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DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Volta Redonda
2022
JESSICA FERREIRA DE LIMA
Volta Redonda
2022
Ficha catalográfica automática - SDC/BAVR
Gerada com informações fornecidas pelo autor
CDD - XXX
Agradeço imensamente aos caríssimos amigos Juliana Sampaio, Camila Duarte, Ra-
nielly Magno, Caike Ferreira e Kandú Puri; pelas valiosas trocas de ideias que alimentaram
este trabalho e nossos anos de amizade. Aos amigos que aqui não estão citados, não se
faz menor a importância de suas passagens pela minha vida, apenas me faltam linhas e me
sobra o receio de ser injusta.
Ao Lucas, meu amor e companheiro, que esteve comigo durante o percurso deste
trabalho, dividindo as alegrias, alívios e incômodos que este trabalho me trouxe.
Ao meu orientador Roberto de Oliveira Preu, pelo direcionamento e paciência.
À toda a Aldeia Maracanã, em especial ao Cacique José Urutau Guajajara e à Cacica
Potyra Krikati; ao Coletivo dos Estudantes Indígenas da UFF por me apoiar tanto e sempre
somar forças.
À minha família de São Paulo, minhas tias Jaqueline, Angela, Angelina; meus tios
José Aparecido e Paulo. Meu primos Bruno e Bruna e minha irmã Sheila. Um agradecimento
especial ao meu tio Ricardo, que não pôde estar presente para ver esse trabalho acontecer,
mas que sempre me apoiou muito de todas as formas possíveis para ele e que certamente
estaria muito orgulhoso de mim.
Este trabalho é por mim e pelos meus ancestrais; por todos aqueles que não puderam
falar, por todos os que virão e por todos os que aqui estão.
“O governo não irá nos dividir!”
Recently there has been much discussion about the indigenous people. The most
visible discussions are about the demarcation of indigenous lands and the preservation of
territories and cultures of indigenous people. With the frequent attacks arising from illegal
mining on indigenous lands, soil contamination as a result of this practice and the violence
brought by prospectors to the traditional communities of these people, another issue came
to the fore: the mental health of indigenous people.
In this research, I will deal with the mental health conditions of indigenous people
when faced with living with non-indigenous people. More specifically, I will deal with the
mental health of the indigenous population in the urban context and what are the contributions
and challenges of psychology in dealing with this specific portion of the Brazilian population.
Keywords: Psychology, Mental Health, Indigenous, Urban Context.
Sumário
1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
2 Metodologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
9 Considerações finais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
10 Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
8
1 Introdução
O presente trabalho tem como objetivo analisar quais são os elementos cotidianos
causadores de adoecimento psíquico nas pessoas indígenas na urbanização bem como os
elementos promotores de saúde; a problemática da falta de acesso dos povos indígenas
em contexto urbano à saúde pública, e o negligenciamento do Estado Brasileiro para com
essa população.
Para tal, apresentarei a histórica relação de violência da sociedade brasileira e seu
governo para com os povos indígenas, atravessando também a forma de funcionamento
de dispositivos públicos como o SUS, a Sesai e o Sasisus, passando pela Casa do Índio
— primeiro dispositivo voltado para a saúde indígena — e chegando, por fim, ao cerne da
pesquisa:
De que forma é possível a psicologia contribuir para a promoção de saúde dessa
parcela da população sem que seja mais um agente de violência? Qual a forma de atuação
da psicologia na lida com a saúde mental das pessoas indígenas em contexto urbano?
2 Metodologia
O trabalho adiante toma como princípio o trabalho realizado pela ABIPSI (Articulação
Brasileira de Indígenas Psicológos).
Enquanto militante da questão indígena e autora deste trabalho, trago a termo
estas discussões enquanto mulher indígena do povo Xavante e com história pregressa na
questão indígena no contexto da urbanização. Assim sendo, em determinadas ocasiões,
farei afirmações em primeira pessoa, pois me vejo implicada no contexto do trabalho e das
causas abordadas. Trata-se de um exercício que tem origem na militância de psicólogos
indígenas em apontar as controvérsias, limitações e desafios da psicologia no processo
de construção de uma psicologia essencialmente indígena, sobre o cuidado de pessoas
indígenas. Chamo a atenção para o fato de que, apesar do esforço em se manter numa
linha epistemológica essencialmente indígena, me vi forçada a me submeter ao modelo de
análise institucional enquanto modelo validado pela academia.
Me atendo a isso, determino três casos analisadores. O primeiro, sobre o gover-
nador recém eleito no estado da Bahia, Jerônimo Rodrigues, está relacionado à questão
da autodeterminação de pessoas indígenas e à sua implicação relacionada às políticas
públicas; O segundo caso analisador está centralizado no percurso histórico de violência
das políticas nacionais em relação aos povos indígenas, cujo trabalho se aproximou do
esforço pelo apagamento da história dos nossos povos. Assim, demarco a Casa do Índio
enquanto instituição — por ter sido a primeira e por resistir até os dias de hoje —, importante
analisador na transversal do tempo.
Por fim, o terceiro caso analisador se debruça sobre a aldeia em contexto urbano
na segunda maior capital estadual, demograficamente, do Brasil, a aldeia Maracanã (pela
grafia original do Zen’gnte, “Maraka’nà”. Idioma da etnia Guajajara) abordando as questões
que se referem às problemáticas do indígena na sua aproximação com o não-indígena no
contexto urbano, especificamente.
Portanto, após tratar das dimensões que compõem a realidade do indígena no
contexto urbano, nos atravessamentos expostos pelos analisadores, exprimo quais as
fronteiras nas quais a psicologia se encontra ao abordar as questões dos indígenas no
território determinado como Brasil. E, assim, em diálogo com os psicólogos indígenas que
estão construindo essa forma de conceber a psicologia, sugiro as estratégias; desafios e
caminhos pelos quais a psicologia pode se aproximar das formas de existência de nós,
pessoas indígenas, nos diferentes contextos possíveis de existência, sem nos violentar —
primeiramente —, mas, também construindo uma psicologia “pintada de jenipapo e urucum”
(ABIPSI, 2022).
10
A figura que permeia o imaginário popular quando falamos de povos indígenas ainda
é a figura do índio. O índio, que vive nu na mata, tem o cabelo liso e escuro, pele marrom e
olhos puxados, fala Tupi, adora Tupã, é ingênuo, deixa-se enganar facilmente e que não
é passível de progredir nem em suas formas de organização, nem enquanto indivíduo. O
índio não é um ser pensante, não é um ser político, o índio nada mais é do que um animal
na forma humana. O índio, como acabo de descrever, não existe. Mas essa ainda é a forma
que pessoas não-indígenas vêem as pessoas indígenas. Como meros selvagens, ingênuos,
símbolos do atraso. Partindo dessa visão preconceituosa e irrealista, nos tomam os direitos
mais básicos e nos colocam sob tutela; se não do Estado, da sociedade não-indígena.
Estando sob constante tutela, nos tomam o direito à autonomia. O direito de expressar
nossas culturas, nossa fé e de decidir sobre nós mesmos. O exemplo claro que trago dessa
tutelagem é a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Organização criada, teoricamente, para
proteger e garantir os direitos dos povos indígenas, porém, o que acontece é o total oposto
de proteção e garantia de direitos. A Fundação Nacional do Índio é um órgão gerido por
pessoas não-indígenas, que decidem sobre os povos indígenas sem consultá-los.
Tomo como exemplo o Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI),
documento fornecido pela FUNAI a pessoas indígenas nascidas em terras demarcadas e
utilizado como meio de identificação dessas pessoas.
Instituído pela Lei do Índio (Lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973), o Registro
Administrativo de Nascimento Indígena somente é fornecido se a pessoa ou povo indígena
estiver dentro das 270 etnias reconhecidas pelo órgão e desde que tenham nascido em
terras demarcadas. O direito a ter o nome indígena no registro civil, escolhido segundo as
tradições de cada povo, só é concedido aos indígenas portadores do RANI. Este funciona
como espécie de outorga do governo brasileiro para que pessoas indígenas possam ser
reconhecidas como tal pela sociedade não-indígena.
Atualmente somos mais de 305 povos indígenas em solo brasileiro. Desses mais de
305 povos, somente 270 têm seus direitos preservados através do documento — segundo
dados do ano de 2013 da página eletrônica da Fundação Nacional do Índio. Portanto, cerca
de 35 povos não têm seus direitos garantidos e respeitados nem mesmo pelo órgão que
deveria protegê-los.
A questão da estereotipização da figura do indígena acarreta em diversas formas de
violência. A política de desestruturação das formas tradicionais de organização dos povos
indígenas teve início com a invasão portuguesa em 1500 com o extermínio de centenas
de povos, línguas e culturas como um todo. A violência cometida pelos portugueses contra
os povos originários teria por finalidade a “civilização” das pessoas indígenas, por meio
da catequização e “docilização” das mesmas. Desde então, a sociedade brasileira vem
acompanhando esse movimento de apagamento dos povos indígenas promovido de todas
Capítulo 3. A figura folclórica do índio e o ser indígena 11
psíquico, uma vez que nos vêem como menos indígenas por não sermos a figura folclórica
que fala Tupi, adora Tupã e vive ou viveu parte da vida nu na mata.
Podemos compreender o processo de desumanização do indígena e de apagamento
de sua identidade como sendo ferramentas muito úteis para o não-indígena, pois com base
nos processos de invisibilização ou de tutelagem se torna mais fácil o roubo de terras, por
exemplo. Afinal, se o índio não existe, não há quem reivindique suas terras. E existindo
como o índio, é incapaz de cuidar da manutenção de suas terras e cultura.
De acordo com Itaynara Tuxá, Psicóloga indígena membro da Articulação Brasileira
de Indígenas Psicólogos (ABIPSI), em seu texto Territorialidade e Subjetividade: Um ca-
minho de retomada do ser, compreendemos a importância da manutenção dos territórios
indígenas e seu impacto direto e indireto na saúde dos povos indígenas no trecho:
Ainda sobre a luta pelo direito à manutenção das culturas e terras indígenas, não
podemos deixar de lembrar que foi somente com a aprovação da Constituição de 1988
que os povos indígenas conseguiram a aprovação da emenda que incluiu um capítulo
na Constituição para tratar exclusivamente de seus direitos. Essa conquista se deu após
o discurso emblemático de Ailton Krenak na votação da constituinte, no ano anterior. O
movimento pelos direitos dos indígenas ocorreu no bojo de um movimento social mais amplo,
de lutas pelas eleições diretas e pela democracia, e contou com o apoio da Associação
Brasileira de Imprensa (ABI), da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), entre outras.
Ailton protagonizou uma das cenas mais importantes para o movimento de luta pelos direitos
dos povos indígenas quando subiu na tribuna pintando o rosto com jenipapo — símbolo
de luto do povo Krenak — durante a assembleia da constituinte, e realizou o discurso que
traria luz à questão indígena no âmbito político.
Nesse momento peço licença ao leitor para reproduzir aqui o longo discurso de
Capítulo 3. A figura folclórica do índio e o ser indígena 13
Ailton Krenak na votação da constituinte. É de extrema importância trazê-lo para que o leitor
possa ter plena compreensão do impacto das palavras de Ailton na votação da emenda que
incluiria um capítulo que trataria dos direitos dos povos indígenas na Constituição Federal
de 1988.
O discurso de Ailton Krenak que impactaria a votação da constituinte trazia as
seguintes reflexões:
“Sr. Presidente, Srs. Constituintes, eu, com a responsabilidade de, nesta ocasião,
fazer a defesa de uma proposta das populações indígenas à Assembleia Nacio-
nal Constituinte, havia decidido, inicialmente, não fazer uso da palavra, mas de
utilizar parte do tempo que me é garantido para defesa de nossa proposta numa
manifestação de cultura com o significado de indignação – e que pode expressar
também luto – pelas insistentes agressões que o povo indígena tem indiretamente
sofrido pela falsa polêmica que se estabeleceu em torno dos direitos fundamen-
tais do povo indígena e que, embora não estejam sendo colocados diretamente
contra o povo indígena, visam atingir gravemente os direitos fundamentais de
nosso povo. Não estamos chegando agora a esta Casa. Tivemos a honra de,
desde a instalação dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, sermos
convidados a participar dos trabalhos na Subcomissão dos Negros, Populações
Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Essa Subcomissão teve a competência
de tratar da questão indígena e, mais tarde, tivemos também a oportunidade de
participar da instalação dos trabalhos da Comissão da Ordem Social. Ao longo
desse período, a seriedade com que trabalhamos e a reciprocidade de muitos
dos Srs. Constituintes permitiram a construção, a elaboração de um texto que
provavelmente tenha sido o mais avançado que este país já produziu com relação
aos direitos do povo indígena. Esse texto procurou apontar para aquilo que é de
mais essencial para garantir a vida do povo indígena. E muitas das pessoas que
estiveram envolvidas nesse processo de discussão aqui, na Assembléia Nacional
Constituinte, se sensibilizaram a ponto de levar além dos limites das paredes desta
Casa o trabalho relativo aos direitos indígenas, como foi na visita à área dos índios
Caiapó, no Gorotire. Ouvindo ali, e tirando a impressão dos índios que estavam
na aldeia acerca do que sentem, do 2 que desejam para si, das inquietações que
nós, indígenas, colocamos no sentido de ter um futuro, no sentido de ter uma
perspectiva. Assegurar para as populações indígenas o reconhecimento aos seus
direitos originários às terras em que habitam – e atentem bem para o que digo: não
estamos reivindicando nem reclamando qualquer parte de nada que não nos cabe
legitimamente e de que não esteja sob os pés do povo indígena, sob o habitat, nas
áreas de ocupação cultural, histórica e tradicional do povo indígena. Assegurar
isto, reconhecer às populações indígenas as suas formas de manifestar a sua
cultura, a sua tradição, se colocam como condições fundamentais para que o povo
indígena estabeleça relações harmoniosas com a sociedade nacional, para que
haja realmente uma perspectiva de futuro de vida para o povo indígena, e não de
uma ameaça permanente e incessante. Os trabalhos que foram feitos até resultar
no primeiro anteprojeto da Constituição significaram lançar uma luz na estupidez
e no breu que tem sido a relação histórica do Estado com as necessidades indí-
genas. Avançou no sentido de avançar a perspectiva de um futuro para o povo
indígena. E, neste momento, insisto; eu havia optado mesmo por estar aqui e
à semelhança da manifestação de luto pela perda. seja de um parente, seja da
solidariedade, seja de um amigo e, sobretudo, pela perda de um respeito que o
nosso trabalho aqui dentro construído, o respeito que tivemos para com esta Casa
e que pudemos identificar também nas pessoas que se sensibilizaram com essa
questão. Queremos manifestar a nossa indignação com os ataques que estamos
sofrendo e alertar esta Casa de que ainda somos os interlocutores dos Srs., e que
não confundam uma eventual campanha e possíveis agressões ao povo indígena
com polêmicas que são construídas à nossa revelia. Os Srs. sabem, V. Exas.
Capítulo 3. A figura folclórica do índio e o ser indígena 14
sabem que o povo indígena está muito distante de poder influenciar a maneira
que estão sugerindo os destinos do Brasil. Pelo contrário. Somos talvez a parcela
mais frágil nesse processo de luta de interesses que se tem manifestado extrema-
mente brutal, extremamente desrespeitosa, extremamente aética. Eu espero não
agredir com a minha manifestação o protocolo desta casa. Mas eu acredito que os
senhores não poderão ficar omissos, os senhores não terão como ficar alheios a
mais essa agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância
do que significa ser um povo indígena. 3 O povo indígena tem um jeito de pensar,
tem um jeito de viver. Tem condições fundamentais para sua existência e para a
manifestação da sua tradição, da sua vida e da sua cultura que não coloca em
risco e nunca colocaram a existência sequer dos animais que vivem ao redor das
áreas indígenas, quanto mais de outros seres humanos. Eu creio que nenhum
dos senhores nunca poderia apontar atos, atitudes da gente indígena do Brasil
que colocaram em risco seja a vida, seja o patrimônio de qualquer pessoa, de
qualquer grupo humano nesse país. E hoje nós somos alvo de uma agressão que
pretende atingir na essência a nossa fé, a nossa confiança de que ainda existe
dignidade, de que ainda é possível construir uma sociedade que sabe respeitar os
mais fracos, que sabe respeitar aqueles que não têm o dinheiro para manter uma
campanha incessante de difamação. Que saiba respeitar um povo que sempre
viveu à revelia de todas as riquezas. Um povo que habita casas cobertas de palha,
que dorme em esteiras no chão, não deve ser identificado de jeito nenhum como
um povo que é inimigo dos interesses do Brasil, inimigo dos interesses da nação, e
que coloca em risco qualquer desenvolvimento. O povo indígena tem regado com
sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil. E os
senhores são testemunhas disso. Eu agradeço a presidência desta casa, agradeço
os senhores e espero não ter agredido com as minhas palavras os sentimentos
dos senhores que se encontram nesta casa.”
Após esse discurso aconteceu a votação onde foi aprovada a emenda que incluía,
na Constituição de 1988, um capítulo que trata exclusivamente dos direitos dos povos
indígenas.
Neste capítulo vimos quais são as diferenças entre a problemática figura folclórica
do índio e o que é de fato o ser indígena. Pudemos compreender com essa análise que
a manutenção da figura do índio é interessante no aspecto político para que o Estado
brasileiro permaneça isentando-se de sua responsabilidade em fazer cumprir os direitos dos
povos indígenas de forma plena e satisfatória para essa parcela da população. Ao Estado
interessa a manutenção da tutelagem dos povos indígenas, manipulando seus direitos
de acordo com os interesses políticos do Estado, e não de acordo com as necessidades
desses povos. Mantendo-nos, assim, sempre à sombra de um passado distante.
Partindo dessa explicação, trataremos no capítulo seguinte do porquê as pessoas
indígenas em contexto urbano não são compreendidas como cidadãs de direito.
15
Em 1982 foi criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) o Grupo de Trabalho
sobre Populações Indígenas após o estudo pioneiro na ONU — realizado entre a década de
1970 e 1980 pelo relator José Martínez Cobo — fornecer informações significativas acerca
da situação dos povos indígenas do mundo. A Declaração da ONU sobre os Direitos dos
Povos Indígenas foi um dos frutos desse Grupo de Trabalho. Desde o ano de 1985 a Orga-
nização das Nações Unidas vem trabalhando no sentido de estabelecer uma declaração
sobre os direitos dos povos indígenas em conformidade com os governos, representantes
indígenas e sociedade civil.
Em 13 de Setembro de 2007, após 22 anos, a Declaração dos Direitos dos Povos
Indígenas foi aprovada pela ONU na Comissão de Direitos Humanos. No texto da Declaração
constam princípios como o da igualdade de direitos, proibição da discriminação e também o
princípio da autodeterminação dos povos indígenas.
A Declaração reflete um conjunto de reivindicações dos povos indígenas de todo
o mundo pela melhoria de suas relações com os Estados. Diferente do que sugere a
Declaração, hoje no Brasil não são respeitados os direitos básicos de cidadania das pessoas
indígenas. Podemos tomar como exemplo o respeito à identidade indígena.
No Artigo 2 da Declaração da Organização das Nações Unidas sobre o Direito dos
Povos Indígenas está o princípio da igualdade, que determina que todos os povos e pessoas
indígenas são iguais a todos os demais povos e têm direito de não serem discriminadas em
sua identidade e origem, como vemos a seguir:
“Art.2 Os povos e as pessoas indígenas são livres e iguais a todos os demais
povos e pessoas e têm o direito a não ser objeto de nenhuma discriminação no
exercício de seus direitos fundado, em particular, em sua origem ou identidade
indígena” (Declaração da Onu sobre os Direito dos Povos Indígenas, p. 3, artigo 2)
No entanto, essa recomendação não é respeitada nem pelo Estado, nem pela so-
ciedade. Continuamos assistindo diariamente a discriminação das pessoas indígenas por
causa de sua origem; e o apagamento de suas identidades. Tomarei como exemplo de des-
respeito para com a identidade indígena e de discriminação, o caso da eleição de Jerônimo
Rodrigues, candidato ao governo do estado da Bahia pelo Partido dos Trabalhadores nas
eleições de 2022.
De acordo com a matéria publicada no jornal eletrônico Brasil de Fato (2022), Jerô-
nimo Rodrigues é natural de Aiquara (BA), tem 57 anos e foi eleito governador do estado da
Bahia em 30 de Outubro de 2022. Jerônimo se declara indígena e tem o reconhecimento de
sua etnia como tal. Após o resultado da apuração das urnas, levantou-se nas redes sociais
a questão da autodeclaração de Jerônimo. Enquanto pessoas indígenas comemoravam a
eleição do primeiro indígena governador do estado da Bahia, não-indígenas questionavam
a autenticidade da identidade indígena de Jerônimo, alegando que este seria “mestiço de
Capítulo 4. A Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos povos indígenas e o
respeito ao processo de autodeclaração.
16
negro com índio”, como citou a jornalista Cynara Menezes em um post em seu perfil em
uma rede social.
Devido ao alto alcance da jornalista, ex-colunista de grandes veículos de comuni-
cação como o jornal Folha de São Paulo, Revista Veja e Carta Capital, a publicação teve
grande repercussão nas redes. A partir daí, levantou-se, por pessoas não-indígenas, a
questão da validade da autodeclaração. Não-indígenas defendiam que Jerônimo, por não
descender de pai e mãe indígenas, era somente “mestiço”. Deslegitimando, assim, sua
identidade e seu processo de autodeclaração. É com base nessa visão purista, equivocada
e preconceituosa que pessoas não-indígenas nos discriminam em nossa origem e identi-
dade. No imaginário popular, somente pode ser indígena aquele que descender de pai e
mãe indígenas, viver em uma aldeia e preservar a imagem folclórica do índio. Mais uma
vez nos deparamos com o esforço do não-indígena para deslegitimar nossas identidades e
preservar a figura folclórica do índio.
Como vimos anteriormente, dos mais de 305 povos somente 270 são reconhecidos
pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Assim sendo, 35 povos ou mais não têm o
reconhecimento da FUNAI e, por consequência, não têm acesso aos documentos que a
Fundação disponibiliza para pessoas indígenas de povos reconhecidos e em terras devi-
damente demarcadas. Documentos como o RANI (Registro Administrativo de Nascimento
Indígena) garantem o acesso à saúde indígena e às vagas do sistema de cotas etnico-
raciais reservadas para pessoas indígenas em concursos públicos, vestibulares e etc. Esse
não reconhecimento acarreta em ausência de meios legais para que essas pessoas indí-
genas tenham acesso aos serviços e direitos básicos tendo respeitadas suas identidades.
Além de negar direitos básicos por via da burocracia de que dispõe o processo legal de
reconhecimento dos povos, essa prática fere o princípio da autodeterminação, garantido
pela Constituição Federal de 1988 e pela Declaração da Organização das Nações Unidas
sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Dentro do princípio de autodeterminação dos povos indígenas está compreendido
o direito à autonomia nas questões relacionadas à assuntos internos dos povos, como a
autodeclaração. A autodeclaração é o processo de reconhecimento que cada povo, de
acordo com suas regras e costumes, utiliza para identificar, definir, e formalizar quem
é indígena e quem não é. O processo de autodeclaração é realizado de acordo com as
tradições de cada povo, em conjunto com as demais pessoas de cada etnia, além da pessoa
que deseja esse reconhecimento. Esse é um processo que depende única e exclusivamente
do coletivo de pessoas indígenas de cada povo para que o reconhecimento de uma pessoa
indígena seja válido. Não necessita de validação de pessoas não-indígenas ou da validação
de órgãos geridos por pessoas não-indígenas que, geralmente, desconhecem as formas de
organização política de cada povo. Como é o caso da FUNAI.
Na Constituição Federal de 1988 está assegurado o direito à autodeterminação dos
povos e pessoas indígenas no artigo 4 inciso III, parágrafo único, que diz:
“Art. 4.º
A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos
seguintes princípios:
III - autodeterminação dos povos; Parágrafo único.
A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social
Capítulo 4. A Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos povos indígenas e o
respeito ao processo de autodeclaração.
18
e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade
latinoamericana de nações.”
Na Declaração das Nações Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas, o trecho
que trata da autodeterminação dos povos está dividido em dois parágrafos, nos artigos 3 e
4; e são eles:
“Art. 3
Os povos indígenas têm direito à livre determinação. Em virtude desse direito,
determinam livremente a sua condição política e perseguem livremente seu de-
senvolvimento econômico, social e cultural.
Art. 4
Os povos indígenas no exercício do seu direito à livre determinação, têm direito
à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas com seus assuntos
internos e locais, assim como os meios para financiar suas funções autônomas.“
A Declaração Universal dos Direitos Humanos versa sobre o acesso à saúde ser
um direito básico de todas as pessoas (Art. 25.1). A partir disso, proponho uma reflexão a
respeito do que constitui um indivíduo no que tange o social. Seriam as pessoas indígenas
em contexto urbano e em contextos diferentes do de aldeamento em terras demarcadas
sujeitos de menos direitos, logo, menos humanas, do que as demais pessoas? Por qual
razão esse direito, assegurado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela
própria Constituição Federal de 1988, não se aplica, na prática, às pessoas indígenas na
urbanização e em terras não demarcadas?
Trago como exemplo claro do descaso com pessoas indígenas em contexto urbano
e residentes em terras não demarcadas um caso ocorrido em meados de Março de 2022,
na Aldeia Maracanã.
Os indígenas residentes da Aldeia Maracanã, localizada na cidade do Rio de Janeiro,
imediatamente ao lado do Estádio do Maracanã, se depararam com um surto de vômito e
disenteria entre os residentes da aldeia. Não tendo o Registro Administrativo de Nascimento
Indígena, pois são indígenas que, em sua maioria, nasceram e cresceram em contexto
urbano e residem em uma terra não demarcada, não tiveram acesso ao atendimento no
sistema público de saúde (SUS) de forma a terem suas identidades indígenas respeitadas.
Para conseguirem ter acesso ao atendimento por via do SUS (Sistema Único de
Saúde), seria necessário abdicar de suas identidades indígenas para serem enquadradas
nesse sistema como pessoas não-indígenas. Os indígenas residentes da Aldeia Maracanã,
não tiveram, portanto, acesso à saúde pública para o tratamento de sua condição de saúde.
O que fere o artigo 196 da Constituição Federal de 1988, que dispõe que a saúde é um
Capítulo 5. A Funai, o SUS e a Sesai como instrumento de violência e marginalização das pessoas indígenas
em contexto urbano e em terras não demarcadas. 21
Vimos neste capítulo como opera o descaso dos órgãos do governo que deveriam
cuidar e promover saúde à população indígena do país. Nessa análise, entendemos que
o apagamento sistemático de pessoas indígenas dentro de órgãos teoricamente voltados
para a atenção à saúde indígena — sobretudo no campo da saúde mental — não é
despropositado. Esse apagamento, como pudemos verificar neste capítulo e nos capítulos
anteriores, servem a interesses políticos maiores do que a manutenção da vida, preservação
de saúde e identidade, e do acesso de pessoas indígenas à direitos básicos. O sistema
de apagamento de pessoas e populações indígenas inteiras visa varrer da história do país
as violências e atrocidades cometidas pelo próprio Estado brasileiro contra a população
indígena.
23
em levar saneamento básico até a aldeia, fazendo com que as pessoas que ali residem
enfrentem dificuldades em dias mais frios, por exemplo, por não disporem de água potável
e energia elétrica para o aquecimento da água utilizada para banhos. A água utilizada
no preparo dos alimentos para a aldeia é comprada em supermercados próximos pelos
indígenas habitantes do local.
Ainda de acordo com as informações obtidas na conversa com as lideranças da
aldeia Maracanã, a ausência de saneamento básico e de atenção à saúde das pessoas
daquele espaço resultou em um surto de vômito e disenteria em meados de Março de
2022, quando, ao não conseguirem acesso ao sistema público de saúde tendo respeitadas
suas identidades, os indígenas da Aldeia Maracanã não tiveram acesso à tratamento de
sua condição de saúde, o que refletiu em um processo de adoecimento de um por um
dos indígenas residentes da aldeia. Além dessas dificuldades, os residentes da Aldeia
Maracanã ainda precisam enfrentar tentativas de despejo diversas por parte do governo do
estado do Rio, que não reconhece o espaço como uma aldeia legítima, como um espaço
comunitário de troca e de preservação de vivências e culturas das pessoas de diferentes
etnias indígenas que ali residem. Um bom exemplo de violência contra aquele espaço é o
episódio ocorrido em 5 de Agosto de 2022 — que veremos mais adiante — protagonizado
pelo deputado estadual Rodrigo Amorim, de acordo com informações trazidas pela matéria
publicada em agosto de 2022 pela Revista Veja.
Rodrigo Amorim é conhecido por sua conduta violenta contra grupos minoritários
e uma de suas frases mais marcantes nesse sentido foi proferida no ano de 2019, contra
a Aldeia Maracanã. O deputado afirmou que a Aldeia é um “lixo urbano, que necessita de
uma faxina no local para restaurar a ordem”. Rodrigo defende que o local seja desocupado
para que ali possa ser construído um estacionamento para o Estádio do Maracanã ou até
mesmo um shopping center.
No dia 5 de Agosto de 2022, o deputado convocou, através de suas redes sociais,
uma motociata em apoio ao, até então presidente, Jair Bolsonaro, e o ponto de partida da
motociata seria a Aldeia Maracanã, em mais uma tentativa de incitar o ódio de seus aliados
contra a aldeia e de intimidar os indígenas daquele espaço. Após o comunicado da motociata,
os indígenas da aldeia se mobilizaram e pediram ajuda da população para proteger a
integridade física de seus residentes e também para impedir que qualquer tentativa de
invasão à aldeia pelos convocados de Rodrigo Amorim acontecesse. A aldeia teve seu
pedido atendido e no dia da motociata estiveram no local estudantes das universidades da
cidade e outros apoiadores. O número de apoiadores da aldeia no dia do evento foi maior
do que o número de adeptos da motociata e, graças a isso, nenhum tipo de violência física
contra os indígenas da Aldeia Maracanã aconteceu, nem a invasão do espaço.
Como se não bastasse todas essas violências cotidianas que a Aldeia sofre, em dias
que ocorrem, no Estádio do Maracanã, jogos de futebol mais expressivos — os chamados
Capítulo 6. A Aldeia Maracanã como território de resistência dos povos indígenas em contexto urbano na
cidade do Rio de Janeiro 25
Nos capítulos anteriores tratamos sobre algumas das questões que causam adoeci-
mento psíquico às pessoas indígenas no contexto da urbanização. Falaremos agora sobre
os efeitos causados na saúde mental de pessoas indígenas em decorrência das inúmeras
violências a que estas estão expostas.
Nos últimos anos vimos crescer e ganhar visibilidade nos meios de comunicação a
questão dos indígenas em contexto urbano, o que, ao mesmo tempo que se faz necessário,
causa adoecimento. Principalmente nos últimos meses, em decorrência do processo eleitoral
que tirou do poder um presidente que fazia declarações contra indígenas; incitava o ódio
da população contra os mesmos; e abria a porta para a exploração do garimpo ilegal em
terras indígenas, causando muitos conflitos e mortes. Durante o processo eleitoral que tirou
do poder Jair Bolsonaro e elegeu Luiz Inácio Lula da Silva presidente, a questão indígena
ganhou força por conta da eleição de alguns candidatos indígenas e da criação do Ministério
dos Povos Originários, a ser consolidada no ano de 2023 com a posse do novo presidente.
Com tudo isso, veio à tona, também, a questão do indígena em contexto urbano,
trazendo consigo outra vez o reforçamento do estereótipo indígena e da figura folclórica do
índio. Com a população dividida pelo processo eleitoral e pelos anos de incitação do ódio
contra indígenas, pessoas indígenas na urbanização que antes não eram percebidas como
tal, passaram a ser vistas e ainda mais hostilizadas. Essas pessoas tiveram, mais uma vez,
suas identidades questionadas simplesmente por morarem na cidade. Pessoas indígenas
residentes no contexto urbano e em processo de retomada de suas raízes, principalmente.
Os processos de retomada das identidades indígenas são, geralmente, muito delica-
dos pois afetam diretamente a ideia que se tinha antes sobre a própria identidade e tem
grande potencial de afetar a saúde mental dessas pessoas, que agora precisam realizar um
esforço no sentido de compreender qual a sua origem e qual será, a partir de então, sua
identidade e seu papel no âmbito social.
Costuma ser um fardo muito pesado e uma cobrança social e autocobrança ainda
maiores para pessoas indígenas na urbanização a experiência de habitar e transitar nos
mesmos espaços que não-indígenas. Geralmente as violências cotidianas se dão, sobretudo,
em razão de esses ambientes serem construídos e habitados por e para não-indígenas e,
portanto, não estarem preparados para lidar com indígenas e suas questões, por muitas
vezes, delicadas, como a autodeclaração, o acesso que muitos não têm à língua de seu
povo, etc.
Constantemente o indígena na urbanização se vê cobrado por não-indígenas para
se enquadrar na figura que habita o imaginário popular quando falamos sobre pessoas
indígenas, o que acarreta em muito sofrimento. Seja em função de não serem vistos
como seres humanos em essência, seja por questionarem, por muitas vezes, sua própria
Capítulo 7. A saúde mental das pessoas indígenas na urbanização. 27
Ao longo deste trabalho vimos quais são os problemas enfrentados por pessoas e
povos indígenas que habitam o contexto urbano, conhecemos como operam alguns setores
da sociedade brasileira e alguns órgãos governamentais para a manutenção e perpetuação
das diversas violências cometidas contra pessoas indígenas residentes nesse contexto e
quais são os impactos dessas violências na saúde física e, principalmente, mental dessa
parcela específica da população brasileira.
Trataremos, neste capítulo, da importância e das contribuições da Psicologia na
restauração da saúde mental de indígenas na urbanização, no combate a essas violências
e na preservação da saúde mental desses indivíduos.
9 Considerações finais.
10 Referências
DECLARAÇÃO das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas: Sexagé-
simo período de sessões Tema 68 do Programa Informe do Conselho dos Direitos Humanos.
Revista Povos Indígenas do Brasil, pib.socioambiental.org, 13 set. 2007.