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IAGO COUTO
LUCAS ARNON
LUCAS FENATI
PEDRO IVO
BELO HORIZONTE
2019
A experiência de adolescentes em conflito com a lei aponta como, para a maioria
deles, o entrelaçamento entre a vida e a morte marca suas subjetividades para além de suas
trajetórias pelo sistema socioeducativo. Antes, depois e durante a passagem desses
adolescentes pelo sistema, o risco real de viver e morrer é colocado diante deles. Segundo os
dados apresentados pelo Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA) e pelo UNICEF, a cada 23 minutos um jovem negro de 15 a 29 anos é assassinado no
país. Para além do encontro trágico com a morte real, a vida desses adolescentes mostra que
há diferentes modos do risco de morrer se apresentar, “seja através da morte política desses
sujeitos, da perda da liberdade, do corpo lesado ou do encontro trágico com a morte real”
(CARDOSO, 2019).
Elege-se o longa-metragem Juízo (2007), dirigido por Maria Augusta Ramos, que
apresenta narrativas de audiências socioeducativas realizadas com jovens no Rio de Janeiro
para discutir as dimensões da violência vivenciada pelos adolescentes em relação ao ato
infracional. O documentário se passa em audiências de julgamento reais de oito adolescentes
numa Vara de Justiça do Rio de Janeiro. Devido à proibição da filmagem dos jovens menores
de 18 anos pela legislação brasileira, os adolescentes autores de ato infracional não foram
filmados, assim, tais jovens foram substituídos por outros adolescentes não-autores
habituados às mesmas situações de vulnerabilidade social para que tivessem suas narrativas
encenadas. A escolha do material se deve também por impressionar o nível da autenticidade
violenta nas conduções das audiências que se repercute até os dias de hoje.
“As palavras falham em dizer desse surgimento. Pode-se muito bem dizer à
criança: “você está se tornando uma mulher etc.”, mas no momento da emergência
da coisa- quer sejam os sonhos, as transformações do corpo, uma primeira ereção-,
esse efeito de eclosão, que é real, faz com que quaisquer que sejam as palavras que
o outro diz, as palavras que a criança que se torna púbere dispunha, até então, não
correspondem ao que lhe acontece.” (STEVENS, 2004, p. 32)
Para Lacan esse encontro com o Real não pode ser reduzido à irrupção hormonal
apenas nos órgãos do corpo, entendidos no sentido médico do termo, é preciso que o sujeito
responda ao Real que se apresenta através da articulação de sua fantasia com o Simbólico, em
um discurso minimamente coerente, essa resposta é sempre uma resposta sintomática pois
não consegue esgotar a questão por completo, não há uma resposta final para o problema da
sexualidade. Podemos dizer então que:
Diante disso o sujeito precisa encontrar saídas possíveis para isso que irrompe do
Real. É interessante então pensar a “crise da adolescência”, incluindo os atos infracionais,
como esse momento em que o sujeito é convocado a decidir que saídas dará para a questão
colocada para ele no encontro com o sexual. Ainda assim, a complexidade do que se
estabelece na atuação não nos permite tal redução e é o esforço de pesquisa que se apresenta
neste texto. “É o arranjo particular com o qual ele organizará sua existência, sua relação com
o mundo e sua relação com o gozo, no lugar, portanto, da relação sexual.” (STEVENS,
2004). São saídas referentes portanto ao modo de gozo do sujeito, principalmente no campo
do Outro, já que este último é o que convoca essencialmente o sujeito a dar uma resposta.
O problema é que tem-se dito que vivemos atualmente um declínio da figura paterna,
da autoridade, no sentido psicanalítico do termo, que seria um elemento de ancoragem para o
sujeito, facilitando sua inserção no Laço Social. Foi sempre comum às sociedades a execução
de rituais de passagem, o s mais diversos possíveis, para marcar esse momento de transição
da infância para a vida adulta. Haveria então um “roteiro” disponível para os sujeitos que
responderia a questão colocada pela puberdade, o Outro social dava certo suporte para isso,
historicamente as pessoas já eram inseridas no Laço Social sem necessariamente ter de fazer
uma escolha por isso. O que temos hoje em dia é talvez o oposto, a contemporaneidade prega
a ideia de um self-made man, ou seja, que cada um escolha por si mesmo sua posição no
mundo dentre as infindáveis possibilidades dadas pelo modo de produção capitalista, que
parece se esforçar cada vez mais para que cada um faça as coisas por si mesmo, que seja auto
suficiente sem a necessidade de um outro lhe dizer para onde ir ou o que fazer, “na ausência
de um saber sobre o que se pode fazer em face do outro sexo. Resta, então, a cada um
inventar sua própria resposta.” (STEVENS, 2004).
O discurso político contemporâneo reforça a ideia de que “todos são iguais” diante da
lei e do mercado mas, ao mesmo tempo, não podemos dizer que a realidade social é coerente
com esse discurso. A segregação social, baseada principalmente por diferenças raciais e
econômicas, e a crescente difusão de discursos fundamentalistas que apontam lugares de
exceção, opostos a ideia de igualdade da democracia, são evidências dessa discordância entre
o que o discurso político capitalista pretende dizer e o que acontece de fato. Isso tem
consequências relevantes para o atravessamento da adolescência, os sujeitos diante de tantas
respostas possíveis mas nenhuma definitiva para a puberdade podem oscilar entre os mais
diversos comportamentos possíveis como respostas:
“Esse “todos iguais”, devido ao declínio da função paterna que apaga a exceção,
provoca, também, um efeito de segregação devastador. Esse efeito devastador se
acentua ainda com as dificuldades econômicas atuais, e desemprego etc. Vê-se nas
periferias um certo números de fenômenos da ordem desse mal-estar da
segregação.” (STEVENS, 2004, p. 37)
É preciso então que o adolescente encontre, neste contexto, uma resposta possível
para a pergunta colocada pelo encontro com o sexual, é preciso escolher uma posição no
mundo. Há muitas respostas disponíveis mas nem todas são possíveis para todos, as
condições sócio-econômicas e o ambiente em que cada um está inserido são determinantes
para isso. No caso do nosso trabalho, daremos foco às saídas dadas por adolescentes pela via
do que é considerado pelo direito como um ato infracional. Não acreditamos ser possível
dizer que o “crime” é uma resposta por definição, os distintos atos e comportamentos
criminalizados pelo Estado podem comportar as mais diversas significações possíveis como
podemos observar bem no documentário Juízo. Há uma variedade enorme de motivações e
modos de agir dos jovens que têm seu julgamento retratado no filme, desde pequenos furtos
como coadjuvantes até um parricídio, percebido como uma passagem ao ato sob a óptica
psicanalítica. Essas saídas, que são tomadas como infrações do pacto social, portanto da lei,
são geralmente respostas encontradas quando muitas outras anteriores falharam ou nem
sequer foram possíveis. Precisamos ressaltar que em todos os contextos adolescentes podem
praticar atos infracionais, mas na maioria das vezes, só são nomeados e têm de responder à
justiça aqueles que são segregados do laço social, seja por questões econômicas, raciais ou
morais, e é destes que são considerados pelo discurso social como jovens infratores que
nosso trabalho trata.
Nomeação e Violência
Esses adolescentes são postos na posição do inimigo do estado, desde antes de suas
entradas para o sistema socioeducativo, portanto, se sustentam pela situação de “sujeito
suspeito” em vez de “sujeito de direito” oferecida pelo Outro social ao jovem. Isso se mostra
de modo muito evidente pela cenas do documentário, no qual os adolescentes são colocados
já por seu lugar de suspeição pelo ato, em reforço de um silenciamento e um apagamento de
quaisquer possibilidades outras de subjetivação. Trata-se, então, de um processo
político-afetivo da construção desse lugar de “sujeitos indesejáveis”, no qual se
fundamentam os ritos processuais e dispositivos institucionais e jurídicos, por via da
violência e da segurança pública.
É neste contexto que o longa-metragem “Juízo” (2007), dirigido por Maria Augusta
Ramos, apresenta narrativas de audiências socioeducativas realizadas com jovens no Rio de
Janeiro. Destaca-se que a pergunta central feita pela posição de juiz de direito ao adolescente
é se ele confirma ou não o que está narrado nos autos, do que se concentrou narrativamente
na representação, via dados e relatos extraídos dos boletins de ocorrência e das oitivas do
adolescente e ou de testemunhas, em sede de inquérito policial.
O significante “Audiência” marca o sentido da audição, da escuta, do ouvir. A
audiência dá-se pela cavidade auricular, aberta à escuta do que vem de fora. No rito jurídico,
a audiência se mostra no processo de “um automatismo da escuta como decifração e
sondagem” (SANTANA, 2018), pela leitura dos autos processuais repetidas vezes e também
pelo questionamento único como modo de confirmação ou negação desses escritos referentes
ao adolescente. Nesse sentido, Santana sintetiza essa circunstância:
No filme “Juízo”, destaca-se como os códigos jurídicos operam neste sentido de não
transmitir inteligibilidade aos adolescentes diante do processo de controle e decisão sobre
seus próprios corpos. Este é o caso do último jovem a aparecer no documentário que havia
recebido a medida de liberdade assistida por ter cometido roubo, mas apenas um dia antes do
término do cumprimento de sua medida socioeducativa fugiu da unidade onde estava
internado. Assim, o adolescente diz: “Eu não sei o que é L.A., porque eu só estudei até a
terceira série, aí eu fugi porque já tava estourado o muro”. Além disso muitos deles vivem
uma realidade completamente distinta de jovens que não estão expostos à situações de risco,
como o tráfico.
Em outra cena, a juíza que preside a audiência tenta fazer uso do que seria a
linguagem própria dos adolescentes (em vez do discurso jurídico) para conseguir se fazer
entender, mas o que se evidencia é que ela retifica o lugar de “jovem infrator” ao adolescente.
Isso se ilustra no seguinte trecho: “Nego não vai te procurar por causa da carga que você
perdeu não?... Se você pular o CRIAN, se você não voltar na segunda-feira no horário que
tiver que voltar você sabe que vão te grampear na rua, não sabe?”.
Além desses, outra circunstância coloca em questão a violência dentro das unidades
de internação em que os adolescentes são submetidos diante dos agentes de segurança
socioeducativos. A diretora retrata o momento em que um dos agentes aborda os jovens
quando desembarcavam de uma viatura camburão, dizendo: “Bora bandido, moleza porra”.
Num outro momento, outro agente endereça a dois adolescentes que estavam se
desentendendo: “Pode parar de viadagem vocês dois aí ó, se não vou meter a porrada nos
dois… Ou ou ou, pode parar meu cumpade, rala daí se não vou partir a tua cara… Fica na
disciplina agora aí maluco.”
Considerações Finais
Portanto, diante das violências marcadas pelas nomeações dadas aos adolescentes por
esse Outro, que carrega neles a autoria do mal-estar contemporâneo, a psicanálise aposta na
palavra que cada um desses adolescentes possa dizer sobre si mesmo, criando nomes e
lugares que sejam menos mortíferos. Fica evidente que discursos cada vez mais midiatizados
sobre “ameaças à segurança pública” ratificam uma necropolítica do Estado nos tempos
atuais. Por isso, a necessidade da criação de um lugar simbólico para problematização acerca
do juízo que define seus destinos de morte ou vida e que atravessa o cotidiano desses jovens
no país se apoia na construção de suas próprias saídas singulares e na suspensão da adesão
dessa posição de suspeição dos adolescentes imposta por estruturas - judiciais, institucionais
e policiais -, e ratificada por nomeações violentas que não cessam de se escreverem sobre
seus corpos.
Referências Bibliográficas