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Memorial descritivo do percurso profissional e acadêmico

hoje a colega e amiga sabrina corrêa me chamou pra uma conversa que me jogou
nuns pensamentos que fizeram com que retomasse algumas coisas que tem poucos
dias se desenharam em minhas letras... interessada em fazer um curso de
doutorado, fui juntar minhas ideias para a candidatura e eis que das muitas coisas
que me faltavam para as formalidades acadêmicas uma era a boia que se deve
tratar regularmente ao césar lattes... faltou boia... faltou tempo pra fazer a boia e
tratar... faltou disponibilidade para fazer e tratar a boia ao lattes... mas não faltou
tempo e nem disponibilidade para fazer boia com as gentes que não comem da
mesma coisa que o lattes... sempre fico a pensar sobre as importâncias e
(des)importâncias daquilo que tecemos nos teares dos dias e nas tramas das
vidas... aquilo que possibilita outras escrevinhaduras nas vidas e nas existências
das pessoas com quem transversamos nossas existências... isso... essas coisas não
aparecem e não dão boia ao lattes... essas coisas pulsam nas vidas e as fazem
potentes... não são boia pra coisa pouca!

Maria Luiza Diello[1]

Tínhamos também, possivelmente, uma concepção comum de filosofia. (...) Nossa tarefa era
analisar estados mistos, agenciamentos, aquilo que Foucault chamava de dispositivos. Era
preciso não remontar aos pontos, mas seguir e desemaranhar as linhas: uma cartografia, que
implicava numa microanálise (o que Foucault chamava de microfísica do poder e Guattari,
micropolítica do desejo). É nos agenciamentos que encontraríamos focos de unificação, nós de
totalização, processos de subjetivação, sempre relativos, a serem sempre desfeitos a fim de
seguirmos ainda mais longe uma linha agitada. Não buscaríamos origens mesmo perdidas ou
rasuradas, mas pegaríamos as coisas onde elas crescem, pelo meio: rachar as coisas, rachar
as palavras. Não buscaríamos o eterno, ainda que fosse a eternidade do tempo, mas a
formação do novo, a emergência ou o que Foucault chama de ‘a atualidade’
Gilles Deleuze[2]
BOCÓ
Quando o moço estava a catar caracóis e pedrinhas na beira do rio até duas horas da tarde, ali
também Nhá Velina Cuê estava. A velha paraguaia de ver aquele moço a catar caracóis na
beira do rio até duas horas da tarde, balançou a cabeça de um lado para o outro ao gesto de
quem estivesse com pena do moço, e disse a palavra bocó. O moço ouviu a palavra bocó e foi
para casa correndo a ver nos seus trinta e dois dicionários que coisa era ser bocó. Achou cerca
de nove expressões que sugeriam símiles a tonto. E se riu de gostar. E separou para ele os
nove símiles. Tais: Bocó é sempre alguém acrescentado de criança. Bocó é uma exceção de
árvore. Bocó é um que gosta de conversar bobagens profundas com as águas. Bocó é aquele
que fala sempre com sotaque das suas origens. É sempre alguém obscuro de mosca. É
alguém que constrói sua casa com pouco cisco. É um que descobriu que as tardes fazem parte
de haver beleza nos pássaros. Bocó é aquele que olhando para o chão enxerga um verme
sendo-o. Bocó é uma espécie de sânie com alvoradas. Foi o que o moço colheu em seus trinta
e dois dicionários. E ele se estimou.
Manoel de Barros[3]

Antes de abordar a minha prática profissional, gostaria de falar um pouco


do meu percurso de formação pessoal e acadêmica. Confesso que já perdi no
horizonte o motivo pelo qual quis fazer formação em psicologia, mas na época
minha família condicionou que eu fosse estudar em uma Universidade que não
fosse muito longe de casa, então escolhi a UNIJUÍ, mas isso era 1988 e eu havia
concluído o então 2º grau (com formação em Magistério) e já passara um ano
em casa (por questões familiares). O curso de Psicologia, na UNIJUÍ, abriria
somente em 1990, então decidi fazer Filosofia durante 1989. Quando ingressei
na Psicologia, ainda continuei cursando algumas disciplinas em Filosofia, mas
algum tempo depois não foi mais possível custear financeiramente e interrompi
a graduação em Filosofia, mas continuei freqüentando, como aluna ouvinte,
algumas disciplinas dos cursos de Especialização da Filosofia (na época havia
3 cursos).
Durante o curso de psicologia fui tendo necessidade de ter mais contato
com outros campos de conhecimento para além da Psicologia e da Filosofia,
então transitei muito nas áreas de artes, literatura, ciências sociais, história,
enfim, tentando conhecer esses campos que são tão importantes para o
entendimento e para o trabalho com as gentes; isso, somado a certo desconforto
que sentia com relação à teoria psicanalítica (que era a linha predominante na
formação no curso de psicologia da UNIJUÍ), acabou provocando uma
atrapalhação em minha vida acadêmica e fiquei na Universidade mais tempo do
que o previsto formalmente, principalmente porque na época (e não sei como
isso está hoje) não contávamos com um apoio humano em nossa trajetória
acadêmica, sendo apenas preconizado que fizéssemos análise e que nos
virássemos com isso!
Foi um tempo muito difícil para mim e teria sido muito mais tranqüilo se
pudesse contar com um acolhimento humanizado na Universidade. Veja-se que
eu tinha uma vinculação familiar muito forte, saí de casa aos 14 anos para fazer
o 2º grau numa escola de freiras e, além disso, tinha uma formação humana
absolutamente conservadora, ao mesmo tempo em que estava lidando com
crises e questionamentos pessoais. O que foi de uma importância imensurável
para mim, naquela época, e que me deu suporte para seguir em frente, foi o
convívio com o pessoal da filosofia, assim como, com modos de vida esquizos e
anárquicos. Isso tudo, somado à minha imaturidade, ajudou-me a entender,
também, que o fato de uma pessoa escolher e passar a freqüentar um curso
superior, não significa, necessariamente, que ela tenha suficiente sabedoria para
lidar com as coisas da própria vida!
Quando escolhi fazer o curso na UNIJUÍ, sabia que sua linha teórica
predominante seria a psicanálise e, na época, não entendia muito o que isso
significava, mas era um campo do conhecimento que tinha amplo crédito no meio
acadêmico e me fixei nesse idealismo, tendo tido uma formação acadêmica
muito consistente nessa área. Na época, não havia um núcleo de estudos da
psicanálise em Ijuí e algumas pessoas estavam começando a estudar a teoria
psicanalítica, vinculadas à APPOA – Associação Psicanalítica de Porto Alegre
(que também deu o suporte teórico para a construção do projeto do curso),
portanto, as primeiras turmas do curso, puderam contar com professores com
uma formação bastante consistente, os quais se deslocavam de Porto Alegre
para trabalhar no curso da UNIJUÍ, e isso, garantiu, também, a qualidade da
formação daqueles que tinham uma trajetória intelectual mais intensa. Assim,
tive uma excelente formação teórica, mas não quis seguir a “ordenação” da
formação institucional em Psicanálise, porque discordava daquele formato
desenhado por um espectro ortodoxo, assim como, sentia certo desconforto com
os liames da teoria psicanalítica, pois a minha própria situação pessoal não tinha
enquadre em seus pressupostos.
Segui nessa trilha durante um considerável tempo de minha atuação
profissional – o que, sem, dúvida, provocava muito sofrimento -, e, mesmo sendo
uma apaixonada leitora de Foucault – por influência de meu trânsito na Filosofia
e, principalmente, de um amigo filósofo que era foucaultiano -, não consegui,
naquele tempo, fazer uma leitura mais precisa, da forte crítica ao campo
psicanalítico. Mas, ao mesmo tempo em que tomava os referencias
psicanalíticos como fundamentos de minha leitura de gentes e de mundo, tinha
uma prática muito bonita, cujos fundamentos foram, à época, as coisas e as
ideias em que eu realmente acreditava e que, por falta de uma visada disso
durante minha formação, eu não sabia exatamente o que era... eis que, uma
amiga que é do Serviço Social, atentava-me com provocações respeitosas sobre
o que eu estaria fazendo, ancorada no campo psicanalítico se minha prática e
meu entendimento de mundo eram absolutamente diversos disso... aos poucos
fui me liberando de parte de minha antiga biblioteca e fornicando, devagarzinho,
com a biblioteca dessa amiga... fui fazendo cópias de algumas coisas de Deleuze
e de Guattari... algumas coisas eu própria já dispunha... e assim, fui me dando
conta das coisas que estavam bem na frente do meu nariz e que eu ainda não
havia reconhecido... algum tempo depois, já era 2007 e aí fiz seleção para o
Mestrado Interinstitucional em Filosofia – UFSM/UNIJUI, no qual desenvolvi a
pesquisa sobre “A Problematização da Subjetivação em Michel Foucault – para
o cuidado e a transformação de si –“.
Para desenvolver a pesquisa e produzir a dissertação, tive que superar a leitura
apaixonada que tinha de Foucault para, distanciada da passionalidade, poder fazer um exercício
racional com relação ao seu pensamento... isso foi muito importante para minha formação, pois
realocou minhas leituras e minhas andanças a partir de então! Evidencio isso através de um
excerto do Excurso de minha Dissertação, intitulado “Para uma escrita de si – uma apresentação
dos rumos da pesquisa e da escrita”, cujo texto segue:
“Saio dessas tecituras[4] e faço, aqui, um retorno a Foucault, circundando
a relação teórica com ele e com sua obra. Reapaixonar-me pelo autor foi uma das tarefas mais
gostosas da pesquisa; reaproximar-se devagarzinho, desvencilhando-me aos poucos daquilo
que já estava recortado em outro formato em meu imaginário e, re-tecendo, com outro olhar e
com outros fios, aquilo que já me era tão familiar, além de encontrar o inesperado (me permitir
encontrar o inesperado) - para usar um termo deleuziano ao se referir à condição necessária a
um filósofo - ou como interroga o próprio Foucault, ao se perguntar sobre a tarefa do exercício
filosófico: ‘Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar
diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe?’ (FOUCAULT). Este foi um exercício
fundamental que tive que fazer para deixar de tomar seu pensamento como instrumento de
legitimação do meu próprio pensamento, sem o que, não haveria curiosidade e nem pesquisa.
Reconheço que ainda fiquei muito longe do desejado e esperado, mas é um passo dado, sem o
qual não haveria a perspectiva de, daqui por diante, seguir nesta trilha.
Então, além de encontrar o inesperado, senti-me na prazeroza condição de produzir em
mim mesmo e em minha nova relação com Foucault, o inesperado. O inesperado que nos faz
criar e, por sua vez, produzir. Isso me possibilitou acordes para a tessitura de um novo som,
nesta que é uma caminhada cujas calosidades só o pesquisador pode curar. Ainda, no pensar
deleuziano: fez-se a dobra na pretensa e equivocada linearidade de meu pensamento, dobra que
irá projetar uma outra direção, uma outra questão, uma outra idéia, um rumo para a pesquisa e
para o tecimento da dissertação, saindo do desenho tão ingênuo que no início me propunha dar
a ver, e buscando traçar um riscado pelo menos mais coerente e que possa permitir, agora ou
mais tarde, uma costura mais consistente”[5].
Para dizer um pouco mais das coisas teóricas e práticas que me
interessam, faço uso das palavras de Baremblitt, ao falar do pensamento de
Deleuze e de Guattari, dizendo: “Não é um pensamento discursivo, mas segundo
a própria definição deles, é uma máquina fundamentalmente energética,
destinada a vibrar e a fazer vibrar aqueles que dela se aproximam e a engajá-
los em um movimento produtivo, que não passa exatamente pelas idéias nem
pelas palavras, mas pelos afetos. Por afetar e ser afetado. Passa pela
capacidade de vibrar em consonância, passa pela capacidade de despertar o
entusiasmo, a vontade de viver, a vontade de criar. (...) eles estão sempre
integrados a um tipo particular de militância. Eles têm um ‘pé’ numa ação
concreta que se exprime e se inspira nesses escritos, dentro da famosa idéia de
práxis, ultimamente tão esquecida. A proposta de uma micropolítica é a ação
política que acompanha a proposta analítica desses autores, que se chama
‘Esquizoanálise’. A Esquizoanálise é uma leitura do mundo, praticamente de
‘tudo’ o que acontece no mundo, como diz Guattari em seu livro sobre As Três
Ecologias, sendo uma espécie de Ecosofia, uma ‘episteme’ que compreende um
saber sobre a natureza, um saber sobre a indústria, um saber sobre a sociedade
e um saber acerca da mente. Mas um saber que tem por objetivo a vida, no seu
sentido mais amplo: o incremento, o crescimento, a diversificação, a potenciação
da vida”[6].
Colocadas essas questões, digo que minha atuação profissional sempre
foi voltada para o campo das políticas públicas e, além disso, meu interesse
pesquisador sempre esteve dirigido às questões filosóficas, humanas, políticas,
éticas e sociais... faço de minha práxis cotidiana uma permanente potenciação
da vida, criando e produzindo movimentos que ajudam a transformar a realidade!
Assim, cumpre esclarecer que, quando completei minha graduação em
Psicologia, pensava em imediatamente fazer um curso de mestrado, mas logo
que passei a atuar na área da Assistência Social (e isso se deu em 1998), percebi
que nada sabia da vida, do mundo e das gentes... propus-me, então, a vivenciar
a atuação profissional por várias áreas e, desta forma, poder produzir uma
condição profissional que propiciasse, além do entendimento teórico sobre as
coisas da vida e do mundo, o entendimento sobre as formas e as proposições
teóricas que realmente importavam ao meu percurso profissional; desta forma,
já tendo transitado e atuado nas áreas da Assistência Social, da Educação
(Docência em Ensino Médio e Superior, e Institucional) e da Saúde Pública
(Clínica), pude, ainda, atuar no campo do Judiciário e, depois, voltar ao da Saúde
Mental, que é o espaço em que pretendo seguir, doravante, minha vida
profissional (devo que dizer que esse percurso foi atrapalhado em abril/2013,
quando fui intempestiva e autoritariamente removida da Secretaria Municipal de
Saúde para a de Desenvolvimento Social, onde desenvolvo trabalho junto à
Política de Atenção ao Idoso, sendo que pretendo retornar ao trabalho no campo
público da saúde mental).
Acredito que seja importante esclarecer as motivações que me levaram a
permitir o atravessamento pelo viés teórico da Esquizoanálise, visto que isso se
deu por uma necessidade que eu própria tinha de alcançar um campo teórico
que respeitasse e contemplasse o sujeito como ele é a partir de sua história e de
suas vivências e não a partir de protótipos ou enquadramentos paralisantes, e,
já tendo tecido o olhar sobre as leituras dessa perspectiva teórica, o que
decorreu daí, foi só um desandar teórico que me colocou ao compasso do que
penso e do que estudo, assim como, da forma como atuo.
Atualmente já ultrapassei o dualismo “corpo-mente”, pois penso que não
haja dois, mas sim, uma coisa só que se atravessa de uma a outra parte... enfim,
teoricamente, ainda olho para essa questão como se fosse a primeira vez que a
visse, apesar de ter clareza disso em minha atuação profissional cotidiana.
No que se refere à prática clínica, penso que sejamos somente e tão
somente comportas de contensão e passagem dos afetos da pessoa que
atendemos e, para isso, é fundamental produzir uma experiência de vida que
possibilite aprender a ler e entender as coisas da vida e do mundo, pois sem
isso, resta impossível a tarefa de dar passagem aos afetos do outro... assim, a
prática esquizoanalítica não se faz possível através da configuração ou
formatação de enquadramentos que culminam em padrões, mas sim, a partir do
cruzamento do entendimento teórico sobre a dimensão humana e social da
subjetivação, com a produção da experiência do próprio analisador (que pode
ser decorrente de um processo esquizoanalítico formal ou pessoal), para isso, é
importante que a produção dessa experiência não seja apenas uma
intencionalidade teórica, mas principalmente uma disponibilidade subjetiva ao
ultrapassamento de modos de vida de enquadramento ou adestramento, para a
constituição de modos de vida, autônomos, libertários e protagonistas.
No mais, acabo de completar 16 anos de trabalho (15 destes em
instituições públicas) e já andei por vários campos, tecendo teias que nunca paro
de ver se juntando a outras teias... comecei a atuar em espaço público em 1998,
na então Ação Social, depois fui para a Saúde Mental e Docência (nível médio e
técnico) e para a atuação institucional na área da educação... depois para
o Desenvolvimento Humano... depois fui para o Desenvolvimento Social...
depois para o judiciário... durante esse tempo, atuei também em espaços
acadêmicos de docência e pesquisa... e agora parei com tanta diversidade... já
experienciei as atuações que desejava nesses campos e, desde 2009 venho me
dedicando especificamente ao trabalho em saúde mental, polinizando minha
atuação através dos referenciais da esquizoanálise, da psicologia social e
institucional, e embalada pelos ideais de solidariedade, justiça social,
simplicidade, humanidade, participação popular, protagonismo das gentes, entre
outras coisas que embalam os pensamentos dos viventes!
Estou vivendo um tempo atípico em minha atuação profissional e, assim,
enquanto cuido em manter meu trabalho público dentro do que seja possível
desenvolver no espaço em que atuo, concomitantemente vou tecendo outras
possibilidades de trabalho. No mais, mantenho o consultório privado durante
todo esse tempo em que atuo no campo público, visto que é um lugar em que se
pode arredar o banco e ter uns dedos de prosa a qualquer tempo, independente
das vontades de gestores afoitos e apegados à efemeridade do poder.
A atuação intersetorial no trabalho público tem possibilitado o meu trânsito
permanente no campo da saúde e, para além da manutenção do meu trabalho
privado em saúde mental (assim como, do trânsito intersetorial nessa área),
pretendo retomar minha atuação diretamente na saúde mental pública.
Nessa toada, perscruto os caminhos da clínica ampliada, do atendimento
de rua, da atuação comunitária (que é uma experiência que já consolidei em
minha história profissional) e da redução de danos (não enquanto viabilização e
distribuição de insumos, mas enquanto modo de vida relacionando à invenção
de uma estética existência enquanto).
Afora isso, devo sublinhar que nunca fui apegada a alimentar meu Lattes...
o dito existe, pois é uma entidade formal exigida em muitos espaços e que a
academia considera em grande conta, mas não me estrebuchei para cuidar
dele... há umas poucas coisas que faço que ali aparecem... esqueço de recolher
os certificados, mas não esqueço de transversar as vidas e os afetos de todos
aqueles com que cruzo em minhas andanças pessoais e de trabalho... minha
escrita se dá cotidianamente na vida das gentes... acoiero as letras nos
descampados de afetos e faço delas alguma coisa que possa ser dita, porque
d’as vezes aquele sujeito que pomposamente chamamos de usuário, precisa
que a gente lhe dê um retrato para re-ajeitar sua vida no cenário de sua própria
existência ou n’algum outro que o tenham metido (ou que ele mesmo tenha se
metido).
Falta-me tempo físico para as escritas formais... e não é que não goste
disso, aliás, é o que mais gosto... na verdade, se tivesse com que garantir os
meneios da vida prática e material, não arredaria a bunda da beirada dos livros
e dos lápis... anseio para ter uns tempos só pra isso... anseio por fazer a escrita
de tanta coisa que está ajuntada no tempo longo dos meus existires... anseio pra
deixar correr a linha e ir trazendo devagarzinho pra beira d’água, o peixe arisco
que me ponteia os pensamentos.
No mais, sou uma conversadeira... portanto, é me convidar para uma roda
de conversa e já me baixa um preto velho, puxo do meu palheiro (imaginário) e
sento para um dedo de prosa... sou daquelas que acredita que um banquinho de
madeira com três pernas seja suficiente para segurar uma boa conversa... além
disso, a vida é um permanente devir que, além de ser atravessado pelo coletivo,
é produção do sujeito! Assim, termino com mais um excerto de minha
dissertação:
“Assim sendo e sem fazer apologias desnecessárias, encerro este
primeiro momento, com Melville citado por Deleuze, quando diz: ‘gosto de todos
os homens que mergulham. Qualquer peixe pode nadar perto da superfície, mas
é preciso ser uma grande baleia para descer a cinco milhas ou mais. Desde o
começo do mundo, os mergulhadores do pensamento voltam à superfície com
os olhos injetados de sangue’ (MELVILLE apud DELEUZE, 2006, p. 128-9).
Talvez seja nessa perspectiva que podemos contemplar Foucault e,
estudando sua obra e as problematizações que formaram o conjunto do seu
pensamento, que possamos, mesmo não sendo grandes baleias, pelo menos
mergulhar profundamente e voltar sempre à superfície com o pensamento
injetado de sangue e, ainda, se não for de sangue, que seja com o propósito de
ao final podermos fazer algo diferente ou melhor do que nos propúnhamos no
início de nosso itinerário de pesquisa”[7].
Assimassim apresento-me para esta Seleção para o Curso de Doutorado
em Psicologia Social e Institucional, não basicamente pela titulação, mas
principalmente pelo desejo forte de transversar meus versos com os versos de
outras gentes... de juntar meus ideamentos com outros pensamentos... de seguir
juntando letras para melhorar o tino das palavras com que adentro as fissuras
de tantos existires no dia-a-dia, no afeto pouco de quem precisa de uns versos
–miúdos que sejam- no cisco pouco de suas vidas.

[1] Formação principal: Pescadora, bolicheira, conversadeira, inventadeira, poeteira,


escrevinhadeira e curiosa (o que provoca pesquisamentos por causa do pouco
conhecimento).
Formação complementar: Psicóloga, Especialista em Ciência Política, Mestre em
Filosofia, Trabalhadora Pública na Prefeitura Municipal de Cruz Alta/RS e, também,
arredo o banco pra trabalhar num canto não tão público.
[2] DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1 Ed. (1992) 5 Reimp. 2006.
[3] BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas: a segunda infância. São Paulo:
Editora Planeta do Brasil, 2006.
[4] Uso o t e r m o “t e s si tu ra ” qu e s e r ef e r e a o c on j u n t o d o s s on s e qu e
me lh or dá su a to n al i dad e , e qu e m e f az p en sa r n a mú si ca p r odu z i da e
em itid a p el a ob ra , p el o t ext o , p e la s el ab o ra ç õ e s d e u m au t o r , t ra tan d o -
s e, en tã o, da mu si c al i da d e d e u m au t o r ou d e u m e s c r it o; e , em ou t r o s
mo m en t o s, u s o t e ci tu r a qu e é u ma c o rr u pte la p ar a t e c edu r a e qu e d iz
do t e c er d as i d éi a s e d o p en s am en t o , f eit o fi o s qu e s e c ru z am e fo r ma m
o p an o , n o ca s o, o p an o d e i d éi as . E ai n da v al e es cl a r ec e r q u e a o ri g em
do t er m o “t ex to ” é an t e ri o r à di fu sã o cu ltu r al d a e s cr it a: v e m d a
ativ ida d e da s mu l h e r e s qu e “t e ci am t e ci do s ” c om a r o ca . C o m o a dv en t o
da amp l i a çã o da e s c ri t a, o e s c rit o pa s s o u a s e ch a ma r t ex t o .
[5]DIELLO, M.L. Michel Foucault e a Problematização da Subjetivação – para o cultivo e a
transformação de si -. Dissertação de Mestrado. 2009, p. 14-5).
Disponível: http://cascavel.cpd.ufsm.br/tede/tde_arquivos/24/TDE-2009-
10-28T141810Z-2307/Publico/DIELLO,%20MARIA%20LUIZA.pdf.
[6] BAREMBLITT, G. Introdução à Esquizoanálise. Biblioteca Instituto Félix
Guattari, 1998, p.14-15.
[7] DIELLO, 2009, p. 31-2.

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