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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ADOLESCÊNCIA E VIOLÊNCIA: ​JUÍZO​ E NOMEAÇÃO NA


TRAJETÓRIA PELO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO

ANA LEITE LIMA

ANA LUISA SANDERS

IAGO COUTO

LUCAS ARNON

LUCAS FENATI

PEDRO IVO

BELO HORIZONTE

2019
A experiência de adolescentes em conflito com a lei aponta como, para a maioria
deles, o entrelaçamento entre a vida e a morte marca suas subjetividades para além de suas
trajetórias pelo sistema socioeducativo. Antes, depois e durante a passagem desses
adolescentes pelo sistema, o risco real de viver e morrer é colocado diante deles. Segundo os
dados apresentados pelo Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA) e pelo UNICEF, a cada 23 minutos um jovem negro de 15 a 29 anos é assassinado no
país. Para além do encontro trágico com a morte real, a vida desses adolescentes mostra que
há diferentes modos do risco de morrer se apresentar, “seja através da morte política desses
sujeitos, da perda da liberdade, do corpo lesado ou do encontro trágico com a morte real”
(CARDOSO, 2019).

Observa-se que o cumprimento das medidas socioeducativas se trata de mais um


encontro com o Outro, neste caso institucional, na vida desses adolescentes - muitas vezes,
em situação de vulnerabilidade social, de rompimento com os laços familiares e de ameaça
cotidiana da existência de seus corpos negros na cidade - que reforçam seus lugares e nomes
em relação ao laço social e seus desdobramentos pelos processos de segregação e exclusão e
seus efeitos. Assim, as trajetórias dos adolescentes por instituições socioprotetivas e
socioeducativas, como Unidades de Acolhimento, Centros Socioeducativos e Casas de
Semiliberdade são fortes marcadores das nomeações dadas pelo social que “apontam muitas
vezes para a adesão de um destino trágico” (CARDOSO, 2019).

Ao considerar os ritos processuais previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente


(BRASIL, 1990), é garantido ao adolescente o “direito de ser ouvido pessoalmente pela
autoridade competente”, que se realiza pelo desdobramento do artigo que prevê a audiência
socioeducativa: “Comparecendo o adolescente, seus pais ou responsável, a autoridade
judiciária procederá à oitiva dos mesmos, podendo solicitar opinião de profissional
qualificado”. É neste momento do processo institucional, em que se destaca a
imprescindibilidade de que as vozes dos adolescentes sejam ouvidas, mas que se limita
apenas a responder a confirmação do conteúdo dos acontecimentos em torno do ato
infracional escritos nos autos (SANTANA, 2018). Desse modo, a ausência de possibilidade
de se colocarem como sujeitos desejantes, para além das nomeações de “bandido”, “ladrão”,
“perigoso”, produzem efeitos para eles como indivíduos cristalizados “por uma nomeação
social na condição de objeto pelo Ideal que passam os anos sob a tutela do Estado, a
disposição das manipulações do Discurso do Capitalista, sem a implicação necessária em um
sintoma capaz de orientá-los rumo ao seu desejo” (CARDOSO, 2019).

Diante da violência das marcas das nomeações e da experiência de privação de


liberdade, pode-se considerar que estas deixam efeitos no tecido da linguagem, na construção
do laço social, na constituição subjetiva dos adolescentes, no apagamento do sujeito do
inconsciente e do corpo político desses sujeitos. Desse modo, a partir de cenas do
documentário Juízo, este trabalho propõe-se a discutir sobre as violências da incidência do
discurso social comum nos corpos e vidas destes adolescentes sob a perspectiva da
psicanálise lacaniana.

Elege-se o longa-metragem ​Juízo (2007), dirigido por Maria Augusta Ramos, que
apresenta narrativas de audiências socioeducativas realizadas com jovens no Rio de Janeiro
para discutir as dimensões da violência vivenciada pelos adolescentes em relação ao ato
infracional. O documentário se passa em audiências de julgamento reais de oito adolescentes
numa Vara de Justiça do Rio de Janeiro. Devido à proibição da filmagem dos jovens menores
de 18 anos pela legislação brasileira, os adolescentes autores de ato infracional não foram
filmados, assim, tais jovens foram substituídos por outros adolescentes não-autores
habituados às mesmas situações de vulnerabilidade social para que tivessem suas narrativas
encenadas. A escolha do material se deve também por impressionar o nível da autenticidade
violenta nas conduções das audiências que se repercute até os dias de hoje.

Assim, iniciaremos abordando sobre o período da adolescência, no qual os sujeitos


abordados nesta discussão passam, para discutir sobre os desdobramentos da singularidade
dos atos infracionais nos quais eles vivem. Assim, discute-se sobre o histórico das medidas
socioeducativas. E, considerando esse contexto, o tópico seguinte trata da fase processual da
audiência socioeducativa, em articulação com o documentário Juízo. Em sequência,
discorremos sobre a violência das nomeações para pensar sobre as possíveis saídas clínicas
no atual contexto político e o lugar a partir do qual uma intervenção psicanalítica pode
produzir efeitos interessantes.

O que está em jogo no período da “Adolescência”

Em primeiro lugar é preciso esclarecer o que entendemos por “adolescência”, um


termo relativamente recente para dar nome ao período supostamente compreendido entre a
infância e a fase adulta de uma pessoa, e principalmente, o que está em jogo na vida psíquica
do sujeito enquanto se encontra neste momento que é nomeado como um/uma adolescente. É
importante salientar a atenção que a psicologia, como um todo, tem dado ao que é
compreendido como o período da adolescência nas últimas décadas, atualmente fala-se até
mesmo de uma “clínica da adolescência”. Essa nova modalidade clínica da psicologia, junto
com a psiquiatria, contribui consideravelmente para o que se compreende sobre o que é
popularmente chamado de “crises da adolescência”, na maioria das vezes pela via da
patologização.

A popularização do uso de psicofármacos, em qualquer outro período da vida mas


principalmente na adolescência, é talvez o principal reflexo dessa forma de perceber os
comportamentos que não são interessantes do ponto de vista funcional ao modo de vida
capitalista. Como é um momento que precede a fase adulta da vida, há certa urgência em
adequar os sujeitos para se tornarem aptos a responder às responsabilidades que virão a
seguir, tornar cada um capaz de trabalhar e consumir, garantindo assim seu lugar no laço
social contemporâneo. Portanto, a via da patologização e, como consequência, da medicação,
é atualmente a via mais explorada e interessante para o mercado. Além de dar uma solução
aparentemente rápida para o problema, a medicalização é fomentada por uma indústria
bastante criticada atualmente pelo alinhamento com a produção de manuais diagnósticos.
Essa crítica acusa uma lógica que pretende definir os comportamentos que são patológicos e,
justificado pelo discurso da ciência médica, produzir um fármaco específico para cada um
destes comportamentos, aumentando assim demanda por medicamentos e portanto o lucro
destas super indústrias.

A psicanálise ainda parece bastante resistente a medicalização dos corpos, apesar de


ceder em alguns casos, conserva-se em uma posição subversiva quanto a isso, procurando
sempre compreender até que ponto o fármaco se apresenta como uma solução para o próprio
sujeito em oposição a uma solução esperada pelo discurso capitalista que o captura.

Em paralelo à essa discussão, no momento da puberdade há, segundo Lacan,


um encontro com o Real do sexo e uma convocação do sujeito a responder sobre seu próprio
corpo e o que acontece é que:

“As palavras falham em dizer desse surgimento. Pode-se muito bem dizer à
criança: “você está se tornando uma mulher etc.”, mas no momento da emergência
da coisa- quer sejam os sonhos, as transformações do corpo, uma primeira ereção-,
esse efeito de eclosão, que é real, faz com que quaisquer que sejam as palavras que
o outro diz, as palavras que a criança que se torna púbere dispunha, até então, não
correspondem ao que lhe acontece.” (STEVENS, 2004, p. 32)

Ou seja, não há para o ser humano um conhecimento ​a priori do que se faz


com a sexualidade. Tomando os animais como exemplo oposto, percebemos que o instinto é
suficiente para regular o encontro sexual, há um saber sobre o Real já dado pelo instinto.
Mesmo os mais complexos “rituais de acasalamento” são executados com uma certeza
instintual que parece não abrir espaço para uma falha ou uma falta nesse saber. Nos seres
humanos, essa falta de um saber já constituído sobre o que fazer diante do encontro sexual é o
que a teoria compreende como a ​não-relação sexual​: “é a dificuldade de saber o que fazer
quanto ao sexo; é a ausência de um saber constituído a priori sobre isso.” (STEVENS, 2004).

Para Lacan esse encontro com o Real não pode ser reduzido à irrupção hormonal
apenas nos órgãos do corpo, entendidos no sentido médico do termo, é preciso que o sujeito
responda ao Real que se apresenta através da articulação de sua fantasia com o Simbólico, em
um discurso minimamente coerente, essa resposta é sempre uma resposta sintomática pois
não consegue esgotar a questão por completo, não há uma resposta final para o problema da
sexualidade. Podemos dizer então que:

“A adolescência é, assim, a enumeração de uma série de escolhas sintomáticas em


relação a esse impossível encontrado na puberdade. E escrevi, com Jacques-Alain
Miller, o impossível como um conjunto vazio. Esse impossível é uma da fórmulas
do real; essa ausência de saber, no real, quanto ao sexo, é a não-relação sexual.”
(STEVENS, 2004, p. 30)

Diante disso o sujeito precisa encontrar saídas possíveis para isso que irrompe do
Real. É interessante então pensar a “crise da adolescência”, incluindo os atos infracionais,
como esse momento em que o sujeito é convocado a decidir que saídas dará para a questão
colocada para ele no encontro com o sexual. Ainda assim, a complexidade do que se
estabelece na atuação não nos permite tal redução e é o esforço de pesquisa que se apresenta
neste texto. “É o arranjo particular com o qual ele organizará sua existência, sua relação com
o mundo e sua relação com o gozo, no lugar, portanto, da relação sexual.” (STEVENS,
2004). São saídas referentes portanto ao modo de gozo do sujeito, principalmente no campo
do Outro, já que este último é o que convoca essencialmente o sujeito a dar uma resposta.

O problema é que tem-se dito que vivemos atualmente um declínio da figura paterna,
da autoridade, no sentido psicanalítico do termo, que seria um elemento de ancoragem para o
sujeito, facilitando sua inserção no Laço Social. Foi sempre comum às sociedades a execução
de ​rituais de passagem, o​ s mais diversos possíveis, para marcar esse momento de transição
da infância para a vida adulta. Haveria então um “roteiro” disponível para os sujeitos que
responderia a questão colocada pela puberdade, o Outro social dava certo suporte para isso,
historicamente as pessoas já eram inseridas no Laço Social sem necessariamente ter de fazer
uma escolha por isso. O que temos hoje em dia é talvez o oposto, a contemporaneidade prega
a ideia de um ​self-made man​, ou seja, que cada um escolha por si mesmo sua posição no
mundo dentre as infindáveis possibilidades dadas pelo modo de produção capitalista, que
parece se esforçar cada vez mais para que cada um faça as coisas por si mesmo, que seja auto
suficiente sem a necessidade de um outro lhe dizer para onde ir ou o que fazer, “na ausência
de um saber sobre o que se pode fazer em face do outro sexo. Resta, então, a cada um
inventar sua própria resposta.” (STEVENS, 2004).

O discurso político contemporâneo reforça a ideia de que “todos são iguais” diante da
lei e do mercado mas, ao mesmo tempo, não podemos dizer que a realidade social é coerente
com esse discurso. A segregação social, baseada principalmente por diferenças raciais e
econômicas, e a crescente difusão de discursos fundamentalistas que apontam lugares de
exceção, opostos a ideia de igualdade da democracia, são evidências dessa discordância entre
o que o discurso político capitalista pretende dizer e o que acontece de fato. Isso tem
consequências relevantes para o atravessamento da adolescência, os sujeitos diante de tantas
respostas possíveis mas nenhuma definitiva para a puberdade podem oscilar entre os mais
diversos comportamentos possíveis como respostas:

“Esse “todos iguais”, devido ao declínio da função paterna que apaga a exceção,
provoca, também, um efeito de segregação devastador. Esse efeito devastador se
acentua ainda com as dificuldades econômicas atuais, e desemprego etc. Vê-se nas
periferias um certo números de fenômenos da ordem desse mal-estar da
segregação.” (STEVENS, 2004, p. 37)

É preciso então que o adolescente encontre, neste contexto, uma resposta possível
para a pergunta colocada pelo encontro com o sexual, é preciso escolher uma posição no
mundo. Há muitas respostas disponíveis mas nem todas são possíveis para todos, as
condições sócio-econômicas e o ambiente em que cada um está inserido são determinantes
para isso. No caso do nosso trabalho, daremos foco às saídas dadas por adolescentes pela via
do que é considerado pelo direito como um ato infracional. Não acreditamos ser possível
dizer que o “crime” é uma resposta por definição, os distintos atos e comportamentos
criminalizados pelo Estado podem comportar as mais diversas significações possíveis como
podemos observar bem no documentário ​Juízo​. Há uma variedade enorme de motivações e
modos de agir dos jovens que têm seu julgamento retratado no filme, desde pequenos furtos
como coadjuvantes até um parricídio, percebido como uma ​passagem ao ato sob a óptica
psicanalítica. Essas saídas, que são tomadas como infrações do pacto social, portanto da lei,
são geralmente respostas encontradas quando muitas outras anteriores falharam ou nem
sequer foram possíveis. Precisamos ressaltar que em todos os contextos adolescentes podem
praticar atos infracionais, mas na maioria das vezes, só são nomeados e têm de responder à
justiça aqueles que são segregados do laço social, seja por questões econômicas, raciais ou
morais, e é destes que são considerados pelo discurso social como ​jovens infratores que
nosso trabalho trata.

Nomeação e Violência

Nesse sentido, retoma-se aqui as questões que coloca em xeque a relação do


adolescente com o Laço Social, diante aos riscos de vida e morte, a sua posição em relação ao
desejo do Outro e ao seu próprio desejo também. São pertinentes as perguntas: o que o Outro
quer de mim? O que sou no desejo do Outro? Entende-se o Outro aqui como o Outro da
família, do Estado, das Instituições... As nomeações dadas por estes marcam e cristalizam a
posição do jovem adolescente no Laço Social e apontam muitas vezes, nas palavras de
Cardoso (2019): “para a adesão de um destino trágico, marcado pelo deslizamento destes
adolescentes por categorias de exclusão com efeitos devastadores de segregação”. Os efeitos
se mostram bem claros, a existência de um jovem negro e de periferia é marcada pelas
violências de segregação, exclusão social e talvez a maior delas que é a exclusão dos sujeitos
enquanto desejantes. . É a total anulação do jovem enquanto ser humano, cidadão, de
Direitos. As nomeações dos jovens pelo discurso social se faz valer justamente pelas
nomeações dada pelas Instituições e órgãos oficiais. A adolescência, tão marcada pela
errância e futura separação do lugar de objeto do desejo do Outro, encontra nesse cenário,
jovens adolescentes que não tem nem mesmo um lugar no desejo do Outro. Mesmo assim,
sujeito à ordem está e se não há lugar para ser desejo do Outro, um Outro ainda pior se
aproveitará desse jogo de segregação e o jovem é inevitavelmente capturado por um sistema
mercantilista e comandado pelo lucro. Assujeitado, desestabilizado até mesmo da
possibilidade de desejar, cristalizados na posição proferida pelo Discurso Social, acabam por
formar uma massa permanente de inempregáveis, necessários à sustentação de um modo
econômico neoliberal. Cardoso (2019) atenta para o fato de que sobre “os inempregáveis se
desdobram mais uma outra série de nomeações que reforçam o efeito de fixação do sujeito
em uma posição social e de gozo.” Tudo isso é parte essencial da lógica neoliberal que
controla, recicla e transforma aqueles considerados inúteis ou perigosos para o Estado em
objetos mercantilizáveis. Exemplo disso é a crescente parceria público privada (além de um
horizonte de privatização) dos Socioeducativos. Fica evidente que a “política do medo e da
insegurança”, é instrumentalizada em resposta a interesses econômicos e privados. O
encarceramento em massa, satisfaz as demandas de segurança da opinião pública,
completamente manipuladas pelo discurso midiático do medo e da segurança a todo custo.

Ato infracional e tratamento de adolescentes em conflito com a lei

Para discutir os efeitos subjetivos e sociais do tratamento pela via do silenciamento


dado aos adolescentes nomeados pelo Outro - estatal, institucional e social, à disposição do
discurso do capitalista, apresenta-se aqui uma breve sequência histórica da codificação
judicial referentes às consolidações da figura dos adolescentes e, em seguida, dos atos
infracionais.

No Brasil, o primeiro tribunal de menores foi criado em 1923, onde funciona -


ironicamente - o Instituto Nacional de Surdos e Mudos hoje no Rio de Janeiro. E a primeira
legislação voltada para a infância e a adolescência foi sancionada em 1927, denominada
como Código Mello Matos, recebeu influência do nome do primeiro juiz de menores do país,
destacando que emerge a partir da institucionalidade judiciária. A legislação, conhecida
também por Código de Menores para os “adolescentes desviantes”, evoca uma certa
continuidade com o Código Penal, e se caracteriza pela “centralização da decisão na figura
estatal e pela repetição espelhada dos escritos do saber pré-constituído” (SANTANA, 2018).
Além disso, trata-se da manutenção de um paradigma de um adolescente que se atribui o
conflito com a lei ao estigma de infrator, de delinquente, de resto inassimilável, “lógica sob a
qual se origina tanto a organização representativa estatal quanto o recobrimento simbólico
posterior” (SANTANA, 2018). Assim, é possível demonstrar como a legislação fazia
perdurar o processo de exclusão simbólica e social sistemática a esses adolescentes. As
determinações das autoridades quanto aos ditos menores, no geral, eram desprovidas de
qualquer caráter de responsabilização com o sujeito, uma vez que o objetivo maior era o
recolhimento, a colocação nos lugares que a eles eram destinados ou, em outras palavras, a
prisão.
Outro marco importante ocorreu no início da década de 1980, a partir dos movimentos
sociais de meninos e meninas de rua em favor de seus direitos, da constitucionalização dos
direitos da criança e do adolescente em 1988 e, finalmente, da consolidação do Estatuto da
Criança e do Adolescente em 1990. Essa legislação é caracterizada por ter sido feita por uma
produção coletiva de sujeitos envolvidos para se pensar em respostas singulares aos
adolescentes e aos atos infracionais. Ou seja, “não apenas como confissão do adolescente e
sua culpabilização, e com decisão centrada no Estado, mas como abertura em que o
adolescente, a família, a sociedade e o Estado respondam pelo ato” (SANTANA, 2018).
Nessa modificação paradigmática inclui-se, principalmente, a noção da garantia de direitos, a
proteção integral, a visão do adolescente como um sujeito de direitos e o aspecto educativo
que as medidas passam a ter. Nesse sentido, outra ruptura é digna de ser destacada, já que a
designação nominal aos adolescentes passa a ser da situação de “conflito com a lei”.

Em relação às medidas com restrição de liberdade, é possível apontar para uma


distinção da lógica implementada pela antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor
(FEBEM), que visava a reclusão e a tutela de menores cujas famílias eram consideradas
incapazes economicamente e/ou moralmente dessa função.

Ao retomar a criação do Estatuto da Criança do Adolescente e seus desdobramentos


subsequentes, há como se dizer que ainda resiste resquícios do Código de Menores presentes
nos regimes de visibilidade e de nomeação dos adolescentes em conflito com a lei pela
perspectiva exclusiva do ato infracional. O que se percebe é que as autoridades ainda
configuram como dispositivos institucionais que fornecem nomeações cristalizadas aos
adolescentes como “menor infrator”, neste período tão singular de suas constituições
psíquicas.

Pensa-se, então, na atualidade desse tratamento sistemático a esses adolescentes, que


representam um número significativo no país. Segundo o levantamento feito pelo
Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e das Medidas
Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça, divulgado em novembro de 2018 (CNJ,
2018), são no total 22.203 adolescentes privados de sua liberdade. E, no que diz respeito à
reincidência desses jovens, o documentário “Juízo” nos mostra como esses atos se tornam
comum na lógica de funcionamento deste sistema; e quando não os são, vigora-se os riscos de
morte a esses adolescentes. O que se pode perceber é que o Estado se instrumentaliza pelas
vias das violências institucionais para justificar a guerra às drogas, o combate ao crime
organizado, e a segurança pública, pelo processo de criminalização dos adolescentes e dos
territórios periféricos. “É esta a operação que faz com que, em relação à violência, o
adolescente seja apenas responsabilizado e não reconhecido no seu lugar de violado em seus
direitos constitucionais básicos, incluindo o direito à vida” (CARDOSO, 2019).

Esses adolescentes são postos na posição do inimigo do estado, desde antes de suas
entradas para o sistema socioeducativo, portanto, se sustentam pela situação de “sujeito
suspeito” em vez de “sujeito de direito” oferecida pelo Outro social ao jovem. Isso se mostra
de modo muito evidente pela cenas do documentário, no qual os adolescentes são colocados
já por seu lugar de suspeição pelo ato, em reforço de um silenciamento e um apagamento de
quaisquer possibilidades outras de subjetivação. Trata-se, então, de um processo
político-afetivo da construção desse lugar de “sujeitos indesejáveis”, no qual se
fundamentam os ritos processuais e dispositivos institucionais e jurídicos, por via da
violência e da segurança pública.

Audiências Socioeducativas e ​Juízo

Como fase procedimental, no Juizado da Infância e da Juventude, os adolescentes são


encaminhados às audiências socioeducativas para responderem acusações da prática de atos
infracionais frente a autoridades judiciais, como juízes e juízas de direito, promotores de
justiça e defensores públicos. A circunstância é regida por uma legislação específica - o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - e conduzida de modo a se confirmar o que é
relatado por escrito nos autos do processo, seja inquérito policial ou representação do
Ministério Público. “O que se vê e se ouve são adolescentes de pele negra, de pouca
escolaridade, com vidas marcadas pela falta de acesso a direitos sociais básicos, de
convivência cotidiana com a criminalidade na periferia da grande cidade” (SANTANA,
2018). De acordo com esta fase procedimental, busca-se a confissão e ou a produção de
outras provas, para que uma decisão seja proferida, e uma medida socioeducativa, aplicada e
executada se for o caso.

É neste contexto que o longa-metragem “Juízo” (2007), dirigido por Maria Augusta
Ramos, apresenta narrativas de audiências socioeducativas realizadas com jovens no Rio de
Janeiro. Destaca-se que a pergunta central feita pela posição de juiz de direito ao adolescente
é se ele confirma ou não o que está narrado nos autos, do que se concentrou narrativamente
na representação, via dados e relatos extraídos dos boletins de ocorrência e das oitivas do
adolescente e ou de testemunhas, em sede de inquérito policial.
O significante “Audiência” marca o sentido da audição, da escuta, do ouvir. A
audiência dá-se pela cavidade auricular, aberta à escuta do que vem de fora. No rito jurídico,
a audiência se mostra no processo de “um automatismo da escuta como decifração e
sondagem” (SANTANA, 2018), pela leitura dos autos processuais repetidas vezes e também
pelo questionamento único como modo de confirmação ou negação desses escritos referentes
ao adolescente. Nesse sentido, Santana sintetiza essa circunstância:

“As narrativas policiais, do Ministério Público ou a certidão de


antecedentes infracionais dizem daquele indivíduo como um adolescente
“infrator”, a partir do ato infracional que lhe é imputado e ou que já conste(m) em
sua trajetória. Está presente, está dito pelo ato infracional a partir das narrativas
policiais e judiciárias, como atualização de um saber que produz a adolescência na
contemporaneidade” (p. 19)

No entanto, defende-se aqui a perspectiva da abertura de espaços à escuta, de


possibilidades de o adolescente elaborar com sua palavra, construir significações a seus atos,
e produzir simbolicamente suas experiências, para além das nomeações marcadas em seus
corpos, em que os sujeitos se colocam mais uma vez diante dos sistema judiciais e policiais
em suas trajetórias.

A instrumentalização da articulação entre juventude, criminalidade e periculosidade,


pelos discursos sociais, jurídicos e midiáticos, gera efeitos segregatórios ao invisibilizar e
silenciar os sujeitos adolescentes como desejantes. A nomeação destes com inimigos do
Estado operam discursivamente os processos de criminalização, através de um
encarceramento em massa, a serviço de um discurso de ordem econômica, que “visa suprimir
o mal-estar encarnado por estes adolescentes” (CARDOSO, 2019).

No filme “Juízo”, destaca-se como os códigos jurídicos operam neste sentido de não
transmitir inteligibilidade aos adolescentes diante do processo de controle e decisão sobre
seus próprios corpos. Este é o caso do último jovem a aparecer no documentário que havia
recebido a medida de liberdade assistida por ter cometido roubo, mas apenas um dia antes do
término do cumprimento de sua medida socioeducativa fugiu da unidade onde estava
internado. Assim, o adolescente diz: “Eu não sei o que é L.A., porque eu só estudei até a
terceira série, aí eu fugi porque já tava estourado o muro”. Além disso muitos deles vivem
uma realidade completamente distinta de jovens que não estão expostos à situações de risco,
como o tráfico.
Em outra cena, a juíza que preside a audiência tenta fazer uso do que seria a
linguagem própria dos adolescentes (em vez do discurso jurídico) para conseguir se fazer
entender, mas o que se evidencia é que ela retifica o lugar de “jovem infrator” ao adolescente.
Isso se ilustra no seguinte trecho: “Nego não vai te procurar por causa da carga que você
perdeu não?... Se você pular o CRIAN, se você não voltar na segunda-feira no horário que
tiver que voltar você sabe que vão te grampear na rua, não sabe?”.

Além desses, outra circunstância coloca em questão a violência dentro das unidades
de internação em que os adolescentes são submetidos diante dos agentes de segurança
socioeducativos. A diretora retrata o momento em que um dos agentes aborda os jovens
quando desembarcavam de uma viatura camburão, dizendo: “Bora bandido, moleza porra”.
Num outro momento, outro agente endereça a dois adolescentes que estavam se
desentendendo: “Pode parar de viadagem vocês dois aí ó, se não vou meter a porrada nos
dois… Ou ou ou, pode parar meu cumpade, rala daí se não vou partir a tua cara… Fica na
disciplina agora aí maluco.”

Então, ao pensar na lógica violenta da nomeação, manutenção da criminalização e


silenciamento dos jovens, aponta-se para a reincidência não como uma questão universal que
fixa os adolescentes às nomeações de “perigosos”, mas sim, como um aspecto de reincidência
da abordagem de ordem violenta próprio das instituições. Isso, porque “​estas abordam sempre
da mesma forma o adolescente e suas diversas maneiras de expressar sua dimensão subjetiva
diante de um Estado que não é capaz de escutá-lo, nem perceber suas condições de vida”
(CARDOSO, 2019). Desse modo, é preciso retificar o Outro antes de se pensar em políticas e
estratégias de retificações do sujeito, de modo que ofereça recursos de escuta efetiva às
palavras desses adolescentes têm a dizer e elaborar sobre si mesmos.

Considerações Finais

Nesse contexto de violências e reincidências, qual o lugar a partir do qual uma


intervenção psicanalítica pode produzir efeitos interessantes e possíveis saídas clínicas diante
da violência das nomeações? Um desafio para a atuação da psicanálise nas instituições e no
sistema socioeducativo é o manejo da transferência, neste caso negativa, que se apresenta na
relação com o jovem. Anunciando uma nova forma de lidar com o Outro, à essa modalidade
de transferência, Andrea Guerra, Mariana Aranha, Emilia Broide e Isa Gontijo cunham o
termo Sujeito Suposto Suspeito. Se para Lacan (1967/2003), a transferência é um fenômeno
relacionado ao saber, com o analista ocupando primeiro o lugar e a função do sujeito suposto
saber, no contexto tratado aqui o jovem é desvalorizado pelo Outro social, e o extermínio
consentido culturalmente atesta um ponto onde sua vida não vale mais. O analista ao
primeiramente ocupar o lugar desse Outro social tem a suspeita sob o fundo transferencial e a
suposição de seu saber é colocada em xeque.

Nas palavras de Guerra et Al (2015) uma "espécie de agressividade desafiadora


convoca o psicanalista a colocar à prova seu saber (...) salvo se, numa aposta diferente, ele
possa se deslocar do lugar do Outro que desvaloriza, para causar, como objeto, novo enigma
sobre o que é colocado na roda pelos jovens". Como ocupar o lugar do Outro não é a função
do analista (pois aí ele estaria se deixando guiar por uma identificação com o Ideal do eu do
sujeito) um lugar a partir do qual uma intervenção pode produzir efeitos interessantes na
reflexão de Guerra et Al (2015) é a de um deslizamento possível do psicanalista de sujeito
suposto suspeito que ocupa o lugar depreciador do Outro Social para uma posição que
reconhece a incidência do laço discursivo e violento sobre o sujeito. Ao dar lugar ao real
traumático em jogo, mas invisibilizado, através da possibilidade de construção de uma
narrativa na passagem do adolescente pelo socioeducativo, abre-se, segundo Guerra et Al,
2015: "a condição para que um novo nome seja forjado sobre a experiência e uma via seja
aberta pelo desejo".

Portanto, diante das violências marcadas pelas nomeações dadas aos adolescentes por
esse Outro, que carrega neles a autoria do mal-estar contemporâneo, a psicanálise aposta na
palavra que cada um desses adolescentes possa dizer sobre si mesmo, criando nomes e
lugares que sejam menos mortíferos. Fica evidente que discursos cada vez mais midiatizados
sobre “ameaças à segurança pública” ratificam uma necropolítica do Estado nos tempos
atuais. Por isso, a necessidade da criação de um lugar simbólico para problematização acerca
do juízo que define seus destinos de morte ou vida e que atravessa o cotidiano desses jovens
no país se apoia na construção de suas próprias saídas singulares e na suspensão da adesão
dessa posição de suspeição dos adolescentes imposta por estruturas - judiciais, institucionais
e policiais -, e ratificada por nomeações violentas que não cessam de se escreverem sobre
seus corpos.
Referências Bibliográficas

BRASIL. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da criança e do


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CARDOSO, C. O. M. Vidas Severinas: a morte e a vida nas medidas socioeducativas. 2019.

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