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O nascimento do controle de

constitucionalidade judicial

Andreo Aleksandro Nobre Marques

Sumário
1. A fiscalização judicial da constituciona-
lidade: uma contribuição dos Estados Unidos
para o mundo. 2. O controle de constitucio-
nalidade. 2.1. Controle de constitucionalidade
formal e material. 2.2. Controle de constitucio-
nalidade por via de exceção e por via de ação.
3. A experiência inglesa e sua influência sobre
o incipiente constitucionalismo dos Estados
Unidos. 4. O nascimento do controle de consti-
tucionalidade exercitado pelo Poder Judiciário.
5. Considerações finais.

1. A fiscalização judicial da
constitucionalidade: uma contribuição
dos Estados Unidos para o mundo
Este artigo tem por objeto apontar as
razões pelas quais o controle de consti-
tucionalidade das leis e dos atos gover-
namentais, exercitado pelos órgãos do
Poder Judiciário, originou-se nos Estados
Unidos, e como se deu, historicamente,
esse surgimento.
A abordagem justifica-se, pois, como se
Andreo Aleksandro Nobre Marques é Juiz sabe, o constitucionalismo dos Estados Uni-
de Direito Titular na Comarca de Natal/RN. dos exerceu forte influência na instauração
Especialista em Direito Processual Penal e Pro- do modelo republicano no Brasil, inclusive
cessual Civil pela Universidade Potiguar – UNP. no que diz respeito à aceitação entre nós do
Mestre em Direito Constitucional pela Universi-
princípio da judicial review.
dade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela
Em que pese a afirmação de que foi nos
Faculdade de Direito da Universidade de Lis- Estados Unidos que nasceu a fiscalização
boa/Portugal. Professor Assistente de Direito judicial da constitucionalidade das leis,
Penal da UFRN. ver-se-á que o gérmen desse poder é en-

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contrado no direito inglês, que, em certo Foi o que teorizou Sieyès na famosa obra
período de sua história, admitia o poder “Qu’est-ce que le tiers État?”. Mais tarde, teria
dos órgãos judiciários de revisar os atos le- Sieyès, agora preocupado com a estabilida-
gislativos e governamentais que colidissem de e ordem que a Constituição deveria pro-
com a Common Law ou com o direito natural porcionar, transigido com a possibilidade de
(CAVALCANTI, 1966, p. 48). alteração da Constituição pelo poder insti-
Coube, então, ao gênio norte-americano, tuído, desde que se atuasse com prudência
a partir do estabelecimento inovador de uma (Cf. BONAVIDES, 2004, p. 141).
Constituição escrita, apenas desenvolver e Para Machado Horta (1999, p. 124), é o
formular, em termos definitivos, o exercício poder constituinte, originário ou derivado,
do controle de constitucionalidade. que confere “superioridade e permanência
É de se ter em conta, ainda, que, apesar formais a determinada categoria de regras,
de o constitucionalismo dos Estados Uni- imprimindo na superfície jurídica estatal
dos ter seguido um rumo diverso daquele dupla categoria de normas: a constitucional
do Reino Unido, a Common Law continuou e a ordinária.”
sendo a fonte primordial de inspiração do Assim, não podendo a lei constitucional,
direito norte-americano. de categoria superior, ser revogada por
Assim, a abordagem terá início com uma lei ordinária, de categoria inferior,
uma breve exposição do tema controle de justamente por decorrer daquela, resta es-
constitucionalidade, enfocando seus prin- tabelecido o princípio da supremacia cons-
cipais aspectos teóricos. titucional (Cf. BITTENCOURT, 1997, p. 68),
Em seguida, será examinada a influ- pressuposto doutrinário incontroverso da
ência exercida pelo direito inglês sobre o técnica do controle de constitucionalidade
direito dos Estados Unidos, uma vez que (LOUREIRO JÚNIOR, 1957, p. 61-62).
o sistema jurídico norte-americano é con-
siderado um misto entre o da Common Law 2.1. Controle de constitucionalidade
e o da Civil Law, explicitando com precisão formal e material
a distinção entre essas duas famílias de Para que seja possível a reforma ou re-
direitos e as acepções que pode tomar a visão das Constituições rígidas, exige-se a
expressão Common Law. submissão do órgão competente a um pro-
Por fim, mostrará como se estabeleceu o cedimento mais dificultoso, daí porque a lei
controle de constitucionalidade nos Estados infraconstitucional, por não se submeter aos
Unidos. mesmos requisitos, não pode revogá-la.
Busca-se proteger, então, com o aspecto
da rigidez, as opções políticas da sociedade,
2. O controle de constitucionalidade
sufragadas no texto constitucional, quer
O constitucionalismo moderno surge em relação à organização estatal, quer aos
com a aceitação da ideia de existência de direitos que foram conferidos em favor dos
uma lei fundamental do Estado ou Nação, membros dessa sociedade, daí por que se
superior a todas as demais. obsta também a alteração das próprias nor-
A distinção entre lei constitucional e mas constitucionais que tratam da elabora-
lei infraconstitucional resulta do fato de ção de normas pelo legislador constituído.
que a lei constitucional é produto de um Nesse sentido, assevera Hans Kelsen
poder constituinte, a princípio absoluto e (1998, p. 182):
ilimitado, enquanto a lei infraconstitucional “(...) a constituição no sentido for-
é produto de um dos poderes constituídos mal é certo documento solene, um
pela lei constitucional, razão pela qual não conjunto de normas jurídicas que
pode desrespeitá-la. pode ser modificado apenas com a

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observância de prescrições especiais superior de um ordenamento jurídico, disso
cujo propósito é tornar mais difícil a advém uma pretensão de validade e de
modificação dessas normas. A cons- observância da Constituição a que estão
tituição no sentido material consiste jungidos todos os poderes constituídos.
nas regras que regulam a criação das Ocorre que apenas a ideia de superio-
normas jurídicas gerais, em particular ridade da Constituição, em razão de esta
a criação de estatutos. A constituição, decorrer do poder constituinte, não basta
o documento solene chamado ‘cons- para essa tutela. Necessário, como acentua
tituição’, geralmente contém também Machado Horta (1999, p. 124, 125), que se
outras normas, normas que não são faça acompanhar a Constituição de um
parte da constituição material. Mas é mecanismo adequado de salvaguarda de
a fim de salvaguardar as normas que de- seu conteúdo, tanto para que não haja a
terminam os órgãos e os procedimentos de interferência de um poder constituído no
legislação que se projeta um documento domínio de outro, quanto, principalmente,
solene e especial e se torna especialmente para que os poderes constituídos respeitem
difícil a modificação das suas regras. Por os direitos individuais que a lei constitucio-
causa da constituição material existe uma nal houve por bem reconhecer.
forma especial para as leis constitucionais Esse instrumento de defesa da Cons-
ou uma forma constitucional. Se existe tituição, derivado da ideia de constitui-
uma forma constitucional, então as leis ções rígidas, somente veio a surgir com o
constitucionais devem ser distinguidas constitucionalismo do século XVIII, dando
das leis ordinárias.” (grifo nosso). origem ao que é conhecido modernamente
A inaplicabilidade da lei que contrarie a por controle de constitucionalidade das leis
Constituição advém, portanto, da hierarquia (Cf. HORTA, 1999, p. 128).
existente entre as leis. Sendo a Constituição Entretanto, logo surge uma primeira
a lei suprema, e tendo os poderes constituí- dificuldade, qual seja a de determinar
dos existência derivada da Constituição, se qual órgão do Estado é o mais indicado
houver um entrechoque entre duas normas para exercer esse poder, a fim de que não
jurídicas, estando uma contida na Cons- ocupe uma posição de superioridade em
tituição e outra não, deve prevalecer a lei relação aos demais poderes constituídos,
constitucional, por ser norma de hierarquia com afronta ao princípio da separação dos
superior (Cf. BITTENCOURT, 1997, p. 63). poderes, base do Estado de Direito.
Barthélémy e Duez1 (apud BITTEN- Como se sabe, o controle de constitu-
COURT, 1997, p. 64) asseveram que a cionalidade pode ser formal ou material.
Constituição não estabeleceu poderes cons- O controle formal é aquele que se realiza
tituídos para ser desrespeitada por eles. As- para se averiguar se a elaboração da lei
sim, todo ato que, emanando dos poderes obedeceu ao procedimento previsto pela
constituídos, for contrário à Constituição, Constituição.
também o é privado de valor jurídico. O controle formal é estritamente jurídi-
Em sentido equivalente, Gomes Canoti- co, uma vez que cuida apenas de analisar se
lho (2003, p. 888) aduz que, sendo a Consti- o procedimento de feitura das leis atendeu
tuição a norma das normas, a de hierarquia aos comandos normativos constitucionais,
1
Dizem Joseph Barthélémy e Paul Duez: “Les or-
e se foram obedecidas as competências
ganes constitutionnels ne peuvent pas juridiquement estabelecidas na Constituição, não sendo
faire d’actes en contradiction avec les dispositions de um controle de conteúdo, isto é, material
la constitution, parce qu’ils excéderaient leur compé- (BONAVIDES, 2004, p. 297, 298).
tence: la constitution nés les a pas crées pou être violée
par eux. La constitution est la loi supreme du pays: Em razão disso, por ser um controle
tout acte qui lui serait contraire serait illégal.” jurídico, eminentemente técnico e despido

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de referências ao conteúdo da lei, não há Em consequência disso é que, nos pa-
nenhum problema em ser exercido por íses da Europa continental, ao tempo das
um órgão jurisdicional, que desempenha, primeiras Constituições, ou o problema foi
conforme assinala Rui Barbosa (apud desconsiderado, pela não criação de um me-
BONAVIDES, 2004, p. 298), “(...) um po- canismo de controle, entendendo suficiente
der de hermenêutica e não um poder de o estabelecimento da rigidez constitucional3,
legislação”. ou, originariamente, foi atribuído o controle
Acontece que o controle formal é in- de constitucionalidade a um órgão político,
suficiente para a salvaguarda dos direitos não vinculado ao Poder Judiciário.
reconhecidos na Constituição em favor dos Mas que poder é estritamente político
cidadãos, já que a Constituição também ou jurídico? Nem os Poderes Legislativo e
deve ser entendida em seu sentido ma- Executivo são estritamente políticos, nem o
terial2, isto é, como instrumento político, Poder Judiciário pode e deve ser estritamen-
de eleição dos valores mais caros de uma te jurídico. Realmente, quando se analisa o
sociedade ou nação, o que deu origem ao surgimento do modelo norte-americano do
denominado controle material. controle de constitucionalidade, fruto de
O controle material tem elevado teor uma realidade histórica diversa da vivida
político. Para seu exercício, é necessário especialmente na França, ver-se-á que não
perscrutar o conteúdo da norma jurídica, é incompatível com o Poder Judiciário o
a fim de torná-la compatível com a Consti- exercício político de sua função. Aliás, no
tuição. A atividade desenvolvida é criativa, que se refere à interpretação constitucional,
atenta aos valores da norma, que devem não há como se pensar nessa prática afas-
estar em conformidade com os valores da tada do ponto de vista político4.
Constituição.
Aqui é que resulta problemática a esco- 3
Como assinala Machado Horta (1999, p. 128-129),
procurava-se proteger a supremacia constitucional
lha do órgão destinado a exercitar esse con- apenas mediante “o acatamento solene e reverencial”,
trole, pois, sendo atribuída a um órgão do como foi o caso da Constituição Francesa de 1791,
Poder Judiciário a incumbência de verificar que em seu art. 8o do Título VII confiava a guarda da
se os atos dos outros poderes se conformam Constituição “(...) à fidelidade do corpo legislativo,
do Soberano e dos Juízes, à vigilância dos pais de
à Constituição, disso resultaria que o Poder família, esposas e mães, à estima dos jovens cidadãos,
Judiciário poderia ficar em nível superior à coragem de todos os franceses”. A história, porém,
aos demais poderes estatais, em prejuízo mostrou que o controle parlamentar, o direito de resis-
da independência e harmonia derivada do tência e o direito de petição, apontados como formas
de proteção dominantes no século XIX, não eram
princípio da separação dos poderes. suficientes para a tutela dos direitos fundamentais dos
Ademais, no que se refere à atividade le- cidadãos. Nesse sentido, destacando a pouca eficácia
gislativa, isso seria ainda mais inadmissível, prática desse expediente, diz Michele Petrucci (apud
pois na Inglaterra e na França, países que, HORTA, 1999, p. 129): “(...) Poiché non era accompag-
nato da garanzie giuridiche che proteggessero i diritti
adotando o regime parlamentar, exerceram dei cittadini contra l’ingerenza dello Stato in genere e,
forte influência sobre inúmeros outros pa- malgrado gli appellativi di naturali e imprescrittibili a
íses, é o Poder Legislativo, e não o Poder volte loro attribuiti, del potere legislativo in ispecie”.
Judiciário, o porta-voz da soberania do Povo 4
Cf., a esse respeito, as seguintes ponderações de
Otto Bachof (1986, p. 843): “(...) Considero indudable
ou da Nação (Cf. HORTA, 1999, p. 143). también, según mi propria experiencia como juez cons-
titucional, que las reglas constitucionales no pueden
2
Segundo Paulo Bonavides (2004, p. 80), a Consti- ser interpretadas en muchos casos sin recurrir a valo-
tuição material diz respeito ao conteúdo das determi- raciones políticas; semejantes valoraciones políticas
nações mais importantes de um Estado. É o conjunto son empero siempre subjetivas hasta cierto grado. Por
de regras destinado a regular o poder, a distribuição ello subsiste siempre e inevitablemente una relación de
de competências, a forma de governo, os direitos cierta tensión entre derecho y política. El juez consti-
individuais e sociais da pessoa humana. tucional aplica ciertamente derecho. Pero la aplicación

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Sustenta Bittencourt (1997, p. 68), que os segundo Neumann e Miller, referidos por
tribunais não entram em conflito com o Po- Bittencourt (Idem, p. 22), é justamente a
der Legislativo quando deixam de aplicar de defender e proteger os direitos assegu-
uma lei ordinária tida por inconstitucional, rados constitucionalmente em favor dos
já que, na verdade, o conflito se estabelece cidadãos.
entre as duas categorias de leis, a constitu- É cediço que há duas formas fundamen-
cional, derivada do poder constituinte ori- tais de controle de constitucionalidade,
ginário, e a ordinária, de um poder criado que a seguir serão divisadas: o controle de
pela Constituição, limitando-se os tribunais constitucionalidade por via de exceção e o
a aplicar a lei de hierarquia superior, por controle por via de ação.
sua autoridade patente.
Gomes Canotilho (2003, p. 889) con- 2.2. Controle de constitucionalidade
sidera mesmo que a fiscalização judicial por via de exceção e por via de ação
da constitucionalidade contribuiu para o O controle de constitucionalidade
desenvolvimento profícuo da própria cons- por via de exceção, também chamado de
tituição, dizendo que é possível se afirmar controle concreto, ou incidental, somente
que a constituição foi “reinventada pela é exercitável perante órgão do Poder Judi-
jurisdição constitucional”, caracterizan- ciário, diante de caso concreto submetido
do uma das formas mais importantes de a julgamento, quando uma das partes em
controle já estatuídas para a proteção das conflito levanta, em sua defesa, inciden-
normas constitucionais. talmente, a tese da inconstitucionalidade
Isso não significa, parafraseando Ha- de uma lei que seria aplicada em seu
milton5, trazido à colação por Bittencourt prejuízo.
(1997, p. 69), que o Poder Judiciário seja Como diz Gomes Canotilho (2003, p.
superior ao Poder Legislativo. Quem é 899, grifo nosso):
superior é a Constituição, e o é em relação “A questão da inconstitucionalidade
a todos os poderes por ela constituídos, é levantada, por via de incidente, por
devendo os juízes, em caso de lei ordinária ocasião e no decurso de um processo
inconstitucional, atuar a vontade soberana comum (civil, penal, administrativo
e aplicar a Constituição, rejeitando a lei ou outro), e é discutida na medida
inconstitucional. em que seja relevante para a solução
Ademais, importa ter em mente que, na do caso concreto.”
verdade, é o Poder Judiciário o mais fraco Diversamente do que ocorre com o
dos poderes6 e que sua função precípua, controle por via de ação, na via de exceção
de este derecho implica necesariamente valoraciones a decisão judicial não anula a lei inconstitu-
políticas a cargo del juez que aplica la ley (...)”. cional, isto é, não a ataca em abstrato, mas
5
Sustenta Hamilton, em “The Federalist”, que:
somente declara sua nulidade, deixando de
“Nor does this conclusion by any means suppose a
superiority of the judicial to the legislative power. It aplicá-la ao caso concreto.
only supposes that the power of the people is superior Nesse sentido, pontifica Rui Barbosa
to both; and that where the will of the legislature, (apud BITTENCOURT, 1997, p. 99, grifo
declared in its statutes, stands in opposition to that
nosso):
of the people, declared in the constitution, the judges
ought to be governed by the latter rather than the “Uma coisa é declarar a nulidade.
former. They ought to regulate their decisions by the Outra, anular. Declarar nula uma
fundamental laws, rather than by those which are not
fundamental”. society; and can take no active resolution whatever.
6
A esse respeito, é célebre a seguinte passagem It may truly be said to have neither Force or Will but
de Hamilton, em “The Federalist”: “The Judiciary has merely judgement… It proves incontestably, that the
no influence over either the sword or the purse; no judiciary is beyond comparison the weakest of the
direction either of the strength or of the wealth of the three departments of power.”

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lei é simplesmente consignar a sua ação de inconstitucionalidade poderá ca-
incompossibilidade com a Constitui- ber tanto a um órgão do Poder Judiciário,
ção, lei primária e suprema. Hão de quanto a um órgão especialmente criado
o fazer, porém, na exposição das ra- para essa finalidade.
zões do julgado, como consideração Assim, tem-se, hodiernamente, como
fundamental da sentença, e não, em exemplo da adoção do controle de consti-
hipótese alguma, como conclusão da tucionalidade por via de ação, o modelo pá-
sentença e objeto do julgado.” trio, disposto na Constituição da República
O controle por via de exceção é produto Federativa de 1988, confiado a um órgão do
da experiência constitucional norte-ameri- Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Fede-
cana, estando vinculado ao sistema de con- ral, e, sendo confiado a um órgão diverso
trole de constitucionalidade denominado do Poder Judiciário, o Tribunal Constitu-
difuso. Caracteriza-se basicamente por ser cional do modelo espanhol (Constituição
conferido a qualquer órgão jurisdicional, de 1978), apesar de que, em ambos países,
nos casos concretos sujeitos à sua aprecia- é possível também o controle de constitu-
ção (CANOTILHO, 2003, p. 898). cionalidade por via de exceção.
Por sua vez, o controle de constitucio-
nalidade por via de ação é também deno- 3. A experiência inglesa e sua
minado controle direto ou abstrato. Diz-se
influência sobre o incipiente
abstrato porque é feito por meio de uma
ação diretamente proposta com o intuito constitucionalismo dos Estados Unidos
de atacar a inconstitucionalidade da norma Diz-se que a Common Law foi criada na
em abstrato, isto é, independentemente da Inglaterra, mas o que caracteriza esse sis-
existência de qualquer conflito concreto tema ou família de direito? Respondendo
entre sujeitos de direito. à indagação, pode ser dito que a principal
Está relacionado com o sistema concen- característica do direito dos países que se
trado7 de controle de constitucionalidade, filiam à Common Law é que nesta a criação
originário do modelo austríaco estampado do direito se dá, principalmente, por obra
na Constituição de 1920, no qual a compe- dos órgãos do Poder Judiciário, ou seja,
tência para julgar a inconstitucionalidade é judge-made law.
reservada a um único órgão, excluindo-se Assim, verdadeiramente, conforme
todos os demais (Idem, p. 900). ressalta Guido Soares (2000, p. 51), não
Dando o órgão competente provimen- é que a Common Law seja essencialmente
to ao requerimento da parte legitimada baseada no costume e, como tal, se trate
a arguir a inconstitucionalidade, cassa o de um direito não escrito, como se costuma
ato tido por inconstitucional, expurga-o propagar, porém, que o Poder Judiciário
do ordenamento jurídico e retira-lhe, total dos países filiados à Common Law exerce
ou parcialmente, seus efeitos, valendo a efetiva atividade criadora do direito, o que,
decisão erga omnes. ordinariamente, não é aceito nos países que
De acordo com os sistemas constitucio- integram o sistema da Civil Law.
nais que adotaram essa forma de controle Afasta-se, então, desde logo, a falsa afir-
de constitucionalidade, o julgamento da mativa de que o direito inglês, do qual sur-
giu o sistema da Common Law, é um direito
7
Esclarece Gomes Canotilho (2003, p. 899) que não escrito, posto que a criação do direito
esse sistema encontrou grande acolhida no consti- ocorre predominantemente com o trabalho
tucionalismo europeu superveniente ao segundo
grande conflito mundial, “(...) estando consagrado na
dos tribunais, havendo, efetivamente, redu-
Itália, Alemanha, Turquia, Iugoslávia, Chipre, Grécia, ção a escrito das decisões proferidas pelas
Espanha e Portugal”. cortes (GALINDO, 2003, p. 100, 101).

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Característica importante da Common enquanto em França o Poder Judiciário era
Law a ser realçada diz respeito à denomi- símbolo de opressão, posto que os juízes
nada regra do precedente ou doctrine of eram submissos à vontade do Monarca, o
stare decisis8. Segundo tal regra, basta uma que fez com que os revolucionários se em-
única decisão de um tribunal para que a penhassem em reduzir ao máximo o poder
mesma tenha força obrigatória para casos exercido pelo ramo judiciário, nas Treze
futuros, espraiando seus efeitos para além Colônias a situação era bem diferente.
das partes, vinculando não só os órgãos O que representava opressão para o in-
judiciários subalternos, mas também o pró- cipiente povo americano era o Parlamento
prio tribunal que fixou o precedente, sendo inglês, que costumeiramente desautorizava
imperativo conhecer as razões ou motivos as leis locais, sempre que fossem contrárias
da decisão, já que a regra jurídica é criada aos interesses da Coroa. Explica-se, assim,
pelo tribunal de acordo com os fatos do caso o desejo do povo americano de constituir
concreto (SOARES, 2000, p. 40-42). e tolerar um Poder Judiciário altivo e so-
Note-se que não é correto denominar branceiro, a fim de combater os eventuais
o sistema da Common Law sistema inglês abusos que pudessem ser praticados pelos
ou mesmo sistema britânico, uma vez que demais poderes.
vários outros países de língua inglesa, não Nesse ponto, apesar de o sistema jurí-
só a Inglaterra, onde surgiu, filiam-se a dico norte-americano estar vinculado ao
esse sistema, entre os quais Nova Zelândia, sistema da Common Law, diferencia-se do
Austrália, República da Irlanda (Eire), e sistema constitucional do Reino Unido,
também porque a Escócia, apesar de com- já que neste não existe, tradicionalmente9,
por a Grã-Bretanha, com a Inglaterra e o a fiscalização da constitucionalidade, em
País de Gales, e sofrer grande influência da decorrência da ideia de soberania ou su-
Common Law, filia-se ao sistema romano- premacia parlamentar e da não distinção
germânico (Idem, p. 51-52). formal entre leis constitucionais e leis or-
Por outro lado, não obstante se reco- dinárias (Cf. CLÈVE, 2000, p. 57; POLETTI,
nhecer força criadora do direito às decisões 2001, p. 6).
judiciais, convivem estas com os statutes, É justamente o fato de possuir uma
que seria a criação do direito por obra do le- Constituição escrita e rígida que permite
gislador não integrante do Poder Judiciário,
daí por que se costuma falar em Common 9
Com o ingresso do Reino Unido na Comunidade
Comum Europeia, já se tem exercitado pelo Poder
Law para se referir ao direito criado pelas
Judiciário (judicial review) a análise da conformidade
cortes e Statutory Law ou Statute Law para das leis do Reino Unido com as regras do direito da
denotar o direito instituído pelos órgãos comunidade, por entender que estas estão em um nível
não judiciais (Ibidem, p. 37-38). superior em relação às leis internas, razão pela qual
Como os Estados Unidos, advindo do devem ser respeitadas. Nas palavras de Cappelletti
(2003, p. 141-142): “Nos últimos anos, porém, signifi-
sistema da Common Law, em que prevalecia cativas brechas foram abertas nos sólidos princípios
o princípio da supremacia do Parlamento, das tricentenárias muralhas. Mencionarei apenas duas
poderia criar um sistema constitucional em que se aplicam ao Reino Unido, e ao mesmo tempo
que o Poder Judiciário controlasse os atos a várias das demais nações da Europa Continental.
Elas nos revelam uma nova e única dimensão do
dos outros poderes? extraordinário desenvolvimento e crescimento da
Para responder essa indagação é pre- revisão judicial na Europa, vale dizer, sua dimensão
ciso que se esclareça, desde o início, que, transnacional [...] Na verdade, não se trata de um con-
trole de constitucionalidade da legislação, embora seja
8
Stare decisis é a forma abreviada da sentença pelo menos um primeiro passo para o reconhecimento,
latina “stare decisis et non quieta movere”, que quer mesmo na Inglaterra, de que o princípio histórico da
dizer, em tradução livre, mantém o que foi decidido absoluta supremacia da lei parlamentar não mais
e não altere o que foi estabelecido. prevalece inteiramente.”

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o enquadramento do direito dos Estados Em que pese a inexistência de uma
Unidos como pertencente ao que se pode Constituição formalmente rígida na In-
chamar de sistema da Common Law misto, glaterra, como sustenta Ronaldo Poletti
por ter algumas características encontradas (2001, p. 7), é “justo ponderar a dificul-
nos direitos filiados ao sistema da Civil Law dade em se alterar aqueles documentos
(SOARES, 2000, p. 26). de natureza constitucional, por força de
Na Inglaterra, até a Revolução gloriosa, circunstâncias político-culturais e não
os Poderes Legislativo e Judiciário queriam, técnico-jurídicas”.
disputando não só com a Coroa, mas tam- Mas, ao contrário da França pré-revo-
bém entre si, deter a força e o poder do Esta- lucionária, de acordo com Mauro Cappel-
do. Chegou mesmo a ser aplicada, durante letti (2003, p. 140), não existiu na Inglaterra
o século XVII, a teoria de Edward Coke10, “nenhum profundo sentimento popular
que dizia que os juízes podiam declarar a contra o Judiciário, cujo histórico papel
nulidade insanável da lei do parlamento de proteção das liberdades individuais
quando fosse contrária ao direito comum e geralmente gozou de largo espectro”, o
à reta razão (HORTA, 1999, p. 144, 145), jus- que justificaria o fato de na Inglaterra ser
tamente pela força tradicional da Common admissível a revisão dos atos administra-
Law, que admitia ser completada pela lei tivos pelo Judiciário, ao contrário do que
do parlamento (Statutory Law), mas nunca ocorre na França.
desrespeitada (CLÈVE, 2000, p. 59). Apesar do rumo tomado pelo cons-
No entanto, essa supremacia do Poder titucionalismo inglês, impende destacar
Judiciário foi esquecida após a Revolução que é inegável que as ideias de limitação
de 1688, tendo sido a supremacia parlamen- legal do poder, de Constituição escrita,
tar prevista no Bill of Rights de 1689. de hierarquia entre normas, assim como
Mas é falso afirmar que não há uma da competência judicial para declaração
Constituição na Inglaterra. Desde a Carta da nulidade da norma, tiveram raízes na
Magna de 1215, há leis escritas, material- Inglaterra, e que as mesmas voltaram a
mente constitucionais, que organizam o ecoar e ser desenvolvidas com toda força
poder estatal e reconhecem direitos funda- nas colônias americanas.
mentais em favor dos cidadãos, como são o Acrescente-se que a própria afirmação
Petition of Rights, o Bill of Rights, entre outras de não haver revisão dos atos parlamenta-
(Cf. GALINDO, 2003, p. 94-96). Assim, o res pelo Poder Judiciário no Reino Unido
certo é dizer que a Constituição inglesa é questionável. É o que sustenta Galindo
apenas não é codificada, além do que não (2003, p. 107, 108), com base em René
há distinção entre lei constitucional e lei or- David, ao dizer que o uso dos processos
dinária (WOLF-PHILLIPS, 1987, p. 19-22). interpretativos pelas cortes judiciais ingle-
Em síntese, na Inglaterra qualquer lei sas redunda na criação de novas normas,
pode ser modificada, mesmo quando ma- específicas para o caso concreto, sem que
terialmente constitucional, sem maiores seja necessária a anulação das leis baixadas
problemas, justamente porque todas as leis pelo Parlamento por inconstitucionais.
estão situadas em um mesmo patamar de Verificadas as razões históricas que le-
importância. varam à supremacia parlamentar na França
e na Inglaterra, bem assim os motivos que
10
Informa Ronaldo Poletti (2001, p. 18) que Sir conduziram a rejeitar a dita supremacia
Edward Coke, que foi advogado, procurador público, nos Estados Unidos, ver-se-á em seguida
membro do Parlamento, Chief Justice of Common Pleas,
Lord Chief Justice of England e Chief Justice of The King’s
como se estabeleceu neste país o controle
Bench, não aceitava o poder ilimitado do Parlamento, de constitucionalidade por meio do Poder
tendo assentado o princípio do controle judicial. Judiciário.

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4. O nascimento do controle de pua do Poder Judiciário, ao analisar os casos
constitucionalidade exercitado pelo concretos que lhe fossem submetidos, inter-
Poder Judiciário pretar se os atos dos poderes constituídos
estão de acordo ou não com a Constituição
A Constituição americana não previu, e, em caso negativo, declará-los nulos, não
ao menos expressamente, o controle de os considerando para a resolução do litígio,
constitucionalidade de leis. sistematizando a doutrina do controle de
Diz-se que, apesar disso, era desejo dos constitucionalidade por via de exceção, a
autores da Constituição que o controle da ser realizado por toda e qualquer corte juris-
constitucionalidade das leis fosse exerci- dicional (judicial review ou judicial control).
tado pelo Poder Judiciário. Segundo Ma- Pontificou Marshall (apud BITTEN-
chado Horta (1999, p. 139), quem sustenta COURT, 1997, p. 13, 14) que:
isso é Charles Beard, que teria examinado “[..] Consiste especificamente a al-
os debates da Convenção de Filadélfia e çada e a missão do Poder Judiciário
verificado que, dos cinquenta e cinco de- em declarar a lei. Mas os que lhe
legados, apenas vinte e cinco constituíram adaptam as prescrições aos casos
o elemento ativo da Assembleia, dentre os particulares hão de, forçosamente,
quais dezessete teriam se manifestado a explaná-la e interpretá-la. Se duas leis
favor do controle judiciário da constitucio- se contrariam, aos tribunais incumbe
nalidade das leis. definir-lhes o alcance respectivo. Es-
Não obstante, adverte Lúcio Bittencourt tando uma lei em antagonismo com a
(1997, p. 19, 20) que a observação de Charles Constituição, e aplicando-se à espécie
Beard “não altera o fato de jamais ter sido a Constituição e a lei, de modo que
o assunto objeto de discussão ou resolução o tribunal tenha de resolver a lide
por parte dos convencionais”. em conformidade com a lei, desa-
Aponta-se a origem do controle de tendo à Constituição, ou de acordo
constitucionalidade norte-americano na com a Constituição, rejeitando a lei,
famosa decisão tomada pela Suprema inevitável será eleger, dentre os dois
Corte, em 1803, no caso William Marbury preceitos opostos, o que dominará o
v. James Madison, haja vista que o referido assunto. Isto é da essência do dever
controle constava apenas implicitamente judicial. Se, pois, os tribunais não
na Constituição norte-americana. devem perder de vista a Constitui-
Na demanda citada, o Chief Justice Mar- ção, e se a Constituição é superior
shall desenvolveu raciocínio lógico-jurídico a qualquer ato ordinário do Poder
digno de apreciação11, tendo destacado Legislativo, a Constituição, e não a lei
a supremacia da Constituição diante dos ordinária, há de reger o caso, a que
poderes constituídos, inclusive do Poder ambas dizem respeito. Destarte, os
Legislativo, esclarecendo ser função precí- que impugnaram o princípio de que
11
Não obstante, destaca Ronaldo Poletti (2001, p.
a Constituição se deve considerar, em
25): “Marshall foi original na lógica imbatível de sua juízo, como lei predominante hão de
decisão, não porém quanto à substância da idéia. Ela ser reduzidos à necessidade de sus-
já era correntia na jurisprudência, conforme os prece- tentar que os tribunais devem cerrar
dentes lembrados e outros que lhe foram seguindo. A
Justiça do Estado de New Jersey, em 1780, declarou os olhos à Constituição, e enxergar
nula uma lei por contrariar ela a Constituição do Es- a lei só. Tal doutrina aluiria os fun-
tado. Desde 1782, os juízes da Virgínia julgavam-se damentos de tôdas as Constituições
competentes para dizer da constitucionalidade das
escritas. E equivaleria a estabelecer
leis. Em 1787, a Suprema Corte da Carolina do Norte
invalidou lei pelo fato de ela colidir com os artigos que um ato, de todo em todo inválido
da Confederação.” segundo os princípios e a teoria do

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nosso Governo, e, contudo, intei- Adams prepararam diversos atos de nome-
ramente obrigatório na realidade. ação para cargos judiciais a serem ocupados
Equivaleria a estabelecer que, se a por seus correligionários. No entanto, Mar-
legislatura praticar o ato que lhe está shall não conseguiu entregar a tempo todos
explicitamente vedado, o ato, não os atos, isto é, antes da posse de Jefferson,
obstante a proibição expressa, será tendo este substituído Marshall por Madi-
praticamente eficaz [SIC].” son no mesmo cargo de Secretário.
Interessa ressaltar o momento histórico Não obstante os atos não entregues
vivido pelos Estados Unidos e a situa- estarem prontos e acabados (inclusive as-
ção específica do Chief Justice Marshall, sinados pelo Presidente Adams e selados
que precederam à famosa decisão. John com o selo oficial dos Estados Unidos), Je-
Marshall fazia, juntamente com Adams, fferson, tendo sido informado por Madison,
Presidente dos Estados Unidos à época, e entendendo que a comissão só se tornava
parte do Partido Federalista, tendo sido perfeita com a entrega, determinou ao seu
nomeado por Adams para ser seu Secre- Secretário de Estado que não passasse os
tário de Estado. Os federalistas, prevendo referidos atos às mãos dos beneficiários
a derrota na sucessão presidencial, o que da comissão. Entre os prejudicados com
realmente veio a se concretizar e de forma a medida adotada por Jefferson estava
estrondosa, fizeram, com Adams à frente, William Marbury, nomeado por Adams
inúmeras nomeações de copartidários para para exercer o cargo de Juiz de Paz do con-
cargos do Poder Judiciário, a fim de se pre- dado de Washington, Distrito de Columbia
pararem para o período em que iriam ficar (POLLETI, 2001, p. 32).
afastados do poder, já que os juízes eram Impedido de tomar posse no cargo,
cercados das garantias da vitaliciedade Marbury, juntamente com três outros
e da irredutibilidade de vencimentos. O prejudicados, Dennis Ramsay, Robert To-
próprio Marshall, ainda como Secretário de wnsend Hooe e William Harper, recorreu
Estado, foi nomeado e exerceu cumulativa- à Suprema Corte, em 1801, pleiteando que
mente aquela função com a de Presidente fosse deferido um writ que obrigasse o Se-
da Suprema Corte norte-americana, até o cretário de Estado Madison a empossá-lo
final do mandato de Adams (Cf. POLETTI, no cargo (HORTA, 1999, p. 137).
2001, p. 31, 32). Somente em 1803, quando o assunto já
O certo é que os republicanos, que es- interessava sobremaneira à opinião pública
tavam ascendendo ao poder com a eleição norte-americana, e depois de o Presiden-
de Jefferson para presidente (quarto pre- te Jefferson ter-se pronunciado sobre a
sidente norte-americano), representavam, possível crise que se instalaria entre os
pelo menos no entender dos federalistas, poderes caso o julgamento fosse favorável
uma ameaça ao postulado da suprema- a Marbury, quando também a maioria das
cia do governo federal, diante da grande pessoas acreditava que o Executivo não a
quantidade de votos recebidos não só pelo cumpriria, e após a Suprema Corte ser acu-
Presidente Jefferson, como pelos candi- sada pela imprensa de omissão, cogitando-
datos republicanos que foram eleitos em se inclusive a possibilidade de impeachment
maioria para o Congresso, postulado que dos membros daquele tribunal, veio a ser
seria substituído pelo da soberania dos decidida a causa (Cf. POLLETI, 2001, p.
Estados, já que essa bandeira havia sido 32).
agitada durante a campanha presidencial Marshall, então, com muita astúcia,
(HORTA, 1999, p. 138). manifestando-se no sentido da ilegalidade
Até o último dia do governo, Marshall, das condutas de Jefferson e Madison, que
na qualidade de Secretário de Estado, e não queriam empossar Marbury, como

100 Revista de Informação Legislativa


se estivesse enfrentando o mérito da con- célebre aresto, de acordo com as regras
trovérsia, deixou de conceder a ordem processuais contemporâneas, quando teria
pleiteada por Marbury, evitando o risco que se declarar suspeito, ou possivelmente
de descumprimento da decisão, acolhen- veria sua suspeição arguida, já que tinha
do uma preliminar de incompetência da interesse direto no julgamento da causa em
Suprema Corte, após declarar a inconstitu- favor de uma das partes (BITTENCOURT,
cionalidade da lei que conferia fundamento 1997, p. 17).
ao writ impetrado por Marbury, uma vez Como afirma Ronaldo Poletti (2001,
que a referida lei ampliava a competência p. 32), a “questão envolvia dificuldades
originária da Suprema Corte fixada na técnico-jurídicas, para não falar do proble-
Constituição, o que não era possível em ma ético-político”.
virtude de a Constituição ser uma lei hie- No entanto, não é bem assim. Como
rarquicamente superior. relata Barbosa Moreira (2003, p. 2, 4), não
Sobre a manobra política de Marshall, existe meio, ainda hoje, para arguição da
verdadeiro golpe de mestre, que fez com suspeição de um membro da Suprema Cor-
que o Executivo respeitasse o julgamento, te dos Estados Unidos, ficando ao talante
e, por consequência, que se estabelecesse a de cada magistrado, de acordo com seu
doutrina do controle de constitucionalida- sentimento ético, decidir por participar ou
de das leis pelo Poder Judiciário, Robert H. não de qualquer julgamento.
Jackson (apud BITTENCOURT, 1997, p. 14, Estabelecido o controle de constitucio-
15) tece os seguintes comentários: nalidade por via de exceção e difuso, surge
“The strategy of giving the Jeffersonians a dificuldade de, na prática, sobejarem de-
a victory by invoking a doctrine of which cisões contraditórias acerca da constitucio-
they were the bitter opponents was mas- nalidade de leis, em prejuízo ao princípio
terly. Marshall knew his politics as well da segurança jurídica.
as his law. The Jeffersonians could not Nesse sentido, Hans Kelsen (2003, p.
well arouse the people against the doc- 303), ao discorrer sobre o sistema austríaco
trine by which they had won their case. adotado na Constituição de 1920, aponta
and he had fixed it in a most sheltered que:
position. Had he declared the doctrine in “A desvantagem dessa solução
a case where the decision went against consiste no fato de que os diferentes
Mr. Jefferson, there is little doubt that órgãos aplicadores da lei podem ter
the president would have defied the Court opiniões diferentes com respeito à
and at that time the people would prob- constitucionalidade de uma lei e que,
ably have sustained him. But Jefferson portanto, um órgão pode aplicar a
could not defy a decision in his favor; he lei por considerá-la constitucional,
could make no issue over a legal theory. enquanto outro lhe negará aplicação
Judicial supremacy in constitutional in- com base na sua alegada inconsti-
terpretation was so snugly anchored in a tucionalidade. A ausência de uma
Jeffersonian victory that it could not well decisão uniforme sobre a questão
be attached. Meanwhile, the profession da constitucionalidade de uma lei,
took it to be the law, and it became a part ou seja, sobre a Constituição estar
of the tradition of the Court and of our sendo violada ou não, é uma gran-
constitutional habit of thought [SIC].” de ameaça à autoridade da própria
Do relato, poder-se-ia concluir que, Constituição.”
ao menos hodiernamente, não poderia Em resposta a esse tipo de objeção,
Marshall ter participado do julgamento, e considerando que as vias recursais se
ainda mais por ter sido o condutor do extinguem na decisão da Suprema Corte

Brasília a. 47 n. 185 jan./mar. 2010 101


norte-americana, Paulo Bonavides (2004, (2004, p. 132) sustenta mesmo que a “his-
p. 311) ressalta que: tória constitucional dos Estados Unidos
“A deliberação judicial sobre a lei há mais de um século tem sido em larga
controvertida quando parte da Su- parte a história da Suprema Corte e de seus
prema Corte afasta pois as dúvidas arestos em matéria de constitucionalidade”,
reinantes, enfraquecendo, em con- não sendo outro o pensamento de Ronaldo
seqüência, o argumento oposto à via Polleti (2001, p. 43).
de exceção por aqueles que aspiram Tal afirmação é consentânea com a
romanticamente a uma segurança do célebre sentença do Justice Charles Evan
ordenamento e suas leis em termos Hugues (apud BITTENCOURT, 1997, p.
absolutos.” 13), exarada nos seguintes termos: “We are
É que, como visto, no sistema norte- under a Constitution, but the Constitution is
americano, derivado do sistema da Common what the judges say it is”.
Law, os precedentes, isto é, as decisões dos Finalmente, aponta Paulo Bonavides
tribunais são extremamente valorizadas (2004, p. 316, 317) três causas que contri-
e respeitadas. Assim, quando a Suprema buíram deveras para a criação, nos Estados
Corte decide acerca da constitucionalidade Unidos, do controle de constitucionalidade
ou não de uma lei, todos os órgãos jurisdi- das leis. Uma delas já foi referida neste
cionais dos Estados Unidos não podem e trabalho, qual seja, a repulsa a um Poder
não fazem outra coisa, por tradição e por Legislativo ilimitado, em virtude da lem-
estarem subordinados hierarquicamente brança dos seus antecedentes coloniais. As
àquele tribunal, que não acatar o aresto outras duas são: a dualidade de ordena-
exarado, conforme a regra do precedente mentos estatais e jurídicos, decorrente da
ou regra do stare decisis. forma federativa de governo, que produz,
frequentemente, graves conflitos de compe-
tência, havendo a necessidade de um órgão
5. Considerações finais
supremo para resolver as controvérsias
O controle de constitucionalidade constitucionais advindas das relações fede-
norte-americano é, assim, resultado do rativas; e o caráter extremamente liberal do
trabalho da jurisprudência daquele país, do povo americano, aliado ao espírito de suas
raciocínio hermenêutico, tendo o princípio instituições, e ainda à enraizada consciên-
florescido nos Estados Unidos a partir de cia da necessidade de defesa dos direitos
simples dedução interpretativa, sem que fundamentais.
estivesse redigido na Constituição, ao me- Quanto à dualidade de ordenamentos
nos expressamente. estatais e jurídicos, natural é o surgimento
Como ressalta Lúcio Bittencourt (1997, de conflitos entre o governo federal e os
p. 18): governos estaduais, de sorte que a sobre-
“Em verdade, a Constituição não vivência da forma federativa de governo
enuncia o princípio em nenhum de dependia, nos Estados Unidos, da existên-
seus preceitos. O que ela prescreve cia de uma corte independente e imparcial
é que ‘o Poder Judicial se estenderá destinada a limitar os poderes da Nação e
a todos os casos... que surgirem sob dos Estados membros, com base na Cons-
esta Constituição’ e que ‘a Constitui- tituição.
ção, e as leis dos Estados Unidos fei- Nas palavras de Bernard Schwartz
tas em obediência a ela... constituirão ([1984], p. 21), constitui o traço mais carac-
a suprema lei do país’”. terístico do sistema norte-americano a “(...)
O papel da Suprema Corte é conside- imposição dos princípios do federalismo
rado tão importante que Paulo Bonavides pelo Judiciário”.

102 Revista de Informação Legislativa


Coube, então, à Suprema Corte dos CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Do contrôle
Estados Unidos a missão de tornar efeti- de constitucionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1966.
p. 48.
va a cláusula da supremacia nacional da
Constituição12, não só garantindo a preva- CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da
lência da autoridade nacional dentro de constitucionalidade no direito brasileiro. 2 ed. rev., atual.
e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
sua esfera de atribuições, mas, ao mesmo
tempo, impedindo que a autoridade na- GALINDO, Bruno. Tem o Reino Unido uma cons-
tituição? limites e possibilidades de uma teoria da
cional absorvesse os poderes residuais dos
constituição britânica. Revista da Faculdade de Direito
Estados-membros. de Caruaru, ano 34, n. 1, p. 91-110, out. 2003.
Por fim, diga-se que, em mais de du-
HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 2 ed.
zentos anos de história da Suprema Corte,
rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
pouquíssimas vezes aquele tribunal decla-
rou a nulidade de leis em razão de afronta KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3 ed.
Tradução de Luíz Carlos Borges. São Paulo: Martins
à Constituição dos Estados Unidos, de-
Fontes, 1998.
monstrando que se deve agir com extrema
cautela quando o assunto é o exercício do ______. O controle judicial da constitucionalidade:
um estudo comparado das constituições austríaca
controle de constitucionalidade. e americana. In: ______. Jurisdição constitucional. São
Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 299-319.
LOUREIRO JÚNIOR. O contrôle da constitucionalidade
Referências das leis. São Paulo: Max Limonad, 1957.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. A Suprema Corte
BACHOF, Otto. Reflexiones sobre la jurisdicción
norte-americana: um modelo para o mundo? Informa-
constitucional. Boletin Mexicano de Derecho Comparado,
tivo Incijur, Joinvile, ano 4, n. 52, p. 1-5, nov. 2003.
Coyoacàn, año 19, n. 57, p. 837-852, sept./ dic. 1986.
POLETTI, Ronaldo. Controle da constitucionalidade das
BARBOSA, Rui. Trabalhos jurídicos. In: OBRAS
leis. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Casa de
Rui Barbosa, 1962. SCHWARTZ, Bernard. O federalismo norte-americano
atual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984.
BITTENCOURT, C. A. Lúcio. O controle jurisdicional
da constitucionalidade das leis. 2 ed. atual. Brasília: Mi- SOARES, Guido Fernando Silva. Common law: intro-
nistério da Justiça, 1997. dução ao direito dos EUA. 2 ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 14
ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2004. WOLF-PHILLIPS, Leslie. O que é a Constituição Bri-
tânica? In: PEIXOTO, João Paulo M.; PORTO, Walter
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria
Costa (Orgs.). Seis Constituições: uma visão comparada.
da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003.
Brasília: Instituto Tancredo Neves - Fundação Friedri-
CAPPELLETTI, Mauro. Repudiando Montesquieu? A ch Naumann, 1987. p. 11-28.
expansão da legitimidade da Justiça Constitucional.
Revista Forense, Rio de Janeiro, ano 99, n. 366, p. 127-
150, mar./ abr. 2003.

12
Nos dizeres de Bernard Schwartz ([1984], p. 21):
“(...) Tal supremacia é expressamente prevista pelo Ar-
tigo VI da Constituição Federal, que estabelece: ‘Esta
Constituição e as Leis dos Estados Unidos que serão
feitas de conformidade com ela; e todos os Tratados
feitos, ou que forem feitos, sob a Autoridades dos Es-
tados Unidos, serão a suprema Lei do País; e os juízes
em cada Estado estarão sob obrigação deste modo;
apesar de qualquer Coisa em contrário na Constituição
ou nas Leis de qualquer Estado [SIC]’”.

Brasília a. 47 n. 185 jan./mar. 2010 103

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