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DOUTRINA

DELEGAÇÃO DE PODERES

CASTRO NUNES
Ministro aposentado do Supremo
Tribunal Federal

SUMÁRIO: Separação dos poderes. Art. 36, § 2.°, da Consti-


tuicão. As rea·Zidades nacionais e o marginalismo político.
A 'prática da,c; instituições. A lição dos autores nacionais
e estrangeiros. A solução da Carta de 1937. Interdepen,-
dência dos Poderes. Conclusões.

* O convite com que me distinguiu o eminente Temístocles Ca-


valcânti, na qualidade de diretor do núcleo de Direito Público da
Fundação Getúlio Vargas, para ocupar esta tribuna no desenvolvi-
mento do programa de conferências, que organizou, sôbre assuntos
de direito constitucional, administrativo e internacional, veio-me com
a indicação da tese proposta ao meu exame, relativa à "Delegação de
Podere:'!" - velha tese em tôrno da qual existem, ainda hoje, renhidas
controvérsias, que outras não são senão as mesmas que em todos os
tempos provocou e continua a provocar o princípio teórico da sepa-
ração dos poderes.
Na verdade, é êsse grande postulado da Razão política ou êsse
princípio fundamental da mecânica do Estado que se acha em causa
no dissídio aberto acêrca da indelegabilidade das funções repartidas,
mero consetário da separação, tão certo é que poderes separados são
poderes que se hão de mover em órbitas próprias, constitucionalmente
demarcadas e inconfundíveis.
Outra decorrência, do mesmo teor político, é a proibição que se
impi)e ao cidadão de ser investido de funções pertinentes a poderes
diversos, ainda que comportando as exceções previstas na Consti-
tui~ão.
São duas proibições oriundas da regra mestra, que é a separação,
reafirmações ou particularizações da coexistência do Legislativo. Exe-

* NOTA DA RED.: Conferência realizada no auditorium da Fundação Getúlio


Vargas.
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cutivo e Judiciário, no plano estatal, sem atritos nem usurpações, se-


não independentes e harmônicos entre si.
A sorte do § 2.° que se insere no art. 36 da Constituição, enun-
ciando a vedação imposta a cada um daqueles poderes de renunciar,
por delegação a outro, as atribuições que lhe são próprias, está, pois,
na dependência do entendimento que possa comportar a regra ba-
silar da separação em si mesma.
Devo dizer que, não obstante minhas idéias conhecidas acêrca da
orgânica do Estado, cujo reajustamento às transformações profun-
das da vida na idade contemporânea estará exigindo, sob vários as-
pectos, o abandono de certos padrões clássicos, que envelheceram e
já não respondem aos anseios e necessidades práticas do presente,
sou dos que não fazem côro com os críticos negativistas do velho
dogma liberal, esquecidos de que sem êle não seria possível conceber
sequer o Estado na teoria constitucional ou no plano das garantias
políticas e judiciárias.
O que é preciso, entretanto, é não perder de vista o sentido filo-
sófico do princípio, que é, na realidade, o ponto de partida de qual-
quer construção política que se pretenda realizar sem sair daquelas
coordenadas. mas comportando maior plasticidade, no interêsse su-
perior do bem público.
A atual Constituição enuncia-o, como já o fazia a de 34, nos
têrmos absolutos de uma proibição irremovível e peremptória: "E'
vedado a qualquer dos poderes delegar atribuições".
Melhor fôra não explicitá-la, como fazia, mais sàbiamente, a
priméÍra Constituição republicana, ainda que pressuposta a proibi-
ção - e assim sempre se entendeu - como decorrência natural da
separação.
Ficaria assim aos intérpretes oficiais da Constituição acomodar
o princípio às necessidades práticas, no rumo das indicações da dou-
trina e da experiência de outros povos. Evitar-se-ia o que está ocor-
rendo e terá de ocorrer - a contradição manifesta e chocante entre
as práticas admitidas e o texto constitucional, no seu enunciado literal.
O legislador constituinte não ignorava, ante a lição conhecida
dos nossos antecedentes e a experiência alheia refletida na exposição
do direito, a impraticabilidade do que prescreveu.
Mas nem assim deixou de ceder à sedução do princípio teórico,
que preferiu às indicações positivas da realidade, lançando uma proi-
bição condenada de antemão a não ser observada senão ~m certa
medida.
Oliveira Viana, cujo nome pronuncio ainda tomado do profundo
pesar que me causou o seu recente desaparecimento, e ao qual terei
de referir-me adiante, pois que foi êle, entre nós, quem melhor bata-
lhou, com erudição e senso realista, pela justa compreensão do prin-
cípio da indelegabilidade dos poderes, examina, na sua grande obra,
"Instituições Políticas Brasileiras", o fenômeno, não brasileiro, é certo,
mas particularmente acentuado entre nós, do que modernamente se
tem chamado, com Park, de nwrginalismo político, que vêm a ser o
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alheamento das realidades com que se legisla, não para o país a que
se destinam as leis, mas em abstrato, fora, inteiramente fora das
circunstâncias concretas que teriam de ditar as soluções. Se isso
ocorre na legislação ordinária, mais grave é sem dúvida o artificia-
lismo no plano constitucional, levando a retificações necessárias ado-
tadas na prática do regime, e olhadas, não raro, como deformações
ou atentados contra a Constituição.
O caso da indelegabilidade nos têrmos da sua formulação consti-
tucional, é um bom exemplo dêsse divórcio em que vivemos, entre o
que se legisla e o que se pratica, entre a lei e as realidades vivas que
reagem, deformando-a, entre a Constituição escrita e a Constituição
possível ou mais ou menos acomodada às circunstâncias.
E' êsse o quadro que se nos depara, em traços ora menos ora
mais acentuados, em tôdas as fases da vida nacional - culpas dos
homens, culpas do regime, escrevi eu em 1931, a propósito das cen-
suras então increpadas aos erros e práticas viciosas admitidas na Re-
pública velha, culpas que, imputáveis aos responsáveis pela sorte da
Constituição, não seriam somente dêles, senão dela mesma no seu ar-
tificialismo.
Viana recorda a propósito o dito de Joaquim N abuco, referin-
do-se à organização política do Brasil "pura arte de construção no
vácuo", escreve magnlficamente: "As bases são as teses - e não os
fatos; o material, idéias - e não os homens; a situação, o mundo - e
não o país; os habitantes, as gerações futuras - e não as atuais"
(voI. 11, pág. 23).
Entre nós, como em outros países mais adultos na prática das
instituições, o pensamento dominante na lição dos expositores é o da
relatividade do princípio, a ser entendido em têrmos, sem negação
frontal, é certo, mas comportando temperamento, e por combinação
com o poder regulamentar, que ao Executivo compete para, não so-
mente executar a lei, senão também completá-la, preenchendo os cla~
ros indispensáveis a êsse objetivo.
O melhor exemplo nos vem dos Estados Unidos, onde proliferam
as leis aparelhadas mediante organismos administrativos, dotados de
poder regulamentar e jurisdicional (quasi judicial functions) que
espantam, pelo seu desenvolvimento, espírito ortodoxo apegado às li-
nhas clássicas do regime.
A lição é ainda a de Finlay and Sanderson, repetida por Hughes,
Willoughby, Ernst Freund e outros expositores: O Congresso não
pode delegar ao Executivo o poder de fazer uma lei; mas pode fazer
uma lei com a delegação do poder de determinar certos fatos ou um
estado de coisas de que dependa, nos têrmos que ela mesma estatuir,.
a sua própria execução ou eficácia: "The legislatllre co,nnot delegate
its power to mark a law, but it can make a law to delegate a pO'wer
to determine some fact or state of things upon which the l(LW makes:
for intends to make ist own action depend" ("The American Execu-
tive and Executive Methods", pág. 322).
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Não seria difícil colhêr nos expositores do direito público ame-
ricano citações que abonassem êsse entendimento. As monografias de
Corwin e Freund, as referências encontradiças em Bauer, no tocante
à tarifação e regulamentação dos serviços elétricos, o antigo e sempre
atual livro de McBain sôbre os desenvolvimentos a latere da Consti-
tuição e, em geral, todos os tratadistas atestam a orientação pragmá-
tica que tem predominado naquele país.
Aliás, na 1n'a,ta de casa, de que estou preferentemente me servindo
nesta dissertação, nã0 rareiam tais subsídios, colhidos naquelas fonte~
e em outras do direito alienígena.
Ao proclamar-se a República, já vinha do Império a prática das
delegações legislativas com a condenação de Pimenta Bueno.
E continuaram, sob a forma, tantas vêzes admitida, de verdadei-
ras leis em branco, meras autorizações dadas ao Executivo, no quadro
estreito de meia dúzia de disposições de base, para a reforma de servi-
ços públicos. O Supremo Tribunal, se algumas vêzes as impugnou, ou-
tras, em maior número, placitou-as, podendo-se afirmar que foi essa
a jurisprudência dominante e que, já em nossos dias, sob a atual Cons-
tituição, viria a reafirmar-se em julgado a que terei de referir-me
adiante.
Os publicistas da primeira década republicana eram, com Barba-
lho, mais intransigentes; ou não focalizavam diretamente o problema
das delegações legislativas.
Assim é que Amaro Cavalcânti, desenvolvendo em detalhes e exem-
plos os contatos do Legislativo e do Executivo, só incidentemente se
refere àquele aspecto, na copiosa lição, que acêrca do "Funcionamento
dos Poderes", ministra em seu livro "Regime Federativo". Mas nas
linhas gerais da sua construção doutrinária, deixa entrevista a justa
compreensão do que se deva entender por harmonia, de poderes, os
quais, em sendo independentes, não serão poderes isolados, senão po-
deres, diz êle, "que se entendem, que se auxiliam, que colaboram para
um mesmo fim" (pág. 209).
Aurelino Leal examina, ainda que sem ferir de frente, a tese das
delegações legislativas, de que trataria com o devido desenvolvimento
nos volumes subsequentes que não chegou a publicar, da sua "Teoria
e Prática da Constituição"; deixou por igual indicado o conceito da
harmonia, cujo sentido não será somente o da cordialidade, senão o da
interdependência, em virtude da qual, explica, "um poder não completa
o exercício de uma função determinada sem a participação de outro"
(voI. 1, pág. 217). Luís Gallotti, quando Procurador Geral da Repú-
blica, examinou, com o costumado brilho, a arguição da inconstitu-
cionalidade das delegações legislativas, suscitada a propósito do ta-
belamento de preços, hipótese de que falaremos adiante. Em um dos
seus pareceres, o eminente jurista, hoje ministro do Supremo Tri-
bunal, lembrou que Rui, adversário confesso das delegações legislati-
vas ou, pelo menos, do abuso com que, entre nós, foram praticadas,
rendia-se, não obstante, ao império dos fatos, quando dizia: "Contra
"todos os esforços da teoria jurídica, o princípio das delegações re-
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"emerge sempre como regra consuetudinária, que surge naturalmen-
"te quando as circunstâncias a impõem". E linhas adiante, fala ainda
o mestre dos mestres: "Na organização mesma do nosso direito
"privado tiveram grande parte êsses atos da Administração, por man-
"dato do Parlamento. Para a do nosso direito público a contribuição
"dêles foi naturalmente ainda mais desenvolvida. E, se olharmos em
"particular a das nossas instituições administrativas, nos certificare-
"mos de que devem a existência em sua maior extensão a essa espécie
"de atos. De sorte que se lhes contestássemos a validade em nome de
"uma doutrina abstrata, de que os fatos vão zombando no mundo in-
"teiro, daríamos em terra com a construção do nosso direito adminis-
"trativo quase tôda".
Cita a seguir Epitácio Pessoa, Carlos Maximiliano, Eduardo Es-
pínola, Bento de Faria, Sabóia de Medeiros, Pontes de Miranda, todos
concordes na placitação das delegações legislativas (in "Revista Fo-
rense", vol. 122, pág. 538, e "Arq. Judiciário", vol. 89, págs. 285 e segs).
Outros juristas nossos, entre os quais Levi Carneiro, no seu li-
vro "Federalismo e Judiciarismo", onde recorda precedentes, sobre-
tudo o abuso da legiferação nas caudas orçamentárias, e Temístocles
Cavalcânti, nos seus comentários à atual Constituição, na crítica à
explicação da proibição, que se devera ter apenas por subentendida
ou implícita, atestam por igual a prática inveterada e inelutável.
Aníbal Freire, quer como juiz do Supremo Tribunal, quer, ainda
antes, na sua monografia "Do Poder Executivo na República Brasi-
leira", punha a questão interrogando: "Pode o regulamento legislar?"
E respondia dizendo: "E' possível que, por omissão, o legislador ti-
"vesse esquecido na lei disposições capitais, que reforcem a ,;ua exe-
"cução e concorram melhor para o obietivo visado. Não havendo au-
"tonomia (acrescentava) entre os dispositivos, o regulamento, que
"tem de completar a lei, pode tratar da matéria de que o legislador
"não cogitou (são nossos os grifos), mas somente com o fim de am-
"pliar o espírito da deliberação legislativa". E concluía com esta
fórmula avançada, mas exata: "Na hipótese do regulamento e da
"lei, o Legislativo faz o arcabouço e o Executivo completa a constru-
"ção" (pág. 81).
Do mesmo modo Seabra Fagundes, nas referências relacionadas
com o assunto tratado na sua monografia "Do Contrôle dos Atos Ad-
ministrativos pelo Poder Judiciário", e Ruben Rosa, nas eruditas pá-
ginas do seu "Direito e Administração".
Outro jurista nosso que examinou o problema das delegações, com
abundância de erudição do ponto de vista muito atual da tarifação
dos serviços públicos concedidos, é Bilac Pinto, na sua brilhante mo-
nografia - posta a questão no duplo plano da partilha da função
legislativa e da função jurisdicional.
Relativamente àquela, escreve: "A delegação legislativa, que era
"formalmente interdita nos regimes demo-liberais puros, passou a
"ser, por fôrça das novas funções do Estado-Intervencionista, o pro-
"cesso mais apto a atender aos reclamos de uma regulamentação nu-
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"merosa, complexa e rica em detalhes técnicos" ("Regulamentação


efetiva dos serviços de utilidade pública", pág. 103).
E' possível, senão certo, que, nesta resenha confessadamente in-
completa, me tenham escapado involuntàriamente outros nomes; mas
bastam os apontados para que se possa concluir que, entre os nossos
juristas especializados em direito público, é essa a communis opinio
no entendimento da proibição, a ser recebida em têrmos relativos.
Francisco Campos, na justificação da solução adotada no Esta-
tuto de 1937, onde se reservava ao Parlamento, no tocante às leis de
sua iniciativa, assentar somente as disposições de base, ficando ao
Executivo a complementação regulamentar da lei (artigo 11), ba-
seou-se nos antecedentes americanos, na expansão do poder regula-
mentar consentido à Coroa na Inglaterra parlamentarista e em pre-
cedentes nossos que datam do Império - para mostrar que, na reali-
dade, nada se inovava com aquela solução, que refletia a prática ado-
tada, entre nós, como em outros países, da legislação delegada ("Di.
reito Constitucional", págs. 339 e segs.).
Não se trataria, é certo, de delegação legislativa, senão de par-
tilha da função legiferante entre o Legislativo e o Executivo ou, mais
pontualmente, da ampliação da área consentida ao Govêrno para de-
senvolver a lei ou regulamentá-la, excluindo, de seu natural, de vez
que, constitucionalmente estabelecida, o problema da delegação, que
supõe, ao inverso, o exercício, por um poder de atribuição, que a
outro pertença, em linha de princípio. Êsse o problema que se põe
em face do atual texto constitucional, onde se insere a proibição ab-
soluta nos têrmos já examinados.
Mas a solução constitucional copiava a realidade, traduzia a prá-
tica adotada, e era dêsse ponto de vista realista ou pragmático que a
justificava o eminente legislador do Estatuto de 1937.
Seria essa solução de 37, a que, ao meu ver, devera ter sido ado-
tada. Era uma das fórmulas sábias daquele Estatuto - a partilha
da função legiferante entre os dois Poderes políticos, com a reserva
das disposições de base conservada nas Câmaras Legislativas.
Estaria guardado o princípio da separação que aquela partilha,
nos têrmos enunciados, pressupunha e mantinha, na razoável medida
indicada pelas necessidades práticas e placitada pela experiência. Aliás
é inexato dizer-se que a Carta de 37 era infensa ou negatória daquele
princípio fundamental de que não prescindia na estruturação do re-
gime, ainda que sem o enunciar. Tive ocasião de aludir a êsse ponto
no meu livro sôbre o "Poder Judiciário".
Estaria liquidado o problema tormentoso das delegações, com
aquela fórmula chamada de "legislação delegada", mas que na ver-
dade não o era, porque de delegação não se trataria, e sim de função
legislativa partilhada, como a titulação no Executivo do poder de
"completar" a lei, no desenvolvimento das suas disposições essenciais.
Mas aquela fórmula trazia o pecado original de sua adoção na
Constituição de 1937. .. Não seria viável no ambiente de reação libe-
ral de que saiu a Constituição de 1946. E o que vingou, na teoria li-
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terária da nova Carta política, foi, como se viu acima, o princIpIO na
sua rigidez dogmática, não obstante algumas vozes autorizadas que,
no seio mesmo da Constituinte, se fizeram ouvir, no debate que en-
tão se travou. Assim é que Agamemnon Magalhães advertia "não
"ser possível hoje, em regime ou govêrno algum, a existência de
"delimitação inflexível de competência"; Barbosa Lima Sobrinho ad-
mitia "a delegação de poderes como exceção, e quando as necessida-
"des o exigirem"; Hermes Lima, ainda mais categórico, avançava:
"ninguém pode governar sem funções delegadas" (José Duarte, "A
Constituição Brasileira de 1946", vol. 1.0, pág. 60; Luís Gonzaga do
Nascimento Silva, artigo na "Revista Forense", vol. 126, pág. 25).
Vários fatôres concorrem para a legitimação, aqui, como em tôda
a parte, da legislação delegada. Um dêles, a inaptidão dos corpos le-
gislativos, numerosos ou heterogêneos e divididos pelo espírito parti-
dário para a elaboração de certas leis, que exigem preparo técnico e
alta ponderação; outro, a lentidão dos métodos legislativos que nã<l
comportam a readaptação da lei a circunstâncias novas e imprevistas
em pontos de detalhe. Outro, ainda, o caráter predominantemente eco-
nômico ou administrativo de certas leis, a serem completadas pelo go-
vêrno, com melhores e mais seguros elementos de informação.
Eis porque ninguém mais pregoa o princípio com a rigidez da
época liberal. Os expositores mais autorizados do moderno direito pú-
blico já refletem êsse pensamento.
Como disse Francisco Campos, se a legislação delegada é uma
prática comum e universal, deve haver razões muito poderosas que a
justifiquem. Estas razões, acrescenta, não são "razões de advogado"',
explicando a seguir, pela complexidade e volume cada vez maior da
tarefa do Estado em todos os domínios da vida social, o dissídio acusa-
do e crescente entre as necessidades práticas e o princípio teórico (ob.
cit., págs. 347 e segs.).
O fenômeno não se circunscreve, aliás, às relações entre o Poder
Legislativo e o Govêrno. E' mais amplo e complexo. Estende-se até a
função jurisdicional. cujo conceito se dilatou para abranger modali-
dades desconhecidas do antigo direito judiciário.
Dêsse ponto de vista examinei o problema à luz da doutrina e
dos ensinamentos do direito comparado, assim concluindo: "E' uma
"evolução ainda nas formas imprecisas desta fase de transição. O que
"ela exprime é, sem dúvida, o fato judicial dominando a atividade do
"Estado. Não é nem a hipertrofia nem a decadência do Judiciário, que
"é, por definição, a jurisdição específica do Estado. Mas formas novas
"de realização do direito pela adequação de outros órgãos prepostos a
"uma função estatal que cresceu em extensão e complexidade e já não
"encontra nos moldes clássicos os meios necessários à sua expansão"
("Teoria e Prática do Poder Judiciário", págs. 8 e segs.).
Vivemos ainda dominados pelo preconceito de que todo o poder
legislativo pertence aos parlamentos, como tôda a jurisdição pertence
ao Judiciário, consoante a fórmula clássica una lex, una jurisdictio,
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em que se reflete o mesmo pensamento de não partilhar a função ou


não admiti-la fora dos seus órgãos próprios, especifico ou regulares.
Mas o quadro que nos depara o direito contemporâneo, sensível,
como não pode deixar de ser, à imposição das necessidades práticas,
é muito diverso. Vemos no plano judiciário jurisdições paralelas, de
caráter quasi judicial, na terminologia americana, as quais são prà-
ticamente conclusivas, ainda que, em linha de princípio, se reserve,
naquele país, como entre nós, aos tribunais judiciais, a derradeira
palavra.
Do mesmo modo no plano legislativo. O melhor exemplo é o da
Justiça do Trabalho em sua função mais expressiva e característica, na-
quela em que decide dos chamados conflitos coletivos, mediante nor-
mas gerais, extensivas a todo o grupo profissional, e não somente aos
litigantes, isto é, aos que provocaram a decisão. Foi em tôrno dêsse
poder de estatuir por disposição geral nas relações entre empregados
e empregadores, insuspeitado na doutrina tradicional, porque aber-
rante, a um tempo, de duas idéias mestras, que tais são as que situam
no Parlamento a função privativa de ditar a norma e no Judiciário
a de decidir entre as partes, e não inter alios - foi em tôrno de
tal competência, havida por incompatível com a regra dos poderes
separados, que Oliveira Viana escreveu a dissertação magnífica aci-
ma referida. Outro exemplo, em que se insinua claramente uma der-
rogação de regra em virtude da qual a função normativa (~ privativa
dos parlamentos, pode ser encontrado no dever que incumbe ao juiz
de decidir a espécie, ainda que omissa a lei, construindo, êle mesmo,
a norma a aplicar. Êsse poder de realizar, pela analogia e, sobretudo,
por aplicação dos princípios gerais de direito, a integração das la-
cunas da lei e, sobretudo nos julgamentos por equidade, o poder con-
sentido ao juiz para aplicar a norma que êle "estabeleceria se fôsse
legislador", nos têrmcs por que se expressa, no art. 114, o atual Có-
digo de Processo Civil, atesta que, mesmo sem sair do direito tra-
dicional, o poder legiferante, para criar ou derivar a norma omitida,
pode não estar nos parlamentos.
Havia na Constituição de 1934 a disposição do art. 83, § 6.°,
em virtude da qual competia ao Tribunal Superior da Justiça Elei-
toral "regular a forma e o processo dos recursos de que lhe caiba
"conhecer", atribuição de assento constitucional, é certo, mas que im-
portava em repartir com aquêle órgão judiciário a função de legislar
sóbre processo.
Disposição idêntica, ou de idêntico teor jurídico, ainda que em
menor medida, é a que se insere no Código de Processo, art. 869, atri-
buindo ao Supremo Tribunal o dispor, no seu Regimento Interno,
sôbre o processamento do recurso extraordinário.
A regulamentação da lei, em muitos casos, não se compadece
com os moldes estreitos do enunciado constitucional.
E' forçoso dilatar o conceito da "fiel execução" para dar maio-
res ensanchas ao poder regulamentar do Executivo.
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Tivemos um caso do maior interêsse doutrinário no habeas cor~


pus requerido ao Supremo Tribunal, em julho de 1948, por um dos
nossos mais brilhantes juristas do direito público, em petição erudi-
tamente fundamentada, sustentando a inconstitucionalidade superve-
niente do decreto-lei n. 9.125, de 1946, que, estabelecendo o contrôle dos
preços das utilidades, instituíra uma comissão, à qual incumbira do
respectivo tabelamento, o que importaria, na argumentação do im-
petrante, numa delegação legislativa, proibida pela nova Constitui·
ção, para essa preceituação complementar.
Examinando o assunto, ponderei no meu voto de relator que não
seria possível proceder de outro modo, em se tratando de uma lei
cuja execução teria de acompanhar, pa1'i passu, as variações dos pre-
ços, pois que, de outro modo, se prefixados de antemão pelo legis-
lador, estaria frustrada a medida nos seus objetivos, não sendo possÍ-
vel pretender que para cada modificação fôsse chamado a estatuir
de novo o Poder Legislativo.
"Não é preciso dizer - lê-se no meu voto - que isso seria im-
"praticável. Nem o legislador poderia prefixar os preços, estabelecen-
"do uma tabela insensível às flutuações do mercado e a outros fatôres
"que intervêm no preço das mercadorias e utilidades, nem seria pos-
"sível, sem comprometer a eficiência das medidas de proteção ao
"consumidor, a intervenção do Legislativo para a adoção de nova ou
"novas tabelas - o que tornaria precário e pràticamente inútil o
"contrôle que se quis estabelecer".
E assim decidiu o Supremo Tribunal, indeferindo o habeas cor-
pus n. 30.355 (ac. de 26 de julho de 1948).
O caso do tabelamento dos preços configura um dos melhores
exemplos da impraticabilidade de pôr em execução a lei, sem uma
complementação, nela mesma admitida, a ser realizada pelo Execu-
tivo. Estariam comprometidos os objetivos visados pela própria Cons-
tituição, ao proibir a usura e outros abusos do poder econômico, se
não fôsse possível adequar a regulamentação às nece~sidades práticas
da medida, como bem observou, ao fundamentar o seu voto naquele
julgamento, o ministro Orosimbo Nonato.
Existem na atual Constituição várias hipóteses em que se prefi-
guram leis cuja execução terá de comportar desenvolvimentos a cargo
de comissões incumbidas de serviços correlatos, destinados a assegu-
rar, como diz Duguit, la mise en oeuvre, das normas legais.
A preponderância do fator econômico nas modernas Constitui~
ções trouxe ou avivou ainda mais o problema, porque a intervenção
legislativa em tais domínios acarreta a instituição de serviços dota-
dos de larga autonomia na adoção de medidas que estarão na depen-
dência de circunstâncias variáveis e supervenientes. Tal o caso do
tabelamento já apontado, como, por igual, o concernente à fixação de
cotas de produção, exportação, etc., ou, de um modo geral, todos
aquêles em que o legislador intervém na economia para dirigi-la ou
planificá-la. De outro modo, sem deixar ao órgão encarregado de
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pôr em execução a lei certa margem de ação complementar, não seria


praticável a política econômica adotada.
Vários dispositivos que se inserem no capítulo "Da ordem eco-
nômica" cogitam de leis de idêntico teor.
O melhor exemplo será o do art. 151, onde se determina a dis-
ciplinação dos serviços concedidos, com a fixação das respectivas
tarifas sujeitas necessàriamente a modificações e adaptações que te-
rão de ficar a cargo dos órgãos prepostos à execução da lei, nas
bases estabelecidas - fiscalizÇlção que, segundo Bilac Pinto, não é
de índole contratual. e sim a chamada regulamentação efetiva, a ser
realizada mediante comissões.
No art. 148, como, melhormente, no artigo 146, onde se reserva
à União o poder excepcional de retirar da exploração particular de-
terminada indústria ou atividade econômica para atribuí-la à União,
a título de monopólio, prefigura-se, por igual, a instituição de um
ente público para administrar o serviço, necessàriamente como in-
dustrial ou comerciante, com os meios de ação apropriados a tais
atividades.
São problemas novos que estão mostrando, dia a dia, a impossi-
bilidade de praticar o regime dos poderes separados sem encontrar
fórmulas de acomodação que possibilitem o êxito da própria Cons-
tituição na realização dos seus objetivos.
E' por êsses fins superiores que se interpretam as leis e, par-
ticularmente, as Constituições. Estas são leis feitas para durar,
nascidas com a vocação de longevidade, que lhes é inerente. Mas só
duram as Constituições sensíveis à realidade, aos fatos, às necessi-
dades práticas que se vão revelando e impondo na sua execução. Se
não fôr possível adaptá-las por interpretação ou construção, atuali-
zando-as, desenvolvendo-as mediante regras novas, tantas vêzes in-
suspeitadas ao tempo da sua elaboração, estorvam a realização do
bem comum ou do interêsse público, que é o guia supremo na sua
aplicação.

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