Você está na página 1de 34

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

JESSICA FERREIRA DE LIMA

Saúde mental da população indígena em contexto urbano


no território brasileiro: As limitações e possibilidades da
psicologia

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Volta Redonda
2022
JESSICA FERREIRA DE LIMA

Saúde mental da população indígena em contexto urbano


no território brasileiro: As limitações e possibilidades da
psicologia

Monografia apresentada ao curso de psicolo-


gia como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de bacharel em psicologia.

Orientador: Roberto de Oliveira Preu

Volta Redonda
2022
Ficha catalográfica automática - SDC/BAVR
Gerada com informações fornecidas pelo autor

L732s Lima, Jéssica Ferreira de


Saúde mental da população indígena em contexto urbano no
território brasileiro: : As limitações e possibilidades da
psicologia / Jéssica Ferreira de Lima. - 2022.
33 f.

Orientador: Roberto de Oliveira Preu.


Trabalho de Conclusão de Curso (graduação)-Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Sociais,
Volta Redonda, 2022.

1. Saúde mental. 2. Psicologia. 3. Indígena. 4. Contexto


Urbano. 5. Produção intelectual. I. Preu, Roberto de
Oliveira, orientador. II. Universidade Federal Fluminense.
Instituto de Ciências Humanas e Sociais. III. Título.

CDD - XXX

Bibliotecário responsável: Debora do Nascimento - CRB7/6368


Agradecimentos

Agradeço imensamente aos caríssimos amigos Juliana Sampaio, Camila Duarte, Ra-
nielly Magno, Caike Ferreira e Kandú Puri; pelas valiosas trocas de ideias que alimentaram
este trabalho e nossos anos de amizade. Aos amigos que aqui não estão citados, não se
faz menor a importância de suas passagens pela minha vida, apenas me faltam linhas e me
sobra o receio de ser injusta.
Ao Lucas, meu amor e companheiro, que esteve comigo durante o percurso deste
trabalho, dividindo as alegrias, alívios e incômodos que este trabalho me trouxe.
Ao meu orientador Roberto de Oliveira Preu, pelo direcionamento e paciência.
À toda a Aldeia Maracanã, em especial ao Cacique José Urutau Guajajara e à Cacica
Potyra Krikati; ao Coletivo dos Estudantes Indígenas da UFF por me apoiar tanto e sempre
somar forças.
À minha família de São Paulo, minhas tias Jaqueline, Angela, Angelina; meus tios
José Aparecido e Paulo. Meu primos Bruno e Bruna e minha irmã Sheila. Um agradecimento
especial ao meu tio Ricardo, que não pôde estar presente para ver esse trabalho acontecer,
mas que sempre me apoiou muito de todas as formas possíveis para ele e que certamente
estaria muito orgulhoso de mim.
Este trabalho é por mim e pelos meus ancestrais; por todos aqueles que não puderam
falar, por todos os que virão e por todos os que aqui estão.
“O governo não irá nos dividir!”

(Tuíre Kayapó, liderança indígena do povo


Kayapó)
Resumo

Recentemente tem se discutido muito a respeito da questão indígena. As discussões


com maior visibilidade são acerca da demarcação de terras indígenas e a preservação
dos territórios e culturas dos povos originários. Com os frequentes ataques advindos do
garimpo ilegal em terras indígenas, a contaminação do solo em decorrência dessa prática
e as violências trazidas por garimpeiros às comunidades tradicionais desses povos, uma
outra questão veio à tona: A saúde mental dos povos indígenas.
Tratarei, na presente pesquisa, das condições da saúde mental dos povos indígenas
ao se depararem com o convívio com o não-indígena. Mais especificamente, tratarei da
saúde mental da população indígena no contexto urbano e quais são as contribuições e
desafios da psicologia na lida com essa parcela específica da população brasileira.
Palavras-chave: Psicologia, Saúde Mental; Indígena, Contexto Urbano.
Abstract

Recently there has been much discussion about the indigenous people. The most
visible discussions are about the demarcation of indigenous lands and the preservation of
territories and cultures of indigenous people. With the frequent attacks arising from illegal
mining on indigenous lands, soil contamination as a result of this practice and the violence
brought by prospectors to the traditional communities of these people, another issue came
to the fore: the mental health of indigenous people.
In this research, I will deal with the mental health conditions of indigenous people
when faced with living with non-indigenous people. More specifically, I will deal with the
mental health of the indigenous population in the urban context and what are the contributions
and challenges of psychology in dealing with this specific portion of the Brazilian population.
Keywords: Psychology, Mental Health, Indigenous, Urban Context.
Sumário

1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

2 Metodologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

3 A figura folclórica do índio e o ser indígena . . . . . . . . . . . . . . 10

4 A Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos


dos povos indígenas e o respeito ao processo de autodeclaração.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

5 A Funai, o SUS e a Sesai como instrumento de violência e marginali-


zação das pessoas indígenas em contexto urbano e em terras não
demarcadas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
5.1 A Casa do Índio e o descaso do Estado Brasileiro com a população
indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

6 A Aldeia Maracanã como território de resistência dos povos indíge-


nas em contexto urbano na cidade do Rio de Janeiro . . . . . . . . . 23

7 A saúde mental das pessoas indígenas na urbanização. . . . . . . . 26

8 O papel da Psicologia na promoção de saúde mental aos indígenas


em contexto urbano e seus desafios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

9 Considerações finais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

10 Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
8

1 Introdução

O presente trabalho tem como objetivo analisar quais são os elementos cotidianos
causadores de adoecimento psíquico nas pessoas indígenas na urbanização bem como os
elementos promotores de saúde; a problemática da falta de acesso dos povos indígenas
em contexto urbano à saúde pública, e o negligenciamento do Estado Brasileiro para com
essa população.
Para tal, apresentarei a histórica relação de violência da sociedade brasileira e seu
governo para com os povos indígenas, atravessando também a forma de funcionamento
de dispositivos públicos como o SUS, a Sesai e o Sasisus, passando pela Casa do Índio
— primeiro dispositivo voltado para a saúde indígena — e chegando, por fim, ao cerne da
pesquisa:
De que forma é possível a psicologia contribuir para a promoção de saúde dessa
parcela da população sem que seja mais um agente de violência? Qual a forma de atuação
da psicologia na lida com a saúde mental das pessoas indígenas em contexto urbano?

Com o intuito de se fazer compreender toda problemática de acesso dos povos


indígenas em contexto urbano à direitos básicos como moradia digna, educação e saúde
pública, introduzirei este trabalho trazendo um breve resumo do que é a figura do índio e o
que é, de fato, o ser indígena e sua relação emblemática com o território vinculada à noção
de cidadania e aos direitos cidadãos.
9

2 Metodologia

O trabalho adiante toma como princípio o trabalho realizado pela ABIPSI (Articulação
Brasileira de Indígenas Psicológos).
Enquanto militante da questão indígena e autora deste trabalho, trago a termo
estas discussões enquanto mulher indígena do povo Xavante e com história pregressa na
questão indígena no contexto da urbanização. Assim sendo, em determinadas ocasiões,
farei afirmações em primeira pessoa, pois me vejo implicada no contexto do trabalho e das
causas abordadas. Trata-se de um exercício que tem origem na militância de psicólogos
indígenas em apontar as controvérsias, limitações e desafios da psicologia no processo
de construção de uma psicologia essencialmente indígena, sobre o cuidado de pessoas
indígenas. Chamo a atenção para o fato de que, apesar do esforço em se manter numa
linha epistemológica essencialmente indígena, me vi forçada a me submeter ao modelo de
análise institucional enquanto modelo validado pela academia.
Me atendo a isso, determino três casos analisadores. O primeiro, sobre o gover-
nador recém eleito no estado da Bahia, Jerônimo Rodrigues, está relacionado à questão
da autodeterminação de pessoas indígenas e à sua implicação relacionada às políticas
públicas; O segundo caso analisador está centralizado no percurso histórico de violência
das políticas nacionais em relação aos povos indígenas, cujo trabalho se aproximou do
esforço pelo apagamento da história dos nossos povos. Assim, demarco a Casa do Índio
enquanto instituição — por ter sido a primeira e por resistir até os dias de hoje —, importante
analisador na transversal do tempo.
Por fim, o terceiro caso analisador se debruça sobre a aldeia em contexto urbano
na segunda maior capital estadual, demograficamente, do Brasil, a aldeia Maracanã (pela
grafia original do Zen’gnte, “Maraka’nà”. Idioma da etnia Guajajara) abordando as questões
que se referem às problemáticas do indígena na sua aproximação com o não-indígena no
contexto urbano, especificamente.
Portanto, após tratar das dimensões que compõem a realidade do indígena no
contexto urbano, nos atravessamentos expostos pelos analisadores, exprimo quais as
fronteiras nas quais a psicologia se encontra ao abordar as questões dos indígenas no
território determinado como Brasil. E, assim, em diálogo com os psicólogos indígenas que
estão construindo essa forma de conceber a psicologia, sugiro as estratégias; desafios e
caminhos pelos quais a psicologia pode se aproximar das formas de existência de nós,
pessoas indígenas, nos diferentes contextos possíveis de existência, sem nos violentar —
primeiramente —, mas, também construindo uma psicologia “pintada de jenipapo e urucum”
(ABIPSI, 2022).
10

3 A figura folclórica do índio e o ser indígena

A figura que permeia o imaginário popular quando falamos de povos indígenas ainda
é a figura do índio. O índio, que vive nu na mata, tem o cabelo liso e escuro, pele marrom e
olhos puxados, fala Tupi, adora Tupã, é ingênuo, deixa-se enganar facilmente e que não
é passível de progredir nem em suas formas de organização, nem enquanto indivíduo. O
índio não é um ser pensante, não é um ser político, o índio nada mais é do que um animal
na forma humana. O índio, como acabo de descrever, não existe. Mas essa ainda é a forma
que pessoas não-indígenas vêem as pessoas indígenas. Como meros selvagens, ingênuos,
símbolos do atraso. Partindo dessa visão preconceituosa e irrealista, nos tomam os direitos
mais básicos e nos colocam sob tutela; se não do Estado, da sociedade não-indígena.
Estando sob constante tutela, nos tomam o direito à autonomia. O direito de expressar
nossas culturas, nossa fé e de decidir sobre nós mesmos. O exemplo claro que trago dessa
tutelagem é a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Organização criada, teoricamente, para
proteger e garantir os direitos dos povos indígenas, porém, o que acontece é o total oposto
de proteção e garantia de direitos. A Fundação Nacional do Índio é um órgão gerido por
pessoas não-indígenas, que decidem sobre os povos indígenas sem consultá-los.
Tomo como exemplo o Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI),
documento fornecido pela FUNAI a pessoas indígenas nascidas em terras demarcadas e
utilizado como meio de identificação dessas pessoas.
Instituído pela Lei do Índio (Lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973), o Registro
Administrativo de Nascimento Indígena somente é fornecido se a pessoa ou povo indígena
estiver dentro das 270 etnias reconhecidas pelo órgão e desde que tenham nascido em
terras demarcadas. O direito a ter o nome indígena no registro civil, escolhido segundo as
tradições de cada povo, só é concedido aos indígenas portadores do RANI. Este funciona
como espécie de outorga do governo brasileiro para que pessoas indígenas possam ser
reconhecidas como tal pela sociedade não-indígena.
Atualmente somos mais de 305 povos indígenas em solo brasileiro. Desses mais de
305 povos, somente 270 têm seus direitos preservados através do documento — segundo
dados do ano de 2013 da página eletrônica da Fundação Nacional do Índio. Portanto, cerca
de 35 povos não têm seus direitos garantidos e respeitados nem mesmo pelo órgão que
deveria protegê-los.
A questão da estereotipização da figura do indígena acarreta em diversas formas de
violência. A política de desestruturação das formas tradicionais de organização dos povos
indígenas teve início com a invasão portuguesa em 1500 com o extermínio de centenas
de povos, línguas e culturas como um todo. A violência cometida pelos portugueses contra
os povos originários teria por finalidade a “civilização” das pessoas indígenas, por meio
da catequização e “docilização” das mesmas. Desde então, a sociedade brasileira vem
acompanhando esse movimento de apagamento dos povos indígenas promovido de todas
Capítulo 3. A figura folclórica do índio e o ser indígena 11

as formas e em todas as esferas pelo Estado Brasileiro através do silenciamento dos


povos originários na história e no estudo da História, transformando nossas culturas em
folclore nacional; ridicularizando a nós e condenando-nos à um lugar específico; no passado
distante da história nacional; nos dizendo dia após dia, através de suas múltiplas formas de
violência, que não temos lugar na terra que, desde sempre, é nossa.
Para garantir que os povos indígenas não saiam nunca do lugar da figura folclórica do
índio, que vive nu na mata, que é selvagem, primitivo e um problema para o progresso social,
existe ainda hoje, uma promoção dessa figura folclórica nas escolas brasileiras com o intuito
de ensinar, desde a tenra idade, pessoas não-indígenas sobre o índio, que apenas existiu
no passado distante na história do país. Não havendo nenhuma política de conscientização
sobre a pluralidade do ser indígena e suas culturas, vemos atualmente o apagamento
sistemático das pessoas indígenas e sua subalternização à forma de organização do
não-indígena, não admitindo formas alternativas de organização social, à exemplo das
organizações específicas e socioculturais dos povos originários.
“A negação do pertencimento, as diversas formas de discriminação, o silencia-
mento e o escamoteamento da violência histórica contra os povos indígenas estão
expressos na composição das memórias ou no esquecimento a que tais povos
foram condenados. Tal constatação sinaliza para o fato de que a memória (e o
esquecimento) é um campo minado pelas contradições socialmente produzidas.”
(KAYAPÓ, 2019, p 4.)

Se a figura folclórica do índio persiste, vemos a urgência em combater essa ideia e


estereotipização da figura do índigena. Para tanto, surgem no cenário político do país, nomes
como Mário Juruna, primeiro deputado federal indígena do Brasil, eleito pelo estado do Rio
de Janeiro em 1983 através do PDT (Partido Democrático Trabalhista), e Ailton Krenak,
ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas; e organizador
da Aliança dos Povos da Floresta, que reúne comunidades ribeirinhas e indígenas na
Amazônia.
No intuito de resgatar a questão indígena do folclore à que foi reduzida nacionalmente,
Mário Juruna e Ailton Krenak, por meio de suas atuações políticas, trazem para o cenário
político e social a questão de quem é e quem não é indígena, levantando a problemática
social e política acerca da identificação de pessoas indígenas e seus meios.
As dificuldades e sofrimentos enfrentados por pessoas indígenas na urbanização
deve-se, sobretudo, à construção da figura folclórica do índio. Baseando-se nessa figura, o
não-indígena nos violenta em nossa identidade. Se para indígenas crescidos em contato
com seu povo, sua cultura e sua língua, e que deixaram sua terra de origem e seu povo
para habitar o espaço urbano já é de muito sofrimento o convívio com o não-indígena por
conta de todo o preconceito que a estereotipização nos traz, para o indígena urbano que
perdeu o acesso à sua cultura e seu povo devido ao processo histórico de colonização —
que nos roubou até o rastro de nossas identidades — esse convívio é ainda mais violento.
Para pessoas indígenas em processo de retomada de suas raízes e que vivem
no contexto urbano, o convívio com o não-indígena tende a ser catalisador de sofrimento
Capítulo 3. A figura folclórica do índio e o ser indígena 12

psíquico, uma vez que nos vêem como menos indígenas por não sermos a figura folclórica
que fala Tupi, adora Tupã e vive ou viveu parte da vida nu na mata.
Podemos compreender o processo de desumanização do indígena e de apagamento
de sua identidade como sendo ferramentas muito úteis para o não-indígena, pois com base
nos processos de invisibilização ou de tutelagem se torna mais fácil o roubo de terras, por
exemplo. Afinal, se o índio não existe, não há quem reivindique suas terras. E existindo
como o índio, é incapaz de cuidar da manutenção de suas terras e cultura.
De acordo com Itaynara Tuxá, Psicóloga indígena membro da Articulação Brasileira
de Indígenas Psicólogos (ABIPSI), em seu texto Territorialidade e Subjetividade: Um ca-
minho de retomada do ser, compreendemos a importância da manutenção dos territórios
indígenas e seu impacto direto e indireto na saúde dos povos indígenas no trecho:

“A territorialidade produz a consciência daquilo que me constitui enquanto su-


jeito social formadora dos processos subjetivos. Nessa perspectiva encontramos
elementos fundamentais para a manutenção de nossa cultura.
Os elementos culturais produzidos a partir dessa relação entre a terra e o su-
jeito podem ser potencializados ao nível do coletivo. As explicações, teorizações,
histórias criadas a partir daquela realidade local é atravessada no tempo e inter-
geracional, assim como os costumes, produções de artesanato, conhecimento
tradicional, práticas de cuidados, ritos e rituais, relação com o sagrado, conexão
ancestral, entre tantas outras possibilidades, cria uma ligação mais profunda,
entre os aspectos afetivos com o território e de significação e reconhecimento de
uma identidade que é individual, porém abarcada por esse sentido de comuni-
dade/ancestralidade e toda a complexidade que compõe. Deste modo podemos
considerar que para os povos indígenas a terra simboliza a vida, bem viver, projeto
de vida e o seu contrário seria a impossibilidade de se ter perspectiva, saúde e
qualidade de vida.
Os territórios seriam um mecanismo de promoção de saúde e a falta deles produ-
ziria uma série de vulnerabilidades e mazelas para a população, o sentido da terra
está intimamente ligado ao sentido do eu.” (Tuxá, 2022 p. )

Ainda sobre a luta pelo direito à manutenção das culturas e terras indígenas, não
podemos deixar de lembrar que foi somente com a aprovação da Constituição de 1988
que os povos indígenas conseguiram a aprovação da emenda que incluiu um capítulo
na Constituição para tratar exclusivamente de seus direitos. Essa conquista se deu após
o discurso emblemático de Ailton Krenak na votação da constituinte, no ano anterior. O
movimento pelos direitos dos indígenas ocorreu no bojo de um movimento social mais amplo,
de lutas pelas eleições diretas e pela democracia, e contou com o apoio da Associação
Brasileira de Imprensa (ABI), da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), entre outras.
Ailton protagonizou uma das cenas mais importantes para o movimento de luta pelos direitos
dos povos indígenas quando subiu na tribuna pintando o rosto com jenipapo — símbolo
de luto do povo Krenak — durante a assembleia da constituinte, e realizou o discurso que
traria luz à questão indígena no âmbito político.

Nesse momento peço licença ao leitor para reproduzir aqui o longo discurso de
Capítulo 3. A figura folclórica do índio e o ser indígena 13

Ailton Krenak na votação da constituinte. É de extrema importância trazê-lo para que o leitor
possa ter plena compreensão do impacto das palavras de Ailton na votação da emenda que
incluiria um capítulo que trataria dos direitos dos povos indígenas na Constituição Federal
de 1988.
O discurso de Ailton Krenak que impactaria a votação da constituinte trazia as
seguintes reflexões:

“Sr. Presidente, Srs. Constituintes, eu, com a responsabilidade de, nesta ocasião,
fazer a defesa de uma proposta das populações indígenas à Assembleia Nacio-
nal Constituinte, havia decidido, inicialmente, não fazer uso da palavra, mas de
utilizar parte do tempo que me é garantido para defesa de nossa proposta numa
manifestação de cultura com o significado de indignação – e que pode expressar
também luto – pelas insistentes agressões que o povo indígena tem indiretamente
sofrido pela falsa polêmica que se estabeleceu em torno dos direitos fundamen-
tais do povo indígena e que, embora não estejam sendo colocados diretamente
contra o povo indígena, visam atingir gravemente os direitos fundamentais de
nosso povo. Não estamos chegando agora a esta Casa. Tivemos a honra de,
desde a instalação dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, sermos
convidados a participar dos trabalhos na Subcomissão dos Negros, Populações
Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Essa Subcomissão teve a competência
de tratar da questão indígena e, mais tarde, tivemos também a oportunidade de
participar da instalação dos trabalhos da Comissão da Ordem Social. Ao longo
desse período, a seriedade com que trabalhamos e a reciprocidade de muitos
dos Srs. Constituintes permitiram a construção, a elaboração de um texto que
provavelmente tenha sido o mais avançado que este país já produziu com relação
aos direitos do povo indígena. Esse texto procurou apontar para aquilo que é de
mais essencial para garantir a vida do povo indígena. E muitas das pessoas que
estiveram envolvidas nesse processo de discussão aqui, na Assembléia Nacional
Constituinte, se sensibilizaram a ponto de levar além dos limites das paredes desta
Casa o trabalho relativo aos direitos indígenas, como foi na visita à área dos índios
Caiapó, no Gorotire. Ouvindo ali, e tirando a impressão dos índios que estavam
na aldeia acerca do que sentem, do 2 que desejam para si, das inquietações que
nós, indígenas, colocamos no sentido de ter um futuro, no sentido de ter uma
perspectiva. Assegurar para as populações indígenas o reconhecimento aos seus
direitos originários às terras em que habitam – e atentem bem para o que digo: não
estamos reivindicando nem reclamando qualquer parte de nada que não nos cabe
legitimamente e de que não esteja sob os pés do povo indígena, sob o habitat, nas
áreas de ocupação cultural, histórica e tradicional do povo indígena. Assegurar
isto, reconhecer às populações indígenas as suas formas de manifestar a sua
cultura, a sua tradição, se colocam como condições fundamentais para que o povo
indígena estabeleça relações harmoniosas com a sociedade nacional, para que
haja realmente uma perspectiva de futuro de vida para o povo indígena, e não de
uma ameaça permanente e incessante. Os trabalhos que foram feitos até resultar
no primeiro anteprojeto da Constituição significaram lançar uma luz na estupidez
e no breu que tem sido a relação histórica do Estado com as necessidades indí-
genas. Avançou no sentido de avançar a perspectiva de um futuro para o povo
indígena. E, neste momento, insisto; eu havia optado mesmo por estar aqui e
à semelhança da manifestação de luto pela perda. seja de um parente, seja da
solidariedade, seja de um amigo e, sobretudo, pela perda de um respeito que o
nosso trabalho aqui dentro construído, o respeito que tivemos para com esta Casa
e que pudemos identificar também nas pessoas que se sensibilizaram com essa
questão. Queremos manifestar a nossa indignação com os ataques que estamos
sofrendo e alertar esta Casa de que ainda somos os interlocutores dos Srs., e que
não confundam uma eventual campanha e possíveis agressões ao povo indígena
com polêmicas que são construídas à nossa revelia. Os Srs. sabem, V. Exas.
Capítulo 3. A figura folclórica do índio e o ser indígena 14

sabem que o povo indígena está muito distante de poder influenciar a maneira
que estão sugerindo os destinos do Brasil. Pelo contrário. Somos talvez a parcela
mais frágil nesse processo de luta de interesses que se tem manifestado extrema-
mente brutal, extremamente desrespeitosa, extremamente aética. Eu espero não
agredir com a minha manifestação o protocolo desta casa. Mas eu acredito que os
senhores não poderão ficar omissos, os senhores não terão como ficar alheios a
mais essa agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância
do que significa ser um povo indígena. 3 O povo indígena tem um jeito de pensar,
tem um jeito de viver. Tem condições fundamentais para sua existência e para a
manifestação da sua tradição, da sua vida e da sua cultura que não coloca em
risco e nunca colocaram a existência sequer dos animais que vivem ao redor das
áreas indígenas, quanto mais de outros seres humanos. Eu creio que nenhum
dos senhores nunca poderia apontar atos, atitudes da gente indígena do Brasil
que colocaram em risco seja a vida, seja o patrimônio de qualquer pessoa, de
qualquer grupo humano nesse país. E hoje nós somos alvo de uma agressão que
pretende atingir na essência a nossa fé, a nossa confiança de que ainda existe
dignidade, de que ainda é possível construir uma sociedade que sabe respeitar os
mais fracos, que sabe respeitar aqueles que não têm o dinheiro para manter uma
campanha incessante de difamação. Que saiba respeitar um povo que sempre
viveu à revelia de todas as riquezas. Um povo que habita casas cobertas de palha,
que dorme em esteiras no chão, não deve ser identificado de jeito nenhum como
um povo que é inimigo dos interesses do Brasil, inimigo dos interesses da nação, e
que coloca em risco qualquer desenvolvimento. O povo indígena tem regado com
sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil. E os
senhores são testemunhas disso. Eu agradeço a presidência desta casa, agradeço
os senhores e espero não ter agredido com as minhas palavras os sentimentos
dos senhores que se encontram nesta casa.”

Após esse discurso aconteceu a votação onde foi aprovada a emenda que incluía,
na Constituição de 1988, um capítulo que trata exclusivamente dos direitos dos povos
indígenas.

Neste capítulo vimos quais são as diferenças entre a problemática figura folclórica
do índio e o que é de fato o ser indígena. Pudemos compreender com essa análise que
a manutenção da figura do índio é interessante no aspecto político para que o Estado
brasileiro permaneça isentando-se de sua responsabilidade em fazer cumprir os direitos dos
povos indígenas de forma plena e satisfatória para essa parcela da população. Ao Estado
interessa a manutenção da tutelagem dos povos indígenas, manipulando seus direitos
de acordo com os interesses políticos do Estado, e não de acordo com as necessidades
desses povos. Mantendo-nos, assim, sempre à sombra de um passado distante.
Partindo dessa explicação, trataremos no capítulo seguinte do porquê as pessoas
indígenas em contexto urbano não são compreendidas como cidadãs de direito.
15

4 A Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos povos


indígenas e o respeito ao processo de autodeclaração.

Em 1982 foi criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) o Grupo de Trabalho
sobre Populações Indígenas após o estudo pioneiro na ONU — realizado entre a década de
1970 e 1980 pelo relator José Martínez Cobo — fornecer informações significativas acerca
da situação dos povos indígenas do mundo. A Declaração da ONU sobre os Direitos dos
Povos Indígenas foi um dos frutos desse Grupo de Trabalho. Desde o ano de 1985 a Orga-
nização das Nações Unidas vem trabalhando no sentido de estabelecer uma declaração
sobre os direitos dos povos indígenas em conformidade com os governos, representantes
indígenas e sociedade civil.
Em 13 de Setembro de 2007, após 22 anos, a Declaração dos Direitos dos Povos
Indígenas foi aprovada pela ONU na Comissão de Direitos Humanos. No texto da Declaração
constam princípios como o da igualdade de direitos, proibição da discriminação e também o
princípio da autodeterminação dos povos indígenas.
A Declaração reflete um conjunto de reivindicações dos povos indígenas de todo
o mundo pela melhoria de suas relações com os Estados. Diferente do que sugere a
Declaração, hoje no Brasil não são respeitados os direitos básicos de cidadania das pessoas
indígenas. Podemos tomar como exemplo o respeito à identidade indígena.
No Artigo 2 da Declaração da Organização das Nações Unidas sobre o Direito dos
Povos Indígenas está o princípio da igualdade, que determina que todos os povos e pessoas
indígenas são iguais a todos os demais povos e têm direito de não serem discriminadas em
sua identidade e origem, como vemos a seguir:
“Art.2 Os povos e as pessoas indígenas são livres e iguais a todos os demais
povos e pessoas e têm o direito a não ser objeto de nenhuma discriminação no
exercício de seus direitos fundado, em particular, em sua origem ou identidade
indígena” (Declaração da Onu sobre os Direito dos Povos Indígenas, p. 3, artigo 2)

No entanto, essa recomendação não é respeitada nem pelo Estado, nem pela so-
ciedade. Continuamos assistindo diariamente a discriminação das pessoas indígenas por
causa de sua origem; e o apagamento de suas identidades. Tomarei como exemplo de des-
respeito para com a identidade indígena e de discriminação, o caso da eleição de Jerônimo
Rodrigues, candidato ao governo do estado da Bahia pelo Partido dos Trabalhadores nas
eleições de 2022.
De acordo com a matéria publicada no jornal eletrônico Brasil de Fato (2022), Jerô-
nimo Rodrigues é natural de Aiquara (BA), tem 57 anos e foi eleito governador do estado da
Bahia em 30 de Outubro de 2022. Jerônimo se declara indígena e tem o reconhecimento de
sua etnia como tal. Após o resultado da apuração das urnas, levantou-se nas redes sociais
a questão da autodeclaração de Jerônimo. Enquanto pessoas indígenas comemoravam a
eleição do primeiro indígena governador do estado da Bahia, não-indígenas questionavam
a autenticidade da identidade indígena de Jerônimo, alegando que este seria “mestiço de
Capítulo 4. A Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos povos indígenas e o
respeito ao processo de autodeclaração.
16
negro com índio”, como citou a jornalista Cynara Menezes em um post em seu perfil em
uma rede social.
Devido ao alto alcance da jornalista, ex-colunista de grandes veículos de comuni-
cação como o jornal Folha de São Paulo, Revista Veja e Carta Capital, a publicação teve
grande repercussão nas redes. A partir daí, levantou-se, por pessoas não-indígenas, a
questão da validade da autodeclaração. Não-indígenas defendiam que Jerônimo, por não
descender de pai e mãe indígenas, era somente “mestiço”. Deslegitimando, assim, sua
identidade e seu processo de autodeclaração. É com base nessa visão purista, equivocada
e preconceituosa que pessoas não-indígenas nos discriminam em nossa origem e identi-
dade. No imaginário popular, somente pode ser indígena aquele que descender de pai e
mãe indígenas, viver em uma aldeia e preservar a imagem folclórica do índio. Mais uma
vez nos deparamos com o esforço do não-indígena para deslegitimar nossas identidades e
preservar a figura folclórica do índio.

Assim como Jerônimo, com frequência pessoas indígenas, principalmente em con-


texto urbano, são discriminadas e têm diariamente questionadas suas identidades e origem.
O cerne da questão da veracidade da autodeclaração é que não-indígenas não compreen-
dem e não empenham esforço para compreender que nossos processos de autodeclaração
diferem totalmente dos processos de reconhecimento e autodeclaração de pessoas negras,
por exemplo. Por não compreender, utilizam a mesma régua ao questionar nossas identi-
dades. Para nós, povos indígenas, no aldeamento ou no contexto urbano, o processo de
autodeclaração depende não somente da declaração exclusiva da pessoa que se reconhece
indígena, mas como do reconhecimento de um ou mais povos.
Essa prática discriminatória tem como finalidade a tentativa de preservar a figura
folclórica do índio bem como a tentativa de preservar o reconhecimento através do este-
reótipo criado no imaginário popular. O reconhecimento através do estereótipo de pessoas
indígenas não só é um equívoco como também é uma prática falha. Essas práticas se-
riam facilmente dissolvidas empenhando algum esforço para compreender a pluralidade
dos povos indígenas, tanto em nossas culturas quanto em nossos biotipos. O contrário é
esse esforço para preservar a ideia que somente existe o índio, o povo indígena, como se
fôssemos um bloco homogêneo e não povos plurais e diversos.
Compreendemos a importância da Declaração da Organização das Nações Unidas
sobre os direitos dos povos indígenas, mais especificamente no que diz respeito à identidade
e origem da população indígena e a livre manifestação de sua identidade e origem sem que
haja discriminação. A partir da análise da figura folclórica do índio e de como os processos
discriminatórios advindos dessa figura são fundamentais para assegurar a manutenção da
tutelagem do Estado Brasileiro à população indígena, podemos perceber que a manutenção
dessa figura no imaginário popular é um projeto e viabiliza as diversas formas de violência
para com os povos indígenas. Violências como a discriminação em nossas identidades; o
Capítulo 4. A Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos povos indígenas e o
respeito ao processo de autodeclaração.
17
apagamento deliberado de nossa existência; que nos relega à margem social, e a captura
sistemática das formas de organização que garantem nossa subsistência.
Mesmo com a recomendação da Organização das Nações Unidas através declaração
sobre os direitos dos povos indígenas, seguimos vendo ações do próprio Estado que vão
na contramão do respeito aos direitos da população indígena. A problemática acerca do
desrespeito do Estado aos sistemas de autodeclaração das pessoas indígenas culmina na
violência aos nossos direitos cidadãos mais básicos, como o acesso. Acesso à moradia, à
educação, saneamento, e acesso à saúde.

Como vimos anteriormente, dos mais de 305 povos somente 270 são reconhecidos
pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Assim sendo, 35 povos ou mais não têm o
reconhecimento da FUNAI e, por consequência, não têm acesso aos documentos que a
Fundação disponibiliza para pessoas indígenas de povos reconhecidos e em terras devi-
damente demarcadas. Documentos como o RANI (Registro Administrativo de Nascimento
Indígena) garantem o acesso à saúde indígena e às vagas do sistema de cotas etnico-
raciais reservadas para pessoas indígenas em concursos públicos, vestibulares e etc. Esse
não reconhecimento acarreta em ausência de meios legais para que essas pessoas indí-
genas tenham acesso aos serviços e direitos básicos tendo respeitadas suas identidades.
Além de negar direitos básicos por via da burocracia de que dispõe o processo legal de
reconhecimento dos povos, essa prática fere o princípio da autodeterminação, garantido
pela Constituição Federal de 1988 e pela Declaração da Organização das Nações Unidas
sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Dentro do princípio de autodeterminação dos povos indígenas está compreendido
o direito à autonomia nas questões relacionadas à assuntos internos dos povos, como a
autodeclaração. A autodeclaração é o processo de reconhecimento que cada povo, de
acordo com suas regras e costumes, utiliza para identificar, definir, e formalizar quem
é indígena e quem não é. O processo de autodeclaração é realizado de acordo com as
tradições de cada povo, em conjunto com as demais pessoas de cada etnia, além da pessoa
que deseja esse reconhecimento. Esse é um processo que depende única e exclusivamente
do coletivo de pessoas indígenas de cada povo para que o reconhecimento de uma pessoa
indígena seja válido. Não necessita de validação de pessoas não-indígenas ou da validação
de órgãos geridos por pessoas não-indígenas que, geralmente, desconhecem as formas de
organização política de cada povo. Como é o caso da FUNAI.
Na Constituição Federal de 1988 está assegurado o direito à autodeterminação dos
povos e pessoas indígenas no artigo 4 inciso III, parágrafo único, que diz:
“Art. 4.º
A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos
seguintes princípios:
III - autodeterminação dos povos; Parágrafo único.
A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social
Capítulo 4. A Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos povos indígenas e o
respeito ao processo de autodeclaração.
18
e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade
latinoamericana de nações.”

Na Declaração das Nações Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas, o trecho
que trata da autodeterminação dos povos está dividido em dois parágrafos, nos artigos 3 e
4; e são eles:
“Art. 3
Os povos indígenas têm direito à livre determinação. Em virtude desse direito,
determinam livremente a sua condição política e perseguem livremente seu de-
senvolvimento econômico, social e cultural.
Art. 4
Os povos indígenas no exercício do seu direito à livre determinação, têm direito
à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas com seus assuntos
internos e locais, assim como os meios para financiar suas funções autônomas.“

Portanto, o não cumprimento dessas determinações, asseguradas tanto pela Consti-


tuição Federal de 1988 quanto pela Declaração da ONU, fere o direito da autodeterminação
dos povos.

De acordo com o balanço parcial do Censo Demográfico do ano de 2022, realizado


pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), temos em solo brasileiro 860.358
pessoas indígenas, representando 0,82% de toda a população recenseada até o momento.
O resultado parcial nos mostra que temos, até o momento, 860.358 pessoas indígenas no
país. Aldeadas e em contexto urbano. Número que tende a aumentar até o fim da pesquisa,
pois ainda faltam diversas regiões a serem recenseadas.
Podemos verificar o quanto é falha e retrógrada a métrica utilizada por órgãos do
governo para identificar e quantificar pessoas indígenas, pois não é possível realizar um
trabalho de identificação e quantificação que visa — em tese — trazer melhorias e assegurar
direitos à essa parcela da população sem que haja um pleno entendimento acerca das
formas de organização e de reconhecimento de cada povo. Se dados oficiais antigos nos
dizem que somos 270 povos, pesquisas mais abrangentes como o Censo Demográfico, que
não necessita de documentos oficiais para identificação e inclusão de pessoas indígenas,
nos mostram que esses números estão ultrapassados e que a população indígena em
território brasileiro cresce a cada ano.
Tendo em vista o aumento da população indígena em território brasileiro e os pro-
cessos de migração e de transformação das formas de vida de povos e pessoas indígenas,
compreende-se ser necessária e urgente a atualização das formas de atuação dos órgãos
de proteção à essa parcela da população, além de fazer valer os direitos assegurados pela
Constituição Federal de 1988 e pela Declaração da Organização das Nações Unidas sobre
os Direitos dos Povos Indígenas.

Ao longo deste capítulo pudemos compreender o problema de caráter político e social


resultante do não cumprimento das determinações acerca do princípio da autodeterminação
Capítulo 4. A Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos povos indígenas e o
respeito ao processo de autodeclaração.
19
dos povos indígenas. A partir disso, convido o leitor a acompanhar a análise a ser realizada
no próximo capítulo, onde aprofundo um pouco mais a questão da exigência de documentos
para acesso aos direitos e serviços básicos e o papel da Fundação Nacional do Índio
(FUNAI) na questão indígena. Além disso, trilharemos um caminho em direção à discussão
da necessidade da criação de políticas públicas urgentes e atualizadas para essa parcela
da população, em concordância com as necessidades e especificidades de cada contexto.
20

5 A Funai, o SUS e a Sesai como instrumento de violência e marginalização das


pessoas indígenas em contexto urbano e em terras não demarcadas.

Ao recorrer ao atendimento médico no sistema público de saúde (SUS), por vezes


pessoas indígenas têm suas identidades violentadas, pois para serem atendidas por esse
sistema tendo sua identidade respeitada é exigido o Registro Administrativo de Nascimento
Indígena (RANI), emitido pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Sendo esse registro
entregue exclusivamente às pessoas indígenas aldeadas nascidas e criadas em terras
demarcadas, exclui-se as pessoas indígenas em contexto urbano e pessoas indígenas
residentes em aldeias situadas em terras não reconhecidas.
Se existe uma Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), voltada para in-
dígenas aldeados oriundos de terras demarcadas e devidamente registrados, em seu
contraponto existe uma completa desatenção para com a saúde de indígenas em contexto
urbano ou residentes em terras não demarcadas. Ao negar o atendimento a essas pes-
soas pela via da exigência do RANI, promove-se um apagamento dessas identidades e a
marginalização desses indivíduos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos versa sobre o acesso à saúde ser
um direito básico de todas as pessoas (Art. 25.1). A partir disso, proponho uma reflexão a
respeito do que constitui um indivíduo no que tange o social. Seriam as pessoas indígenas
em contexto urbano e em contextos diferentes do de aldeamento em terras demarcadas
sujeitos de menos direitos, logo, menos humanas, do que as demais pessoas? Por qual
razão esse direito, assegurado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela
própria Constituição Federal de 1988, não se aplica, na prática, às pessoas indígenas na
urbanização e em terras não demarcadas?
Trago como exemplo claro do descaso com pessoas indígenas em contexto urbano
e residentes em terras não demarcadas um caso ocorrido em meados de Março de 2022,
na Aldeia Maracanã.
Os indígenas residentes da Aldeia Maracanã, localizada na cidade do Rio de Janeiro,
imediatamente ao lado do Estádio do Maracanã, se depararam com um surto de vômito e
disenteria entre os residentes da aldeia. Não tendo o Registro Administrativo de Nascimento
Indígena, pois são indígenas que, em sua maioria, nasceram e cresceram em contexto
urbano e residem em uma terra não demarcada, não tiveram acesso ao atendimento no
sistema público de saúde (SUS) de forma a terem suas identidades indígenas respeitadas.
Para conseguirem ter acesso ao atendimento por via do SUS (Sistema Único de
Saúde), seria necessário abdicar de suas identidades indígenas para serem enquadradas
nesse sistema como pessoas não-indígenas. Os indígenas residentes da Aldeia Maracanã,
não tiveram, portanto, acesso à saúde pública para o tratamento de sua condição de saúde.
O que fere o artigo 196 da Constituição Federal de 1988, que dispõe que a saúde é um
Capítulo 5. A Funai, o SUS e a Sesai como instrumento de violência e marginalização das pessoas indígenas
em contexto urbano e em terras não demarcadas. 21

direito de todas as pessoas, sem restrições, e é dever do Estado assegurá-lo.


Vemos, então, como se dá a violência do sistema público de saúde para com
a população indígena no contexto urbano e como situações como essa nos colocam
completamente à margem da sociedade, destinando-nos à um não-lugar. O não-lugar do
indivíduo que não tem sua identidade indígena reconhecida e que também não é identificado
socialmente como branco e nem negro.

5.1 A Casa do Índio e o descaso do Estado Brasileiro com a população indígena

Criada em 1968 na Ilha do Governador (RJ), no contexto da Ditadura Militar, a Casa


do Índio abrigou cerca de 30 mil indígenas em seu mais de meio século de funcionamento.
O contexto da estrutura repressiva instalada no país pelo AI-5, um dos dezessete atos
institucionais de repressão aplicados pela ditadura militar no Brasil, contava com três
aparelhos de repressão centrados em Minas Gerais: A Guarda Rural Indígena (GRIN),
responsável pelo policiamento das aldeias; o Reformatório Krenak em Resplendor; e a
Fazenda Guarani, situada nas proximidades da Serra do Cipó. O Reformatório Krenak e a
Fazenda Guarani eram aparelhos utilizados para receber pessoas indígenas com “conduta
desviante”, onde eram presas e submetidas a torturas e a trabalhos forçados.
Nesse contexto, a Casa do Índio funcionava como uma espécie de abrigo para
indígenas com deficiências, problemas de saúde diversos e com transtornos mentais.
Um relatório de 1980 informa que da média de 40 indígenas assistidos mensalmente,
14 eram portadores de transtornos mentais. A Casa chegou ao ponto de ser conhecida
como manicômio indígena, devido à alta quantidade de pessoas indígenas com transtornos
mentais que recebia, e que agora era expressivamente maior do que a de indígenas
portadores de outras doenças. Assim ficou marcado o funcionamento da Casa.
Eunice Cariry (2021), administradora do aparelho, conta que a Casa do Índio da Ilha
do Governador foi a primeira de 40 Casas espalhadas pelo país a receber apoio da FUNAI,
ficando, em seguida, sob responsabilidade de diversos órgãos. Segundo Eunice (2021), os
indígenas residentes na Casa eram encaminhados através da FUNAI.
A Casa do Índio da Ilha do Governador não conta, atualmente, com nenhum apoio do
governo, ficando somente sob cuidados da administradora, exonerada em 2009, adentrando,
junto com a Casa, em um limbo jurídico. As demais Casas foram convertidas em Casa
de Apoio à Saúde Indígena, que são geridas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena
(SESAI) e pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS), através do Sistema
Único de Saúde (SUS).
Cariry (2021) mantém guardados sob sigilo os arquivos de todos os indígenas
que passaram pela Casa desde o período da Ditadura Militar. Podemos compreender, a
partir dessa informação, que o esquecimento e apagamento da Casa do Índio da Ilha do
Governador é um projeto pensado para enterrar junto com a Casa e os documentos nela
Capítulo 5. A Funai, o SUS e a Sesai como instrumento de violência e marginalização das pessoas indígenas
em contexto urbano e em terras não demarcadas. 22

mantidos, toda a história de um período assombroso do passado político do país. Um


projeto que visa varrer da memória e da história tudo aquilo que as estruturas do poder
não querem que seja lembrado. A Casa do Índio luta para sobreviver e continua abrigando,
mesmo em estado de precariedade causada pelo abandono do governo, pessoas indígenas
saídas de suas aldeias e em contexto urbano. A Casa recebe ajuda de apoiadores da causa
indígena, se mantendo através de doações e trabalhos voluntários. A administradora da
Casa do Índio, Eunice Cariry, tem mais de 80 anos de idade e mantém a Casa com todos
os seus esforços pessoais, mesmo reconhecendo seus limites físicos devido à vasta idade.
Cariry (2021) reforça: “Estou aqui há mais de 50 anos cuidando de quem ninguém
cuida (. . . ) Mas, hoje, digo que estamos aqui fortes e de portas abertas”.

Vimos neste capítulo como opera o descaso dos órgãos do governo que deveriam
cuidar e promover saúde à população indígena do país. Nessa análise, entendemos que
o apagamento sistemático de pessoas indígenas dentro de órgãos teoricamente voltados
para a atenção à saúde indígena — sobretudo no campo da saúde mental — não é
despropositado. Esse apagamento, como pudemos verificar neste capítulo e nos capítulos
anteriores, servem a interesses políticos maiores do que a manutenção da vida, preservação
de saúde e identidade, e do acesso de pessoas indígenas à direitos básicos. O sistema
de apagamento de pessoas e populações indígenas inteiras visa varrer da história do país
as violências e atrocidades cometidas pelo próprio Estado brasileiro contra a população
indígena.
23

6 A Aldeia Maracanã como território de resistência dos povos indígenas em contexto


urbano na cidade do Rio de Janeiro

Para tratar das informações presentes neste capítulo, utilizaremos um relato de


experiência como caso analisador do que vimos até aqui, problematizando.

Ao participar como monitora da I Bienal de Arte Indígena do Rio de Janeiro, realizada


entre os dias 13 e 20 de Agosto de 2022, reencontrei alguns amigos indígenas residentes
na cidade do Rio de Janeiro, mais especificamente, na Aldeia Maracanã. Além de conhecer
e ter a oportunidade de conversar com algumas outras pessoas residentes da aldeia, como
o cacique José Urutau Guajajara.
Mais conhecido como Cacique Urutau, José Urutau Guajajara é, juntamente com
sua companheira, a cacica Potyra Krikati, uma das lideranças responsáveis pela aldeia.
Ainda no espaço do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, onde aconteceu durante 7 dias
a I Bienal de Arte Indígena do Rio de Janeiro, conversei com o cacique Urutau, que relatou
um pouco sobre a história da Aldeia Maracanã e seu impacto político e cultural na cidade.
José Urutau Guajajara é graduado em Pedagogia pela Universidade Estácio de Sá
(UNESA), especialista em Educação Indígena pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
em Línguas Indígenas pelo Museu do Índio/UFRJ e mestre em Linguística pela mesma
instituição, além de ser professor de Língua e Cultura Tupi-Guarani pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Potyra Krikati, sua companheira e cacica da Aldeia Maracanã, é artesã, tecelã e
ativista das causas indígenas. Cacique Urutau é original do Estado do Maranhão, onde
viveu e cresceu com seu povo da etnia Guajajara até se mudar para a cidade do Rio de
Janeiro, ainda jovem, para estudar.
No ano de 2006, José Urutau participou do grupo de indígenas de diversas etnias
que fundou a Aldeia Maracanã, no prédio onde funcionava o antigo Museu do Índio, ao lado
do Estádio do Maracanã. No antigo Museu do Índio, prédio abandonado pelo Governo do
Estado do Rio de Janeiro desde o ano de 1977, cacique Urutau em conjunto com os demais
residentes da aldeia, fundou a Universidade Indígena Aldeia Maracanã.
Em 2013, às vésperas da Copa do Mundo de 2014, José Urutau permaneceu durante
26 horas no topo de uma árvore na tentativa de impedir o despejo da Aldeia Maracanã.
Apesar de seu ato de resistência, a Aldeia Maracanã sofreu diversas remoções durante os
Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo de 2014, tendo retomado seu território após esses
eventos.
Apesar da inegável importância da Aldeia para os indígenas da cidade do Rio
de Janeiro, o governo do estado do Rio, através de diversas violências, tenta a todo
custo apagar e negar a existência desse espaço. Dentre as formas de tentar inviabilizar a
permanência dos indígenas residentes naquele espaço está a recusa do governo do estado
Capítulo 6. A Aldeia Maracanã como território de resistência dos povos indígenas em contexto urbano na
cidade do Rio de Janeiro 24

em levar saneamento básico até a aldeia, fazendo com que as pessoas que ali residem
enfrentem dificuldades em dias mais frios, por exemplo, por não disporem de água potável
e energia elétrica para o aquecimento da água utilizada para banhos. A água utilizada
no preparo dos alimentos para a aldeia é comprada em supermercados próximos pelos
indígenas habitantes do local.
Ainda de acordo com as informações obtidas na conversa com as lideranças da
aldeia Maracanã, a ausência de saneamento básico e de atenção à saúde das pessoas
daquele espaço resultou em um surto de vômito e disenteria em meados de Março de
2022, quando, ao não conseguirem acesso ao sistema público de saúde tendo respeitadas
suas identidades, os indígenas da Aldeia Maracanã não tiveram acesso à tratamento de
sua condição de saúde, o que refletiu em um processo de adoecimento de um por um
dos indígenas residentes da aldeia. Além dessas dificuldades, os residentes da Aldeia
Maracanã ainda precisam enfrentar tentativas de despejo diversas por parte do governo do
estado do Rio, que não reconhece o espaço como uma aldeia legítima, como um espaço
comunitário de troca e de preservação de vivências e culturas das pessoas de diferentes
etnias indígenas que ali residem. Um bom exemplo de violência contra aquele espaço é o
episódio ocorrido em 5 de Agosto de 2022 — que veremos mais adiante — protagonizado
pelo deputado estadual Rodrigo Amorim, de acordo com informações trazidas pela matéria
publicada em agosto de 2022 pela Revista Veja.

Rodrigo Amorim é conhecido por sua conduta violenta contra grupos minoritários
e uma de suas frases mais marcantes nesse sentido foi proferida no ano de 2019, contra
a Aldeia Maracanã. O deputado afirmou que a Aldeia é um “lixo urbano, que necessita de
uma faxina no local para restaurar a ordem”. Rodrigo defende que o local seja desocupado
para que ali possa ser construído um estacionamento para o Estádio do Maracanã ou até
mesmo um shopping center.
No dia 5 de Agosto de 2022, o deputado convocou, através de suas redes sociais,
uma motociata em apoio ao, até então presidente, Jair Bolsonaro, e o ponto de partida da
motociata seria a Aldeia Maracanã, em mais uma tentativa de incitar o ódio de seus aliados
contra a aldeia e de intimidar os indígenas daquele espaço. Após o comunicado da motociata,
os indígenas da aldeia se mobilizaram e pediram ajuda da população para proteger a
integridade física de seus residentes e também para impedir que qualquer tentativa de
invasão à aldeia pelos convocados de Rodrigo Amorim acontecesse. A aldeia teve seu
pedido atendido e no dia da motociata estiveram no local estudantes das universidades da
cidade e outros apoiadores. O número de apoiadores da aldeia no dia do evento foi maior
do que o número de adeptos da motociata e, graças a isso, nenhum tipo de violência física
contra os indígenas da Aldeia Maracanã aconteceu, nem a invasão do espaço.
Como se não bastasse todas essas violências cotidianas que a Aldeia sofre, em dias
que ocorrem, no Estádio do Maracanã, jogos de futebol mais expressivos — os chamados
Capítulo 6. A Aldeia Maracanã como território de resistência dos povos indígenas em contexto urbano na
cidade do Rio de Janeiro 25

clássicos — se instala na aldeia um clima de apreensão e ansiedade. Os indígenas do


espaço relataram, em minha visita à aldeia, que sofrem também com a violência das torcidas
de times de futebol antes e após os jogos no Estádio. Relatam que em um desses ataques,
torcedores já atearam fogo na Aldeia e já invadiram o local. Por essa razão, os residentes
decidiram levantar tapumes de madeira ao redor da aldeia como forma de proteção às
pessoas moradoras do espaço. Dentre elas, idosos e crianças.
Mesmo com todos esses ataques, a Aldeia Maracanã segue lutando para se manter
e ter seu território reconhecido e demarcado, tanto pelo governo do estado do Rio de
Janeiro, quanto pelo Governo Federal.

Compreendemos, ao analisar as informações trazidas neste capítulo, que as formas


de organização e a existência de pessoas indígenas no contexto urbano não são apenas
desrespeitadas de todas as formas, são, também, violentadas todos os dias. Desde a recusa
ao acesso dessas pessoas à seus direitos mais básicos como habitação digna, segurança,
acesso à saúde e saneamento; até direitos cidadãos relativos às nossas identidades, não
tendo nossos corpos, nossa dignidade e nossa saúde mental afetadas pelas violências que
pessoas não-indígenas — muitas vezes com o apoio do Estado brasileiro — nos trazem.
26

7 A saúde mental das pessoas indígenas na urbanização.

Nos capítulos anteriores tratamos sobre algumas das questões que causam adoeci-
mento psíquico às pessoas indígenas no contexto da urbanização. Falaremos agora sobre
os efeitos causados na saúde mental de pessoas indígenas em decorrência das inúmeras
violências a que estas estão expostas.

Nos últimos anos vimos crescer e ganhar visibilidade nos meios de comunicação a
questão dos indígenas em contexto urbano, o que, ao mesmo tempo que se faz necessário,
causa adoecimento. Principalmente nos últimos meses, em decorrência do processo eleitoral
que tirou do poder um presidente que fazia declarações contra indígenas; incitava o ódio
da população contra os mesmos; e abria a porta para a exploração do garimpo ilegal em
terras indígenas, causando muitos conflitos e mortes. Durante o processo eleitoral que tirou
do poder Jair Bolsonaro e elegeu Luiz Inácio Lula da Silva presidente, a questão indígena
ganhou força por conta da eleição de alguns candidatos indígenas e da criação do Ministério
dos Povos Originários, a ser consolidada no ano de 2023 com a posse do novo presidente.
Com tudo isso, veio à tona, também, a questão do indígena em contexto urbano,
trazendo consigo outra vez o reforçamento do estereótipo indígena e da figura folclórica do
índio. Com a população dividida pelo processo eleitoral e pelos anos de incitação do ódio
contra indígenas, pessoas indígenas na urbanização que antes não eram percebidas como
tal, passaram a ser vistas e ainda mais hostilizadas. Essas pessoas tiveram, mais uma vez,
suas identidades questionadas simplesmente por morarem na cidade. Pessoas indígenas
residentes no contexto urbano e em processo de retomada de suas raízes, principalmente.
Os processos de retomada das identidades indígenas são, geralmente, muito delica-
dos pois afetam diretamente a ideia que se tinha antes sobre a própria identidade e tem
grande potencial de afetar a saúde mental dessas pessoas, que agora precisam realizar um
esforço no sentido de compreender qual a sua origem e qual será, a partir de então, sua
identidade e seu papel no âmbito social.
Costuma ser um fardo muito pesado e uma cobrança social e autocobrança ainda
maiores para pessoas indígenas na urbanização a experiência de habitar e transitar nos
mesmos espaços que não-indígenas. Geralmente as violências cotidianas se dão, sobretudo,
em razão de esses ambientes serem construídos e habitados por e para não-indígenas e,
portanto, não estarem preparados para lidar com indígenas e suas questões, por muitas
vezes, delicadas, como a autodeclaração, o acesso que muitos não têm à língua de seu
povo, etc.
Constantemente o indígena na urbanização se vê cobrado por não-indígenas para
se enquadrar na figura que habita o imaginário popular quando falamos sobre pessoas
indígenas, o que acarreta em muito sofrimento. Seja em função de não serem vistos
como seres humanos em essência, seja por questionarem, por muitas vezes, sua própria
Capítulo 7. A saúde mental das pessoas indígenas na urbanização. 27

identidade a partir dessa relação com o não-indígena.


Além de termos constantemente nossas identidades questionadas por não-indígenas,
precisamos lidar também com o racismo e despreparo das instituições governamentais
que não entendem o indígena urbano como indígena “legítimo”. Os desdobramentos dessa
recusa têm grande impacto sobre nossas vidas e nossa saúde mental. Não podemos, sem
o Registro Administrativo de Nascimento Indígena, ter acesso à saúde pública com nossas
identidades indígenas, nem acesso à educação através do sistema de cotas, por exemplo.
Nos privam dos direitos mais básicos. Sem acesso à saúde, muitos de nós adoecemos
física e psiquicamente. Somos, por vezes, perseguidos em função de nossa origem nesses
ambientes e alvos de chacota entre os não-indígenas, que, não raro, praticam o racismo
recreativo entre seus pares.

A psicologia pode ser uma grande aliada no processo de restauração da saúde


mental dos indígenas em contexto urbano, ou mais um agente de violência contra essa
parcela da população. Vimos até aqui como o problemático o convívio do indígena na
urbanização com o não-indígena é causador de extrema violência, sofrimento e apagamento
de nossas identidades e como essa relação nos adoece profundamente. Trataremos, então,
no próximo capítulo, do papel da Psicologia na promoção de saúde aos indígenas em
contexto urbano e quais são os desafios que essa realidade específica traz à Psicologia.
28

8 O papel da Psicologia na promoção de saúde mental aos indígenas em contexto


urbano e seus desafios.

Ao longo deste trabalho vimos quais são os problemas enfrentados por pessoas e
povos indígenas que habitam o contexto urbano, conhecemos como operam alguns setores
da sociedade brasileira e alguns órgãos governamentais para a manutenção e perpetuação
das diversas violências cometidas contra pessoas indígenas residentes nesse contexto e
quais são os impactos dessas violências na saúde física e, principalmente, mental dessa
parcela específica da população brasileira.
Trataremos, neste capítulo, da importância e das contribuições da Psicologia na
restauração da saúde mental de indígenas na urbanização, no combate a essas violências
e na preservação da saúde mental desses indivíduos.

A Psicologia é um campo de estudo e de atuação fundamentalmente eurocêntrico e


baseia suas noções de cuidado em saúde mental nas práticas desenvolvidas por e para
populações ocidentais e eurocêntricas, ignorando outros contextos e formas de organização
social que ela, a Psicologia, por manter esse viés, não é capaz de alcançar.
Nas grades curriculares dos cursos de Psicologia no Brasil, encontramos majori-
tariamente autores brancos, em um espaço pensado por pessoas brancas para pessoas
brancas, e assim se reproduz a matriz de pensamento que se distancia grandemente da-
quelas de pessoas não-brancas. Esse olhar eurocêntrico e auto referenciado da Psicologia
é, por vezes, mais uma fonte de violência contra pessoas não-brancas; principalmente
quando se trata de pessoas indígenas, já que as discussões acerca de nossas questões
são relativamente recentes para pessoas não-indígenas.
Diante disso, podemos afirmar que existe uma urgência de a psicologia redirecionar
seu olhar a fim de compreender os povos indígenas e as questões que os atravessam, afinal,
o sofrimento psíquico de pessoas indígenas não é somente íntimo, é fundamentalmente
político. Somente após realizar esse redirecionamento e construir elos com outras ciências
que abarquem com mais profundidade nossas questões é que a psicologia se tornará
verdadeiramente útil à nós.
A função do psicólogo é “ouvir o sintoma para ouvir o mundo que o produz” (VEIGA,
2019). Para que seja possível ouvir e compreender verdadeiramente as pessoas indígenas,
é necessário primeiro nos livrarmos dos padrões de conhecimento que absorvemos na
academia e que nos distancia da possibilidade de entendimento de outras culturas. O
sofrimento psíquico não se inscreve apenas nos moldes eurocêntricos que aprendemos no
ambiente acadêmico, e para compreendê-lo de forma mais ampla o psicólogo precisa estar
atento aos aspectos sociais e políticos que causam o intenso adoecimento psíquico em
pessoas indígenas, para que essas sejam compreendidas em suas questões. Sobretudo
em pessoas indígenas na urbanização.
Atualmente existe uma gama de intelectuais, pesquisadores e psicólogos indígenas
Capítulo 8. O papel da Psicologia na promoção de saúde mental aos indígenas em contexto urbano e seus
desafios. 29

que se dedicam à produção de conhecimento sobre os efeitos do racismo nas subjetividades


indígenas, como é o caso da Articulação Brasileira dos Indígenas Psicólogos (ABIPSI).
Fundada em Maio de 2020, a Articulação Brasileira dos Indígenas Psicólogos reúne, através
das redes sociais, psicólogas e psicólogos pertencentes a diversos povos em todo o país.
A ABIPSI faz um movimento na direção de dar visibilidade à uma nova forma de pensar a
psicologia; e age ativamente na construção de uma psicologia que atenda às demandas de
povos e pessoas indígenas, que geralmente não são contempladas pelo modo tradicional e
eurocêntrico de se fazer psicologia. A forma tradicional de aplicação da psicologia é falha
e limitada quando ignora as especificidades e particularidades de demandas trazidas por
pessoas indígenas; tenta enquadrá-las nas demandas “comuns” e tratá-las através do viés
eurocêntrico. Violentando-as, desse modo.
A subjugação de pessoas indígenas por não-indígenas a seres inferiores e sub
categorias de seres humanos, produz efeitos devastadores nessas subjetividades. Para que
a aplicação da psicologia às questões indígenas seja de fato efetiva, é necessário que esta
construa pontes com outras ciências que primeiro se debruçaram sobre essas questões.
Como a antropologia. A antropologia é a área mais atuante no sentido de contribuição às
questões indígenas, desde o estudo das culturas e colaboração para a preservação das
mesmas, até contribuições na discussão sobre a saúde indígena e as representações e
práticas dos povos acerca do que é saúde e doença. A contribuição da antropologia nessa
relação com a prática do psicólogo é a de promover o diálogo entre os saberes indígenas a
respeito do que é saúde e o que é doença; e a escuta do psicólogo, para que elementos
cruciais para a compreensão da questão da saúde indígena não sejam ignorados.

Nesse sentido, a antropologia tem muito a contribuir e favorecer a psicologia na


compreensão da saúde indígena, uma vez que os povos indígenas têm uma concepção de
corpo, pensamento e mente que diferem da concepção do não-indígena sobre os mesmos
elementos. Uma cosmovisão que a psicologia tradicional e eurocêntrica não abarca.
Antropologia e Psicologia são áreas que, juntas, têm muito a contribuir na criação de
políticas públicas para a promoção da saúde mental da população indígena, principalmente
da população indígena em contexto urbano.
Uma vez criado esse elo e redirecionado o olhar, a psicologia constrói a possibilidade
de acolher as demandas de pessoas e povos indígenas sem as violentar.
30

9 Considerações finais.

Durante todo o percurso de pesquisa e escrita do presente trabalho, algumas ques-


tões se apresentaram e me saltaram aos olhos causando diversas inquietações. Uma
dessas inquietações advém do fato de precisar, primeiramente, reformular todo o planeja-
mento do trabalho para que este seja aceito e validado pela academia. Minha ideia inicial
era a de construir este trabalho com a colaboração exclusiva de autores indígenas como
referencial bibliográfico, afinal, se trago aqui algumas das questões mais importantes e
urgentes para as pessoas indígenas, o ideal é falar junto delas, não por elas.
Falar sobre a saúde mental dos povos indígenas pelo viés tradicional da psicologia,
que é eurocêntrico, seria reproduzir uma das violências “clássicas” que vivemos — a
tutelagem dos corpos, ideias e vozes.
Entretanto, me deparei mais uma vez, com os padrões estabelecidos pela academia
e que, por se tratar de um ambiente pensado para pessoas não-indígenas e que aplica e
retroalimenta o padrão eurocêntrico de conhecimento e produção, nos obriga a aplicar toda
produção acadêmica e científica aos seus moldes, reforçando o processo de tutelagem
dos corpos e ideias, neste caso específico, de indígenas. Bem como o silenciamento e
a invalidação de toda a produção intelectual dos nossos — mesmo quando tratamos de
questões que são próprias de nossas vivências — por não se aplicar a esse padrão.
O tema deste trabalho foi pensado em razão da necessidade que encontrei de falar
sobre a questão da saúde mental indígena. Falar sobre a questão indígena é uma forma
de resistência a um sistema perverso que tenta diariamente e com todos os recursos de
que dispõe, nos apagar e invalidar nossas ideias e sentimentos. Se sofremos tentativas
diárias de silenciamento e apagamento, a nós a saída é justamente o contrário. É violento
e desagradável que precisemos gritar a plenos pulmões e todas as vezes sobre nossos
sofrimentos para que dessa forma possamos, talvez, ser ouvidos. Nesse sentido, o trabalho
que se apresenta aqui foi construído sobre uma escrita marcada por dores, alegrias,
aspirações e resistência.
Dito isso, podemos agora compreender a necessidade da psicologia, enquanto
campo de estudo e forma de atuação, redirecionar e sensibilizar seu olhar para que seja
possível lidar com questões tão caras e delicadas como a da saúde mental em contextos
totalmente diferentes daqueles para o qual ela foi desenvolvida. A função da psicologia é
promover saúde mental onde ela puder alcançar e isso somente será possível no momento
em que se desprender do engessamento do modelo tradicional e eurocêntrico no qual foi
pensada e passar a abarcar contextos mais diversos, como o das pessoas indígenas. Seja
no contexto urbano ou no contexto do aldeamento.
Portanto, o desafio da psicologia está em redirecionar seu olhar para poder com-
preender e abarcar contextos diversos, como o dos povos indígenas. Sua contribuição se
localiza em destituir-se da posição de imutável e na construção de elos com outras ciências
Capítulo 9. Considerações finais. 31

— como a Antropologia — no sentido de compreender aprofundadamente outras culturas e


acolher suas demandas, sem que seja mais um agente de violência.
32

10 Referências

A APOTEOSE do Racismo no Brasil:: Povos indígenas, o estado e a produção


da indiferença nacional. 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, 4 ago. 2014. Disponível
em: http://www.29rba.abant.org.br/resources/anais/1/1402704754_ARQUIVO_McCallum_
Comunicaco29RBA.pdf. Acesso em: 15 nov. 2022.

ARTICULAÇÃO BRASILEIRA DE INDÍGENAS PSICÓLOGOS (Brasil). PINTANDO


A PSICOLOGIA DE JENIPAPO E URUCUM: Narrativas de indígenas psicólogos(as) do
Brasil. Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogos(as) - ABIPSI: Articulação Brasileira
de Indígenas Psicólogos(as) - ABIPSI, 2022. 245 p. v. 1.

A DIVERSIDADE sociocultural dos povos indígenas no Brasil:: o que a escola tem a


ver com isso?. AYA BIBLIOTECA LABORATÓRIO DE ESTUDOS PÓS-COLONIAIS E DECO-
LONIAIS, 2021. Disponível em: https://ayalaboratorio.com/2021/05/21/a-diversidade-sociocu
ltural-dos-povos-indigenas-no-brasil-o-que-a-escola-tem-a-ver-com-isso-por-edson-kayapo
/. Acesso em: 13 maio 2021

BRASIL. [Constituição (1988)]. Os índios na constituição federal de 1988. Ministério


da cidadania, Secretaria de Desenvolvimento Social, mds.gov.br: [s. n.], 1988.

CONSTITUIÇÃO Federal (Artigos 196-200): Seção II DA SAÚDE. Ministério da


Saúde, Conselho Nacional de Saúde, [2000]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/w
eb_sus20anos/20anossus/legislacao/constituicaofederal.pdf. Acesso em: 15 out. 2022.

CONHECENDO os Povos Indígenas no Brasil Comtemporâneo. (Periódicos E. Disci-


plinas Usp), [s. l.], 2010.

DECLARAÇÃO das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas: Sexagé-
simo período de sessões Tema 68 do Programa Informe do Conselho dos Direitos Humanos.
Revista Povos Indígenas do Brasil, pib.socioambiental.org, 13 set. 2007.

DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos: Adotada e proclamada pela As-


sembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948.. Uni-
cef.org/brazil, [1988]. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-
direitos-humanos. Acesso em: 3 out. 2022.

DISCURSO de Ailton Krenak em 04/09/1987: Assembléia Constituinte. Revista de


Antropologia USP, [s. l.], 24 out. 2019.
Capítulo 10. Referências 33

FERREIRA CORRÊA , Antenor. Indígenas em contexto urbano e identidade: uma


colaboração artística com os Wapichana - Universidade de Brasília (UnB). Indígenas em
contexto urbano e identidade:: uma colaboração artística com os Wapichana, Periódicos
UFRN, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/article/view/25417/
15012. Acesso em: 28 out. 2022.

Jerônimo Rodrigues: Bahia elege primeiro governador indígena do país. Brasil de


Fato,2022.Disponível em: <https://www.brasildefatoba.com.br/2022/10/30/jeronimo-rodrigu
es-bahia-elege-primeiro-governador-indigena-do-pais>. Acesso em: 31 de Out.2022

JERÔNIMO Rodrigues (PT) é o novo governador da Bahia. Tribunal Superior Eleitoral


, Tribunal Superior Eleitoral, p. 1-1, 30 out. 2022.

MONTEIRO DE BARROS, Duda. Deputado Rodrigo Amorim intimida aldeia e indíge-


nas reagem. Revista Veja,2022. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/coluna/virou-viral/
deputado-rodrigo-amorim-ameaca-aldeia-e-indigenas-reagem/>. Acesso em 19 de nov, de
2022.

PACHECO DE ANDRADE, C. M.; PACHECO DE ANDRADE, A. C. Por uma narrativa


do reencantamento: A poética do não esquecimento de Ailton Krenak e Daniel Munduruku.
Revista Légua & Meia, [S. l.], v. 12, n. 2, p. 64–83, 2022. DOI: 10.13102/lm.v12i2.7743.
Disponível em: http://periodicos.uefs.br/index.php/leguaEmeia/article/view/7743. Acesso
em: 3 nov. 2022.

REPRESENTAÇÕES Sociais do “Ser Indígena”: Uma Análise a Partir do Não Indí-


gena. Revista Scielo: Psicologia - Ciência e Profissão, [s. l.], 26 set. 2021.

SAÚDE mental em contextos indígenas:: Escassez de pesquisas brasileiras, invisibi-


lidade das diferenças. Estudos de Psicologia, Revista Scielo, 2016. Disponível em: https://w
ww.scielo.br/j/epsic/a/8cWScCRZNYFkrbQw5LkwBTB/?lang=pt. Acesso em: 2 nov. 2022.

Você também pode gostar