurando colocar-se acima de seus adversários e da opi-
nião pública, em geral refratária à sua figura. É manifesta a vontade de
Céline, após 1951, logo após a volta do exílio na Dinamarca, de retomar
o escândalo de natureza literária, enfatizando a questão de seu estilo.
Em clara oposição entre homem de estilo e homem de ideias, Céline pro-
cura situar-se, evidentemente, ao lado do primeiro, e chega ao paroxismo
de afirmar que a perseguição política que sofreu se deveu a seu estilo e
não em razão das posições políticas assumidas, como se vê no registro
radiofônico “L.-F. Céline vous parle”, de 1958, em que o autor afirma ex-
plicitamente: «Ce n’est pas mon domaine, les idées, les messages. Je ne
suis pas un homme à message. Je ne suis pas un homme à idées. Je suis
un homme à style» (CÉLINE, 2008: 87). A mesma postura já estava pre-
sente em seu “Mémoire en défense”, de 1946, uma resposta às acusações
de traição formuladas contra ele pela Justiça francesa: «On veut, on cher-
che désespérément à me faire payer, expier mes livres d’avant guerre, mes
succès de littérature et de polémique d’avant guerre» (CÉLINE, 2011a:
257).
Bérnabé Wesley examina como o gênero das crônicas medievais con-
forma uma reescrita permanente e determinante da versão de Céline sobre
a Segunda Guerra, na qual Céline opõe uma crônica da Depuração e um

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O narrador cronista na trilogia alemã de Louis-Ferdinand Céline 71

testemunho do cotidiano na Alemanha no fim de 1944 à narrativa oficial


da Liberação e uma crítica à Resistência. Nesse sentido, Nord acentua-
ria o pendor autobiográfico de certos cronistas medievais, no entanto se
mistura também com a linhagem de memorialistas desgraciados que lhe
forneceram o modelo de defesa em causa própria que estrutura a retórica
de autojustificação de Céline no pós-Guerra. Céline se proclama vítima
da história e se exonera, assim, da confissão da culpa pelos panfletos
antissemitas. Céline se apresentará como cronista no interior do texto de
Nord:
Vous vous dites en somme chroniqueur?
– Ni plus ni moins!. . .
– Sans gêne aucune? . . .
– Ne me défiez! j’entends encore Mme von Seckt. . . (CÉLINE, 2011b:
304-305)

Porém, não fará grande distinção entre os termos crônica e memórias,


o que, para Wesley, atestaria o desinteresse de Céline por questões de
gêneros textuais, ao mesmo tempo em que pode ser uma atitude deliberada
para permanecer no terreno da ambiguidade e, portanto, da polêmica. É
o que se pode entrever na entrevista que Céline concede a Madeleine
Chapsal, do jornal L’Express, em 14 de junho de 1957, cujo assunto versava
sobre a publicação de D’un château l’autre, na qual Céline compara seu
trabalho ao de um jornalista:
Moi aussi je me suis trouvé dans une histoire. . . Je n’y tenais pas
du tout à aller à Sigmaringen! Seulement on voulait m’arracher les
yeux à Paris. On voulait me tuer! Je me suis trouvé pris dans un
tourbillon. A Sigmaringen, j’ai été en prison, en cellule, etc. Je me
suis trouvé embarqué dans des aventures. . . Comme les journalistes.
Nous sommes tous journalistes. Sans savoir ce qu’on vit. . . (CÉLINE,
2008: 25-26)

A crônica, tradicionalmente, possui uma vocação histórica que repousa


na promessa do cronista de dizer a verdade – numa fórmula com valor a
bem dizer jurídico comparável àquela do pacto autobiográfico – mas uma
verdade coletiva que se coloca como memória oficial de uma comunidade,
sendo importante frisar que esse pacto de verdade se funda sob um dis-
curso testemunhal. É com base nesse discurso testemunhal que todo

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72 Daniel Teixeira da Costa Araujo

cronista apresenta sua versão dos fatos, fundada na imediaticidade da


experiência, a qual é vista como sinônimo de veracidade (WESLEY, 2010:
16-19) e Céline usa dessa experiência privilegiada de certos eventos his-
tóricos, para creditar verdade a seu discurso, ainda que haja grande parte
de construção ficcional em sua narrativa dos fatos. Vê-se em D’un château
l’autre uma reflexão a esse respeito:

comment nous étions installés, je vous raconterai. . . vous pourrez


aller vous rendre compte. . . j’ai lu bien des reportages ci!. . . là!. . . sur
Siegmaringen. . . tout illusoires ou tendancieux. . . travioles, similis,
faux-fuyard, foireux. . . que diantre!. . . ils y étaient pas, aucun! au
moment qu’il aurait fallu!. . . (CÉLINE, 2011b: 136).

Ao adotar o gênero da crônica, sobretudo em sua linhagem medieval,


Céline parece esperar que a autoridade que a crônica concede a seu autor
lhe conferirá a legitimidade necessária para apresentar sua verdade his-
tórica (WESLEY, 2010: 21), transformando seu texto em documento his-
tórico, ainda que no plano da ironia, pois Céline não deixa de se referir a
sua obra como composta por romances, marca que inclusive figura na capa
de seus livros. Em D’un château l’autre, por exemplo, Céline joga com essa
verdade documental que seu texto comportaria: «Pardon! Pardon!. . . au
fait, les choses!. . . de ma plume!. . . pas le récit n’importe quel!. . . pas à se
demander quoi? quès? non! là!. . . de ma propre main!. . . le document!»
(CÉLINE, 2011b: 89).
Os romances da trilogia se encontram, na verdade, no cruzamento de
diferentes gêneros literários, como a escrita de si, a ficção e a história,
levando por vezes a um atrito entre história, romance e autobiografia e em
outras a uma estranha fusão desses gêneros. Céline, na verdade, demons-
tra indiferença pelas sutilezas e particularidades dos gêneros e, se, logo
no início de Nord, se apresenta como cronista sem incômodo algum, ele
usará indistintamente os termos crônica e memórias, mas ao mesmo tempo
reunindo em sua proposta, pelo menos formalmente, um éthos da verdade,
discurso testemunhal, sistema de enunciação na primeira pessoa que uni-
fica narrador, protagonista e autor. Wesley lembra que uma distinção
importante entre memórias e crônicas repousa no caráter autobiográfico
das primeiras, visto que, tendo como matéria a vida, se concentrariam
em um indivíduo e tiram seus limites da existência pública de seu he-

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O narrador cronista na trilogia alemã de Louis-Ferdinand Céline 73

rói, enquanto as crônicas focariam a duração histórica (WESLEY, 2010:


65). Ainda que o narrador céliniano imprima no interior de sua narra-
tiva o selo da crônica e se afirme cronista, os romances continuam sendo
romances, pois, ao lado de referências e personagens históricos, se en-
contram episódios e personagens fictícios ou mesmo um tratamento pouco
afeito a minúcias históricas, como aponta Sautermeister: «Plutôt qu’un
récit historique, D’un château l’autre est une chronique personnelle. Des
événements survenus en réalité entre novembre 1944 et février 1945 se
trouvent, dans le roman, insérés au cours des mois d’octobre et novembre
1944; le récit célinien se déroule dans une certaine précision» (SAUTER-
MEISTER, 2013: 37). Talvez por isso, embora Céline seja considerado
pela crítica um autor cujo foco recai antes na transposição do vivido que
na imaginação, a crítica frequentemente hesite em conceder credibilidade
à sua crônica.
O interessante e inovador da crônica céliniana advém do fato de, con-
trariamente às crônicas tradicionais, em que se tem retratada a versão
dos eventos aprovada pelo poder estabelecido e cuja vocação histori-
cizante visa estabelecer a memória oficial da comunidade, a versão de
Céline contesta a versão oficial e satiriza figuras importantes do período
em retratos por vezes debochados. Céline se vê como um justo vitimado
injustamente pela história e que, não tendo seu lugar na versão oficial, se
vê no direito de apresentar sua versão dos fatos e deslegitimar a versão
oficial: «vous ne trouverez rien vous renseignant dans votre journal habi-
tuel. . . », dirá o narrador em Nord (CÉLINE, 2011b: 330). A trilogia de
Céline acaba sendo considerada como uma história ilegítima, não no sen-
tido de um eufemismo para história falsa, mas simplesmente como história
não oficial, uma vez que retrata a história dos perdedores da Segunda
Guerra, contada também por um perdedor. Porém, como enfatiza Wesley,
a versão de Céline é a contestação de uma história que glorifica e atribui
todo o prestígio patriótico à Resistência.
Céline acusa os membros da Resistência de oportunismo e os assimila
a assassinos que procuraram demonstrar seu patriotismo matando colabo-
radores, cabendo lembrar nesse sentido o assassinato do primeiro editor
de Céline, Robert Denoël, em dezembro de 1945, e as inúmeras ameaças
sofridas por Céline, as quais o levaram a deixar o país. Assim, para Cé-
line, a Resistência reivindica a vitória ilegitimamente com honras, glória

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74 Daniel Teixeira da Costa Araujo

e poder não merecidos, daí, por exemplo, sua implicância com Sartre. A
crônica de Céline visa desconstruir a narrativa oficial da Liberação lem-
brando com insistência que sua glória foi construída sobre o esquecimento
da derrota de 1940, como se pode ver em Nord:
Dans les très vieilles chroniques on appelle les guerres autre-
ment : voyages des peuples. . . terme encore parfaitement exact,
ainsi prenons juin 40 le peuple et les armées françaises ne fi-
rent qu’un voyage de Berg-op-Zoom aux Pyrénées. . . les derrières
bien en cacas, peuple et armées. . . aux Pyrénées se rejoignirent,
tous!. . . Fritz et François !. . . ne se battirent, burent, firent sisite,
s’endormirent. . . voyage terminé ! (CÉLINE, 2011b: 311).

Para Wesley, a crônica de Céline inverte o propósito das crônicas me-


dievais ao recusar radicalmente a história oficial e denunciar a parcela de
esquecimento e interesse na escrita da história oficial, em vez de atestar
a versão tida como verdadeira pelas autoridades de seu tempo (WESLEY,
2010: 47).
comme ceux qui sont montés chez moi, rue Girardon tout me vo-
ler, faire pipi et le reste, sont bien grimpés pour me suspendre à
mon balcon, me faire voir à tout Paris, le plus affreux des “ anti-
-France ”, le plus abject des toucheurs d’enveloppes, vendeurs de
la ligne Maginot. . . de-ci, de-là, un moment ils vous voient pareil :
le coupable de tout. . . y a du quiproquo. . . vous êtes un peu étonné,
vous vous demandez qui qui déconne?. . . et puis vous vous faites. . . il
en fait! coupable de tout ?. . . soit ! c’est entendu ! (CÉLINE, 2011b:
601-602)

Assim brada o narrador céliniano em Nord, colocando em evidência


a derrota do exército francês em 1940, questionando a legitimidade his-
tórica da Resistência como vencedora da guerra, denunciando injustiças
e arbitrariedades da Depuração e acusando os resistentes de serem as-
sassinos de seu próprio povo. Se a história não é feita de versões, a
de Céline, ainda que oficialmente ilegítima, parece se apresentar como
uma maneira de se ler os acontecimentos e, antes de querer encerrar os
acontecimentos numa verdade única, permite a colocação de interessantes
questões sobre a história recente da Europa, assim como sobre a teoria
dos gêneros literários.

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Referências bibliográgicas

CÉLINE, Louis-Ferdinand (2011a). Céline et l’actualité 1933-1961.


Paris: Gallimard.
CÉLINE, Louis-Ferdinand (2006). Céline et l’actualité littéraire 1932-
-1957. vol. 1. Paris: Gallimard.
CÉLINE, Louis-Ferdinand (2008). Céline et l’actualité littéraire 1957-
-1961. vol. 2. Paris: Gallimard.
CÉLINE, Louis-Ferdinand (2011b). Romans II: D’un château l’autre;
Nord; Rigodon. Paris: Gallimard.
SAUTERMEISTER, Christine (2013). Louis-Ferdinand Céline à Sig-
maringen: novembre 1944 – mars 1945, chronique d’un séjour controversé.
Paris: Écriture.
WESLEY, Bernabé (2010). Nord de L.-F. Céline: une réécriture des
chroniques médiévales (tese). Montréal: Université de Montréal.
A propósito do romance tradicional «Nau
Catrineta»: peregrinações no tempo e no espaço

Sandra Boto

Universitat Autònoma de Barcelona


Centro de Investigação em Artes e Comunicação / Centro de Literatura
Portuguesa

Resumo: «Nau Catrineta» é um dos poucos romances marítimos presentes


na tradição oral moderna portuguesa. Contudo, a sua popularidade entre nós
é inquestionável. Parece por isso natural que no século XIX Almeida Garrett
tenha assumido como certa a sua origem portuguesa e que desde então esta
posição não tenha praticamente sido revista: instalava-se então a leitura na-
cionalista no debate em torno das origens da «Nau Catrineta», definitivamente
implantada pela inclusão da versão de Almeida Garrett nos manuais escolares
iniciada durante o regime do Estado Novo e com ecos no presente.
Contudo, a aplicação de uma metodologia diacrónica e de geografia folclórica
num estudo como o que tenho vindo a dedicar a este romance permite-nos des-
mistificar esta leitura cristalizada do mesmo. A presente comunicação pretende
apresentar algumas conclusões que apontam para a necessidade de contrariar a
ideia romântica associada a este romance (que tem vindo a ser acarinhado como
expressão poética do Portugal marítimo e marinheiro do século XVI), que não
passará, deste modo, de uma eficaz e bela construção romântica. No recurso à
comparação com a balada europeia e com outros modelos poéticos tradicionais
assenta a argumentação aqui proposta.

Palavras-chave: Romanceiro; balada; nacionalismo romântico; geografia fol-


clórica; viagem.
78 Sandra Boto

1. A justificação para trazer uma comunicação a este colóquio dedi-


cada a um romance tradicional como, neste caso, o tema conhecido na
Península Ibérica como «Nau Catrineta», reside precisamente na dupla
peregrinação que ele encerra. Por outras palavras: a literatura de tra-
dição oral é uma literatura que viaja por essência e da sua eterna pe-
regrinação vive enquanto ‘obra aberta’; por outro lado, «Nau Catrineta»
representa um excelente exemplo de relato narrativo da tragédia que as-
sombra a viagem, com semelhanças mais do que evidentes com a História
Trágico-Marítima, quer do ponto de vista do conteúdo como do espírito
da narrativa. Em síntese, estamos perante a viagem que viaja.
Entre 1851 e 2000, foram dadas à estampa em Portugal cerca de 180
versões tradicionais deste romance, algumas das quais sofreram entretanto
múltiplas reedições (Ferré / Carinhas, 2000: 125-127). Permito-me, pois,
iniciar estas reflexões com a interpretação óbvia do número: trata-se
de um romance extremamente conhecido e reproduzido na tradição oral
moderna portuguesa. Tal expressividade numérica assentará justamente
na sua capacidade para narrar (da forma condensada – e por isso intensa
– que caracteriza o romanceiro tradicional), o drama humano levado às
últimas consequências, o canibalismo, em consequência do desastre de
um navio que anda à deriva no oceano sem salvação à vista.
Proponho, antes de prosseguirmos, a observação da sua estrutura nar-
rativa mais corrente na tradição oral portuguesa, que coincide, do ponto de
vista estrutural, com a versão que Almeida Garrett publicou pela primeira
vez em 1851 (Garrett, 1851, II: 89-93):

1. um navio anda à deriva pelos mares, durante anos, sofrendo por fim


a falta absoluta de víveres;

2. o canibalismo surge, à semelhança do que acontece na maior parte


das versões portuguesas, como única solução para a sobrevivência
da tripulação que ainda não sucumbiu à fome e à sede;

3. procede-se ao sorteio daquele que vai ser sacrificado, recaindo o


infortúnio no próprio capitão do navio;

4. o capitão manda subir ao mastro um marinheiro na esperança de


que este aviste terra, como solução in extremis para se salvar;

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A propósito do romance tradicional «Nau Catrineta»:
peregrinações no tempo e no espaço 79

5. o marinheiro, que afinal veste a pele do diabo, não só nesta como em


muitas versões, avista não só terra firme, mas também, normalmente,
os haveres e a família do capitão;

6. o marinheiro revela-se extremamente exigente nas negociações com


o capitão para a retribuição de uma recompensa pela boa notícia;

7. perante as recusas constantes de bens materiais, o gajeiro / demó-


nio acaba por admitir que pretende a alma do capitão, ou, como
alternativa, nalgumas versões, a própria nau Catrineta;

8. o capitão recusa-se a ceder ao diabo e, embora o desfecho ofereça


alguma variação, no geral, este deixa, perante a tenacidade daquele,
de o tentar; a nau Catrineta salva-se, como prémio para a coragem
e fé demonstradas pelo capitão.

O trágico sucesso aqui narrado, cuja tensão crescente culmina, afinal


de contas, na salvação do barco e do respetivo capitão, é o espelho do
desespero humano. E, por isso, «Nau Catrineta» tem vindo a ser interpre-
tada pela crítica, desde que, pela primeira vez, em meados do século XIX,
Almeida Garrett teorizou sobre o assunto, como uma criação nacional, o
que não deixa de ser perfeitamente natural já que enquadrado no espírito
da época. É importante insistirmos neste ponto, uma vez que é sobre esta
conceção nacionalista que vamos aqui operar. Assim, a questão que pre-
tendemos aqui abordar é a da necessidade de rever a persistência quase
unânime, com que, em pleno século XXI, se continua a reproduzir aquilo
que o século XIX pensou sobre este texto, movido pela busca da essência
literária portuguesa que força, ainda hoje, a atribuição de uma ligação
entre este poema e os factos históricos.
Questionemo-lo, portanto. Mas ouçamos antes as palavras de Almeida
Garrett a propósito deste romance:

Não é para admirar que seja tão geralmente sabida e querida esta
xácara. O que admira é que não seja mais comum entre nós o
romance marítimo. Um país de navegantes, um povo que viveu mais
do mar do que da terra; que as suas grandes glórias as foi buscar
ao largo oceano; que por não caber em seus estreitos limites de
Europa, devassou pelo universo, – não pode deixar de ter produzido

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80 Sandra Boto

muito Cooper popular e muito Camões de rua e de aldeia que, em


seus pequenos Lusíadas, cantasse as mil aventuras de tanto galeão
e caravela que se lançavam destemidos ‘Por mares nunca dantes
navegados’. (Garrett, 1851, II: 84)

E continua, adiante:

‘A Nau Catrineta’ foi provavelmente o nome popular de algum navio


favorito; diminutivo de afeição posto na Ribeira-das-Naus a algum
galeão Santa-Caterina, ou coisa que o valha. [. . . ] Ou talvez é o
nome suposto de um navio bem conhecido por outro, que o discreto
ministrel quis ocultar por considerações pessoais e respeitos huma-
nos. Entre as narrativas em prosa que já citei, há uma, por título
– ‘Naufrágio que passou Jorge de Albuquerque Coelho, vindo do
Brasil no ano de 1565’ – que não está muito longe de se parecer
com a do romance presente [. . . ] E no fim do século XV ou XVI se
havia de compor. Mais antigo não é. (Garrett, 1851, II: 86-88)

Em síntese, sugerem estas palavras que se trata de um romance com-


posto no calor da diáspora portuguesa. E faço notar que a identificação
da narrativa deste romance com o naufrágio de Jorge de Albuquerque
Coelho, segundo Garrett propôs, permanece, grosso modo, cristalizada,
nos dias de hoje. Contudo, Garrett está coberto de razão quando afirma
que a presença do romance marítimo em Portugal é diminuta. Apesar do
pouco que, na época deste escritor, se conhecia do romanceiro português,
para além de «Nau Catrineta», escassos são, de facto, os romances que
circulam na tradição portuguesa dedicados à temática marítima1 .
Em 1954 finalmente surgia em Portugal um trabalho de fôlego dedi-
cado em exclusivo a este romance, intitulado Nau Catrineta: Ensaio de
Interpretação Histórica, por Fernando de Castro Pires de Lima, trabalho
este perfeitamente enquadrado no espírito nacionalista do Estado Novo
(Lima, 1954). Reúne o autor, como bem sugere o título, interessantes da-
dos históricos, ao mesmo tempo que compila diversos pontos de vista, o
1
Exceção feita aos temas «Batalha de Lepanto» (0112), «A Tentação do Marinheiro»
(0180) e ao tema residualmente conhecido na tradição portuguesa «O Marinheiro e a
Virgem Maria» (0538) [os códigos indicados para cada romance são os definidos pelo
Índice general del romanceiro, que seguimos].

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A propósito do romance tradicional «Nau Catrineta»:
peregrinações no tempo e no espaço 81

que é revelador de uma pesquisa cuidada2 . Não obstante, no momento


de retirar ilações a partir dos elementos de que dispõe, Pires de Lima
limita-se a reproduzir a inaugural opinião impressionista de Garrett que
advoga a indiscutível origem portuguesa do romance, com base nas seme-
lhanças com a narrativa em prosa do «Naufrágio por que passou Jorge de
Albuquerque Coelho, vindo do Brasil no ano de 1565», ponto de vista esse
sufragado pela maioria daqueles que em Portugal se referiram ao assunto
e, sobretudo, pelo pai do autor, Augusto Pires de Lima, que oferecia, à
época, o estado da arte sobre este assunto.
Confirmava-se, assim, sem bases teóricas minimamente consistentes,
a origem portuguesa da «Nau Catrineta», destituindo-se inclusivamente
o poema da sua autonomia poética em prol da identificação geográfica do
seu referente: as terras de Espanha e areias de Portugal mencionadas
no romance adquirem inclusivamente uma localização precisa e plausível,
no Minho ou na foz do Guadiana (apud Lima, 1954: 29-30). Remata
Augusto Pires de Lima com o argumento de que «com efeito, de todas as
versões mencionadas, a única inteligente e bem arquitectada, sob o ponto
de vista marítimo, é a portuguesa» (apud Lima, 1954: 30).
Mas se a atribuição da origem portuguesa deste romance, pelos seus
referentes histórico-geográficos carece de substância, já uma referência a
meu ver importante, na obra de Fernando de Castro Pires de Lima, é a da
narrativa em prosa de uns frades capuchinhos italianos que passaram por
Lisboa em 1666, onde terão ouvido a história de um naufrágio pouco tempo
antes ocorrido e que o autor conclui ser a primeira versão conhecida (pro-
sificada, é certo) do romance «Nau Catrineta» (Lima, 1954: 31-42). Dada
a conhecer por Gastão de Sousa Dias em 1929 (Dias, 1929), trata-se de
um documento que apresenta bastos problemas filológicos. Não iremos
aqui encetar essa discussão. O que, sim, teremos de aflorar, pese embora
2
Pires de Lima compila, na sua obra, algumas das opiniões sobre a origem do romance
que ajudaram a cristalizar a tese da sua criação portuguesa, a partir de onde se teria
difundido por outros territórios. Ilustres figuras da cultura portuguesa, a saber, Teófilo
Braga, Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Pinheiro Chagas, Manuel Joaquim Delgado,
José Joaquim Nunes, Gonçalo Sampaio e Augusto César Pires de Lima são vozes unânimes
em apontar a portugalidade quer do romance, quer da nau, através de tentativas de
identificação da Nau Catrineta com diferentes navios da frota portuguesa (cf. Lima, 1954:
19-30).

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82 Sandra Boto

as discrepâncias que as suas diferentes fontes proporcionam, é que se


trata do relato de um naufrágio com óbvias e, por vezes, estreitas con-
vergências (por vezes até discursivas) com o drama que canta o romance:
o nome do barco («Vascello detto Cattarineta»); a errância durante sete
meses no mar; a fome após terem ingerido os animais e até a sola dos
sapatos; o sorteio; a subida do marinheiro ao mastro; o avistar da terra;
a fé do capitão.
São justamente estas coincidências que apontámos as que levam Pires
de Lima a afirmar que:

Estudando a descrição do capuchinho italiano, verificar-se-á sem


grande dificuldade, que se trata pura e simplesmente duma versão
em prosa do romance A Nau Catrineta 3 , que ouviram em Lisboa
onde por sua própria declaração estiveram alguns meses. Claro
está que, sendo estrangeiros, não puderam traduzir textualmente a
narrativa da famosa tragédia marítima.
No entanto, apesar de muita fantasia, conseguem dar os tópicos
essenciais do romance. (Lima, 1954: 39)

Pires de Lima justifica ainda a incongruência gerada no que respeita


à hipotética transmissão do relato do naufrágio, entendido pelo capu-
chinho como acontecimento histórico ocorrido pouco tempo antes da sua
estada em Lisboa, em 1666. A validarmos esta informação do capuchinho,
simplesmente cairia por terra a hipótese de prosificação de uma versão
do romance. Mas Pires de Lima introduz um pertinente argumento em
contrário: o do processo de tradicionalização do romanceiro, que, como
sabemos, tanto torna a narrativa anónima como a submete à mundividên-
cia do informante que a reproduz e que passa então a depositar a sua
crença na narrativa, presentificando-a. No entanto, não questiona Pires
de Lima, como observaremos, que o sucesso que está na origem do poema
«Nau Catrineta» tenha ocorrido com uma embarcação portuguesa, facto
que condiciona totalmente a avaliação da questão das origens do romance
em favor, necessariamente, da lusa:

Para se elaborar e dar forma definitiva a uma obra-prima como é o


romance da Nau Catrineta torna-se necessário muito tempo. Entre
3
Todos os itálicos são da responsabilidade do autor.

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A propósito do romance tradicional «Nau Catrineta»:
peregrinações no tempo e no espaço 83

o naufrágio e o poema inspirado no mesmo, decorreram, certamente,


largos anos. É perfeitamente de admitir ter o capuchinho italiano
ouvido o romance e supor que os factos nele relatados tivessem
acontecido, pouco tempo antes 4 da sua chegada a Lisboa, a uma
nau “Catrineta”. (Lima, 1954: 40)

E formula definitivamente desta forma a sua tese:

O capuchinho italiano fantasiou a seu modo o romance da Nau Ca-


trineta 5 , que fatalmente deveria conhecer pois estivera alguns me-
ses em Lisboa. Não é difícil acreditar que o capuchinho conhecia
o romance da Nau Catrineta, largamente vulgarizado, e supusera
tratar-se dum autêntico naufrágio duma nau cognominada de “Ca-
trineta” que tivesse sucedido “pouco tempo antes”. (Lima, 1954:
42)

Pese embora a argumentação de Pires de Lima parecer convincente


e plausível e demonstrar como deveremos, de facto, equacionar a hipó-
tese de se assumir que em 1666 “Nau Catrineta” seria já um romance
claramente tradicionalizado e presente na tradição oral portuguesa, não
é por ela própria solução para dois problemas fulcrais: 1) o da identi-
ficação do navio imortalizado no romance com qualquer navio português
dos Descobrimentos; 2) o da origem portuguesa do romance, com base no
critério da afinidade do povo português com a diáspora marítima. Serei
mais cautelosa e menos assertiva, portanto, sobre o valor efetivo desta
fonte para as questões em causa.
A verdade é que, mesmo antes do Estado Novo, com Antero de Quen-
tal (1883: 7-9), mas sobretudo a partir do regime salazarista e até ao
presente, a “Nau Catrineta” garrettiana tem sido entendida como uma
das mais dignas representantes da literatura de tradição oral no cânone
literário infantil em Portugal, com uma presença constante nos programas
escolares6 . Ao mesmo tempo, fomentava-se, com esta verdadeira mediati-
4
Id.
5
Id.
6
A popularidade do romance, curiosamente, extrapola os limites educativos. A sua
mensagem fundamental foi recentemente utilizada como núcleo de um manual de liderança.
A Nau Catrineta e a História Trágico-Marítima, da autoria de Libório Manuel Silva, obra
publicada em 2010, mostra, por exemplo, como a invulgar determinação do capitão do

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84 Sandra Boto

zação do texto garrettiano, o desenvolvimento de uma versão oral vulgata,


uma vez que este texto passou

2. Mas a atribuição de uma origem portuguesa ao romance parece


ganhar crédito devido ao facto de, salvo na tradição catalã e maiorquina
(conhece-se uma verão única e fragmentada recolhida no País Basco7 ), a
tradição espanhola ignorar em absoluto este tema. Por outra parte, ao
desconhecer-se a presença de “Nau Catrineta” em documentos (cancio-
neiros ou folhetos de cordel) dos séculos XVI e XVII, poder-se-á eventual-
mente supor uma origem posterior à do velho romanceiro medieval, o que
parece vir ao encontro da tese atrás mencionada que relaciona a criação
do poema com os Descobrimentos portugueses.
No entanto, ainda no século XIX, algumas vozes começaram a ques-
tionar a origem portuguesa de “Nau Catrineta”. Teófilo Braga, por seu
lado, nega, em 1909, a tese da sua origem histórica, apontando o livro V
da Odisseia como fonte para o romance (Braga, 1909: 309 e 314-316).
Adolfo Coelho, mais contundente, nega-a igualmente, referindo-se à “alu-
cinação” da identificação do sucesso narrado no poema com o qualquer
acontecimento histórico português (apud Lima, 1954: 27). Foi justamente
o conhecimento da circulação de baladas com relatos semelhantes fora da
Península Ibérica o motor destes e doutros intelectuais que começaram a
colocar em causa o lusocentrismo dominante.
Também Menéndez Pidal rejeitava, em 1953, e com o mesmo argu-
mento, a origem portuguesa deste romance. Na verdade, a existência de
versões catalãs e a sua presença na tradição oral do sul de França, que
apresentam a mesma assonância em –á, fazem o filólogo espanhol sugerir
uma entrada do poema na Península Ibérica via Catalunha, propondo que
este tenha sido entretanto esquecido em Castela. Ou seja, por outras
palavras, que a balada terá tido origem na Europa transpirinaica e não
nos limites ocidentais do continente, como os portugueses insistem em
ver (Menéndez Pidal, 1953, II: 324-327). No entanto, o filólogo espanhol
reconhece que o povo português “puso en él [Nau Catrineta], además,
romance tradicional pode servir de espelho para o reforço das capacidades de liderança
pessoais.
7
Juaristi, 1989: 122-123.

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A propósito do romance tradicional «Nau Catrineta»:
peregrinações no tempo e no espaço 85

aprecio singular, haciéndolo uno de los cantos más repetidos en el Por-


tugal metropolitano, en las islãs y en Brasil. La Nau Cathrineta 8 es,
en fin, Os Lusiadas del Camoens-legion [sic]” (Menéndez Pidal, 1953, II:
326-327).
Naturalmente que esta teoria da disseminação pela Península a par-
tir de França parece, à partida, oferecer maior fiabilidade, na medida em
que não se trataria de um caso isolado, já que sabemos hoje com segu-
rança que muitas baladas europeias penetraram na tradição oral ibérica
modelando-se paulatinamente ao estilo do romanceiro e tornando-se parte
integrante do seu repertório. O movimento migratório da baladística eu-
ropeia, que penetrou no cânone poético medieval peninsular, segundo tem
sido demonstrado por estudos monográficos sobre o romanceiro é, creio,
uma ideia decisiva para a compreensão do problema da “Nau Catrineta”9 .
Testemos, portanto, esta hipótese, que se afigura a mais viável.
Para tal, localizei e compilei um conjunto de versões representativas
de diversas tradições orais onde detetamos a existência de baladas com
uma fábula próxima daquela da “Nau Catrineta”, corpus que alargarei
futuramente de forma a tornar mais representativo este estudo compara-
tivo. Estudei, para o efeito, três versões inglesas, duas francesas (uma
das quais oriunda da Bretanha), duas canadianas e oito brasileiras pro-
venientes de vários Estados. Tenho ainda notícia de que a balada se
encontra igualmente presente na tradição da Europa de Leste (Rússia
e Lituânia, pelo menos) das quais, para já, não disponho de nenhuma
versão; localizei igualmente correspondência nas tradições escandinavas
(dinamarquesa, islandesa, norueguesa e sueca), onde o romance assume
o título “Ship‘s crew miraculously saved from death” (em Jonsson et. al.,
1978: 56-57) mas que, lamentavelmente, ao deparar-me com os textos na
língua original e ao não ter localizado tradução disponível, não tive ainda
oportunidade de ler e incorporar, portanto, no corpus 10 .
8
Itálico da responsabilidade do autor.
9
Pese embora o exposto, em Portugal, acreditava-se e ainda se continua a acreditar
predominantemente que o fluxo criativo deste romance tem o seu epicentro no nosso país,
com uma disseminação posterior pela Catalunha, França, Inglaterra, Brasil, Argentina
e Canadá, “transformando-se a alterosa nau em humilde e anónimo barquinho (Petit
Navire)” (Lima, 1954: 29).
10
Conto, brevemente, incluir no estudo versões oriundas das tradições eslava e escan-

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86 Sandra Boto

“The good ship Catherine” é o título genérico mais reconhecido in-


ternacionalmente para designar a balada europeia que canta o drama de
uma tripulação que, perdida, no mar, encontra no canibalismo a única
saída para a sobrevivência; contudo, em França o poema que relata este
episódio é conhecido geralmente por “La courte paille”.
Já na tradição pan-hispânica, a “Nau Catrineta” apresenta um compor-
tamento muito curioso: para além, obviamente, da abundante circulação
de versões em território português (continental e insular), este romance
desconhece-se, relembro, em território espanhol, com exceção para a re-
gião da Catalunha e Ilhas Baleares (de onde extraí sete versões para
incluir neste corpus de estudo) e para um fragmento único que localizei
em território basco, vinculado, claramente, ao modelo catalão e que só
assim se explica11 .
Quanto ao problema das origens do romance, reflitamos: se a ausência
de versões antigas de “Nau Catrineta” em território ibérico pode lançar
a sugestão de que a origem da balada será tardia e, hipoteticamente,
vinculada aos Descobrimentos marítimos portugueses, como poderemos
persistir nesta tese quando sabemos da existência de um tema tradicio-
nal escandinavo cujas origens se reportam à Idade Média e que conta a
história de um barco à deriva sem mantimentos, cuja tripulação é em de-
sespero conduzida a um sorteio para sacrifício de uma vítima humana12 ?
Apesar de manifestar um final com ligeiros desvios, esta tradição oral vem
confirmar que se trata de uma narrativa de circulação muito anterior à
época proposta pela tese que defende a origem lusa (os séculos XV e
XVI). Portanto, já em séculos anteriores esta balada figuraria no folclore
europeu, pelo menos na tradição oral escandinava.

dinava, de forma a ampliar as conclusões a extrair com base na metodologia da geografia


folclórica. Sobre este método de trabalho, ver principalmente Menéndez Pidal, “Sobre
geografia folclórica (ensayo de un método)” e Diego Catalán / Álvaro Galmés, “La vida de
un romance en el espacio y el tiempo”, (em Menéndez Pidal / Catalán / Galmés, 1954).
11
Por uma questão de economia de espaço, incluo apenas na lista final as referências
relativas às fontes bibliográficas das versões trabalhadas neste estudo.
12
A estrutura narrativa destes textos encontra-se descrita em Jonsson et. al., 1978:
56-57.

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peregrinações no tempo e no espaço 87

3. Na impossibilidade de apresentar aqui as conclusões detalhadas


da análise que empreendi, sequência narrativa por sequência narrativa,
confrontando as versões do corpus português com as versões das restantes
tradições orais, limito-me a algumas considerações genéricas na ótica da
discussão em torno da origem portuguesa da “Nau Catrineta”13 .
Desde logo, a análise do corpus de versões portuguesas obriga-nos,
em traços gerais, a estabelecer uma clara diferenciação entre a tradição
portuguesa continental e a insular, que tentaremos perceber. Observa-
mos, por exemplo, como o comportamento da tradição insular portuguesa
apresenta estreitas conexões com os textos catalães e franceses, ao retirar
protagonismo à figura do diabo e ao enaltecer a lealdade do marinheiro,
que não se apresenta, portanto, como o vilão, num número interessante
de versões14 . Pensamos tratar-se de um elemento arcaizante, que terá
perdido expressão nas versões continentais portuguesas. Neste sentido,
as lições maiorquinas parecem constituir um estádio intermédio entre a
tradição catalã que não contempla a presença do sobrenatural e a tradi-
ção portuguesa, que nela é bem fértil: o demónio aparece, sim, mas não
é o gajeiro, que dele é também vítima.
Por seu turno, a tradição continental, apesar de manifestar alguma
concordância com o modelo catalão / francês, mais propriamente no final
13
Encontra-se pronto para publicação o estudo comparativo da minha autoria que
engloba todas as sequências narrativas do corpus de versões selecionado. A presente
comunicação decorre, pois, das conclusões extraídas e que aqui são sucintamente apre-
sentadas.
14
Vejam-se, a título ilustrativo, os seguintes versos de uma versão da Ilha das Flores
(Arquipélago dos Açores): “- Assube, assube, Pedrinho, / Assube ao maestro real; / Vê se
avistas nossas terras, / A Terceira ou o Faial! / – Não avisto nossas terras, / Nem Terceira
nem Faial. / Vejo três espadas nuas, / Dos que te querem matar. / P’ra defender-te aqui
‘stou; / Comigo podes contar!” Nesta versão, o marinheiro chega inclusivamente a ser
promovido devido à sua lealdade: “- Esta nau não ta darei, / Que é do rei de Portugal.
/ Dele a tomei quando fui, / E a ele torno-a a dar. / Desce do matro, Pedrinho, / De ti
me posso fiar. / Quando te eu mandei, gajeiro, / agora ofecial!” (Cortes-Rodrigues, 1987:
73-74) Numa versão catalã publicada por Milà i Fontanals lê-se “Que tenes, gallardo
mosso, / que aixís te posas á cantá? / Yo ja veig castells y vilas / y murallas á blanquejá,
/ Y també veig la seva senyora / que s’ esta al balcó a brodá. / Baixa, baixa, gallardo
mosso, / que la vida m ‘en ets salvat.” (Milà i Fontanals, 1999: 177-178). Também a lição
recolhida em território basco alinha com este tratamento da personagem do gajeiro.

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88 Sandra Boto

de algumas versões em que o gajeiro se limita a pedir a nau e não a alma,


parece não partilhar do enaltecimento do marinheiro. Acresce ainda que
a maioria das versões continentais cristalizam o modelo textual que dita o
aparecimento do sobrenatural através do diabo, tendência evidentemente
inovadora e, portanto, mais recente. Poder-se-á supor a intervenção da
palavra escrita, ou melhor, de alguma versão divulgada nalgum folheto
de cordel neste processo modernizador do romance em Portugal, pautado
por uma estrutura tão rígida e uma abertura tão típica do romance de
cego15 ? Trata-se de uma suposição a testar futuramente. O que sim, é
uma constatação, é que a versão de Garrett contribuiu significativamente,
desde meados do século XIX, para a dispersão deste modelo, na altura já
solidamente instalado no país, vigorosamente incrementado pela popula-
ridade do romance garrettiano, que foi poema obrigatório dos manuais de
leitura em Portugal durante anos a fio, como se recordou atrás.
As versões brasileiras são concordes, não raro, com a vulgata portu-
guesa, se bem que, nalguns casos, apresentem elementos arcaizantes. A
perda de referente para o caso da nau no Brasil propicia, ainda, a de-
sestruturação do sentido de algumas versões, que passaram a entender
inclusivamente a nau Catrineta como uma mulher16 .
Os textos canadianos também trilharam um caminho diferente do da
tradição francesa, com a qual se relacionam, não obstante, do ponto de
vista genético. A balada canadiana perdeu a consistência e o total dra-
matismo, passando a mera canção infantil17 .
Já os textos ingleses observados são férteis na criação de um clima
de tragédia, através de um investimento descritivo ímpar. Contudo, a
15
Recordo o íncipit mais comum do romance em Portugal, que admite uma variação
extremamente condicionada e insignificante: “Lá vem a Nau Catrineta que tem muito que
contar; / Ouvide agora, senhores, uma história de pasmar” (Garrett, 1851: 89). Como se
pode observar, trata-se de uma abertura atípica no contexto do romanceiro tradicional,
mas, pelo contrário, um tópico recorrente na literatura de cego.
16
Veja-se como exemplo deste tipo de metamorfose, a versão publicada por Lima, 1977:
110-111.
17
“Il était un petit navire” é o título que assume esta balada no Canadá, onde terá
chegado a partir de França e onde se converteu ao repertório musical infantil. Na verdade,
aqui o drama da falta de víveres no barco é resolvido através da invocação da Virgem, que
realiza o milagre da aparição de peixe para salvação da tripulação, com perda significativa
da tensão narrativa.

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A propósito do romance tradicional «Nau Catrineta»:
peregrinações no tempo e no espaço 89

solução para evitar a morte colectiva da tripulação da nau e do seu capitão


é frouxamente resolvida pelo aparecimento de um barco no horizonte:
o maravilhoso encontra-se, portanto, ausente. Não há dúvida, contudo,
pelas semelhanças ao nível da organização narrativa até ao desenlace
(barco à deriva, fome extrema, canibalismo iminente, capitão que pede a
um marinheiro para subir ao mastro), que se trata da mesma balada18 .
O devir do tempo e a progressão no espaço, a partir de um epicen-
tro localizado muito provavelmente no coração da Europa, pelos motivos
que acabámos de verificar, ditaram e continuarão a ditar a adaptação de
“Nau Catrineta” ou, se preferirmos, “The Good Ship Catherine”, “La courte
paille” ou qualquer outra designação que possamos adotar, à tradição oral
das comunidades que a sentem como sua.
Por último, a fim de reforçar a ideia da filiação entre o romance pe-
ninsular e a balada europeia que narra a tragédia da nau perdida sem
mantimentos, observemos por fim o comportamento discursivo das diver-
sas tradições, uma vez que verificámos já como, do ponto de vista fabu-
lar, persistem semelhanças suficientes apesar da natural variação que é
apanágio da tradição oral. E notaremos como a memória do discurso tra-
dicional consegue resistir de forma impressionante aos fatores tempo e
espaço, através de uma pequena seleção de casos.
Analisemos, para o efeito, a sequência narrativa em que se dá conta da
fome a bordo, que, nalgumas versões portuguesas mais afastadas da vul-
gata (insulares) faz menção ao sacrifício de animais, recurso que também
já se esgotou para a tripulação da nau Catrineta.

Não tinham já que comer, nem tão-pouco que manjar;


já mataram o seu galo que tinham para cantar,
já mataram o seu cão que tinham para ladrar.
(Braga, 1906: 26)

Numa versão inlgesa lê-se algo muito semelhante, o que faz supor
que este consiste num elemento ancestral comum que entretanto perdeu
18
Gostaria de poder reforçar estas afirmações com exemplos textuais de versões in-
glesas que as confirmam (e que são muitas), o que por motivos de espaço não me posso
permitir. Atentemos, a título ilustrativo, nos poemas publicados por Gilchrist, apud Lima,
1954: 168 e 169 e por Kinsley, 1989: 678-679.

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90 Sandra Boto

vigor na tradição portuguesa, tendo sobrevivido apenas em zonas com uma


tradição oral por definição mais conservadora e arcaica, como a insular:

The cats and dogs how they did eat them,


hunger providing to them severe;
(Gilchrist, apud Lima, 1954: 168)

Outro caso de convergência discursiva com a tradição europeia: numa


versão francesa, lê-se que o marinheiro, ao avistar terra, grita: “- Je vois
la tour de Babylone, / Barbarie de l’autre coté” (Davenson, apud Lima,
1954: 167). As semelhanças são tão evidentes com uma versão recolhida
na Ilha da Madeira, onde o gajeiro pronuncia as seguintes palavras, que
dir-se-ia terem sido recolhidas na mesma região19 : “-Alvíssaras, senhor,
alvíssaras lhe quero dar! / As torres de Bambelona eu lá nas vejo alvejar”
(Ferré/Boto, 2008: 549)
Poderíamos aduzir muitos casos mais. Contudo, o que importa aqui
reforçar, com a comparação entre estes fragmentos textuais, é que a ori-
gem da balada europeia e do romance português terá sido comum e muito
anterior aos Descobrimentos portugueses, contrariando-se deste modo a
teoria nacionalista que Portugal teceu sobre este tema da literatura de
tradição oral. Dever-se-á à sua peregrinação no tempo e no espaço as
variantes introduzidas, que mais não são do que a adequação do poema às
comunidades que o cantam. No caso português, a História, a própria lo-
calização geográfica e o entendimento da figura modelar do capitão como
espelho comportamental de um povo de referências marítimas justificam
plenamente a apropriação e a popularidade desta balada entre nós.

19
É importante esclarecer que, em Portugal continental, a resposta do gajeiro difere
substancialmente desta madeirense que citámos, condicionada que se encontra ao discurso
vulgata. “Já vejo terras de Espanha, areias de Portugal” (Garrett, 1851: 91) é, com ínfima
variação, a resposta-padrão do gajeiro ao capitão da nau Catrineta.

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QUENTAL, Antero de (1883). Tesouro Poético da Infância. Porto:
Ernesto Chardron.

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O Turista acidental:
o cinema como lugar da memória

Mirian Tavares

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais


Universidade do Algarve
Investigadora do CIAC

Resumo: Através da análise de três filmes (Asas do Desejo; Tangos – o Exí-


lio de Gardel e Terra Estrangeira) que fazem da nostalgia o seu tema central,
proponho uma leitura que ressalta o caráter fragmentário do cinema. As per-
sonagens destes filmes estão longe de casa e, por vários motivos, convertem-se
em turistas acidentais. Bazin, no texto “Ontologia da imagem fotográfica”, afir-
mava que a fotografia era capaz de captar a realidade e assim “salvar o ser pela
aparência” – e ressaltava: “Não se acredita mais na identidade ontológica de
modelo e retrato, porém se admite que este nos ajuda a recordar aquele e, por-
tanto, a salvá-lo de uma segunda morte espiritual.” Podemos dizer que a imagem
surge na arte para salvar a todos da morte certa do esquecimento. Portanto, o
cinema funciona como o medium ideal para traçar trajetórias de lembranças, e
para mostrar, à sua maneira, como a nossa relação com o mundo é construída
de percursos que vão sendo justapostos na tentativa de recriar, pela imagem e
através dela, tudo aquilo que se deixou para trás.

Palavras-chave: Cinema; Memória; Turistas Acidentais.


94 Mirian Tavares

Introdução

Colecionador de memórias, não deixo o tempo volatizar-se:


reinvento o passado disfarçado de futuro,
recolho em fotos e pinturas as paisagens do olvido,
restauro com cinzel as lembranças dos velhos,
e não admito que a nostalgia suprima esperanças.
Frei Betto

O cinema, pródigo criador de imagens, serviu em muitos momentos


para suprir, de alguma maneira, ausências. O pintor surrealista belga
René Magritte criou uma imagem que se tornou emblemática para toda
uma geração: a pintura de um cachimbo seguida da frase ceci nes’t
pas une pipe. A contradição aparente entre texto e imagem é resolvida
aquando nos apercebemos que, de facto, não há contradição: a imagem
de um cachimbo não é o objeto. Desta maneira funciona o cinema, dado
o caráter de realidade que se imprime na imagem, desde o surgimento
da fotografia, temos a sensação de estar a espreitar o mundo quando o
que temos diante de nós são apenas sombras, que representam os ob-
jetos captados pela câmara. Mas as imagens/sombras podem fazer-nos
experienciar sabores e cheiros, como as famosas bolachas de Madeleine
que habitaram o imaginário (e os sentidos proustianos), uma imagem (real
ou virtual) serve como ponto de partida para um encontro e/ou reencon-
tro com algo que já não está, que nos falta, que foi nosso ou nunca nos
pertenceu. Conforme André Bazin, “Não se acredita mais na identidade
ontológica de modelo e retrato, porém se admite que este nos ajuda a re-
cordar aquele e, portanto, a salvá-lo de uma segunda morte espiritual”1 . A
imagem é criada fundamentalmente, para salvar a todos da morte certa do
esquecimento. Desta maneira o cinema funciona como o medium perfeito
para traçar trajetórias de lembranças, como um álbum de recordações, e
serve ainda, para revelar o caráter fragmentário da nossa relação com o
mundo, assim, alguns realizadores, em vários momentos de suas cinema-
tografias, decidiram traduzir em imagens essa maneira especial de estar
1
André Bazin, O Cinema, São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 20.

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O Turista acidental: o cinema como lugar da memória 95

no mundo, que não existe por si mesmo, mas é o resultado da nossa


perceção/invenção.
Em alguns momentos a necessidade de reinventar o espaço torna-
se mais premente, como por exemplo, quando se está longe, deslocado,
desterritorializado. Quando se é um “turista acidental” levado, por vários
motivos, a sair do seu lar e a partir para outras terras que poderão e/ou
deverão tornar-se uma nova casa. Ao contrário dos turistas do costume
que viajam em busca da alteridade, esses buscam o mesmo no outro –
pedaços reconhecíveis de uma história que ficou para trás.
“Moro no Menino de Deus, do qual Porto Alegre é apenas o que há
em volta” – o escritor Caio Fernando Abreu, que viveu num autoexílio
dentro do próprio país, fala de sua cidade, que não é o todo que está em
volta, mas seu cantinho, seu bairro, seu microcosmo. E assim decifra a
nossa relação com a cidade: ela é metonímica. Criamos a nossa própria
cartografia, composta de fragmentos, que montamos através do traçado
do nosso desejo. Saio do bairro se meu desejo está além, mas minha
casa, minha cidade é bem mais pequena e circunscrita não só geográ-
fica mas também emocionalmente. Há em todos nós, em maior ou menor
grau, uma relação telúrica com o lugar que nos dizem ser o nosso, pátria,
terra, casa. E quando erramos por outras terras, sentimo-nos solitários
ou estrangeiros.
Os filmes de Wim Wenders, por exemplo, estão povoados de turistas
acidentais: uns deixaram sua cidade natal e partiram, e outros, nunca ti-
veram casa, mesmo quando nelas viviam. A arte, conforme Lyotard, não diz
o indizível, mas diz que não pode dizê-lo. Proponho então um percurso
por três cidades, vistas por cineastas de origens diversas, cujos filmes
tratam de personagens deslocados, fora do sítio, estrangeiros. As perso-
nagens carregam consigo a nostalgia que se torna parte de sua essência
e veem os novos lugares com olhos de quem procura um reencontro. O
cinema, que não pode dizer o indizível, mostra. Revela através da sua
estrutura, da sua essência de fragmentos que são recompostos, a situação
das personagens que sentem uma dor que não pode ser sublimada e que
se tornam habitantes, muitas vezes invisíveis, destas cidades – Berlim,
Paris e Lisboa, metrópoles que acolhem sonhos e sonhadores. Há que se
falar da própria metrópole, “armada por uma nova trama de circuito de
transporte e comunicação, rasga-se em todas as direções (. . . ) Ao avançar

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96 Mirian Tavares

a metrópole deixa um vácuo atrás de si”2 . As cidades, com suas particula-


ridades e idiossincrasias, possuem em comum esta voracidade que a tudo
devora, esta velocidade que implica aquele que nela está, a capacidade
de síntese: reconstrui-la a partir de pedaços esparsos, de vazios.
A cidade é construída através da montagem que faço com pedaços
dela mesma e com outros tantos que já trago dentro de mim. Vivemos
numa cidade, que é nossa, onde conhecemos os que passam e cada canto
parece ser um velho amigo, só que por alguma razão, seja ela qual for,
passamos a errância e acabamos por parar em outras cidades que outrora
eram apenas um sonho, um desejo que se torna real deixando assim de
ser desejo. E aquela cidade, lá no fundo de nós, que ficou para trás,
apodera-se deste novo espaço, e cresce adquirindo a aura da distância,
como as histórias do marinheiro de Benjamin – ela é agora o que já não
tenho.

Anjos sobre Berlim

Em 1987, no filme Der Himmel über Berlin, Wenders mostra-nos alguns


anjos que vagueiam sobre uma cidade desfeita. São seres perdidos e an-
gustiados, que como as personagens do realizador, estão longe de casa,
não pertencem a nenhum lugar. Talvez a um céu imaginário. Assim, Wen-
ders, que é um errante, perde-se em Berlim, cidade que adotou como sua,
trazendo seres invisíveis que pousam sobre as coisas e estão ao lado das
pessoas mas ninguém os vê. São improváveis anjos que cuidam dos ho-
mens que, há muito, já não sabem cuidar de si mesmos. A cidade é-nos
mostrada através de fragmentos, de longos plongées que apresentam o
mundo visto de cima, olhado por estes seres dotados de uma espécie de
daltonismo profundo, pois não conseguem divisar as cores: como é que
uma cidade cortada ao meio, como Berlim na altura, cujos monumentos se-
midestruídos funcionam como memória constante de uma ferida que ainda
não sarou, pode ter cores? Pode almejar um céu azul?
2
Nelson Brissac Peixoto, “A Cidade Desmedida” (www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/bras
mitte/ portugues/cidadedesmedida).

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O Turista acidental: o cinema como lugar da memória 97

O olhar do realizador, transmitido por seus anjos, é amargo, mas ao


mesmo tempo, esperançoso. E a esperança surge como uma espécie de
redenção às avessas, um momento mágico onde o céu e a terra se unem
através da queda de um anjo. Esta não é a única passagem bíblica do
filme. A Carta de São Paulo aos Coríntios é citada para lembrar a todos
que é preciso voltar a infância, idade da inocência, para que possamos
finalmente começar de novo. Voltar ao ponto de partida, única fonte de
salvação. E o anjo caído de Wenders, ao contrário do bíblico, busca sua
própria condenação, não por tentar desafiar o Criador, mas por amor. Amor
a uma criatura frágil e demasiado humana, que vagueia incerta pelas ruas
de Berlim.
A cidade, compósita de fragmentos, nunca nos é mostrada inteira, mas
aos bocados. Vemos ruas e praças destruídas, vemos um muro que serve
metaforicamente para mostrar a enorme barreira que há entre as criaturas
que vivem numa metrópole como Berlim. Todos estão muito próximos, mas
terrivelmente distantes e condenados a uma espécie de solidão que só
poderá ser sanada, de acordo com o filme, se ultrapassarmos a barreira,
se pularmos o muro ou dermos um salto para o infinito.
Como num filme, a cidade não existe sem uma montagem, sem alguém
que junte os fragmentos e a recomponha. E os anjos, que pairam sobre
tudo, já não conseguem perceber nada. De tanto ouvir, ficaram surdos,
de tanto ver, já não enxergam. Seu mecanismo de atenção diluiu-se e a
cidade converte-se em um marulhar constante de murmúrios indecifráveis
e, destes, eles filtram apenas a dor. Para participar da cidade, ser parte
dela, integrar-se, é preciso estar preparado para a queda. E qual estran-
geiros vagueiam pela cidade que agora concreta, torna-se uma estranha,
com novos traçados que deverão ser aprendidos, palmilhados e descober-
tos aos poucos. Vê-se a cidade de baixo e ela não é a mesma – a grande
distância entre o sonho e a realidade é mostrado de uma maneira sublime,
pensado no sublime como o abismo que nos espreita.
O anjo caído de Wenders é uma recorrência em seu cinema, há muitos
anjos caídos e sobretudo deslocados, sem destino. Não importa a cidade,
podemos ser estrangeiros no lugar mesmo que nos viu nascer. E aí, a
cidade que é nossa, deixa de nos pertencer. É uma estranha cuja carto-
grafia não dominamos e acabamos por nos perder em um labirinto interior
que se projeta na urbe que nos envolve.

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98 Mirian Tavares

Não importa ao exilado que as cores sejam falsas. Hão-de


jurar, diz ele, que é Paris

Paris, destino dos poetas e dos amantes. Em 1985, o argentino Fernando


Solanas mostra-nos no filme Tangos, el exilio de Gardel, outro lado desta
cidade de sonho, convertida agora no destino dos que foram exilados pela
ditadura do seu país natal São, de alguma maneira, anjos caídos, fora de
sítio e até foras-da-lei. Não são seres imaginários, mas retirados de uma
dura realidade que extrapola o ecrã e que, ao ser novamente encenada,
torna presente na memória daqueles que porventura esqueceram, uma face
amarga da vida de algumas nações.
Solanas mostra-nos pessoas que partiram porque não podiam ficar.
Paris era o destino sonhado. Mas para eles a cidade é uma estação –
onde se chega, mas também se parte. Um lugar no meio, entre dois des-
tinos. Um telefone que traz as vozes que ficaram e o desejo de fazer de
Paris a Buenos Aires natal. Paris não é o destino turístico dos amantes,
sejam eles de qualquer espécie, aqui é um lugar no meio – estão exilados,
não podem voltar. Os turistas comuns são também pessoas que chegam e
partem, que se relacionam com a cidade de uma maneira impermanente.
O que marca profundamente a diferença entre estes e os outros é que
os turistas do costume percorrem a cidade como se essa fosse um cartão
postal: algo já previsto, sem surpresas, sem recantos, sem nostalgia, pois
sabem que a sua casa está lá, em outro lugar que é o seu ponto de che-
gada e partida. Mas os outros, de que fala o filme de Solanas, chegaram
e não sabem se vão partir, mesmo que não desejem ficar. Não perten-
cem à cidade e vivem à margem com os olhos voltados para a estação –
partir. . . Não há o gozo do sonho, há a angústia e a nostalgia embalada
pelos tangos de Gardel.
O realizador faz uma estranha homenagem a uma cidade que acolhe
seus personagens que querem e não querem estar ali. Que querem trazer
para junto de si a cidade que ficou para trás. Assim vão reconstruindo
uma Paris que só existe dentro de cada um deles. O exílio torna-se menos
duro quando a memória reinventa o espaço.

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O Turista acidental: o cinema como lugar da memória 99

A cidade, neste filme, não é mostrada de maneira fragmentada. Está


ali – em toda a sua inteireza, pronta para ser habitada. Mas para aqueles
que chegaram de uma terra distante, que ficou lá, do outro lado do atlân-
tico, é uma cidade construída de ausências. Ela existe porque a outra,
aquela que verdadeiramente lhes pertence, não está ao alcance da mão.
E é preciso não esquecê-la, trazê-la para dentro deste espaço vazio, que
não está em Paris, mas dentro de cada um deles. Por isso o telefone,
milagre do mundo moderno, vai trazendo vozes, sons, vai, de uma maneira
metonímica, reinventando pedaços de algo que ficou para trás.
O cinema aqui funciona como espaço de representação da memória:
através dos tangos de Gardel, Buenos Aires, o grande ausente, é-nos
apresentada, e através das ruas e casas de Paris, dos seus subúrbios
e da estação, coloca o dedo numa ferida que ainda não cicatrizou, a
ferida daqueles que se tornaram turistas “a força”, e que não querem, nem
pretendem, fazer da nova cidade um novo e definitivo lar.

Eu estou tão cansado, mas não para dizer que estou indo
embora

Walter Salles, realizador brasileiro, realiza uma viagem à Lisboa no filme


Terra Estrangeira (1996). Suas personagens escolhem Lisboa como des-
tino para o autoexílio após uma grande desilusão com seu próprio país.
Lisboa é estrangeira, mas é também a cidade mãe, centro de um país que
partiu para o atlântico e desbravou uma nova-velha terra. É, de alguma
maneira, uma terra não estrangeira, uma doce recordação, um dejá-vu. “Ai
como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa para te aconchegar
ao meu seio e te poupar esta futuras dores dilaceradas”3 .
Como no filme de Wenders, a ausência de cores marca esta Terra
Estrangeira. Aqui porém não há tampouco anjos, todos são igualmente
“daltónicos”, a cor há muito que se perdeu. No cinema, o uso do preto
e branco está associado ao registo documental. E no fundo, o filme de
Salles, mesmo que percorra caminhos subjetivos, é um documento sobre
3
Trechos retirados do conto “Dama da Noite” de Caio Fernando Abreu.

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100 Mirian Tavares

um país e uma época, sobre o sentir-se estrangeiro na sua própria casa e


sobre a necessidade de encontrar raízes, mesmo que para isso, tenha que
se atravessar o mar.
Ao chegar à Lisboa, aqueles que vieram, talvez para ficar, sentem-
se como se estivessem “por fora do movimento da vida” e parece que
desaprenderam “a linguagem dos outros”. Há um código especial que
eles não conhecem. Há uma palavra-passe que não lhes foi fornecida. E
a cidade, tão grande, faz com que eles se misturem ao mundo dos invisíveis,
que passam pelas ruas e ninguém os vê. Ninguém cumprimenta, ninguém
conhece. É uma existência que nega a própria existência. É como se o
corpo se fundisse com o passeio e as ruas e os carros e a poluição. E
os olhos do invisível, não vê a cidade nova que se está a sua frente, mas
vê o porto, o atlântico, tão imenso, atravessado na garganta de uma dor
que não consegue falar. E o filme mostra. Lisboa fragmentada, marginal,
magnífica quando distante, intangível.
No fim do filme, as personagens correm para a praia. E um navio ao
longe parte. Ou chega. Partir e chegar, como diz a canção, são só dois
lados de uma mesma viagem. “Moro no menino de Deus (. . . )”. Todos
moramos no Menino de Deus, de alguma maneira. E o mundo é apenas o
que há em volta.

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Referências Bibliográficas

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nica” in Sobre arte, técnica, linguagem e política, Lisboa, Relógio D’Água,
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Charney, Leo e Schwartz, Vanessa R.: O cinema e a Invenção da Vida
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Huyghe, René: O poder da imagem, Lisboa, Edições 70, 1998.
Lyotard, Jean François: O pós-moderno explicado às crianças. 2o Ed.
Lisboa, Dom Quixote, 1993.
Peixoto, Nelson Brissac, “A Cidade Desmedida”, <ww.sescsp.org.br/se
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Xavier, Ismail (org.): A experiência do cinema, Rio de Janeiro, Graal,
1983.
O Itinerário Espiritual do Herói
(Metamorfoses, de Apuleio, e Peregrinação, de
Fernão Mendes Pinto)

António Manuel de Andrade Moniz

Professor aposentado da FCSH-UNL


Investigador do CHAM, FCSH.UNL e UAÇ e do CLEPUL

Resumo: A novela Metamorfoses XI, ou Asinus Aureus (Asno de Ouro), como


é conhecida desde S. Agostinho (apesar da crítica, desde o livro de Winckler),
é a obra mais importante de Apuleio (c. 125-c. 190). É uma novela compósita,
com variadas funções, como o divertimento (delectare), de acordo com as fabu-
lae milesiae, com uma mensagem filosófica e religiosa de redenção. O herói é
submetido a diferentes provações como meio de atingir a conversão espiritual. A
maior provação foi a sua metamorfose na figura de um burro, através da qual ele
aprendeu a verdadeira condição humana. A sua conversão religiosa ao culto de
Ísis mostrou-lhe a dependência humana da divindade. Como demonstrou Nancy
Shumate (1996), a novela reflete o modelo básico de uma narrativa de conversão
(‘conversion tale’), como as Confissões, de S. Agostinho e a Confissão, de Tolstoi.
Mas, mais importante do que o ponto de vista religioso, é o da metamorfose
espiritual, da qual resulta o conhecimento íntimo e o do mundo. Neste contexto,
Asinus Aureus significa a iluminação espiritual, a suma dos ensinamentos filo-
sóficos coligidos da tradição grega, especialmente de Platão, dos Estoicos, dos
Epicuristas e dos tragediógrafos. Erotismo, divertimento, amplificatio narrativa
e mensagem espiritual dão-se as mãos nesta intrigante e fascinante novela. De
facto, os críticos encontram-se divididos ainda hoje acerca da sua hermenêutica.
Como Apuleio, a monumental obra de Fernão Mendes Pinto seduz e divide
os críticos, ainda hoje. A Peregrinação, postumamente publicada em 1614, relata
as aventuras e provações do herói no Extremo Oriente, de 1537 a 1558. É um
104 António Manuel de Andrade Moniz

misto de muitas histórias de aventura, guerra, pirataria, roubo, saque, naufrágio,


festas religiosas e palacianas. O itinerário do herói é clarificado, no capítulo
I, como uma descoberta da vocação humana pela ascese cristã, em oposição ao
Budismo, Taoísmo e Hinduísmo, nos capítulos seguintes.
Ambas as obras representam um contributo especial às respetivas culturas
como via de descoberta espiritual, felicidade autêntica e aventura humana, atra-
vés da conciliação entre a tradição e a abertura mental às culturas exóticas.
Aprender com a provação humana é a mensagem espiritual destas obras.

Palavras-chave: Herói; aventura; metamorfose espiritual; condição humana.

Introdução

A novela de Lúcio Apuleio (c. 125-c.190) Metamorphoses XI, mais conhe-


cida, desde S. Agostinho, como Asinus Aureus (O Burro de Ouro), é a sua
obra mais importante. Novela compósita, com variadas funções retóricas,
como o divertimento (delectare), a instrução ou ensinamento (docere) e o
apelo à vida e à ação (mouere), tem tido, ao longo da História, notável
acolhimento dos leitores, ao mesmo tempo que, pela complexa composi-
ção dos seus ingredientes literários, tem dividido os críticos acerca da sua
hermenêutica.
De modo semelhante, a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto (obra
póstuma, publicada em 1614), seduz os leitores e divide os críticos ainda
hoje, pela complexidade dos respetivos ingredientes e do seu estilo varia-
do.
Seguir o percurso fundamental dos protagonistas destas duas obras,
na focalização do respetivo itinerário espiritual é o objetivo deste estudo,
importante para se reavaliar a rica dimensão humana da sua mensagem,
escondida na roupagem metafórica e simbólica da narrativa das aventuras
dos seus heróis.

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O Itinerário Espiritual do Herói (Metamorfoses, de Apuleio, e
Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto) 105

1. O Asinus Aureus

Nascido em Madaura, cidade romana do Norte de África, Lúcio Apuleio


viveu entre os governos dos Imperadores Adriano (117-138 d.C.) e Marco
Aurélio (161-180 d.C.). Era membro de uma família de decuriões (ordo
decorionum – uma ordem senatorial de nível local, elite dirigente das
províncias romanas). Como ele próprio nos informa (Apologia, XXIV, 9),
ocupou também o cargo do pai no Senado da sua cidade natal.
Envolto em uma atmosfera de religiosidade, misticismo e magia, Apu-
leio mostra-nos, através dos seus textos, ter sido um filósofo ligado ao
misticismo típico do médio-platonismo do século II d.C.. Iniciando-se nos
cultos mistéricos de vários deuses da religiosidade romana, exerceu fun-
ções sacerdotais em Cartago, estando o seu nome ligado à tradição da
magia romana, como prova a acusação de que foi alvo na cidade de Oea,
por volta de 159 d.C.
Ernst Bickel, depois de referir a oposição feita por S. Jerónimo, S.
Agostinho e Lactâncio, entre Apuleio e Jesus Cristo, como faziam com o
místico grego Apolónio de Tiana (cf. BICKEL, E., 1987, 245), conclui que
Apuleio pode ser considerado um precursor de certos aspetos místicos da
Idade Média, por se ter tornado uma figura mitológica ligada à magia (cf.
Ib., 249). De qualquer modo, a magia, sempre presente na História de
Gregos e Romanos, designadamente em festas religiosas, além da necro-
mancia e das adivinhações, está intimamente ligada à religião, não sendo
fácil distinguir as respetivas fronteiras. Segundo Paul Harvey (HARVEY,
P., 1998, 321), a religião oficial repudiou a magia, de um modo geral,
mas os rituais mágicos foram introduzidos nos ritos de deuses específicos,
como o de Zeus.
História grega, escrita ao sabor das fábulas de Mileto, a novela de
Apuleio narra as aventuras de Lúcio, que, para satisfazer a sua curiosi-
dade, resolve dirigir-se à Tessália para aprender as artes mágicas. Coisas
maravilhosas e incríveis são narradas pelos seus companheiros de jornada,
a propósito das feiticeiras Méroe e Pântia.
Em Hipata, o herói, vendo a mulher do hospedeiro Mílon transformar-
-se em ave, tenta fazer o mesmo, mas, por engano, toma o ingrediente

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106 António Manuel de Andrade Moniz

errado e transforma-se em burro. De lá é levado pelos ladrões que roubam


o hospedeiro e começam as suas aventuras mais incríveis.
Nos livros IV-VI, perante as lágrimas de um donzela raptada pelos
ladrões, a mãe destes conta-lhe a fábula de Eros e Psique.
No livro VII, Lúcio, metamorfoseado em burro, ouve contar a um dos
ladrões que ele é incriminado no assassínio de três homens e no roubo
do hospedeiro Mílon.
Escapando duas vezes à morte, no livro VIII, Lúcio é vendido a dois
irmãos, no livro X, acabando por fugir do teatro onde era objeto de expo-
sição e festa.
O livro XI remata a novela com a notável quebra do encantamento
mágico da metamorfose de Lúcio em burro, através do culto à deusa Ísis:
na procissão à Lua, arrebata as rosas das mãos de um sacerdote, come-as
e é devolvido à forma humana. Maravilhada com o milagre de tão notória
transformação, a multidão reconhecia em tal feito o dedo da deusa e o
mérito do contemplado, favorecido agora com o dom de um novo nasci-
mento (cf. Cap. II). Um dos sacerdotes, cobrindo a sua nudez humana
recuperada, identificava a graça recebida, já que, tendo padecido muitos
e diversos trabalhos com grandes tempestades da fortuna, veio ao porto
da saúde e ao altar da misericórdia; não se aproveitou de sua linhagem e
da dignidade da sua pessoa, nem da ciência que tinha; mas, com a incon-
tinência de sua mocidade, posto em vícios de homens servos e de pouco
ser, reportou o prémio da sua curiosidade sem proveito; a cega fortuna,
pensando atormentá-lo com péssimos trabalhos e perigos, trouxe-lhe com
sua malícia, não por ela vista, a esta religião bem-aventurada (cf. Ib.).
Em sinal de gratidão, Lúcio consagra-se ao culto de Ísis e Osíris, com
votos de castidade. Em Roma, é colocado no colégio dos sacerdotes.
Como demonstrou Nancy Shumate (1996), a novela reflete o modelo
básico de uma narrativa de conversão (‘conversion tale’), como as Con-
fissões, de S. Agostinho e a Confissão, de Tolstoi. Mas, mais importante
do que o ponto de vista religioso, é o da metamorfose espiritual, da qual
resulta o conhecimento íntimo e o do mundo. Neste contexto, Asinus Au-
reus significa a iluminação espiritual, a suma dos ensinamentos filosóficos
coligidos da tradição grega, especialmente de Platão, dos Estoicos, dos
Epicuristas e dos tragediógrafos. Erotismo, divertimento, amplificatio nar-

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O Itinerário Espiritual do Herói (Metamorfoses, de Apuleio, e
Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto) 107

rativa e mensagem espiritual dão-se as mãos nesta intrigante e fascinante


novela.
Deste modo, a provação torna-se o meio mais eficaz de uma conver-
são pessoal, através da introspeção, da meditação, do retiro espiritual. No
caso de Lúcio, a maior provação a que foi submetido foi a da metamorfose
em asno. Nessa condição, pôde observar o comportamento humano, as
suas prevaricações e maldades, o caminho da injustiça. Compartilhando
as duras dificuldades que um quadrúpede suporta, mas mantendo as fa-
culdades mentais do ser humano, pôde distanciar-se desse comportamento
iníquo e, em alternativa, consagrar-se a uma vida devotada à divindade.
A novela de Apuleio, inserindo-se nas fábulas milesianas, cujo objetivo
fundamental era o divertimento, ultrapassa, assim, esse objetivo literário,
para projetar o leitor, a partir do riso e da fruição estética da narrativa,
noutros objetivos retóricos, como a aprendizagem da vida (docere) e a
conversão espiritual (mouere).

2. A Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto

A Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, relata as aventuras e provações


do herói no Extremo Oriente, de 1537 a 1558. É um misto de muitas histó-
rias de aventura, guerra, pirataria, roubo, saque, naufrágio, festas religio-
sas e palacianas. É um texto compósito de romance de aventuras, relatos
épicos, elegíacos, satíricos, cronísticos, trágicos e místico-sapienciais (cf.
MONIZ, A., 1989, 1999).
A amplitude espácio-temporal das provações do sujeito peregrinante
constitui um repositório argumentativo ou ilustrativo do seu ponto de vista,
como que a atestar a autoridade moral do seu magistério literário: “nas
partes da India, Etiopia, Arabia feliz, China, Tartaria, Macassar, Samatra
e outras muitas prouincias daquelle oriental arcipelago, dos confins da
Asia” (PINTO, F. M., 1983, cap. I, 13).
A feliz expressão elegíaca “pobre de mim”, num conjunto de sete, marca
o mesmo número, entre outras, de provações do aventureiro, geralmente
chamado pícaro, como se todos os que se oferecem “a toda ventura, ou má
ou boa” (Ib., cap. I,15), necessariamente o fossem.

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108 António Manuel de Andrade Moniz

A pobreza da casa paterna, característica comum da maioria dos com-


patriotas de então, é o móbil desencadeador de toda a aventura narrativa
da Peregrinação. Entre a utopia e a realidade, o eixo desejo/frustração
suscita, como no mito do eterno retorno, o ciclo permanente da intriga,
cujos polos são a ascensão e a queda. Na base da ascensão está a am-
bição, o sonho da riqueza, o paraíso terrestre: “rico em pouco tempo [. . . ]
era o que eu então mais pretendia que tudo” (Ib., cap. III,18). A queda
é a expiação, o castigo divino, o inferno terrestre. Vem o remorso e, com
ele, as lágrimas da miséria e da dor, da aflição e do medo, o desejo de
refazer a vida ao contrário. Mas, como no mito do pecado e da redenção,
a história não acaba aqui, pois a nova ambição desencadeia o círculo
vicioso da intriga.
Impressionisticamente interpretado por Aquilino Ribeiro como pseu-
dónimo do autor (cf. RIBEIRO, A., 1969, 223-248) e por António José
Saraiva como seu heterónimo (cf. SARAIVA, A. J., 1962, III, 366), a per-
sonagem António de Faria é apresentada pelo herói aventureiro como
embaixador do capitão de Malaca junto do rei de Sião (PINT0, F. M.,
1983, cap. XXXVI), destacando-se logo como um comandante corsário,
cuja pilhagem, apesar de, por vezes, parecer legitimada pelo narrador (cf.
Ib., cap. XXXIX), o denuncia como arquétipo do anti-herói renascentista.
De qualquer modo, tais denúncias evidenciam o distanciamento ideoló-
gico do narrador em face da personagem ao serviço da qual estará durante
dois anos (de 1540 a 1542), reservando a expressão elegíaca “pobre de
mim” como explicativa da sorte que presidiu à sua escolha para membro
da sua companhia (cf. Ib., cap. XXXVI).
O episódio do rapto da noiva chinesa (cf. Ib., cap. XXXVII), fazendo
parte da novela de aventuras que tem como protagonista António de Fa-
ria, é um misto de equívoco cómico e informação cultural, não podendo
desenraizar-se do contexto ético-pedagógico que a sátira mendesiana nos
oferece. O que, à primeira vista, pode parecer enquadrar-se numa esté-
tica picaresca, é algo que não pode fugir à análise profunda do exame de
consciência que o narrador quinhentista proporciona aos leitores sobre a
leviandade e os excessos da expansão portuguesa no Oriente. É o que
Eduardo Lourenço chama a “crítica cultural indirecta” (LOURENÇO, E.,
1971, II, XCI-CI), estratégia hábil do ponto de vista político, como fuga à
censura inquisitorial, que valoriza a estética do texto.

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Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto) 109

Um dos episódios satíricos mais desconcertantes, tanto pela profundi-


dade e justeza da sua mensagem, como pela surpresa da sua proveniência,
é o do roubo da lanteá do pai do Menino Chinês, um adolescente de doze
ou treze anos, no capítulo LV. A denúncia da dicotomia fé/vida, na pro-
fundidade das suas palavras, constitui o clímax desta alegoria satírica e
moralizante, numa linha humanista, tradicionalmente chamada erasmista,
que põe em causa o formalismo religioso, como encontramos também na
crítica vicentina, através da fala do Diabo à personagem-tipo do Sapa-
teiro, do Auto da Barca do Inferno: “Ouvir missa, então roubar / é caminho
per aqui” (VICENTE, G., A.B.I., vv. 334-335). O adolescente da Peregri-
nação, caricaturando sarcasticamente a hipocrisia religiosa, distancia-se
do Deus do seu interlocutor, falando como um profeta ou catequista da
mesma religião, através do anúncio do caminho da moral e do castigo
divino para os prevaricadores:

[. . . ] pois, entendey que o Senhor da mão poderosa não nos obriga


tanto a bolir cos beiços, quãto nos defende tomar o alheyo, quanto
mais roubar & matar, que saõ dous peccados taõ graues, quãto de-
pois de mortos conhecereis no riguroso castigo da sua diuna justiça
(PINTO, F.M., 1983, cap. LV, 154).

Mas é o episódio da profanação dos templos sagrados de Calemplui


(capítulos LXXVI-LXXVIII) que marca o ponto alto da sátira mendesiana,
numa alegoria cuja retórica é eloquente quanto à ilimitada insaciabilidade
humana. Desta vez, é um bonzo idoso, Hiticu, a personagem profética
que denuncia essa ambição. A ironia cósmica, a comparação dos “cães
esfaimados” e a hipérbole da cobiça a “toda a prata do mundo”, que “os
não poderá fartar” (cap. LXXVI) são ingredientes desta sátira mordaz,
enquanto a retórica da consciência ética, a pedagogia do diálogo e do
entendimento verbal, manifestam uma eficácia estratégica muito maior do
que a fortaleza das armas militares. O princípio da não-violência, na linha
do evangelho hinduísta do Bhagavad Gita, pregado por Mahatma Gandi,
justifica o intrigante conselho à fuga, não como pusilânime covardia, mas
como uma espécie de objeção de consciência dos nossos dias: “& por
isso ou fugy, ou chamay quem vos socorra, pois, por serdes religiosos, vos
não he dado tomardes na mão cousa que tire sangue” (Ib., cap. LXXVIII).
Não se trata, pois, de um ataque ou “farsa burlesca às aspirações da

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110 António Manuel de Andrade Moniz

ideologia de cruzada” (CATZ, R., 1981, 63), com a máscara ou travesti do


épico ibérico, como denunciou Rebbeca Catz, mas da mensagem budista e
cristã da não-violência. O castigo da divina providência à profanação do
sagrado, através do naufrágio que originará a devolução quase imediata
do sacrílego furto ao mar e a perda de António de Faria (cf. Ib.).
É em virtude deste sacrilégio que os nove sobreviventes do naufrágio
são levados à Justiça chinesa, cujo elogio é verberado através da alegoria
da Justiça e da misericórdia, como espetáculo de grandiosidade e rea-
lização da Verdade e do Bem. As lágrimas com que os réus acolhem a
notícia da revisão da sentença e a respetiva comutação da pena de cati-
veiro perpétuo para um ano de degredo nas obras de Quansi exprimem o
reconhecimento pela prática misericordiosa a eles aplicada: “ainda que
a ouuimos com assaz de lagrimas, por vermos o miserauel estado a que
eramos chegados, todauia a ouuemos por menos mâ que a primeyra” (Ib.,
cap. CXV, 334).
O itinerário do herói é clarificado, no capítulo I, como uma descoberta
da vocação humana pela ascese cristã, em oposição ao Budismo, Taoísmo
e Hinduísmo, nos capítulos seguintes.
Revendo o caminho percorrido na sua peregrinação asiática, o narra-
dor, num misto de autoelegia e autoepopeia, muito pouco compatível com
a tradicional leitura picaresca, sugere-nos a postura sapiencial de quem
se comporta perante a adversidade com toda a serenidade monacal, cristã
ou zenbudista, e não de um ato meramente lúdico, resultante da narração
de pilhérias e aventuras fantásticas, cujo herói seja um pobre diabo, como
é timbre da configuração do herói pícaro.
À autolamentação, o sujeito opõe a visão despojada de quem agra-
dece o dom fundamental de existir. As oposições mocidade/maturidade,
queixumes/graças, ventura/Deus, males passados/bem presente marcam a
reflexão: ao momento da mocidade parece corresponder certa precipitação,
centrada num masoquismo narcisista (queixumes, eu) e certa irresponsa-
bilidade pagã (ventura), que redundou em infelicidade e frustração (males
passados); no momento da maturidade, porém, (com a idade), o Eu volta-
-se para os Outros (as filhas), e, numa compreensão global da existência,
a que não é alheia uma visão de fé, ou sentido de Deus, encontra dispo-
nibilidade psicológica e afetiva para dar graças, em vez de se consumir
em queixumes, como na poesia elegíaca.

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O Itinerário Espiritual do Herói (Metamorfoses, de Apuleio, e
Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto) 111

É desta maturidade psicológica que brota a intenção ético-pedagógica


da sua escrita memorialista:

Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos & grades tra-
balhos & infortunios q por mim passarão, começados no principio
da minha primeira idade, & continuados pella mayor parte, & mi-
lhor tẽpo da minha vida, acho q com muita razão me posso queixar
da vẽtura que parece q tomou por particular tenção & empresa sua
perseguirme, & maltratarme, como se isso lhe ouuera de ser materia
de grande nome, & de grande gloria, porque vejo que não contente
de me por na minha patria [. . . ] em tal estado q nella viui sempre
em miserias, & em pobreza, & não sem alguns sobresaltos & perigos
da vida me quis tambẽ leuar às partes da India, onde em lugar do
remedio q eu hia buscar a ellas, me foram crecendo com a idade
os trabalhos, & os perigos. Mas por outra parte quãdo vejo que do
meyo de todos estes perigos & trabalhos me quis Deos tirar sempre
em saluo, & porme em seguro, acho que não tenho tanta razão de
me queixar por todos os males passados, quãta de lhe dar graças
por este só bẽ presente, pois me quis conseruar a vida, para q eu
podesse fazer esta rude & tosca escritura, que por erança deixo a
meus filhos (porq só para eles he minha tenção escreuella) paraque
eles vejão nella estes meus trabalhos, & perigos de vida q passei no
discurso de vinte & hu ãnos em q fuy treze vezes catiuo, & dezassete
vendido, [. . . ] & daqui por hua parte tomem os homẽs motiuo de se
não desanimarem cos trabalhos da vida (Ib., cap. I, 13).

O contraponto do herói pecador, tipificado na personagem autorre-


presentada e no capitão-corsário António de Faria, é focalizado no papel
missionário do padre-mestre da Companhia de Jesus, Francisco Xavier,
cuja crónica-épica é colocada no epílogo da Peregrinação (capítulos CCIII
a CCIX). É este santo cristão o arquétipo que Fernão Mendes Pinto con-
figura: no despojamento da sua figura e da sua vida, devotada à causa do
Evangelho; no desejo de martírio; na capacidade realista de se aculturar
em relação aos povos junto de quem realizou a sua missão espiritual (cf.
MONIZ, A., 1994).
De acordo com a aceção metafórica do título da obra, de conotação
religiosa, a deambulação do sujeito peregrinante pela vastidão asiática
é marcada por uma descoberta do mundo, inserida na filosofia e teosofia
orientais. É a aprendizagem da relativização da aparente solidez (“E

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112 António Manuel de Andrade Moniz

então se verà quão incertas saõ as cousas da China” – PINTO, F.M., Ib.,
cap. LXVI, 188), numa convergência com o taoísmo, a filosofia socrática
e a teoria quântica, do distanciamento dos bens mundanos e dos mal
adquiridos (“serem sempre meyo & caminho de desauenturas” – Ib., cap.
CXCII, 596), da expressividade semântica e espiritual do silêncio interior
(“o mais acertado será o silencio metido na alma que Deos em nòs pos” –
Ib., cap. CXXI, 352) e da visão fragmentária e ilusória do universo, como
se representa no escudo de armas de um nobre chinês:

Este monstro dezião que era figura do mundo que os Chins pintão ás
auessas, 6 porque todas as cousas saõ mentirosas, para desenganar
a os que fazem caso delle lhes diz tudo o que há em mym he assim,
como se dissesse, feito ás auessas, cos peis para cima & com a
cabeça para baixo (Ib., cap. LXXXIII, 233).

Herói versátil (polytropon), como Ulisses, vencedor das provas mais


duras e perigosas, como Héracles, reconhecido como bonzo, depois de
combatente e embaixador, marinheiro, mercador, cirurgião e médico, numa
acumulação progressiva de funções, como Rómulo, Fernão Mendes Pinto é
o arquétipo do Português aventureiro de Quinhentos e de todos os tempos,
o valente lusitano, popularmente designado “mestre de sete ofícios”, bem
patenteado na odisseia da emigração à escala planetária, mas também o
observador atento do Outro, o escritor original de uma obra complexa, de-
ficientemente entendida, mas sempre sedutora e causadora de estranheza
e perplexidade, na qual se cruzam os signos da pluralidade de géneros,
subgéneros e tipos de discurso, numa rica combinação de planos, histó-
rias e formas de comunicação e linguagem, do real ao imaginário, do não
literário ao literário.
Neste sentido, o elogio deste herói, feito, em 1951, por António Álvaro
Dória, permanece atual: “Nenhum [herói] me parece tão digno das aten-
ções dos homens de hoje – pelo menos dos que não atravessam o nosso
tempo desatentos às transformações caleidoscópicas desta era revolta –
como Fernão Mendes Pinto, o autor da Peregrinação (DÓRIA, A. A., 1951,
6).

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O Itinerário Espiritual do Herói (Metamorfoses, de Apuleio, e
Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto) 113

Conclusão

Ambas as obras (Metamorfoses e Peregrinação) representam um contri-


buto especial às respetivas culturas como via de descoberta espiritual,
felicidade autêntica e aventura humana, através da conciliação entre a
tradição e a abertura mental às culturas exóticas.
Através do discurso de primeira pessoa, cada um dos narradores reflete
sobre a condição que a Fortuna lhe deparou, numa linguagem que ultra-
passa a retórica do divertimento (delectare), para mergulhar no âmago da
condição humana através da contemplação e da apresentação de paradig-
mas de um itinerário espiritual do herói.
Aprender com a provação humana é a mensagem espiritual destas
obras: é através do sofrimento redentor que é possível reencontrar o equi-
líbrio humano perdido, ocupando a religião, em qualquer delas, um lugar
especial na sua configuração filosófica e humana.

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Referências bibliográficas

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Edições Cotovia, 2007.
BICKEL, Ernst, Historia de la Literatura Romana, Madrid, Editorial
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HARVEY, P., Dicionário de Literatura Clássica Grega e Latina, trad.
port., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.
LOURENÇO, E., “A Peregrinação e a crítica cultural indirecta”, in
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MONIZ, António, As Lágrimas na Peregrinação, de Fernão Mendes
Pinto (para um estudo semiótico, intertextual e sócio-cultural), disserta-
ção de Mestrado policopiada, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1989.
, “A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto na China” in O Ocidente
no Oriente através dos Descobrimentos Portugueses, Estudos Orientais,
III, Lisboa, Instituto Oriental / Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1992,
pp. 269-277.
, “A Evangelização do Japão na óptica de Fernão Mendes Pinto”, in O
Século Cristão do Japão, Actas do Colóquio Internacional Comemorativo
dos 450 anos de amizade Portugal-Japão (1543-1993), Lisboa, 1994, pp.
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, Para uma Leitura de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, Lisboa,
Editorial Presença, 1999.
O Itinerário Espiritual do Herói (Metamorfoses, de Apuleio, e
Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto) 115

PINTO, Fernão Mendes, Peregrinação, Lisboa, Imprensa Nacional-


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RIBEIRO, Aquilino, “Fernão Mendes Pinto e a sua máscara de pirata”,
in Portugueses das Sete Partidas (viajantes, aventureiros, troca-tintas),
Lisboa, Livraria Bertrand, 1969, pp. 223-248.
SARAIVA, António José, História da Cultura em Portugal, III, Lisboa,
Jornal do Foro, 1962.
SHUMATE, Nancy, Crisis and Conversion in Apuleius’ Metamorpho-
ses, University of Michigan Press, 1996.
VICENTE, Gil, “Auto da Barca do Inferno”, Obras Completas, Porto,
Lello & Irmão, 1962, pp. 217-247.

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Le thème du voyage dans Astérix:
altérité et «parodie des identités»1

Otília Pires Martins

Centro de Línguas, Literaturas e Culturas (CLLC)


Universidade de Aveiro

Résumé : Les innombrables voyages d’Astérix et d’Obélix (en Gaule ou à


l’étranger) mettent les deux héros en présence de l’Autre et mènent à la con-
frontation de la culture française avec les cultures étrangères. L’ensemble des
aventures auxquelles donnent corps Uderzo et Goscinny présente un traitement
parodique des identités (gauloise, française, étrangères) et propose, selon Ni-
colas Rouvière, “ une véritable utopie constructive du lien à l’autre ” car, quels
que soient les obstacles à la communication, il est toujours possible, à la fin, de
jeter des ponts pour mieux se comprendre.

Mots-clefs : voyages; identité; altérité; stéréotypes; bande dessinée.

***

“ Astérix, comme toutes les bandes dessinées, c’est du rêve, du


rire et de l’aventure. ”

(R. Goscinny, Le Journal du dimanche, 20.10.1974)


1
Le texte que je propose ici est inspiré, en grande partie, de ma lecture de l’ouvrage de
Nicolas Rouvière, Astérix ou la parodie des identités, Paris, Champs/Flammarion, 2008.
118 Otília Pires Martins

1. Introduction : La genèse d’Obélix

Astérix fêtera, dans quelques jours, ses 55 ans2 . La date officielle, retenue
pour figurer sur son “ acte de naissance ”, ce fut, en effet, le 29 octobre
1959. Traduite en près d’une centaine de langues et dialectes et vendue
à plus de trois cent cinquante millions d’albums dans le monde entier, ja-
mais une bande dessinée n’avait conquis autant de lecteurs. Cette réussite
éditoriale a été définitivement reconnue en 2011 lorsque l’ensemble des
Aventures d’Astérix le Gaulois est entré dans le Guiness des Records
Mondiaux. À cette réussite de la BD, il nous faut encore ajouter une mul-
titude d’expressions qui puisent leur inspiration dans l’univers merveilleux
mis en place par Albert Uderzo et René Goscinny: les dessins-animés (qui
ont fait le bonheur de tant d’enfants, avant l’arrivée des playstations), les
films (à valeur très inégale, certes), mais également le Parc Astérix, inau-
guré en 1989. Par ailleurs, le premier satellite artificiel français, envoyé
dans l’espace, en 1965, s’appelait, curieusement, Astérix, comme si une
nation entière souhaitait exorciser la crainte ancestrale des Gaulois, que
le ciel ne lui tombe sur la tête !
Pour cimenter le succès de cette œuvre, à travers laquelle le genre
de la BD a définitivement acquis ses lettres de noblesse, se déploie une
immense bibliographie critique, d’une incontestable richesse, ponctuée
par des études qui témoignent d’une véritable interdisciplinarité et mon-
trent les variations d’un thème qui traverse la littérature, l’anthropologie,
l’historiographie, les beaux-arts et, bien évidemment, la bande dessi-
née. Cette attention de la part des universitaires se traduit par des mé-
moires de Maîtrise, des thèses de Doctorat, des articles, des ouvrages,
des colloques internationaux qui réunissent des universitaires d’horizons
très divers, exégètes de la littérature, historiens, traducteurs, traductolo-
gues. . . Exemple : en juin 1980, le colloque sur “ Nos ancêtres les Gau-
lois ”, organisé par le Centre de recherches reìvolutionnaires et romanti-
ques de la Faculté des Lettres et Sciences Humaines, de l’Universiteì de
Clermont-Ferrand3 et, plus récemment, en octobre 2009, celui organisé
2
Cette communication a été proférée le 10 octobre 2014.
3
Cf. “ Nos ancêtres les Gaulois ”. Actes du Colloque International de Clermont-

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Le thème du voyage dans Astérix: altérité et «parodie
des identités» 119

par Paris 3 – Sorbonne Nouvelle, pour célébrer le cinquantenaire du plus


célèbre des guerriers gaulois, “ Le Tour du Monde d’Astérix – Lectures,
Traductions, Interprétations ”4 .
Dès sa parution dans Pilote, à l’automne 1959, Astérix fait fureur,
avec des tirages faramineux. Du jamais vu dans le domaine de l’édition !
L’écriture de René Goscinny – fine et mordante à la fois, enrichie d’un
nombre insensé de références à la littérature latine – et les dessins aux
innombrables “ clins d’œil graphiques ”, d’Albert Uderzo font souffler un
air frais, désinvolte et insouciant dans une France à la mémoire encore
meurtrie par la Seconde Guerre mondiale5 .
Les albums d’Astérix sont d’une richesse inépuisable. Le lecteur ne
peut que s’émerveiller devant ce gigantesque chaudron magique de procé-
dés ludolinguistiques – plaisanteries, calembours et autres jeux de mots
–, de caricatures à foison et d’allusions dans les domaines les plus variés
– en particulier, des références à l’Histoire “ telle qu’elle était enseignée
dans les écoles de la IIIe République, dans la première moitié du XXème
siècle ”, et telle que l’ont donc apprise, les jeunes Uderzo et Goscinny6 .
L’histoire ancienne et moderne, la littérature, la musique, la peinture, la
sculpture, le cinéma, bref, un univers intarissable de connaissances se
construit, au gré d’aventures qui ne cessent de séduire petits et grands!
Des faits, des anecdotes, toujours subtilement glissés dans l’intrigue, au-
tant d’ingrédients pour une série pleine d’humour, parodiant à merveille
la société française contemporaine à travers des stéréotypes régionaux et
-Ferrand (juin 1980). Textes recueillis et présentés par Paul Viallaneix et Jean Ehrard,
Faculté des Lettres et Sciences Humaines de l’Université de Clermont-Ferrand 11, 1983,
492 p.
4
Colloque organisé par l’Université Paris 3 – Sorbonne Nouvelle en partenariat avec
Nancy-Université (30-31 octobre 2009).
5
Nicolas Rouvière parle d’un “graphisme extrêmement lisible d’Uderzo, très influencé
par le style Disney, un comique qui fonctionne à plein, une jubilation à représenter des
scènes de bagarres (ce qui plaît beaucoup aux enfants) dans une dimension pulsionnelle,
mais non-violente car les corps sont dématérialisés.” Et il ajoute : “grâce à la grande
culture de Goscinny, il y a des niveaux de lecture et de comique pour tous les publics.
Les clichés et références françaises et étrangères [. . . ] sont transposés à l’époque gallo-
romaine, ce qui crée une proximité avec le lecteur.” (Interview de Nicolas Rouvière, France
Soir, 30 juillet 2012, http://fr.news.yahoo.com/3/20091020/. . . e-56633fe.html.
6
Cf. la présentation de l’ouvrage de Nicolas Rouvière au cours d’une émission de
radio : http://dascritch.net/post/2008/02/14/Asterix-ou-la-parodie-des-identites

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120 Otília Pires Martins

nationaux, mais jouant aussi sur des stéréotypes – traditions et coutumes


– des pays étrangers.
La bande dessinée obéit à des codes précis, s’organisant autour d’uni-
tés dans lesquelles les caractères des héros sont très marqués et les textes
réduits à l’essentiel. En effet, la bande dessinée préconise des scènes
brèves pour être immédiatement appréhendées. Voilà pourquoi la BD est
un genre propice à la construction de stéréotypes : elle se nourrit d’images
et de représentations véhiculées par la société. Imprégnés de ces images
et représentations collectives à travers lesquelles ils peuvent appréhender
le monde, les lecteurs sont, par là même, plus aptes à décrypter chaque
situation, chaque clin d’œil. Et, avec Uderzo et Goscinny, les lecteurs sont
servis ! Les deux auteurs mettent en scène un microcosme hallucinant –
un petit village gaulois7 , en l’an 50 avant JC, au moment de la conquête
romaine – et y font vivre des personnages attachants : le fort et vaillant
Obélix, livreur de menhirs, toujours flanqué de son chien, Idéfix, qui ne
parle pas mais comprend tout ; Astérix, le guerrier : petit et trapu mais
vif, intelligent et débrouillard. À travers le personnage d’Astérix, Uderzo
et Goscinny dressent une caricature incisive des Français tout en les
flattant dans leur orgueil : Astérix “ est petit mais costaud, méfiant mais
bon vivant, chauvin mais amical. . . ”8 .

2. Les stéréotypes et la portée politique d’Astérix

La genèse d’Astérix s’inscrit dans une période particulière de l’histoire de


la France, au moment où le pays se reconstruit après le deuxième conflit
mondial et alors qu’émergent les débats sur la construction de l’Europe,
sur les régimes politiques et la fraternité entre les peuples.
Le village gaulois surgit, alors, comme un microcosme démocratique,
républicain et laïque, s’opposant aux régimes autoritaires représentés par
7
Nicolas Rouvière voit, dans le village gaulois, une immense cour de récréation, à
l’image de celle du Petit Nicolas : la cour de récréation, lieu de socialisation inventé par
la Troisième République (celle-là même qui institua l’école primaire, obligatoire, gratuite
et laïque).
8
Notes pour l’émission de radio “ Supplément Week-end ” (5.11.2008) : http://dascrit
ch.net/post/2008/02/14/Asterix-ou-la-parodie-des-identites.

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Le thème du voyage dans Astérix: altérité et «parodie
des identités» 121

l’Empire romain et la théocratie égyptienne. Selon Nicolas Rouvière, au-


teur, en 2006, d’Astérix ou les Lumières de la civilisation et, en 2009,
d’Astérix ou la parodie des identités, cette bande dessinée “ est un miroir
de la société contemporaine. À travers ce petit village démocratique qui
résiste face à une logique impérialiste se pose la question de la frontière
entre raison et folie, civilisation et barbarie. . . ”9 . En vérité, poursuit Rou-
vière, dans Astérix, “ [. . . ] il y a une lecture politique décrivant différents
modèles de société: le village d’Astérix est la petite démocratie turbu-
lente, République laïque, avec comme idéal l’éducation; l’Empire Romain
de César est la représentation de l’Etat autocratique, l’Egypte de Cléo-
pâtre, un Etat théocratique; enfin les peuples barbares, comme les Goths,
représentent les sociétés totalitaires, et symbolisent les Nazis. ”10 . Ainsi,
donc, par le biais du comique, Astérix “ règle son compte au totalita-
risme ” et met au premier plan du débat des notions comme civilisation
et barbarie.
Il existe de nombreuses études sur ce qui est désormais convenu
d’appeler “ le phénomène Astérix ” qui essaient, en général, de mon-
trer comment cette BD s’est insérée dans les mentalités de la France des
années 60 et a participé à un renouveau du sentiment national. En ce
sens, Nicolas Rouvière analyse la façon dont les identités collectives sont
représentées dans les aventures d’Astérix ainsi que les sources de ces
représentations. Il faut rappeler que cette “ nouvelle figure nationale ”
qu’est Astérix fut le fait d’un fils d’immigrés italiens (Uderzo) et d’un fils
d’immigrés juifs d’Europe de l’Est ayant passé son enfance en Argentine
(Goscinny); et, selon ce dernier, l’éloignement de la France, dans son en-
fance, explique sa sensibilité particulière aux spécificités françaises. Tout
Astérix repose sur la représentation des identités collectives, sociales et
nationales et sur le jeu parodique issu de la confrontation entre le monde
contemporain et l’utilisation ironique de l’imagerie gauloise telle qu’elle
est représentée dans les manuels scolaires de la “ République des insti-
tuteurs ”.
Dans Astérix ou la parodie des identités, Nicolas Rouvière souligne la
reprise du “ mythe de l’origine ”, le mythe de “ la puissance fécondante ”,
9
Interview de Nicolas Rouvière : https://www.stormfront.org/forum/t650238/.
10
Interview de Nicolas Rouvière, France Soir, 30 juillet 2012 : http://fr.news.yahoo.com/
3/20091020/e-56633fe.html.

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122 Otília Pires Martins

le mythe de la “ la Mère patrie ” qu’est la France (ROUVIÈRE, 2008 :


29). La Gaule est clairement assimilée à une France moderne (la carte au
début de chaque album, le tour de Gaule. . . ) et signale que la situation
du village d’Astérix en Bretagne renvoie à une ancienne appartenance,
fixée au XIXème siècle, entre Celtes et Gaulois. Mais le jeu de l’identité
porte aussi sur la représentation des envahisseurs romains, simultanément
“ destructeurs ” de la civilisation gauloise et responsables de la rénovation
“ gallo-romaine ”; les aventures d’Astérix se situent donc dans la lignée
du débat entre “ celtomanes ” et “ romanistes ”, au XIXème siècle. La
représentation qui est faite des Goths et Normands – des barbares –,
fidèle à l’imagerie du XIXème siècle permet aux deux courants opposés
de se rejoindre sur des intérêts communs aux gaulois et aux romains.
Pour une mise en place efficace de la parodie des identités, Uderzo et
Goscinny ont recours à deux procédés antithétiques: “ le contre-pied des
stéréotypes ” et leur “ exagération ”. Astérix en tant que représentation
inversée du grand guerrier blond du XIXème siècle; Abraracourcix, chef
ridicule et peu respecté par ses porteurs et par sa femme ; César, vain-
queur mais ridicule, face à un Vercingétorix vaincu mais dominateur, voilà
trois exemples qui illustrent le premier procédé : En ce qui concerne le
deuxième procédé, c’est-à-dire, l’exagération, elle est omniprésente : on
la retrouve dans les spécificités régionales (Lutèce, Marseille, la Corse
etc.) nationales (Hélvétie, Hispanie,. . . ) et, bien sûr, françaises (dans les
références à la gauloiserie, à la bonne chère etc. . . ).
La parodie des identités se retrouve dans les stéréotypes nationaux
(le goût de la propreté chez les helvètes, le goût de l’intimité chez les
britanniques,. . . ), les stéréotypes sociaux (les britanniques assimilés à la
haute bourgeoisie, les hispaniques aux paysans,. . . ), les caractéristiques
géographiques et, bien évidemment, langagières. Car “ la langue occupe
une place centrale dans ce jeu parodique: l’inversion de l’adjectif chez les
Bretons, par exemple, mais aussi des terminaisons des noms propres (en
‘ix’ pour les gaulois, ‘us’ pour les romains; ‘af’ pour les normands. . . ”)11 .

11
Thierry Rogel, recension de l’ouvrage de Nicolas Rouvière, Astérix ou la parodie des
identités”, Lectures, Reviews (mis en ligne le 14 février 2008, consulté le 28 août 2014).
URL: http://lectures.revues.org/535.

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Le thème du voyage dans Astérix: altérité et «parodie
des identités» 123

Pendant un temps, on a cru percevoir, dans ces pratiques humoristi-


ques, de façon tout à fait erronée, des clichés xénophobes, ou du moins un
désir de stigmatisation. En vérité, les auteurs ont voulu se moquer de la
tendance à l’ethnocentrisme tout en montrant que c’est là un trait commun
à tous les peuples.
Au cours des années 1960, Astérix était perçu comme une bande des-
sinée gaulliste. Peut-être parce que 1958 marque le retour au pouvoir
du général De Gaulle et que la Ve République fait ses premiers. Le vil-
lage gaulois, éternel résistant à l’envahisseur romain s’érigerait, donc, en
une métaphore patriotique de la France de De Gaulle, rejetant de façon
évidente, voire véhémente, la puissance des USA et d’URSS12 .
Cependant, Uderzo et Goscinny ont toujours rejeté toute interprétation
politique, mettant l’accent sur le caractère essentiellement humoristique
et parodique de leur œuvre: parodie de l’identité française, parodies de
l’esprit gaulois, reproduction de l’imagerie populaire et régional, repré-
sentation stéréotypée des peuples étrangers etc.
Par-delà toutes les fausses interprétations, dont celle, abusive et dé-
placée, de Michel Serres (pour qui Astérix représente “ l’éloge de la
violence, de la drogue, le mépris de la culture ”), des études comme cel-
les de Nicolas Rouvière, défendent, à l’inverse, qu’Astérix met en lumière
une identité collective, culturelle et ouverte. Preuves en sont les banquets
partagés avec les Belges, les Hispaniques. . . ou bien la similitude de si-
tuations vécues par les Gaulois, les Corses et les Helvètes tous victimes
d’une même tentative d’hégémonie et d’oppression romaines. Rouvière
souligne aussi le fait que, par sa nature parodique, la bande dessinée

12
À ce propos, consulter : Pageaux, Daniel-Henri, “De l’image culturelle au mythe
politique”, in Nos ancêtres les Gaulois, Actes du Colloque International de Clermont-
Ferrand, recueillis et présentés par Paul Viallaneix et Jean Ehrard. Association des
publications de la Faculté des Lettres et Sciences Humaines de Clermont-Ferrand,
Fasc. 13, pp. 437-444; Bizarro, Luís Miguel, Astérix e o mito do herói resisten-
te. Entre realidade e ficção, mémoire de Master, soutenu le 12 décembre 2008, à
l’université d’Aveiro ; Damien Boone, “Astérix nazi? Michel Serres se trompe lour-
dement”, 21.09.2011 : http://blogs.lesinrocks.com/cestvousquiledites/2011/09/21/asterix-
nazi-michel-serres-se-trompe-lourdement/.

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124 Otília Pires Martins

contribue également à véhiculer des valeurs inverses à celles que prétend


y voir Michel Serres :

La convocation des stéréotypes de l’identité sert de support à un


discours universel sur les travers des hommes en société. Certes, il
est possible que le lecteur ne s’en désolidarise pas complètement. Il
peut continuer à leur prêter ou non une certaine validité, concernant
les identités nationales qui semblent visées, mais les stéréotypes
ne sortent pas indemnes de l’opération. Quand bien même ils ne
seraient pas toujours faux, ils sont totalement frappés de superfi-
cialité. L’humour met en suspens l’intérêt cognitif qu’ils pourraient
avoir pour eux-mêmes. Les stéréotypes de l’identité ne valent que
pour être dépassés. (ROUVIÈRE, 2008: 277)

3. Les voyages : aller à l’encontre de l’Autre

Les aventures d’Astérix, c’est aussi et surtout les voyages qui représentent,
d’une certaine façon, la capacité de la France et des Français à aller à
l’encontre de l’Autre pour aider, connaître, découvrir, échanger etc. Astérix
et Obélix sont deux véritables globe-trotteurs! Sur les trente-cinq albums
parus à ce jour, très peu se déroulent seulement à l’intérieur du village!
Près de deux tiers des albums (Le Bouclier Arverne et Astérix aux Jeux
Olympiques ; Astérix et le chaudron ; Astérix chez les Belges ; Astérix en
Hispanie, La Zizanie ; Astérix chez les Helvètes ; Le Domaine des dieux
etc.) exploitent le thème du voyage ou de la rencontre avec l’étranger et
sont construits à partir du contact entre les deux héros et d’autres peuples.
Peuples voisins, ennemis des Romains, eux aussi: les Goths, les Belges,
les Bretons, les Helvètes, les Ibères, les Corses, parfois des peuples plus
lointains : les Grecs, les Égyptiens. . .
On découvre d’abord les voyages en Gaule (le Tour de Gaule, en Corse
etc.), puis, les voyages à l’étranger (Germanie, Belgique, Bretagne, His-
panie, Grèce, Rome, Helvétie, Danemark – pays scandinave des normands
– mais aussi l’Egypte et même l’Inde, le Nouveau Monde et l’Atlantide).
Chaque voyage nourrit deux idées fondamentales: il s’agit, en premier
lieu, d’aider les autres peuples, généralement contre les Romains, mais

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Le thème du voyage dans Astérix: altérité et «parodie
des identités» 125

plus globalement contre un oppresseur, qu’il soit le représentant d’un


empire, ou un quelconque despote avide de pouvoir. Astérix et Obélix de-
viennent alors des “ hussards colorés ”, brandissant les idéaux de liberté
issus des philosophes du XIXe siècle et de la Révolution française. En ef-
fet, l’univers d’Astérix recoupe une certaine image de la France, soucieuse
de défendre la notion de liberté et de la diffuser dans le monde. Aussi,
voyons-nous nos deux héros gaulois partir au loin soit pour libérer des
compatriotes pris en otage, soit pour aider des amis étrangers. Astérix
surgit alors comme la représentation moderne de la conception révolu-
tionnaire de la France, pays des Lumières et des Droits de l’Homme, et
donc investie d’une mission supérieure, voire d’ordre divin : lutter contre
le joug de tout envahisseur ou despote. La liberté, la solidarité et la
fraternité sont des valeurs suprêmes qu’il faut à tout prix préserver. Puis
(deuxième idée), il y a la rencontre avec l’Autre, qui met en lumière la
vision stéréotypée que les Français ont des autres cultures, en particulier
européennes. On assiste à la confrontation de la culture française avec
les autres cultures et cette confrontation est magistralement symbolisée
par Obélix et son aphorisme, qu’il répète à chaque fois qu’il est face à
la “ différence ” : “ ils sont fous ces. . . ” décliné pour chaque peuple
étranger. Cette folie que notre livreur de menhirs attribue à l’Autre, n’est
autre que la marque de ce que certains perçoivent comme “ la singula-
rité française ”, ou encore, “ l’exception culturelle française ”, arrogante et
fière, qui aliène l’Autre comme un “ fou ”.
Les nombreux voyages d’Astérix et d’Obélix, en Gaule ou à l’étranger,
mettent les deux héros face à l’Autre et à la différence, et “ c’est dans ce
difficile apprentissage de la différence ” que réside, selon Silvain Lesage13 ,
l’essence de la saga gauloise mise en scène dans Astérix. L’altérité, c’est
celle de la Wallonie d’Astérix chez les Belges, de l’Espagne d’Astérix en
Hispanie, de l’Angleterre d’Astérix chez les Bretons, de l’Egypte d’Astérix
et Cléopâtre, de l’Écosse d’Astérix chez les Pictes etc.
Autant de périples où sont systématiquement parodiés aussi bien les
stéréotypes des populations étrangères que ceux qui tissent les repré-
sentations de l’identité nationale gauloise/française. Cependant, loin de
13
Sylvain Lesage, Recension de l’ouvrage de Nicolas Rouvière, Astérix ou la parodie
des identités (Paris, Flammarion, 2008), Le Temps des médias, n.o 11, p. 258.

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126 Otília Pires Martins

stigmatiser l’autre, cette reprise des clichés permet, selon, Rouvière, un


dépassement de l’ethnocentrisme, qui constituerait un réflexe universel. Il
y a dans Astérix une sorte d’ethnocentrisme fécond, avec une reconnais-
sance très forte des identités culturelles, de leur particularisme, mais plus
encore une reconnaissance de ce qui rassemble les Français par-delà les
cultures. Les auteurs développent une critique de l’ethnocentrisme et de
toute fermeture sur soi, d’une culture monolithique, qui se transmettrait à
l’identique de génération en génération. Astérix marque, au contraire, une
ouverture sur les différences culturelles. Le lecteur fait en quelque sorte
le parcours d’apprentissage d’Obélix qui commence par dire “ ils sont fous
ces Romains, ces Belges, ces Bretons ”, réflexe ethnocentré, puis s’ouvre,
peu à peu, à la différence. Notons qu’Astérix incite régulièrement son
compagnon d’aventures, au respect de l’Autre et de sa culture. C’est ainsi
qu’on verra Obélix ramener de ses voyages des objets, des souvenirs, qui
prouvent son ouverture à l’Autre. Il va tailler des menhirs à la manière
égyptienne, apprendre à danser le flamenco, ou encore déjeuner à la ma-
nière belge: il y a, donc, chez Obélix, un cheminement inattendu, qui le
mène de l’ethocentrisme vers l’altérité.

4. Conclusion: “ Une certaine image de la France. . . ”

La réussite littéraire d’Astérix s’explique, en grande partie, par le fait que


ses aventures véhiculent “ une certaine image de la France et des Fran-
çais ” : une image positive d’une France dont le rôle serait de venir en
aide, voire de protéger les autres peuples, contre tout oppresseur, qu’il
s’agisse du représentant d’un empire (César), ou un quelconque autre ty-
ran (cela renvoie, bien évidemment, à la mémoire de la France occupée,
écrasée par la botte du nazisme et à la construction du mythe du héros
résistant, sous l’influence de De Gaulle, dans la période “ après-guerre ”,
mais cela renvoie, aussi, aux idéaux des Lumières et de de 1789). Après
plus d’un demi-siècle d’existence, on peut affirmer sans crainte qu’Astérix
a contribué, de façon indélébile, à la construction d’une certaine image
des Français. “ Revenir à la genèse des aventures d’Astérix permet fi-
nalement de donner une bonne définition de ce que doit être la culture

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Le thème du voyage dans Astérix: altérité et «parodie
des identités» 127

française aujourd’hui, à savoir: partager avec l’Autre, accepter l’Autre,


pour se nourrir de l’Autre. ”14 .
On assiste à une mise en scène savoureuse de stéréotypes historiques
et culturels: parodie de l’imagerie scolaire de “ nos ancêtres les Gaulois ”,
satire de la société française des quarante dernières années, caricature
des peuples étrangers, de leurs idiotismes, de leurs coutumes. Le traite-
ment parodique des identités (gauloise, française, étrangères) place, au
cœur de l’œuvre, “ une véritable utopie constructive du lien à l’autre ”,
car quels que soient les obstacles à la communication (obstacles linguis-
tiques et malentendus) il est toujours possible de se comprendre et de
rire ensemble. Il en résulte un message optimiste sur l’universalité des
valeurs au-delà des différences culturelles: il n’y a pas de “ choc des
civilisations ” entre des peuples qui se retrouvent au même banquet15 .
“ Moi, c’est l’autre ”, disait Goscinny. “ Moi, c’est l’autre ” pourrait
aussi être “ la devise d’une œuvre obsédée par la rencontre de l’altérité
et dominée par un universalisme à la fois naïf et souriant. ”16 . Quoi qu’il
en soit, et comme le rappelle Thierry Pech, Astérix est, avant tout, “ une
grande œuvre comique, conforme au principe de la comédie: castigat
ridendo mores. La société française des Trente Glorieuses finissantes
s’y reconnaît et rit d’elle-même, de ses vieilles habitudes comme de ses
découvertes, de ses traditions comme de sa modernisation haletante”17 .

14
Renaud Voisin, “ Astérix et Obélix, la potion magique du soft power français ”,
13 novembre 2013. https://ladiplomatiedinfluence.wordpress.com/2013/11/13/asterix-et-
obelix-la-potion-magique-du-soft-power-francais/.
15
Nicolas Rouvière, Astérix ou la parodie des identités, Paris, Champs/Flammarion,
2008. Note en quatrième de couverture.
16
Pech, Thierry, “ Astérix : le même ou l’autre ? ”, recension de l’ouvrage de Nicolas
Rouvière, Astérix ou la parodie des identités. http://www.laviedesidees.fr/Asterix-
le-meme-ou-l-autre.html.
17
Id. Ibid.

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1. Bibliographie

BIZARRO, Luís Miguel, (2008). Astérix e o mito do herói resistente.


Entre realidade e ficção, mémoire de Master, soutenu le 12 décembre
2008, à l’Université d’Aveiro.
EHRARD, Jean, VIALLANEIX, Paul (org.) (1982). Nos ance tres
les Gaulois, Actes du colloque international de Clermont-Ferrand (re-
cueillis et preìsenteìs par Paul Viallaneix et Jean Ehrard). Universiteì
de Clermont II. Centre de recherches reìvolutionnaires et romantiques).
Clermont-Ferrand : Association des publications de la Faculteì des Let-
tres et Sciences Humaines.
LESAGE, Sylvain (2009). Recension de: Nicolas Rouvière, Asterix ou
la parodie des identités (Flammarion, 2008). Le Temps des médias, n.o
11, hiver 2008-2009, pp. 258-259.
PAGEAUX, Daniel-Henri (1982). “ De l’image culturelle au mythe
politique ”, in Nos ancêtres les Gaulois, Actes du Colloque International
de Clermont- Ferrand, recueillis et présentés par Paul Viallaneix et Jean
Ehrard. Clermont- Ferrand : Association des publications de la Faculté
des Lettres et Sciences Humaines de Clermont-Ferrand (France), Nouvelle
série, Fascicule 13, pp. 437- 444.
ROUVIÈRE, Nicolas (2008). Astérix ou la parodie des identités, Pa-
ris : Champs/Flammarion.
TODOROV, T. (1978). Les genres du discours. Paris : Seuil.
Le thème du voyage dans Astérix: altérité et «parodie
des identités» 129

2. Webgraphie
BOONE, Damien. “ Astérix nazi? Michel Serres se trompe lourde-
ment ”, 21.09.2011 : http://blogs.lesinrocks.com/cestvousquiledites/2011/
09/21/asterix-nazi-michel-serres-se-trompe-lourdement/
BRUNO, Pierre. “ Astérix, devant nous, le sauveur de la France? ”, Le
français aujourd’hui 1/ 2002 (no 136), p.104-109 : www.cairn.info/revue-
le-francais-aujourd-hui-2002-1-page-104.htm. DOI : 10.3917/lfa.136.010
4
PECH, Thierry. “ Astérix: le même ou l’autre? ” (recension de
l’ouvrage de Nicolas Rouvière, Astérix ou la parodie des identités, Champs
/ Flammarion (25.01.2008). [http://www.laviedesidees.fr/Asterix-le-meme-
ou-l-autre.html
ROGEL, Thierry. “ Nicolas Rouvière, Astérix ou la parodie des iden-
tités ”, Lectures, Reviews, mis en ligne le 14 février 2008, consulté le 28
août 2014. URL: http://lectures.revues.org/535
VOISIN, Renaud. “ Astérix et Obélix, la potion magique du soft power
français ”, 13 novembre 2013. https://ladiplomatiedinfluence.wordpress.co
m/2013/11/13/asterix-et-obelix-la-potion-magique-du-soft-power-franca
is/

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Francisco Xavier na Peregrinaçam:
o percurso de um santo segundo Fernão Mendes
Pinto

Fernando Alberto Torres Moreira / António Teixeira

Centro de Estudos em Letras – UTAD

Resumo: Magna presença na Peregrinaçam, de Fernão Mendes Pinto, a


figura do Pe. Francisco Xavier vê-se revestida de um interesse pleno, seja de um
ponto de vista religioso, seja de um ponto de vista da política da Expansão. O
texto que se apresenta procura demonstrar como Fernão Mendes Pinto ensaia
uma espécie de processo de santificação em curso que servia interesses cruza-
dísticos, e também o retrato da figura histórica que é Francisco Xavier, inserida
num contexto particular para o qual convergem questões culturais, religiosas e
políticas. Rosto da disseminação da cultura portuguesa, da política seguida por
D. João III no Oriente, bem como dos objetivos da Companhia de Jesus, Francisco
Xavier protagoniza, também, a apreensão das culturas nativas onde ocorrem as
ações narradas na obra e inscritas na história.

Palavras-chave: Peregrinaçã; Francisco Xavier; santificação; cultura portu-


guesa; império.

Trinta e dois anos depois da chegada de Vasco da Gama à Índia, a


cidade de Goa foi eleita como capital política e administrativa do império
português no Oriente, na sequência de uma decisão do então governador
D. Nuno da Cunha; quatro anos passados, também a Igreja aí instalou
uma diocese, a primeira na região índica; estes dois factos tornar-se-ão,
132 Fernando Alberto Torres Moreira / António Teixeira

como bem observou Ricardo Ventura, “(. . . ) dois momentos fulcrais desse
processo de convivência entre a jurisdição civil e a jurisdição eclesiástica”.
(Ventura, 2004: 505)
É sabido que o processo evangelizador do Oriente e, em particular,
o da Índia, tomou um rumo bem diverso, alguns anos depois, assim que
foi decidida e concretizada a destruição dos pagodes e aldeias da ilha de
Goa, cujas rendas passaram a financiar o esforço de conversão dos gentios;
a chegada dos primeiros elementos da Companhia de Jesus à Índia, os
padres Francisco Xavier e Cosme de Torres e o irmão João Fernandes,
no ano de 1542, seria determinante para a concretização dessa alteração
– começava, conforme considera Ricardo Ventura, ““uma evangelização
sistemática” (Ventura, 2004: 506) a cargo de franciscanos, dominicanos e
agora de jesuítas que, em 1549, criaram a Província Jesuítica da Índia.
Não foi por acaso que os padres da Companhia de Jesus partiram para
a zona fulcral do império português; Francisco Rodrigues aponta a razão
para umas cartas que Diogo de Gouveia, o Velho, mestre português e
reitor da Universidade de Paris, professor dos fundadores da Companhia,
enviou ao Padre Simão Rodrigues e ao rei D. João III, impulsionado por
uma missiva que lhe escrevera Jerónimo Osório, futuro bispo de Silves, em
que este lhe dava conta de que um grande número malabares se tinham
convertido à fé cristã:
[Diogo de Gouveia] remeteu ao Padre Simão Rodrigues a carta de
Jerónimo Osório e escreveu a lhes propôr e oferecer a emprêsa da
conversão das almas na Índia, para onde navegavam cada ano as ar-
madas do rei de Portugal. Pouco tempo decorrido escreveu também
a D. João III a dar-lhe conhecimento de Inácio e seus companheiros,
da sua virtude, zêlo e trabalhos apostólicos, e a exortá-lo a tratar
com toda a pressa de os obter para missionários das suas conquistas
orientais (Rodrigues, 1931: 218-219).

Esta recomendação do então reitor da Sorbonne, tal como afirma Mo-


reira,
terá sido decisiva para o interesse demonstrado por D. João III com
a nova Ordem religiosa que dava então os seus primeiros passos
junto da corte pontifícia e Inácio de Loyola e seus companheiros
não enjeitaram esse interesse e apoio manifesto de tão poderoso
rei (Moreira, 2013: 51).

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Francisco Xavier na Peregrinaçam: o percurso de um santo
segundo Fernão Mendes Pinto 133

É uma evidência que os princípios de atuação apresentados pela novel


Companhia vinham ao encontro do que pretendia o monarca português,
especialmente no que respeitava a reorientação da presença portuguesa
no Oriente onde agora, por via das circunstâncias, se intentava a aplicação
de um novo paradigma do modelo expansionista. João Paulo Oliveira
e Costa destaca a que foi, em seu entendimento, a mais significativa
mudança de atuação estratégica concebida e promovida pelo Rei Piedoso:

A principal alteração promovida pelo rei assentou numa nova con-


cepção geo-estratégica - a Coroa abandonava o velho sonho cru-
zadístico e virava-se definitivamente para os oceanos, passando a
privilegiar os interesses mercantis aos ideológicos (Costa, 2005: 4).

O modelo de evangelização também iria mudar, assumindo uma cada


vez maior autonomia face à administração política e militar; esta mudança
conduziria os padres missionários para terras e povos fora da alçada im-
perial portuguesa, uma prática que fez da missionação uma nova força
impulsionadora da Expansão, porque levou atrás mercadores e, ocasio-
nalmente, a própria estrutura administrativa da Coroa (Costa, 2005: 11).
João Paulo Oliveira e Costa considera reformadores e inovadores o
Padre Francisco Xavier e D. João III, além de profundamente crentes e,
sobretudo, dois homens do seu tempo, já que os dois estavam convictos
da justeza da imposição, pela força, das convicções religiosas, em caso de
necessidade (Costa, 2005: 8); o jesuíta oriundo de Navarra será o vértice
da execução desta nova estratégia que, ainda segundo Costa, dará origem
a uma “(. . . ) mudança estrutural da história missionária” (Costa, 2005:
11). Prova desta realidade, “a estadia do padre jesuíta no Japão por cerca
de quinze meses será um dos episódios mais marcantes e bem sucedidos
da missionação portuguesa enquanto exemplo desta nova dinâmica que
a estratégia de D. João III possibilitou e que o proselitismo militante
executou” (Moreira, 2013: 51).
Em 1549, sete anos após chegar à Índia, Francisco Xavier chega ao
Japão; nesse período de tempo, relativamente curto, a ação dos padres
jesuítas, para além das várias partes da Índia, estendeu-se até Malaca
numa “dinâmica evangelizadora prenhe de pragmatismo, ação e divulga-

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134 Fernando Alberto Torres Moreira / António Teixeira

ção do conhecimento” (Moreira, 2013: 52) que o historiador Luís Filipe


Thomaz explicita do seguinte modo:
Ao pôr-se incondicionalmente com seus companheiros ao serviço do
papado (. . . ) os jesuítas tenderam assim a conceber a Igreja funda-
mentalmente como instituição visível. (. . . ) Seja qual for a opinião
que se sobre ela [Companhia de Jesus] emita, há que reconhecer
que tal prática tinha por si a observação experimental dum dado
sociológico: a dificuldade, por vezes insuperável, do convertido em
romper com a comunidade de origem, que levava a preferir converter
esta em bloco (Thomaz, 1993: 121-122).

A rapidez do sucesso evangelizador jesuíta deve-se, na opinião de


Ricardo Ventura, aos seus inovadores métodos de conversão que, segundo
concretiza, estavam “(. . . ) pragmaticamente inseridos no quotidiano, no
ensino e no hospital, não recusando os procedimentos mais rápidos e
eficazes, muitas vezes em detrimento de uma formação catequética mais
cuidada” (Ventura, 2004: 517).
A primeira incursão evangelizadora por terras japónicas antes refe-
rida, confirma cabalmente a afirmação anterior de Ventura, tendo sido
um encontro desejado e preparado com cuidado, conforme relata Fernão
Mendes Pinto no momento em que introduz na Peregrinação a figura do
jesuíta Francisco Xavier:
O qual [Francisco Xavier] tendo novas deste japão que trazíamos
connosco, nos foi logo buscar a Jorge Alvarez e a mim a casa de
um Cosmo Rodriguez aí casado, onde ambos pousávamos. E des-
pois que gastou connosco um pedaço do dia em preguntas curiosas,
fundadas todas num vivo zelo da honra de Deos, e tomar de nós
as informações do que pretendia, ou do que mostrava que desejava
saber de nós, lhe dissemos, sem sabermos das novas que ele já ti-
nha disto, que ali na não trazíamos dous japões, um dos quais, que
parecia ser homem de conta, era muito discreto e muito entendido
nas leis e seitas de todo o Japão, que sua reverencia folgaria de
ouvir (Pinto, 1984: 168).

É esta nova realidade evangelizadora, esta nova metodologia que está


visivelmente plasmada, por exemplo, na carta que o Padre Francisco Xa-
vier enviou aos seminaristas do Colégio de São Paulo de Goa, de Cango-
xima, Japão, em resultado do seu primeiro contacto com os japoneses. A

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Francisco Xavier na Peregrinaçam: o percurso de um santo
segundo Fernão Mendes Pinto 135

carta é um documento de teor pedagógico e pragmático para a ensinança


dos futuros missionários: atende ao múnus religioso, mas também à iden-
tificação de um conjunto de preceitos de ordem prática tendo em vista o
êxito e eficácia de uma boa missionação.
Xavier mostra-nos um Japão de gente pobre, uma pobreza também ob-
servável em muitos fidalgos, mas não considerada desprestigiante social-
mente; a sociedade é altamente estratificada e as diversas castas sociais
não se misturam entre si, “(. . . ) e isto fazem por lhes parecer que perdem
de sua honra, casando com casta bayxa. De maneira que mays estimão
honra que as riquezas” (Xavier, 1570: f. XXVij). De igual modo, a hie-
rarquização social é por todos muito aceite e respeitada: o não fidalgo
respeita o fidalgo, o fidalgo serve sem reservas o senhor da terra e todos
obedecem ao rei. Notou Francisco Xavier a sobriedade da alimentação
japonesa, ainda que bebam um tanto desregradamente “(. . . ) vinho de
arroz, porque não ha vinhos nestas partes” (Xavier, 1570: f. XXVij); jogar
não faz parte dos hábitos japões por considerarem desonra desejar o que
não é seu; roubar é acto ignominioso que leva à pena de morte; acreditam
em homens antigos, “homens que viueram como filósofos” (Xavier, 1570: f.
XXViij), adoram o Sol e a Lua e os seus sacerdotes, os bonzos, vivem mais
em pecado que o povo o qual, mesmo assim, lhes concede uma estima sem
restrições: “(. . . ) os leigos viuem melhor em seu estado, do que viuem os
bonzos no seu: e com ser isto manifesto he para marauilhar a estima em
que os tem” (Xavier, 1570: f. XXViij).
A receção aos missionários idos de Portugal foi boa e espantou os
japoneses que alguém tenha feito mais de seis mil léguas só para falar
das coisas de Deus e salvação das almas, o que foi entendido como algo
enviado pela divindade, isto é, a distância percorrida para evangelizar
funcionou como factor de credibilidade da mensagem de Cristo. Daqui
conclui Francisco Xavier, no que se pode estabelecer um paralelo evidente
com o registado por Pêro Vaz de Caminha na sua carta endereçada a D.
Manuel I sobre o achamento das terras de Vera Cruz,

(. . . ) que esta ilha de Iapão esta muy desposta para em ella se


acrescentar muyto nossa santa fee, e se nos soubessemos falar a
lingoa não ponho duuida nenhüa em crer, que se farião muytos
Christãos (Xavier, 1570: f. XXjX).

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136 Fernando Alberto Torres Moreira / António Teixeira

Um outro aspecto dos costumes da gente japonesa chamou a atenção


do padre Xavier, por contraste com o mundo europeu e com consequências
sociais óbvias - o tipo de alimentação:

Não matão, nem comem cousa que criam. Algüas vezes come pes-
cado, hay arroz e trigo, ainda que pouco: hay muytas eruas de que
se mantem, e algüas frutas, ainda que poucas, viue esta gente de-
esta terra muy saã a marauilha, e hay muytos velhos: bem se vé em
os Iapões como nossa natureza com pouco se sostem (Xavier, 1570:
f. XXXjX).

Parece, assim, ser correto concluir-se que a carta remetida pelo padre
Francisco Xavier de Cangoxima, Japão é, pelo seu conteúdo, um bom
exemplo de como se processava a missionação jesuíta, toda ela prenhe
de um pragmatismo evidente.
É deste missionário, que João Paulo Oliveira e Costa apelida de
agente do império português (Costa, 2005: 17), que Fernão Mendes Pinto
apresenta, na Peregrinação, e em primeira mão, uma caraterização muito
própria, exaltando-lhe as façanhas antigas1 e elevando outras a que as-
sistiu numa perspetiva notória com vista a um processo de santificação.
Perfilhando uma opinião do americano Thomas R. Hart, Amadeu Torres
define a base ideológica da Peregrinação segundo o binómio Fé e Império
sendo, por isso, tal como Os Lusíadas, uma obra de exaltação nacional na
sua essência (Torres, 1998:335). Mendes Pinto ainda carrega consigo o
espírito de cruzada alimentado por um espírito de missão bem presente no
apoio dado ao Padre Francisco Xavier (300 cruzados) para a construção
de uma igreja em Yamacuchi, no Japão; deste facto o autor nos dá conta
em carta enviada do colégio de Malaca, a 5 de dezembro de 1554, aos
padres e irmãos da Companhia em Portugal.
Mendes Pinto enfatiza a amizade com o padre mestre Francisco Xavier
de forma repetida, quer referindo a correspondência trocada entre ambos
(Pinto, 1984: 309), quer sublinhando o conhecimento que dessa relação
havia pelos padres e irmãos da Companhia:

(. . . ) o irmão Pero Bravo que de Malaca mui bem me conhecia, se


veo a mim sabendo quão amigo eu era do padre Mestre Francisco
1
Fama de milagreiro.

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Francisco Xavier na Peregrinaçam: o percurso de um santo
segundo Fernão Mendes Pinto 137

e me levou arriba às varandas e chamando os Irmãos lhe dizia a


muita amizade que eu sempre tive com o padre Mestre Francisco
(Pinto, 1984: 309).

Prova definitiva dessa amizade são as palavras do padre mestre Bel-


chior, que substituíra Francisco Xavier na liderança da Companhia no
Oriente, o qual, quando foi buscar o corpo deste para o levar para Goa,
fez-se acompanhar de Fernão Mendes Pinto “pola amizade que com ele
tem”, dizendo-lhe: “– Vedes aqui vosso grande amigo, Mestre Francisco,
que viemos a buscar” (Pinto, 1984: 311).
A personagem de Francisco Xavier surge bem no final da Peregrinação
– capítulos CCIII, CCVII, CCVIII, CCX, CCXI, CCXII, CCXIII, CCXIV, CCXV,
CCXVI, CCXVII, CCXVIII – e neles Mendes Pinto relata a missionação
do futuro santo em Malaca e no Japão, bem como as vicissitudes por que
passou na tentativa de chegar à China, a sua morte em Sanchoão e as
peripécias da trasladação do corpo para Goa, tudo passado entre os anos
de 1547 e 1552.
Do primeiro encontro com Francisco Xavier relata Mendes Pinto:

(. . . ) achámos [em Malaca] o padre mestre Francisco Xavier, reitor


universal da Companhia de Jesu nas partes da Índia, que havia
poucos dias que chegara de Maluco, com grande nome de santo na
voz de todo o povo por milagres que lá lhe viram fazer, ou, para ser
mais acertado, que Deos nosso Senhor por ele fizera (Pinto, 1984:
168).

Inicia o autor da Peregrinação, desta forma clara, o seu contributo


para a canonização futura de Francisco Xavier, ao declará-lo mensageiro
e obreiro de Deus; vai também assumir a sua quota parte nessa missão
pois toma para si a responsabilidade primeira da missionação que o padre
jesuíta fará no Japão – afinal fora ele que trouxera do país do sol nas-
cente Angero, futuro convertido como Paulo de Santa Fé e peça fulcral
no sucesso dessa evangelização:

(. . . ) e trouxemos o japão ao esprital onde ele pousava, o qual o


recolheo então consigo. E o levou dali para Índia para onde estava
de caminho, e despois que chegou a Goa o fez lá cristão e lhe pôs
o nome Paulo de Santa Fé, o qual em pouco tempo soube ler e

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138 Fernando Alberto Torres Moreira / António Teixeira

escrever, e toda a doutrina cristã conforme à determinação deste


bem-aventurado padre, que era, tanto que viesse aquela moução
de Abril, ir denunciar ao barbarismo desta ilha Japão Cristo Filho
de Deos vivo posto na Cruz por pecadores, como ele costumava
dizer, e levar este homem consigo para seu interprete, como despois
levou ao seu companheiro que também com ele juntamente se fez
cristão, a que o padre pôs nome Joane, os quais ambos lhe foram
lá despois muito fiéis em tudo o que cumprio ao serviço de Deos,
e por cuja causa o Paulo de Santa Fé despois foi desterrado para
a China, onde foi morto por uns ladrões como adiante declararei
quando falar deste desterro (Pinto, 1974: 169).

Todo o discurso de Mendes Pinto enfatiza o caráter santo de Francisco


Xavier, sem esquecer o seu comprometimento com a dilatação do Império
(que também era o da cristandade) bem evidente na afirmação: “– Dizei um
Pater Noster e ua Avé Maria pela vitória que Deos Nosso Senhor agora
deu aos nossos contra os inimigos da sua santa fé” (Pinto, 1984: 196).
Estas palavras disse-as Francisco Xavier quando ainda não era conhecido
o resultado de uma batalha entre portugueses e seus inimigos no Oriente,
o que foi interpretado como mais uma informação divina recebida pelo
padre mestre, segundo afirma Mendes Pinto: “E outras muitas maravilhas
fez nosso senhor por este bem aventurado padre, de que eu vi alguas, e
outras ouvi” (Pinto, 1984: 197).
O caráter de homem santo informa o sucesso da passagem pelo Japão
já referida, desde as conversões de figuras prestigiadas e de multidões
até às armadilhas estendidas ao padre jesuíta pelos bonzos japões, quais
fariseus da Judeia; no trânsito do Japão para a China também não faltou
a ação milagreira de Francisco Xavier face a uma tempestade e ao de-
saparecimento de um batel: as preces do padre tudo resolveram quando
tudo parecia perdido e, por isso, “todos arremetera até ao Padre para se
lhe lançarem aos peis” (Pinto, 1984: 246) em sinal de agradecimento por
mais este milagre.
Reside, contudo, na descrição dos momentos finais da vida do Padre
Francisco Xavier o clímax do processo de santificação ensaiado por Fernão
Mendes Pinto. Será pertinente trazer aqui um confronto entre a descrição
feita pelo autor e a que foi aduzida por João de Lucena, também ele jesuíta
e primeiro biógrafo de Francisco Xavier; importante, igualmente, registar

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Francisco Xavier na Peregrinaçam: o percurso de um santo
segundo Fernão Mendes Pinto 139

o contributo decisivo que os jesuítas em geral deram para a canonização


futura do seu par, apresentado como exemplo de modelo de missionação.
Não custa admitir que o Padre Lucena conhecesse o teor da obra de
Mendes Pinto no que respeita a Francisco Xavier; é certo que a Pere-
grinação só seria publicada em 1614 e que a História da Vida do Padre
Francisco Xavier o foi em 1600, mas também é sabido que o relato de
Mendes Pinto estava concluído em 1578 e que o italiano Maffei o visi-
tara no Pragal em 1582, acompanhado do jesuíta Gaspar Gonçalves, em
busca de informações sobre a ação da Companhia no mar Índico de que
resultou a Historiarum Indicarum Libri XVI, publicada em Florença no ano
de 1588; Peregrinação não estava então impressa, mas sabe-se como era
comum a circulação do teor dos manuscritos antes da sua publicação. . . e
são evidentes as coincidências narrativas entre o texto de Lucena e o de
Fernão Mendes Pinto. Coincidências e diferenças porque o relato dos
momentos finais de Francisco Xavier por Mendes Pinto apresenta uma
originalidade sintomática, como a seguir se demonstra.
Lucena enquadra a morte de Francisco Xavier às portas da China como
um desígnio de Deus semelhante ao que obrara para Moisés que teve a
responsabilidade de conduzir o povo escolhido à Terra Prometida, mas
não lhe foi dado nela entrar; também a Francisco xavier não foi permitida
a entrada na China, ele que conduziu a cristandade até às suas portas. . .
Fernão Mendes Pinto responsabiliza, num primeiro momento, a inveja
e cobiça do capitão D. Álvaro de Ataíde pelo facto de Francisco Xavier
não ter entrado na China (algo que Lucena ignora), ou seja, as lutas
intestinas geradas pelo poder e riqueza, entre os portugueses; num se-
gundo momento, tal como Lucena, aponta a vontade divina: “Porém, como
o nosso Deos, cujos segredos ninguém pode rastejar, não era servido que
ele entrasse na China, e a razão porque Ele só sabe” (Pinto, 1984: 256).
Entre determinações divinas e decisões dos homens, ambos os auto-
res concordam que Francisco Xavier morreu pobre, despojado, só e com
necessidades materiais; Lucena é taxativo: “A esta conformidade com a
pobreza e desamparo do bom Jesus na morte, juntou o verdadeiro discí-
pulo a imitação do sofrimento do mesmo Senhor” (Lucena, 1989: 196-7).
Coincidem, de igual modo, João de Lucena e Fernão Mendes Pinto por
que penou Francisco Xavier a sua doença fatal, numa nau e numa ca-
bana/choupana coberta de ramos e fria; o diálogo constante com Deus é

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140 Fernando Alberto Torres Moreira / António Teixeira

também referido por ambos, bem como a afirmação da sua condição de


pecador e o gesto de agarrar um crucifixo em permanência; no mais, as
diferenças são significativas e reveladoras.
Segundo Lucena, os sofridos últimos dias de Francisco Xavier tiveram
início numa segunda-feira, 20 de novembro, e terminaram com a sua morte
na antemanhã de sábado, 2 de dezembro, isto é, doze dias depois. Os
números de Mendes Pinto são outros: Francisco Xavier esteve acamado
na embarcação “com fastio muito grande, de que esteve muito mal tratado
por espaço de quatorze dias” (Pinto, 1984: 256); a sua agonia continuaria
em terra, numa cabana pobre, por mais dezassete dias “bem falto do
necessário” (Pinto, 1984: 256), segundo lhe contaram três homens “que
se acharam com ele” (Pinto, 1984: 256); este período de tempo passado na
cabana é narrado desta forma por Lucena: “Aqui o sangraram duas vezes,
entregando-se ele, como verdadeiro obediente e desapegado de todo amor
e juízo próprio à disposição dos que o curavam, posto que soubesse bem
o termo da doença e insuficiência dos enfermeiros” (Lucena, 1989: 196).
Esta extrema necessidade vê-a Mendes Pinto de forma exemplar, segundo
os desígnios de Deus: “ao que eu cuido porque quis Nosso Senhor mostrar
neste desamparo que permitio que este seu servo tivesse na terra nesta
hora, quão conforme este seu trânsito era aos dos outros de quem temos
por fé que agora reinam com ele no Céo” (Pinto, 1984: 256-7): um santo
na terra, portanto. A agonia (ou será melhor dizer paixão) do padre
Francisco Xavier duraria, segundo Mendes Pinto, mais dois dias, vindo
a falecer “sempre c’os olhos no crucifixo (. . . ) um sábado dous dias de
Dezembro, do ano de 1552 à meia noite” (Pinto, 1984: 257).
A descrição de João de Lucena estará, seguramente, mais próxima da
realidade e não custa admitir que Fernão Mendes Pinto fabricou inten-
cionalmente os timings que antecederam a morte de Francisco Xavier e o
momento da mesma em benefício da sua santificação: significativamente,
o número de dias da agonia do padre mestre jesuíta corresponde ao nú-
mero de anos de vida que a Bíblia atribui a Jesus Cristo – 33 –: 14 dias
na nau, 17 dias na cabana de porta aberta e mais 2 dias isolado até ao
suspiro final – 33 dias! Faltava o toque final nesta encenação: a hora
da morte de Francisco Xavier, apontada por Mendes Pinto, é tudo menos
certa: morrer à meia-noite de sábado é morrer às zero horas de domingo,
isto é, Francisco Xavier morreu exatamente no interstício indefinido do

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Francisco Xavier na Peregrinaçam: o percurso de um santo
segundo Fernão Mendes Pinto 141

dia santo judeu e do dia do Senhor dos cristãos! Fernão Mendes Pinto
remata, com chave de ouro, o seu contributo para o processo de santi-
ficação do Francisco Xavier, uma intenção que os milagres post-mortem
atribuídos ao padre mestre jesuíta reforçariam.

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Referêcias bibliográficas

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Xavier”. In: Revista Oriente, no 13. Lisboa: Fundação Oriente.
DAURIGNAC, J. M. S. (1989). S. Francisco Xavier. Braga: Livraria
Apostolado da Imprensa.
LUCENA, João de (1989). História da Vida do Padre Francisco Xavier.
Lisboa: Publicações ALFA.
MOREIRA, Fernando (2013). “Francisco Xavier e a Evangelização do
Japão”. In: Revista Lusorama, no 95-96. Frankfurt am Main: DEE.
PINTO, Fernão Mendes (1984). Peregrinação. Lisboa: Sá da Costa.
RODRIGUES, Francisco (1931). História da Companhia de Jesus na
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Cruzada à união pacífica”. In: Actas do Congresso Internacional de His-
tória da Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas. Braga.
TORRES, Amadeu (1998). “Fernão Mendes Pinto, no pós-centenário
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Polímnia. Braga: UCP/FacFil, pp. 321-335.
XAVIER, Francisco (1570). Cartas do Japão. (F. XXv - XLIIIv). RES.
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VENTURA, Ricardo (2004). “Estratégia de Conversão no tempo de D.
Gaspar de Leão, primeiro arcebispo de Goa – Reconstituição histórica de
uma controvérsia”. In: A Companhia de Jesus na Península Ibérica nos
séculos XVI e XVII - Espiritualidade e Cultura. Porto: FLUP.
Literatura da viagem em tonalidade modernista

Dionísio Vila Maior

Universidade Aberta
CLEPUL

Resumo: Reflexão sobre a problemática da viagem na vivência modernista


e no discurso literário modernista – incidindo-se uma atenção particular sobre
a produção literária de Fernando Pessoa (e dos seus outros eus), Mário de
Sá-Carneiro e Almada Negreiros. Nesse sentido, procurar-se-á estudar essen-
cialmente o tópico da viagem interior, tópico que – apontando frequentemente
para a busca do “Ideal” – é nuclear na poesia e/ou ficção destes representantes
do modernismo português, que, pela literatura, procuraram apreender dinamica-
mente o seu universo interior, na busca identitária do eu.

Palavras-chave: Modernismo. Viagem. Subjetividade. Pluridiscursividade.


Totalidade.

1. Em dois textos, de presumivelmente 1931, do Livro do Desas-


sossego, Fernando Pessoa, pela voz de Bernardo Soares, escreve, em
momentos diferentes, as seguintes palavras: “A ideia de viajar nauseia-
-me”; num outro texto, confessa: “A ideia de viajar seduz-me” (Pessoa, F.,
2010: 370 e 215, respetivamente). Se, contudo, continuarmos na leitura
das mesmas palavras, podemos articular as ideias de acordo com uma
disposição que só aparentemente será contraditória; num texto: “A ideia
de viajar nauseia-me. / Já vi tudo que nunca tinha visto. / Já vi tudo
que ainda não vi” (id.: 370); no outro: “A ideia de viajar seduz-me por
144 Dionísio Vila Maior

translação, como se fosse a ideia própria para seduzir alguém que eu não
fosse. Toda a vasta visibilidade do mundo me percorre, num movimento
de tédio colorido, a imaginação acordada” (id.: 215).
De certo modo, a questão assim conceituada, com reflexões apenas
aparentemente contraditórias, abre caminho para a equacionação da pro-
blemática da viagem na vivência modernista e pelo discurso modernista.
E, como se pode confirmar, as palavras deste outro eu pessoano, que en-
controu na intranquilidade o sentido que sustenta poeticamente a noção
de sonho, estabelecem uma posição muito nítida, no que ela compreende
de valorização da subjetividade, ao atribuir justamente à subjetividade de
cada indivíduo uma dominância acentuada. Aliás, em múltiplos fragmentos
que fazem parte do Livro do Desassossego, Bernardo Soares manifesta um
profundo desencanto pelo facto de os homens se terem reduzido a pouco
mais do que animais, em consequência do desinteresse que de forma cres-
cente manifestam em relação à “actividade superior da alma” (id.: 486).
Num texto de provavelmente 1915, por exemplo, intitulado (ainda que
com algumas reservas por parte de Bernardo Soares) O Sensacionista,
este outro eu pessoano – em termos bastante elucidativos, pela nota de
pessimismo que ostentam – refere-se precisamente ao “crepúsculo das dis-
ciplinas” em que então a Humanidade vivIA, sublinhado pouco depois que
pertence “a uma geração [. . . ] que perdeu todo o respeito pelo passado e
toda a crença ou esperança no futuro” (id.: 103).
Este sentimento encontra-se, como se sabe, profusamente representa-
dos em múltiplos textos de Soares. No entanto, o que se trata aqui essen-
cialmente é evidenciar, relativamente a Bernardo Soares (mas também aos
principais modernistas e, de certo modo, a quase todos os heterónimos de
Pessoa), uma condição particular do sujeito perante o mundo do real, con-
dição essa tanto mais relevante, quanto maior for a persistência do sujeito
na elaboração de dominantes temáticas que se vão constituindo a partir
do momento em que ganha densidade estética a relação de conflito com
a realidade. De facto, torna-se necessário reconhecer o posicionamento
crítico desse sujeito em relação a uma época “esvaziada” de subjetividade
e de respeito por cada indivíduo (onde o que fundamentalmente conta
são os valores materialistas, o que conduz aquele sujeito a incidir nestes
valores a sua atenção, realçando a especificidade negativa que, segundo
ele, os caracteriza). Não é por acaso que, num outro texto do Livro do De-

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Literatura da viagem em tonalidade modernista 145

sassossego, agora de presumivelmente 1930, o mesmo Bernardo Soares


declare, ostensivamente:

Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado?
[. . . ] Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por isso são
tão pobres sempre como livros de experiência os livros de viagens,
valendo somente pela imaginação de quem os escreve. E se quem os
escreve tem imaginação, tanto nos pode encantar com a descrição
minuciosa, fotográfica a estandartes, de paisagens que imaginou,
como com a descrição, forçosamente menos minuciosa, das paisa-
gens que supôs ver. Somos todos míopes, excepto para dentro. Só
o sonho vê com (o) olhar (id.: 297-298).

Parece claro que o problema central se encontra, mais uma vez, na


entidade sujeito, no que diz respeito ao seu posicionamento em relação ao
exterior que o rodeia – que valerá acima de tudo pela relação que com ele
a “imaginação” do sujeito mantém. Nestes termos – com os quais, afinal, a
prioridade do subjetivo será, aliás, fortemente assumida por Pessoa (sendo
o dialogismo alteronímico a prova mais evidente desse posicionamento) –,
os sentidos que este empresta à subjetividade, encarando-a como espaço
de totalidade, estabelecem uma posição muito nítida, já que “É em nós que
há os lagos todos e as florestas” (Pessoa, F., 2004: 78); o mesmo é dizer,
por outras palavras, que é em cada um de nós que podemos encontrar as
forças que nos permitirão ambicionar e atingir o Ideal (“floresta ideal”,
escrevera antes, no mesmo poema) – que é em si uma forma de totalidade.

2. Ora, é igualmente por força e pelo peso destas componentes que


a viagem interior, a viagem imaginária, constitui um tópico nuclear na
poesia e na ficção de muitos dos nossos modernistas, tópico esse que
confirma, em primeira e última instâncias, a ideia segundo a qual o su-
jeito que as produz deverá ser entendido numa relação imediata com o
cto de “autorreferenciação”. Assim se reenvia (exatamente pelo que de
desdobramento alteronímico essa “autorreferência” implica) para a viabi-
lização de procedimentos de índole reflexiva, concretizando-se uma outra
premissa fundamental, que contempla o sujeito integrado num processo de
“exo-referência”, cujo enquadramento estético e/ou existencial se aproxima
da conceção bakhtiniana de exotopia.

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146 Dionísio Vila Maior

Entretanto, como se poderá deduzir, o relevo de que se reveste esta


área de reflexão não deixa de entroncar, direta e indiretamente, na pro-
blemática da viagem física – no que ela compreende de necessidade de
conhecimento e enriquecimento intelectual pelo viajante, de valorização
da sua formação, de busca da verdade, de (tantas vezes) objetivos econó-
micos, comerciais, religiosos, ou de simples apetência pela aventura, ou
pelo exótico e diferente.
Estes termos e/ou objetivos da viagem física – variavelmente presentes
em tantas narrativas de viagens, mas com os quais, afinal, a prioridade
do subjetivo se encontra, mediata e imediatamente, sempre presente –,
estes termos e/ou objetivos da viagem física, dizia, são, é certo, pro-
gressivamente intensificados com o enorme desenvolvimento científico e
tecnológico (e, por conseguinte, dos meios de transporte) que se verifica
no Ocidente nos finais do século XIX. Por outro lado, não é menos correto
afirmar-se que, também por causa disso – e pelo reconhecimento de que
a ciência, e a tecnologia, e os transportes, e o procurar conhecer melhor
o Outro não confirmam, no fim de contas, respostas definitivas –, a arte
e a literatura passam a ser encenadas, experienciando-se tantas vezes o
poeta e o escritor como alguém que se inventa a si mesmo, que viaja por
si, e em si.
Baudelaire na sua apreensão do moderno (ou, no caso, da “modernité”)
como uma propriedade em si mesma, e não tanto como uma situação em
oposição ao passado, dissolve a valência da história; e alguns poemas (es-
critos entre 1855 e 1867) que integram o Spleen de Paris revelam preci-
samente a imagem do poeta viajante através do “grand désert d’hommes”;
noutros poemas, incluídos em Les Fleurs du Mal, o sujeito poético deixa
bem visível o percurso em direção à autoconsciência moderna, pela busca
de um ideal (que a viagem em “correspondências” deixa antever, por exem-
plo, no Hymne à la Beauté), pela renúncia ao tédio e vazio do real (“Amer
savoir, celui qu’on tire du voyage! / Le monde, monotone et petit, au-
jourd’hui, / Hier, demain, toujours, nous fait voir notre [. . . ] / Une oasis
d’horreur dans un désert d’ennui!” [Baudelaire, C., 1908: 349]), pela de-
manda de interiores paraísos artificiais. Esses paraísos, demandá-los-iam
também Rimbaud (com o seu Le Bateau Ivre), Mallarmé (com Un Coup de
Dés), estabilizando-se, assim, ainda com algumas diferenças, a viagem

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Literatura da viagem em tonalidade modernista 147

baudelairiana, em autores que normalmente são reconhecidos como es-


tando na base da prática literária modernista, e, em parte, futurista.

3. Não pode deixar-se, no entanto, de sublinhar que a presença dos


dois tipos de viagem (a física e a imaginada) não se compadece, nos
nossos modernistas, com uma separação integral; pelo contrário.
António Ferro, o editor oficial (“obrigado”) da Revista Orpheu, viajou
intensamente pela Europa, Estados Unidos da América e Brasil, entre-
vistando personalidades célebres de então, comissariando exposições in-
ternacionais, proferindo importantes conferências (datam, aliás, de 1922,
alguns dos seus textos mais importantes, no que ao estudo mais alargado
do discurso manifestatário modernista português diz respeito, como é o
caso d’“A Arte de Bem Morrer” e d’“A idade do Jazz-Band”, ambas profe-
ridas em São Paulo). Trata-se, porém, do mesmo Ferro que, tendo viajado
imenso, se referiu à importância do sonho como viagem, quando, num texto
publicado n’O Século, em 6 de agosto de 1921, empresta ao sonho e à
imaginação a possibilidade de se poder “viajar por todo o mundo, mesmo
por fora do mundo. . . ” (Ferro, A., 1987: 284).
Entretanto, e no quadro de uma equacionação peculiar do fenómeno
da viagem interior no âmbito literário, encontra-se a noção de autoconhe-
cimento a que uma sensação de desânimo obriga. Nesse sentido, vale a
pena recordar que o relevo de que se reveste esta noção entronca, antes
de tudo, na representação de um posicionamento particular do sujeito,
suscetível de sistematicamente remeter para uma consciencialização poé-
tica dolorosa. Em Saudades de Mim, por exemplo, conjunto de poemas
aos quais não é alheia uma propensão eminentemente derrotista do su-
jeito, encontramos a representação poética deste desencanto. Isso mesmo
se verifica no poema É um poço sem fundo a minha alma. . . , quer quando
o sujeito poético caracteriza a sua alma como um “poço sem fundo”, quer
quando se caracteriza como uma “alma sem nexo”; escreve: “É um poço
sem fundo a minha alma. . . [. . . ] / Eu próprio caí / no fundo do poço, /
no fundo de mim mesmo. . . / Já não vejo a luz do céu”; e continua, pouco
depois: “Tento agarrar-me a mim próprio / para subir, / mas esta sen-
sação / de paredes lisas, / sem nada a que me segure, / é pior do que
tudo. . . // Custa menos morrer / do que salvar-me. . . ” (Ferro, A., s/d: 73).
Funcionando como elemento que, pela sua identificação com um “poço”,

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148 Dionísio Vila Maior

reenvia para as noções de profundidade, escuridão, frio e prisão, a “alma”


do sujeito poético acaba por vincular-se de igual modo à ideia, fluida, de
desconhecido, facilitada pela profundidade infinita (“sem fundo”) daquele
“poço”. E é precisamente nesse “poço”, dentro de si, que o sujeito inicia
uma viagem, sem contudo se encontrar. Nesse processo de autorrevelação,
o sujeito toma, então, consciência do mais amargo e do mais escuro de si
próprio, acreditando mesmo que a sua identidade, entrevista na tentativa
de se “agarrar a si próprio”, é difícil de conseguir (mais do que “morrer”).

4. Não menos elucidativos quanto à definição de um sujeito que


continuamente se procura, viajando por entre si – em termos relacionados
com alguns dos parâmetros constitutivos da conceção dialógica do sujeito
–, são os testemunhos que Almada Negreiros oferece.
É certo que, tendo-se cedo deslocado de São Tomé e Príncipe (onde
nasceu) para Portugal, viajará mais tarde para Paris (mantendo-se como
dançarino de cabaret e empregado de armazém) e, entre 1927 e 1932, para
Espanha (onde participará em [e desenvolverá] diversas manifestações cul-
turais e artísticas). E, dentro dos parâmetros do que nos interessa de-
senvolver, recorde-se como este poeta-pintor-dramaturgo-ensaísta aborda
algumas questões particularmente importantes no ensaio As 5 Unidades
de Portugal (publicado em Junho de 1935), no romance Nome de Guerra
(de 1925, mas publicado só em 1938) e no poema em prosa A Invenção do
Dia Claro (pronunciado em 1921, na Liga Naval) – todos eles evidencian-
do, de forma expressiva, através do ensaísta, do narrador, ou do sujeito
poético, uma atenção particularmente importante ao problema do sujeito:
um sujeito que ora nos aparece [estética e alteronimicamente] represen-
tado em oposição à sociedade, ora, como no caso do romance e do ensaio
As 5 Unidades de Portugal, equacionado em termos mais alargados, que
nos reenviam já para um cenário universal.
N’A Invenção do Dia Claro, o sujeito poético, dirigindo-se ao desti-
natário materno, anuncia-lhe que lhe vai contar a “viagem” que fez: “Dei
a volta ao mundo, fiz o itinerário universal. Tudo consta do meu diário
íntimo onde é memorável a viagem que eu fiz desde o universo até ao
meu peito quotidiano. Vim de muito longe até ficar dentro do meu pró-
prio peito e defendido pelo meu próprio corpo” (Negreiros, J. A., 1990:
170); antes, confessara-lhe: “Quando eu vinha para casa a multidão ia na

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Literatura da viagem em tonalidade modernista 149

outra direcção. Tive de me fazer mais pequeno e escorregadio, para não


ir na onda” (id.: 167); já em Nome de Guerra, o narrador apela: “Não
deixemos a sociedade assentar arraiais sem primeiro ter reconhecido pes-
soalmente a cada um. A ver se, por fim, ela deixa de se ofender com o
nosso sincero caso pessoal” (Negreiros, J. A., 1992a: 204-205); e, numa
reflexão com um alcance mais geral, próximo do discurso abstrato (o que,
só por isso, se torna significativo pela informação ideológica de que essa
reflexão se poderá revestir), o ensaísta enuncia n’As 5 Unidades de Por-
tugal: “A pessoa humana é a única finalidade de tudo quanto acontecer
na Terra”; e continua, afirmando que “o respeito por cada uma das pes-
soas humanas é a única ligação que teremos no diálogo das gerações e
no encontro da humanidade com a própria humanidade” (Negreiros, J. A.,
1992b: 169-170).
Ora, e independentemente, para já, do realce conferido ao outro –
que, na produção almadiana, se assume topicamente –, o que fundamen-
talmente nos interessa realçar em todas estas palavras é a sugestão que
aponta para a dimensão individual do sujeito, individualmente conside-
rado, portanto, mesmo apesar de a sua própria condição se encontrar
dependente das relações com aquele outro. E é justamente por força do
crédito concedido àquela dimensão que se torna legítimo ao narrador de
Nome de Guerra enfatizar que cada sujeito deve transpor as “malhas” da
sociedade com a sua “sinceridade”, nomeadamente quando escreve que “a
única maneira que existe no mundo para revelar cada um, a si e aos ou-
tros, está dentro de cada um mesmo, é a sua sinceridade” (Negreiros, J. A.,
1992a: 204). Com razão afirma Ellen Sapega, uma das mais entendidas
exegetas almadianas:

Se, em “A Invenção do Dia Claro”, é o próprio poeta que se inicia


numa “vida interior” por meio da viagem, em Nome de Guerra, este
conceito de viagem espiritual é exteriorizado, contado em forma de
uma história, e, assim transferido para um plano narrativo (Sapega,
E. W., 1992: 100).

5. Já no que diz respeito a Mário de Sá-Carneiro, sabe-se que viajou


para Itália, Espanha e França – mantendo, aliás, com Paris uma relação
privilegiada. Será, aliás, da capital francesa que, entre outubro de 1912 e

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150 Dionísio Vila Maior

abril de 1916, manterá uma intensa correspondência com Pessoa (que tes-
temunha os acontecimentos que envolveram a preparação e a publicação
dos dois primeiros números da revista Orpheu).
De facto, as cartas enviadas a Fernando Pessoa não podem passar
despercebidas, quando se reflete sobre a viagem interior no discurso mo-
dernista; elas constituem não só um dos mais importantes testemunhos
acerca quer do nascimento da revista Orpheu, quer do meio social e lite-
rário parisiense, como ainda (facto normalmente relacionado com o texto
epistolográfico) um vigoroso testemunho da evolução estética de Sá-Car-
neiro, das suas crises interiores, das suas incertezas, dúvidas. Nessas
cartas, Sá-Carneiro não só pede constantemente a Pessoa a opinião deste
sobre os seus poemas, contos, novelas, de problemas, inclusivamente, do
foro existencial e psicológico, mas também analisa criticamente algumas
produções de Pessoa e dos seus heterónimos. Ora, é precisamente numa
carta datada de 14 de Maio de 1913, enviada a Fernando Pessoa, que
Mário de Sá-Carneiro se pronuncia sobre uma questão que se relacio-
nará com uma das problemáticas mais importantes da sua obra: a que diz
respeito à sua viagem em busca do “Ideal” e à frustração resultante de
não ter conseguido atingir esse mesmo “Ideal”. Confessa Sá-Carneiro ao
amigo, concordando com este:

Gosto muito da sua ideia, que define bem o meu eu. Muitas vezes
sinto que para atingir uma coisa que anseio (isto em todos os cam-
pos) falta-me só um pequeno esforço. Entanto não o faço. E sinto
bem a agonia de ser-quase. Mais valia não ser nada. É a perda,
vendo-se a vitória; a morte, prestes a encontrar a vida, já ao longe
avistando-a (Sá-Carneiro, M., 1992: 139).

Independente do problema da reconhecida ligação entre a vida e a


obra de Sá-Carneiro (por diversas vezes, nessas cartas, Sá-Carneiro se
identifica com personagens das suas narrativas, como é o caso de Estanis-
lau Belcowsky [personagem de uma obra ficcional que pretendia intitular
Novela Romântica], do protagonista da novela Ressurreição, Inácio de
Gouveia, e de uma personagem da Confissão de Lúcio, Ricardo de Lou-
reiro), o que fundamentalmente nos interessa realçar nestas palavras é
uma sugestão: a que aponta para um dos estigmas que atravessa a sua

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Literatura da viagem em tonalidade modernista 151

obra poética, o derrotismo, resultante da busca, em si, de algo superior. O


poema Quase (escrito em Maio de 1913) revela-o sem grandes dúvidas:
Um pouco mais de sol – eu era brasa.
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa. . .

e adianta, pouco depois:


Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a expansão. . . (Sá-Carneiro, M.,
s/d: 68)

Ora, justamente a jornada subjetiva constitui uma presença constante


quer na poesia, quer na ficção de Sá-Carneiro. Encontram-se exemplos
flagrantes noutros poemas, como Escavação, 16, Apoteose, Taciturno, ou,
mesmo, em textos narrativos como O Homem dos Sonhos e Página de um
suicida. Mas talvez mais importante do que indicar quais os textos onde
a configuração do mundo subjetivo aparece é imputar essa presença à ne-
cessidade de Mário de Sá-Carneiro procurar transcender uma conceção
monológica do eu, apreendendo dinamicamente o seu universo interior, na
medida em que, por vezes com um elevado grau de reflexão, e consciência,
se procura compreender. Atente-se no soneto Aqueloutro (de 1916), onde
o sujeito poético se dirige a si mesmo com um posicionamento que deixa
adivinhar uma proficiência alteronímica, avaliando-se com um diapasão
crítico cujas reverberações acabam por refletir (de modo formalmente ex-
cessivo) um profundo e amargo desencanto. Assim parece confirmar-se,
quando o sujeito poético se refere ao “dúbio mascarado”, ao “mentiroso
/ [. . . ] que passou na vida incógnito”, ao “Rei-lua postiço”, ao “covarde
rigoroso. . . ”, ao “sem nervos nem ânsia”, ao “papa-açorda. . . ”, ao “balofo
arrotando Império astral”, à “Esfinge Gorda. . . ” (id.: 166-167).
Corresponde, de certa forma, e em termos dialógicos, este sujeito poé-
tico ao mesmo que, em 1913 e em 1914, se indagara, tentando encontrar
os contornos que dotassem com a consistência possível o perfil que, en-
quanto sujeito estético-literário, procurava: em Escavação, o sujeito poé-
tico escreve “Numa ânsia de ter alguma cousa, / Divago por mim mesmo
a procurar, / Desço-me todo”; em 16, e em Apoteose, recorre a um po-
sicionamento peculiar, concretizado por uma imagem bastante impressiva

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152 Dionísio Vila Maior

sugerida pelos movimentos de “subir” e de “descer”: “Subo por mim acima


como por uma escada de corda, / E a minha Ânsia é um trapézio escanga-
lhado. . . ”, escreve no primeiro (id.: 96); “Desci de mim”, no segundo (id.:
97); no poema Partida, pergunta: “[. . . ] A vida, a natureza, / Que são para
o artista? Coisa alguma”; e como que responde, apontando a solução para
o artista: “O que devemos é saltar na bruma, / Correr no azul à busca da
beleza; e, pouco de pois, continua: Viajar outros sentidos, outras vidas”
(id.: 52).
De forma ainda mais visível, ocorre a consumação desta viagem inte-
rior no poema Taciturno: neste texto, de tonalidades simbolistas, o sujeito
palmilha o seu “mundo interior” – “Percorro-me em salões sem janelas
nem portas [. . . ]. // Há roxos fins de Império em meu renunciar” (id.: 101
e 102) –, deixando perceber um certo empenhamento na busca do seu
centro interior – busca essa acompanhada, apesar de tudo, pela nota de
desencanto (já previsível no título) que a cor roxa e a ideia de fim acarre-
tam. Ora, este procedimento poder-se-á entender, em primeira instância,
como a interrogação do sujeito a si mesmo e, em segunda instância, como
a procura da reconstrução do espaço e verdade interiores (espaço aquele
isolado do real, já que os seus “salões” interiores não têm “janelas, nem
portas”), propondo para isso o sujeito percorrer as etapas interiores, com
vista ao conhecimento de si (um conhecimento, todavia, que, no conjunto
dos textos de Sá-Carneiro, se pauta frequentemente pelo malogro.
Mais: o tópico da viagem na produção sá-carneiriana estende-se aos
próprios narradores e personagens, no âmbito do texto narrativo ficcional.
Na novela Loucura, o narrador viaja por França, Inglaterra e Itália; na no-
vela Incesto, o protagonista passa por Paris, Londres, Viena, Budapeste,
Veneza, Milão, Suíça; n’A Confissão de Lúcio, o narrador evoca a sua ju-
ventude de boémia em Paris, as suas deambulações nessa cidade (corres-
pondentes, de forma projetiva, às deambulações do próprio Sá-Carneiro);
e que dizer da importância assumida por Paris em tantas novelas de Céu
em Fogo? Há de aceitar-se que poderá beneficiar de enorme este es-
tudo. Contudo, não nos parece menos importante considerar o destaque
que, também no contexto da ficção narrativa de Sá-Carneiro, assumem
a viagem interior, o sonho e a imaginação. Recorde-se, a título exem-
plificativo, a novela O Homem dos Sonhos. Aí, o narrador conhece um
homem misterioso que era feliz: viajava por onde queria, pois sonhava

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Literatura da viagem em tonalidade modernista 153

o que queria; e nessas viagens, dizia, possuía o antídoto para a mesmi-


dade da vida quotidiana; escreve: “Viajar é viver o movimento. Mas, ao
cabo de pouco viajarmos, a mesma sensação da monotonidade terrestre
nos assalta, bocejantemente nos assalta” (Sá-Carneiro, M., 1993: 148); e
continua:

Eu vivo horas que nunca ninguém viveu, horas feitas por mim, sen-
timentos criados por mim, voluptuosidades só minhas – e viajo em
países longínquos, em nações misteriosas que existem para mim,
não porque as descobrisse, mas porque as edifiquei. Porque eu
edifico tudo (id.: 150).

Entretanto, conta ao narrador as “viagens maravilhosas” que tem feito


para uma terra onde não havia luz, só noite, para um “mundo perfeito onde
os sexos não são dois só”, para um “país [. . . ] duma cor que não era cor
[sic]”, onde se “respirava [. . . ] música [sic]”, e onde era a “alma visível” e
“invisíveis, os corpos” (id.: 150 ss). . . É nesse tudo querer, nesse conseguir
“tornar infinito o universo”, que se encontra a felicidade do homem dos
sonhos, que remata:

– A vida é um lugar comum. Eu soube evitar esse lugar comum (id.:


155).

As palavras acima lembradas são bastante significativas por desenca-


dearem, pelo destaque concedido à identificação do estado de felicidade
com a viagem interior e de angústia com a vida real crise, outras pistas
de reflexão importantes. E são efetivamente essas pistas que, embora
dotadas de menor especificidade, acabam, mediatamente, por se sintoni-
zarem com a ideia geral de morte, que pode ser assumida quer como noção
aprioricamente implicada pela vivência científico-tecnológica, quer como
noção a que essa vivência acaba por conduzir. Como se, afinal, a morte e
a angústia generalizada não só fossem inerentes a um contexto cultural
nacional, e europeu, marcado por um enorme desenvolvimento científico-
-tecnológico, mas também a elas conduzisse. . . Seria, efetivamente, àquele
estádio derradeiro que, em última instância, o desenvolvimento científico-
-tecnológico conduziria, na perspetiva de uma outra personagem de Sá-
-Carneiro, Lourenço Furtado, no conto Página de um suicida (escrito em

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154 Dionísio Vila Maior

novembro de 1908 e publicado no no 72 da revista Azulejos, em 1909).


Não conseguindo resistir à sua curiosidade de conhecer a morte, Lourenço
Furtado escolhe a viagem derradeira, o suicídio: “Serei como que um ar-
rojado descobridor de mundos: Colombo descobriu a América; Vasco da
Gama, a Índia. . . eu, descobrirei a “morte”!” (Sá-Carneiro, M., s/d[a]: 127).
Com esse caminhar voluntário ao encontro da morte, Lourenço Furtado
acredita que, para além do estatuto de “descobridor”, seria igualmente
referido como um “neurasténico”. No entanto, ele próprio refere: “[. . . ]
sou simplesmente uma vítima da época, nada mais. . . O meu espírito é um
espírito aventureiro e investigador por excelência. Se eu tivesse nascido
no século XV descobriria novos mares, novos continentes. . . No começo do
século XIX teria talvez inventado o caminho de ferro. . . Há poucos anos
mesmo, ainda teria com que me ocupar: os automóveis, a telegrafia sem
fios. . . Mas agora. . . agora que me resta?. . . [. . . ] a única coisa interessante
que existe actualmente na vida é. . . a morte! Pois bem, serei o primeiro
explorador dessa região misteriosa, completamente desconhecida. . . ” (id.:
128).

6. Vamos terminando como começámos: com Fernando Pessoa e os


seus outros eus. Fernando Pessoa, é certo, nunca foi a França, nem Es-
panha, nem ao Brasil, nem aos Estados Unidos da América. Viajou, no
entanto, para a África do Sul, Açores e Madeira, tendo restringido entre-
tanto os seus percursos de viajante físico à cidade de Lisboa e arredores
(com uma viagem ainda a Portalegre, com o intuito de adquirir algumas
máquinas de impressão para fundar a tipografia Íbis). E, no universo he-
teronímico, a viagem física encontra-se presente (de forma muito visível)
apenas em Álvaro de Campos, homo viator por excelência – como refe-
riu Beatriz Berrini (1990), que, sobre esta problemática refletiu de forma
muito sistemática; já Alberto Caeiro (que nasce em Lisboa e se desloca
para o campo) e Ricardo Reis (que, tendo nascido no Porto, acaba por se
exilar no Brasil) não realizam viagens. . . nem físicas, nem imaginadas.
Caeiro é o poeta da natureza que cultiva a poesia objetiva, bem como
o processo poético de raiz sensacionista (procurando eliminar a subjetivi-
dade no discursivo poético e privilegiar os sentidos sobre a reflexão, bem
como a realidade imediata das coisas); Caeiro diz-se o poeta da antifi-
losofia (manifestando-se contra qualquer tipo de conhecimento que não

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Literatura da viagem em tonalidade modernista 155

seja por via sensorial); Caeiro afirma-se o poeta da antimetafísica e do


ceticismo artístico, filosófico, científico e religioso; Caeiro é o poeta pagão
que desmistifica a imagem do sagrado culturalmente herdada e crê num
Deus paganizado, visível nas coisas da natureza; Caeiro apresenta-se
como o poeta da antipoesia. . . Caeiro é isto tudo, mas não é viajante.
Ricardo Reis, por seu turno, não viaja fisicamente (à exceção do exílio
para o Brasil); contudo, na sua poesia, a viagem comparece, essencial-
mente, destacando a busca do autoconhecimento, associando-se à imagem
da viagem post mortem (ao percurso até chegar, com Caronte, ao destino
final) e como metáfora da vida – que a utilização recorrente dos vocá-
bulos “rio”, “curso”, “regato”, “passar”, “errar” deixam perceber em tantos
poemas, como Mestre, são plácidas, Olho os campos, Neera, Vem sentar-
-te comigo, Lídia, à beira do rio, Bocas roxas de vinho, As rosas amo dos
jardins de Adónis, Prazer, mas devagar, Ouvi contar que outrora, quando
a Pérsia, Tirem-me os deuses, Tão cedo passa tudo quanto passa!, Os
deuses e os Messias que são deuses, Saudoso já deste verão que vejo e
Feliz aquele a quem a vida grata (cf. Berrini, B., 1990: 55-58).
Quanto a Álvaro de Campos, trata-se do verdadeiro homo viator, quer
biográfica (no âmbito natural da esfera vital heteronímica), quer poeti-
camente. Tendo vindo de Tavira, onde nasceu, para Lisboa, deambula
(à semelhança de Pessoa e Soares) por Lisboa, pelas suas ruas, pelas
suas estações, pela gare do Rossio e, sobretudo, pelo cais; e, no registo
poético, são diversas as referências geográficas por onde terá “viajado”:
Escócia e Reino Unido (em Soneto antigo), Irlanda, Oriente, Índia, China
(no Opiário), Oceano Índico e costa oriental africana (na Passagem das
horas). . . Deste modo, se é verdade que à noção de viagem se encontram
vinculadas as ideias de percurso físico e mental, se é verdade que, de
todas as vozes alteronímicas, é aquela que mais “viaja”, também não é
menos verdade que o próprio comparecimento da viagem no registo poé-
tico de Campos se estabelece de forma ambígua entre o querer partir e
o querer ficar (evidente naquele “Eu sou o que sempre quer partir, / E
fica sempre”, ou no poema de 1930, Grandes são os desertos, e tudo é
deserto:

Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.


Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das

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156 Dionísio Vila Maior

camisas empilhadas [. . . ] (Pessoa, F., 1990: 228-229).

Corresponde, assim, de certa forma, e em termos dialógicos, este su-


jeito poético ao mesmo que, em 31 de dezembro de 1929, revela o pêndulo
que em si se notifica entre a partida e a chegada e entre a viagem física
e a viagem imaginada: “Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça
/ O sair de um lugar, o chegar a um lugar, conhecido ou desconhecido, /
Perco, ao partir, ao chegar, e na linha móbil que os une, / A sensação de
arrepio, o medo do novo, a náusea [. . . ]” (id.: 220).
E, no quadro do equacionamento da problemática da viagem em timbre
modernista, ganha alguma expressão as noções de angústia e desassos-
sego, nomeadamente se nessas noções valorizarmos particularidades que
se articulem indesmentivelmente com a busca identitária por parte do
sujeito, no caso, Álvaro de Campos, busca essa representada, segundo
Leland Guyer, na Ode Marítima. Nesse texto, Campos deseja integrar
as coisas marinhas, deseja viajar e sentir todas as experiências, descreve
“uma viagem, uma expedição ao conhecimento” (Guyer, L. R., 1981: 29),
procura uma “consciência ampliada do Eu” (id.: 33) – acompanhando o
volante essa viagem dentro de si. E se é certo que o poema Opiário, publi-
cado no número 1 da revista Orpheu, constituía uma primeira manifestação
evidente de uma crise que atingirá, mais profundamente, o Campos sen-
sacionista, também não é menos certo que esse poema não só se afirma
como um reflexo do pós-simbolismo, na sua vertente decadentista, como
também antecipa o desencanto na própria Ode Triunfal (presente logo nos
primeiros versos) e a imobilidade da Ode Marítima, apontada por Wladi-
mir Krysinski, quando escreve que este poema acaba por se transformar
numa “métaphore dynamique de l’immobilité” (Krysinski, W., 1997: 427).
Assim, perante a náusea e a desilusão do real, Campos busca a viagem
interior, porque acaba por se aperceber de que, afinal, mais importante do
que a viagem física é a viagem imaginada, porque é esta a que lhe revela
o seu eu mais profundo: “A vida de bordo é uma coisa triste, / Embora a
gente se divirta às vezes”; escreve no Opiário; e continua:

Eu acho que não vale a pena ter


Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

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Literatura da viagem em tonalidade modernista 157

[. . . ]
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim? (Pessoa, F., 1990: 57)

Em 1928, na Tabacaria, Campos reconhecerá a sua profunda desilu-


são:

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.


Tenho apertado ao peito [. . . ] mais humanidades do que Cristo.
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda (id.: 197).

Facilmente se pode verificar nestes versos o quanto Campos cons-


tata que, apesar de tudo ter vivido, pensado, imaginado, viajado, e de ter
procurado atingir algo que se poderá enquadrar dentro da ideia de tota-
lidade – que abarcaria, segundo ele, a História, a Religião e a Filosofia
(representadas nas figuras de Napoleão, Cristo e Kant) –, ele permane-
cerá para sempre preso do seu próprio desejo. Essa constatação, aliás,
encontra-se também presente em Bernardo Soares, quando, num texto não
datado do Livro, reconhece que o seu sonho “falhou até nas metáforas e
nas figurações”, que as suas vitórias “falharam” (Pessoa, F., 2010: 198).
Como se pode ver, estas palavras não se encontram também muito
distantes de alguns versos de Reis, com uma mesma linha temática de
um conformado derrotismo a adquirir tonalidades significativas acresci-
das, pelo facto de esse derrotismo presidir a determinadas atitudes exis-
tenciais aconselhadas pelo poeta. E uma dessas atitudes é favorecida
precisamente não só pela advertência acerca do inútil desejo em atingir
a totalidade, mas também pela apologia do desprendimento para com a
vida, justamente por Reis continuamente se empenhar em ensinar que a
resposta à passagem breve da vida, assim como à consciência do carácter
inexorável da morte, se encontra na abdicação total de lutar contra algo
que está destinado, presente naquele “abdica e sê rei de ti próprio”.
Entoação similar, encontramo-la na poesia de Pessoa ortónimo. Neste
“Fausto moderno”, a viagem pela procura da totalidade (sob a forma de
Perfeição, ou Beleza, ou Mistério, ou Identidade) é recorrente, o que nos

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158 Dionísio Vila Maior

leva mediatamente a pensar acerca das intenções estético-literárias do


poeta. Escrevia Pessoa em 1909:
Da Perfeição segui em vã conquista,
Mas vi depressa, já sem a alma acesa,
Que a própria ideia em nós dessa beleza
Um infinito de nós mesmos dista (Pessoa, F., 1986a: 154);

mais tarde, em 1919, declara:


Ali, no alto de ser, sentir é nobre,
Despido de ilusões e de ironias.
[. . . ]
Mas mesmo nessa altura de mistério
E abismo de ascensão, não encontrei
Paragem, conclusão ou refrigério (id.: 198).

O que uma breve análise destes versos permite sublinhar são dois as-
petos: antes de mais, o reconhecimento, já em 1909 (no poema Em busca
da beleza, a que o primeiro grupo de versos pertence), da inutilidade do
querer alcançar a “Perfeição”, quedando-se o próprio facto de se pensar
nela longe da condição humana; em segundo lugar, a verificação de que,
ainda que se alheie das preocupações diárias (“agonias / Da vida”, escre-
vera antes), essa atitude não oferecerá ao sujeito o lenitivo procurado, de
novo se ressumando uma conceção derrotista (sublinhada pela conjunção
adversativa “Mas”).

7. Em primeira e última instâncias, aceitando a noção de que os


textos dos autores modernistas estudados em causa se apoiam variavel-
mente sobre as coordenadas estudadas, mais facilmente compreendere-
mos a viagem interior não só como processo de indagação identitária,
mas também como condição necessária para que a própria identidade se
edifique; e essa viagem, fê-la de forma admirável Fernando Pessoa com
a pluridiscursividade heteronímica, explicando-a sinteticamente a Adolfo
Casais Monteiro, em 20 de janeiro de 1935:
O que sou essencialmente – por trás das máscaras involuntárias do
poeta, do raciocinador e do que mais haja – é dramaturgo. O fenó-
meno da minha despersonalização instintiva a que aludi em minha

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Literatura da viagem em tonalidade modernista 159

carta anterior, para explicação da existência dos heterónimos, con-


duz naturalmente a essa definição. Sendo assim, não evoluo, VIAJO.
[. . . ] Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver
evolução) enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades
novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes,
de fingir que se pode compreendê-lo. Por isso dei essa marcha em
mim, não a uma evolução, mas a uma viagem (Pessoa, F., 1986b:
348).

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A História Trágico-Marítima:
suas características no âmbito da História do Livro

Kioko Koiso

CHAM – Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar –


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de
Lisboa, Universidade dos Açores

Introdução – História Trágico-Marítima

Nos séculos XVI e XVII circulavam em Portugal os relatos de naufrágios


como literatura de cordel, baseados nos testemunhos directos e indirectos
das calamidades ocorridas na Carreira da Índia. Narrativas que muito
cativavam o público, além de algumas terem sido reeditadas, doze delas
foram reunidas em 1735 e 1736 pelo bibliófilo Bernardo Gomes de Brito
em dois tomos sob o título da História Trágico-Marítima. Para a organizar,
o compilador recorreu a fascículos, a alguns capítulos das publicações, a
um manuscrito e a outras fontes que hoje se desconhecem. Cada tomo
integra os seguintes relatos:

Tomo I
1. Galeão grande São João (naufragou em 1552)
2. Nau São Bento (1554)
3. Nau Conceição (1555)
4. Naus Águia (1560) e Graça (1559)
164 Kioko Koiso

5. Nau Santa Maria da Barca (1559)


6. Nau São Paulo (1560)

Tomo II
7. Nau Santo António
8. Nau Santiago (1585)
9. Nau São Tomé (1589)
10. Nau Santo Alberto (1593)
11. Nau São Francisco (1597)
12. Galeão Santiago (1602) e nau Chagas (1594)

Segundo Inocêncio Francisco da Silva, o compilador dividiu a colecção


dos relatos de naufrágios “em cinco volumes, de que todavia só publicou
os primeiros dous, ignorando-se o destino que tiveram os restantes, os
quaes Barbosa affirma acharem-se no seu tempo promptos para a im-
pressão” (Silva, 1858: I-378)1 . Contudo, não nos parece que houvesse
opúsculos relacionados com o desastre no mar em número suficiente para
preencher mais três tomos (KOISO, 2009; I-15). No que diz respeito ao
projecto não concretizado, restando apenas na mente do bibliófilo, refere-
-se concretamente ao terceiro:
“alguns (poucos) exemplares d’estes dous volumes apparecem acom-
panhados de um, denominado terceiro, e com essa numeração e ro-
tulo nas lombadas das capas, mas sem folha de rosto interna que
assim o declare. É formado de varias Relações avulsas, e reim-
pressas tambem avulsamente, tendo cada uma sua numeração em
separado. – Este mesmo volume, quando contém onze Relações
(entre ellas algumas, que andam incluidas nos dous tomos I e II
da Historia tragico-maritima) é o que alguns chamam Collecção
de Naufragios da qual todavia apparecem mui poucos exemplares”
(Silva, 1858: I-378).

Na verdade, existem exemplares do “terceiro tomo”. Trata-se, porém,


das miscelâneas dos fascículos encadernadas pelos seus detentores ou
pelos coleccionadores misturando, por vezes, os relatos incluídos nos men-
cionados dois tomos e, noutros casos, alguns exemplares do mesmo relato
1
A descrição de Diogo Barbosa Machado é “Tom. 3. 4. e 5. eStaõ promptos para a
ImpreSSaõ, como tãobem eStaõ” (Machado, 1741: I-532).

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A História Trágico-Marítima: suas características no âmbito
da História do Livro 165

das diferentes edições. Também há casos em que se juntam os folhetos


de sermões e de outros temas que não têm relação com o naufrágio. Uma
vez que não se trata de uma nova publicação, mantém-se nos exemplares
do “terceiro tomo” a paginação de cada opúsculo sem frontispício nem ín-
dice impressos para o volume. Consequentemente, entre os mais de trinta
exemplares do “terceiro tomo” que consultámos2 , enquanto um contém
apenas três relatos, alguns integram oito, ou dez, ou mais narrativas de
naufrágios. Visto que os títulos na lombada também são variados, como,
por exemplo, GOMES DE BRITO / HISTORIA TRAGICO-MARITIMA 3
(exemplar da Biblioteca Boxeriana, Lilly Library, Indiana University) e
HISTOR. / TRAGIC. / MARIT. / T. III (exemplar da Houghton Library,
Harvard College Library, Harvard University), alguns não têm títulos ou
estão gastos e ilegíveis. Outros ostentam, por exemplo, RELACAOES
[sic] DE NAUFRAGIOS 1552-1651 (exemplar da British Library), Naos
da India (exemplar da Biblioteca Nazionale Marciana, em Veneza), entre
outros. Segundo cremos, o único título destas lombadas que pode coin-
cidir com a referência de Silva acima citada é COLLECÇÃO DE NAU-
FRAGIOS 3 RELAÇÕES AVULSAS da The Oliveira Lima Library, The
Catholic University of America, que contém seis relatos (KOISO, 2009: II,
723-738).
No sentido restrito, a História Trágico-Marítima indica doze relatos
publicados nos dois tomos da mencionada colectânea. No sentido lato,
integra mais seis relatos que se consideram como do mesmo género não
apenas pela sua característica e pela sua dimensão como provavelmente
por terem sido reunidos com mais frequência nos exemplares do “terceiro
tomo” (KOISO, 2009: I, 11-15, 291-303). Os relatos são:

13. Nau Nossa Senhora da Conceição (1621)


14. Nau São João Baptista (1622)
15. Nau Nossa Senhora do Bom Despacho (1630?)
16. Nau Nossa Senhora de Belém (1635)
17. Naus Sacramento (1647) e Nossa Senhora da Atalaia
(1547)
18. Galeão São Lourenço (1649)
2
Além dos 28 exemplares que consultámos para a tese de doutoramento, verificámos
mais exemplares.

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166 Kioko Koiso

Problemática no estudo sobre a História Trágico-Marítima

Não apenas o público da época foi atraído pela História Trágico-Maríti-


ma; também os leitores e os investigadores actuais, o que faz com que
tenha sido alvo de estudos académicos a partir de perspectivas tão di-
ferentes como a literatura, a história, a ciência náutica, a geografia, a
antropologia entre outros domínios. Todavia, a análise fundamenta-se em
regra nos textos compilados por Brito. Aliás, a edição original do sé-
culo XVIII tem sido menos consultada para os trabalhos de pesquisa, pois
recorre-se mais a outras do século XX, nomeadamente a de Damião Peres
(1936-1937, 1942 e outras reedições), de António Sérgio (editada e reedi-
tada nos anos 1950), a da editora Afrodite (1972) e a da Europa-América
(D.L. 1982).
Dado que temos elaborado os trabalhos apoiando-nos nas versões
retrospectivas3 , entendemos ser importante consultar os fascículos das
narrativas antes de terem sido integrados na História Trágico-Marítima,
uma vez que aos textos que já tinham sofrido alterações efectuaram-se
mais modificações na etapa de compilar os relatos, quer por descuido
quer intencionalmente, e ainda outras intervenções nas edições moder-
nas. Por conseguinte, além de poder esclarecer as palavras e frases
incompreensíveis encontradas nos textos da História Trágico-Marítima,
sabem-se, através da consulta das versões anteriores, quais são palavras
e frases eliminadas, substituídas, inseridas e outras quaisquer alterações
efectuadas.
A título de exemplo, para o relato mais famoso na História Trágico-
-Marítima “o naufrágio do galeão grande São João”, naufragado em 1552
e conhecido mais como “o naufrágio de Sepúlveda”, além do manuscrito
“Perdimento do gualeão São João . . . .” redigido provavelmente na época
3
Aos títulos inseridos na bibliografia do presente trabalho, podem-se acrescentar-
-se os dos seguintes trabalhos: História Trágico-Marítima: factos revelados em do-
cumentação inédita, Lisboa, Academia de Marinha, 2004; “Contactos dos Portugue-
ses com os Africanos através dos testemunhos não referidos na História Trágico-Ma-
rítima”, Actas do congresso internacional: Saber Tropical em Moçambique organiza-
das pelo Instituto de Investigação Científica Tropical e publicadas no seguinte site:
http://2012congressomz.files.wordpress.com/2013/08/t07c01.pdf.

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A História Trágico-Marítima: suas características no âmbito
da História do Livro 167

(ANÓNIMO), existem a 1.a edição, a 2.a edição, a 3.a edição, a 3.a edição
emendada, a 4.a edição, a 5.a edição e uma contrafacção4 , ou seja, o texto
da História Trágico-Marítima corresponderá, pelo menos, à nona versão
sujeita a centenas de alterações sofridas em cada publicação. Neste
contexto, as edições do século XX poderão considerar-se a décima versão
com ainda mais intervenções.
No cenário da morte, depois de ter sido despida pelos autóctones, D.
Leonor, mulher do capitão Manuel de Sousa de Sepúlveda, fez uma cova
na areia para se meter até morrer. Todavia, a passagem de “fazendo hua
coua na area onde Se meteo atee a cinta” não se encontra no manuscrito,
pois foi acrescentada na 1.a edição. Como temos analisado noutras oca-
siões, depois da dramatização deste episódio e de outras modificações, o
naufrágio de Sepúlveda sofreu centenas de alterações nas restantes edi-
ções. (KOISO, 2004: I, 142-158; IDEM, 2009: I, 73-111, 307-437 e II,
765-1043).
Além dos episódios, alguns dados como números, datas, direcção do
vento, nomes, entre outros também divergem de uma edição para outra.
Referimos apenas a vicissitude da modificação do nome do mestre Cris-
tóvão Fernandes, chamado o Curto, que conhecemos no “naufrágio de
Sepúlveda”, como um exemplo significativo:

“Cristovão Fez [= Fernandez] ho Quarto dalcunha” (Manuscrito, f.


419v).
“ChriStouão Fernandez dalcunha o curto” (1.a edição, cap. iiij).
“CriStouam Fernandez, dalcunha o curto” (2.a edição, cap. iiij).
“ChriStouam Fernandez Dalcunha o curto” (3.a edição, cap. III).
“ChriStouam Fernandez Dacunha o curto” (3.a edição emendada,
cap. III).
4
Conhece-se, por enquanto, apenas um exemplar para cada uma das edições oficiais
e consultámos mais de vinte exemplares da contraacção: 1.a edição (publicada no ano
desconhecido: exemplar conservado na Biblioteca D. Manuel II no Paço Ducal de Vila
Viçosa), 2.a (1564: British Library), 3.a (1592: British Library), 3.a edição emendada
(1592: Instituto de História Económica e Social da Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra), 4.a edição (1614: British Library) e 5.a edição (1625: Biblioteca Nacional
de Portugal). Embora Charles Ralph Boxer refira uma edição publicada em 1633 (Boxer,
1957: 52), ainda não conhecemos nenhum exemplar.

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168 Kioko Koiso

“ChriStouão Fernandes da Cunha o curto” (4.a edição, CAPITVLO


TERCEIRO).
“ChriStouão Fernandes da Cunha o curto” (5.a edição, cap. III).
“ChriStovaõ Fernandes da Cunha o Curto” (Contrafacção, cap. III).
“ChriStovaõ Fernandes da Cunha o Curto” (História Trágico-Marí-
tima, tomo I, p. 7).

O nome do mestre Cristóvão Fernandez, que se chamava por alcunha


o Quarto provavelmente pelo seu cargo, passou a ser Cristóvão Fernandes
da Cunha, com a alcunha o Curto como se fosse um homem baixo. Embora
a modificação do nome do mestre não afecte muito a narrativa, centenas
de outras intervenções efectuadas desde o manuscrito até à da História
Trágico-Marítima fornecem dados incorrectos e transmitem a história cada
vez afastada da original nos pormenores.
Nestas circunstâncias, consideramos que, para prosseguir a pista das
alterações, convém saber quais são as editio princeps, as outras legíti-
mas e as contrafacções. Para tal, temos dois trabalhos paradigmáticos
elaborados por Charles Ralph Boxer. Trata-se de “An Introduction to
the História Trágico-Marítima” publicado em 1957 e outro suplementar
“An Introduction to the História Trágico-Marítima (1957): some correc-
tions and clarifications” em 1979, em que o historiador inglês descreve
as características de cada edição dos mencionados dezoito relatos, clas-
sificando as editio princeps, outras edições oficiais e as contrafacções.
Embora tenham passado mais de 50 anos desde o primeiro artigo e este
tenha sido citado nos trabalhos académicos relativos quer aos naufrágios
portugueses quer à colectânea de Brito, poucos autores desenvolveram
a análise de Boxer nem abordaram a História Trágico-Marítima através
das edições retrospectivas, nem sequer do ponto de vista da História do
Livro. Contudo, na análise do historiador inglês que nos parece quase
perfeita, sobretudo tendo em conta que na época não tinha acesso fácil
aos diversos exemplares, houve edições que não lhe foi possível consul-
tar directamente, colocando apenas as referências de alguma publicação
e dos catálogos. Ao longo da nossa pesquisa, encontrámos exemplares
das primeiras edições e de outras edições raras que Boxer não consultou,
ou de que nem conhecia a sua existência (KOISO, 2009: I, 65-290; II,
647-722).

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A História Trágico-Marítima: suas características no âmbito
da História do Livro 169

Nas portadas das edições assimiladas, estão registados os títulos e


outras indicações mais ou menos iguais aos das edições legítimas, os
anos de publicação e os nomes dos impressores das originais. Além da
descrição “Com licença da Sancta InquiSição”, estão copiadas numa das
primeiras páginas, ou na última página, todas ou algumas das licenças da
inquisição como se fossem ainda válidas. Apesar de Boxer nem sempre
explicar concretamente os pormenores dos critérios, as edições legítimas
e outras assimiladas podem distinguir-se pelo formato, pela tipografia,
pelo papel e pelas marcas de água (Boxer, 1957: 52).
Referimo-nos a um trabalho que ainda não chama muita atenção dos
interessados pela História Trágico-Marítima mas que esclarece a grande
parte das nossas dúvidas. Trata-se da dissertação de mestrado de Maria
Teresa Esteves Payan Martins, de 1995, intitulada Livros Clandestinos
e Contrafacções em Portugal no século XVIII que dedica um capítulo a
onze dos mencionados dezoito relatos de naufrágio, definindo as edições
através das comparações das características da tipografia do texto, das
letras capitulares ornamentadas e das xilogravuras com outras publica-
ções autenticadas. Embora a análise elaborada apenas com os exemplares
encontrados em Portugal, nomeadamente na Biblioteca Nacional de Por-
tugal, tenha alguma limitação, o trabalho que passou a ser publicado em
2012 poderá abrir um horizonte marcante no estudo relativo à História
Trágico-Marítima.
Vejamos os frontispícios da primeira edição e da contrafacção do relato
da nau Santo Alberto. Nota-se uma diferença óbvia, pois coloca-se uma
xilogravura de uma embarcação apenas numa destas sem se saber qual
a editio princeps e a edição ilegítima. Resumindo a análise de Payan
Martins, o tipo de algumas letras usadas na portada iguala ao de Ser-
mões Panegyricos do Fr. António de Almeida, publicadas em 1718 e ao
Exercicios Espirituais do padre Manoel Bernardes em 1731 na oficina
de António Pedroso Galrão5 . Ou seja, apesar de estar estampado “o ano
1597” no frontispício, uma das duas edições do relato da nau Santo Al-
berto com a xilogravura de uma embarcação saiu do prelo deste impressor
no século XVIII (Payan, 2012: 254-258).
5
Quanto ao ano do nascimento e ao do falecimento de António Pedroso Galrão, o
catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal indica apenas “169- -173-”.

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170 Kioko Koiso

Através da falsidade comprovada desta edição, podemos deduzir que


duas das edições do relato de naufrágio da Nossa Senhora do Bom Des-
pacho sejam contrafeitas, pois têm, na página 47, a mesma xilogravura
de uma embarcação estampada na frontispício do referido relato da nau
Santo Alberto. Contudo, uma destas edições tem uma fruteira na portada
e outra tem o título divergente e um açafate. Aliás, conhecemos ainda
outra edição do relato da nau Bom Despacho com um açafate na página
do título e uma jarra com flores na página 47. Segundo Payan Martins,
ambas as xilogravuras nas páginas do título, ou seja, a fruteira e o açafate
são da oficina de Galrão (Payan, 2012: 244), apesar de estar registado
Pedro Crasbeeck [sic] como impressor. Enquanto Boxer indica duas con-
trafacções (b) e (c) sem conhecer outra com o açafate no frontispício e uma
embarcação na página 47 (BOXER, 1957: 83-84), Payan Martins analisa
apenas a xilogravura da jarra na página 47 sem reparar na da embarca-
ção. Contudo, afinal de contas, existem três edições contrafeitas para o
relato de naufrágio da nau Bom Despacho (Payan, 2012: 243-247).

Classificação de Boxer Xilogravura no frontispício Xilogravura na p. 47


b) Fruteira Embarcação
c) Açafate Jarra
Açafate Embarcação

Em relação ao relato de naufrágio da nau Santiago, uma das duas


edições contém na portada xilogravura da fruteira igual à de uma das
contrafacções do relato de naufrágio da nau Bom Despacho e que pertence
ao material iconográfico de Galrão. Além disso, a vinheta da jarra que se
encontra na última página é idêntica àquilo que se faz na oficina desse
impressor do século XVIII e que se insere na página 47 de uma das edições
assimiladas do relato da nau Bom Despacho (Payan, 2012: 248).
Quanto ao Tratado do galeão Santiago e da nau Chagas, duas edições
publicadas em 1604 pelo impressor António Álvares são consideradas
como 1.a edição (a) e (b) (BOXER, 1957: 69-70; LANCIANI, 1997: 165;
MONIZ, 2001: 44-45). Apesar de os títulos serem distintos6 , têm a
vinheta comum de uma cena da embarcação no meio da tempestade com
6
a) TRATADO DAS / BATALHAS, E SVCESSOS DO / Galeão Sanctiago com os
OlandeSes na Ilha de / Sancta Elena. E da Nao Chagas com os VngleSes [sic] / antre

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A História Trágico-Marítima: suas características no âmbito
da História do Livro 171

o aparecimento de Nossa Senhora da Piedade no céu e o texto comum


de 65 páginas. A xilogravura idêntica já foi usada na 3.a edição, na 3.a
edição emendada e na 5.a edição do relato do galeão São João, impressas
também na oficina de António Álvares.
Reparámos numa característica curiosa nas duas edições, pois algu-
mas palavras estão borradas de mesma maneira com tinta nas segunda e
terceira linhas do verso da página 6, pelo menos, nos seis exemplares das
seguintes instituições: (a) Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, British
Library, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e The Hispanic
Society of America, em Nova Iorque7 ; (b) Biblioteca da Ajuda e Herzog
August Bibliothek, em Wolfenbüttel, Alemanha8 . Todavia, não acontece o
mesmo com o exemplar da The James Ford Bell Library of University of
Minnesota, em Minneapolis9 .
O texto incide na discussão sobre se iriam passar pela Ilha de Santa
Helena ou não na viagem de regresso. Transcrevemos o passo, represen-
tando a parte borrada com duas linhas:

“[p. 6r] Com outras ordẽs que me derão em hum regimento aSsinado
pello ViSorey, que eu não poSSo em que queira deixar de guardar
puntual-
[p. 6v] mente. O qual regimento antre outras muitas, couSas que
não Seruem para eSte lugar, continha em Suma o Seguinte. Que a
derrota foSSe á ilha de Sancta Elena, como Sua mageStade mandaua,
as Ilhas dos Açores: Ambas Capitainas da / carreira da India. E da cauSa, & deSaStres,
por- / que em vinte annos Se perderão trinta & / oito náos della: com outras / couSas
curioSas. . . . . b) DAS BATALHAS / DO GALEAOM SANCTIAGO / com OlandeSes. E
da nâo Chagas que ardeo antre as / Ilhas, com VngleSes [sic]. Das cauSas porque em 20
annos / Se perderão 38. nâos da India. De como a cõquiSta, & / nauegação do Oriẽte
não pertẽce a nação algua Senão / á PortugueSes, & lhe foi dada por noSSo Senhor IESV
/ CHRISTO. Dos Sitios das Ilhas da Sancta Elena, / & de Fernão de Loronha. E do que
nellas á.
7
Agradecemos ao Dr. John O’Neil da The Hispanic Society of America por ter apoiado
a nossa pesquisa em 2009 e por ter consultado o exemplar para confirmar a nossa dúvida
para o presente trabalho.
8
Em relação à edição (b), o exemplar da Biblioteca da Ajuda era o único que se conhe-
cia. Contudo, verificámos outro exemplar na Herzog August Bibliothek, em Wolfenbüttel.
9
Agradecemos à Dr.a Marguerite Ragnow da The James Ford Bell Library por ter
apoiado a nossa pesquisa em 2009 e por ter consultado o exemplar para confirmar a
nossa dúvida para o presente trabalho.

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172 Kioko Koiso

leuando o galeão a ponto de guerra, & que achando algum nauio


Surto o cometeSSe, Se lhe pareceSSe que Seguramente o podia fazer,
de modo que não deSgarraSSe o Surgidouro”.

A frase original lê-se como segue:

“O qual regimento antre outras muitas, & muy eSpantoSas


couSas que não Seruem de nada para eSte lugar, continha em Suma
o Seguinte”.

São apenas expressões que destacam o assunto, pelo que não nos pa-
rece que tenham podido provocar algum problema em relação à Inquisição.
As razões de estas palavras serem apagadas ainda ficam por esclarecer.
Acrescentamos que, nas duas contrafacções (c) e (d) na classificação de
Boxer (BOXER, 1957: 71), as palavras borradas não aparecem, sendo
suprimidas10 .

Conclusão

Como vimos sucintamente, por um lado, para o estudo sobre a História


Trágico-Marítima, somos de opinião de que é crucial conhecer as versões
retrospectivas para saber as descrições e as histórias originais dos relatos.
Embora as alterações também tenham relevância no âmbito da literatura
como, por exemplo, a dramatização do cenário, é fundamental, para a
análise científica, saber quais as informações mais correctas, pois não
se pode reproduzir as verdadeiras rotas que as naus tomaram, seguindo
direcções incorrectas do vento e de localizações falsas das naus, como
temos falado noutras ocasiões.
Em segundo lugar, para isto, convém saber quais são as edições le-
gítimas, ou as contrafacções, pois é necessário seguir a vicissitude das
modificações das palavras, ou das expressões, ou dos cenários.
10
Na contrafacção (c), “O qual regimento entre outras muytas couSas que não Servem
para eSte lugar, continha em Summa o Seguinte” (p. 4); Na contrafacção (d), “O qual
regimento entre outras muytas couSas, que naõ Servem para eSte lugar, continha em Summa
o Seguinte” (p. 5).

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A História Trágico-Marítima: suas características no âmbito
da História do Livro 173

Em terceiro lugar, é útil consultar directamente os exemplares, em vez


de copiar apenas informações fornecidas por outros investigadores como
Charles Ralph Boxer ou nos catálogos das bibliotecas, embora fiáveis, pois
houve uma grande margem para desenvolver os trabalhos do historiador
inglês elaborados há mais de cinco décadas (KOISO, 2009: I, 65-290).
Apesar de não caber tudo no presente trabalho, as assinaturas, os ex-
-libris e outras quaisquer anotações poderão revelar a história que cada
exemplar experimentou.

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Bibliografia

Fontes Manuscritas
ANÓNIMO, “Perdimento do gualeão São João que vinha da Imdia pera
Portuguall Manoell de Sousa de Sepulluada por capitão”, Miscelânea
Histórica, vol. II, fls. 418v-433 (BA Cod. 50-V-22).

Fontes Impressas
AMARAL, Melchior Estácio do Amaral (1604a), Tratado das Batalhas,
e Svcessos do Galeão Sanctiago com os OlandeSes na Ilha de Sancta
Elena. E da Náo Chagas com os VngleSes [sic] antre as Ilhas dos Açores:
Ambas Capitainas da carreira da India. E da cauSa, & deSaStres, por que
em vinte annos Se perderão trinta & oito náos della: com outras / couSas
curioSas, Lisboa, por António Álvares. (editio princeps)
IDEM (1604b), Das Batalhas do Galeaom Sanctiago com OlandeSes.
E da nâo Chagas que ardeo antre as Ilhas, com VngleSes. Das cauSas
porque em 20. annos Se perderão 38. nâos da India. De como a cóquiSta,
& nauegação do Oriẽte não pertẽce a nação algua Senão á PortugueSes,
& lhe foi dada por noSSo Senhor Iesv Christo. Dos Sitios das Ilhas da
Sancta Elena, & de Fernão de Loronha. E do que nellas á, Lisboa,
António Álvares. (editio princeps)
IDEM (1604c), Tratado das Batalhas, e Sucessos do Galeam Santiago
com os Olandezes na Ilha de Santa Elena, e da Nao Chagas com os
Inglezes entre as Ilhas dos Açores: ambas Capitanias da carreyra da
India, & da cauSa, & deSaStres, porque em vinte annos Se perdêraõ trinta,
& oyto Naos della, Lisboa, na Oficina de António Álvares. (Contrafacção)
A História Trágico-Marítima: suas características no âmbito
da História do Livro 175

IDEM (1604d), Tratado das Batalhas, e Sucessos do Galeam Santiago


com os Olandezes na Ilha de Santa Elena, e da Nao Chagas com os
Inglezes entre as Ilhas dos Açores: ambas Capitanias da carreyra da
India, & da cauSa, & de?a?tres, porque em vinte annos Se perdêraõ trinta,
& oyto Naos della, Lisboa, na Oficina de António Álvares. (Contrafacção)
BRITO, Bernardo Gomes de (1735-1736), Historia Tragico-Maritima.
Em que se escrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos
de Portugal, depois que se poz em exercicio a Navegaçaõ da India, 2
tomos, Lisboa Occidental: Officina de Congregação do Oratorio.
IDEM (edição de António Sérgio, 1955-1956), História Trágico-Ma-
rítima, 3 vols., edição anotada, comentada e acompanhada de um estudo
por António Sérgio, Lisboa: Editorial Sul.
IDEM (edição de Neves Águas, 1971-1972), História Trágico-Maríti-
ma, Lisboa: Edições Afrodite.
IDEM (edição de Neves Águas, s.d.), História Trágico-Marítima, Mem
Martins: Europa-América.
Cardoso, Manuel Godinho (1602a), Relaçam do navfragio da nao San-
tiago & itinerario da gente que delle Se Saluou, Lisboa, por Pedro Cras-
beeck. (editio princeps)
IDEM (1602b), Relaçam do navfragio da nao Santiago, & itenerario
da gente que delle Se Salvou, Lisboa, por Pedro Crasbeeck. (Contrafacção).
Galeam S. Ioam. HiStoria da muy notauel perda do Galeão grande
de S. Ioão. Em que Se contão os grandes trabalhos, & laStimoSas couSas
que aconteceram ao Capitam Manoel de Sousa. E o lamentauel fim que
elle, & Sua molher, & filhos, & toda a mais da gente ouueram. O qual Se
perdeo o anno de 1552. a 24. de Iunho na terra do Natal em trinta, &
hum graos. Foy viSto, & approvado pelo Pedro Frey Manoel Coelho. Em
Lisboa. Por Antonio Aluarez. E em Sua casa Se vende junto a N. Sña da
Oliueira. 1625. (Quinta edição)
Galeam S. Ioam. Historia da mvy notauel perda do Galião grande S.
Ioam. Em que Se contaõ os grandes trabalhos, & laStimoSas couSas que
aconteceram ao Capitão Manoel de SouSa. E o lamentauel fim que elle,
& Sua molher, & filhos & toda a mais da gente ouueram. O qual Se perdeo
o Anno de mil, & quinhentos, & cincoenta, & dous, a vinte quatro de Iunho
na terra do Natal, em trinta, & hum graos. [Colofão] Foy viSto pello P.
F. Manoel Coelho, ImpreSSo com licença em Euora em caSa de FranciSco

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176 Kioko Koiso

Simões, Anno de mil & SeiScentos, & quatorze. (Quarta edição)


Galeam Sam Ioam. Historia da mvy notavel perda do Galeam grande
Sam Ioam. Em que Se contam os grandes trabalhos, & laStimosas couSas
que aconteçerão ao Capitão Manoel de SouSa de Sepulueda. E o lamen-
tauel fim que elle & Sua molher & filhos, & toda a mais da gente ouueram.
O qual Se perdeo no anno de mil, & quinhentos & cincoenta & dous, a
vinte quatro de Iunho, na terra do Natal em trinta & hum graos. ImpreSSo
com licença: & visto pollo Reuerendo Padre MeStre Frey Bertholameu
Ferreyra. Em Lixboa, por Antonio Aluarez ImpreSSor. Anno 1592. Frey
Bertholameu Ferreyra. (Terceira edição)
Galeam Sam Ioam. Historia da mvy notavel perda do Galeam grande
Sam Ioam. Em que Se contam os grandes trabalhos, & laStimoSas couSas
que acontecerão ao Capitão Manoel de SouSa de Sepulueda. E o lamen-
tauel fim que elle & Sua molher & filhos, & toda a mais da gente ouueram.
O qual Se perdeo no anno de mil, & quinhentos & cincoenta & dous, a
vinte quatro de Iunho, na terra do Natal em trinta & hum graos. ImpreSSo
com licença: & ViSto, & emendado pollo Reuerendo Padre MeStre Frey
Bertholameu Ferreyra: Em Lixboa: Por Antonio Aluarez ImpreSSor. Anno
1592. Frey Bertholameu Ferreyra. (Terceira edição emendada)
HiStoria da muy notauel perda do Galeão grande Sam João. Em que Se
contam os innumeraueis trabalhos e grandes deSauenturas q aconteceram
ao Capitão Manoel de SouSa de Sepulueda. E o lamẽtauel fim q elle e
Sua molher e filhos e toda a mais gente ouuerão. O qual Se perdeo no
anno de .MD. Lij. a vinte e quatro de Junho, na terra do Natal em xxxj.
graos. (editio princeps).
Historia da muy notauel perda do galeão grande Sam Ioam. Em que
Se recontão os caSos deSuairados que aconteScerão ao capitão Manoel de
SouSa de Sepulueda. E ho lamentauel fim que elle & Sua molher & filhos,
& toda a mais gente ouuerão. O qual Se perdeo no anno de M.D.LII.
a vintequatro de Iunho, na terra do Natal em xxxj. graos. Com licença
impreSSo. Em Lisboa. AcabouSe aos .xx. dias do mes de Mayo. Em caSa
de Ioam da Barreyra M.D.LXIIII. (Segunda edição)
Historia da muy notavel perda do galeam S. Joam. Em que Se contaõ
os grandes trabalhos, & laStimoSas couSas, que acontecèraõ ao Capitaõ
Manoel de SouSa Sepulveda, & o lamentavel fim, que elle, & Sua mulher, &
filhos, & toda a mais gente houveraõ, na terra do Natal onde Se perdèraõ

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A História Trágico-Marítima: suas características no âmbito
da História do Livro 177

a 24. de Junho de 1552. Em Lisboa. Na Officina de Antonio Alvares.


(Contrafacção)
LAVANHA, João Baptista (1597a), Navfragio da nao S. Alberto, e
itinerario da gente, qve delle se salvov, Lisboa, Em casa de Alexandre de
Siqueira. (editio princeps)
IDEM (1597b), Navfragio da nao Santo Alberto, e Itenerario da gente,
que delle Se Salvou, Lisboa, em casa de Alexandre de Siqueyra. (Contra-
facção).

Estudos
BOXER, Charles Ralph (1957), “An Introduction to the História Trági-
co-Marítima”, Revista da Faculdade de Letras, n.o 3, série I, Lisboa, Uni-
versidade de Lisboa, pp. 48-99.
IDEM (1979), “An Introduction to the História Trágico-Marítima
(1957): some corrections and clarifications”, Quaderni Portoghesi, n.o 5,
Pisa, Giardini Editori e Stampatori, pp. 99-112.
KOISO, Kioko (2004), Mar, Medo e Morte: aspectos psicológicos
dos náufragos na História Trágico-Marítima, na documentação inédita e
noutras fontes, 2 vols., Cascais, Patrimonia.
IDEM (2009), História Trágica do Mar: navegações portuguesas nos
séculos XVI, XVII e XVIII, Tese de doutoramento apresentada à Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa.
LANCIANI, Giulia (1997), Sucessos e Naufrágios das Naus Portu-
guesas, Lisboa, Caminho.
MACHADO, Diogo Barbosa (1741), Biblioteca Lusitana, histórica, crí-
tica e cronológica, na qual se compreende a notícia dos autores portu-
gueses e das obras que compuseram desde o tempo da promulgação da
Lei da Graça até ao tempo presente, 4 tomos, Lisboa Occidental, Officina
de Antonio Isidoro da Fonseca, tomo I.
MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan (1995), Livros Clandestinos
e Contrafacções em Portugal no Século XVIII, Tese de mestrado em Lite-
ratura e Cultura Portuguesas – Época Moderna – apresentada à Univer-
sidade Nova de Lisboa.
IDEM (2012), Livros Clandestinos e Contrafacções em Portugal no

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178 Kioko Koiso

Século XVIII, Lisboa, Edições Colibri.


MONIZ, António Manuel de Andrade (2001), A História Trágico-
-Marítima: Identidade e Condição Humana, Lisboa, Colibri.
SILVA, Innocencio Francisco da (1858), Diccionario Bibliographico
Portuguez. Estudos de Innocencio Francisco da Silva. Applicaveis a
Portugal e ao Brasil, Tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional.

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Carlos Ríos e sua Fábrica de Realidade

Flávia Walter1
Alexandra Filomena Espindola2

Resumo: Há na literatura contemporânea uma volta aos relatos de viagens


como maneira de construir as narrativas, já que a viagem nunca deixou de ser
um instrumento de autoridade para aquele que narra, e o viajante sempre foi
aquele que viu e não somente aquele que ouviu, dando mais “veracidade” aos
acontecimentos. Propomos pensar a questão deste narrador viajante nas nar-
rativas intituladas Manigua: novela swahili e Cuaderno de Pripyat do escritor
argentino contemporâneo Carlos Ríos. Procuraremos compreender como o gê-
nero relato de viagem é retomado hoje e quais elementos diferenciais “novos”
se entrelaçam como os “tradicionais” deste gênero, com destaque à confusão de
tempos/espaço.

Palavras-chave: Literatura Contemporânea; Relato de Viagem; “Fábrica de


Realidade”.

Resumen: Hay en la literatura contemporánea la vuelta de los relatos de


viajes como forma de construir las narrativas, ya que el viaje nunca ha dejado
de ser un instrumento de autoridad para aquel que narra, y el viajante siempre
fue aquel que ha visto y no solamente aquel que ha escuchado, dando más
“veracidad” a los acontecimientos. Discutiremos la cuestión del narrador viajero
en las narrativas intituladas Manigua: novela swahili y Cuaderno de Pripyat
del escritor argentino Carlos Ríos. Buscaremos comprender como el género
1
Mestre em Ciências da Linguagem pela Universidade do Sul de Santa Catarina e
professora do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). Autora da dissertação intitulada
A literatura de Carlos Ríos: “fábrica de realidade”, defendida em 2014.
2
Doutora em Ciências da Linguagem pela Universidade do Sul de Santa Catarina.
180 Flávia Walter e Alexandra Filomena Espindola

relato de viaje es retomado hoy y cuales elementos diferenciales “nuevos” se


entrelazan como los “tradicionales” de este género, con destaque a la confusión
de tiempos/espacios.

Palabra clave: Literatura Contemporánea; Relato de Viaje; “Fábrica de Re-


alidad”.

Este texto tem o propósito de refletir sobre as narrativas de Carlos


Ríos e mostrar um pouco sobre como está sendo pensada a literatura
do presente, que está unindo cada vez mais as artes plásticas com a
literatura. A leitura das narrativas de Carlos Ríos nos dá a percepção
estética de estranhamento, de desconforto, de dúvida, de curiosidade, de
contentamento, provocando emoções que devem permanecer no mundo do
incompreensível, prevalecendo uma resistência ao sentido.
Poeta e romancista argentino, Carlos Ríos nasceu em 1967 em Santa
Teresita. Autor de uma considerável quantidade de publicações obteve
prêmios literários por trabalhos poéticos e contos. Dentre suas princi-
pais livros podemos citar: Media romana (ediciones el broche, 2001),
La salud de W.R. (dársena3, 2005), La recepción de una forma (bonobos,
México, 2006) e Nosotros no (Ediciones UNL, 2011); La dicha refinada
(dársena3, 2009) e Háblenme de Rusia (Goles Rosas, 2010); a narra-
tiva Manigua, una novela swahili, que foi editada pela editora Entropia
em 2009 e também a narrativa A la sombra de Chaki Chan (Trópico Sur
Editor, Uruguay, 2011). Foi finalista no Concurso Nacional para Jovens
Narradores Haroldo Conti em 1994. Em 2001, foi contemplado com o
Prêmio do Concurso de Poesia Ginés García, de Buenos Aires e tam-
bém uma menção no Concurso Nacional de Poesia Fundação Outubro.
No México, em Puebla, no ano de 2004, ganhou o Primeiro Prêmio do
Concurso Universitário de Poesia, pelo livro La recepción de una forma.
Em 2005, é selecionado por David Huerta para integrar o anuário deste
mesmo ano, publicado pelo Fondo de Cultura Económica (FCE). Também
no México, foi jurado, finalista e vencedor de prêmios literários, assim
como foi declarado visitante distinto da prefeitura de Huejotzingo, em
Puebla, onde de 2002 a 2009 morou. Em 2008, coordenou a Oficina de
iniciação à narrativa, também lecionou sobre técnicas narrativas na Es-

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Carlos Ríos e sua Fábrica de Realidade 181

cola de Escritores-Puebla da Sociedade Geral de Escritores de México


(Sogem) e Comissão Técnica do Programa de Estímulo à Criação e ao De-
senvolvimento Artístico (Foescap). Atualmente é coordenador de oficinas
de leitura e escritura nos cárceres bonarenses e é coeditor da editorial
platense El Broche. Em 2012, lançou El Artista Sanitario e a narrativa
intitulada Cuaderno de Pripyat (Entropia). Uma das mais recentes é Cielo
Ácido (Clase Turista, 2013), que é classificada como narrativa policial.
Reinaldo Laddaga, no seu livro Espectáculo de realidad (2007), ex-
plica que há uma confluência de alguns escritores latino-americanos que
publicaram livros com figuras de artistas que são menos inventores de
construções com uma linguagem rebuscada ou “criadores de histórias ex-
traordinárias, que produtores de “espetáculos de realidade”, empenhados
a montar cenas nas quais se exibem, em condições estilizadas, objetos e
processos dos quais é difícil dizer se são naturais ou artificiais, simulados
ou reais” (LADDAGA, 2007, p. 14).
Assim, Laddaga diz que toda a literatura almeja a condição de arte
contemporânea, ou seja, toda a literatura não fiel à tradição da cultura
moderna das letras deve reconhecer que o escritor que se encontra na
descendência de um Borges, um Lezama Lima, uma Lispector opera agora
numa ecologia cultural e social muito modificada. Dessa forma, acredi-
tamos que Carlos Ríos se adéqua a esta tendência dos escritores con-
temporâneos ao colocar dentro da narrativa intitulada Manigua as artes
visuais a partir da descrição da instalação organizada pelo antropólogo
inglês e exposta durante 25 dias.
Já a professora argentina Florencia Garramuño concorda com essa
proposição de Laddaga e afirma que os textos dos escritores argentinos
contemporâneos destroem e abalam as convenções da literatura ao colocá-
-la num mesmo espaço com as outras artes. Ela explica que o escritor
mexicano Mario Bellatin é um exemplo desses escritores. Dessa forma, é
interessante lembrarmos a questão do não pertencimento, apontado por
Garramuño, ou seja, uma não separação entre arte e literatura, passando
a ser uma forma literária sem a definição de gênero, que não pertence
unicamente a um estilo literário, mas apresenta uma continuidade entre
as artes plásticas e a literatura.
Nessa perspectiva, vemos que Laddaga consegue, de forma muito
clara, demonstrar que a literatura da atualidade deve ser pensada de

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182 Flávia Walter e Alexandra Filomena Espindola

forma mais dinâmica e, portanto, com uma escrita numa linguagem menos
rebuscada e mais informativa, numa estrutura mais pontual e fragmen-
tada, com mensagens breves que instiguem o leitor a situar-se num tempo
e espaço atual como se ele estivesse na cena, no momento da ação, as-
sistindo a essa narração. As narrativas de Carlos Ríos encaixam-se nessa
tendência, pois são histórias curtas, escritas em fragmentos, com uma voz
narrativa que descentraliza o leitor e o coloca como protagonista da trama,
pois este é levado a uma rede de informações muito além do texto, assim
como a pensar em algumas problemáticas contemporâneas que o ajudam
a construir uma realidade imediata e que são produzidas por essa “fábrica
de realidade” que perpassa por um caminho de vai desde a referência a
outras literaturas, programas da TV, matérias jornalísticas até às artes
plásticas.
Uma das problemáticas bastante discutidas na contemporaneidade é
a relação com o animal. O animal se faz presente nas narrativas e pode
ser pensado a partir das discussões de morte e vida da biopolítica, assim
como uma associação às questões políticas argentinas tanto da época da
ditadura argentina com a referência a El Matadero de Esteban Echeverría
(2006), assim como às questões políticas meritocráticas atuais. O animal
morto também faz parte de uma referência autobiográfica do escritor, pois
seu pai era açougueiro e essas palavras que são relacionadas com corte
de carne, descrição da matança animal fazem parte das histórias escritas
por Ríos. Outro ponto destacado nas narrativas é a presença da família e
as problemáticas referentes à origem, identidade e língua presentes nas
narrativas analisadas.
As narrativas Manigua e Cuaderno de Pripyat de Carlos Ríos podem
ser lidas como relatos de viagem, já que são histórias de viagens mas não
viagens “reais”, mas algo estranho, insólito pela forma como as descrições
são feitas utilizando elementos reais e virtuais, construindo uma imagina-
ção pública das regiões da África e da Ucrânia que é criada a partir de
uma experiência turística indireta de Ríos através do tempo zero, termo
cunhado por Josefina Ludmer (2010) para descrever o tempo tecnológico,
o tempo da transmissão instantânea, o tempo da internet. É interessante
sabermos que Manigua é considerado um relato de viagem, pois conta a
história de Apolon que obedeceu a ordem do seu pai viajando distante
em busca de uma vaca, que seria sacrificada no nascimento do seu irmão

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Carlos Ríos e sua Fábrica de Realidade 183

em três semanas. Já Cuaderno de Pripyat é também um relato de viagem,


pois relata a viagem de Malofienko a Pripyat, a cidade que virou fantasma
da Ucrânia depois do acidente de Chernobil em 1986, vinte anos depois
para buscar a sua origem e também produzir um documentário.
Sobre a experiência turística indireta que Ríos teve na construção das
histórias, o pesquisador Luís Antônio Contatori Romano (2013) destaca
que a experiência turística é acessível a todos, seja diretamente, pelas
diversas facilidades de viajar, “ou indiretamente, por meio de filmes, do-
cumentários televisivos, desenhos animados, viagens virtuais pela internet
ou ainda pela reprodução de imagens e relatos em livros e revistas” (RO-
MANO, 2013, p. 36). Dessa maneira, na concepção de Romano, o turista
torna-se um narrador às avessas, pois contradiz o modelo do narrador tra-
dicional apresentado por Walter Benjamin (1987), já que não apresentaria
nenhuma sabedoria a transmitir.
A forma que as narrativas de Ríos se apresentam narradas também se
diferenciam, pois há uma alternância de narradores. O narrador encontra-
-se ora em 1a , ora em 3a pessoa sendo escrito, em muitos momentos, no
discurso direto livre. Desta forma, Ríos consegue fazer uma verdadeira
“manigua” (lembrando que manigua significa confusão) de narradores, com
vozes que confundem nossa leitura. Essa é sua maneira de narrar e armar
este relato de viagem como uma fábrica de “realidade”. As mudanças de
narrador marcam um lugar instável e apontam para o declínio de uma certa
ideia de sujeito centrado, absoluto, o sujeito como essência, o sujeito da
metafísica. Outro escritor que trabalha a questão do narrador é Bernardo
Carvalho que, em Nove Noites (2002), mostra uma troca de narradores
de uma forma mais sutil, problematizando a noção de identidade da pró-
pria voz narrativa. Mario Bellatin, em Lecciones para una Liebre Muerta
(2005), mostra uma troca de narradores incluindo até mario bellatin (em
minúsculo) como personagem ou como narrador. Na escrita de Bellatin,
diz Florencia Garramuño, essa estratégia faz parte de um círculo narra-
tivo, no qual o narrador fala em terceira pessoa de um escritor que não
só é ele mesmo, mas que também aparece em terceira pessoa.
A narração da performance de Apolon durante o relato de viagem ao ir-
mão moribundo na instalação do antropólogo apresenta muitos momentos
de dúvidas narrativas. Segundo Diana Klinger, a performance, “implica
uma dramatização de si que supõe da mesma maneira que ocorre no palco

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184 Flávia Walter e Alexandra Filomena Espindola

teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e


personagem” (KLINGER, 2012, p. 49).
Ríos talvez tente marcar esta “duplicidade” do sujeito com essa troca
de posição pronominal, já que no início tínhamos a impressão que era
um narrador e depois comprovamos que houve uma troca de narradores,
ou melhor, uma troca na posição do narrador: uma hora narrando em 3a
pessoa, na outra em 1a pessoa. Portanto, é importante destacarmos que a
performance de Apolon dialoga diretamente com as vozes narrativas, pois
podemos pensar que temos dois narradores quando descobrimos que Apo-
lon narra a história para o seu irmão e depois para o documentarista. Aqui
podemos ler o procedimento de Ríos como uma produção de subjetividade
narrativa, já que a atuação do narrador em primeira pessoa se intensifica
e, muitas vezes, se repete numa voz de terceira pessoa e, de certa forma,
acaba descentralizando o sujeito leitor. Dessa forma, podemos levar a
questão da atuação do narrador, como um sujeito confuso e que proble-
matiza o jogo das certezas, como uma “tentativa” de desmascarar o próprio
eu narrativo colocado na cena e reforçado, em muitos momentos, na voz
do outro, ou talvez, do mesmo só narrado em 3a pessoa. Na história de
Ríos, o narrador foi pensado como o sujeito da performance, um sujeito
que atua, que representa um papel dentro dessa ficção ao mostrar suas
mudanças abruptas de falas. Assim, podemos destacar que Carlos Ríos
criou narradores tão performáticos na narrativa que também deixou o lei-
tor com a impressão de estar assistindo a um espetáculo, um espetáculo
narrativo.
Carlos Ríos fez desse relato o seu próprio relato de viagem, uma vez
que, através de informações que ele saiu catando pelo mundo “real” e
virtual, abriu, assim, vários modos de pensarmos esse mundo que fazemos
parte e por ele somos responsáveis, um mundo de restos, um mundo em
que o poder se autoriza a selecionar as criaturas vivas, descartando o
que teria o direito de fazer parte deste. Dessa maneira, acreditamos que
todas essas observações nos levaram a uma forma de especular o mundo e
a perceber tal especulação, assim como Ludmer aponta, como um gênero
que fabrica a realidade, que perpassa a fronteira do que seria realidade
e ficção, dando-nos a impressão de que tudo é realidadeficção.
Essa não distinção de realidade e ficção, que lança a especificidade
da literatura a um lugar em que as reflexões sobre literatura são mais

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Carlos Ríos e sua Fábrica de Realidade 185

importantes pelas questões existenciais e sociais do que o que pode ser


dito sobre o texto em si, acaba fazendo com que o texto seja comparado
a uma sombra de uma realidade que não dá conta de fornecer luz a si
própria como afirma Florencia Garramuño. Podemos nos apropriar de tais
reflexões sobre realidade e ficção para lermos as histórias de Ríos, pois
acreditamos que estas se enquadram com a forma como as narrativas ana-
lisadas nesta pesquisa foram pensadas. Carlos Ríos escreve textos que
podem ser lidos com o conceito de não pertencimento, como relatos que
não pertencem a um gênero específico, pois misturam informações, elemen-
tos artísticos e são colocados dentro de diferentes tempos e países. Neste
estudo, vimos também que todas as narrativas foram construídas a partir
de imagens, de informações tiradas da internet, fabricando “realidades”
e deixando o leitor não distinguir realidade e ficção, mas propiciando-o
reflexões sobre problemas existências e sociais da contemporaneidade.
Com o término deste estudo, verificamos que a presente análise nos
fez perceber que a narrativa Manigua veio atribuir um significado mais
relevante ao termo indígena manigua, colocando-o com tanta visibilidade
que se tornou uma palavra corriqueira do vocabulário daqueles que anali-
sam este texto. Também é importante destacarmos que Carlos Ríos tomou
para si informações que retirou da internet, mudou abruptamente de nar-
rador, ambientou sua narrativa em uma instalação programada para contar
a história de um clã, envolvendo tempos idos e presente, construindo uma
narrativa de maneira que podemos pensar em uma performance, uma es-
tética teatral em que o personagem principal nos relatou sua viagem em
busca da salvação para seu clã.
Já a história de Cuaderno de Pripyat foi composta por várias infor-
mações que construíram uma trama não tradicional. Além disso, é uma
narrativa que nos leva a reflexões políticas sobre o animal, sobre o su-
jeito em relação à família, à identidade e à origem. Por isso, o leitor foi
exposto a uma gama de informações e o responsável por construir a pró-
pria trama a partir do que coletou de cada personagem. Tal construção
pôde ser percebida pelo leitor de diferentes modos sem que houvesse uma
mensagem, uma definição ou uma única percepção. Nesta história, fomos
capazes de notar também a significativa presença das artes visuais dentro
da literatura, marcando a forte tendência da literatura contemporânea em
unir essas artes. Enfim, uma narrativa que precisou ser lida com a noção

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186 Flávia Walter e Alexandra Filomena Espindola

do não pertencimento, pois não pode mais ser classificada num gênero
específico e, portanto, passa a apresentar traços de diferentes gêneros,
não pertencendo mais a um único.
O relato de viagem atual não exerce mais aquelas funções ressaltadas
por Süssekind (2006): aprendizado, conhecimento, mapeamento, reprodu-
ção do real, descoberta de novas e diferentes culturas. Percebemos hoje
que isso tudo já é dado, já é colocado, já é encontrado na web a tempo real
e também discutido nas suas não “verdades”. O relato de viagem de Ríos
é construído numa estrutura não habitual, que provoca em nós, leitores,
um estímulo a conhecer seu procedimento e a experienciá-lo através de
sua constituição a partir de recortes de um mundo realficcional, como se
fôssemos verdadeiros catadores ao léu.
Assim, acreditamos que Ríos inventou uma outra forma para fazer re-
latos de viagens contemporâneos e, consequentemente, uma maneira di-
ferente de escrever diários de viagens. Podemos afirmar que Ríos não
escreveu diários propriamente ditos, mas conseguiu, de uma forma pecu-
liar, organizar os restos das anotações diárias do seu “caderno”, fazendo
collages de todas essas suas “experiências” e montando a partir delas
seus textos com esses restos do “real”.
Com esse seu procedimento diferenciado, poderíamos até ousar em
criar um novo conceito para os relatos de viagens contemporâneos, ou
seja, tentar encontrar uma nova maneira de caracterizar o que, talvez,
não haja caracterização. Para tanto, acreditamos que formular um con-
ceito seja necessário para estimular outras pesquisas sobre esses relatos
contemporâneos. Dessa forma, atrevemo-nos a chamar tais histórias de
viagens de relatos de navegação virtual, já que, assim como Ríos, navegam
em outros meios. Nessa perspectiva, tanto a palavra navegação quanto
virtual marca esse nosso tempo de comunicação e interação tecnológica,
digital. Enquanto virtual nos remete diretamente ao mundo da internet, a
palavra navegação, além de também participar desse mundo como expres-
são (navegar na internet), carrega uma tradição histórico-etimológica, já
que os “primeiros” exploradores foram os navegadores.
Ao final, podemos entender que o que segura o leitor nessas histórias
é mais o procedimento narrativo de Ríos do que os próprios enredos.
Dessa forma, o que foi narrado ganhou destaque pelo modo de como
foi narrado, porque os narradores, mesmo que confusos, deram potência

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Carlos Ríos e sua Fábrica de Realidade 187

à narrativa, uma vez que quebraram o jogo das certezas. Essa quebra
das certezas, essa mistura de realidade e ficção, essa manigua narrativa
criaram o universo de um relato de viagem contemporâneo criado a partir
da imaginação pública, das imagens vistas pelo escritor Carlos Ríos. Esta
fábrica situa-se dentro do seu mundo, do seu espaço, num tempo zero, num
tempo tecnológico no qual não há mais a necessidade de um deslocamento,
de uma viagem, de um convívio com o outro, de uma integração ou de uma
vivência. Bastou um clique, um olhar, um criar.

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Referências

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grama. 2005.
BENJAMIN, Walter. “O narrador: Considerações sobre a obra de
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2002.
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cificidad en la estética contemporánea. Inédito.
GIORGI, Gabriel. “A vida Imprópria. Histórias de Matadouros”. In:
MACIEL, Maria Esther, organização. Pensar/Escrever o animal: ensaios
se zoopoética e biopolítica. Florianópolis: Editora UFSC, 2011.
KLINGER, Diana. Escritas de Si, Escritas do Outro: O retorno do
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LADDAGA, Reinaldo. Espetáculos de Realidad. Ensayo sobre la
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Carlos Ríos e sua Fábrica de Realidade 189

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Bouças; FARIA, Flora de Paoli”. Corpos-Letrados Corpos-Viajantes. Rio
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Do autor:
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RÍOS, Carlos. A la sombra de Chaki Chan. Maldonado, Uruguai:
Trópico Sur, 2011.
RÍOS, Carlos. Cuaderno de Pripyat. Buenos Aires: Entropia, 2012.
RÍOS, Carlos. El artista sanitario. Córdoba: Postales Japoneses,
2012.

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A relevância de Peregrinação no contexto da
apresentação do Budismo aos Europeus

Bruno Miguel Gouveia Antunes

Humboldt-Universität zu Berlin
Kultur-, Sozial- und Bildungswissenschaftliche Fakultät

Resumo: No capítulo CCXIII de Peregrinação, Fernão Mendes Pinto faz


uma apresentação da doutrina budista, por intermédio da personagem de um
«bonzo», um monge zen budista japonês. Se bem que sucinta e fragmentária
esta apresentação é a primeira no género, na Europa. No contexto da grande
literatura de viagem europeia é a primeira vez que a doutrina budista é assim
apresentada a um público geral. Certos aspetos da doutrina budista passam
por este meio a ser comunicados a um público alargado, a partir de 1614 com
a publicação de Peregrinação, e o universo dos leitores que primeiro recebem
esta informação é, logicamente, o universo dos leitores de língua portuguesa.
Pode-se assim afirmar que, pelo menos desde a publicação de Peregrinação, o
público literário europeu, em geral, passa a ter uma notificação do que seja a
doutrina budista.

Palavras-chave: Peregrinação; Budismo; Zen; Jingjiao; Igreja do Oriente.

1. Introdução: A Igreja Cristã do Oriente e o Budismo

Esta apresentação foca-se numa passagem do capítulo CCXIII de Peregri-


nação, mas em primeiro lugar será necessário contextualizar esta obra no
192 Bruno Miguel Gouveia Antunes

âmbito das relações entre o Ocidente e o Oriente; e também no âmbito das


relações entre cristãos e budistas. Nesse contexto, uma passagem que se
encontra logo no início, no capítulo terceiro de Peregrinação, reveste-se
de particular relevância.

CAP. III.
Como de Diu me embarquei para o estreito de Meca, e do que
passei nesta viagem.
Partidas ambas estas fustas desta fortaleza de Diu, e navegando
juntas em uma conserva com tempo assaz forte, na despedida do
inverno, com grandes chuveiros, e contra monção, houvemos vistas
das ilhas de Curia, Muria e Abedalcuria, nas quais estivemos de
todo perdidos, sem nenhuma esperança de vida; e tornando-nos,
por não haver outro remédio, na volta do sudoeste, prouve a nosso
Senhor que ferramos a ponta da ilha Çacotorà, uma légua abaixo
donde esteve a nossa fortaleza que dom Francisco d’Almeida, pri-
meiro Vice-rei da Índia fez, quando no ano de 1507 foi deste reino,
e ali fizemos nossa aguada, e houvemos algum refresco, que por
nosso resgate comprámos aos Cristãos da terra que descendem da-
queles que antigamente o Apostolo São Tomé converteu nas partes
da Índia, e Choromandel. (Pinto, 1614, p. 279)

Nesta passagem, Fernão Mendes Pinto apresenta um dado intercul-


tural assaz interessante, o facto de haver cristãos na Índia, anteriores à
chegada dos portugueses e, segundo o autor, descendentes dos discípulos
de São Tomé, que como se sabe é um dos apóstolos, o que faria recuar a
presença Cristã na Índia ao século primeiro1 , ou seja, possivelmente an-
1
Cf. Baum & Winkler, 2003, pp. 51-52: «According to Indian tradition, in the year
52 the apostle Thomas landed on the Malabar coast, where he founded seven churches
at Palayur, Cranganore, Parur, Kokkamangalam, Niramun, Chayal, and Quilon. Then he
is said to have arrived on the Coromandel coast, at Mylapore near Madras, where he
suffered martyrdom in ad 68. [. . . ] Thomas was first described as Apostle to the Indians
in 378 by Ephrem the Syrian, then in 389 by Gregory of Nazianz, and again in 410 by
Gaudentius, in 420 by Jerome, and in 431 by Paulinus of Nola. The Thomas tradition
came to be rooted in Edessa, where the bones of Thomas – brought from India – were
an early object of veneration. In the seventh century Pseudo-Sophronius referred to the
grave of the apostle Thomas in “Calamina” in India, and Isidore of Seville adopted this in
his etymology. The age of the shrine of St Thomas at Mylapore near Madras is unknown.
Gregory of Tours reported that Thomas’s corpse was transported from India to Edessa».

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A relevância de Peregrinação no contexto da apresentação
do Budismo aos Europeus 193

tes mesmo até de haver uma presença significativa de cristãos na Europa.


Havendo cristãos no subcontinente indiano já desde o século primeiro,
a história do contacto entre adeptos da doutrina de Cristo e adeptos da
doutrina de Buda remontaria assim aos primórdios do cristianismo, ao
próprio século em que Jesus viveu, e seria de resto anterior mesmo à cris-
tianização da Europa. Assim, para nos podermos debruçar sobre o tema
da introdução do budismo na Europa, temos também de tecer algumas
considerações acerca da introdução do próprio cristianismo na Europa, já
que os dois temas estão interligados.
Não há a certeza, não há evidência empírica de S. Tomé ter estado na
Índia. O túmulo de S. Tomé está em Edessa, na atual Turquia, e consta
que o seu corpo tenha sido trasladado desde a Índia, o que pode por-
ventura não passar de uma suposição lendária. Em contrapartida, mesmo
que S. Tomé nunca tenha estado «nas partes da Índia», como escreve
Mendes Pinto, e que a comunidade cristã da costa do Malabar não tenha
sido fundada pessoalmente pela presença do Apóstolo, há efetivamente
vestígios históricos do estabelecimento de comunidades cristãs na Índia
anteriores ao século terceiro (Thekeparampil, 2006, pp. 485-497). Pode-
-se, pois, afirmar com rigor e propriedade que mesmo antes sequer de
existir a Igreja Católica Romana, antes mesmo do Imperador Constantino
se ter convertido ao cristianismo (a si e ao seu Império) já algumas regiões
da Índia tinham sido cristianizadas. Neste sentido pode-se afirmar que a
cristianização de certas regiões da Índia precede a conversão da própria
Europa ao cristianismo.
Dizer que o cristianismo chegou à Índia antes do século terceiro, não é
a mesma coisa que dizer que o cristianismo chegou à Ásia antes do século
terceiro o que seria redundante. O cristianismo não precisou de chegar à
Ásia, visto que o cristianismo nasceu na Ásia, pela simples razão de Jesus
ser asiático. Jesus nasceu e viveu toda a sua vida, tanto quanto se sabe,
no extremo ocidental do continente asiático e, por isso, o cristianismo é à
partida uma religião da Ásia, uma religião que nasceu na Ásia e logo se
propagou, na Ásia, a outras províncias do Império Romano (e para lá dos
seus confins), bem como a outras províncias romanas da África e da Eu-
ropa. Gostaria aqui de frisar que apesar de S. Paulo e de S. Pedro terem
vindo diretamente para a Europa, estes apóstolos constituem a exceção e
não a regra. A esmagadora maioria dos apóstolos dirigiram-se a regiões

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194 Bruno Miguel Gouveia Antunes

da África e da Ásia, algumas exteriores mesmo aos confins do Império Ro-


mano. Além disso, o ramo da cristandade que chega à Europa e se instala
em Roma é, por assim dizer, uma haste do ramo africano. Padres da Igreja,
como Santo Antão, que viveu no deserto do Egipto, ou Santo Agostinho
que viveu em Hipona, na atual Tunísia, preparam os fundamentos do que
viria ser a Igreja Católica, e inclusivamente os preceitos segundo os quais
se viria a pautar a vida conventual e a organização das ordens monásticas.
A estrutura monástica do catolicismo tem as suas raízes no Egipto. Os
teólogos fundadores do que virá a ser o catolicismo, os chamados Padres
da Igreja, viveram em grande maioria em regiões da Ásia ou da África e
apenas uma pequena minoria residiu na Europa. Não obstante, com a
cristianização de Roma, e com a romanização da Igreja, irá frutificar um
discurso eurocêntrico que vai passar a ser o discurso estruturante da nar-
rativa segundo a qual a História do Cristianismo irá ser contada (até aos
nossos dias) no Ocidente e que elide, ou marginaliza, a evidência de que
o Cristianismo é uma religião da Ásia, que aí se estabeleceu e floresceu
até que foi dissipada pela ascensão do Império Islâmico, a partir do século
oitavo, o qual se chegou a estender então desde a Índia até à Península
Ibérica (Al Gharb – em Árabe, o Ocidente – é a raiz etimológica do nome
Algarve).
Assim, ainda por volta do século oitavo a Igreja Cristã do Oriente era o
maior grupo religioso do mundo, tanto em extensão geográfica quanto em
número de praticantes. Desta forma, no universo da cristandade, as Igre-
jas do Ocidente eram minoritárias. Igrejas que entretanto, com a queda do
Império Romano do Ocidente, se tinham cindido em Igreja Católica, com
sede em Roma e culto em latim, e Igreja Ortodoxa com sede em Constan-
tinopla e culto em grego. A narrativa católica da História do cristianismo,
que foi a narrativa que herdámos, elide assim a História daquele que foi
de longe o maior grupo da cristandade, estendendo-se desde a Arábia
até à China e à Índia, com culto em Siríaco, em Aramaico, ou seja no
idioma que Jesus falou. O cristianismo do Ocidente (portanto, tanto o
cristianismo Católico quanto o cristianismo Ortodoxo) é um cristianismo
traduzido, o culto que conserva a língua original dos primeiros cristãos é,
até aos nossos dias, o culto da Igreja do Oriente.
Ora apesar do culto da Igreja do Oriente conservar até aos nossos
dias a língua original de Jesus e dos primeiros cristãos, ou pelo menos

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A relevância de Peregrinação no contexto da apresentação
do Budismo aos Europeus 195

o mesmo grupo linguístico, o Siríaco, a doutrina cristã, para ser mais


facilmente comunicada foi sendo traduzida, também no Oriente, para os
idiomas das comunidades locais2 . Assim, já desde o século quarto existem
traduções de passagens da Bíblia e de outros textos doutrinários, por
exemplo para chinês3 . Outro exemplo é a existência inscrições cristãs em
diversas partes da Ásia Central4 . Até mesmo nos remotos planaltos do
Tibete se encontram inscrições cristãs datadas do século nono5 . Tal como
nas traduções da doutrina cristã para as línguas europeias se teve de
proceder à conversão da terminologia originária, que o idioma aramaico
continha, para a terminologia disponível, antes de mais, no grego ou no
latim, também a oriente se teve de encontrar termos equivalentes nas
línguas locais. Assim, «há textos,» – afirma o historiador Wilhelm Baum
– «por exemplo, em que Jesus é retratado enquanto Buda; um fragmento
afirma, que após a sua crucificação Jesus entrou no Nirvana»6 . Os textos
a que Wilhelm Baum alude são textos cristãos, não são textos budistas. A
terminologia utilizada foi a terminologia que os cristãos da China (nesse
2
Cf. Huaiyu, 2006, p. 94: «. . . the article by Japanese Buddhologist Takakusu Junjiro
published in 1894 confirmed that there was a cooperation in the translation [of the Jingjiao
East Christian texts] between Jingjing and the Buddhist monk Prajña [. . . ] Takakutsu
found a passage in a Buddhist catalogue edited by Yuanzhao (8th century) which says
that Jingjing helped Prajña translate the Liu polumi jing (Skt. Satpâparamitâsûtra) into
Chinese from a Central Asian language in 788».
3
Cf. Baum & Winkler, 2003, p. 49: «By the turn of the millennium, more than 500
writings, including the entire New Testament and a few books of the Old Testament, had
been translated from Syriac into Chinese».
4
Cf. Rott, 2006, pp. 395-401; Klein & Rott, 2006, pp. 403-423; Esbroek, 2006, pp.
425-444; Baumer, 2006, pp. 445-474.
5
Cf. Baum & Winkler, 2003, p. 50: «In the meantime, Christianity also made strides in
the kingdom of Tibet. On the route from Kashgar to Lhasa, early ninth-century inscriptions
relating to the Christianity of the Transoxus region were found south of the oasis of Chotan
– where there were three Christian churches – in the vicinity of Drangtse (east of Leh
on the upper Indus). In 841/2 the monk Nösh-farn was sent to the khan of Tibet. This
expedition was documented by a Sogdian inscription in Tankse with ‘Nestorian crosses’
(eighth century)». Além de inscrições em pedra, encontraram-se também livros cristãos da
mesma época. Cf. Baum & Winkler, 2003, p. 49: «A Tibetan book from Tun-huang, dating
from the period from the eighth to the tenth centuries, is entitled Jesus the Messiah, and
Syriac grave inscriptions have been found as far away as the harbor of Hang-tschou».
6
Cf. Baum & Winkler, 2003, p. 75: «. . . there are texts, for instance, in which Jesus is
portrayed as Buddha; one fragment states that after his crucifixion, Jesus entered nirvana».

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196 Bruno Miguel Gouveia Antunes

caso particular, e da Ásia, em geral) consideraram a mais apropriada para


traduzir os termos originais que assim se deslocam de forma nómada de
um universo linguístico para outros, do siríaco para o chinês, tal como na
Europa também migraram do siríaco para a terminologia grega ou para
a terminologia latina. Além disso, há a evidência de colaboração entre
tradutores cristãos e tradutores budistas na China desde pelo menos o
século oitavo7 . A interação entre cristãos e budistas é, pois, muito anterior
à chegada dos portugueses, e à chegada de Fernão Mendes Pinto, ao
Extremo Oriente.
Inegavelmente, um dos propósitos da realização das viagens de explo-
ração marítima portuguesas era o de localizar as comunidades cristãs do
oriente, como já se evidencia, por exemplo, na Crónica do descobrimento
e conquista de Guiné de Gomes Eanes de Zurara (Azurara, 1811). Pois,
se por um lado o discurso historiográfico do catolicismo marginaliza a
Igreja Cristã do Oriente, designando-a depreciativamente e erroneamente
por Igreja Nestoriana8 , isso não quer dizer, que os cristãos do ocidente
7
Cf. Huaiyu, 2006, p. 94: «. . . the article by Japanese Buddhologist Takakusu Junjiro
published in 1894 confirmed that there was a cooperation in the translation [of the Jingjiao
East Christian texts] between Jingjing and the Buddhist monk Prajña [. . . ] Takakutsu
found a passage in a Buddhist catalogue edited by Yuanzhao (8th century) which says
that Jingjing helped Prajña translate the Liu polumi jing (Skt. Satpâparamitâsûtra) into
Chinese from a Central Asian language in 788».
8
A designação de Igreja Nestoriana é, não apenas, depreciativa como é também
completamente incorreta, tal como demonstram Wilhelm Baum e Dietmar W. Winkler.:
«there are those terms which are familiar in the West but are also incorrect or valid
only in a very limited sense. Until the present time, the most common designation in
theological and church-historical literature has been the ‘Nestorian Church.’ In this way,
the rest of the Christian world attributed to the Church of the East a heterodoxy dating
back to the fifth century. At that time, Christendom was rent by the difficult theological
question of whether Jesus Christ can be both true God and true man while remaining a
single subject. How should one conceive of the relationship between God the Son made
man and God the Father? In this bitter debate, some were of the opinion that the patriarch
of Constantinople, Nestorius, supported the doctrine of two sons, two persons, that is, two
subjects. Christ is both fully God and fully man, united only morally but not ontologically.
According to the position of currently available sources, one can conclude that Nestorius
did not support this doctrine, that Nestorius was himself no “Nestorian.” Nevertheless, the
term “Nestorian” has found a secure place in theological history, to denote a Christology
which understands the one Savior made man as two subjects. Indeed, even up to now
scholars have been of the opinion that the Apostolic Church of the East adopted this

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A relevância de Peregrinação no contexto da apresentação
do Budismo aos Europeus 197

se tenham completamente esquecido da existência dos cristãos do orien-


te, tal como evidencia, por excelência, a figura lendária do Preste João
das Índias e as inúmeras expedições terrestres e marítimas que a busca
por este fabuloso dignatário suscitou. Também na Peregrinação, Fernão
Mendes alude a essa figura, e logo no capítulo quarto, intitulado: «Como
daqui fomos para Massuaa e daí por terra à mãe do Preste João, à for-
taleza de Gileytor». Nesta fase histórica, a figura do Preste João tinha
sido assimilada ao título dos Reis (e mesmo das Rainhas) da Etiópia (Ra-
mos, 1999), que não só haviam enviado embaixadas a Roma e a diversas
cortes Europeias, entre as quais à corte portuguesa, bem como a corte
portuguesa havia enviado emissários (ainda por via terrestre) em busca
do Preste João (à Índia e à Etiópia) nomeadamente, entre outros, Pero da
Covilhã (Beckingham, 1961) que na Etiópia ficou residente até ao fim da
sua vida, cimentando uma aliança luso-etíope que irá durar cerca de cento
e cinquenta anos. Não espanta, pois, que estivessem «40 portugueses»,
escreve Mendes Pinto, «em guarda da princesa de Tigremahom, mãe do
Preste». Ao longo dos tempos, porém, o Preste João havia sido situado
em diversos contextos geográficos e fora assimilado a diversas figuras his-
tóricas. Na literatura de viagem europeia dos séculos precedentes, não
são raras as referências ao Preste João, situando-o porém sobretudo no
centro da Ásia. Alusões à pessoa e ao reino do Preste João figuram não só
nos relatos de Marco Polo (Polo, 1986), bem como em relatos de diversos
frades franciscanos9 que haviam sido enviados para a Ásia a fim de tentar
reatar o contacto com os cristãos do oriente.
Por estes relatos sabe-se que alguns europeus já tinham tido contacto
com asiáticos e nomeadamente com budistas. Marco Polo, por exemplo,
esteve na corte do imperador mongol Kubilai Khan, o qual havia sido
iniciado ao budismo pelo segundo Karmapa (representante máximo da
Ordem Kagyu do Budismo Tibetano). A pedido de Kubilai Khan, nume-
rosos frades católicos foram chamados à sua corte (acompanhando Marco
heterodoxy in the fifth century. As we will see in the following pages, the designation
‘Nestorian Church’ is incorrect in a formal theological sense, although the theologian
Nestorius is honored by the Church of the East as a teacher and saint» (Baum & Winkler,
2003, p. 4).
9
Entre os quais: Giovanni Piano Carpini, Willem van Rubroek e Odorico de Porde-
none. Cf. Muller, 1944.

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198 Bruno Miguel Gouveia Antunes

Polo na sua última expedição) com o propósito de debater a doutrina


católica com dignatários de outras religiões, nomeadamente budistas. A
partir destes exemplos, é possível afirmar, que no final da Idade Média
alguns europeus, católicos, tinham notícia do que era a doutrina budista.
No entanto, em nenhum dos grandes autores da literatura de viagem euro-
peia que precedem Fernão Mendes Pinto encontramos uma apresentação
da doutrina budista tal como a encontramos nos capítulos CCXI a CCXIII
de Peregrinação.

2. A apresentação da doutrina budista no capítulo


CCXIII da Peregrinação

A partir do capítulo CCXI, Mendes Pinto descreve um encontro entre


um padre católico e um monge budista no Japão. Durante esse diálogo,
vão sendo focados certos temas. Para uma reedição parcial da obra, pu-
blicada em 1938, António Sérgio escreveu um breve mas interessantíssimo
prefácio, no qual adverte: «Não devemos, todavia, esquecer em Mendes
Pinto o moralista. As críticas aos costumes dos Portugueses, não as faz
por via da regra diretamente, mas põe-nas na boca de Orientais» (Sérgio,
1938, p. 11). Seguem-se alguns exemplos, entre os quais, precisamente,
uma passagem do capítulo CCXIII. Nessa passagem o autor seiscentista
critica práticas de taxação e de extorsão por parte de autoridades religio-
sas japonesas, budistas. Porém, não há registo histórico de ter havido
o costume, no contexto do budismo, de proceder à imposição de taxas
de forma sistemática à população (se bem que a generosidade e o dom,
voluntário, são tidas por virtudes). Pelo contrário, no Ocidente e par-
ticularmente em Portugal a prática da taxação (chamada «dízima»), era
uma prática corrente da Igreja Católica. É por isso plausível a insinua-
ção de António Sérgio, que Mendes Pinto estaria tecendo um comentário
crítico «Sobre os costumes de certas seitas. . . orientais» (Sérgio, 1938, p.
14). O uso das reticências é sintomático: em 1938 António Sérgio pre-
cisava de ter tanto cuidado com a censura política, quanto no século XVI
Fernão Mendes Pinto teve de ter cuidado com a censura religiosa, em

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A relevância de Peregrinação no contexto da apresentação
do Budismo aos Europeus 199

Portugal. Se, contudo, fizermos como António Sérgio nos recomenda, ou


seja, se lermos nas entrelinhas, se atentarmos ao que está implícito e não
explícito, ao que está insinuado mas não declarado, então poderemos in-
terpretar diferentemente estas passagens, de acordo, eventualmente, com
o que ambos autores pretenderiam verdadeiramente expressar.
O segundo tema a ser focado, nesse diálogo inter-religioso, incide so-
bre a noção de paraíso e da possível existência de um paraíso terrestre
além de um paraíso celeste. Também aí há discrepância, pois o fito da
iluminação búdica é o de transcender todos os estágios da existência,
por mais paradisíacos ou por mais infernais que eles sejam. Todavia, se
admitirmos que a via budista visa atingir a iluminação (ou seja: experi-
mentar e desvelar a natureza profunda e intrínseca da mente) no decurso
de um dos estágios de existência (e não num «além») então poderíamos
admitir que a interpretação e a reprodução do discurso do “bonzo”10 , pelo
autor, poderia consistir num esforço de tradução, num esforço de trans-
migração intercultural para um universo conceptual europeu e cristão, da
apresentação da doutrina budista feita pelo monge zen japonês.
O terceiro tema a ser focado é o da reencarnação:

Dirtoey, disse o bonzo, & verâs quanto mais sabemos das cousas
passadas que tu das presentes. Has de saber, pois não o sabes, que
o mundo nunca teve principio nem os homens que nelle nasceraõ,
poderão ter fim, mais que somente acabarem estes corpos em que
andamos, no derradeyro bocejo, para nelles a natureza nos passar
de novo a outros milhores, como se ve claro quando tornamos a
nascer de nossas mays ora em machos, ora em femeas, segundo
a conjunção da lua em que nos parem, & despois que somos cà
nacidos no mundo, fazemos por vários sucessos, estas mudanças,
a que a morte nos té sojeitos por parte da natureza fraca de que
somos compostos, & quem té boa memoria, sempre lhe fica lembrãdo
o que fez & passou nos espaços da vida primeyra. (Pinto, 1614, p.
279)
10
Cf. Losso, 2008: 6: «Bonzo vem do japonês “bózu”, e a letra -o- foi nasalada no
aportuguesamento com o decorrer do tempo, processo esse que se deu ao longo do século
XVI. Esse é justamente o período em que viveu Fernão Mendes Pinto (1509-1583). A
palavra significa em primeiro lugar “monge budista, esp. das ordens religiosas budistas
do Japão e da China” (Houaiss, 2001) e em segundo “pessoa medíocre, ignorante, que se
dá ares de superioridade”».

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200 Bruno Miguel Gouveia Antunes

Aqui é apresentada uma versão muito resumida da doutrina da reen-


carnação, a qual, do ponto de vista do budismo, não consiste numa teoria
mas sim na experiência, ou na pretensa experiência, nas recordações, ou
pretensas recordações, de vidas passadas a que os praticantes budistas
acedem, ou pretensamente acedem, sendo que a ciência contemporânea
não acompanha, ou ainda não acompanha, esta perspetiva.
Neste parágrafo há também outro ponto de interesse, é a afirmação
arrojada, da parte do bonzo ao dizer ao padre: «verâs quanto mais sabe-
mos das cousas passadas que tu das presentes». Podemos ler nisso um
sinal de simpatia, da parte de Fernão Mendes Pinto em relação ao Bu-
dismo e uma vez mais uma crítica à doutrina e às práticas dos missionários
cristãos no oriente?
Estes capítulos sobre os quais me tenho focado não passaram desper-
cebidos àquele que foi um dos maiores escritores de língua portuguesa do
século XIX, o brasileiro, Machado de Assis. Em Papéis Avulsos, um livro
de 1882, Machado de Assis publicou um conto, chamado «O segredo do
Bonzo» o qual é um capítulo fictício a ser intercalado entre os capítulos
CCXII e CCXIII de Peregrinação (Assis, 1882). Segundo o investigador
brasileiro contemporâneo, Eduardo Losso, «o conto produz uma crítica ao
fundamentalismo religioso e à filosofia metafísica, sem deixar de estar li-
gado ao pessimismo de Schopenhauer, leitura dileta de Machado» (Losso,
2008, p. 1). Schopenhauer, como se sabe é um filósofo que se debruçou
atentamente sobre as doutrinas orientais, em particular o hinduísmo e o
budismo, fazendo uma leitura destas fontes que desemboca num impasse
niilista – interpretação pessoal, do filósofo alemão que não corresponde
fielmente às perspetivas propostas por essas doutrinas (Schopenhauer,
1884). Nesse seu artigo, Eduardo Losso defende que:

o narrador expõe a argumentação duvidando da doutrina cristã feita


pelo bonzo, sempre julgando-a astuciosa e falsa, dizendo em seguida
que o padre foi magnífico na resposta, não a reproduzindo, de modo
que a exposição é sempre a da palavra do bonzo, e não do padre.
O juízo a favor do padre contrasta com a atenção ao discurso do
bonzo. Logo quando [o bonzo] se apresenta ao padre, diz o conhecer
há muito tempo, e escarnece de o padre não o reconhecer. Diz que
se conheceram há 1500 anos atrás. O padre pergunta quantos anos
ele tem, o bonzo responde, 52 anos. Nesse momento de disparate o

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A relevância de Peregrinação no contexto da apresentação
do Budismo aos Europeus 201

bonzo explica sua doutrina da reencarnação, no cap. CCXI, (Pinto,


1614, p. 278-9). No cap. CCXII e CCXIII o bonzo duvida da reen-
carnação de Cristo, da contradição entre um deus bom onipotente
e a existência do mal, etc. O narrador não cessa de maldizer do
bonzo e elogiar o discurso elidido do padre, alegando não poder
reproduzir sua perfeição douta e inspirada.
Não vejo por que duvidar da grande probabilidade, a ser pesqui-
sada por filólogos, do fato de que o segundo sentido da palavra
bonzo derivou justamente, entre outras coisas, da influência literá-
ria da obra Peregrinação na língua portuguesa. De qualquer modo,
o sentido pejorativo veio da visão cristã e ocidental preconceituosa.
Contudo, leituras recentes procuram apontar que há uma ironia au-
tocrítica de fundo feita por Fernão Mendes Pinto aos portugueses
e especialmente ao padre. Elas ressaltam que a experiência de
embate com a alteridade de Fernão Mendes Pinto produz ironias
veladas no texto, e exames histórico-antropológicos mostraram que
suas narrativas não são tão mentirosas assim (Duarte, 1999, pp.
264-267)11 .

A verdade é que seria muito arriscado, no contexto político-religioso


do Portugal seiscentista, demonstrar simpatia abertamente por uma outra
religião que não a religião católica, seria quase suicidário tecer aber-
tamente um discurso apologético em relação a uma religião «oriental».
Fosse essa ou não a intenção de Fernão Mendes Pinto, uma coisa é
certa: por meio do subterfúgio da palavra interposta, do discurso que
é posto na boca do bonzo, e não da boca do autor, o autor contorna o
perigo de censura e de perseguição por parte das autoridades políticas
e religiosas e assim oferece uma apresentação sucinta de alguns aspe-
tos da doutrina budista, divulgando mesmo um novo vocábulo, de origem
japonesa, a palavra «bonzo».
A questão da reencarnação, ou melhor dizendo, do ciclo das existên-
cias, é uma questão fundamental no Budismo, por duas razões. Por um
lado, porque o fito das práticas budistas é libertar-se a si mesmo, e em
algumas tradições, libertar também todos os outros seres vivos, da roda
da vida, do ciclo «vicioso» de sucessivas existências. Por outro lado, há
que realçar que esse momento de libertação que o budismo almeja, não é
11
Losso, 2002, p. 7.

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202 Bruno Miguel Gouveia Antunes

forçosamente atingido num «além», mas sim no decurso de um dos está-


gios do ciclo das existências. Porém, certas escolas do budismo insistem
especialmente em cultivar uma «visão pura», a partir da qual até os es-
tados de existência mais infernais aparecem como paradisíacos e, sem a
qual, até os estados de existência mais paradisíacos podem eventualmente
aparecer como infernais12 .

3. Conclusão

Entre os géneros literários do universo da literatura budista existe um


género, os contos de Jataka, que consistem em relatos das inúmeras vidas
anteriores do Buda. Essas histórias ilustram as inúmeras situações de
vida, as inúmeras conjugações kármicas em que o futuro Buda se mani-
festou e através das quais o seu Karma foi amadurecendo até atingir a
perfeita budeidade. Existem dezenas, se não centenas dessas histórias
virtuosas e exemplares. Admitir que Fernão Mendes Pinto considere a
sua vida como um exemplo de virtude parece-me fora de propósito. In-
dependentemente de considerar, como Aquilino Ribeiro (Ribeiro, 2008),
que Fernão Mendes e o pirata António de Faria são a mesma pessoa, ou
não, o próprio autor confessa repetidas vezes as faltas e os pecados em
que incorre e em momento algum apresenta como fito atingir algo como
a iluminação búdica. Não obstante, porém, Peregrinação surte como um
poderoso e profundo ensinamento acerca da impermanência, tema esse,
que está sim no cerne de toda a doutrina budista. São uma esplendorosa
12
Cf. Dorje & Kapstein, 1991, pp. 20-21: «As such, the five components of mundane
cyclical existence find their true natural expression in the Teachers of the Five Enlightened
Families (. . . ) This pure vision, it is emphasised, lies within the perceptual range of
the buddhas’ pristine cognition alone, and remains invisible even to bodhisattvas of the
highest level who are not liberated from all obscurations. It is maintained that all these
elements of mundane cyclical existence are transmuted into the pure, divine nature through
experiential cultivation of the Buddhist teachings. As the Extensive Magical Net says:
If there is no understanding of intrinsic awareness or genuine perception, / The field of
SukhavatI is even seen as a state of evil existence. / If the truth which is equivalent to the
supreme of vehicles is realised, / Even states of evil existence are Akanistha and Tusita».

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A relevância de Peregrinação no contexto da apresentação
do Budismo aos Europeus 203

ilustração da fragilidade e da imprevisibilidade da vida, os constantes


altos e baixos que o herói continuamente atravessa, a sucessão das varia-
díssimas situações kármicas desde a plenitude ao infortúnio e de novo do
infortúnio à glória: «os trabalhos e perigos da vida que passei no decurso
de vinte e um anos em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido nas
partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macassar, Sama-
tra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago. . . ». Quanto
às histórias de Jataka, além de ilustrarem a inesgotável variedade de
contextos em que foi possível ao futuro Buda manifestar uma profunda
compaixão pelos inúmeros seres vivos com que se relacionou, estas ilus-
tram também a inesgotável variedade das situações kármicas, que vida
após vida o futuro Buda foi atravessando. Em Peregrinação, o protago-
nista nem sempre age em benefício dos seres com que interage, repetidas
vezes mata, rouba, faz mostra de ganância e de egoísmo. Um traço, porém,
se assemelha às histórias de Jataka: o desprendimento com que evolui.
Tal como o futuro Buda foi atravessando os diversos reinos da existência
sem se deixar prender ou cristalizar numa situação fechada, vida após
vida; assim também Fernão Mendes, mas este no decurso de uma única
vida, ou (como ele próprio escreve) «no decurso de vinte e um anos», con-
densa uma miríade de contextos e de condições de existência, como se
de uma sucessão de inúmeras vidas se tratasse. A impermanência mani-
festa, a contínua territorialização e desterritorialização13 , como se o chão
lhe fugisse de debaixo dos pés, como água fluída, sobre a qual os navios
«voam», mais que navegam, faz refletir acerca do diametral contraste en-
tre a movimentada vida do autor, a excecionalmente movimentada vida do
autor, por oposição à eventual estabilidade de uma vida dita sedentária,
abrindo assim as vistas para outras possibilidades de existir, para além
da esfera do habitual e do quotidiano; mas faz também refletir acerca
da fragilidade e mesmo da artificialidade das situações que tomamos por
estáveis, se não mesmo por definitivas, e que, por fim, repentinamente se
esboroam e se dissolvem e saudamos: dissolvendo a vida a cada situação
e a dada situação dissolvendo a vida.

13
Cf. Deleuze & Guattari, 1980.

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Quand un voyage en Orient en cache un autre

Régine Atzenhoffer

Université de Strasbourg (France) – EA 4593

Resumo: Annemarie Schwarzenbach (1908-1942), fille d’une riche famille de


la haute bourgeoisie conservatrice zurichoise, est reconnue comme une journa-
liste, photographe, auteure et archéologue d’envergure. Ses récits de voyage en
Orient permettent au lectorat de se faire une idée assez affinée de son univers
intérieur, de ses tourments et de ce « mal d’Europe » qui se reflètent dans ses
textes et en font toute l’originalité. Ils disent la face ténébreuse de la jeune
Suissesse et cette souffrance morale qu’elle inscrit dans un drame qui est ce-
lui de tout un continent secoué par des conflits et des crises. Les récits de
voyage d’A. Schwarzenbach en deviennent le miroir et fournissent un éclairage
sur l’effondrement progressif d’une société déboussolée.

Palavras-chave: Auteure-voyageuse; écriture du voyage; Orient; toxicoma-


nie; « voyage intérieur »

Annemarie Schwarzenbach (23 mai 1908 à Zurich – 15 novembre 1942


à Sils en Engadine) est à la fois photojournaliste sensible aux problèmes
du monde et une auteure reconnue aujourd’hui comme l’un des trois grands
écrivains voyageurs suisses du 20ème siècle, à côté de Nicolas Bouvier
et d’Ella Maillard. Pionnière dans son désir d’émancipation, dans sa
quête d’elle-même, dans sa recherche d’un état social plus humain et
plus juste, assoiffée d’absolu, elle passe sa courte vie à errer d’un conti-
nent à l’autre, à la recherche d’elle-même et d’un sens se dérobant sans
208 Régine Atzenhoffer

cesse. Sous le pseudonyme de Christina, celle qui a inspiré l’écriture


de plusieurs auteurs allemands et suisses – dont Klaus Mann, Wilhelm
Speyer, Ruth Landshoff-Yorck, Albrecht Haushofer – est aussi l’héroïne de
La Voix cruelle d’Ella Maillart. Annemarie Schwarzenbach s’oppose, dès
la première heure, au national-socialisme et, contrairement à bon nombre
d’intellectuels de renom, elle fustige, en 1940, la neutralité suisse. A la
recherche d’improbables remèdes, le « mal d’Europe » va la jeter sur les
routes de trois continents : vivant miroir des conflits et des crises qui
secouent l’Europe, elle est malade des idéologies auxquelles la société
s’est inféodée pendant les trente premières années du 20ème siècle. Sa
vie est à l’image de l’instabilité et de l’effondrement progressif d’une so-
ciété et d’un continent déboussolés. En 1939, fuyant l’Europe sombrant
dans la guerre, elle quitte la Suisse pour l’Afghanistan. Docteure en his-
toire, nourrie de récits d’aventures, elle a une approche très lettrée des
voyages. Son origine bourgeoise influence-t-elle sa manière de voya-
ger ? Elle aura du moins favorisé son départ. Annemarie Schwarzenbach
eu un accès privilégié à la mobilité et à la culture : ses voyages auraient
d’ailleurs pu s’inscrire dans la veine du « Grand Tour » qui se pratiquait
beaucoup dans les milieux bourgeois protestants à la fin du 19ème et au
début du 20ème siècle. Or, elle prend le contre-pied de ce modèle classi-
que, car elle n’envisage pas ses voyages comme un divertissement ou un
complément culturel à ses humanités mais, bien plus radicalement, comme
un choix de vie. Cet engagement, corps et âme, entraîne une certaine mar-
ginalité. Jeune femme fragile, morphinomane, en quête de sens, elle ne
cesse de voyager jusqu’à sa mort prématurée en 1942. Les répercussions,
physiques, morales, sociales de ses voyages sont mises en scène dans ses
écrits qui portent la trace de la seconde guerre mondiale. Dévorée par sa
sensibilité et l’envie d’écrire, elle se lance sur les routes d’Orient.
Dans un premier temps, notre travail reviendra sur le contexte des
départs de l’auteure pour l’Orient et ce « mal d’Europe » qui la ronge et
la pousse à quitter le giron familial et le Bocken de ses jeunes années.
Face à une Europe en train de sombrer, Annemarie Schwarzenbach est,
à la fois, tentée par la résistance, par l’isolement dans les montagnes
qu’elle a narré dans le Refuge des cimes et par l’évasion procurée par les
voyages, cette fuite dans l’inaccessible qui force à assumer inconfort et

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Quand un voyage en Orient en cache un autre 209

solitude, et à rompre de façon arbitraire avec les habitudes de vie. Dans


une seconde partie, nous montrerons que ces voyages cachent en fait une
autre fuite, celle de la drogue, d’un destin obscur et de l’angoisse de la
guerre. Les voyages en Orient d’Annemarie Schwarzenbach ne reposent
donc pas uniquement sur l’appel qu’exercent les lointains, sur un besoin
impérieux de prendre ses distances avec la bourgeoisie zurichoise, de
quitter l’Europe en déclin ou sur ses aspirations à un monde plus pacifique,
non perverti par l’industrialisation et qui aurait gardé intacts les liens
avec la nature. Son désir d’Orient qui trouve à s’exprimer dans sa prose
est le signe visible d’un cheminement personnel, d’une quête de sens de
la vie et de vérité. Ses voyages deviennent alors de véritables voyages
introspectifs.

“ Mal d’Europe ” et désir d’Orient

« On part s’éloigner d’une enfance étouffante, pour ne pas occuper


la niche que les autres vous assignent, pour ne pas s’appeler Médor »,
écrit Nicolas Bouvier reliant aventure et désobéissance civile (Bouvier,
2000 : 11). Cette affirmation correspond parfaitement aux motivations de
la voyageuse Annemarie Schwarzenbach. L’intensité avec laquelle elle se
voue au voyage, et même au « contre-voyage », donne le ton de ses récits
et résume bien la posture de cette auteure-voyageuse d’un genre nou-
veau qui se dit amateur, non-qualifiée. Manifestant une aversion résolue
pour le tourisme, elle dit à Ella Maillart qu’elle déteste « sightseeing
as a tourist ». Quand elle parle du tourisme de luxe dans son article
Hôtel Plaza, publié 01.08.1940 dans la National-Zeitung, elle peut même
devenir sarcastique :

Je sais par expérience que dans le monde entier les hôtels Plaza
Ritz et Palace se ressemblent tous: leurs salles de bain ont les
mêmes dimensions, le “ Martini Dry ” glacé servi dans leurs bars a
partout le même goût, et les prix aussi, à Singapour et à Barcelone
ou sur le paquebot, sont sensiblement les mêmes [. . . ] Je connais
des gens qui, ayant décidé de faire le tour du monde, ont pris leur

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210 Régine Atzenhoffer

billet à New York en expliquant qu’ils disposaient uniquement des


trois mois d’été, après quoi, dans la cabine laquée de blanc de leur
paquebot, ils ont, en tout juste trois mois, fait le tour de la terre,
plus vite que Jules Verne.

On ne trouvera pas non plus, dans ses écrits, l’aventure pour l’aventure
ou pour l’exploit sportif, ni la recherche de l’exotisme ou la satisfaction
d’une curiosité : elle ne voyage pas pour découvrir de nouvelles vertus
et d’autres mœurs déclare-t-elle dans La Vallée heureuse. Ses raisons à
elle, il faut donc les chercher ailleurs. Dans ses récits, elle déconstruit
le mythe exotique et s’oppose au touriste. A l’inverse de ce dernier, elle
semble voyager parfois contre sa volonté comme si, dès l’origine, les dés
étaient lancés. En effet, elle se croit maudite, condamnée au voyage et
insiste sur les sacrifices que lui impose cette vie voyageuse hors normes.
Plus encore qu’un voyage d’opposition, c’est un voyage d’inversion qui
se dessine dans les textes d’Annemarie Schwarzenbach qui présente les
raisons de son départ comme un détournement de l’origine. Dominée
par une force irrésistible, une force intérieure, une addiction au voyage,
dans l’impossibilité de rester là où le sort l’a appelée à vivre, elle voit sa
vie marquée par la « malédiction de la fuite ». Rester, c’est s’intégrer,
acquiescer à un ordre et s’en déclarer partie prenante. Or, au-delà de
sa situation familiale, c’est toute une génération, celle de la jeunesse
d’après la Grande Guerre, qu’Annemarie Schwarzenbach voit, sinon mue
par une pulsion de fuite, du moins victime – ou bénéficiaire, c’est selon –
d’un déracinement historique. S’est produite une fracture qui sépare cette
jeunesse de la génération de ses parents et qui la prive de tout ancrage,
à la fois dans le temps et dans l’espace. C’est ce qui ressort clairement
de son article, Position de la jeunesse, publié le 20.04.1930 par la Neue
Zürcher Zeitung :

La guerre et ses répercussions sont responsables de l’effondrement


de toutes les valeurs [. . . ] Nos pères ont droit de cité dans un monde
qu’ils ont organisé exclusivement à leur façon ; nous, par contre,
nous sommes des étrangers, des vagabonds, dépourvus de toute
certitude, de toute consistance, sans envergure ni stature. Nous
sentons bien nous-mêmes ce que notre position a d’équivoque, cette
façon d’être partout et nulle part, ce “ tout et rien ” dû à la rupture

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Quand un voyage en Orient en cache un autre 211

de nos liens avec la tradition. Nous sentons que nous sommes des
apatrides.

Déboussolée, il lui est difficile de se situer, de se fixer des buts et


de les atteindre. C’est l’angoisse qu’elle confie, le 06.04.1935, à Klaus
Mann :

Quand je songe au passé, la vie de ces dernières années m’apparaît


éclatée en une multitude de petits épisodes qui, avec une inquié-
tante netteté, marquent l’ensemble du sceau du provisoire. Rien ne
dure, rien ne prend une forme aboutie, rien ne se laisse retenir – et
il en sera exactement de même quand, au moment de mourir, on
songera pour la dernière fois au passé. Je crois voir ce que nous
sommes : sans doute ne pouvons-nous plus être sédentaires, main-
tenir vivante l’illusion du durable, de ce qui conduit à un but ?

Fuir donc à cause des fractures secrètes, partir puisqu’on ne peut plus
être de quelque part. Dans une Europe devenue infréquentable, le voyage
en Orient devient celui de la dernière chance, « un exotisme par néces-
sité » (Michel, 2001 : 84). Elle dit quitter un Occident décevant et la
liste de ses doléances est aussi longue que celle de ses attentes. Au-
delà des espérances concrètes et rationnelles, le fantasme d’un retour à
l’initial et à une certaine virginité de l’être du monde l’accompagne. Son
voyage repose donc à la fois sur un besoin d’opposition et de transgres-
sion, sur une mise à l’épreuve physique des limites de l’identité et sur la
forte conviction d’un salut possible en Orient. Pour trouver ce qui fait le
sens de sa vie, ce n’est pas vers l’Occident qu’elle se tourne, car, certaine-
ment à bout de course, il fait fausse route. L’Occident, ce sont désormais
les mégapoles, les machines, une sorte de déshumanisation, des rapports
sociaux aliénés, quelque chose qui s’apparente à la Métropolis de Fritz
Lang. Et ce qu’il y a d’autre en Europe, une certaine idée de l’homme et
de l’art, ce n’est qu’à distance de l’Europe qu’elle le perçoit le mieux ou,
au moment du retour, cet instant fugitif où s’effectue la reconnaissance.
Pour comprendre l’aventure humaine, il faut chercher ailleurs, car voyager
en Occident, c’est demeurer au sein de sa propre culture. Pour attein-
dre une compréhension plus totale de ce qui se passe en ce monde, il
faut que les familiarités tombent, il faut « perdre ses défenses ». Seules

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212 Régine Atzenhoffer

l’Asie et l’Afrique sont capables d’infliger à l’âme ce radical dépouille-


ment. Là-bas, le temps n’est plus le même temps et la Terre est comme
méconnaissable. L’unité du monde humain doit parfois s’éprouver par-delà
une étrangeté, une altérité extrêmes. Le journalisme et l’œuvre littéraire
trouvent à se nourrir de cette expérience, se rejoignant parfois, reflétant
parfois l’expérience sur deux modes spectaculairement distants.
« J’aimerais bien quitter l’Europe, échapper au moins pour un temps
au cadre étroit de notre représentation et en même temps à des pratiques
professionnelles détestables. J’aimerais bien accomplir un travail plus pur.
Je déteste le mélange voyage d’agrément et curiosité littéraire », écrit An-
nemarie Schwarzenbach à Munich dans une lettre non datée. A côté des
raisons personnelles qui proviennent d’un rapport malaisé avec sa famille,
on perçoit chez elle une répulsion pour l’Europe, où continuer à travailler
serait pour elle se maintenir dans l’ornière, se condamner à des pratiques
professionnelles superficielles et éminemment discutables – dépourvues
de morale et de sens. Sa vie est ailleurs : il lui faut quitter l’Europe pour
échapper à une forme d’enfermement mental. Mais c’est paradoxalement
pour mieux la retrouver, la saisir dans sa vérité en remontant à ses ori-
gines. Plus profondément que les projets professionnels, que la volonté
d’indépendance ou que le choix d’un certain genre de vie, ce qui nourrit
son désir impérieux d’Orient, c’est le rêve d’un retour à « la source de la
pureté ». Et ce rêve, elle espère le réaliser à travers le contact avec les
lieux mêmes de l’originelle innocence. Une des fonctions qu’elle assigne
au voyage en Orient est, de ce fait, de lui procurer un contact avec le
passé de l’humanité et avec les origines du monde occidental. Les routes
orientales qu’elle sillonne ont un pouvoir libérateur. « Devant moi, une
route blanche, une piste dans le désert, un sentier dans la montagne,
où conduisent-ils, je ne sais. Que le Ciel soit loué ! Le temps d’une
seconde je pressens la délivrance [. . . ] », écrit-elle dans La vallée heu-
reuse (Schwarzenbach, 2001 : 90). Son voyage en Orient est comme une
épreuve inouïe et son ouvrage se termine sur une « intrépide promesse
du prochain départ ».

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Quand un voyage en Orient en cache un autre 213

Voyage “ intérieur ” et frénésie d’écriture

Chez Annemarie Schwarzenbach, le besoin de fuir n’est qu’un des deux


pôles de son besoin de voyage. L’autre, c’est l’appel impérieux qu’exercent
les lointains, le mouvement qui la pousse vers les autres et sa capacité
d’empathie qui lui fait épouser leurs souffrances. Annemarie Schwarzen-
bach ne cesse de se demander où elle pourrait mieux contribuer à la lutte
pour la justice ou pour la liberté et ce souci prend régulièrement des
proportions démesurées et compromet son fragile équilibre moral. Ainsi,
quand elle se sent écrasée par le malheur humain ou pendant la guerre,
alors qu’elle séjourne à Kaboul ou aux Etats-Unis, elle est submergée
par la mauvaise conscience, par le sentiment d’être à l’abri et inutile,
tandis qu’au loin d’autres souffrent ou meurent. « Il me semble souvent
que la misère humaine est sans proportion aucune avec l’effort possible
et ses résultats minuscules », confie-t-elle à Ella Maillart, le 24.02.1940
à Sils-Baselgia. Cette dernière lui répond le 23.01.1940, dans une lettre
depuis Malwa House, que « si nous pensions aux tonnes de souffrances et
de gémissements poussés dernièrement en Espagne, en Chine, en Russie,
nous ne pourrions même plus manger quoi que ce soit. Or tant que nous
sommes encore destinés à vivre, à nous de vivre d’une manière qui soit
possible et qui ne nous rende pas fous de notre impuissance ».
Dans son article intitulé « Vers l’ouest » et publié en mai 1940
dans la National-Zeitung, Annemarie Schwarzenbach précise que quit-
ter l’Europe, c’est, pour elle, toujours partir vers l’est : « Quand je partais
vers l’est, je quittais vraiment l’Europe – et ce faisant, je savais toujours
ce que je quittais. L’est, c’était le désert, l’infinie solitude de l’aube nais-
sante, la steppe épineuse de la réflexion ». Ses articles et ses récits
traduisent la souffrance lovée dans son cœur et dans son âme, ce mal qui
la ronge, « le mal d’Europe ». Et elle inscrit cette souffrance dans un
drame qui est celui de tout un continent où l’on exige trop peu de cou-
rage et beaucoup trop de patience. Le voyage s’envisage dès lors comme
un cheminement personnel dans lequel elle projette mythes, illusions et
déceptions sur le réel. Elle se détourne de la réalité sociale de son pays
et se tourne vers l’Orient, ce qu’Edward Said appelle « la mythologie

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214 Régine Atzenhoffer

d’un Est mystérieux » ou « le songe européen de l’Orient » (Said, 1979).


L’Orient est un exo-centre, un lieu de révélation et de renouveau ; un lieu,
selon l’expression de Henri Lefebvre, où « la vie de tous les jours est mise
entre parenthèses et remplacée par une autre » (Lefebvre, 2000). Les élé-
ments de description sont réduits à l’essentiel afin de mettre en exergue
le voyage intérieur et le récit de Schwarzenbach est conforme à ce « dé-
sengagement de l’actualité du lieu » cher à Peter Bishop. Ainsi, l’Orient
est, chez elle, une nature élémentaire, une géographie de transcendance
et de transformation. Les passages descriptifs de ses récits sont presque
formalistes, comme si la géographie elle-même devait se taire pour faire
place à la quête de l’initié : ces paysages-là sont taillés sur mesure pour
le voyage intérieur. L’Orient offre un refuge à la mélancolie de vieille
Europe et à sa civilisation usée, « Die dunkle Seite », le côté obscur, la
face ténébreuse. Ce basculement sur le versant sombre d’elle-même don-
nait au regard d’Annemarie ce caractère douloureux et décalé. Si Bocken
fait figure de lieu irréel, un peu comme un lieu de vacances, les choses
sérieuses commenceraient en Perse : « Ici, c’est un monde artificiel, ce
n’est plus du tout la ‘terre’ ; là-bas, c’est à nouveau le soleil et l’ombre, la
poussière, la solitude, la réflexion – et c’est alors que se pose la question
du BUT sous sa forme la plus cruelle et la plus décourageante » écrit-elle
à Klaus Mann, le 4 juillet 1934.
A. Schwarzenbach aborde l’Afghanistan avec son bagage d’historienne
qui la rend apte à analyser – comme elle le fera dans ses articles de jour-
naux – la situation géopolitique du pays à ce moment crucial de l’Histoire.
Mais elle y entre aussi avec son bagage de rêves, constitutifs de sa nos-
talgie personnelle, et elle aspire à s’investir en ce monde au plus loin du
modèle occidental. La force de ce rêve apparaît dans les termes « pays
de la liberté, pays de l’avenir » : les peuples afghans pourraient donc
se trouver parmi les derniers au monde à posséder encore le sens de la
liberté, et être ceux à partir desquels pourrait se reconstituer une huma-
nité digne de ce nom. Cependant, ce rêve se heurte à la réalité car la vie
nomade est menacée – et la guerre a fondu sur le monde. En définitive,
il est impossible de préserver la liberté, d’échapper où que ce soit à la
puissance tentaculaire de l’Occident. « Avions-nous découvert le Para-
dis ? C’est ce qu’il nous semblait, – et nous savions aussi que l’expulsion
du Paradis ne se ferait pas attendre, car déjà on projetait en Afghanistan

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Quand un voyage en Orient en cache un autre 215

la construction de routes et de ponts, d’usines, de barrages, d’hôpitaux,


de cités ouvrières », note-t-elle, en 1939, dans son article « Mobilisé à
Kaboul », publié par la National-Zeitung le 01.12.1939. Plus que tout
autre pays, l’Afghanistan correspond au rêve que nourrit A. Schwarzen-
bach d’une vie humaine authentique, de la vie avant la dénaturation, de
la pureté originelle.
En quête de sens et de vérité, elle écrit, dès 1929, dans la pre-
mière Nouvelle parisienne : « Chercher, c’est toujours partir [. . . ] Et l’on
s’éloigne, et de soi-même aussi ». L’exigence spirituelle est associée en-
core plus étroitement à l’errance et au voyage dans une lettre qu’elle
adresse, le 12.02.1926, au pasteur Ernst Metz : « En fait je ne souhaite
rien d’autre qu’errer de monde en monde, et ne cesser que lorsque j’aurai
enfin obtenu le pardon de Dieu et trouvé la source de la pureté ». Ainsi le
voyage « de monde en monde » pourrait être l’instrument d’une rédemp-
tion, le moyen d’échapper à un terrible sentiment de culpabilité. Cette
culpabilité est, pour une part, ressentie comme personnelle – l’attitude
de l’entourage familial, à Bocken, devait alimenter le sentiment constant
d’être en faute – mais elle est aussi collective : c’est le poids du péché
originel que tout humain porte comme un insupportable fardeau dès qu’il
a quitté l’enfance. L’étonnant est ce rêve d’une « errance » capable de
restituer la « pureté » perdue. Comment Annemarie Schwarzenbach peut-
-elle espérer délivrance du péché originel, tache indélébile ? Et, alors
qu’elle n’espère rien de l’effort sur soi, comment peut-elle attendre d’un
voyage à travers le monde qu’il efface ce péché originel ? Elle se lance
dans la quête de l’impossible, quête à laquelle elle ne pourra pourtant
pas renoncer. Lors de ses voyages en Orient, elle cherchera un lieu qui
n’existe nulle part – du moins si elle s’obstine à le chercher dans l’espace
réel de la Terre. Ce tourment ne disparaîtra jamais, en témoigne la re-
marque d’Ella Maillart dans La Voie cruelle : « Elle est obsédée par la
perte de son innocence d’enfant et par la nécessité de faire pénitence »
(Maillart, 2001 : 92). Il y a là une interrogation sur le sens de l’aventure
humaine, sur Dieu et l’homme, interrogation qui cherche réponse dans le
voyage. Annemarie Schwarzenbach part pour chercher en Orient, dans
toutes les souffrances du monde, un sens, un Dieu et du Vrai (Schwarzen-
bach, 1929). Comment cette jeune femme fragile pouvait-elle supporter
des voyages aussi éprouvants, dans un état d’amaigrissement extrême, sur

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216 Régine Atzenhoffer

la nouvelle route du nord de l’Afghanistan jusqu’aux montagnes du Kafi-


ristan ? Partir est pour elle une nécessité absolue. Il lui faut une activité
qui l’éloigne d’elle-même, il lui faut des engagements qui lui imposent une
discipline, assure-t-elle à Ella Maillart en mars 1939 :

Si je continue de vivre au hasard, d’épisode en épisode, évitant par


chance un danger, me noyant dans un autre, si je reste dans le
provisoire, acceptant une petite tâche ici et là, attendant un petit
soulagement, une consolation d’une amie, d’un succès, tout cela ne
m’apprendra pas à vivre et à tenir devant les difficultés de mon
caractère, mes nerfs facilement ébranlés, mes angoisses.

Annemarie Schwarzenbach fournit des efforts héroïques pour surmon-


ter un déséquilibre persistant, et sa mère dit d’elle que son cas est malheu-
reusement sans espoir. Les préparatifs de ses voyages l’aident quelque
peu à s’abstraire de ses problèmes personnels. Le 14 juin 1939, elle confie
à Erika Mann vouloir « se soumettre à la vie sans tendresse », c’est-à-
dire aux épreuves d’un voyage particulièrement rude, afin de corriger ce
qu’elle appelle de « tardives erreurs de jeunesse ». Elle a besoin, en
permanence, d’être active pour ne pas tomber dans la dépression.
Derrière les raisons circonstancielles de ses grands départs pour
l’Orient, il y a toujours ce besoin d’inscrire cette expérience du voyage
dans l’écriture, dans une série de récits inspirés de ses séjours en Orient
qu’elle qualifie « d’épreuve de la maturité ». Elle s’obstine à choisir « la
voie compliquée, la voie cruelle de l’enfer » (Maillart, 2001 : 129) et tombe
dans un rythme d’écriture infernal en rédigeant un article par jour. Cette
frénésie d’écriture parvient toutefois difficilement à masquer un malaise
persistant, exacerbé par la lecture des journaux qui déversent quotidienne-
ment des nouvelles alarmantes en provenance de l’Allemagne hitlérienne.
Elle doit constamment trouver une position tant soit peu tenable entre
une famille favorable à la montée du fascisme et des amis engagés dans
la résistance. Et dès qu’elle lâche la plume, elle a l’impression de tomber
dans un trou noir. « J’ai une peur démesurée de chaque moment où on me
laisse seule en face de ce tourbillon gris », écrit-elle, le 14 juillet 1934,
à Claude Bourdet (Schwarzenbach, 2008a : 57). « Je n‘ai plus du tout
envie de vivre ». Et, le 14 septembre suivant, elle lui avoue : « Je ne crois
à rien et un peu à personne comme je doute de ma vie. C’est pourquoi je

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Quand un voyage en Orient en cache un autre 217

suis tentée de rester ici, loin du monde » (Schwarzenbach, 2008a : 77).


Pour tenter de juguler son désespoir, elle consomme « thon », morphine,
opium et Eudocal. A l’adresse de son ami Klaus Mann, elle exprime, le 6
avril 1936, son sentiment du monde : « Rien n’est durable, rien ne prend
forme, tout nous échappe – et c’est exactement ainsi que se présentera la
mort lors d’un ultime retour sur soi-même ».
En somme, Annemarie Schwarzenbach voyage tantôt dans le souci
des autres, par exigence de justice et de liberté, dans une perspective
d’engagement et d’action ; tantôt davantage pour elle-même, par exigence
de sens et pour approfondir une quête intérieure. Ces deux aspirations,
parfois opposées, la conduisent sur les routes du globe, et plus parti-
culièrement sur celles de l’Orient. Elles déterminent une géographie de
ses voyages elle-même duelle. Ainsi, le 23.07.1940, elle écrit à Klaus
Mann : « Je soupçonne très fortement que pour moi le départ est une
façon de me dérober au destin ». Car ses voyages, c’est aussi une fa-
çon d’échapper, au moins sur un plan, aux limitations imposées à l’être
humain par un destin obscur. L’inhospitalité de certains lieux traversés
vient alimenter le sentiment, déjà exacerbé par l’angoisse d’une guerre
d’emblée devenue mondiale, que la fin de l’Histoire et du monde ap-
proche. Annemarie Schwarzenbach est persuadée que cette guerre est
le signe et l’aboutissement du déclin de l’Occident. Beaucoup d’illusions
sont tombées, dont celle que la vie de ces peuples lointains, restés proches
de l’humanité originelle, pourrait guider l’Occident dans son relèvement.
Qu’espère-t-elle encore de ses voyages et campagnes de reportages en
Orient ? Elle souhaite toucher les Européens qui s’enferment eux-mêmes
dans une ignorance et une inconscience à demi-consenties, afin de lutter
contre le cloisonnement qui fait que chacun ne voit pas au-delà de son
territoire. Car cette politique de l’autruche se révèlera catastrophique
pour tout individu, avant de l’être pour le reste de l’humanité. Elargir
l’horizon, créer un contact avec les peuples d’ailleurs, c’est sa façon toute
personnelle de contribuer à dissiper l’inconscience et renforcer entre les
hommes le sentiment d’une communauté de destin.
Hiver au Proche-Orient s’ouvre étrangement sur un mot, une phrase
qui en donnent la tonalité dominante : « Mélancolie : ce sont les Grecs
qui ont inventé ce mot, riche et puissant comme un crépuscule dont les
couleurs vont bientôt s’éteindre » (Schwarzenbach, 2008 : 21). La mé-

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218 Régine Atzenhoffer

lancolie, ce fut de découvrir l’envers de la liberté : le mal du pays et


la solitude, le sentiment d’une irrémédiable rupture et celui de s’être,
dans cette rupture, non pas trouvée, mais au contraire perdue soi-même,
de ne plus se reconnaître là où on ne reconnaît plus rien. Le senti-
ment aussi de regretter l’Europe tout en haïssant son nouveau visage, en
sachant qu’on ne peut plus l’aimer autant qu’on le voudrait. Ses aventu-
res orientales évoquent, non une aube ramenant au monde originel et à
l’innocence, mais un soleil couchant. Au lieu de constituer l’antidote au
sentiment de déclin qu’évoque pour elle l’Occident, l’Orient, berceau de
l’Europe, donne des signes d’un déclin bien plus avancé encore. Ses pa-
ges sur l’Irak font allusion à un grand incendie à Bagdad et épiloguent :
« Déclin consommé et menace permanente se donnaient la main ». Ses
voyages en Orient ne l’ont pas éloignée de l’écriture, bien au contraire.
L’épreuve morale qu’ils ont constitué l’a conduite à remettre en question
son rapport à elle-même et au monde, sa vision de la destinée humaine, la
menant parfois jusqu’au plus dangereux désespoir ; et son œuvre – Hiver
au Proche-Orient, Orient exils, La Mort en Perse, La Vallée heureuse,
Les Quarante Colonnes du souvenir – se trouve irriguée par cette ex-
périence, recentrée autour d’elle. Forte de ses griefs, rejets et regrets,
Annemarie Schwarzenbach, en quittant l’Europe, emporte tout de même
son corps. Ce corps qui porte les stigmates de l’Occident. Lorsque le
voyage se fait miroir du corps, un constat plutôt sombre se présente, ce-
lui d’un corps malade de l’Occident. Annemarie Schwarzenbach se dit
handicapée par un corps dévoré de coupables tentations. Il rappelle à
la voyageuse ce qu’elle s’évertue à oublier : sa race, sa classe, son sexe.
Ses textes témoignent d’une violence qui n’est pas que verbale ou sym-
bolique. La toxicomanie, le froid, la faim et la douleur sont des épisodes
récurrents dans ses récits. Ses voyages en Orient sont une expérience
de l’extrême géographique mais également physique. Et ce sont bien des
cartographies intimes que l’écrivain-voyageuse présente dans ses récits.
Cette particularité n’est pas seulement une originalité de style, elle répond
à une exigence d’époque. Annemarie Schwarzenbach est d’un siècle qui
a décrété l’épuisement de l’exotisme et annoncé la fin des voyages. Des
années 1930 aux années 1960, de l’époque de notre voyageuse à celle
des voyageurs Nicolas Bouvier ou Lorenzo Pestilli, le changement est
frappant. Si Annemarie Schwarzenbach voyage encore à l’heure de gloire

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Quand un voyage en Orient en cache un autre 219

de l’aventure, ses constats sont déjà amers et son discours commence à


établir tristement la fin de l’inconnu et annonce le règne du tourisme et
la standardisation des voyages. Les écrivains-voyageurs après Annemarie
Schwarzenbach sont de plus en plus dépourvus de ce qui faisait la matière
première de ses récits : l’ailleurs inédit. Dans de telles conditions, face
à ce monde épuisé, comment partir et surtout qu’écrire ?

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Bibliographie

BOUVIER, Nicolas (2000). Thesaurus pauperum. Carouge-Genève :


Zoé.
LEFEBVRE, Henri (2000). La production de l’espace. Paris : Econo-
mica.
MAILLART, Ella (2001). La Voie cruelle. Paris : Payot.
MICHEL, Franck (2001). En route pour l’Asie. Le rêve oriental chez
les colonisateurs, les aventuriers et les touristes occidentaux. Paris :
L’Harmattan.
SAID, Edward (1979). Orientalism. New York : Vintage.
SCHWARZENBACH, Annemarie (1929). Nouvelle parisienne. Dans :
Inverses n.o 6, 2006.
SCHWARZENBACH, Annemarie (1993). Briefe ( 1930-1942). Pfaf-
fenweiler : Centaurus.
SCHWARZENBACH, Annemarie (2001). La Vallée heureuse. Vevey :
Editions de l’Aire.
SCHWARZENBACH, Annemarie (2004). Où est la terre des promes-
ses ?. Paris : Payot.
SCHWARZENBACH, Annemarie (2003). Orients Exils. Paris : Payot.
SCHWARZENBACH, Annemarie (2008). Hiver au Proche-Orient.
Paris : Payot.
SCHWARZENBACH, Annemarie (2008a). Lettres à Claude Bourdet.
Carouge-Genève : Zoé.
Mia Couto: viagem e metaficção1 ,
em O outro Pé da Sereia. . .

José Paulo Cruz Pereira

Departamento de Artes e Humanidades


Universidade do Algarve

Resumo: A nossa leitura de O outro Pé da Sereia acompanha, em especial,


a forma como aí se questionam “a História” e a sua verdade. Fá-lo a partir
da epígrafe colhida da boca de uma personagem: a de “Arcanjo Mistura” – o
barbeiro-“filósofo” de “Vila Longe”. Portadora de um outro sentido da morte, é no
horizonte da sua diferença que colocaremos a questão da forma como, no âmbito
do processo da colonização: a) essa “História” é já, antecipadamente, deposta
do seu anterior estatuto; b) o violento (des-) encontro entre culturas distintas nos
induz à percepção de um espaçamento que abre o real às tensões presentes, quer
nos dissensos que o percorrem, quer na sua própria ambivalência; c) a viagem
se afirma aí, à semelhança da escrita, como movimento que, desincorporador –
de franqueamento das nossas “fronteiras interiores”. . .

Palavras-chave: Metaficção; pós-colonial; informe; cultura; alteridade.

1
Referimo-nos aqui ao conceito de Linda Hutcheon, em A Poetics of Postmodernism:
History, Theory, Fiction, New York / London, Routledge, 1991, p. 5: “by this [“historio-
graphic metafiction”] I mean those well-known and popular novels which are intensely self-
-reflexive and yet paradoxically also lay claim to historical events and personages [. . . with]
theoretical self-awareness of history and fiction as human constructs [. . . ] rethinking of the
forms and contents of the past”. Ou ainda, ibidem, p. 16: “History is not made obsolete:
it is however being rethought – as a human construct” (sublinhado nosso).
222 José Paulo Cruz Pereira

1. Os espaços do inverso. . .

A epígrafe com que abre o primeiro capítulo de O Outro Pé da Sereia –


“A Estrela Enterrada”. . . – traz-nos já à fórmula de cuja interrogação aqui
partimos. Eis o que aí nos diz “Arcanjo Mistura, o barbeiro de Vila Longe”:
“em todo o mundo é assim: morrem as pessoas, fica a História. Aqui é o
inverso: morre apenas a História, os mortos não se vão” (Couto, 2006: 15;
sublinhado nosso). E a nossa questão é a da relação aqui estabelecida,
entre ambas as espécies de morte: a da “História” e a desses “mortos”
que “não se vão”. . . Uma passagem de Les noms de l’histoire, de Jacques
Rancière, desdobrar-nos-ia alguns dos pressupostos da primeira:

L’Oedipe historien ne peut cesser d’être un “nécrophile”, s’il veut


rendre aux âmes mortes le sang de la vie. [. . . ] C’est la mort calmée
qui lui donne le terrain où elle peut se faire ethnologue du passé.
Mais c’est aussi l’opération maintenue de la recondution des morts
qui l’êmpeche de disparaître dans sa propre victoire, de n’être plus
qu’une sociologie ou une ethnologie du passé. La différence propre
à l’histoire, c’est la mort, c’est le pouvoir de mort qui s’attache aux
seules propriétés de l’être parlant, c’est le trouble que ce pouvoir
introduit dans tous savoir positif. L’historien ne peut cesser d’effacer
la ligne de mort, mais aussi de la retracer à nouveaux. (Rancière,
1992: 151-152; sublinhado nosso)

O que a História envolveria seria, assim, uma morte já apaziguada,


tranquilizadoramente certificada – “acalmada” – remetida aos confins de
uma vida assim circunscrita pela sua própria preterição. Dela dependeria,
segundo Rancière, a sua assunção como ciência do passado. O que se
converteria no seu mais radical desmentido seria já, contudo, o ideal de, a
essas “almas mortas”, lhes vir a restituir o “sangue da vida”. Porque, então,
alguma coisa de suplementarmente vivo nelas se jogaria, que lhes deveria
já justificar esse seu resgate do esquecimento. Perturbar-se-ia, assim, a
linha divisória da sua separação. O que implicaria, por outro lado, que
o historiador se não pudesse, também ele, em relação ao passado a que
a sua ciência se dirige, agora exclusivamente situar do lado do presente
vivo que o examina. Pois que ele aqui se assumiria já, então – na medida

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Mia Couto: viagem e metaficção, em O outro Pé da Sereia. . . 223

em que sujeito falante – como portador da morte. Com efeito, como nos
diria Lacan, no Le seminaire, livre III – Les psychoses:

Le sujet humain désirant [. . . ] le premier abord qu’il a de l’objet


c’est l’objet en tant qu’objet de l’autre. [. . . ] Cette base rivalitaire
et concurrentielle [. . . ] est précisément ce qui est surmonté dans la
parole, pour autant qu’elle intéresse un tiers. [. . . ] C’est dans une
rivalité fondamentale, dans une lutte à mort première et essentielle,
que se produit la constitution du monde humain comme tel. (Lacan,
1981: 49-51)

Dupla dimensão da morte, pois: a) quer como redutora síntese dis-


cursiva da realidade complexa a que o conceito se refere; b) quer como
diferença pela qual, no horizonte de toda a interpelação desse terceiro,
aí posto em jogo, a interpretação do historiador de outras se demarca. . . A
uma tal “morte da História” – já em si e por si cometida. . . – seria agora,
contudo, também preciso aproximá-la daquela outra que, para Arcanjo
Mistura, seria a destes “mortos” que – não muito diferentemente dos da
História, afinal. . . – dali “não se vão”. . . Eis então o que, a propósito desta
já outra morte, nos diria Emmanuel Lévinas, no seu Le temps et l’autre:

Ce qui est important à l’approche de la mort, c’est qu’à un certain


moment nous ne pouvons plus pouvoir; c’est en cela justement que le
sujet perd sa maîtrise même de sujet. [. . . ] La mort est l’impossibilité
d’avoir un projet. Cette approche de la mort indique que nous som-
mes en relation avec quelque chose qui est absolument autre, quel-
que chose portant de l’altérité, non pas comme une détermination
provisoire, [. . . ] mais [comme] quelque chose dont l’existence est
faite d’altérite. [. . . ]. Dans la mort, l’exister de l’existant s’aliène.
[. . . ] L’avenir c’est l’autre. La relation avec l’avenir c’est la relation
avec l’autre. (Lévinas, 1979: 62-63)

Seria, assim, já nessa “alienação do existir no existente” que este ou-


tro sentido da morte se inscreve. “Outro”, por um lado, porque já não limi-
tado à sua costumeira condição de fim absoluto da existência; mas “outro”
também, por outro lado, por implicar – nesse impoder que aí transcende
toda a determinação provisória – aquela pré-originária alteridade, que as-
sim se nos daria como própria da nossa mais irredutível “incondição”. Tal
como no caso do historiador, também nós aqui nos repartiríamos, agora,

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224 José Paulo Cruz Pereira

entre a morte e a vida: entre um passado herdado – que em nós perdura


como memória. . . – e um presente que dele nos desloca já, a cada sua in-
vocação. Simplesmente: não se trataria já daquela apaziguada morte, que
nos colocaria diante do passado como de uma presença plena. Mas antes
de uma morte que, rebelde à ilusão de qualquer referencialidade ideal,
em nós sobreviveria à sua própria preterição. Ora, em nós reconhecida ou
pressentida a sua presença, inevitável seria aquela “morte da História”
que Arcanjo Mistura reiteradamente nos anuncia:

Eis a nossa sina: esquecer para ter passado, mentir para ter futuro.
[. . . ] Não há pior cegueira que a de não ver o tempo. E nós já não
temos lembrança senão daquilo que os outros nos fazem recordar.
Quem hoje passei a nossa memória pela mão são exatamente aque-
les que, ontem, nos conduziram à cegueira. [. . . ] Não é fácil sair da
pobreza. Mais difícil, porém, é a pobreza sair de nós (Couto, 2006:
95; 271; 331)

Ver o tempo, portanto: eis a única forma de a pobreza sair de nós. . .


Mas essa “visão” implicaria que se pensasse, agora, a morte a partir do
tempo. Não o tempo a partir da morte. . . À vida, não é o puro aniqui-
lamento do ser que lhe confere retroativamente sentido. Ao momento do
puro nada não se acede nunca. . . Como se diz na epígrafe atribuída a Dom
Gonçalo da Silveira, retirada de um discurso de 1557:

Assim como a morte não a pinta senão quem morre, nem pode ser
pintada senão vendo quem está morrendo, assim o trago que pas-
sam os que navegam de Portugal para a Índia, não o pode contar
senão quem o passa, nem o pode entender senão quem o vê passar.
(ibidem: 179; sublinhados meus)

“Os mortos [que] não se vão”. . .

Este outro e sentido da morte – a que aqui chamaremos, ao mesmo tempo,


de “insubmisso”. . . – parece-nos ele poder acompanhar-se por todo o ro-
mance. Encontramo-lo, por exemplo, na explicação dada por Dona Cons-
tança a Mwadia Malunga, a propósito da morte da tia Luzmina Rodrigues:

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Mia Couto: viagem e metaficção, em O outro Pé da Sereia. . . 225

“em Vila Longe, a morte não é exatamente um facto” (ibidem: 90; subli-
nhado nosso). Ou, ainda, no que mais tarde responderá a seu hóspede,
o historiador afro-americano Benjamin Southman, quando este lhe per-
gunta se, “os das fotografias” da “parede dos ausentes”, por acaso “não
estão mortos”: “– A gente nunca sabe quando está morta.” (ibidem: 170).
Versão de que se aproximaria, de resto, a de Zeca Matambira, o ex-boxeur
tornado funcionário dos correios de Vila Longe. Pois para ele: “o passado
é coisa mal morta, o melhor é não mexer nele. . . ” (ibidem: 151; subli-
nhado nosso). O mesmo confidenciaria ele a Mwadia Malunga: “vou-lhe
dizer um segredo: esta gente aqui, em Vila Longe, é que está morta. Nós
somos almas depenadas. / – Penadas, corrigiu Mwadia, sem convicção”
(ibidem: 148). E o próprio Arcanjo nos diria, a propósito da alfaiataria e
dos habitantes de Vila Longe: “Tudo isto devia ser sepultado, todos nós”
(ibidem: 145). Este sentido outro da morte faz-se também presente na
acepção de viagem – cuja noção percorre, de forma igualmente transversal,
todo o livro:

A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando


se atravessam as nossas fronteiras interiores. A viagem acontece
quando acordamos fora do corpo, longe do último lugar onde po-
demos ter casa [. . . ] A viagem só termina quando encerramos as
nossas fronteiras interiores. Regressamos a nós, não a um lugar.
Mwadia sentia que retornava aos labirintos da sua alma enquanto
a canoa a conduzia pelos meandros do [rio] Mussenguezi. (ibidem:
77; 379; sublinhados meus)

Em que se traduziria, pois, o excesso que ela parece envolver, quer


enquanto transposição das nossas fronteiras interiores, quer enquanto
movimento de uma desincorporação da qual se não regressaria já – a não
ser para os labirintos que, em nós, se diriam então multiplicar? O mo-
tivo pelo qual Mwadia Malunga regressa a “Vila Longe” é o da urgente
restituição de um estranho e inesperado achado: o de uma estatueta da
Virgem Maria, algures perdida numa floresta das imediações de “Antiga-
mente”, junto do rio Mussenguezi, no outrora cemitério dos Achikundas,
antepassados da família Malunga (ibidem: 202). Que faria, então, por ali
“Nossa Senhora” – já tão longe daquelas tradições que, na costa atlântica
de África, a confundem com a figura de Kianda, a “Sereia” a que o título

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226 José Paulo Cruz Pereira

do romance se refere? Com efeito, é precisamente esta a relação que o


historiador afro-americano Benjamin Southman nos recorda:

Sabe quem é esta? / – Parece Nossa Senhora. / – Essa é Mama


Wati, the Mother of Water. É assim que lhe chamam os negros da
costa atlântica. / Southman falava dessa sereia que os africanos
fantasiaram a partir de Nossa Senhora. Essa sereia viajara com os
escravos e ajudara-os a sonhar e a suportar as sevícias da servidão.
Essa sereia deixara de ter chão, depois de não mais ter mar. O
canto que embriagara os navegantes já há muito havia emudecido.
/ [. . . ] Mama Wati, mãe das águas. . . / [. . . ] Essa estátua deve ter
vindo na proa de algum navio. . . (ibidem: 221)

A aparição da estatueta de “Nossa Senhora” é, portanto, a ponta solta


de um mistério que, na trama do romance, se há-de seguir. . . E o enigma
que ali desponta é ainda reforçado pelo facto de, em “Nossa Senhora” –
“de mãos postas em centenária prece” (ibidem: 46), numa estátua cujas
cores já se “tinham lavado” pelos séculos fora, e cuja “madeira surgia”,
por isso, “aqui e ali espontânea e nua”. . . – um traço em especial nos
salta à vista: “o mais estranho é que [ela] tinha apenas um pé”: “o outro
havia sido decepado. Já viu, Mwadia? Esta é a Virgem coxa!” (ibidem:
46), eis o que notaria o marido, o burriqueiro e pastor Zero Madzero, com
quem Mwadia partilha essa descoberta. A adensar esse mistério, junto de
“Nossa Senhora” se encontravam, ainda, quer umas “ossadas completas de
pessoa humana”, quer “um baú de madeira já meio apodrecido” (ibidem:
47) com “manuscritos”. Consultado “Lázaro Vivo” – o curandeiro que,
outrora vindo de Vila Longe, se refugiara em “Antigamente” aquando do
avanço da revolução. . . – uma ponta do véu então se levanta:

O burriqueiro sentou-se com solenidade e apoiou a arca sobre os


joelhos. Com infinito cuidado, foi abrindo a tampa da caixa como se
temesse que dali emergissem fantasmas. Quando desembrulhou a
papelada, alguns dos documentos se esfarelaram em poeira miúda.
[. . . ] O pastor relatou então as estranhas ocorrências na floresta,
junto ao rio Mussenguezi. O curandeiro escutou petreficado. Mer-
gulhou a cabeça entre as mãos e deixou-se ficar assim como se o céu
se tivesse tornado num peso vivo. / – Esses ossos você não mexeu
neles, pois não? / [. . . ] – Nunca ouviu falar do missionário Sil-
veira? [. . . ] / – Esses ossos são dele, desse padre português. Estão

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Mia Couto: viagem e metaficção, em O outro Pé da Sereia. . . 227

ali há mais de quatrocentos anos. . . (ibidem; o primeiro sublinhado


é nosso)

É pois esse triplo achado que nos há-de encaminhar para a segunda
narrativa maior que, em O Outro Pé da Sereia, se desdobra: a dos “ma-
nuscritos” – a do “diário de bordo” do Padre Manuel Antunes, escrivão a
bordo da nau Nossa Senhora da Ajuda, onde segue, também, em janeiro
de 1560, o Provincial dos Jesuítas da Índia portuguesa, Dom Gonçalo da
Silveira, cujas ossadas Lázaro Vivo acaba de identificar, a partir do que
se diz de boca em boca. O regresso de Mwadia a Vila Longe – “E é você
quem vai levá-la [. . . ]”, diz-lhe o marido (ibidem: 48). . . – é o fantasmático
regresso da “História” à presença de quem a ouça e leia. É em sua velha
casa materna – onde diversas viagens se cruzam, a um só tempo – que “o
tempo” se nos tornará então visível. . .

Já estava tudo delineado: os estrangeiros ficariam hospedados em


casa da família Rodrigues. Quando ajudava a transportar as malas
pelo corredor, Mwadia Malunga sentiu que a visita dos americanos
não era fruto do acaso. Diversas viagens se cruzavam, a um só
tempo, na velha casa. Os americanos atravessavam os séculos e
os mares onde se esbatera a sua identidade. E ela viajava no
território em que o tempo nega converter-se em memória. (ibidem:
169; sublinhados nossos)

Que forma será, no entanto, a dessa sua visibilidade? Essa casa é


também aqui o lugar onde o tempo se nega a converter-se em memória –
onde “os mortos não se vão”: espaço de onde Mwadia Malunga viajará,
até ao “outro lado” de si e do mundo (ibidem: 278). . . De que tempo
se tratará, nessa sua travessia “a um só tempo”? Como pensar a sua
uni(ci)dade? Diz-nos o narrador, à chegada de Mwadia a Vila Longe:

Perfilou-se perante a velha casa e um arrepio a fez estancar. A


casa da infância é como um rosto de mãe: contemplamo-lo como se
já existisse antes de haver o Tempo. [. . . ] Passou as mãos pela cal,
demorou-se nas fracturas do cimento como se fossem humanas ru-
gas: a casa envelhecera, minguara de tamanho. [. . . ] Para Mwadia,
restara [um]a lição [vinda dos tempos da sua infância]: as pessoas é
que abrigam a casa, a ternura é que sustenta o tecto. (ibidem: 81;
sublinhados nossos)

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228 José Paulo Cruz Pereira

A casa de Dona Constança – a viúva de Edmundo Capitani, casada,


em segundas núpcias, com o alfaiate goês de Vila Longe, Jesustino da
Anunciação Rodrigues. . . – é, assim, o dinâmico espaço de um entre-tempo
instaurado pelo cruzamento de várias histórias: não apenas as histórias
de Mwadia e dos Southman, mas de todas aquelas que, de entre elas,
emergem a partir dos manuscritos, e, com elas se entretecendo, a ambas
entretecem: a do “relatório sobre a revolta de Ashikunda contra os senho-
res de escravos no Zumbo” (ibidem: 202); ou a do padre Manuel Antunes,
que adotará o nome de um dos escravos falecidos a bordo:

Ser negro não é uma raça. É um modo de viver. E será, agora


partir de agora, o meu modo de viver. [. . . ] A viagem de Goa para
Moçambique fizera-o ver o mundo de outra maneira. [. . . ] Só há
um modo de enfrentar as más lembranças: é mudar radicalmente
de viver, decepar raízes e fazer as pontes desabarem. [. . . ] O meu
nome é Nimi Nsundi. Sim. Nimi como o escravo que morreu na
nau. (ibidem: 302-303)

Ou a de Dom Gonçalo da Silveira, assassinado, talvez, pelo comercian-


te português António Caiado, ou pelo mouro Mingane, rival dos interesses
portugues na região, ou por Baba Inhamoyo, pela desfeita de lhe haver
sido recusado o batizado:

[. . . ] toda a sua vida imaginara que os demónios moravam no outro


lado do mundo. [. . . ] Nos últimos dias Silveira confirmara que o
Diabo fazia ninho entre os seus, os da sua origem, raça e condição.
[. . . ] Razão tinham Manuel Antunes que avisara, logo no início, que
o Diabo viajava no porão das Naus (ibidem: 297).

Ou de Nimi Nsundi, que se descobriá antepassado do historiador


Benjamin Southman (ibidem: 311-312); ou de Xilundo, escravo tradutor
(ibidem: 300) para quem “nos livros só cabem os santos e os deuses”
(ibidem: 299), filho de Inhamoyo, negro comerciante de escravos; ou de
Zeca Matambira e Rosie Southman; ou do incesto de Jesustino e Luzmina
Rodrigues; ou de Arcanjo Mistura, Dona Constança, etc. . . Aí, num espaço
“anterior e exterior ao Tempo”, despontarão as histórias umas por dentro
das outras, no movimento pelo qual em e de si mesmas divergem. . .

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Mia Couto: viagem e metaficção, em O outro Pé da Sereia. . . 229

1.2. A casa da (meta)ficção: memória e “História”. . .

É assim já a bordo da nau Nossa Senhora da Ajuda – quatrocentos e dois


anos atrás, em 1560 – que vimos a descobrir, na viagem de Goa à Ilha de
Moçambique, as razões do “pé decepado” da Virgem Maria, a “Santinha”
mais tarde encontrada, em 2002, nos arredores de “Antigamente”. . .

A estátua de Nossa Senhora, benzida pelo Papa, é o símbolo maior


desta peregrinação. Silveira jurou que a imagem sagrada só repou-
saria em terras da Mãe do Ouro, na corte do Monomotapa. Mas a
Santa quase ficava em Goa, aprisionada nas lamacentas margens
do rio Mandovi. No carregamento do barco, junto à Igreja de Nossa
Senhora da Penha de França, a estátua escorregou dos braços do
Padre Manuel Antunes e tombou no lodo. De imediato o pântano
começou a engolir a imagem. Soaram gritos, ordens e contra-ordens.
A voz de D. Gonçalo fez-se ouvir sobre as demais. – Salvem Nossa
Senhora! (ibidem: 62)

Quem a resgata é o “mainato” e intérprete – “o língua” dos portu-


gueses. . . – Nimi Nsundi, o escravo congolês que, promovido a ajudante
do meirinho e incumbido da proteção e manutenção do fogo a bordo da
embarcação, se atirará borda fora e a soerguerá, depois, das espessas e
turvas águas do rio. Ora, Nsundi fora “enviado para Lisboa em troca de
mercadorias que o Rei Afonso I, aliás Mbemba Nzinga, mandara vir de
Portugal” (ibidem: 63). A colonização marcava-se, assim, por uma polí-
tica do batismo cristão que priveligiava os que detinham posição social
de maior destaque. Ainda por converter, Nimi Nsundi reconheceria, em
Nossa Senhora, uma divindade que em tudo se lhe assemelha: “Kianda,
Deusa das águas” (ibidem: 68): “Ela é Kianda. . . não é. . . vocês não sa-
bem. . . ” (ibidem: 66); “a Sereia, deusa das águas. É essa deusa que
me escuta quando me ajoelho perante o altar da Virgem” (ibidem: 131)
– como por carta dirá a Dia Kumari, a escrava indiana de quem terá um
filho:

Condena-me por me ter convertido aos deuses dos brancos? Saiba,


porém, que nós, os cafres, nunca nos convertemos. Uns dizem que

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230 José Paulo Cruz Pereira

nos dividimos entre religiões. Não nos dividimos: repartimo-nos. A


alma é um vento. Pode cobrir mar e terra. Mas não é da terra nem
do mar. A alma é um vento. E nós somos um agitar de folha, nos
braços da ventania. Não, minha amiga Dia, eu não virei costas à
minha religião. A verdade é esta: os meus deuses não me pedem
nenhuma religião. Pedem que eu esteja com eles. E depois de
morrer que seja um deles. Os portugueses dizem que não temos
alma. Temos, eles é que não vêem. (ibidem: 241; sublinhados
nossos)

É pois nessa repartição sem divisão e, portanto, por dela participar


sem, por isso, no entanto, lhe pertencer – por estar, em suma, com Kianda:
“e agora que lhe escrevi esta carta, vejo que esta letra não me pertence,
é letra de mulher. [. . . ] Eu sou a Santa” (ibidem: 132). . . – que, instado
pelo aguilhão da áspera censura de Dia Kumari – que o condena por
se haver esquecido da sua religião, da sua cultura e dos costumes que
seriam os seus – Nimi Nsundi serrará, mais tarde, um dos pés à estátua
de Nossa Senhora, para dela libertar uma outra figura: a de Kianda,
precisamente. . .

Navegamos entre perigos e incertezas. Salvámo-nos de fogos e


tempestades. Contudo, esta viagem não se está fazendo entre a
Índia e Moçambique. É sempre assim: a verdadeira viagem é a
que faremos dentro de nós. Há ondas movidas por anjos, outras
empurradas por demónios. Quem conduz o barco, porém, não é o
timoneiro. Quem guia o leme é a Kianda, a deusa das águas. É ela
que viaja no quarto do padre. É ela que está dentro da escultura da
Virgem. Eu notei logo à saída de Goa, quando a estátua resvalou e
tombou nas águas. Quando a olhei de frente confirmei que era ela,
a Kianda, os cabelos, a pele clara, a túnica azul. (ibidem: 241-242)

O que estará, portanto, em jogo, na estátua de Nossa Senhora, será


já a ambivalência, aquela espécie de presença sem presente – a de Ki-
anda, por exemplo – que a há-de abrir, mais tarde, a outras formas de
identificação:

Eu lhe mostrei na noite em que fizemos amor: na popa da nossa


nau está esculpida uma outra Nossa Senhora. Deixo essa para
os brancos. A minha Kianda, essa é que não pode ficar assim,

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Mia Couto: viagem e metaficção, em O outro Pé da Sereia. . . 231

amarrada aos próprios pés, tão fora do seu mundo, tão longe da
sua gente. [. . . ] Vão-me acusar dos mais terríveis crimes. Mas
o que eu fiz foi apenas libertar a deusa, afeiçoar o corpo dela à
sua forma original. O meu pecado, aquele que me fará morrer, foi
retirar o pé que desfigurava a Kianda. Só tive tempo de corrigir
uma dessas anormais extremidades. Só peço que alguém mais com
a mesma coragem que me animou, decida decapitar o outro pé da
sereia. (ibidem: 242; sublinhados nossos)

“O outro pé da sereia” é, pois, aos olhos de Nsundi, o que resta


ainda dessa posterior desfiguração que, em Nossa Senhora, esconderia
Kianda. . . Em “Manu Antu” – o Padre Manuel Antunes, que conserva con-
sigo o membro “decepado”, “à primeira vista informe mas [que] depois se
configurava como um pé” (ibidem: 362) – um avulso conotador da sua
própria mutação. O gesto de Nsundi diante dessa sua velada figura, se
repetiria, de resto, quatro séculos mais tarde:

Na penumbra do quarto de hóspedes, Mwadia Malung descobriu


Benjamin Southman orando perante a estátua da Virgem. Quando
terminou ele corrigiu o vinco das calças e aproximou-se de olhar
vago: – Vou-lhe confessar uma coisa, minha irmã. – Fale, Benjamin.
[. . . ] – Às vezes sinto saudades da América. – É natural que sinta
saudade, aquela é a sua terra. – Não, a minha terra é esta. [. . . ]
Pois ainda bem que deixei aqui a estátua de Nossa Senhora. –
Só sei que venho aqui, me ajoelho perante a Virgem e reencontro
sossego. – É natural, o senhor é religioso. – Não é só isso. O mais
surpreendente, Mwadia, é que é nesses momentos de reza que mais
encontro essa África que sempre sonhei. (ibidem: 223)

A estátua de “Nossa Senhora” ganharia, então, o estatuto de um


objeto-fronteira. Ganhá-lo-ia nesse informe em instância de figurabili-
dade pelo qual a sua “transparência transitiva, envelope da [sua] opaci-
dade presentificadora” se abre ao “processo de [uma] diferenciação infinita
no decurso da qual o real vem a faltar ao dispositivo mimético”. . . (Marin,
1994: 263-264; sublinhado nosso). Aí surdiriam as formas umas por den-
tro de outras. Nossa Senhora se converteria, assim, numa “Santa mulata”
(ibidem: 379). É na contra-corrente dessa sua indecidibilidade que nos
parecem residir: a) quer aquela lógica suplementar de um sentido que,
sempre de forma esquiva, resulta do espaçamento próprio à (re)inscrição

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do rasto; b) quer o destituinte movimento de desnucleação de um pre-


sente pleno já reconhecido como próprio à verdade histórica, nessa morte
apaziguada com a qual o discurso historiográfico idealmente lidaria. Em
“La réalité et son ombre”, diz-nos Emmanuel Lévinas:

La statue réalise le paradoxe d’un instant qui dure sans avenir.


L’instant n’est pas réellement sa durée. Il ne se donne pas ici comme
l’élément infinitésimal de la durée – l’instant d’un éclair – il a, à
sa façon, une durée quasi éternelle. [. . . ] À l’intérieur de la vie, ou
plutôt de la mort de la statue, l’instant dure infiniment: éternel-
lement Laocoon sera pris dans l’étreint des serpents, éternellement
la Joconde sourira. [. . . ] Un avenir éternellement suspendu flotte
autour de la position figée de la statue comme un avenir à jamais
avenir. [. . . ] L’instant immobile de la statue tire toute son acuité
de sa non-indifférence à l’égard de la durée. (Lévinas, 1994: 119;
sublinhados nossos)

É, portanto, nesse a vir “para sempre futuro” – na fratura desse porvir


que, dissociado de qualquer possibilidade de totalização, em seu redor
flutua. . . – que a estátua de “Nossa Senhora” se há-de, também, expôr
ao movimento de reinscrição pelo qual – ainda no interior das tradições
africanas – outras figuras mitológicas por ela irrompem. Por exemplo, a de
“Nzuzu”, “a deusa das águas”: “Você já foi Santa. Agora, é sereia. Agora,
é nzuzu” (ibidem: 380) – dirá carinhosamente Mwadia, ao devolvê-la ao
lugar do seu inicial achamento. Para Dona Constança, a mesma “nzuzu”
lhe teria salvo a filha, aquando da enchente do rio Zambeze, provocada
pela represa de Cahora Bassa: “quando a tomou nos braços, Constança
não nutria dúvida: a menina tinha sido tomada por uma divindade das
águas. Mwadia passara a ter duas mães, uma da terra outra das águas”
(Couto, 2006: 99): “uma nzuzu, um espírito das águas” (ibidem: 100). De
resto, “por mais cristãos que fossem, os de Vila Longe olhavam a estátua
[de Nossa Senhora] e viam o espírito nzuzu” (ibidem: 282). Estatuto
singular a que a própria Mwadia se não esquivaria, de resto, quando, por
exemplo, admoestada por sua tia, Luzmina Rodrigues – para que, naquelas
férias escolares, não regresse a Vila Longe, por lá se lhe estar a preparar

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Mia Couto: viagem e metaficção, em O outro Pé da Sereia. . . 233

a sorte de ser “enviada para a lagoa de Mbenga [onde] se converteria


numa nzuzu” (ibidem: 100) – lhe responde:

– Era isso que mais que, agora, eu mais queria ser: um espírito do
rio. Ser água na água, ficar longe do mundo mantendo-se no seu
centro. E ter poderes que nasciam de nenhum confronto, coroada
pela simples aceitação de um mando sem voz. Era isso tudo o que
ela queria. (ibidem)

Simplesmente, esses poderes – que nasceriam de “nenhum confronto”,


obtidos “por aceitação de um mando sem voz”. . . – não seriam eles, tam-
bém, os da escrita? Em particular, os de uma escrita aqui situada como
movimento do rasto? Uma escrita sempre colocada em jogo pela força
de ruptura dos signos, na irredutível abertura do campo da sua iteração,
pelo desprendimento e pela reinscrição das formas, cujo sentido, então,
se perfilaria a perder de vista. . . É o que passagens como esta sugerem:

Daqui a pouco, quando adormecesse, a sua boca iria crescer, enorme


como ave escura no meio da noite. A boca sairia de si, afastar-se-
-ia da casa e percorreria a infinita savana. Só regressaria quando
amanhecesse depois de ela ter beijado o chão, os seres e as coisas
do mundo. Esta emigração para longe do corpo era uma arriscada
doença: a primeira coisa que fazia ao acordar era cuspir poeiras,
babugens e espinhos. Tinha presos aos lábios todos os detritos da
terra. Mas essa sujidade nocturna é que a ensinava: tudo, neste
mundo, é humano. O rio tem ancas de mulher, a árvore tem dedos
para acariciar o vento, o capim ondeia soprado por antigas vozes. Os
escravos de ontem sangram no tempo de hoje: as naus negreiras
ainda cruzam os oceanos. Uma mbira triste continua soando no
porão da terra. (ibidem: 314; sublinhados nossos)

Ao som dessa mbira triste – outrora tocada por Nimi Nsundi, nos po-
rões da nau Nossa Senhora da Ajuda, em vésperas da sua morte. . . (ibidem:
236-237) – seria o pressuposto da “humanidade de tudo” – no tempo e
no espaço – que no-lo permitiria escutar.

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234 José Paulo Cruz Pereira

2. A travessia da escrita. . .

Mwadia Malunga parece-nos assumir-se, de facto, no universo ficcional


de O Outro Pé da Sereia, como uma espécie de figura delegada: a de
um escritor que aqui se pensasse como tra(ns)dutor de mundos. Pois,
em seu nome, nos parece já insinuar-se um sentido que, ao seu corpo,
indelevelmente o ligará ao corpo dos livros. Assim, ainda nos arredores
de Antigamente, daríamos já por ela a lembrar-se de que. . .

Aquilo que se vê no céu nem sempre são astros. Aprendera com o pai
a distinguir os verdadeiros dos falsos corpos celestes. Esses outros,
os enganosos astros, são barcos em que viajam os que não souberam
morrer. [. . . ] Ela sabia de suas certezas: o seu nome, Mwadia,
queria dizer “canoa” em sinhungwé. Homenagem aos barquinhos
que povoam os rios e os sonhos. (ibidem: 25; sublinhados nossos)

Não espantaria, pois, a resposta que, bastante mais tarde, Mwadia


dará a sua mãe, Dona Constança, quando esta lhe pergunta se “está sendo
visitada”: “os livros e os manuscritos eram as suas únicas visitações”
(ibidem: 278). Assim:

De dia ela abria a caixa de Dom Gonçalo da Silveira e perdia-se na


leitura dos manuscritos. De noite, Mwadia ia ao quarto dos ame-
ricanos e espreitava os papéis do casal. E lia tudo, em inglês, em
português. E havia ainda a biblioteca que Jesustino tinha herdado.
Nesses últimos dias, Mwadia fechava-se no sótão e espreitava a ve-
lha documentação colonial. Agora, ela sabia: um livro é uma canoa.
Esse era o barco que lhe faltava em Antigamente. Tivesse livros e
ela faria a travessia para o outro lado do mundo, para o outro lado
de si mesma. (ibidem; sublinhados nossos)

Escrever seria já, portanto, não saber morrer: viajar, acordar fora do
corpo, longe do último lugar em que tivemos casa. . . Escutar, em suma,
os espíritos da terra. . . E seria de uma tal travessia que se trataria já,
com efeito, naquela sua furtiva “viagem” pela velha documentação colo-
nial, a instâncias de seu tio Casuarino. Apostado em se aproveitar do

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Save África Fund, das verbas da ONG americana que Benjamin South-
man representava, Casuarino mobiliza a população de Vila Longe: “en-
cenariam em Vila Longe a África com que o estrangeiro sempre sonhara”
(ibidem: 175). Dispor-se-iam, assim, quer a falar das memórias do tempo
da escravatura colonial, quer a satisfazer as esperanças de genealógica
auto-certificação do próprio Benjamin Southman. . . Ora, todo o problema
resultaria do flagrante desfasamento, verificado entre as expetativas do
historiador – a sua visão idealizada do passado – e o desengano a que o
induziriam os depoimentos dos habitantes de Vila Longe:

Queríamos que nos dissessem tudo sobre a escravatura, desses tem-


pos de sofrimento. . . – Ah, sim, sofremos muito com esses vangunis,
disse Matambira. [. . . ] Portanto esse era o nome que davam aos
traficantes de escravos? – Exacto. [. . . ] A terra deles era aqui, eles
nunca saíram daqui. Nós somos filhos deles. Incrédulo Benjamin
deixou cair o caderno. [. . . ] Esses negros vieram do Sul e nos escra-
vizaram, nos capturaram e venderam e mataram. Os portugueses,
numa certa altura, até nos ajudaram a lutar contra eles. . . Com um
gesto mecânico, o visitante desligou o gravador. [. . . ] O tempo é
dos africanos, mas em demasia só atrapalha. . . (ibidem: 174)

Eis, assim, o tempo excessivo: tempo recolhido na dobra oculta dos


seus mais insuspeitados meandros. . . O que levaria Arcanjo Mistura a con-
trapor, em acesa polémica com Casuarino:

As leis de Vila Longe e as da América eram areia e vento: às vezes


escritas, outras vezes legíveis. Somos todos parecidos: santos para
viver, demónios para sobreviver. A única diferença era a História.
Mas essa, a História, era a única coisa que Casuarino queria escon-
der do afro-americano. A razão dessa ocultação era o medo. Chico
Casuarino tinha medo de se lembrar e não se reconhecer no homem
que, um dia, fora. O medo, é isso que nos paralisa. (ibidem: 339)

Vinda de “Antigamente”, Mwadia se incumbiria, então, no projeto en-


gendrado por Casuarino, de se expor, em sessões de mediúnico transe,

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236 José Paulo Cruz Pereira

a sucessivas visitações dos “muzimos”, os espíritos dos antepassados cuja


voz brotaria então, por seu intermédio, do mais recôndito dos séculos:

Mwadia se exibia de meter medo: olhos revirados, cabelos hirsu-


tos, braços ondeando como se vogassem entre águas e nuvens. A
transfiguração era tal que os cúmplices na farsa se interrogaram se
os espíritos não estariam realmente tomando conta da moça. Os
americanos estavam paralisados de tanto fascínio. – Can I shoot? –
O que é que ele disse? – Pergunta se pode disparar. . . – Disparar?
Pergunto se posso filmar, corrigiu Benjamin. E não esperou pela
resposta. Um sinal vermelho começou a piscar na câmara de vídeo.
A brasileira pediu silêncio e espaço. Ela queria captar tudo, sem
falha nem interrupção. (ibidem: 273)

E Mwadia corresponderia, de facto – a cada visitação – a esse de-


sejo de presença plena, de uma restituição “sem falha nem interrup-
ção”. . . Velho sonho da História: o da exaustividade. . . Ironia das ironias,
aos americanos não restavam dúvidas:

– Eis a África autêntica, repetiam, deleitados. [. . . ] Para eles o pas-


sado estava de visita a Vila Longe, por via de nocturnas visitações
[. . . ] pelos transes da filha mais nova de Dona Constança. [. . . ] De
sessão para sessão, ela ia aperfeiçoando a exibição, focando lem-
branças. [. . . ] Benjamin era categórico: tudo aquilo que, em êxtase,
Mwadia ia recordando correspondia, de facto, à realidade histó-
rica. Não havia dúvida: Mwadia estava realmente entrelaçando os
tempos com as memórias, restituindo as cascas ao estilhaçado ovo.
(ibidem: 276-277; sublinhado nosso)

A confrontação da “História” com os seus próprios dilemas ganharia


assim corpo, em O Outro Pé da Sereia, na sua recondução, por intermédio
da escrita, ao que seria, afinal – em sua dramatúrgica alegoria. . . – um seu
fundo de farsa. Assim, se. . .

Não há conhecer sem lembrar. Mas o conhecer é um engano. E o


lembrar é uma mentira. Disso tudo sabia Constança quando pediu o
seguinte a sua filha mais nova: - Agora, leia para mim. Eu também
quero ir nessa viagem. (ibidem: 281)

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Isso seria, antes de mais, porque, tal como também nos diria Rancière:

Il y a de l’histoire parce qu’il y a du révolu et une passion spécifique


du révolu [. . . ], parce qu’il y a une absence des choses dans les
mots, du dénomé dans les noms. Le statut de l’histoire dépend du
traitement de cette double absence de la “chose même” qui n’est
plus là – qui est révolue – et qui n’y a jamais été – parce qu’elle
n’a jamais été telle que ce qui a été dit. [. . . ] C’est par rapport à
cette absence que se définissent les positions du discours historique.
(Rancière, 1972: 129-130)

Já no final, com efeito, Mwadia há-de enterrar os “manuscritos”:

O tempo jazia agora sob o firme chão. [E ao abandonar, depois,


Antigamente, Mwadia:] ainda hesitou, [. . . ] como se escolhesse
entre que ausentes ela deveria viver. (ibidem).

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Bibliografia

BHABHA, Homi (1994). “DissemiNation: Time, Narrative and the


Margins of Modern Nation”. The Location of Culture. London: Routledge.
COUTO, Mia (2006). O Outro Pé da Sereia. Lisboa: Caminho.
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As Viagens de Fialho

João Minhoto Marques

Universidade do Algarve
CLEPUL

Resumo: A Fialho de Almeida costuma ser associada a reputação de viajante.


Neste estudo procuram-se ler alguns dos textos nos quais (e através dos quais) se
manifesta não apenas a sua experiência enquanto tal, como, de modo inseparável,
a sua visão do mundo. Procura-se ainda reflectir acerca da maneira como esta
mundividência conforma, em último caso, uma teoria e uma metodologia muito
pessoais acerca da arte de viajar.

Palavras-chave: Fialho de Almeida; viagem; cidade; campo.

Num texto intitulado “Notas duma viagem (1910)”, recolhido no volume


Fialho de Almeida. In Memoriam, organizado por António Barradas e Al-
berto Saavedra “no sexto aniversário da morte do escritor”, Tomás Borba,
companheiro de viagem de Fialho, testemunha como foi difícil convencê-lo
a juntar-se-lhes (a ele e a outro amigo, Xavier Vieira), para aquela que
viria a ser a derradeira viagem de Fialho à Europa (pois o escritor viria
falecer no ano seguinte), realizada em 1910.
A quem leia obras como Estâncias d’Arte e de Saudade, A Cidade
do Vício ou, particularmente, Cadernos de Viagem. Galiza, 1905, poderá
parecer estranho que o seu autor manifestasse relutância em aderir a
um projecto como aquele para o qual os seus amigos o desafiavam, dado
que ele consistia, fundamentalmente, como refere o autor citado, numa
240 João Minhoto Marques

“escapada de algumas semanas pelo estrangeiro” (Borba, 1917: 218).


Porém, Fialho apresenta argumentos muito concretos para a sua posição
(e continuamos, aqui, a invocar o testemunho de Tomás Borba):

“Nada, não senhores – respondia-nos arrogantemente o Fialho (. . . )


– vocês andam muito depressa, contentam-se em adivinhar as legen-
das baedeckerianas das cidades por cujos olhos vão passando em
acelerado, sem se identificarem com cousa nenhuma, sem aquecer
lugar, como títeres, como malucos, arrombando a aorta estupida-
mente, sem dar tempo sequer a que as imagens do que pretendem
ter visto passem, como é dado, da retina para a memória.” (id.: ib.1 ).

Este ponto de vista não só assenta numa visão muito particular e


pessoal do que deve ser e para que deve servir uma viagem, como, por
outro lado, parece derivar de um cabedal de experiências previamente
adquiridas. Institui, em último caso, uma teoria e uma metodologia da
viagem em que deveremos deter-nos mais adiante. No entanto, por agora,
importa recordar que, na verdade, à época, Fialho não era um neófito no
que se refere à arte de viajar. Se bem que não tivesse percorrido grandes
distâncias, tinha tido a oportunidade, particularmente depois que obtivera
uma sólida independência financeira, de fazer diversas viagens.
No seu próprio país, Fialho havia, por exemplo, visitado as Caldas da
Felgueira, em 1894, ou ido ao Algarve no ano seguinte; havia ainda, em
1902, percorrido o norte de Portugal, onde, de resto, haveria de regressar
no ano de 1907, sem contar com a passagem por Vizela e por Viana, em
1903. Assim, como nos informa Álvaro J. da Costa Pimpão, no seu trabalho
Fialho. I. Introdução ao Estudo da sua Estética, a ida ao Algarve, com um
salto a Ayamonte, foi integrada numa excursão organizada pela Associa-
ção dos Engenheiros Civis Portugueses com o objectivo de visitar a mina
de S. Domingos. Apesar de essa viagem não sido suficientemente signi-
ficativa para Fialho ter dela produzido matéria impressa, a existência de
múltiplos apontamentos, em cadernos que lhe sobreviveram, deixa antever
os rudimentos daquela que será, ou virá a ser, a metodologia privilegiada
pelo viajante quer na concretização das suas odisseias, quer no trabalho
subsequente que estas lhe suscitarão, até à estampagem final, em letra
de forma.
1
Nesta citação, como nas seguintes, actualizou-se a ortografia.

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As Viagens de Fialho 241

Desta viagem, por agora, destacam-se desenhos, como o de um “Cru-


zeiro” em Silves, e registos telegráficos, centrados particularmente na
descrição breve de alguns dos seus companheiros de viagem, cujas fisio-
nomias (sobretudo físicas) lhe terá interessado reduzir a velocíssimo traço
caricatural ou sarcástico, como a de um certo “Dias”, engenheiro de Viseu,
“com 1 testa a cair-lhe em cima do nariz” e que “tem o aspecto fisionó-
mico duma trincheira desabada” (apud Pimpão, 1945: 149), ou como “o
Girard “ingénuo nos seus óculos, absorvido na sua paixão de naturalista,
e vivendo como os tipos de sábio de Júlio Verne, num perpétuo declive
sobre as ridicularias prosaicas da existência” (apud Pimpão, 1945: 150).
Por outro lado, das viagens referidas ao norte de Portugal, entre 1902
e 1907, terão resultado textos como “Em Braga – o Bom Jesus” (Almeida,
1921: 55-83), “Famalicão” (Almeida, 1921: 85-99) e ainda “São Torcato”
(Almeida, 1921: 101-121) – todos recolhidos em Estâncias d’Arte e de
Saudade. Neles, o viajante não se limita a anotar ou a registar o que
vê; nem, por outro lado, a analisar não apenas a organização da má-
quina citadina, como igualmente os caprichos da vista campestre; neles, o
narrador atenta na paisagem humana (que, aliás, frequentemente procura
categorizar), identificando tipologias e submetendo os dados da sua ob-
servação a um processo interpretativo que, de um modo geral, conflui ora
na constatação, ora na explicação das debilidades e das deficiências do
povo português, sobretudo quando confrontado com os vizinhos espanhóis.
Assim, no primeiro destes textos, por exemplo, o narrador manifesta
um forte interesse em “definir o habitante” (Almeida, 1921: 66) de Braga,
isolar-lhe as qualidades que o distinguiriam de habitantes de outras ci-
dades. Constatando que nos arredores destas “cidades pequenas, agrí-
colas, rodeadas d’aldeias, da civilização nada ou quase nada se apura
interessante” (id.: 65), decide ir “procurar nas ruas velhas do novelo da
Braga medieva, que pela aglomeração de gentana não pôde ser retalhado
ainda d’artérias modernas, esse algo, típico, de que (. . . ) [precisa] para
levar o que se chama «uma impressão»” (id.: 66). O que a seguir lemos
é, no entanto, em parte, a frustração dessa busca. Importa notar como,
em primeiro lugar, o narrador se detém na descrição pormenorizada da
arquitectura, uma vez que o processo de caracterizar os prédios (“Predio-
zinhos atarracados, sem tipo como a gente, comprimidos em longas fieiras,
abrem sobre passeios de lajedo” – id.: ibid.) se combina, desde logo, com

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242 João Minhoto Marques

um acto de reconhecimento histórico, e, depois, com outro processo que


servirá ao conhecimento daqueles que os habitam. Continua assim a men-
cionada descrição: “filas de lojecas, curiosas, certo, mas como as de todos
os bairros pobres das terras velhas, com o clássico balde d’água para os
cães, o clássico santo patrono em lugar de honra, e o seu hálito de cavas
sepulcrais.” (id.: ibid.).
Esta espécie de anonimato a que o narrador reduz os prédios visa,
como é fácil reconhecer, atingir o segundo elemento mencionado na com-
paração inicial, ou seja, “a gente”. Não surpreende, por isso, que o mesmo
narrador se demore, seguidamente, na identificação desse tipo que ha-
bita os “prediozinhos atarracados” (a descrição, apesar de longa, é ainda
exemplo notável da arte verbal de Fialho):

Entretenho-me a ver as fisionomias flácidas desses pobres bichos


de balcão, pequenos lojistas e vendeiros, que os longos Invernos,
em baiucas de laje, encatarroaram como espanhóis do colorau. São
quase tudo pessoas eclesiásticas e prudentes, de barriguinha caída,
mãozinhas de rã lodosa, e exangues como tripas de cerdo a enxugar.
Uma gordura serosa infla-lhes a pele, dizendo as enclausuras na
tenda, em cafurnas de sombra suando humidades glaciais – e os
modos de falar e fazer gestos, de cruzar na barriguinha os dedos
de palmouras, de bacorejar e fuinhar de porta em porta, ainda mais
caracterizam esse feitio arraposado, forreta, que faz na gente pobre
o respeito de santos e de padres, e a servilidade de passar a vida
ao farejo dos cinco réis e dez réis da freguesia. (id.: 66-67).

Esta bestialização do lojista bracarense (em que não pode deixar de


se notar a manifesta postura anticlerical comum a muitos textos de Fia-
lho), cuja involução o narrador faz radicar no que depois designa como
“um obscurantismo sonolento” (id.: 67), é ainda associada à repetição
secular das tarefas de artesãos, os quais, sem possibilidade de romperem
o estatuto em que se desde sempre se reconheceram, estruturam invo-
luntariamente uma ordem social injusta e contribuem para construir “a
ancestralidade” dessa “cidadezinha caseira e recuada” (id.: ibid.).
O regresso à análise da arquitectura minhota vai, posteriormente, so-
licitar ao narrador a necessidade de discutir o gosto do que já designara
como “sinistros casarões” (id.: 56) (chegando mesmo a afirmar que “este
mau gosto da arquitectura civil provoca a náusea” – id.: 74), facilmente

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As Viagens de Fialho 243

determinando ainda que “a inaptidão dos arquitectos é como o lema visí-


vel da inferioridade estética de quase todos os núcleos de raça lusitana,
de norte a sul dormida para o inestimável sestro da beleza, e vergonhosa-
mente rebelde, ainda hoje, à compreensão do papel sociológico da arte.”
(id.: 72-73).
Note-se como, nos fragmentos citados, como em múltiplos outros pas-
sos que seria redundante transcrever, o juízo de Fialho transcende uma
adequação determinista. Não parece estar em causa o intuito de de-
monstrar a veracidade, em maior ou menor grau, de uma qualquer hi-
pótese concebida num contexto científico ou a este semelhante; parece,
sim, tratar-se de uma tentativa de, simultaneamente, diagnosticar uma
anomalia e obedecer a um imperativo pedagógico.
Importa, aliás, neste ponto, sublinhar o modo como o narrador, aban-
donando decididamente qualquer deleite na notação erudita e todo o
distanciamento implícito na impessoalidade narrativa, se dirige ao leitor,
numa interpelação que deve também ser entendida como um desafio: “que
mais queres, leitor, p’ra te desgostares da tua terra, e mandares ao demo
a sensibilidade romba e a preguiça intelectual, polissecular, do portu-
guês?!” (id.: 74). A comparação com Espanha é, então, inevitável. São
muitos os textos em que, como se referiu, Fialho, lamentando e criticando a
pátria, ora áspera, ora doloridamente, confessa a sua admiração pelo país
vizinho e pelo seu povo. Neste contexto, a proximidade da fronteira des-
poleta a tirada amarga, enfatizando a contraposição: “Tão paredes meias
da Espanha, cujas cidades e vilas regurgitam de construções graciosas
ou solenes, (. . . ) a terra portuguesa não conseguiu (. . . ) transfiltrar da
vizinha irmã um pouco da elegância e nobreza (. . . ) [dos] seus florentes
períodos construtivos.” (id.: ibid.)2 .
Tal como já foi apontado por Álvaro Pimpão (Pimpão, 1945: 134), é
provável que, no decurso da experiência colhida nesta viagem ao Minho,
2
Este ponto de vista será, porém, mitigado em outros textos. A título de exemplo,
recorde-se a seguinte observação, produzida no contexto de uma das viagens à Galiza:
“Em geral o sistema de construção na Galiza é esplêndido, forte, fácil, mercê dos grandes
blocos de granito que se talham e formam logo os muros, ligados por cimento, e dum bom
gosto moderno que varia ao infinito os seus modelos de detalhe, conservando nas linhas
gerais o mesmo tipo. A perícia dos canteiros e escultores de pedra, só tem igual no melhor
dos portugueses” (Almeida, 1996: 125).

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244 João Minhoto Marques

Fialho tenha decidido visitar a Galiza. Da primeira excursão a esse terri-


tório, ocorrida em Setembro de 1903, resultará o texto “De Vigo a Cangas”,
igualmente recolhido no volume Estâncias d’Arte e de Saudade (Almeida,
1921: 27-54). A este texto haverá ainda que juntar os catorze cadernos
de apontamentos que Fialho deixou inéditos (e que assim permaneceram,
exceptuando-se os pequenos fragmentos transcritos por Álvaro Pimpão
no seu longo estudo, já referido, sobre a obra fialhina, até à publicação
levada a cabo por Lourdes Carita, em 1996), escritos durante a segunda
viagem àquela região, ocorrida entre Junho e Julho de 1905, e que vieram
originar o espesso volume Cadernos de Viagem. Galiza, 1905.
Importará ainda não esquecer o derradeiro texto acerca desta região,
de 1910, intitulado “Pela Galiza” e igualmente integrado nas Estâncias
d’Arte e de Saudade (Almeida, 1921: 5-25). Neste, enfatiza Fialho os tra-
ços do que vai caracterizando como uma identidade comum a Portugal (ou,
pelo menos, ao norte de Portugal) e à Galiza. Os argumentos coleccio-
nados (que vão desde a resenha lexicográfica erudita até à parcialíssima
defesa da beleza feminina, cujo entusiasmo não pode deixar de nos fazer
sorrir) relacionam-se, de forma mais ou menos explícita, com a tese defen-
dida, segundo a qual “o português é em grande parte o descendente do
povoador galego” (id.: 6)3 , mas partem de um olhar pessoalíssimo sobre
a realidade galega, muito devedor da passada experiência de viajante de
Fialho.
O incipit do texto mencionado (onde se aponta a estranheza de ouvir
falar espanhol na Galiza4 ) pode, aliás, ler-se como o produto inevitável da
duradoura relação, de experiência feita, que Fialho manteve com este ter-
ritório. Pode mesmo argumentar-se que este texto constitui a síntese da
aplicação de um método rigorosamente prosseguido, ao longo do tempo,
cuja consequência se manifesta no apuramento da gama de conhecimen-
tos que, sobre a região galega, Fialho exibe, sem descurar os saberes
colhidos no estudo do norte de Portugal. De facto, como afirma o narra-
3
O artigo onde se defende a tese referida havia, aliás, sido publicado originalmente
com o revelador título de “Vida Gallega: Portugal foi a primeira colonia gallega” (apud
Pimpão, 1945: 139).
4
Inicia-se deste modo “Pela Galiza”: “Quando estou na Galiza e oiço alguém falar
espanhol ao pé de mim, digo sempre c’os meus botões – “Pois que! já passei a fronteira
portuguesa?”.” (Almeida, 1921: 5).

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As Viagens de Fialho 245

dor, recorrendo a uma longa enumeração de características distintivas que


sintetizariam os espaços objecto das viagens – e, portanto, o que deve ser
referido, estudado e conhecido, nomeadamente: “a arquitectura da paisa-
gem”, “os fulgores amoráveis do clima”, “a litania das falas”, “o arcabouço
da gente”, “as tradições, os costumes, a indumentária, a poesia, as ideali-
dades do espírito e as molezas ternas do carácter” –, essas características
não “divergem um ápice do que (. . . ) [ele está] costumado a reconhecer e a
estudar nas províncias portuguesas do norte, mencionadamente o Douro,
Minho e Trás-os-Montes.” (Almeida, 1921: 5).
Ao rejeitar os itinerários e as “legendas baedeckerianas” traçados pe-
los guias turísticos da época, Fialho escolhe uma alternativa cuja configu-
ração determina a figura do viajante culto, o qual não se limita à recolha
de “impressões de viagem”5 (as “rabiscaduras da moda” impiedosamente
fustigadas por Almeida Garrett na abertura do segundo capítulo das suas
Viagens – cf. Garrett, 1974: 15), mas faz do registo da expedição quer
o labor da pesquisa visando concretizar um projecto artístico, como de-
fende Álvaro Pimpão (cf. Pimpão, 1945: 133), quer (o que, aliás, não é
contraditório) a maturação de uma mundividência cada vez mais aguda e
sage.
O método, caracterizado ainda por Tomás Borba no texto inserido no
In Memoriam6 , preconiza, afinal, a aceitação consciente das dimensões
metafórica e simbólica inerentes ao conceito viagem. Assim se entende
que a Fialho importe reter desta “cousa que valesse para o resto da vida”
(Borba, 1917: 218). Na verdade, se é possível afirmar-se, por exemplo,
5
Como referimos, na verdade, Fialho não despreza essas “impressões”, utilizando-as
no âmbito do seu método de viajar, mais vasto e sofisticado. A título de exemplo, veja-
-se a passagem citada referente a uma viagem a Braga, na qual o narrador confessa a
necessidade de nela colher, “para levar”, “uma impressão” (Almeida, 1921: 66).
6
De acordo com este amigo de Fialho, “ele precisava ver, observando e anotando,
apreendendo costumes e caracteres mesológicos, estudando-os e fixando-os, para trazer
consigo cousa que valesse para o resto da vida. Que se podia traçar um programa
de viagens interessantes, certamente, mas bem combinadas e bem reguladas, para se
poderem executar compassadamente, regaladamente, numa série de fugidas periódicas,
mas afinadas com inteligência e bom critério, para épocas próprias e não por sistema,
como nós o fizéramos sempre, nos meses das insolações e da malária, na estação do
despovoamento, já sabido, das cidades de luxo que correspondem, ninguém o ignora, à
dos espectáculos armados ad hoc, para inglês ver.” (Borba, 1917: 218).

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246 João Minhoto Marques

que o “interesse pela literatura espanhola (. . . ) coincide (. . . ) com as


suas viagens a Espanha” ou que “a viagem a França, em 1910, deve
ter provocado no seu espírito um renovo de interesse pela França, muito
amortecido nos últimos tempos” (Pimpão, 1945: 140) não pode deixar-se
de sublinhar o modo como tal interesse ou tal atitude compele ao aumento
da biblioteca do escritor, conduzindo-o à leitura de autores com os quais
manterá extenso convívio, ao longo de toda a sua vida; ou, de outra forma,
a maneira como, pontuando as narrativas suscitadas pelas viagens, se
enriquecem as observações registadas com notas remetendo para obras
dessa mesma biblioteca.
Não está em causa apenas a memória de certo texto ou a convocação
de determinada referência. De facto, manifesta-se, por um lado, o trabalho
oficinal do autor-narrador, quando, por exemplo, na viagem de 1905 à
Galiza, a propósito da necessidade de descrever o mar, se refere: “Veja
sobre o mar galego os períodos de Perez Nieva (Un Viaje a Asturias pag.s
282 e 282) e aproprie ou cite.” (Almeida, 1996: 57); revela-se, por outro,
a espessura de um saber que reconfigura a notação espacial à luz de um
contexto novo, simultaneamente histórico e pessoal.
Assim, no exemplo mencionado, deve sublinhar-se o modo como, no
parágrafo7 que suscita a nota e a convocação da obra de Alfonso Pérez
Nieva, Un Viaje a Asturias pasando por León, a possibilidade da descri-
ção eufórica do pôr-do-sol (como a que, aliás, em último caso, tem lugar
no texto do autor espanhol8 ) vai dando progressivamente lugar ao olhar
7
Eis o mencionado fragmento, na íntegra: “Pôr de sol sobre as águas do oceano, na
estrada de La Guardia – o mar que perde a transparência e se faz de chumbo, a maré
cheia que faz o assalto das rochas e cobriu os cachopos mais longe, junto dos ilhéus de
Monteferro, e atrevida quer subir mais de encontro aos paredões da estrada. Os Invernos
aqui são inclementes, o mar terrível nas tempestades. O ano passado fez cair um bocado
do paredão da estrada” (Almeida, 1996: 57).
8
De facto, no fragmento seguinte, que coincide genericamente com a passagem des-
tacada por Fialho no texto de Pérez Nieva, o breve apontamento agreste dilui-se na
celebração e na solenidade da paisagem: “Pero el gran encanto, el encanto enorme del
sitio son sus vistas. Por donde quiera que se tienda la mirada, se descubre una masa
de agua que no se acaba nunca, el Cantábrico, en esta sazón sereno y quieto. La altura
del sitio permite distinguir con rara minuciosidad la costa, el zigzag de sus entrantes y
salientes. Desde la extrema derecha se cuentan hasta siete radas rocosas, en las que
el oleaje al chocar en las peñas dibuja una continua línea blanca; á la izquierda sale
bruscamente en la lejanía, internándose en el mar, el cabo de Peñas, al frente un plano

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As Viagens de Fialho 247

empático do narrador face aos “Invernos (. . . ) inclementes” e ao “mar ter-


rível nas tempestades” (Almeida, 1996: 57), passando por um igualmente
progressivo diminuir da luminosidade na descrição, o qual, por isso, ins-
taura a opacidade e até a nota dissonante com que termina esse momento
de paragem: “O ano passado fez cair um bocado do paredão da estrada”
(id.: ibid.).
Conhecimento de imagens feito, mas igualmente de sensações, de pen-
samentos, de razões e de arrazoados que desvelam o discurso privado do
narrador; por exemplo, quando, em face do crepúsculo, confessa, na che-
gada a Braga: “Uma tristeza deu de cair comigo naquela cidade aden-
trada, a vez primeira, àquela hora mansa d’agasalho.” (Almeida, 1921:
56). Aliás, poder-se-ia defender que o olhar disforicamente construído
sobre aquela cidade e sobre os seus habitantes se articula directamente
quer com tal postura, quer com a ausência que lhe parece subjazer: “E a
voz dos sinos, lenta, chamando às rezas, espargindo-se aos poucos num
âmbito que parecia imenso e sem eco, acrescentava ainda o meu isola-
mento, porque eu sou um homem sem fé cuja sentimentalidade chora a fé
perdida. . . ” (id.: ibid.).
De facto, se o sentimento de tristeza ou inquietude é passageiro9
(embora recorrente10 ), a condição solitária, em múltiplos sentidos, parece
que cabrillea herido por el sol y cortado por el horizonte. Gijón queda oculto á nuestros
pies, en la hondonada. // La tarde agonizando, el sol poniéndose, apagando su lumbre en
el agua después de encenderla, el mar en calma, el campo solo, y la brisa soplando de las
olas empeñada en llevarnos los sombreros para sacarnos de nuestro éxtasis. ¡Momentos
solemnes! Es preciso verlo para comprender la majestad con que el día se despide de la
tierra, con que llega la noche, con que la última luz del crepúsculo se aleja rozando las
ondas.” (Nieva, 1895: 282-283).
9
Chegado ao hotel, o narrador não deixa de afirmar, indiciando uma alteração do seu
estado anímico: “Devo contar que o vinho verde era divino, e o melhor que inda provei”
(Almeida, 1921: 58). E, referindo-se ao dia seguinte, escreve: “Janela aberta, toda a
frescura das árvores e das serras me entra no peito com uma lufada de bem-estar.” (id.:
63); “Oh que linda manhã de céus lavados – que nitidez na luz do sol cor d’oiro – ? oh
que cheiro de matas que a brisa das serras traz nos vagos véus da névoa que se esgarça!
Minha amorosa terra portuguesa, como eu vos beijo na boca deste fresco balsâmico de
resinas e de flores!” (id.: 64).
10
Num dos cadernos referentes à viagem à Galiza de 1905 pode encontrar-se a se-
guinte passagem: “Desde que cheguei a Lugo que ando agourado com coisas fúnebres.
À chegada, entrei na catedral, saíam uns guiões negros e padres de sobrepeliz negra.

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248 João Minhoto Marques

constituir elemento estruturante do olhar do narrador. Importa sublinhar


este ponto, uma vez que nesse olhar radica, em último caso, a impossi-
bilidade de se dispor a caracterização do espaço na obra de Fialho em
torno de antinomias11 como aquelas com que a tradição costuma tranqui-
lizar realidades fundamentalmente ambivalentes – em particular, as que
respondem aos conceitos de campo e de cidade.
Cremos que é desta forma que se deve entender um texto como “Sinfo-
nia de Abertura” (Almeida, 1932: 7-19), recolhido em A Cidade do Vício,
mas primitiva e significativamente intitulado “Errante”, e dado à estampa
em Maio de 1882. Nele, Fialho caracteriza outro tipo de viagem, no-
meadamente a que se pode subsumir sob o trânsito conducente ao típico
refúgio bucólico. A fuga de Lisboa asfixiante e doentia12 institui o “pere-
grino, que de lugarejo em lugarejo e cabana em cabana, vai seguindo em
busca de alguém que lhe foge, assim de bordão e esclavina como a bela
D. Ausenda” (Almeida, 1932: 11).
Nesse contexto, recorrendo à batuta pretensamente realista da des-
poetização, o narrador demora o registo descritivo, sob o fascínio da pai-
sagem13 , apesar de uma ou outra nota disfórica no quadro de abundân-
cia estival, quase paradisíaca14 . E é sob esse impulso criador que se
Supunha alguma coisa da festa de Corpus: vou sair, atravessa-se-me no caminho um
enterro. Entro em Mondoñedo, nessa noite morreu o bispo.” (Almeida, 1996: 280).
11
Como, aliás, já foi notado por José Augusto Cardoso Bernardes (cf. Bernardes, 2001).
12
Em mais do que um sentido, como se depreende da leitura do seguinte passo: “O tifo
fazia já propaganda por esses bairros, nas asas do miasma evolto de toda a banda, das
portarias surdas, das consciências gangrenadas, das loterias da Misericórdia, dos quar-
téis, dos tribunais e dos canos. // Teatros fechados, livrarias às moscas, tudo esbaforido,
e soldados parando às esquinas a soletrar grandes cartazes (. . . )” (Almeida, 1932: 9).
13
A importância da paisagem é manifesta em múltiplos lugares da obra de Fialho de
Almeida. Por exemplo, no decurso do relato acerca da grande viagem à Galiza, a que já
nos referimos, podem ler-se as seguintes afirmações: “Povo que não ama as árvores e a
paisagem, que não gosta de crianças e maltrata os animais, ai dele! deve ter má índole.”
(Almeida, 1996: 112); “Th. Gautier tinha razão, e eu estou com ele. O caminho-de-ferro
matou a paisagem. A diligência é que a tinha criado, porque seguindo a chouto, obrigava
o homem a contemplar, e a tirar emoções da contemplação.” (id.: 281).
14
Eis a representação do refúgio campestre: “O campo em Junho, despoetiza-se no
país cerealífero. Grandes zonas amarelecidas de seara, pastos secos vestindo a charneca,
barrancos sem poça d’água, silvados deixando pender as amoras em cachos, e toda a
legião de migradores que vêm de cruzar o Estreito, rolas, cegonhas, cucos. . . Nos montes
de rocha, murtais irrompem dentre penedos calvos; os alecrins dão flores em espiguilhas

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As Viagens de Fialho 249

instaura o desejo da viagem, modalidade de um nomadismo que simulta-


neamente suaviza a vida e desta oferece protecção (“Esta existência de
cigano reconforta-me e endurece-me” – cf.: id.: 11). Assim, o viajante
recomeça diariamente a sua peregrinação, “de chapéu na mão e assobio
de melro” (id.: ibid.), pronto a descobrir e a conceber o espaço em que se
deleita o seu olhar, enquanto partilha com o leitor os segredos da arte de
viajar15 .
Sublinhe-se, porém, que esta representação eufórica do espaço cam-
pestre deve pode ser entendida na circunstância referida, tão distante
fica desse outro campo que textos como “Os Ceifeiros” (Almeida, 1919:
75-92) nos dão conta. Neste sentido, para Fialho de Almeida, tal como
há diversos tipos de urbe (dos quais as configurações diurna e nocturna
funcionam como pólos agregadores), também existem múltiplas versões de
campo. Destas, a que decorre do olhar do viajante poder-se-ia opor à
que se edifica sob a contemplação do quotidiano opressivo; no entanto,
o testemunho do autor-narrador, culto e experiente, facilmente manifesta
quão enganador seria tal correspondência. Assim, pendendo sob a impos-

esguias; ascende a vinha árvores acima, vestindo os troncos em pâmpanos esplendentes;


estão copadas, metálicas e redondas de folhagem, as figueiras picadas dos primeiros capa-
rotas. E à margem das ribeiras, nas terras gordas e marnosas, os meloais expandem-se em
frutos de meridianos finos, traçando de antemão as belas talhadas a partir nas melancias
rubras e frescas, e nesses ricos melões de cheiro, que em jantares de ceremónia tanta
pessoa séria tem comprometido. Depois abóboras, frades, gilas, descansando em feno
à borda das rigueiras, e picando a monotonia dos caules celulosos, que rastejando vão
na terra sequiosa das hortas. Todo o pomar maduro – laranjais florindo para os frutos
novos, e mostrando ainda pendentes os frutos velhos; a interminável colónia das ameixas e
abrunhos; os damascos de falas mansas e contactos veludosos; a pera ventruda e monótona
de casca; a ginja e a cereja tão pitorescas e picantes à paisagem e ao paladar. E fechando
o cortejo. . . ? // Os pêssegos!. . . ” (Almeida, 1932: 10).
15
A este propósito, veja-se a seguinte passagem, que deve ser entendida como a
explicitação dessa metodologia a que temos vindo a fazer referência: “Na travessia em-
preendida, aponto as diferenças do tipo, os usos, a ênfase de linguagem, os vestuários,
as habitações, os processos decorativos de interior, a hospitalidade para estranhos, cor
de pele e vivacidade ingénita de cada povo e província. Há contos populares, que come-
çam devotos no Minho e acabam equivocamente no Algarve. (. . . ) // Comparo a Caninha
Verde, o Verde Gaio, e as farandoles das romagens do Minho e Douro, com a monotonia
repassada de tristeza, vagarosa e fúnebre, das cantigas do Baixo Alentejo; e sinto através
delas o país estremecendo-se (. . . ).” (Almeida, 1932: 12-13).

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250 João Minhoto Marques

sibilidade das dicotomias, o desejo fialhino do sentido, o qual apenas o


sonho da sabedoria poderá resgatar.

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Referências Bibliográficas

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edição. Lisboa: Livraria Clássica Editora.
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Edição e notas de Lourdes Carita. Santiago de Compostela: Edicións
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Almeida. In memoriam. [s.l.]: [s.n.].
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Madrid: Librería de Victoriano Suárez.
PIMPÃO, Álvaro J. da Costa (1945). Fialho. I. Introdução ao Estudo
da sua Estética. Coimbra: Coimbra Editora.
Exílios, refúgios e desenganos dos pastores
peregrinos

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves

Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias

Resumo: Os roteiros gizados nos livros de pastores obedecem a uma lógica


discursiva ausente da restante literatura de viagens. A artificialidade alegórica
da fábula assenta numa visão idealista da realidade, onde a dialética do amor é
tida como uma ablução da existência humana, uma elevação mística, uma traves-
sia da vida terrena que prepara os pastores peregrinos para uma visão celestial
a lo divino. A lusitanização do género deve-se a Francisco Rodrigues Lobo,
numa trilogia publicada na passagem do Maneirismo para o Barroco: A prima-
vera (1601), O pastor peregrino (1608) e O desenganado (1614). O fio diretor
da intriga é confiado a Lereno, incansável caminhante pelos trilhos ditados pela
fortuna e errâncias impostos pelo destino em busca do amor ideal e do saber
essencial que o transforme no paladino do amante exemplar.

Palavras-chave: Viagem; exílio; refúgio; desengano; peregrino.

EPÍGRAFES
Dize-lhe que mudo a terra e o trajo e o costume, pois não é
pera pastor quem naceu pera viver triste; que me vou peregrino
por terras estranhas até que algua ache tão piedosa que em seu
centro me recolha ou mude a minha sorte.

Francisco Rodrigues Lobo, A primavera (1601: III, viii)


254 Artur Henrique Ribeiro Gonçalves

Fui já pastor e agora peregrino, | com o cuidado do e trajo


diferente, | vou trás de minha morte ou meu destino.

Francisco Rodrigues Lobo, O pastor peregrino (1608: I, iii)

Tornou-se para entre os pastores, e dali, com o mesmo trajo e


caminho que trouxera, se foi à primeira ilha, donde no tempo
conveniente se embarcou para terra firme (. . . ) Enfim, saindo ao
porto se tornou a buscar os montes solitários e desertos. . .

Francisco Rodrigues Lobo, O desenganado (1614: xx)

A invenção absoluta do romance enquanto género literário autónomo


ocorreu no final da Era Axial, por volta dos séculos II-I AEC (Armstrong,
2005: 83-104; Benoit-Dusausoy & Fontaine, 2007: 30-31; García Gual,
1988: 23-44; Menéndez Pelayo, 2008: I, 15-32; Rodríguez Adrados,
2013: 288-290; Wolff, 1997: 5-9). Foi o génio criador helénico, que,
depois de ter reinventado a epopeia e inventado o drama, se lançou no
seio do universo da diegese, aquele a que o helenista e latinista francês,
Pierre-Daniel Huet (1630-1721), évêque d’Avranches, designa de roman
e define, no Traité de l’origine des romans, como “des fictions d’aventures
amoureuses, écrites en prose avec art, pour le plaisir et l’instruction des
lecteurs”, justificando largamente o seu ponto de vista teórico logo de
seguida:

Je dis des fictions, pour les distinguer des histoires véritables. J’a-
joute d’aventures amoureuses, parce que l’amour doit être le prin-
cipal sujet du Roman. Il faut qu’elles soient écrites en prose, pour
être conformes à l’usage de ce siècle. Il faut qu’elles soient écrites
avec art et sous de certaines règles ; autrement ce sera un amas
confus, sans ordre et sans beauté. La fin principale des Romans, ou
du moins celle qui le doit être, et que se doivent proposer ceux qui
les composent, est l’instruction des lecteurs, à qui il faut toujours
faire voir la vertu couronnée et le vice châtié. Mais comme l’esprit
de l’homme est naturellement ennemi des enseignements, et que

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Exílios, refúgios e desenganos dos pastores peregrinos 255

son amour-propre le révolte contre les instructions, il le faut trom-


per par l’appât du plaisir et adoucir la sévérité des préceptes par
l’agrément des exemples, et corriger ses défauts en les condamnant
dans un autre. Ainsi le divertissement du lecteur, que le Romancier
habile semble se proposer pour but, n’est qu’une fin subordonnée
à la principale, qui est l’instruction de l’esprit, et la correction des
mœurs ; et les Romans sont plus ou moins réguliers, selon qu’ils
s’éloignent plus ou moins de cette définition et de cette fin. (Huet,
1670: 3-5).

O vestígio mais remoto até à data encontrado destas histórias fingi-


das baseadas em histórias verdadeiras, a balizar as peregrinações dos
protagonistas, encontra-se documentado em três fragmentos anónimos de
papiro e sem título conhecido. Por questões práticas, é identificado ou
com o nome dos heróis da efabulação ou dos feitos notáveis realizados
por aquele que tem mais peso nos episódios sobreviventes à passagem
do tempo: Nino e Semíramis / Ninopedia (c. séc. I AEC). As aventuras
andarilhas encetadas pelo par de amantes, apesar do seu caráter extrema-
mente lacunar, configuram já as soluções diegéticas que lhe conferirão um
cânone específico de caraterização posterior do género (Mendoza, 1979:
319-324).
O primeiro relato completo que atualmente dispomos situa-se no início
da era comum. Terá sido composto por Cáriton de Afrodísias, que, no
incipit do Quéreas e Calírroe (c. séc. I EC), se diz secretário do orador
Atenágoras e se propõe contar uma história de amor ocorrida em Siracusa,
depois da batalha vitoriosa que a cidade havia travado, em 414 AEC,
contra os atenienses (I, 1-2). Nos oito livros em que está organizada,
desenha-se uma estrutura tripartida de encontro-desencontro-reencontro
dos atores centrais do drama representado a dois nos espaços cénicos de
Siracusa, Jónia e Babilónia e nos braços de mar que os banham, esquema
este repetido canonicamente em todo o corpus helénico da série1 nas
duas centúrias seguintes (García Gual, 1979: 9-31; Garcia Gual, 1988:
191-213; Mendoza, 1979: 319-324; Wolff, 1997: 11-35).
1
Vd. (A) Textos completos – Xenofonte de Éfeso, Efesíacas (séc. II); Aquiles Tácio,
Leucipe e Clitofonte (séc. II); Heliodoro, Etiópicas / Teágenes e Caricleia (séc. III). (B)
Resumos tardios de originais perdidos efetuados por Fócio (séc. X) – António Diógenes,
Maravilhas incríveis de além de Tule (séc. II); Jâmblico, Babilónicas (séc. II).

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256 Artur Henrique Ribeiro Gonçalves

O único livro de pastores que a antiguidade grega nos legou está


intimamente associado à literatura de amor e de aventuras peregrinas re-
ferida. Oferece aos leitores, no Dáfnis e Cloé (c. séc. II EC), a história
idílica dos dois protagonistas na ilha de Lesbos, segundo os preceitos
retóricos da Segunda Sofística e dando corpo ao tópico clássico dos loci
amœni. Diverge dos restantes títulos que a voragem do tempo preservou,
através da natureza das viagens documentadas na fábula. As deambu-
lações terrestres e marítimas, efetuadas pelos pares de heróis imagina-
dos nesses casos, reparte-se pela bacia mediterrânica oriental, excluindo
sempre os limites estreitos dum qualquer espaço insular. A pastoral em
apreço trata do percurso de vida traçado pelos dois jovens guardadores
de rebanhos na descoberta paulatina do amor, processo materializado em
plena natureza, fora dos grandes aglomerados populacionais. O contraste
estabelecido entre o contexto urbano e o rural toma conta da tessitura
narrativa, saindo o primeiro elemento do binómio derrotado em todas as
frentes de combate pelo segundo. Um tópico poético que a posteridade
assimilou, fortaleceu e consagrou (Brioso Sánchez, 1982: 9-36; Garcia
Gual, 1988: 249-260; López Estrada, 1974: 69-70; Wolff, 1997: 11-35).
Depois dum longo silêncio quase milenar, o Renascimento bizantino,
promovido sobretudo pela dinastia dos Comnenos (1081-1185), voltou a
interessar-se pela ficção helenística dos heróis aristocratas enamorados
perdidos nos caminhos e mares do mundo. Deixou de parte os pastores
da Arcádia e imaginou as relações eróticas andarilhas no ambiente da
poesia cortês de circunstância2 e da prosa de divertimento e recreação3 ,
todas compostas no século XII. Fê-lo num grego restaurado que só um
número muito restrito de leitores entenderia. Desenvolveu, todavia, o
caráter iniciático da dupla itinerância do jovem e fiel par de amantes,
fixando assim, para sempre, a matriz diegética da modalidade narrativa.
A tal ponto o fez, que o Renascimento e o Barroco latinos lhes atribuiriam,
erroneamente, a paternidade do género, passando a designá-lo por novela
/ romance bizantino (Benoit-Dusausoy & Fontaine, 2007: 39-43; Meunier,
1991: 1-37; Rodríguez Adrados, 2013: 520-524; Wolff, 1997: 63-65).

2
Vd. Teodoro Prodomo, Rodante e Dosicles; Nicetas Eugenianos, Drósila e Caricleia;
Constantino Manasses, Aristando e Caliteia.
3
Vd. Eugénio Makrembolitas (Eumathios), Hismine e Hismínia / Amores homónimos.

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Exílios, refúgios e desenganos dos pastores peregrinos 257

À distância de treze séculos, Jacopo Sannazaro volta a desenvolver a


oposição entre a cidade e o campo na Arcádia (1504), a primeira novela
pastoril dos tempos modernos, composta agora em prosímetro florentino,
promovendo a alternância simétrica entre a forma versificada (écloga) e
a prosaica (diegese). O exílio voluntário do viajante urbano numa rusti-
cidade bucólica, no encalço duma distração fautora do esquecimento dum
amor de adolescência, ajudou-o a entender que a fuga à imperfeição quo-
tidiana e refúgio na perfeição quimérica só podia conduzir ao desengano,
pelo que resolve regressar aos desafios do dia-a-dia de que a vida é
feita. A peregrinatio amoris feita a dois é interrompida. Os obstáculos /
provas que Dáfnis e Cloé haviam enfrentado em conjunto é experienciado
solitariamente por Sincero no país simbólico dos guardadores de gado. O
coup-de-foudre do encontro inicial desaparece do horizonte e o happy end
exigido pela série greco-bizantina é apagado na íntegra. As trajetórias
discursivas do novo género novelesco enveredará, doravante, por outras
soluções alternativas de final aberto espelhado no invariável desconten-
tamento dos bens terrenos (Benoit-Dusausoy & Fontaine, 2007: 195-197;
López Estrada, 1974: 145-151; Menéndez Pelayo, 2008: I, 625-654 et
passim; Tateo, 1993: 9-46). As coordenadas cooptadas pela peregrinatio
vitæ, nesta adaptação italiana do modelo grego à realidade quinhentista,
está ancorada no tópico prodesse et delectare (instruir e divertir), defen-
dido por Horácio (séc. I AEC) na Arte poética (IV, 333), um dos princípios
mais queridos da literatura latina e cristã desenvolvida no continente eu-
ropeu até essa data e prolongada, de certo modo, até aos nossos dias
(Fernandes, 1984: 9-49).
A canonização moderna da série novelesca bucólica com dimensão
global estará, todavia, a cargo de Jorge de Montemor / Montemayor, cor-
tesão português que compôs em espanhol alguns apontamentos lírico-
-dialógicos no idioma pátrio Los siete libros de la Diana (1559? / 1561),
conjunto de amores cruzados mal resolvidos e de deambulações pastoris
constantes pelas ribeiras de Castela e Portugal. O recurso à técnica do
prosímetro mantém-se, muito embora a componente prosificada tenha to-
mado conta do discurso e a versificada tenha variado a estrutura métrica
e rimática, passando da rigidez clássica do Renascimento para a liber-
dade anticlássica e assimétrica do Maneirismo. Na versão inaugural do
género no espaço ibérico, todas as personagens são vítimas do amor e das

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258 Artur Henrique Ribeiro Gonçalves

forças irracionais da natureza, concebida mais uma vez como uma arcádia
idílica e edénica. As emoções, o destino e a fortuna atravessam toda a
trama. Silvano ama Diana que ama Silvano mas casa com Délio por im-
posição dos pais. Pelo meio surgem muitos outros casos semelhantes a
lembrar-nos que a imperfeição do mundo real dos cortesãos não é muito
diferente da imperfeição do mundo imaginado dos poetas. Os atores em
cena falam de encontros/desencontros afetivos, cantam, bailam e recitam,
enquanto seguem os percursos de água fresca que os rebanhos reclamam
ou descansam à sombra das frondosas árvores dos bosques que compõem
o cenário bucólico. Predomina uma ruralidade primitiva que pouca ou
nenhuma importância dá às cidades dos homens erigidas nas idades de
bronze e ferro, aquelas que substituíram as idades de ouro e prata dos
paraísos pastoris na terra (Avalle-Arce, 1974: 69-100; Benoit-Dusausoy
& Fontaine, 2007: 246-247; López Estrada, 1974: 373-386; Menéndez
Pelayo, 2008: I, 679-721 et passim; Rallo: 1991: 11-99).
A lusitanização completa do género surge tardiamente pela pena de
Francisco Rodrigues Lobo, numa trilogia pastoril publicada no início da
centúria de seiscentos, quando já se procedia à passagem das estéticas
literárias do Maneirismo para as do Barroco: A primavera (1601), O
pastor peregrino (1608) e O desenganado (1614). O fio condutor da
intriga é confiado a Lereno, incansável caminhante pelos trilhos ditados
pela fortuna e errâncias impostos pelo destino em busca do amor ideal
e do conhecimento necessário que o transforme no paladino do amante
exemplar. A extensão da obra, repartida por três volumes autónomos
e medida em cerca de oitocentas páginas de texto impresso, exige uma
leitura individual de cada um deles, conducente a uma apreensão global
da coerência da sua estrutura interna (Belchior, 1985: 109-239; Ribeiro,
2001: 377-380; Jorge, 1999: 201-277; Pires & Carvalho, 2001: 13-25;
Simões, 1987: 139-154).
No ano em que se comemora o quarto centenário da publicação pós-
tuma da Peregrinação (1614) de Fernão Mendes Pinto, é de toda a justiça
associar a efeméride aos quatrocentos anos de vida da pastoral novelesca
completa de Francisco Rodrigues Lobo. O primeiro, por ter partilhado com
os vindouros o testemunho pessoal das suas andanças por terras e mares
do Oriente, onde a gesta épica lusitana então se andava a construir; o
segundo, por ter sabido imaginar um conjunto de muitas e diversas ex-

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Exílios, refúgios e desenganos dos pastores peregrinos 259

periências humanas, situadas na esfera da fantasia bucólica, tão popular


ainda no contexto europeu de então. Em suma, os dois contribuíram à sua
maneira peculiar para o engrandecimento da prosa composta no idioma
materno dentro e fora das fronteiras do país, transformando-o num veículo
de expressão verbal e vocação global, posição que ocupa ainda nos nossos
dias, aqueles em que também se comemoram os oito séculos de existência
efetiva e documentada da língua portuguesa escrita e alguns mais não
contabilizados de realização oral.
Agregue-se que os itinerários poéticos do introdutor dos livros de
pastores entre nós já haviam trilhado os sendeiros lírico-dialógicos de
incidência bucólica, reunidos no volume de Éclogas (1605), num total
de dez variantes versificadas duma temática comum. Mais importante,
todavia, do que os assuntos tratados em cada uma delas, será de destacar
o “Discurso sobre a vida e estilo dos pastores”, que as antecede, composta
e dirigida “Ao Leitor”. Nesse texto prologal, aproveita para explicitar tanto
o objetivo da compilação como a visão pessoal que fazia desse mundo
ideal herdado dum passado remoto, identificando-o como o símbolo duma
idade de ouro que só a república das letras poderia restaurar. Francisco
Rodrigues Lobo fê-lo rigorosamente em verso e em prosa, ou na associação
tópica dos dois modos discursivos no prosímetro (Belchior, 1985: 25-27;
Tavares, 1964: xi-li).
Um último apontamento incide numa espécie de novela curta de fei-
ção exemplar intercalada em cinco dos dezasseis diálogos contidos na
Corte na aldeia e noites de inverno (1616), centrada numa nobre irlan-
desa “desterrada” em terras portuguesas, com o disfarce de “peregrina”,
fugida às perseguições religiosas de Isabel I de Inglaterra (diálogos: v,
vi, vii, x e xii). Os ecos das temáticas tratadas anteriormente na trilo-
gia pastoral são claros, muito embora os espaços cénicos retratados nas
duas obras divirjam substancialmente entre si. As soluções implementadas
nas restantes matérias do tratado cortesão terá tido mais em considera-
ção o modelo estético renascentista propugnado em italiano pelo conde
Baldassare Castiglione, em Il cortesiano (1528) – provavelmente lido na
versão castelhana de Juan Boscán, com o título de El cortesano (1534) –
e por Antonio de Guevara, no Menosprécio de corte y alabanza de aldea
(1539), do que pelo paradigma genérico gizado por Longo-Sannazaro-
Montemayor, enquanto representantes dos dois classicismos europeus, o

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260 Artur Henrique Ribeiro Gonçalves

antigo e o moderno (Carvalho, 1991: 7-45; Vásquez Cuesta, 1996: 644-


-645).
A novela inaugural da série narrativa de matriz pastoral, A primavera
(1601), está dividida em três partes, cada uma das quais repartidas por um
número variável de florestas ou capítulos. Os “Vales e montes entre o Lis
e o Lena”, os “Campos do Mondego” e as “Praias do Tejo” remetem-nos
de imediato para a antiga província portuguesa da Estremadura, limite
interno de delimitação tradicional das culturas do norte cristão e rural e
do sul moçárabe e urbano. Os factos narrados decorrem numa primavera
intemporal, caraterística que a visão moderna do género convertera num
lugar-comum obrigatório. O primeiro espaço referido, terra natal do autor
e do protagonista, é marcado por uma felicidade ingénua, logo substituído
por duas etapas de desterrado determinado pelos tristes fados que o
destino lhe talhara. Lágrimas, suspiros e soluços constantes abundam,
provocados pelo amor, desejo e afeição insatisfeitos. As recordações da
pastora do vale desconhecido norteiam-lhe os passos e abrem caminho
ao leitor para novas desventuras andarilhas do exilado solitário em terra
alheia, prometido pelo narrador no final do volume e cumprido à risca sete
anos volvidos (Pires, 2003: 1-37).
As deambulações d’O pastor peregrino (1608) distribuem-se por dois
livros com doze jornadas cada. A alteração do registo diegético inicial
toma conta do discurso. A ânsia premente de expiação de Lereno leva-
-o a trocar o traje de zagal pelo de romeiro sem destino certo. O locus
amœnus primaveril cede passo ao locus horrendus invernal, a luz renas-
centista é substituída abruptamente pelas trevas maneiristas, o conflito
cidade/campo é reanimado, o eixo temporal é ampliado e a contaminação
barroca dos géneros intensifica-se. Os encontros fortuitos de caminho jus-
tificam a inclusão de histórias laterais enquadradas nas restantes modali-
dades novelescas em voga na época. O fascínio do modelo greco-bizantino
ganha a dianteira e ocupa metade da intriga. Naufrágios, disfarces e cri-
mes são chamados à colação, o real alterna com o maravilhoso, as cartas
marcam uma presença constante, a loucura compete com a sensatez, numa
miscelânea completa de hipóteses narrativas para dar corpo a uma ação
pouco rica em eventos deveras decisivos para a melhoria da intriga. Epi-
sódios, peripécias e digressões estrategicamente idealizados para adiar o
desfecho há muito tempo esperado. Este lá surge no horizonte e o triunfo

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Exílios, refúgios e desenganos dos pastores peregrinos 261

do amor é celebrado com pompa e circunstância nas margens paradisíacas


do Lis e do Lena. A esperança duma boa receção por parte dos leitores ou
a exigência tópica da efabulação pastoral de manter a história em aberto
levam a instância produtora da ficção a prometer, pela segunda vez, a
continuação da obra, compromisso que cumprirá seis anos depois (Pires,
2004: 7-20).
A dupla coroação de Lereno pelas ninfas do bosque desconhecido com
uma capela de louro e murta, símbolos míticos da sua perfeição na arte
de amar e de versejar, atribuídas por Apolo e Cupido, com que termina o
painel central da tríptico novelesco, faria supor que o ciclo de romagens do
protagonista estaria concluída. Erro grosseiro, dado que a publicação d’O
desenganado (1614) nos volta a apresentar o herói do relato transmudado
em anti-herói bucólico, longe da arcádia que o vira nascer, crescer e
viver parte da sua existência e a palmilhar, de novo, os trilhos do mundo.
Encontramo-lo entregue a uma solidão sem remissão. A lição a tomar é
que a felicidade na terra é passageira e que pensar o contrário será sempre
um engano que urge desfazer para assim conhecer a verdade. Vemo-lo
também convertido em mentor do pastor Oriano, um peregrino do amor com
quem se havia cruzado nos tradicionais e tópicos encontros de percurso.
O derradeiro quadro do retábulo, pintado com palavras escritas em verso
e prosa por Francisco Rodrigues Lobo, afasta-se dos cenários e enredos
típicos dos livros de adueiros, zagais, pegureiros e afins e aproxima-se a
passos largos dos livros de amores e aventuras peregrinas. Só que a visão
do novelista português ignora, por completo, o facto do cânone greco-bi-
zantino antigo e moderno exigir um protagonismo partilhado ativamente
pelo jovem par de amantes. A pastoral termina com o casamento de Oriano
em ambiente arcádico e com o afastamento de Lereno pelos sendeiros
da vida, solitário e desenganado. O regresso à narrativa aberta própria
do género confirma-se nas derradeiras linhas da diegese. A ameaça de
posteriores continuações é ignorada e o pano desce no final do terceiro
ato do drama (Pires, 2007: 7-17).
Digamos que, em 1614, há precisamente quatrocentos anos, a veia
pastoril do introdutor da série em Portugal já havia desaparecido. A pu-
blicação em 1616 da Corte na Aldeia é uma prova cabal disso. A idade
de ouro da ficção bucólica já tinha ultrapassado a fase de idealização
inovadora e de vitalidade poética de Jacopo Sannazaro e de Jorge Mon-

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262 Artur Henrique Ribeiro Gonçalves

temor, ou mesmo de Miguel de Cervantes e de Lope de Vega em Espanha


e Honoré d’Urfé em França4 , muito embora o restante corpus da produ-
ção portuguesa5 e algumas das mais reputadas obras-primas da literatura
europeia6 ainda estivesse por redigir e publicar, fazendo com que a ba-
nalização imitativa lógico-formal dos epígonos se prolongasse muito para
além da segunda metade do século XVIII, com as estéticas alternativas
do Romantismo e do Realismo literário a espreitarem no horizonte. É
verdade que os itinerários plasmados nos livros de pastores obedecem
a uma lógica discursiva impossível de detetar na restante literatura de
viagens que a criatividade humana foi gizando ao longo dos tempos. A
artificialidade alegórica convocada pela fábula está ancorada numa vi-
são idealista da realidade, onde as dialéticas do amor são entendidas
como uma purificação da existência humana, uma sublimação espiritual
por excelência, uma travessia pela vida terrena que preparam os pastores
peregrinos para vislumbrarem uma visão celestial a lo divino (Augusto,
2010: 109-169; Avalle-Arce, 1974: 265-274).

4
Vd.: Miguel de Cervantes, La Galatea (1585); Lope de Vega, La Arcadia (1598);
Honoré d’Urfé, L’Astrée (1607).
5
Vd.: (A) Redigidas em português – Fernão Álvares do Oriente, A Lusitânia trans-
formada (1607); Manuel Quintano de Vasconcelos, A paciência constante (1622); Elói de
Sotomaior, Ribeiras do Mondego (1623); João Nunes Freire, Os Campos Elísios (1626).
(B) Redigida em castelhano – Miguel Botelho de Carvalho, Prosas y versos del pastor de
Clenarda (1622); Manuel Fernandes Raia, Esperança engañada (1624 e 1629).
6
Vd.: (A) Espanhola – Jacinto de Espinel Adorno, El premio de la constancia y
pastores de Sierra Bermeja (1620); Gonzalo de Saavedra, Los pastores del Betis (1633);
(B) Inglesa: Sir Philip Sidney, Old Arcadia, (1680); (C) Suíça alemã: Salomon Geßner,
Dáfnis (1754); (D) Francesa – Charles Sorel, Le berger extravagant (1627); Jean-Pierre
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Pelo País dos Romances com o Padre Bougeant

Ana Alexandra Seabra de Carvalho

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais


Universidade do Algarve
CLEPUL e CIAC1

Resumo: No âmbito do colóquio subordinado ao tema “A Peregrinação de


Fernão Mendes Pinto e a Perenidade da Literatura de Viagens”, o pequeno ro-
mance do padre jesuíta francês Guillaume-Hyacinthe Bougeant, intitulado Via-
gem maravilhosa do Príncipe Fan-Férédin no País dos Romances e publicado
em 1735, constitui-se como uma curiosa narrativa de viagens imaginárias, cujo
objectivo é o de levar o leitor a reflectir sobre a futilidade do romance enquanto
aparentemente o diverte. Género perigoso para a moral e a educação da ju-
ventude, na perspectiva da Companhia de Jesus, Bougeant tentará, nesta obra,
compilar à saciedade todos os clichés romanescos recolhidos nos autores em
voga para melhor os criticar.

Palavras-chave: Viagem imaginária; metaficção; Padre Bougeant.

No âmbito deste colóquio sobre “A Peregrinação de Fernão Mendes


Pinto e a perenidade da literatura de viagens”, escolhi como objecto de
estudo uma obra intitulada Voyage merveilleux du Prince Fan-Férédin
1
Investigadora do CLEPUL – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Pólo da Universidade do Algarve;
colaboradora do CIAC – Centro de Investigação em Artes e Comunicação da Universidade
de Algarve.
266 Ana Alexandra Seabra de Carvalho

dans la Romancie (Viagem maravilhosa do Príncipe Fan-Férédin no País


dos Romances), que ostenta ainda como subtítulo: Contenant plusieurs
observations historiques, géographiques, physiques, critiques & morales
(Contendo várias observações históricas, geográficas, físicas, críticas &
morais). O seu autor é o padre jesuíta Guillaume-Hyacinthe Bougeant,
que o deu à estampa em Paris, no ano de 1735, “Avec Approbation &
Privilege du Roy”, à época, Luís XV (cf. Bougeant, 1992: 1).
O título (Viagem maravilhosa do Príncipe Fan-Férédin no País dos
Romances) anuncia uma narrativa de viagens de evasão, de acordo com
o código do maravilhoso, de um príncipe de contos de fadas, viajando
por um território ficcional (em busca da perfeição e da felicidade, sabe-
remos adiante). O subtítulo, extenso de acordo com a prática romanesca
do tempo, estabelece, contudo, um subtil contraponto: Contendo várias
observações históricas, geográficas, físicas, críticas & morais. Quer dizer,
continuamos no modelo da narrativa de viagens, mas agora com um in-
tuito mais didáctico e moralizador do que uma mera história de aventuras.
Como prometido, teremos ao longo da narrativa a descrição comentada de
aspectos de natureza histórico-geográfica e física, mas também abundan-
tes considerações de crítica socioliterária e moral, que opõem os universos
do real e da fantasia.
Desengane-se, porém, o incauto leitor que julgue estar a encetar a
leitura de mais um dos milhares de romances da moda na França dos anos
30 de Setecentos. Sob tal aparência, o padre Bougeant esconde, na ver-
dade, uma espécie de panfleto condenatório de todo o género romanesco,
desde a Antiguidade até ao seu contemporâneo, tentando, desta forma,
derrotar o inimigo com as suas próprias armas. Trata-se, afinal, de uma
narrativa metaficcional.
Recorde-se que Bougeant é um erudito jesuíta, conhecido pelo seu
humor e pela sua imaginação fantasiosa, que viveu em França entre 1690
e 1743. É autor de diversas obras, entre as quais se destacam três comé-
dias satíricas, vários panfletos anti-jansenistas, bem como algumas obras
de índole filosófica e poética (cf. Sgard e Sheridan, 1992: 10-12). For-
temente encorajado pela Companhia de Jesus, o padre Bougeant decide,
então, escrever o romance dos romances, de tom bastante divertido, mas
que, constituindo-se como uma curiosa colectânea dos clichés do roma-
nesco, sobretudo daquele em voga nas três primeiras décadas de Setecen-

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Pelo País dos Romances com o Padre Bougeant 267

tos, tem como objectivo mais profundo a condenação do género romanesco


em geral, dos grandes romances heróicos, mas igualmente das memórias
supostamente históricas, dos romances cómicos e satíricos, ou mesmo li-
bertinos que se publicaram em grande número na época.
Paradoxalmente, a sátira de Bougeant, ao criticar sem dó nem pie-
dade o novo género literário emergente servindo-se dos códigos em voga,
revela que o padre os domina na perfeição. Quer dizer, Bougeant trai-se a
si mesmo enquanto leitor voraz de todo o tipo de romances, uma vez que,
na sua obra, dá mostras de um profundo conhecimento dos pormenores
mais ínfimos dos textos que parodia. Tal erudição romanesca permite-lhe
comprovar, certamente, a opinião da Companhia de Jesus sobre o romance:
trata-se de um género subversivo, porque incentiva a leitura individual e
íntima, às escondidas, de textos que são passados de mão em mão sem
controlo por parte dos educadores, obedecendo apenas aos critérios da
novidade e da moda. Pior ainda, quando os leitores são jovens e do
sexo feminino. Nesta perspectiva, os romances são, pois, obras malig-
nas, por seduzirem a imaginação, desviarem dos bons preceitos morais e
religiosos, conduzindo ao pecado, mesmo se apenas em pensamentos (cf.
Sgard e Sheridan, 1992: 16). Por conseguinte, devem ser vigorosamente
condenados. É essa a incumbência do padre Bougeant.
Os principais alvos da sua crítica são, por um lado, o erudito Lenglet
Dufresnoy, abade libertino amigo de Voltaire e adversário dos Jesuítas,
que, um ano antes, havia publicado uma obra intitulada De l’Usage des
Romans seguida de uma Bibliothèque des Romans, onde fazia uma apo-
logia deste tipo de narrativas ficcionais desde a Antiguidade (cf. Sgard
e Sheridan, 1992: 8-9). Por outro lado, são também alvos predilectos da
sua crítica mordaz os romancistas seus contemporâneos Prévost (Manon
Lescaut, 1731; Cleveland, 1731-1739), Lesage (Gil Blas, 1724; Le Diable
boîteux, 1726), Marivaux (La Vie de Marianne, 1731-1741; Le Paysan
parvenu, 1734-1735) e Claude Crébillon (L’Écumoire, 1734).
A sátira de Bougeant sobre os romances recorre às fórmulas narrati-
vas de maior sucesso na época para as virar contra o próprio género: a
viagem imaginária, a alegoria, o percurso iniciático, a narrativa paródica
(cf. Sgard e Sheridan, 1992: 12). Assim, o padre jesuíta leva o leitor pela
mão num passeio através do País dos Romances, lugar tido por utópico

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268 Ana Alexandra Seabra de Carvalho

por comparação com o mundo real, mas com o propósito dissimulado de


efectuar uma crítica condenatória do subversivo género da moda.
No início, o leitor depara-se com um herói-narrador, o Príncipe Fan-
-Férédin, que diz ter recebido toda a sua educação exclusivamente a partir
da leitura de romances. O seu maior anseio é tomar os seus heróis como
modelos de comportamento e de conduta moral.
Então, por «uma bela noite de luar» (Bougeant, 2007: 10), Fan-Fé-
rédin decide deixar o seu reino e partir em busca da mulher ideal e
da felicidade perfeita, coisas que afirma não encontrar nem no seu país,
nem em nenhum outro das redondezas. Está convencido de que só o
achará no maravilhoso País dos Romances. Convicto da justeza das suas
razões, e para além da busca pessoal, o herói-narrador assume o propósito
didáctico de contar ao leitor amigo todas as coisas admiráveis que viu e
ouviu ao longo da sua viagem iniciática. Tal artifício, reforçado pela
excessiva inverosimilhança das sucessivas situações e por uma linguagem
onde os abundantes adjectivos modulam um desespero interminável e se
acumulam perífrases complicadas (cf. Barguillet, 1981: 89-90), permite
a Bougeant satirizar, tanto o romance romanesco barroco, como os dos
seus contemporâneos, nomeadamente os de Prévost e Marivaux, fazendo
o inventário dos clichés romanescos.
Assim, a paródia desta obra metaficcional recai sobre: as descrições
histórico-geográficas convencionais das narrativas de viagens imaginárias
e exóticas; a beleza e os méritos extra-ordinários dos habitantes desse
país maravilhoso; as suas conversas alambicadas e palavrosas; o jargão
amoroso da língua “romanciana”; as “mil coisas curiosas” que compõem
as aventuras singulares vividas por tal casta de heróis; os idílicos “Bos-
ques d’Amor”; os extravagantes meios de transporte e formas de viajar; as
numerosas formalidades preliminares a respeitar obrigatoriamente antes
do pedido de casamento; as grandes provas, prescritas por severas leis,
que os heróis “romancianos” devem ultrapassar para merecerem a mão da
sua bem-amada.
Bougeant satiriza, igualmente, toda a panóplia de motivos e técnicas
romanescos, como, por exemplo, os omnipresentes raptos, duelos, qui-
proquós; a passagem pelo estado de escravidão; os simulacros da morte
dos heróis; a omnisciência dos autores relativamente às palavras trocadas
em segredo, aos pensamentos mais íntimos das personagens, etc.

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Pelo País dos Romances com o Padre Bougeant 269

Para além deste rol de clichés romanescos, a obra de Bougeant apre-


senta-se, segundo Jean Sgard e Geraldine Sheridan (Sgard e Sheridan,
1992: 17), como um Índex, onde o padre jesuíta distingue claramente o
bem e o mal, assim como hierarquiza a literatura romanesca, dividida en-
tre “Alta Romância” e “Baixa Romância”. Na primeira, encontram-se os
príncipes, os cavaleiros, os heróis gloriosos. Na segunda, criada mais
recentemente, habitam as personagens de inferior condição social e moral
(cf. Coulet, 1998: 327-328). Assim, no topo, figura o Telémaco (1699),
romance de formação da autoria do insuspeito Fénelon. Seguem-se os
romances de cavalaria de espírito cristão, embora fora de moda nas prefe-
rências dos leitores setecentistas. Num nível abaixo, surgem os romances
barrocos, edificantes, apesar de algo ridículos. Finalmente, entra-se na
“basse Romancie”, onde tudo degenera, na opinião de Bougeant: o ro-
mance é invadido por uma horda crescente de populaça, por gente de
mau-gosto e vilões de toda a espécie. Por exemplo, Prévost é visto com
forte suspeição, acusado de dissimular a imoralidade sob o véu dos gran-
des sentimentos. Claude Crébillon, pior ainda. Se é verdade que todas as
suas personagens pertencem à mais alta sociedade, os costumes liberti-
nos pelos quais se pautam e as inqualificáveis, na óptica do padre jesuíta,
ousadias político-religiosas do jovem autor em L’Écumoire justificariam o
seu “embastilhamento” por alguns dias.
No capítulo XII, Bougeant dedica-se a uma classificação meticulosa
e de fina ironia dos vários tipos de escritores, apresentados como “ope-
rários”. Temos, assim, em primeiro lugar, os “Enfiadores”, que são os que
“juntam, de vários lados, uma vintena ou uma trintena de pequenas baga-
telas, que habilmente enfiam e cosem, e eis a sua obra pronta” (Bougeant,
2007: 73)2 . Dá como exemplos, As Mil e Uma Noites e suas sequelas.
Vêm depois os “Assopradores”, os quais,

pelo contrário, pegam apenas numa dessas pequenas bagatelas; mas


possuem a arte de a empolar e de a desenvolver, soprando-a, mais
ou menos como as crianças fazem bolas de sabão, de modo que, a
2
Cf. edição original francesa editada por Jean Sgard e Geraldine Sheridan: “Nous
appelons ici Enfileurs des ouvriers qui y sont assez communs depuis un temps. Ces gens-
-là assemblent de divers endroits une vingtaine ou une trentaine de petits riens, qu’ils
ont l’adresse d’enfiler et de coudre ensemble, et voilà leur ouvrage fait” (Bougeant, 1992:
97).

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270 Ana Alexandra Seabra de Carvalho

partir de uma matéria que em si mesma não vale quase nada, eles
fazem uma espessa obra. Estas obras, como se vê, não podem ser
muito sólidas; mas não deixam de entreter os espíritos ociosos. As
mulheres, sobretudo, e as crianças adoram ver flutuar no ar estas
pequenas bolhas inchadas. Mas é verdade que não passa de um
brilho momentâneo, de que já ninguém se lembra no dia seguinte
(Bougeant, 2007: 74)3 .

O autor exemplifica com o Ciro (1649) de Madeleine de Scudéry e


o Telémaco de Fénelon, único modelo, aliás, digno de ser seguido, na
opinião dos Jesuítas.
Temos ainda os “Bordadores”, que são os que “mandam vir de algum
país estrangeiro alguns fragmentos raros e curiosos, cujo fundo ornam
com um bordado de desenho corrente que já quase não deixa distinguir
o fundo do próprio bordado” (Bougeant, 2007: 74)4 . Como exemplos, e
para além de Lenglet Dufresnoy, Bougeant refere Dom Carlos (1673) de
Saint-Réal e A Princesa de Clèves (1678) de Madame de La Fayette,
embora esta última obra seja elogiada pelo respeito das regras do dever
e da conveniência.
Seguem-se os “Consertadores”. Segundo Bougeant, estes autores
“são menos engenhosos. A sua única arte consiste em dar algum ar de
novidade a coisas já velhas e usadas; é, contudo, hoje em dia [afirma
ele], a espécie de operários mais numerosa” (ibidem)5 . Adiante Bougeant
precisa, dizendo que se trata de escritores que se limitam a adaptar ao
3
Cf. Bougeant (1992: 97-98): “Les Souffleurs au contraire ne prennent qu’un de ces
petits riens; mais ils ont l’art de l’enfler, et de l’étendre en le soufflant, à peu près comme
les enfants font des bouteilles de savon, en sorte que d’une matière qui d’elle-même n’est
presque rien, ils en font un gros ouvrage. Ces ouvrages comme on voit ne peuvent pas
être fort solides; mais ils ne laissent pas d’amuser des esprits oisifs. Les femmes surtout
et les enfants aiment à voir voltiger en l’air ces petites bouteilles enflées. Mais il est vrai
que ce n’est qu’un éclat d’un moment, et qu’on ne s’en ressouvient pas le lendemain”.
4
Cf. Bougeant (1992: 98): “L’ouvrage des Brodeurs est d’une autre espèce. Ils font
venir de quelque pays étranger quelques morceaux rares et curieux, dont ils ornent le
fond d’une broderie de dessin courant, qui ne laisse presque plus distinguer le fond de la
broderie même”.
5
Cf. Bougeant (1992: 98): “Les Ravaudeurs sont moins ingénieux. Tout leur art
consiste à donner quelque air de nouveauté à des choses déjà vieilles et usées; c’est
pourtant aujourd’hui l’espèce d’ouvriers qui est en plus grand nombre”.

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Pelo País dos Romances com o Padre Bougeant 271

gosto francês moderno obras estrangeiras coevas ou antigas (cf. Bougeant,


2007: 78-79).
Surgem, depois, os “Iluminadores”, os quais “são empregues a ilumi-
nar, com as cores mais brilhantes, retratos, figuras ou quadros imaginários.
Não se deve pedir a essa gente retratos parecidos, nem quadros verda-
deiros; não é esse o seu ofício” (Bougeant, 2007: 74)6 .
Temos, ainda, os “Lanterneiros ou artífices de Lanternas Mágicas”.
Trata-se de “operários” cujas “obras que produzem se assemelham a uma
espécie de Lanternas mágicas onde se vêem as coisas mais incríveis do
mundo, como Torres de bronze, Colunas de diamante, Rios de fogo, Carros
atrelados a pássaros, Gigantes monstruosos” (ibidem)7 . Nesta categoria
são, pois, incluídos todos aqueles que possuem uma imaginação dema-
siado fértil no capítulo da inverosimilhança, ou seja, que utilizam toda
a panóplia do maravilhoso. A obra de Claude Crébillon, L’Écumoire, é
especialmente atacada (cf. Bougeant, 2007: 82).
Por fim, surgem os “Apresentadores de Curiosidades”, ou seja, aque-
les que apenas trabalham como subalternos, recebendo encomendas de
pedaços que irão preencher vazios ou engrossar obras alheias. Então,
eles

fazem uma espécie de obra assaz engraçada. Trata-se de uma acu-


mulação de diversas coisas curiosas que mandam vir de longe. É por
isso que lhes foi dado esse nome. Quando a matéria sobre a qual
eles trabalham é em si mesma demasiado ingrata, eles inventam a
arte de aumentar e ornar o seu quadro com diversos objectos mais
interessantes, os quais apresentam um após outro, como o mapa
de Londres, a Corte de Portugal, o Governo de Veneza, os Templos
de Roma, mais ou menos como um Apresentador de Curiosidades
vos mostra na sua caixa a Cidade de Constantinopla, a Imperatriz
6
Cf. Bougeant (1992: 98): “[Les Enlumineurs] sont employés à enluminer des couleurs
les plus brillantes, soit les portraits, soit les figures, ou les tableaux d’imagination. Il ne
faut pas demander à ces gens-là des portraits ressemblants, ni des tableaux dans le vrai;
ce n’est pas leur métier”.
7
Cf. Bougeant (1992: 98): “Les Lanterniers ou faiseurs de Lanternes Magiques, sont
encore des ouvriers fort estimés. On les a ainsi nommés, parce que les ouvrages qu’ils
font ressemblent à des espèces de Lanternes Magiques, où l’on voit les choses du monde
les plus incroyables, des Tours d’airain, des Colonnes de diamant, des Rivières de feu,
des Chariots attelés d’oiseaux ou de poissons, des Géants monstrueux”.

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272 Ana Alexandra Seabra de Carvalho

da Rússia, a Corte de Pequim, o Porto de Amesterdão (Bougeant,


2007: 74-75)8 .

Esta classificação mostra que Bougeant considera que todos os ro-


mancistas repetem continuamente os mesmos temas, motivos e códigos.
Assim, todos os romances não passam de bagatelas, umas mais pernicio-
sas do que outras, mas todas inúteis e condenáveis.
Deste modo, a aparente narrativa de viagens do Príncipe Fan-Férédin
revela que o País dos Romances, ao invés de “maravilhoso”, é tido pelo
padre jesuíta como um território a evitar, sobretudo pelos viajantes jovens
e incautos. Só dessa forma podem escapar à corrupção da imaginação e
da moral e bons costumes; ou ainda, à incapacidade de distinção entre o
real e a ficção.
Para melhor convencer os seus leitores a afastarem-se deste género
maligno, o jesuíta faz uso da sua memória romanesca, da sua prodigiosa
imaginação e do seu estilo humorístico, carregando de tal forma na dose
excessiva de romanesco que espera com isso provocar o enjoo de tais
leituras e dar lugar a uma reflexão crítica sobre o valor risível do género
romanesco.
Não obstante, a obra metaficcional de Bougeant termina com um final
feliz, na óptica do seu autor. Isto é, nas últimas páginas, o herói-narrador,
leitor voraz de todo o género de livros, acorda subitamente de um sonho
romanesco, recuperando o seu nome e estatuto social bem mais prosaicos:
o fidalgo provinciano Senhor de La Brosse. O mesmo é dizer que a via-
gem maravilhosa no País dos Romances se tratava, afinal, de um roteiro
através de um país e personagens imaginários, o que, se os salva da con-
denação do autor, alerta, no entanto, o leitor para os perigos das leituras
romanescas. Para Bougeant, este regresso ao real corresponde à reposi-
ção da racional ordem das coisas. Reencontrando as outras personagens,
8
Cf. Bougeant (1992: 98): “Les Montreurs de Curiosité font une espèce d’ouvrage
assez amusant. C’est un amas de diverses choses curieuses qu’ils font venir de loin. C’est
pour cela qu’on leur a donné ce nom. Quand la matière sur laquelle ils travaillent est
trop ingrate par elle-même, ils trouvent l’art d’augmenter et d’orner leur tableau de divers
objets plus intéressants qu’ils présentent l’un après l’autre, comme le plan de Londres, la
Cour de Portugal, le Gouvernement de Venise, les Temples de Rome, à peu près comme un
Montreur de Curiosité vous fait voir dans sa boîte la Ville de Constantinople, l’Impératrice
de Russie, la Cour de Péking, le Port d’Amsterdam”.

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Pelo País dos Romances com o Padre Bougeant 273

que mais não eram do que membros do seu círculo de familiares e amigos,
o herói-narrador conta-lhes o seu sonho bizarro, e todos concordam que
ele o deve passar à escrita e publicar para deleite e instrução do público.
Desta forma, Bougeant conclui a viagem empreendida pelos clichés do
romanesco em voga nas primeiras décadas de setecentos para enfatizar a
condenação do País dos Romances, que, paradoxalmente, tão bem conhece
e, com bastantes probabilidades, aprecia às escondidas.

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Peregrinação de Fernão Mendes Pinto no sistema
de ensino português

Clara Anunciação

Universidade de Lisboa (Portugal)

Resumo: Em novembro de 2013, o Ministério da Educação e Ciência propôs


um novo Programa e Metas Curriculares de Português para o Ensino Secundário,
no qual foi possível vislumbrar o objetivo de lecionar a obra Peregrinação, entre
Camões lírico e a História Trágico-Marítima, no âmbito da Educação Literária do
10.o ano. A versão final do Programa, datada de janeiro de 2014, estipula, porém
e apenas, o estudo das obras História Trágico-Marítima e Os Lusíadas. Tendo em
conta que a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é considerada o “avesso” da
obra camoniana, não seriam estas duas obras facilmente articuladas no estudo no
10.o ano, para além de se complementarem curricularmente? O que terá, então,
originado a escolha do estudo do capítulo V da História Trágico-Marítima em
detrimento do estudo da obra Peregrinação e dos seus cinco capítulos propostos?

Palavras-chave: Peregrinação de Fernão Mendes Pinto; Ensino de Portu-


guês; Ensino Secundário; Ensino da Literatura Portuguesa; Literatura de via-
gens.

Fernão Mendes Pinto, figura enigmática, tornou-se emblemático ao


colocar por escrito, numa rude e tosca escritura, a sua peregrinação por
terras do Oriente onde foi treze vezes cativo e dezassete vendido, como
ele próprio refere logo no primeiro capítulo da sua obra denominada pre-
cisamente Peregrinação. A sua figura, projetada no monumento Padrão
276 Clara Anunciação

dos Descobrimentos, logo atrás do grande poeta Luís de Camões, (e no


lado oposto ao da representação do jesuíta Francisco Xavier) parece ser,
mais do que uma justa homenagem ao papel que desempenhou na sua
época, um vaticínio de como ficaria para trás, nomeadamente no que diz
respeito ao sistema de ensino português.
O objetivo do presente trabalho é precisamente contextualizar a Pe-
regrinação de Fernão Mendes Pinto no quadro institucional educativo
português, por um lado, e por outro, demonstrar o seu carácter e aprovei-
tamento didáticos na sua estreita correlação com outras obras do currículo
escolar.

Peregrinação no quadro institucional educativo português

Considerando o facto de a escolarização obrigatória ter contribuído, nas


sociedades ocidentais, para a fixação e transmissão de uma lista de textos
e autores considerados os melhores, podemos dizer que o cânone literário
escolar, regulado por agentes institucionais e individuais, tem continua-
mente afastado do contexto educativo português a leitura e interpretação
da obra Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, relegando-a para o estudo
posterior de quem prossegue os estudos na área da literatura portuguesa.
E se por cânone literário, se considera a seguinte definição um conjunto
de autores e de textos proeminentes e modelares, cuja “riqueza” os torna
dignos de serem lidos e estudados nas “classes” das escolas (Aguiar e
Silva, 2010: 243), então é possível acrescentar que a referida obra tem
sido amplamente estudada e referenciada não só como o “avesso” da obra
Os Lusíadas, mas também como a obra mais significativa da experiência
nacional do século XVI (Saraiva, 1995: 105). Convém acrescentar que
essa importância foi logo atribuída, mal a primeira edição saiu em 1614,
30 anos após o desaparecimento do seu autor, conhecendo de imediato
múltiplas edições e traduções um pouco por todo o mundo (Saraiva, 2010:
132)1 .
1
1620 – em castelhano, por Herrera Maldonado (Madrid); 1628 – em francês, por
Bernard Figuier (Paris); 1652 – em neerlandês (Amesterdão); 1653 – em inglês (Londres:
The Voyages and Adventures of Fernand Mendez Pinto); 1671 – em alemão (Amesterdão).

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Peregrinação de Fernão Mendes Pinto no sistema de
ensino português 277

No documento Balanço da consulta pública – Programa e Metas Cur-


riculares de Português, os autores do novo programa do secundário admi-
tem ter reconsiderado algumas propostas à luz de uma criteriosa reava-
liação de conteúdos e tempos de lecionação, nomeadamente no domínio
da Educação Literária (Buescu, Maia, Silva & Rocha, 2014: 1), da qual
resultou a inserção, por um lado, da obra Os Lusíadas e, por outro lado,
a supressão do estudo de qualquer capítulo da obra Peregrinação2 , bem
como de um dos capítulos propostos de História Trágico-Marítima. Mais,
face à proposta de se suprimir esta obra anónima do currículo de Portu-
guês do 10.o ano, os autores respondem que
a obra, representada por uma curta narrativa, surge no Programa
como complemento do estudo d’Os Lusíadas, permitindo uma outra
visão de uma das épocas históricas mais marcantes de Portugal3

Embora não haja uma justificação para a ausência da obra de Fernão


Mendes Pinto, que assim desaparece no âmbito do ensino da literatura
portuguesa naquele que é agora um ciclo de estudos obrigatório (o se-
cundário).
O programa de português do ano letivo de 1974-1975 (ensino liceal)
contemplava o estudo de Peregrinação de Fernão Mendes Pinto no 1.o
ano do curso complementar, no âmbito da literatura de viagens, após a
lecionação de Os Lusíadas.
O programa de português de 1991 contemplava, no 10.o ano, o estudo
de Os Lusíadas, seguido, no 11.o ano, do estudo da narrativa histórica:
Fernão Lopes, Gomes Eanes de Zurara e Pêro Vaz de Caminha, não con-
figurando, quer no contexto de um ou do outro ano, qualquer referência a
Fernão Mendes Pinto.
No entanto, o programa de português seguinte, de 1997, assinalava
para estudo, no 10.o ano, na disciplina de Português A, alguns excertos da
obra Peregrinação4 . O programa seguinte, homologado em 2001, voltou
novamente a suprimir este objeto de estudo.
2
Relembramos que a versão do programa apresentada para discussão pública propu-
nha o estudo de 5 capítulos da obra de Fernão Mendes Pinto. A saber: capítulos 1o ;
14o ; 55o ; 134o e 214o .
3
Buescu, H., Maia, L., Silva, M. G. & Rocha, M. R. (2014). Balanço da consulta
pública – Programa e Metas Curriculares de Português. MEC, p. 2.
4
Dos capítulos I, XLVII, CXXXV.

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278 Clara Anunciação

De facto, Peregrinação foi uma das obras que nunca conseguiu reunir
consenso, fazendo breves aparições em programas que foram descontinua-
dos rapidamente, num mudo debate entre especialistas do ensino acerca
da sua importância e figuração no cânone literário português. E embora a
obra continue sem se fazer representar no Programa e Metas Curriculares
de Português do Ensino Secundário, que entrará em vigor no ano letivo
2015/2016, a verdade é que cabe aos professores de Português a última
palavra, dentro da sala de aula, podendo a obra ser dada a conhecer aos
alunos em estreita correlação com a visão mítica do império que Portugal
representava no século XVI, veiculada pela obra Os Lusíadas, e com a
visão histórica que o relato de História Trágico-Marítima permite a res-
peito dessa época marcante dos Descobrimentos. O que a obra de Fernão
Mendes Pinto poderá acrescentar a estas visões é, nada mais, nada me-
nos, um duplo olhar satírico, no qual por um lado o autor dá a conhecer
as aventuras de que é protagonista no Oriente, e, por outro lado, os acon-
tecimentos, usos e mentalidades das diversas civilizações observadas por
ele (Saraiva, 1995: 100).

Peregrinação no contexto de ensino de Português – 10.o ano

Salvaguardando as respetivas diferenças entre obras tão díspares como Os


Lusíadas, que, enquanto epopeia, simboliza o oposto daquilo que aparece
relatado em Peregrinação, que é uma espécie de autobiografia de um
“pobre de mim”, e do capítulo V da História Trágico-Marítima que dá
a conhecer as peripécias verídicas da viagem de regresso a Portugal de
Jorge Albuquerque, oriundo do Brasil, decorria o ano de 1565, defendemos
a possibilidade de trabalhar todas elas, pelo estudo comparativo e incisivo,
estabelecendo uma ponte cultural e literária entre estes textos que narram
as viagens dos Portugueses.
O facto de estarmos perante duas obras representativas de um gé-
nero que conheceu fraca expansão em Portugal, a literatura de viagens,
a verdade é que tanto a obra anónima História Trágico-Marítima como a
Peregrinação de Fernão Mendes Pinto partilham, como não podia deixar
de ser, vários pontos que evocam a efígie de Homo Viator na descoberta do

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Peregrinação de Fernão Mendes Pinto no sistema de
ensino português 279

mundo exterior e interior. Além disso, a interligação do seu estudo, pela


leitura comparada de excertos selecionados, serviria para ilustrar dupla-
mente os tópicos didáticos apontados como objetivos a serem apreendidos
pelos alunos do 10o ano (a saber: escrita e experiência de vida; aventu-
ras e desventuras do protagonista; encontro de civilizações e reflexões do
narrador) sem que o estudo fosse mais prolongado ou complexo por isso.
Que aluno resistiria às tropelias de um pirata como António de Faria
da Peregrinação? E se fosse comparado a Jorge de Albuquerque do relato
História Trágico-Marítima? Também seria igualmente possível comparar
os discursos deste personagem com os de S. Francisco Xavier em Pe-
regrinação, ressaltando em ambos o dom de moverem multidões só pelo
exemplo de fé que representam.
No entanto, para um melhor aproveitamento didático das obras re-
feridas e tendo em conta os diferentes objetivos agora perspetivados no
novo programa de português do ensino secundário, propomos um esboço
curricular de unidade didática sob a temática “cousas do mar e da terra”.
Partindo do canto V de Os Lusíadas, das estrofes imediatamente an-
teriores ao episódio de “O Adamastor”, é possível abordar, numa primeira
parte, as maravilhas do mar, que os homens nem sempre entendem, mas
às quais é dada relevância desde a estância 16 até à 21.
No relato da atribulada viagem de regresso a Portugal de Jorge de
Albuquerque, é possível destacar, senão os mesmos fenómenos atmosféri-
cos, pelo menos a mesma ferocidade do mar face à impotência do homem,
ser pequeno e insignificante da terra perante a grandiosidade temerosa
da Natureza:

(. . . ) nos sobreveio uma cousa espantosa e nunca vista, porque,


sendo às dez horas do dia, se escureceu o tempo de maneira, que
parecia ser noite; e o mar com os grandes encontros que umas on-
das davam nas outras parecia que dava claridade, por encher tudo
de escumas. O mar e o vento faziam tamanho estrondo que quase
nos não ouvíamos nem entendíamos uns aos outros5 .

5
Bernardo Gomes de Brito (1972). História Trágico-Marítima. Lisboa: Editorial
Verbo, p. 131 (sublinhado nosso).

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280 Clara Anunciação

Já na Peregrinação, muitos são os passos suscetíveis de expressarem


esse poder do mar. A título de exemplo, citamos:

(. . . ) quis a fortuna que com a conjugação da lua nova em Outubro,


de que nos sempre tememos, veio um tempo tão tempestuoso de
chuvas e ventos, que não se julgou por cousa natural, e como
nós vínhamos faltos de amarras porque as que tínhamos eram to-
das gastas e meio podres, logo que o mar começou a se empo-
lar, e o vento sueste nos tomou em desabrigado, e travessão à
costa, fez um escarcéu tão alto de vagas tão grossas que con-
quanto se buscassem todos os meios possíveis para nos salvarmos,
(. . . ) nada disto bastou para nos podermos salvar, porque como
o escuro era grande, o tempo muito frio, o mar muito grosso, o ven-
to muito rijo, as águas cruzadas, o escarcéu muito alto, e a força
da tempestade muito terrível, não havia coisa que bastasse a nos
dar remédio (. . . )6 .

É possível observar neste excerto, e em comparação com o anterior, a


diminuição do Homem e das suas faculdades face à adversidade de uma
tempestade no mar: ele deixa de ver, porque há escuridão, deixa de ouvir,
porque o barulho do mar e do vento sobrepõem-se. É como se o Homem
fosse uma marioneta às mãos de um deus, a quem, rezam e encomendam
as suas almas. De facto, a constante presença e intervenção de Deus na
realidade física e humana, a existência objetiva de milagres, a vida como
sofrimento e punição, os fenómenos naturais que manifestam a vontade
divina, são tópicos recorrentes a partir de finais do século XVI (Barreto,
1989: 77-78) e que transparecem nas obras desta época.
A crua vivência no mar coloca a tónica num par dicotómico que também
está patente na epopeia de Camões: a experiência dos marinheiros versus
o saber livresco dos sábios. A observação direta que pilotos, marinheiros
e viajantes puderam experienciar a partir da atividade marítima levou a
que nos séculos XV e XVI se defendesse a ideia de que o saber dos livros
não se comparava à técnica e à experiência oriundas da própria vivência
no mar. Esta ideia, precursora do empirismo científico, apesar de não
ter alcançando patamares elevados de inquisição científica acerca dos
6
Fernão Mendes Pinto (2001). Peregrinação. Lisboa: Relógio D’Água Editores, pp.
166-167 (sublinhado nosso).

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Peregrinação de Fernão Mendes Pinto no sistema de
ensino português 281

fenómenos observados (Saraiva & Lopes, 1975: 353-354), está patente


na observação do Poeta nos seguintes versos: “Vejam agora os sábios na
escritura / Que segredos são estes de Natura!” (Os Lusíadas, V, 22, vv.
7-8) e ainda, acrescenta Camões, “E tudo sem mentir, puras verdades”
(Os Lusíadas, V, 23, v. 8).
Também no capítulo V de História Trágico-Marítima é possível desta-
car, após a descrição de uma tempestade, a ilustrativa frase: “uma cousa
posso afirmar: que o pouco que se aqui escreve é tão diferente do muito
que passámos, como do vivo ao pintado”7 .
Não é depois difícil passar à motivação da escrita com particular in-
cidência nos discursos das obras de literatura de viagens. É possível ler
em História Trágico-Marítima:

Moveu-me escrever este discurso do nosso naufrágio querer que


soubesse toda a gente os trabalhos que nas navegações se pas-
sam, e quão forte fraqueza é esta de nosso corpo, a qual se se lhe
representassem para passar os trabalhos com que pode, cuido por
certo que desmaiaria de os ouvir; e mais para que todos vejam claro
com quanta razão devemos todos esperar e confiar na misericórdia
do Senhor, a qual não desampara ninguém em trabalhos, (. . . ); e
para que se saibam as grandezas da misericórdia de Nosso Senhor,
e as maravilhas (. . . ), me pus a escrever este compêndio de traba-
lhos, que servirão de espelho e aviso e con- solação, para os que
se virem em quaisquer outros semelhantes a este saberem ter fé
e confiança em a misericórdia de Nosso Senhor os livrar e salvar,
assim como fez a nós.(. . . )
Posso afirmar com verdade a todos os que isto lerem que não es-
crevo aqui metade de tudo o que passámos, porque nem quando
passei estes trabalhos tinha lembrança nem comodidade para os
escrever, nem depois de passados me sofria a memória querer
que se lhe representassem (. . . )8

7
Bernardo Gomes de Brito (1972). História Trágico-Marítima. Lisboa: Editorial
Verbo, p. 135 (sublinhado nosso).
8
Bernardo Gomes de Brito (1972). História Trágico-Marítima. Lisboa: Editorial
Verbo, pp. 150-151 (sublinhado nosso).

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282 Clara Anunciação

Este excerto poderia ser dado em paralelo com o primeiro capítulo de


Peregrinação:

Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes tra-


balhos e infortúnios que por mim passaram (. . . ) Mas por outro la-
do, quando vejo que do meio de todos estes perigos e trabalhos me
quis Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em segurança, acho que
não tenho tanta razão de me queixar de todos os males passados,
quanta tenho de lhe dar graças por este só bem presente, pois me
quis conservar a vida para que eu pudesse fazer esta rude e tosca
escritura que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles
é minha intenção escrevê-la) para que vejam nela estes meus tra-
balhos e perigos da vida que passei no decurso de vinte e um anos
(. . . )9

Uma segunda parte da unidade didática partiria da leitura e inter-


pretação das estrofes 30 à 35 do canto V em que Camões dá a conhecer
o episódio individual de um dos marinheiros, “Fernão Veloso a ir ver da
terra o trato/ E partir-se co eles pelo mato” (Os Lusíadas, V, 30, vv. 7-8),
em que este se destaca do herói coletivo, o povo lusitano.
Seria expectável que o episódio privilegiasse a demonstração dos va-
lores notáveis de um herói, mas, em vez disso, Fernão Veloso protagoniza
um episódio anedótico, semelhante a tantos outros que polvilham a Pe-
regrinação:

31 “É Veloso no braço confiado


E, de arrogante, crê que vai seguro;
Mas, sendo hum grande espaço já passado,
Em que algum bom sinal saber procuro,
Estando, a vista alçada, co cuidado
No aventureiro, eis pelo monte duro
Aparece, e segundo ao mar caminha,
Mais apressado do que fora, vinha.

32 “O batel de Coelho foi depressa


Polo tomar, mas, antes que tomasse
Hum Etíope ousado se arremessa
9
Fernão Mendes Pinto (2001). Peregrinação. Lisboa: Relógio D’Água Editores, p.
23 (sublinhado nosso).

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Peregrinação de Fernão Mendes Pinto no sistema de
ensino português 283

A ele, por que não se lhe escapasse;


Outro e outro lhe saem; vê-se em pressa
Veloso, sem que alguém lhe ali ajudasse.
Acudo eu logo, e enquanto o remo aperto,
Se mostra hum bando negro, descoberto.

33 “Da espessa nuvem setas e pedradas


Chovem sobre nós outros, sem medida,
E não foram ao vento em vão deitadas,
Que esta perna trouxe eu dali ferida.
Mas nós, como pessoas magoadas,
A resposta lhe demos tão tecida,
Que em mais que nos barretes se suspeita
Que a cor vermelha levam, desta feita.

34 “E, sendo já Veloso em salvamento,


Logo nos recolhemos pera a armada,
Vendo a malícia feia e rudo intento
Da gente bestial, bruta e malvada,
De quem nenhum milhor conhecimento
Pudemos ter da Índia desejada,
Que estarmos inda muito longe dela.
E assi tornei a dar ao vento a vela.

35 “Disse então a Veloso hum companheiro


(Começando-se todos a rir):
– Oulá, Veloso amigo, aquele outeiro
– Si, é, responde o ousado aventureiro,
Mas, quando eu pera cá vi tantos vir
A resposta lhe demos tão tecida,
Daqueles Cães, depressa hum pouco vim,
Por me lembrar que estáveis cá sem mim.

Veloso, um marinheiro fanfarrão, vê-se obrigado a fugir do ataque do


“bando negro”. Já em segurança e entre os seus, sujeito a motivo de
chacota, argumenta dizendo que se fugiu depressa da ilha era porque
sabia que era necessário junto dos seus companheiros de viagem.
Em suma, tanto em Peregrinação como em História Trágico-Marítima
é possível apreciar a enunciação próxima da oralidade, a cedência à in-
vocação da experiência própria (avesso ao saber livresco) e a passagem

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284 Clara Anunciação

do vivido ao fictício, no caso particular da obra de Fernão Mendes Pinto,


que tanto contribuiu para a desvalorização da obra durante anos.
Se os objetivos didáticos do nível secundário se prendem com a leitura
e interpretação de textos escritos de complexidade crescente e de diversos
géneros, perante os quais os alunos possam apreciar o seu conteúdo de
forma crítica, não nos parece lógico nem produtivo reter alguns conteúdos
apenas por uma questão de pragmatismo ou exequibilidade do programa.
Há que, pelo menos, dar a opção ao professor para que possa, no contexto
de sala de aula, mediante a turma, escolher os textos a trabalhar para
atingir os objetivos propostos.
Como nota final, gostaríamos de sublinhar a pluridimensionalidade
da obra Peregrinação, que é um mundo a respeito de um novo mundo
exposto a partir da época de os Descobrimentos (Barreto, 1989: 75),
que propicia várias leituras e todas elas enriquecedoras para obtermos
uma visão de como se pensavam, viviam e sentiam os Descobrimentos na
primeira pessoa do singular (ou do plural). Como refere Pinto-Correia,

Ambas as obras, Os Lusíadas e Peregrinação, constituem, portanto,


e cada uma à sua maneira, momentos significativos da construção,
na literatura e cultura lusas, da imagem colectiva dos Portugueses.
A epopeia de Camões desde cedo foi reconhecida no seu autêntico
sentido, porquanto se adequava aos cânones literários da época, ou
seja, inseria-se nas regras do género por excelência para a exaltação
dos feitos pátrios, sendo claramente compreendido o seu propósito.10

No que diz respeito à obra de Fernão Mendes Pinto, tudo foi diferente
e é bem possível que a falta de uniformidade de uma obra tão heterogénea
e pluridimensional não só caracterize a grandiosidade e singularidade de
uma obra como a Peregrinação, como tenha ditado esta a uma vida de
errância por entre os meandros do sistema de ensino português, não se
fixando no cânone escolar.
Por outro lado, ainda que a História Trágico-Marítima possa marcar
presença nesse cânone literário por ser uma obra representativa do género
literatura de viagens, o seu discurso simples e simbólico de um relato de
10
J. D. Pinto-Correia (1999). “A construção do colectivo na Peregrinação: percursos
e significados”. In M. A. Seixo & C. Zurbach(org.). O discurso literário da Peregrinação.
Lisboa: Ed. Cosmos, pp. 182-183.

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Peregrinação de Fernão Mendes Pinto no sistema de
ensino português 285

naufrágio, bem mais rude e tosco do que a escritura de Fernão Mendes


Pinto, coloca em evidência a superioridade de Peregrinação, desde que
ambas sejam dadas a conhecer.

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Referências bibliográficas

Documentos institucionais
BUESCU, H., MAIA, L., SILVA, M. G. & ROCHA, M. R. (2014). Pro-
grama e Metas Curriculares de Português – Ensino Secundário. MEC.
BUESCU, H., MAIA, L., SILVA, M. G. & ROCHA, M. R. (2014). Ba-
lanço da consulta pública – Programa e Metas Curriculares de Português.
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Português A e B – Programas 10.o , 11.o e 12.o anos (1997). ME:
Departamento do E.S..
Português – Programa para o ano lectivo de 1974-1975. Ministério
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Programa de Português (10o – 12.o anos) (1991). ME.
SEIXAS, J., PASCOAL, J., COELHO, M., CAMPOS, M., GROSSO, M.
& LOUREIRO, M. (2001). Programa de Português, 10.o , 11.o e 12.o anos
– Cursos Científico-Humanísticos e Cursos Tecnológicos. ME: DES.

Obras de referência literária


AGUIAR E SILVA, V. (2010). As Humanidades, os Estudos Culturais,
o Ensino da Literatura e a Política da Língua Portuguesa. Coimbra:
Almedina.
BARRETO, L. F. (1989). Portugal, mensageiro do mundo renascen-
tista. Lisboa: Quetzal Editores.
CAMÕES, L. (2009). Os Lusíadas – edição escolar. Porto: Areal
editores.
Peregrinação de Fernão Mendes Pinto no sistema de
ensino português 287

GOMES DE BRITO, B. (1972). História Trágico-Marítima. Lisboa:


Editorial Verbo.
PINTO, F. M. (2001). Peregrinação. Lisboa: Relógio D’Água Editores.
PINTO-CORREIA, J. D. (1999). “A construção do colectivo na Pere-
grinação: percursos e significados”. In SEIXO, M. A. & ZURBACH, C.
(org.). O discurso literário da Peregrinação. Lisboa: Ed. Cosmos, pp.
171-187.
SARAIVA, A. J. (1995). Para a história da cultura em Portugal – vol.
II. Lisboa: Gradiva, (7.a ed.).
SARAIVA, A. & LOPES, O. (1975). História da Literatura Portuguesa.
Porto: Porto Editora (13a ed.).
SARAIVA, A. (2010). “A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto revi-
sitada – a sua teoria moderna da viagem”. In Cem – Cultura, Espaço &
Memória. N.o 1. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
pp. 129-142.

Páginas de referência online


http://www.citi.pt/ciberforma/ana_paulos/canto_v/canto_v.html

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Por Este Rio Acima ou a Peregrinação revisitada

Sara Vitorino Fernandez

CLEPUL – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias

Resumo: O álbum Por Este Rio Acima, de Fausto Bordalo Dias, editado em
1982, mais do que uma homenagem ao texto de Fernão Mendes Pinto, apresenta-
se como uma revisitação e uma reinterpretação da Peregrinação.
Fausto Bordalo Dias apela ao valor da tradição popular portuguesa, recor-
rendo aos ritmos nacionais misturando-os com cadências de influência oriental e
africana, o que resulta numa originalidade que consagrou o trabalho do músico.
Fausto recorre ao texto da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto como
inspiração linguística e temática. Num espírito de revisitação e reinterpretação
e respeitando o fio narrativo do texto literário, o músico expressa o tom disfórico
das aventuras de Fernão Mendes Pinto.

Palavras-chave: Peregrinação; Por este rio acima; Revisitação; Reinterpre-


tação; Metaficção Historiográfica.

O tema da viagem é algo recorrente na Literatura Portuguesa. A


influência social do movimento do Descobrimentos e da Diáspora portu-
guesa leva à proliferação de textos que narram o percurso de aventureiros
e o encontro com novas realidades, fazendo ressaltar o confronto e o es-
tranhamento. No entanto, a temática da viagem, ao longo da História da
Literatura, transfigura-se e deixa de ser apenas um rol de acontecimen-
tos mais ou menos felizes ou a descrição literal da passagem por terras
estranhas. A viagem ganha contornos filosóficos e torna-se numa reflexão
290 Sara Vitorino Fernandez

sobre o percurso vivencial do Homem e sobre o próprio género literário.


Através da narração do caminho da personagem, o autor parece apresen-
tar a trajetória da criação do texto literário, anunciando uma visão própria
sobre o estatuto da Literatura.
A partir do final dos anos 60 do século XX torna-se usual o uso
subversivo e paródico de temáticas literárias canónicas. Esta acção de
reinterpretação não pretende ser uma crítica a cânones anteriores, mas
sim, uma revisitação lúcida de temáticas e formas e uma reflexão sobre
as fronteiras e as limitações do texto literário. A problematização dos
limites do texto e dos géneros literários leva à questão da influência que
a obra literária pode exercer em outros discursos artísticos. A relação
entre a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, obra publicada em 1614,
e o álbum Por este rio acima, da autoria de Fausto Bordalo Dias, lançado
em 1982, mostra uma relação de influência, de revisitação e de reinter-
pretação do texto literário. Esta relação entre as duas obras é exemplo
também de um uso paródico de uma obra literária para composição de um
discurso musical e poético, ultrapassando as fronteiras da Literatura (cf.
MARINHO, 1999; REAL, 2001; REAL, 2012).
Aos dias de hoje Fausto Bordalo Dias é um dos artistas mais res-
peitados no panorama musical português. Identificado como cantor de
intervenção até ao final dos anos 70, Fausto tratou muito abertamente a
temática social e de luta conta a Ditadura. No final dos anos 70, aca-
bada a Ditadura e implantada a Democracia, outras questões começam
a surgir no panorama social português. A abertura da sociedade e da
economia portuguesas ao contexto europeu começa a levantar questões
de identidade numa procura de preservação cultural. Em 1979, Fausto
lança Histórias de Viageiros, que marca uma nova fase temática na obra
do músico. Perante a perspectiva de uma alienação de identidade, a reac-
ção é um tratamento de elementos que definem o que é “ser português”.
Fausto Bordalo Dias começa, nesta nova fase, a tratar a temática dos
Descobrimentos e da Diáspora portuguesa. Em 1982 lança, através da
editora Triângulo, Por este rio acima, a obra que lhe traz a consagra-
ção no cenário artístico nacional. Com arranjos, orquestrações, direcção
musical e produção de Eduardo Paes Mamede, Por este rio acima é o ca-
samento perfeito entre a tradição da música portuguesa e a modernidade
de recursos. A inclusão de ritmos tradicionais portugueses – a chula na

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Por Este Rio Acima ou a Peregrinação revisitada 291

faixa “O barco vai de saída”, o corridinho na faixa “A voar por cima das
águas” e do fado castiço de Lisboa na faixa “Olha o fado” – alia-se ao
uso de instrumentos que recriam sonoridades orientais. Como exemplo
temos o solo de viola acústica na faixa “Porque não me vês”, que pretende
recriar o som da cítara indiana e imprime um ritmo quase hipnótico. Esta
fusão de sonoridades leva a um produto final pleno de originalidade e que
pretende evidenciar a miscelânea cultural que caracterizava a época de
Fernão Mendes Pinto. É de salientar a presença de músicos como Pedro
Caldeira Cabral, um dos melhores intérpretes de guitarra portuguesa da
actualidade, e de Júlio Pereira, que se dedica ao estudo de instrumentos
de corda de cariz mais tradicional.
Como autor das letras deste álbum, Fausto recorre ao texto da Pere-
grinação de Fernão Mendes Pinto como inspiração linguística e temática.
Saliente-se que Por este rio acima tem como subtítulo As viagens de Fer-
não Mendes Pinto, o que denuncia claramente a influência do texto de
1614 na obra musical. Num espírito de revisitação e reinterpretação do
texto literário, o músico expressa o tom disfórico das aventuras do autor
da Peregrinação. As temáticas da vida marítima e dos perigos do mar,
da guerra e da religião misturam-se com as múltiplas facetas da natureza
humana, seja através da expressão do medo, da saudade, da resignação
ou da confissão desiludida do erro vivencial. Através do uso de expressões
retiradas directamente do texto da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto,
Fausto procura recriar um ambiente total para que não haja demasiado
estranhamento por parte do ouvinte/leitor, o que indicia o propósito final
do músico de não se afastar da obra literária que o inspirou. A existência
no encarte do álbum de um “Diário de Viagem”, constituído por pequenos
textos cujas frases são retiradas de capítulos avulsos da Peregrinação e
que servem de inspiração e guia a algumas faixas é também uma das mar-
cas que denuncia o recurso constante ao texto literário de Fernão Mendes
Pinto.
Apesar de considerar o álbum como um todo na questão da revisitação
do texto literário, quero destacar duas faixas que são, para mim, importan-
tes quando se quer caracterizar a figura de Fernão Mendes Pinto segundo
a obra musical de Fausto. A faixa “Olha o fado”, com o ritmo gingão do
fado castiço lisboeta, procura a caracterização do navegador aventureiro,

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292 Sara Vitorino Fernandez

mas acaba por captar a essência do “ser português” que se mantém ao


longo de séculos. Passo a citar o texto de Fausto:

“de ferro e puro sangue


o que me corre nas veias
nasci da paixão temporal
do parto dos vendavais
cresço no fragor da luta
numa força bruta
p’ra além dos mortais” (DIAS, 1984)

Esta imagem de força e de poder, que recorre a referências da natureza


que não se pode domar, contrasta com um exacerbado sentimento, uma
intensa emotividade e uma certa inquietude. Cito de novo Fausto:

“mas tenho muitas saudades


certas penas e desejos e aquela louca ansiedade
como um pecado
meu amor se te não vejo” (DIAS, 1984)

A peculiar natureza de contrastes é denunciada por um certo mani-


queísmo de valores que, a meu ver, enriquece a personagem e a torna
mais humana. Cito uma vez mais:

“ora é tão vingativo


Ora é tão paciente
Amanhã é comedor
Hoje abstinente
Mentiroso alcoviteiro
Doce e verdadeiro
Uma vez conquistador
Outra vez vencido
amanhã é navegante
hoje é desvalido
sensual aventureiro
doido e bandoleiro” (DIAS, 1984)

Torna-se muito interessante esta personalidade capaz das maiores va-


lentias, mas que é também capaz de se perder em questões tão importantes

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Por Este Rio Acima ou a Peregrinação revisitada 293

como saber qual das famílias é a mais antiga e honrada: se os Fonse-


cas, se os Madureiras. Ao mesmo tempo que se afirmam “albuquerques”,
“leões”, “lobos”, rematam com o maior desdém, e cito:

“na verdade o que vos dói


É que não queremos ser heróis” (DIAS, 1984)

A última faixa do álbum, além de ser a mais longa, é também aquela


que expressa mais conscientemente a ideia da Peregrinação como confis-
são, como memória e como disforia. A faixa repete o verso “Quando às
vezes ponho diante dos olhos. . . ” que remete directamente para a primeira
frase da Peregrinação: “Quando às vezes ponho diante dos olhos os mui-
tos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram. . . ” (PINTO,
1614). A partir deste verso inicia-se um diálogo em quatro partes entre a
personagem e um coro. A personagem, que identifico com Fernão Mendes
Pinto, recorda as tribulações da viagem num tom de angústia flagelante,
recorda os perigos da natureza exótica e os horrores das batalhas e dos
naufrágios. Cito excertos aleatórios da mesma faixa:

“quando às vezes ponho diante dos olhos


A lusitana viagem
Medonha
que eu dobrei
os tormentos passados
e os fados que chorei
arde o corpo em oração
entre pecado e perdão
agonia o coração
e arde o corpo
...............
Quando às vezes ponho diante dos olhos
Cobras
Lagartos
Mostrengos
Horríveis
Sarnentos
O delírio dos rios
Das selvas ardentes
Da febre a queimar

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294 Sara Vitorino Fernandez

...............
Quando às vezes ponho diante dos olhos
As guerras
assaltos e gritas
o sangue a jorrar
a alagar
os turcos
senhora bendita
lançados ao mar
a afundar” (DIAS, 1984)

Por sua vez, o coro, em crescendo, actua como a faceta eufórica de


Fernão, interpretando o seu carácter aventureiro e ardiloso, incentivando
e justificando acções pouco recomendáveis. Passo a citar:

“Dispara o roqueiro
Amordaça o escravo
És cruzado és um bravo
Espia como mercador
Assalta como ladrão
Olha o rombo na quilha
Empunha o machado
Olha a tua quadrilha
Aguenta safado
............
Pelas pernas abaixo
Vai o pobre de mim
De Quedá a Samatra
De Malaca a Pequim
Fugindo a sete pés
Quando estoira o convés
Perde-se o ouro o provento
A prata fina a saúde
Mas glória santa me ajude
a dar graças a Deus
misericórdia infinita
pois eu não me lamento
se ao fim de tantos tormentos
escapei deles com vida
o Senhor seja louvado

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Por Este Rio Acima ou a Peregrinação revisitada 295

santos apostolados
viva eu entre os mortais
pois não mereci mais
por meus grandes pecados.” (DIAS, 1984)

Para finalizar lembro que Por Este Rio Acima se apresenta como um
álbum de temática e narrativa coesas, fazendo quase recordar a tendência
das óperas-rock dos anos 60 e 70 do século XX. O alinhamento das
faixas respeita o fio narrativo do texto da Peregrinação, tornando possível
um projecto de encenação em palco apenas usando as faixas, sem serem
necessários diálogos intermédios.
Acredito que através de um extraordinário exercício musical de revi-
sitação e reinterpretação, Fausto conseguiu dar a conhecer um dos mais
polémicos e importantes textos da Literatura Portuguesa.

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Bibliografia

BEBIANO, Rui, 2000, “Sobre a história como poética” in Revista de


História das Ideias, volume 21, Instituto de História e Teoria das Ideias
– Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra.
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FALCON, Francisco J. Calazans, 2000, “História e representação” in
Revista de História das Ideias, volume 21, Instituto de História e Teoria
das Ideias – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra.
HUTCHEON, Linda, 1996, A Poetics of Postmodernism. History,
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MARINHO, Maria de Fátima, 1999, O Romance Histórico em Portu-
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PINTO, Fernão Mendes, 1614, Peregrinaçam de Fernam Mendez Pin-
to em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouvio
no reyno da China, no da Tartaria, no do Sornau, que vulgarmente se
chama Sião, no do Calaminhan, no de Pegù, no de Martavão, & em outros
muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do
Occidente ha muyto pouca ou nenhu[m]a noticia, Pedro Crasbeeck, Lisboa.
Disponível online: http://www.purl.pt/82 (Consultado para verificação em
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REAL, Miguel, 2001, Geração de 90. Romance e Sociedade no Por-
tugal Contemporâneo, Campo das Letras, Porto.
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Lisboa
Por Este Rio Acima ou a Peregrinação revisitada 297

S. A., 2011, “A nossa peregrinação é a de Fausto Bordalo Dias” in


Jornal i. Disponível online: http://www.ionline.pt/artigos/boa-vida/nossa-
peregrinacao-fausto-bordalo-dias/pag/-1 (Consultado para verificação em
08-01-2015).
TELES, Viriato, s.d., “Por favor, leiam estes discos”. Disponível online
em: http://www.attambur.com/Noticias/20021t/Fausto_leiam_estes_disco
s.htm (Consultado para verificação em 08-01-2015).

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A sede de conhecer
Uma revisão da herança literária das viagens no
Diário de Miguel Torga

Lenka Kroupová

Universidade de Masaryk, Brno

Resumo: O artigo visa analisar o legado da literatura de viagens e, especí-


ficamente de Fernão Mendes Pinto e da sua obra prima, Peregrinação, na obra
diarística de Miguel Torga e salientar a importância da viagem para a formação
e compreensão da consciência da pátria de Torga. A estrutura reflete dois ob-
jetivos principais: por um lado, pretendemos contextualizar, muito brevemente,
a obra diarística de Miguel Torga; e essencialmente, descrever e exemplificar a
grande paixão por explorar sítios e grandezas presentes e passadas, utilizando
como referência precisamente o Diário.

Palavras-chave: Miguel Torga; diário; viagens; Mendes Pinto; Peregrinação

DESCOBERTA

Coração português que não descansas:


Só a fé das crianças
Exige a lua. . .
Guarda essa fé, que é a tua,
300 Lenka Kroupová

Mas repara nos bens


Que deixas no caminho da aventura.
Lusitano almocreve, olha o que tens:
Montanha e mar, o berço e a sepultura!

Miguel Torga

I. Para contribuir à homenagem da excelente obra de Mendes Pinto,


escolhemos como tema da sugerida comunicação a repercussão da litera-
tura de viagens na obra diarística de Miguel Torga.
A viagem nas suas várias formas, é sem dúvida uma das temáticas e
motivos fundamentais de toda a literatura. Veio manifestar-se desde a
Antiguidade Clássica e mantém a sua vitalidade até aos nossos dias, o
que evidencia uma imensa sede da novidade, diversidade e atração pelo
outro e inexplorado que comparte a humanidade. Durante o século XX
adquire a vontade de viajar, conhecer e explorar adquire uma lufada de ar
fresco com novos nomes, contribuindo para o enriquecimento de um corpus
da literatura de viagens nos séculos XX e XXI.
Um autor que talvez não surja como a primeira pessoa de referência na
literatura de viagens do século XX, é Miguel Torga, conhecido no primeiro
lugar como poeta e contista. Contudo, Torga dedicou uma parte impor-
tante da sua carreira criativa à obra diarística, intitulada o Diário, onde
publica as suas profundas reflexões e impressões da mais diversa índole.
Esta obra é produto de 61 anos de trabalho consistente que abarca um
lapso temporal extraordinário, percorrendo desde a juventude e madurez,
até a velhice do autor. Nas páginas desta obra sumamente interessante e
heterogénea, o escritor perspicaz discorre sobre a sua vida e os aconteci-
mentos literários, culturais, políticos e sociais que marcaram a sua época.
Além disso, seria uma pena deixar à parte o imenso potencial das refle-
xões tiradas durante as frequentes viagens que este escritor e viajante
incessante e incansável realizou na sua vida praticamente pela Europa
inteira, América do Sul e África. Nesta linha, destaca-se a corrente que
Torga dedicou às reflexões sobre o antigo Portugal Ultramarino, a he-
rança literária dos Descobrimentos incluindo a de Mendes Pinto e aos

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A sede de conhecer — Uma revisão da herança literária das
viagens no Diário de Miguel Torga 301

sentimentos desencontrados que o poeta sentiu ante a passada grandeza


da sua pátria e o incerto presente.
O objetivo da nossa comunicação será, por tanto, analisar o legado da
literatura das viagens e da era dos Descobrimentos na obra diarística de
Miguel Torga e salientar a sua importância para a formação e compreen-
são da consciência da pátria de Torga, amante e crítico sagaz da terra
portuguesa. A estrutura da comunicação reflete dois objetivos principais:
por um lado, pretendemos contextualizar, muito brevemente, a obra diarís-
tica de Miguel Torga; e essencialmente, descrever e exemplificar a grande
paixão por explorar sítios e grandezas presentes e passadas, utilizando
como referência precisamente o Diário.

II. A obra literária de Miguel Torga começou em 1928 com a publi-


cação do seu primeiro livro de versos, Ansiedade. Em total, é autor duma
obra vasta, repartida por diversos géneros: poesia, ficção narrativa, teatro,
ensaio e produção autobiográfica. Neste percurso literário destacam-se o
livro com rasgos significativamente autobiográficos, A Criação do Mundo,
e o Diário. O Diário, com XVI volumes, começado em 1932 e concluído
com a última entrada em 1993 com o poema “Réquiem por mim”, é uma
obra sumamente interessante, na qual o escritor discorre sobre a sua vida
e os acontecimentos literários, culturais, políticos e sociais que marcaram
a sua era. Quanto ao género, Diário tem um carácter multifacetado, de
marcado cunho poético, visto que contém inseridos numerosos poemas que
saíram publicados em coletâneas independentes mas também os inéditos,
e vários contos e textos ensaísticos intercalados. Cada entrada está no-
tada temporal e geograficamente, permitindo fazer-mos uma ideia precisa
do percurso percorrido pelo escritor.
Torga é conhecido pelo seu amor por Portugal, especialmente pela
sua terra natal, admiração pelos portugueses, o campo, mar, montanhas e
florestas. Por outro lado, também é um crítico ágil que monitora cuida-
dosamente a sociedade em que vive e não tem medo de apontar às suas
deficiências. Trás-os-Montes, é certamente o seu amor privilegiado e o
lugar de visitas absolutamente favorito, apesar de estar consciente dos

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302 Lenka Kroupová

lados negativos dos que advertia durante a sua juventude, relacionadas


com as condições precárias de vida dos camponeses transmontanos1 .
Como refere no seu estudo Paulo Carvalho (apud Choupina, 2012:
47), 30 % das viagens realizadas para além de Portugal ocupam Espanha
e as regiões raianas, contudo Torga fez viagens a cerca de duas deze-
nas de países em Europa, Américas, África e Asia e continuou a viajar
até uma idade avançada. Como Torga reconheceu no Diário, sente uma
necessidade de viajar constantemente que lhe envia dum canto para o
outro. Através do percurso adquire o sentido de formação e consciência
da pátria.
“Fundão, Serra de Gardunha, 24 de Fevereiro de 1945 – Pareço um
doido a correr esta pátria. Do Gerês a Monchique, e do Caldeirão
a Bornes. E sem saber ao certo para quê! (. . . ) Talvez sem eu
ter consciência disso, cultivo-me assim pelos olhos e pelos pés, no
alfabetismo íntimo das cousas; expressivas na sua luz, no seu clima
e no seu paralelo particular. A terra não é igual em lado nenhum
(. . . ).” (Torga, 1999: 303)

Aliás, é de salientar que as viagens de Torga nunca se limitam a um


mero deslocamento físico; servem, ante tudo, como estímulos para realizar
uma viagem intelectual e emocional, cujos incentivos o autor retrabalha
na sua obra artística. De forma semelhante funcionam os relatos e as
narrativas de viagens cuja leitura foi uma grande fonte de inspiração para
o autor.
A partir do século XV, com a chegada de Vasco da Gama às Índias,
abre-se uma nova era em Portugal, comummente conhecida como das
grandes descobertas. Como observa Arruda Ferreira Gomes (2007: 81),
com o propósito de encontrar novas realidades, fortuna ou sujeitos para
serem evangelizados, aventureiros, mercadores e missionários embarcam
numas longas viagens em busca do Outro Mundo. Ao seu regresso, tra-
ziam ou escreviam registros de tudo o que viram e ouviram nas terras
1
Compare-se, por exemplo: S. Martinho de Anta, 17 de Abril de 1938 – Este Trás-
-os-Montes da minha alma. Atravessa-se o Marão, e entra-se logo no paraíso!
S. Martinho de Anta, 8 de Julho de 1946 – As minhas raízes começaram a secar.
Minha mãe está no fim, meu pai ensurdece, a beleza das giestas floridas não resiste
ao espectáculo lancinante de ver crianças famintas a pastar ervas como animais. Só o
Marão, ao longe, conserva a majestade de sempre e a sua pureza habitual de deus. (. . . )”

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A sede de conhecer — Uma revisão da herança literária das
viagens no Diário de Miguel Torga 303

desconhecidas dando lugar a uma narrativa especifica onde cabiam des-


crições, roteiros e diários de bordo relativos às navegação realizadas,
criados frequentemente a pedido de reis ou religiosos.
Para Torga, no século XX, a viagem e a época dos descobrimentos
exerce semelhante fascínio que aquele sentido séculos atrás. No seu
livro de ensaios e conferências, Traço de União – Temas portugueses e
brasileiros, refere sobre a figura de Mendes Pinto desta maneira:

“E Fernão Mendes Pinto pode a seguir dar largas à sua penetração


de Proust aventureiro. Esse estranho Mendes Pinto que o mundo
leu com incredulidade e deslumbramento, mal o cravo, a canela e
a pimenta aguçaram o apetite dos povos, e que desgraçadamente
deixou de ler no dia em que a Índia mudou de mãos. Porque valia
a pena continuar. Nos trâmites da sua acidentada Peregrinação,
no enredo daquelas andanças, que seria bom completar com relatos
despretensiosos e anónimos da História Trágico-Marítima, tinha a
humanidade, além da mais extraordinária e penitente auto-acusação
que um povo pode fazer às injustiças do seu próprio imperialismo,
um dos documentos dolorosos do que custa progredir no espaço e
no tempo. Livro duma vida e de muitas vidas, há nele uma autenti-
cidade humana que tem a frescura duma reportagem de hoje e duma
introspecção de sempre. A agilidade e o espanto dum espectador
inteligente e sensível diante do fenómeno sempre maravilhoso e in-
quietante de civilizações em choque e de homens em acção.” (Torga,
1969: 81)

Resulta claro que a figura de Fernão Mendes Pinto é vista neste tre-
cho por Torga com marcado interesse. Mendes Pinto é descrito como
um observador ágil, inteligente e sensível e narrador duma obra “aciden-
tada”, lida com “incredulidade”, não obstante perfeitamente humana que
testemunha importantes encontros de culturas. Torga considera esta obra
como um valioso documento sobre o preço do progresso, fresco à maneira
duma reportagem atual e intemporalmente introspetiva. É esta linha in-
trospetiva que o leva a apodar Mendes Pinto do “Proust aventureiro”. Ao
mesmo tempo é de ressaltar que Torga, leitor apaixonado, lamenta que
atualmente esta literatura encontra poucos leitores.
Os descobridores dos séculos XV e XVI são figuras de frequente refe-
rência também nas suas entradas e das entradas diarísticas, pois nota-se

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304 Lenka Kroupová

distintamente que a literatura de viagens medieval está muto valorada por


ele. As impressões das viagens realizadas Torga reúne ora no Diário, ora
em Portugal, um livro de caráter ensaístico sobre as individuais terras de
Portugal, que Fidalgo Mateus chama por “roteiro literário” (2009: 235)
pelas terras do país. Ao falar sobre Sagres, Torga em Portugal evoca e
enumera os vários heróis das Descobertas, como por exemplo Pedro Nu-
nes, D. João de Castro, Diogo do Couto ou Pero Vaz de Caminha. Veja-se
como exemplo:

“Lisboa, 10 de Maio de 1983 – XVII exposição “Os Descobrimentos


Portugueses e a Europa do Renascimento”. Já não sei quantas
horas de pasmo e de maceração. Feitos sem par ilustrados com
documentos nossos alienados ao estrangeiro, e ali presentes por
empréstimo. As raras excepções eram como gotas de bálsamo que
aliviaram momentaneamente uma dor passo a passo avivada. Diante
da carta de Pêro Vaz de Caminha até me vieram as lágrimas aos
olhos. (. . . ) Saber que grande parte daquele acervo de provas de
um passado glorioso, que deveria ser o espelho diário de um orgulho
legítimo, pertencia a outros, que o guardavam avaramente, como que
mais ciosos do que nós da nossa própria identidade.” (Torga, op.
cit., p. 1481)

Torga expressa a sua grande admiração para com o património lite-


rário dos Descobrimentos mas lamenta vivamente que estas “provas de
um passado glorioso”, como ele diz, estejam em possessão de outras na-
ções que se orgulham com elas em vez dos portugueses que pouco sabem
apreciá-los, o que entristece e perturba o poeta.
Por ocasião de receber o Prémio Figura do Ano, dos corresponden-
tes da imprensa estrangeira, deu uma palestra cuja grande parte foca a
natureza andarilha dos portugueses e as alusões aos Descobrimentos.

“Estoril, 8 de Junho de 1992 – (. . . ) Conheceis, certamente, a nossa


História, e como desde os primórdios, somos uma pátria de andari-
lhos e aventureiros incansáveis, atentos à natureza, temperamento
e costumes do povos alheios visitados. E sabeis também que desse
convívio aturado e compreensivo resultou uma literatura singular,
ecuménica, de cronistas, memorialista e epistológrafos, alguns ge-
niais como Pero Vaz de Caminha (. . . ), ou Camões (. . . ), ou ainda

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A sede de conhecer — Uma revisão da herança literária das
viagens no Diário de Miguel Torga 305

Fernão Mendes Pinto, que, com uma acuidade nunca superada, des-
vendou para os olhos incrédulos dos contemporâneos os mistérios
do Oriente brumoso. (. . . )
Não podéis, infelizmente, ter entre vós nem a sombra desses grandes
correspondentes que vos precederam no tempo. Mas apresento-os
modestamente, como seu discípulo aplicado. Corri também, desde a
meninice, as sete partidas. Presenciei, alanceado, cenas cruentas de
guerra, contemplei, atónito e envergonhado, os destroços de civiliza-
ções criminosamente destruídas, ouvi vociferações de energúmenos
a anunciar a multidões fanatizadas o aniquilamento de colectivida-
des inteiras, comunguei com naturais doutras raças e culturas no
mesmo sonho dum futuro próximo de harmonia humana. E dei, com
engenho que pude e algum risco, um testemunho empenhado mas
descomprometido dessas andanças.
Nenhum acontecimento significativo sucedido ao longo de quase um
século me deixou indiferente e sem um comentário alertador. Fui
uma espécie de homem da telegrafia no barco acosado pelas ondas
da realidade coetânea a lançar SOSs da aflição. (. . . )” (ibid., p.
1743)

Durante a sua palestra, Torga apresenta os portugueses como um povo


de aventureiros por natureza e rememora o grande período da produção
literária dos Descobrimentos. Apresenta-se, também, como um discípulo
aplicados deles visto que também testemunhou guerras e diferentes con-
flitos, destroços de civilizações e encontros com outras raças e culturas
como os grandes escritores que menciona, Mendes Pinto, Vaz de Caminha
e Camões.
Também aponta que naquela altura não consegue ver figuras de seme-
lhante destaque como as mencionadas. Por tanto, com motivos da entrada
no Mercado Comum, e preocupado com o contraste entre o agora e o cé-
lebre passado, Torga exprime esperanças de que, no futuro a grandeza
possa repetir-se e chegar a escrever-se uma nova Peregrinação.

“Coimbra, 28 de Março de 1985 – (. . . ) E que um dia, depois de


sedimentadas as emoções da aventura, nos possamos orgulhar de
ter estado, idênticos a nós próprios, à altura do desafio, e seja-
mos capazes de escrever, com o mesmo gênio de outrora, uma nova
Peregrinação, desta vez portas a dentro, igualmente inverosímil e
verdadeira.” (ibid., p. 1540)

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306 Lenka Kroupová

Fidalgo Mateus afirma, com relação a Portugal, que Miguel Torga


assume a forma de “roteiro literário visto tratar-se de uma viagem do
escritor-viajante pela pátria, onde este dá a indicação ao turista / viajante
daquilo que deve ver (paisagens, monumentos, pessoas, tradições, usos e
costumes) e como deve fazê-lo (método de prospeção), seguindo para isso
mormente o itinerário de escritores, artistas e heróis ligados à formação
de Portugal e aos Descobrimentos portugueses” (Mateus, 2007: 108).
Achamos que uma semelhante rota pode ser identificada em numerosas
entradas do Diário como neste caso:
“Chaves, 5 de Setembro de 1984 – Subida esforçada ao castelo de
Monforte. De vez em quando é conveniente verificar se os marcos
de Portugal estão no sítio.” (ibid., p. 1519)

Tanto como Mendes Pinto oferece na sua obra prima um rico desenho
etnográfico, antropológico e sociológico dos lugares visitados, às vezes
hiperbolizados ou satirizados, as entradas realizadas durante as viagens
de Torga ultrapassam as meras descrições do lugares e a voz do narrador
comenta os diferentes ritos religiosos, costumes e tradições dos lugares
visitados, por vezes com um notável distanciamento.
“Senhora da Pena, Mouçós, 13 de Setembro de 1981 – O povo em
festa. Meio Trás-os-Montes a dar largas à vitalidade da alma e
do corpo numa romaria onde a fé e a força se desmedem, uma de
joelhos a suplicar e agradecer, e a outra erecta, a emborcar copos
de vinho e sopesar andores monumentais que deslizam seguros por
cordas e lembram veleiros a navegar num mar de gente. O que
eu daria para, ao menos por alguns momentos, ser capaz de tanta
devoção, tanto brio, tanta alegria, tanto desbordamento! Para me
não sentir envergonhado de, em vez de participar pletoricamente
neste paroxismo gregário de comunhão, delírio e abandono, andar
aqui a registá-lo como um intruso no segredo da retina.” (ibid., p.
1450)

Com efeito, resta ressaltar mais um rasgo da obra torguiana. Numa


mistura entre a coragem e o desejo insaciável dos homens por descobrir
novas terras e culturas, que Torga também comparte, e a tendência à
introspeção e profunda reflexão, situa✲se o que Manuel Alegre chama a
necessidade de “achar as Índias de dentro”.

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A sede de conhecer — Uma revisão da herança literária das
viagens no Diário de Miguel Torga 307

“Nos diferentes exílios e nas várias errâncias dos portugueses, des-


de as navegações até a minha geração, houve talvez um traço co-
mum, que foi o da redescoberta de Portugal a partir do contacto
com outras realidades. Miguel Torga, que também falou na neces-
sidade de “achar as Índias de dentro”, disse-o melhor que ninguém.
“Compreender”, escreveu ele, “não é procurar no que nos é estranho
a nossa projecção ou a projecção dos nossos desejos. É explicar o
que se nos opõe, valorizar o que até aí não tinha valor dentro de
nós. O diverso, o inesperado, o antagónico, é que são a pedra de
toque dum acto de entendimento.” (Alegre, 2002: 35)

Esta brilhante metáfora expressa a vontade atemporal de atingir com-


preensão a si mesmo e aos outros, precisamente através de encontros com
diferenças e opostos, já que estes podem chegar a constituir umas expe-
riências reveladoras ora sobre nós mesmos, ora desde o ponto de vista
mais amplo da nossa condição humana.

III. Para concluir, resta dizer que o roteiro diarístico de Miguel Torga
difere daqueles escritos na época dos Descobrimentos, principalmente,
como observa Mateus Fidalgo, “pelos métodos de escrita, abordagem e
apreensão da realidade, mas não deixa, contudo, de receber influências
do género claramente visto de Quinhentos, quando “descobre” as regiões
de Portugal e além das fronteiras”. É através da deslocação física, em
primeiro lugar e resumir as impressões no papel, pela notável paixão
por viajar e a grande sede de conhecer, ora gente, ora modos de viver,
e em caso de Torga, de evocar frequentemente o passado glorioso dos
heróis aventureiros e literários das Descobertas portuguesas. A literatura
dos Descobrimentos é um ponto de referência frequente nas entradas
diarísticas de Torga e numa delas, proclama-se ser um “discípulos” deles.
Como observa Álvaro Saraiva, os ecos da literatura dos Descobrimen-
tos e mais sobretudo de Mendes Pinto já por si constituem uma aventura
apaixonante que certamente ainda tem muito por revelar. Saraiva segue:

“Se hoje contemplamos a bibliografia sobre a Peregrinação, pode-


mos encontrar áreas privilegiadas, e áreas claramente deficitárias,
como a dos estudos sobre a formação cultural de Fernão Mendes
Pinto, a dos estudos estilísticos e a dos estudos intertextuais. Mau
grado contribuições como as de Aníbal Pinto de Castro, ainda está

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308 Lenka Kroupová

por fazer o estudo sistemático dos autores lidos por Fernão Mendes
Pinto, ou dos que dele beneficiaram, alguns com nomes tão sonantes
como os de Jonathan Swift e Guimarães Rosa”. (2010: 135)

Sem dúvida, entre os recetores da influência do legado de Mendes


Pinto pertence, com vimos, também Miguel Torga.

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Bibliografia

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BAPTISTA, Joel Machado (2010). “A gemelaridade entre a reportagem
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Publicações Dom Quixote, 2.a edição integral.
TORGA, Miguel (1999). Diário Vols. IX a XVI (1964-1993). Coimbra:
Publicações Dom Quixote, 2.a edição integral.
TORGA, Miguel (1955). Traço de União – Temas portugueses e bra-
sileiros. Coimbra: Coimbra Editora.

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Agustina Bessa-Luís:
narrativa de viagens e diálogos da lusofonia

Maria do Carmo Cardoso Mendes

Universidade do Minho

Resumo: As narrativas de viagens ocupam um lugar proeminente na obra


de Agustina Bessa-Luís. Embaixada a Calígula (1961) e Breviário do Brasil
(1989) permitem conhecer a visão pormenorizada de Agustina sobre países e re-
lações interculturais. Este ensaio tem como principais propósitos: 1o ) revisitar,
em Breviário do Brasil, momentos que ligaram a História de Portugal e deste
país sul-americano desde o ano de 1500; 2o ) sublinhar de que modo Agustina
questiona estereótipos associados à representação cultural do Outro; 3o ) assi-
nalar o contributo da produção de Agustina Bessa-Luís no âmbito mais vasto dos
Estudos Culturais, onde as narrativas de viagens são textos fundamentais, pois
permitem ao mesmo tempo uma interrogação sobre as imagens do estrangeiro e
uma análise da identidade nacional.

Palavras-chave: Bessa-Luís (Agustina); viagens; Estudos Culturais

Pressupostos da viagem

Escrito em 1989 e publicado em 1991, Breviário do Brasil é um diário


de anotações de viagem por vários espaços deste território sul-americano
312 Maria do Carmo Cardoso Mendes

que Agustina percorre não para neles encontrar a mimese de Portugal,


mas um espaço outro com os seus mistérios e mitos. A própria escritora
confessa que “não fiz esta viagem ao Brasil para fotografar tipos e pai-
sagens e divagar sobre a História comum dos dois países” (Bessa-Luís,
1991: 53). A recusa da fotografia enquanto representação fiel da rea-
lidade é acompanhada pela busca da identidade “a que cada país tem
direito” (Ibidem). Esta observação adquire especial relevância numa in-
terpretação do próprio conceito de viagem: ele supõe, como sugere Alain
de Botton em A arte de viajar, uma disponibilidade para aceitar a novi-
dade e um esforço, por vezes pouco compensador, para não procurar no
lugar visitado um símile do lugar de origem.
Já em Embaixada a Calígula (1961), também uma narrativa de viagens,
desta vez por países europeus, Agustina sustentava que a viagem envolve
uma relação de afeto desinteressado e espontâneo com lugares e gentes
visitados:

A viagem é a intimidade do importuno. Tudo o que não preferi-


mos em quaisquer outras circunstâncias de fixação prolongada –
uma paisagem, as criaturas, um acontecimento – é-nos oferecido
para que o tomemos com esse amor espontâneo que não se pode
evitar por que vive da surpresa em que se comprometeu. (. . . ) a
viagem, com o seu mistério e a sua intimação à consciência, com
as suas alegrias que nascem inexplicavelmente dum golpe de vento
na poeira sobre uma ponte, duma sensação de vida isolada e pro-
funda quando atravessamos uma terra estrangeira – ah, essa viagem
poucos a podem experimentar!” (Idem, 2009: 11-12).

Encontramos aqui os pressupostos da viagem em Agustina: ela envolve


a intimidade, a disponibilidade emocional para a surpresa, a descoberta
daquilo que não faz parte de um típico roteiro turístico.
Embaixada a Calígula e Breviário do Brasil inscrevem-se numa longa
tradição de literatura de viagens que, em Portugal, remonta aos Desco-
brimentos1 . A partir daí, a narrativa de viagens é não só a construção
1
Cf. Álvaro Manuel Machado (1996: 566-567). Importantes narrativas de viagens
na literatura portuguesa das Descobertas são as crónicas de Gomes Eanes de Zurara,
a Carta de Achamento do Brasil de Pêro Vaz de Caminha, e a Peregrinação de Fernão
Mendes Pinto.

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Agustina Bessa-Luís: narrativa de viagens e diálogos da lusofonia 313

de relatos sobre outros lugares e outros povos, mas também a criação


da própria imagem do escritor que se torna simultaneamente cronista,
personagem e inventor de um universo imaginário.
Em Embaixada a Calígula, Agustina
Privilegia a descoberta do Outro e da sua cultura através da exal-
tação do espírito do lugar, bem como da reflexão sobre aquilo que,
desde o século XIX, se costuma chamar ‘psicologia dos povos’, aqui
alicerçada nas paixões individuais e coletivas, nos sobressaltos da
história europeia desde os seus fundamentos greco-latinos. Logo
no princípio do livro, Agustina nota que a verdadeira viagem não é
a turística, mas sim a iniciática (Machado, 2011: 90).

Se em Embaixada a Calígula Agustina faz uma viagem que congrega


representação mítica da natureza, contacto com lugares, linguagens, po-
vos e modos de vida, e revisita estética – da literatura, da pintura, da
música, da filosofia e da arquitetura europeias –, em Breviário do Bra-
sil propõe-se, como o próprio título sugere, reunir em livro “os ofícios
que os sacerdotes católicos rezam diariamente”2 . O breviário é, na de-
finição de Catherine Dumas (2002: 35), “uma compilação abreviada de
celebrações ritualizadas: o ofício divino da religião católica, o protocolo
das sessões dos tribunais ou as celebrações de amor, entre outras”. Quer
isto dizer que a viagem cultural promovida pelo Centro Nacional de Cul-
tura, na qual Agustina, com outros intelectuais, participou em 1989, se
inscreve “no tempo cíclico que toca a eternidade, ao contrário do diário
que, mesmo que retomado dia a dia, tem um começo e um fim (. . . ). Para
Agustina Bessa-Luís, o livro prolonga a utilidade muito além do fim da
viagem, através da liturgia que o fundamenta” (Ibidem).
Esta vertente religiosa do breviário é repetidamente expressa por
Agustina ao afirmar:
Escrevo este livro como se pusesse o joelho em terra no confessioná-
rio do Brasil, e contasse peripécias que são amores bem compreen-
didos. Há uma ternura imensa em correr o Brasil em simples reza,
onde não entram memórias, só uma fé tranquila (. . . ); uma viagem
como esta é um recreio baseado em exercícios espirituais, e não um
percurso à recomendação da História (Idem, 36 e 38).
2
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

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314 Maria do Carmo Cardoso Mendes

Não creio que as notas de viagem de Breviário do Brasil possam ser


interpretadas como uma peregrinação no sentido estrito do termo, envol-
vendo uma intencionalidade devota; mas a peregrinação comporta uma
outra significação e esta está presente no texto de Agustina: trata-se
já não de veicular a fé de um peregrino, mas de desvendar lugares, usos,
costumes, lendas e mitos. Nesse ato de desocultação dos mistérios de um
lugar “outro”, são questionados lugares-comuns que o espaço estrangeiro
muitas vezes suscita.
Pretendo por isso concentrar a minha reflexão em dois aspetos desta
viagem ao Brasil: o questionamento de estereótipos associados à repre-
sentação do Outro e a imagem humanizada, intimista e emotiva do Brasil
(imagem que seria impensável num simples guia turístico ou no compor-
tamento de colecionador de fotografias de um turista).

Nós e os Outros

A viagem é necessariamente um confronto com o Outro, com a noção da


alteridade. Assim a define Carl Thompson (2011: 9):

All journeys are (. . . ) a confrontation with, or more optimistically a


negotiation of, what is sometimes termed alterity; (. . . ) all travel re-
quires us to negotiate a complex and sometimes unsetting interplay
between alterity and identity, difference and similarity.3

É esta “negociação” entre alteridade e identidade, diferença e simi-


laridade que pode encontrar-se em Breviário do Brasil e que, desde as
primeiras páginas do texto, demonstra que Agustina não se mostra inte-

3
De facto, as narrativas de viagens revelam “fenómenos de alteridade na formação
complexa e frequentemente contraditória da imagem do Outro, o estrangeiro, terreno fértil
de estudos da chamada imagologia. Textos que revelam, no próprio confronto com o espaço
estrangeiro (. . . ), um princípio fundador: não há alteridade sem uma qualquer forma de
identidade que propicie, simultaneamente, a distância e a aproximação. Ou antes: a
aproximação baseada na própria distância” (Machado, 2011: 83).

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Agustina Bessa-Luís: narrativa de viagens e diálogos da lusofonia 315

ressada em construir um relato confinado ao que seria a visão de um mero


turista:

Para o turista, o que conta é o folclore, muitas vezes degradado e


reduzido à sensibilidade cosmopolita; os vestígios nobres da pre-
sença colonial vão-se apagando, e alguns, em breve tempo, serão
irrecuperável ruína.
O que vi do Brasil todos o podem ver em passeio guiado, com um
pároco de permeio e algumas senhoras abraçadas às cartilhas turís-
ticas. Mas o que eu vi além disso dá para uma síntese tão resumida,
que em dois traços cinjo o Brasil e me sobra compasso e tira-linhas.
Foi a bondade de povo prudente o que me impressionou. Um olhar
leve e quase compungido, de nos ver estranhos em terra tão imensa
(Bessa-Luís, 2012: 15 e 44).

Ver “além disso” significa ao longo desta viagem uma representação


essencialmente humanizada do Brasil. A viagem de Agustina tem um
carácter iniciático enquanto (re) descoberta de si mesma. É uma viagem
orientada pela curiosidade e por uma certa inocência, pela capacidade
de experimentar emoções e pela atenção à singularidade. A citação da
obra do escritor austríaco Stefan Zweig Brasil, país do futuro, na primeira
afirmação do Breviário, dá conta desses valores que norteiam a viagem:
“Quando se põe o pé no Rio, acode-nos a palavra de Stefan Zweig, quando
o visitou em 1936: ‘Vou poder dizer tudo sobre o Rio, sem esquecer
demasiado?”’ (Idem, 11).
Curiosidade, emoção e atenção à singularidade traduzem-se, entre
outras, nas seguintes observações:

O brasileiro é desvelado com os filhos, tem uma paciência deliciosa


para os atender (Idem, 17).
Há uma ternura imensa em correr o Brasil em simples reza (Idem,
36).
Foi a bondade do povo prudente e triste o que me impressionou.
Um olhar leve e quase compungido, de nos ver estranhos em terra
tão imensa (Idem, 44).
O Brasil não se deixa ver, nem ouvir, senão por assombração (Idem,
59).

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316 Maria do Carmo Cardoso Mendes

Eu propus-me escrever um livro carinhoso e breve que traçasse o


desenho dos meus passos aqui no Brasil. Mas este país é tão gran-
dioso e cheio de sublimes encostas para vencer (umas botânicas,
outras religiosas, outras históricas), que não me entendo com pou-
cas palavras. (. . . ) Para onde quer que me volte, tenho que crer e
admirar. Gente boa, que até Lampião tinha sentimento no coração
errante; gente de muitas almas e conversas (Idem, 61).
Eu gostaria de ter ido ao seringal Paraíso onde trabalhou Ferreira
de Castro; e ver as madeiras sangradas e as sebes de orquídeas de
que ele fala (Idem, 65).
Mas o mais importante para mim do que vi, foi esse cálido rosto
da bondade, feliz, se o surpreendemos, triste se o ignoramos (Idem,
151).

Nestas anotações de viagens, a imagem do Outro corresponde à de-


finição proposta por Daniel-Henri Pageaux (2004: 136):

A imagem é a representação de uma realidade cultural através da


qual o indivíduo ou o grupo que a elaborou (ou que a partilha, ou
que a propaga) revelam e traduzem o espaço cultural e ideológico
no qual se situam. O imaginário social a que nos referimos está
marcado – vemo-lo – por uma profunda bipolaridade: identidade
versus alteridade.

A recusa de estereótipos é perentória e merece ainda, antes da sua


verificação no texto agustiniano, uma breve reflexão apoiada de novo nas
considerações de Daniel-Henri Pageaux (2004: 140-141). Considera este
comparatista que

O estudo do estereótipo, encarado como uma forma elementar, cari-


catural mesmo da imagem, é obscurecido pela questão da falsidade
e dos seus efeitos perniciosos no plano cultural. (. . . ) Se admitirmos
que toda a cultura pode ser considerada, a dado tempo, como um
espaço de invenção, de produção e de transmissão de signos (. . . ),
o estereótipo apresenta-se não como um ‘signo’ (como uma possível
representação geradora de significações), mas como um ‘sinal’ que
remete automaticamente para uma única interpretação possível. O
estereótipo é o índice de uma comunicação unívoca, de uma cultura
em vias de bloqueio (. . . ). O estereótipo é o figurável monomorfo

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Agustina Bessa-Luís: narrativa de viagens e diálogos da lusofonia 317

e monossémico (. . . ). O estereótipo coloca, de forma implícita, uma


constante hierárquica, uma verdadeira dicotomia do mundo e das
culturas.

Agustina procura em Breviário do Brasil afastar-se de estereótipos,


o que equivale a dizer que não sustenta uma hierarquia de culturas nem
aceita uma imagem unívoca do Brasil: “Devo dizer que não me interessa
nada o que se diz em geral do Brasil e dos brasileiros. São coisas sem
nenhuma relevância; sem nenhuma importância no que se pensa que são
coisas muito bem vistas” (Bessa-Luís, 2012: 26).
Alguns lugares-comuns associados ao Brasil são tomados como índices
de ignorância sobre o país ou, nos termos de Pageaux, de uma visão
monossémica que associa o país à alegria e à festa permanentes: “Nesta
viagem, (. . . ) recorta-se um continente austero, que pouca gente vê. Só
lhe percebem o samba e o violão; mas, por dentro, o Brasil é imensamente
severo. Como a floresta e o rumor dos rios que nela abrem caminho” (Idem,
165).
Poderá assim concluir-se que Agustina encara a viagem em sentido
idêntico ao de Michel Onfray (2009: 65-66): o pensador francês alerta
para a necessidade de o viajante possuir “um olho vivo”, “um olhar mordaz”
e uma “percepção de predador”; “o viajante necessita não tanto de uma
capacidade teórica mas antes de uma aptidão para a visão”, e recusa as
imagens empobrecedoras do Outro, isto é, os clichés que o viajante muitas
vezes associa ao destino e aos povos visitados:

É sempre aprazível submeter a multiplicidade inalcançável à uni-


dade facilmente compreensível: Africanos dotados para o ritmo, Chi-
neses fanáticos pelo comércio, Asiáticos em geral com tendência
para a dissimulação, Japoneses extremamente educados, Alemães
obcecados pela ordem, Suíços famosos pela sua limpeza, Franceses
arrogantes, Ingleses egocêntricos, Espanhóis orgulhosos e fascina-
dos pela morte, Italianos fúteis, Turcos desconfiados, Canadianos
hospitaleiros, Russos com inclinação para a fatalidade, Brasileiros
hedonistas, Argentinos corroídos pelo ressentimento e pela melan-
colia e, evidentemente, Magrebinos que excelam na hipocrisia e na
delinquência (Idem, 57-58).

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318 Maria do Carmo Cardoso Mendes

A recusa de estereótipos tem como consequência a resolução do pro-


blema de “hierarquia” de culturas por eles provocado4 .

Uma pátria é um sentimento e não um punhado de razões:


imagens do Brasil

Não sendo esta a primeira viagem de Agustina ao Brasil, ela é pontuada


por referências à sua história pessoal e à da sua família neste país, con-
cretamente à figura do pai, que no Rio de Janeiro viveu durante mais de
vinte anos5 . Mas na própria biografia de Agustina o Brasil é uma pre-
sença precoce, em especial no que se reporta a leituras: aos doze anos lê
a poesia de José de Alencar; na infância conheceu a revista Tico-Tico e o
romance O Guarani: “li-o um pouco surpreendida. Eu não passara ainda
de Dumas e de Hugo; fiquei a pensar naquelas terras onde bramiam os
rios e aconteciam inundações pavorosas; e os coqueiros do rei eram tão
altos como catedrais” (Bessa-Luís, 2012: 23)6 .
Às referências biográficas junta-se um conjunto de alusões a obras
e a autores de literatura brasileira, tomando assim a viagem uma natu-
reza cultural que, por vezes, aproxima escritores portugueses e escritores
brasileiros. João Cabral de Mello Neto, Manuel Bandeira, Machado de
Assis, Carlos Drummond e Andrade, José Montello, Gonçalves Dias, Gil-
berto Freyre e Clarice Lispector são alguns dos escritores que marcam
4
“O estereótipo distingue o Eu do Outro e constitui uma forma massificada de co-
municação, uma expressão cultural simplista, fomentando mitos culturais, frequentemente
cristalizados em grandes cidades europeias” (Machado, 2003: 112).
5
Em “Portugal-Brasil, a memória pede meia sombra”, Agustina recupera a evocação
do seu precoce conhecimento do Brasil e do papel deste país na vida da sua família:
“Eu comecei muito cedo a conhecer o Brasil. Meu pai foi para o Rio aos doze anos,
recomendado por um tio que tinha na Baía e para quem a fortuna foi amável. É muito
diferente conhecer um país como itinerário, com a consulta académica dos seus livros, e
conhecê-lo de maneira quotidiana, natural e familiar. Eu conheci o Brasil assim, antes
de cruzar as suas portas com o passaporte na mão” (Bessa-Luís, 2000: 251-252).
6
Está assim presente “a função autobiográfica das notas de viagem, quando, no Rio de
Janeiro, Agustina evoca o pai, recriando-o como uma personagem de romance, através de
pequenos pormenores extremamente significativos, desvendados pela memória” (Machado,
2013: 160).

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Agustina Bessa-Luís: narrativa de viagens e diálogos da lusofonia 319

esta viagem, ao lado dos Portugueses Pero Vaz de Caminha, padre Antó-
nio Vieira e Ferreira de Castro. Parece haver um cuidado de Agustina na
seleção de escritores portugueses diretamente vinculados ao Brasil (é o
caso de Ferreira de Castro) ou na criação de nexos de proximidade entre
escritores brasileiros e portugueses. É assim que, no Recife, recorda o
poeta Manuel Bandeira e o “tom pessoano nos versos que parecem vento
empurrando folhas” (Idem, 23); “Quando fui ao Recife pela primeira vez,
fui à feira de que fala Vitorino Nemésio e, ao pensar nisso, ocorre-me
Clarice Lispector”’ (Idem, 65).
Este aspeto representa um primeiro vínculo entre os dois países. Mas
ao longo do texto Agustina encontra outros motivos de aproximação: a
descoberta do Outro torna-se então uma redescoberta da própria identi-
dade.
Espaços, realidades e comportamentos são com frequência vistos pela
sua proximidade. Comparar significa superar imagens empobrecedoras e
estereotipadas, reduzidas a lugares-comuns:
Quanto mais as regiões se distinguem em costumes e tradições, mais
a curiosidade dos povos é por eles acentuada e a criação é libertada
da tirania do modelo único. (. . . ) o sentido da comparação, essencial
como pilar da civilização, somos nós, os portugueses, quem melhor
o exerce (Idem, 21).

Esta observação de Agustina traduz uma visão nietzschiana da arte


de viajar, em termos muito similares àqueles que são propostos por Mi-
chel Onfray (2009: 60) para o que designa como “arte de viajar”: ela é
inspirada no perspectivismo nietzschiano:
Não há verdades absolutas, mas verdades relativas, não há padrões
de medidas ideológicas, metafísicas ou ontológicas para avaliar as
outras civilizações, não há instrumentos comparativos que imponham
a leitura de um lugar a partir das referências de outro, mas o desejo
de deixar-se impregnar pelo líquido local, à semelhança dos vasos
comunicantes.
Quando reflete sobre a natureza dos dois povos, afirma Agustina:
“Os portugueses, como os brasileiros, não gostam de coisas difíceis;
chegam à perfeição à custa de apurar o que é fácil. É uma maneira
de viver bastante honesta, porque no sentido da glória há sempre
algo de vão e predador” (Bessa-Luís, 2012: 12).

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320 Maria do Carmo Cardoso Mendes

As imagens de vários lugares percorridos vinculam-se, na memória,


a espaços portugueses, num exercício dominado por termos do campo
semântico da comparação:

Se entramos em Curitiba, alegra-nos o pinheiro de altas copas, e


dele dizemos que nos lembra o pinheiro litoral ou da montanha,
pinheiro sempre, emblema da paisagem portuguesa. Lembra, e é
diferente. As feiras (. . . ) lembram coisas nossas (Idem, 45-46).
Ouro Preto (. . . ) tudo lembra o Douro, de Portugal (Idem, 111).
São Paulo é uma cidade que tem ainda bairros residenciais arbo-
rizados com aspecto sonolento, como nas praias da Granja e Vala-
dares (Idem, 136).
Vista do lado oposto, Cachoeira tem semelhanças com a paisagem
do Douro (Idem, 158-159).

Mas a comparação não significa uma concessão à mimese ou uma mera


procura dos vestígios da presença portuguesa no Brasil. Sendo Breviário
do Brasil “uma digressão em torno da psicologia dos povos” (Idem, 86), in-
teressam a Agustina muito mais traços humanos que vinculam portugueses
e brasileiros – sobretudo quando esses traços são identificados em figuras
da cultura – do que fotografias de “tipos e paisagens”, “por muito belos
que sejam os monumentos por nós deixados e o nosso programa cultural
que se vai desvanecendo” (Idem, 87).
A comparação também não significa uma menor adesão ao Brasil, exal-
tado nos seus lugares, nos seus ritmos diferenciados de região para região,
no espírito dos seus lugares, nos hábitos alimentares, nas suas tradições
e costumes e, sobretudo, no seu património cultural (literário, musical,
arquitetónico). Bastaria para isso considerar o relevo concedido a per-
sonagens e episódios – factuais e lendários – da História do Brasil: o
escultor e entalhador barroco Aleijadinho, o ativista anti-colonial Tira-
dentes, a personagem lendária do escravo Chico Rei, a “rainha do Ma-
ranhão” Donana Jansen, a história de amor de Lampião e Maria Bonita,
entre outros.
Breviário do Brasil é uma visão descentrada e aberta de um viajante,
liberta de um espírito nacionalista, eurocentrado e limitado.

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Referências bibliográficas

BESSA-LUÍS, Agustina (2000). “Portugal-Brasil, a memória pede


meia sombra”. In: Contemplação carinhosa da angústia. Lisboa: Guima-
rães Editores, pp. 251-255.
BESSA-LUÍS, Agustina (2009). Embaixada a Calígula, Lisboa: Gui-
marães Editores.
BESSA-LUÍS, Agustina (2012). Breviário do Brasil, Lisboa: Guima-
rães Editores.
DUMAS, Catherine (2002). Estética e Personagens nos Romances de
Agustina Bessa-Luís. Porto: Campo das Letras.
MACHADO, Álvaro Manuel (1996). Dicionário de Literatura Portu-
guesa. Lisboa: Presença.
MACHADO, Álvaro Manuel (2003). Do Ocidente ao Oriente. Mitos,
imagens, modelos. Lisboa: Editorial Presença.
MACHADO, Álvaro Manuel (2011). “Estudos Culturais e Li-
teratura Comparada: o primado da literatura”. In Diacrítica 25/3, pp.
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MACHADO, Álvaro Manuel (2013). “As viagens de Agustina: espírito
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ONFRAY, Michel (2009). Teoria da Viagem. Uma Poética da Geo-
grafia. Lisboa: Quetzal.
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rio”. In BRUNEL, Pierre e CHEVREL, Yves (org.). Compêndio de Litera-
tura Comparada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 133-166.
THOMPSON, Carl (2011). Travel Writing. London and New York:
Routledge.
Alexandra David-Néel:
l’écriture d’un voyage personnel

Ana Fernandes

CLEPUL/Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Résumé : D’écrivains-voyageurs au féminin, on n’entend pas beaucoup parler,


cependant le XIXème siècle a été riche en récits de voyages sous la plume de
femmes, appartenant à différentes nationalités et ayant traversant différentes
contrées.
Nous nous intéresserons à Alexandra David-Néel, voyageuse hors du com-
mun, prolifique en récits de voyages dont le Voyage d’une Parisienne à Lhassa
sera le centre de notre étude. Nous tenterons de cerner comment Alexandra
David-Néel a toutes les caractéristiques d’une voyageuse audacieuse et sensi-
ble qui favorise l’expérience du voyage à celle de l’écriture, bien que celle-ci ait
une grande fonction informative et descriptive, qui reste essentielle à la définition
du rapport de voyage.
L’écriture du voyage chez cette auteure conserve toute la spécificité de
l’écriture du «voyageur-écrivain», un genre à la limite entre l’autobiographie
et le récit anthropologique. Elle sait conserver un style littéraire simple, souvent
narratif, qui lui permet de transmettre des informations précises. Elle s’intéresse
à écrire ou décrire le monde avec justesse mais elle raconte surtout l’histoire
d’un voyage personnel dans le but de sensibiliser le lecteur au monde extérieur
et lui enseigner des aspects insolites de l’Ailleurs.

Mots-clé : Littérature de voyage ; autobiographie ; anthropologie ; écriture ;


Tibet.
324 Ana Fernandes

D’écrivains-voyageurs au féminin on n’entend pas beaucoup parler,


cependant le XIXème siècle a été riche en récits de voyages sous la
plume de femmes, appartenant à différentes nationalités et ayant traversé
différentes contrées. C’est là un élément révélateur de l’évolution de la
pratique du voyage au XIXème siècle que cet engouement des femmes
pour les voyages proches et lointains.
Ces textes portent la marque du féminin. La résonance en est indé-
niable dans l’écrit du voyage. Les expériences des voyageuses donnent
lieu à des itinéraires textuels pour le moins tortueux. L’incursion des
femmes dans le genre du récit de voyage produit des textes dominés
par une rhétorique du féminin qui leur attribue un caractère distinctif au
niveau de la forme et de la substance.
Nous nous intéresserons à Alexandra David-Néel, voyageuse hors du
commun, prolifique en récits de voyages dont le Voyage d’une parisienne
à Lhassa sera le centre de notre étude. Toutefois, avant de l’analyser, il
faut passer en revue ce que fut le récit de voyage au XIXème siècle pour
mieux comprendre les écrits d’Alexandra David-Néel.
L’écriture du voyage se caractérise à partir du XIXème siècle, d’une
part par le développement du récit autobiographique et la recherche d’une
certaine authenticité dans les récits des moments du voyage. La fin du
siècle manifeste un intérêt plus développé par l’anthropologie moderne
dans la mesure où certains auteurs, et notamment Alexandra David-Néel,
entrevoient un lien étroit entre le déplacement géographique et son récit
et l’étude comparative de l’être humain.
L’écriture du voyage correspond à un nouveau rapport de l’homme et
du voyageur au monde qui l’entoure. Deux types de textes coexistaient
à cette époque, le rapport et le récit de voyage, qui se distinguent au
niveau de la subjectivité de l’auteur. Tandis que le récit est «l’action de
raconter une chose», le rapport correspond à «l’action de rapporter, de
réciter, de témoigner en un lieu. C’est le compte que l’on rend de quelque
chose dont on est chargé» (LITTRÉ, 1872-1877). Au récit de voyage qui
permet que le narrateur s’y implique en reformulant et en interprétant
ce qu’il a pu voir semble s’opposer le rapport de voyage plus objectif
et impersonnel dans la façon de rendre les faits. Alexandra David-Néel
semble se rapprocher du rapport dans lequel l’expérience du voyage reste

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Alexandra David-Néel: l’écriture d’un voyage personnel 325

l’intérêt principal au centre du projet initial et dont la finalité du travail


d’exploration et d’écriture semble être la découverte elle-même et tenant
un intérêt surtout anthropologique. Il s’agit d’un texte moins esthétique et
littéraire du point de vue de la forme, mais plus sociologique, descriptif et
personnel au niveau du contenu. Nous verrons par la suite qu’Alexandra
David-Néel s’intéresse surtout à la dimension anthropologique du voyage.

1. Alexandra David-Néel : la fusion entre voyageuse et écrivain

Le vrai propos du voyage chez Alexandra David-Néel est de mettre en


valeur une attitude plus sensible et humaine dans le voyage vers l’Autre et
l’Ailleurs, concepts fondamentaux qui font référence à la notion d’altérité et
d’étranger. Elle cherche à mieux le connaître, voilà pourquoi le voyageur
a besoin d’apprendre la langue, les valeurs, les traditions, la culture et la
situation politique, économique et sociale du Tibet.
Alexandra David-Néel est née le 24 octobre 1868 à Saint-Mandé
et morte le 8 septembre 1969 à Digne. De nationalités française et
belge, elle est orientaliste, tibétologue, chanteuse d’opéra, journaliste,
écrivaine et exploratrice. En épousant Philippe Néel, ingénieur en chef
des Chemins de fer tunisiens, elle abandonne sa carrière de chanteuse
pour se consacrer entièrement à ses voyages, d’abord en Inde, ensuite
en Chine et au Tibet. Un voyage en Asie qui n’était en principe que de
dix-huit mois durera en réalité quatorze ans et fera de cette femme la
première femme occidentale à pénétrer en 1924, dans la cité interdite
de Lhassa, au Tibet, déguisée en pèlerine mendiante au côté de son fils
adoptif Yongden.
Son rapport de voyage intitulé Voyage d’une parisienne à Lhassa re-
trace avec précision les nombreux kilomètres de marche à travers le ter-
ritoire, les nuits passées dehors dans le froid et le danger incessant, et
enfin le besoin à tout moment de se fondre dans la culture locale de peur
d’être reconnue :

Quand ils sont assez chanceux pour être invités à entrer dans une
maison, les ardjopas authentiques ne refusent jamais cette bonne

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326 Ana Fernandes

aubaine. L’insistance du bonhomme m’ennuyait, mais je craignais


que ma conduite ne semblât par trop étrange si je persistais dans
mon refus. Je fis donc un signe à Yongden qui se rendit aux bonnes
raisons qu’on lui donnait et nous passâmes la porte en proférant
à voix très haute, suivant la coutume des pauvres, toutes sortes de
remerciements et de souhaits pour la prospérité des hôtes. (DAVID-
-NÉEL, 1927: 106)1

Alexandra David-Néel fait ainsi l’expérience de la vraie vie selon les


habitants dont elle adopte le comportement. Elle montre sa détermination
dans les situations les plus incommodes et sa volonté d’accepter de vivre
comme une mendiante dans ce pays :

Ce fut la première fois que je logeais chez des indigènes dans mon
déguisement de pauvresse. [. . . ] J’y allais maintenant expérimenter
par moi-même nombre de choses que j’avais jusque-là observées à
distance. Je m’assoirais à même le plancher raboteux de la cui-
sine sur lequel la soupe graisseuse, le thé beurré et les crachats
d’une nombreuse famille étaient libéralement répandus chaque jour.
D’excellentes femmes, remplies de bonnes intentions, me tendraient
les déchets d’un morceau de viande coupé sur un plan de leur robe
ayant, depuis des années servi de torchon de cuisine et de mouchoir
de poche. Il me faudrait manger à la manière des pauvres hères,
trempant mes doigts non lavés dans la soupe et dans le thé, pour
y mélanger la tsampa et me plier enfin à nombre de choses dont la
seule pensée me soulevait le cœur. (DAVID-NÉEL, 1927: 106-107)

Dans ce passage, nous pouvons constater que, même si Alexandra


David-Néel tente par le voyage de côtoyer l’Autre et de vivre au sein d’une
communauté bien différente de la sienne, elle reste toujours consciente de
son étrangeté, de sa différence.
Le voyage, aussi éprouvant soit-il, est avant tout pour cette femme
une chance unique de vivre dans un pays et d’apprendre à en connaî-
tre la culture et les traditions. Notre auteure fait l’expérience du vrai
voyage lorsqu’elle accepte d’abandonner l’aspect divertissant et exotique
du voyage pour découvrir divers aspects socioculturels, économiques et
politiques du pays.
1
Toutes les citations seront à partir de cette édition.

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Alexandra David-Néel: l’écriture d’un voyage personnel 327

Alexandra David-Néel se révèle une voyageuse hors du commun non


seulement par son courage mais aussi par la force de son caractère et
l’attitude qu’elle prend vis-à-vis d’une expédition si périlleuse. Pourtant
elle est si fascinée par l’Autre et l’Ailleurs interdit qu’elle s’aventure à
pied, par temps glacial et affronte tous les dangers et même la possibilité
de mourir. Quoi qu’il en soit, elle ne réfléchit pas longuement à ces
problèmes : le désir de venger son propre insuccès et d’attirer par son
exploit l’attention du monde sur le phénomène des territoires interdits
l’entraîne dans son projet démesuré. Les échecs pour entrer à Lhassa et
sa curiosité d’orientaliste motivent son voyage :

J’ai pour principe de ne jamais accepter une défaite, de quelque


nature qu’elle puisse être et qui que ce soit qui me l’inflige. C’est
même, alors, que l’idée d’aller à Lhassa, restée un peu vague jusqu’à
ce moment, devint, chez moi, une décision fermement arrêtée. Au-
cune revanche ne pouvait surpasser celle-là ; je la voulais et à
n’importe quel prix je l’aurais. (DAVID-NÉEL, 1927: 14)

Ayant conscience qu’elle doit être prudente dans un territoire fermé


pour des raisons politiques, notre voyageuse prend des précautions face
aux tibétains qui risquent de la dénoncer : “ J’avais décidé de voyager
nuitamment et de demeurer cachée pendant le jour, jusqu’à ce que j’aie
pénétré assez avant dans le pays pour que nul ne puisse discerner de
façons certaines l’endroit d’où je venais et les chemins que j’avais suivis ”
(DAVID-NÉEL, 1927: 20). Sous la forme de courtes anecdotes, elle dé-
voile ce qu’elle a appris et donne à voir au lecteur divers aspects de la vie
tibétaine. Elle ne prend pas uniquement connaissance de la géographie
du pays, mais elle s’intéresse également à sa culture et aux traditions cul-
turelles et religieuses qu’elle observe. Par la présentation des différentes
caractéristiques des habitants et du pays, elle manifeste une véritable
compréhension des modes de pensée des habitants et du pays lui-même :

Nous devions tâcher d’avoir, à ce moment, atteint la route du pèle-


rinage. Une fois là [. . . ] nous pourrions prétendre [. . . ] nous perdre
dans la foule banale des dévots. Ces derniers, venus de pays par-
fois lointains et appartenant à des tribus différentes, présentent une
grande diversité de types ; leurs dialectes, tout comme les coiffu-
res et les costumes des pèlerins, sont extrêmement variés [. . . ] On

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328 Ana Fernandes

nomme ardjobas ces pèlerins – des moines pour la plupart – voya-


geant à pied, chargés de leurs bagages, qui, par milliers, errent à
travers le Tibet, visitant les lieux que la tradition a consacrés comme
vénérables à un titre quelconque. (DAVID-NÉEL, 1927: 23-24 et
38)

En pénétrant dans le pays, Alexandra David-Néel rencontre de plus en


plus d’habitants toujours en observant la pratique de certaines coutumes
du pays comme celle de se déplacer en groupe :

Le vieux paysan avait quitté son village avec une bande d’amis pour
faire, en pèlerinage, le tour du Kha-Karpo. Une maladie qui ne
s’expliquait pas l’avait privé de ses forces, il ne pouvait plus se
traîner. Ses compagnons avaient ralenti le pas pendant quelques
jours, ils s’étaient même arrêtés une journée entière. Et puis ils
avaient continué leur route. Telle est la coutume thibétaine même
au désert, où, s’il ne se rétablit pas promptement, le retardataire,
ayant épuisé ses provisions, meurt de faim. . . (DAVID-NÉEL, 1927:
68)

Alexandra David-Néel arrive à déchiffrer les paroles de cet Autre ti-


bétain, ce qui lui permet de communiquer avec lui et d’interpréter les
paroles des gens du pays pour ce qui concerne les visiteurs comme elle :

Ses mains ressemblent à celles d’une philing. Avait-elle jamais vu


des gens de race blanche ? C’était douteux [. . . ] Mais les Thibétains
ont des idées fortement arrêtées en ce qui concerne le canon des
traits et des particularités des Occidentaux. Ceux-ci doivent être de
stature, avoir des cheveux blonds, la peau claire, les joues roses et
les «yeux bleus», dénomination qui s’applique distinctement à toutes
les nuances d’iris qui ne sont point noir ou brun foncé. (DAVID-
-NÉEL, 1927: 84)

Cette expérience proche du peuple tibétain rend possible à Alexandra


David-Néel de partager l’intimité de ce peuple, de mieux connaître sa
religion et ses croyances :

Yongden commence à lire à voix très haute, après m’avoir ordonné


d’un ton impératif : «Mère, récite “Dôlma” ! Obéissant, j’entonne
une psalmodie qui n’a aucun rapport avec le texte récité par mon fils

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Alexandra David-Néel: l’écriture d’un voyage personnel 329

adoptif et dont le but est, simplement, de m’occuper afin d’empêcher


que les femmes ne m’ennuient et ne m’embarrassent avec leurs ques-
tions. [. . . ] Au tapage que nous faisons, des voisins apparaissent
qui hochent la tête d’un air pénétré et approbateur. Je dois ré-
péter au moins vingt fois Dôlma et peut-être cinq cent fois la for-
mule du Kyapdo. Le sens des phrases que je récite arrête mes
pensées. . . “Afin d’atteindre le terme de la crainte et de la douleur,
tournez vos pas vers le savoir. . . ”», dit le Kyapdo. (DAVID-NÉEL,
1927: 151-152)

À plusieurs reprises, Alexandra David-Néel utilise dans son rapport


des termes tibétains, ce qui suggère qu’elle comprend la langue du pays.
De plus, plusieurs comportements décrits dans le texte montrent qu’elle
adopte les attitudes de ce peuple (sa manière de dormir, de manger, de
se déplacer, de parler), tout en restant étrangère. Elle sait incarner un
personnage, forcée en partie par les circonstances du voyage et pour fuir
les obstacles qu’elle doit affronter :
Je m’amuse in petto de la mentalité de mendiante que j’ai acquise
depuis que je joue le rôle de pauvresse errante. Mais tout n’est
pas plaisanterie dans notre mendicité, les aumônes qui remplissent
nos sacs nous dispensent d’acheter de la nourriture, de montrer que
nous possédons de l’argent et elles sauvegardent grandement notre
incognito. (DAVID-NÉEL, 1927: 154)

Alexandra David-Néel balance entre deux extrêmes : la femme qu’elle


est et le déguisement qu’elle porte, même si elle intériorise de plus en
plus son personnage.
Notre auteure évolue au fur et à mesure de son voyage et du contact
avec la différence vers une adoption progressive des modes de vie tibé-
tains. Elle se révèle une véritable « voyageuse-écrivain » de par le travail
de recherche qu’elle a élaboré grâce au récit d’une succession d’anecdotes
développées chronologiquement. Soucieuse d’authenticité, elle retranscrit
des faits qu’ils soient positifs ou négatifs comme preuve d’une véritable
expérience tibétaine. À travers une méthode descriptive objective elle of-
fre au lecteur occidental un tableau complet du Tibet au lieu de donner
des impressions que les Occidentaux s’imaginent de ce continent. Elle
sait conjuguer trois facettes du voyage : son expérience personnelle, la
rencontre avec l’Autre et la place qu’elle lui donne dans son texte.

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330 Ana Fernandes

Alexandra David-Néel reste tout au long de son rapport une voya-


geuse audacieuse mais sensible qui privilégie l’expérience du voyage à
celle de l’écriture même si celle-ci maintient son importante fonction in-
formative et descriptive, essentielle dans tout rapport de voyage.
Nous verrons par la suite les caractéristiques de son écriture qui est
à la base de la définition du rapport de voyage.

2. L’écriture du voyage

L’écriture du voyage a une spécificité, celle d’un genre entre l’auto-


biographie et le récit anthropologique. Le caractère autobiographique du
Voyage d’uneparisienne à Lhassa se perçoit dans le récit à la première
personne et quand Alexandra David-Néel assume son identité d’auteure
en signant son rapport de son vrai nom. S’adressant souvent à ses lec-
teurs, elle admet que la voix narratologique – qui renvoie à un narrateur
homodiégétique, témoin et participant – correspond à celle de l’auteur :
« Je trouvai pourtant un moyen de m’arranger. M’arrêtant un instant, je
simulai le geste, familier à tous les Thibétains, de quelqu’un – je prie mes
lecteurs de m’excuser – que des poux tourmentent et qui cherche à dé-
couvrir ces animaux désagréables dans sa robe. » (DAVID-NÉEL, 1927:
203). La voix de l’auteur et celle du narrateur arrivent à s’entremêler
lorsqu’Alexandra rappelle certains détails biographiques qui ne font pas
partie de ce voyage à Lhassa. Elle s’affirme à la fois comme l’auteur qui
raconte sa propre histoire, le personnage principal du rapport et le nar-
rateur. La narration autodiégétique est donc instaurée par l’emploi de la
première personne et les références à son fils adoptif, élément biographi-
que indubitable. Dans l’introduction de son texte, Alexandra David-Néel
explique qu’il s’agit de son propre voyage et qu’elle va raconter au lecteur
le résumé des aventures qu’elle a expérimentées :

Huit mois de pérégrinations accomplies dans des conditions inac-


coutumées, à travers des régions en grande partie inexplorées ne
peuvent se raconter en deux ou tris cents pages. Un véritable jour-
nal de voyage exigerait plusieurs gros volumes. L’on ne trouvera

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Alexandra David-Néel: l’écriture d’un voyage personnel 331

donc, ici, qu’un résumé des épisodes qui m’ont paru les plus pro-
pres à intéresser les lecteurs et à leur donner une idée des régions
auxquelles je me suis mêlée de façon intime en tant que chemineau
thibétain.
Cette randonnée vers Lhassa sous le déguisement d’une pèlerine
mendiante n’est, du reste, elle-même, qu’un épisode de longs voya-
ges qui m’ont retenue en Orient pendant quatorze années successi-
ves. (DAVID-NÉEL, 1927: 5)

Voyageant anonymement pour éviter les périls et interpellations, Ale-


xandra David-Néel élimine son nom propre du rapport et encore son fils
adoptif Yongden ne l’appelle que «Jétsunema», son pseudonyme tibétain.
Le pacte de lecture qu’elle établit avec son lecteur est simple et per-
met à celui-ci de suivre son parcours depuis son départ jusqu’à son arri-
vée. Son rapport manifeste une certaine ambigu`‘ıté entre le personnel et
l’impersonnel car l’auteure tente de maintenir l’équilibre entre le récit de
ses aventures personnelles et la description des lieux qu’elle découvre.
Le lecteur est maintenu en suspens face aux nombreuses étapes dan-
gereuses qui auraient pu faire échouer Alexandra David-Néel. Elle par-
tage ainsi avec son lecteur la peur d’être reconnue par les habitants du
pays (p. 67), sa rencontre avec des panthères (p. 32), le danger affronté
dans la montagne en hiver (p. 187), la possibilité de se perdre ou d’être
attaquée par des voleurs (p. 103), la rencontre avec des soldats (p. 84),
l’accident de Yongden qui se casse la cheville (p. 227), les conditions
trop difficiles du voyage, sans eau et parfois même sans nourriture (p.
200). Tout en suivant les aventures personnelles de cette voyageuse par-
ticulière, le lecteur a accès à tout un enseignement objectif sur l’Ailleurs,
basé sur un travail de recherche anthropologique qu’elle a effectué pen-
dant quatorze ans avant cette aventure.
Le caractère autobiographique de l’écriture d’Alexandra David-Néel
est évident dans les passages descriptifs où elle présente et explique un
aspect du pays ou de la culture qu’elle connaît. Le Voyage d’une parisien-
ne à Lhassa révèle une connaissance approfondie du Tibet obtenue par
des recherches effectuées avant ce voyage ou sur le champ. De ce fait,
lors d’un soir glacial, n’arrivant pas à se servir du briquet pour allumer le
feu et se réchauffer, elle a recours à une pratique tibétaine apprise lors

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332 Ana Fernandes

d’un séjour précédent et qui lui permet de provoquer, par la pensée, un


feu intérieur pour se réchauffer :

– Jétsunema, me dit soudain Yongden, en déposant sur le sol le petit


sac contenant le briquet inutile, “ vous êtes une initiée en toumo
réskiang et pouvez vous passer de feu. Réchauffez-vous et ne vous
occupez pas de moi [. . . ] ”.
Il était vrai que j’avais étudié auprès de deux anachorètes thibé-
tains l’art singulier d’accroître la chaleur du corps. Pendant long-
temps, les histoires rapportées dans les livres thibétains et celles
que j’entendais raconter autour de moi sur ce sujet m’avaient forte-
ment intriguée. Comme j’ai l’esprit quelque peu enclin aux investi-
gations critiques et expérimentales, je ne manquai pas de concevoir
un vif désir de voir par moi-même ce qui pouvait exister sous ces
récits que j’étais tentée de tenir pour de pures fables.
Avec les plus grandes difficultés, après avoir fait montre d’une per-
sévérance obstinée dans mon désir d’être initiée à ce secret et m’être
résignée à subir un certain nombre d’épreuves passablement fati-
gantes et quelquefois même un peu dangereuses, je réussis, enfin,
à apprendre et à “ voir ”. (pp. 191-192)

La recherche anthropologique amène Alexandra David-Néel à se fon-


dre dans la culture tibétaine, en se servant de ce qu’elle a appris sur le
pays pour y vivre véritablement.
Tout dans le Voyage d’une parisienne à Lhassa s’apparente à un récit
anthropologique à cause de l’emploi des termes tibétains, traduits ou ex-
pliqués en bas de page, et de la fidèle réécriture dans son rapport de ce
qu’elle a appris du pays. Son intention n’est pas de créer avec les mots
étrangers une sensation d’exotisme mais de souligner le caractère excep-
tionnel du lieu. Elle tisse ainsi dans l’introduction des considérations
phonétiques et orthographiques sur la langue tibétaine :

J’ajouterai un mot au sujet de l’orthographe des mots tibétains. Je


les ai simplement transcrits phonétiquement afin de permettre au
lecteur de les prononcer à peu près comme le font les Thibétains.
Exceptionnellement, j’ai parfois écrit ph pour distinguer l’un des
trois p de l’alphabet thibétain, comme dans le mot philing (étranger)
qu’il faut prononcer pi line gue. Le son f n’existe pas en thibétain.
Le troisième p et le troisième t ont souvent été écrits respectivement

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Alexandra David-Néel: l’écriture d’un voyage personnel 333

b et f selon l’usage généralement adopté par les orientalistes, bien


que ces lettres n’aient le son de b et de d que lorsqu’elles sont
précédées d’une lettre-préfixe muette.
L’orthographe thibétaine, très compliquée, déroute forcément ceux
qui ne peuvent lire les mots écrits en caractères thibétains. [. . . ]
Quant au mot Thibet il peut être intéressant de savoir qu’il est
inconnu des Thibétains. Son origine reste obscure. Les Thibétains
appellent leur pays Peu yul, ou poétiquement en littérature, Gangs
yul (le pays des neiges). (DAVID-NÉEL, 1927: 15-16)

Encore une fois, elle fait preuve de son vif intérêt pour cette culture
en même temps qu’une connaissance linguistique, phonétique et étymolo-
gique des mots tibétains. Le pronom personnel je sert le rapport anthro-
pologique et le récit autobiographique dans la mesure où le personnage
principal raconte le récit d’une aventure personnelle et décrit un pays et
un peuple différents du sien. La particularité du récit de cette voyageuse
vient du fait qu’elle maintient un équilibre entre le récit de ses exploits
et la description qu’elle fait de l’Autre et de l’Ailleurs.
Le rapport se fonde sur de nombreux carnets de route et des lettres
qu’elle envoyait fréquemment à son mari Philippe Néel, étant son écri-
ture postérieure au voyage proprement dit. Son style épistolaire, parfois
journalistique, enregistre d’une façon détaillée et dans un style simple les
différentes étapes du voyage. Jo`‘elle Désirée-Marchand met en relief la
particularité du style et du contenu des écrits de notre auteure :

Dépositaire de connaissances originales, elle veut les transmettre,


respectant ainsi l’un des préceptes même du Dharma. Elle veut
faire partager son enthousiasme pour le Pays des Neiges et pour
l’Inde, millénaire. [. . . ] L’intense activité créatrice qu’elle déploie
n’empêche pas notre héros de faire quelques promenades. . . [. . . ]
Certains livres sont de nouveaux récits de voyages, des témoignages,
des reportages sur ce qu’elle vient de vivre et d’observer. Alexandra
intègre ses propres expériences dans les narrations. (DÉSIRÉE-
-MARCHAND, 1996: 380-381)

Le rapport de voyage a donc une fonction principalement informative


où l’auteure privilégie les renseignements et donc l’information précise à
la forme ou au style littéraire.

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334 Ana Fernandes

Il est certain que le Voyage d’une parisienne à Lhassa manque de ly-


risme et de sensibilité littéraire mais à certains moments du récit les
descriptions sont frappantes, d’une grande qualité au niveau de la forme
et des images, qui révèlent le style littéraire de notre auteure quand
même. Parfois Alexandra s’arrête devant un paysage et fixe sa beauté et
sa singularité :

Je fus enchantée de pouvoir rester tranquillement assise, jouissant


d’un paysage qui était véritablement grandiose. Dans un cadre fait
de plusieurs chaînes de montagnes étagées et couvertes de forêts,
un pic du Kha-Karpo se dressait, gigantesque, tout blanc, éblouis-
sant, son sommet pointant droit dans le lumineux ciel thibétain.
(DAVID-NÉEL, 1927: 55)

La voix narrative qui initie la description s’efface devant l’émerveille-


ment du paysage hyperbolisé.
Dans une autre description, elle excelle dans la représentation du
paysage en utilisant des adjectifs littéraires métaphoriques :

L’automne est paré, dans ce pays, de tous les charmes juvéniles du


printemps. Le soleil matinal enveloppait le paysage d’une lumière
rosée qui répandait la joie depuis la rivière aux eaux moirées opa-
lines et vert clair, jusqu’à la cime des hautes falaises rocheuses sur
lesquelles quelques rares sapins se dressaient en plein ciel d’un
air triomphant. Chaque caillou du chemin paraissait jouir volup-
tueusement de la chaleur du jour et babillait sous nos pas avec des
rires étouffés. Des arbrisseaux minuscules croissant sur le bord du
sentier imprégnaient l’air d’un violent parfum aromatique. (DAVID-
-NÉEL, 1927: 60)

La personnification et même l’érotisation du paysage («jouir voluptu-


eusement», «babillait», «violent») mettent en relief le caractère poétique
de ce passage. Dans une autre description encore, Alexandra David-
-Néel avoue se sentir incapable de transcrire convenablement la beauté
du spectacle qui s’offre à son regard :

Comment expliquer ce que je ressentis à ce moment ? C’était un mé-


lange d’admiration et d’angoisse, j’étais à la fois émerveillée, stupé-

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Alexandra David-Néel: l’écriture d’un voyage personnel 335

faite et terrifiée. Soudainement, un formidable paysage, qu’enfermés


dans la vallée nous n’avions pu entrevoir, se révélait à nous.
Imaginez une immensité couverte de neige, un plateau terminé très
loin, à notre gauche, par un mur vertical de glaciers glauques et
de pics drapés de blancheur immaculée. A notre droite, une large
ondulation de terrain, bordée par deux chaînes basses, montait en
pente douce jusqu’à ce qu’elle se nivelât, à la ligne d’horizon, avec
les sommets qui l’encadraient.
En face de nous le vaste plateau s’élevait aussi, graduellement, et
s’évanouissait dans le lointain, sans que nous puissions distinguer
s’il conduisait au sommet du col ou à un autre plateau sans issue.
Nulle description ne peut donner une idée d’un tel décor. (DAVID-
-NÉEL, 1927: 186)

Sans trouver les mots qui puissent décrire le mieux le paysage, Ale-
xandra David-Néel définit le sublime2 , concept anticlassique attaché à
l’élévation de la beauté.
Excepté ces descriptions plus ou moins poétiques, le Voyage d’une pa-
risienne à Lhassa reste un texte narratif dans lequel l’auteure se limite à
transmettre ce qu’elle a appris et vécu au Tibet.
En tant que voyageuse et écrivain, Alexandra David-Néel raconte
l’histoire de son voyage au Tibet pour renseigner ses lecteurs des as-
pects insolites de l’Ailleurs. Son écriture mélange récit autobiographique
et anthropologique. Elle a choisi de vivre une expérience de voyage pro-
che d’un pays et de ses habitants, dans des conditions extrêmes, très
périlleuses et trop difficiles.
Au style généralement peu littéraire, le rapport d’Alexandra David-
-Néel est un texte narratif où les différentes étapes du voyage surgissent
progressivement et révèlent une voyageuse et une femme qui se laisse
2
Le sublime est en soi une notion problématique. Le beau et le sublime vont géné-
ralement de pair. Tel que nous pouvons lire dans Le dictionnaire du Littéraire (ARON,
SAINT-JACQUES, & VIALA, 2002 : 573), «Diderot et Rousseau ont souligné ce qui donne
une ouverture sur le sublime peut être une harmonie de données très simples, un retour
aux éléments de la conscience. Reste que – Kant l’a montré – le sublime est un senti-
ment éprouvé par qui voit, lit ou entend une œuvre. Ainsi la catégorie du sublime peut
être un moteur de la création (éprouver ce sentiment et vouloir l’exprimer, le transmettre,
le susciter chez autrui) mais reste, en dernière analyse, un enjeu de la réception des
œuvres.»

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336 Ana Fernandes

transformer absolument par ce voyage. C’est sa philosophie du voyage


qu’elle exprime dans ce passage :

Jamais de toute ma vie je n’avais fait un voyage aussi peu coû-


teux. Yongden et moi riions souvent, le long des routes, en nous
remémorant les détails que nous avions lus dans les ouvrages des
explorateurs, concernant les nombreux chameaux, yaks ou mules
composant leurs caravanes, les centaines de kilogrammes de vivres
qu’ils transportaient au prix de dépenses considérables et, tout cela,
pour échouer plus ou moins près de leur but.
J’aurais pu parcourir toute la route sans un sou, mais comme nous
nous conduisions en mendiants sybarites, nous régalant de gâteaux
de mélasse, de fruits secs, de thé de première qualité, et consom-
mions énormément de beurre, nous arrivâmes au bout de quatre mois
– nous étant rendus de Yunnan à Lhassa – à dépenser, pour nous
deux, à peu près cent roupies.
Il n’est pas nécessaire de rouler sur l’or pour voyager et vivre heureux
sur la bienheureuse terre d’Asie. (DAVID-NÉEL, 1927: 173-174)

Alexandra David-Néel suit les parcours qu’elle-même a établis dans


le contexte d’un projet qui n’appartient qu’à elle : étudier la pensée orien-
tale à travers le contact direct avec ces lieux d’origine et de diffusion et
écrire pour un public-lecteur européen le rapport de ce qu’elle observe,
accompagné de ses réflexions.

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Références bibliographiques

ARON, P., SAINT-JACQUES, D., & VIALA, A. (2002). Le dictionnaire


du Littéraire. Paris: PUF.
BAUDRILLARD, Jean (1994). Figures de l’Altérité. Paris: Descartes.
BORER, Alain (1992). Pour une Littérature voyageuse. Bruxelles:
Éditions Complexe.
CHALON, Jean (1985). Le Lumineux destin d’Alexandra David-Néel.
Paris: Perrin.
DAVID-NÉEL, A. (1927). Voyage d’une parisienne à Lhassa. Paris:
Plon.
DÉSIRÉE-MARCHAND, J. (1996). Les Itinéraires d’Alexandra David-
-Néel. Paris: Arthaud.
DÉSIRÉE-MARCHAND, Jo`‘elle (2004). Tibet, Voyage à Lhassa. Sur
les traces D’Alexandra David-Néel. Paris: Arthaud
HARTOG, François (1991). Le Miroir d’Hérodote : Essai sur la re-
présentation de l’Autre. Paris: Gallimard.
Les Modèles du Récit de Voyage. Nanterre: Centre de recherches du
Département de français de Paris X – Nanterre, 1990.
LITTRÉ, É. (1872-1877). Dictionnaire de la langue française. Ob-
tido em 13 de agosto de 2014, de http://littre.reverso.net/dictionnaire-
francais/.
MILLS, Sara (1991). Discourses of Difference: an Analysis of Women’s
Travel, Travel Writing and Colonialism. London; New York: Routledge.
A Tradução da Peregrinaçam de Fernão Mendes
Pinto em Espanha, França, Inglaterra e Alemanha
no século XVII

Sandra Pina Gonçalves

Doutorada em Literatura pela Universidade do Algarve


Faculdade de Ciências Humanas e Sociais

Resumo: Este trabalho de investigação comparativista insere-se no âmbito


das relações entretecidas pelos Estudos de Tradução e a Literatura Comparada,
nomeadamente no que respeita ao conceito de tradução literária na Europa Oci-
dental do século XVII. Trata-se de um Estudo Intercultural, atendendo a que a
tradução promove a mudança cultural decorrente de um processo de transferência
intercultural com implicações literárias e ideológicas.

Palavras-chave: (In)fidelidade; expansão; supressão; interrelação; peregri-


nação.

O Projeto de Doutoramento que venho apresentar intitula-se “A Tra-


dução da Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto em Espanha, França,
Inglaterra e Alemanha no século XVII” e consiste num estudo comparati-
vista da referida obra publicada em 1614 com quatro das suas primeiras
traduções, a espanhola, da autoria de Francisco de Herrera Maldonado,
a francesa, de Bernard Figuier, a inglesa, de Henry Cogan Gentleman,
340 Sandra Pina Gonçalves

e, finalmente, a alemã, dos editores Henrich e Dietrich Boom, publicadas


em 1620, 1628, 1653 e 1671, respetivamente.
Na base da decisão de levar a cabo este projeto encontram-se os
factos de se tratar de um trabalho comparativo ainda por realizar e de
consistir numa obra portuguesa que iniciou a sua viagem pela Europa fora
através dos tradutores atrás mencionados logo após a sua publicação no
século XVII, dando-se a conhecer a outros destinatários, os quais tiveram
a oportunidade de, também eles, viajar pelo Extremo Oriente do século
XVI.
Os principais objetivos deste trabalho foram o de estabelecer rela-
ções de interdependência entre as referidas obras a partir da análise dos
procedimentos tradutológicos adotados em determinados momentos nar-
rativos, e o de procurar encontrar as possíveis razões que levaram os seus
tradutores a um maior afastamento ou, pelo contrário, a uma evidente
proximidade, atendendo sobretudo aos contextos religiosos, culturais e
sociais de chegada. Pretendeu-se demonstrar não só que os tradutores
referidos foram de certa forma criadores, como também que facilitaram a
divulgação desta obra portuguesa, do seu conteúdo e, fundamentalmente,
da sua mensagem universal.
A tese encontra-se dividida em três capítulos. Do capítulo 1, in-
titulado «Aspetos teórico-metodológicos», destaco o facto de a estética
neoclássica da técnica da fluência ter surgido em França no século XVI
e de alguns tradutores, tais como John Denham e Abraham Cowley, te-
rem tomado conhecimento da mesma durante o período de exílio; realço,
ainda, que na segunda metade do século XVII, a estratégia dominante de
tradução passa a ser «Les belles infidèles», teoria que se difundiu, poste-
riormente, pela Inglaterra e pela Alemanha. A tradução encontrou assim
um clima favorável ao seu florescimento, tendo-se registado um conside-
rável número de traduções de espanhol para francês e desta língua para
inglês. Estes textos passam então a servir para transmitir mensagens
culturais e políticas, lutando contra os sistemas implantados, contribuem
para a instituição de grandes géneros literários, revitalizam as literaturas
de partida e de chegada, promovendo, em simultâneo, o estatuto social e
económico do escritor.
Tendo em conta o trabalho tradutivo dos quatro tradutores em estudo,
realço, igualmente, o contexto dos Descobrimentos, a expansão do Cris-

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A Tradução da Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto
em Espanha, França, Inglaterra e Alemanha no século XVII 341

tianismo, a tradução da Bíblia para várias línguas europeias na versão


protestante e na versão católica romana, a crise religiosa do século XVI
e o avanço do Protestantismo na Europa, até ao final do mesmo século.
Do Capítulo 2, nomeado «Traduções-(Re)criações da Peregrinação e
os Processos Tradutivos no século XVII Europeu», saliento as designa-
ções de «enciclopédia dos descobrimentos» e de «testemunho da expe-
riência asiática» utilizadas frequentemente para designar esta narrativa
portuguesa, tendo despertado o interesse de muitos curiosos ávidos de
informação acerca de terras pouco conhecidas, contribuindo para o de-
senvolvimento da história, cartografia e antropologia, e para o incremento
do gosto pelas narrativas de aventura. Tais condições resultaram em inú-
meras edições e traduções para várias línguas, incluindo o húngaro e o
chinês. Em relação também ao impacto das quatro versões em análise,
note-se que, por exemplo, a espanhola foi reimpressa no mesmo ano e re-
editada quatro vezes ainda no século XVII, a saber em 1628, 1645, 1664
e 1666.
Relativamente aos tradutores, Maldonado era um sacerdote da Igreja
Real de Arbas que terá vivido durante algum tempo em Évora, fase em
que terá manuseado o manuscrito, e que revela no seu texto uma admi-
ração assinalável quer pelo autor português, pela sua obra e por várias
personagens nela intervenientes. Bernard Figuier, o segundo tradutor,
era supostamente um fidalgo português chamado Bernardo Figueira que
vivera cinquenta anos em França e que reconhece igualmente a singula-
ridade desta obra num texto de quatro páginas dirigido ao cardeal Riche-
lieu. Quanto a Henry Cogan, o tradutor inglês, para além de outros textos
de sua autoria, pouco se sabe, no entanto, o seu trabalho tradutivo de-
monstra também que a considerou uma obra cujo conteúdo merecia a sua
atenção e dedicação. Em relação aos editores alemães, é de notar que a
participação do seu pai Jan Hendriksz Boom na publicação da tradução
neerlandesa estará inegavelmente na origem da iniciativa de levar a cabo
o seu trabalho tradutivo e de existir entre estas versões uma relação de
contacto direta.
No que diz respeito às relações de interdependência, Maldonado con-
tribuiu decisivamente para dar a conhecer esta obra além-fronteiras, seis
anos após a publicação da Peregrinaçam. Os contactos entre a tradução
espanhola e a francesa são atestados nos paratextos desta última versão e

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342 Sandra Pina Gonçalves

em algumas passagens textuais, no entanto, a edição de Figuier revelou-


-se, no geral, mais próxima do original português, o que denuncia então
o contacto com esta última obra. Quanto à proximidade entre as versões
francesa e inglesa, são inúmeros os momentos textuais em que é possí-
vel constatá-la, para além das referências à primeira apresentadas num
paratexto da última. No que diz respeito à edição alemã, essa situação
também se verifica, contudo considero que se terá tratado de uma relação
de interdependência indireta.
Relativamente ao capítulo 3, designado «Da Peregrinaçam às Tradu-
ções Espanhola, Francesa, Inglesa e Alemã», começo por me referir aos
títulos, nos quais o estilo dos tradutores, as intenções de agradar aos no-
vos leitores ou, tal como nos paratextos, os contactos entre as traduções
são imediatamente percetíveis. No caso espanhol, Maldonado parece ter
procurado tornar o seu título mais claro e representativo do conteúdo da
obra ao incluir os vocábulos «Historia Oriental» e ao usar peregrinação
no plural. No título de Figuier, «Les Voyages Advantureux», verifica-se
uma tentativa de aproximar o seu trabalho ao gosto do público-leitor fran-
cês, ou seja, por narrativas de aventuras. O título inglês «The Voyages
and Adventures» evidencia uma intenção semelhante e, simultaneamente,
denuncia a interdependência com a tradução francesa. Finalmente, o tí-
tulo alemão «Die w`‘underliche Reisen» demonstra-se também próximo ao
da versão neerlandesa, publicada em 1652, cujo título é «De wonderlyke
Reizen», e revelando, paralelamente, a intenção de ir ao encontro do inte-
resse do seu destinatário, ampliando igualmente as vertentes aventurosa
e romanesca da obra. Na edição alemã, outros pormenores, tais como a
organização dos capítulos, o frontispício, as notas laterais e as ilustrações,
demonstram que o texto de partida usado terá sido o neerlandês.
Consciente de que a comparação integral do texto original com as qua-
tro traduções em questão seria um projeto demasiado ambicioso, realizei a
análise comparativa após delimitados os momentos diegéticos estruturan-
tes que seriam objeto de estudo em cada uma das edições, e selecionados
os excertos mais representativos do interior daqueles.
No decorrer da análise comparativa, tive em consideração a estrutura
e a significação da própria obra de partida, os motivos que levaram a
que um vasto público-leitor a considerasse uma obra peculiar, atrativa e
exótica, os contextos em que a obra original bem como as suas traduções-

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A Tradução da Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto
em Espanha, França, Inglaterra e Alemanha no século XVII 343

-adaptações foram publicadas e as imposições próprias da época e dessas


realidades.
Como seria de esperar, verificou-se a adoção de determinados proces-
sos tradutivos em detrimento de outros por cada tradutor. As expansões
frásicas ou textuais, de extensão variada, são um dos procedimentos tra-
dutológicos a que mais recorre o tradutor espanhol; quanto a Figuier, o
seu processo tradutivo primordial é a adaptação linguístico-estilística,
procurando ser fiel/literal e, simultaneamente, ir ao encontro do gosto e
da exigência do seu público-leitor; já Cogan manifesta-se muito próximo
da versão francesa, porém, no que diz respeito a questões ideológico-
-religiosas, recorre à compressão e, inclusivamente, à supressão de cerca
de quinze capítulos. Estes procedimentos são adotados a propósito da
missão do padre Francisco Xavier e do elogio às suas capacidades, desde
o capítulo CCIV português até ao capítulo CCXIX. Os editores alemães
adotam as mesmas técnicas tradutivas embora de forma mais acentuada,
resultando, por seu turno, na eliminação de aproximadamente dezassete
capítulos. A supressão em questão tem lugar ainda no capítulo CCIII e
a compressão estende-se ao capítulo CCXX. Os vinte e seis capítulos
portugueses em causa surgem agrupados em oito ingleses e em quatro
alemães em que nos deparamos com as passagens comprimidas referen-
tes às deslocações e às experiências vividas pelo narrador-personagem
e aos dados acerca daquelas paragens. O quarto momento analisado e
designado de «O Japão e a Missão de Francisco Xavier» é, assim, cla-
ramente aquele em que se verificou uma maior liberdade nestas duas
traduções. De mencionar que a obra original, bem como as suas duas
primeiras traduções são constituídas por duzentos e vinte e seis capítulos
e que estas versões apresentam reorganizações de capítulos distintas. A
tradução inglesa contém oitenta e um capítulos e a alemã, por sua vez,
sessenta e três. Estes dados são também eles reveladores da liberdade
de tradução evidenciada em ambas as edições.
Por questões também relacionadas com os destinatários das traduções,
pelo valor documental, com o intuito de tornar o discurso mais claro e rico,
para informar o leitor, por razões de economia diegética ou por motivos
puramente estilísticos, verificou-se o recurso a outros processos tradutoló-
gicos que, ainda que não afastem os textos da mensagem original, tornam
distintas as várias edições e adequadas aos seus novos contextos, denun-

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344 Sandra Pina Gonçalves

ciando, paralelamente, os contactos entre si. De entre os vários exemplos


encontrados no decorrer da análise comparativa, realço do primeiro mo-
mento, «A Partida de Lisboa e o Início da Aventura», a expansão textual
espanhola da «Quebra dos Escudos» e a expansão informativa relativa ao
Caquesseitão; quanto ao segundo momento, nomeado «Na Companhia de
António de Faria e o seu Derradeiro Naufrágio», atente-se na expansão
textual espanhola, apesar de não transposta para as restantes edições,
designada de «Desfecho da narrativa de António de Faria» em que Mal-
donado enaltece as qualidades deste capitão. Nas passagens relativas
ao diálogo com o Mouro e à ilha de Calempluy, em que encontramos a
crítica indireta colocada na boca do outro, neste caso do ermitão Hiticau,
todos os tradutores procedem a breves expansões frásicas, condenando as
atitudes dos portugueses e deixando perceber as inter-relações entre si;
no excerto relativo ao rapto da noiva todos os tradutores manifestam uma
evidente intenção de se manterem fiéis à mensagem original, não obstante
é de enfatizar a clara proximidade entre a versão francesa e a obra portu-
guesa e entre aquela e as edições inglesa e alemã; de recordar também
o elevado grau de fidelidade demonstrado por todos os tradutores nas
passagens relacionadas com a fauna e com informações geográficas dos
lugares por onde o narrador-personagem passou, de acordo, naturalmente,
com o interesse que essas questões despertariam nos seus públicos-alvo;
no terceiro momento, «A China: Utopia e Deambulação do Sujeito Pe-
regrinante», veja-se a fidelidade no que toca à perfeição civilizacional e
ao processo de remissão dos pecados, e a expansão francesa subordinada
à inversão da observação antropológica em que o português é objeto do
olhar do Outro enquanto come com as mãos; finalmente, no quinto mo-
mento, «O Retorno a Portugal» destacam-se as expansões frásicas e/ou
textuais acerca do castigo divino e da aceitação abnegada do destino
nos diferentes textos. De enfatizar o respeito que todas patenteiam no
«incipit» e no «explicit», segundo o autor António Rosa Mendes, «duas
asas minúsculas mas estabilizadoras» que conferem «equilíbrio e unidade
orgânica»1 à obra original e aos textos de chegada, atendendo, suponho,
ao gosto por narrativas de aventuras dos diferentes destinatários.
1
António Rosa Mendes, A ‘Peregrinação’ e a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto,
Olhão, Gente Singular Editora, 2011, p. 6.

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A Tradução da Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto
em Espanha, França, Inglaterra e Alemanha no século XVII 345

Para além destes, outros processos foram adotados nas várias ver-
sões, de entre os quais saliento a adaptação, a modulação, a tradução
interlinear e a tradução interlingual, no âmbito de questões linguísticas,
culturais, editoriais e factuais.
Quanto às razões das opções tradutológicas características de cada
texto, no caso espanhol, terão resultado, em grande medida, da neces-
sidade de clarificar determinados factos e informar o seu público-leitor,
intenção corroborada nas notas laterais e nos apartes parentéticos. Este
tradutor preocupou-se, de forma incansável, com a veracidade do relato,
com a natureza da Peregrinaçam e com o estilo de Fernão Mendes Pinto.
Na tradução francesa, é percetível uma intenção de «melhorar» o texto,
a escrita, a forma de dizer as coisas, indo ao encontro do gosto e da exi-
gência do seu público-leitor. Este tradutor revelou-se menos preocupado
com determinados pormenores ou certas informações demasiado roteirísti-
cas ou quantificadoras, tendo optado por proceder a alterações estilísticas
que adaptam o texto às regras e à estrutura da língua francesa da época.
Relativamente às traduções inglesa e alemã, a intenção de assegurar
a boa receção fez-se sentir de forma notória. As compressões e supressões
de passagens em que se percebe um elogio aos membros do clero católico
estarão em ambos os casos intimamente relacionadas com os contextos
religiosos de chegada, enfim com a censura dos seus rituais com o intuito
de agradar às autoridades protestantes.
Tendo em conta as constatações apresentadas e face aos paralelismos
estabelecidos entre a Peregrinaçam e as traduções em estudo, considero
que os tradutores Bernardo Figueira e Herrera Maldonado foram aqueles
que procuraram traduzir mais fielmente e de forma completa esta obra,
revitalizando-a notoriamente. Henry Cogan, não descurando o facto de a
sua tradução não ser completa, dado que a sua preocupação com a re-
ceção do texto o tenha levado a suprimir a passagem relativa à missão
de Francisco Xavier, foi um tradutor que procurou também ser fiel a uma
parte substancial da mensagem de partida. Os tradutores alemães foram
os que mais se afastaram, avaliando o recurso mais frequente às compres-
sões textuais, e a adoção da supressão de todas as referências ao padre
Francisco Xavier, procedimentos patentes na sua tradução-adaptação in-
completa, ainda que a intenção de agradar e satisfazer o gosto de seu

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346 Sandra Pina Gonçalves

público-alvo os tenham levado a dar a conhecer muito do que nesta obra


portuguesa se pode encontrar.
Concluo, assim, que a análise comparativa das traduções espanhola,
francesa, inglesa e alemã com a obra original e entre si demonstrou que
são textos com características próprias de cada tradutor, variando ao ní-
vel do grau de criatividade e/ou de estética, publicados em contextos
diferentes e dirigidos a públicos-leitores com gostos e vivências distin-
tos, tendo, não obstante, todas elas contribuído para ampliar e difundir
esta obra-prima da literatura e cultura portuguesas, reconhecendo-lhe um
valor inigualável e uma riqueza informativa e expressiva invulgares.
Face ao exposto, penso que a metáfora «les belles infidèles», aplican-
do-se a todo o ato tradutivo, também se aplica a estes textos de chegada
que foram modificados, embelezados e reajustados em função de novos
objetivos, leitores e contextos, influenciando a sociedade recetora e, pa-
ralelamente, a evolução dos géneros, desde então e até aos nossos dias,
nos vários locais por onde se difundiu a «tosca e rude escritura» de Fernão
Mendes Pinto.
Considero ter dado um contributo, com este trabalho de investigação,
para o estudo das traduções do século XVII da Peregrinaçam, mas também
tenho plena consciência de que tal empreendimento ambicioso requer a
abordagem de outras facetas que aqui não puderam ser consideradas. O
alargamento dos dados textuais para análise, a abordagem dos contextos
de produção/receção das traduções ou a inclusão do estudo da tradu-
ção neerlandesa são alguns dos exemplos que requerem ainda a minha
atenção futura (e a de outros interessados na matéria).

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Bibliografia

PINTO, Fernão Mendez (1614), Peregrinaçam de Fernão Mendez


Pinto, Lisboa.
PINTO, Fernan Mendez (1620), Historia Oriental de las Peregrina-
ciones, tradução de Francisco de Herrera Maldonado, Madrid.
PINTO, Fernand Mendez (1628), Les Voyages Advantvrevx de Fernand
Mendez Pinto, tradução de Bernard Figvier, Paris.
PINTO, Fernand Mendez (1653), The Voyages and Adventures of Fer-
nand Mendez Pinto, tradução de Henry Cogan Gent, London.
PINTO, Ferdinandi Mendez (1671), Die w`‘underliche Reisen Ferdi-
nandi Mendez Pinto, tradução de X., Amsterdam.
PINTO, Fernão Mendez (1995), Peregrinaçam de Fernão Mendez
Pinto, edição fac-similada de José Manuel Garcia, Maia, Castoliva Edi-
tora.
MENDES, António Rosa (2011), A ‘Peregrinação’ e a Peregrinação
de Fernão Mendes Pinto, Olhão, Gente Singular Editora.
Um olhar estrangeiro: as impressões de Francis de
Castelnau em sua viagem pelo Brasil

Flávia Lúcia Espíndola Silva

Doutoranda/Universidade Federal Fluminense

Resumo: A partir da tradução de trechos selecionados da coletânea inti-


tulada Expédition dans les parties centrales de l’Amérique du Sud, de Rio de
Janeiro à Lima, et de Lima au Para, exécutée par ordre du gouvernement fran-
çais pendant les années 1843 à 1847, sous la direction de Francis de Castelnau,
analisaremos como o olhar do Outro interpreta a cultura, a relação entre brasi-
leiros, europeus, índios e escravos e a sociedade brasileira da primeira metade
do século XIX.

Palavras-chave: Relato de viagem; Literatura Comparada; identidade nacio-


nal.

Francis de Castelnau foi designado pelo Rei de França para realizar,


juntamente com dois botânicos e um taxidermista, uma expedição à Amé-
rica do Sul e investigar a fauna e a flora do continente. Entre 1843 e
1847, Castelnau ‘desbravou’ o Brasil até o Peru, fazendo anotações muito
além da fauna, da flora, da geografia e da geologia encontradas.
Viajar. Lançar-se ao mar e descobrir novos mundos. Encontrar a No-
vidade, o diferente, o exótico, o Outro. . . E, nesta descoberta, reconhecer a
si mesmo e se encontrar. Partiram, assim, todos os exploradores europeus
em busca das especiarias, do ouro e da prata, do Novo Mundo. . . e de seu
reconhecimento no Outro.
350 Flávia Lúcia Espíndola Silva

Na história do Brasil, o século XIX é marcado pelas inúmeras visitas


que ao país fizeram eminentes personalidades, entre elas, notáveis viajan-
tes naturalistas. Auguste Saint-Hilaire, Johann Emmanuel Pohl, George
Gardner e Francis Castelnau foram alguns desses que se lançaram ao
mar com o intuito de explorar cientificamente as terras novas. É mis-
ter ressaltar que os relatos desses viajantes são alguns dos elementos
fundamentais na construção da identidade nacional brasileira. Afinal, «a
América dos viajantes não existe pelo que ela é, mas sim pelo que não
é. Em outras palavras: ela não é Europa», de acordo com as palavras de
ROUANET (1991: 70).
Influenciados pelas doutrinas científicas e filosóficas em voga, esses
viajantes elaboravam sua descrição do Brasil, fundamentando-se no de-
terminismo, no evolucionismo e no positivismo para explicar a realidade
social do país. Tais teorias foram incorporadas e adaptadas pela elite inte-
lectual brasileira da época que nelas se respaldava para explicar questões
étnicas e construir uma identidade nacional.
Ao comparar América com Europa, as marcas da identidade nacional
se construíam, reforçando a (inquietante) estranheza entre suas culturas
e seus povos. À Europa e aos seus colonizadores/exploradores, cabia a
tarefa de domesticação do povo americano, adequando seus padrões aos
parâmetros já existentes. Desta forma, as expedições ditas científicas
assumiam missões, posto que desempenhavam uma função simbólica e
atuavam como agentes propagadores de melhorias para a nação explorada.
De certo, o objetivo último das expedições visava os interesses finan-
ceiros. No Mundo Novo ou nas Índias, as riquezas naturais possibilita-
riam o acúmulo de alguns muitos baús da melhor moeda: ouro, além do
acúmulo do próprio.
Em nosso estudo, nos detemos às contribuições da expedição do na-
turalista Francis de Castelnau. Entusiasta do Novo Mundo, Castelnau já
havia realizado expedições à América do Norte e à África. Entretanto,
seu fascínio maior era pelo hemisfério sul do continente americano. Nas
páginas iniciais de seu relato intitulado Expédition dans les parties cen-
trales de l’Amérique du Sud, de Rio de Janeiro à Lima, et de Lima au
Para, exécutée par ordre du gouvernement français pendant les années

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Um olhar estrangeiro: as impressões de Francis de Castelnau
em sua viagem pelo Brasil 351

1843 à 1847, sous la direction de Francis de Castelnau, esse fascínio se


manifesta. Diz ele:

«Mas, de repente, a grande figura de Colombo vinha, como um es-


pectro imenso, exigir o meu respeito; apoiando-se em Cortez e Piz-
zarro, ela parecia me repreender pelo abandono no qual eu deixava
esse continente inventado pelo seu gênio. Então, o resto do mundo
era esquecido. Niágara, Mississipi e Amazônia absorviam comple-
tamente os meus pensamentos. Perder-se com os selvagens nos
lagos outrora franceses do Canadá, perseguir bisões nas pradarias
do Oeste, visitar as minas de prata do México e de Potosí e as
formações auríferas do Brasil, estudar esses seres anormais que se
escondem entre as árvores tão variadas dos trópicos. . . Esse era o
sonho ao qual me abandonava. Oh! Nesse momento, minha cabeça
se perdia e eu ficava louco de felicidade e ávido de curiosidade.»
(CASTELNAU, 1850, p. 11)

Entre 1843 e 1847, Castelnau ‘desbravou’ o Brasil até o Peru, fazendo


anotações muito além da fauna, da flora, da geografia e da geologia en-
contradas. Segundo o próprio Castelnau, seus manuscritos foram perdidos
e o relato somente foi possível graças aos esforços de memória e à corres-
pondência entre as famílias e os integrantes da expedição. Na Introdução,
no primeiro Tomo, Castelnau afirma:

«A perda de todos esses documentos será sentida durante o curso


desse relato e o leitor perceberá frequentemente a impossibilidade
que tenho de dar à minha narração uma importância igualitária.
Em alguns momentos, tenho numerosas anotações; em outros, sal-
vei menos material. Enfim, de alguns momentos, não tenho mais
nenhum documento e me vejo reduzido a indicar sumariamente e de
memória os principais acontecimentos da viagem.» (CASTELNAU,
1850, pp. 21-22)

Entretanto, como o explorador usou de tanta precisão citando datas,


nomes, situações de forma tão detalhada? Qual seria a fronteira entre
a memória e o imaginário desse viajante e de seus relatos? Ou seria
pura estratégia argumentativa para diminuir as expectativas do leitor, o
surpreendendo com seus relatos? Para ilustrar uma dessas estratégias

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352 Flávia Lúcia Espíndola Silva

argumentativas, reproduzimos aqui um trecho dessa mesma Introdução em


que diz Castelnau:

«Este relato deve, então, ser considerado como redigido apenas a


partir das informações que escaparam do desastre que causou a
perda de mais de quatro anos de trabalhos contínuos. Por causa
dessa triste circunstância, ele tem direito à indulgência do público
ao qual o submeto hoje.» (CASTELNAU, 1850, p. 22)

Desta forma, Castelnau se qualifica como aquele que merece a bon-


dade e a credibilidade de seu leitor, pois o atraso na publicação de seu
relato deve-se a fatos alheios a sua vontade, como arrola ainda em sua
Introdução:

«A crise financeira que sucedeu os acontecimentos políticos de 1848


não é a única causa do atraso que sofreu a publicação desta obra;
havia voltado para a Europa num estado de saúde que não me
permitiu, por muito tempo, nenhum tipo de trabalho: fiquei quase
cego durante um ano. Hoje, enfim, de volta ao Brasil, onde exerço as
funções de cônsul do governo francês, sou obrigado a me entregar a
um trabalho considerável, sem nenhuma ajuda e privado das obras
mais indispensáveis; então, posso apenas solicitar novamente, e em
todos os sentidos, a indulgência do público para uma obra redigida
em circunstâncias tão desfavoráveis.» (CASTELNAU, 1850, p. 31)

Apesar da delonga na publicação e da falta de documentos ditos im-


portantes, Castelnau escreveu seis tomos de informações preciosas sobre
a sociedade, sobre os costumes, sobre as etnias indígenas e africanas (os
escravos trazidos para suprimir a necessidade de mão de obra), sobre a
miscigenação das raças, sobre a fauna e a flora, sobre a geologia e a
geografia do Brasil, sobre as curiosidades do estrangeiro sobre o ‘exó-
tico’ habitante dos trópicos mantêm-se em silêncio. Restritas a um número
limitado de leitores que dominam a língua francesa.
Entrementes, tal silêncio se quebrará. Como resultado do trabalho do
grupo de pesquisa capitaneado pelas Professoras Doutoras Maria Eli-
zabeth Chaves de Mello e Maria Ruth Machado Fellows, uma antologia
desse relato está sendo traduzido e em breve estará acessível aos falantes
de língua portuguesa. As traduções aqui apresentadas são retiradas dessa

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Um olhar estrangeiro: as impressões de Francis de Castelnau
em sua viagem pelo Brasil 353

antologia. No presente momento de nosso trabalho, estamos analisando


o relato do Tomo I.
Ao falarmos de tradução, é inevitável a associação entre a tradução
de um vernáculo e a tradução de uma cultura. Sendo a tradução uma
atualização de conhecimentos prévios ou pré-constituídos, ela consiste em
uma tentativa de decifração do sentido através da procura de aproximações
entre várias esferas de intimidade. Desta forma, traduzir textos ou traduzir
‘sociedades’, nesse ponto, assemelham-se.
As traduções sempre estão imersas em questões de identidade e po-
der. Assim, reescrever é manipular. Hierarquia, hegemonia e dominância
cultural refletem-se nas traduções. As observações de Castelnau refletem
sua ‘tradução’ do Brasil.
Castelnau reproduz a visão do colonizador sobre o colonizado ao des-
crever a população local, tanto indígena quanto africana. Entretanto, à
população indígena, admira por sua aparência saudável, apesar de a reco-
nhecer como oponente feroz e violento; vide seus hábitos antropofágicos.
Já em relação à última, reproduz o conceito – ou antes, o pré-conceito –
da sociedade de então. É importante salientar que não há pensamento
humano imune às influências ideologizantes de seu contexto social. Desta
maneira, o negro será sempre reproduzido como ‘preguiçoso’. Relata Cas-
telnau:

«Seria impossível descrever a alegria que senti pisando pela pri-


meira vez no continente africano, onde tudo era novidade para mim.
Tendo estudado, durante longos anos, a raça africana transportada
para as colônias da América, sempre havia desejado ardentemente
vê-la em seu próprio país, livre e independente. Mas confesso que
essa experiência não fez mais do que confirmar as ideias que eu
tinha formado sobre o pequeno desenvolvimento intelectual dessa
variedade da raça humana. Como na América, encontrei-a aqui em-
brutecida pela bebida e pelas mais absurdas superstições; cômica
em todos os seus movimentos, ela lembra sem cessar o macaco. O
fato é que, livre na África ou escravo no Novo Mundo, o negro é
sempre preguiçoso, depravado, ladrão e mentiroso; e a extrema fa-
cilidade com que se submete à escravidão prova nele a ausência
de uma das mais nobres faculdades da alma humana. Reduzido ao
cativeiro, o negro engorda; o Índio da América se deixa morrer.»
(CASTELNAU, 1850, pp. 44-45, grifo nosso)

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354 Flávia Lúcia Espíndola Silva

Um dos aspectos mais chocantes para Castelnau e seus conterrâneos


era a prática da escravidão em território brasileiro. Nas colônias fran-
cesas, o tráfico de escravos já havia sido abolido em 1815. No Brasil, a
mão de obra escrava sustentava a economia. Segundo CARELLI, «o lugar
reservado ao negro na sociedade colonial luso-brasileira choca por seu
arcaísmo a partir da “redescoberta” do Brasil no início do século.» (1994,
p. 67).
Exemplificando esse choque, trazemos um trecho em que Castelnau,
descrevendo a crueldade a que era submetido um escravo, se mostra con-
trário a alguma dessas ideias pré-concebidas:

«Ficamos pouco tempo no Hotel Pharoux. Para nos dedicarmos a


nosso trabalho, precisávamos de mais espaço do que um hotel pode
oferecer. Bastava que nosso sono fosse perturbado, às vezes, pelos
gritos de um escravo infeliz sendo castigado para que tivéssemos
vontade de nos afastar dali. Cabe lembrar que o mau tratamento que
o homem inflige aos seres que o cercam está em proporção direta
à semelhança que esses têm com aquele. Assim, os animais do-
mésticos, tais como os gatos, os papagaios etc, só recebem carícias,
ao passo que o cavalo e – sobretudo – o cão, muito mais chegados
à sua intimidade e de quem recebe benefícios reais, são alvo de
suas sevícias. Contudo, se algumas leves chicotadas são infligidas
a esses últimos, o que são estes castigos em comparação àque-
les reservados aos indivíduos pertencentes à ordem inferior de sua
própria espécie [os escravos]? Para estes, o homem vê necessidade
de chicotes gigantescos. Para eles, também, se diverte construindo
pelourinhos. E, a seu ver, o menor erro só parece ter sido sufi-
cientemente punido quando as carnes estão dilaceradas e o sangue
espirra. Compreende-se, assim, que os romanos, que tinham escra-
vos brancos em tudo semelhantes a si próprios, tenham chegado ao
cúmulo da crueldade, a ponto de se deleitarem com o espetáculo
das últimas convulsões da agonia de seus irmãos.» (CASTELNAU,
1850, pp. 65-66)

Imbuído no cientificismo e antevendo as teorias evolucionista e deter-


minista, Castelnau, no capítulo III, intitulado «Zoologia – Geologia

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Um olhar estrangeiro: as impressões de Francis de Castelnau
em sua viagem pelo Brasil 355

– Estabelecimentos públicos – Estado moral dos habitantes – Agricultura»,


faz um breve estudo sobre a miscigenação do povo brasileiro. Vejamos:

«Quando se chega pela primeira vez da Europa aos trópicos, fica-


-se particularmente chocado com as cores variadas que o sistema
cutâneo dos homens que nos cercam apresenta. O Brasil, mais do
qualquer outro país, encontra-se nessa condição. Logo ao chegar,
você é cercado por pessoas de todos os matizes, desde o negro mais
escuro ao amarelo cobre.» (CASTELNAU, 1850, p. 130)

Mais adiante, relata:

«Os brasileiros propriamente ditos têm a aparência de seus pais


portugueses. São, aliás, geralmente pequenos e pouco vigorosos,
de tez escura; seus traços são em geral regulares e sua inteligência
bastante viva. A maioria deles tem sangue de cor e, em muitas
localidades do interior, pode-se dizer que toda a população é negra
ou mulata. Aqui, não existe qualquer preconceito de cor, e, na
mesma família, você vê, frequentemente, crianças com nuances das
mais opostas.» (CASTELNAU, 1850, p. 130)

Talvez, uma das visões/reflexões mais interessantes de Castelnau so-


bre a população local, sobre o imenso ‘caldeirão’ étnico da formação do
povo brasileiro seja a passagem abaixo, onde Castelnau classifica as ‘es-
pécies’ encontradas, de acordo com suas observações:

«Aqui, os mestiços são muito comuns e, sobre eles, obtive as se-


guintes informações:
1a ) O filho de um branco e de uma índia tem a aparência de sua
mãe: seus cabelos são grossos e seus olhos oblíquos.
2a ) O rebento de um índio com uma negra se chama cafuzo: tem os
cabelos crespos, os olhos oblíquos e a cor de um bronze escuro.
3a ) O mestiço de um índio e de uma cafuza tem os cabelos quase
lisos ou ligeiramente frisados, os olhos oblíquos e a cor do índio.
4a ) O mestiço da mistura anterior e do índio tem a aparência do
último e pode ser considerado um puro sangue.
5a ) A mistura de um branco e de um mestiço número 1 tem a cor
ligeiramente acobreada, os cabelos duros e os olhos oblíquos.

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356 Flávia Lúcia Espíndola Silva

6a ) A mistura do branco e do número anterior é branco. Seus ca-


belos têm a aparência comum, mas são sempre de um negro escuro.
Os olhos permanecem ligeiramente oblíquos.
7a ) Enfim, o mestiço de um branco e o da mistura número seis
pertence completamente a nossa raça.
Por meio de diversas conversas com os plantadores, certifiquei-me
que, para os que são negros, após quatro gerações misturadas, os
filhos tornam-se brancos e que é necessária a quinta geração para
que eles sejam negros novamente – o que é uma bela prova a favor
da lei da progressão das raças.» (CASTELNAU, 1850, pp. 205-206)

Ao partir rumo à América do Sul, Castelnau possuía uma visão de que, se


existisse um paraíso na terra, era para lá que estava se encaminhando.
Entretanto, o Brasil de seu imaginário não se revelou de todo na prá-
tica. Em Terra Brasilis, o encontro com o Outro, refletiu – num primeiro
momento – uma visão muito próxima ao mesmo, ao eu, ao europeu. É a
natureza exuberante que lhe trará o deslumbramento.
O estranhamento e a falta de parâmetros na percepção da alteridade
marca o olhar desse viajante – de todo o viajante europeu contemporâneo
de Castelnau, é bem verdade. Movidos pela visão europeia de mundo,
esses viajantes analisam a realidade de uma forma impressionista, sem
considerar as especificidades de cada povo, mantendo como modelos de
avaliação dos nativos as normas e os valores europeus.
Sobre Castelnau e sua expedição muito ainda há por se dizer. Nosso
estudo encontra-se ainda em fase inicial. O exposto aqui é apenas o
estopim de minhas inquietações e meus estranhamentos ao entrar em
contato com o relato desse viajante.

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Bibliografia

CARELLI, Mario (1994). Culturas cruzadas: intercâmbios culturais


entre França e Brasil. Tradução Nícia Adan Bonatti. Campinas, SP:
Papirus.
CASTELNAU, Francis de Laporte (1850). Expédition dans les parties
centrales de l’Amérique du Sud, de Rio de Janeiro à Lima, et de Lima au
Para, exécutée par ordre du gouvernement français pendant les années
1843 à 1847, sous la direction de Francis de Castelnau. Paris: Beertrand,
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TODOROV, Tzvetan (1993). Nós e os Outros – vol. 1. A reflexão
francesa sobre a diversidade humana. Tradução Sérgio Góes de Paula.
Rio de Janeiro: Zahar.
Cartografar a Literatura:
contributos da abordagem geocrítica para a
perenidade da Literatura de Viagens

Sara Cerqueira Pascoal

Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto


Instituto Politécnico do Porto
CEI – Centro de Estudos Interculturais e IELT (FCSH-UNL)
spascoal@iscap.ipp.pt

Resumo: Quatrocentos anos após a publicação, pelos prelos de Pedro Craes-


beck, de uma das obras mais relevantes da Literatura de Viagens portuguesa,
a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, pretende esta comunicação abordar
novas metodologias de análise destas narrativas, propondo-se nomeadamente
uma perspetiva geocrítica. Se é verdade que a Literatura tem estabelecido rela-
ções metodológicas com outras Ciências Humanas e Sociais, como a História, a
Sociologia, a Filosofia, a Antropologia ou a Psicologia, que têm redundado em
frutuosas revelações, já as suas relações com a Geografia são tímidas e por vezes
relutantes. A despeito das brilhantes intuições dos nossos primeiros geógrafos –
Amorim Girão ou Orlando Ribeiro – que cedo mediram o valor das relações entre
Geografia e Literatura, são atualmente muito parcos os estudos que usam fontes
literárias na reconstituição do saber geográfico e métodos geográficos para a
análise literária. Há, no entanto, algumas contribuições, que seguem a esteira
de investigadores estrangeiros, como Tuan, Pocock, Moretti, Chevalier, Bailly.
Recentemente, em Portugal, o uso de fontes literárias na análise geográfica tem
sido efetuado por investigadores como Fernanda Cravidão, Rui Jacinto ou João
Carlos Garcia. A Literatura não pode virar as costas à importância dos métodos
geográficos na análise literária. Tal como afirmou Charles Batten (1978), «travel
360 Sara Cerqueira Pascoal

books also bear a striking resemblance to descriptive geographies in their treat-


ment of such subjects as the physical appearance, customs, commerce, history and
laws of specific areas». Partindo, num primeiro momento, do estado de arte do
cruzamento dos estudos literários com os estudos geográficos, esta comunicação
apresenta exemplos de cartografia temática elaborada com base nos itinerários
percorridos em algumas narrativas de viagem portuguesas da segunda metade
de Oitocentos, revelando muitas das vantagens e novas metodologias que advêm
da abordagem geocrítica.

Palavras-chave: Narrativa de viagens; Geografia literária; Cartografia te-


mática; Geocrítica.

A abordagem crítica das narrativas de viagens tem sido sobretudo


encetada pela Literatura Comparada, e mormente pelos estudos imagoló-
gicos, em que a viagem é encarada enquanto prática cultural, mas igual-
mente enquanto espaço propiciador de um contacto com o Outro, que se
cristaliza na criação de auto e hetero-imagens e na consolidação da iden-
tidade nacional, pela atitude comparativa que se estabelece em contacto
com o estrangeiro1 . A abordagem imagológica da Literatura de viagens
tem servido essencialmente o propósito de contribuir para entender a
aprofundar a formação das identidades nacionais, uma vez que, tal como
sublinharam Elsner e Rubiès, “(. . . ) the literature of travel not only exem-
plifies the multiple facets of modern identity, but it is also one of the
principal cultural mechanisms, even a key cause, for the development of a
modern identity, since the Renaissance” (ELSNER e RUBIÈS, 1999: 4).
Se a perspetiva imagológica nos tem dado preciosos contributos no
quadro da análise da Literatura de viagem e de construção de um conhe-
cimento sobre a imagem ou representação do estrangeiro, particularmente
a) a imagem de um referente estrangeiro, b) a imagem se uma nação2 , c) a
imagem conformada pela sensibilidade autoral (MOURA, 1999:184), nos
últimos tempos, de uma forma consolidada nos países anglo-saxónicos e,
de forma mais tímida, em Portugal, temos assistido a um verdadeiro spatial
turn, isto é, um interesse crescente dos estudos literários pelo espaço e
pelos métodos geográficos. Esta relevância dada à dimensão espacial foi
1
Ver OUTEIRINHO, 2000.
2
BELLER e LEERSSEN, 2007.

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Cartografar a Literatura: contributos da abordagem geocrítica
para a perenidade da Literatura de Viagens 361

interpretada de diversas formas pelas Ciências Sociais, uns sustentando


que a pós-modernidade se caracterizaria por uma inversão da hierarquia
entre tempo e espaço, outros invocando um fim da História. Não é que a
História tenha sido posta de parte, mas parece haver um declínio de um
certo modelo histórico. Na verdade, a inscrição dos fenómenos humanos
e sociais no espaço tem interessado cada vez mais as Ciências Sociais e
até a História. Não podemos deixar de relembrar, por exemplo, Fernand
Braudel que propôs o termo “geohistória” para descrever as relações que
uma sociedade mantém na História e na diacronia com o espaço. Para
além da Geohistória, outra terminologia surgiu para dar conta desta nova
metodologia. As novas designações como Geocrítica3 , Geopoética4 ou
Geofilologia parecem, de facto, encerrar novas metodologias e desafios
para os estudos literários. E quais são estes desafios?
Daniel-Henri Pageaux num artigo inserido na recolha La Géocritique
mode d’emploi, editado por Bertrand Westphal, em 2000, interroga-se
precisamente sobre a questão, a saber, não só qual o lugar da Geografia
na metodologia comparatista, mas sobretudo qual a sua utilidade. Pa-
geaux responde-nos desta forma: “La prise en compte de la géographie
permet d’entrevoir, sinon d’élucider la nature, la fonction et les modalités
d’étude de l’imaginaire littéraire et d’approcher des questions qui touchent
la création poétique” (PAGEAUX, 2000 : 157).
Por seu turno, o próprio Bertrand Westphal, que cunhou o termo Geo-
crítica, neste mesmo livro, descreve-nos uma metodologia capaz de “arti-
cular” a literatura em torno das suas relações com o espaço, de promover
uma Geocrítica, poética, cujo objeto seria não o exame das suas relações
com o espaço na literatura, mas as interações entre espaços humanos e
literatura.
A despeito das brilhantes intuições dos nossos primeiros geó-
grafos – Amorim Girão ou Orlando Ribeiro – que cedo mediram o valor
das relações entre Geografia e Literatura, são ainda muito parcos os es-
tudos portugueses que usam fontes literárias na reconstituição do saber
geográfico.

3
Termo cunhado por Bertrand Westphal (WESTPHAL, 2000 e 2007).
4
Termo conhecido desde a década de 70 e ilustrado sobretudo por Kenneth White.

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362 Sara Cerqueira Pascoal

As relações entre Geografia e Literatura são, porém, já muito remotas.


Se recorrermos às palavras de Maurice Chevalier, remontam a 1907: “(. . . )
la mention la plus ancienne que j’ai pu repérer apparaît en 1907 sous la
plume d’un essayiste quelque peu polygraphe ” (CHEVALIER, 2001 : 17).
Na verdade, desde a Antiguidade, e, mais tarde, no século XIX, se recorria
aos relatos de viagem para a produção do conhecimento geográfico. Basta
relembrar os estudos de Alexander von Humboldt. Também o I Congresso
Internacional de Geografia, realizado em Bruxelas, em 1871, teve como
tema, numa das quatro sessões, a rubrica “Navegação e Viagens” (CAPEL,
1989: 20).
Apesar destas origens “longínquas” da relação entre Geografia e Li-
teratura, a verdade é que teremos de aguardar até à década de 70, do
século XX, para que a produção geográfica sobre o discurso literário ga-
nhasse novo fôlego. Nos finais da década de sessenta, assiste-se a um
interesse renovado pela criação e reestruturação de novas metodologias
e novos continentes científicos, de índole marcadamente interdisciplinar.
Sob o influxo de temários e metodologias especializados pela Geografia
anglo-saxónica, multiplicam-se inéditas abordagens e renovados objetos
de investigação.
A Geografia humanista, de genética e primado anglo-saxónicos, ra-
pidamente estenderia o âmbito dos seus estudos à leitura e análise das
fontes literárias em reação contra a “nova Geografia”, de cariz teoré-
tico, abstrato e quantitativo. Trabalhos como os de SALTER E LLOYD
(1978), de SIMPSON-HOUSLEY e MALLORY (1987), POCOCK (1988),
LAFAILLE (1989), ORTEGA (1992), BROUSSEAU (1994), fornecem-nos
pistas, sugestões e novas leituras sobre a evolução das relações entre
Geografia e Literatura5 .
Em 1974, Yi-Fu Tuan, num estudo que se tornaria clássico – a obra
Topofilia – foi um desses pioneiros que defenderiam a utilização de fontes
literárias para o conhecimento geográfico. Os seus contributos continua-
riam a aprofundar-se a partir de então, com outras obras célebres como
Literature, Experience and Environmental Knowing (TUAN, 1976), “Lite-
5
Não é nosso propósito, porque não caberia dentro do âmbito de um trabalho tão
espartilhado, reconstituir exaustivamente todos os trabalhos e pesquisas que historica-
mente relacionaram Geografia e Literatura, apenas tentar fornecer um quadro conceptual
diacrónico da sua evolução.

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para a perenidade da Literatura de Viagens 363

rature and Geography: implications for geographical research” (TUAN,


1978), ensaio publicado na coletânea Humanistic Geography: prospects
and problems, editada por David Ley e Marwin Samuels (LEY, SAMUELS,
1978). Aos 81 anos, Tuan é ainda hoje um eminente geógrafo, continuando
a publicar obras de referência, nomeadamente Humanistic Geography. An
Individual’s search for meaning (2012) da Universidade de Michigan, onde
resume e passa em revisão aspetos fundamentais da sua carreira.
Nos anos oitenta, autores como Douglas Pocock, professor da Uni-
versidade de Durham, foi um dos investigadores que procuraram trilhar
também este caminho, publicando em Inglaterra obras como Humanistic
Geography and Literature (POCOCK, 1981). Continua a aprofundar a sua
obra em Geography and Literature (POCOCK, 1988) onde faz um levanta-
mento dos geógrafos britânicos que conduzem pesquisas sobre Geografia
e Literatura.
Em língua francesa, para além dos trabalhos precursores de Armand
Frémont, que foi dos autores que maior apelo lançou à Literatura em La
région, espace vécu (FRÈMONT, 1976), juntam-se Antoine Bailly com La
perception de l’espace Urbain (1977) ou a obra que editou juntamente com
Robert Scariati, L’Humanisme en Géographie (BAILLY, SCARIATI, 1990).
Na mesma esteira das pesquisas anteriores, não podemos deixar de
referir o nome de Bertrand Lévy. Professor da Universidadde de Genève,
Bertrand Lévy deu os primeiros passos usando como fonte a obra de Her-
man Hesse, com o livro Géographie humaniste et littérature: l’espace
existentiel dans l’oeuvre de Hermann Hesse (1877-1962) (LEVY, 1989).
Em 2006 e posteriormente em 2009, Lévym divulgaria uma síntese dos te-
mários da Geografia literária com Géographie et littérature. Une synthèse
historique (LEVY, 2006) e Paysages urbains nocturnes et littéraires. E-
xemples pris à Tokyo et Paris (LEVY, 2009). Dos vários artigos que pu-
blicou destacamos ainda “Géographie culturelle, géographie humaine et
littérature, position épistémologique et méthodologique”, de 1997. Atual-
mente, dirige o projeto “GeoLitt. Géographie urbaine et Littérature: my-
the, image et expérience des villes”, onde leva a cabo dois estudos com-
parados: “Paris-St-Pétersbourg à travers la littérature de Balzac et de
Dostoïevski (XIX siècle)” e “Genève-Prague à travers le discours sur la

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364 Sara Cerqueira Pascoal

métropolisation (XXX et XXI siècles)”6 . Por seu turno, Michel Cheva-


lier contribuirá igualmente com estudos fundamentais para a temática em
apreço, tais como a obra Géographie et Littérature (CHEVALIER, 2001 e
2003).
Na Universidade Paris 1, Jean-Louis Tissier tem também ele contri-
buído, desde os anos oitenta, com a leitura geográfica de obras literárias
com Paysages: expressions littéraires et audiovisuelles, a sua tese de
Doutoramento apresentada à Universidade de Paris 1 (TISSIER, 1986) e
ainda com artigos como “De l’esprit géographique dans l’œuvre de Julien
Gracq”, publicado na revista L’Espace géographique (TISSIER; 1981), ou
“Géographie et littérature”, texto inserido na Encyclopédie de Géographie,
editada por Antoine Bailly, em 1992.
Na mesma Universidade, Jean-Marc Besse tem votado as suas investi-
gações à interrogação das representações da paisagem e às experiências
do espaço, no quadro da Geografia. As suas publicações mais relevantes
são Voir la Terre. Six essais sur le paysage et la géographie (BESSE,
2000), traduzida para português pela Editora Perspetiva de S. Paulo, em
2006 ; Face au monde. Atlas, jardins, géoramas (BESSE, 2003); Le goût
du monde. Exercices de paysage, (BESSE, 2009) ou La sombra de las
cosas. Sobre paisaje y Geografia (BESSE, 2010).
Destacamos ainda, do outro lado do Atlântico, os trabalhos de Marc
Brosseau que, desde 1993, com o artigo “La géographie olfactive ou
le flair romanesque”, tem vindo recorrentemente a aprofundar as rela-
ções entre Geografia e Literatura. Dos seus últimos trabalhos constam,
por exemplo, os artigos “L’espace littéraire en l’absence de description:
un défi pour l’interprétation géographique de la littérature” (BROUS-
SEAU, 2008), “L’espace littéraire entre géographie et critique” (BROUS-
SEAU, 2011) ou “Imaginaire des bas-fonds chez Bukowski” (BROUS-
SEAU. 2012).
Em horizontes geográficos mais próximos, na vizinha Espanha, os estu-
dos geográficos também não têm descurado o papel das fontes literárias.
Na Universidade de Barcelona, Horacio Capel tem vindo, nos últimos
trinta anos, a realizar trabalhos de Geografia urbana, onde a Literatura
tem amplo destaque. Relembramos a sua publicação “Geografia y Arte
6
Cf. http://www.unige.ch/ses/geo/recherche/projets/geolitt.html.

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para a perenidade da Literatura de Viagens 365

Apodémico en el siglo de viajes” (CAPEL, 1985) e as revistas Geocritica 7


e Scripta Nova 8 que tem coordenado e impulsionado.
Uma das discípulas de Horacio Capel, Maria del Mar Serrano, tem
desenvolvido também um trabalho emblemático, utilizando os guias de
viagem nas suas prospeções geográficas, onde se destacam a sua disser-
tação de Doutoramento La percepción del espacio geográfico através de
las guías y los relatos de viaje en la España del XIX, ou os artigos, como
“ La ciudad percibida. Murallas y Ensanches desde las Guias urbanas
del siglo XIX” (1991), ou “Viajes y viajeros por la España del siglo XIX”
(1993).
Os relatos de viagem têm constituído, de facto, uma fonte privilegiada
no discurso geográfico. Sobrelevamos aqui outros contributos de geógra-
fos para o conhecimento do espaço espanhol a partir da Literatura de
viagens. De Dolores Brandis que defendeu uma tese sobre a paisagem
residencial de Madrid, destacamos “Los relatos de viajes en la construc-
ción de la imagen de la ciudad. Itinerarios de viajeros extranjeros en el
Madrid de los siglos XVI, XVII y XVIII” (BRANDIS, 2010). A compilação
Viajes y geografía, organizada por Perla Zuzman, Carla Lois e Hortensia
Castro é igualmente exemplo deste interesse (ZUSMAN, LOIS, CASTRO,
2007).
Em 2001, constitui-se na Assembleia Geral da Asociación de Geo-
grafos Españoles, o “Grupo de trabajo de Historia del Pensamiento Geo-
gráfico”9 , que utilizará fontes históricas e literárias na construção do pen-
samento geográfico. Este grupo reuniu vários interessados nas pesquisas
em Geografia literária, nomeadamente Eduardo Martínez de Pisón, Ni-
colás Ortega Cantero, Josefina Gómez Mendoza, Jacobo García Álvarez,
Francisco Ojeda Rivera, António López Ontiveros, entre outros e orga-
nizou diversos colóquios, cujas atas foram reunidas em livro10 . Estes
investigadores são responsáveis por algumas das pesquisas mais revela-
doras das relações entre Geografia e Literatura. Eduardo Martinez de
7
Cf. www.ub.edu/geocrit/menu.htm.
8
Cf. www.ub.edu/geocrit/nova.htm.
9
Ver o site do grupo em: http://www.agepensamiento.es/page.php?id=3.
10
Cf. LÓPEZ ONTIVEROS, NOGUÉ, ORTEGA CANTERO, 2006; PAÜL I CAR-
RIL, TORT I DONADA, 2007; ORTEGA CANTERO, GARCÍA ÁLVAREZ, MOLLÁ RUIZ-
GÓMEZ, 2010.

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366 Sara Cerqueira Pascoal

Pisón, catedrático emérito da Universidade Autónoma de Madrid, dedi-


cou a sua obra à análise da paisagem das montanhas, tendo publicado
Miradas sobre el paisage (MARTINEZ DE PISÓN, 2009) ou El senti-
meinto de la montaña (MARTINEZ DE PISÓN, 2010). Juntamente com
outro catedrático da Universidade Autónoma de Madrid, Nicolás Ortega
Cantero, tem publicado várias obras, no âmbito dos seus trabalhos como
membros fundadores do “Instituto del Paisaje da Fundación Duques de
Soria”, nomeadamente Los valores del paisage (MARTINEZ DE PISÓN e
ORTEGA CANTERO, 2009) e Paisage: valores y identidade (MARTINEZ
DE PISÓN e ORTEGA CANTERO, 2010).
Em Portugal, também o geógrafo Amorim Girão, no início dos anos
50, mediu a importância das relações entre a Geografia e a Literatura.
As relações entre estas duas áreas do saber sempre foram intermitentes
e pouco amplas. Amorim Girão afirmava:

“(. . . ) parece à primeira vista que não ligam muito bem estas duas
expressões – Geografia e Literatura –, e até algumas vezes elas se
têm enlaçado quando se quer diminuir a obra de muitos cultores
da ciência geográfica. Acusam-se frequentemente os geógrafos de
literatos, querendo talvez significar que eles desprezam todo o con-
tacto com a realidade, vivendo no domínio da pura fantasia. Fala-se
de “Literatura geográfica” quase sempre com intuitos de maldizer;
e, deturpando muito embora a expressão, também se terá falado de
“Geografia literária” mais ou menos no mesmo sentido.” (GIRÃO,
1952: 105).

Foi no sentido de reativar a relação entre a Geografia e a Literatura,


em boa verdade reabilitando a Geografia vidaliana, que Amorim Girão
abordou a obra de Gil Vicente em “A corografia portuguesa nas obras
de Gil Vicente” (GIRÃO, 1936a), ou “O Ribatejo na obra de Gil Vicente”
(GIRÃO, 1936b). Este mesmo geógrafo haveria ainda de apresentar ao
XVI Congresso Internacional de Geografia (Lisboa, 1949) a comunicação
“As descrições de viagens dos séculos XVI e XVII e a Geografia Humana”
(GIRÃO, 1951).
Mas depois deste impulso inicial de Amorim Girão, só muito mais
tarde, já na década de 70, se assistiria ao lançamento de um outro tra-
balho geográfico que tem como fonte o texto literário. Referimo-nos aos

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para a perenidade da Literatura de Viagens 367

trabalhos de Orlando Ribeiro e ao seu “Comentário geográfico a dois


passos de Os Lusíadas” (RIBEIRO, 1989b), ou “Camões e a Geografia”
(RIBEIRO, 1989a).
Na década de 80, serão os trabalhos de João Carlos Garcia que reno-
varão o uso de fontes literárias para a reconstituição do saber geográfico
com “Eça de Queirós na Aquitânia: o turismo no fim do século” (GARCIA,
1986), ou com Teresa Barata Salgueiro “Lisboa nos finais do século XIX.
Geografia de uma transição” (SALGUEIRO e GARCIA, 1988).
Datado de 1992, o artigo de Fernanda Cravidão “Ficção, espaço e
sociedade. Notas para uma leitura geográfica e social da obra de Alves
Redol, Avieiros” (CRAVIDÃO, 1992) continua, já na década seguinte, a
reiterar a importância da Literatura dentro da Geografia Histórica. Ainda
na mesma década, mas em 1995, Rui Jacinto contribui para a temática em
apreço com “As outras Geografias: a Literatura e as leituras do território”
(JACINTO, 1995) e, em 1997, Suzanne Daveau utiliza as cartas do Padre
António Vieira como fonte primária para uma análise em Geografia Física
(DAVEAU, 1997). Em 1999, João Carlos Garcia e Miguel Nogueira pu-
blicam “Cartas de S. Jorge (1899-1913): O Espaço vivido e recordado da
Família Lacerda” (GARCIA e NOGUEIRA, 1999).
A partir de 2000, são inúmeros os artigos e comunicações em Con-
ferências que refletem sobre as ligações entre Geografia e Literatura.
Relevamos a comunicação “Literatura e Geografia: outras viagens, outros
territórios. Emigrantes de Ferreira de Castro” (CRAVIDÃO e MARQUES,
2000), apresentada no Simpósio Internacional 500 Anos de Descobertas
Literárias, na Universidade de Brasília, ou “Lição de Geografia através
de uma poesia” (GOUVEIA e MOREIRA, 2001), apresentada ao Encon-
tro Ibérico de Professores de Geografia. Ainda em 2000, assinalamos
um outro estudo, onde a Geografia se serve da Banda Desenhada como
fonte. Referimo-nos à tese de Mestrado de Miguel Coelho, defendida na
Faculdade de Letras da Universidade do Porto e intitulada Pranchas do
Espaço Ibérico Medieval. Um olhar geográfico sobre a banda desenhada
histórica (COELHO, 2000). Mais recentemente, destacamos o trabalho
de Francisco Choupina que culminaria com uma tese de Mestrado apre-
sentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra intitulada O
Lugar do Meio – Uma leitura geográfica da obra de Miguel Torga (CHOU-
PINA, 2005). A metodologia aplicada por Choupina faz-nos revelações,

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368 Sara Cerqueira Pascoal

até aqui insuspeitáveis, sobre a obra de Torga, que a Literatura e os lite-


ratos teimam em ignorar. A Leitura geográfica da obra de Torga põe em
causa muitos dos estribilhos que, um por um, analistas da obra e carácter
torguiano vão repetindo, nomeadamente a sua transmontanidade, a sua
portugalidade e o seu iberismo. Choupina desmonta o discurso torguia-
no para provar que não passa de mera construção literária e que esses
espaços não são deveras vividos, mas meras vivências intelectuais.
Mas se a Geografia tem recorrido frequentemente à Literatura “ora
como fonte de informação primária e secundária, ora como relato subje-
tivo da experiência do espaço e do lugar, ora como denúncia da ordem
estabelecida e estímulo à mudança; ora como um meio para abordar a his-
tória da Geografia, ou ainda como recurso didático no ensino da própria
Geografia” (CHOUPINA, 2005: 34), como se tem desenvolvido a relação
entre a Literatura, geral ou comparada, e a Geografia?
Nos últimos anos, vários investigadores nos dão conta da importância
deste spatial turn, Basta referir, a título de exemplo os artigos “Lite-
rary Studies and the Spatial Turn” (WINKLER, SEIFERT, DETERING,
2012), “The Spatial Turn in Literary Historiography” (CABO ASEGUI-
NOLAZA, 2011), “Littérature et géographie: lieux, espaces, paysages et
écritures” (BARON, 2011), “Pour une géographie littéraire” (COLLOT,
2011), “Spatial turn: On the Concept of Space in Cultural Geography
and Literary Theory” (HESS-LÜTTICH, 2012), ou os livros Communica-
ting in The Third Space (IKAS, WAGNER, 2009) e Spatial Turns: space,
place and mobility in german visual culture (FISHER, MENNEL, 2010).
Nos E.U.A., Robert Tally tem sido o grande impulsionador do método
geocrítico. Tradutor da obra de Bertrand Lévy, Tally tem também pu-
blicado artigos como “Geocriticism: Mapping the Spaces of Literature”
(2009), e livros como Melville, Mapping and Globalization. Literary car-
tography in the American baroque writer (TALLY, 2009), Geocritical Ex-
plorations: Space, Place, and Mapping in Literary and Cultural Studies
(TALLY, 2011) e o mais recente, Spatiality (TALLY, 2012).
A Geografia literária, que parece ser o termo preferido, está efetiva-
mente na moda, embora possua já cerca de duas a três décadas. Uma
das contribuições mais relevantes foi, sem dúvida, a de Franco Moretti,
um italiano que é professor na Universidade de Stanford. O seu livro
– Atlas do romance europeu (1800-1900), traduzido para português em

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para a perenidade da Literatura de Viagens 369

2003, mas publicado pela primeira vez em 1998, é uma obra estruturada
em duas partes. Por um lado, Moretti interessa-se pela representação dos
espaços na Literatura, o que faz sobrelevar a metodologia da Geografia
literária e, em segundo lugar, pelo estudo da Literatura nos espaços, pelos
lugares de difusão e receção dos textos romanescos do séc. XIX, que é
no fundo a metodologia de uma Geografia da Literatura. A ideia de Mo-
retti de constituir mapas ou cartas com base nos romances tem inspirado
muitos outros investigadores, como é o caso de um dos trabalhos mais
ambiciosos que está em curso, o de constituir um Atlas do Romance Eu-
ropeu. Este projeto do Instituto Cartográfico da Universidade de Zurique,
coordenado por Barbara Piatti, recorre às mais modernas ferramentas de
Cartografia Assistida por Computador, para tentar reconstituir um Atlas
literário da Europa11 . Barbara Piatti é uma das mais recentes investi-
gadoras desta área, contando já diversas publicações em língua alemã,
entre as quais destacamos Die Geographie der Literatur. Schauplätze,
Handlungsräume, Raumphantasien (PIATTI, 2008).
No entanto, a ideia de construir atlas literário já não é nova. Em
1973, Jeremiah Benjamin Post editou An Atlas of Fantasy que reúne mais
de cem mapas que cartografam terras imaginárias, descritas nas mais em-
blemáticas obras da Literatura mundial (POST, 1973). Em 1880, Alberto
Manguel e Gianni Guadalupi publicaram O Dictionary of Imaginary Pla-
ces, que foi posteriormente reeditado em 1987 e 1999, obra definida pelos
autores como um Baedecker de terras ficcionais, cuja tradução para por-
tuguês foi editada em 2003 (MANGUEL e GUADALUPI, 2003). O livro
conta com ilustrações de Graham Greenfield e Eric Beddows, e os mapas
e plantas são de James Cook.
Na Université Sorbonne III, e com o patrocínio do CNRS, Michel Col-
12
lot e Julien Knebusch, dirigem o programa de pesquisas “Vers une Géo-
11
O projeto “A Literary Atlas of Europe”, que se propõe cartografar e analisar, através
de ferramentas electrónicas, a Geografia da Ficção, pode ser consultado em inglês em
http://www.Literaturatlas.eu/en/project/. Este projeto é coordenado pela Universidade de
Zurique com a colaboração de investigadores da Universidade de Göttingen, na Alemanha
e da Universidade de Praga, República Checa.
12
Michel Collot forneceu-nos em 2011, um estado da arte da Geografia Literária, na
sessão introdutória do programa de estudos “Vers une géographie littéraire”, disponível
em vídeo em: http://archive.org/details/Geographielitteraire1.collot.etatdeslieux.

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370 Sara Cerqueira Pascoal

graphie Littéraire”13 que possui um blog, espécie de caderno onde se


recolhem os seminários realizados no âmbito do projeto, mas também uma
bibliografia muito completa, notas de leitura e livros recentemente lança-
dos sobre a temática. Este programa visa sobretudo refletir sob as novas
designações Geocrítica, Geopoética14 ou Geofilologia, terminologia que
parece encerrar novas metodologias e desafios para os estudos literários.
Para além de Michel Collot15 e Julien Knebusch16 , fazem ainda parte
deste grupo Christine Baron ou Yvon Le Scanf17 .
Nos últimos cinco anos são inúmeros, de facto, os projetos na área da
Geografia Literária. Arrolamos apenas aqui alguns dos mais importantes.
O projeto American Tropics: Towards A Literary Geography 18 , da Univer-
sidade de Essex, terminou em 2011 e resultou já uma publicação Cuba’s
Wild East de Peter Hume (HUME, 2011). Outro projeto de cartografia li-
terária é o Digital Literary Atlas of Ireland (1922- 1949)19 que pertence à
Universidade de Dublin. Na Lituânia, o projeto Geography of Literature:
textual territories and imaginary maps 20 tenta igualmente unir a Geo-
grafia e a leitura do espaço à análise filológica, tentando focalizar a sua
atenção nos espaços reais e imaginados. Mapping St Petersburg: Experi-
ments in Literary Cartography 21 tem como objetivos cartografar a cidade
de S. Petersburgo a partir das obras de grandes autores russos, como
Dostoievski. Propósitos semelhantes apresenta o projeto Mapping Nor-
dic Literary Culture: A Virtual Exhibit sponsored by the Nordic Council
of Ministers, unindo Universidades como a UCLA, Berkeley e a Brigham
Young University22 . Finalmente, na Universidade de Lancaster o projeto
de cinco anos Spatial Humanities: Texts, Geographic Iinformation Sys-
tems and places 23 financiado pelo Conselho Europeu de Investigação visa
13
Cf. http://geographielitteraire.hypotheses.org/a-propos.
14
Termo conhecido desde a década de 70 e ilustrado sobretudo por Kenneth White.
15
COLLOT, 2011.
16
KNEBUCSH, 2012.
17
LE SCANF, 2007.
18
Cf. http://www.essex.ac.uk/lifts/American_Tropics/index.htm.
19
Cf. http://www.tcd.ie/longroomhub/digital-atlas/.
20
Cf. http://www.vilniusliterature.flf.vu.lt/?page_id=22.
21
Cf. http://www.mappingpetersburg.org/site/.
22
Cf. http://tango.bol.ucla.edu/orientnorth/intro.html.
23
Cf. http://www.lancaster.ac.uk/spatialhum/.

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Cartografar a Literatura: contributos da abordagem geocrítica
para a perenidade da Literatura de Viagens 371

a criação de uma mudança radical na maneira que o espaço, lugar e geo-


grafia são explorados nas Humanidades, unindo Linguística de Corpus
com os Sistemas de Informação Geográfica.
Em Portugal, se o interesse pela Literatura de Viagens é antigo e se
refletiu em variadas investigações, este renovado interesse da Literatura
pelos métodos geográficos parece dar apenas os primeiros passos. De
facto, ao invés da Literatura comparada e dos estudos imagológicos, a
Geografia literária é ainda muito embrionária.
Desde finais da década de setenta, com a emergência dos Cultural
Sudies, pretende-se que a abordagem dos textos de viagem se faça de
forma mais abrangente e multidisciplinar, entendendo estes textos como
culturais e abordando-os de forma complexa e aprofundada. A recente
publicação do volume “Viagens e Viajantes” da Revista CEM, Cultura,
Espaço Memória, em 2010, coordenado por Isabel Morujão e que acolhe
a colaboração de especialistas de diversas áreas, é disso exemplo. Mais
recentemente, temos assistido no nosso país aos primeiros passos para o
desenvolvimento e expansão da Geografia literária. Maria Helena Buescu
intitulou a sua abordagem das Rotas de escritores do século XX, “Torga.
Identidades humanas numa Geografia literária” (BUESCU, 2004). Resul-
tado do impulso da obra de Maria Leonor Machado de Sousa, também
o Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa tem contri-
buído para a interpretação hermenêutica da Literatura de Viagens, quer
de olhares de portugueses sobre a Inglaterra, quer de autores de expres-
são inglesa sobre Portugal.
Várias propostas de alargamento transdisciplinar têm, no entanto, sur-
gido e o colóquio promovido nos dias 22 e 23 de setembro de 2011 pelo
Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Intitulado “LÉA ! Lire
en Europe aujourd’hui. Lire, de près de loin. Close reading versus Distant
reading”, este Colóquio Internacional veio problematizar as conjeturas de
Franco Moretti que defende uma maior objetividade na leitura dos textos
literários. Destacamos também aqui os trabalhos do Congresso “Rotas
e Raízes. Identidade e Intercâmbio Intercultural de Viagens e Turismo”.
Organizado pela Universidade de Aveiro, este congresso, embora da área
dos Estudos Culturais, conseguiu congraçar a atenção de investigadores
para a importância do espaço na obra literária. Para atestar o interesse
da viagem no nosso país, o Instituto de Letras e Ciências Humanas da

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372 Sara Cerqueira Pascoal

Universidade do Minho organizou, nos dias 28 de fevereiro e 1 de março


de 2013, o colóquio “O Imaginário das Viagens – Literatura, Cinema,
Banda Desenhada”. O evento reuniu cerca de 50 investigadores liga-
dos a múltiplas áreas das ciências humanas e sociais, refletindo sobre as
poéticas e configurações imaginárias da viagem na literatura, no cinema
e na banda desenhada: ficção arturiana, Märchen, travel writing, ficção
científica, narrativa de aventuras (o romance de aventuras desde Defoe, o
cinema, a literatura popular e a paraliteratura, a banda desenhada). Da
mesma forma, o Grupo Comparatistas da Faculdade de Letras da Universi-
dade de Lisboa, com o Grupo “Locus, Spaces, Places, Landscapes” parece
começar a interessar-se por estas temáticas, nomeadamente a linha de
investigação que une o turismo e a Literatura. A organização da con-
ferência Lit&Tour: Conferência Internacional sobre Literatura e Turismo,
em Novembro de 2012, dá-nos disso conta e, no nosso país, o interesse
pela investigação na área da Geografia Literária parece começar agora a
despertar.
Este renovado interesse da Literatura pelos métodos geográficos pa-
rece dar agora passos mais firmes, nomeadamente no Instituto de Estudos
da Literatura Tradicional, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova, com a linha de investigação coordenada pela Ana
Isabel Queiroz, Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental,
que tem redundado em preciosos contributos.
Por último, gostaríamos de sublinhar duas iniciativas programadas
para o ano de 2015. De 19 a 21 de janeiro de 2015, na Faculdade de
Letras de Lisboa, congratulamo-nos com a organização do III Congresso
Interdisciplinar Literatura, viagens e turismo cultural no Brasil, em França
e em Portugal 24 e, de nos dias 23 e 24 de abril, na Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, o Colóquio Luso-Francês Géographie, langue
et textes littéraires: écrire le lieu, fictionnaliser l’espace, encontros cien-
tíficos que contribuem para a consolidação da importância dos métodos
geocríticos na renovação e na perenidade da Literatura de Viagens.
Para ilustrar a renovação e as virtudes desta metodologia, apresenta-
mos um exemplo de cartografia temática realizada no âmbito da tese de
doutoramento que apresentámos à Faculdade de Letras da Universidade
24
Cf. http://territur.wix.com/literatura-turismo15#!temas/cihc.

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Cartografar a Literatura: contributos da abordagem geocrítica
para a perenidade da Literatura de Viagens 373

do Porto, intitulada “Pela Espanha alheia: espaços vividos, espaços fic-


cionados”. Nesse trabalho, a análise das narrativas de viagem de autores
portugueses a Espanha entre 1850 e 1900 e o levantamento toponímico
efetuado permitiram elaborar uma vasta cartografia que nos deixou ante-
ver e compreender de forma mais aprofundada algumas das caraterísticas
fundamentais dos relatos de viagem portugueses a Espanha e da cons-
trução da identidade espanhola.
Em primeiro lugar, seja uma descrição panorâmica, fragmentária ou
de passeio, as cidades são sempre um momento de paragem e de descri-
ção obrigatória para os viajantes portugueses, concentrando toda a sua
atenção. E através das descrições criaram-se verdadeiras imagens lite-
ralizadas das cidades, imagens essas que perduram até hoje, sob a forma
de memórias turísticas. De facto, “la ciudad española puede llegar a ser
también de esa forma, un edén para el romántico. Como lo es Granada
en la prosa de Chateubriand. (. . . ) Granada, Sevilla, Cádiz, Córdova o
Ronda: ciudades románticas por excelencia, ciudades que quedaron in-
deleblemente grabadas en la imaginación y en la memoria del viajero.”
O mapa da Fig. 1 permite compreender quais as cidades mais va-
lorizadas e, atendendo aos vazios encontrados, as cidades cuja visita os
viajantes portugueses menosprezam. A nível regional, destacam-se niti-
damente como espaços mais percorridos os percursos por Castela ou pela
Estremadura, com destino a Madrid, e posterior visita, quase obrigató-
ria, ao Escorial. Na sequência da visita a Madrid, nota-se igualmente a
prevalência dos roteiros com destino aos países europeus, quer pelo País
Basco, quer, quando as guerras carlistas não o permitiram, pela Cantá-
bria. Um outro roteiro relevante é o que leva os viajantes rumo ao Sul de
Espanha, sobretudo às cidades da Andaluzia, Sevilha, Granada, Córdova,
Cádis e Málaga. Nota ainda para as cidades do litoral Mediterrâneo,
visitadas por barco em direção à Catalunha, nomeadamente a Barcelona
e, finalmente, para a Galiza, sobretudo o litoral. Uma colação deste mapa
com um mapa do caminho de ferro deixa-nos sobretudo antever a perfeita
coincidência entre as principais cidades visitadas e as cidades atraves-
sadas pelas linhas ferroviárias. Os percursos preferidos pelos viajantes
portugueses são os que em direção à capital, Madrid, e em direção aos
restantes países europeus, constituem os eixos ferroviários principais e os
mais importantes corredores de circulação na época, no seio da Península

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374 Sara Cerqueira Pascoal

Ibérica. Em contrapartida, Uma outra colação com o mapa das Províncias


espanholas permite isolar os espaços não frequentados pelos portugue-
ses. Desde logo, a Norte, as Astúrias, Navarra e Huesca. E no Centro
da Península, a Rioja, Guadalajara, Teruel, Cuenca, Albacete e Jaén.

Fig. 1: Cidades espanholas visitadas pelos viajantes portugueses (1850-1900)

Os métodos geocríticos permitiram-nos mais facilmente compreender


que há um predomínio de referências, em primeiro lugar e à escala regio-
nal, às regiões de Castela e de Andaluzia e, em segundo lugar, à escala
local, à cidade de Madrid e às cidades andaluzas (Sevilha, Granada e

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Cartografar a Literatura: contributos da abordagem geocrítica
para a perenidade da Literatura de Viagens 375

Córdova). Ainda à escala local, a cartografia temática também nos per-


mitiu concluir que os itinerários percorridos, os monumentos visitados e
os temários abordados pelos viajantes portugueses são estereotipados e
convivem com vazios geográficos, ou com territórios menosprezados. A
insistência das narrativas portuguesas na visita e no discurso sobre de-
terminados espaços estereotipado coincide com a codificação de uma re-
tórica nacionalista espanhola, cuja construção era partilhada também por
alguns dos mais influentes intelectuais espanhóis, com quem os portugue-
ses mantinham contactos e amizades, como Juan de Valera, Emílio Cas-
telar, Benito Perez Galdós, e essa narrativas contribuirão, em definitivo,
para a construção da identidade espanhola, pela repetição de imagens
estereotipadas e de itinerários estandardizados que se transformarão nos
locais frequentados pelos turistas atuais.

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A viagem imaginária do humanista Luis Vives
(Somnium Vivis, 1520)1

Alexandra de Brito Mariano

Universidade do Algarve
CLEPUL

Resumo: Os sonhos (somnia) são parte de uma extensa tradição literária cul-
tivada desde a remota Antiguidade e que se estende até à contemporaneidade.
Nesta apresentação pretendemos revisitar um conjunto de sonhos detendo-nos,
em particular, no sonho, ou viagem imaginária, do valenciano Juan Luis Vives.
Texto fundamental deste representante maior do Humanismo, o Somnium Vivis,
radica na fonte ciceroniana, reflecte as preocupações do seu autor relativamente
à educação e exercerá influência indiscutível no corpus da sátira humanista pos-
terior.

Palavras-chave: Humanismo; Juan Vives; Somnium Vivis; viagem; educação.

O dispositivo literário de contar ou descrever um sonho, associando-o


com frequência ao motivo da viagem, foi bastante popular entre os escri-
tores antigos. Os sonhos (somnia) fazem parte de uma tradição que foi
acarinhada desde a Antiguidade – basta para tal, e na literatura latina,
1
Este texto é uma versão abreviada da comunicação apresentada no Congresso In-
ternacional “Os fundamentos de uma Europa sem fronteiras: para o sentido universal do
humano”, realizado nos dias 13 e 14 de maio de 2014, na Universidade de Évora.
388 Alexandra de Brito Mariano

recuar até Énio (séc. III a.C.)2 – e que tem como epígono o Sonho de
Cipião (Somnium Scipionis) com que Cícero conclui o seu famoso diálogo
De Republica (séc. I a.C.). Este género de textos ficionais permeou a
Idade Média, estendeu-se pelo Humanismo e interessou autores de épo-
cas posteriores.
Passarei em breve revista um conjunto de sonhos, sobretudo huma-
nísticos, cujo modelo não é marcadamente ciceroniano, bem como alguns
textos inspirados directamente pelo Sonho de Cipião3 , para me deter no
Somnium do humanista valenciano Juan Luis Vives; texto que é um pre-
fácio à sua edição e comentário (ou Vigilia) sobre o texto de Cícero – i.e.
obra publicada com o título Somnium et Vigilia in Somnium Scipionis,
muito elogiada por Thomas More e, sobretudo, por Erasmo, mestre do
Valenciano em Lovaina e de quem este se tornou amigo.
Podemos afirmar, de forma genérica, que determinados “Sonhos” de
autores humanistas sustentam na base um interesse filológico, outros re-
flectem preocupações científicas específicas da época em que foram escri-
tos.
De entre os primeiros, é possível destacar os dois “Sonhos” com que
Petrus Nannius (1496-1557), professor de latim no Colégio Trilingue de
Lovaina, inicia os seus cursos sobre os poetas latinos Virgílio e Lucrécio,
em 15454 . Outro exemplo, bem mais famoso, é o Somnium da autoria
do filólogo e humanista flamengo Justo Lípsio, cuja edição princeps de
1581, foi impressa na tipografia plantina em Antuérpia. Lípsio, imitando
a Apocolocintose de Séneca, introduz o leitor numa reunião do Senado
onde autores, como “Salústio” e “Ovídio”, entre outros de épocas variadas,
discutem o problema dos editores e filólogos excessivamente zelosos que
corrompem os textos clássicos com emendas e alterações que considera
infelizes e desnecessárias.
De entre os testemunhos de cariz mais científico, podemos referir Sa-
turnalitiae cenae variatae somnio somnium sive peregrinatione coelesti do
2
Cfr. o célebre sonho de Énio, com o poeta grego Homero, no canto I, fragmentos 2 a
8 dos Anais.
3
Da vasta bibliografia sobre este texto do Arpinate, sua importância e influência cfr.
Pereira, 2010.
4
Respectivamente sobre Virgílio e sobre Lucrécio: Somnium sive Paralipomena Virgili:
res inferae a poeta relictae e Somnium alterum, in liber II Lucreti praefatio.

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A viagem imaginária do humanista Luis Vives
(Somnium Vivis, 1520) 389

teólogo Libert de Froidmont (1587-1653), exemplo de resistência e con-


testação às ideias de Galileu, publicado em Lovaina em 1616; ou outro
sonho, mais interessante, Somnium seu de astronomia lunari, de Johan-
nes Kepler (1571-1630), escrito em 1609 mas publicado postumamente,
após a morte do seu autor, em Frankfurt, no ano de 1634. O Sonho de
Kepler, mais conhecido e lido que o referido anteriormente, é conside-
rado uma das pérolas literárias da história da ciência e da história do
livro, pelo contributo significativo que traz para o estudo da astronomia,
geografia lunar e física em geral. Parte fantasia, parte tratado científico,
neste texto testemunhamos o lançamento de um foguete, que deixa a Is-
lândia com destino à lua, permitindo a possibilidade de Kepler defender,
em simultâneo, a doutrina de Copérnico sobre o movimento da terra.
Os testemunhos revistos inscrevem-se na tradição ficcional dos som-
nia humanísticos (e da viagem onírica por excelência) e constituem um
pequeno exemplo da vasta produção literária neolatina pós 1400 (Ijsewijn
& Sacré, 1998) cuja matriz literária não radica especificamente no Sonho
de Cipião de Cícero.
Um exemplo de influência directa da narrativa do Arpinate é, sem dú-
vida, a obra de Juan Luis Vives Somnium et Vigilia in Somnium Scipionis
editada em Antuérpia em 1520. Na primeira parte, Somnium, como vere-
mos em pormenor, o autor irá incluir-se como personagem e viajar para o
reino dos sonhos descrevendo mirabolantes peripécias. Trata-se, pois, de
uma narrativa jocosa, satírica, em clara oposição à segunda peça do livro,
Vigilia in Somnium, de tom mais sério, em que o Valenciano discute as
implicações filosóficas da obra ciceroniana5 .
Luis Vives nasceu em Valência, em 1492 (ou 1493), onde estudou e
viveu os primeiros 16 ou 17 anos da sua vida. Pertenceu à minoria de ju-
deus conversos, cristãos novos ou “marranos”, grupo que tradicionalmente
gozava de boas relações económicas e sociais com a nobreza local, mas
que foi perseguido e dizimado com a chegada da Inquisição em 1484. A
família do futuro humanista não foi poupada e o Valenciano decidiu pro-
5
Duarte de Resende, fidalgo letrado parente de João de Barros (Déc. III, liv. V, cap.
X), deixou-nos uma tradução em língua vulgar do Sonho de Cipião de Cícero que saiu
dos prelos do mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, em 1531, passados onze anos da
publicação do Somnium de Vives, numa altura em que a obra do valenciano estava bem
representada nos meios cultos portugueses.

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390 Alexandra de Brito Mariano

curar refúgio no exílio; nunca mais regressaria a Espanha. As vicissitudes


por que passou, fruto das perseguições inquisitoriais, seriam semelhantes
às sofridas por um conjunto alargado de letrados que deixaram a acossada
Península Ibérica e procuraram uma Europa mais tolerante. Viveu em vá-
rios países, aceitando o imperativo da mobilidade como parte da sua vida,
à semelhança de outros humanistas seus conterrâneos: esteve na França
(em Paris), na Inglaterra (em Oxford e Londres) e na Flandres (em Lo-
vaina e Bruges) onde morreu em 1540. Comumente considerado uma das
figuras cimeiras da res publica litterarum, em conjunto com nomes como
Budé, More e Erasmo. Vives foi, na verdade, depois de Erasmo, o hu-
manista mais lido do século XVI, alcançando o interesse de leitores em
toda a Europa e até mesmo nas possessões europeias da Ásia e América
(González González, 2008: 20 ss)6 .
Vives estudou na sua cidade natal e, mais tarde, na Universidade de
Paris, entre 1509 e 1512, onde sabemos, pela correspondência trocada
com Erasmo, que terá conhecido o letrado eborense, o eclesiástico Mar-
tinho de Portugal (Bataillon, 1952: 62). Mais tarde o Valenciano obterá
o lugar de professor de Humanidades na Universidade de Lovaina, onde
terá permanecido entre 1515, pensa-se, e 1523 (se bem que, a partir de
1512, o seu segundo lugar de residência tenha sido Bruges, onde tinha
familiares e amigos). Neste período, em particular entre 1519 e 1522,
Luis Vives publicou uma série de obras onde podemos encontrar exemplos
teóricos e sugestões mais concretas das suas ideias para a educação e
para a preservação da tradição clássica. O Somnium, de Março de 1520
– que acompanha o comentário (ou Vigilia) sobre o Sonho de Cipião,
como já referimos – é uma destas experiências literárias. Ficção, a que
Edward George apelida viagem fantasiosa ou imaginária (George, 1991:
335), que consiste numa excursão nocturna ao reino do deus Sono, onde
ocorrem vários acontecimentos que podem ser relacionados, de forma mais
ou menos directa, com as expectativas do Valenciano relativamente a uma
reforma na educação; nesta perspectiva, estes acontecimentos podem ser
lidos, igualmente, como uma procura de abertura de novos caminhos, uma

6
O estudioso jesuíta André Schott (Andreas Schottus), na sua Hispaniae Bibliotheca
(Frankfurt, 1608) considera-o uma das três figuras cimeiras da res publica litterarum, em
conjunto com Budé e Erasmo.

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A viagem imaginária do humanista Luis Vives
(Somnium Vivis, 1520) 391

lufada de ar fresco, num sistema educacional que o humanista considerava


parado, anquilosado.
Devemos notar que, um ano antes em 1519, já em Lovaina, Vives es-
crevera um texto de maior folgo que granjeou, igualmente, elogios de More
e Erasmo: o tratado Contra os pseudodialécticos (In pseudodialecticos).
Sem entrarmos em considerações sobre a famosa polémica entre escolás-
ticos e humanistas (González González, 1998: 13-40), podemos afirmar,
sumariamente, que a obra é um ataque acutilante contra o obscurantismo
e o repúdio do palavreado então em uso nas escolas dialéticas parisien-
ses. Aí se analisa a necessidade de purificar a língua latina, eliminando
barbarismos lógicos e procurando estabelecer currículos académicos mais
clássicos e adequados à realidade do que aqueles que eram à época
habitualmente seguidos. Assim, não é inusitado que o Somnium Vivis,
publicado um ano depois, espelhe as reflexões e as aspirações do seu
autor por uma reforma na educação e um regresso ao que considera os
seus princípios fundamentais.
Atentemos então em pormenor no Sonho de Vives e, a começar, no
contexto que sustenta a sua redação. Corria o ano de 1520 quando Luis
Vives, numa tentativa de captar a atenção dos alunos para a novidade dos
seus cursos na Universidade de Lovaina, decide dar algumas palestras
sobre textos clássicos. Decide-se pela explicação do Sonho de Cipião e
submete pedido ao Senado. A resposta será favorável pelo que poderá
ensinar na Faculdade das Artes, mas não sem que o seu pedido tenha
gerado um episódio caricato na Academia, uma vez que o órgão académico
consultado desconhecia a obra ciceroniana em questão e, portanto, não
sabia “a que faculdade pertencia a explicação dos sonhos” (sic) (Paquot,
1765: 117). A solicitação de Vives, no entanto, não era novidade na
Universidade de Lovaina. Alguns anos antes o colega e amigo Martin van
Dorp, que lecionava Teologia, tinha experimentado colocar em cena, nas
suas aulas de latim, peças de teatro de Plauto e um diálogo dramático
sobre Hércules escrito pela sua mão. Por outro lado, ao redigir um texto
introdutório do mesmo tipo do que irá explicar em aula, o Valenciano
segue na esteira de Ângelo Policiano (1454-1494). Sabe-se na verdade
que este professor e poeta da Renascença florentina começava os seus
cursos sobre Virgílio, recitando um poema da sua autoria que versava o
mesmo assunto. Ora Vives conhecia bem este recurso, pois na sua própria

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392 Alexandra de Brito Mariano

Praelectio ao curso que proferiu sobre as Geórgicas de Virgílio referiu-


o explicitamente e citou quinze versos do poema Rusticus de Policiano7
Hallyn, 2001: 134-135)..
Vives inicia, pois, a sua série de palestras com um sonho “sonhado” por
si próprio. O sonho literário principia quando o autor, que se encontrava a
preparar a sua apresentação, é surpreendido pela entidade Sono que, de
forma repentina e abrupta, o transporta para o reino da Noite. Vives troca
o mundo real pelo da ficção, assume o papel de personagem na narrativa
procurando, com o artifício, trazer graça e a verosimilhança possível ao
texto. Simultaneamente aproveita o ensejo – como duas décadas e meia
mais tarde Petrus Nannius, no Somnium já referido –, para ridicularizar
os estudantes da Universidade de Lovaina. Neste caso, não pelo seu
gosto pela bebida, pelo jogo dos dados, ou pelos encantos do amor, mas
sobretudo pelo laxismo e proverbial distração. E diz:
Ontem à noite, meus jovens estudantes, enquanto preparava para
vós a exposição sobre o Sonho de Cipião, eis que o Sono de repente
me trouxe à sua casa e me mostrou o próprio Cipião que dormia, e
mandou-me pedir-lhe uma explicação de todo esse celebrado sonho,
que provocou estas noites sem dormir.
A minha tarefa seria pôr-vos a par de tudo desde o começo e
descrever-vos o templo dessa divindade, em honra de quem tan-
tas vezes e de tão bom grado fizestes votos, de modo a que não
desconheceis esse lugar onde, de espírito leal e prazenteiro, tantas
vezes aparecestes para vos envolverdes em ritos sagrados8 .

Após esta irónica invectiva inicial, o escritor descreve detalhadamente


a sua viagem: a arquitectura do lugar, os seus habitantes, os deuses
7
Nas quatro lições inaugurais em hexâmetros latinos a que intitulou Silvae, Policiano
trata da obra virgiliana (Manto), da obra homérica (Ambra), do género geórgica (Rusticus)
e, mais largamente, da poética e dos poetas (Nutricia). São quatro poemas didácticos.
(GAalland-Hallyn &
8
Nas citações, seguiremos o texto latino da edição de Edward George (Vives, 1989).
Hesterna nocte, studiosi iuvenes, cum de enarrando vobis Scipionis somnio cogitarem,
Somnus me suam in aedem repente induxit ipsumque somniantem ostendit Scipionem, ex
quo me iussit percontari totius illius lucubrati et vigilati somnii enarrationem. Operae
pretium fuerit singula a capite ipso cognoscere et describere vobis templum illius dei,
cui vos tam crebro tam libenter sacra facitis, ne ignoretis eum locum in quem piis {et
condulcoratis} animis operaturi saepe convenitis. (I, 1) Sobre este passo, cfr. também
George, 1991: 337-338.

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A viagem imaginária do humanista Luis Vives
(Somnium Vivis, 1520) 393

presentes e sua genealogia, animais e hábitos de dormir, as plantas do


jardim e suas propriedades medicinais. Este reino é dominado pela Noite,
a mais antiga das rainhas que o reserva para si e onde mora, compar-
tilhando o governo com seu filho o Sono. É aqui que ele construiu o
seu palácio de ébano, pois nenhuma cor lhe agrada a si e à sua mãe,
a não ser o negro (I, 5). O porteiro e o mordomo do palácio do Sono
são o Repouso (Quies) e o Silêncio (Silentium) que estão encarregues de
afastar todo e qualquer ruído. Guardam a casa de cochichos, murmúrios,
sussurros e de todos os barulhos e vozes. Vives descreve os arredores
do palácio como a terra dos cimérios, de onde estão ausentes sons hu-
manos e animais e onde eram unicamente audíveis o suave murmúrio das
águas do rio Letes, num irresistível convite ao sono (I, 7), e o zumbido
dos mosquitos que surgiam após os lautos banquetes e pairavam sobre o
leito da divindade (I, 8). Aqui vive o Sono com sua mulher Tranquilidade
(Securitate) e as suas filhas Ociosidade (Ignavia), Apatia (Inertia), Torpor
(Torpor), Esquecimento (Oblivio), Preguiça (Desidia) e a tutora Letargia
(Veternus) (I, 8-9) – a lembrar as companheiras de Mória que desfilam na
obra homónima de Erasmo , cuja primeira versão foi composta nove anos
antes (Erasmo, 2012: 157), que certamente Vives conheceria.
Após uma descrição do poder irresistível do Sono sobre os deuses e
os mortais, o deus apresenta-nos os seus satélites, i.e. os sonhos que
o acompanham. Depois, enquanto sonhador, o Valenciano participa num
debate no Senado romano (II), espaço onde se passará a acção do já
referido Sonho da autoria de Lípsio publicado cerca de 60 anos mais tarde.
Pitagóricos, platónicos e estóicos intervêm na discussão. Todos defendem
qualidades proféticas para os sonhos, argumentando que os erros que
possam surgir se devem à fragilidade e à errónea percepção humana. Em
seguida (III) assistimos ao despertar do próprio Sono, devido ao barulho
provocado pelos “sofistas”, ou seja os escolásticos. O deus repreende
severamente Repouso e Silêncio “por terem introduzido no palácio tal
ralé” (quod tam garrulum genus hominum intromiserint, III, 39). Repouso
e Silêncio, prostrando-se junto à cama do seu senhor, pedem-lhe perdão
pelo lapso e argumentam, em sua defesa, que:

Alguns sofistas de Paris os tinham enganado infamemente, porque,


como não falavam grego ou latim, ou qualquer língua que eles co-

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394 Alexandra de Brito Mariano

nhecessem (e eles conheciam todas as línguas humanas e só ignora-


vam a divina), julgaram que eles seriam, certamente, super-homens
ou deuses uma vez que sua fala era de tal género que não po-
diam fazer mais nada a não ser votar-lhes respeito e reverência,
introduzindo-os não na sala do trono do Sono, mas no quarto dos
sonhos, onde eles [os sofistas] procuravam entrar9 .

A justificação não satisfaz o deus que ordena a expulsão e exílio dos


escolásticos; esta decisão acarreta a revolta da maioria dos sonhos que
se lhes querem juntar na demanda. O Sono insiste então que um número
suficiente de sonhos deve permanecer, para realizar as tarefas que forem
necessárias, e dá aos restantes a liberdade de partirem para onde enten-
derem. À semelhança do episódio inicial, onde Vives critica os seus alunos
de Lovaina, aqui é o deus Sono que achincalha os “sofistas” de Paris, des-
crevendo como são obrigados a abandonar o seu palácio, onde causaram
grande pandemónio, e de onde se recusaram a sair sem a companhia dos
seus amigos, os sonhos (III, 40). Lê-se, na verdade, nova crítica mordaz
à Academia, desta feita à parisiense e seus Doutores, tal como sucede
na obra In psudodialecticos (Fantazzi, 2008: 101-102), cuja inabilidade
e incapacidade para provarem as suas proposições através de palavras
comuns e normais, os levava a torcer a língua e a inventar significados de
palavras contrários ao costume e convenções em uso, para simular terem
vencido nos debates, quando não eram compreendidos.
Esta descrição do funcionamento do mundo cimério e das várias figuras
mitológicas envolvidas que encontramos no Somnium Vivis remetem-nos,
por um lado, para o catálogo de topoi clássicos sobre a noite, a morte, o
sono e os sonhos, por outro, a excursão noturna de Vives e os vários even-
tos que ocorrem devem, igualmente, ser lidos à luz das suas expectativas
de uma reforma educativa coeva, como já referimos.
Não obstante, na viagem onírica de que é o protagonista, Vives é
uma entidade praticamente inexistente (George, 1991: 341) até a visita
9
Narrant sophistas esse illos Lutetianos, a quibus sibi esset infeliciter impositum,
quippe cum nec graece loquerentur nec latine nec lingua aliqua quam ipsi nossent (no-
verant autem humanas omnes), divinam vero solam ignorarent, putarunt istos plus esse
quam homines, deos plane quosdam, qui sic loquerentur; non potuisse aliter facere quin
et reverendissime eos non ad ipsius quidem Somni, sed ad somniorum cubiculum, quo
pervenire magnis conatibus contendebant, introducerent. (III, 39).

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A viagem imaginária do humanista Luis Vives
(Somnium Vivis, 1520) 395

já estar bastante adiantada, mais precisamente até ao momento em que


Insomnium (a Insónia), uma das seguidoras do Sono, o reconhece:

Insónia, depois de ter olhado atentamente para mim, reconheceu-me


como um colega.
– Olá – disse-me – Tu és Vives a quem eu muitas vezes convenci
em amistosos debates, agora com Cícero, depois, com Quintiliano,
em Paris ou em Valência?
– Esse mesmo Vives – disse eu. Mas por favor vamos ter com Cipião
e depressa.10

O Valenciano pede, então, a Insónia para o levar a Cipião, epígono das


virtudes civis e militares da República Romana. O humanista quer saber
o significado do sonho. É então conduzido a uma sala onde o seu guia
descreve uma série de habitantes conhecidos do reino do Sono. Entre
eles encontram-se alguns dos mais famosos dialéticos e lexicógrafos do
final da Idade Média e início do Renascimento, como Ockham, Paulo de
Veneza e especialmente Juan Duns Escoto.
O encontro com Cipião, porém, não corre nada bem. Cipião parece
não ter paciência para atender o pedido do Valenciano: “Vai-te embora
o mais rápido possível, – disse ele –, porque já não sei neste momento o
que sonhei, nem quero agora prestar atenção a sonhos” (Abi, inquit, quam
primum, nam nec satis scio quae somniare, nec vacat mihi in praesentia
ut somniis animum intendam (IV, 48). Só depois de alguma insistência
Cipião Emiliano aponta para um homem que o sonhador reconhece como
Cícero. Gera-se maior confusão e acentua-se o registo cómico. Cícero
confunde Vives com um cidadão romano e envolve-se num litígio (sobre
a reabilitação dos Estudos Clássicos) entre duas fações, uma que está a
favor de Cloto e a outra de Átropos, pretendendo ambas ganhar a simpatia
da terceira moira, Láquesis (V, 54 sgs.). Cloto, que representa o presente,
tenta persuadir Láquises, que retrata o futuro, das vantagens em se man-
ter a situação actual. Os amigos de Cloto, que são homens comuns sem
posição ou prestígio, argumentam que não há necessidade de mudança,
10
(. . . ) Insomnium, et cum attentius perspexisset, agnovit congerronem. “Papae! tu
es Vives,” inquit, “cui ego soleo saepe persuadere eum modo cum Cicerone modo cum
Quintilian, tum Parisiis tum Valentiae (. . . ) versari et suavissime disputari?” “Ipsissimus,
inquam; sed ad Scipionem, quaeso te, celerius” (IV, 46)

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396 Alexandra de Brito Mariano

pois não se deve abandonar o antigo em benefício do novo (non opor-


tere aliquid mutari, non esse vetera propter nova relinquenda – V, 56).
Os seguidores de Átropos – que representa o passado –, pelo contrário,
pertencem ao escol da sociedade, ao grupo dos melhores e mais nobres
homens e incluem nas suas fileiras escritores cristãos, como S. Paulo, Je-
rónimo, Ambrósio e Agostinho, e também alguns notáveis pagãos, como
Aristóteles, Platão, Virgílio, Séneca e . . . Cícero. Estes usam argumentos
mais elaborados e sistematizados e contratam os serviços do Arpinate para
os apresentar perante a assembleia. Cícero, numa exposição muito curta
e persuasiva, defende Átropos, denuncia os seus opositores e termina a
sua exposição pedindo a Átropos que continue a envidar esforços para
restaurar o passado. Láquesis, por fim, prepara uma disposição promul-
gando a reabilitação da tradição clássica na educação. Há um consenso
e aprovação entre os contendores, tal como no céu, onde Cícero e Vives
são, desta feita, admitidos. Os deuses prometem limpar a terra, e o novo
acordo é considerado como uma espécie de restauração da Idade de Ouro.
Neste ponto do enredo, Vives usa o Orador para atacar novamente os
escolásticos. O sofisma pueril que Cícero identifica entre os seguidores
de Cloto, juntamente com o declínio acentuado no estudo de línguas an-
tigas, da filosofia e das artes que o escritor e estadista romano destaca
cruamente, é o mesmo que o Valenciano atribui aos dialécticos i.e. aos
escolásticos seus contemporâneos. Contudo Luis Vives continua ainda,
neste último estádio do seu sonho, interessado em saber o significado do
Sonho de Cipião, o significado do sonho do homem que tão profundamente
reverencia.
“Não irei ignorar o teu pedido” (Quare nec tibi id me roganti deero
. . . , VI, 64). – responde-lhe Cícero. No entanto, em vez da esperada expli-
cação sobre o significado do Sonho, a única informação que o Valenciano
consegue recolher de Cícero é um breve resumo do Somnium Scipionis, e
com este resumo a narrativa é abruptamente interrompida. “Sinto-me mais
relaxado agora, pois neste momento deixei de sonhar e de estar acordado
[estar com insónias]” (Solutior iam sum aliquanto: hac enim ipsa hora et
somniare desii et vigilare) desabafará Vives na carta (Epistula 7) que es-
creve ao seu amigo Frans van Cranevelt, o futuro Chanceler de Mechelen,
imediatamente após ter enviado a sua obra para o editor.

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A viagem imaginária do humanista Luis Vives
(Somnium Vivis, 1520) 397

Terminaremos também a nossa apresentação, defendendo sintetica-


mente que as ideias éticas e práticas da Antiguidade, uma parte essencial
da herança clássica que estão presentes no texto do Arpinate, são per-
feitamente adequadas à utilitas que Vives considera o objetivo de toda a
educação. O entusiasmo que revela pela narrativa ciceroniana – que en-
tende como a mais elegante e erudita de tudo quanto o Orador escreveu;
um pequeno treino para doutrina e instrução do príncipe perfeito11 – é
manifestamente evidente desde o início da sua ficção. No entanto a serie-
dade que encontramos no texto de Cícero não tem paralelo no Somnium
de Vives, nesta viagem fantasista, onde o delirante ambiente circundante,
a atenção festiva que atribui ao deus Sono, a confusão persistente sobre
o significado dos sonhos, os debates eternamente indecisos, mergulhados
num contínuo tom humorístico, são propícios a que tudo convirja para con-
ceder um esteio brincalhão à totalidade da narrativa, que irá influenciar,
de forma inegável, o corpus posterior da sátira humanista.

11
quo libello, perfectus et absolutus in re publica princeps instituitur atque formatur.
Nullumque est in tota philosophia praestabilius opus atque divinius. (Pref. Epist. 5) –
“a obra em que o príncipe é ensinado e formado em perfeição completa nos assuntos do
Estado; pois não existe obra mais distinta ou divina em todo o corpus filosófico”. Cfr.
também Vives, 1946: 604, 630.

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Referências bibliográficas

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A viagem imaginária do humanista Luis Vives
(Somnium Vivis, 1520) 399

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tion and notes by Edward V. George, Library of Renaissance Humanism
2. Greenwood: Attic Press Koberger Books.

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Peregrinação:
o ideário humanista de Fernão Mendes Pinto

Elisama Soraia Sousa de Oliveira

Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto

Resumo: “Peregrinação: o ideário humanista de Fernão Mendes Pinto” é


o título que enforma este artigo. Este texto deflui das reflexões e indagações
doutrinárias relativas, entre outras problemáticas, à alocação periodológica da
Peregrinação.
Postergada pela história literária, a Peregrinação viveu na penumbra durante
trinta e um anos, embora, em bom rigor, esses trinta e um anos se tenham
perpetuado, de tal forma que atualmente a atenção dedicada ao seu estudo é
ainda diminuta.
Mais do que dar conta das controvérsias a propósito da obra de Fernão Men-
des Pinto, pretende-se esboçar um exíguo estudo centrado nas sempre difíceis
questões de afetação periodológica e, consequentemente, estético-literárias.

Palavras-chave: Fernão Mendes Pinto; Peregrinação; História Literária;


Maneirismo; Barroco.

Considerações prévias

Convocando as palavras de Gabriel Garcia Márquez, “Aquele que não tem


memória arranja uma de papel” e Fernão Mendes Pinto (FMP) assim o
fez. Não que fosse falho de memória, mas, efetuando um curto exercício de
402 Elisama Soraia Sousa de Oliveira

exegese, podemos aduzir que esta memória de papel não é mais do que o
ideário onde o autor coloca as suas experiências e saberes humanistas1 .
Resta dizer que se encontram diluídos no corpo deste trabalho os tópi-
cos orientadores utilizados na sua redação, a saber: dados biográficos de
FMP; a Peregrinação nas Histórias da Literatura Portuguesa; contributos
para uma análise crítica da Peregrinação e sua alocação periodológica.
Por fim, reserva-se um espaço para as considerações finais, onde serão
apresentadas ponderações de natureza retrospetiva e prospetiva, apra-
zando as vicissitudes que ensombraram a Peregrinação. Importa salientar
que, dada a amplitude temática que abrange, este trabalho carece de
lavra de maior aprofundamento.

Fernão Mendes Pinto: do homem que sobreviveu como


personagem

Ironicamente Fernão Mendes Pinto ao talhar a personagem homónima


subjacente ao texto da Peregrinação estava a construir-se a si mesmo
enquanto personagem. É, pois, como personagem da sua própria história
que FMP tem permanecido vivo, rindo da morte.
Ora Mendes Pinto apresenta um desafio para qualquer biógrafo: do
autor pouco se sabe, o que se pensa conhecer é, não raro, dúbio e baseia-
-se maioritariamente na sua única obra. Há, porém, documentos escritos
que servem de suporte a algumas informações sobre FMP, mas ainda
assim escassos2 . Aníbal Pinto de Castro (2001) e Catz (1981) situam o
nascimento de FMP entre 1509 e 1511, em Montemor-o-Velho, facto que
1
Humanistas no sentido de mundividência utilizado por Aguiar e Silva. O valor
humanitário e axiológico espelhado na Peregrinação é também salientado por Aníbal
Pinto de Castro (1984) na sua introdução à Peregrinação.
2
Tratam-se das cartas de Fernão Mendes Pinto e dos padres Belchior de Nunes e
Diogo Mirão, que, não isentas de controvérsia (Freitas, 1929: 53-65: “Certamente por já
não pertencer à Companhia o seu autor, esta carta (a de 5 de Dezembro) foi totalmente
eliminada”), fornecem alguns dados biográficos importantes, como observa Adolfo Casais
Monteiro na “Nota prévia às cartas”, que acompanhou a edição de 1952, da Peregrinação.
Catz (1981) adianta que existem três cartas escritas por FMP, uma das quais inédita (à
data de 1981), com conteúdos essenciais para perceber o período de 1551 a 1557.

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Peregrinação: o ideário humanista de Fernão Mendes Pinto 403

se justifica através do texto da Peregrinação, em que o autor afirma que


tinha dez ou doze anos quando D. Manuel I morreu (1521) (Pinto, 1983:
14).
Proveniente de família pobre, contudo, suspeita-se (Catz, 1981), de
origens abastadas – o que justificaria a sua vinda para Lisboa, embora
seja uma hipótese rejeitada por vários estudiosos, como Pinto de Castro
(1999, 2001). Assim, para fugir à “miséria e estreiteza da pobre casa”
(Pinto, 1983: 14) é levado, em 1521, por um tio para Lisboa, onde serviu
uma “senhora de geração assaz nobre” (idem, ibidem: 14). Pouco tempo
depois, sucedeu-lhe um caso que lhe “pôs a vida em tanto risco, que para
a poder salvar” foi obrigado a sair “naquela mesma ora de casa” (idem,
ibidem: 14). Após este episódio, que FMP não explica razoavelmente,
embarcou numa caravela com destino a Setúbal. No trajeto até lá, a sua
embarcação foi assaltada por corsários franceses e, durante treze dias,
ficou cativo destes piratas (Castro, 2001, 1999 e Catz, 1981). Começam,
desta forma, os trabalhos e fortuitas aventuras de FMP.
Finda esta desventura, é acolhido em Setúbal por um fidalgo de nome
Francisco de Faria que, grato pelos serviços prestados por Pinto, o re-
comenda a D. Jorge de Lencastre, filho bastardo de D. João II. Todavia,
volvidos quatro anos, e com o incentivo do mau ordenado que auferia,
FMP decide embarcar para a Índia, em busca de melhores condições de
vida. Após este incipit narrativo, parte para a Índia, em 1537, de onde
só regressaria em 1558, não sem antes ser soldado, escravo, negociante,
embaixador, médico, missionário, entre outros cargos que por necessidade,
mais do que por vocação ou preparação, exerceu (Castro, 2001).
Em 1537, chega a Diu, local onde inicia a primeira etapa da sua
jornada pelo oriente, que o levou depois a Meca, China, Japão, Malaca,
Pegu, Samatra e Java. Durante vinte e um anos, FMP peregrinou pelo
Oriente, das intempéries que povoam a sua história salienta-se a breve
passagem pela Companhia de Jesus em 1556, ainda envolta em mistério
e alvo de débeis atentados hermenêuticos (Castro, 1999, 2001).
Quando, em 1558, regressa a Portugal, no reinado de D. Catarina,
tenta, sem sucesso imediato, adquirir uma tença por serviços prestados
à coroa. Desiludido retira-se para a quinta do Pragal, em Almada, onde
casou com Maria Correia de Brito. A tença, essa, viria a receber meses

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404 Elisama Soraia Sousa de Oliveira

antes de falecer, em janeiro de 1583, pela mão de Filipe II, de Portugal


(idem, ibidem).
Entre 1569 e 1579, dedicou-se à escrita das façanhas e provações
passadas no Oriente. A publicação do escrito foi sustida em vida do
autor, vindo a lume trinta e um anos após a sua morte, em 1614. FMP
legara a Peregrinação à Casa Pia dos Penitentes de Lisboa (Castro, 1999
e Catz, 1981).
Pinto de Castro (1999) salienta, ainda, o facto de a Peregrinação
constituir um precioso recetáculo histórico já na altura em que era es-
crita, uma vez que vários historiadores, biografistas e cronistas, entre os
quais João de Barros e um florentino (Bernardo Neri, possivelmente), pe-
diram a FMP pormenores acerca do que viu e viveu nos reinos orientais.
Atualmente a importância desta obra literária enquanto património que
avulta a nossa identidade nacional ecoa nas palavras de Luís Filipe Bar-
reto: “série documental que nos finais do séc. XVI problematiza o oriente
em termos essencialmente prosaicos, buscando respostas para a condição
portuguesa, para o ser e sentido de Portugal e dos portugueses no mundo”
(Barreto, 1986: 102).

Fernão Mendes Pinto e a História Literária

Se Eduardo Lourenço (1989) percebeu em FMP uma personalidade que,


embora anacronicamente, poderia ter palmilhado a mesma senda que
Montesquieu ou Voltaire, tendo-lhe atribuído o epíteto de “aventurei-
ro-penitente” e assinalando a sua “inocência prodigiosa” (idem, ibidem:
1053-1062), o que escapou ao olhar da história literária que tem insistido
em perpetuar o esquecimento deste autor?
De facto não são muitas as obras de história da literatura portuguesa
que dedicam algum espaço a FMP e as que o fazem pouco relevo lhe
atribuem. Não obstante, o enquadramento de uma obra eclética e hibri-
damente materializada, como a Peregrinação, ao qual se alia a míngua
de estudos (verdadeiramente) a ela dedicados – e não às questões de
verdade, ou não verdade, historiográfica, que, malgrado o motivo, têm
conseguido manter FPM em cena – torna esta labuta uma conquista de

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Peregrinação: o ideário humanista de Fernão Mendes Pinto 405

difícil alcance. De acordo com o compromisso sumariado no início da ex-


posição, neste ponto dar-se-á lugar à concetualização da Peregrinação
em algumas histórias e manuais de literatura portuguesa.
Na apresentação e apreciação das histórias da literatura será utilizado
o critério da ordem cronológica de cada edição. Assim sendo, a primeira
história da literatura portuguesa alvo de análise será a do professor J.
Simões Dias, de 1897. Simões Dias faz, na sua História da Literatura
Portuguesa, uma singela referência de cariz biográfico à figura de FMP,
incluindo-o nos “Géneros diversos” (Dias, 1897: 193) da secção destinada
às narrativas de viagem.
Dias faz ainda referência à obra como “historia tragico-maritima”
(idem, ibidem: 193) que compara a outras narrativas coevas de índole
semelhante: Itinerario, de António Tenreiro; Verdadeira informação das
terras do Preste João, do Padre Francisco Alvares; e Narrativa episto-
lar de uma viagem e missão jesuitica pela Bahia, Ilheos, Porto Seguro,
Pernambuco, Espirito Santo, etc., de Fernão Cardim, entre outras.
Na esteira do quadro apresentado por Simões Dias, também Teófilo
Braga (1914) inclui a Peregrinação no volume consignado à Renascença,
que o autor designa por Segunda época. Em Historia da Litteratura Por-
tugueza (Recapitulação), Teófilo insere FMP no capítulo quarto destinado
aos “Historiadores, Viajantes, Moralistas” (Braga, 1914: 694), dedicando-
-lhe as primeiras quatro páginas da entrada “Viajantes” (idem, ibidem:
658-661). Também aí se confluem e debatem mais questões que têm que
ver com a possível autobiografia e veracidade das aventuras narradas na
Peregrinação, do que propriamente em exegeses à obra3 .
Subsequentemente surge a História da Literatura Portuguesa Ilus-
trada (1929), cuja direção ficou a cargo de Albino Sampaio, autor que
posteriormente alargou este projeto ao editar, com Agostinho Fortes, His-
tória da Literatura Portuguesa: Manual escolar profusamente ilustrado.
Dos volumes desta edição dedicados ao século XVI, já se encontram algu-
mas considerações acerca da análise da obra de FMP. Como se desvela
no título, uma das novidades desta história da literatura, e motivo pelo
qual adquiriu notoriedade, é o facto de fazer acompanhar as informações
3
Noutro plano de análise, a atenção que Teófilo coloca na “eliminação capciosa do
nome de Fernão Mendes Pinto” (idem, ibidem: 660) parece vaticinar a quase elação da
Peregrinação do panorama histórico-literário moderno.

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406 Elisama Soraia Sousa de Oliveira

históricas com documentos coevos. Um exemplo fecundo dessa união é


a gravura do biombo japonês, do século XVI, que retrata a chegada de
FMP e Duarte da Gama a Funai (Bungo), em 15514 . Pese embora os
profícuos contributos desta edição ilustrada, há algumas incoerências a
apontar no que diz respeito à adequação das gravuras, e outros documen-
tos, aos verbetes a que se destinam. No que diz respeito à sua consulta e
manuseamento, esta não se afigura funcional, como seria desejável, uma
vez que não apresenta índice e as referências a FMP aparecem, inusita-
damente, em dois volumes.
Joaquim Ferreira publica, em 1939, a História da Literatura Portu-
guesa, sob a chancela de Domingos Barreira. À semelhança dos seus
antecessores, Ferreira coloca a Peregrinação nas “Narrativas de Via-
gens”, “Capítulo VI”, da “Época Clássica (Primeiro Período)” (Ferreira,
1939: 1000-1001). Facto curioso a destacar, que serviu de apanágio a
outros estudiosos, é a referência feita à Peregrinação como “obra prima
da literatura exótica do séc. XVI” (idem, ibidem: 473).
António José Saraiva e Óscar Lopes (1996) na sua obra, homóloga
às demais que aqui se têm apresentado, colocam FMP na secção da
literatura de viagens ultramarinas5 . Apesar do interesse de Saraiva pela
Peregrinação6 , esta história da literatura apresenta parcas informações
quanto à obra de FMP.
A última história da literatura a analisar será a História Crítica da Li-
teratura Portuguesa. Vol. II: Humanismo e Renascimento. Nesta história
crítica é possível encontrar avultadas referências a FMP e à Peregrinação
(Bernardes, 1999: 291-302, 350- 356, 361-367). Neste volume da autoria
de José Cardoso Bernardes, FMP localiza-se no capítulo quinto, “A via-
gem no renascimento português: experiência, história e criação literária”
(idem, ibidem: 291).
Porém, é interessante verificar que num dos textos críticos, o de Ma-
ria Alzira Seixo7 , se aproxima a Peregrinação dos códigos maneiristas e
4
Gravura cujo pormenor se encontra também reproduzido na revista Colóquio de Letras,
n.o 74, p. 22.
5
Capítulo VIII, da 3.a Época: o Renascimento.
6
Veja-se, p. ex., o artigo de António J. S. (1980), “Fernão Mendes Pinto ou a sátira
picaresca da ideologia senhorial”.
7
M.a Alzira Seixo (1998), “Maneirismo e Barroco na Literatura de Viagens”.

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Peregrinação: o ideário humanista de Fernão Mendes Pinto 407

barrocos, embora FMP seja colocado no vol. II, correspondente ao Hu-


manismo e Renascimento, e no vol. III, do Maneirismo e Barroco (Pires &
Carvalho, 2001), não se vislumbrem referências a FMP.
Noutro plano de análise, o dos manuais de literatura portuguesa, se-
guindo a ordem cronológica de edição, podem-se encontrar, no Manual
de História da Literatura Portuguesa, de Mota e Aguilar (1909), referên-
cias a FMP no Capítulo V, na entrada Literatura de Viagens. A novidade
deste manual consiste em colocar FMP no século XVII, do qual data a
primeira publicação da Peregrinação. Esta opção, a não ser que ma-
nifeste uma sensibilidade maneirista-barroquizante atribuída à obra de
FMP, não parece muito acertada.
Em 1918, surge a História da Literatura Portuguesa – Manual Escolar,
de Fidelino Figueiredo. Este manual apresenta apenas uma translúcida
referência de uma página a FMP.
Albino Forjaz de Sampaio, autor que já demonstrara alguma propen-
são para o diálogo literatura-ilustração, edita juntamente com Agostinho
Fortes, em 1936, a História da Literatura Portuguesa: Manual escolar
profusamente ilustrado. À parte as considerações acerca da pertinência
do advérbio no título da obra, descobre-se, relativamente a FMP, apenas
uma entrada de cariz biográfico.
Menção honrosa, para finalizar esta etapa, merecem Aquilino Ribeiro,
pela sua adaptação da peregrinação – A peregrinação de Fernão Mendes
Pinto (1989) –, e a equipa que deu vida ao domínio da Educação Lite-
rária, nas revigoradas Metas Curriculares de Português para o Ensino
Básico (2013), por colocar a Peregrinação de Aquilino na lista de obras
obrigatórias.
Em jeito de síntese, ao longo do percurso efetuado constatou-se que,
na generalidade, pesem embora algumas flutuações, FMP tem sido situa-
do no período Renascentista, na literatura de viagens.

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408 Elisama Soraia Sousa de Oliveira

Contributos para uma análise crítica: particularidades


expressivas e a alucação periodológica d’A Peregrinação

A memória é sem dúvida a grande fonte de inspiração de FMP para a sua


obra. Ao dirigi-la aos filhos como “carta de A, B, C para aprenderem a
ler por seus trabalhos” (Pinto, 1983: 301), pretende que “tomem os ho-
mens motivo de se não desanimarem cos trabalhos da vida para deixarem
de fazer o que devem, porque não há nenhuns, por grandes que sejam,
com que não possa a natureza humana, ajudada do favor divino” (idem,
ibidem: 13). E logo nesta passagem FMP nos deixa expressa a intenção
moralizante, edificante, até, que inculcou na Peregrinação. Enaltece, de
certa forma, a capacidade humana de superação de obstáculos, não sem
antes reconhecer a força salvadora que torna possível essa redenção, da
qual ele mesmo beneficiou (“dar graças ao Senhor omnipotente por usar
comigo da sua infinita misericórdia, apesar dos meus pecados, porque eu
entendo e confesso que deles me nasceram todos os males que por mim
passaram”, pp. 13-14). FMP adverte, assim, o leitor de que a obra que
escreveu é um recetáculo onde depositou o seu ideário, os seus valores,
as suas aprendizagens e ensinamentos (Castro, 1984 e Lourenço, 1989).
Em 1614, sai das oficinas de Pedro Craesbeek a primeira edição da
Peregrinação. Contudo, uma vez que é uma obra póstuma, a questão da
fixação do texto interpõe-se. Como indaga Aníbal Pinto de Castro: “Que
alterações terá sofrido o original até à sua impressão, durante os quais foi,
aliás, manuseado por bom número de historiadores, biógrafos e curiosos?”
(Castro, 1984: XXX). Efetivamente, pouco se sabe sobre a fixação do texto,
o tipo e alcance das alterações introduzidas. O mesmo estudioso aponta
que o manuscrito da Peregrinação não estava ainda dividido em capítulos
e que as referências à Companhia de Jesus tinham sido apagadas (idem,
ibidem).
Talvez germinada pela ironia do trocadilho “Fernão, mentes? Minto!”,
que traduz a ambiguidade instaurada pela obra entre a estória e história,
a Peregrinação teve, nos anos subsequentes à sua primeira publicação,
sucesso além-fronteiras. Esta obra foi traduzida para castelhano (1620),

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Peregrinação: o ideário humanista de Fernão Mendes Pinto 409

francês (1628), neerlandês (1652), inglês (1653) e para alemão (1671)


(Saraiva, s/d).
Com respeito ao paratexto, nomeadamente ao título do livro de FMP,
não há certezas de que tenha saído, também ele, da pena do seu au-
tor. Contudo, era um título em muito semelhante a outros da época e
destinava-se a cativar os leitores, bem como os próprios editores (idem,
ibidem).
Várias têm sido as conjeturas levantadas a propósito do substantivo
Peregrinação. A este vocábulo atribui-se maioritariamente uma conotação
religiosa, que embora não excluída da obra, pelas sucessivas e sempre
constantes alusões e evocações divinas (“como o antigo Salomão recebeu
a nossa Rainha de Sabaa”, p. 22; “Deus, Nosso Senhor”, p. 139; “ó
Bendito sejais meu Senhor Jesus Cristo”, p. 142; “onde chegou quase às
Ave Marias”, p. 166), não será a única hipótese de leitura. Conforme
Arnaldo Saraiva (s/d), o vocábulo poderá estar ainda associado, não só à
composição escrita da narração, que para FMP, não acostumado a estas
lides, seria uma peregrinação, mas também, logicamente, às aventuras
narradas.
Este narrador autodiegético, que narra a história num tempo ulte-
rior, utiliza no decurso da narrativa estratégias de economia do tempo
da diegese, como por exemplo a prolepse (“prouve a nosso senhor, (. . . )
trazer-nos milagrosamente o remédio, com que assim nus e despidos como
estavamos nos salvamos, como logo direi”, p. 149), a elipse (“mais outras
particularidades curiosas de ouvir, que não escrevo por me temer que po-
derei ser prolixo”, p. 258) e os sucessivos sumários em início de capítulo.
O narrador da Peregrinação adquire, por vezes, um certo estatuto po-
lifónico, pois afasta-se da qualidade de narrador principal, para dar lugar
a outras vozes, por isso Eduardo Prado Coelho referia a “quase total dilui-
ção do sujeito da enunciação no sujeito enunciado” (Coelho apud Saraiva,
s/d: 134). Nestes casos, o leitor depara-se com o mecanismo das “vozes
interpostas” (Bernardes, 1999: 299)8 . Facto atestado pela narração do
8
“eu peço-te muito, muito, muito por amor do teu Deus que me deixes botar a nado
a essa triste terra, onde fica quem me gerou (. . . ) disse chorando, bendita seja Senhor a
tua paciência, que sofre haver na terra gente que fale tão bem de ti e use tão pouco da
tua lei como estes miseráveis e cegos, que cuidam que furtar e pregar te pode satisfazer
como aos príncipes tiranos que reinam na terra” (Pinto, 1983: 154).

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410 Elisama Soraia Sousa de Oliveira

sequestro da noiva chinesa (v. Cap. XXXXVIII), precedido pela carta ao


seu amado (v. Cap. XXXXVII), no qual o narrador descreve com porme-
nor a violência dos atos dos portugueses, por oposição à pacificidade da
mulher. Ou no episódio em que um menino cativo se recusa a acredi-
tar em António Faria, quando este lhe garante que fará dele seu filho
(v. Cap. LV). Consequentemente é evidente, como descrevem Bernardes
(1999) e Lourenço (1989), que o autor se socorre de mecanismos técnico
-compositivos para dar corpo a uma “Crítica cultural indireta” (Lourenço,
1989)9 .
Ainda no plano do narrador, a preocupação com a prolixidade, tão ca-
racterística da época renascentista e do respeito pelos códigos clássicos
(Margarido, 1983), revela a consciência que este possui sobre os possí-
veis efeitos da obra no leitor. Nesta linha de pensamento, percebem-se
exemplos dessa preocupação tanto nos sucessivos sumários em início de
capítulo, como no cruzamento de episódios bélico-trágicos, com episó-
dios onde abunda a pausa narrativa e, mesmo, a temática amorosa (v.
Cap. CXXXXVIII). Embora, sublinhe-se, nunca sem um objetivo preciso
em mente, ou seja, não apenas para que o leitor se recreie, pois, como
ficou expresso na abertura da obra, FMP pretende que esta sirva de
aprendizagem e produza frutos na alma de quem lê.
No plano discursivo abundam na obra de FMP a hipérbole (“arreme-
teram a eles com uma grita tão espantosa que se ajuntava o céu com a
terra”, p. 340; “e na terra o retumbar dos ecos pelas concavidades dos
vales e outeiros que as carnes tremiam de medo”, p. 167); a perífrase
(“estando nós a um dia do nascimento de Nossa Senhora”, p. 139); a me-
tonímia (“as carnes tremiam de medo”, p. 167; “soando-nos isto bem nas
orelhas”, p. 291) e a enumeração assindética (“o tempo muito frio, o mar
muito grosso, o vento muito rijo, as águas cruzadas, o escarceo muito alto,
e a força da tempestade muito terrível”, p. 148). Os recursos destacados,
as próprias metáforas, bem como o recurso a expressões tipicamente po-
pulares (como por exemplo: “Mas como é costume de Deus nosso Senhor
de grandes males tirar grandes bens”, p. 139; “perguntando nós aos

9
Exemplos: “dá claramente a entender que deve haver entre eles muita cobiça e pouca
justiça” (Rei Tártaro referindo-se aos Portugueses).

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Peregrinação: o ideário humanista de Fernão Mendes Pinto 411

chins”, p. 323; “fazendo-me (como se diz) das tripas coração”, p. 404),


marcam o tom oralizante que o narrador imprime ao seu discurso.
Para concluir, resta tratar a questão das leituras que a obra tem susci-
tado e que permitem o seu enquadramento periodológico no Renascimento.
Enquadramento, esse, que não é evidente, dado o caráter híbrido da obra.
Contudo, classificar a Peregrinação como uma narrativa de viagens parece
inequívoco para todos os autores estudados.
Outras interpretações têm sido erigidas que incluem a Peregrinação
nos moldes literários da novela de cavalaria e picaresca. Conforme Ber-
nardes (1999), no caso da novela de cavalaria, seria a Peregrinação uma
subversão deste subgénero, uma vez que o seu herói se desqualifica cons-
tantemente, pelo que pode não ser uma hipótese plausível. No que diz
respeito à novela picaresca, a similitude de códigos entre uma e ou-
tra revela-se mais credível, uma vez que ambas apresentam os seguintes
denominadores comuns: constroem-se através de narrativas, maioritaria-
mente, autobiográficas; gravitam em torno de viagens; o seu protagonista
é servo de vários senhores e consegue salvar-se em todas as situações
através de artimanhas (Bernardes, 1999).
O ponto fundamental da questão, e o mais sensível, prende-se com a
periodização atribuída, na história literária, a FMP. Ora, Pinto de Castro
escreve, a dado passo, na sua Introdução à Peregrinação (1984: XXXV),
que, no quadro cultural “em que se moveu Fernão Mendes Pinto, (. . . ) não
se rastreia o mínimo indício de autores clássicos ou renascentistas”. Por
outro lado, Jorge de Sena (apud Pires & Carvalho, 2001: 41) escreve que
“os “maneiristas” são toda a gente que nasce entre 1525 e 1580 e que
por volta de 1620, já morreu toda. Os barroquizantes nascem nos oitenta
anos seguintes”.
Embora se perceba, relativamente a Pinto de Castro, que o autor apon-
tava, de forma implícita, para outras fontes de influência em FMP, não é
possível deixar de notar a confluência de códigos humanisto-renascentis-
tas na Peregrinação: desde logo o tópoi da viagem e conquista; a fusão
de valores ora excessivamente moralistas, ora desviando-se da moral; o
decoro; a mesura e o “crédito nas capacidades transformativas e cognitivas
do homem” (Bernardes, 1999).
Porém, como salienta caricaturalmente Jorge de Sena, o período dos
maneiristas coincide com o de FMP. E foi esse um período marcado pelos

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412 Elisama Soraia Sousa de Oliveira

descobrimentos, que enalteceram as qualidades heroicas do homem, mas


que também desnudaram as suas insuficiências e perversidades. Todos
estes aspetos são retratados na Peregrinação. À semelhança d’Os Lusía-
das (semelhança no plano ideotemático), na obra de FMP percebem-se
igualmente conflitos e tensões que permitem aproximá-la dos códigos es-
téticos do Maneirismo: a oposição dia /noite; o objetivo de provocar, em
quem lê, reflexão; a busca da amenidade; a isorropia; a hipérbole; o uso do
locus horrendus em determinadas descrições; as antíteses; os paradoxos;
as reiterações e equívocos, entre outros (Pires & Carvalho, 2001).
Por fim, embora seja o Barroco um estilo de época ulterior a FMP,
podemos encontrar, delidos na sua obra, alguns dos temas que iriam po-
voar esta categoria periodológica, tais como: a profusão sensorial, ligada
ao exotismo; a sátira; o engenho, no deslindar das provações do herói; a
imaginação e a intenção pedagógica, da qual a arte do barroco não se
deixou afastar (Pires & Carvalho, 2001).
Por tudo o que ficou dito, pode afigurar-se pertinente (re)pensar o
lugar de FMP na história literária, porquanto parece evidente que a sua
obra participa dos códigos propagados no Maneirismo, sem esquecer, ape-
sar de tudo, certas ligações ao período posterior: o Barroco.

Considerações finais

“Enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la. Porém,


se não a corrigires, não a alcançarás. Entretanto, não te resignes.”
José Saramago10

Na epígrafe utilizada em jeito de conclusão deste artigo adivinha-se o


paradoxo que irá presidir ao desenrolar da diegese de A história do Cerco
de Lisboa: a relação da historiografia com a verdade. Até que ponto a
verdade a que temos acesso sobre um acontecimento é a única verdade?
Raimundo Silva escolheu o caminho do “não” e alterou a história. Porém,
como retrata o criador de Blimunda, a busca pela verdade é um ciclo
vicioso – reflexão que vem muito a propósito do caso da Peregrinação.
10
Epígrafe da obra A História do Cerco de Lisboa (1989, 6.a edição), de José Saramago.

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Peregrinação: o ideário humanista de Fernão Mendes Pinto 413

Tem-se dedicado mais tempo e esforço na procura de verdade, ou da


ausência dela, quando estes deveriam ser investidos no estudo do con-
teúdo literário, do potencial imagético, axiológico e pedagógico da obra
de FMP. Se todos os que se dedicaram a estudar a polifacetada Pere-
grinação aclamam a sua utilidade no panorama educativo e, sobretudo,
literário, por que continua a obra de FMP apenas como texto ao estilo de
Marginália na esfera literária portuguesa?
Convém afinar agulhas, arrepiar caminho, eliminar despudorados arti-
fícios, sofismas não – ou mal – esclarecidos, excessos biografistas e fanta-
sistas, quezílias historiográfico-literárias e revigorar a verdadeira memória
de Fernão Mendes Pinto: a Peregrinação. Porque o que importa, mais
do que saber a verdade, é ler a verdade que FMP legou à posteridade.
Creio que será um dos caminhos válidos, nesta encruzilhada, para que
o verdadeiro potencial literário desta obra seja devidamente apreciado e
valorizado. Enquanto não o alcançarmos, não nos devemos resignar.

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Bibliografia

Bibliografia Passiva
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Mendes Pinto”. In: DOMINGUES, Francisco e BARRETO, Luís Filipe
(org.). A Abertura do Mundo (Estudos da História dos Descobrimentos
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torial Presença.
CASTRO, Aníbal Pinto (1984). Introdução a Peregrinação de Fernão
Mendes Pinto. Porto: Lello & Irmão.
CASTRO, Aníbal Pinto (2001). “Pinto (Fernão Mendes)”. In Enciclo-
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pp. 184-191.
CATZ, Rebeca (1981). Fernão Mendes Pinto: Sátira e Anti-Cruzada
na Peregrinação. Lisboa: Biblioteca Breve.
LOURENÇO, Eduardo (1989). “Peregrinação e Crítica Cultural Indi-
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Literatura Portuguesa (Histórias e Manuais)


BRAGA, Teófilo (1914). História da Literatura Portuguesa – Renas-
cença. Porto: Chardon.
BERNARDES, José Augusto Cardoso (1999). História Crítica da Li-
teratura Portuguesa. Vol. II: Humanismo e Renascimento. Lisboa: Verbo.
Peregrinação: o ideário humanista de Fernão Mendes Pinto 415

DIAS, José Simões (1897). História da Literatura Portuguesa. Lisboa:


Imprensa Lucas.
FERREIRA, Joaquim (1939). História da Literatura Portuguesa. Por-
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FIGUEIREDO, Fidelino (1918). História da Literatura Portuguesa –
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FORTES, Agostinho & SAMPAIO, Albino Forjaz (1936). História da
Literatura Portuguesa: Manual escolar profusamente ilustrado. Lisboa:
Livraria Popular de Francisco Franco.
MOTTA, Virginia; GÓIS, Augusto & AGUILAR, Irondino (1909). Ma-
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SAMPAIO, Albino (dir.) (1929). História da Literatura Portuguesa
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SARAIVA, António José & LOPES, Óscar (1996). História da Litera-
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Documentos eletrónicos
MARGARIDO, Alfredo (1983). “Fernão Mendes Pinto um herói do
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ulbenkian.pt>, consultado em 04-01-2014.
SARAIVA, Arnaldo (s/d). “A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto
Revisitada”. In: Cultura, Espaço & Memória, n.o 1, pp. 129-142, <http://le
r.letras.up.pt>, consultado em 01-02-2014.

Bibliografia ativa
PINTO, Fernão Mendes (1983). Peregrinação. Fernão Mendes Pinto.
Transcr. de Adolfo Casais Monteiro. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa
da Moeda.

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A China e o Japão na Peregrinação de Fernão
Mendes Pinto: entre utopia realizada e utopia
realizável

Stéphanie De Jésus

Université Bordeaux Montaigne

Resumo: A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto relata um momento fatí-


dico da História da humanidade que fez entrar o mundo numa perspetiva global
e foi propício ao aparecimento do género literário da utopia. A Peregrinação não
é uma utopia literária no sentido da Utopia de Thomas More, mas ela apresenta
aspetos utópicos. O Oriente afigura-se na obra de Fernão Mendes Pinto como
o sítio do ecúmeno onde as utopias se tornam ora realizadas no caso da China,
ora realizavéis no caso do Japão. O que pretendemos nesta comunicação é mos-
trar como se manifestou o pensamento utópico de um dos mais ilustres viajantes
portugueses ao Oriente. Iremos também questionar as correlações entre a pere-
nidade da literatura de viagem quinhentista e as suas ligações com o género da
utopia partindo do pressuposto que a literatura de viagem trabalha com imagens
e símbolos de caráter universal que podem, segundo nós, explicar este fenómeno.

Palavras-chave: Fernão Mendes Pinto; Peregrinação; China; Japão, utopia.

A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é sem dúvida o testemunho


mais notável do encontro direto entre Ocidente e Oriente que ocorreu
no final do século XV. A obra relata um momento fatídico da História da
humanidade que fez entrar o mundo numa perspetiva global e foi propício
418 Stéphanie De Jésus

ao aparecimento do género literário da utopia. Os Descobrimentos por-


tugueses ao dar novos mundos ao mundo deram também novos horizontes
aos sonhos europeus e permitiram que a utopia se fizesse literatura. Mas
antes deste género ganhar nome, o pensamento utópico já existia. Tal
como o pensamento mítico, o pensamento utópico é consubstancial ao ser
humano. Jean-Jacques Wunenburger considera-o como sendo uma “forma
da imaginação”1 . Quer seja mais ou menos desenvolvida, já que depende
da sensibilidade de cada um, é inerente à mente humana esta capacidade
de imaginar alternativas compensatórias às infelicidades ou dificuldades
pelas quais o Homem pode por vezes passar. Esta capacidade de adapta-
ção a um presente insatisfatório e que utiliza um misto de esperança e de
imaginação para criar alternativas imaginárias não só permite ao Homem
suportar o presente, como também imaginar trilhos novos que o poderão
levar à tão desejada felicidade.
Os recentes estudos sobre o imaginário permitem uma melhor com-
preensão deste fenómeno psíquico. Wunenburger considera a utopia como
“uma condensação de arquétipos imaginários universais”, entre os quais
o arquétipo do habitat de sonho. O que mudou com os Descobrimentos
não foram os mecanismos do pensamento utópico em si mas os modos de
expressão deste pensamento. Os mitos do passado que tentavam explicar
o mundo dando, segundo a expressão de Hélder Godinho2 , uma geome-
tria ao mundo, já não bastavam e inventou-se o que Vitorino Magalhães
Godinho chamou de mito-projeto3 . A função do mito, sobretudo do mito
das origens, é de dar, segundo Hélder Godinho “uma ordem e um sentido
ao mundo e à relação dos homens com ele”, enquanto que o mito-projeto
concetualizado por Vitorino Magalhães Godinho, trata de imaginar novas
geometrias possíveis, isto é, de imaginar um mundo outro que poderia vir
a ser no futuro. Por oposição ao mito que é uma produção coletiva cujo
1
Cf., Jean-Jacques Wunenburger, L’utopie ou la crise de l’imaginaire, J.-P. Delage,
Paris, 1979, p. 20.
2
Cf., Hélder Godinho, “O mito como ordenação do mundo”, in Actas do Colóquio
Mythos- Mito, Literatura, Arte – Mitos Clássicos no Portugal Quinhentista, Centro de
Estudos Clássicos, Lisboa, 2007, pp. 77-81.
3
Cf., Vitorino Magalhães Godinho, “Entre mito e utopia: os Descobrimentos, constru-
ção do espaço e invenção da humanidade nos séculos XV e XVI”, in Revista de História
Económica e Social, (Julho-Dezembro de 1983).

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A China e o Japão na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto:
entre utopia realizada e utopia realizável 419

objetivo é de ajudar o homem a orientar-se no mundo, a utopia constitui


uma produção individual destinada a dar orientações à sociedade. É a
construção de uma sociedade outra, diferente, mais justa e benevolente
que se pretende alcançar pela imaginação. A Utopia [1516] de Thomas
More nasceu neste contexto singular que proporcionou ao Europeu um
alargamento significativo do seu horizonte onírico, segundo a expressão
de Jacques Le Goff4 . De facto, as novas novidades trazidas do Oriente ou
do Novo Mundo na época dos Descobrimentos constituiam uma matéria
inesgotável para as imaginações fecundas e as sensibilidades utópicas
de homens fora do comum e influenciados pelos ideais humanistas que
emergiam naquela época. Graças à obra de More, a literatura ganhou
uma nova vertente cujo intuito era de dar a ver que mundos melhores
eram possíveis. Por meio da ficção tratava-se de inventar novas realida-
des possíveis pretendendo que estas existissem algures no ecúmeno. A
alternativa que propunha More não era apresentada como fictícia, mas
antes como real. Ao enganar o leitor, este tornava-se mais facilmente
apto a acreditar que uma sociedade diferente fosse possível.
Não são conhecidas narrativas de viagens portuguesas que saíram do
prelo na época dos descobrimentos que tivessem por finalidade criar uma
narrativa utópica à semelhança da Utopia de More. A Peregrinação não é
uma utopia em si. Fernão Mendes Pinto queria dar a conhecer o Oriente,
partilhar as suas aventuras, os seus infortúnios, mas também o seu des-
lumbramento pelos países que ali tinha vivenciado. Queria também dar a
ver o lado menos glorioso da presença dos Portugueses na Ásia. O seu
objetivo principal era, por conseguinte, transmitir os saberes que ele tinha
adquirido pela experiência e não inventar de raiz uma sociedade perfeita
como More o tinha feito cerca de seis décadas mais cedo. Mas não é por
não poder ser considerada como uma utopia literária que a Peregrinação
deixa de apresentar aspetos utópicos. Com efeito, o pensamento utópico
do autor subjaz nas entrelinhas desta narrativa de viagem, nomeadamente
na maneira como Mendes Pinto descreve a China e o Japão. Neste re-
lato o espírito utópico do autor fixou-se em sociedades bem reais, posto
que a partir destas sociedades que foram claramente vistas, retomando
4
Cf., “ L’Océan médiéval et l’Océan Indien : un horizon onirique ”, in Jacques Le Goff,
Un autre Moyen-âge, Quarto Gallimard, Paris, 1999, pp. 269-286.

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420 Stéphanie De Jésus

a expressão de Ana Paula Laborinho5 , ele construiu um discurso sobre


elas em que elas são apresentadas como a materialização de um ideal, no
caso da China e como o sítio ideal para a concretização da utopia cristã
medieval, no caso do Japão.
A dimensão utópica do discurso elaborado por Fernão Mendes Pinto
reside na idealização pelo autor das sociedades chinesa e nipónica e na
exemplaridade que resulta desta idealização. Toda a idealização, implica
um distanciamento com o real e abre uma margem para a ficção. Partindo
de aspetos da realidade escolhidos, aos quais o seu imaginário vai dar
uma polaridade claramente positiva, Fernão Mendes Pinto propõe em
alguns capítulos da Peregrinação uma única leitura possível. De facto,
o leitor dificilmente poderá deixar de partilhar a admiração do autor por
estas sociedades apresentadas como ideais e exemplares. Tanto o seu
discurso sobre a China como o seu discurso sobre o Japão pretendem
orientar o leitor, converte-lo à imagem que o autor escolheu dar. Mas no
caso da China, o objetivo não se limita a uma vontade de impingir uma
determinada imagem. Dando-lhe a conhecer uma sociedade exemplar,
Mendes Pinto propõe ao leitor um exemplo a seguir. Esta exemplaridade
participa por conseguinte da dimensão utópica destas descrições porque,
tal como os utopistas, o autor propõe uma prospetiva de uma realidade
que poderia vir a existir no futuro. A China que nos apresenta Fernão
Mendes Pinto não é uma construção totalmente imaginária, como é o
caso da Utopia de More, mas ambas perspetivas partilham uma vontade
subjacente de aperfeiçoar as sociedades em que os autores se inserem.
Por estes motivos, consideramos que a China de Fernão Mendes Pinto
é de uma certa forma utópica. Ela aparece na Peregrinação como uma
utopia que já está a ser praticada, por outras palavras, a China é para o
autor uma utopia realizada. No episódio que decorre no Japão, o objetivo
de Mendes Pinto difere significativamente. O autor não quis mostrar um
exemplo a seguir, mas a sua representação do Japão não deixa de ser
utópica pois é apresentado como o derradeiro sítio onde o velho sonho de
reunificação entre cristãos do Oriente e do Ocidente se poderia realizar.
Os conceitos de utopia realizada e realizável poderão parecer antinómicos,
5
Ana Paula Laborinho, O rosto de Jano, Universos ficcionais da Peregrinaçam de
Fernão Mendes Pinto, Lisboa, FLUL, 2006, p. 46.

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A China e o Japão na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto:
entre utopia realizada e utopia realizável 421

daí a importância de sublinhar que quando falamos em utopia realizada


ou realizável, usamos em ambos os casos o termo utopia no seu sentido
nobre de plano de governação imaginário em que tudo está perfeitamente
organizado para a felicidade de cada cidadão e não no sentido que hoje
lhe é associado de quimera irrealizável.
Não é de estranhar que Fernão Mendes Pinto tenha pintado um re-
trato tão laudatório da China. A China de Mendes Pinto segue a linha
imaginária que Marco Polo já tinha começado a traçar. Pois no Livro
de Marco Polo, que via nela um exemplo de sociedade justa e solidária,
já existia uma tendência notável em idealizar a China. Fernão Mendes
Pinto viu sensivelmente a mesma China que Polo. A solidariedade e a
justiça são aliás os dois pilares da sua representação da China. O autor
explicita-o na citação seguinte:

“(. . . ) não deixarei de dizer algumas outras coisas particulares e


dignas de se notarem, que vimos, de que a primeira será dizer com
a maior brevidade que puder, alguma coisa das casas e do estado
de el-rei da China, e do Governo da sua República, e dos ministros
da Justiça, da Fazenda e da Corte, para que se saiba a maneira
com que este gentio governa o seu povo, e a providência que tem
em todas as coisas dele.”6

Aqui fica bem claro, o seu objetivo de mostrar o avanço da república


chinesa em relação à realidade portuguesa. A providência do rei da China
que nem sequer cristão é, não tem igual. A maneira como ele governa o
seu país é digna de se notar e por conseguinte deve ser considerada
como um exemplo a seguir. No capítulo intitulado “Do provimento que se
tem com todos os aleijados e gente desemparada”, Fernão Mendes Pinto
mostra-nos o quanto a solidariedade está institucionalizada na China:

“Nesta cidade [de Pequim], (. . . ) há umas casa a que eles chamam


Laginampur, que quer dizer ‘ensino de pobres’, nas quais por ordem
da Câmara se ensina a todos os moços ociosos a que se não sabe
pai, assim a doutrina como o ler e o escrever e todos os ofícios
mecânicos (. . . ).”7
6
Cit. in, Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, Relógio d’Água, Lisboa, 2001, vol. I, p.
358.
7
Ibid., p. 359.

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422 Stéphanie De Jésus

Os Laginampur são apresentados como instituições irrepreensíveis,


onde tudo está previsto para o amparo das camadas mais vulneráveis da
sociedade. Graças a estas casas, que são muitas – “duzentas e quiça de
quinhentas”8 – as crianças abandonadas e os deficientes têm um lugar
decente na sociedade chinesa. Mas esta solidariedade anda de mãos
dadas com a justiça. Ela é enquadrada pela lei que castiga gravemente
os que a desrespeitam indo de encontro à moral que ela preconiza:

“(. . . ) porém antes que estes se aceitem nestas casas, faz a justiça
sobre isso grandes exames, e se se vem a saber qual foi o pai ou
a mãe do enjeitado, os castigam gravemente e os degredam para
certos lugares que eles têm por mais estéreis e doentios.”9

Na China de Fernão Mendes Pinto, tudo parece estar organizado de


modo a garantir a cada um, um lugar adequado na sociedade. Ninguém
pode ser excluído. Os aleijados estão integrados nesta sociedade. Remé-
dios de vida são proporcionados aos que pouca sorte têm, cada deficiência
sendo tomada em conta. Para além daquilo que está previsto para os alei-
jados dos pés, os aleijados das mãos, há também prerrogativas para os
aleijados dos pés e das mãos, para os mudos, ou até para as mulheres
públicas que na velhice vieram a adoecer. As prerrogativas acordadas às
mulheres públicas dizem-nos muito sobre a organização mutualista que
está em vigor na sociedade chinesa e é definitivamente um dos aspetos
que Fernão Mendes Pinto quer realçar:

“Para as mulheres públicas que vieram a adoecer de algumas doen-


ças incuráveis, há também outras casas da mesma maneira, em que
são curadas e providas muito abastadamente à custa das outras
mulheres públicas do mesmo ofício, para a qual obra cada uma
destas paga de foro um tanto cada mês, porque também cada uma
destas pode vir depois a cair na enfermidade e então as outras que
forem são, pagarão para ela o que ela agora em sã paga para as
outras doentes.”10
8
Id.
9
Id.
10
Id.

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A China e o Japão na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto:
entre utopia realizada e utopia realizável 423

Estamos perante uma sociedade bem organizada, na qual parece não


haver nenhum excluído. A solidariedade está institucionalizada, o mutua-
lismo está na base da organização da sociedade. Além disso, a solidarie-
dade está enquadrada pela justiça pois existe uma correspondência entre
a lei que castiga os que cometem infrações e a lei que ajuda os desfavo-
recidos. Por exemplo, as mulheres que são acusadas pelos seus maridos
de adultério são condenadas a tomar conta de uma orfã para compensar
a imoralidade da falta que cometeram, e para que “se castiguem umas e
se amparem outras.”11 . Vemos aqui mais uma vez, que a lei está muito
ligada à moral. A justiça é o guardião da moral e prevê para cada infrator
uma maneira de se arrepender. Mas ela é também implacável e temida:

“É assim que ninguém sai do limite e da ordem que lhe é posta


pelos conchalis do governo, [. . . ], sob pena de serem logo por isso
gravemente punidos, porque é nesta terra o rei tão venerado e a
justiça tão temida que não há pessoa nenhuma por grande que seja,
que ouse boquejar nem levantar os olhos para nenhum ministro de
justiça, [. . . ].”12

A sua experiência de cativeiro na China permitiu a Fernão Men-


des Pinto descrever-nos pormenorizadamente o funcionamento da justiça.
Numa magnífica descrição, ele pinta-nos um verdadeiro quadro do cená-
rio do tribunal onde foi julgado pelo chaém13 . Os dois moços presentes
no cenário simbolizam ora a misericórdia, ora a justiça e o seu poder de
castigo. Por meio desta encenação Fernão Mendes Pinto mostra, dando o
exemplo da China, que a justiça ideal tem de ser misericordiosa e severa.
Ao apontar a perfeição da China, que funciona como um espelho invertido,
o autor incentiva a sociedade portuguesa a questionar o funcionamento
da sua própria justiça propondo-lhe uma alternativa a seguir.
Além da justiça e da solidariedade, aos quais Marco Polo já tinha
aludido, Fernão Mendes Pinto introduz o topoi prezado pelos utopistas,
da ordem. A estrutura da sociedade chinesa é, segundo a descrição de
Mendes Pinto, regida pela ordem. Ele diz explicitamente que “(. . . ) em
11
Ibid., p. 361.
12
Ibid., p. 307.
13
Cf., ibid., pp. 325-326.

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424 Stéphanie De Jésus

tudo se governa esta gente com ordem.”14 . Esta necessidade de ordem


explica-se, segundo o autor, pelo facto da China ser um país extremamente
povoado:

“E muitos chins nos afirmaram que neste império da China tanta


era a gente que vivia pelos rios como a que habitava nas cidades
e nas vilas, e que se não fosse a grande ordem e o governo que
se tem no prover da gente mecânica e no trato e ofícios com que
os constrangem a buscarem vida, que sem dúvida se comeria uma a
outra.”15

O governo tem um papel crucial, ele garante a paz social ao impor


ordem graças à sua justiça implacável que não hesita em castigar severa-
mente, como o prova a própria experiência de Fernão Mendes Pinto que
foi condenado a que ele e os seus companheiros fossem “(. . . ) açoita-
dos nas nádegas (. . . ) e também [lhes] cortassem os dedos polegares das
mãos.”16 . A solidariedade, a justiça penal mas também social e a ordem
são aspetos da sociedade chinesa que marcaram profundamente o autor
e que fazem da China uma sociedade exemplar aos seus olhos.
Passemos agora para o Japão de Fernão Mendes Pinto. O Japão
foi uma das últimas regiões do Oriente a ser conhecida pelo Ocidente.
Sendo desconhecido e beneficiando da imagem de terra mirífica, que pos-
suía riquezas inigualáveis, dada por Marco Polo no seu Livro, o Japão
tornou-se, como refere Ana Paula Laborinho: “um espaço propício à pro-
jeção do desejo de realização utópica característico do período dos Des-
cobrimentos”17 . A utopia cristã medieval que motivou a busca do reino
do Preste João das Índias pelos cristãos do Ocidente e que constituiu
uma das motivações da procura de um caminho marítimo para a Índia pe-
los Portugueses, parece ter vivido o último suspiro na Peregrinação. O
episódio do Japão parece ser uma tentativa de convencer o leitor que os
Japoneses tinham uma prediposição para receber a mensagem de Cristo.
14
Id.
15
Ibid., p. 304.
16
Ibid., p. 265.
17
Cit., Ana Paula Laborinho, “O imaginário do Japão na Peregrinação de Fernão
Mendes Pinto”, in Mare Liberum, No s 11-12 (Janeiro-Dezembro), CNCDP, Lisboa, 1996,
pp. 39-52.

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A China e o Japão na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto:
entre utopia realizada e utopia realizável 425

O autor dá a imagem de um povo honrado pela chegada dos chenchico-


gins. A chegada dos Portugueses na ilha de Tanixumá é retratada por
Fernão Mendes Pinto como uma chegada profética. Usando o discurso
direto, o nautaquim desta ilha refere-se à sua chegada nestes termos:

“Que me matem, se não são estes os chenchicogins de que está


escrito em nossos volumes que voando por cima das águas, têm
senhoriado ao longo delas os habitadores das terras onde Deus
criou as riquezas do mundo, pelo que nos cairá em boa sorte se
eles vierem a esta nossa com título de boa vontade.”18

Os Portugueses são aqui descritos como super-heróis que voaram por


cima das águas para chegar até ao Japão como o profetizara escritos japo-
neses. Além de os receber com grande agrado, demonstraram uma avidez
em conhecê-los. Diz o autor: “Nestas práticas se gastou connosco um
grande espaço, mostrando em todas as suas perguntas ser homem curioso
e inclinado a coisas novas [. . . ].”19 . Esta inclinação à novidade, esta curi-
osidade sem limites também transparecem quando diz: “[. . . ] o nautaquim
tornou de novo a praticar connosco e a perguntar-nos por muitas coisas
miudamente (. . . ).”20 . Segundo Fernão Mendes Pinto, o interesse pelos
Portugueses era geral: “o necodá nos rogou que quiséssemos ficar aquela
noite com ele em terra porque se não fartava de nos perguntar muitas coi-
sas do mundo, a que era muito inclinado, [. . . ]”21 . O autor até faz desta
inclinação uma característica dos Japoneses: “[. . . ] porque toda gente do
Japão é naturalmente muito bem inclinada e conversadora.”22 . A insistên-
cia nesta particularidade da relação ao outro dos Japoneses tende a dar
ao Japão de Mendes Pinto uma dimensão utópica. Com efeito, o Japão
está representado como um país aberto à novidade e disposto a receber
a palavra de Cristo tornando-se assim o país ideal para a projeção dos
desejos utópicos da Cristandade e dos seus missionários.
Além da abertura dos “japões”, o fascínio destes últimos por aspetos
culturais portugueses, nomeadamente o seu uso de armas de fogo, também
18
Cit. in, Fernão Mendes Pinto, op. cit., p. 428.
19
Cit. in, ibid., p. 429.
20
Cit. in, ibid., p. 430.
21
Id.
22
Cit. in, ibid., p. 431.

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426 Stéphanie De Jésus

é apresentada por Fernão Mendes Pinto como um símbolo da provável su-


balternização japonesa à cultura portuguesa. A personagem do nautaquim
de Tanixumá é a prova do fascínio dos Japoneses pelas armas portugue-
sas e por extensão pela cultura portuguesa. Já que, segundo o autor, o
nautaquim venerava o português Diogo Zeimoto que lhe oferecera a es-
pingarda, e terá constrangido os seus súbditos a fazerem o mesmo. Eis
as palavras que o nautaquim terá proferido:

“O nautaquim, príncipe desta ilha de Tanixumá e senhor de nossas


cabeças, manda e quer que todos vós outros, e assim os mais que
habitam a terra de entre ambos os mares, honrem e venerem este
chenchicogim do cabo do mundo, porque de hoje por diante o faz
seu parente, assim como os facharões que se sentam junto de sua
pessoa, sob pena de perder a cabeça o que isto não fizer de boa
vontade.”23

Ao mostrar que os Japões veneravam certos aspetos da cultura portu-


guesa, Fernão Mendes Pinto queria que o seu leitor acreditasse que esta
veneração poderia ser uma alavanca para que os Japoneses adotassem a
religião cristã. No episódio em que o rei do Bungo convida os Portu-
gueses a virem conhecer a sua província, usando mais uma vez o discurso
direto, o autor continua com a sua tentativa de mostrar que os Japoneses
estavam muito recetivos às novidades trazidas pelos Portugueses. Estes
são descritos como homens providenciais muito esperados pelo rei:

“(. . . ) em dias passados me certificaram homens que vieram dessa


terra, que tínheis nessa vossa cidade uns três chenchicogins do cabo
do mundo, gente muito apropriada aos japões e que vestem seda e
cingem espadas, não como mercadores que fazem fazenda, senão
como homens amigos de honra, e que pretendem por ela dourar
seus nomes, e que de todas as coisas do mundo que lá vão por
fora, vos têm dado grandes informações, nas quais afirmam em sua
verdade que há outra terra muito maior que esta nossa, e de gentes
pretas e baças, coisas incríveis ao nosso juízo, pelo que vos peço
muito como a filho igual aos meus (. . . )”24
23
Cit. in, ibid., p. 432.
24
Cit. in, ibid., p. 435.

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A China e o Japão na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto:
entre utopia realizada e utopia realizável 427

O uso do discurso direto permite dar um efeito de real a esta carta


que ele afirma ter sido escrita pelo rei do Bungo em pessoa. Nesta carta
o rei não considera os Portugueses apenas como mercadores, mas também
como um povo digno da consideração dos Japoneses e detentor de gran-
des riquezas, entre as quais, o seu grande conhecimento do mundo. As
revelações que estes fizeram aos Japoneses sobre a existência de África
são saberes de grande relevância para ele, ao ponto de o rei considerar
que a chegada de Fernão Mendes Pinto à terra de que ele é senhor é-
lhe tão agradável como: “a chuva do céu no meio do campo dos nossos
arrozes.”25 . O Japão é pois apresentado na Peregrinação como um país
aberto à novidade e à religião cristã. A sua curiosidade em relação aos
Portugueses e às inovações trazidas por eles é instrumentalizada no dis-
curso de Fernão Mendes Pinto no intuito de provar que o Japão é o sítio
ideal para a concretização da utopia cristã medieval.
Para concluir, na Peregrinação sobressai uma vontade clara do autor
de orientar o imaginário do leitor para direções que o próprio escolheu.
Fernão Mendes Pinto usa, para isso, técnicas literárias como o estilo
direto que tendem a convencer o leitor de que tudo o que relata é verdade
e digno de confiança. A China é descrita como uma verdadeira utopia
realizada provando assim aos seus leitores que uma outra sociedade mais
justa e solidária é possível. Quanto aos Japoneses, eles são descritos
como os potenciais aliados dos cristãos no Oriente. Ambos os países
são pois idealizados pelo autor que projetou as suas aspirações utópicas
neles. Esta teia utópica explica, na nossa opinião, a perenidade desta
obra que festeja neste ano de 2014 os seus 400 anos de publicação. Tal
como a mente do autor, a mente do leitor está orientada por arquétipos
universais, os mesmos que deram vida ao mito do paraíso perdido. Como
o autor precisou, o leitor continua a precisar pois, de acreditar em sítios
ideais, em habitats de sonho. Estas crenças funcionam como fontes de
esperanças e de forças para o homem enfrentar a fatalidade do seu destino.
Por isso é que este relato continua a fascinar os seus leitores apesar
desta obra não ter sido escrita para o leitor do século XXI. A verdade
é que estes arquétipos não só são universais como também atemporais.
Tal como o leitor do século XVI precisamos de continuar a acreditar que
25
Cit. in, ibid., p. 437.

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428 Stéphanie De Jésus

existem à surperficie do globo terrestre sítios onde a mítica perfeição


edénica se mantém, sítios onde a vida é mais suave e que permitem ao
homem libertar-se do medo da morte. Ao ler esta obra o leitor continua a
sentir a esperança e a liberdade que devem ter sentido os seus primeiros
leitores. A obra tende a mostrar que existe algures num mundo um sítio
ideal, se este não for na China será no Japão, se não for no Japão será
noutro sítio qualquer, desde que este seja alcançável pela imaginação.

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Bibliografia

GODINHO, Hélder, (2007). “O mito como ordenação do mundo”. In:


PENA, Abel N.(coord), Actas do Colóquio Mythos – Mito, Literatura, Arte
– Mitos Clássicos no Portugal Quinhentista, Lisboa: Centro de Estudos
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GODINHO, Vitorino Magalhães (1983), “Entre mito e utopia: os Des-
cobrimentos, construção do espaço e invenção da humanidade nos séculos
XV e XVI”. In: Revista de História Económica e Social, Julho-Dezembro
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ginaire. Paris: J.-P. Delage.
A Tra[d]ição do Cronista Viajante:
uma Viagem por Outros Mares Semânticos

Thaís do Socorro Pereira Pompeu

Universidade Federal Rural da Amazônia

Resumo: O objetivo central deste texto é demonstrar a inversão do viajante


europeu pela veia crítica pretendida por Haroldo Maranhão em sua obra O
Tetraneto Del-Rei. Vários são os elementos que contribuem para essa noção, o
comportamento covarde e o caráter erótico do personagem. Muitas são as bases
textuais que influenciam positivamente para a sua escrita inovadora. Entre tais
textos está A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (1614). Tais obras satirizam
as narrativas e os feitos portugueses em suas viagens marítimas. A noção de texto
literário como reinvenção e trapaça é um ponto de semelhança entre tais obras.
Através de suas caravelas discursivas Haroldo Maranhão reproduz um viajante
ao contrário resignificando esse caro agente de nossa colonização, que tem na
Peregrinação de Fernão Mendes Pinto uma de suas bases.

Palavras-chave: Literatura Brasileira; Haroldo Maranhão; Literatura dos


Viajantes; Reescrita; Antropofagia.

Haroldo Maranhão um escritor premiado e quase desconhecido

Haroldo Maranhão nasceu em Belém do Pará, cidade localizada no norte


do Brasil, no dia 7 de agosto de 1927, filho de João Maranhão e Carmem
Lima Maranhão, teve uma infância diferenciada das outras crianças de
432 Thaís do Socorro Pereira Pompeu

sua faixa etária. Morador do último andar do edifício onde se situava o


jornal Folha do Norte, que tinha o avô Paulo Maranhão como proprietário,
que empreendia duros artigos em seu periódico contra o então governador
Magalhães Barata. Esse fato obrigou a ele e seus familiares a ficarem
reclusos nas dependências do suntuoso prédio que abrigava a redação do
jornal, e assim cresceu junto ao irmão Ivan em um contexto de criatividade,
imaginação e muita leitura. Assim, a leitura e o ato da escrita sempre
foram de suma importância na vida do escritor.
O universo jornalístico era tão relevante em sua vida que aos 13 anos,
menino em calças curtas, como ele mesmo afirmava, já exercia a função de
repórter policial da Folha do Norte. Em meados da década de 40, criou
e dirigiu o caderno intitulado “Arte e Literatura” no mesmo jornal, sendo
este de intensa relevância para a vida intelectual do estado e da região.
Em 1948, com os amigos Benedito Nunes e Mário Faustino, também
fundou e dirigiu a revista Encontro, que tinha como um de seus objetivos
fulcrais a circulação de textos literários brasileiros. No início da década
de 50 forma-se em direito e por vezes tentou advogar, no entanto, a afini-
dade pela literatura o fez abrir no final da mesma década a livraria Dom
Quixote, que com o passar do tempo tornou-se um ponto de encontro en-
tre os intelectuais paraenses. Em 1961 deixa o estado do Pará, fato que
segundo ele tem grande relação com a sua trajetória de escritor. Desde
a saída de Belém residiu em vários lugares como na cidade do Rio de
Janeiro, região centro-sul do Brasil, por mais de vinte anos, onde atuava
como procurador da Caixa Econômica Federal, até se aposentar. Residiu
também em Brasília e Juiz de Fora. Faleceu em 15 de julho de 2004 em
Piabetá, interior do estado do Rio de Janeiro.
A escrita para Haroldo era perseguida com muito rigor e entendida
como um trabalho, como ele mesmo afirma em entrevista para o jornal O
Globo: “– Eu fui jornalista, advogado, funcionário da Caixa Econômica
Federal. Sempre escrevi. Mas só me realizei mesmo quando larguei tudo
e passei a me dedicar unicamente à literatura” (O LIBERAL, 1982).
Haroldo Maranhão é um escritor muito premiado, no entanto pouco
conhecido do grande público, em sua carreira ganhou prêmios de destaque
como o Guimarães Rosa, o Lins do Rego e o Vértice em Portugal. Seu
reconhecimento se dá em parte pela divulgação em meio acadêmico de

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A Tra[d]ição do Cronista Viajante: uma Viagem por Outros
Mares Semânticos 433

suas obras em artigos científicos, trabalhos de conclusão de curso de


graduação, dissertações e teses.
Haroldo Maranhão foi um escritor muito fértil e produziu nos mais
variados gêneros como o conto, a novela, o romance, a poesia, além de
obras infanto-juvenis. Em cada gênero Haroldo teve um estilo muito ca-
racterístico e peculiar. Como o objeto de análise deste texto é o romance
O Tetraneto Del-Rei a ênfase será a de compreender a técnica de com-
posição da obra e algumas vezes a devida referência de outras obras que
possuem perfil semelhante.

O enigmático O Tetraneto Del-Rei de Haroldo Maranhão

O romance Tetraneto Del-Rei do escritor paraense Haroldo Maranhão,


prêmio Guimarães Rosa de 1980, inserido em um contexto pós década
de 50, se constrói a partir de um processo de escrita complexo. Nele
transitam outras escrituras literárias, sobretudo, no tocante à colonização
do Brasil, as narrativas dos viajantes e o processo de “descobrimento das
terras brasileiras”. Nessa perspectiva, Benedito Nunes, na orelha do livro,
nos demonstra a relevância da obra:

Pode-se dizer que este livro de Haroldo Maranhão é a suma satí-


rica dos primórdios da colonização do Brasil. Mas conduzida como
invenção, a paródia extrai da tradição desconstruída, enquanto de-
pósito histórico inerme, um espaço literário autônomo, referenciado
às duas literaturas, a portuguesa e a brasileira (BENEDITO et al.
apud Maranhão, 1982: [s/d]).

O romance conta as aventuras tortuosas do fidalgo português Jerônimo


de Albuquerque Maranhão, que veio ao Brasil no período da colonização.
Ele cunhado do donatário Duarte Coelho, que era gestor na capitania de
Pernambuco, estado localizado no nordeste Brasileiro, foi figura ilustre
e muito cara ao imaginário deste estado. Mitos rondam a vivência desta
personalidade, por exemplo, o fato de ser chamado de Adão Pernambu-
cano, por ter gerado extensa prole.

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434 Thaís do Socorro Pereira Pompeu

Na ficção do romance estudado Jerônimo de Albuquerque é pintado


como um homem covarde, que ao contrário do perfil esperado de explora-
dor, não ambiciona riquezas, feitos e acúmulo de fama e capital.
O fino fidalgo português Dom Jerônimo de Albuquerque, vulgo Torto,
foi enviado ao Brasil por envolvimento com assuntos galantes na corte.
Suas primeiras experiências vivenciadas na nova terra foram o temor frente
aos nativos, o involuntário combate armado e a posterior captura pelos
silvícolas. No entanto, foge da punição pelo casamento com a índia Muira-
-Ubi filha do cacique Arco-Verde e com ela origina extensa prole.
É ponto fora de discussão que a obra reconta e reescreve pela ironia
traiçoeira os primórdios de nossa colonização. Nesse sentido, encontra-
mos no Torto a representação do colonizador português invertido. As-
sim, após um olhar atento sobre o referido personagem uma indagação
apresenta-se oportuna: não seria Jerônimo de Albuquerque um viajante e
cronista europeu? No entanto, essa afirmação se choca com o tom satírico
e irônico da obra. A partir da evidente contradição encontra-se a gênese
de um estudo de tese: Jerônimo de Albuquerque um viajante europeu às
avessas.
Nesse sentido, podemos afirmar que Jerônimo de Albuquerque é um
viajante invertido construído por Haroldo com um objetivo: desconstruir
o imaginário sobre a colonização brasileira através da inversão de um
de seus ícones mais representativos: o cronista viajante. Como deixar
de notar a criticidade do romance? Construído sob os moldes de uma
abordagem histórica, crítica, porém satírica, irônica e desconstrutiva do
imaginário português sobre a nossa colonização? A obra de Haroldo Ma-
ranhão traz em si o verniz crítico que enaltece as vozes abafadas pelo
discurso histórico tradicional. Colabora com isso para uma visão descen-
tralizante dos agentes que compõem o povo brasileiro e valoriza um de
seus constituintes, o indígena que ganha notoriedade e humanidade na
narrativa haroldiana.
É possível perceber no decorrer da leitura uma nítida tentativa do
autor em reescrever a história dos primeiros anos de descobrimento do
Brasil pela veia da ironia, da comicidade e da inversão. Nesse sentido,
a ficção haroldiana se insinua como traição, blefe e trapaça (BARTHES,
2004: 17), pois coloca certos dados e informações oficiais sob suspeita.
O tom da ironia apresenta um objetivo aparente de convencimento das

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Mares Semânticos 435

mentes para um novo olhar sobre a história oficial. Nas palavras de


Santiago (2000: 23) ocorre “amor e respeito pelo já escrito e necessidade
de produzir o novo que o afronte e negue”. A obra de Haroldo Maranhão
vista como suma satírica, consiste em uma síntese bem humorada dos
primeiro anos da colonização do Brasil e reescreve a própria história
dessa ex-colônia como também é a reescrita de antigas narrativas dos
viajantes. Dentre tais narrativas podemos destacar a intertextualidade e
aproximação com a obra A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto.
A obra de Haroldo Maranhão tem uma grande importância no contexto
de nossa literatura, já que dialoga com as transformações do romance
moderno brasileiro e “reconstrói”, a partir da ficção, o olhar sobre a colo-
nização no Brasil a partir de suas ocorrências ventrais, assim a escritura
do romance parodia a visão criada pelos exploradores portugueses e es-
panhóis, seja pela linguagem quinhentista apropriada, seja pela inversão
do sentido das cartas ou pela ressignificação da imagem do desbrava-
dor europeu, fatores que serão esmiuçados a seguir. Outro fator que não
pode ser esquecido é o contexto em que a obra foi escrita: 1980. Período
de grande efervescência política e reabertura da censura permissível ao
discurso mais libertário em sua linguagem e em seus temas.
A obra é desafiadora e instigante ainda para o leitor atual, pois sua
escrita é uma réplica perfeita da linguagem quinhentista e fruto de um
trabalho arqueológico de Haroldo com a Língua Portuguesa.
Dois aspectos devem ficar bem esclarecidos quanto ao trabalho com
a linguagem em O Tetraneto Del-Rei. O primeiro de buscar expressões
caídas em desuso. O segundo diz respeito às múltiplas interpretações
a que se pode chegar. A escolha por expressões arcaicas condiz com a
intenção de garantir maior vivacidade à trama, pois se a narrativa acontece
em um período em que assim se falava não teria lógica de se escrever em
português atual. Como a intenção central é descrever a colonização por
um viés diferenciado, onde os vencidos terão voz, não seria inteiramente
original, escrever com o português agora corrente, para dar um status de
verdade, assim como nos textos quinhentistas. Essa é uma das razões
pelas quais O Tetraneto Del-Rei obteve o parecer da Comissão Julgadora
do Prêmio Guimarães Rosa, em 1980, como sendo uma obra que atende
perfeitamente ao diálogo entre escritor e público. Ao fazer ecoar questões
embrionárias e silenciosas de nossa história oficial, a escritura do romance

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436 Thaís do Socorro Pereira Pompeu

conduz a uma relativa conformação sobre o papel dos agentes indígenas


em nossa colonização. Somente com um texto que suplementa o passado
e com o jogo que a escritura elabora chega-se a esse olhar ampliado.
Escritura e jogo mantêm uma relação de proximidade.
Entendemos por jogo as articulações de Haroldo Maranhão com a
linguagem, ele apropria-se de signos anteriores e redefine em uma nova
atribuição de sentidos. O jogo refere-se a uma postura crítica do escritor
perante o já escrito e que se insere em nova escritura.
Este é O Tetraneto Del-Rei de Haroldo Maranhão uma obra ricamente
escrita, pensada com muito cuidado e fruto do esforço de um escritor
apaixonado pela língua portuguesa e pela literatura. Uma obra que por
reescrever uma tradição muito cara dialoga com outras obras semelhantes
em sua temática. E nesse contexto, percebemos o contato, o diálogo aberto
entre o romance e a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto.

A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e O Tetraneto


Del-Rei: diálogos abertos

Antes de tudo é incontestável o diálogo intertextual entre as duas obras,


pois ambas consistem em relato de viagens. No entanto a Peregrinação é
constituída ora por relatos reais e/ou por ficção, uma vez que o seu autor
foi duramente criticado por construir uma obra fora do plano da realidade.
Discussão esta que não consiste em foco deste trabalho, a Peregrinação
é vista como uma rica narrativa histórica e literária, muito cara ao povo
português e à literatura universal. Podemos afirmar assim, que pelo valor
da obra as peregrinações consistem em matriz primária e fonte de leitura
e inspiração para a escrita posterior de O Tetraneto Del-Rei.
Narrar feitos e viagens é algo muito caro para o povo português e
também para os brasileiros, pois é a partir de uma carta, a carta de Pero
Vaz de Caminha, que se tem o primeiro relato e descrição do território
brasileiro e é considerada a certidão de nascimento da nação.
Mesmo distante no tempo 1614 a peregrinação consiste em uma fonte
fértil sobre narrativa dos viajantes e está na tradição desse tipo de nar-
rativa e no acervo conhecido e resignificado por Haroldo Maranhão.

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A Tra[d]ição do Cronista Viajante: uma Viagem por Outros
Mares Semânticos 437

A Peregrinação faz o relato interessantíssimo sobre a viagem de Fer-


não Mendes Pinto ao Oriente, lugar insólito e desconhecido das nações
ocidentais. O relato transmite um vasto quadro deste ambiente, seus po-
vos, sua cultura, sua língua e costumes. Da mesma maneira a obra do
escritor paraense relata a descoberta do desconhecido território recém-
-descoberto, os hábitos do povo, sua cultura, valores e em especial o ri-
tual da antropofagia muito caro às nações indígenas. O estranhamento,
a admiração, o medo e a angústia são presentes em ambas as narrativas.
Outro ponto que fere a atenção é o fato dos protagonistas terem sido
mantidos cativos por outros povos. Tais obras são em suma narrativas de
viagens, tendo O Tetraneto Del-Rei a inclusão de doze cartas à moda
das grandes epístolas de viagens. Aproxima ainda das duas narrativas o
relato autobiográfico de seus protagonistas.
Alguns críticos defendem a tese de que as peregrinações são a sátira
sobre o modo que o povo português se relacionava com as grandes nave-
gações e a alteridade para com os povos orientais. No mesmo movimento
O Tetraneto Del-Rei é a sátira pelo viés da ficção do processo de des-
cobrimento do Brasil. Nas peregrinações a sátira se dá de forma velada
e implícita, já em O Tetraneto Del-Rei consiste na técnica de escritura
escolhida por Haroldo Maranhão.
A linguagem próxima à oralidade é outro ponto de convergência nas
duas obras. Em alguns momentos parece que os personagens estão a
conversar corriqueiramente com o leitor.
Distantes no tempo e em atitude, pois Fernão Mendes Pinto teve
como pressuposto principal a paródia e desconstrução das aventuras e
conquistas portuguesas. Em um espaço temporal distante O Tetraneto
Del-Rei também parodia as façanhas portuguesas, mas com outro objetivo
recontar de outra forma a história da colonização brasileira.
Outros mares semânticos são as caravelas que conduzem a escritura
de O Tetraneto Del-Rei, no entanto apoiado em uma tradição conhecida
a obra se ampara em matrizes importantes da literatura universal como a
Peregrinação de Fernão Mendes Pinto.

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438 Thaís do Socorro Pereira Pompeu

A natureza antropofágica de O Tetraneto Del-Rei

Já na orelha do livro o escritor Haroldo Maranhão nos dá pistas sobre a


forma como construiu o seu romance e afirma com todas as letras que:

No texto, há enxertos de versos e passagens de Fr. Amador Ar-


rais, Pero Vaz de Caminha, Camões, Bocage, Gregório de Matos,
Fr. Francisco de Mont’Alverne, Camilo Castelo Branco, Antero de
Quental, Eça de Queiros, Machado de Assis, Francisco Otaviano,
Olavo Bilac, Fernando Pessoa, João Guimarães Rosa, Manuel Ban-
deira, João Cabral de Melo Neto, Mario Faustino e Lêdo Ivo. (MA-
RANHÃO, 1982: orelha do livro)

Assim existe a denúncia por parte do autor que confessa ao seu leitor
que ele copiou, e quem servia de base e matriz de sua escritura. O texto
haroldiano é semelhante a uma colcha de retalhos de discursos de outras
obras e autores. É uma viagem pela literatura portuguesa e brasileira.
Sobre a técnica empregada por Haroldo na composição do romance é
de suma importância o comentário de Jackson (1990: 11-19):

Assim como os mundos históricos e ficcionais do Brasil colonial se


entrelaçam, o texto como comédia adquire níveis adicionais de signi-
ficação, como a epopeia, o mito, a lenda, ou a crítica social. Apesar
da sua ironia penetrante, o romance é justaposto e substitui todas
as prévias explorações coloniais, e seu discurso auto-consciente se
torna uma ferramenta para minar a ideologia e a mentalidade da
«descoberta». Os níveis do discurso atravessam o espaço e o tempo,
dando ao romance a universalidade como um paradigma tanto da
escrita luso-brasileira quanto dos valores operantes em sua civili-
zação. O texto baseia-se na necessidade e compulsão de escrever
como um cantar de identidade, reforçando em terras estranhas a lín-
gua como um código cultural dominante, no qual, paradoxalmente,
o escritor da colônia exerce seus talentos picarescos de decepção e
disfarce através da manipulação e da deformação da retórica Real.

A técnica parodística de Haroldo é advinda de três momentos: a pes-


quisa, a leitura e a escritura (reescritura). Para uma compreensão mais

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A Tra[d]ição do Cronista Viajante: uma Viagem por Outros
Mares Semânticos 439

concreta da construção do romance será realizado a partir de agora uma


definição conceitual da técnica utilizada por Haroldo. Antes de qualquer
explicação fechamos o conceito e em seguida as devidas explicações serão
dadas. Nesse sentido, a técnica utilizada é a de antropofagia literária e
que técnica seria essa?
Conceitualmente o conceito de antropofagia utiliza a imagem violenta
do canibal. Antropofagia como é sabido consiste no ritual muito pre-
sente nas sociedades indígenas de devoração do semelhante. O canibal
é aquele que alimenta-se do outro como forma de enriquecimento cor-
poral e espiritual. Mas o que há de relação desse ritual com a escrita
de um autor? Diríamos que total relação, amparado pelos princípios do
canibalismo que está na gênese do modernismo brasileiro e no Manifesto
Antropófago de 1928 de Oswald de Andrade. Em data posterior 1980 a
obra do escritor revisita o conceito de antropofagia literária por possuir
uma visão e objetivo comum:

. . . com a ‘Antropofagia’ de Oswald de Andrade, nos anos 20 (re-


tomada depois, em termos de cosmovisão filosófico-existencial, nos
anos 50, na tese A Crise da Filosofia Messiânica), tivemos um
sentido agudo da necessidade de pensar o nacional em relaciona-
mento dialético com o universal. (. . . ) Ela não envolve uma submis-
são (uma catequese), mas uma transculturação: melhor ainda uma
‘transvaloração’: uma visão crítica da história como função negativa
(no sentido de Nietzche), capaz tanto de uma apropriação como de
desapropriação, desierarquização, desconstrução (CAMPOS, 1983).

Visando uma desconstrução do lugar de enunciação, a partir de um


pensamento suplementar sobre o nacional Haroldo Maranhão joga-se ao
deleite traidor da técnica antropofágica da escritura. Assim, ele se apro-
pria de obras anteriormente lidas, as citações chamam a sua atenção cabe
a ele com tesoura de suas leituras reconduzir os pedaços de textos com a
finalidade nova que nutre seu projeto de escrita.
Jerônimo de Albuquerque é o viajante invertido construído por Haroldo
com um objetivo: desconstruir o imaginário sobre a colonização brasileira
através da inversão de um de seus ícones mais representativos: o cronista
viajante. Como deixar de notar a criticidade do romance? Construído
sob os moldes de uma abordagem histórica, crítica, porém satírica, irônica

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440 Thaís do Socorro Pereira Pompeu

e desconstrutiva do imaginário português sobre a nossa colonização? A


obra de Haroldo Maranhão traz em si o verniz crítico que enaltece as
vozes abafadas pelo discurso histórico tradicional. Colabora com isso para
uma visão descentralizante dos agentes que compõem o povo brasileiro
e valoriza um de seus constituintes, o indígena que ganha notoriedade e
humanidade na narrativa.
Uma analise literária pautada no conceito de antropofagia precisa es-
tar amparada em três perguntas básicas: o que escreve? por que escreve?
de onde escreve?
Assim, cabe a partir de agora respondê-las, Haroldo Maranhão es-
creve um romance que satiriza os anos iniciais de nossa colonização, am-
parado pela reescrita e apropriação de outro autores e obras. Qual a
razão desse esforço de escrita? Duas razões sejam possíveis para respon-
der tal pergunta: a) para contar uma história conhecida de outra maneira
em que todos os agentes da colonização tenham a mesma medida ou para
ser uma espécie de homenagens à literatura brasileira e portuguesa. De
onde escreve esse autor? De um país latino-americano em que frequen-
temente o debate sobre identidade é pensado e repensado. Escrever uma
obra como O Tetraneto Del-Rei é antes de tudo um esforço crítico sobre
o próprio meio e a identidade em que se está. É de criticar através da
literatura um passado histórico e de produção escrita.
O debate sobre a antropofagia, presente em O Tetraneto Del-Rei,
aproxima-se ao conceito de metaficção historiográfica nos termos de Linda
Hutcheon (1988). Pois suas linhas partem da devoração resignificada de
uma história muito conhecida: a chegada de Duarte Coelho e seus fami-
liares, entre eles Jerônimo de Albuquerque, à capitania de Pernambuco
no ano de 1535. Poderíamos dizer que uma das características determi-
nantes para textos desse tipo seria a inversão satírica, que garante pela
desconfiança corrente um olhar crítico sobre as versões oficiais de nossa
história.
A metaficção historiográfica é um tipo de texto ficcional comprometido
com o repasse de informações inclusivas sobre a realidade. Nesse tipo
de texto as fronteiras entre o romance e a história são de uma fluidez
instigante, por inserir as grandes narrativas na atmosfera da suspeita e
da dúvida que também está presente na Peregrinação de Fernão Mendes
Pinto. Obras construídas nesse molde apresentam uma autorreflexividade

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A Tra[d]ição do Cronista Viajante: uma Viagem por Outros
Mares Semânticos 441

intensa sobre alguns personagens históricos, no caso da obra a ser es-


tudada o viajante europeu. A negação de alguns sentidos existentes na
história oficial só são possíveis pelas artimanhas da linguagem, é através
do texto que se fazem presentes, uma prova disso são as cartas invertidas
escritas pelo Torto ou a linguagem quinhentista reeditada. As metaficções
historiográficas são abordagens radicalmente críticas e falsificadoras da
história e das narrativas cristalizadas.
Com a voraz prática de leitura, Haroldo Maranhão empreendeu o re-
colhimento de um vasto material histórico-bibliográfico do personagem
Jerônimo de Albuquerque, integrante da História Oficial do Brasil, con-
siderado por muitos como o Adão do Nordeste por ter gerado numerosa
descendência na região. Os elementos históricos são recriados pelo viés
da ficção, essa reescrita elaborada minuciosamente é um trabalho solitá-
rio e silencioso. Ressalta-se que a ficção literária é o lugar de onde a
escritura de uma nova versão para os fatos da colonização adquire uma
credibilidade ou mesmo onde o véu literário encobre uma possível preten-
siosa intenção da escrita haroldiana em se fazer verdadeira. Sozinho e
tendo em mente o que pretende enfocar com seus escritos, o autor-leitor
e também pesquisador colhe e filtra informações indispensáveis para a
construção de seus personagens. Trabalho arqueológico que culmina com
personagens como “O Torto”.
Uma vez compreendido o ambiente literário que instiga Haroldo Ma-
ranhão a escrever sua obra O Tetraneto Del-Rei, apresentamos a proposta
principal desta investigação, que se reveste em elencar a traição estabe-
lecida pela figura do viajante por ele idealizado. Viajar por outros mares
semânticos, repisar marcas de outras obras e enriquecer a história e a
literatura é um dos princípios norteadores da obra de Haroldo Maranhão,
que apresenta total diálogo com A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto
no ano de seu aniversário de 400 anos.

A última caravela. . .

Concluímos que A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é uma obra


cara, revisitada e constantemente procurada, como referência no rol da

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442 Thaís do Socorro Pereira Pompeu

literatura dos viajantes, ou como matriz, molde e norte para obras poste-
riores. Nessa obra, cara à literatura universal, Haroldo Maranhão bebe
em muitos pontos para a construção de seu romance O Tetraneto Del-
-Rei, no que tange o estilo, a história e as peripécias de persongens tão
interessantes e apaixonantes.

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Referências

ALVES, Sérgio Afonso Gonçalves. Fios da memória, jogo textual e


ficcional de Haroldo Maranhão. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São
Paulo: Cultrix, 2004.
CAMPOS, Haroldo de, “Da razão antropofágica: diálogo e diferença
na cultura brasileira”. Boletim bibliográfico – Biblioteca Mário de An-
drade, São Paulo, v. 44, jan./dez. 1983.
MARANHÃO, Haroldo. “Um fecundo autor inédito: premiado e quase
desconhecido”. O Liberal. Belém, 19 de fevereiro de 1982.
JACKSON, Kenneth David. “The parody of ‘letters’ in Haroldo Ma-
ranhão’s O Tetraneto Del-rei”. Luso-Brazilian Review, Madison, v. 27, n.
1, p. 11-19, Summer 1990.
MARANHÃO, Haroldo. O Tetraneto Del-Rei (O Torto: suas idas e
venidas). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
NUNES, Benedito et al. “O prazer do texto num texto de prazer:
parecer da comissão julgadora do VI Prêmio Guimarães Rosa/1980”. In:
MARANHÃO, Haroldo. O Tetraneto Del-Rei: o Torto, suas idas e venidas.
Rio de Janeiro: F. Alves, 1982. Orelha do livro. (grifo dos autores)
SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano.
Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2.a ed.
Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
Miguel Torga e Agustina:
viagens, memória e espírito do lugar

Álvaro Manuel Machado

Prof. Catedrático jubilado


Universidade Nova de Lisboa

O célebre verso do poema da obra ortónima de Fernando Pessoa Via-


jar! Perder países, magnificamente enigmático, levanta sobretudo uma
questão fulcral: em que medida a viagem (e aqui refiro-me apenas à via-
gem ao estrangeiro, longe ou perto, numa perspectiva estritamente com-
paratista) é, antes de mais, uma fuga – fuga de si próprio e também
(citando ainda o poema de Pessoa) fuga para “Ser outro constantemente”,
perder as “raizes” da alma, “viver de ver somente”1 ? Sublinhe-se: “viver
de ver somente”. Dir-se-ia que Fernando Pessoa, em 1933, data deste
poema, estava a prever o horror que é o nosso actual turismo de massa,
baseado numa espécie de ávido e boçal voyeurisme, que despreza todo
e qualquer conhecimento minimamente aprofundado, bem como qualquer
reflexão íntima, no encontro com o “Outro”, o estrangeiro.
1
Fernando Pessoa, Obra poética e em prosa. Introdução, organização, biobiliografia
e notas de António Quadros e Dalila Pereira da Costa, Porto, Lello & Irmão – Editores,
vol. I – Poesia, p. 370.
446 Álvaro Manuel Machado

Ora, os dois escritores que escolhi para abordar o complexo e ines-


gotável tema da viagem (de que não sou especialista, note-se, apesar de
este tema se situar no centro de toda a investigação comparatista rela-
cionada com a chamada “imagem do estrangeiro”), esses dois escritores,
Torga e Agustina, nada têm de meros espectadores “sem alma” (como dizia
Pessoa), frívolos espectadores de passagem. Pelo contrário, ambos se en-
tregam à viagem como elemento iniciático, quer quanto ao conhecimento
do Outro quer quanto ao aprofundamento do conhecimento deles próprios,
cultivando igualmente a memória e o espírito do lugar. Todavia, a níveis
diferentes de iniciação, de descoberta do outro e da própria aprendiza-
gem de vida, como veremos. A níveis diferentes também do conceito de
cosmopolitismo, o qual engloba, obviamente, toda a vigem ao estrangeiro.

Torga e a viagem como aprendizagem de vida

Comecemos, então, antes de abordar a obra de ambos relacionada com


a literatura de viagens, pela própria noção de cosmopolitismo derivada da
viagem.
Paul Morand, escritor, diplomata e viajante francês de entre as duas
grandes guerras, injustamente esquecido, ávido de espaços estrangeiros,
de Londres ao Cairo, de Nova Iorque às Caraíbas, define assim, num texto
fragmentário de 1935, o cosmopolitismo que a febre da viagem alimenta:
“Le cosmopolitisme est le voltige sur une corde raide: l’on ne saurait s’y
maintenir longtemps [. . . ].” E acrescenta: “La plus grande de toutes les
noblesses n’est-elle pas celle de l’homme libre qui part pour apprendre,
qui revient et qui rend compte?”2 .
Aparentemente, nada aproxima o diplomata raffiné, o viajante elegan-
tíssimo e mundano, verdadeiro gentleman, íntimo de Proust, que é Paul
Morand, do granítico e inconsútil transmontano Miguel Torga. E, no en-
tanto, num passo de “O Quarto Dia da Criação” de A Criação do Mundo,
curiosamente escrito quase no mesmo ano, Torga também reconhece, em-
bora com outro fervor telúrico, que a viagem e a curiosidade cosmopolita
2
Paul Morand, Voyages, Paris, Robert Laffont, 2001, p. 896.

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Miguel Torga e Agustina: viagens, memória e espírito do lugar 447

não podem durar muito tempo e que, na sua própria função de aprendiza-
gem, de descoberta do Outro, só ganham sentido no regresso, quando on
rend compte, ou seja, quando o acto da escrita, na sequência do acto de
leitura que acompanha a viagem ou a precedera, lhe dá corpo. Trata-se
do diálogo em Paris com um amigo, numa Europa à beira da Segunda
Guerra Mundial:

Ando de fronteira em fronteira a ver coisas. Mas sei de ciência


certa que só quando voltar é que lhes vou descobrir a verdadeira
significação. Chega a ser engraçado: o universal, que num país
estrangeiro sinto infinitamente longe de mim, das fragas nativas
parece-me ao alcance da mão. . .
[. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ]
Feliz ou infelizmente, conheço os meus limites, que este passeio pela
Europa ajudou curiosamente a precisar. Seria capaz de viver longe
da pátria na situação de emigrante que ganha o seu pão. Já o fui, de
resto. Mas nunca poderia viver fora dela como escritor. Faltava-me
o dicionário da terra, a gramática da paisagem, o Espírito Santo do
povo.3

Consequentemente, podemos, desde já, constatar o seguinte: para


Torga, a viagem, implicando embora um espírito cosmopolita indispensá-
vel a toda a atitude de livre abertura ao Outro, ao estrangeiro, implica
também, à partida, um enraizamento social, histórico e cultural profundo,
que determina o próprio acto de escrita, no regresso.
Por outro lado, a descoberta de um autor e da leitura desse autor,
paralelas à viagem, só se tornam plenas para Torga quando há também
descoberta do lugar a que esse autor esteve ou está intimamente ligado.
O exemplo talvez mais paradigmático é o do escritor Amiel e da sua Suíça
natal. Como se sabe, Torga escolheu uma citação de Amiel (“Chaque jour
nous laissons une partie de nous-même en chemin”) para figurar como
epígrafe, ou melhor, como pórtico em todos os volumes do seu Diário. É
uma citação evidentemente oportuna, aludindo simultaneamente ao tempo
e ao espaço. Todavia, o que poderá Amiel, esse herdeiro do Rousseau das
Confessions, esse apagado escritor suíço do mal du siècle da segunda
3
Miguel Torga, A Criação do Mundo, 1a edição conjunta, Coimbra, 1991, p. 295.

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448 Álvaro Manuel Machado

metade do século XIX, autor de Fragments d’un journal intime (edição


póstuma, 1883), significar de facto para Miguel Torga? A resposta estará,
creio, não no Diário, mas sim no “Quarto Dia” de A Criação do Mundo,
quando Torga evoca a descoberta de uma Suíça coberta de neve que
é “imagem colectiva da moderação”4 . O encontro, num pequeno hotel
de Martigny, perto de Genebra, com Mademoiselle Marguerite e a sua
“aberta e calma serenidade”5 , leva-o à descoberta de Amiel e da sua obra
no seu próprio mundo:

No fim do jantar, quando ia a sair, fui dar com Marguerite, que nos


servira à mesa, refugiada nas páginas de uma biografia de Amiel.
Aproximou-nos, além da mocidade, do instinto e da centrípta pressão
do exterior, essa fascinação da letra redonda [. . . ]. Acrescia ainda
que Amiel era um dos meus homens, secretamente admirado pela
minha própria timidez que, apesar de compensada, se doía também
nos recessos do meu ser. Reencontrá-lo na sua terra, naquele dia e
nas mãos duma mulher, parecia-me simbólico. Tornava-se-me trans-
parente o seu drama, todo de gelo circundante, de íntima solidão, e
de feminina solicitude.6

Note-se a expressão “reencontrá-lo na sua terra”, o que, para além da


importância dada ao espírito do lugar, significa que Torga já o lera antes
e que até, provavelmente, já o tinha escolhido para epígrafe do seu Diário.
Mas o factor decisivo, a nível do próprio imaginário, foi o de ter descoberto
plenamente Amiel ali, na Suíça, na terra natal do escritor, com neve e tudo,
dando corpo e alma ao “silêncio dos livros” (como diria George Steiner)
e, além disso, através da experiência do encontro com uma mulher que,
maternal, encarna o próprio espírito do escritor e também do lugar.
Assim, a referência-chave a Amiel tem uma conotação autobiográfica
evidente, que não é só produto duma leitura empática, mas, paralela-
mente, do acto de viajar e da “verificação” dessa leitura durante a viagem,
transposta para um caso vivido. Ela é, portanto, devida a uma experiência
vital importante, ainda que breve, como se pode constatar logo adiante,
4
Id., p. 273.
5
Id., ibid.
6
Id., pp. 273-274.

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Miguel Torga e Agustina: viagens, memória e espírito do lugar 449

ligando, no mesmo percurso, as leituras de Amiel e de Rousseau e provo-


cando a interrogação sobre a sinceridade do escritor quando transfigura
a vida em arte:

A partida foi daí a dias. [. . . ] Marguerite chorava silenciosamente


na sala deserta do hotel. Cá fora nevava outra vez. Ironicamente, a
mão invisível do acaso pusera-se a caiar aquela hora, que dentro de
nós tinha a negrura dum adeus sem esperança. [. . . ] Já em Genève,
a meu pedido, o carro parou diante do monumento a Rousseau [. . . ].
Pobre Marguerite! [. . . ] A única atenuante que talvez pudesse
alegar em minha defesa, é que sofria. Sofria como um cão, por ser
como era. Que o dissessem as páginas íntimas que escrevia diaria-
mente, mesmo se, no puro plano da sinceridade, muito houvesse a
objectar-lhes, como às de Amiel, que me abrira as portas daquela
terra, e às de Rousseau, que as fechava.7

Num outro registo autobiográfico e também estético, assinale-se, no


“Terceiro Dia” de A Criação do Mundo, a viagem, depois da dura experiên-
cia da emigração e já “futuro doutor de Coimbra”, de regresso a Portugal
e a paralela referência à leitura de Machado de Assis. Torga descreve a
emoção “imprevista, perturbante e confusa” de ver “lançar à água, pela
calada da noite, o cadáver do sr. Porfírio, um patrício retalhista, que a
meio da travessia morreu tísico.” E acrescenta:

Afastei o pesadelo daquela agonia sem esperança de repouso a ler


Machado de Assis. Na Antologia Werneck do Ginásio figuravam
apenas extractos dos seus livros. Mas eu comprara o Quincas Borba,
e tinha agora diante de mim Rubião a sonhar.
Podia, finalmente, fartar os olhos de letra redonda, e, graças à gazua
literária, penetrar no íntimo das pessoas e das coisas. Os quadris
carnudos de uma inglesinha enjoativa, a fleuma do criado John e
a melancolia do cançonetista da orquestra, horas a fio debruçado
na amurada, tornavam-se mais compreensíveis à luz de experiências
emprestadas. Em qualquer novela havia que aprender.8

Aliás, não é só a leitura de Machado de Assis que acompanha Torga


na viagem de volta a Portugal, é também a memória de leituras feitas na
7
Id., pp. 275-276.
8
Id., p. 127.

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450 Álvaro Manuel Machado

primeira viagem de barco, a de ida, ainda com treze anos, leituras essas
obviamente mais simples, de autores mais populares, como as de Júlio
Verne, Perez Escrich e Zevaco. Leituras que já então o levam a procurar
a “vraie vie”, como dizia Proust, no “silêncio dos livros”, sem, no entanto,
deixar de a experimentar, de a confrontar com a realidade dos factos:

Devorava a Escuna Perdida de Júlio Verne, e era rememorar o es-


pectáculo da tempestade seguida de nevoeiro que na primeira via-
gem trouxera a confusão ao navio. Colete de salvação vestido, a
sirene a apitar aflitivamente, a marinhagem a postos, lágrimas e
rezas. . .
– Tome cuidado com tanta leitura. . . Não exagere!
– Tanto lê, que treslê. . .
À observação razoável do meu tio, acrescentava a minha tia a costu-
mada acidez. Mal sabia ela que no último romance que desencan-
tara na biblioteca de bordo a surpreendera retratada. Nas antigas
histórias de Perez Escrich e de Zevaco fora empolgado apenas pe-
los lances do enredo [. . . ]. Mas ia pouco a pouco descobrindo que
os autores procuravam criar, através das personagens que punham
em movimento, símbolos perenes de realidades quotidianas. A en-
carnação do mal, de que minha tia era o exemplo vivo, tinha uma
representação ideal que se chamava Megera. . . 9

Em suma: o “silêncio dos livros” acompanha Torga desde o início,


em diferentes viagens, relacionando-se intimamente não só com a desco-
berta do Outro, no espaço e no tempo, mas também com a por vezes dura
aprendizagem da vida, inclusive da vida familiar. Essa aprendizagem vai
implicando cada vez mais, à medida em que o escritor se afirma na ple-
nitude do seu acto criativo, regressos cíclicos a lugares e, paralelamente,
a certos autores que o fazem descobrir-se a si próprio.
Assim, no oitavo volume do Diário (1a edição de 1959), Torga ex-
põe muito claramente o significado dos regressos a determinados lugares,
ou antes, das revisitações ritualísticas de certos espaços privilegiados
(e aqui limito-me, como referi no início, a espaços estrangeiros, dado o
enfoque predominantemente comparatista desta minha comunicação, que
9
Id., pp. 127-128.

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Miguel Torga e Agustina: viagens, memória e espírito do lugar 451

evoca apenas leituras estrangeiras), revisitações essas acompanhadas de


releituras. Diz Torga:

Mais para verificar a minha capacidade de reacção do que compro-


var a força impressiva que as anima, gosto de rever certas terras
e reler certas obras. Ao mesmo tempo que recapitulo nelas toda
uma aprendizagem dos valores, vou avaliando o grau de intensi-
dade emotiva que me resta.10

Constatamos esse processo de autognose, através de viagens que são


revisitações e de releituras ritualísticas, sobretudo no que diz respeito
a determinadas cidades da Europa: Paris, antes de mais, mas também
Madrid, Salamanca (aqui as releituras de Unamumo são uma constante),
Bruxelas, Roma, Florença, Veneza.
Vou cingir-me, para terminar a abordagem dos textos de viagem de
Torga, à análise breve de viagens e revisitações a Paris e à literatura
francesa, fazendo notar de imediato que há frequentemente em Torga,
como já referi no ensaio O “francesismo” na literatura portuguesa, um
“anti-francesismo” ambíguo, derivado sobretudo da “defesa obsessiva de
uma originalidade ibérica que muito cedo se manifesta na sua obra”11 .
Tomemos primeiro como exemplo bem significativo algumas passagens
de A Criação do Mundo, onde, como já vimos, da infância à velhice, se de-
senrola o espectáculo do mundo e do eu no mundo, partindo do microcosmo
de origem, a aldeia transmontana de São Martinho de Anta. Centro-me
no quarto volume, O Quarto Dia, de que já citei outras passagens an-
teriormente. Torga percorre uma Espanha ainda dilacerada pela guerra
civil e já tiranizada brutalmente por Franco, atravessa, como já referi, uma
Europa à beira da Segunda Guerra Mundial. Ao entrar em França, sente
o “egoísmo gaulês” quando os donos duma pensão em Baiona, católicos,
exaltam Franco e consideram “une autre affaire” a luta pela liberdade em
Verdun contra o imperialismo prussiano: “Convencidos de que a França
era a única realidade significativa do mundo, só as suas epopeias tinham
grandeza e dignidade.”12 . Todavia, quando chega a Paris, Torga sente que
10
Miguel Torga, Diário VIII, 2a ed. integral, Lisboa, Dom Quixote, 1999, p. 878.
11
Álvaro Manuel Machado, O “francesismo” na literatura portuguesa, Lisboa, ICALP,
col. Biblioteca Breve, 1984, p. 108.
12
Miguel Torga, A Criação do Mundo, ed. cit., p. 245.

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452 Álvaro Manuel Machado

a chamada “cidade-luz” é o centro cultural de toda a Europa e mesmo de


todo o mundo civilizado:

Paris! A capital do presente, como a desejara ver, de regresso das


capitais do passado. . . [. . . ] Primeiro Roma, Florença, Veneza – a
serenidade das aventuras cumpridas. Depois, que viesse o grande
coração da Europa actual, com as palpitações e os anseios dum
coração moderno. Era de noite que eu finalmente penetrava nele,
através de largas e compridas artérias que o prolongavam em todas
as direcções, como se quisessem levar o seu calor aos quatro cantos
da terra.13

No dia seguinte, ao acordar, instalado nas águas furtadas dum velho


hotel, Torga chega à janela e vê “Montaigne a sorrir-me do outro lado da
rua.”14 . Depois, medita, sentado à mesa dum café do Quartier Latin cheio
de algazarra existencialista e onde se discute o último livro de Malraux:

[. . . ] às tantas, dei comigo a contrapor à natureza discreta e diurna


dos Essais, a condição desgarrada e agónica de Villon. O penitente
de Le grand testament, sim, é que era afinal o verdadeiro patrono
daquele Paris de estufas de asfixia criadoras, versões presentes das
tabernas do passado. A torre de marfim do outro, onde a reflexão
serena tivera a sua hora feliz, fora substituída pelos porões promís-
cuos do desespero existencial.15

Assim, o elemento iniciático da viagem transfere-se para a literatura,


através da mitologia intelectual parisiense. No entanto, note-se que Torga
mantém sempre a distância no próprio acto de conhecimento e de fascínio
pela França. Já vimos, aliás, que nessa mesma viagem Torga teve cons-
ciência dos seus “limites”, ou seja, de que seria incapaz de viver fora de
Portugal como escritor, no que, aliás, se aproxima de Agustina.
Cinquenta e um anos depois, no penúltimo volume do seu Diário, o XV,
publicado em 1990, Torga evoca de novo uma das suas viagens a Paris, a
derradeira. Aí, já perto do final da vida, as referências literárias (haveria,
evidentemente, muitas outras a fazer, se o tempo o permitisse) dão lugar
13
Id., pp. 277-278.
14
Id., p. 278.
15
Id., p. 284.

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Miguel Torga e Agustina: viagens, memória e espírito do lugar 453

à reafirmação da sua condição essencial de português, através da própria


deambulação incansável pelo estrangeiro e das leituras e releituras que
vai fazendo:

Uma noite em claro a ouvir ressonar este monstro urbano e a pen-


sar nas caminhadas que incansavelmente faço pelo mundo a cabo.
[. . . ] E, a sentir já saudades da pacatez do lar, aí venho eu, como
agora, desafiar a auto-suficiência francesa ou qualquer outro es-
tigma igualmente alheio e incómodo, na crispação, confessada ou
inconfessada, em que estamos sempre diante daqueles que mal re-
param em nós, ou então nos julgam e condenam duma penada. Mas
gosto de me ver em terra alheia. É uma das maneiras de perspec-
tivar a minha, a que medularmente me importa. O que eu tenho
aprendido de Portugal longe das suas fronteiras!16

2. Agustina: viagem iniciática e memória

Vejamos agora o caso de Agustina. Vou limitar-me aqui a duas obras da


escritora, uma recentemente reeditada, com textos inéditos, Breviário do
Brasil e outros textos, e outra inédita e também recentemente publicada,
Kafkiana, que evoca viagens a Praga.
Mas permitam-me, antes de comentar estas duas obras, chamar a
atenção para aquilo que, já em 1979, no meu livro Agustina Bessa-Luís
integrado na coleção “Vida e Obra” da extinta Editora Arcádia (depois
retomado, revisto e aumentado, em Agustina Bessa-Luís – o Imaginário
Total, Lisboa, Dom Quixote, 1983) observava, no capítulo “Espírito do
lugar, paixão, história”, sobre o primeiro livro de crónicas de viagem de
Agustina, Embaixada a Calígula, publicado em 1961:

[. . . ] Embaixada a Calígula, do mesmo ano que O Manto (1961)


e entre este romance e O Sermão do Fogo (1963), prenuncia o
novo ciclo, anunciando já a tetralogia As Relações Humanas. De
facto, é nele que o espírito do lugar, bem como, em grau menor, a
paixão individual ou colectiva e o peso da História, longamente se
16
Miguel Torga, Diário, vol. XV, Coimbra, 1990, pp. 19-20.

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454 Álvaro Manuel Machado

manifestam. Mas isto não por ser um livro de viagens propriamente


dito, antes por ser um livro em que a viagem é pretexto, elemento
desencadeador de efabulação e de reflexão de cariz filosófico. Aliás,
logo no início, Agustina Bessa-Luís diz-nos que, embora se viaje
muito e com maior facilidade na nossa época, a verdadeira viagem,
a viagem iniciática, [. . . ] torna-se extremamente rara.17

É precisamente neste sentido de “viagem iniciática” que estes dois


livros, para lá das diferenças óbvias, me parecem ter significativos ele-
mentos em comum. Perguntar-se-á: iniciação a quê? Àquilo que marca
indelevelmente toda a obra de Agustina: uma constante e multímoda pro-
cura do espírito do lugar, entre a memória de um Douro e de um Minho
da infância ou da adolescência e uma curiosidade cosmopolita insaciável,
marcada frequentemente pelo distanciamento irónico e efabulativo.
Comecemos, então, pelas fragmentárias reflexões de Agustina sobre o
Brasil, em Breviário do Brasil e outros textos.
Trata-se de uma colectânea que inclui o volume Breviário do Brasil,
publicado em primeira edição em 1991, incluindo agora um texto inédito
que terá servido de apresentação pública da obra pela autora, e de uma
série de textos publicados no JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias em 1982;
e ainda outros textos breves e dispersos, alguns inéditos, que datam de
entre 1984 e 2004, este último, “Discurso do Brasil”, lido por Agustina na
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, durante a cerimónia de entrega do
Prémio Camões.
Observe-se, desde o primeiro texto, a função autobiográfica das notas
de viagem, quando, no Rio de Janeiro, Agustina evoca o pai, recriando-
-o como um personagem de romance, através de pequenos pormenores
extremamente significativos, desvendados pela memória:

O meu pai foi para o Rio tinha doze anos. Nesse tempo era a cidade
de Machado de Assis, os homens usavam fatos de seda crua e fre-
quentavam os casinos. Meu pai viveu com aparato e grandeza, tinha
punhos de oiro, ratinhos de oiro pousados num brilhante. Também
tinha um alfinete de gravata que era um homenzinho aleijado e a
corcunda dele era outro brilhante. Era um homem valente, com ar
17
Álvaro Manuel Machado, Agustina Bessa-Luís – A Vida e a Obra, Lisboa, Arcádia,
1979, p. 52.

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Miguel Torga e Agustina: viagens, memória e espírito do lugar 455

de boa pessoa. Ninguém diria como ele era destemido e sem medo
de nada neste mundo. Mas acreditava no candomblé, não falava
muito nisso.18

Indo ao encontro desse “pensamento como sono de criança que o Brasil


inteiro nos oferece”19 , Agustina, como Torga, descobre um espírito do lugar
que está frequentemente ligado à vida e à obra de escritores. É o caso da
evocação de Machado de Assis, que já observámos a propósito desse Rio
mítico do tempo do seu pai e que reaparece constantemente, mas também,
por exemplo, a de Manuel Bandeira quanto ao Recife:

[. . . ] quem diz tudo de Recife é Manuel Bandeira. Quem sabia


tudo o que lá se passava, como quem vai para Pasárgada a vau
do Capibaribe, era Manuel Bandeira. Nós, os da geração de 50,
amávamos o poeta, como anfitrião do Brasil. Ainda hoje eu vou a
Recife pela mão dele, e visiono os arcos que já não existem e chamo
“cambrone” à retrete, que é como se dizia em Recife. Era um poeta
iluminado pelas réstias de sol de Caxangá; tem um tom pessoano
nos versos, que parecem vento empurrando folhas [. . . ].20

Ainda no Recife, Agustina reúne pela memória, no mesmo lugar, Vi-


torino Nemésio e Clarice Lispector: “Quando fui ao Recife pela primeira
vez, fui à feira de que fala Vitorino Nemésio e, ao pensar nisso, ocorre-me
Clarice Lispector: “A minha alma tem o peso duma lembrança.”21 . E em
São Salvador da Bahia, Agustina evoca Raduan Nassar paralelamente
a Jorge Amado, recorrendo novamente à memória ligada ao espírito do
lugar:

[. . . ] socorro-me de memórias passadas de quando aqui cheguei so-


zinha e tive uma receção sumptuosa, à maneira baiana, oferecendo
o coração num copo de simpatia. Lembro-me da novela de Raduan
Nassar, que continua a ser um dos meus escritores preferidos do
Brasil. Chama-se Um Copo de Cólera. [. . . ] Jorge Amado descreve
18
Agustina Bessa-Luís, Breviário do Brasil e outros textos, Lisboa, Guimarães/Babel,
2012, pp. 12-13.
19
Id., p. 17.
20
Id., p. 23.
21
Id., p. 65.

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456 Álvaro Manuel Machado

a Bahia como uma mulher e esta tem o sentido de metáfora ador-


mecida, ou esquecida, aquela que perdeu o contacto com a ideia
primitiva que ela exprimia. Quando é despertada, a metáfora ador-
mecida tem uma força persuasiva superior. Em Gabriela há uma
metáfora adormecida: a terra baiana, que permanece e que não
muda através da sua fantasia.22

Frequentemente, Agustina reflecte sobre a destruição que a grande


metrópole, como São Paulo, provoca no espírito do lugar: “As cidades
estão em risco de expulsarem o espírito do lugar ao tornarem-se gran-
des demais. [. . . ] O passado só é venerável se o espírito do lugar o
representa.”23 .
A memória ligada ao espírito do lugar infiltra-se, assim, a cada ins-
tante de viagem, na escrita do viajante, como diz Agustina, resumindo o
seu percurso pelo Brasil, numa breve nota final, texto inédito, datado de
1992, a propósito de Breviário do Brasil:

Os livros que se escrevem são uma forma de “canção de cisne feita


em hora extrema”, como diz o Camões. Pois tudo o que vemos nos
parece oferta à memória e é louvor da morte em que andamos ao
colher da memória o sustento. [. . . ] Este livro não é um diário. É
uma conversa feita de amores e desamores repentinos e com a arte
de os deixar ao lado, antes que nos agradem ou desagradem de
mais. [. . . ] O livro prolonga o que ao esquecimento se deve.24

Ao contrário de Breviário do Brasil, com mais de 250 páginas, Kafkia-


na é um pequeno volume constituído por quatro textos breves, datadas de
entre 1983 e 2005, que são outras tantas reflexões fragmentárias sobre
Kafka, a sua obra e a sua vida, numa Praga mítica, revisitada. Ainda
aqui, a viagem é um pretexto para accionar a memória e desencadear as
mais diversas e insólitas divagações de cariz ficcional, predominantemente
aforísticas, relacionadas com o espírito do lugar.
Assim, no seu “encontro com Kafka”, escritor de quem é “leitora im-
paciente”, Agustina revela, logo no primeiro texto, a sua escolha de um
22
Id., pp. 69-75.
23
Id., pp. 94-95.
24
Id., p. 165.

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Miguel Torga e Agustina: viagens, memória e espírito do lugar 457

imaginário que caracteriza a sua própria obra:

Não sou uma ardente admiradora de Kafka, pois prefiro o estilo


maravilhoso ao pedagógico. Mas reconheço que a estranheza que
ele nos comunica é uma fonte de mais puras reflexões do que a
tendência para as soluções eufóricas e de lírico compromisso.25

Centrando as suas observações deambulatórias na relação entre a


vida e a obra de Kafka em Praga, aureolada de privilegiado espírito do
lugar, Agustina releva a “marginalidade cultural dos judeus de Praga”26
e, ao considerá-lo mais um “filho enjeitado dos românticos, percorrendo
eternamente as muralhas dos paraísos interditos”27 do que um escritor
expressionista, insiste nessa marca de culpabilização tipicamente judaica
que atravessa toda a obra kafkiana:

Provavelmente porque se trata de um judeu, Kafka não atinge a


desculpabilização. O nevoeiro de que ele fala e para o qual o
homem estende os braços não é mais do que a densa culpa em
que ele tem de perder-se. É um homem vencido pelo escrúpulo da
divindidade.28

Paralelamente, regressando a Praga e fazendo dessas viagens de re-


gresso uma espécie de subtil peregrinação literária, Agustina acentua com
extrema acuidade o carácter obsessivamente citadino da obra de Kafka
relacionado com a sua origem judaica, no último dos textos da coletânea,
intitulado “Kafkiana, opus ensemble”:

[Kafka] é, mais do que nenhum outro escritor, uma presença urbana,


descontente com a sua obra, descontente com a crepuscular elegân-
cia do Castelo que ele não habita mas que escolhe como morada.
Os livros de Kafka são um ato de paciência, mais do que uma prova
de talento. [. . . ] Em todo o judeu há um processo de grandeza que
não conhece solução. Esta é a definição do Processo de Kafka. [. . . ]
Para lá dos muros do cemitério judeu há ainda um sopro paciente,
que resiste e que a neve não consegue sepultar. [. . . ] O Castelo,
25
Agustina Bessa-Luís, Kafkiana, Lisboa, Guimarães/Babel Ed., 2012, pp. 16-17.
26
Id., p. 19.
27
Id., pp. 27-28.
28
Id., p. 48.

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458 Álvaro Manuel Machado

que se impõe a toda a cidade do cimo da sua colina branqueada


pela neve, é um lugar mítico [. . . ].29

Conclusão

Concluindo, podemos dizer que, a níveis diferentes do imaginário e da es-


crita, Torga e Agustina têm em comum sobretudo o sentido profundamente
iniciático da viagem, derivando daí o processo complexo da memória e, por
outro lado, da leitura de escritores e de obras ligados ao espírito do lugar.
Assim, para Torga há uma relação vital entre a viagem, sobretudo a
viagem ao estrangeiro, e a leitura como conhecimento e re-conhecimento
do espírito do lugar. Todavia, ele não poderia dizer como Sartre (para
referirmos mais um autor francês, este frequentemente criticado por Torga)
diz em Les mots que fugia das pessoas para ir “rejoindre la vie, la folie
des livres”30 . Pelo contrário, para Torga a viagem é ir ao encontro das
pessoas, do Outro, estando a leitura no centro desse encontro vital, ficando
para sempre. Ou seja: em Torga, a realidade do “silêncio dos livros”, a
sua aura, enconchada no mais íntimo do ser, não é incompatível com a
realidade quente e imediata da vida, antes a acompanha – e acompanha-a
na própria sagração do espaço que o imaginário da viagem proporciona e
laboriosamente constrói.
Por seu turno, Agustina, mais distanciada, utilizando frequentemente
o estilete da ironia, viaja através das metamorfoses de um mesmo ima-
ginário recorrente, obsessivo: o do espírito do lugar, entre a presença e
a ausência, a memória, o testemunho e o voo ficcional, predominando em
todos esses textos, acrescente-se, a magia desse “momento musical do
pensamento”, como diz George Steiner31 , que é o aforismo.

29
Id., pp. 79-81.
30
Sartre, Les mots, Paris, Gallimard, col. Folio, 1975, p. 47.
31
George Steiner, George Steiner em The New Yorker, Lisboa, Gradiva, 2010, p. 310.

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A Escrita e as «Oralidades» na Peregrinaçam de
Fernão Mendes Pinto
(breves notas de leitura)

João David Pinto Correia


Professor Associado aposentado
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Em memória da colega e amiga


Prof. Doutora Teresa Gamito

Neste 4o Centenário da primeira edição de Peregrinaçam de Fer-


não Mendes Pinto (1614), creio que a melhor decisão será propormo-nos
relê-la não só nos seus aspectos histórico-literário-culturais, mas princi-
palmente estudá-la nas suas componentes literárias, de estrutura, de con-
teúdo, de elementos e agentes narrativos e da sua expressão linguístico-
-literária.
Relê-la de vários ângulos, centrando-nos por vezes naquilo que pode
ser menos evidente ou à primeira vista pouco relevante, ou que se nos
tivesse aflorado à nossa sensibilidade de receptores da obra, pelo menos
por momentos e que, então, nos tivesse parecido como não muito perti-
nente ou quanto muito talvez a adiar estudar para momentos de maior
460 João David Pinto Correia

aprofundamento. É essa a minha tarefa com esta modesta tentativa a ser


completada ou mais aprofundada noutra ocasião.
Da leitura de Peregrinaçam, a uns leitores mais interessados na acção
ou na aventura impor-se-á ora a passagem rápida e a densidade dos
episódios, a outros a expressão solidamente arquitectada do ponto de
vista sintáctico, ora rica na adequação do léxico a acções e respectivos
agentes relativamente aos novos locais e gentes, e à preocupação pela
enumeração e colorido nas descrições.
No meu caso de leitor, é claro que sabia e sei que, na obra de Mendes
Pinto, a escrita domina com fluência e, ao mesmo tempo, complexidade.
No entanto, cada vez mais se foi impondo, e se impõe, outra característica
que é a proximidade vinda do envolvente fascínio a que não é estranha
uma muito trabalhada ocorrência de oralidade ou mesmo de oralidades.
Não me refiro, naturalmente, a uma contínua torrente, a um contínuo
registo do discurso oral que, procurando transcrever directamente relatos
de carácter mais prático (nas partes respeitantes aos relatos de naufrá-
gios ou a aspectos de carácter mais técnico-prático), mas a uma exposição
narrativa e descritiva que muito deve a um registo ou à recriação cuidados
e estéticos da oralidade, que se aproveita de recursos e estratégias plu-
rais baseados nos vários modos das possíveis oralidades que se revelam
emergentes, porém logo dominadas ou transfiguradas pela tonalidade ora
mais intimista e pessoal, ora valorizadora das potencialidades que a voz
autobiográfica ou de base intimista, não só possibilitada pela 1a pessoa
do Narrador-Personagem nas suas observações mais sentidas e incisivas,
como também da transposição das oralidades decorrentes da “actuação”
linguística dos seus testemunhos registadores das falas dos seus outros
companheiros ou inimigos, desde a pequena intervenção destacada de
uma situação de ocorrência dialógica aos discursos mais ou menos lon-
gos, às suas observações e considerações por vozes transcritas das línguas
indígenas que são traduzidas ou parafraseadas ou em português.
A escrita no total da obra beneficia da sua natureza de funcionar como
testemunho pessoal da experiência deambulatória e quase confessional e
memorial que atravessa a Peregrinação: um “eu”- narrador e personagem
que garante a presença quase permanente da 1a pessoa testemunhal de
vivência ou observadora que se dirige, como herança, aos “filhos” (na
realidade, eram filhas) e a todos os seus leitores e a todos os portugueses.

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A Escrita e as «Oralidades» na Peregrinaçam de Fernão
Mendes Pinto (breves notas de leitura) 461

O conhecimento de todo o texto de Peregrinaçam permite-nos, na


verdade, considerar que todo ele, pela sua configuração altamente auto-
biográfica, funciona para o receptor / leitor como uma escrita genialmente
elaborada de um testemunho narrativo, descritivo, expositivo, comenta-
rista, dramático. E tal testemunho chega-nos carregado de uma oralidade
ou, mais correctamente, de oralidades de diferente natureza que merecem
ser comentadas, senão mesmo analisadas. É como se Fernão Mendes
Pinto nos confiasse uma longa narrativa com a duração de vivência de
vinte e um anos, em que um “eu” fala para um “tu” ou “vós”, um receptor.
E o que nos fascina quase sempre é essa tonalidade de íntima aproxima-
ção do “pobre de mim”, como ele se qualifica, em relação aos destinatários
(esse “tu” ou “vós”, que, na realidade, somos “nós”), destinatários que so-
mos da mensagem literária.
A extensão do texto, a minudência das quantidades e enumerações,
as rápidas mudanças de episódios, os apontamentos pormenorizados de
gentes, de cenários e factos em grande parte “exóticos”, a própria exten-
são da obra em duzentos e vinte e seis capítulos, etc., não afastam ou
amedrontam, antes cativam o leitor, dado que todo esse enorme número
de elementos segue uma isotopia de aventura e alguma quantidade de
sensacionalismo, tuteladas numa expressão rigorosa, mas versátil e colo-
rida.
Assimilando discursos diversos, desde o do apontamento lírico ao re-
lato trágico-marítimo, ao da confissão moral ou de laivos filosóficos, ao da
descrição (quer paisagem, quer retrato, seja monumento, seja costume),
a Peregrinaçam constitui, por outro lado, um maciço e bem estruturado
texto que chega aos seus leitores como uma única confissão escrita mas
espessa de oralidades – um texto, mas também um todo de diferentes
presenças de modalidades de voz.
Deste modo, adianto, em jeito de primeira tentativa de comentário,
que, para o estudo das oralidades na escrita da Peregrinaçam, podem ser
considerados os seguintes estratos – registos de oralidades:

1 – o próprio discurso do Narrador-Personagem principal de tendência


oralizante muito adaptado a um muito atraente encanto derivado de
uma escrita de cariz confessional, quase intimista e autobiográfica,
que muitos de nós estimam atingir estatuto de quase solilóquio;

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462 João David Pinto Correia

2 – a oralidade colectiva substantivada ou qualificada pelo Narrador-


-Personagem por registo de termos muito sonoros e coloridos;

3 – o fragmento transcrito do diálogo ou seja um pseudo-monólogo, mas


sempre em “situação de diálogo”, que é da responsabilidade de uma
personagem (por vezes, duas ou, excepcionalmente três), que pode
vir a retomar as falas, enquanto todas as que pertenceriam a outras
personagens ficam apenas registadas em discursos reportados, re-
sumidos ou mais parafraseados, ocupando a maior parte da escrita
do capítulo ou capítulos, se estes se encontram em sequência de
cena ou de episódio;

4 – o diálogo e a intervenção apenas reportados ou transcritos em dis-


curso indirecto. por iniciativa do narrador (portanto, distintos da
primeira pessoa do Narrador-Personagem, quanto muito a Perso-
nagem em 1a pessoa, aliada a “companheiros” ou “nós”), podendo
ser interrompidos por uma ou algumas, normalmente poucas, falas
de um ou de alguns dos agentes presentes na situação narrativa ou
dramática, não necessariamente personagens principais dos episó-
dios, mas mais significativas do ponto de vista da sua modesta ou
colorida presença no universo da comunidade;

5 – a intervenção-oralidade, com características retóricas, argumentati-


vas e muitas vezes de expressão poética, de mais alargada extensão
(espécie de discurso, pequeno excurso, exercício exótico-poético),
produzida por uma personagem de alta posição social (função hie-
rárquica religiosa, social, política) dirigida a outra personagem ou
a um público mais alargado;

6 – o diálogo propriamente “dito”, com as falas a serem registadas em


interacção de uma personagem ou agente com outra ou outras perso-
nagens; neste caso, haverá uma tentativa mas cuidada do que pode-
mos estimar verdadeira troca de falas, como costumamos entendê-la
na narrativa / dramática, registada, portanto, explicitamente como
componente dramática, embora nem sempre dispensando a moda-
lidade das intervenções orais reportadas ou em discurso indirecto,
mas em menor grau.

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A Escrita e as «Oralidades» na Peregrinaçam de Fernão
Mendes Pinto (breves notas de leitura) 463

Desenvolvendo não muito largamente estes seis tópicos principais,


referirei os aspectos e alguns passos dos mais significativos da Pere-
grinaçam, lembrando que esta comunicação se propõe constituir tão-só
“breves notas de leitura”:

Tópico 1 – Em relação ao primeiro tópico, temos em consideração que


a obra começa com uma Introdução (não de forma explícita, mas constituída
por uma primeira parte do Capítulo I) que muito contém de discurso-ora-
lizante próprio de solilóquio memoralista, ou seja aquele início denso e
esmeradamente cuidado do ponto de vista sintáctico-rítmico: “Quando às
vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios
que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade
e continuados pela maior parte e milhor tempo da minha vida, acho que
com muita razão me posso queixar da Ventura, que parece que tomou
por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como
se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória”.
Nesta mesma Introdução, inicia-se, o “princípio da (minha) peregrinação”
que tem, como conteúdo resumido, os tempos que o narrador-personagem
passou de “miséria e estreiteza da pobre casa” do pai em Montemor-
-o-Velho, da chegada a Lisboa e respectivas primeiras privações e das
primeiras tentativas de viagem.
Também o mesmo discurso oralizante com laivos de solilóquio marcará
outros passos da obra, principalmente a segunda parte do capítulo CXXVI,
com os queixumes e o reconhecimento de que tudo o que o Narrador-Per-
sonagem sofreu mereceu a pena, sentindo-se, apesar dos “trabalhos”, bem
recompensado, mesmo que não tenha obtido quaisquer benefícios oficiais.
Ao longo dos capítulos da obra, reiteram-se estas notas autobiográ-
ficas ao longo do percurso peregrinatório com o registo de emoções, en-
tusiasmo, sofrimento, espanto, deslumbramento, horror, sempre em apon-
tamentos mais ou menos longos, por vezes apenas observações: frequen-
temente, convoca-se o inefável, com a confissão de que não há palavras
que possam contar ou dizer o que vê e sofre, ou pelo que ele e os com-
panheiros passam. Também se regista indirectamente, com palavras do
Nautoquim, quando este justifica a escolha de Mendes Pinto e não Cris-
tóvão Borralho: “Este que é mais alegre e menos sisudo, por que agrade
mais nos japões e desmelancolize o enfermo. . . ” (cap. CXXXV).

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464 João David Pinto Correia

Outras vezes confessa que é melhor evitar a dificuldade de se referir


condignamente às situações: “por evitar prolixidade, e não me deter em
particularidades deste caso, que seriam muito largas de contar. . . ” (cap.
V). Também pode escrever sobre o seu ofício de Narrador, expondo pro-
cedimentos da arte de como organizar a mensagem: “Agora me cumpre
deixar a armada e tratar um pouco neste lugar do que passou em Ma-
laca. . . ”, para, depois de um largo excurso, retomar o que estava a escrever
no capítulo anterior: “Tornando ao padre mestre Francisco continuando
ele sempre, como atrás disse, em pedir no fim de todos os sermões, um
pater-noster e uma ave-maria pela vitória dos nossos que dali eram par-
tidos. . . (início e meio do cap. CCVII), para terminar esse mesmo capítulo
com a observação: “E outras maravilhas fez Nosso Senhor por este bem-
-aventurado padre, de que eu vi algumas, e outras ouvi, de que agora não
faço menção porque ao diante espero de tratar de algumas delas”.
Mas pode igualmente manifestar o repúdio por crenças, costumes ou
cenas com que os Portugueses se deparam, ou, então, regista velada ou
bem contundente crítica ao comportamento dos Portugueses (por exem-
plo, o desentendimento sobre os Fonsecas e Madureiras, cap. CXV). E
frequentemente afirma o seu repúdio pela “maldita seita” e pelos seus
seguidores, referindo-se aos “mouros”.

Tópico 2 – É no capítulo II que o Narrador-Personagem trata da par-


tida para a Índia num quase relato condensado do que, depois, aconteceu
na viagem até a chegada a Diu. O contacto com uma embarcação que
depois se veio a verificar que não era de amigos vem revelar a ruidosa re-
cepção (“davam muitas gritas e apupadas”, cap. III). “Gritas”, “apupadas”
são as primeiras das recorrentes referências às oralidades colectivas, isto
é, os vários modos como estas se nomeiam ou são qualificadas.
Em diferentes partes da Peregrinaçam, o narrador-personagem regista
os ruídos, os gritos, as reacções de grupos de pessoas, ou das multidões:
“todo o rumor que fazia a gente que estava de fora” (cap. CXCVI), “com
um espantoso tumulto de vozes” (ib.), referências repetidas “à characina”
(expressão para demonstração exterior de regozijo e saudação) ou “sum-
baia / xumbaia” (saudação reverencial), “uma briga tão áspera e acesa”
(cap. VI), “deram uma grande grita” (cap. XXXVI), “vozearia e matinada
deles” (cap. XLVII), “gritos e lágrimas” (cap. LIII), “com as gritas” (LIV),

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A Escrita e as «Oralidades» na Peregrinaçam de Fernão
Mendes Pinto (breves notas de leitura) 465

“a vozearia que faziam” na corte do rei do Bungo (cap. CXXXVII), “gritas


e estrondos de muitos tangeres” (cap. CXXXVIII), entre outras passagens,
para já não referir o “pregão” do Achém pela morte do rei do Aaru (cap.
XXVII) ou ainda os “grandes debates” (cap. CXXXIX) e nos capítulos
respeitantes às discussões entre Francisco Xavier e os bonzos.

Tópico 3 – As primeiras falas “explícitas” (digamos transcritas a partir


da comunicação oral) da Peregrinaçam são proferidas pela Princesa de
Tigremahon, mãe do Preste, em Fumbau: trata-se da recepção amigável
por parte de uma soberana favorável à chegada dos cristãos. Estas falas,
neste capítulo e em muitos outros, consistem em pequenos monólogos, mas
sempre situadas em cenas ou episódios com outras personagens, cujas
intervenções ficam resumidas ou parafraseadas no discurso narrativo.
A mãe do Preste dirige-se aos portugueses acabados de chegar:
“– A vinda de vós outros, verdadeiros cristãos, é ante mim agora
tão agradável, e foi sempre tão desejada, e o é todas as horas,
destes meus olhos que tenho no rosto, como o fresco jardim deseja
o borrifo da noite! Venhais embora! E seja em tão boa hora a vossa
estada nesta minha casa, como a da rainha Helena na terra santa
de Jerusalém.”

De notar a contaminação do discurso com a imagem lírica do “bor-


rifo da noite” (diga-se que “borrifo” será uma das metáforas preferidas
de Mendes Pinto, ao longo da obra, a par de outras, como “bocejo”),
Após nove dias, os portugueses, “nos fomos despedir dela”, e a Prin-
cesa, que dará aos quatro portugueses, entre os quais se encontrava o
Narrador-Personagem, “vinte orqueás de ouro”, logo esclarecidos no seu
valor (“duzentos e quarenta cruzados”), novamente se dirige com poucas,
mas comovidas palavras:
“– Certo que me pesa de vos irdes tão cedo, mas já que é forçado ser
assi, ide-vos muito embora, e seja em tão boa hora a vossa tornada à
Índia que quando lá chegarem vos recebam os vossos como o antigo
Salamão recebeo a nossa rainha Sabaa, na casa admirável da sua
grandeza.”

Em muitos outros capítulos, o mesmo processo será seguido: enquanto


há intervenções de agentes, secundários ou principais, que são reportadas

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466 João David Pinto Correia

(do género: “X disse. . . “, “Y respondeu. . . ”), reserva-se, para falas de uma


personagem (como a da Princesa), mesmo que aparentes monólogos, as
ocorrências mais importantes, como referimos de seguida.

Tópico 4 – Na maior parte dos capítulos, encontram-se, de facto, exem-


plos de oralidade reportada, em discurso indirecto. Este parece mesmo
constituir o processo preferido na extensa narrativa de Mendes Pinto: há
ao longo do texto a manifesta opção pelo discurso reportado, resumo ou
paráfrase do discurso directo das falas.
Podemos considerar, como exemplo, o que sucede quanto a este as-
pecto num dos primeiros capítulos, o VI. Não há senão uma fala; o resto
é o relato do que se requereu, do que se disse, do que se replicou: em-
bora seja uma citação longa, terá a vantagem de nos acompanhar nesta
abordagem, sendo pertinente que se assinalem com itálico algumas pas-
sagens:

“Ao outro dia à tarde os sete que ficámos vivos fomos postos em
leilão em uma praça, onde todo o povo da cidade estava junto, e
o primeiro que o porteiro tomou pela mão para fazer seu ofício, foi
o pobre de mim. E começando a dar o primeiro pregão, ao caciz
moulana, que já era chegado com mais outros dez ou doze seus infe-
riores, também cacizes da maldita seita, requereo ao Heredim Sofo,
capitão da cidade, que nos mandasse de esmola à casa de Meca,
para onde ele estava de caminho, para que em nome daquele povo,
fizesse aquela romaria, porque não era razão, nem tão pouco honra
do mesmo capitão, mandar visitar o corpo do Profeta Noby, com as
mãos vazias e sem levar cousa em que o rajá Dato, moulana maior
da cidade de Medina, pudesse pôr os olhos (. . . ) A que o Capitão
respondeo que não tinha poder naquela pressa para dispensar nela
tão largo como lhe ele pedia, mas que falasse ele ao Soleymão
Dragut seu genro, porque ele o faria de muito boa vontade. // O
Caciz lhe replicou dizendo que as cousas de Deos e das esmolas
pedidas em seu nome, não haviam de ser joeiradas por tantas mãos
como ele dizia, senão somente pelas daqueles a quem se pedissem.
E que pois ele só era capitão daquela cidade e daquele povo que
ali estava junto, que a ele só pertencia condecender em peditório
tão justo e tão santo e tão agradável ao Profeta Noby Mafamede,
pois Ele só fora o que dera a vitória daquela pressa a seu genro, e
não o esforço dos seus soldados como ele dizia. // O que ouvindo

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A Escrita e as «Oralidades» na Peregrinaçam de Fernão
Mendes Pinto (breves notas de leitura) 467

um janíçaro de uma das três galeotas, homem honrado e de muito


ser e valia entre eles, por nome Coja Geinal, lhe respondeo quase
merencorico do que lhe tinha ouvido em desprezo seu e dos mais
que foram na nossa tomada: – Mas quanto milhor vos fora para
salvação da vossa alma partirdes c’os pobres soldados do vosso que
vos sobeja, que com palavras de hipocrisia quererdes-lhe roubar o
seu, como tendes por ofício fazer continuamente, etc., etc.”

De notar o contraste da abundância da oralidade “reportada” e a


economia da “fala”, e, como acontece muitas vezes, atribuída a um “outro”
(personagem principal ou secundária). E continua o Narrador:

“De maneira que por evitar prolixidade, e não me deter em parti-


cularidades deste caso, que seriam muito largas de contar, desta
união se veio a travar entre eles uma briga tão áspera e tão acesa
que veio a parar em mais de seiscentos mortos de ambas as par-
tes, e em ser saqueada mais de meia cidade, e roubada a casa do
moulana, e ele feito em quartos e lançado ao mar com sete mulhe-
res suas e nove filhos e toda a mais gente da sua família que os
soldados tomaram naquele fragante, sem a nenhum quererem dar a
vida.” (cap. VI)

Também exemplar do funcionamento da oralidade em Peregrinaçam é


todo o capítulo XXXVII – “Do que passámos os três companheiros des-
pois que nos metemos pelo mato dentro”. Em cena temos dois portugue-
ses, Cristóvão Borralho e o Narrador-Personagem – já que o outro com-
panheiro, Bastião Anriquez, tinha morrido; em grande sofrimento – que
pedem socorro a quem vinha numa “barcaça carregada de sal”: “pedi-
mos de joelhos aos remeiros que nos quisessem tomar”. Ambos, “gritando
em altas vozes”, tornam a pedir “com muitas lágrimas”. E acrescenta-se:
“Ao tom destes nossos brados saiu de debaixo do toldo uma mulher já de
dias” que, depois, será qualificada de “honrada mulher” e “honrada dona”.
Esta mulher não recebe nome, mas com a autoridade de quem comandava
o grupo dos “remeiros”, anuiu a auxiliar os dois portugueses. Ajuda-os
a limparem-se, dá-lhes de comer, e interessa-se em saber as razões da
sua tão miserável situação e também lhes comunica que o responsável
da acção inimiga contra os dois deve ser / é um “mouro guzarate por
nome Coja Acém”. Não há lugar para a fala registada de qualquer dos

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468 João David Pinto Correia

portugueses. É “a mulher já de dias” que, para além de tudo fazer para


que os portugueses ficassem limpos e bem tratados, faz três intervenções
directas: em primeiro lugar, “Comei vós outros, pobres estrangeiros, e
não vos desconsoleis por vos verdes dessa maneira, porque aqui estou
eu”, pedindo-lhes que lhe dissessem os motivos de tão grande infortúnio.
“A isto lhe respondemos nós que por pecados nossos”. Voltando a falar,
a “honrada dona” considera: “Bom é sempre em vossas adversidades os
toques da mão do Senhor. . . ”. Depois, perguntou-lhes “pela causa de (tal)
desaventura”. Eles contaram-lhe “então tudo o como passara, mas que não
conhecêramos que gente era a que nos fizera aquilo, nem sabíamos a ra-
zão por que no-lo fizera”. Informaram, então, em registo reportado, os que
acompanhavam a mulher que devia tratar-se de Coja Acém. E a “honrada
mulher”, “batendo então nos peitos por sinal de grande espanto”, intervém
pela terceira vez, acrescentando que esse “era um mouro que queria mal
aos homens de Malaca” e que se gabava de ter matado muitos deles e
que continuaria a fazê-lo. E acrescenta o Narrador-Personagem: “Nós,
espantados de uma cousa tão nova, lhe respondemos que lhe pedíamos
que nos dissesse que homem era aquele”. E finaliza o capítulo com a
observação: “E por todo o caminho nos foi contando outras muitas par-
ticularidades do grande ódio que nos tinha aquele mouro e do que em
nosso vitupério contava de nós”. E, como sabemos, este mouro, o Coja
Acém será depois perseguido e morto por António de Faria, em capítulo
posterior.
Passagem importante quanto a este aspecto do discurso reportado é
a seguinte:

“E, repreendendo eles (bonzos) o povo por isto, lhe disseram que
não dissessem aquilo que era grande pecado, nem houvessem medo,
porque eles lhes prometiam de pedirem todos ao Quiai Tiguarém,
deus da noite, que mandasse à terra que não fizesse mais do que
tinha feito, porque lhe não davam esmolas. . . ” (cap. XCVI).

Esta é, na verdade, a mais notória estratégia discursiva para a orali-


dade em Peregrinaçam: grande parte do que é dito, pedido, respondido,
quer pelos Portugueses, quer pelos representantes do Outro, persona-
gens individuais ou colectivas, é registada num discurso de realização
indirecta, reportada. Para o papel da intervenção directa, em oralidade

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A Escrita e as «Oralidades» na Peregrinaçam de Fernão
Mendes Pinto (breves notas de leitura) 469

directa transcrita como fala, opta-se quase sempre por uma personagem
(ou por muito poucas) que se impõe(m) num capítulo inteiro, senão obri-
gatoriamente pelo seu estatuto social, muitas vezes pela sua pertinência
enquanto elemento estrutural narrativo.
Podemos encontrar o processo, mesmo em capítulos com agentes prin-
cipais, como, por exemplo, António de Faria, que se define como aquele
“que faz”, mais do que aquele “que diz” ou “que fala”, ou ainda como Fran-
cisco Xavier, cujas falas se evidenciam em relação às outras personagens,
portuguesas ou não portuguesas.

Tópico 5 – O mesmo acontece com as sequências dos contactos de


António de Faria com o ermitão da ilha de Calemplui, o qual é escolhido
para longas exposições, pequenas práticas ou breves “sermões”, em tom
contundente nas críticas e que constituem trechos de natureza poética.
Tais falas geralmente extensas representam marcas do exotismo imagético
oriental e salientam outra faceta do registo escrito de uma oralidade
eloquente, com muito de ritualista.
O cenário onde se passa o encontro de Faria com o ermitão é a paradi-
síaca ilha de Calemplui, que, no plano da descrição, nos surpreende pela
sua caracterização pormenorizada, quer na primeira visão por ocasião da
chegada, quando os Portugueses a avistam e contemplam como paisagem
fechada, cercada de altas muralhas, com evidente intertexto de prove-
niência medieval (o hortus da harmonia, da beleza e da paz, confirmado
pelo jardim de laranjeiras onde se encontram as ermidas). O contraste
acentua-se entre lugar e personagens que os Portugueses encontram e
as sabidas intenções de roubo por parte de António de Faria.
As intervenções de oralidade do chefe português são curtas, incisi-
vas, hipócritas, ou então muito resumidamente reportadas. As do ermitão
caracterizam-se por ser longas e aparentemente de tom calmo, mas muito
marcadas pela expressão imagética, com recurso a comparações e metáfo-
ras inesperadas, porque assentes num mundo lírico que não se identifica
com o imaginário dos ocidentais, mas com o reflexo e a ilustração de um
todo complexo e exótico que é expressão suprema de uma sensibilidade
emergente da voz de um venerável representante da hierarquia religiosa
oriental. Perante o confronto das duas maneiras de ver e sentir o mundo,
há vários tons que vão da comunicação inocente do religioso que confia

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470 João David Pinto Correia

nas boas intenções do estrangeiro a uma reacção muito acerba à conduta


que o visitante vem a demonstrar pelos sucessivos actos do seu reprovável
comportamento. Estes trechos exemplificam a outra maneira da adopção
da oralidade. Vale a pena apreciá-la na prática de registo dessas falas,
verdadeiramente geniais na economia da escrita de Mendes Pinto que
já tinham sido ensaiadas em passagens anteriores da obra, e de certo
modo recorrentes nas que se seguem a esta parte fundamental da obra,
do ponto de vista do estudo da oralidade na Peregrinaçam.
Antecipadamente, diremos que vamos encontrá-las na muito celebrada
“fala do Menino” e, já num registo diferente (escrito, claro, mas que se
pode considerar transcrição do que o agente sente e quer dizer ou que
quereria com certeza transmitir oralmente), a “carta da noiva”.
Mas o melhor será relembrar, mesmo com trechos desses significati-
vos e bem impressionantes exercícios que o Narrador nos disponibiliza.
Primeiro, através de passos da fala, que constituem momentos de registo,
senão transcritos como nas crónicas, mas tão intensos e poeticamente po-
derosos que nos impressionam, hoje em dia (no que se tem considerado
a “crítica indirecta”, isto é, talvez da iniciativa do Narrador, tomando o
que seria intenção do Sujeito de Enunciação, o próprio Mendes Pinto, a
voz crítica sobre os exageros dos Portugueses chegava à narrativa através
dos contributos dos representantes do Outro).
Exemplifique-se: a primeira “prática” do ermitão de seu nome Hiti-
cou, após uma pequena observação cuja autoria não é conhecida, decorre
muito crítica, a seguir a uma intervenção de António de Faria, a que não
temos acesso senão indirectamente ou até mesmo pela própria réplica do
religioso, situa-se no Cap. LXXVI:

“Muito bem tenho ouvido o que disseste, e também tenho entendida


a tua danada tenção em que o fusco de tua cegueira, como piloto
do inferno, te traz a ti e a essoutros à Côncava Funda do Lago de
Noite, porque em vez de dares graças a Deus por tamanha mercê
como confessas que te fez, o vens roubar. Pois pregunto: se assi
o fizeres, que esperas que faça de ti a divina justiça no derradeiro
bocejo da vida? Muda esse teu propósito, e não consintas que
em teu pensamento entre imaginação de tamanho pecado, e Deos
mudará de ti o castigo. E fia-te de mim que te falo verdade, assi
me ela valha enquanto viver.”

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A Escrita e as «Oralidades» na Peregrinaçam de Fernão
Mendes Pinto (breves notas de leitura) 471

São três práticas maiores, entre as quais há algumas observações.


As duas primeiras são reacções a António de Faria e a última já, em
resposta a Nuno Coelho. De ressaltar que, para os portugueses, seja
para um, seja para outro, não há transcrição das respectivas intervenções.
E após uma muito táctica atitude de Faria, o ermitão exclama: “– Bendito
sejas, Senhor, que sofres haver na terra homens que tomem por remédio
de vida ofensas tuas, e não por certeza de glória servir-te um só dia!”.
Seguem-se as duas outras grandes falas do Hiticou. Depois do saque
a que os portugueses submetem o tesouro do espaço sagrado da ilha, o
ermitão dirige palavras de censura a António de Faria. Trata-se de uma
lição sobre a necessidade da boa conduta, sem pecado:

“Quero-te declarar, como a homem que me pareces discreto, o em


que consiste o perdão do pecado, em que tantas vezes me apontaste,
para que não pereças para sempre sem fim no derradeiro bocejo da
tua boca. Já que me dizes que a necessidade te obrigou a cometeres
delito tão grave, e que tens propósito de restituir o que tomares
antes que morras, se a possibilidade te der lugar para isso, farás
três cousas que te agora direi: a primeira é restituíres o que tomares
antes que morras, por que se não impida de tua parte a clemência
do alto Senhor; a segunda, pedires-lhe com lágrimas perdão do que
fizeste, pois é tão feio diante da sua presença, e castigares por isso
a carne continuamente, de dia e de noite; e a terceira partires c’os
seus pobres tão literalmente como contigo, e abrires as tuas mãos
com discrição e prudência, por que o Servo da Noite não tenha que
te arguir no dia da conta. E por este conselho te peço que mandes
a essa tua gente que torne a recolher os ossos dos santos, por que
não fiquem desprezados na terra.”

Como já foi referido, o mesmo acontecerá com a tão conhecida inter-


venção de queixume e crítica contundente do “menino” (cap. LV): após ter
narrado, numa primeira fala, o modo como o pai tinha sido morto, do que
resultou ter ficado órfão, na segunda o “menino” vai responder à proposta
de António de Faria de que “o trataria como filho”:

“Não cuides de mim, inda que me vejas minino, que sou tão parvo
que possa cuidar de ti que roubando-me meu pai me hajas a mim
de tratar como filho. E se és esse que dizes, eu te peço muito,
muito, muito, por amor do teu Deus, que me deixes botar a nado a

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472 João David Pinto Correia

essa triste terra onde fica quem me gerou, porque esse é o meu pai
verdadeiro, com o qual quero antes morrer ali naquele mato, onde
o vejo estar-me chorando, que viver entre gente tão má como vós
outros sois”

E, após repreensão da parte dos que perto se encontravam, continuou


o jovem:

“– Sabeis porque vo-lo digo? Porque vos vi louvar a Deos despois


de fartos, com as mãos alevantadas e c’os beiços untados, como
homens que lhes parece que basta arreganhar os dentes ao Céo,
sem satisfazer o que têm roubado. Pois entendei que o Senhor da
mão poderosa não nos obriga a tanto a bulir c’os beiços quanto
nos defende tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que são
dous pecados tão graves quanto depois de mortos conhecereis no
rigoroso castigo de sua divina justiça.”

Ao ser questionado por António de Faria se queria ser cristão, ele


responde:

“– Não entendo isso que dizes, nem sei que cousa é essa que me
cometes. Declara-mo primeiro, e então te responderei a propósito.”
Perante a explicação do interlocutor, o menino “pondo os olhos
no céo, com as mãos alevantadas disse chorando: – Bendito seja,
Senhor, a tua paciência, que sofre haver na terra gente que fale
tão bem de Ti, e use tão pouco da tua lei, como estes miseráveis e
cegos, que cuidam que furtar e pregar te pode satisfazer como os
príncipes tiranos que reinam na terra.”

Quanto à “carta da Noiva” (cap. XLVII), ela pode ser tida por um dos
momentos mais emocionantes da componente lírica na narrativa trans-
posta para “carta”. a lamentar a não presença do “noivo”, que havia de
vir esperá-la num barco para a cerimónia do casamento. A noiva que
chega mais cedo ao lugar combinado envia, então, uma carta ao futuro
marido que julgava encontrar-se no junco onde estava António de Faria e
os seus companheiros. Assim que a lanteá onde vinha o tio da noiva chega
com a dita carta, os portugueses matam-no de modo bárbaro e a todos
quantos o acompanham. A “carta” dirigida ao noivo chegou ao junco; ela
tornou-se até hoje memorável, não só pelo seu real valor testemunhal, mas

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A Escrita e as «Oralidades» na Peregrinaçam de Fernão
Mendes Pinto (breves notas de leitura) 473

igualmente pela sua execução estrutural e estilística, servida por uma ori-
ginal torrente de sentimento, bem forte, de fio lírico de texto epistolar com
base oralizante, marcadamente confessional e poético pela sensibilidade
de forte e imagética expressão. É de relembrá-la nesta parte, porquanto
se torna evidente que, como acontece com este género epistolar, é tam-
bém muitas vezes uma pertinente maneira de recolher (meio aqui talvez
utilizado para fixar de modo sofisticado), uma comunicação que pela sua
originalidade na construção discursiva consegue a cabal proposta de um
texto que exemplifica o que se pode designar a vertente poética exótico-
-oriental. E ela reza assim:
“Se a fraca e mulheril natureza me dera licença para daqui onde
fico ir ver a tua face, sem com isso pôr nódoa no meu honesto viver,
crê que assi voaria meu corpo a ir beijar esses teus péis, como o
esfaimado açor no primeiro ímpeto de sua soltura. Mas já, senhor
meu, que eu de casa de meu pai atéqui te vim buscar, vem tu daí
donde estás a esta embarcação onde eu já não estou, porque só em
te ver me posso eu ver, mas com me não veres na escuridão desta
noite, não sei se na brancura da manhã me poderás enxergar entre
os vivos. Meu tio Licorpinau te dirá o que meu coração em si cala,
assi porque já não tenho boca para falar, como porque a minha alma
me não sofre estar tão órfã de tua vista quanto a tua estéril condição
o consente. Pelo qual te peço que venhas ou me dês licença que vá,
e não me negues este amor que te mereço pelo que sempre te tive,
por que Deos por sua justiça, em castigo de tal ingratidão, te não
tire o muito que herdaste de teus antigos parentes neste princípio de
minha mocidade, em que agora por matrimónio me hás-de senhorear
até à morte. A qual ele, como Deos e Senhor, por quem é afaste
de ti por tantos milhares de anos quantas voltas o sol e a lua têm
dadas ao mundo desde o princípio do teu nascimento.”

Algumas outras cartas são utilizadas na Peregrinaçam: cada uma de-


las segue o registo adaptado à função que serve, adaptando sempre a sua
expressão mais ou menos oralizante ou, pelo contrário, de exigente inten-
cionalidade literarizante, esta muito próxima da que, na oralidade, seria
adoptada nas práticas de etiqueta. São registos representantivos de ora-
lidades diferentes. Refiram-se, a título de pertinentes exemplos: a carta
enviada pelo rei do Bungo ao Nautoquim de Tanixumá (cap. CXXXV),
um dos mais comovidos e cuidados textos da obra (“Olho direito do meu

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474 João David Pinto Correia

rosto, assentado igual de mim como cada um dos meus amados. . . ”); a
carta muito extensa remetida pelas mulheres à rainha, mãe do rei léquio
(“Pérola santa congelada da ostra maior do mais fundo das águas, estrela
esmaltada de raios de fogo, madeixa de cabelos dourados. . . ” (cap. CXLI);
e ainda a carta, que, assinada por cem mulheres, é dirigida pela filha do
mandarim Comandau (ilha de Banchá) à rainha, mãe do mandarim Co-
manilau, da ilha de Banchá (cap. CXLII); outra carta, de muito interesse
porque consiste numa mensagem ardilosa, é a que consta do cap. CCVII,
endereçada pelo rei de Jantana ao capitão da embarcação onde seguia
Francisco Xavier: “Esforçado senhor capitão estando eu na crescença da
lua em Andraguiré, com esta armada prestes para a mandar sobre el-rei
de Patane. . . ”, prometendo ir auxiliar os portugueses.
Podemos encontrar recursos idênticos noutros capítulos, com registos
mais curtos, mas bem sugestivos: as intervenções do Xemindó ou, ainda
ao longo das muitas páginas dedicadas (caps. CL a CXC) ao Rei do
Bramá, a cujo serviço Mendes Pinto diz ter estado por terras de Sião e
da Birmânia.
Nos capítulos dedicados a Francisco Xavier, vamos surpreender tam-
bém discursos relativamente longos, mas de natureza diferente (mais dou-
trinários e apologéticos), com a intervenção por falas e diálogo do próprio
Santo, mas igualmente com mais participação dos seus companheiros pe-
las terras de Malaca e do Japão (sobretudo na corte do rei de Bungo,
como também na companhia do Padre Belchior, na sua peregrinação pelo
reino de Bungo e pelos mares da China, até ao regresso a Goa).
Estamos em crer que estas agora referidas, como as que também se
encontram, e paralelamente ao que fica dito no Tópico 4, nalguns capítulos
respeitantes a António de Faria, devem ser apontadas no tópico seguinte
(Tópico 6), porque exemplificam uma oralidade directa mais próxima do
diálogo propriamente dito, ou, melhor, com o que pensamos ser a autêntica
realização sequencial da vertente dramática de um texto.

Tópico 6 – Apesar de não serem muito frequentes, os diálogos propria-


mente ditos com intervenções seguidas, e da responsabilidade de dois ou
mais interlocutores, longos, apesar de, como foi dito, o Narrador prefe-
rir o processo da pequena transcrição de um monólogo ou a citação do
que, no meio de um diálogo, se escolheu, extraído de um discurso repor-

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Mendes Pinto (breves notas de leitura) 475

tado (resumo ou paráfrase do que foi dito), numa espécie de ligação entre
essas seleccionadas intervenções, quase sempre da responsabilidade de
uma só personagem que se privilegia, tal como se exemplificou com a
intervenção da Princesa, mãe do Preste João, e com as sequências apon-
tadas para a “discussão” de António de Faria e o ermitão, ou as falas do
Menino, encontram-se, no entanto, em partes muito significativas da nar-
rativa, e assinalamos sobretudo as que noutros capítulos são consagrados
ao mesmo António de Faria e que correspondem aos vários contactos que
essa personagem mantém com agentes importantes do ponto de vista so-
cial e político ou mesmo com portugueses, entre os quais se encontra o
Narrador-Personagem.
Encontram-se também nas partes em que surgem contactos do Rei
do Bramá, também com o próprio Narrador-Personagem. Ou ainda, de
forma mais frequente e de estilo admirável, nos apelos de Missionário,
ao longo dos capítulos dedicados a Francisco Xavier, nos incitamentos à
prossecução da luta contra os Infiéis (cap. CCIII), na interacção com a
tripulação das embarcações (por exemplo, com a constante preocupação
de acalmar os ânimos dos Portugueses nos momentos de aflição durante
a tempestade, como no cap. CCXIV), ou também, com maior presença, na
estrutura e na séria argumentação durante as discussões de Xavier com
os bonzos (caps. CCXI a CCXIII).
De citar outros passos da obra, que poderão ser mais aprofundados,
em maior ou menor escala, como entre os protagonistas portugueses, ou
entre estes e personagens representantes do Outro (sequências respei-
tantes ao Xemindó). São falas de notícias, narrações e descrições de
lugares e gentes que os naturais transmitem à curiosidade dos Portugue-
ses ou ainda referentes aos contactos do Narrador-Personagem e seus
companheiros com as populações locais, ou nas pacíficas trocas de pala-
vras com representantes principais, adversários ou aliados, entre os quais
com o Rei do Bungo ou as cenas de amena conversa ou de afronta, como
acontece com o Xemindó.
Antes de concluir, há que referir um aspecto que se relaciona com o
principal assunto desta comunicação. Pode reconhecer-se como mesmo
indispensável o seu estudo aprofundado. E esse aspecto é a importân-
cia concedida na Peregrinaçam ao registo de palavras e expressões das
línguas orientais com que os Portugueses vão contactando: algumas são

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476 João David Pinto Correia

apenas transcritas (Lah, hilah, hilah, lah Muhamed roçol halah, no cap.
LIX) ou citadas e, logo, traduzidas para português (Xe outrinfau nicor
pintau “que quer dizer “Bafo do Criador de todas as cousas”,
no cap. LVIII; ou Suqui hamidau nivanquao lapapoa dagatur, e sua tra-
dução “não nos mates sem razão, que te demandará Deos nosso sangue,
porque somos pobres”, no cap. LXIX); “Ó Otinão cor Valirate, prechau
com panó das forças da terra, o bafo do alto Deus” (cap. CXXX); “A que
todo o povo com espantosa grita, respondia: ‘Xaputey danacó fanaragy
paleu’, que quer dizer “Confessamos, Senhor, nossos erros diante de ti”
(cap. CCXXII). e outras.
Essas citações registadas a partir das práticas orais indígenas procu-
ram mostrar, por estratégias “adequadas” a serem estudadas por especia-
listas de línguas orientais, que havia a preocupação de arquivar e dar a
conhecer a oralidade das línguas com que os Portugueses contactavam,
demonstrando a sua importância, não já tão-somente da verdade da in-
teracção em línguas bem diferentes, como também conferir autenticidade
de que elas eram utilizadas, para o que tinham sido fundamentais os con-
tributos dos “línguas”, que eram os tradutores. Não são, com certeza, só
processo de maior certificação da veracidade histórica, mas ainda o re-
curso ao que se revelava diferente, como igualmente ao registo do exótico
(ou, como queria Le Gentil, o pré-exótico).

Conclusão

O que fica nesta comunicação, como resultado de algumas horas e pou-


cas notas de leitura ou releitura, pretende ser contributo a desenvolver
e a aprofundar no futuro. Dir-se-á que constitui primeira abordagem de
uma vertente que se impõe como fundadora da Peregrinaçam – enquanto
estrutura de conteúdos, discurso e expressão. Tendo sempre em linha de
conta que, ao mesmo tempo que demonstra a procura conseguida de um
nível evidente de literariedade, a obra de Fernão Mendes Pinto propõe
recorrentemente modalidades tácticas de oralidade ou de oralidades re-
sultantes de uma variedade de processos que emergem a partir do registo

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A Escrita e as «Oralidades» na Peregrinaçam de Fernão
Mendes Pinto (breves notas de leitura) 477

de narrações, descrições, cenas e até confissões cuidadosamente “alinha-


das” (para aproveitar um termo hoje muito usado nos planeamentos e nas
programações), com suas propostas de convocação convenientes às dife-
rentes necessidades de adequação às muitas exigências na sucessão dos
discursos em ordem a servir cada unidade sequencial ou as várias sequên-
cias com as mais seguras estratégias discursivas de oralidade. Para tal,
recorre como base às escolhas mais acertadas dos vários modos de registo
adequados à presença mais directa ou indirecta das oralidades trabalha-
das de modo a sustentar o enunciado textual: a ocorrência transversal
da voz individual no testemunho em primeira pessoa, da responsabili-
dade do “próprio Narrador – Personagem”; a voz colectiva em “gritas”
e “apupadas”; a fala ou as falas que, com poucas intervenções, é ou são
atribuídas a uma só voz, numa construção em que indirectamente, de modo
reportado, outros se fazem ouvir; as sequências, por vezes com recurso a
“discursos” e / ou “cartas”, os quais se tornam elementos de maior ex-
tensão; e, finalmente, os “diálogos” propriamente ditos que garantem a
oralidade alargada de vários intervenientes em interacção. Foi com esse
propósito que se deixaram algumas sugestões através da explanação dos
vários tópicos sintetizados neste texto.

Nota – A natureza desta comunicação não justifica que seja apresen-


tada uma bibliografia exaustiva, mas tão-só as obras de referência para
este trabalho, principalmente a edição de base da Peregrinaçam (numa
versão mais moderna e completa) e a indicação de outras reflexões perti-
nentes sobre o texto.
Assim:
– a opção quanto ao texto tido em conta foi para a edição completa
da Peregrinação (na exposição, preferiu-se a adopção do título tal como
na 1a edição e a indicação em números romanos dos capítulos), em dois
volumes, da Planeta Agostini, publicada na colecção dirigida por Vasco
da Graça Moura, Lisboa, [2002].

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478 João David Pinto Correia

– no entanto, e à falta de maior informação bibliográfica (quer sobre


as principais edições da obra de Mendes Pinto, quer sobre estudos e
antologias sobre o Autor e a Obra), remete-se o leitor para o seguinte
estudo e antologia do mesmo autor da comunicação: João David Pinto
Correia, Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Edições Duarte Reis,
Lisboa, 2002.

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Viagens e peregrinações da língua portuguesa

Manuel Célio Conceição

FCHS / Universidade do Algarve


CLUNL / Universidade Nova de Lisboa

Resumo: A língua portuguesa é uma língua pluricêntrica em consequência


da história e da geografia das viagens e das peregrinações que fez com os seus
falantes. A sua presença no mundo nem sempre é valorizada, ainda que reúna
as condições para uma internacionalização consolidada.

Palavras-chave: português; diversidade linguística; lusofonia.

Nascida algures a noroeste da península e miscigenada na sua con-


quista do sul do território que hoje é Portugal, a língua portuguesa é uma
das mais faladas no mundo e das mais presentes no mundo virtual. Não se
podendo marcar o nascimento, aceitamos que tenha cerca de oito séculos
e, ainda que bem longe da visão romântica que associa inequivocamente
um país a uma língua, sabemos que a mesma foi elemento constitutivo sine
qua non da formação de um dos mais antigos países/nações da Europa.
Por determinação da lei fundamental, Portugal é um país oficialmente
monolingue1 , sendo, ainda assim, óbvio que no seu território sempre co-
existiram e coexistem várias línguas, que contribuíram e contribuem para
1
No número 3 do artigo 11o da Constituição da República Portuguesa (VII revisão
constituição constitucional) [2005] é dito que “A língua oficial é o Português.” Disponível
em [http://www.parlamento.pt/Legislacao/Documents/constpt2005.pdf].
480 Manuel Célio Conceição

o que é o português atual. Foram línguas pré-indo-europeias autóctones,


línguas indo-europeias e não só, que cá chegaram com povos invasores
provenientes do este e do sul, línguas de proveniências longínquas de
África, Ásia e Américas trazidas por navegadores, escravos e mercadores,
línguas associadas a outras literaturas e culturas mais ou menos suposta-
mente desenvolvidas, trazidas por estrangeirados e viajantes; são línguas
de migrações e mobilidades diversas e em vários sentidos e línguas re-
sultantes da globalização atual.
A partir da travessia do mediterrâneo com a conquista de Ceuta, o
português foi levado a todas as partes do mundo, o que faz dele uma
língua planetária e pluricêntrica. O português ou as diferentes línguas
em português, como dizia Saramago, fez-se de viagens e de peregrina-
ções (considerando as diferentes aceções destas duas palavras). A língua
portuguesa é peregrina, tomando a peregrinação no sentido de viagens
feitas por devoção profissional mas também afetiva.
A relação de dependência entre língua e território tem sido vista como
inquestionável. É esta relação que permite explicar a geografia da língua
portuguesa, considerando os territórios em que é falada, sobretudo como
língua oficial ou língua de comunidades emigradas. A oficialização foi
instituída com a decisão de D. Dinis, no final do século XIII, ao impor
esta língua vulgar como língua dos documentos oficiais do reino. Ao
longo da história vários são os documentos que estabelecem a ligação
ao território ainda que o mesmo deixe de ser Portugal e se estenda pelo
mundo2 . Mutatis mutandis, poderíamos seguir o que escreveu Nebrija
nas primeiras linhas do prólogo da sua gramática da língua castelhana3 ,
“siempre la lengua fue compañera del imperio”.
Loas lhe foram feitas para a enaltecer ao mesmo tempo que se enal-
tecem Portugal e os portugueses. Lembremos o Diálogo em louvor da
nossa linguagem de João de Barros, em que se diz que até o príncipe
se dedicava em aprendê-la, ou o que escreveu Camões n’Os Lusíadas:
“na língua, na qual, quando imagina / Com pouca corrupção crê que é a
2
Fernão de Oliveira, na gramática publicada em 1536, afirma, na introdução (p. 2),
que “a língua de tão nobre gente e terra como é Portugal viverá contente e folgará de se
estender polo mundo” (p. 47 da edição de J. E. Franco e J. P. Silvestre Oliveira, publicada
pela F. C. Gulbenkian em 2012).
3
Publicada em 1492, em Salamanca.

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Viagens e peregrinações da língua portuguesa 481

Latina” (canto I, estrofe 33)4 . Um dos elogios mais conhecidos à língua


portuguesa é, provavelmente, o que lhe fez Francisco Rodrigues Lobo, no
primeiro diálogo (p. 69) da Corte da aldeia 5 :

branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover,


doce para pronunciar, breve para resolver, acomodada às matérias
mais importantes da prática da escritura. Para falar é engraçada,
com um modo senhoril; para cantar é suave, com um sentimento que
favorece a música; para pregar é substanciosa, com uma gravidade
que autoriza as razões e as sentenças; para escrever cartas nem
tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite;
para histórias nem é tão florida que derrame, nem tão seca que
busque o favor das alheias. . . e, para que diga tudo, só um mal tem,
e é que, pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem mais
remendada que capa de pedinte.

Perceções subjetivas postas de lado mas com o intuito de reforço de


soberania, testemunho de que a língua é também entendida como meio
de ação sobre o território, no texto da Lei do diretório (conhecido como
diretório dos índios), publicado em 1757 (3 de maio) revela-se a tomada
de consciência da proeminência da expansão da língua para a nação por-
tuguesa. Esta lei é também a primeira a tratar explicitamente da língua
portuguesa no Brasil (Oliveira, 2010). Pouco mais de uma dezena de anos
depois, ainda sob o Marquês de Pombal, é publicado do Alvará que ins-
titui o ensino da língua portuguesa antes da língua latina e que o mesmo
se deve fazer pela Arte da Gramática de António Reis Lobato. O caráter
instrumental da língua é assumido não pela ligação à territorialidade mas
para realçar a sua institucionalização como saber escolar, como distinção
social e é salientada a sua importância para acesso a cargos públicos.
As breves notas históricas acima referidas pretenderam, sem qualquer
intenção de exaustividade, vincular a defesa da língua portuguesa, pelo
seu elogio, e vincular o seu valor agregador da territorialidade, sem o
qual dificilmente se concebem viagens e peregrinações que construíram
um património comum. Como afirmou Cristóvão (2008: 109), a língua
4
Citamos a edição de E. Paulo Ramos, publicada pela Porto Editora, em 1982.
5
Citamos a edição de J. A. Freitas Carvalho, publicada pela Editorial Presença, em
1992.

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482 Manuel Célio Conceição

assume uma realidade de tipo ecuménico, cuja unidade se desdobra e se


propaga na sua diversidade.
Viagens e peregrinações permitiram a projeção da língua portuguesa,
que foi mudando, após apropriações e trocas com outras línguas e fizeram
com que os povos com quem esteve em maior contacto a reconheçam como
sua. Nos territórios que conquistou mediante relacionamentos mais ou
menos pacíficos com outras, mais do que língua de colonização, também
se assumiu como mediadora e aglutinadora.
Ainda que possa continuar a assumir esses estatutos de mediação e
agregação de falantes de outras línguas, a facilidade da comunicação que
potencia viagens e peregrinações que não implicam deslocação, dado o seu
recente uso virtual, abriu as portas à desterritorialização. A desvinculação
territorial em que as dimensões de espaço e de tempo se podem confundir
e em que mais que estudar a representatividade da língua pelo número
de falantes é, hoje, aparentemente, relevante estudá-la pela presença na
internet e nas redes sociais. Segundo a Internet World Stats 6 , em 2013,
a língua portuguesa era a quinta mais presente na internet (cerca de 122
milhões de utilizadores), depois do inglês, do mandarim, do espanhol e
do árabe. Segundo a mesma fonte, entre 2000 e 2013, a presença do
português na internet registou o quarto maior crescimento, cresceu cerca
de 1500 %, ficando apenas atrás do árabe, do russo e do mandarim.
A virtualização, que quase aniquilou a questão da territorialização da
língua, é também um potenciador da pluricentricidade. Usamos o conceito
de pluricentricidade com o correspondente significado atribuído por Clyne,
isto é, “a language with different interactive centres, each providing a
national variety with at least some of its own (codified) norms” (1992: 1).
Reconhecendo esta característica da língua portuguesa, Cristóvão (2008:
31), citando Elia (1989), lembra que este último substitui o termo România
por Lusitânia e apresenta cinco faces desta Lusitânia. As faces são:

i) Lusitânia Antiga, que compreende Portugal, Madeira e Açores;


ii) a Lusitânia Nova, que corresponde ao Brasil; iii) a Lusitânia
Novíssima, que são os países africanos de língua oficial portuguesa,
isto é Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e S. Tomé
e Príncipe; iv) a Lusitânia Perdida, que são as regiões da Ásia
6
Cf. http://www.internetworldstats.com/stats7.htm.

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Viagens e peregrinações da língua portuguesa 483

ou da Oceânia, nas quais já não há esperança da sobrevivência


da língua portuguesa e, por último, v) a Lusitânia Dispersa que
são as comunidades de fala portuguesa espalhadas pelo mundo não
lusófono.

A pluricentricidade da língua portuguesa, que assenta na sua dimen-


são transcontinental é traço identitário e diferenciador que se assume
também como potenciador de novas viagens e de novas peregrinações. A
mesma não é, no entanto, geralmente assumida pelos falantes que, por
preconceito ou por desconhecimento, não têm tirado o devido partido da
variação e desta diversidade que se institui como riqueza. O fundo cultu-
ral comum, a que se refere Cristóvão (2008: 61) vinculativo da pertença
a esta grande comunidade e que faz da língua portuguesa uma língua de
património e uma língua de herança que assume categorias diferencia-
das em função dos contextos geoculturais em que é usada e da ligação
construída com os territórios e as comunidades. O português – língua
de herança tem diferentes estatutos7 em Angola, no Brasil, na Venezuela
em França ou em Goa, por exemplo, e esses estatutos condicionaram e
condicionam a sua manutenção, a sua evolução e o seu ensino.
As referidas dimensões transcontinental e supraterritorial dão ainda
à língua portuguesa uma representatividade global e um peso não des-
piciendo na economia linguística dos tempos presentes. No quadro da
economia do conhecimento em que as línguas e as culturas são marcos
estruturantes (Williams, 2010), a língua portuguesa, no entanto, carece
de estudos de natureza terminológica e comunicativa para que se afirme
inequivocamente como língua de ciência (Conceição, 2012). Os seus uti-
lizadores neste domínio (a todos os níveis, desde a especialização à vul-
garização/banalização) são também impelidos a não acatar ditames da
globalização monolingue numa supostamente universal variedade do in-
glês. Requer-se, pois, uma abordagem ecológica do uso da língua em que
a mesma se adapta às necessidades comunicativas sem, ainda assim, que
seja objeto e alvo de mercantilização. O interesse que a nossa língua
7
De forma genérica, mas em que se pode enquadrar a língua portuguesa, os diferentes
estatutos e as diferentes categorias das línguas de herança, assim como as respetivas
especificidades sociopolíticas e as implicações pedagógicas estão explicitadas em Van
Deusen-Scholl (2003).

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484 Manuel Célio Conceição

desperta como língua de negócios desencadeia, em particular nos nos-


sos tempos, um significativo aumento da procura da sua aprendizagem em
vários pontos do globo, pois as anteriormente referidas transcontinenta-
lidade e pluricentricidade permitem, num tempo em que as fronteiras se
reconfiguram e as línguas são cada vez as barreiras que se levantam, a
potenciação da livre circulação de pessoas e de bens (em particular na
Europa).
A desterritorialização, a pluricentricidade e a virtualização dos contac-
tos entre falantes, se bem que possa aumentar alguma anarquia e acentuar
as variedades e as variações, o que legitima medidas de uniformização,
devem, por isso, ser concebidas como fatores positivos de afirmação da
língua e da sua universalidade no presente contexto de diversidade e de
multilinguismo. A pretensa uniformização que conduz à estandardização,
numa lógica de produto, pressupõe uma conceção da língua como neutra
e/ou transparente, o que é inadequado, pois é pela diversidade, numa
lógica da razão e do processo, que se mantém a inovação, a criatividade,
isto é, a capacidade evolução da língua e novas viagens e peregrinações.
O uso da língua e a sua indissociabilidade da mensagem e de todo o
universo/o contexto do ato comunicativo é a forma de atestar as viagens
que faz no tempo e no espaço. As representações que os falantes (se) fa-
zem da língua condicionam a gestão das mesmas, o desenho e a aplicação
de hipotéticas medidas de políticas linguísticas, enaltecendo, por vezes,
o monolinguismo ou uma espécie de alinguismo de base inglesa ao invés
de desenvolverem, por exemplo, a inovação lexical e o multilinguismo. No
que respeita ao português e às relações que os portugueses estabelecem
com a sua língua identitária, oscila-se entre a indiferença e a posse ob-
sessiva8 e que se associa a falta de consciencialização do valor da língua
portuguesa enquanto capital simbólico e ontológico de expressão da es-
sência. Sendo em determinadas estruturas sociais inquestionável o valor
patrimonial da língua portuguesa, e ainda que se as dimensões histórica
e identitária estejam sobejamente enraizadas, a consciencialização do va-
lor patrimonial, na sua dimensão constitutiva da comunidade, não está
desenvolvida de forma universal.
8
O poema “lamento para a língua portuguesa” de Vasco Graça Moura (2002) atesta
essa dicotomia.

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Viagens e peregrinações da língua portuguesa 485

A viagem pelo ensino do português, às vezes peregrinação mais ou


menos penosa, como prova Vieira (2011), deve considerar conceções dife-
rentes consoante os contextos e a respetiva situação linguística. O ensino
do português deve então ser pensado especificamente para a promoção da
literacia (alfabetização em casos excecionais), da circulação no espaço de
língua portuguesa e, sobretudo, como língua segunda ou língua estran-
geira para a inclusão. Pelo ensino, no quadro de viagens e peregrinações
por heterogeneidades discursivas e diversidades de variedades, perceber-
se-á a possibilidade transformativa. Por exemplo, em algumas comunida-
des, a aprendizagem do português e do português língua de escolarização
é vista como ascensão social por se aceder a uma língua transnacional e
por se aprender pela exposição e prática do registo formal do professor.
A relação com outras línguas e o contacto com as mesmas valida a di-
versidade e a mudança linguística, que também foi fonte de crioulização,
e que, no âmbito da representação que alguns falantes fazem do pres-
tígio das suas variedades pode ser transformada, por hipercorreção, em
descrioulização.
As viagens da nossa língua são, também, o resultado das ações para a
sua promoção ou da falta delas. Se há países em que a procura e a apren-
dizagem do português está a aumentar (caso do Senegal ou da China),
outros há em que se verifica o contrário, tendo recentemente fechado de-
partamentos de língua portuguesa (ou estruturas afins) em universidades
europeias (exemplo: Holanda ou França). É sabido ainda que a quanti-
dade de aprendentes de português (língua estrangeira, particularmente)
vai descendo à media que sobe o nível/o grau de ensino. Seja como for,
de um ponto de vista teórico, o crescimento da língua portuguesa parece
cumprir os critérios que explicita Graddol (2010) e que são: a) critério
orgânico – é lento e não depende de políticas de língua; b) ensino como
língua segunda/língua estrangeira - é lento e depende da procura; c) en-
sino como língua estrangeira – depende de medidas de política de língua
e de políticas educativas.
O aumento do interesse pela aprendizagem do português, explicado
em grande parte por causas essencialmente económicas e laborais é ga-
rante da sustentabilidade e deve ser associado a expressões culturais,
artísticas e científicas que o promovam na sua plenitude e complexidade.
Neste último caso (em ciência), pela voragem da internacionalização e da

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486 Manuel Célio Conceição

suposta excelência, nem sempre têm os seus utilizadores a consciência de


que a língua influencia, de facto, o conteúdo e, por muito que nos quei-
ram convencer do contrário, em qualquer ato de interação comunicativa
a língua não é externa ao conteúdo da mensagem nem independente do
mesmo. Negar a possibilidade de o português ser uma língua da ciência
seria aniquilar séculos desta língua e da respetiva autonomia identitária.
Embora em determinados contextos a língua portuguesa possa ser mera-
mente a língua veicular, nas comunidades científicas, em particular, é-lhe
devido também o estatuto de língua vernacular.
O português é a terceira língua mais usada no Twitter, depois do in-
glês e do japonês (Rehm e Uszkoreit, 2012: 14), e terá igual presença no
Facebook, ao mesmo tempo que, em África, por exemplo, ainda é a lín-
gua que permite o acesso ao conhecimento tradicional. Um outro aspeto
muito relevante para a observação de viagens e peregrinações da língua
portuguesa e para o aumento da procura é o facto de se dever disseminar
a perspetiva da intercompreensão e as respetivas metodologias e estra-
tégias no ensino / aprendizagem de línguas mais próximas (da mesma
família). O domínio de técnicas de intercompreensão permite, por exem-
plo, a um falante de português aceder a informações em qualquer outra
língua românica.
O futuro da língua portuguesa, das suas viagens e peregrinações, face
aos dados demográficos e económicos conhecidos, deverá levar a um des-
centramento em relação à Europa, tornando-se no que Teyssier (1990)
denominou “língua do sul”. Segundo este autor “a língua portuguesa
pode mais legitimamente do que qualquer das suas irmãs e reivindicar
o título de língua do “Sul” (Teyssier, 1990: 263). Uma das justificações
para esta de atração meridional é o facto de 52% das reservas de petróleo
e gás mundiais, descobertas desde 2006, estarem nas águas de Brasil, de
Moçambique e de Angola. Esta questão tem vindo a ser noticiada9 mas
não teve, até hoje, eco significativo na opinião pública, nem nas represen-
tações da língua portuguesa ou na determinação de políticas linguísticas
subsequentes.

9
Exemplos: a 22/11/2013 o Expresso diário publicou um notícia com o título “A era
do petróleo em português”; a 5/3/2014 o Público noticiou “Petróleo posiciona a língua
portuguesa na geopolítica mundial”.

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Viagens e peregrinações da língua portuguesa 487

O valor económico da língua portuguesa e o seu potencial, como de-


monstra Reto (2014), é, sem dúvida um dos aspetos da sua sustentabili-
dade e deve ser intimamente relacionado com a sua capacidade de expres-
são e de difusão/transmissão de saberes local e socialmente robustos e
estruturantes das identidades, das culturas e dos modos de vida dos seus
falantes. Não se trata de qualquer visão saudosista ou neocolonialista
que aprisione a língua à história, ao passado, mas de uma representação
que não nega nem uma nem outra e que facilita o seu desenvolvimento e
a sua afirmação no quadro da relação de poderes com as outras com as
quais coexiste.
A apropriação da língua portuguesa pelos seus falantes, sem comple-
xos de menoridade ou de incapacidade de verbalização das culturas, da
ciência da contemporaneidade, a não subserviência linguística e comuni-
cativa e o consequente reforço do sentimento de pertença são condições de
garantia da continuação viagens e peregrinações desta língua. Indepen-
dentemente da sua (des)territorialização e da virtualização dos seus usos
(que devem ser encarados como fatores positivos, facilitadores de novas
mobilidades e de maior exposição global da/à língua), o português não
pode ceder ao movimento de descapitalização dos saberes que verbaliza
em prol de qualquer outra língua que a substitua sob falso e enganador
pretexto de maior divulgação e de graus mais elevados de “excelência” ou
de “cientificidade”.
Por altura da comemoração dos oitos séculos da língua portuguesa,
cientes dos nossos tempos e das mobilidades que os caracterizam, man-
tenhamos a sua vernaculidade, assegurando-lhe novas viagens, novas pe-
regrinações, lembrando os versos que um dos seus defensores, António
Ferreira, escreveu na Carta III a Pero d’Andrade Caminha, publicada na
obra Poemas Lusitanos 10 , em 1598:
“Floresça, fale, cante, ouça-se e viva
A Portuguesa língua, e já onde for.
Senhora vá de si, soberba e altiva.
Se téqui esteve baixa e sem louvor,
Cullpa é dos que a mal exercitaram,
Esquecimento nosso e desamor.”
10
Disponível em http://purl.pt/12117/6/res-200-v_PDF/res-200-v_PDF_24-C-R0150
/res-200-v_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf.

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Viagens e peregrinações da língua portuguesa 489

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João Carlos Firmino Andrade de Carvalho (nascido em Lisboa, em 1962)
é Professor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do
Algarve. É Investigador integrado no CLEPUL e Colaborador do CIAC. É Dou-
torado em Literatura Portuguesa Clássica pela Universidade do Algarve (2000),
Mestre em Literatura Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa (1990) e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas por esta última
Universidade (1985). Foi Professor de Literatura Portuguesa para Estrangeiros
no ILCP da FLUL, no ano de 1986, e Professor da Escola Superior de Educação
de Beja, entre 1987 e 1993, onde dirigiu a Unidade de Ciências da Comunicação.
Foi Bolseiro do PRODEP, entre 1997 e 2000. Foi Director do Departamento
de Letras Clássicas e Modernas da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais
da Universidade do Algarve, entre 2000 e 2003. Foi Investigador do CELL da
UAlg, onde dirigiu uma Linha de Investigação. Tem participado em diversos júris
de Doutoramento e de Mestrado quer como presidente, quer como orientador,
quer ainda como arguente. Tem publicado vários livros: Ciência e Alteridade na
Literatura de Viagens. Estudo de Processos Retóricos e Hermenêuticos, 2003;
Aventuras d’Escrita(s). Estudos de Poética e Retórica, 2004 (em co-autoria);
Retóricas, 2005 (em cocoordenação); O Fio da Memória – Ensaios, 2005; Ou-
tras Retóricas, 2006 (em cocoordenação); Viagem Maravilhosa do Príncipe Fan-
-Férédin no País dos Romances (. . . ), 2007 (tradução, em co-autoria); Ensaios
& Outros Escritos, 2008 (em co-autoria); Viajantes, Escritores e Poetas: Retra-
tos do Algarve, 2009 (em cocoordenação); A República — Figuras, Escritas e
Perspectivas, 2011 (coordenação); Artes e Ciências em Diálogo, E-Book, 2013
(coordenação). Tem ainda numerosas publicações dispersas por diversas Revistas
e Atas de Colóquios nacionais e internacionais.
Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT
– Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do Projecto
«UID/ELT/00077/2013»
A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e a Perenidade da Literatura de
Viagens constituiu a temática geral do Colóquio Internacional realizado na
Universidade do Algarve (Campus de Gambelas – Faro), nos dias 9 e 10 de
Outubro de 2014, e organizado por esta Universidade em parceria com o
Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL), o Centro de
Investigação em Artes e Comunicação (CIAC), a partir do desafio lançado pela
Associação 8 Séculos da Língua Portuguesa, cujas comemorações integraram
este evento. Assinalando os 4 séculos da publicação da Peregrinaçam de
Fernam Mendez Pinto, a temática incluiu não apenas as abordagens da obra
do autor quinhentista português, mas alargou-se mesmo à abordagem do
vasto e heteróclito corpus da chamada Literatura de Viagens de diferentes
épocas e geografias, bem como ao tema da Viagem na Literatura. O volume
que agora se apresenta ao Leitor reúne as versões escritas das comunicações
apresentadas por docentes e investigadores de diversas Universidades,
nacionais e estrangeiras, que se quiseram associar a um evento amplamente
participado, e que agora sob a forma de livro se oferece a um público
interessado nestas matérias.

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