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ISSN 1516-6503
NA PSICOLOGIA
eISSN 2316-3402
Julia S. BUCHER-MALUSCHKE
Professora Doutora em Psicologia
psibucher@gmail.com
Resumo
A abordagem sistêmica na psicologia tem suas raízes na terapia familiar. Desenvolvida com inspiração na
teoria geral de sistemas, na teoria cibernética, entre outras, esta abordagem sistêmica tem recebido críticas
do construcionismo social pós-moderno, por sua visão estruturalista e mecanicista. A literatura científica
oferece novos paradigmas epistemológicos, com inspiração nos sistemas dinâmicos, os quais possibilitam
um novo olhar para a abordagem sistêmica na psicologia. Assim, sugere-se a adoção de uma integração da
perspectiva de auto-organização paralelamente à auto-regulação.
Palavras-chave: Psicologia Sistêmica; Construcionismo Social; Sistemas Dinâmicos.
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diferenciação entre essas identidades (Ramarajan (diferente da ética, forma teórica, argumentada,
e Reid, 2013). explicitada e codificada da moral); pelo héxis,
princípios interiorizados pelo corpo, posturas,
3 VISÃO CRÍTICA DO CONSTRUCIONISMO SOCIAL expressões corporais, aptidões corporais
adquiridas (Aristóteles); e pelo eidos, princípio de
Por outro lado, desde a proposição inicial da
construção da realidade a partir de crença pré-
aplicação da teoria sistêmica à psicologia,
reflexiva, modo de pensar específico, apreensão
diversas criticas tem sido apresentadas, uma vez
intelectual da realidade (Platão, Aristóteles).
que a metáfora cibernética na qual esta se apoia
passou a ser considerada por demais mecanicista O habitus apreende as relações entre
e reducionista para a análise de sistemas comportamento dos agentes e estruturas e
psicossociais, com o advento do construcionismo condicionamentos sociais (Setton, 2002),
social pós-moderno. conciliando o diálogo entre realidade exterior
(mundo objetivo) e realidades individuais (mundo
As estruturas sociais por si só não determinam a
subjetivo das individualidades). Habitus, nesse
vida em sociedade como pretendiam os
sentido, é um sistema de esquemas individuais,
estruturalistas (Araújo et al., 2008). A dimensão
socialmente constituído, de disposições
individual (agente social) não é uma simples
estruturadas (no social) e estruturantes (nas
consequência das determinações da estrutura
mentes).
social. Internalizam-se regras e normas sociais,
mas existem aspectos de condutas que não são O habitus da pessoa moderna é forjado pela
previsíveis. É como um jogo do qual sabe-se as interação de distintos ambientes (família, escola,
regras e seu sentido, mas no qual também se trabalho, grupos sociais, e cultura de massa), em
pode improvisar. uma configuração de padrões de conduta
abertos. A constituição da identidade social do
Neste contexto, o habitus (noção filosófica antiga,
indivíduo moderno se faz a partir do habitus, da
originária no pensamento de Aristóteles e da
ação e construção e não somente de uma prática
escolástica medieval) foi recuperado e
“automática".
retrabalhado, em contraste com conceitos
correntes tais como hábito, costume, praxe, O habitus designa uma competência prática
tradição (Bourdieu, 1967). Com o habitus, Bordieu (Wacquant, 2009), adquirida na e para a ação,
forja uma teoria disposicional da ação, que (i) resume uma aptidão social, variável no
intermediária entre a estrutura e a ação. Assim, o tempo e no espaço, e com as distribuições de
habitus é um sistema de disposições, modos de poder; (ii) é transferível a vários domínios de
perceber, de sentir, de fazer, de pensar, que nos prática, e fundamenta distintos estilos de vida;
levam a agir de determinada forma em uma (iii) é durável mas não estático: disposições
circunstância dada (Wacquant, 2009) socialmente construídas podem ser moldadas por
novas forças externas; (iv) é dotado de inércia,
O habitus constitui a maneira de perceber, julgar
onde prevalecem práticas moldadas das
e valorizar o mundo, e molda a forma de agir,
estruturas sociais que as geraram, as quais filtram
corporal e materialmente (Thiry-Cherques, 2006).
as últimas experiências e limitam as novas
É composto: pelo ethos, princípios práticos, não-
disposições aprendidas (daí o peso dos esquemas
conscientes, conjunto de disposições morais
adquiridos na infância); (v) introduz uma
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defasagem e, por vezes, um hiato entre as lutas são levadas a efeito estratégias não
determinações passadas que o produziram e as conscientes, que se fundam no habitus individual
determinações atuais que o interpelam (de tal e dos grupos em conflito (Thiry-Cherques, 2006).
forma internalizado que chega-se a ignorar que Os determinantes das condutas individual e
existe). coletiva são as posições particulares de todo
agente na estrutura de relações. De forma que,
O habitus é condicionante e é condicionador das em cada campo, o habitus, socialmente
ações, não designa simplesmente um constituído por embates entre indivíduos e
condicionamento, mas simultaneamente um grupos, determina as posições, e o conjunto de
princípio de ação (Thiry-Cherques, 2006). É posições determina o habitus. Os campos não são
estrutura (disposições interiorizadas duráveis) e estruturas fixas. São produtos da história das suas
estruturante (gerador de práticas e posições constitutivas e das disposições que elas
representações). Possui dinâmica autônoma, sem
privilegiam. Todo campo se caracteriza por
direção consciente, forjada pela lógica do campo agentes dotados de um mesmo habitus. O campo
social. Contém o conhecimento e o estrutura o habitus, e o habitus constitui o
reconhecimento das “regras do jogo” em um
campo. O habitus é a internalização ou
campo determinado. O habitus funciona como incorporação da estrutura social, enquanto o
esquema de ação, de percepção, de reflexão e é o campo é a exteriorização ou objetivação do
produto da experiência biográfica individual, da habitus (Thiry-Cherques, 2006). Enquanto
experiência histórica coletiva e da interação entre
integrantes de um campo, inscritos no seu
essas experiências. “Uma espécie de programa, habitus, não se pode ver com clareza suas
no sentido da informática, que todos nós determinações, nem se é capaz de discuti-lo.
carregamos” (Thiry-Cherques, 2006)(p.34).
Pelo habitus, incorpora-se a história, tanto no 4 NOVO OLHAR PARA A ABORDAGEM SISTÊMICA
estado objetivado (monumentos, livros, teorias), NA PSICOLOGIA
quanto na forma de disposições. Assim,
manifesta-se em condutas regulares, as quais De forma a conciliar e atualizar a visão sistêmica,
permitem prever práticas — as “coisas que se incorporando o conceito do habitus, constata-se a
fazem” e as “coisas que não se fazem” em necessidade de considerar a dinâmica
determinado campo. É tanto individual quanto disposicional e situacional das estruturas
coletivo, diferenciado e diferenciante, aflorando psicossociais, buscando inspiração na teoria dos
no estilo de vida individual e nas afinidades da sistemas dinâmicos, na teoria do caos e de
coletividade. Não só está no indivíduo, como o sistemas complexos.
indivíduo se situa em um campo que circunscreve
um habitus específico. Os cientistas comportamentais e sociais
enfrentam grande desafio na tradução dos
A dinâmica social se dá no interior de um campo conceitos da complexidade de sistemas dinâmicos
(segmento social), onde agentes (indivíduos e (Eidelson, 1997), propostos originalmente nas
grupos) têm disposições específicas (habitus), e é ciências naturais, para sistemas humanos
regida por lutas entre agentes, relações de força e (pessoas, grupos, sociedades), por duas razões
distribuição das formas de capital específico principais: confusão sobre os conceitos e as
(cultural, econômico, social, simbólico). Nessas definições da complexidade; e o pressuposto
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aceito nessas ciências de que sistemas humanos Outro importante processo na evolução humana,
são guiados para um estado de equilíbrio, e um relevante para a psicologia social, é o efeito
único estado de equilíbrio existe para um dado Baldwin, o qual postula um mecanismo para
sistema. A ideia de dinâmicas instáveis, auto- assimilação genética de características adquiridas.
organizadas e distantes do equilíbrio, inerentes à O efeito Baldwin é um caso especial do processo
complexidade, tendiam a ser entendidas como etológico da construção do nicho (Maclennan,
desvios e desorganização social, e não como 2007), que é um processo de realimentação pelo
padrões emergentes. qual primeiro uma população altera seu ambiente
em benefício próprio, mas depois os indivíduos se
No entanto, hoje constata-se que muito da vida adaptam ao ambiente modificado, o que provoca
social é experienciada por processos mentais, novas modificações, e assim por diante. O
acionados automaticamente com base nas resultado é uma coevolução, complexa e
características do ambiente social imediato imprevisível, da população e de seu ambiente.
(pertencimento aos grupos, qualidade dos Predisposições genéticas para organizações
relacionamentos, hierarquia e normas sociais). A
sociais complexas possivelmente resultam desse
automaticidade na vida social se refere ao processo de construção de nicho.
controle interno e inconsciente dos processos
psicológicos (Bargh e Williams, 2006), a qual se Além disso, foi evidenciado que há diferentes
estende além da percepção e da interpretação do graus na capacidade de aprendizado, variando
mundo social, influenciando e guiando a agência entre organismos e ambientes, com vantagens
e as interações sociais do indivíduo, por longos diferenciadas entre as espécies, em função de sua
períodos. Assim, as influências automáticas na criticidade na adaptação e na sobrevivência
vida social são numerosas e diversas, podendo se (Seligman, 1970), ou seja, existe uma preparação
estender a contextos não relacionados (por da aprendizagem (“terreno fértil”).
exemplo, da família para o trabalho, e vice-versa),
nos quais decisões e escolhas comportamentais Na cibernética de segunda ordem, já se
reconhece a inseparabilidade entre agente e
são influenciadas inconscientemente.
sistema observador, e os processos cognitivos são
O conceito de automaticidade dos processos explicados a partir das dinâmicas acopladas entre
cognitivos superiores tem sido amplamente agentes e ambientes (Bishop e Nasuto, 2005). Ao
evidenciado em estudos psicológicos (Bargh et al., entender a cognição como um processo dinâmico
2012), portanto, a automaticidade não decorre contínuo, a cibernética de segunda ordem rejeita
apenas de um processo de aquisição de a noção de cognição como manipulação
habilidades, no qual um processo consciente e computacional de representações. O agente
deliberado é repetido até ser automatizado, mas interage com o mundo complexo, sem
também de substratos evolutivos e de necessidade de uma representação explícita.
mecanismos de aprendizado desde a primeira
Com base nas contribuições da psicologia
infância. A psicologia social envolve uma
interação complexa entre processos conscientes e evolucionista para o entendimento do
automáticos, onde os primeiros causam e desenvolvimento social, a teoria de sistemas
complexos pode ser utilizada para modelar a
também são causados pelos últimos (Bargh et al.,
2012). emergência e a evolução das estruturas sociais
(Maclennan, 2007). Em particular, o paradigma
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conexionista dos sistemas dinâmicos tem se uma abordagem enativa, baseada em uma
implicações relevantes para a psicologia social. O coemergência entre sujeito e objeto (Mcgann et
conexionismo sofreu objeções anteriores, por al., 2013). Por meio deste, os processos
exemplo, com base na teoria da linguagem psicológicos são estudados como interações
(Chomsky, 1956), a qual previa o conhecimento dinâmicas entre agentes autônomos e seus
inato de regras gramaticais comum às linguagens ambientes, onde a cognição não se restringe a um
naturais. indivíduo, mas emerge dinamicamente do
relacionamento deste com seu contexto
No entanto, o conexionismo prove uma
(incluindo outros agentes).
explicação alternativa para o comportamento
aparente de seguir regras, com base nos recentes A abordagem enativa da cognição supera uma
achados da neurociência (Maclennan, 2007). visão de processamento de informações baseado
Apesar de não existir regras explícitas em uma em representações, e prove a naturalização da
rede conexionista, como as redes neurais significação de comportamentos e contextos, os
cerebrais, o efeito cumulativo das muitas quais emergem de relações complexas entre
conexões e computações individuais podem exibir agentes cognitivos e ambientes, por meio de
um comportamento emergente regular, o qual interações dinâmicas.
pode ser similar ao seguimento de regras.
Na teoria de sistemas dinâmicos, entende-se
O conexionismo não é apenas um método como emergência o desenvolvimento coordenado
alternativo para obter resultados semelhantes ao de um conjunto de estruturas, funções e padrões,
seguimento de regras, mas sim apresenta qualitativamente diferentes, em um sistema
características de flexibilidade e sensibilidade ao dinâmico, o qual não pode ser reduzido nem
contexto, típicas do comportamento humano. previsto a partir do conhecimento das condições
precedentes do sistema (Piers, 2007). O
O enfoque conexionista é reforçado pelas funcionamento psicossocial é emergente de uma
pesquisas com o aprendizado e comportamento dinâmica de mudanças qualitativas nas
de especialistas (Dreyfus e Dreyfus, 1980), experiências individuais de auto-direcionamento
evidenciando que o comportamento de novatos ou de agência, que se processa em contextos
se assemelha mais ao seguimento de regras, do psicológicos que não possibilitam o
que o dos especialistas, os quais abandonam o reconhecimento imediato das razões explicativas
uso estrito de regras procedimentais e se
da mudança.
comportam de formas mais flexíveis e sensíveis
ao contexto. Um conjunto de características distingue a
emergência de conceitos similares (Goldstein,
No entanto, o conexionismo não deve ser 2007): organização radicalmente nova
confundido como uma nova forma de (imprevisível e irredutível); dinâmica (mutável no
ambientalismo, que absolutamente não postula a tempo); ostensiva (manifesta no sistema);
hipótese da tabula rasa, mas sim um enfoque aderente (integração duradoura de componentes
paradigmático para modelar o funcionamento do sistema); e no nível macro (organização em
psicossocial. nível superior ao nível micro dos componentes
Além do conexionismo, para incorporar os sendo organizados).
achados da neurociência na psicologia, propõem-
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