Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO
O presente trabalho faz um breve estudo sobre o fenômeno do abandono afetivo, que
se caracteriza pela indiferença emocional ou inafetividade de um genitor relacionada aos seus
descendentes diretos, a saber, os filhos, ou também o abandono dos filhos para com seus pais,
quando já se encontram idosos, como também dos parentes com os portadores de deficiências.
Relaciona seus malefícios de natureza psicológica e o debate no âmbito jurídico e legislativo
sobre a possibilidades de sanções aos responsáveis pelo referido delito, cuja estatística de
ações processuais tem crescido nas cortes judiciárias.
ABSTRACT
This paper presents a brief study on the phenomenon of affective abandonment, which
is characterized by emotional indifference or inaffectivity of a parent related to their direct
descendants, namely the children, or also the abandonment of their children to their parents,
when they are already elderly, as well as relatives with the disabled. It relates its maleficments
of a psychological nature and the debate in the legal and legislative sphere about the
possibilities of sanctions for those responsible for the offence, whose statistics on procedural
actions have grown in judicial courts.
1
Acadêmico de Direito pela Universidade Federal da Paraíba (2018-). Licenciado em História pela mesma
instituição (2006-2015). e-mail: giovannijns87@gmail.com Telefone: (083) 987756770
Keyword: Law, Abandonment, Affectivity, Responsibility2
1. INTRODUÇÃO
“Só que uma razão pura é uma esfera de tal modo à parte, tão completamente
unificada em si, que não se pode tocar em nenhuma sem afetar todas as outras, e
que nada se pode fazer sem primeiramente ter determinado o lugar de cada uma e a
sua influência sobre as outras; porque, nada existindo fora dela que possa corrigir
o nosso juízo interior, a validade de cada parte depende da relação em que ela se
encontra com as outras na própria razão tal como na estrutura de um corpo
2
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Editora UnB. Brasília.1999
organizado o fim de cada membro só pode deduzir-se do conceito geral do todo
(KANT, apud ROHDEN, 2003, P. 20-21)3.
3
KANT, Emmanuel. Crítica da razão. Tradução, introdução e notas de Valério Rohden. Martins Fontes, São
Paulo. 2003.
núcleo fundamental em que repousa a organização social” (PEREIRA e GONÇALVES apud
SANTOS; 2011, p. 15)4.
Legar a um indivíduo a privação do afeto, além de consequências psicológicas,
implica em danos morais em vista do julgamento da sociedade. Para se compreender o
abandono afetivo, precisa-se entender diretamente a evolução do instituto familiar e como as
transformações neste culminaram no advento desta nova realidade social que produz efeitos
jurídicos.
4
SANTOS, Maria Alice de Souza Santos. A Natureza do Afeto nas Relações Paterno Filiais Frente às
Responsabilização Civil. Dissertação. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2011.
5
AZEREDO, Christiane Torres de. Abandono Afetivo: A Não Observância do Dever de Convivência.
Dissertação. Faculdade de Direito de Vitória. Vitória. 2018.
Nos primórdios da História, a primeira fase da família se constituía pela
consanguinidade, respeitando os limites dos ascendentes para os descendentes nas relações de
matrimônio, ou seja, pais e mães não copulavam com os seus descendentes. Com o
crescimento populacional, o casamento infrafamiliar foi superado pelas formações familiares
entre os clãs.
Com o advento desse novo modelo, surgiu a primeira forma de contrato, o dote. Por
meio dele, a mulher passava para o matrimônio levando consigo bens e riquezas que
passariam à administração do homem. Nesse ínterim surge a fase do Neolítico, que se
identifica a primeira divisão de atribuições entre gêneros na convivência coletiva, período que
se caracteriza pela mutação do estilo de vida, quando os hominídeos passaram dos hábitos
nômades à uma conduta mais doméstica, favorecida pela evolução na confecção dos
instrumentos de trabalho e da introdução da caça, incumbindo o homem da caça, da pesca e
da defesa contra grupos de indivíduos alheios ao seu grupo. Enquanto isso, a mulher se
encarregava da preparação da comida, da confecção das vestimentas e do cuidado com a
prole. Tais comportamentos influenciaram no contexto de identidade familiar, pois o que
inicialmente se identificava pela filiação materna, agora figura no vínculo paterno; só se
identifica da família pelos vínculos com o homem, favorecendo a primazia do patriarcalismo
na formação familiar; a partir de então, surge o conceito do pátrio poder, ou seja, o homem
detém poder de vida e de morte sobre toda sua família. Nas sociedades do oriente próximo,
mais precisamente na Palestina e na própria Península Arábica, os chefes de família, além do
poder familiar, detinham a função sacerdotal no exercício da religião.
Esse paradigma da superioridade patriarcal foi aperfeiçoado a partir do apogeu da
sociedade grega, quando foram claramente definidas as esferas do comum (koinos) e do
privado (oikos) em que no primeiro se manifestava a visibilidade, a aparência, a retórica e a
política, a qual se exercia pela práxis, ou seja, a prática reproduzindo o discurso (léxis) . Já no
oikos, ou seja, no ambiente privado da vida familiar, se manifestava a predominância
patriarcal, imposta pela violência, o despotismo e a desigualdade.
Em certa maneira, os discursos misóginos eram corroborados pela produção
intelectual dos cientistas e filósofos gregos, sobre o que discorre a teóloga alemã Uta
Ranke-Heinemann (1996, p. 21), no livro Eunucos pelo Reino de Deus6:
6
RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. Tradução
Paulo Fróes - Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1996.
“Não é verdade que o Cristianismo trouxe o autocontrole e o ascetismo ao mundo
pagão que se deliciava com os prazeres e com o corpo. Pelo contrário, a
hostilidade ao prazer e ao corpo é um legado da antiguidade que foi singularmente
preservado até hoje no cristianismo. Os cristãos não ensinaram aos pagãos
licenciosos, dissolutos, a odiarem o prazer e a se controlarem; foram os pagãos que
tiveram de reconhecer que os cristãos eram tão adiantados quanto eles próprios.”
7
LOPES, Maria José Ferreira. De Pandora a Eva: Fontes Antigas da Misoginia Ocidental. Revista Diacrítica
vol. 26 nº. 2. Braga. 2012.
nascimento dos filhos homens, pois manteriam viva a memória do patriarca do núcleo
familiar.
Porquanto, afirma Maria Alice de Souza SANTOS (idem, p. 17): “Assim, traçando
uma evolução histórica da família brasileira, verifica-se que não é possível deixar de observar
nas antigas civilizações a influência que por muito perdurou na organização familiar, seja por
meio da família romana, seja pelo catolicismo, ou pelo direito germânico”. Conclui-se que o
legado romano é muito forte nas questões sociais, jurídicas, religiosas e familiares, sobretudo.
A subjugação da mulher só foi intensificada com o advento da Idade Média,
fundamentada nos dogmas da Igreja, que se revestiu da autoridade máxima interferindo desde
as relações políticas, as quais a mesma figurava como protagonista consagrando os contratos
entre os senhores feudais de mútua cooperação produtiva e militar, até a interferência na vida
privada, na qual a submissão a Deus, à Igreja e ao cônjuge figurava uma virtude cristã.
O regime patriarcal sofreria seu primeiro revés com a formação do Estado moderno,
quando as sociedades se organizaram por seus aspectos comuns, principalmente vernáculos e
culturais, e concederam poder aos mais proeminentes senhores feudais com grande
capacidade militar. Com o Estado, surgiu a necessidade da legitimação deste, o que se
materializou com a elaboração das Leis. O pátrio poder continuava, porém limitado à
regulamentação legal dos decretos reais. Com o advento do Iluminismo e a ruptura plena da
relação Igreja-Estado, institutos como o divórcio passaram a ser uma realidade.
A segunda fase do capitalismo traria uma importante contribuição à emancipação
feminina, pois a industrialização trouxe em seu escopo a urbanização das cidades, a explosão
demográfica ao redor da metrópole, culminando na corrida armamentista e na Primeira
Grande Guerra, na qual as mulheres assumiram os postos dos homens nas fábricas, enquanto
estes combatiam na frente de batalha.
Somente com o fim da Segunda Guerra, em 1945, é que a concepção de Direito agrega
o enfoque nos Direitos Humanos, elencados na Declaração Internacional de 1948 e
homologados pela terceira fase do Constitucionalismo, que se constitui no fenômeno pelo
qual se estuda os fundamentos da formação das Constituições. Entre eles, o direito das
mulheres reafirmado na Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres.
No contexto Brasileiro, incorre em lugar comum o entendimento de que a cultura
familiar brasileira recebe fortíssima influência do legado português, do qual o antropólogo
Gilberto Freyre (2003, pp. 31-32)8 aborda além das bases de formação da população
brasileira, caracterizada pela miscigenação, elementos do imaginário coletivo da sexualidade
do lusitano, os quais induzidos pela ideia de superioridade étnica e de proliferação da
população portuguesa, acrescido do fato de haver poucas mulheres brancas na colônia,
cometiam diversos abusos contra nativas e africanas escravizadas, gerando diversos
descendentes inclusive extraconjugais, sem reconhecimento público, provocando o que na
perspectiva atual compreende-se como o abandono afetivo.
O ordenamento jurídico só abarcará uma perspectiva mais centrada nos direitos
humanos em uma conjuntura recente, a partir da aprovação da Constituição Federal de 1988 e
do Novo Código Civil de 2002. Antes, a Lei apresentava características fortemente
patriarcais, como a concepção clássica de casamento e a plenitude de direitos concedida ao
marido, inclusive da guarda e tutela dos filhos em caso de separação. Assim afirma
GIANDOSO (2004, p. 17)9:
“No Código Civil de 1916 predominava a ideia clássica de família, ou seja, a união
pelo casamento entre homem e mulher. A família adotava um modelo centrado na
autoridade patriarcal, ou seja, o pai era o líder e chefe da família. A esposa e a
prole ficavam subordinados ao autoritarismo do pai como chefe da família e
responsável pelas decisões. O marido era possuidor de todos os direitos e a única
função da mulher era obedecer as ordens designadas pelo marido, tomar conta das
prendas domésticas e da prole. O Direito Civil tinha um caráter patrimonialista.
Com a Constituição Federal do Brasil de 1988 o ser humano passa a ser foco
primordial do ordenamento jurídico. Como exemplo, podemos citar a igualdade
entre homens e mulheres e a proteção integral à criança e ao adolescente. Assim
sendo, o caráter patrimonialista do Direito Civil cede espaço a preocupação com
ser humano e consequentemente com o bem estar dos membros integrantes da
família.” (GIANDOSO: 2004, p. 17)
8
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 48ª ed. São Paulo. Global.2003.
9
GIANDOSO, Wanessa de Figueiredo. Responsabilidade Civil decorrente de abandono afetivo paterno/materno
filial. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 2014
2.2. FAMÍLIA NA ATUALIDADE E OS FATORES INFLUENTES DO ABANDONO
AFETIVO
10
ROSENVALD, Nelson e FARIA, Cristiano Chaves. Direito Civil – Teoria Geral. Rio de Janeiro: Lúmen Júris.
2012.
11
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Congresso Nacional. 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 27 jul. 2019
O fenômeno do abandono afetivo enquanto análise social, que também assume a
forma de debate jurídico, não configura uma prática recente na sociedade, pois a despeito do
estabelecimento de família constante na norma jurídica sobre a formação familiar, prevista
principalmente no Código Civil de 1916, na prática os próprios homens revestidos do pátrio
poder estabelecido pela legislação se agrupavam em arranjos alheios ao núcleo familiar, como
aborda SANTOS (ibidem, p. 22):
“No entanto, a realidade social brasileira era diferente das imposições legais;
crescente número de agrupamentos familiares advindos de junções paralelas à
família matrimonializada, seja por uniões maritais sem casamento (concubinatos
puros e impuros), seja por mulheres solteiras chefiando o lar sozinhas com os
filhos, além dos filhos não serem vistos como força de trabalho para a aquisição de
propriedade, pois com os avanços industriais, casamento não era a melhor forma
de adquirir riquezas”.
12
PEREIRA, Rodrigo da Cunha . Nem só de pão vive o homem: Responsabilidade Civil por abandono afetivo.
Artigo jornalístico. Jornal Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 3 - 3, 04 fev. 2006.
contexto histórico do declínio do patriarcalismo e da sociedade do consumo,
explicar e entender, pela teoria econômica como se fabricam os “fernandinhos
beira-mar” e o porquê de tantas crianças abandonadas, criminalidade juvenil e de
tanta “droga adição”. Poderíamos também enveredar até mesmo em uma visão
moralista e pensar que todos esses sinais de violência começaram após 1977, com
o divórcio no Brasil, e conseqüentemente um aumento crescente de separação de
casais e de novas formas de constituição de famílias.” (2006, p.1)
Além das hipóteses de dissolução das formas de união civil, seja o casamento ou a
união estável, outros fatores que podem relacionados ao abandono afetivo; inclusive, os
próprios genitores-guardiões, ou seja, os que detêm a guarda do filho após a desintegração dos
laços conjugais, podem ser os responsáveis pelo afastamento do genitor que se desvinculou do
lar, sob a análise da Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka13 (op cit, p 4):
Portanto, não apenas a atitude do genitor sem o poder de guarda acarreta na privação à
assistência aos filhos; os próprios ascendentes com o poder de guarda pode agir de forma a
13
HIRONAKA, G. M. F. N.. Pressuposto, elementos e limites do dever de indenizar por abandono afetivo. In:
Tânia da Silva Pereira; Rodrigo da Cunha Pereira. (Org.). A ética da convivência familiar: sua efetividade no
cotidiano dos tribunais. Rio de Janeiro: Forense, 2006
retaliar o ex-cônjuge, punindo-o pelo divórcio ou pelo descumprimento de certos deveres
enquanto genitor, inclusive financeiros, o que incorre ainda no crime de alienação parental,
conforme analisa BODIN DE MORAES & TEIXEIRA (2016, p. 17)14:
14
BODIN DE MORAES, Maria Celina; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Descumprimento do art. 229 da
Constituição Federal e responsabilidade civil: duas hipóteses de danos morais compensáveis. Revista de
Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 3, n. 3, p. 117-139, set./dez. 2016. DOI: 10.5380/rinc.v3i3.48534.
que complementa a incursão de valores e princípios à educação infantil, conforme o
enunciado a seguir:
“Por fim, o dever de educação da prole incumbe aos pais como forma de se
garantir aos filhos uma perfeita conformação moral e intelectual. Os pais devem,
assim, desempenhar as funções de educadores e de autoridades familiares para que
a criança possa se formar enquanto pessoa humana. O importante, segundo a
psicologia, é que a criança possa receber uma educação condigna e receba a noção
de autoridade, por meio da imposição de limites já no seio familiar, sob pena de
um desajustamento e uma inadequação social posterior, quando o grupo familiar,
por si só, já não se fizer presente, ou não se puder fazer ativo na proteção da
Nota-se, portanto, que mesmo convivendo diariamente com o póstero, ao se eximir das
suas obrigações o ascendente também comete abandono afetivo. o que é evidente na
abordagem na análise de HIRONAKA (2006; ibidem) :
“Ainda que a presença dos pais seja uma constância na vida dos filhos, deve-se
atentar para o fato de que não basta a presença física, sendo mister que a presença
se consubstancie no bom desempenho das funções parentais. Pode se dar, assim,
que o mau desempenho destas funções acarrete danos à formação
sócio-psiquico-cultural da criança. Quer isto significar que há muitos casos em que
os pais convivem com seus filhos diuturnamente, mas delegam as suas funções de
educadores e de encarnação da autoridade a terceiros, desobrigados destas funções
ipso facto, na medida em que não sejam os genitores das crianças, mas que
assumem de forma derivada uma parcela mais ou menos significativa desta
responsabilidade em função de uma relação jurídica contratual, por exemplo.”
15
ANGELUCI, Cleber Affonso. Abandono Afetivo: considerações para a constituição da dignidade da pessoa
humana. Revista Cej, Brasília, v.10, n. 33, p.43-53, abr. 2016. Trimestral. Disponível em:
<http://www.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/view/713/893>. Acesso em: 03 ago. 2019.
Entretanto, no ordenamento jurídico brasileiro a identificação deste elemento
imprescindível ao desenvolvimento humano torna-se perceptível somente após a consagração
dos direitos civis intrínsecos aos direitos fundamentais preceituados na Constituição Federal
de 1988, onde [...] “ se propõe a diminuir o espaço antes reservado à autonomia privada
dentro das relações, aumentando a esfera do que seria de interesse público. Esta intervenção
estatal [...] é característica desse Estado Social que se instaurou no século XX e busca
defender os hipossuficientes dentro dessas relações…” (ARAÚJO: 2017, p. 14)16. Contudo,
cabe realçar que a intervenção estatal não descaracteriza a perspectiva privada da relação
afetiva, que permanece constituída por indivíduos de direito legalmente iguais, mas sob a
regulação da normatividade jurídica estatal, numa espécie de confluência que objetiva o
resguardo dos valores que mereçam proteção jurídica, entre eles o afeto. Ainda na Carta
Magna, o artigo 229 versa sobre o dever dos pais de “assistir, criar e educar os filhos menores,
e os filhos maiores têm o dever de ajudar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
Aliado ao advento do constitucionalismo social, o Direito Internacional enfoca,
simultaneamente, os direitos da criança e do adolescente, a partir da promoção da Doutrina da
Proteção Integral, consolidada na Convenção da ONU sobre os Direitos das Crianças, sobre a
qual discorrem KRIEGER & KASPER17:
“Como importante marco deste novo enfoque dado aos direitos da criança e do
adolescente destaca-se a Doutrina da Proteção Integral. As crianças e adolescentes
foram postos a salvo de toda forma de negligência.[17] Consagrada por meio da
Convenção das Organizações das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças -
aprovada em 1989 e ratificada pelo Brasil em 1990, por meio do decreto n. 99.710
-, preconiza a referida doutrina que as crianças e os adolescentes são detentoras de
direitos da mesma forma como os adultos e gozam de prioridade imediata e
absoluta com relação à proteção de seus interesses, os quais devem ser
resguardados em qualquer circunstância, sempre devendo ser levado em conta o
seu quadro de vulnerabilidade, dada a sua peculiar condição de desenvolvimento.”
16
ARAÚJO, Amanda Siebra de. QUE O TEU (DES)AFETO ME AFETOU É FATO: Novas perspectivas do
abandono afetivo e material na jurisprudência brasileira. 2017. 58 f. Monografia (Curso de Direito),
Departamento de Ciências Jurídicas, Universidade Federal da Paraíba, Santa Rita, 2017.
17
KRIEGER, Mauricio Antonacci; KASPER, Bruna Weber. Consequências do Abandono Afetivo. Revista
Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 15, no 1241, 13 de maio de 2015.
No sistema brasileiro de normas legais, a Doutrina recebeu ainda amparo do
Legislativo por meio da promulgação da Lei nº. 8.069, de 13 de junho de 1990, denominada
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)18, o qual regulamenta a defesa dos direitos
fundamentais constitucionais em favor da proteção da camada infanto-juvenil da sociedade
brasileira, em que precisamente o caput do artigo 4º expressa: “É dever da família, da
comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade,
a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária.”. Se voltando ao Texto Constitucional, o artigo 227 preceitua o
mesmo dever:
18
BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá
outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069compilado.htm. Acesso em: 10 ago. 2019
o
19
BRASIL. Lei n 10.406, De 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 10 ago. 2019.
20
PAIVA, F. J. C. B. E. de. A Responsabilidade Civil E O Abandono Afetivo Nas Relações Entre Pais e Filhos.
Arquivo Jurídico. Teresina-PI. vol. 1. nº. 6. p. 39-57. Jan/Jun. 2014
b) tê-los em sua companhia e guarda;
c) conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
d) nomear-lhes tutor, por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais lhe
não sobreviver, o outro sobrevivo não puder exercitar o poder familiar;
e) representá-los, até os 16 anos, nos atos da vida civil, e assisti-los após a idade, nos
atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
f) reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
g) exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e
condição;
h) administra-lhes os bens (art. 1.689);
i) conceder-lhes consentimento para serem adotados (art. 1621)
21
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 10 de ago. 2019.
22
MONTEMURRO, Danilo. Amor não é obrigatório, mas abandono afetivo de criança gera dano moral.
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-dez-06/amor-nao-obrigatorio-abandono-afetivo-gera-dano-moral
Acesso em: 06 dez. 2015.
prejuízo psicológico ao atingido pelo abandono, mas sim a violação das disposições legais
sobre o afeto, conforme o excerto a seguir:
“Mas não é a falta de amor que gera dano, não é o desamor por si só, o ato ilícito
praticado capaz de gerar o dano moral, mas sim a negativa em desferir amparo,
assistência moral e psíquica, é desatender as necessidades em prejuízo da
formação de uma criança, é, em muitos casos, desfazer os vínculos de afetividade
já estabelecidos, é, por derradeiro, o descumprimento dos deveres decorrentes do
poder familiar.” (MONTEMURRO: 2015, op cit)
“Art. 4º .......................................................................................................................
[...] § 2º Compete aos pais, além de zelar pelos direitos de que trata o art. 3º desta
Lei, prestar aos filhos assistência afetiva, seja por convívio, seja por visitação
periódica, que permita o acompanhamento da formação psicológica, moral e social
da pessoa em desenvolvimento.
23
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº. 3.212, de 2015. Altera a Lei nº 8.069, de 13 de
julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para caracterizar o abandono afetivo como ilícito civil.
Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1999535. Acesso
em: 10 ago. 2019
§ 3º Para efeitos desta Lei, compreende-se por assistência afetiva:
I – orientação quanto às principais escolhas e oportunidades profissionais,
educacionais e culturais;
II – solidariedade e apoio nos momentos de intenso sofrimento ou dificuldade;
III – presença física espontaneamente solicitada pela criança ou adolescente e
possível de ser atendida.” (BRASIL: 2015, p. 2)
“Art. 5º ………………………………………...........................................................
Parágrafo único. Considera-se conduta ilícita, sujeita a reparação de danos, sem
prejuízo de outras sanções cabíveis, a ação ou a omissão que ofenda direito
fundamental de criança ou adolescente previsto nesta Lei, incluindo os casos de
abandono afetivo.” (BRASIL; 2015, idem)
Para fins de orientar a doutrina e a jurisprudência, no sentido de pôr termo aos dilemas
sobre a abordagem da ilicitude do abandono afetivo, o Senado também se mobiliza com a
tramitação de importantes matérias legislativas: o Projeto de Lei do Senado 473/2013, de
autoria da Senadora Lídice da Mata, tramita “Com o escopo de adequar as necessidades da
sociedade atual ao ordenamento jurídico e reunir em um único local toda lei referente ao
Direito de Família” (GIANDOSO; op cit, p. 104). Especificamente nos Artigos 108 e 109 da
referida matéria busca considerar, assim como os projetos analisados anteriormente, a
ilicitude do abandono afetivo, assim como dispor sobre as competências dos pais no cuidado
com seus filhos.
Portanto, verifica-se que dada a incidência da responsabilidade civil elencada pelo
legislativo, unido ao que já foi disposto nas normas legais, cabe ressaltar a tendência do
judiciário rumo ao entendimento da procedência das ações que discorram sobre a
inafetividade. Todavia, como os regulamentos legais, assim como os projetos em tramitação
expressam maior proteção ao interesse da criança, sugere MONTEMURRO (2015, idem) : “o
autor da ação ou vítima do abandono deve ser, necessariamente, uma criança, adolescente ou
jovem e jamais um adulto. Ou seja, um adulto jamais terá pertinência ou legitimidade para
propor uma ação desta natureza, salvo se alegar fato ocorrido enquanto ainda adolescente,
salvo os prazos prescricionais.” Ainda subscreve MONTEMURRO:
24
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 898.060/SC. Relator: Ministro Luiz Fux. 21 de
setembro de 2016.
Por fim, fixa-se a repercussão geral na leitura do subitem da ementa, que segue: “16.
Recurso Extraordinário a que se nega provimento, fixando-se a seguinte tese jurídica para
aplicação a casos semelhantes: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro
público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na
origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais.”
Isto posto, conclui-se que, embora a repercussão geral não explicite o efeito vinculante
por questões de omissão legal, ou seja, a legislação seja silente sobre o efeito contra todos
(erga omnes) os tribunais, restringindo a vinculação destes decidirem de forma unânime
apenas em ações de controle de constitucionalidade nos termos do artigo 102, § 2º da
Constituição Federal, a importância do afeto vem conquistando espaço nas decisões
favoráveis à responsabilização judicial por abandono afetivo, graças à consolidação
Constitucional dos direitos à dignidade humana e à felicidade, que incorrerá em um futuro
próximo à vinculação pleiteada, dada a natureza da Lei de proteger os direitos fundamentais
do indivíduo e aplicar as devidas sanções aos seus infringentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
SANTOS, Maria Alice de Souza Santos. A Natureza do Afeto nas Relações Paterno Filiais
Frente às Responsabilização Civil. Dissertação. Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Belo Horizonte. 2011.
LOPES, Maria José Ferreira. De Pandora a Eva: Fontes Antigas da Misoginia Ocidental.
Revista Diacrítica vol. 26 nº. 2. Braga. 2012.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia
patriarcal. 48ª ed. São Paulo. Global.2003.
ROSENVALD, Nelson e FARIA, Cristiano Chaves. Direito Civil – Teoria Geral. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris. 2012.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha . Nem só de pão vive o homem: Responsabilidade Civil por
abandono afetivo. Artigo jornalístico. Jornal Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 3 - 3, 04
fev. 2006.
ARAÚJO, Amanda Siebra de. QUE O TEU (DES)AFETO ME AFETOU É FATO: Novas
perspectivas do abandono afetivo e material na jurisprudência brasileira. 2017. 58 f.
Monografia (Curso de Direito), Departamento de Ciências Jurídicas, Universidade Federal da
Paraíba, Santa Rita, 2017.
BRASIL. Lei no 10.406, De 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 10 ago. 2019.
MONTEMURRO, Danilo. Amor não é obrigatório, mas abandono afetivo de criança gera
dano moral. Disponível em:
http://www.conjur.com.br/2015-dez-06/amor-não-obrigatório-abandono-afetivo-gera-dano-m
oral. Acesso em: 10 ago. 2019.
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº. 3.212, de 2015. Altera a Lei
nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para caracterizar o
abandono afetivo como ilícito civil. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1999535.
Acesso em: 10 ago. 2019.