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ARTIGO DE TEMA LIVRE ARTIGO DE TEMA LIVRE

EDITORIAL
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EDITORIAL
UM CORPO SEM CARNE: CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE OS
LIMITES DO “MATERIALISMO” DE JUDITH BUTLER
Nesta edição da revista Gênero, apresentaremos o dossiê Gênero,
Políticas Públicas e Serviço Social, organizado pelas professoras doutoras
Caynnã
LucianaSantos
Zucco e Teresa Kleba Lisboa, ambas da Universidade Federal de
Virgínia Ferreira
Santa Catarina (UFSC), e pela professora doutora Magali Silva Almeida,
da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Serão apresentadas discus-
sões sobre gênero
RESUMO: e a interseccionalidade
A teoria da performatividade entre raça e classe;
de gênero tal comosexualidade;
proposta por
violência; migração feminina; encarceramento de mulheres; e suas
Judith Butler é acusada de por vezes flertar com determinada semiologização inter-
faces com as políticas públicas, visando contribuir para o aprofundamento
irrestrita do mundo, dando forma a um posicionamento sobre o corpo que
dos estudos sobre a temática no serviço social. Esses estudos são de
parece elidir sua concretude. No presente ensaio, debruçamo-nos sobre os
grande relevância em um contexto de graves retrocessos no campo das
sentidos atribuídos por Butler à noção de materialidade corporal, privilegiando
políticas públicas e de avanço do racismo e da violência contra mulheres,
a análise crítica de suas teorizações em seu hoje clássico Bodies That Matter
homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais devido ao neoconservado-
(1993), obra que ganhou recentemente sua primeira edição em língua portu-
rismo e ultraneoliberalismo que dominam o Estado brasileiro.
guesa. Filiando-nos à polêmica em torno do “materialismo falho” butleriano,
Ademais, esta
identificamos duasedição conta com
“modalidades deuma série de artigos
materialidade” de temas
em seus livres,
escritos, sendo
como adoção por casais do mesmo sexo; mulheres e esporte; participação
ambas, argumentamos, limitadas por certa inclinação exacerbada ao discursivo.
feminina
Por fim, na democraciaem
defendemos, portuguesa; feminismo
confluência com osnegro; aborto;
recentes e trabalho
desenvolvimentos
doméstico. Oferece,
neomaterialistas, ainda, duas resenhas:
a necessidade uma sobre o livro Edeseuma
de resgate/construção fosse noção
você? de
sobrevivendo às redes de ódio e fake news, de autoria de Manuela
materialidade corporal situada além da inconcretude que permeia muitas d’Ávila;
e outra sobre o livro Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano,
das atuais considerações feministas pós-estruturalistas sobre os corpos.
que tem como autora Grada Kilomba. Sendo assim, convidamos a todas
PALAVRAS-CHAVE:Judith
e todos, da comunidade acadêmica Butler;
oumatéria;
não, quecorpo;
possuemteoria feminista.
interesse pelos
estudos de gênero a desfrutar de uma ótima leitura.
ABSTRACT: The theory of gender performativity as proposed by Judith
Butler is accused
Equipe of flirting with an unrestricted ‘semiologization’ of the world,
editorial:
positioning
João Bosco theHora
bodyGóisin a way that elides its concreteness. In this essay, we
focus on the meanings
Kamila Cristina da Silva attributed
Teixeiraby Butler to the notion of “materiality of
the body”, as presented in her classic Bodies That Matter (1993), which has
Sidimara Cristina de Souza
recently received its first translation into Portuguese. Joining the polemic
concerning Butler’s ‘failed materialism’, we identify that the author mobilizes
two “modalities of materiality” in her writings, both of which, we argue, are
considerably limited by an exaggerated inclination toward the discursive.
Finally, we advocate, following insights from new materialist scholars, the
need to rescue/construct a notion of corporeal materiality situated beyond
the lack of concreteness that pervades many of the current poststructuralist
feminist considerations about bodie.
KEYWORDS: Judith Butler; matter; body; feminist theory.
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INTRODUÇÃO
Fato é que os escritos de Judith Butler figuram hoje como um edifício Nesta edi
teórico incontornável para públicos especializados ou não cujos interesses se Políticas Públ
situam em temáticas caras aos estudos de gênero e sexualidade. Sua produção Luciana Zucco
teórica desconcertante, como bem adjetivaram Leandro Colling e Larissa Santa Catarin
Pelúcio (2015), aliada à sua incansável disposição a se fazer praticamente ubíqua
da Universida
nos mais relevantes e prementes debates públicos da atualidade, renderamsões à sobre gê
Queen of Gender, como coroada por Gayle Rubin (2003), um contingente violência; mig
de dedicadas/os admiradoras/es que só rivaliza, em número, à quantidade faces com as
de suas/seus ferrenhas/os detratoras/es. Os “amores e ódios” que a prática dos estudos
político-teórica de Butler inspira, evidenciados de modo explosivo na última grande relevâ
visita da pensadora ao Brasil no ano de 2017, podem ser interpretados como políticas públi
sintomáticos não apenas da incompreensão de suas teorias – fator indubita- homossexuais
velmente central quando analisamos os lamentáveis protestos e ataques dos rismo e ultran
quais a filósofa foi vítima em nosso país –, mas também parecem expressar Ademais,
a ambiguidade e passionalidade características das formas de tratamento como adoção
reservadas às/aos grandes intelectuais de nosso tempo. feminina na d
O presente ensaio, nos antípodas de um esforço voltado para a análise da doméstico. O
sobrevivendo à
recepção brasileira dos estudos queer, dos trabalhos de Butler ou dos sentimentos
e outra sobre
que públicos especializados ou não nutrem acerca da figura da autora, elege
que tem com
como seu objeto de interesse os sentidos atribuídos nos escritos da pensadora
e todos, da co
norte-americana à noção de matéria. Especificamente, objetivamos oferecer
estudos de gê
uma visada crítica acerca das teorizações butlerianas da materialidade corporal,
tomando seu hoje clássico Bodies that Matter (1993) – texto que, oportuna-
mente, ganhou há pouco sua primeira edição em língua portuguesa (BUTLER, Equipe ed
2019) – enquanto obra prioritária, porém não exclusiva, de análise. Com isso, João Bosc
pretendemos apresentar um pequeno contributo para a longeva polêmica Kamila Cr
feminista acerca daquilo que Vicki Kirby (2006) nomeou de “materialismo Sidimara C
falho” proposto pela filósofa. Mediante nossas leituras, identificamos que
Butler mobiliza dois entendimentos particulares de matéria, sendo ambos,
argumentamos, limitados consideravelmente por certa inclinação exacerbada
ao discursivo, marca de determinadas vertentes do pós-estruturalismo que,
por vezes, flertaram com uma espécie de semiologização irrestrita do mundo.
Nossas discussões aqui expostas – potencialmente reconhecíveis como
envoltas em certo teor “iconoclasta”, dado o fato de se endereçarem a propostas
daquela que figura como uma das autoras feministas de maior aceitação por parte
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das/os estudiosas/os brasileiras/os do gênero – são animadas pelo entendimento
de que as teorias feministas, na atualidade, veem-se confrontadas com a
Nesta edição da revista Gênero, apresentaremos o dossiê Gênero,
urgente tarefa de novamente “levar a matéria a sério” (ALAIMO, 2010, p.6).
Políticas Públicas e Serviço Social, organizado pelas professoras doutoras
Acreditamos
Luciana Zuccoque os potenciais
e Teresa futurosambas
Kleba Lisboa, de intervenção político-teórica
da Universidade Federal de radical
do pensamento
Santa feministaeserão
Catarina (UFSC), condicionados
pela professora peloMagali
doutora seu sucesso, no presente,
Silva Almeida,
em
da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Serão apresentadas discus- que
resgatar/propor uma noção de matéria situada além da inconcretude
permeia
sões sobreo paradigma
gênero e avigente nas teorizações
interseccionalidade sobre
entre a corporalidade
raça – paradigma
e classe; sexualidade;
este,
violência; migração feminina; encarceramento de mulheres; e suas p.
responsável por dar forma àquilo que Terence Turner (1994, 36), em
inter-
sua crítica
faces com àaselisão da anatomia
políticas públicas,em Foucault,
visando chama
contribuir de “um
para corpo sem carne”.
o aprofundamento
dos Neste
estudos sentido,
sobre cabe ressaltar no
a temática queserviço
o presente esforço
social. analítico-argumentativo
Esses estudos são de
grande
se dá norelevância
bojo de um em emergente
um contextomovimento
de graves retrocessos no campo
político-teórico das à
transversal
políticas públicas e de avanço do racismo e da violência contra
sociologia, antropologia e filosofia, caracterizado pela renovada importância mulheres,
homossexuais,
que confere àsbissexuais,
dimensões travestis e transexuais
tangíveis do mundodevido ao neoconservado-
e de seus actantes humanos
rismo e ultraneoliberalismo que dominam o Estado brasileiro.
e não-humanos, movimento este que dá forma àquilo que se convencionou
chamar nos últimos
Ademais, anosconta
esta edição de “virada
com uma ontológica” ou “virada
série de artigos material”.
de temas livres, No
campo dos estudos
como adoção de gênero
por casais do mesmoe feministas, essa tendência
sexo; mulheres e esporte;separticipação
sedimenta nos
feminina daquilo
esforços na democracia
que temportuguesa;
sido comumentefeminismo
nomeadonegro;deaborto; e trabalho
“feminismo material”
doméstico.
ou Oferece, ainda,
“neomaterialismo”. duas resenhas:
A título de sucintauma sobre o livro E seessa
contextualização, fosseemergente
você?
sobrevivendo às redes de ódio e fake news, de autoria de
vertente do pensamento feminista contemporâneo parte do entendimento Manuela d’Ávila;
e outra
de sobre
que as o livro Memórias
tendências teóricas da plantação:
herdeiras da episódios de racismoentre
virada linguística, cotidiano,
elas a(s)
que tem como autora Grada Kilomba. Sendo assim, convidamos
teoria(s) queer, em sua característica ênfase pós-estruturalista no “primado a todas
e todos,
da da comunidade
cultura” (DE LAURETIS, acadêmica
2004),ou não, que possuema interesse
negligenciaram pelos dos
materialidade
estudos de gênero a desfrutar de uma ótima leitura.
corpos e das práticas regulatórias nas análises do fenômeno sexual. Nossas
discussões aqui apresentadas, longe de buscarem criar falsas dicotomias entre
posições
Equipeteóricas,
editorial:pretendem-se movimentos críticos iniciais em direção a
futuras
Joãoalianças potencialmente
Bosco Hora Góis profícuas, mediante as quais as teorias queer e
neomaterialistas enriquecer-se-ão
Kamila Cristina da Silva Teixeira
mutuamente, norteadas pela meta comum
de pensar a temática da matéria “sem seu habitual acompanhamento de
Sidimara Cristina de Souza
essencialismo” (HIRD, 2004, p.227).
Tendo em mente os objetivos do presente texto, iniciamos nosso percurso
analítico-argumentativo a partir de uma revisão sintética e direcionada (isto
é, sem qualquer pretensão exaustiva) de algumas das principais teorizações
de Judith Butler no concernente ao modo como as normas sociais de sexo e
gênero produzem corpos e subjetividades segundo uma dinâmica performativa.
Nesse primeiro momento de nossa exposição, sublinhamos a influência da
noção althusseriana de interpelação ideológica sobre as propostas butlerianas,
elemento este que nos permitirá melhor compreender o importante conceito
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de “materialização” como pensado pela autora. Em seguida, damos início à
nossa leitura mais propriamente crítica, acentuando os limites das duas noções
Nesta edi
gerais de “materialidade corporal” que identificamos em seus escritos. Por fim,
Políticas Públ
propomos uma breve discussão que aponta para a necessidade de real superação Luciana Zucco
dos binarismos tradicionais entre natureza e cultura, matéria e discurso, que Santa Catarin
continuam a permear e limitar os correntes debates político-teóricos acerca da Universida
da materialidade corporal – limitações estas que, como veremos, também se sões sobre gê
fazem presentes nas proposições de Judith Butler. violência; mig
faces com as
dos estudos
BUTLER: DESESTABILIZANDO (EFEITOS DE) VERDADES
grande relevâ
Judith Butler se empenha em um esforço de desconstrução da oposição políticas públi
binária sexo/gênero, de modo a trazer definitivamente para o campo discursivo homossexuais
categorias ditas “naturais” ou “originárias”, como sexo, corpo e binarismo rismo e ultran
sexual. Criticando os entendimentos dominantes até finais da década de 1980, Ademais,
que partiam da suposição de que haveria uma oposição rígida entre o fato como adoção
biológico “sexo” e o modo culturalmente determinado de expressão dessa feminina na d
diferença sexual “gênero”, Butler ([1990] 2003) defende que o gênero é, doméstico. O
mais do que um meio social de atribuição de sentidos aos sexos, um aparato sobrevivendo à
discursivo através do qual se cria a ilusão do sexo como propriedade natural e outra sobre
dos corpos humanos: que tem com
e todos, da co
[...] o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o
estudos de gê
meio discursivo/cultural pelo qual ‘a natureza sexuada’ ou ‘um sexo natural’ é produzido
e estabelecido como ‘pré-discursivo’, anterior à cultura, uma superfície politicamente
neutra sobre a qual age a cultura (BUTLER, 2003, p. 25).
Equipe ed
João Bosc
Nesse sentido, na esteira de Foucault, Butler argumenta que o processo Kamila Cr
de identificação de gênero é sempre um processo de essencialização informado
Sidimara C
por relações de poder-saber, que funciona no sentido de transformar atos
isolados em substância. A partir da citação repetitiva de atos performativos,
noção esta que a autora busca na teoria dos atos de fala de J. L. Austin,
indivíduos constituem a ficção reguladora de existência de corpos sexuados
e subjetividades genderizadas prévios à sua produção discursiva. Tal dinâmica
performativa, definida por Butler (1993, p.2) como “uma prática reiterativa
e citacional mediante a qual o discurso produz aquilo que nomeia”, porém,
não se desenvolve arbitrariamente, mas busca fixar identidades e produzir
corpos dentro do espectro binário definido pelo regime regulatório dos dois
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sexos. Desse modo, a partir do condicionamento continuado do corpo e dos
atos perceptivos, assim como pela repetição estilizada de gestos significantes,
Nesta edição da revista Gênero, apresentaremos o dossiê Gênero,
as normas disciplinares são reificadas, materializando-se em subjetividades e
Políticas Públicas e Serviço Social, organizado pelas professoras doutoras
corpos
Lucianadisciplinados
Zucco e Teresa segundo
Kleba as categorias
Lisboa, ambasdedamasculinidade e feminilidade.
Universidade Federal de
Por esta perspectiva, portanto, o sexo é enquadrado como
Santa Catarina (UFSC), e pela professora doutora Magali Silva Almeida, tão culturalmente
construído quantoFederal
da Universidade o gênero,datornando obsoletoSerão
Bahia (UFBA). o modelo analítico hegemônico
apresentadas discus-
nos
sões sobre gênero e a interseccionalidade entre raça e classe; sexualidade;uma
debates feministas até meados da década de 1980, que concebia
oposição
violência; rígida
migraçãoentre os dois termos.
feminina; Assim como
encarceramento a aparência
de mulheres; de existência
e suas inter-
de uma identidade de gênero estável e essencial é produto
faces com as políticas públicas, visando contribuir para o aprofundamento de um conjunto
de
dosperformances
estudos sobreestruturadas
a temática por uma matriz
no serviço heteronormativa,
social. Esses estudos são o sexo
de não
égrande
uma característica
relevância emdada e fixa dosde
um contexto corpos,
gravesmas uma norma
retrocessos no regulatória
campo das que
atua de modo
políticas públicasperformativo,
e de avanço produzindo
do racismo easdadiferenças (sexuais)
violência contra que fala e,
mulheres,
homossexuais,
assim, bissexuais,
materializando travestis
os corpos e transexuais
como “sexuados” devido ao neoconservado-
(BUTLER, 1993, p.xi) (nos
rismo e ultraneoliberalismo
aprofundaremos no importanteque dominam
conceitoode Estado brasileiro. adiante).
“materialização”
Ademais,
É possível esta edição conta
antecipar, comcombaseuma série
nessa de artigos denecessariamente
apresentação temas livres,
como adoção por
esquemática, casais das
algumas do mesmo
críticassexo;
que mulheres e esporte; participação
foram endereçadas a Butler e sua
teorização performativa das identidades de gênero e do corpo esexuado.
feminina na democracia portuguesa; feminismo negro; aborto; trabalhoUma
doméstico.
das Oferece,
principais linhas de ainda, duas resenhas:
contestação uma sobre
consistiu o livro E sede
em acusações fosse
quevocê?
a autora
sobrevivendo às redes de ódio e fake news, de autoria de Manuela
reduziria as subjetividades sexuadas a efeitos das normas culturais e do discurso, d’Ávila;
e outra sobre
incorrendo emouma livronova
Memórias
formada deplantação: episódios
determinismo de racismo
(de cariz cotidiano,
cultural) que exclui a
que tem como autora Grada Kilomba. Sendo assim, convidamos
materialidade e a biologia, de modo a propor uma espécie de “sujeito-discurso”, a todas
e todos,
uma da comunidade
versão pós-modernaacadêmica ou não, abstrata
da subjetividade que possuem interessecartesiana.
e incorpórea pelos
estudos de gênero a desfrutar de uma ótima leitura.
O determinismo cultural butleriano ao qual tais críticas se referem pode
ser mais facilmente observado a partir de uma breve leitura das apropriações
queEquipe
a autoraeditorial:
faz da célebre noção de “interpelação” como proposta por Louis
Althusser – noção
João Bosco HoraestaGóisque Butler defende como ainda fornecedora de uma
baseKamila
sólida para as teorizações
Cristina contemporâneas dos processos de subjetivação
da Silva Teixeira
(BUTLER,
Sidimara 1997ª).
CristinaEmbora o conceito seja utilizado pela pensadora em diversos
de Souza
de seus trabalhos e em variados contextos argumentativos (BUTLER, 1993;
1997ª; 1997b), nos debruçaremos aqui sobre seu emprego em Bodies that
Matter, trabalho no qual a autora norte-americana se coloca a tarefa de pensar
mais detidamente o lugar do corpo em meio aos processos performativos de
constituição de um “eu” sexuado.
Por interpelação, Althusser compreende o chamamento ideológico que
tem a função de “transformar” indivíduos em sujeitos (ALTHUSSER, 1996,
p.133). O funcionamento de tal processo discursivo de subjetivação é ilustrado
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pelo autor mediante um exemplo simples: uma corriqueira interpelação da
Polícia – “Ei, você aí!”.
Nesta edi
Políticas Públ
Presumindo-se que a cena teórica que imaginei ocorra na rua, o indivíduo chamado
Luciana Zucco
se voltará. Por essa mera virada física de 180 graus, ele se torna sujeito. Por quê?
Santa Catarin
Porque reconheceu que o chamado ‘realmente’ se dirigia a ele, e que ‘era realmente
da Universida
ele que estava sendo chamado’ (e não outra pessoa). (ALTHUSSER, 1996, p.133)
sões sobre gê
Butler mobiliza tal noção de modo a erió-la como uma prática performativa violência; mig
faces com as
de nomeação, que constitui como sujeito o nomeado, introduzindo-o em um
dos estudos
quadro de inteligibilidade cultural preexistente. Em sua argumentação ela
grande relevâ
aponta a interpelação do gênero como a nomeação performativa fundante,
políticas públi
que cria as condições culturais para a emergência de um ser humano “viável”,
homossexuais
isto é, subjetivado e inteligível.
rismo e ultran
Consider the medical interpellation which (the recent emergence of the sonogram Ademais,
notwithstanding) shifts an infant from an “it” to a “she” or a “he”, and in that naming, como adoção
the girl is “girled”, brought into the domain of language and kinship through the feminina na d
doméstico. O
interpellation of gender. But that “girling” of the girl does not end there; on the contrary,
that founding interpellation is reiterated by various authorities and throughout various
sobrevivendo à
intervals of time to reinforce or contest this naturalized effect (BUTLER, 1993, p.7-8)1.
e outra sobre
que tem com
Fica claro que, para Butler, a interpelação normativa do gênero, calcada e todos, da co
na matriz binária, é o momento inaugural, constitutivo, do sujeito na cultura. estudos de gê
Em outro contexto argumentativo, quando discutindo as interpretações de
sua teoria da performatividade do gênero apresentada em Gender Trouble, Equipe ed
Butler (1994) acentua que não há um sujeito que preexiste à sua consti- João Bosc
tuição cultural performativa, diferenciando as noções de performance e Kamila Cr
performatividade. Enquanto performances presumem a existência anterior
Sidimara C
de um sujeito que atua seu gênero, o que pode conduzir ao entendimento
voluntarista de que as pessoas são livres para atuarem seus gêneros e corpos
como bem entenderem, a noção de performatividade sublinha que não há
subjetividade que antecede sua atuação performativa. Nesse sentido, os
sujeitos não são a fonte da qual emanam as performances deliberadamente,
isto é, aqueles que estão “por trás” das atuações de gênero. Aludindo aos

1 Visando maior precisão e fidelidade na apresentação das propostas da autora, optamos por manter as
citações diretas de maior extensão em inglês.
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véus de Nietzsche, o sujeito não é, segundo a autora, aquilo que está oculto
por véus e atos, mas sim aquilo que só adquire existência no aparente jogo
Nesta edição da revista Gênero, apresentaremos o dossiê Gênero,
de sua ocultação.
Políticas Públicas e Serviço Social, organizado pelas professoras doutoras
UmaZucco
Luciana dificuldade
e Teresamuitas
Kleba vezes
Lisboa,notada,
ambas no entanto, subjaz
da Universidade à suadeargu-
Federal
mentação
Santa Catarina (UFSC), e pela professora doutora Magali Silva Almeida, as
– que, a esta altura, parece dotar de alguma legitimidade
críticas que a acusam
da Universidade Federaldedadefinir
Bahiao(UFBA).
sujeito comoSerãopura “posição discursiva”.
apresentadas discus-
Esta
sões sobre gênero e a interseccionalidade entre raça e classe; sexualidade; de
dificuldade, que decorre do fato da autora apresentar o processo
interpelação sob afeminina;
violência; migração forma deencarceramento
uma sucessão de temporal
mulheres;e causal, pode ser
e suas inter-
vislumbrada
faces com as políticas públicas, visando contribuir para o aprofundamento à
a partir dos seguintes questionamentos: o que preexiste
interpelação
dos estudos sobreideológica? Do que
a temática noseserviço
trata este
social.“it”Esses
que éestudos
transformado
são depelo
chamamento
grande relevância médicoem um em contexto
um “she”de ougraves
“he”? retrocessos
Estaríamosno diante
campo de das
alguma
espécie
políticas de individualidade
públicas e de avançoou domaterialidade corporalcontra
racismo e da violência “pré-linguística”
mulheres, e
homossexuais,
não exaurida pelo bissexuais, travestis e transexuais devido ao neoconservado-
discurso?
rismoAntes
e ultraneoliberalismo
de nos debruçarmos que detidamente
dominam o Estadosobre osbrasileiro.
entendimentos da autora
Ademais, esta edição conta com uma série
acerca da materialidade dos corpos, cabe acentuar que os de artigos deposicionamentos
temas livres,
como
de adoção
Judith porsobre
Butler casaisodotemamesmo sexo; mulheres
se colocam longe dee qualquer
esporte; participação
possibilidade de
feminina na democracia portuguesa; feminismo negro;
rotulação enquanto formas simplistas e vulgares de construtivismo aborto; e trabalho
linguístico.
doméstico.
Em Bodies Oferece,
that Matter, ainda,texto
duas que
resenhas:
veio uma
a se sobre
tornaro livro E se fosse
canônico você?à sua
devido
sobrevivendo às redes de ódio e fake news, de autoria de
inovadora e provocativa abordagem das dinâmicas de subjetivação em suas Manuela d’Ávila;
e outra sobre
relações com oa materialidade
livro Memórias corporal,
da plantação:
Butlerepisódios
edificadeum racismo cotidiano,
portentoso quadro
que tem como autora Grada Kilomba. Sendo assim, convidamos
teórico que reconhece os efeitos constitutivos dos discursos e do poder a todas
e todos,
sem, paradatanto,
comunidadeincorreracadêmica ou não,linguísticos
em idealismos que possuem interesse
próprios pelos
a vertentes
estudos de gênero a desfrutar de uma ótima leitura.
extremadas do pós-estruturalismo. Igualmente, tal obra aborda a natureza
material do corpo humano sem, contudo, retomar posições que compreendem
o mesmo
Equipeenquanto
editorial: uma facticidade material autoevidente (BARAD, 2007,
p. 191).
JoãoAinda,
Bosco Horaao descrever
Góis os processos de construção social dos corpos
comoKamila Cristina da Silva Teixeira Butler desestabiliza radicalmente as
dinâmicas de “materialização”,
tradicionais formas de compreensão das inter-relações entre epistemologia e
Sidimara Cristina de Souza
ontologia, movimento este que seria fundamental para os desenvolvimentos
teóricos posteriores vinculados ao neomaterialismo.
Sublinhados os méritos da visada butleriana, podemos afirmar que,
em Bodies that Matter, nos são apresentadas duas definições distintas de
matéria, sendo ambas, argumentamos, marcadas pela tendência pós-estru-
turalista a atribuir primazia à dimensão discursiva do fenômeno material.
Tal inclinação ao discursivo atua, na obra, como verdadeiro impeditivo à
real superação (lê-se: não apenas retórica) das oposições binárias natureza/
cultura, matéria/discurso, corpo/mente, elementos basilares dos regimes
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de sentido modernos, responsáveis pela subestimação do valor agencial dos
termos primeiros destas dicotomias. A primeira definição de matéria dada
Nesta edi
por Butler, à qual nos referimos como “matéria” (entre aspas), designa o
Políticas Públ
efeito material produzido pelos processos discursivos de materialização. LucianaA Zucco
segunda, à qual nos referimos como matéria (em itálico), diz respeito ao Santa Catarin
espaço de exclusão constitutiva que possibilita o funcionamento das práticas da Universida
discursivas e demarca os limites dos regimes de inteligibilidade cultural. sões A sobre gê
seguir, abordamos criticamente ambas as definições. violência; mig
faces com as
dos estudos
OS LIMITES DISCURSIVOS DA “MATÉRIA” grande relevâ
Judith Butler (1993) propõe uma radical reformulação da tradicional políticas públi
concepção ocidental de matéria, subjacente às formulações filosóficas metafísicas,
homossexuais
ao representacionismo e às teorizações feministas (inclusive construtivistas), rismo e ultran
que a tomam enquanto um substrato natural e passivo sobre o qual a sociedade Ademais,
constrói determinada “culturalidade” ativa. Para a pensadora, ao invés de como adoção
mero espaço ou superfície, a “matéria” é, em si, uma atividade, um “processo feminina na d
de materialização que se estabiliza ao longo do tempo para produzir o efeito doméstico. O
de limite, rigidez e superfície que chamamos matéria” (1993, p.9). Sob esta sobrevivendo à
óptica, os processos regulatórios de construção de significados dos corpos e outra sobre
emergem como materializações, que definem o que é a existência material que tem com
de um corpo, determinando suas fronteiras, relevos e na­tornos, de modoea todos, da co
criar o efeito de uma superfície estável e discreta à qual atribuímos o rótulo estudos de gê
“matéria” (MARTINS, 2006). Como afirma a autora, “a matéria é sempre
materializada” (BUTLER, 1993, p.9), sempre uma negociação ativa de limites, Equipe ed
que alcança a convincente aparência de fixidez e coesão mediante a reiteração João Bosc
continuada de normas. A aparência da materialidade corporal enquanto um
Kamila Cr
dado autoevidente e exterior ao discurso é, precisamente, o mais efetivo e
dissimulador efeito destas normas regulatórias de poder-saber que operam Sidimara C
segundo uma dinâmica performativa.
A partir desta leitura, é contestada a compreensão de que os corpos e o
poder estabelecem entre si qualquer relação de exterioridade, radicalizando
proposições que se apresentavam em germe no pensamento foucaultiano.
Diferentemente do filósofo francês, Butler defende que o poder-discurso
não atua de modo a inscrever suas normativas sobre determinada matéria e
corpos preexistentes. Pelo contrário: segundo este novo quadro analítico,
a “matéria” e os corpos são a materialização das dinâmicas do poder e,
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EDITORIAL
nesta medida, são “indissociáveis das normas regulatórias que governam sua
materialização” (BUTLER, 1993, p.2). Em outras palavras, a materialidade
Nesta edição da revista Gênero, apresentaremos o dossiê Gênero,
corporal é tomada como a sedimentação contextual dos regimes de poder-saber,
Políticas Públicas e Serviço Social, organizado pelas professoras doutoras
oLuciana
mais poderoso efeito Kleba
Zucco e Teresa (material) dasambas
Lisboa, normativas culturais Federal
da Universidade que informam
de
os processos de significação e a economia política dos atos perceptivos.
Santa Catarina (UFSC), e pela professora doutora Magali Silva Almeida,
Fica claro nos
da Universidade escritos
Federal da de Judith
Bahia ButlerSerão
(UFBA). que aapresentadas
ideia de materialização
discus-
descreve
sões sobrea gênero
dimensão e a discursiva dos processos
interseccionalidade entrede raçaconstituição de corpos. De
e classe; sexualidade;
fato, suas considerações
violência; migração feminina; sobre oencarceramento
que a “matéria” de é semulheres;
dão sempre acompanhadas
e suas inter-
faces
da com derridiana
ênfase as políticasque públicas,
promulgavisando contribuir parade
a impossibilidade o aprofundamento
se conhecer o corpo
dos estudos sobre a temática no serviço
fora da cultura e do discurso, como no seguinte comentário: social. Esses estudos são de
grande relevância em um contexto de graves retrocessos no campo das
políticas públicas
Languagee de avanço
sustains do racismo
the body e da itviolência
not by bringing into being contra
or feedingmulheres,
it in a literal way;
homossexuais, bissexuais,
rather, travestis
it is by being e transexuais
interpellated within the termsdevido ao that
of language neoconservado-
a certain social existence
rismo e ultraneoliberalismo que dominam
of the body first becomes o Estadothis,
possible. To understand brasileiro.
one must imagine an impossible
Ademais,scene,
esta that
ediçãoof a conta
body thatcomhas uma
not yetsérie
beende artigos
given social de temasa livres,
definition, body that is,
como adoção por casais do mesmo sexo; mulheres e esporte; participação on
strictly speaking, not accessible to us, but that nevertheless becomes accessible
feminina na democracia
the occasion ofportuguesa; feminismo
an address, a call, negro;
an interpellation thataborto; e trabalho
does not “discover” this body,
doméstico. Oferece, ainda,
but constitutes duas resenhas:
it fundamentally (BUTLER,uma1997b,
sobrep.5,o livro E se
ênfases fosse você?
nossas)
sobrevivendo às redes de ódio e fake news, de autoria de Manuela d’Ávila;
Ao sobre
e outra afirmar o que
livro“it is by being
Memórias da interpellated within the
plantação: episódios de terms
racismo of cotidiano,
language that
aque
certain
tem social
como existence
autora Grada of theKilomba.
body first becomes
Sendo assim, possible”,
convidamos Butler evidencia
a todas
que o foco de suas preocupações está localizado
e todos, da comunidade acadêmica ou não, que possuem interesse pelos no modo como os corpos
são interpretados
estudos de gênero ae desfrutar
ganham sentidode uma ótima na/pela linguagem. Lendo este trecho
leitura.
em conjunto com a colocação ao final da citação, que sublinha a interpelação
como aquiloeditorial:
Equipe que “does not ‘discover’ this body, but constitutes it fundamentally”,
podemos afirmar que a autora parece igualar a existência social e simbólica
João Bosco Hora Góis
do corpo à sua existência in eri, apagando qualquer relevância do biológico
em Kamila
meio aos Cristina
processos da Silva Teixeira
de materialização.
Sidimara Cristina de Souza
Sem dúvida, não se pode ter “acesso” à materialidade dos corpos a não
ser por discursos, conceitos e critérios de inteligibilidade variáveis, sendo
estes constrangimentos constitutivos impregnados pelas normas de gênero.
Em outras palavras – e nos permitimos aqui uma aparente tautologia –,
é inconteste que, para se tornar inteligível, determinada soma tem como
necessária sua inserção nos quadros de inteligibilidade cultural vigentes.
Não obstante, não se deve reduzir a materialidade corporal a puro efeito do
discurso, sob pena de “confundir o ‘ser’ de uma coisa com o modo como ela
é conhecida” (COLEBROOK, 2000, p.78), incorrendo assim naquilo que
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EDITORIAL
Roy Bhaskar nomeou de “falácia epistêmica”. Colocando de maneira direta:
afirmar (acertadamente) que uma “coisa” só é conhecida mediante conceitos é
Nesta edi
bastante diferente de afirmar que a mesma é total e unilateralmente construída
Políticas Públ
pelos conceitos. Luciana Zucco
Uma das principais limitações inerentes à insistência butleriana em conceber
Santa Catarin
que os discursos “fundamentalmente constituem os corpos”, à qual subjazda a Universida
premissa de homologia entre “produção” discursiva e produção material, diz sões sobre gê
respeito à negação de quaisquer potenciais agenciais da materialidade corporal violência; mig
que não aqueles impostos pela categoria discursiva “sexo”. Questões relacio- faces com as
nadas, por exemplo, à possibilidade de características biológicas e anatômicas dos estudos
oferecerem constrangimentos em termos fenomenológicos (os disability studies grande relevâ
apresentam ricas contribuições nesse sentido, assim como as teorizações políticas públi
beauvoirianas), ou mesmo influenciarem os processos de significação cultural homossexuais
dos corpos, são poucas vezes endereçadas por Butler. Como coloca Noela rismo e ultran
Davis (2010, p.137), a “matéria” e os processos de formação subjetiva, via Ademais,
de regra, recebem nos escritos da filósofa uma roupagem cultural e social como adoção
que exclui o biológico. feminina na d
Em síntese, ao passo que a ideia de materialização nos apresenta uma doméstico. O
importante leitura das dinâmicas através das quais os discursos se tornam sobrevivendo à
e outra sobre
“matéria”, ela falha ao não explicitar como a própria matéria se torna “matéria”.
Reportando-nos ao subtítulo de “Bodies that Matter” (“On the discursive limits que tem com
of sex”), é possível afirmar que a perspectiva butleriana proporciona uma rica e todos, da co
teorização dos limites discursivos do sexo; todavia, o faz sustentando-se em estudos de gê
“gritantes silêncios” acerca dos limites propriamente materiais do fenômeno
em questão, o que aponta para um quadro teórico permeado por determinado Equipe ed
monismo linguístico-discursivo, no qual os únicos elementos que importam (that João Bosc
matter) são as normativas culturais. Como indaga Karen Barad, evidenciando Kamila Cr
as hiantes ausências inerentes a esse posicionamento: “E quanto aos limites
Sidimara C
materiais: as restrições e exclusões materiais, as dimensões materiais de agência
e as dimensões materiais das práticas regulatórias?” (BARAD, 1998, p.91).

A INEFÁVEL MATÉRIA
Em paralelo à sua definição de “matéria” como um efeito do poder-
-discurso ou, mais precisamente, como “o poder em seu efeito formativo
ou constitutivo” (BUTLER, 1993, p.34), Judith Butler nos apresenta outra
“modalidade de materialidade” (em termos aristotélico-althusserianos), sendo
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esta marcadamente menos elaborada pela autora que a primeira. Diferentemente
da “matéria” e dos processos de materialização anteriormente abordados
Nesta edição da revista Gênero, apresentaremos o dossiê Gênero,
(estes, como vimos, questões concernentes à significação e inteligibilidade
Políticas Públicas e Serviço Social, organizado pelas professoras doutoras
dos corpos),
Luciana Zuccoesta modalidade
e Teresa Kleba alternativa de matéria
Lisboa, ambas designa asFederal
da Universidade propriedades
de
físicas e biológicas do corpo:
Santa Catarina (UFSC), e pela professora doutora Magali Silva Almeida,
da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Serão apresentadas discus-
[…] surely bodies live and die; eat and sleep; feel pain, pleasure; endure illness and
sões sobre gênero e a interseccionalidade entre raça e classe; sexualidade;
violence; and these “facts”, one might skeptically proclaim, cannot be dismissed as
violência; migração feminina; encarceramento de mulheres; e suas inter-
mere construction […] But their irrefutability in no way implies what it might mean to
faces com as políticas públicas, visando contribuir para o aprofundamento
through what discursive means.(1993, p.xi, ênfase nossa)
dos estudos affirm
sobrethema and
temática no serviço social. Esses estudos são de
grande
Maisrelevância
adiante, em um contexto
a autora reitera: de graves retrocessos no campo das
políticas públicas e de avanço do racismo e da violência contra mulheres,
homossexuais, bissexuais,
It must travestis
be possible e transexuais
to concede and affirm andevido
array of ao neoconservado-
“materialities” that pertain to
rismo e ultraneoliberalismo
the body, that whichqueis dominam
signified by o
theEstado
domainsbrasileiro.
of biology, anatomy, physiology,
Ademais,hormonal
esta edição contacomposition,
and chemical com uma illness,
série age,
de artigos de temaslife
weight, metabolism, livres,
and death.
como adoçãoNone por of
casais dobemesmo
this can sexo;
denied. But themulheres
undeniabilitye of
esporte; participação
these “materialities” in no way
feminina na democracia portuguesa;
implies what it means to affirm feminismo negro;
them. (1993, p.66, aborto;
ênfase nossa) e trabalho
doméstico. Oferece, ainda, duas resenhas: uma sobre o livro E se fosse você?
Prima facie,
sobrevivendo estasdepassagens
às redes ódio e fake parecem
news, decaracterizar
autoria de concessões
Manuela d’Ávila; a alguma
forma
e outrapossível
sobre odelivro
realismo,
Memórias o quedadesautorizaria previamente
plantação: episódios qualquer
de racismo acusação
cotidiano,
orientada à autora de Bodies that Matter de negar
que tem como autora Grada Kilomba. Sendo assim, convidamos a todas por completo a materiali-
dade palpável
e todos, dos corpos.acadêmica
da comunidade Inspira cautela,
ou não,contudo, o modointeresse
que possuem como até mesmo
pelos
estas
estudosraras considerações
de gênero a desfrutar do decorpo
umafísico
ótimasão acompanhadas de insistentes
leitura.
ressalvas (vide os trechos enfatizados ao final de ambas as citações). Cabe
a nós, portanto, previamente a qualquer conclusão (em favor ou contrária
Equipe editorial:
às acusações endereçadas a Butler), analisar detidamente o preciso sentido
João
destas Bosco Hora
concessões Góispela autora a uma matéria “real”, contextualizando-as
feitas
Kamila Cristina
no edifício da Silva Teixeira
político-teórico butleriano mais amplo.
Sidimara
Como vimos,Cristina de Souza
Judith Butler defende a impossibilidade de acesso ao corpo
fora do âmbito do discurso genderizado, colocando a linguagem como condição
de possibilidade da materialidade. “Como lócus de interpretações culturais,
o corpo é a realidade material que já foi localizada e definida dentro de um
contexto social” (BUTLER, 2008, p.160). Ou seja, em sua reelaboração
das relações estabelecidas entre ontologia e epistemologia – que a autora
persegue prioritariamente através de sua crítica pós-estruturalista orientada
ao binarismo sexo/gênero –, Butler exacerba o papel produtivo desempenhado
pela última, em detrimento da primeira. Para a filósofa norte-americana, a
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EDITORIAL
materialidade do corpo é desde sempre uma “situação cultural” (BUTLER,
2008, p.160), um modo de expressão dos regimes de poder-saber que atuam
Nesta edi
mediante as práticas discursivas, sempre um espaço determinado e moldado
Políticas Públ
pelas normativas culturais. Luciana Zucco
Perspectivados a partir deste quadro teórico, os processos de significação
Santa Catarin
emergem como forças culturais que trazem a materialidade pré-discursiva da Universida
dos corpos – objeto da “concessão” butleriana ao realismo – à “existência”, sões sobre gê
operando como verdadeiros sopros de vida que animam a carne, de modo violência; mig
a transformá-la em “matéria” (os corpos inteligíveis, efeitos dos processos faces com as
discursivos de materialização). Aproximamo-nos aqui de um quadro analítico dos estudos
marcado por determinada autossuficiência da linguagem, uma vez que os grande relevâ
discursos que significam os corpos, aparentemente, não sofrem qualquer políticas públi
tipo de constrangimento constitutivo de propriedades biológicas e físicas. homossexuais
Por conseguinte, temos a capitulação da concretude corporal: o preçorismo a e ultran
ser pago por esta, em troca de sua ascensão ao reino da inteligibilidade Ademais,
cultural, é a incondicional renúncia a quaisquer “sentidos” que lhe são como adoção
próprios. Vemo-nos, assim, conduzidos à estranha conclusão de que feminina a na d
biologia, a anatomia e os hormônios não são elementos integrais dos corpos doméstico. O
inteligíveis (os “bodies that matter”) , de modo que a condição corporal
2 sobrevivendo à
que experimentamos em nosso cotidiano é apontada como resultado das e outra sobre
dinâmicas culturais e discursivas. que tem com
e todos, da co
Logo, temos que Butler somente admite a existência de determinada estudos de gê
materialidade extratextual sob a condição da mesma ser relegada ao estatuto
de exterioridade inacessível, um elemento que não exerce qualquer interfe-
rência nos processos de significação cultural dos corpos. Em outras palavras, Equipe ed
mediante um duplo gesto paradoxal – que, em última instância, cumpre em João Bosc
resguardar a hegemonia de seu construtivismo performativo radical –, Judith Kamila Cr
Butler reconhece certo limite à construção da materialidade dos corpos, Sidimara C
concedendo a seus detratores um excesso propriamente material, para, em
seguida, defender que esta dimensão exterior à linguagem só pode ser pensada
dentro dos limites linguísticos, impossibilitando assim que vislumbremos este
espaço não redutível a um conjunto de disposições culturais.

2 Fato é que Judith Butler se vale amplamente da feliz coincidência referente à palavra “matter” designar
em inglês, ao mesmo tempo, o substantivo cujo correlato em português é “matéria” (substância física, res
extensa), o “tema ou assunto do qual se trata” e o verbo “to matter”, que tem como traduções possíveis
“importar” e “significar”. Os empregos do termo em Bodies that Matter são sempre permeados por certa
ambiguidade consequente, que a autora, estrategicamente, poucas vezes busca esclarecer.
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A palpabilidade dos corpos é tratada aqui como a exclusão constitutiva
do discurso, o espaço onde a linguagem encontra seu limite, figurando
Nesta edição da revista Gênero, apresentaremos o dossiê Gênero,
como um domínio de ininteligibilidade radical – uma espécie de Grenzbegriff.
Políticas Públicas e Serviço Social, organizado pelas professoras doutoras
Para Butler, a impossibilidade de alcance deste domínio material em si
Luciana Zucco e Teresa Kleba Lisboa, ambas da Universidade Federal de
decorre diretamente da condição humana, que nos impõe os limites da
Santa Catarina (UFSC), e pela professora doutora Magali Silva Almeida,
linguagem e das estruturas de inteligibilidade cultural como os limites de
da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Serão apresentadas discus-
nossa realidade
sões sobre gênero (aeaproximação a determinado
a interseccionalidade vocabulário
entre raça kantiano é aqui
e classe; sexualidade;
forçosa
violência;e migração
sintomática). Sendo
feminina; assim, afirmadeButler,
encarceramento é apenas
mulheres; e suasa inter-
partir da
nomeação
faces com asinterpelativa do sexovisando
políticas públicas, que esta base biológica
contribuir para oserá revestida de uma
aprofundamento
existência social, tornando-se cognoscível. Precedente
dos estudos sobre a temática no serviço social. Esses estudos à sua “inauguração”
são de
cultural
grande relevância em um contexto de graves retrocessos no campo das o
no âmbito do discurso genderizado, há tão-só o desconhecido,
intematizável – em
políticas públicas e desuma, os do
avanço protocorpos impossíveis.
racismo e da violência contra mulheres,
Ainda, a pensadora
homossexuais, acentuaeque
bissexuais, travestis qualquer
transexuais tentativa
devido de compreender
ao neoconservado-
ou investigar
rismo a irredutível que
e ultraneoliberalismo materialidade
dominam o biológica dos corpos só pode ser
Estado brasileiro.
conduzida
Ademais, através do discurso,
esta edição conta comestando, com de
uma série efeito, fadada
artigos a esbarrar
de temas livres, nos
limites da ordem simbólica:
como adoção por casais do mesmo sexo; mulheres e esporte; participação
feminina na democracia portuguesa; feminismo negro; aborto; e trabalho
The body posited
doméstico. Oferece, as prior
ainda, duas to the sign,
resenhas: umais always
sobreposited
o livroorE signified
se fosseasvocê?
prior. This
sobrevivendo às redes de ódio e fake news, de autoria de Manuela d’Ávila;that it
signification produces as an effect of its own procedure the very body
e outra sobrenevertheless and simultaneously
o livro Memórias claims episódios
da plantação: to discover de
as that whichcotidiano,
racismo precedes its own
action. (BUTLER, 1993, p.30)
que tem como autora Grada Kilomba. Sendo assim, convidamos a todas
e todos, da comunidade acadêmica ou não, que possuem interesse pelos
Nesta
estudos de passagem, fica claradea uma
gênero a desfrutar herançaótimaderridiana
leitura. presente no pensamento
butleriano. Em meio à sua contestação da metafísica da presença, a autora nos
conduz a compreender que a própria noção de uma existência precedente ao
Equipe
discurso editorial:
é, ela mesma, uma formulação cultural e discursiva, ou seja, um efeito
dissimulador deHora
João Bosco atos Góis
de fala, que produzem aquilo que alegam simplesmente
descrever ou constatar.
Kamila Cristina da Silva Assim, nos vemos hermeticamente enclausurados
Teixeira
nos Sidimara
limites daCristina
cultura,deinapelavelmente
Souza condenados por nossa condição de
“seres linguísticos” a viver em um mundo de remissões textuais e engenhosas
ficções que discursivamente se apresentam como “materiais”, não podendo, de
modo algum, vislumbrar a materialidade corporal que excede nossos conceitos;
entre nós e a concretude dos corpos é construída uma intransponível barreira
ontológica, uma alteridade absoluta que faz do Real e do Simbólico instâncias
incomensuráveis. Como sintetiza Vicki Kirby (2006, p.70):

Our sense of the materiality of matter, its palpability and physical insistence, is rendered
unspeakable and unthinkable in Butler’s account, for the only thing that can be known
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about it is that it exceeds representation. Beyond cultural intelligibility, the existence
of this external stuff ensures that our understanding of an outside, inasmuch as it is
Nesta edi
discourse dependent, can only be the dissimulation of an outside that appears as matter.
Políticas Públ
Apesar de suas motivações iniciais desconstrutivistas, um dos principais Luciana Zucco
efeitos da teorização butleriana da matéria como um espaço inalcançável Santa Catarin
e inarticulado é, de fato, a reinstalação do tradicional binarismo natureza/ da Universida
cultura, que se expressa na distinção clara feita pela autora entre um reino sões sobre gê
de conhecimento e agência – nomeadamente, a Cultura – e sua inefável violência; mig
contraparte material – a Natureza (KIRBY, 2006, p.69). Essa abordagem faces com as
opera de maneira a expandir indefinidamente o segundo termo do par opositivo dos estudos
natureza/cultura, reconhecendo o caráter dinâmico, produtivo e cognoscível grande relevâ
das práticas discursivas, porém o faz à custa da relegação da materialidade políticas públi
física a um espaço de pura inércia, mutismo e suplementaridade, esvazian- homossexuais
do-a de sentido e, em última instância, apagando-a completamente – sob rismo o e ultran
salvo-conduto desta ser “inacessível”. Ademais,
como adoção
Sinteticamente, o “materialismo” (e aqui as aspas são fundamentais)
feminina na d
de Judith Butler pode ser descrito em termos de uma realização parcial da
doméstico. O
“estratégia geral da desconstrução” (DERRIDA, 2001, p.47), qual seja, o
sobrevivendo à
duplo gesto inversão-deslocamento. Assim como grande parte da teoria
e outra sobre
feminista vinculada à virada linguística, Butler, visando confrontar os alicerces
que tem com
metafísicos dos discursos ideológicos naturalistas antifeministas, inverteu
e todos, da co
a hierarquia conceitual e a direção determinista dos dualismos matéria/
estudos de gê
ideia, natureza/cultura, ontologia/epistemologia – e sua expressão feminista
contemporânea, sexo/gênero –, concebendo os últimos termos como defi-
nidores dos primeiros. A autora, todavia, se deteve no estabelecimento de Equipe ed
novas formas hierarquizantes de organização das oposições binárias, agora João Bosc
de maneira a subordinar os polos anteriormente concebidos pelo discurso Kamila Cr
naturalista como determinantes, não realizando, assim, o real deslocamento Sidimara C
da estrutura do sistema, isto é, não propriamente horizontalizando as antigas
hierarquias de modo a reorganizar os termos em arranjos não-binários.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: EM DIREÇÃO A UMA NECESSÁRIA


HETERODOXIA MATERIALISTA
Como pudemos observar, apesar de suas aspirações pós-modernas, a
abordagem butleriana do corpo se mantém fiel ao regime moderno de pensamento
binário, definindo-o, pendularmente, ora como pura produção discursiva, ora
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como nebuloso excesso material “anterior” à linguagem (BRAY; COLEBROOK,
1998). Tal dicotomia evoca, em alguma medida, o teor prevalecente nos debates
Nesta edição da revista Gênero, apresentaremos o dossiê Gênero,
sobre corpos e subjetividades, sendo estes tradicionalmente polarizados entre
Políticas Públicas e Serviço Social, organizado pelas professoras doutoras
construtivismos
Luciana Zucco e totalizantes
Teresa Klebae Lisboa,
naturalismos
ambas reducionistas.
da Universidade Federal de
SantaEssa oposição
Catarina rígida entre
(UFSC), construtivismo
e pela professora edoutora
naturalismo pode
Magali ser compreendida
Silva Almeida,
como apenas aparente,
da Universidade Federaluma vez que(UFBA).
da Bahia os ladosSerão
concorrentes compartilham
apresentadas discus- da
pressuposição
sões sobre gênero de existência de certa separação
e a interseccionalidade inexorável
entre raça e classe;entre natureza e
sexualidade;
cultura,
violência;matéria
migraçãoe discurso,
feminina;sendo que cada posição
encarceramento teórica localiza
de mulheres; em polos
e suas inter-
faces comoaselemento
distintos políticas públicas,
determinantevisando emcontribuir
relação ao para o aprofundamento
outro (SANTOS, 2017,
p. 156). O que deve ser acentuado é que, além de alimentaremsão
dos estudos sobre a temática no serviço social. Esses estudos de
discussões
grande relevância
circulares em um
que induzem contexto
a teoria de graves retrocessos
à estagnação, os termos por no campo
meio dos dasquais
políticas públicas e de avanço do racismo e da violência contra
tais debates são conduzidos, ao nos forçarem a optar pela natureza ou pela mulheres,
homossexuais,
cultura, bissexuais,
pela matéria outravestis e transexuais
pelo discurso, devido aoindependentemente
nos impõem, neoconservado-
rismo e ultraneoliberalismo que dominam o Estado brasileiro.
das preferências facciosas que tenhamos, uma inaceitável conivência com
Ademais, esta edição conta com uma série de artigos de temas livres,
o determinismo.
comoDiante
adoção por quadro,
deste casais domostra-se
mesmo sexo; mulheres
premente e esporte;
a tarefa participação
de se definir aquilo que
feminina na democracia portuguesa; feminismo negro; aborto; e trabalho
Bruno Latour, no plano da sociologia da ciência, chamou de “new settlement”,
doméstico. Oferece, ainda, duas resenhas: uma sobre o livro E se fosse você?
isto é, uma nova forma de pensar a interimplicação do material e do discursivo,
sobrevivendo às redes de ódio e fake news, de autoria de Manuela d’Ávila;
da natureza e da cultura, que cumpra em transversalizar os fluxos entre os
e outra sobre o livro Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano,
termos sem garantir prioridade a nenhum dos aparentes lados opostos.
que tem como autora Grada Kilomba. Sendo assim, convidamos a todas
Um primeiro
e todos, passo no
da comunidade sentido deouhorizontalizar
acadêmica as estruturas
não, que possuem hierárquicas
interesse pelos
que ditam
estudos de os modos
gênero de se pensar
a desfrutar de uma as interações entre matéria e discurso em
ótima leitura.
meio ao fenômeno corporal é admitir, como faz Susan Hekman (2008),
que há algo significativamente errado nas atuais considerações feministas sobre
Equipe editorial:
a materialidade dos corpos. O material não é apenas um construto social; não
João Bosco Hora Góis
é um simples objeto passivo de nossa criação linguística, como promulga o
Kamila socioconstrutivista
paradigma Cristina da Silva Teixeira
hegemônico (HEKMAN, 2008, p.92). Como
um Sidimara
contrapeso Cristina de Souza
à ortodoxia linguística dominante nos estudos feministas e de
gênero contemporâneos, o quadro teórico não-determinista que desejamos
deve partir do reconhecimento do papel ativo e produtivo desempenhado
também pela “carne” em meio aos processos de materialização de um “eu”
corporalmente localizado sem que, para tanto, sucumba a posicionamentos
que definam a matéria enquanto extensão espontaneamente existente e
autossuficiente (o que caracterizaria um pernicioso retorno a concepções
próprias ao realismo moderno e seu intrínseco falogocentrismo).

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De fato, acreditamos que o espectro do essencialismo, que historicamente
assombra o pensamento feminista sobre os corpos e as subjetividades, será
Nesta edi
eficazmente combatido não mediante um movimento de afastamento da
Políticas Públ
biologia, da matéria e da natureza – como tem sido feito por diversas vertentes Luciana Zucco
da teoria feminista –, mas a partir da problematização e radical redefinição da Santa Catarin
ideia de matéria que nos foi legada pelo projeto epistemológico moderno, de da Universida
tal maneira que, após sua reformulação, não reste qualquer caricatura inertesões e sobre gê
atomizada de materialidade corporal à qual os discursos essencialistas possam violência; mig
minimamente recorrer. Em outras palavras, julgamos necessário contraporfaces à com as
reinante ortodoxia linguística uma nova heterodoxia materialista, em direçãodos à estudos
qual os emergentes neomaterialismos estão dando seus passos iniciais. grande relevâ
O sepultamento definitivo do determinismo naturalista tem sido um dos políticas públi
principais objetivos históricos do feminismo enquanto movimento políticohomossexuais e
teórico. Tal meta, entretanto, não pode ser realizada à custa da concretude rismo e ultran
do mundo. Um esforço dessa natureza também demandará das atuais ten- Ademais,
dências hegemônicas nos estudos sobre as mulheres, feministas e de gênero, como adoção
sempre prontas a descartar automaticamente perspectivas que retomam as feminina na d
problemáticas da biologia e da materialidade como “determinismo biológico doméstico. O
disfarçado com outro nome” (KING, 1997, p. 130), confiança nas credenciais sobrevivendo à
feministas de grupos que começam a discutir a relevância das dimensões e outra sobre
ontológicas e tangíveis dos corpos. De nosso sucesso nessa tarefa de resgatar que tem com
a concretude do mundo de sua vigente sublimação simbólica depende o futuro e todos, da co
do feminismo como prática político-teórica verdadeiramente empenhada na estudos de gê
emancipação dos corpos – estes, arriscamos dizer, irremediavelmente materiais
(no sentido forte do termo). Equipe ed
João Bosc
REFERÊNCIAS Kamila Cr
ALAIMO, Stacy. Bodily natures: science, environment, and the material self. Bloomington: Sidimara C
Indiana University Press, 2010.
ALTHUSSER, Louis. “Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado”. In: ŽIŽEK, Slavoj (Org.).
Um Mapa da Ideologia. São Paulo: Contraponto,1996. P.105-142.
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lity”. Differences, n. 10, p.87-128, 1998.
BARAD, Karen. Meeting the Universe Halfway: Quantum Physics and the Entanglement
of Matter and Meaning. Durham & Londres: Duke University Press, 2007.

2 GÊNERO | Niterói
GÊNERO | Niterói | v. 23 | n. 1 | p. 266-286 | 2. sem 2022 263
ARTIGO DE TEMA LIVRE
EDITORIAL
2
EDITORIAL
BRAY, Abigail; COLEBROOK, Claire. “The Haunted Flesh: Corporeal Feminism and the
Politics of (Dis)embodiment”. Signs, n. 24, p. 35– 67, 1998.
Nesta edição da revista Gênero, apresentaremos o dossiê Gênero,
BUTLER,
Políticas Judith. Bodies
Públicas that Matter:
e Serviço Social,Onorganizado
the Discursive Limits
pelas of Sex. Londres:
professoras Routled-
doutoras
ge, 1993. Zucco e Teresa Kleba Lisboa, ambas da Universidade Federal de
Luciana
Santa Catarina
BUTLER, (UFSC),
Judith. Corpos queeimportam:
pela professora
os limitesdoutora Magali
discursivos SilvaSão
do “sexo”. Almeida,
Paulo: Cro-
da Universidade Federal
codilo e N-1 Edições, 2019. da Bahia (UFBA). Serão apresentadas discus-
sões sobre gênero e a interseccionalidade entre raça e classe; sexualidade;
BUTLER, Judith. “Gender as Performance: Na Interview with Judith Butler”. Radical Phi-
violência; migração feminina; encarceramento de mulheres; e suas inter-
losophy, n. 67, p. 32-39, 1994.
faces com as políticas públicas, visando contribuir para o aprofundamento
BUTLER,
dos estudosJudith. The Psychic
sobre Life ofnoPower:
a temática Theories
serviço in Subjection.
social. Stanford:
Esses estudos são Stanford
de
University Press, 1997a.
grande relevância em um contexto de graves retrocessos no campo das
políticas públicas
BUTLER, e de avanço
Judith. Excitable Speech:doA racismo
Politics ofethe
daPerformative.
violência contra mulheres,
New York: Routledge,
homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais devido ao neoconservado-
1997b.
rismo e ultraneoliberalismo
BUTLER, Judith. Variações sobreque
sexo edominam o Estado
género. Beauvoir, brasileiro.
Wittig e Foucault. In: CRESPO, Ana
Ademais, esta edição conta com uma série de artigos de temas
Isabel et al.(Orgs.), Variações sobre sexo e género. Lisboa: Livros Horizonte: 2008,livres,
p.154-172.
como adoção por casais do mesmo sexo; mulheres e esporte; participação
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janei-
feminina na democracia portuguesa; feminismo negro; aborto; e trabalho
ro: Civilização Brasileira, 2003.
doméstico. Oferece, ainda, duas resenhas: uma sobre o livro E se fosse você?
COLEBROOK,
sobrevivendo às Claire.
redes “From Radical
de ódio Representations
e fake to Corporeal
news, de autoria Becomings:
de Manuela The Fe-
d’Ávila;
minist Philosophy of Lloyd, Grosz, and Gatens”. Hypatia, n. 15, p. 76–93, 2000.
e outra sobre o livro Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano,
que tem como
COLLING, autora GradaLarissa.
Leandro; PELÚCIO, Kilomba. Sendo assim,
Apresentação convidamos
do Dossiê. a Salvador,
Periódicus, todas n.
e todos,
3, da comunidade
v. 1, mai.-out. acadêmica
2015. Disponível ou não, que possuem interesse pelos
em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodi-
estudos de gênero a desfrutar de uma ótima leitura.
cus/article/view/14253/9856. Acesso em 03/11/2019.
DAVIS, Noela. Material Subjectivity: The Performative Entanglement of Biology Within
Equipe
Sociality. Teseeditorial:
de Doutoramento em Filosofia, Faculty of Arts and Social Sciences, Univer-
João
sity of NewBosco
SouthHora
Wales,Góis
2010.
Kamila Cristina
DE LAURETIS, Teresa.da Silva Teixeira
“Statement Due”. Critical Inquiry, v. 30, n. 2, p. 365-368, 2004.
Sidimara
DERRIDA, Cristina
Jacques. de Souza
Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
HEKMAN, Susan. “Constructing the Ballast: An ontology for feminism”. In: ALAIMO, Sta-
cy; HEKMAN, Susan (Orgs.), Material Feminism. Bloomington: Indiana University Press,
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KIRBY, Vicki. Judith Butler: Live Theory. Londres: Continuum, 2006.

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ARTIGO DE TEMA LIVRE

2
EDITORIAL
KING, Ynestra. “Curando as feridas: feminismo, ecologia e dualismo natureza/cultura”. In:
JAGGAR, Alison; BORDO, Susan (Orgs.), Gênero, Corpo, Conhecimento. Rio de Janei-
Nesta edi
ro: Record – Rosa dos Tempos, 1997, p. 126-156.
Políticas Públ
MARTINS, Bruno Sena. E se eu fosse cego? Narrativas silenciadas da deficiência. Porto:
Luciana Zucco
Afrontamento, 2006. Santa Catarin
RUBIN, Gayle; BUTLER, Judith. “Tráfico sexual: entrevista”. Cadernos Pagu, Campinas, dan. Universida
sões sobre gê
21, 2003. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/
view/8644617. Acesso em 07/11/2019. violência; mig
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Ademais,
Culture and Self. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 27-47.
como adoção
feminina na d
doméstico. O
sobrevivendo à
e outra sobre
que tem com
e todos, da co
estudos de gê

Equipe ed
João Bosc
Kamila Cr
Sidimara C

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