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Revista

de
Informação
Legislativa
Brasília • ano 49 • nº 194
abril/junho – 2012

Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal


Revista
de
Informação
Legislativa
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Isaac Brown
Secretário-Geral da Presidência – 1946-1967
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Diretora – 1964-1988

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Diretora: Anna Maria de Lucena Rodrigues

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Revisão de Provas: Débora Oliveira, Yara da Silva e Maria José Franco
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Capa: Rejane Rodrigues
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Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas – Ano 1, n. 1


(mar. 1964). – Brasília : Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1964.
Trimestral.
Ano 1-3, n. 1-10, publicada pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº
11-33, publicada pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , n. 34- , publicada pela
Subsecretaria de Edições Técnicas.
1. Direito – Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretaria de
Edi­ções Técnicas.
CDD 340.05
CDU 34(05)
“Festa do Divino”, de José Jafa,
técnica óleo sobre tela de 0,58 cm x 0,40 cm.
Revista
de
Informação
Legislativa
Brasília · ano 49 · nº 194 · abril/junho · 2012

Do pamprincipiologismo à concepção hipossuficiente


Lenio Luiz Streck de princípio. Dilemas da crise do direito 7
Jorge Barrientos-Parra e Lei de Anistia. Comentários à sentença do Supremo
Jorge Luís Mialhe Tribunal Federal no caso da ADPF 153 23
Regulação dos Fundos Soberanos. O debate norte-
Leonel Cesarino Pessôa americano 41
A propriedade como direito fundamental. Breves notas
Roger Stiefelmann Leal introdutórias 53
Marco Aurélio Gumieri Valério A (in)sustentável leveza do direito internacional 65
Ana Maria D’Ávila Lopes e Políticas públicas de reconhecimento para a defesa dos
Renato Espíndola Freire Maia direitos humanos dos homossexuais 75
Neoconstitucionalismo e ciberdemocracia. Desafios
Valéria Ribas do Nascimento para implementação da cibercidadania na perspectiva
de Pérez Luño 89
Planejamento e ordenamento territorial no sistema
Daniella Maria dos Santos Dias jurídico brasileiro 107
Estudo comparativo sobre o combate ao planejamento
Marciano Seabra de Godoi tributário abusivo na Espanha e no Brasil. Sugestão de
alterações legislativas no ordenamento brasileiro 117
Erivaldo Moreira Barbosa e Direito de Águas. Arranjo jurídico-institucional,
Maria de Fátima Nóbrega Barbosa política e gestão 147
A questão do endividamento público dez anos após
Ana Carla Bliacheriene e a publicação da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Renato Jorge Brown Ribeiro Avanços e limitações 159
A democracia nos estados islâmicos. Variáveis
Urbano Carvelli determinantes da compleição no limiar do século XXI
173
Coisa julgada e decisões de controle externo
Wremyr Scliar terminativas 205
Do ordo à cognitio. Mudanças políticas e estruturais
Gustavo César Machado Cabral na função jurisdicional em Roma 227
A “responsibility to protect” no caso de violação de
Carlos Wagner Dias Ferreira direitos humanos. Um conceito em busca de juridicidade
e legitimidade decisória 241
Michael César Silva e O direito do consumidor nas relações de consumo
Wellington Fonseca dos Santos virtuais 261
Os princípios numa perspectiva hermenêutica. Novos
Francysco Pablo Feitosa Gonçalves diálogos com Nelson Saldanha 283

Os conceitos emitidos em artigos de colaboração são de responsabilidade de seus autores.


Do pamprincipiologismo à concepção
hipossuficiente de princípio
Dilemas da crise do direito

Lenio Luiz Streck

Sumário
1. Considerações preliminares: o papel da
crítica e o poder simbólico de um voto de Mi-
nistro da Suprema Corte. 2. No princípio, era
o pamprincipiologismo. 3. Agora, o inverso: o
uso hipossuficiente dos princípios. 4. Sempre,
ainda a confusão acerca do que dizem Dworkin
e Alexy. 5. De como o que está por trás da tese
adotada pelo Ministro é a distinção estrutural
entre regra e princípio. 6. Os efeitos colaterais
decorrentes do uso hipossuficiente dos princí-
pios. 7.Considerações finais.

1. Considerações preliminares: o papel


da crítica e o poder simbólico de um
voto de Ministro da Suprema Corte
Exercer a crítica no Direito é uma tarefa
difícil. Principalmente em terrae brasilis.
Por aqui, normalmente é magister dixti.
Mormente se quem disse é Ministro de
Corte Superior. Não conseguimos cons-
truir ainda uma cultura em que as decisões
judiciais – em especial as do Supremo Tri-
bunal Federal – sofram aquilo que venho
denominando de “constrangimentos epis-
temológicos”. O que é “constrangimento
epistemológico”? Trata-se de uma forma
de, criticamente, colocarmos em xeque
Lenio Luiz Streck é Pós-Doutor e Doutor
decisões que se mostram equivocadas.
em Direito. Professor Titular do Programa de No fundo, é um modo de dizermos que a
Pós-Graduação em Direito da Universidade do “doutrina deve voltar a doutrinar” e não se
Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Procurador colocar, simplesmente, na condição de cau-
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. datária das decisões tribunalícias. Lembro

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da decisão do então Min. Humberto Gomes (e mate). A tese do voto1: somente se pode
de Barros (AgReg em ERESP n. 279.889), acusar alguém por dolo eventual se ficar
do Superior Tribunal de Justiça, na qual demonstrado que o agente “se embriagou
ele dizia: “Não me importa o que pensam com o propósito de cometer um crime”.
os doutrinadores”, importando, para ele, Prova, pois, diabólica. Impossível de se
apenas o que dizem os Tribunais... Ime- fazer. A velha actio libera in causa não é um
diatamente divulguei contundente artigo princípio. E tampouco é uma regra.
dizendo a Sua Excelência que “importa, Assim, a crítica epistêmica é dirigida a
sim, o que a doutrina pensa” (STRECK, um caso bem recente, a não passar desa-
2011a). Lançava, então, um repto à comu- percebido pela doutrina. Trata-se do caso
nidade jurídica: a doutrina tem a função de da “Lei da Ficha Limpa” (ou “Ficha Suja”,
doutrinar. Criticava, também, a cultura de como queiram). A tese aqui exposta é a
repetição de decisões (ementários, etc.) que de que o Ministro Luiz Fux se equivocou.
se formou no Brasil. Tomo, pois, a coragem de contestar o voto,
Temos de construir as bases para um epistemicamente.
pensamento crítico que denuncie equívocos
como o voto que abordarei na sequência, 2. No princípio, era o
da lavra do Min. Luiz Fux. A crítica que pamprincipiologismo
exporei não tem a pretensão de ser algo
do tipo J’accuse, de Émile Zola, em que Contextualizarei. De há muito, ocupo-
este fazia contundente manifesto contra a -me em minhas pesquisas da questão que
injustiça cometida contra o Cap. Dreyfus. envolve a determinação do conceito de
Tem, sim, o objetivo de lançar as bases para princípio. Mais especificamente, minhas
a formação de um contraponto a um tipo preocupações giram em torno do problema
de dicotomia que começa a se formar na da decisão judicial e da existência ou não do
doutrina e na jurisprudência do Brasil: de chamado “poder discricionário dos juízes”
um lado, a expansão do uso dos princípios no momento da solução dos chamados
(pamprincipiologismo); de outro, o seu uso “casos difíceis” (STRECK, 2011b).
restritivo, cuja tese consta no referido voto Na esteira da construção dessa busca
do Min. Luiz Fux. pela determinação do conceito de princípio,
O valor de transcendência de cada de- deparei-me, mormente nos anos mais re-
cisão do Supremo Tribunal é indiscutível, centes, com situações inusitadas. Certamen-
assim como seu valor simbólico. Ou seja, na te, a mais pitoresca de todas é aquela que
medida em que o direito possui DNA – tese 1
Trata-se de Habeas Corpus (STF, HC 107.801-SP,
que exponho com detalhes em Verdade e Primeira Turma, Redator do acórdão: Min. Luiz Fux,
Consenso (STRECK, 2011b) –, de cada deci- Brasília, 6 de set. 2011) em que se questiona a pronún-
são, mormente se for do Supremo Tribunal cia por homicídio qualificado na direção de veículo
Federal, extrai-se um princípio. Veja-se um automotor a título de dolo eventual em decorrência
de embriaguez alcoólica. A ordem foi concedida,
exemplo: o STF concedeu Habeas Corpus, desclassificando o homicídio para a modalidade cul-
invocando algo que não consta no Código posa, aplicando a teoria da actio libera in causa, uma
Penal: a teoria da actio libera in causa. Ou vez que não se comprovou o “elemento volitivo” (sic).
seja, seguisse o STF suas próprias decisões, Nos termos do acórdão: “A embriaguez alcoólica que
conduz à responsabilização a título doloso é apenas
portanto, respeitasse o STF a origem do a preordenada, comprovando-se que o agente se
direito fruto de suas decisões, teríamos embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco
(ou teremos?), a partir de agora, algo inu- de produzi-lo. (...) In casu, do exame da descrição dos
fatos empregada nas razões de decidir da sentença
sitado: nunca mais se conseguirá acusar
e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o
alguém por dolo eventual na hipótese em paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir
que o autor dirija embriagado e atropele o resultado morte” (grifo nosso).

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nomeei (em diversos textos e, especialmen- precaução (nada mais, nada menos que a ins-
te, em: Verdade e Consenso, 2011b) de pam- titucionalização de uma tautologia jurídica;
principiologismo, uma espécie de patologia afinal, por que a “precaução” – que poderí-
especialmente ligada às práticas jurídicas amos derivar da velha prudência – seria um
brasileiras e que leva a um uso desmedido “princípio”?); princípio da não surpresa (não
de standards argumentativos que, no mais passa de um enunciado com pretensões
das vezes, são articulados para driblar aqui- performativas, sem qualquer normativida-
lo que ficou regrado pela produção demo- de; de que forma uma demanda é resolvida
crática do direito, no âmbito da legislação utilizando o princípio da não surpresa?);
(constitucionalmente adequada). É como princípio da confiança (trata-se, nada mais,
se ocorresse uma espécie de “hiperestesia” nada menos, do que a possibilidade de o
nos juristas que os levasse a descobrir, por direito manter a sua força deontológica, o
meio da sensibilidade (o senso de justiça, no que, registre-se, é muito bom; mas a his-
mais das vezes, sempre é um álibi teórico toricidade do direito já não demanda essa
da realização dos “valores” que subjazem o compreensão do intérprete?); princípio da
“Direito”), a melhor solução para os casos absoluta prioridade dos direitos da criança e
jurisdicionalizados. do adolescente (interessante nesse standard
“Positivação dos valores”: assim se retórico é a expressão “absoluta”); princípio
costuma anunciar os princípios constitucio- da afetividade (esse prêt-à-portêr nada mais
nais, circunstância que facilita a “criação” faz do que escancarar a compreensão do
(sic), em um segundo momento, de todo direito como subsidiário a juízos morais;
tipo de “princípio” (sic), como se o paradig- daí a perplexidade: se os princípios cons-
ma do Estado Democrático de Direito fosse titucionais são deontológicos, como retirar
a “pedra filosofal da legitimidade princi- da “afetividade” essa dimensão normati-
piológica”, da qual pudessem ser retirados va?); princípio do processo tempestivo (mais
tantos princípios quantos necessários para uma amostra de uma “principiologia” ad
resolver os casos difíceis ou “corrigir” (sic) hoc e sem limites, que confunde meros
as incertezas da linguagem.2 argumentos ou pontos de vista com prin-
Veja-se, nesse sentido, o incontável elen- cípios jurídicos); princípio da ubiquidade (um
co de “princípios” utilizados largamente na simples exame na legislação ambiental e na
cotidianidade dos tribunais e da doutrina Constituição, assim como em regulamentos
– a maioria deles com nítida pretensão dos mais variados acerca da preservação
retórico-corretiva, além da tautologia que do meio ambiente, aponta para a existência
os conforma. Podem ser citados: princípio de diferentes modos de proteção ao meio
da simetria (menos um princípio de valida- ambiente, inclusive no que tange à relação
de geral e mais um mecanismo ad hoc de entre causa e efeito, para dizer o menos);
resolução de controvérsias que tratam da princípio do fato consumado (ora, se, por
discussão de competências); princípio da vezes, uma situação já consolidada deve
ser mantida – fazendo soçobrar a “sufici-
2
Por certo que há contribuições significativas para
produção de um espaço onde possa ser construída ência ôntica” de determina regra –, isso
uma adequada compreensão dos princípios constitu- não transforma a “consumação” de um
cionais no horizonte de uma reconstrução histórico- fato em padrão que deva ser utilizado “em
-institucional do direito. Nesse sentido, vale referir,
de forma exemplificativa: Nelson Nery Jr., Georges
princípio”; fosse válido esse “princípio”,
Abboud, Ovídio Baptista da Silva, Dierle Nunes, estaríamos diante de um incentivo ao não
Francisco Motta, André Cordeiro Leal, Marcelo Cat- cumprimento das leis, apostando na passa-
toni, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Flaviane gem do tempo ou na ineficiência da justiça);
Magalhães de Barros, Maurício Ramires, Alexandre
Morais da Rosa, João Maurício Adeodato, Ingo Sarlet princípio do deduzido e do dedutível (basta
e Rafael Tomaz de Oliveira. aqui lembrar que de há muito a filosofia –

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inundada que foi pela linguagem – superou serem felizes...); princípio lógico do processo
o “dedutivismo”; numa palavra: admitida, civil (se isso é um princípio, a pergunta
ad argumentandum tantum, a “validade” do que se põe é: o que não é um “princípio”?);
aludido princípio, ficaria ainda a pergun- princípio da elasticidade ou adaptabilidade
ta – nos demais raciocínios/interpretações processual (mais um “princípio” ensejador
não se fariam “deduções”?); princípio da do protagonismo/ativismo judicial); prin-
instrumentalidade processual (trata-se de uma cípio da inalterabilidade ou da invariabilidade
clara herança da filosofia da consciência e da sentença (um breve exame do Código
de uma leitura equivocada das teses de Von de Processo Civil aponta claramente para
Büllow); princípio da alteridade (em termos essa garantia; parece evidente que uma
normativos, em que circunstância essa sentença, depois de publicada, não pode
alteridade, representada pelo “colocar-se ser alterada, então, por que esse princípio
no lugar do outro”, pode resolver o pro- daria essa “segurança” ao utente?); princí-
blema da aplicação de um preceito consti- pio da adequação (em que circunstância esse
tucional?); princípio da cooperação processual princípio poderia ser aplicado com caráter
(aqui, cabe a mais singela pergunta: e se as de normatividade? E como ele seria/será
partes não cooperarem? Em que condições aplicado? A “escolha” é do juiz? E de que
um standard desse quilate pode ser efeti- modo se poderia recorrer da violação do
vamente aplicado? Há sanções no caso de aludido princípio?).
“não cooperação”? Qual será a ilegalidade Efetivamente, a lista é longa. Diria, inter-
ou inconstitucionalidade decorrente da minável. Poder-se-iam acrescentar outros,
sua não aplicação?); princípio da confiança como: da rotatividade; lógico; econômico;
no juiz da causa (serve para justificar qual- da gratuidade judiciária; da aderência ao
quer decisão: para manter alguém preso e território; da recursividade; do debate; da
para soltar); princípio da humanidade (esse celeridade; da preclusão; da preferibilidade
standard dispensa comentários pela sua do rito ordinário; da finalidade; da busca da
simploriedade); princípio do autogoverno da verdade; da livre admissibilidade da prova;
magistratura (trata-se de uma clara tautolo- da comunhão da prova; da avaliação da
gia em relação à autonomia administrativa prova; da imediatidade; da sucumbência;
e financeira assegurada pela Constituição da invariabilidade da sentença; da eventua-
ao Poder Judiciário); princípio da situação lidade; da ordenação legal; da utilidade; da
excepcional consolidada (está no Top Five do inalterabilidade; do interesse jurisdicional
pamprincipiologismo que assola o direito no conhecimento do mérito do processo
de terrae brasilis; cabe a pergunta: um fato coletivo; da elasticidade; da adequação do
consumado supera uma prescrição nor- procedimento; para citar apenas esses.
mativa? Quem vai eleger as circunstâncias Entretanto, o pamprincipiologismo é
excepcionais? O Judiciário? Pensando-se apenas uma das faces do problema. Veja-
num caráter de “universalização do princí- mos, agora, a outra.
pio” ou na sua importância hermenêutica,
surge, ainda, a seguinte indagação: quando
3. Agora, o inverso: o uso
se poderia reconhecer a normatividade da
situação excepcional consolidada? Não hipossuficiente dos princípios
poderia ela sempre ser reconhecida quan- Com efeito, no julgamento conjunto das
do se pretende uma desoneração da força ADCs 29 e 30 e da ADIn 4578, o STF parece
normativa da Constituição?); princípio da ter inaugurado uma forma nova de esse
felicidade (nesse ponto, o direito brasileiro fenômeno se manifestar. Ao lado do uso
se torna insuperável: por esse standard, a inflacionado do conceito de princípio, o voto
Constituição garante o direito de todos do Min. Luiz Fux produziu uma espécie

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de retração que, mais do que representar vislumbra a existência de um conteúdo
uma contenção ao pamprincipiologismo, principiológico no indigitado enunciado
manifesta-se como um subproduto desse normativo” (grifo nosso).
mesmo fenômeno. Trata-se de uma espécie Não se vislumbra no enunciado norma-
de “uso hipossuficiente” do conceito de tivo (presunção da inocência) um conteúdo
princípio. Já não se sabe o que é mais gra- principiológico? Permito-me discordar. A
ve: o pamprincipialismo ou a hipossuficiência posição exarada pelo ilustrado Ministro
principiológica. sugere claramente uma passagem ao largo
O que seria esse “uso hipossuficiente do de toda a discussão a travar-se no âmbito
conceito de princípio”? Explico: ao invés de teórico para saber o que é, efetivamente,
nomear qualquer standard argumentativo um princípio. E o faz com apelo a um
ou qualquer enunciado performático de argumento de autoridade, baseado numa
princípio, o Judiciário passa a negar den- concepção isolada, no contexto global da
sidade normativa de princípio àquilo que teoria e da filosofia do direito, a qual não
é, efetivamente, um princípio, verdadeira- pode ser tida como dominante. Aliás, a
mente um princípio, anunciando-o como vingar a tese do ilustre jurista citado pelo
uma regra. Aliás, nega-se a qualidade de Ministro, a igualdade – virtude soberana
princípio àquilo que está nominado como de qualquer democracia, como aparece em
princípio pela Constituição! Dworkin (1985, 2000) e, numa perspectiva
O que ocorreu, afinal? O julgamento mais clássica, no testemunho de Alexis de
em tela trata da adequação da Lei Com- Tocqueville sobre a democracia americana
plementar no 115/2010 (a chamada Lei – não seria um princípio, mas, sim, um sim-
da “Ficha Limpa”) à Constituição. Nesse ples postulado! Na verdade, parece difícil
momento, não me preocupa tanto o mérito sustentar que o próprio Prof. Ávila (2009)
da ação, mas aquilo que é feito com a Teoria concorde com a tese apresentada no aludi-
do Direito. Qual é a serventia da Teoria do voto. Não sei se ele nega(ria) densidade
do Direito? Não se trata de uma questão de princípio à presunção da inocência.
cosmética. Pelo contrário, é da Teoria do Quanto a esse particular, reflitamos:
Direito que se retiram as condições para em primeiro lugar, o conceito de regra e
construir bons argumentos e fundamentar princípio em Ávila (2009) não está adstrito à
adequadamente as decisões. Quero dizer: chamada distinção forte, que leva em conta
tem-se a discutir o que foi feito da Teoria do aspectos lógico-estruturais dos modelos
Direito dos últimos 50 anos, a tanto ocupar normativos. Separando texto de norma, o
a questão do conceito de princípio e que, chamado critério de distinção holística leva
agora, no voto do Ministro Fux (ADC 29/ em conta diversos elementos, o que permite
DF, ADC 30/DF, ADI 4578/DF), parece não a Ávila (2009) sustentar a possibilidade de
ter muita serventia. Vejam-se as palavras que um único texto produza, ao mesmo
do Ministro: tempo, regras e princípios, bem como que
“A presunção de inocência consagra- esses não estejam necessariamente liga-
da no art. 5o, LVII da Constituição dos a um texto. Quando o Ministro Fux
deve ser reconhecida, segundo lição afirma, citando Ávila, que a presunção da
de Humberto Ávila, como uma regra, inocência não é um princípio e, sim, uma
ou seja, como uma norma de previsão regra, ou seja, como uma norma de previ-
de conduta, em especial de proibir são de conduta, em especial a de proibir a
a imposição de penalidade ou de imposição de penalidade ou de efeitos da
efeitos da condenação penal até que condenação criminal até que transitada em
transitada em julgado decisão penal julgado a decisão penal condenatória, deixa
condenatória. Concessa venia, não se de lado diversos aspectos da teoria analí-

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tica de Ávila (2009). Em primeiro lugar, mais do que simples fatores de colmatação
confunde texto com norma. O excerto por das lacunas (como ocorria nas posturas
ele trazido é um texto que, embora permita metodológicas derivadas do privativismo
a identificação de uma regra, também per- novecentista), eles são, hoje, normas jurídicas
mitiria a identificação de um princípio. A vinculantes, presentes em todo momento
identificação da regra estaria relacionada no contexto de uma comunidade política.
a uma dimensão “imediatamente com- Tanto para Dworkin quanto para Alexy –
portamental”, enquanto que a dimensão que, certamente, são os autores que mais
“finalística” permitiria a identificação de representativamente se debruçaram sobre
princípios. A metodológica, por sua vez, o problema do conceito de princípio – existe
identificaria um “postulado”. Na decisão, uma diferença entre a regra (que, eviden-
inclusive, verifica-se que, independente temente, também é norma) e os princípios.
da regra, há, ali, um princípio. Refiro-me, Só para lembrar: cada um dos autores
especificamente, à utilização daquilo que (Dworkin e Alexy) construirá sua posição
Ávila (2009) chama de “postulados” da sob pressupostos metodológicos diferentes
“razoabilidade” e da “proporcionalidade”. que os levarão, no mais das vezes, a iden-
Nesse caso, há de se atentar ao fato de que tificar pontos distintos para realizar essa
a diferença – não existente em Alexy (2009), diferenciação. No caso de Alexy (2006),
por exemplo – entre ambos está no fato de a sua distinção será estrutural, de natureza
“razoabilidade não implicar relação meio- semântica; ao passo que Dworkin (1986)
-fim”, ao contrário da “proporcionalidade”. realiza uma distinção de natureza mais
Interessante notar que o Ministro se vale fenomenológica (1986).
dos dois “postulados” para estruturar sua
argumentação. Todavia, jamais saberemos
4. Sempre, ainda a confusão acerca
se a “proporcionalidade” (ou, até mesmo,
a “razoabilidade”) foram corretamente
do que dizem Dworkin e Alexy
utilizadas, uma vez que a estrutura interna Para além da crítica que aqui estabeleço,
deste discurso, mesmo considerando sua penso que há outro problema do ponto de
depuração analítica (adequação, necessi- vista de Dworkin que merece ser conside-
dade e proporcionalidade stricto sensu), rado, relacionado, com certeza, a uma con-
não garante o controle de sua utilização, fusão entre Dworkin e Alexy. A questão diz
pois, como no modelo original concebido respeito àquilo que Dworkin (1986) chama
por Alexy, o peso e todas as escolhas rela- de sense of appropriateness.
cionadas deveriam estar sob o controle de Vou explicar isso melhor: para Dworkin
regras argumentativas. No particular, tanto (1986), nem toda norma, pelo simples fato
a decisão do Min. Luiz Fux quanto a ma- de ser válida, é aplicável a todo e qualquer
triz analítica de Ávila (2009) não parecem caso, independentemente da compreensão
atender a esse controle. que se tenha desse caso. Adequabilidade
Dizendo de outro modo, a afirmação é pertinência da decisão possível ao caso.
de que a presunção de inocência seria uma Ou seja, ainda que numa disputa argu-
regra (sic) e não um princípio é tão temerá- mentativa sejam construídas concepções
ria que uniria dois autores completamente concorrentes sobre como um caso deva ser
antagônicos, como são Robert Alexy e em princípio decidido (a tal fase interpre-
Ronald Dworkin, na mesma trincheira de tativa, como diria Dworkin (1986), embora
combate. Ou seja, ambos se uniriam para até mesmo o reconhecimento de decisões
destruir tal afirmação. Isso porque a grande judiciais anteriores e mesmo normas legais
novidade das teorias contemporâneas sobre numa fase pré-interpretativa já é interpre-
os princípios jurídicos foi demonstrar que, tar), exige-se uma coerência de princípio

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– como exigência de integridade –, ou seja, afirmações e alegações que as pessoas fa-
reconstruir a história institucional na sua zem sobre aquilo que o Direito lhes permite,
melhor luz. proíbe ou autoriza” (DWORKIN, 1986).
Assim, quando o Min. Luiz Fux diz que Aliás, sem reconhecer sequer de que tipo de
a presunção de inocência é uma regra, ou divergência se trata, se quanto aos funda-
seja, aplicável em todo e qualquer caso, a mentos, a tal divergência teórica, ou quanto
fim de supostamente reforçar a normativi- ao que ocorreu, a divergência empírica. Isso
dade de um princípio, o que ele faz é exata- porque não há dúvida de que a presunção
mente o contrário, pois se esquece de que a de inocência é historicamente reconhecida
reconstrução do caso é constitutiva – e não no Direito brasileiro – o que se trata é de se
algo meramente externo, subsumível – da saber, primeiro, qual o sentido normativo a
decisão a ser corretamente tomada. ser atribuído a essa história (uma questão
Na verdade, ele toma a suposta sub- de princípio e de integridade) e, segundo,
sunção como sendo um salto hermenêutico se ela foi ou não observada num determina-
não explicitado argumentativamente. E do caso (uma questão de adequabilidade).
exatamente porque o modo com que o caso Numa palavra: tanto as posições de
é compreendido fica à sombra de uma dis- Dworkin quanto as de Alexy estão con-
cussão sobre o reconhecimento da validade cordes no sentido de que um dos fatores a
de uma norma e não da sua adequabilidade diferenciar os princípios das regras diz res-
ou pertinência a um caso concreto. Algo peito ao fato de que sua não incidência (ou
que exige uma coerência de princípio e aplicação) em um determinado caso concreto
não uma mera referência a um dispositivo não exclui a possibilidade de sua aplicação
legal ou constitucional ou mesmo a uma em outro, cujo contexto fático-existêncial
decisão judicial anterior. Afinal, mesmo seja diferente daquele que originou seu
uma decisão judicial anterior somente pode afastamento. As regras, por outro lado,
ser considerada um precedente retrospec- se afastadas de um caso, devem, necessa-
tivamente, nunca prospectivamente, pois riamente, ser afastadas de todos os outros
não se podem prever todas as hipóteses futuros; exigência decorrente de um prin-
em que um entendimento jurisprudencial cípio, que é a igualdade de tratamento. Isso
é adequado à solução de casos futuros – mesmo: a igualdade, que não é uma regra,
problemática que até mesmo Alexy (1983, mas, sim, um princípio.
2006) reconhece, embora ele veja essa Para Dworkin (1985, 1986), os princípios
questão como ônus ou inversão de ônus representam uma comunidade, vale dizer:
argumentativo. uma comunidade política se articula a par-
Enfim, tentar reforçar, reafirmar ou tir de um conjunto coerente de princípios
pretender confirmar normatividade a que justifica e legitima sua ação política. Por
uma norma tratando-a como regra e não isso o Direito pós-bélico (Losano) – o que
como princípio a exigir a consideração surge depois da Segunda Guerra – é um
dos elementos do caso é correr o risco de, novo paradigma. Só não entende isso quem
numa situação de imprevisão, justificar deseja retornar ao século XIX, ao tempo do
inclusive a discricionariedade (que conduz “império das regras”; aliás, ao tempo do
à arbitrariedade). É confundir questões de positivismo primitivo-exegético-sintático.
validade com de adequabilidade, decidin- Ora, os princípios possuem uma “di-
do em abstrato (como se isso fosse possível) mensão de peso” – como aparece em Taking
um caso concreto. É tentar saltar a linha de Rights Seriously (DWORKIN, 1977) –, o que
Rodes sem justificar o seu ponto de vista significa dizer que, em determinados casos,
normativo, sem fundamentar, enfim, as um princípio terá uma incidência mais forte
proposições jurídicas, ou seja, as “diversas do que noutro (ou noutros). Isso não impe-

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de que, num outro caso com circunstâncias instituidor. Sem um princípio instituinte, a
distintas de aplicação, aquele princípio – regra não pode ser aplicada, posto que não
afastado anteriormente – volte com maior será portadora do caráter de legitimidade
força, dependendo da construção que se democrática.
faz, com base na reconstrução da cadeia Norma é um conceito interpretativo.
da integridade do direito. É o que tenho Portanto, deve-se ter presente que a nor-
chamado de DNA do Direito. matividade emerge de um quadro factual
Além de Dworkin, Alexy ressalta essa constituído por regras e princípios. O
peculiaridade dos princípios (sequer problema, então, aparecerá ao pretender
mencionarei Habermas, radical no sentido deduzir os princípios e as regras de um
de que os princípios são normas, sendo, conceito semântico de norma. Quando a
portanto, deontológicos). Para Alexy, tão expressiva maioria da doutrina distingue
citado e tão pouco lido (e menos ainda com- – a partir de Alexy – regras e princípios
preendido) e adepto da distinção semân- desde o critério estrutural, a partir da ideia
tico-estrutural entre regras e princípios, de que regras são mandados de definição
os princípios valem prima facie de forma e princípios são mandados de otimização
ampla (mandados de otimização). Circuns- (e outras distinções criteriológicas), está-se
tâncias concretas podem fazer com que seu apenas dando uma solução epistemológica
âmbito de aplicação seja restringido. Os para o problema, e não uma solução her-
princípios – que, em algumas passagens menêutica.
da sua Theorie der Grundrechte (2006), Alexy Explicando mais detalhadamente: a
(2006) equipara com os próprios direitos distinção estrutural oferece uma resposta
fundamentais – encontram-se em rota de sistemática, mas não resolve a questão da
colisão, e os critérios de proporcionalidade concretização propriamente dita. Isso por-
derivados da ponderação resolvem essa que deita raízes na velha questão presente
aparente contradição, fazendo com que, a partir do neopositivismo lógico e sua
em um caso específico, um deles prevale- superação pela filosofia da linguagem ordi-
ça. Lembre-se: o resultado da ponderação nária. A agravante – que corre em prejuízo
dos princípios colidentes é uma regra que à teoria da argumentação que amadrinha
Alexy (2006) chama de “norma de direito e distinção lógico-estrutural – reside na
fundamental adscripta” (que, na prática relevante circunstância de que a filosofia
cotidiana da aplicação do Direito, ninguém da linguagem ordinária apostou na prag-
faz). E lembre-se ainda de que, nos termos mática como um salto para além da pleni-
da teoria alexyana, essa regra deve servir potenciariedade das análises sintáticas e
para resolver casos similares àqueles que semânticas (lembremos que, para o neopo-
ensejaram a ponderação dos princípios sitivismo lógico, somente eram científicos
colidentes. os enunciados que passassem pelo filtro da
sintaxe e da semântica, desconsiderando to-
5. De como o que está por trás da tese talmente a pragmática), enquanto as teorias
da argumentação aposta(va)m, ao mesmo
adotada pelo Ministro é a distinção
tempo, nas concepções neopositivistas e
estrutural entre regra e princípio na filosofia da linguagem ordinária. Ou
O que deve ficar claro é que a legi- seja, as teorias da argumentação, nos casos
timidade de uma decisão será auferida simples, contentam-se com as análises sin-
no momento em que se demonstrar que tático-semânticas (é o caso da subsunção);
a regra por ela concretizada é instituída e quando estão em face de um caso difícil,
por um princípio. Desse modo, tem-se o apelam para a pragmática. Mas somente
seguinte: não há regra sem um princípio apelam para esse nível quando o primeiro

14 Revista de Informação Legislativa


não responde às demandas significativas. acordo que os catálogos de direitos fun-
Ora, a filosofia da linguagem ordinária, ao damentais e demais compromissos com a
se dar conta das demandas resultantes des- sociedade democrática (justa e solidária)
se terceiro nível da semiótica (relação dos foram inseridos nas constituições, o modo
usuários com os signos), considerou como de fazer isso é compreender que isso só se
estando superado o neopositivismo exata- dá a partir da faticidade, isto é, do mundo
mente porque este se contentava com os prático. Princípios, nesse sentido, são o
dois primeiros níveis (sintático e semânti- modo pelo qual toda essa normatividade
co). A teoria da argumentação jurídica, por adquire força normativa para além das
sua vez, trabalha, ao mesmo tempo, com as suficiências das regras.
concepções neopositivistas pragmatistas Do mesmo modo, não é correto falar
(filosofia da linguagem ordinária), porém em uma axiologia principiológica, mas,
faz isso desconsiderando que o neopositi- sim, em uma deontologia dos princípios,
vismo não realizava a análise semântica no visto que são os princípios que instituem
mesmo nível da linguagem objeto. Ou seja, as bases para a normatividade do direito.
para o neopositivismo, haveria a necessida- Os princípios não autorizam a criação de novas
de de uma metalinguagem para certificação normas jurídicas, ou seja, não necessariamente
dos resultados das contradições lógicas da “criam direito novo”, mas são, eles mesmos, já a
linguagem objeto. normatividade do Direito. São eles os marcos
O problema é que, ao ser feita a dis- que permitem a compreensão da história
tinção estrutural, os princípios acabam institucional do Direito – por isso eles
adquirindo algo que lhes tira a “razão expressam de modo complexo o momento
principiológica”, isto é, alça-se-lhes a hermenêutico do Direito. A possibilidade
meta-regras, o que faz com que, no fundo, de inovação surge apenas no contexto de
o princípio apenas ingresse no sistema uma ruptura com o elo que constitui a
para “revolver insuficiências ônticas” das integridade do Direito, mas que se reco-
regras, como ocorre, por exemplo, com a nhece legitimada pelo todo conjuntural da
teoria da argumentação jurídica. Afinal, história institucional.
como é sabido, para teoria da argumen- A proposta de diferenciação hermenêuti-
tação jurídica o problema das regras se ca – e não distinção/cisão estrutural – entre
resolve por subsunção e o dos princípios, regras e princípios aqui defendida parte
pela ponderação. Isso também se aplica da descoberta, que tem raízes na teoria
à diferença entre axiologia e deontologia integrativa dworkiniana, do caráter uni-
e é por isso que me permito insistir neste ficador dos princípios: eles são o marco
ponto: princípios não são valores. Para que da institucionalização da autonomia do
um princípio tenha obrigatoriedade, ele não Direito. As regras não acontecem sem os
pode se desvencilhar da democracia, que princípios. Os princípios sempre atuam
se dá por enunciados jurídicos concebidos como determinantes para concretização do
como regras. Direito e em todo caso concreto eles devem
Normas serão, assim, o produto de uma conduzir para determinação da resposta
dimensão deontológica própria do Direito, adequada. As regras constituem modalidades
já que ele se articula a partir de regras e objetivas de solução de conflitos. Elas “re-
princípios. Se admitimos ou se estamos de gram” o caso, determinando o que deve
acordo que a noção de pré-compreensão ou não ser feito. Os princípios autorizam
conforma a atividade interpretativa; se essa determinação; eles fazem com que o
estamos de acordo que o novo paradigma caso decidido seja dotado de autoridade
de direito tinha que fazer uma ruptura com que – hermeneuticamente – vem do reco-
aquela autonomia formal e se estamos de nhecimento da legitimidade. O problema da

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resposta adequada/correta, nesse caso, só é regras, como querem – de forma equivo-
resolvido na medida em que seja descoberto cada – alguns de nossos doutrinadores?
o princípio que institui (legitimamente) a regra Rebaixada à condição de regra, a presunção
do caso. Não é em vão que a tese da (única) da inocência entraria em um “processo”
resposta correta proposta por Dworkin de ponderação3? E disso exsurgiria que
(1985) (com a qual concordo apenas em tipo de resultado? Uma “regra da regra”?
parte) só se constitui em uma teoria da de- Mais: afinal, se a ponderação é a forma de
cisão em face da introdução dos princípios realização dos princípios e a subsunção é a
no Direito, ou, se se quiser, em face da rup- forma de realização das regras (isso está em
tura com a descrição positivista do Direito Alexy, com todos os problemas teoréticos
como um modelo de regras. De todo modo, que isso acarreta), falar em ponderação de
os princípios não resolvem – em termos regras não é acabar com a própria distin-
lógico-objetivos – o caso, mas constituem ção entre regras e princípios tornando-os,
a legitimidade da solução, fazendo com novamente, indistintos4?
que a decisão seja incorporada ao todo da Parece-me que o imbróglio teórico gera-
história institucional do Direito. do pelo voto do Ministro Fux bem represen-
ta um verdadeiro “leviatã hermenêutico”,
isto é, uma guerra constante (lembremos
6. Os efeitos colaterais decorrentes do
Hobbes) de todas as correntes de aplicação,
uso hipossuficiente dos princípios estudos e interpretação do Direito entre si, a
Do que foi dito, fica clara a fragilidade gerar uma confusão sem precedentes, onde
do argumento exposto pelo ilustre Ministro cada um aplica e interpreta como quer o Direito,
da Suprema Corte de terrae brasilis, a quem desatentos ao fato de que todo problema
tomo a liberdade de indagar, a partir da de constitucionalidade é um problema de
breve exposição sobre o melhor da doutrina poder constituinte. No fundo, mais uma
mundial a respeito de regras e princípios; vez venceu o pragmati(ci)smo, derrotando
doutrina recepcionada no Brasil por tantos a Teoria do Direito.
juristas e tribunais, o seguinte: Ainda, outras indagações: a) se a pre-
1 – se a presunção de inocência é mesmo sunção de inocência não é um princípio, o
uma regra, como é possível dizer que ela devido processo legal também não o é?; b)
pode ter sua aplicação restringida no caso e a igualdade: seria ela uma regra?; c) na
de condenações confirmadas pelo Tribu- medida em que cada juiz deve obedecer à
nal (e os casos de competência originária, “regra” da coerência em seus julgamentos,
seriam o quê?) e, ao mesmo tempo, valer isso quer dizer que, daqui para frente, nos
para aqueles que foram condenados pelo julgamentos do Min. Fux, a “regra” (sic)
juiz singular apenas? da presunção da inocência pode, em um
2 – se ela é uma regra, não deveria então conflito com um princípio, ou até mesmo
também ser afastada nesses casos? com uma regra, soçobrar?; d) uma outra
Note-se que o argumento é tão preocu- regra pode vir a “derrubar” a presunção
pante que melhor ficaria se fosse dito que a da inocência?; e) o que dirão os processua-
presunção de inocência é (mesmo) um prin- listas-penais de terrae brasilis, quando con-
cípio: se justificada sua restrição no caso frontados com essa “hipossuficientização”
de condenações confirmadas pela segunda
instância, conservar-se-ia intacta sua apli- 3
Não me deterei em críticas à ponderação alexya-
cação no âmbito do juiz singular! Todavia, na. No conteto, parece bem representativa a crítica
de Friedrich Müller (2011, p. 289 et seq): para ele, a
nos termos em que foi formulado no voto, ponderação é irracional e favorece o decisionismo.
como pode uma regra valer num caso e não 4
A defesa da ponderação de regras é feita no Brasil
valer no outro? Haveria ponderação entre por Humberto Ávila (2009).

16 Revista de Informação Legislativa


do princípio da presunção da inocência, ser) regras”, ou trabalhando essa distinção
conquista da democracia? entre regras e princípios (particularmente,
A questão a se discutir aqui não diz nem concordo com a distinção semântico-
respeito ao mérito do julgamento do caso -estrutural entre regra e princípio, mas
“Ficha Limpa”. Nem quero discutir as pos- isso é assunto para outro momento; para
sibilidades de restrição ou não do direito mim, princípios são normas; são, sempre,
fundamental à presunção de inocência. deontológicos; portanto, não são mandados
A questão é simbólica (lembremo-nos de de otimização!). Deve haver mais de três
Cornelius Castoriadis). O que representa, mil teses de mestrado, feitas no Brasil e no
no plano do futuro do Direito em terrae exterior, sustentando essa “questão dos
brasilis, o exposto no voto do Ministro princípios”.
Luiz Fux? Quais são os efeitos simbólicos De todo modo, é possível dizer que um
disso? Lembremo-nos, aqui também, de dos grandes equívocos de algumas teorias
Pierre Bourdieu, quando fala do poder de jurídicas é o de acreditar que as regras se
violência simbólica dos discursos. aplicam por subsunção e os princípios,
Nada se deve objetar a que algumas te- por ponderação. Como demonstrado, a
ses sejam construídas de forma pragmati(ci) sustentar isso está a distinção estrutural
sta. Essas teses podem fazer sucesso no “regra-princípio”. A tese esposada pelo
mundo jurídico. Mas não hão de sub- Min. Luiz Fux se encaixa nesse contexto.
jugar décadas de discussões e avanços Consequentemente, disso defluem alguns
produzidos na Teoria do Direito. Talvez problemas: primeiro, quem acredita nisso
a maior conquista nesse (e desse) Direito admite que uma regra possa prever todas
pós-Auschwitz tenha sido, efetivamente, as hipóteses de aplicação, isto é, acredita
a principiologia constitucional, pela qual que uma regra (lei) pode conter a norma
ingressa o mundo prático no Direito, com a (sentido, que advém de sua concretude).
institucionalização da moral no Direito (não Pior, acredita que uma regra subsiste sem
nos esqueçamos de Habermas). Por isso, norma, repristinando, com isso, o positi-
não se pode vir a dizer que a presunção da vismo sintático-legalista-exegético (aliás,
inocência não seja um princípio. Por mais o que é isto, o positivismo jurídico?)5. Se-
“valor” pragmático que isso possa vir a ter. 5
Permito-me explicar isso melhor: de há muito
O Direito não sobrevive de pragmati(ci) as minhas críticas têm tido como alvo o positivismo
smos. Direito não é um conjunto de casos pós-exegético, isto é, aquele positivismo que superou o
isolados. Portanto, o “problema” não é a positivismo das três vertentes (exegese francesa, pan-
decisão de um determinado caso, mas, sim, dectística alemã e jurisprudência analítica da common
law). Ou seja, o positivismo é uma postura científica
como se decidirão os próximos. Definitiva- que se solidifica de maneira decisiva no século XIX.
mente, não há grau zero de sentido! O “positivo” a que se refere o termo positivismo é
Portanto, o problema é de ordem teó- entendido aqui como sendo os fatos (lembremos que
rica: maus argumentos podem construir o neopositivismo lógico também teve a denominação
de “empirismo lógico”). Evidentemente, fatos, aqui,
más decisões. E isso é algo que deve ser correspondem a uma determinada interpretação da
evitado. Daí o valor da Teoria do Direito. realidade que engloba apenas aquilo que se pode
Ou para que ela serve? Indago: por que contar, medir ou pesar ou, no limite, algo que se
(e para que) existem tantos Programas possa definir por meio de um experimento. Por isso,
sempre considerei muito simplista reduzir a crítica
de Pós-Graduação em Direito no Brasil? do direito a uma simples superação do deducionis-
Existem mais de mil e quinhentas teses mo (subsuntivismo) legalista (e os nomes que a isso
de doutorado – parcela delas pagas com se dê). Portanto, tenho apontado minhas baterias
contra a principal característica do positivismo pós-
bolsas custeadas pelo povo e orientadas
-exegético, qual seja, a discricionariedade. Curiosamente,
por prestigiosos professores – sustentando juristas das mais variadas facções diziam (e isso ainda
que “princípios não são (ou não podem acontece): se você é contra a discricionariedade dos

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gundo, se isso fosse crível, portanto fosse 7. Considerações Finais
a presunção da inocência uma regra, ela Sob qualquer tese, perspectiva ou ban-
teria que ser afastada na base do “tudo ou deira teórica que se adotem, persiste um
nada”. Isso quer dizer que, em princípio, problema fulcral na metodologia (ou teoria)
não se presume que alguém seja inocente... do Direito: o problema das condições da
Poderá haver uma regra (lei) que afaste a interpretação e da aplicação do Direito.
presunção da inocência, desde que com ela Há fortes indicativos de que parcela sig-
se contraponha. Terceiro, se os princípios nificativa dos juristas não se apercebeu
se aplicam por ponderação, antes de serem do problema paradigmático envolvendo o
aplicados – e esses somente se aplicam em giro ontológico-linguístico. Um dos pontos
caso de colisão (pelo menos segundo Alexy) centrais está no “problema do esquema
–, é necessário construir a regra da ponde- sujeito-objeto”, para o qual a comunidade
ração, que, ao fim e ao cabo, também será jurídica não presta a devida atenção.
aplicada por subsunção. Ou seja, no final É ali, no sujeito solipsista (Selbstsüchti-
das contas, a subsunção não foi vencida. ger), que reside o ponto de estofo que impe-
Qual é o efeito colateral de se acreditar de a superação da cisão entre interpretar e
em subsunção? É colocar de lado todas as aplicar, assim como os diversos dualismos
conquistas do paradigma da linguagem. que, desde Platão, tornam os juristas reféns
É render homenagem ao ultrapassado da dicotomia razão teórica–razão prática.
esquema sujeito-objeto (embora, registro, Assim, por exemplo – e isso ficará mais
a Teoria do Direito venha passando ao claro no decorrer dessas reflexões –, tanto a
largo da filosofia; na verdade, a parcela tese da plenitude/plenipotenciariedade da
considerável da Teoria do Direito vê na lei (juiz como “boca da lei” que conforma o
filosofia apenas uma capa de sentido, como positivismo exegético) como a criatividade
se filosofia fosse lógica). (sem limites) do intérprete (que se extrai do
Definitivamente, é necessário denunciar voluntarismo/decisionismo interpretativo
que, ao menos em terrae brasilis, não existiu kelseniano) constituem-se em fatores decisi-
até hoje nenhuma aplicação da ponderação vos da fragilização da autonomia do Direito
propugnada por Alexy (2006). Isso tem que (ou do grau de autonomia alcançado pelo
ser dito (até mesmo em favor do mestre ale- Direito a partir do segundo pós-guerra).
mão). Nunca houve a formação da “norma Portanto, a problemática reside na discussão
de direito fundamental adscripta”. O que das condições pelas quais se dá a atribuição
se ensina nas faculdades é uma vulgata de sentido no ato interpretativo-aplicativo.
da teoria alexiana. E o que se aplica é, no Não custa lembrar que a aposta na dis-
máximo, a Abwägung defendida por Philipp cricionariedade (ainda majoritária na dou-
Heck (1914), em sua Interessenjurisprudenz. trina e jurisprudência), com origem bem
Não mais do que isso. definida em Kelsen e Hart, tinha o objetivo,
ao mesmo tempo, de “resolver” um proble-
juízes, então defende o legalismo, o exegetismo, o juiz
ma considerado insolúvel, representado
“boca da lei”... Ora, convenhamos, essa “entrega” (ou pela razão prática “eivada de solipsismo”
seria “delegação”?) do poder aos juízes (e, portanto, (afinal, o sujeito da modernidade sempre se
em favor da discricionariedade interpretativa) não é apresentou “consciente-de-si-e-de-sua-cer-
nem um pouco nova, eis que já estava presente no
teza-pensante”), e de reafirmar o modelo de
velho Movimento do Direito Livre, na jurisprudência
dos interesses e se aprimorou na jurisprudência dos regras do positivismo, no interior do qual
valores (sem considerar os movimentos realistas no os princípios (gerais do direito) – equipa-
interior da common law). Portanto, minhas críticas se rados a “valores”6 – mostravam-se como
dirigem aos dois principais tipos de positivismo: o
exegético e pós-exegético. Este último, sem dúvida, 6
A referência reiterada aos “valores” demonstra
é o mais perigoso. bem o ranço neokantiano que permeia o imaginário

18 Revista de Informação Legislativa


instrumentos para a confirmação/conformação na teoria da argumentação jurídica (em
desse, por assim dizer, “fechamento” sistêmi- especial, a de Alexy) que entende que os
co. Ocorre que, com o advento da “era dos princípios são mandados de otimização. No
princípios constitucionais” (sic) – expressão fundo, isso implica afirmar uma continui-
que alcançou lugar comum especialmente dade (ou sobrevida) dos velhos princípios
no Direito brasileiro –, consequência não gerais, agora acrescentados/recheados com
apenas do surgimento de novos textos predicados morais, tanto é que, em determi-
constitucionais, mas, fundamentalmente, nados momentos e circunstâncias, a moral
decorrente de uma revolução paradigmáti- ainda se sobrepõe ao direito (pensemos na
ca ocorrida no Direito, parcela considerável fórmula Radbruch apoiada por autores do
dos juristas optou por os considerar como porte e da importância de Alexy).
um sucedâneo dos princípios gerais do Direito Veja-se que ainda hoje – mesmo no cam-
ou como sendo o “suporte dos valores da po da assim denominada crítica do Direito
sociedade” (o que seria isso ninguém sabe – há setores que acreditam na tese de que
e tampouco houve alguém que se arriscasse “é com os princípios que o juiz deixa de ser
a dizê-lo). a boca da lei” (sic), como se os princípios
Uma adequada discussão das condições fossem esse componente “libertário” da
acerca do “controle das decisões judiciais” interpretação do Direito (e da decisão dos
(e da interpretação do Direito em geral) tem juízes). Ademais, a tese da “continuidade”
uma direta relação com a distinção “regra- trata de forma equivocada o problema do
-princípio”, existindo, no meu entender, non liquet, ao colocar o dever do pronun-
duas possibilidades de enfrentamento do ciamento judicial como uma “autorização
tema (que levará, ao final, ao problema da para o juiz decidir como melhor lhe aprou-
relação entre direito e moral). ver” (despiciendo lembrar o decisionismo
Assim, a primeira tese é a da “continui- kelseniano e a discricionariedade de Hart).
dade”, pela qual o Direito é um modelo de Como contraponto, proponho a “tese
regras e, por isso, os princípios constitucio- da descontinuidade” – que penso ser a mais
nais que emergem da tradição do segundo adequada –, pela qual se entende que os
pós-guerra são apenas uma (nova) versão, princípios constitucionais instituem o
agora sofisticada, do modelo de princípios mundo prático no Direito (que, como já referi
gerais do Direito já existente ao tempo das alhures, é distinto da razão prática stricto
metodologias jurídicas que influenciaram o sensu7) e essa institucionalização representa
pensamento jurídico no período que suce- um ganho qualitativo para o Direito, na
deu a codificação. Nesse caso, os princípios medida em que, a partir dessa revolução
representariam uma espécie de “reforço” da paradigmática, o juiz tem o dever (have a
razão prática para o Direito e seriam aciona- duty to, como diz Dworkin (1985, p. 119-
dos pelo julgador no momento em que as 145)) de decidir de forma correta, proble-
regras codificadas não apresentassem uma
resposta imediata para a questão.
7
Vale ressaltar que, na hermenêutica de cunho fe-
nomenológico, a ideia de razão prática se dissolve com
Evidentemente, essa tese é problemá- a morte daquele que a sustenta: o sujeito solipsista. A
tica, uma vez que funda o problema das fenomenologia hermenêutica supera, no que tange ao
vaguezas e ambiguidades em uma razão problema do conhecimento, o solipsismo monadológi-
prática ainda prisioneira do solipsismo do co do sujeito moderno. A intersubjetividade (mundo
compartilhado) manifesta-se no conceito de significân-
sujeito epistemológico da modernidade. cia que se apresenta como o responsável pela formação
Essa problemática é facilmente identificável dos projetos de sentidos e significados articulados no
discurso. Isso quer dizer que quando produzimos um
daqueles que pretendem fazer uma dogmática jurídica enunciado já nos movemos antes compreensivamente
crítica (STRECK, 2011b). nessa estrutura múndica chamada significância.

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mática que discuto em Verdade e Consenso está no enfraquecimento dos princípios.
(STRECK, 2011b), amiúde. O remédio contra os males do pamprinci-
Por certo, a principal preocupação da Teoria piliogismo não é o uso hipossuficiente dos
do Direito deve ser o controle da interpretação, princípios. Ao se jogar fora a água da bacia,
problemática agravada pelo crescimento há que se verificar, antes, se a criança foi
da jurisdição em relação à legislação. O retirada!
“caso brasileiro” é paradigmático nesse
sentido. Se aos princípios é possível debitar
esse crescimento tensional, é igualmente Referências
neles que reside o modo de, ao mesmo
tempo, preservar a autonomia do Direito ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição
e a concretização da força normativa da à aplicação dos princípios jurídicos. 10. ed. São Paulo:
Constituição. Daí a necessidade de um Malheiros, 2009.
combate hermenêutico à pamprincipiolo- ALEXY, Robert. Theorie der juristischen argumenta-
gia, que enfraquece sobremodo o caráter tion: die theorie des rationalen diskurses als theorie
concretizador dos princípios, ao criar uma der juristischen begründung. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1983.
gama incontrolável de standards retóricos-
-persuasivos (na verdade, no mais das ______. Theorie der grundrechte. 5. ed. Frankfurt am
vezes, enunciados com pretensões perfor- Main: Suhrkamp, 2006.
mativas) que possibilitam a erupção de ______. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de
racionalidades judiciais ad hoc, com forte Luis Virgilio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros,
cunho discricionário. 2008.
Entretanto, como contrapartida, deve DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge:
haver um cuidado com o manejo dos prin- Harvard University, 1985.
cípios, que não podem ser transformados ______. Freedom’s law: the moral reading of the Ame-
em álibis retóricos e, com isso, fragilizar a rican Constitution. Cambridge: Harvard University,
autonomia minimamente exigida para o 1996.
direito nessa quadra da história. Tampouco ______. Justice in robes. Cambridge: Harvard Univer-
se pode continuar a utilizar a vetusta cisão sity, 2006.
entre regras – que seriam aplicadas por ______. Law’s empire. Cambridge: Belknap, 1986.
subsunção – e princípios, esses “aplicados
por ponderação”.
Aqui, uma pergunta final: será que e Manuel Atienza, já afirmavam/aceitavam de há
muito, isto é, que a ponderação estava umbilicalmente
algum juiz ou tribunal no Brasil já se pre- ligada à discricionariedade judicial: “Os direitos
ocupou em determinar a regra de direito fundamentais não são um objeto passível de ser divi-
fundamental adscripta quando opera com a dido de uma forma tão refinada que inclua impasses
ponderação? Será que qualquer um deles já estruturais – ou seja, impasses reais no sopesamento
–, de forma a torná-los praticamente sem importância.
aplicou tal regra a outros casos similares? Nesse caso, então, existe uma discricionariedade para
A resposta é óbvia: não há um caso exem- sopesar, uma discricionariedade tanto do legislativo
plificativo a retratar esse tipo de aplicação. quanto do judiciário” (ALEXY, 2008, p. 611). Ainda,
A própria ponderação é uma ficção. É uma o posicionamento de Humberto Ávila (2009) bem de-
monstra que, no fundo, essa questão de “dimensão de
máscara para esconder a subjetividade do peso dos princípios”, intrínseca à ponderação, trata-se,
julgador8. Mas, convenha-se: a solução não na verdade, de um retorno à discricionariedade: “não
são, pois, os princípios que possuem uma dimensão de
8
Esse fato, aliás, é reconhecido pelo próprio Alexy peso: às razões e aos fins aos quais eles fazem referência
(2008), no posfácio da Teoria dos Direitos Fundamentais é que deve ser atribuída uma dimensão de importân-
que compõe a edição da tradução para o português, cia. A maioria dos princípios nada diz sobre o peso
corroborando, assim, aquilo que importantes adeptos das razões. É a decisão que atribui aos princípios um
de sua teoria da argumentação, como Prieto Sanchís peso em função das circunstâncias do caso concreto.

20 Revista de Informação Legislativa


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Acesso em: 17 maio 2012.
Brasileiro, 1997. 2 v.
______. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica
______. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradu-
e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b.
ção de Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004.
______. Teoría de la acción comunicativa: complementos
y estudios previos. Madrid: Cátedra, 1989.

A cada dimensão de peso (dimension of weight) não é,


então, atributo abstrato dos princípios, mas qualida-
de das razões e dos fins a que eles fazem referência, vice-versa? Ou seja: para Ávila (2009), o sistema jurí-
cuja importância concreta é atribuída pelo aplicador. dico possui regras que se bastam. Regras sem princí-
Vale dizer, a dimensão de peso não é um atributo pios. Daí a pergunta: isso não é, explicitamente, uma
empírico dos princípios, justificador de uma diferença volta ao positivismo primevo, de caráter sintático?
lógica relativamente às regras, mas resultado de juízo Kelsen, nesse sentido, avançou em relação a esse nível
valorativo do aplicador” (ÁVILA, 2009, p. 69). Dessa sintático, trabalhando no plano de um positivismo
forma, entre tantas objeções que podem ser elencadas semântico. De todo modo, assim como Ávila (2009),
à tese de Ávila (2009), uma é fulcral: se dependemos no plano da aplicação, sucumbiu ao discricionarismo,
da subjetividade do juiz, por que razão buscar uma com a diferença, a seu favor (dele, Kelsen), por colocar
teoria dos princípios e um modo de aplicar o direito a ciência no nível da metalinguagem, deixando claros,
de forma racional? Ainda: como é possível sustentar para o bem e para o mal, os dois níveis (ciência jurídica
que as regras podem ser aplicadas sem princípios e = metalinguagem; direito = linguagem objeto).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 21


Lei de Anistia
Comentários à sentença do Supremo Tribunal Federal no
caso da ADPF 153

Jorge Barrientos-Parra e Jorge Luís Mialhe

Sumário
1. A Lei de Anistia. 1.1. Os fatos que lhe de-
ram origem. 1.2. A mobilização pela anistia. 1.3.
Características e consequências. 2. A validade
da Lei de Anistia de acordo com o Supremo Tri-
bunal Federal. 2.1. O momento histórico como
chave para a sua interpretação. 2.2. O significado
da expressão crimes conexos na Lei de Anistia. 2.3.
Interpretação e revisão da Lei de Anistia. 2.4.
A reafirmação da Lei de Anistia pela Emenda
Constitucional no 26/85. 2.5. Os obstáculos ao
exercício do direito fundamental à informação.
3. As razões dos votos vencidos. 3.1. O voto do
Ministro Lewandowski. 3.2. O voto do Ministro
Ayres Brito. 4. Conclusões.

“Les hommes du droit ont des scrupules


et ne peuvent sans mauvaise conscience
éliminer la justice du droit. Ils ne peu-
vent pas davantage la conserver à cause
du trouble que cette idée apporte, de son
incertitude et de son imprévisibilité. La
technique juridique pour être precise
suppose que l’on ne s’encombre plus de
la justice [...] l’idée d’ordre et de securité
se substitue comme but et fondement du
Jorge Barrientos-Parra é mestre em Direito droit à celle de justice lorsque la techni-
pela Universidade de São Paulo. Doutor pela que juridique est assez développée”.
Université Catholique de Louvain. Professor de (Jacques Ellul)
Direito Constitucional da UNESP Campus de
Araraquara-SP e do Programa de Mestrado em
Direito da UNESP, Campus de Franca-SP. 1. A Lei de Anistia
Jorge Luís Mialhe é doutor, mestre e bacharel
pela USP. Pós-doutorado na Université de Paris 1.1. Os fatos que lhe deram origem
III, Sorbonne-Nouvelle e na Univeristé de Limoges.
Professor da UNESP, Campus de Rio Claro- Analistas entendem que a renúncia de
-SP e do Programa de Mestrado em Direito da Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961,
UNIMEP, Piracicaba-SP. após governar o Brasil apenas sete meses,
Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 23
sedimentou o caminho para o golpe de 1968, que foi considerado “um golpe dentro
Estado de 1o de abril de 19641. Nesse dia as do golpe”2.
Forças Armadas destituíram o Presidente Durante o período ditatorial, o Congres-
João Goulart de acordo com a lógica da so Nacional foi fechado, foi instaurada a cen-
Guerra Fria, isto é, os Estado Unidos não sura da imprensa, a suspensão dos direitos
tolerariam insurgências que desafiassem e garantias fundamentais, inclusive o habeas
a sua hegemonia na região como tinha corpus, dos direitos políticos, da liberdade de
acontecido com Cuba que se aliou à União expressão e da liberdade de reunião. Além
Soviética. Lembremos que João Goulart disso, a competência da Justiça Militar foi
procurou estreitar os vínculos com o mo- ampliada e a Lei de Segurança Nacional
vimento sindical e com setores reformistas. (Decreto-lei no 898, de 29 de setembro de
Entre outros fatos, o seu Plano Trienal de 1969) introduziu no ordenamento jurídico
Desenvolvimento Econômico e Social, no as penas perpétua e de morte.
qual se propunha levar a cabo as denomina- Entre 1969 e 1974, produziu-se “num
das Reformas de Base, acabou assustando a clima de verdadeiro ‘terror de Estado’
burguesia nacional e o governo dos Estados uma ofensiva fulminante sobre os grupos
Unidos. armados de oposição” (BRASIL, 2007, p.
O regime militar, como outros na Amé- 27). O mandato do Presidente Médici [1969-
rica Latina, baseou as suas ações na Doutri- 1974], de acordo com a Comissão Especial
na da Segurança Nacional, que estabelecia sobre Mortos e Desaparecidos Políticos,
como inimigos internos os partidos, sindi- caracterizou-se por ser “a fase da repressão
catos e movimentos políticos de inspiração mais extremada em todo o ciclo de 21 anos
marxista ou que favorecessem de alguma do regime militar” (BRASIL, 2007, p. 26).
forma mudanças de cunho revolucionário Ernesto Geisel governou de 15 de março
ou socializante. de 1974 a 15 de março de 1979. Durante os
No plano jurídico o governo militar bai- três primeiros anos do seu governo “o desa-
xou vários Decretos-leis, o no 314 em 1967, parecimento de presos políticos, que antes
o no 510 e o no 898, em 1969) e vários Atos era apenas uma parcela das mortes ocor-
Institucionais disciplinando a segurança ridas, torna-se a regra predominante para
nacional. Essas normas “funcionaram como que não ficasse estampada a contradição
pretenso marco legal para dar cobertura ju- entre discurso de abertura e repetição siste-
rídica à escalada repressiva” (BRASIL, 2007, mática das velhas notas oficiais simulando
p. 19). Esse período foi caracterizado “pela atropelamentos, tentativas de fuga e falsos
instalação de um aparelho de repressão suicídios” (BRASIL, 2007, p. 27). Em conse-
que assumiu características de verdadeiro quência dessa política, a partir de 1974, “ofi-
poder paralelo ao Estado” (BRASIL, 2007, p. cialmente não houve mortes nas prisões,
22), chegando ao ápice com a promulgação todos os políticos mortos ‘desapareceram’
do Ato Institucional no 5 em dezembro de e o regime passou a não mais assumir o as-
sassinato dos opositores”(CORTE..., 2010).
1
Nesse sentido Maria Victória Benevides afirma Numa conversa com o tenente-coronel Ger-
que “o império da vassoura preparou o caminho para mano Pedrozo, em 18 de janeiro de 1974,
o domínio da espada” e conclui: “O personalismo au-
toritário de Jânio, o seu bonapartismo, o moralismo que
o Presidente Geisel afirmou: “É, o que tem
retoma o tema do golpismo, atenuado durante a segun-
da metade do governo JK, contribuíram para o golpe” 2
“Consolidou-se, com o AI-5, uma dinâmica de
(apud HAAG, 2011, p. 82). De acordo com Maria Teresa radicalização... O general Costa e Silva assumiu a
Sadek a obscuridade da renúncia sempre interessou ao presidência, em 1967, como representante da chamada
próprio Jânio, para avivar a flama do “homem justo é Linha Dura, vale dizer, setores das três Armas que
inflexível que prometia voltar um dia ao combate contra rejeitavam qualquer moderação ou tolerância quanto
os poderosos” (apud HAAG, 2011, p. 80). às oposições” (BRASIL, 2007, p. 26).

24 Revista de Informação Legislativa


que fazer é que nessa hora agir com muita Madre Cristina Sodré Dória, Iramaya Ben-
inteligência, para não ficar vestígio nessa jamin, Helena Greco, Lícia Peres, Teotônio
coisa” (GASPARI, 2003, p. 387). Vilela, Paulo Fonteles e muitos outros.
De acordo com a Comissão Especial O movimento pela anistia no Brasil
sobre Mortos e Desaparecidos, “cerca de pode ser dividido em três fases; a primeira
50 mil pessoas teriam sido detidas somente começa em 1975 com denúncias cautelosas
nos primeiros meses da ditadura, ao passo e dispersas dos abusos da ditadura como
que em torno de 10 mil cidadãos teriam vi- torturas, assassinatos e desaparecimentos
vido no exílio em algum momento do longo de presos pelos órgãos repressivos do Esta-
ciclo. Ao pesquisar os dados constantes do. Essas denúncias foram feitas pelos fami-
de 707 processos políticos formados pela liares de mortos e desaparecidos políticos e
Justiça Militar entre 1964 e 1979, o projeto impulsionadas por D. Paulo Evaristo Arns a
Brasil Nunca Mais contou 7.367 acusados partir da Cúria Metropolitana de São Paulo.
judicialmente e 10.034 atingidos na fase de Nessa fase surge também o Movimento Fe-
inquérito. Houve quatro condenações à minino pela Anistia e o jornal Brasil Mulher,
pena de morte, não consumadas; 130 pes- que pretende “ser uma espécie de porta voz
soas foram banidas do País; 4.862 tiveram do movimento da anistia” de acordo com
cassados os seus mandatos e direitos polí- Leite (2009, p. 118). Na segunda fase, que
ticos; 6.592 militares foram punidos, pelo começa em 1977, o movimento ultrapassa
menos 245 estudantes foram expulsos da o marco de uma luta local de mulheres e da
universidade” (BRASIL, 2007, p. 30). Igreja Católica, alcançando expressão nacio-
De acordo com os documentos que in- nal com a organização dos Comitês Brasilei-
formam o processo no Caso Gomes Lund, ros pela Anistia (CBAs). Do ponto de vista
cerca de 20 mil presos foram submetidos a qualitativo, o movimento transformou-se
torturas, há 354 mortos e desaparecidos e numa “imensa frente ampla de luta pelas
centenas de camponeses foram assassina- liberdades democráticas, agregando no seu
dos (CORTE..., 2010). Além disso, segundo interior forças políticas com princípios polí-
Helio Gaspari (2003, p. 358), “a ditadura ticos, ideológicos e filosóficos conflitantes”
brasileira levou para o exílio entre 2.500 e (LEITE, 2009, p. 119). A terceira fase, de
3.000 brasileiros”. acordo com a mesma autora, inicia-se com
a promulgação da Lei de Anistia em agosto
1.2. A mobilização pela anistia de 1979 e abrange polêmicas em torno da
A Lei de Anistia foi o ápice de um pro- reparação indenizatória, reivindicada por
cesso de mobilização política que começou acusados de tortura; a discussão sobre a
em meados dos anos setenta (LIMA; SILVA, lei do sigilo, que impede a abertura dos
2009), formado por militantes dos Direitos arquivos da ditadura até hoje, e a discussão
Humanos, ex-presos políticos, exilados, em torno à anistia por crimes conexos (aos
cassados, militantes de partidos demo- crimes políticos anistiados) praticados por
cráticos, do movimento estudantil, etc., autoridades ou representantes do Estado
os quais se organizaram em movimentos brasileiro contra perseguidos políticos
sociais e associações civis destacando-se o (LEITE, 2009, p. 118-119).
Movimento Feminino pela Anistia (MFPA)
1.3. Características e consequências
e o Comitê Brasileiro pela Anistia, com
várias unidades estaduais, os quais foram Em 28 de agosto de 1979, o Congresso
ganhando apoio de diversas entidades da Nacional aprovou a Lei no 6.683/79 que
sociedade civil organizada. Nessa luta se concedeu Anistia nestes termos:
destacaram figuras como Terezinha Zerbi- “Art. 1o É concedida anistia a todos
ni, Mila Cauduro, Eny Raimundo Moreira, quantos, no período compreendido
Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 25
entre 02 de setembro de 1961 e 15 de cultura e pela civilização”. Mais adiante
agosto de 1979, cometeram crimes no mesmo documento, igualava a anistia
políticos ou conexos com estes, cri- à paz nestes termos: “A Anistia é a paci-
mes eleitorais, aos que tiveram seus ficação da família brasileira, para que não
direitos políticos suspensos e aos haja vencidos nem vencedores, para que
servidores da Administração Direta a fraternidade una todos os brasileiros. A
e Indireta, de Fundações vinculadas Anistia é grande conquista do Estado de
ao Poder Público, aos servidores dos Direito. Anistia é a Paz”. E conclui enfati-
Poderes Legislativo e Judiciário, aos camente com uma citação do Programa do
Militares e aos dirigentes e repre- MDB: “ O Movimento Democrático Brasi-
sentantes sindicais, punidos com leiro prosseguirá na sua luta pela Anistia
fundamento em Atos Institucionais ampla e total a favor de todos os civis e
e Complementares. militares atingidos pelos atos de exceção
§ 1o – Consideram-se conexos, para e pelo arbítrio, praticados a partir de abril
efeitos deste artigo, os crimes de de 1964” (MOVIMENTO..., 1978, p. 26,27).
qualquer natureza relacionados com Concretamente, entretanto, passados
crimes políticos ou praticados por mais de trinta anos, ainda não se conhecem
motivação política.” os autores materiais nem intelectuais dos
Embora considerada restrita por setores desaparecimentos forçados, nem das suas
da opinião pública porque excluiu muitos execuções, muito embora a Lei no 9.140/95
dos presos políticos existentes na época, “a tenha reconhecido como mortas as pessoas
Lei de Anistia teve papel positivo na criação desaparecidas no período compreendido
do clima de abertura que se consolidaria entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto
no País no transcurso da década de 1980” de 1979. O Estado não investigou nem
(BRASIL, 2007, p. 30). Com efeito, ela per- puniu essas graves violações de Direitos
mitiu a milhares de brasileiros voltar, entre Humanos em virtude da aplicação da Lei
outros: o ex-governador do Rio Grande do de Anistia a todos esses casos.
Sul e do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, (em A Lei de Anistia suscita discussões no
6 de outubro); o ex-governador de Pernam- plano interno, em que o Supremo Tribu-
buco Miguel Arraes, o ex-deputado federal nal Federal a declarou válida3, e no plano
Márcio Moreira Alves (em 15 de outubro); internacional, no qual a Corte Interameri-
os dirigentes comunistas Luis Tenório de cana de Direitos Humanos declarou por
Lima (em 29 de setembro), Gregório Bezer- unanimidade que essa Lei é incompatível
ra (em 29 de outubro) e Luiz Carlos Prestes com a Convenção Americana sobre Direitos
(em 9 de dezembro). Humanos. Qual dessas leituras e interpre-
Para o MDB, o (único) partido de tações deve prevalecer?
oposição (tolerado) na época da ditadu-
ra, a anistia significava esquecimento e 2. A validade da Lei de Anistia de acordo
reconciliação. Com efeito, no documento com o Supremo Tribunal Federal
desse partido intitulado “Constituinte com
Anistia” lemos: “Anistia é como amnésia, Em 29 de abril de 2010, o Supremo
palavra da mesma origem, quer dizer es- Tribunal Federal declarou improcedente,
quecimento, não se lembrar, como se coisas 3
Em 29 de Abril de 2010, ao julgar a Arguição
que aconteceram realmente não existiram. de Descumprimento Fundamental (ADPF) no 153,
É um atributo exclusivo do homem, na sua proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, que pretendia excluir da Lei
capacidade de julgar e decidir. Este atributo
o perdão outorgado aos agentes do Estado que co-
se aperfeiçoa, na escala individual, pela meteram crimes contra opositores políticos durante
educação e, na escala política e social, pela a ditadura militar.

26 Revista de Informação Legislativa


por sete votos a dois4, a Arguição de Des- respaldo da opinião pública interna-
cumprimento de Preceito Fundamental cional, uniu os ‘culpados de sempre’
(ADPF – 153) promovida pelo Conselho Fe- a todos os que eram capazes de sentir
deral da Ordem dos Advogados do Brasil. e pensar as liberdades e a democracia
Objetivava o arguente a declaração de não e revelou figuras notáveis como a
recebimento, pela Constituição brasileira de do bravo senador Teotônio Vilela; a
1988, do disposto no § 1o do artigo 1o da Lei luta encetada inicialmente por oito
de Anistia (no 6.683/79). Isto é, declaração mulheres reunidas em torno de Tere-
de que a anistia concedida por essa lei não zinha Zerbini, o que resultou no CBA
se estende aos crimes comuns como tortura, (Comitê Brasileiro pela Anistia); pe-
homicídio, desaparecimento forçado, abuso los autênticos do MDB, pela própria
de autoridade, lesões corporais, estupro e OAB, pela ABI (à frente Barbosa Lima
atentado violento ao pudor, praticados pe- Sobrinho), pelo IAB, pelos sindicatos
los agentes da repressão, contra opositores e confederações de trabalhadores e
políticos, durante o regime militar. até por alguns dos que apoiaram o
movimento militar como o general
2.1. O momento histórico como chave Peri Bevilácqua – é expressiva da
para a sua interpretação página mais vibrante de resistência
A linha mestra do voto do Relator Mi- e atividade democrática da nossa
nistro Eros Grau é o contexto histórico em História.”6
que a lei surgiu. Nesse diapasão citou o A seguir, no seu voto, o Ministro Eros
Min. Orosimbo Nonato (Habeas Corpus no Grau cita o jurista Dalmo Dallari, paladino
29.151, Relator Ministro Laudo de Camar- da restauração democrática que afirma:
go, setembro de 1945): “[c]abe ao intérprete, “Nós sabíamos que seria inevitável
na aplicação da lei, verificar-lhe a finali- aceitar limitações e admitir que cri-
dade, a mens legis atendendo ao momento minosos participantes do governo
histórico em que ela surgiu, e ao escopo a ou protegidos por ele escapassem da
que visa, sem se deixar agrilhoar dema- punição que mereciam por justiça,
siadamente à sua literalidade”5. Por isso, mas considerávamos conveniente
destaca o contexto econômico e a situação aceitar essa distorção, pelo benefício
política brasileira no final dos anos setenta que resultaria aos perseguidos e às
que explicam o acordo político que gerou suas famílias (...) De início, procurou-
a Lei de Anistia: -se limitar a anistia aos perseguidos
“Toda a gente que conhece a nossa políticos, dizendo-se que não deve-
História sabe que esse acordo político riam ser anistiados os que tivessem
existiu, resultando no texto da Lei n. cometidos ‘crimes de sangue’. Isso
6.683/79 (...) A inflexão do regime, [a foi, afinal, sintetizado numa enu-
ruptura da aliança entre os militares meração de crimes que não seriam
e a burguesia] deu-se com a crise do anistiados, compreendendo, segundo
petróleo de 1974, mas a formidável a lei da anistia, os que tivessem sido
luta pela anistia – luta que, com o condenados ‘pela prática de crimes
de terrorismo, assalto, seqüestro e
4
Vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski, atentado pessoal’. Em sentido opos-
que lhe dava parcial provimento nos termos de seu
to, beneficiando os que abusando de
voto, e Ayres Britto, que a julgava parcialmente pro-
cedente para excluir da anistia os crimes previstos no uma função pública tivessem cometi-
artigo 5o, inciso XLIII, da Constituição.
5
Voto do Ministro Eros Grau na ADPF 153, pa- 6
Voto do Ministro Eros Grau na ADPF 153, pa-
rágrafo 36. rágrafo 21.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 27


do crimes. Foram abrangidos os que samos discernir o significado da ex-
tivessem cometido crimes políticos pressão crimes conexos na Lei no 6.683.
ou ‘conexos’ com esses. Assim, aquele É da anistia de então que estamos a
que matou alguém numa sessão de cogitar, não da anistia tal e qual uns
tortura estaria anistiado porque seu e outros hoje a concebem, senão qual
principal objetivo era combater um foi na época conquistada.”9
adversário político. O homicídio seria Na sua linha argumentativa afirma
apenas conexo de outro crime, a ação que a Lei de Anistia é uma lei-medida
arbitrária por motivos políticos, que (massnahmegesetze), não uma regra para o
seria o principal. Assim se chegou futuro, dotada de generalidade e abstração,
à Lei da Anistia” (DALLARI, 2006). mas um comando concreto (ato adminis-
trativo) trazendo em si mesmo o resultado
2.2 O significado da expressão crimes específico pretendido. Esse tipo de lei “há
conexos na Lei de Anistia de ser interpretada a partir da realidade
Dessa forma o Ministro Eros Grau in- no momento em que foi conquistada. Para
terpreta a Lei de Anistia, principalmente quem não viveu as jornadas que a antece-
o parágrafo primeiro do art. 1o que se deram ou, não as tendo vivido, não conhece
refere aos crimes conexos a crimes políticos a História (...) a Lei no 6.683/79 é como se
no contexto histórico da discussão, for- não fosse, como se não houvesse sido”10.
mulação, aprovação e sanção da lei. Nas
2.3 Interpretação e revisão da Lei da Anistia
suas palavras: “A chamada Lei de anistia
diz com uma conexão sui generis, própria Frustrando as esperanças dos signa-
ao momento histórico da transição para a tários da petição inicial, o Ministro Eros
democracia”7. Dessa maneira, para ele, a Grau, justificando o seu voto, afirmou que
Lei de Anistia foi bilateral favorecendo de o “Poder Judiciário não está autorizado a
um lado as pessoas que cometeram crimes alterar, a dar outra redação diversa da nele
políticos e de outro aos agentes do Estado contemplada, a texto normativo”11.
que cometeram crimes ditos conexos, isto é, Não se pedia na inicial que o Supremo
crimes de qualquer natureza relacionados Tribunal Federal adotasse as prerrogativas
com crimes políticos ou praticados por do Legislativo, muito embora de modo
motivação política. Citando vários julgados próprio em outras ocasiões o tenha feito12.
do Supremo Tribunal Federal, ressaltou o
caráter amplo das anistias concedidas no 9
Voto do Ministro Eros Grau na ADPF 153, pa-
Brasil desde 1900 até hoje. Nesse sentido rágrafo 39.
10
Voto do Ministro Eros Grau na ADPF 153,
argumenta: “em tema de anistia, a inter- parágrafo 39.
pretação tem de ser ampla e generosa, sob 11
Voto do Ministro Eros Grau na ADPF 153,
pena de frustrar seus propósitos político- parágrafo 44.
-jurídicos”8.
12
Por exemplo, na Ação Direta de Inconstituciona-
lidade por Omissão que suscitou a questão da união de
Seguindo essa linha de pensamento, o pessoas do mesmo sexo, muito embora o Poder Cons-
Ministro sublinha: tituinte não lhe tenha outorgado tal competência (vide
“É a realidade social da migração da o art. 103, § 2o, da Constituição Federal), os Ministros
ditadura para a democracia política, do Supremo agasalharam um tipo de união não pre-
visto na Constituição brasileira. Agiram como Poder
da transição conciliada de 1979 que Legislativo, deixaram de ser guardiões da Constituição
há de ser ponderada para que pos- e se transformaram em Poder Constituinte derivado.
Outro exemplo é a recente decisão do STF de que
7
Voto do Ministro Eros Grau na ADPF 153, pa- fixará as regras sobre o aviso prévio proporcional ao
rágrafo 28. tempo de serviço prestado pelo trabalhador, uma vez
8
Voto do Ministro Eros Grau na ADPF 153, pa- que o inciso XXI do art. 7o da Constituição ainda não
rágrafo 32. foi regulamentado pelo Legislativo.

28 Revista de Informação Legislativa


Solicitava-se apenas que, de acordo com os (GRAU, 2009, p. 86) os insignes intérpretes
princípios da ordem democrática vigente utilizam a iniquidade “patente” e “jamais
no Brasil, o Supremo Tribunal Federal corrigida” para servir de fundamento a
interpretasse a Lei no 6.683/79 no sentido outra iniqüidade maior.
de que a anistia não se estendesse aos cri- Esses fatos nos colocam frente à per-
mes comuns praticados pelos agentes da turbadora constatação do jurista francês
repressão durante a ditadura militar. Para- Jacques Ellul (1990) de que o valor justiça
doxalmente, a maioria da Suprema Corte na nossa sociedade técnica é concebida
brasileira, presa ao passado, não deu esse não mais como uma exigência premente
passo salutar e condizente com os novos de nosso dia a dia aplicável aos problemas
tempos. Fundado nos exemplos da Ar- individuais, mas ela se transformou apenas
gentina, do Chile e do Uruguai, o Ministro em uma ideia, uma noção abstrata da qual
Eros Grau declarou, no voto vencedor, que é mais fácil se desfazer, nas suas próprias
a “revisão da lei de anistia, se mudanças de palavras:
tempo e da sociedade a impuserem, haverá “Cependant les hommes du droit
de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo ont des scrupules et ne peuvent sans
Poder Judiciário”13. mauvaise conscience éliminer la
Mais preocupado com a afirmação da justice du droit. Ils ne peuvent pas
governabilidade, estabilidade social, or- davantage la conserver à cause du
dem, segurança ou valores semelhantes, trouble que cette idée apporte, de son
de fato, o Supremo Tribunal Federal para- incertitude et de son imprévisibilité.
doxalmente abdicou do valor justiça. No La technique juridique pour être pre-
voto acolhido pela maioria, o Ministro Eros cise suppose que l’on ne s’encombre
Grau justifica a sua negativa em dar outra plus de la justice [...] l’idée d’ordre
interpretação à Lei de Anistia mencionando et de securité se substitue comme
votos do ex-Ministro Sepúlveda Pertence14 but et fondement du droit à celle de
“a propósito da não abrangência, pela justice lorsque la technique juridique
anistia, dos praças expulsos dos quadros est assez développée” (ELLUL, 1990,
militares por motivação política apenas p. 267-268).
porque, não sendo titulares de estabilidade, Ensina Luis Recasens Siches (1970, p.
a punição não precisava fundar-se em atos 653) que é tarefa do juiz “anticipar mental-
de exceção; bastava, para tanto, a legislação mente los efectos que la aplicación de una
disciplinar, a iniqüidade patente, jamais norma jurídica produciria”. Salta aos olhos
foi corrigida”15. Ora em lugar de denun- que, no caso em tela, do ponto de vista
ciar essas iniquidades para superá-las ou axiológico, as consequências da aplicação
corrigi-las a partir de uma nova leitura das do parágrafo em questão da Lei de Anistia
normas em questão porque “as normas não se coadunam com os valores do Estado
resultam da interpretação e podemos di- Democrático de Direito vigente no Brasil:
zer que elas, enquanto textos, enunciados, Primeiro porque acobertam-se crimes
disposições, não dizem nada: elas dizem o comuns como tortura, estupro, sequestro e
que os intérpretes dizem que elas dizem” desaparecimento forçado de pessoas;
Segundo porque a Constituição de 88
13
Voto do Ministro Eros Grau na ADPF 153, declara que ninguém será submetido a
parágrafo 47. tortura nem a tratamento desumano ou
14
No RE no 125.641, Relator Min. Celso de Mello, degradante;
em 1991 e na Ação Originária no 13, Relator Ministro
Marco Aurélio, em 1992.
Terceiro porque a Constituição de 88,
15
Voto do Ministro Eros Grau na ADPF 153, muito embora a pretendida recepção da
parágrafo 44. Lei de Anistia (Lei no 6.683/79) pela EC no

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 29


26/85, considera a prática de tortura crime tancia a ruptura da ordem constitucional
inafiançável e insuscetível de graça ou anis- que decairá plenamente no advento da
tia por ela respondendo os mandantes, os Constituição de 5 de outubro de 1988. Con-
executores e os que, podendo evitá-los, se substancia, nesse sentido, a revolução branca
omitirem (art. 5o, XLIII); que a esta confere legitimidade. Daí que a
Quarto porque a impunidade desses cri- reafirmação da anistia da lei de 1979 já não
mes comuns ofende um dos fundamentos pertence à ordem decaída. Está integrada à
do Estado Democrático que é a dignidade nova ordem. Compõe-se na origem da nova
da pessoa humana (art. 1o, III), sinalizando norma fundamental”16.
para a sociedade que os Direitos Humanos Entretanto, como é sobejamente co-
podem ser violados pelos agentes esta- nhecido no Brasil, houve uma transição
tais sem nenhuma consequência para os negociada à democracia e nesses proces-
transgressores nem no âmbito civil, nem sos há sempre, por parte dos integrantes
na esfera administrativa e, menos ainda, do antigo regime, enormes esforços para
no âmbito penal; viola ademais o direito garantir a impunidade de seus agentes e,
fundamental dos parentes e famílias das nesse sentido, deve ser lida a inclusão no
pessoas desaparecidas à informação (ver- bojo da Emenda Constitucional no 26/85
dade do acontecido) e à memória (saberem de um assunto que nada tinha a ver com
onde se encontram os restos e o direito de a convocação da Assembleia Nacional
recobrá-los para dar-lhes humana sepultu- Constituinte, que era o objetivo principal
ra de acordo com as suas crenças); e dessa emenda.
Quinto porque a validade do art. 1o, § Por outro lado, muito embora houves-
1 , da Lei de Anistia é incompatível com
o se esforços para trazer a anistia ao manto
os compromissos assumidos pelo Brasil protetor da Constituição cidadã de 1988,
em tratados internacionais, como veremos isso está longe de ficar demonstrado, por-
mais adiante. que a citação do Professor Tercio Sampaio
Ferraz Júnior no voto vencedor está fora
2.4. A reafirmação da Lei da Anistia de contexto. Com efeito, o afamado jurista
pela Emenda Constitucional no 26/85 da Universidade de São Paulo coloca a
Com base na Emenda Constitucional no Emenda Constitucional no 26/85 como um
26 de 27 de novembro de 1985, o Ministro exemplo de troca de funcionamento do sis-
Eros Grau legitima a Lei de Anistia porque tema, não está analisando (e seria injusto
essa emenda inauguraria um novo sistema induzir ou deduzir de suas palavras o que
normativo, e, seguindo Tércio Sampaio Fer- ele não disse) a questão da anistia, muito
raz Júnior, estabelece uma ponte com base menos a de que crimes comuns praticados
no Direito Positivo entre o regime político pelos agentes da repressão, na ditadura
de exceção que morre e o democrático que militar, coadunam-se com o espírito da
nasce nos seguintes termos: “(...) quando o Constituição de 1988 (FERRAZ JÚNIOR,
Congresso Nacional promulga uma emen- 1996, p. 193-196). O que Ferraz Júnior (1996,
da (no 26) conforme os artigos 47 e 48 da p. 193) está discutindo é a questão das
Constituição 67/69, emenda que altera os mudanças de padrão de funcionamento
próprios artigos, não é a norma dos artigos de um dado ordenamento jurídico, “essa
47 e 48 que está sendo utilizada, mas uma mudança de padrão é dinâmica: o sistema
outra, pois o poder constituído já assumiu vai de um padrão a outro, volta ao padrão
o papel de constituinte”. anterior, adquire um novo, num processo
De sorte que, para o eminente ministro, de câmbios estruturais, cuja velocidade
a Emenda Constitucional no 26/85 inaugura 16
Voto do Ministro Eros Grau na ADPF 153,
a nova ordem constitucional, “consubs- parágrafo 55.

30 Revista de Informação Legislativa


depende da flexibilidade de suas regras de mento final de improcedência da ação, a
calibração”. No caso em tela, a mudança saber: o reconhecimento da necessidade do
havida do regime ditatorial para o regime “desembaraço dos mecanismos que ainda
democrático, vista do ângulo pragmático dificultam o conhecimento de quanto ocor-
analisado por Ferraz Júnior (1996, p. 196), reu entre nós durante as décadas sombrias”
implica que “a revolução só ocorre se, com e uma condenação de “todas as formas de
a mudança da constituição, mudar também tortura, de ontem e de hoje, civis e militares,
a calibração do sistema”. Ora, é inegável policiais ou delinqüentes”. Dá a impressão
que, no caso brasileiro, o sistema norma- de que, depois de fazer um fantástico es-
tivo jurídico mudou inúmeras regras de forço em lógica argumentativa em prol da
calibração a começar pela incorporação do afirmação de razões de Estado, o eminente
princípio da dignidade da pessoa humana, Ministro admitisse que no fundo: a huma-
pela instituição do Estado Democrático e nidade do pedido que ele vem rejeitar e a
pela supressão dos valores da Doutrina da justiça da causa pleiteada historicamente
Segurança Nacional e da Política de Segu- acabarão se impondo. Assim as observa-
rança Nacional e de todo o denominado ções finais acabam sendo como o final de
“entulho autoritário”. uma sentença procedente ainda não escrita
Assim sendo, houve revolução porque ou um convite a que os familiares das víti-
houve a mudança do padrão do regime de mas e a própria sociedade civil continuem
exceção por um outro, a saber: o regime a buscar a justiça ora denegada.
democrático de direito. Nas palavras de Há também um excerto de um poema
Miguel Reale ao falar sobre a revolução: do insigne poeta uruguaio Mario Benedetti.
“não há revolução propriamente dita sem Não fica claro qual o objetivo do Ministro
alteração no sistema de Direito Público Eros Grau ao citar esse poema, mas há uma
sem a instauração de uma ordem nova com completa falta de coerência entre os seus
mudança correspondente na atitude espiritual pensamentos que afirmam a improcedência
do povo” (REALE, 1972, p. 137, grifo nosso). da ação e os seus solidários sentimentos
De qualquer forma, já foi dito pelos com o sofrimento das vítimas que exige
antigos que “a letra mata e o espírito por justiça o deferimento da petição, uma
vivifica”17. Cabia então ao Supremo Tribu- vez que as feridas da tortura e o suplício
nal Federal insuflar novo espírito à Lei de que denuncia o homem preso e que fazem
Anistia (principalmente ao art. 1o, §1o, da chorar seu filho implicam a existência de
Lei no 6.683/79), deixando de lado ou fora um torturador que continua impune [talvez
dela aspectos ranços, já superados, que em virtude de alguma lei de anistia] para
tinham justificativa na vigência do regime vergonha dos intérpretes da lei.
ditatorial (porém não agora) ou dar-lhe Eis aqui o inteiro teor do poema citado:
interpretação conforme a Constituição ci- “Hombre preso que mira a su hijo
dadã. O Supremo Tribunal Federal não o Cuando era como vos me enseñaron los viejos
fez, perdendo essa oportunidade histórica. y también las maestras bondadosas y miopes
que libertad o muerte era una redundancia
2.5. Os obstáculos ao exercício do direito a quién se le ocurría en un país
fundamental à informação donde los presidentes andaban sin capangas
que la patria o la tumba era otro pleonasmo
Por último, nas observações finais
ya que la patria funcionaba bien
do voto vencedor18, há duas declarações en las canchas y en los pastoreos
louváveis, porém incoerentes com o julga-
17
Epístola de S. Paulo aos Coríntios 3:6. realmente botija no sabian un corno
18
Voto do Ministro Eros Grau na ADPF 153, pobrecitos creían que libertad
parágrafos 59 e 60. era tan sólo una palabra aguda

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 31


que muerte era tan sólo grave o llana que tu viejo calló
y cárceles por suerte una palabra esdrújula o puteó como un loco
que es una linda forma de callar
olvidaban poner el acento en el hombre
que tu viejo olvidó todos los números
la culpa no era exactamente de ellos (por eso no podría ayudarte en las tablas)
sino de otros más duros y siniestros y por lo tanto olvidé todos los teléfonos
y éstos sí
cómo nos ensartaron y las calles y el color de los ojos
con la limpia república verbal y los cabellos y las cicatrices
cómo idealizaron y en qué esquina
la vidurria de vacas y estancieros en qué bar
en qué parada
y cómo nos vendieron un ejército en qué casa
que tomaba su mate en los cuarteles y acordarme de ti
de tu carita
uno no siempre hace lo que quiere lo ayudaba a callar
uno no siempre puede una cosa es morirse de dolor
por eso estoy aquí y otra cosa es morirse de verguenza
mirándote y echándote
de menos por eso ahora
me podés preguntar
por eso es que no puedo despeinarte el jopo y sobre todo
ni ayudarte con la tabla del nueve puedo yo responder
ni acribillarte a pelotazos
uno no siempre hace lo que quiere
vos sabés que tuve que elegir otros juegos pero tiene el derecho de no hacer
y que los jugué en serio lo que no quiere

y jugué por ejemplo a los ladrones llorá nomás botija


y los ladrones eran policías son macanas
que los hombres no lloran
y jugué por ejemplo a la escondida aquí lloramos todos
y si te descubrían te mataban
y jugué a la mancha gritamos berreamos moqueamos chillamos
y era de sangre maldecimos
porque es mejor llorar que traicionar
botija aunque tengas pocos años porque es mejor llorar que traicionarse
creo que hay que decirte la verdad
para que no la olvides llorá
pero no olvides.”
por eso no te oculto que me dieron picana
que casi me revientan los riñones
3. As razões dos votos vencidos
todas estas llagas hinchazones y heridas A Coordenação Geral de Direito Inter-
que tus ojos redondos nacional da Consultoria Jurídica do Minis-
miran hipnotizados tério das Relações Exteriores emitiu uma
son durísimos golpes
nota técnica19 na qual destaca a existência
son botas en la cara
demasiado dolor para que te lo oculte de duas correntes de doutrinadores opinan-
demasiado suplicio para que se me borre 19
Nota técnica CONJUR/CGDI/2008, de autoria
de Álvaro Chagas Castelo Branco, Advogado Geral
pero también es bueno que conozcas da União, datada de 10/11/2008.

32 Revista de Informação Legislativa


do sobre a conveniência ou não de julgar Todavia, pela experiência histórica,
os responsáveis pelas violações de Direitos observa-se exatamente o oposto: os acu-
Humanos na fase de transição ou de conso- sados por práticas de crimes contra os
lidação do Estado Democrático de Direito, Direitos Humanos, normalmente, não se
na história dos países que vivenciaram o arrependem do que fizeram. Ao contrário,
debate sobre a anistia por crimes políticos. jactam-se de que todos os seus atos, muitos
O referido documento indica que “há dos quais tipificados como crimes contra a
quem coloque o dilema entre ‘processar e humanidade23, simplesmente foram reali-
punir’ versus ‘perdoar e esquecer’”. Os pri- zados para o bem do país.
meiros são denominados “puristas” e os se- Ao analisar, por exemplo, a legislação
gundos, “pragmáticos”. Para os “puristas”, de anistia do Chile, particularmente o De-
“a estabilidade e a reconciliação são uma creto Lei no 2.191/1978, a nota técnica da
conseqüência do estabelecimento da justiça e Coordenação Geral de Direito Internacional
do primado da lei”. Para os “pragmáticos”, da Consultoria Jurídica do Ministério das
“a estabilidade e a reconciliação são uma Relações Exteriores observa que o referido
condição da restauração do primado da lei.”20
No mesmo sentido, são apresentados 23
De acordo com o artigo 7o do Estatuto do Tribu-
nal Penal Internacional, os crimes contra a humanidade
outros argumentos favoráveis e contra os são “qualquer um dos atos seguintes, quando cometido
julgamentos daqueles indiciados por vio- no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático,
lações contra os Direitos Humanos. Por um contra qualquer população civil, havendo conheci-
lado, os “puristas” defendem que se trata mento desse ataque: a) Homicídio; b) Extermínio; c)
Escravidão; d) Deportação ou transferência forçada de
de “uma obrigação devida às vítimas” e que uma população; e) Prisão ou outra forma de privação da
“deve ser feita para prevenir futuras vio- liberdade física grave, em violação das normas fundamentais
lações” exercendo, nesse sentido, a função de direito internacional; f) Tortura; g) Agressão sexual,
“pedagógica” de “prestação pública de con- escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada,
esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência
tas, que constitui um elemento-chave das no campo sexual de gravidade comparável; h) Perseguição
sociedades democráticas”. Por outro lado, de um grupo ou coletividade que possa ser identifi-
os “pragmáticos” alegam que “as divisões cado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos,
do passado devem acabar, a compreensão culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido
no parágrafo 3o, ou em função de outros critérios
entre grupos diferentes é importante para universalmente reconhecidos como inaceitáveis no
a democracia” e, ainda, que “os crimes do direito internacional, relacionados com qualquer ato
anterior poder tinham apoio público, ou referido nesse parágrafo ou com qualquer crime da
foram realizados por razões superiores competência do Tribunal; i) Desaparecimento forçado de
pessoas; j) Crime de apartheid; k) Outros atos desumanos
para limitar males maiores”21 de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande
A nota técnica argumenta que “o perdão sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou
não constitui um ato gratuito e isolado, mas a saúde física ou mental”. Para o mesmo Estatuto, por
antes parte de um processo de restauração “’tortura’ entende-se o ato por meio do qual uma
dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são
de uma ordem moral em que o acusado intencionalmente causados a uma pessoa que esteja
admita os seus atos, que a verdade seja sob a custódia ou o controle do acusado; esse termo
revelada, que foi errado o que fez, que não não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes
voltará a fazê-lo, compensando os prejuízos unicamente de sanções legais, inerentes a essas san-
ções ou por elas ocasionadas”; por “‘desaparecimento
que provocou.”22 forçado’ de pessoas entende-se a detenção, a prisão
ou o seqüestro de pessoas por um Estado ou uma or-
20
Nota técnica CONJUR/CGDI/2008, p. 210, ganização política ou com a autorização, o apoio ou a
parágrafos 16 e 17. concordância desses, seguidos de recusa a reconhecer
21
Nota técnica CONJUR/CGDI/2008, p. 210, tal estado de privação de liberdade ou a prestar qual-
parágrafos 18 e 19. quer informação sobre a situação ou localização dessas
22
Nota técnica CONJUR/CGDI/2008, p. 211, pessoas, com o propósito de lhes negar a proteção da lei
parágrafo 21. por um prolongado período de tempo” (grifo nosso).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 33


Decreto Lei “foi duramente criticado pela de producir efectos en el derecho
doutrina e pelos tribunais chilenos” e desta- chileno, en la medida que vulnera
ca a posição do jurista Humberto Nogueira abiertamente los artículos 2.1 y 14.1
Alcalá (2005), que defende a interpretação del Pacto Internacional de Derechos
daquele diploma legal em harmonia com o Civiles y Politicos, ya ratificado em
Direito Internacional: 1972 y la Declaración Americana de
“(...) su interpretación debe reali- Derechos y Deberes del Hombre,
zarse excluyendo los delitos de lesa articulo 18, además del derecho inter-
humanidad y las graves violaciones nacional consuetudinário y los princí-
del derecho internacional imperati- pios de ius cogens, que consideraban
vo ya que es dable presumir que el como delitos de lesa humanidad o
legislador no ha intentado derogar el crímenes contra la humanidad las
derecho internacional consuetudiná- desapariciones forzadas practicadas
rio y soslayar el derecho internacional como métodos represivos, las cuales
imperativo. En situación de eventual ya estaban prohibidas al momento
conflicto entre dicho decreto ley y las en que se dictó el Decreto Ley 2.191,
normas de ius cogens y derecho con- lo cual tiene mayor fuerza aún en
suetudinário internacional y derecho el presente, producto de la doctrina
convencional de los derechos huma- emanada de la jurisprudencia de la
nos, deben aplicarse preferentemente Corte Interamericana en aplicación
estas ultimas; por tanto, el decreto ley de los artículos 8 y 25 en armonía con
no es aplicable a los casos de tortura los artículos 1.1 y 2 de la Convención
(apremios ilegítimos), desapariciones Americana de Derechos Humanos,
forzadas (secuestro), ejecuciones su- en especial atendiendo a que los
marias u otros delitos de lesa humani- secuetros (desapariciones forzadas)
dad o crímenes contra la humanidad” constituyen delitos permanentes”
(NOGUEIRA ALCALÁ, 2005, p. 130). (NOGUEIRA ALCALÁ, 2005, p. 130).
Nesse sentido, conclui o professor chi- Portanto, nesses casos é inadmissível a
leno que: aplicação de autoanistia. Conforme indica
“(...) el Decreto Ley 2.191 de Amnistia a nota técnica da Coordenação Geral de Di-
fue establecido com deliberada mala reito Internacional da Consultoria Jurídica
fe y la voluntad de incumplir las obli- do Ministério das Relações Exteriores, ao
gaciones internacionales del Estado manifestar-se nos autos do caso “Barrios
de Chile, vale decir, com la voluntad Altos” (BARRIENTOS-PARRA, 2011, p.
de producir una autoamnistía de 383-410), do Perú, o então juiz da Corte
quienes dentro de una política estatal Interamericana de Direitos Humanos e
represiva del regímen militar habían atual membro da Corte Internacional de
desarrollado sistématicamente crí- Justiça, Cançado Trindade, enfatizou no
mines contra la humanidad o delitos seu voto que:
de lesa humanidad, como son las “(...) a pretendida legalidade no
desapariciones forzadas (secuetros), plano do direito interno dessas auto-
la tortura (apremios ilegítimos), las -anistias, ao levarem à impunidade e
ejecuciones sumarias, entre otros. En à injustiça, encontram-se em flagrante
tal caso, el Decreto Ley 2.191 está vi- incompatibilidade com a normativa
ciado de nulidad absoluta con efecto de proteção do Direito Internacional
retroactivo (ex tunc) o es, utilizando dos Direitos Humanos, acarretan-
una expresión castiza, ‘inezequible’, do violações de jure dos direitos da
vale decir, inejecutable, y no pue- pessoa humana, em uma afronta

34 Revista de Informação Legislativa


inadmissível à consciência jurídica da desses marcos temporais”26. Prossegue o
humanidade (pars. 5-6 e 26). Ou seja, Ministro salientando que “esses seqüestros
as leis de auto-anistia estão viciadas podem, em tese, ainda, subsistir. Portanto
de nulidade ex tunc, de nulidade ab estamos diante de um crime de caráter
initio, carecendo portanto de todo e permanente.”27
qualquer efeito jurídico.”24 O Ministro Lewandowski ratificou,
No caso da ADPF 153, os dois Ministros ainda, a manifestação da Subchefia para
do Supremo Tribunal Federal que tiveram Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Pre-
seus votos vencidos (Ministros Ricardo sidência da República, quando afirma que
Lewandowski e Ayres Brito) argumenta- “a Lei da Anistia, deliberadamente, não
ram na mesma linha da doutrina chilena trouxe a previsão de anistia aos agentes do
supracitada e mantiveram-se sintonizados Estado que praticaram crimes comuns con-
com a hermenêutica da Corte Interameri- tra os opositores do regime de exceção”28.
cana de Direitos Humanos. Na mesma linha, após arrolar os delitos
comuns praticados por agentes do Estado,
3.1. O voto do Ministro Lewandowski o voto alerta para o fato de que
No seu voto, o Ministro Ricardo Lewan- “a tipificação de tais delitos, na maio-
dowski alerta para o fato de que: ria dos casos, também estava reprodu-
“A ausência de ações penais contra zida, inclusive quanto às respectivas
os agentes do Estado pela prática de penas, nos Códigos Penais Militares
crimes comuns durante o período de 1944 e 1971, que vigoraram du-
estabelecido na Lei 6.683/1979, qual rante todo o regime de exceção, e aos
seja, entre 2 de setembro de 1961 e 15 quais se sujeitavam todos os militares
de agosto de 1979, está a revelar que e pessoas legalmente assemelhadas
se generalizou a impressão entre os a eles. O mesmo se diga quanto ao
operadores do Direito, de que a anis- delito de tortura. Embora este crime
tia teria abrangido todas as condutas tenha sido formalmente tipificado
delituosas praticadas naquele lapso apenas a partir da Lei 9.455/1977, a
temporal. Em outras palavras, ela sua prática, evidentemente, jamais foi
englobaria, genericamente, os vários tolerada pelo ordenamento jurídico
atores do cenário político de então, de republicano, mesmo aquele vigente
modo a abortar, ainda no nascedouro, no regime de exceção.”29
qualquer iniciativa de responsabi- Além disso, “os agentes estatais esta-
lidade criminal individualizada”.25 riam obrigados a respeitar os compromis-
Nesse sentido, o Ministro Lewandowski sos internacionais concernentes ao direito
recorda a Extradição 974, cujo acórdão humanitário, assumidos pelo Brasil desde
afirma que “o crime de seqüestro, possivel- o início do século passado.”30
mente seguido de homicídios, tem caráter Sublinhando a necessidade de o Brasil
permanente. Ou seja, o resultado delituoso respeitar os seus compromissos interna-
protrai-se no tempo, enquanto a vítima 26
Voto do Ministro Ricardo Lewandowski na
estiver privada de sua liberdade ou os seus
ADPF 153, página 6.
restos mortais não forem encontrados. Isso 27
Voto do Ministro Ricardo Lewandowski na
quer dizer que os respectivos prazos pres- ADPF 153, página 7.
cricionais somente começam a fluir a partir 28
Voto do Ministro Ricardo Lewandowski na
ADPF 153, página 9.
24
Nota técnica CONJUR/CGDI/2008, p. 216, pará- 29
Voto do Ministro Ricardo Lewandowski na
grafo 44. ADPF 153, página 19.
25
Voto do Ministro Ricardo Lewandowski na 30
Voto do Ministro Ricardo Lewandowski na
ADPF 153, página 5. ADPF 153, página 20.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 35


cionais, o Ministro Ricardo Lewandowski prisioneiros já rendidos; pessoas que
adverte que: jogavam de um avião em pleno vôo
“(...) a Corte Interamericana de Direi- as suas vítimas; pessoas que ligavam
tos Humanos afirmou que os Estados fios desencapados a tomadas elétricas
Partes da Convenção Americana e os prendiam à genitália feminina;
sobre Direitos Humanos – também pessoas que estupravam mulheres
internalizada pelo Brasil – têm o de- na presença dos pais, dos namorados,
ver de investigar, ajuizar e punir as dos maridos. Mas o Ministro Ricardo
violações graves aos direitos huma- Lewandowski deixou claro que certos
nos, obrigação que nasce a partir do crimes são pela sua própria natureza
momento da ratificação de seu texto, absolutamente incompatíveis com
conforme estabelece o seu artigo 1.1. qualquer idéia de criminalidade po-
A Corte Interamericana acrescentou, lítica pura ou por conexão33 (...) Essas
ainda, que o descumprimento dessa pessoas de quem estamos a tratar –
obrigação configura uma violação à torturadores et caterva – desobedece-
Convenção, gerando a responsabili- ram não só à legalidade democrática
dade internacional do Estado, em face de 1946, como à própria legalidade
da ação ou omissão de quaisquer de autoritária do regime militar. Pes-
seus poderes ou órgãos.”31 soas que transitaram à margem de
qualquer idéia de lei, desonrando as
3.2. O voto do Ministro Ayres Brito próprias Forças Armadas, que não
Por seu turno, o Ministro Ayres Brito, compactuavam nas suas leis com atos
como de hábito, inicia o seu voto na ADPF de selvageria, porque torturador não
153 com um poema da sua lavra: é um ideólogo.”34
“A humanidade não é o homem Na mesma perspectiva, o Ministro
para se dar a virtude do perdão. A Ayres Brito classifica o delito executado
humanidade tem o dever de odiar por agente do Estado como crime de lesa-
os seus ofensores, odiar seus ofenso- -humanidade, “praticado por antipessoa.
res, odiar seus ofensores, porque o Antipessoa que é pior do que um animal.
perdão coletivo é falta de memória e Isto é, além de não ser pessoa, é pior do que
de vergonha. Convite masoquístico à um animal, porque o animal não tortura.
reincidência.”32 Mas a lei que anistiar um monstro, que
Em seguida, o Ministro Ayres Brito, ao assim o diga. E me parece que a lei não o
interpretar a Lei de Anistia, assevera: disse”35.
“Antigamente se dizia o seguinte: Percebe-se, claramente, o alinhamento
hipocrisia é a homenagem que o dos argumentos elencados nos votos dos
vício presta à virtude. O vício tem Ministros Ricardo Lewandowski e Ayres
uma necessidade de se esconder, Brito na ADPF 153 com a sentença da
de se camuflar, e termina rendendo Corte Interamericana de Direitos Huma-
homenagens à virtude. Quem redigiu nos – CIDH no caso Gomes Lund e outros
essa lei não teve coragem – digamos (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, de 24
assim – de assumir essa propalada de novembro de 2010.
intenção de anistiar torturadores,
estupradores, assassinos frios de 33
Voto do Ministro Ayres Brito na ADPF 153,
páginas 4-5.
Voto do Ministro Ricardo Lewandowski na
31 34
Voto do Ministro Ayres Brito na ADPF 153,
ADPF 153, página 31. página 6.
32
Voto do Ministro Ayres Brito na ADPF 153, 35
Voto do Ministro Ayres Brito na ADPF 153,
página 2. página 9.

36 Revista de Informação Legislativa


Nesse caso, a CIDH reiterou que disposições legais que poderiam con-
“são inadmissíveis as disposições de trariá-lo, como são as que impedem
anistia, as disposições de prescrição a investigação de graves violações
e o estabelecimento de excludentes de direitos humanos, uma vez que
de responsabilidade, que pretendam conduzem à falta de proteção das
impedir a investigação e punição dos vítimas e à perpetuação da impuni-
responsáveis por graves violações dade, além de impedir que as vítimas
dos direitos humanos, como a tortura, e seus familiares conheçam a verdade
as execuções sumárias, extrajudiciais dos fatos” (CORTE..., 2010).
ou arbitrárias, e os desaparecimentos A sentença da CIDH adverte que, ve-
forçados, todas elas proibidas, por rificada a
violar direitos inderrogáveis reconhe- “sua manifesta incompatibilidade
cidos pelo Direito Internacional dos com a Convenção Americana, as dis-
Direitos Humanos” (CORTE..., 2010). posições da Lei de Anistia brasileira
Além disso, a Corte que impedem a investigação e sanção
“considera que a forma na qual foi in- de graves violações de direitos huma-
terpretada e aplicada a Lei de Anistia nos carecem de efeitos jurídicos. Em
aprovada pelo Brasil (supra pars. 87, consequência, não podem continuar
135 e 136) afetou o dever internacional a representar um obstáculo para a
do Estado de investigar e punir as gra- investigação dos fatos do presente
ves violações de direitos humanos, ao caso, nem para a identificação e pu-
impedir que os familiares das vítimas nição dos responsáveis, nem podem
no presente caso fossem ouvidos por ter igual ou similar impacto sobre
um juiz, conforme estabelece o artigo outros casos de graves violações de
8.1 da Convenção Americana, e violou direitos humanos consagrados na
o direito à proteção judicial consa- Convenção Americana ocorridos no
grado no artigo 25 do mesmo ins- Brasil” (CORTE..., 2010).
trumento, precisamente pela falta de A sentença da CIDH prossegue:
investigação, persecução, captura, jul- “Quanto à alegação das partes a res-
gamento e punição dos responsáveis peito de que se tratou de uma anis-
pelos fatos, descumprindo também tia, uma auto-anistia ou um ‘acordo
o artigo 1.1 da Convenção. Adicio- político’, a Corte observa, como se
nalmente, ao aplicar a Lei de Anistia, depreende do critério reiterado no
impedindo a investigação dos fatos e presente caso (supra par. 171), que
a identificação, julgamento e eventual a incompatibilidade em relação à
sanção dos possíveis responsáveis por Convenção inclui as anistias de gra-
violações continuadas e permanentes, ves violações de Direitos Humanos
como os desaparecimentos forçados, e não se restringe somente às deno-
o Estado descumpriu sua obrigação minadas ‘autoanistias’. Além disso,
de adequar seu direito interno, con- como foi destacado anteriormente,
sagrada no artigo 2 da Convenção o Tribunal, mais que ao processo de
Americana” (CORTE..., 2010). adoção e à autoridade que emitiu a
Assim, Lei de Anistia, se atém à sua ratio legis:
“uma vez ratificada a Convenção deixar impunes graves violações ao
Americana, corresponde ao Estado, direito internacional cometidas pelo
em conformidade com o artigo 2 regime militar. A incompatibilidade
desse instrumento, adotar todas as das leis de anistia com a Convenção
medidas para deixar sem efeito as Americana nos casos de graves viola-

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 37


ções de direitos humanos não deriva pelas autoridades jurisdicionais do
de uma questão formal, como sua Estado e que, pelo contrário, a decisão
origem, mas sim do aspecto material do Supremo Tribunal Federal con-
na medida em que violam direitos firmou a validade da interpretação
consagrados nos artigos 8 e 25, em da Lei de Anistia, sem considerar as
relação com os artigos 1.1. e 2 da obrigações internacionais do Brasil
Convenção” (CORTE..., 2010). derivadas do Direito Internacional,
O Poder Judiciário não está imune à particularmente aquelas estabeleci-
aplicação das normas internacionais. A das nos artigos 8 e 25 da Convenção
CIDH Americana, em relação com os artigos
“estabeleceu em sua jurisprudência 1.1 e 2 do mesmo instrumento. O Tri-
que é consciente de que as autori- bunal estima oportuno recordar que
dades internas estão sujeitas ao im- a obrigação de cumprir as obrigações
pério da lei e, por esse motivo, estão internacionais voluntariamente con-
obrigadas a aplicar as disposições vi- traídas corresponde a um princípio
gentes no ordenamento jurídico. No básico do direito sobre a responsa-
entanto, quando um Estado é Parte bilidade internacional dos Estados,
de um tratado internacional, como a respaldado pela jurisprudência
Convenção Americana, todos os seus internacional e nacional, segundo o
órgãos, inclusive seus juízes, também qual aqueles devem acatar suas obri-
estão submetidos àquele, o que os gações convencionais internacionais
obriga a zelar para que os efeitos das de boa-fé (pacta sunt servanda). Como
disposições da Convenção não se já salientou esta Corte e conforme
vejam enfraquecidos pela aplicação dispõe o artigo 27 da Convenção de
de normas contrárias a seu objeto e Viena sobre o Direito dos Tratados
finalidade, e que desde o início ca- de 1969, os Estados não podem, por
recem de efeitos jurídicos. O Poder razões de ordem interna, descumprir
Judiciário, nesse sentido, está inter- obrigações internacionais. As obri-
nacionalmente obrigado a exercer gações convencionais dos Estados
um ‘controle de convencionalidade’ Parte vinculam todos seus poderes
ex officio entre as normas internas e e órgãos, os quais devem garantir o
a Convenção Americana, evidente- cumprimento das disposições con-
mente no marco de suas respectivas vencionais e seus efeitos próprios
competências e das regulamentações (effet utile) no plano de seu direito
processuais correspondentes. Nessa interno” (CORTE..., 2010).
tarefa, o Poder Judiciário deve levar Portanto, o Brasil poderá ser respon-
em conta não somente o tratado, sabilizado internacionalmente pelo des-
mas também a interpretação que a cumprimento da sentença da CIDH. Resta,
ele conferiu a Corte Interamericana, finalmente, saber se o País estará preparado
intérprete última da Convenção para minimizar os impactos negativos
Americana” (CORTE..., 2010). na sua imagem e na sua reputação de
Finalmente, quanto ao descumpri- potência emergente frente à comunidade
mento, pelo STF, das suas obrigações internacional. O Brasil terá que avaliar as
internacionais, decorrentes da ratificação consequências políticas decorrentes dessa
pelo Brasil de tratados internacionais, a opção de não revogar a sua Lei de Anistia,
sentença é clara: sobretudo diante dos efeitos colaterais, ou
“o Tribunal observa que não foi exer- danos, eventualmente produzidos na sua
cido o controle de convencionalidade histórica campanha para a obtenção de

38 Revista de Informação Legislativa


um assento permanente no Conselho de internacional. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 100,
Segurança das Nações Unidas. n. 903, p. 383-410, jan. 2011.
______. O caso Fujimori: exemplo de superação da im-
punidade em América Latina. Revista Estudos Jurídicos
4. Conclusões UNESP, Franca, v. 14, n. 19, p. 199-213, 2010.
Da análise anterior concluímos que, em ______. O caso Pinochet e a universalização da luta
função da improcedência por sete votos pelos direitos humanos. Revista dos Tribunais, São
Paulo, v. 100, n. 763, p. 425-474, maio 1999.
a dois da Ação de Descumprimento de
Preceito Fundamental no 153, o Supremo BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
Tribunal Federal perdeu uma oportuni- Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos. Direito à memória e à verdade: Comissão
dade histórica no sentido de possibilitar o
Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
julgamento e a eventual condenação dos Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da
agentes do Estado amparados pela Lei de Presidência da República, 2007.
Anistia (Lei 6.683/79). Em consequência
CARVALHO, André Ricardo; MIALHE, Jorge Luís.
disso, todas as pessoas que cometeram Dicotomia entre império da técnica no e sobre o
crimes comuns relacionados com crimes direito e a busca da noção de justo no direito interno
políticos continuam impunes. e internacional. Revista de Estudos Jurídicos UNESP,
De acordo com a Corte Interamericana Franca, v. 22, p. 11-33, 2011.
de Direitos Humanos (2010) no julga- CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HU-
mento do caso Gomes Lund e outros, as MANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do
disposições da Lei de Anistia brasileira Araguaia”) vs Brasil: sentença de 24 de Novembro
de 2010. San Jose: Corte IDH, 2010. Disponível em:
que impedem a investigação e sanção de <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
graves violações de direitos humanos são seriec_219_por.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2011.
incompatíveis com a Convenção Ameri-
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cana dos Direitos Humanos, carecem de pública e privada: as mulheres na luta pela anistia.
efeitos jurídicos e não podem seguir repre- In: SILVA, Haike R. Kleber da. A luta pela anistia. São
sentando um obstáculo para a investigação Paulo: Unesp, 2009.
desses fatos. DALLARI, Dalmo. Depoimento prestado à Fundação
Ao confirmar a validade da Lei de Perseu Abramo. Fundação Perseu Abramo, São Paulo,
anistia sem considerar as obrigações inter- 23 abr. 2006. Disponível em: <www.fpabramo.org.
nacionais contraídas derivadas do Direito br/o-que-fazemos/memoria-e-historia/exposicoes-
Internacional, o Brasil emergente confirma -virtuais/dalmo-dallari>. Acesso em: 26 jan. 2012.
estudos do pensador francês Jacques Ellul ELLUL, Jacques. La technique ou l’enjeu du siècle. Paris:
(1990) de que, nas sociedades que atingiram Economica, 1990.
certo grau de evolução jurídica, a ideia de FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao es-
ordem e de segurança passa a ocupar o tudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São
lugar da justiça como fim e fundamento Paulo: Atlas, 2007.
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com a conivência estatal à luz do direito interno e A luta pela anistia: 30 anos. Campinas: Arquivo Edgard

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 39


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40 Revista de Informação Legislativa


Regulação dos Fundos Soberanos
O debate norte-americano

Leonel Cesarino Pessôa

Sumário
1. Introdução. 2. A nova atuação dos Fundos
Soberanos – FS. 3. Defesa da não regulação. 4.
Defesa de uma regulação branda. 5. Defesa de
uma regulação dura. 6. Considerações finais.

1. Introdução
Houve, nas últimas décadas, um gran-
de crescimento do Investimento Direto
no Exterior (IED). De acordo com dados
da UNCTAD, o fluxo de IED, que era, em
1982, da ordem de US$ 52 bilhões, atingiu,
em 2007, US$ 1,9 trilhão, o que fez com que
o saldo de IED acumulado, do início dos
anos 1980 até 2007, atingisse a impressio-
nante cifra de US$ 15,6 trilhões (UNITED
NATIONS, 2008, p. 15).
Parte desse investimento foi feito pelos
chamados Fundos Soberanos. Esses inves-
tidores não são novos. Eles existem desde
1953, quando foi criado o Fundo Soberano
do Kwait – KIA Kwait Investment Authority.
Outros tantos, como o ADIA – Abu Dhabi
Investment Authority –, o Temasek Holding,
de Singapura, e o Permanent Reserve Fund,
Leonel Cesarino Pessôa é Doutor em Direi- do Alasca, já existem há mais de 30 anos.
to pela USP, foi pesquisador visitante na New Atualmente, de acordo com dados do
School for Social Research (Nova York/EUA) e
Sovereign Wealth Fund Institute, há 54 Fun-
na Università Commerciale Luigi Bocconi (Milão/
Itália). Professor do programa de Mestrado e
dos Soberanos em 40 países. Em dezembro
Doutorado em Administração de Empresas de 2008, por meio da Lei no 11.887, também
da Universidade Nove de Julho. Juiz do TIT – o Brasil criou um Fundo Soberano, regu-
Tribunal de Impostos e Taxas e advogado em lamentado, em dezembro de 2009, pelo
São Paulo. Decreto 7.055.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 41


Recentemente, no entanto, os Fundos -se de discutir o fundo soberano como po-
Soberanos passaram a chamar a atenção do lítica pública, instituída com o objetivo de
meio acadêmico e do público em razão de apoiar a internacionalização das empresas
suas novas políticas de investimento: em brasileiras.
vez de comprar títulos do tesouro ameri- Se um dos objetivos do Fundo Soberano
cano, eles passaram a investir em ativos do Brasil é “fomentar projetos de interesse
com maior risco e retorno, tais como private estratégico do País localizados no exterior”
equities e participações em empresas. (Lei 11.887/08, artigo 1o), é importante que
O resultado dessa nova política foi as restrições aos investimentos dos Fundos
uma grande preocupação, na Europa, nos Soberanos sejam conhecidas e discutidas,
Estados Unidos e em outros países como de forma que o recém-criado Fundo Sobera-
a Austrália e o Canadá, sobre a regulação no do Brasil obtenha o maior êxito possível
desses Fundos. Também no Brasil, tramita, nas suas funções.
na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Por outro lado, pretende-se contribuir
3.581, de 2008, com o objetivo de limitar a para a discussão sobre a regulação dos
atuação dos Fundos Soberanos no território Fundos Soberanos com o objetivo de que
nacional. o Projeto de Lei 3.581, de autoria do De-
Se, por um lado, acredita-se que o fluxo putado Fernando Diniz, em tramitação no
de capital provindo dos Fundos Soberanos Congresso Nacional, seja analisado à luz de
seja benéfico para a economia dos países des- toda discussão que existe, hoje, no mundo,
tinatários do investimento, por outro lado, sobre a regulação dos Fundos Soberanos
teme-se que uma série de distorções possam para que os investimentos dos Fundos
resultar desses investimentos. Teme-se que Soberanos estrangeiros no Brasil sejam re-
seus objetivos possam não ser simplesmente gulados de forma que a economia brasileira
maximizar seus investimentos, mas atuar possa tirar deles o máximo proveito.
estrategicamente (controlando o acesso a O trabalho será dividido em cinco partes,
ativos estratégicos e estabelecendo ações que além desta introdução. Na primeira parte,
possam distorcer a formação de preços) em os Fundos Soberanos serão sucintamente
benefício de seu país de origem, com riscos introduzidos e será mostrada sua nova polí-
para o país destinatário do investimento. tica de investimentos. Na segunda, terceira e
O debate sobre a regulação dos Fundos quarta partes, serão apresentadas e analisa-
Soberanos ainda é incipiente no Brasil, das três visões diferentes sobre a regulação
mas já se desenvolve, há algum tempo, nos dos Fundos Soberanos: a proposta daqueles
Estados Unidos. O objetivo deste trabalho que defendem que não deve haver regula-
é descrever essa nova atuação dos Fundos ção alguma além das regras já existentes, a
Soberanos e apresentar o debate sobre sua proposta de regulação branda e as propostas
regulação, tal como ele se desenvolve no de regulação que procuram estabelecer re-
direito norte-americano. gras mais duras para esses Fundos. A sexta
O estudo do debate estadunidense sobre parte traz as considerações finais apontando
a regulação dos Fundos Soberanos justifica- algumas das vantagens e desvantagens de
-se por pelo menos duas razões. Por um cada tipo de regulação e sugerindo novos
lado, tendo em vista que a internacionaliza- tendo em vista o caso específico do Brasil.
ção das empresas nacionais pode contribuir
em muito para a dinamização da economia 2. A nova atuação dos Fundos
brasileira e que a continuidade dos níveis
Soberanos – FS
atuais de IED depende da qualidade das
políticas públicas associadas (COUTINHO; Hoje em dia, acredita-se que o IED
HIRATUKA; SABATINI, 2008, p. 83), trata- para fora e para dentro gera benefícios

42 Revista de Informação Legislativa


para sistemas econômicos crescentemente da ordem de US$ 2 a 3 trilhões em fevereiro
interdependentes. Parte desses investi- de 2008 (IMF, 2008, p. 6). Estima-se que
mentos pode ser e é, hoje em dia, feito por esse valor possa atingir US$ 13,4 trilhões
Fundos Soberanos. Uma das razões da em uma década (IMF, 2008, p. 6; LYONS,
importância do investimento direto estran- 2008, p. 179).
geiro, por exemplo, nos Estados Unidos, A inexatidão sobre os valores – que
é de ordem macroeconômica. O relatório é patente nos dados do FMI – reflete o
preparado, em junho de 2008, pelo Joint grau de transparência dos diversos Fun-
Committee on Taxation do Congresso, inti- dos Soberanos. Enquanto alguns, como
tulado Economic and U.S. Income Tax Issues o Government Pension Fund, da Noruega,
Raised by Sovereign Wealth Fund Investment são absolutamente transparentes, sobre
in the United States (JOINT COMMITTEE outros Fundos pouco se sabe. No texto do
ON TAXATION, 2008, p. 1), explicita essa FMI, estimativas sobre o ADIA – Abu Dhabi
importância. De acordo com o documento, Investment Authority – indicavam um valor
sempre que um país importa mais que ex- entre 250 e 875 bilhões de dólares.
porta, a moeda que seus residentes usam Até pouco tempo, os investimentos
para importar deve retornar ao país, seja dos Fundos Soberanos eram considerados
como pagamento pelas exportações do país, conservadores: investia-se em “US treasury
seja para comprar ativos no país. Como, securities” e outros “national government bon-
nos últimos 25 anos, o saldo da balança ds” (GILSON; MILHAUPT, 2008, p. 1347).2
comercial dos Estados Unidos tem sido Recentemente, no entanto, vários fun-
negativo, nesse país, os investimentos dos dos soberanos passaram a anunciar uma
Fundos Soberanos são especialmente im- mudança na estratégia de investimentos
portantes. A rigor, o influxo de recursos em direção a ativos com maior risco e re-
no mercado de capitais americano sob a torno, tais como equities e de participação
forma de investimentos diretos é um dos em empresas. Mesmo o Government Pension
fatores que sustenta o déficit da Balança Fund, da Noruega, considerado um dos
Comercial americana. Mas, de acordo com mais conservadores entre os Fundos Sobe-
Coutinho, Hiratuka e Sabatini (2008, p. ranos, anunciou um aumento na alocação
69), não apenas fatores macroeconômicos, de recursos em equities: elas passariam de
mas também microeconômicos e ligados 40% a 60% de seu portfólio (GILSON; MI-
ao comércio exterior atestam a importância LHAUPT, 2008, p. 1348).
do investimento direto estrangeiro, a cargo Essa mudança na política dos Fundos
também dos Fundos Soberanos.1 Soberanos resultou em uma série de no-
No entanto, ainda que esses investimen- vos investimentos, antes inimagináveis.
tos possam trazer grandes benefícios para Recentemente, o ADIA – Abu Dhabi Invest-
os países destinatários, recentemente eles ment Authority adquiriu 4,9% das ações
passaram a preocupar as autoridades de ordinárias do Citibank. Uma fabricante de
diversos desses países. chips (chipmaker), com contratos significa-
Os Fundos Soberanos existem já há tivos com o departamento de defesa dos
muito tempo, mas recentemente eles come- Estados Unidos, vendeu 8,1% das ações
çaram a chamar a atenção em razão do seu ordinárias para outro fundo dos Emirados
enorme crescimento nos últimos anos: eles Árabes (GILSON; MILHAUPT, 2008, p.
têm se multiplicado em número e o valor 1348). Em 2007, aproximadamente 10%
dos seus ativos também tem crescido expo- das ações, ainda que sem direito a voto, da
nencialmente. Estimativas do FMI apontam Blackstone – um grande grupo de private
que os ativos dos Fundos Soberanos eram
2
Ver também International Monetary Fund (2008,
1
Ver também Campanário et al (2011). p. 8).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 43


equity que, indiretamente, por meio de suas o papel que as preocupações com a segu-
holdings, é um dos maiores empregadores rança nacional devem desempenhar na
dos Estados Unidos – foram compradas por regulação dos investimentos estrangeiros”
entidades controladas pelo governo chinês. (WEIMER, 2009, p. 663).
Entidades da China e de Singapura estavam Mas não é um suposto risco à segurança
também, em 2008, discutindo a compra de dos Estados Unidos o que mais preocupa
posições significantes na Barclays (SUM- os que temem a atuação dos Fundos Sobe-
MERS, 2007). ranos nesse país. Teme-se, mais que isso,
Essa mesma mudança de estratégia não que eles possam pretender utilizar suas
se limita, no entanto, aos Fundos Soberanos posições nas empresas estadunidenses com
desses países. Os Fundos Soberanos de Du- finalidades políticas. Lawrence Summers
bai e Qatar também sinalizam com mudan- e o SEC Chairman Christopher Cox estão
ças: anunciaram investimentos na Nasdaq entre os que mais têm chamado a atenção
e na London Stock Exchanges (EIZENSTAT; para esses fatos (EPSTEIN; ROSE, 2009, p.
LARSON, 2007). De acordo com um texto 112). Nas palavras de Summers:
de 2007 de Lawrence Summers, [então] “A lógica do sistema capitalista de-
diretor do National Economic Council pende de os acionistas impulsiona-
dos Estados Unidos, o governo do Qatar rem a companhia a agir de forma a
estaria tentando adquirir o controle do J. maximizar o valor de suas ações. Está
Sainsbury, uma das maiores redes de su- longe de ser óbvio que essa será, ao
permercado da Inglaterra, e a estatal russa longo do tempo, a única motivação
de gás, denominada Gazprom, controlada dos governos como acionistas. Eles
pelo Kremlin, teria, nessa época, interesse podem querer ver suas companhias
estratégico no setor de energia de uma série nacionais competirem efetivamente
de países e mesmo uma participação na ou extrair tecnologia ou mesmo ga-
Airbus (SUMMERS, 2007). Por outro lado, nhar influência” (SUMMERS, 2007).4
no final de 2006, houve uma tentativa – Acredita-se que os Fundos Soberanos
não concretizada – do Dubai Ports World possam adquirir participação em empresas
de adquirir os portos dos Estados Unidos. não por razões meramente econômicas,
Essa mudança na estratégia de inves- mas por razões estratégicas: para tentar
timento dos Fundos Soberanos começou influenciar a atuação da empresa de que
a lançar medo, nos Estados Unidos, na participa com o objetivo de, por meio dessa
Europa e em diversos outros países, sobre ação, conseguir algum objetivo maior, al-
a motivação desses investimentos. Nos gum benefício tangível ou intangível para
Estados Unidos, uma primeira medida o próprio país.5
tomada pelo governo foi a promulgação do Richard Epstein e Amanda Rose exem-
Foreign Investment and National Security Act plificam o que poderia ser uma atuação
– FINSA –, em 2007, na esteira das calorosas 4
“The logic of the capitalist system depends on
discussões em torno da investida da Dubai shareholders causing companies to act so as to maxi-
Ports World.3 O objeto dessa Lei foi prote- mize the value of their shares. It is far from obvious
ger a segurança nacional. Nas palavras de that this will over time be the only motivation of
Christopher Weimer: “A lei representa o governments as shareholders. They may want to see
their national companies compete effectively, or to
maior esforço legislativo recente de definir extract technology or to achieve influence”.
5
Ver também International Monetary Fund (2008,
3
Stephen K. Pudner (2007, p. 1277) descreve as p. 15). Gilson e Milhaupt (2008, p. 1348) explicam que,
origens do CFIUS (Committee on Foreign Investment in como a CFIES já se ocupa de controlar se uma transa-
the United States), que remonta ao ano de 1975, e as ção está sendo controlada por um governo estrangeiro,
alterações em razão da promulgação, pelo presidente o problema que se apresenta é o da aquisição de parte
Bush, da FINSA em 26 de julho de 2007. significativa de uma empresa e não de seu controle.

44 Revista de Informação Legislativa


nesses moldes: um determinado Fundo nos terem se comportado, até hoje, como
Soberano pode tentar influenciar uma investidores exemplares. Esse fato é argu-
determinada empresa na qual investiu a mentado de duas formas distintas: de uma
instalar uma fábrica no seu próprio país. maneira positiva, descrevendo-se a atuação
Ainda que, de uma perspectiva eco- dos Fundos Soberanos até hoje e, de uma
nômico-financeira, esse investimento não maneira negativa, mostrando que o que se
se mostrasse um investimento lucrativo, quer proibir nunca foi a prática dos Fundos
a instalação da fábrica geraria empregos Soberanos.
e poderia, dessa forma, contribuir para O assistant secretary for international
atenuar o problema do desemprego no país affairs do Tesouro dos Estados Unidos,
de origem do Fundo Soberano (EPSTEIN; Clay Lowery – ainda que tenha se posicio-
ROSE, 2009, p. 124). nado a favor de uma regulação branda dos
Mas essas preocupações com os inves- Fundos Soberanos –, por exemplo, defende
timentos dos Fundos Soberanos são pro- essa posição de que os Fundos Soberanos
cedentes? Ao contrário, não é restringindo comportaram-se, até hoje, como inves-
a atuação desses grandes investidores que tidores modelo. Apontou alguns traços
poderia estar se criando problemas para a nos investimentos dos Fundos Soberanos
economia do país? Respostas a questões que atestam seu caráter exemplar como
como essas deram lugar a um debate no di- investidores:
reito dos Estados Unidos sobre três formas “Fundos Soberanos são, em princípio,
distintas de regular os Fundos Soberanos: investidores de longo prazo dos quais
a que foi chamada neste trabalho de defesa se pode esperar que mantenham
da não regulação, de uma regulação branda uma alocação estratégica de ativos
e de uma regulação dura. a despeito de perdas de curto prazo.
Eles não são altamente alavancados.
Eles não podem ser forçados por
3. Defesa da não regulação
exigências do capital ou retiradas dos
Richard Epstein e Amanda Rose estão investidores a liquidar posições rapi-
entre aqueles que defendem que, até o damente. Eles têm acesso e frequente-
presente momento, as barreiras legais mente fazem uso de administradores
existentes já são suficientes para regular os de fundos privados, consultores,
fundos soberanos e que nenhuma regulação administradores e depositários bem
adicional deve ser criada. conceituados” (LOWERY, 2007).6
Em síntese, Epstein e Rose argumen- Por outro lado, Richard Epstein e Aman-
tam que, até hoje, os fundos soberanos da Rose (2009) argumentam que não há, até
comportaram-se como investidores mo- hoje, qualquer evidência de que os Fundos
delo; que o arcabouço jurídico já existente Soberanos tenham agido, em momento
é plenamente suficiente para coibir tudo algum, de forma política ou estratégica.
o que está sendo temido; que qualquer Diante disso, alguns defensores de uma
regulação adicional teria um alto custo regulação mais dura costumam apontar a
tanto de criação como de implementação e, estatal de gás russa Gazprom como suposta
enfim, que uma eventual e suposta atuação evidência, pois ela é acusada de operar
estratégica não constitui perigo real para a estrategicamente em seus investimentos na
economia estadunidense (EPSTEIN; ROSE, Europa Ocidental (EPSTEIN; ROSE, 2009,
2009, p. 117). p. 116; SUMMERS, 2007).
O primeiro argumento em defesa da
posição de que as restrições atuais são 6
A esse respeito ver também International Mone-
suficientes é o fato de os Fundos Sobera- tary Fund (2008, p. 10).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 45


A esse propósito, o membro da Comis- para se determinar os efeitos da tran-
são Europeia Charlie McCreevy, fazendo sação sobre a segurança nacional”.
referência expressa à Gazprom pergunta-se: Por todo esse conjunto de fatores, a
“Qual a diferença entre uma empresa es- primeira posição é a de que não deve haver
tatal e um Fundo Soberano?” (TRAYNOR, qualquer regra adicional, além das normas
2008). atualmente existentes. Como, no entanto, a
Por outro lado, sustenta-se que o ar- imprensa anunciava, cada vez mais, preo-
cabouço jurídico atualmente existente é cupações com suposta e eventual atuação
suficiente para coibir qualquer abuso por estratégica dos Fundos Soberanos, outra
parte dos Fundos Soberanos. Já há uma posição se consolidou.
série de normas que impõem limites aos
investimentos estrangeiros nos Estados
4. Defesa de uma regulação branda
Unidos e nos mais diversos países.
Nos Estados Unidos, eles têm, por Algumas pessoas e entidades enten-
exemplo, que respeitar as regras aplicáveis dem que o estado atual da legislação não
aos fundos de hedge e private-equity, de é suficiente para coibir eventual atuação
acordo com as quais, nos termos do Security estratégica dos Fundos Soberanos, mas não
Exchange Act, de 1934, são obrigadas a fazer defendem que sejam criadas novas regras
disclousure7 se adquirirem 5% ou mais em jurídicas, no sentido tradicional. Propõem
ações [equity stake] de uma empresa pública. uma regulação mais branda, por meio de
Os Fundos Soberanos, assim como todas princípios e práticas uniformemente acei-
as outras empresas que atuam nos Estados tas. Esse é o sentido da proposta da OCDE e
Unidos, estão sujeitos aos dispositivos que da proposta do FMI, que será apresentada,
coíbem as fraudes e estão previstos nas brevemente, em seguida.
legislações específicas sobre concorrência, Em outubro de 2007, o comitê financeiro
valores mobiliários e assim por diante. Pu- do FMI pediu ao próprio FMI que iniciasse
nição à atuação em algo como espionagem uma discussão com o objetivo de identificar
industrial está prevista em diversos estatu- um conjunto de best practises para o geren-
tos, inclusive na esfera criminal. ciamento dos Fundos Soberanos. A partir de
Há, por outro lado, leis restringindo os então, uma série de eventos se sucederam
investimentos estrangeiros em atividades até que se chegasse a um conjunto de princí-
específicas, tais como energia nuclear e pios: os GAPP (Generally Accepted Principles
companhias aéreas, e, por último, como já and Practises) ou Santiago Principles foram
foi mencionado acima, os investimentos estabelecidos em outubro de 2008.
estrangeiros já estão sujeitos à revisão por Inicialmente, em 30 de abril de 2008,
parte do CFIUS – Committee on Foreign foi criado um grupo de trabalho – o Inter-
Investment in the United States – na forma national Working Group of Sovereign Wealth
como foi estabelecido pelo FINSA, de 2007. Funds – para estabelecer princípios que
De acordo com Epstein e Rose (2009, p. 118): refletissem os objetivos e práticas dos inves-
“Sob o processo geral da CFIUS, qual- timentos dos Fundos Soberanos. Constituí-
quer transação que possa resultar no ram o grupo de trabalho representantes de
‘controle’ por parte de uma entidade 23 países membros com Fundos Soberanos,
estrangeira de uma companhia ocu- além de representantes de 3 países obser-
pada de comércio interestadual está vadores permanentes, do Banco Mundial
sujeita a revisão, no prazo de 30 dias, e da OCDE.
No início dos trabalhos, a grande diver-
7
Sobre a política do disclosure ver também Leães sidade de práticas gerenciais dos Fundos
(1982, p. 88 et seq). Soberanos e dos arcabouços institucionais

46 Revista de Informação Legislativa


envolvidos parecia fazer com que o con- “O propósito do GAPP é identificar
senso fosse algo muito difícil. De acordo um arcabouço de princípios e práticas
com o relatório apresentado por Hamad aceitos de forma geral e que reflitam
Al Hurr Al-Suwaidi (2008), subsecretário corretamente os acordos sobre go-
do Departamento de Finanças do Abu vernança e accountability, assim como
Dhabi – e que foi escolhido junto com Jaime as condutas dos diversos Fundos
Caruana, Diretor do Departamento Mo- Soberanos numa base prudente e
netário e de Mercado de Capitais do FMI confiável. Elementos do GAPP foram
para copresidir o grupo de trabalho –, havia extraídos de uma revisão das práticas
unanimidade sobre o fato de que se deveria dos Fundos Soberanos atualmente
dar uma resposta à crescente preocupação existentes” (INTERNATIONAL...,
que se via na mídia e nos países receptores 2008b, p. 4).
(INTERNATIONAL..., 2008b, p. 4). Os Santiago Principles consistem em 52
Desde o início, foi reconhecido que os páginas, nas quais foram estabelecidos
investimentos são muito importantes, pois 24 princípios, seguidos sempre por uma
podem trazer muitos benefícios para a eco- explicação e comentário a respeito do
nomia tanto dos países que investem como próprio princípio, além de três apêndices
dos países receptores do investimento, mas nos quais fundos soberanos são definidos
que, também, oferecem algum risco aos (apêndice I); a lista dos membros do Inter-
mercados internacionais. Daí a necessidade national Working Group (IWG) e dos países
de se estabelecerem os princípios. receptores, que participaram das reuniões
Como resultado de alguns meses de do IWG, é apresentada (apêndice II) e são
trabalho, foram estabelecidos acordos entre apresentadas informações sobre os Fundos
os Fundos Soberanos em bases satisfatórias, Soberanos dos países membros do IWG.
de forma a assegurar que os seus inves- Examine, por exemplo, o princípio 2o.
timentos sejam feitos sempre de acordo Ele determina que “o propósito em ter-
com critérios econômico-financeiros. A mos de política do Fundo Soberano deve
partir desses acordos, foram redigidos os ser claramente definido e publicamente
princípios. exposto” (INTERNATIONAL..., 2008b, p.
Não se trata de novas normas, nos mol- 7). De acordo com a explicação e o comen-
des das normas tradicionais. Essas contêm tário que se seguem, propósitos definidos
uma estrutura básica, da qual a sanção é ele- facilitam a formulação de estratégias de in-
mento fundamental, de forma que, no caso vestimento apropriadas e são uma maneira
de violação da norma, a sanção, a ser im- de assegurar que o gerente do Fundo vai
posta coercitivamente, seja a consequência atuar dentro desses limites e não vai agir de
imediata. Os Santiago Principles, no entanto, forma estratégica em benefício da agenda
não preveem sanção. Os princípios têm uma de algum governo.
outra estrutura e foram estabelecidos por Defende-se que esse modo de regulação
refletirem as práticas dos diversos Fundos teria o efeito de uma resposta àqueles que
Soberanos e, nos casos em que não havia entendem que, hoje, o medo se justifica,
uniformidade quanto às práticas, por haver pois que a regulação é insuficiente, sem
um acordo entre os próprios Fundos quanto incorrer nos perigos de criar regras que ter-
a seu conteúdo, isto é, pelo fato de haver minem por afastar o investimento desejado.
uma aceitação, pelos próprios Fundos, de
que eles devem passar a se reger nessa base.
5. Defesa de uma regulação dura
Essa aceitação, portanto, é a garantia maior
de que são e continuarão sendo aplicados. Outros autores, preocupados com a
De acordo com o texto do próprio GAPP: nova política dos Fundos Soberanos, defen-

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 47


dem que sejam criadas barreiras adicionais. uma determinada empresa a agir estrate-
Eles acreditam que a nova atuação dos gicamente, isso será feito por meio dessa
Fundos Soberanos apresenta sério risco estrutura.
aos países destinatários de seus recursos e Suponha-se que um determinado Fundo
que esse risco somente pode ser controlado Soberano procure influenciar um executivo
por meio da criação de novas regras. Não de uma determinada empresa a autorizar
de novos princípios como os estabelecidos transferência de tecnologia para alguma
pelo grupo de trabalho do FMI, mas regras outra empresa em seu país de origem, sem
dotadas de sanção, que possam ser imedia- que essa transação tenha qualquer interesse
tamente aplicadas no caso de uma violação. comercial para a empresa que transferiria
Várias propostas foram feitas visando a tecnologia. No caso de ele resistir, o
ao endurecimento das normas que regu- Fundo Soberano poderia tentar forçar sua
lam a atuação dos Fundos Soberanos. Foi demissão. Caso não conseguisse, poderia
sugerido, por exemplo, que os Fundos So- tentar obter o apoio de outros acionistas
beranos só pudessem investir por meio de para eleger uma nova diretoria. Por isso,
intermediários financeiros. Outra proposta Gilson e Milhaupt (2008, p. 1364) acreditam
foi de que os Fundos Soberanos estivessem que a “influência informal de um Fundo
limitados a investir em Fundos de índice Soberano depende, em última instância, de
global (EPSTEIN; ROSE, 2009, p. 119). sua influência formal – da sua habilidade
De acordo com outros trabalhos, essas em exercer seu direito de voto que as ações
medidas seriam extremas e poderiam afas- lhes proporcionam”.
tar os investimentos dos Fundos Soberanos. Daí eles concluírem:
Diante disso, eles defenderam, então, a ado- “Se a influência de um Fundo So-
ção de novas normas, também providas de berano como acionista depende de
sanção, mas normas que consideravam não sua habilidade em exercer o direito
tão rígidas. Nesse sentido, foi sugerido que de voto que suas ações lhe propor-
fosse proibido que os Fundos Soberanos cionam, então o meio óbvio para
assumissem posições de controle em com- prevenir o comportamento estratégi-
panhias domésticas e que fossem sujeitos co – comportamento que beneficia o
a normas de disclosure e governança, não Fundo Soberano ou seu proprietário
nos moldes dos princípios do FMI, mas Soberano de maneiras que não be-
regras dotadas de sanção que pudessem neficiem outros acionistas na mesma
ser impostas coercitivamente. proporção – é restringir o direito de
Nessa linha, Ronaldo Gilson e Curtis voto do Fundo Soberano. Ações de
Milhaupt (2008, p. 1362) propuseram que, empresas estadunidenses adquiridas
quando os Fundos Soberanos adquirissem por Fundos Soberanos perderiam
ações de uma determinada empresa, lhes seu direito de voto” (GILSON; MI-
fosse cerceado o direito de voto. LHAUPT, 2008, p. 1364).
Para esses autores, a regulação branda é De acordo com os autores da proposta,
insuficiente, pois que não trabalha no ponto essa perda de direito de voto não inviabi-
central que poderia resolver o problema: a lizaria comercialmente as ações, pois, tão
governança corporativa, isto é, o comple- logo os Fundos Soberanos se desfizessem
xo de mecanismos que estão na base das das ações, o direito de voto seria restaura-
decisões das empresas. Isso inclui práticas do. De qualquer forma, o endurecimento
gerenciais, e rotinas organizacionais, assim das regras poderia desencorajar novos
como os procedimentos formais estabe- investimentos. Os defensores da tese reco-
lecidos na legislação e jurisprudência. Se nhecem essa possibilidade, mas entendem
um Fundo Soberano pretender influenciar que essa é a única alternativa capaz de

48 Revista de Informação Legislativa


evitar possíveis ações estratégicas por parte ranos que aparecem no debate norte-ame-
dos Fundos Soberanos. ricano: de acordo com o primeiro grupo, as
regras existentes são suficientes para coibir
qualquer eventual atuação estratégica; o
6. Considerações finais
segundo grupo defende a implementação
Como foi visto, o IED para fora e para de uma regulação adicional, nos moldes do
dentro gera benefícios para sistemas econô- código de conduta estabelecido pelo FMI;
micos crescentemente interdependentes e e o terceiro grupo, por sua vez, defende
parte desse investimento é feito por Fundos a criação de novas normas, que possam
Soberanos. Como há interesse, tanto no coibir, de forma mais rígida, a atuação dos
investimento do Fundo Soberano do Brasil Fundos Soberanos.
no exterior, como no investimento que os Alguns efeitos positivos da regulação
Fundos Soberanos dos diversos países pos- branda posta em prática pelo FMI já podem
sam fazer no Brasil, tratou-se de analisar o ser identificados: alguns Fundos Soberanos
debate sobre sua regulação, principalmente estão, gradativamente, aderindo aos prin-
em função do temor recente de que sua cípios estipulados por esta organização,
atuação signifique uma forma diferente o que significa, para muitos deles, uma
de atuação do Estado na economia. Como alteração de suas práticas, tornando-se, por
atualmente esse é um debate fundamen- exemplo, mais transparentes.
talmente norte-americano, tratou-se de Mas seria conveniente uma regulação
analisar a literatura desse país. mais dura? Argumentando especificamente
Nesse sentido, Gilson e Milhaupt escre- no sentido de que o perigo de uma suposta
vem que, tradicionalmente, em uma econo- atuação estratégica, de fato, não existe, Eps-
mia capitalista, “a empresa individual é a tein e Rose (2009, p.124) sustentam que, por
unidade cujo valor se quer maximizar”. Re- maior que seja o volume de recursos alo-
gras tais como as da OMC foram elaboradas cados pelos Fundos Soberanos, o processo
“com o objetivo de impedir os governos de especulativo não cria problemas, pois deve
mudar o nível de maximização das empre- ser contrabalançado, por meio de ajustes,
sas para o Estado” (GILSON; MILHAUPT, no próprio preço dos demais ativos dos
2008, p. 1346). mercados financeiros globais. A ideia por
O que se teme é que a nova atuação dos trás desse argumento reside em que os mer-
Fundos Soberanos possa ter exatamente cados financeiros são eficientes, excluindo
essa consequência – que eles descrevem ganhos especulativos, devido à arbitragem,
como uma nova forma de capitalismo e que consiste no reequilíbrio dos preços
chamam de “novo mercantilismo”: “Nessa dos ativos em mercados que apresentem
forma, o país é a unidade cujo valor deve ser preços diferentes, quando expressos em
maximizado, com um aumento crescente no uma mesma moeda.8
papel do governo nacional como um parti- 8
“Inicialmente, a capacidade dos Fundos Sobera-
cipante direto e coordenador desse esforço” nos de distorcer o mercado de capitais dessa maneira
(GILSON; MILHAUPT, 2008, p. 1346). é limitada. Assuma-se que os Fundos Soberanos co-
Em outras palavras, teme-se que os mecem a investir baseados em interesses estratégicos
Fundos possam atuar, de forma estratégica, e não de acordo com princípio de investimento. O que
eles podem fazer para influenciar o preço no qual os tí-
buscando, por exemplo, controlar o acesso tulos são avaliados? Eles vão fazer com que o preço de
a ativos estratégicos ou agindo de forma a alguns títulos suba e fazer com que o preço de outros
distorcer a formação de preços, em benefí- caia. [Isso pode parecer uma distorção], mas ignora
os passos corretivos que outros agentes, livres de tais
cio de seu país de origem.
inibições, podem desempenhar no mercado. (Lembre-
Diante disso, foram apresentadas as três -se que os 2 a 3 trilhões de dólares administrados pelos
propostas de regulação dos Fundos Sobe- Fundos Soberanos competem com os 62 trilhões de

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 49


Além disso, como foi visto, não há, até BARROS, Octavio de; GIAMBIAGI, Fabio. Brasil glo-
hoje, nenhum exemplo de atuação estraté- balizado. São Paulo: Campus, 2008.
gica por parte dos Fundos Soberanos que BELO, Teresinha. Um fundo soberano brasileiro: é o
justifique acreditar-se que eles possam agir momento? Texto para discussão FEE, Porto Alegre, n.
dessa forma. Até o presente momento, o 25, jan. 2008.
que de concreto existe é que eles têm se BONELLI, Regis; PINHEIRO, Armando Castelar.
comportado como investidores exemplares. Abertura e crescimento no Brasil. In: BARROS, Oc-
Como há muitos benefícios no inves- tavio; GIAMBIAGI, Fabio (Org.). Brasil globalizado:
o Brasil em um mundo surpreendente. São Paulo:
timento dos Fundos Soberanos e como Campus, 2008. p. 89-124.
barreiras adicionais podem trazer como
consequência o afastamento desse investi- CAMPANÁRIO, Milton de Abreu et al. Foreign direct
investment: diagnosis and proposals for a brazilian
mento, é importante que a regulação e as public policy. Internext, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 125-
políticas públicas no Brasil sejam pensadas 158, jan./jun. 2011.
a partir de dados concretos sobre quão
COUTINHO, Luciano; HIRATUKA Célio; SABATINI
iminente e real é esse perigo em função Rodrigo. Investimento direto no exterior como alavan-
das leis brasileiras e da atuação atual e ca dinamizadora da economia brasileira. In: BARROS,
potencial desses Fundos no Brasil. A opção Octavio; GIAMBIAGI, Fabio. Brasil globalizado: o Brasil
por uma forma de regulação mais dura em um mundo surpreendente. São Paulo: Campus,
pode variar de país para país e exigiria 2008. p. 63-85.
pesquisa empírica sólida para embasá-la. EIZENSTAT, Stuart; LARSON, Alan. The Sovereign
Este trabalho procurou apresentar o debate Wealth explosion. The Wall Street Journal, New York,
estadunidense e os argumentos que foram 1 Nov. 2007.
utilizados pelos debatedores como forma EPSTEIN, Richard A.; ROSE, Amanda M. The regula-
de contribuir para o início de um debate tion of sovereign wealth funds: the virtues of going
que leve em consideração os problemas slow. University of Chicago Law Review, Chicago, n.
76, 2009.
e temas brasileiros. Estudos que apontem
para a situação empírica brasileira são, no GILSON, Ronald. J.; MILHAUPT, Curtis. J. Sovereign
entanto, sugeridos como forma de embasar Wealth Funds and Corporate Governance: a minimal-
ist response to the new mercantilism. Stanford Law
uma tomada de posição segura pelo Brasil. Review, Washington, n. 60, Feb. 2008.
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dólares em ativos globais sob controle dos investi- Monetary and Capital Markets and Policy Develop-
dores institucionais privados). Esses outros agentes ment and Review Departments, 2008, 38 p.
podem fazer arranjos sutis em seu portfólio de forma
INTERNATIONAL WORKING GROUP OF SOVER-
a contrabalançar os riscos relevantes. Assumindo-se
[grandes] mercados de capitais como os dos Estados EIGN WEALTH FUNDS. Asset-backed insecurity. The
Unidos, no final, as conseqüências distributivas devem Economist, London, 17 Jan. 2008a.
ser minoradas e as conseqüências alocativas muito ______. Sovereign wealth funds: generally accepted
pequenas para serem medidas. A reduzida taxa de principles and practices “Santiago Principles”. Wash-
retorno seria criada por aqueles que adotassem a ington: International Working Group of Sovereign
estratégia que não gerasse a maximização dos lucros,
Wealth Funds, 2008b.
o que não pode ser uma razão para que os outros que
agora podem ser seus [trading] parceiros oponham-se JOINT COMMITTEE ON TAXATION. Economic and
a ela” (EPSTEIN, 2009, p. 128). U.S. income tax issues raised by sovereign wealth fund

50 Revista de Informação Legislativa


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Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 51


A propriedade como direito fundamental
Breves notas introdutórias

Roger Stiefelmann Leal

Sumário
1. Introdução. 2. Noções preliminares. 3.
Propriedade e direitos fundamentais. 4. Proprie-
dade e Constituição. 5. Aspectos conceituais do
direito de propriedade. 6. Propriedade e lei. 7.
Propriedade e função social. 8. Propriedade e
indenização. 9. Conclusões.

1. Introdução
A afirmação do direito de propriedade
como direito fundamental é encontrada,
nos dias de hoje, em diversos textos consti-
tucionais e tratados internacionais. Cumpre
observar, no entanto, que tal condição, as-
sim como o sentido e o alcance que lhe são
conferidos, constitui questão que integra o
cerne do debate político-constitucional de
maior repercussão do século XX.
Possivelmente, nenhum outro direito
fundamental sofreu tamanha contestação.
Afirmou-se que seu exercício constituía
roubo e injustiça (PROUDHON, 2008, p.
252). Propôs-se firmemente sua abolição
como solução para todos os males e todas
as alienações (ARON, 2003, p. 171 et seq.).
Outros, por sua vez, sustentaram sua plena
subordinação ao interesse coletivo (BURDE-
AU, 1966, p. 375).
A forte objeção que recaiu sobre o direi-
Roger Stiefelmann Leal é doutor em Dire-
to de propriedade não foi, porém, suficiente
to do Estado pela USP. Professor de Direito para prejudicar ou afastar sua condição de
Constitucional na Faculdade de Direito da USP. direito fundamental da pessoa humana.
Procurador da Fazenda Nacional. Seu sentido e alcance, contudo, não resta-

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 53


ram imunes a tais críticas. Assim, diversos 2. Noções preliminares
textos constitucionais passaram a dispor
A noção de propriedade enquanto direi-
sobre o cumprimento da função social da
to fundamental encontra raízes na própria
propriedade. Outros deixaram de incluir a
ideia de liberdade (BURDEAU, 1966, p.
propriedade entre os direitos individuais
375; ISRAEL, 2005, p. 596-597). Mais pre-
para inscrevê-la na seção dedicada aos
cisamente, no raciocínio que reconhece a
direitos econômicos e sociais (FAVOREU,
liberdade do homem pelo natural domínio
2002, p. 201; MIRANDA, 2000, p. 525).
que exerce sobre seu corpo, sobre si mesmo.
Tal deslocamento pode – dependendo da
Segundo John Locke (1963, p. 20) – para
via interpretativa adotada – determinar
muitos o primeiro autor moderno a proclamar
mudanças no perfil e no regime jurídico
os direitos do homem (OTERO, 2007, p. 187)
aplicável ao próprio direito1.
–, “cada homem tem uma propriedade em
Sobretudo em face da expressiva con-
sua própria pessoa; a esta ninguém tem
trovérsia que marcou o século passado,
qualquer direito senão ele mesmo.0”2
faz-se oportuno examinar os fundamentos
Segue-se, então, a ideia de que o tra-
que tradicionalmente suscitaram o reco-
balho exercido pelo homem constitui sua
nhecimento da condição de direito funda-
propriedade, assim como os frutos que
mental à propriedade, com a finalidade de
dele obtiver. É primariamente a partir do
não apenas compreender sua inserção no
trabalho que o homem consegue sair de sua
âmbito do constitucionalismo, mas tam-
carência inercial para alcançar bens que sa-
bém verificar que elementos de seu con-
ciem suas necessidades básicas. Constitui,
teúdo remanescem nos dias atuais. Nessa
portanto, atividade inerente ao seu processo
perspectiva, o presente trabalho pretende
vital (ARENDT, 2004, p. 122-123). Mais
discutir algumas noções conceituais sobre
que liberdade, é condição da vida humana
o assunto. Inicialmente, a análise recairá
(LOCKE, 1963, p. 24).
sobre os principais aspectos referentes
Desse modo, infere-se que o resultado
à concepção do direito de propriedade
que o homem obtém mediante o legítimo
como direito fundamental no contexto do
emprego de sua força de trabalho é seu, é
constitucionalismo liberal. Cuidar-se-á, em
sua propriedade. Ou seja, o trabalho de seu
seguida, de algumas questões relativas à
corpo e a obra de suas mãos, pode dizer-se, são
definição constitucional da propriedade. E,
propriamente dele e nenhum outro homem pode
numa terceira parte, o estudo será dedicado
ter direito ao que foi conseguido (LOCKE, 1963,
ao papel desempenhado pelo legislador na
p. 20), ao menos sem o consentimento do
disciplina do direito de propriedade, bem
proprietário. O direito de propriedade, em
assim à sua função social e ao dever de
sua origem, importa no domínio sobre o
indenizar que dele decorre. Em diversos
resultado obtido pelo trabalho.
desses pontos, especial atenção será con-
Assim considerada, a garantia da pro-
ferida à disciplina reservada ao tema pela
priedade acaba por configurar o principal
Constituição brasileira e à interpretação que
móvel e estímulo à produção e, portanto,
lhe confere o Supremo Tribunal Federal.
ao desenvolvimento econômico. Em termos
1
Exemplo dessa questão é a disciplina normativa jurídicos, sua segurança e estabilidade
da Constituição portuguesa, que reserva a cláusula promovem, nessa linha, a necessária va-
de aplicação imediata apenas aos direitos, liberdades e lorização do trabalho enquanto atividade
garantias. Outro caso é o da Constituição espanhola
que, ao assegurar a propriedade como direito econô-
mico e social, não o inclui entre aqueles tutelados por 2
Segundo Hanna Arendt (2004, p. 123), Locke fun-
instrumentos específicos de proteção das liberdades, damentou a propriedade privada naquilo cuja propriedade
como o recurso de amparo (FAVOREU, 2002, p. 201; é a mais privada de todas, “a propriedade (do homem) no
FERNÁNDEZ-SEGADO, 1994, p. 231). tocante a si mesmo”, ou seja, o seu próprio corpo.

54 Revista de Informação Legislativa


humana. Trabalho e propriedade, sob essa a liberdade e a busca da felicidade. Também a
perspectiva, são tomados como aspectos Declaração dos Direitos do Homem e do
inerentes à conditio humana, à liberdade Cidadão (Déclaration des droits de l’homme et
pessoal e à dignidade dos direitos humanos du citoyen), de 26 de agosto de 1789, adotou
(HÄRBELE, 2007, p. 393). semelhante orientação. Logo em seu art. 1o
estabelece que os homens nascem e são livres
e iguais em direitos. E, no art. 2o, preceitua
3. Propriedade e direitos fundamentais
que a finalidade de toda associação política é a
Em contraposição aos regimes despó- conservação dos direitos naturais e imprescri-
ticos imperantes nos séculos XVII e XVIII, tíveis do homem. Cumpre observar, ainda,
irromperam, na Europa e na América, que tais documentos são denominados
importantes movimentos revolucionários “declarações” pois não estariam a instituir
inspirados em ideais de defesa e proteção ou criar direitos. Sua finalidade resume-se
da liberdade. Decorre daí o surgimento do a declará-los, reconhecê-los, na medida em
constitucionalismo, cuja plataforma consis- que emanam da própria natureza huma-
tia, em linhas gerais, na introdução de prin- na, constituindo realidade prexistente ao
cípios e mecanismos voltados à limitação Estado e à sociedade (FERREIRA FILHO,
ou contenção do poder estatal de modo a 2006, p. 22).
assegurar as liberdades básicas do homem A propriedade é inserida justamente
(OTTO Y PARDO, 1987, p. 12). no âmbito desses direitos. Considerada,
Nesse sentido, o constitucionalismo a partir das lições de John Locke (1963),
supera a ideia oriunda da Idade Média de como direito vinculado às ideias de liber-
que os direitos constituem prerrogativas, dade e de trabalho, a propriedade passou
privilégios e regalias decorrentes de deter- a constar de tais declarações como direito
minados estamentos, castas ou categorias fundamental, inato à pessoa humana. As-
(GRIMM, 2006, p. 78; MIRANDA, 2000, p. sim, a Declaração da Virgínia, ao anunciar,
14, 19). Passa-se a reconhecer a existência de em seu art. 1o, os direitos certos, essenciais e
direitos que derivam da própria natureza naturais do homem, indica o direito de gozar
humana. Seriam direitos universais, pois a vida e a liberdade com os meios de adquirir e
(a) inatos à condição de pessoa humana possuir propriedades, de procurar obter a feli-
e (b) fundantes da constituição do Estado cidade e a segurança. Por seu turno, o art. 2o
(GRIMM, 2006, p. 78-79). da Declaração dos Direitos do Homem e do
Tais noções encontram-se claramente Cidadão, de 1789, ao discriminar os direitos
consagradas nas principais declarações de naturais e imprescritíveis do homem, estabele-
direitos que marcaram os aludidos movi- ce: esses direitos são a liberdade, a propriedade,
mentos revolucionários. Nessa linha, o art. a segurança e a resistência à opressão. Já o art.
1o da Declaração de Direitos da Virgínia 17 da mesma Declaração reitera a mesma
(Virginia Bill of Rights), de 12 de junho de ideia, agregando, ainda, a seguinte disposi-
1776, dispõe que todos os homens nascem ção: como a propriedade é um direito inviolável
igualmente livres e independentes, têm direitos e sagrado, ninguém dela pode ser privado (...).
certos, essenciais e naturais dos quais não po- Tal orientação concebe a propriedade,
dem, por nenhum contrato, privar nem despojar a exemplo da liberdade, como direito do
sua posteridade. A mesma concepção infor- homem – pois inerente à condição humana
ma, ainda, a Declaração de Independência – precedente, portanto, ao Estado. Comporia
dos Estados Unidos, de 4 de julho de 1776, o conjunto de direitos que se encontram na
ao afirmar que todos os homens são criados base da ordem política, que constituem seu
iguais, que são dotados pelo Criador de certos fundamento, seus direitos fundamentais. Ou
direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, ainda, segundo a doutrina contratualista em

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 55


voga à época, integra a propriedade o resí- Assim, pretende-se que os poderes pú-
duo de liberdade natural que restou ao ho- blicos, de ordinário, passem a ter o dever de
mem em face da liberdade sacrificada para a observar os direitos assegurados em sede
construção do Estado (RUFFIA, 1984, p. 517). constitucional. Sua eventual modificação
Consiste em direito anterior às instituições ou superação somente teria cabimento
políticas, que, reconhecido formalmente, quando tais procedimentos especiais fos-
cumpre-lhes o dever de assegurar e prote- sem estritamente observados, formalizando
ger. Ou seja, conforme assinala Locke (1963, genuína reforma constitucional.
p. 77), o grande e principal objetivo, portanto, da Desse modo, conferiu-se, na maior parte
união dos homens em comunidades, colocando- dos países do mundo ocidental, estatura
-se sob governo, é a preservação da propriedade. constitucional ao direito de propriedade,
A garantia de tais direitos, ademais, atribuindo-lhe nível hierárquico superior
busca impor, segundo os pressupostos do aos demais atos legislativos. Na Consti-
constitucionalismo liberal, um dever de tuição brasileira de 1988, a inviolabilidade
abstenção, pois determina uma esfera de do direito à propriedade é proclamada no
autonomia privada imune à interferência caput do art. 5o. O inciso XXII do mesmo
estatal ou de terceiros. Segundo a clássica artigo, por seu turno, preceitua: é garantido
lição de Rivero (2006, p. 9), são direitos o direito de propriedade. O art. 170, ainda,
que repercutem nos outros negativamente. No insere a propriedade privada entre os prin-
entanto, a proteção das liberdades perante cípios da ordem econômica.
terceiros (particulares) supõe necessariamente Isso não significa, todavia, que a pro-
a intervenção do estado, que a impõe por sua priedade assume, em face da ordem cons-
legislação e a sanciona por suas jurisdições titucional, caráter absoluto, que inadmite
(RIVERO, 2006, p. 10). Ou seja, são direitos de restrições. A exemplo de diversos direitos
libertação do poder e, simultaneamente, direitos fundamentais, o direito de propriedade
à proteção do poder contra os outros poderes comporta limitações e abrandamentos em
(MIRANDA, 2000, p. 105). sua aplicação em nome de outros valores
também tutelados pelo texto constitucional.
4. Propriedade e Constituição Da mesma forma, muitos princípios cons-
titucionais também admitem restrição em
Outra solução concebida no âmbito do face do direito de propriedade4. A colisão
constitucionalismo liberal foi a definição entre princípios constitucionais, mormente
dos direitos fundamentais, bem como dos no caso de direitos fundamentais, requer
demais princípios de limitação do poder que uns tenham moderada sua aplicação
estatal, em texto normativo formal e sole- em face de outros.
ne: a Constituição. E, com a finalidade de
Sublinhe-se, no entanto, que eventual
impedir seu comprometimento ou violação
limitação ou o seu cabimento deve ter apoio
por outros diplomas e atos normativos, fo-
no texto constitucional. Não há restrição a
ram estabelecidos procedimentos especiais
direito fundamental sem base constitucio-
mais gravosos para a alteração das cláu-
nal (ALEXY, 1993, p. 277; MIRANDA, 2000,
sulas constitucionais do que os adotados
na elaboração das demais leis. Trata-se do segundo o autor, espécie de sentimento de conserva-
modelo de Constituição rígida3. ção e manutenção de determinado ordenamento cons-
titucional arraigado na cultura de uma comunidade.
3
É, mais especificamente, o que Pontes de Miranda 4
Sobre a estruturação dos direitos fundamentais
(1987, p. 236) denominou rigidez técnica, pois, para o em princípios, isto é, espécie normativa que admite
ilustre jurista pátrio, há de se perquirir a propósito de variação de grau em sua aplicação, ver, dentre ou-
uma segunda modalidade de rigidez constitucional tros, Robert Alexy (1993, p. 89); também Gustavo
promovida por razões de mentalidade primitiva ou pa- Zagrebelsky (1992, p. 171) e J. J. Gomes Canotilho
leopsíquica, ideológicas ou até religiosas. Configuraria, (1998, p. 1056).

56 Revista de Informação Legislativa


p. 307). Significa dizer que eventual abran- termos do art. 190 da Constituição, a regu-
damento, restrição ou privação da pro- lar e limitar a aquisição ou o arrendamento de
priedade somente é admissível se houver propriedade rural por pessoa física ou jurídica
inequívoco fundamento na Constituição. estrangeira, bem como a estabelecer os casos
Tais limitações podem advir, desse que dependerão de autorização do Congresso
modo, (a) de previsão expressa do texto Nacional.
constitucional ou mesmo (b) da própria Mesmo sem expressa autorização
proteção constitucionalmente atribuída constitucional, cabe à legislação impor
a outro bem jurídico (MARTÍN-RETOR- limitação a direito fundamental em razão
TILLO BAQUER; OTTO Y PARDO, 1988, de outro preceito constitucional, que, in-
p. 108). As restrições podem, ainda, ser (I) clusive, pode ser conformador de outro
diretamente fixadas pelo texto constitucio- direito constitucionalmente assegurado.
nal – restrições diretamente constitucionais Nesse caso, o legislador acaba por exercer
– ou (II) impostas por lei infraconstitucio- juízo de ponderação entre um direito fun-
nal devidamente autorizada, expressa ou damental e outros valores constitucionais
tacitamente, pela Constituição – restrições que se lhe oponham, optando por solução
indiretamente constitucionais5. que aplique em maior grau os valores
As restrições diretamente constitucionais contrapostos e em menor grau o direito
são as decorrentes de normas de nível (MARTÍN-RETORTILLO BAQUER; OTTO
constitucional que estabelecem, sem a ne- Y PARDO, 1988, p. 108). Institui, assim,
cessidade de complementação normativa, restrição indiretamente constitucional em face
restrições ao direito fundamental (ALEXY, de outros bens constitucionalmente tutelados. O
1993, p. 277). A limitação, nesse caso, não direito de propriedade não fica, por certo,
requer mediação por nenhuma outra norma imune a essa categoria de restrições. Esse é
ou ato, além do próprio preceito consti- o caso do disposto no art. 1.285 do Código
tucional. O texto constitucional de 1988 Civil, que, em nome do direito à liberdade
apresenta, é certo, restrições dessa natureza de locomoção (art. 5o, XV, da Constituição),
ao direito de propriedade, a exemplo do reconhece ao dono do prédio que não tiver
disposto no art. 243, que determina o con- acesso a via pública, nascente ou porto o direito
fisco – expropriação imediata, sem direito de constranger o vizinho a lhe dar passagem,
à indenização – das glebas de qualquer região mediante pagamento de indenização cabal.
do País onde forem localizadas culturas ilegais Determina, ainda, o § 1o do art. 1.285 que
de plantas psicotrópicas. sofrerá o constrangimento o vizinho cujo imóvel
As restrições indiretamente constitucionais mais natural e facilmente se prestar à passagem.
por expressa reserva legal, por sua vez, ca- Desse modo, a lei, com fundamento em
racterizam-se pela atribuição ao legislador outro direito fundamental, impõe regime
do poder de limitar o exercício do direito. restritivo específico à propriedade.
Verifica-se, no caso, cláusula constitucio-
nal expressa em que se autoriza o Poder
5. Aspectos conceituais do
Legislativo a estabelecer normas restritivas
ao exercício de determinado direito funda- direito de propriedade
mental. Submete-se o direito de proprie- A propriedade constitui – cumpre
dade a essa modalidade de restrição, por destacar – modalidade de direito real com
exemplo, ao se autorizar o legislador, nos definição e regime jurídico determinados
pela legislação civil. No caso do ordena-
5
Esta última classificação de restrições a direitos
fundamentais – restrições diretamente constitucionais e mento brasileiro, o art. 1228 do Código Civil
indiretamente constitucionais – é adotada por Robert estatui os elementos nucleares da proprie-
Alexy (1993, p. 276 et seq.) dade, definindo-a como a faculdade de usar,

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 57


gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la CORREIA, 1998, p. 477, 530; FERREIRA
do poder de quem quer que injustamente a pos- FILHO, 2008, p. 309; MENDES, 2004, p. 150-
sua ou detenha. Nos termos do direito civil, 151) ou, como ensina Hesse (1998, p. 341), o
em regra, é titular da propriedade em sua aproveitamento privado de um direito de valor
plenitude aquele que detém o poder para patrimonial. Desse modo, compreende-se o
exercer todos os atributos definidos no direito inscrito no art. 5o, caput e inciso XXII,
preceito legal: ius utendi, fruendi et abutendi da Constituição, de forma mais alargada,
(PEREIRA, 2008, p. 92). como o direito fundamental de não ser alguém
Indaga-se, porém, se a definição civilista despojado de direitos de seu patrimônio, sem
de propriedade condiciona ou limita o âm- justa indenização (FERREIRA FILHO, 2008,
bito de proteção da norma constitucional p. 309). A própria doutrina civilista clássica,
que assegura o direito fundamental de pro- como aponta Caio Mário da Silva Pereira
priedade. Isto é, a proteção do art. 5o, XXII, (2008, p. 89), também exprimia concepção
da Constituição de 1988, alcança apenas a mais generosa sobre o tema, considerando
propriedade tal como definida no art. 1.228 a propriedade como todos os direitos que se
do Código Civil ou estende-se, também, a traduzem numa expressão pecuniária.
outros direitos de natureza patrimonial? A interpretação que reconhece maior
Há, certamente, quem entenda – com extensão à noção constitucional de pro-
bons argumentos – haver identidade en- priedade encontra, ainda, desenvolvimento
tre a definição do direito civil e o alcance no âmbito da própria legislação brasileira.
da norma constitucional. Nesse sentido, É o que se depreende, por exemplo, de
afirma-se que as normas de direito privado algumas disposições do Código Tributário
devem ser compreendidas de conformidade Nacional (Lei no 5.172/66). Ao estabelecer
com a disciplina que a Constituição lhe impõe normas gerais sobre os impostos incidentes
(SILVA, 2003, p. 273), para concluir que é, sobre a propriedade – especificamente o
assim, o direito positivo, a lei ordinária mesma, IPTU (art. 156, I, da Constituição) e o ITR
que fixa o conteúdo desse direito que é institu- (art. 153, VI, da Constituição) –, o Código
cionalmente garantido pela Constituição (art. define como sua base tributária a proprie-
5o, XXII) (SILVA, 2003, p. 271). Segundo dade, o domínio útil ou a posse de imóvel (arts.
Jorge Miranda (2000, p. 258), 29 e 32 do CTN). Ou seja, ao considerar a
“uma coisa é o princípio da capacida- expressão propriedade constante do texto
de patrimonial privada ou da susceti- constitucional, o legislador conferiu-lhe
bilidade de, salvo algumas exceções, interpretação abrangente, encontrando
os particulares serem titulares de apoio na literalidade constitucional para
direito patrimonial; outra coisa seria estender a tributação a diferentes categorias
erigir em direitos fundamentais todos de direitos reais segundo a legislação civil6.
os tipos de direitos patrimoniais que, A divergência sobre o significado consti-
com maior ou menor relevância e tucional do direito de propriedade também
mais ou menos duradouramente a lei
ordinária tenha instituído ou venha 6
Sobre a questão, Aliomar Baleeiro (1999, p. 237,
a instituir.” 238) acolhe expressamente a noção ampla de pro-
priedade nos seguintes termos: não nos parece que a
Entretanto, tem majoritariamente preva- interpretação deva ser restritiva, afinal, a posse é atributo da
lecido via interpretativa diversa que confe- propriedade e deve ser incluída no conceito desta para efeitos
re maior alcance ao direito fundamental de do Direito Fiscal. E, mais adiante, arremata: o ocupante
modo a abranger não apenas a definição de e o foreiro desses bens públicos ficam sujeitos ao imposto
territorial rural, do mesmo modo que os chamados “possei-
propriedade constante na legislação civil, ros” de terras do domínio particular, podendo o legislador,
mas também outros direitos de conteúdo neste último caso, por mera conveniência administrativa,
patrimonial (BASTOS, 2000, p. 207-208; escolher o proprietário ou o possuidor.

58 Revista de Informação Legislativa


encontra repercussão nos julgados do Su- também foi sufragada pelo voto de signi-
premo Tribunal Federal. Ao examinar, na ficativa parcela dos Ministros. Ao mani-
ADI no 1.715-3/DF, a constitucionalidade festar seu entendimento sobre a questão,
de ato normativo que fixava prazo para o Ministro Sepúlveda Pertence sustentou
reclamação de valores depositados em precisamente que propriedade para os fins
conta corrente por pessoas que não efetu- constitucionais é sinônimo de patrimônio, e que
aram o devido recadastramento, debateu- os direitos de crédito se situam no campo
-se sobre o alcance do direito fundamental normativo da proteção constitucional à proprie-
constante do art. 5o, XXII, da Constituição. dade11. Também o Ministro Carlos Velloso
Isso porque, segundo a legislação civil, o perfilhou orientação semelhante. Para ele, a
direito sobre as quantias depositadas em disposição constitucional garantidora do direito
instituições bancárias deixa de ter natureza de propriedade não fica somente no direito real,
real para assumir caráter creditício7. ou não deve ser interpretada em sentido estrito,
Assim, parte dos membros da Corte abrangendo também, numa interpretação
manifestou-se no sentido de que a garantia extensiva (...), a titularidade do crédito, ou o
constitucional da propriedade não alcança direito de crédito, dado que essa titularidade
outros direitos de conteúdo patrimonial implica em ser, de certa forma, proprietário12.
como o crédito decorrente de depósitos A questão dividiu a Corte. A solução do
bancários. Segundo ressalta o Ministro caso acabou ocorrendo em face de outros
Nelson Jobim, não se trata de direito de fundamentos, mantendo, portanto, acesa
propriedade, mas de contrato de depósito de a controvérsia sobre o tema em sede juris-
bem fungível. Se fôssemos falar em direito de prudencial.
propriedade, acrescenta, teríamos como tal as
cédulas depositadas, portanto, seria inviável ao 6. Propriedade e lei
banco operar com aqueles valores8. A mesma
orientação é adotada pelo Ministro Mau- O direito de propriedade, ainda que in-
rício Corrêa, ao afirmar que a relação do serido no âmbito dos direitos de liberdade,
depositante com a instituição depositária é de requer específica atuação do legislador.
direito pessoal no que concerne ao crédito de Diferentemente de algumas liberdades
que é titular, ao contrário do que acontece com o que, prima facie, dispensam intervenção
detentor do direito constitucional de proprieda- legislativa específica para determinação
de9. Para ele, o depósito bancário, stricto sensu, de sua configuração jurídica e consequente
não caracteriza direito de propriedade na forma exercício (ANDRADE, 2004, p. 208; SILVA,
como o conceitua o artigo 5o, inciso XXII, muito 2003, p. 267), a propriedade exige comple-
menos como está posto no seu caput10. mentação normativa voltada à sua confor-
A via interpretativa que reconhece mação. Trata-se de garantia institucional
maior alcance ao direito de propriedade que demanda do legislador a promulgação
de complexo normativo que assegure a existên-
7
Ver, a propósito, os votos proferidos pelos cia, a funcionalidade, a utilidade privada desse
Ministros Nelson Jobim e Maurício Corrêa na ADI
direito (MENDES 2004, p. 155; PONTES DE
no 1.715-3/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, in DJU de
30.04.2004. MIRANDA, 1987, p. 396). Em boa medida,
8
Voto proferido pelo Ministro Nelson Jobim na cabe à legislação estabelecer o regime ju-
ADI no 1.715-3/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, in DJU rídico do direito, impondo normas sobre a
de 30.04.2004.
9
Voto proferido pelo Ministro Maurício Corrêa
criação e a finalização da posição de propriedade,
na ADI no 1.715-3/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, in
DJU de 30.04.2004. 11
Voto proferido na ADI no 1.715-3/DF, Rel. Min.
10
Voto proferido pelo Ministro Maurício Corrêa Maurício Corrêa, in DJU de 30.04.2004.
na ADI no 1.715-3/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, in 12
Voto proferido na ADI no 1.715-3/DF, Rel. Min.
DJU de 30.04.2004. Maurício Corrêa, in DJU de 30.04.2004.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 59


assim como normas que vinculam consequên- 7. Propriedade e função social
cias jurídicas a esta posição (ALEXY, 1993, p. A reação ao avanço do liberalismo eco-
192-193). O âmbito de autonomia confiado, nômico que marcou, sobretudo, o início do
nesse particular, ao legislador não é, porém, século XX, acabou por ensejar profunda
ilimitado. Descabe-lhe, a título de disci- revisão sobre o alcance e o significado do
plinar o exercício do direito, desnaturar direito de propriedade. Com a introdução
seu conteúdo por excesso de regulamentação do sufrágio universal, o processo político
(FAVOREU et al, 2002, p. 206). passou a sofrer mais intensamente a influ-
Como anteriormente salientado, as ência de outras correntes de pensamento,
restrições à propriedade, caso não esta- como o socialismo, a socialdemocracia e
belecidas expressa e diretamente pela o socialcristianismo. E, nessa perspectiva,
Constituição, também ficam submetidas à muitos de seus ideólogos encaravam a pro-
atuação legislativa. Ainda que em face de priedade como instrumento de opressão de
outro preceito constitucional, verifica-se massas e fonte de crescente desequilíbrio
a possibilidade de o legislador ponderar social (BURDEU, 1966, p. 378; FERREIRA
o direito de propriedade e outros valores FILHO, 1982, p. 32).
constitucionais que com ele colidam segun- Decorre daí a ideia de impor limitações
do determinadas circunstâncias. à propriedade no sentido de que ela, além
Tais restrições acabam por sujeitar-se, de atender os desejos e interesses de seu
nesse ponto, ao princípio da reserva legal. titular, pudesse também responder e servir
Ou seja, somente à lei – elaborada pelos às necessidades da sociedade (BURDEU,
representantes do povo – cabe dispor sobre 1966, p. 378; FERREIRA FILHO, 1982, p. 32).
tais questões, sendo vedada a imposição Ou seja, cumprir sua função social. Desse
de limitações à propriedade por atos nor- modo, como esclarece Burdeau (1966, p.
mativos de índole infralegal. Trata-se de 378), tornar-se-ia uma propriedade moraliza-
exigência – que remonta à Magna Carta da e humanizada que não mais corre o risco de
de 1215 – que requer embasamento em degenerar num poder opressivo.
lei formal, devidamente aprovada pelos Tal concepção ganhou foro constitucio-
representantes da população, como pres- nal ainda na primeira metade do século XX.
suposto de eventual restrição ou privação Foi expressamente consagrada pela Consti-
da propriedade. A Declaração de Direitos tuição alemã de 1919. Emblematicamente,
da Virgínia, em seu art. 7o, também consa- o mesmo art. 153, que, de início, estabelece
grava cláusula no mesmo sentido: nenhuma que a Constituição garante a propriedade,
parte da propriedade de um vassalo pode ser consagra, ao final, a seguinte cláusula: a pro-
tomada, nem empregada para uso público, sem priedade obriga. Seu uso constituirá, também,
seu próprio consentimento, ou de seus represen- um serviço para o bem comum. Outros textos
tantes legítimos; e o povo só está obrigado pelas constitucionais adotaram orientação seme-
leis, da forma por ele consentida para o bem lhante, ainda que com redações diversas. A
comum. O texto constitucional brasileiro Constituição brasileira de 1988 assegura, no
conserva tal conquista do constituciona- inciso XXIII do seu art. 5o, que a propriedade
lismo clássico, estabelecendo, além do art. atenderá a sua função social. Inscreve, ainda,
5o, II, diversas outras cláusulas específicas a função social da propriedade (art. 170, III, da
de reserva legal. Desse modo, a restrição Constituição) entre os princípios que infor-
à propriedade imposta, sem fundamento mam a ordem econômica. Exibe, ademais,
legal, mediante atos de natureza admi- dispositivos específicos voltados a definir
nistrativa contempla grave violação da a função social da propriedade de imóveis
Constituição, não devendo subsistir nem urbanos (art. 182, § 2o, da Constituição) e
produzir efeitos. rurais (art. 186 da Constituição).

60 Revista de Informação Legislativa


A afirmação constitucional da função Em outras palavras, se o descumpri-
social da propriedade suscitou, natural- mento da função social constituísse funda-
mente, interpretações variadas quanto mento suficiente para afastar o alcance da
ao seu alcance e significado. Para alguns, proteção jurídico-constitucional, descaberia
sua imposição implica o acréscimo de a adoção de tais procedimentos, bem como
aspecto essencial ao conteúdo do direito o dever de indenizar que – como decorrên-
de propriedade, sem o qual fica afastada cia da garantia constitucional da proprieda-
sua garantia jurídico-constitucional por de – tem a finalidade de reparar o prejuízo
desfiguração do instituto. Ou seja, tal cor- patrimonial sofrido, muito embora seu
rente considera que o bem apropriável, mas pagamento não ocorra como nas demais
que desatenda à função social a que se destina, espécies de desapropriação. A observância
não é objeto de direito constitucionalmente de tais exigências contempladas no texto
protegido (ROCHA, 2003, p. 577; GRAU, constitucional constitui imposição que
2003, p. 214). Não se enquadraria, em decorre justamente da proteção conferida
última análise, no conceito constitucional à propriedade13.
de propriedade.
Levada tal concepção às últimas conse-
8. Propriedade e indenização
quências, a inobservância da função social
poderia admitir a tomada injustificada do A privação ou ablação, ainda que
bem, inclusive mediante invasão forçada, parcial, da propriedade gera, como regra
pois não estaria mais abrangido pelo direito geral, o dever de indenizar. A reparação
de propriedade em virtude da ausência de financeira pela limitação da propriedade
aspecto elementar essencial. constitui garantia que já encontrava funda-
O texto constitucional, no entanto, mento no texto da Declaração dos Direitos
permite cogitar de solução diversa. O do Homem e do Cidadão, de 1789. Ao con-
descumprimento da função social da pro- templar, em caráter excepcional, a possibi-
priedade não descaracteriza o direito de lidade de privação da propriedade quando
propriedade, mas determina a imposição a necessidade pública legalmente comprovada o
de penalidades, podendo resultar, inclusi- exigir manifestamente, o art. 17 da Declaração
ve, em desapropriação (BASTOS, 2000, p. define como condição o pagamento de justa
210). No caso do imóvel rural, o art. 184 da e prévia indenização.
Constituição sujeita o bem à desapropria- Nessa mesma perspectiva, a Consti-
ção para fins de reforma agrária caso não tuição brasileira de 1988, em seu art. 5o,
seja observada a função social da proprie- XXIV, autoriza o legislador a estabelecer
dade. Em relação ao imóvel urbano, o art. o procedimento para desapropriação por neces-
182, § 4o, do texto constitucional, comina sidade ou utilidade pública, ou por interesse
em face do descumprimento da função social, mediante justa e prévia indenização em
social a aplicação sucessiva das seguintes dinheiro, ressalvados os casos previstos pelo
penalidades: (I) parcelamento ou edificação próprio texto constitucional. Ao dispor
compulsórios; (II) IPTU progressivo no
tempo; e (III) desapropriação. Em ambos 13
Nesse sentido, manifestou-se, no julgamento
do MS no 25.493/DF, o Ministro Celso de Mello ao
os casos, determina-se a observância de asseverar que não se pode perder de perspectiva, por mais
procedimentos específicos, regulados em relevantes que sejam os fundamentos da ação expropriatória
sede legislativa, que, no máximo, podem do Estado, que este não pode - e também não deve - desres-
culminar com a expropriação do imóvel peitar a cláusula do “due process of law”, que condiciona
qualquer atividade do Estado tendente a afetar, dentre outros
e a respectiva indenização, ainda que em direitos, aquele que concerne à propriedade privada (cf.
títulos públicos resgatáveis, conforme o voto proferido no MS no 25.493/DF, Rel. Min. Marco
caso, em até dez ou vinte anos. Aurélio, sessão de 19.05.2010).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 61


sobre o instituto da requisição administra- sobre a impugnação, por violação do di-
tiva, o art. 5o, XXV, do texto constitucional reito de propriedade, do preceito legal que
permite que, em caso de iminente perigo determinava a entrega de armamentos e
público, a autoridade competente poderá usar munição em face da ausência de renovação
de propriedade particular, assegurada ao pro- periódica de licença, o Supremo Tribunal
prietário indenização ulterior, se houver dano. Federal definiu que o direito do proprietário
A imposição do dever de indenizar em à percepção de justa e adequada indenização,
face de privação do direito de propriedade reconhecida no diploma legal impugnado, afasta
tem encontrado guarida na jurisprudência a alegada violação ao art. 5o, XXII, da Constitui-
do Supremo Tribunal Federal. É o que se ção Federal15. Ou seja, o dispositivo legal que
extrai do julgamento do RE no 134.297-8/ determinava a reparação financeira em face
SP, em que se analisou a interdição admi- da entrega de armas e munições constitui,
nistrativa de remoção parcial de cobertura segundo a interpretação da Corte, impo-
arbórea em propriedade rural abrangida sição decorrente do direito fundamental à
pela Estação Ecológica de Juréia-Itatins. propriedade.
No caso, produtores rurais foram impedi- Também em observância ao direito de
dos, pelo órgão ambiental competente, de propriedade, a Lei no 9.985, de 2000 (que
implantar projeto de cultura de cacau com institui o Sistema Nacional de Unidades de
aproveitamento dos recursos naturais exis- Conservação da Natureza e dá outras pro-
tentes na área, consoante recomendações de vidências) determina a desapropriação –
estudo de viabilidade econômica que fize- com a respectiva prévia e justa indenização
ram realizar. Em seu voto, que conduziu o – de áreas particulares que recaem sobre
julgamento, asseverou o Ministro Celso de unidades de conservação que, segundo a
Mello que a circunstância de o Código Florestal lei, devem ser de posse e domínio públicos.
(Lei no 4.771/65) definir como bens de interesse É o que estabelece, entre outros, o § 1o do
comum tanto as florestas existentes no território art. 17 (Florestas Nacionais), o § 1o do art.
nacional quanto as demais formas úteis de ve- 19 (Reserva de Fauna), o § 2o do art. 20 (Re-
getação que revestem as áreas por elas ocupadas serva de desenvolvimento sustentável) e o
não impede que se reconheça a obrigação de o § 1o do art. 9o (Estação Ecológica). Ou seja,
Poder Público indenizar o proprietário do solo a interdição da propriedade decorrente da
naquelas hipóteses em que as limitações admi- decretação de tais unidades de conservação
nistrativas, suprimindo ou reduzindo a possi- requer necessariamente regular processo
bilidade de exploração dos recursos naturais da expropriatório, com a devida reparação
terra, venham a virtualmente esterilizar, em seu financeira exigida em nome do direito
conteúdo essencial, o direito de propriedade14. inscrito no art. 5o, XXII, da Constituição.
Ou seja, as limitações administrativas à pro- A ação que tenha por finalidade privar
priedade – ainda que de caráter ambiental o proprietário de seu bem, expropriando-o
– que impliquem redução ou esvaziamento sem o pagamento de indenização, constitui
de seu conteúdo econômico impõem ao confisco. Trata-se de penalidade admitida
poder público o dever de indenizar, como excepcionalmente em face da prática de
forma de assegurar minimamente o direito determinadas infrações. O texto constitu-
definido no art. 5o, XXII, da Constituição. cional – como se viu acima – autoriza, em
A mesma orientação presidiu o julga- seu art. 243, o confisco das glebas de qualquer
mento da ADI no 3.112/DF que examinou região do País onde forem localizadas culturas
a constitucionalidade da Lei no 10.826/2003 ilegais de plantas psicotrópicas. Determina,
(Estatuto do Desarmamento). Ao decidir ainda, a mesma medida para qualquer bem
14
Cf. RE no 134.297-8/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 15
Cf. ADI no 3.112/DF, Rel. Min. Ricardo Lewan-
in DJU de 22.09.95. dowski, in DJU de 25.10.2007.

62 Revista de Informação Legislativa


de valor econômico apreendido em decorrência priedade, sendo vedado à administração
do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins pública determinar unilateralmente – sem
(art. 243, parágrafo único). deliberação dos representantes eleitos pelo
A legislação penal também contempla povo – limitações ao seu exercício. Em se-
hipóteses de confisco. O art. 91 do Código gundo lugar, cumpre destacar o dever de
Penal determina a perda em favor da União indenização decorrente da privação, total
– com a ressalva dos legítimos direitos do ou parcial, do bem sob domínio. Descabe ao
lesado e do terceiro de boa-fé – do produto do poder público causar prejuízos ou mesmo
crime ou de qualquer bem ou valor que constitua expropriar bens particulares sem justa e
proveito auferido pelo agente com a prática de devida reparação financeira. A interdição
fato criminoso, além dos instrumentos do cri- da propriedade sem indenização é confisco,
me, desde que consistam em coisas cujo fabrico, medida admitida apenas em casos excep-
alienação, uso ou detenção constitua fato ilícito. cionais, como penalidade a específicas e
Disciplina semelhante é, ainda, encontrada determinadas infrações.
no art. 7o, I, da Lei no 9.613, de 1998, que
dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou
ocultação de bens, direitos e valores.
O confisco constitui, portanto, penali- Referências
dade excepcional de privação da proprie- ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales.
dade sem o pagamento de indenização, Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993.
que somente cabe ser aplicada mediante
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fun-
expressa previsão em lei. Descabe, assim,
damentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3. ed.
em face de atividade lícita, desempenhada Coimbra: Almedina, 2004.
nos termos da lei. A execução de medida
ARENDT, Hanna. A condição humana. 10. ed. São
confiscatória sem base legal ou conotação
Paulo: Forense, 2004.
punitiva constitui expropriação que requer,
em face do direito de propriedade, devida ARON, Raymond. O marxismo de Marx. São Paulo:
Arx, 2003.
reparação financeira.
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
9. Conclusões
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional.
A propriedade não assume contornos 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
de direito absoluto. Ainda que considerada BURDEAU, Georges. Les libertés publiques. 3. ed. Paris:
como direito fundamental inato à condição LGDJ, 1966.
humana, a propriedade submete-se a diver-
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria
sos condicionamentos e restrições. Muitos da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998.
decorrentes de outros direitos e princípios
CORREIA, Maria Lúcia C. A. Amaral Pinto. Respon-
também tutelados pelo texto constitucional.
sabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador.
Isso não significa dizer que a proprie- Coimbra: Coimbra, 1998.
dade deve ser relativizada a ponto de in-
FAVOREU, Louis et al. Droit des libertés fondamentales.
viabilizar o seu exercício. A ordem jurídica
2. ed. Paris: Dalloz, 2002.
vigente certamente assegura aos titulares
desse direito um conjunto de garantias FERNÁNDEZ SEGADO, Francisco. La dogmatica de los
derechos humanos. Lima: Juridicas, 1994.
contra eventuais violações. Duas delas
merecem especial destaque. A primeira FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos hu-
garantia é a decorrente do princípio da manos fundamentais. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
reserva legal, que exige expressa previsão _____. Curso de direito constitucional. 34. ed. São Paulo:
em lei das restrições ao direito de pro- Saraiva, 2008.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 63


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64 Revista de Informação Legislativa


A (in)sustentável leveza do direito
internacional

Marco Aurélio Gumieri Valério

Sumário
1. Introdução. 2. Sanções. 3. Sanções na-
cionais e internacionais. 4. Identificação das
violações ao direito internacional. 5. Conclusão.

1. Introdução
Na Grécia Antiga, destaca Arendt (1990,
p. 12), a vida política não se estendia além
dos limites da polis, por isso, as relações
externas baseavam-se na violência e não na
diplomacia. De fato, segundo Oppenheim
(1919, p. 6), o direito internacional não se
formou nesse período histórico, pois as
diferenças religiosas, as dificuldades de
comunicação e os problemas de transporte
impediram o desenvolvimento desse ramo
jurídico1. Na Antiguidade, predominava a
1
Nas palavras do autor: “Now what was the reason
that antiquity did not know of any International Law?
The reason was that between the several independent
states of antiquity no such intimate intercourse arose
and no such common views existed as to necessitate
a law between them. Only between the several city
States of ancient Greece arose some kind of what we
should now call ‘International Law,’ because these
city States formed a Community fostered by the same
language, the same civilization, the same religion,
the same general ideas, and by constant commercial
and other intercourse”. Tradução livre: Agora, qual a
razão para que a antiguidade não tenha conhecido
o direito internacional? O motivo foi que entre os
vários estados independentes da antiguidade não
Marco Aurélio Gumieri Valério é advogado; surgiu nenhuma relação íntima e, sem esses contatos
professor doutor da Universidade de São Paulo, intersubjetivos, não havia razão para a existência de
campus de Ribeirão Preto/SP (FEA-USP/RP). um arcabouço legislativo entre eles. Apenas entre

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 65


visão expressa por Thucydides (1951, p. 44) a possibilidade de que o direito internacio-
de que o direito é desnecessário quando a nal seja contrariado não é o bastante para
força pode ser usada. Também na Idade que se coloque em dúvida sua existência,
Média pode-se dizer que o estado de na- até porque, se assim fosse, não faria sentido
tureza predominava com a agravante de falar-se em direito algum, fosse ele nacio-
que os estados nacionais ainda estavam nal ou internacional. Kelsen (1986, p. 28)
em formação. indica a possibilidade de se conduzir um
Ainda no século XVIII, os problemas de determinado grupo social a cumprir regras
eficácia e de efetividade do direito inter- por meio da simples demonstração da
nacional faziam com que muitos juristas, conveniência em se adotar ou em se abster
a exemplo de Savigny (1779-1861) e de de determinada conduta, contudo, conclui
Austin (1790-1859), negassem até mesmo ironicamente que esse método funciona
que esse se tratasse de um ramo do direito. apenas com santos.
Não é à toa que a aplicabilidade do di- Toda e qualquer norma sofre com a
reito internacional sempre tenha sido objeto probabilidade de vir a ser desobedecida,
de acalorados debates. A raiz voluntarista pois, os sujeitos de direito, nacionais ou
que alimenta suas fontes tem consequências internacionais, em última análise, sempre
profundas sobre o caráter prescritivo, seja escolhem se vão ou não seguir o que está
positivo ou negativo, de suas normas2. Sua estabelecido em lei. Sua inobservância
própria existência é ainda nos dias de hoje saliente-se, não é um fenômeno exclusivo
posta em xeque, uma vez que ele parece do direito internacional. Todas as regras,
depender exclusivamente dos interesses mesmo as não jurídicas, enfrentam tal
daqueles que o criaram e, nesse sentido, possibilidade.
não valeria quando contraposto àquilo que Novamente na lição de Kelsen (1986), a
o fez surgir. particularidade dos sistemas normativos
De certa forma, tal consideração não é de direito repousa na construção de me-
de todo descabida, até porque, em verdade, canismos que forcem seus destinatários
o cumprimento do direito internacional a comportar-se conforme as leis 3. Esses
aparenta mesmo ficar à mercê da boa vonta- mecanismos atuam em duas frentes: uma
de dos atores em respeitá-lo. Por outro lado, conhecida como coerção e outra como co-
ação. A primeira é a expressão pela norma
as cidades-estado da Grécia antiga surgiram algum jurídica da previsão de que, se violada, o
tipo de relação que devemos agora chamar de direito direito atuará sobre o seu descumprimento;
internacional, porque estas cidades-estado formaram
uma comunidade fomentada pela mesma língua, pela
e, por sua vez, a segunda é a efetiva impo-
mesma civilização, pela mesma religião, pelas mesmas sição material da punição prevista para o
ideias gerais, pelas relações comerciais e outras cons- comportamento contrário à norma jurídica.
tantes (OPPENHEIM, 1919, p. 6).
2
Nesse sentido: “A fundamental (and frequent) cri-
ticism of international law is the weakness of mecha-
3
Nas palavras do autor: “La palabra derecho denota
nisms for enforcement. For the sceptics and the critics precisamente la técnica social concreta de un orden
of international law, a system so woefully deficient in coercitivo que, pese a las enormes diferencias que
means for compelling compliance can hardly qualify existen entre el derecho de los antiguos babilonios
as ‘law’, at least in the sense in which that term is y el derecho vigente en Estados Unidos, entre el
used in domestic systems”. Tradução livre: Uma crítica derecho de los Ashanti del África Occidental y el de
fundamental (e frequente) ao direito internacional é los suizos en Europa es, no obstante, esencialmente
a fraqueza de seus mecanismos de execução. Para os la misma para todos esos pueblos tan ampliamente
céticos e para os críticos do direito internacional, um heterogéneos en tiempo, espacio y cultura, a saber:
sistema tão angustiadamente deficiente em meios técnica social consistente en obtener de los hombres
para se fazer valer quase não pode se qualificar como El comportamiento social que se desee, por medio
lei, pelo menos no sentido em que este termo é usado de la amenaza de una medida coercitiva aplicable en
nos sistemas domésticos (DAMROSCH, 1997, p. 19). caso de conducta contraria” (KELSEN, 1986, p. 29-30).

66 Revista de Informação Legislativa


Como destaca Ferraz Júnior (1994, p. às suas violações. Ao mesmo tempo, é uma
109), quando a regra é violada, o direito medida de coerção quando abstratamente
não pode ficar inerte. Ele deve responder prevista e uma medida de coação, quando
ao descumprimento verificado sob pena de concretamente imposta.
ser desconsiderado se reiteradamente in- As sanções são legalmente previstas
fringido e relevado sem que haja qualquer como medidas coercitivas e ensejam a
consequência. Ele passa a não mais regular aplicação prática como medidas coativas da
as relações antes sujeitas aos seus desígnios. norma subsidiária que as constitui. Destaca
Para Kelsen (1984, p. 30), as relações, se Kelsen (1951, p. 706) que, de uma forma ou
conduzidas a despeito de comandos legais de outra, elas representam a privação força-
que ditam como se devem empreender, da de determinados bens do sujeito sobre
imunizam-se contra as prescrições norma- o qual se impõem. O fato de se fazerem
tivas existentes e contra outras que venham verificadas forçosamente significa que se
a existir. Assim, o direito passa a ser um estabelecem contra a vontade do ator que
fator indiferente para os atores nacionais as sofre. Ainda segundo o autor, as sanções
ou internacionais e para as atividades de- são tão importantes para a formação do
senvolvidas por esses. sistema jurídico que o leva a ser definido
Nas relações internacionais, o poder como uma ordem coercitiva ou coativa.4
de determinar uma resposta à sua viola- Por atuarem contra a vontade do sujei-
ção recai sobre o fato de que as normas to, as sanções podem ser descritas como
jurídicas criam direitos e obrigações para interferências na sua esfera de interesses.
os sujeitos internacionais aos quais se des- A exceção que autoriza a medida é a
tinam em nome da harmonização da vida transgressão de norma jurídica ou, noutros
em sociedade. Tema dos mais instigantes, termos, a infração de obrigação a que estava
este artigo objetiva analisar a aplicabilidade adstrito o ator ou ainda a violação de direito
do direito internacional. Para isso, parte-se de outro sujeito.
de um estudo da sanção como elemento Todo descumprimento à norma de
coercitivo e coativo da norma. Posterior- direito internacional é reflexo de um
mente, compara-se a norma nacional com a desrespeito à regra e merece, portanto,
internacional, indicando as diferenças entre uma sanção que vise a reafirmar que ela
elas. Em seguida, analisa-se como se dá a deveria ter sido obedecida. Ela ostenta
identificação de um ilícito internacional. um conteúdo normativo – porque define
comportamentos – e subsidiário – porque
visa a substituir um comando descumprido
2. Sanções
e reforçar a necessidade de observar-se o
O ator internacional que não cum- dever dele decorrente – o que representa
prir com o devido será o destinatário de uma reação do direito contra a sua violação.
uma norma subsidiária, que exprimirá o
conteúdo da resposta do direito a toda e 4
Nas palavras do autor: “Law is, by its very nature,
qualquer infração às suas disposições. Dito a coercive order. A coercive order is a system of rules
de outra forma, essa norma subsidiária é prescribing certain patterns of behavior by providing
coercive measures, as sanctions, to be taken in case of
a manifestação da coerção que constitui o
contrary behavior, or, what amounts to the same, in
direito e o resultado produzido em razão case of violation of the law”. Tradução livre: A lei é,
da atuação concreta da norma subsidiária por sua natureza, uma ordem coercitiva. Uma ordem
será a expressão da coação que o sistema coercitiva é um sistema de regras que prescrevem
certos padrões de comportamento provendo medidas
aplica sobre o ator internacional.
coercitivas, como sanções, que serão levadas no caso
Em síntese, a sanção é essa norma sub- de comportamento contrário, ou, o que dá no mesmo,
sidiária que o direito cria para responder na hipótese de violação da lei (KELSEN, 1951, p. 706).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 67


Em termos genéricos, esses são os deli- dos limites formais e materiais, no Estado.
neamentos que permeiam o conceito jurídi- O direito internacional desconhece uma
co da sanção, seja ela nacional ou internacio- autoridade central, superior aos indivíduos
nal. Ainda que a sanção se apresente como que dela fazem parte, que atue segundo os
elemento indispensável à sobrevivência do mesmos pressupostos. A ideia de que os
direito, o voluntarismo que dá vida ao di- países se subordinem a um poder supra-
reito internacional gera argumentos vários nacional, apesar dos esforços nesse sentido,
que se opõem a essa imprescindibilidade. não se mostra factível. O máximo a que se
Henkin (1979, p. 47) defende que as chegou até agora foi num misto entre a
normas internacionais têm um nível de sujeição e a cooperação.
aceitação e conduzem comportamentos As relações internacionais são travadas
como poucos sistemas normativos fazem, entre iguais, sob um ponto de vista jurídico.
justamente porque seu nascedouro está Se materialmente essas relações podem
na vontade dos atores aos quais são des- ser desiguais, em razão do poder que cada
tinados seus conteúdos. A obediência às um ostenta, por exemplo, pela pujança
regras jurídicas é uma consequência natural militar ou econômica, juridicamente essas
da sua própria existência. As normas são relações de poder, embora influenciem o
seguidas pela imperatividade que flui dos papel de cada país na construção do direito
seus conteúdos e não por qualquer previsão internacional, não produzem o efeito de
de uso da força contra aqueles que vierem estabelecer uma ordem que ponha fim à
a descumpri-las. noção de soberania e instaure o princípio
Chayes e Chayes (1995, p. 2) também do monopólio do poder de sanção a ser
apostam na força da prescrição normativa exercido pelo mais forte ou por uma orga-
sobre os sujeitos, considerando como de nização multilateral.
importância relativa o papel das sanções Dessa forma, as relações de poder re-
na sustentação do sistema jurídico interna- percutem sobre o processo de aplicação das
cional. Para eles, a obediência é favorecida sanções internacionais, mas sem instituir as
pela promoção de elementos não coerciti- bases que fundam a imposição de sanções
vos e não coativos, e não na imposição de nacionais. Ele continua assentado na ideia
sanções. de que, porque iguais, nenhum ator tem o
Sustentam ainda os autores que a me- direito de tomar para si o poder de julgar os
lhor iniciativa para aumentar o grau de atos de outro sujeito e impor-lhes sanções
conformidade dos comportamentos às pelas faltas em que porventura tenham
regras jurídicas estabelecidas pelo sistema incorrido.
é fazer com que seus conteúdos sejam É fato que tal assertiva é mitigada con-
conhecidos pelos sujeitos e incorporados forme os laços de cooperação entre os atores
aos seus comportamentos não por pressão, formem organizações multilaterais. Nesse
mas pela coerência e necessidade de suas caso, o conceito de soberania pode ser revis-
prescrições. As normas jurídicas, por si to em nome dos interesses perseguidos pela
mesmas, convencem os sujeitos de direito sociedade internacional. Torna-se possível
da importância de serem cumpridas. verificar alguma subordinação, especial-
mente em relação às sanções internacionais.
As sanções nacionais não só se apoiam
3. Sanções nacionais e internacionais
no princípio de que provêm do Estado,
Existe uma distância que separa as como também são obrigatórias, indepen-
sanções nacionais e as internacionais que dendo da vontade do indivíduo de cumpri-
deriva do monopólio do uso da força que -las ou não. Como medidas coercitivas e
o direito nacional concentra sob determina- coativas que são, dão expressão ao poder

68 Revista de Informação Legislativa


do direito sobre a vontade individual. causas políticas. Muitas vezes, expressam
Essa é outra característica que delimita a apenas as diferenças entre atores e apare-
fronteira com as sanções internacionais. cem como resultado das contrariedades
As últimas podem ser classificadas, no surgidas entre eles.
sistema previsto pela ONU, como voluntá- Se esses substratos extrajurídicos estão
rias ou obrigatórias. Isso significa que, não ligados às sanções internacionais e não obs-
obstante originadas de uma organização curecem seu caráter jurídico, pelo contrário,
multilateral, podem ser rotuladas como são expressões de um perfil heterodoxo
objeto de recomendação e, portanto, não ínsito à noção de direito internacional, ou
forçosamente impostas. se, por outro lado, apenas aparecem em
Esses dois perfis das sanções internacio- medidas que, na verdade, não são sanções
nais não se aplicam às militares. Quando internacionais, é questão complexa a ser
não institucionalizadas, aliás, como é o caso tratada junto às sanções econômicas inter-
da grande parte das sanções econômicas, nacionais. Por ora, vale frisar que as sanções
seus níveis de coerção e de coação tornam- nacionais apresentam um conteúdo jurídico
-se frágeis, uma vez que a obrigatoriedade mais definido do que as internacionais, o
da submissão depende do poder de o agen- que põe em dúvida a real existência das
te sancionador fazer com que a mesma seja últimas.
observada pelo agente sancionado. Nos sistemas jurídicos nacionais exis-
As ordens jurídicas nacionais preveem tem graus de ilicitude perfeitamente aco-
sanções como resposta à violação de direi- modados e diferenciados, em que vigem
tos reconhecidos como tais pelos sistemas. sanções de naturezas distintas, com efeitos
A juridicidade dessas medidas é destacada também distintos. Destarte, as sanções civis
por Santos (2002) como principal motivo e as penais estão relacionadas às ilegalida-
para sua verificação, seja na forma de co- des que atingem a direitos e a interesses
erção, seja na de coação. De modo geral, privados e a públicos, respectivamente.
considerações extrajurídicas não ensejam, As sanções civis normalmente exigem a
por si sós, a aplicação de sanções. Elas se reparação do ato ou da omissão que tenha
destinam a impor-se sobre o sujeito de significado violação de obrigação legal. Se
direito que tenha cometido ato ou omissão não mais possível reconstituir a situação
ilegal. A ilicitude, portanto, é o pressuposto de direito atingida, a medida exige que o
da medida em âmbito nacional. ofensor compense o ofendido, de modo a
As sanções internacionais, por outro restituir, por outros meios, o que foi reti-
lado, não se inserem num sistema que trace rado do ofendido, pagando-se o prejuízo
uma linha divisória entre ações e omissões causado. As sanções penais, por sua vez,
lícitas e ilícitas, aliás, poucas são as práticas visam a punir o ofensor. A repreensão
ou as faltas que são, sem dúvida, violações traspassa o fim de restaurar o direito vio-
de direito internacional. Essa indefinição lado ou compensar as perdas originadas
conduz à identificação de tal sistema como do dano provocado. A punição pode ser
um todo ainda aberto a interferências dos a representação de um desejo de pagar-se
próprios sujeitos de direito. A possibilida- o mal com o mal. Infligindo-o ao ofensor,
de de que conceitos sejam fabricados para pode significar uma medida de correção do
servirem como prova da necessidade de criminoso, ou então servir de exemplo para
aplicação de determinada sanção interna- que outros sejam compelidos a não praticar
cional é grande e facilita, assim, que razões crimes, convencidos de que, se o fizerem,
extrajurídicas estejam na base da motivação terão a mesma sorte.
para a imposição de sanções internacionais. No direito internacional essa transpa-
Essas quase sempre estão mergulhadas em rência quanto aos fins perseguidos pelas

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 69


sanções impostas inexiste. Esse nem mesmo nacionais como se fossem criminalmente
apresenta sanções de caráter penal, mas responsáveis pela ação de seu Estado serve
apenas civis5. Mesmo quem defende que apenas para combater a amargura da der-
existem sanções de caráter penal, admite-as rota e lançar as sementes de uma guerra
apenas na hipótese de responsabilidade in- vingativa.
ternacional individual e não coletiva, como Segundo Williams (1939, p. 84), os ar-
seria a de um Estado. gumentos que afastam a possibilidade de
O direito penal internacional conheceu aplicação de sanções penais internacionais
progressos a partir da instalação dos tri- a pessoas jurídicas, limitando às pessoas na-
bunais que se seguiram à Segunda Guerra turais que governam o país, são conhecidos.
Mundial em Nuremberg, na Alemanha, As divergências entre sanções nacionais
e em Tóquio, no Japão. Recentemente, os e internacionais não são destacadas a fim de
tribunais para julgamento dos crimes inter- que se depreciem estas em favor daquelas.
nacionais ocorridos nos conflitos armados As imperfeições das sanções internacionais
que tiveram lugar na antiga Iugoslávia e nem mesmo podem ser consideradas defei-
em Ruanda também contribuem para o tos porque não estão enquadradas no mo-
desenvolvimento deste ramo jurídico, mas delo das sanções nacionais. Como destaca
sob as bases do reconhecimento de respon- Bobbio (2003), o propósito de comparar as
sabilidades internacionais individuais. duas é o de lembrar que elas são o resulta-
O Tribunal Penal Internacional, cujo do de sistemas jurídicos estruturalmente
Estatuto de Roma se encontra em vigência, diversos e aclarar as funções das sanções
também trata da responsabilidade indivi- internacionais a partir do papel que desem-
dual, o que faz supor que, a despeito dos penham as sanções nacionais.6
avanços na formulação de um direito penal
internacional, a responsabilidade dos Esta- 4. Identificação das violações
dos ainda é matéria intocada. ao direito internacional
Em qualquer comportamento impróprio
do ponto de vista internacional, sobretudo Se as sanções são a reação do direito
por ocasião da eclosão de uma guerra, internacional contra qualquer violação de
com a exceção de umas poucas pessoas obrigações prescritas, então toda imposição
que comandam os rumos do país, a maio- coercitiva ou coativa, para justificar-se,
ria da população não tem conhecimento liga-se a um desvio de comportamento
necessário do que está em disputa para proibido pelas normas internacionais que,
torná-los individualmente responsáveis e por sua vez, qualifica-se como pressuposto
culpados. Mesmo que tenham consciência, 6
Nas palavras do autor: “Os juristas sabem que uma
podem não ter os meios para fazer uma
proibição para ser considerada jurídica no sentido
oposição eficaz ao rumo tomado por seus próprio da palavra, o jus perfectum, deve ser aplica-
governantes. A tentativa de punir seus da recorrendo até o uso da força, o que demonstra
como seria irrealista aplicar ao sistema dos estados
5
Nesse sentido: “At this primitive stage of law the procedimentos e medidas que valem dentro de cada
important thing is the restitution or restoration of estado particular nas relações entre os poderes pú-
what has wrongfully been removed or injured, and blicos e os cidadãos. Cada estado detém em relação
either the repair of damage done or compensation by aos seus cidadãos o monopólio da força legítima, um
a payment in the nature of the ‘damages’ awarded to poder que jamais existiu, que não existe atualmente
a plaintiff in a civil action”. Tradução livre: Nesta fase e que provavelmente jamais poderá existir no futuro,
primitiva da lei, a coisa importante é a restituição dentro do sistema internacional. Tanto mais que um
ou restauração do que foi injustamente afastado ou sistema em que os sujeitos componentes mantêm
ferido, o conserto do dano feito ou compensação por o poder soberano essencial, que é uso exclusivo da
um pagamento na natureza da indenização concedi- força legítima no seu interior, é incompatível com um
da a um demandante numa ação civil (WILLIAMS, sistema superior, que tenha, ele próprio, o monopólio
1939, p. 83-4). da força” (BOBBIO, 2003, p. 14).

70 Revista de Informação Legislativa


da medida tomada. Portanto toda trans- – resultado de uma construção jurídica que
gressão ao direito internacional acarreta um considera imprescindível o cumprimento
regime coercitivo ou coativo que infligirá de determinadas obrigações para o fim de
uma desvantagem sobre um ou mais bens serem preenchidas as mais fundamentais
do sujeito responsável. necessidades da sociedade internacional.
A natureza convencional e consuetu- Essa classificação, ainda segundo o
dinária das mais significativas fontes do autor, não pretende ser exaustiva, mas sim
direito internacional impossibilita uma exemplificativa, podendo ser expandida
compilação definitiva de todas as obriga- conforme a sociedade internacional reco-
ções e, em decorrência disso, de todos os nheça, tipifique e positive outras ações ou
atos e as omissões que, se contrários às omissões que considere como sujeitas ao
normas, demandem a aplicação de sanções regime dos crimes internacionais.7
internacionais. Assim, se a noção de dever O direito internacional evolui no sentido
internacional é rarefeita, a de sua violação de apontar comportamentos, mesmo que
é nebulosa. não enquadrados como crimes que sejam
A falta de uma codificação gera inúme- alvos de sanções internacionais. Esse é um
ras dificuldades quanto à determinação de processo gradual que exige do próprio
quais atos ou de quais omissões merecem sistema a consideração de outras ações e
ser, de fato, objeto de sanções internacio- omissões que, mesmo não tipificadas e ou
nais. positivadas, estejam subsumidas a critérios
É bem verdade que alguns passos diferenciados de apreciação de condutas
importantes são dados, há décadas, no em menor ou em maior grau, contrapostas
sentido de se estabelecerem quais condutas a deveres internacionais de menor ou de
constituem violações ao direito interna- maior imperatividade sobre os atores.
cional, principalmente a cogente, ou seja, Existem muitas considerações valorati-
aquela que dá forma a um conjunto de vas que cercam a discussão sobre os atos e
mandamentos que tem um grau de obri- as omissões que requerem a aplicação de
gatoriedade indiscutível e, portanto, em sanções internacionais. Isso se explica pelo
hipótese alguma é passível de transgressão caminhar a passos lentos que caracteriza o
sem que consequências defluam da mesma. 7
Nesse sentido: “Crimes contra a paz e crimes de
Uma vez infringida, ela exige que sanções guerra já eram tidos como comportamentos ilícitos na
internacionais sejam impostas. perspectiva do direito internacional antes da Segunda
Essas obrigações são oponíveis contra Guerra Mundial. Existiam de fato não só tratados que
todos e tutelam interesses universais, in- contestavam a legitimidade do recurso à guerra, seja
como mecanismo de solução de controvérsias inter-
dependentemente de convenções sobre a nacionais, seja como instrumento de política nacional
matéria. O direito internacional tipifica, – é o caso do Pacto de Paris ou Briand-Kellog, de 1928
positivamente, as condutas que vão de – como também convenções que fixavam as leis e os
encontro a tais obrigações e impõe sanções costumes de guerra – é o jus in bello. [...] Já a concepção
de crimes contra a humanidade, previsto no art. 6o, c, do
penais, podendo ou não haver cumulação Estatuto do Tribunal de Nürenberg, procurava iden-
com civis. tificar algo novo, que não tinha precedente específico
Como lembra Lafer (1991, p. 168), é no passado. Representava um primeiro esforço de
nesse arcabouço de condutas merecedoras tipificar, como ilícito penal, o ineditismo da dominação
totalitária, que pelas suas características próprias – o
de sanções internacionais que se encon- assassinato, o extermínio, a redução à escravidão, a
tram certos crimes como os contra a paz, deportação, os atos desumanos cometidos contra a
os de guerra e os contra a humanidade. população civil, as perseguições por razões políticas,
raciais e religiosas, para usar termos do art. 6o, c, do
Essas três espécies representam a mais
Estatuto acima mencionado – tinha uma especificidade
certa tipificação de violações ao direito que transcendia os crimes contra a paz e os crimes de
internacional – a dos crimes internacionais guerra” (LAFER, 1991, p. 168).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 71


direito penal internacional. Sem tipificação, bora deva ser dito que a responsabilidade
abre-se espaço para escolhas individuais so- dos países não se vincula a questões sobre
bre o que seriam violações ao direito inter- culpa, já que esse elemento raramente é
nacional, potencializadas pela circunstância discernível quando se trata de responsabi-
de que muitas das imposições de sanções lidade de pessoas jurídicas internacionais.
internacionais são instrumentalizadas pela Em síntese, pode-se dizer que as vio-
ação individual de cada sujeito, ainda que lações ao direito internacional, compre-
sob o comando ou a supervisão de uma endidas em violação propriamente dita,
organização multilateral. A ação individu- em contravenção e em falta de diligência,
al não só permite que se percebam ações ensejam a aplicação de sanções internacio-
coativas unilaterais, como também enseja nais. Mesmo que essa discriminação possa
opções individuais sobre o que constitui ser útil, não se afastam alguns problemas
ilícito ou violação ao direito internacional. que com ela surgem, tais como a possibili-
O termo irregularidade (wrongdoing) dade de se manipularem conceitos e a de
é o resultado da liberdade que o sistema que as condutas que aparentemente seriam
jurídico internacional dá aos seus sujeitos consideradas violações configurem como
para qualificar subjetivamente determi- leves diligências.
nados atos como em desacordo com os
escopos do direito internacional. Não se 5. Conclusão
fala expressamente em violação porque
seu uso semântico exige uma determinação Não se trata, aqui, de defender a sanção
sobre a obrigação infringida que pode ser como único instrumento hábil a mover os
negligenciada quando se faz referência a atores no cumprimento da regra interna-
uma irregularidade, a fim de se justificar o cional ou como singular meio de vingar o
uso de sanções internacionais por causa de direito e os demais sujeitos pela violação
ato ou de omissão tidos por ilícitos. incorrida. Ainda que as finalidades das
A elasticidade do conceito de ilícito sanções internacionais não estejam de todo
internacional tende a ser usada em favor esclarecidas, forçoso é reconhecer que essa
de atores que precisam fazer com que medida ataca o problema da desobediência
medidas aplicadas por eles sejam conside- às normas internacionais e representa uma
radas verdadeiras sanções internacionais. reação válida do direito ao seu descumpri-
Há níveis de ilicitudes no sistema jurídico mento. Como destaca Damrosch (1997), a
internacional que comprovam estar este em sanção permite não apenas sinalizar que o
desenvolvimento e, portanto, não balizado sistema não admite violações, como tam-
por limites precisos. bém minimizar o peso que os interesses
Segundo Santos (2002), violações menos individuais dos sujeitos possam ter sobre a
graves ao direito internacional são identi- opção de cumprir ou não com o dever que
ficadas pela doutrina como contravenções. lhes é apregoado.8
São tidas como inobservâncias e não viola- 8
Nas palavras do autor: “I am convinced that the
ções de prescrições internacionais, mas nem truly misguided attitude would be to conclude that
por isso se diferem. A falta de diligência enforcing international law is unnecessary or unrealis-
tic. It may well be true that compliance is the ultimate
é, por sua vez, ainda menos grave do que goal and enforcement is merely a means to that end;
a contravenção, caracterizando-se como and if non-enforcement strategies are more effective
inadimplência do sujeito para com o direito than coercive ones in inducing certain kinds of com-
internacional. pliance, then of course it would make sense to favor
the policy most likely to yield the desired result. But
A gradação da culpa também varia de this does not mean abandoning enforcement as one
acordo com o enquadramento que se dê a among various strategies for achieving compliance”.
determinado ato ou omissão, muito em- Tradução livre: Estou convencido de que a atitude

72 Revista de Informação Legislativa


A sanção é, pelo menos idealmente, Num sistema aberto como o do direito
um elemento que configura o sistema em internacional, especialmente no que diz
termos objetivos, afastados de suas origens respeito à determinação das transgressões
voluntaristas e voltados a fazer prevalecer internacionais, qualquer dos conceitos aci-
os valores e os fins jurídicos da sociedade ma apontados corre o risco de ser objeto de
internacional e não os dos seus atores in- uma interpretação extensiva e enquadrar
dividualmente considerados. atos ou omissões usualmente não consi-
Se existem motivos para que se duvide derados como tais. Se, por um lado, isso é
da eficácia da sanção internacional, isso se vantajoso por permitir que o sistema evolua
explica pela concepção de eficácia de tais e descubra quais condutas precisa sancio-
instrumentos tradicionalmente infiltrada nar, por outro, é desvantajoso por significar
nos sistemas jurídicos nacionais, mergu- que o poder de determinar as violações de
lhada no monopólio do poder de sanção direito internacional e, na esteira, de impor
estatal e na submissão da pessoa natural ou sanções internacionais é descentralizado.
da jurídica à autoridade do sistema. Esse estado de coisas contribui para
Num sistema de direito em que tal mo- uma futura inconsistência do sistema
nopólio encontra-se distante de verificar-se internacional, que dependerá de justifica-
e em que dificilmente a ideia de sujeição é tivas particularizadas e casuísticas sobre a
aceita por força da soberania dos Estados, necessidade de sanções e de tomadas de
os padrões de verificação da eficácia dessas posição unilaterais.
medidas, principalmente das econômicas, Apenas um consenso da sociedade
devem ser menos rígidos. internacional em torno dessas violações
O sistema internacional precisa de um pode sanar os vícios que atuam contra uma
regime de aplicação de sanções condizen- determinação objetiva das transgressões ao
te com a realidade que o mesmo oferece. direito internacional e, em decorrência, das
As aparentes dificuldades de subsistir sanções a serem aplicadas garantindo que a
um complexo de sanções que promova o insustentável leveza do direito internacio-
cumprimento das normas de direito inter- nal seja cada vez mais sustentável.
nacional podem ser reais. Entretanto, isso
não impede que sejam elas necessárias,
ainda que sob diferentes esquemas não
compatíveis em absoluto com os modelos Referências
nacionais.9 AREND, A. C. Do legal rules matter? International law
verdadeiramente errada seria concluir que a obriga- and international politics. Virginia journal of interna-
toriedade do direito internacional é desnecessária ou tional law, Charlottesville, v. 38, n. 2, p. 107-153, 1998.
irreal. Pode ser bem verdade que a submissão seja a ARENDT, Hannah. Vies politiques. Paris: Gallimard,
última meta e a coação somente um dos meios para
1986.
se atingir aquele fim; e se estratégias de não-coação
forem mais efetivas do que as coercitivas na indução ______. On revolution. London: Pengin, 1990.
a certos tipos de comportamento, então claro que faria
sentido favorecer essa política para atingir o resultado ______. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo:
desejado. Mas isto não significa abandonar a coação Perspectiva, 2000.
como uma entre as várias estratégias para alcançar a
submissão (DAMROSCH, 1997, p. 23-24).
9
Nesse sentido: “International law is laws in the internacional é direito no verdadeiro sentido do termo,
true sense of the term, for its rules regulating the mu- com suas regras regulando o comportamento mútuo
tual behavior of states provide sanctions to be directed dos estados prevendo sanções a serem impostas contra
against the state which has committed an international o estado que cometeu um delito internacional, ou, o
delict, or, what amounts to the same, has disregarded que dá no mesmo, desconsiderou suas obrigações para
its obligations towards another state and thus violated outro estado e assim violou o direito deste (KELSEN,
the right of the other state”. Tradução livre: O direito 1951, p. 706).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 73


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74 Revista de Informação Legislativa


Políticas públicas de reconhecimento
para a defesa dos direitos humanos dos
homossexuais

Ana Maria D’Ávila Lopes e


Renato Espíndola Freire Maia

Sumário
Introdução. 1. Direito à igualdade e não dis-
criminação contra os homossexuais. 2. Políticas
de reconhecimento para superar a discriminação
contra os homossexuais. 3. Análise da ADI no
4.277. Conclusão.

Introdução
Durante séculos, a homossexualidade
foi considerada uma doença e sua prática
um desvio comportamental moralmente
condenável. Apenas nos últimos anos vêm
sendo garantidos direitos aos homosse-
xuais.
No entanto, ainda há muito a ser alcan-
çado. A maior parte da sociedade continua
negando-se a reconhecer os direitos dos
homossexuais, evidenciando a necessidade
de políticas públicas mais efetivas, que não
destinem apenas superar as desigualdades
econômicas decorrentes dessa discrimina-
ção, mas que objetivem o reconhecimento
do direito à identidade sexual.
Ana Maria D’Ávila Lopes é Mestre e Doutora Nesse contexto, o presente trabalho
em Direito Constitucional pela Universidade visa, com base no pensamento de Nancy
Federal de Minas Gerais – UFMG. Professora Fraser (1997, 2010), propor a adoção de
do Programa de Pós-Graduação em Direito da políticas públicas de reconhecimento para
Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Bolsista
a defesa efetiva dos direitos humanos dos
de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
Renato Espíndola Freire Maia é Mestrando
homossexuais.
em Direito Constitucional pela Universidade de Para tal, inicialmente será apresentado
Fortaleza – UNIFOR. Bolsista da Fundação Cea- o marco constitucional que fundamenta a
rense de Apoio ao Desenvolvimento Científico adoção de políticas públicas especiais diri-
e Tecnológico – FUNCAP. gidas a garantir a efetividade dos direitos

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 75


dos homossexuais. Posteriormente, será Não obstante esse avanço, o constituin-
desenvolvida a proposta de Nancy Fraser te, influenciado pelos valores machistas
que defende a adoção de políticas públicas que imperavam na sociedade na época de
de reconhecimento para a superação da elaboração da Lei Maior, omitiu qualquer
situação de discriminação vivida pelos norma expressa relativa aos direitos dos
homossexuais. Finalmente, a decisão do homossexuais. A previsão constitucional
Supremo Tribunal Federal, que em maio mais próxima a regular a matéria encontra-
de 2011 reconheceu a união estável homo- -se no inciso IV do art. 3o, no qual é proibida
afetiva, será analisada, haja vista constituir a discriminação por motivos de sexo.
um marco histórico na proteção dos direitos Na atualidade, essa norma vem sendo
dos homossexuais no Estado brasileiro. interpretada no seu sentido mais amplo,
de forma a abranger também a não dis-
1. Direito à igualdade e não criminação por identidade sexual. Essa
interpretação visa salvaguardar a unidade
discriminação contra os homossexuais
e harmonia normativa constitucional, na
A Constituição Federal de 1988 esta- medida em que busca manter a concor-
beleceu como princípio fundamental do dância hermenêutica entre o princípio
Estado Democrático de Direito brasileiro fundamental do respeito à dignidade da
“promover o bem de todos sem precon- pessoa humana (art. 1o, III), a não discrimi-
ceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou nação (art. 3o, IV) e o direito fundamental à
quaisquer outras formas de discriminação” igualdade (art. 5o, caput).
(art. 3o, IV), evidenciando um novo para- Trata-se, sem dúvida, de um tema polê-
digma jurídico no qual toda pessoa, sem mico. Não há como ignorar que os direitos
importar suas características materiais ou sexuais têm sido doutrinária e legislativa-
imateriais, tem iguais direitos a outra, ba- mente relegados a um segundo plano. O
nindo-se qualquer forma de discriminação. descaso em relação a esses direitos deriva
A igualdade de todas as pessoas é reforçada do temor de que seu desenvolvimento teó-
no caput do art. 5o, no qual se afirma que rico e sua regulação legal possam implicar o
“todos são iguais perante a lei...”, devendo reconhecimento formal de práticas sexuais
a igualdade ser interpretada não a partir não reprodutivas ou homossexuais, que as
da sua restrita acepção formal oriunda do sociedades machistas costumam condenar,
liberalismo, que ignora as diferenças exis- preferindo-se, desse modo, retirar-lhes a
tentes entre os membros da sociedade, mas qualidade de direitos humanos, para deixá-
interpretada como uma igualdade material, -los no campo da moral, da religião ou do
que determina tratar os iguais como iguais direito penal (MILLER, 2001, p. 87).
e os desiguais como desiguais. Sem pretender negar nem diminuir a
É nessa esteira conceitual que o consti- importância dessa discussão, o que hoje
tuinte brasileiro, reconhecendo a diversi- impende é reconhecer a qualidade de
dade da sua sociedade, estabeleceu várias direitos humanos dos direitos sexuais,
normas destinadas a proteger as pessoas haja vista estarem destinados a proteger a
em situação de vulnerabilidade, a exemplo sexualidade humana, inerente a todo ser
de crianças, idosos, indígenas, etc., haja humano (MILLER, 2001, p. 90).
vista a construção e o fortalecimento de Diversas declarações têm sido elabora-
um Estado democrático exigir não apenas das com o fim de proclamar a existência
o reconhecimento da sua diversidade, mas e importância dos direitos sexuais. Entre
a implementação de mecanismos capazes essas, salienta-se a de Valencia (Espanha)
de garantir o efetivo exercício dos direitos de 1997, que preconiza a sexualidade como
humanos por todos seus membros. parte integral da personalidade, devendo,

76 Revista de Informação Legislativa


portanto, os direitos sexuais serem consi- do a atuação do Estado e dos particulares
derados direitos humanos: (LOPES, 2001, p. 36-37).
“Los derechos sexuales son derechos Desse modo, e sendo a sexualidade ine-
humanos universales basados en la rente ao ser humano e essencial para o de-
libertad, dignidad e igualdad inhe- senvolvimento pleno da sua personalidade,
rentes a todos los seres humanos. é possível concluir pela fundamentalidade
Dado que la salud es un derecho dos direitos sexuais.
humano fundamental, la salud se-
xual debe ser un derecho humano 2. Políticas de reconhecimento para
básico. Para asegurar el desarrollo
superar a discriminação contra os
de una sexualidad saludable en los
homossexuais
seres humanos y las sociedades, los
derechos sexuales siguientes deben Como forma de garantir o direito de
ser reconocidos, promovidos, res- toda pessoa de construir a sua identidade,
petados y defendidos por todas las devem-se trazer à luz as políticas de reco-
sociedades con todos sus medios” nhecimento, as quais visam promover o
(DECLARACIÓN…, 1997). desenvolvimento pleno da personalidade
No direito brasileiro, não há norma sem preconceitos nem discriminações.
jurídica que diretamente disponha sobre Em importante análise sobre as políticas
os direitos sexuais e seu desenvolvimento de reconhecimento de Charles Taylor, Ha-
doutrinário é ainda tímido (LOPES, 2011). bermas (1999) dialoga com os ensinamentos
No entanto, isso não retira a sua juridicida- de Amy Gutmann, defendendo a ideia de
de nem a sua fundamentalidade, pois, com que o reconhecimento público dos seres
base no §2o do art. 5o da Constituição Fe- humanos como iguais pode requerer duas
deral, pode-se, indubitavelmente, afirmar formas de respeito: a) reconhecimento da
sua condição de direitos fundamentais, haja identidade intransferível de cada indiví-
vista a norma estabelecer que os direitos duo, não importando o sexo, raça ou etnia;
e as garantias fundamentais podem ter b) reconhecimento da cultura dessa pessoa,
assento em qualquer parte do texto formal devendo-se respeitar seus costumes e ma-
da Constituição, ou derivar do regime ou neira de ver e viver no mundo.
dos princípios por ela adotados, bem como Diversos movimentos vêm lutando pelo
de tratados internacionais ratificados pelo reconhecimento dos tradicionalmente rele-
Brasil. gados a um segundo plano e até excluídos
Nesse sentido, há diversos dispositivos da sociedade, a exemplo do feminismo e
constitucionais dos quais é possível derivar do multiculturalismo.
os direitos sexuais (art. 1o, III; art. 3o, IV; art. “Su parentesco estriba en que tanto
5o, caput; art. 6o, caput; art. 196, caput; art. las mujeres, las minorías étnicas y
226, §7o, etc.). No entanto, a cláusula aberta culturales, así como las naciones y las
do §2o do art. 5o não é o único argumento culturas [...] luchan por el reconoci-
nem o mais forte para afirmar a natureza de miento de las identidades colectivas,
direitos fundamentais dos direitos sexuais. sea en el contexto de una cultura
O argumento mais sólido é sua corres- mayoritaria o en el de la comunidad
pondência substancial com a definição de de los pueblos” (HABERMAS, 1999,
direitos fundamentais, entendidos esses p. 198).
como princípios jurídicos positivos, de ní- Trata-se de uma reivindicação que pode
vel constitucional, que refletem os valores ser estendida aos homossexuais, cujos di-
mais essenciais de uma sociedade para a reitos têm sido firmemente negados pelas
proteção da dignidade humana, legitiman- sociedades machistas.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 77


Esse novo tipo de reivindicação tem de- A complexidade da implantação de
flagrado a necessidade de repensar a justiça uma justiça social bidimensional amplia-se
social para além dos contornos estritamente quando se observa que, no plano político,
econômicos, de forma a incluir conteúdos a redistribuição tem sido associada a rei-
relativos à identidade das pessoas. vindicações socioeconômicas, enquanto
Entre os autores que melhor têm traba- o reconhecimento tem sido vinculado a
lhado o tema, salienta-se o pensamento de demandas de identidade de gênero, étnica,
Nancy Fraser (2010), que ensina que a con- racial ou de nacionalidade.
cretização da justiça social não deve limitar- “la lucha por el reconocimiento se está
-se a implementar políticas de redistribuição convirtiendo rápidamente en la forma
da riqueza, mas deve também envolver paradigmática de conflicto político en
políticas de reconhecimento das minorias. los últimos años del siglo veinte. Las
De qualquer forma, tanto as políticas exigencias de ‘reconocimiento de la di-
da redistribuição da riqueza como as de ferencia’ alimentan las luchas de gru-
reconhecimento das diferentes identida- pos que se movilizan bajo las banderas
des devem ser implementadas de forma de la nacionalidad, la etnia, la ‘raza’, el
coordenada, evitando-se sua dissociação género y la sexualidad. En estos con-
ou polarização, flictos ‘postsocialistas’, la identidad
“Alguns proponentes da redistribui- de grupo sustituye a los intereses de
ção rejeitam completamente a política clase como mecanismo principal de
de reconhecimento, considerando as movilización política. La dominación
demandas pelo reconhecimento da cultural reemplaza a la explotación
diferença como uma ‘falsa consciên- como injusticia fundamental. Y el
cia’, um obstáculo à busca da justiça reconocimiento cultural desplaza a la
social […]. Nesses casos, estamos redistribución socioeconómica como
diante daquilo que é apresentado remedio a la injusticia y objetivo de la
como uma escolha disjuntiva: redis- lucha política” (FRASER, 1997, p. 17).
tribuição ou reconhecimento? Política Essa dissociação não faz mais do que
de classe ou política de identidade? obscurecer a importância das distintas
Multiculturalismo ou democracia reivindicações de reconhecimento realiza-
social?” (FRASER, 2010, p. 168). das no marco das lutas de classes socioe-
Para Fraser (2010, p. 168), a polarização conômicas, ou as diversas exigências de
dos dois tipos de política deve ser rejeitada, redistribuição da riqueza realizadas pelas
visto serem insuficientes quando adotadas minorias identitárias.
isoladamente. Desse modo, propõe uma São experiências que evidenciam a
concepção bidimensional da justiça social, necessidade de modificar a percepção uni-
de forma a coordenar as reivindicações de dimensional da justiça social, de forma a
igualdade social e de reconhecimento da transformá-la em integral e efetiva.
diferença, o que constitui, sem dúvida, uma No entanto, deve-se ter presente que
tarefa complexa. cada uma das duas políticas encontra-se
As políticas de redistribuição têm sua inserida num marco conceitual altamente
origem na tradição liberal, enriquecida complexo.
pelas teorias da justiça redistributiva de “A política de redistribuição, como a
John Rawls e de Ronald Dworkin. Dife- compreendo, engloba não só as orien-
rentemente, as políticas de reconhecimento tações centradas em classes sociais,
fundamentam-se na filosofia hegeliana e na como o liberalismo do New Deal, a
fenomenologia da consciência, que defen- social democracia ou o socialismo,
dem a construção intersubjetiva do sujeito. mas aquelas formas de feminismo

78 Revista de Informação Legislativa


e anti-racismo que vislumbram as c) concepções diferentes das coleti-
reformas sócio-econômicas como o vidades que sofrem as injustiças: para o
remédio para as injustiças de gênero e paradigma da redistribuição, os sujeitos da
étnico-raciais. Portanto, é mais ampla injustiça são similares aos dos paradigmas
do que a política de classe no sentido de classe propostos por Marx (trabalha-
convencional. A política de reconhe- dores explorados), podendo, entretanto,
cimento, em contraste, engloba mo- abarcar os grupos racializados (racialized)
vimentos visando a revalorizar iden- de imigrantes ou minorias étnicas. As
tidades injustamente depreciadas, mulheres também podem ser incluídas
por exemplo, o feminismo cultural, o nessa perspectiva, em visto da situação de
nacionalismo cultural negro e a polí- desvantagem na qual se encontram devido
tica de identidade homossexual, mas à discriminação de gênero. Diferentemente,
também tendências desconstrutivas, para o paradigma do reconhecimento, os
como a queer politics, a política ‘racial’ sujeitos da injustiça se parecem mais com
crítica e o feminismo desconstructi- os grupos sociais propostos por Weber,
vista, que rejeitam o ‘essencialismo’ isto é, grupos de pessoas com status mais
da política da identidade tradicional. baixo, por gozarem de menor respeito,
Assim, é mais ampla que a política da estima e prestígio na sociedade, a exemplo
identidade no sentido convencional” dos homossexuais, que sofrem de estigmas
(FRASER, 2010, p. 169). institucionalizados.
Desse modo, Nancy Fraser (2010, p. d) ideias diferentes em relação aos dois
169-171) identifica quatro diferenças entre grupos: para o paradigma da redistribui-
os paradigmas populares das políticas de ção, as diferenças são injustas, devendo,
redistribuição e de reconhecimento: portanto, serem abolidas. Para o paradigma
a) concepções diferentes de injustiça: do reconhecimento, nem todas as diferen-
o paradigma da redistribuição centra-se ças são injustas. As diferenças identitárias
em injustiças de caráter socioeconômico que não derivam em hierarquizações e ex-
(exploração, marginalização e privação clusões devem ser mantidas e valorizadas
econômicas), enquanto o paradigma do re- positivamente, enquanto as diferenças que
conhecimento tem seu cerne nas injustiças discriminam devem ser desconstruídas e
culturais, enraizadas em padrões sociais combatidas.
de representação (dominação cultural), Para a maioria dos autores, as diferenças
interpretação (não reconhecimento, invi- existentes entre os dois paradigmas for-
sibilidade) e comunicação (representações mam uma disjuntiva que apenas permite
culturais públicas estereotipadas); aceitá-las ou rejeitá-las. Para Fraser (2010),
b) diferentes soluções para a injustiça: essa antítese é falsa.
para o paradigma da redistribuição, a solu- Em primeiro lugar, as diferenças entre
ção da injustiça é a redistribuição da rique- os dois paradigmas não são dicotômicas.
za (reorganização da divisão do trabalho e Assim, os proletariados também sofrem
reestruturação da propriedade), enquanto, de injustiças identitárias, assim como os
para o paradigma do reconhecimento, a homossexuais sofrem de injustiças eco-
solução conseguir-se-ia com a mudança cul- nômicas. Em alguns casos, as políticas
tural e simbólica da sociedade (reavaliação de redistribuição serão suficientes para
ascendente das identidades não respeitadas combater as desigualdades econômicas,
e valorização positiva das diferenças). Nes- enquanto as políticas de reconhecimento
sa visão, são incluídas as interseções das solucionarão os problemas derivados
diferenças econômicas, étnicas, raciais e de das desigualdades identitárias. Contudo,
gênero, as quais potencializam a exclusão; em outras situações, como no caso dos

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 79


homossexuais, serão necessárias políticas como outro grave problema com o qual
bidimensionais. devem conviver, e que se manifesta, por
Fraser afirma que, em uma sociedade exemplo, na forma de demissões sumárias
de padrões postos e impostos pela maioria e sem causas definidas, ou na restrição da
heterossexual, é lógico, e até esperado, que inclusão dos parceiros nos mesmos bene-
direitos sejam negados à minoria homosse- fícios que lhes são garantidos aos casais
xual. Há sociedades nas quais esses padrões heterossexuais.
encontram-se fortemente arraigados nas Para que seja possível a superação
diferentes áreas sociais, como na cultura dessa situação de discriminação, a autora
popular e na interação cotidiana, passando americana propõe a adoção de políticas de
pela política e pelo Direito, provocando reconhecimento, pois, no caso das injustiças
agressões psicológicas e menosprezo social. econômicas enfrentadas pelos homossexu-
“O resultado é considerar gays e ais, o remédio é o reconhecimento e não a
lésbicas como outros desprezíveis redistribuição:
aos quais falta não apenas reputação “Para ser exata, gays e lésbicas tam-
para participar integralmente da vida bém sofrem sérias injustiças econô-
social, mas até mesmo o direito de micas. Eles podem ser sumariamente
existir. Difusamente institucionali- despedidos do emprego e têm nega-
zados, tais padrões heteronormativos dos os benefícios sociais baseados
de valor geram formas sexualmente nos vínculos familiares. Mas longe
específicas de subordinação de status, de estarem pautadas diretamente na
incluindo a vergonha ritual, prisões, estrutura econômica, elas derivam,
‘tratamentos’ psiquiátricos, agressões ao invés, de um padrão de valor
e homicídios; exclusão dos direitos e cultural injusto. O remédio para a
privilégios da intimidade, casamento injustiça, conseqüentemente, é o re-
e paternidade, e de todas as posições conhecimento, e não a redistribuição.
jurídicas que deles decorrem; reduzi- A superação da homofobia e do hete-
dos direitos de privacidade, expres- rossexismo requer uma modificação
são e associação, acesso diminuído ao na ordem do status sexual, desinsti-
emprego, à assistência em saúde, ao tucionalizando os padrões heteronor-
serviço militar e à educação; direitos mativos de valor, substituindo-os por
reduzidos de imigração, naturaliza- padrões que expressem igual respeito
ção e asilo; exclusão e marginalização para com gays e lésbicas” (FRASER,
da sociedade civil e da vida política; e 2010, p. 173).
a invisibilidade e/ou estigmatização No Brasil, a salvaguarda dos direitos
na mídia. Esses danos são injustiça fundamentais dos homossexuais ainda
por não-reconhecimento” (FRASER, é tímida, restringindo-se, basicamente,
2010, p. 173). a medidas de redistribuição da riqueza.
Apenas para ilustrar o que vem sendo Exemplo disso é a Instrução Normativa no
dito acerca dessa negação de direitos aos 50 de 2001 advinda do Instituto Nacional de
homossexuais, estudos apontam que aos Seguridade Social – INSS (online), que, em
parceiros que vivem em condição de união seu artigo 5o, passou a assegurar benefícios
estável homoafetiva lhes são negados 78 previdenciários para parceiros vivendo em
direitos acessíveis aos casais heterossexuais condição de união homoafetiva.
(REIS, 2010). “Art. 5o A inscrição de companheiro
Ainda como decorrência dessa falta de ou companheira homossexual, como
reconhecimento que sofrem os homossexu- dependente, deverá ser efetuada no
ais, Fraser aponta as injustiças econômicas Instituto Nacional do Seguro Social,

80 Revista de Informação Legislativa


inclusive nos casos de segurado no 8.211/98 que pune estabelecimentos
empregado ou trabalhador avulso” comerciais que discriminem pessoas de-
(INSTITUTO..., 2001, grifo nosso). vido à sua orientação sexual; exclusão das
Entre outros exemplos, cita-se a Instru- empresas condenadas pela violação da
ção Normativa no 5 de 2009 do Ministério anterior lei dos processos licitatórios muni-
da Educação, que regulamenta o processo cipais; alocação de recursos orçamentários
seletivo do PROUNI (Programa Universi- municipais para a promoção dos direitos
dade para Todos), estendendo o conceito humanos de LGBTT;
de grupo familiar para fins de obtenção b) em matéria de habitação: reconhe-
de benefícios institucionais às uniões está- cimento das diversas formas de arranjos
veis, inclusive homoafetivas (PORTAL..., familiares para os benefícios dos programas
2009). Ainda nessa intenção de diminuir municipais de habitação popular (HABI-
as diferenças, a Agência Nacional de Saúde TAFOR);
(ANS), por meio de sua diretoria colegia- c) em matéria de saúde: ampliação das
da, faculta a inclusão do companheiro políticas de prevenção das DST/HIV/Aids
em união homoafetiva como dependente para a população LGBTT; capacitação dos
em plano de saúde contratado pelo outro profissionais da saúde para um atendi-
(CESCHIN, 2010). mento especializado e humanizado dos
Apesar desses avanços, constata-se homossexuais;
praticamente a inexistência de políticas d) em matéria de assistência social:
públicas de reconhecimento, as quais são atendimento humanizado a LGBTT em
fundamentais para a superação da homo- situação de rua; fornecimento de cestas
fobia, conforme apontado por Fraser (2010, básicas à população LGBTT que cumpram
p. 173). os requisitos do Sistema Único de Atendi-
Como forma de superar esse vazio, mento Social – SUAS; inclusão de ONGs e
algumas propostas de políticas de reconhe- de movimentos de LGBTT comunitários no
cimento têm sido formuladas por ONGs, Conselho Municipal da Assistência Social;
a exemplo do Grupo de Resistência Asa- e) em matéria de educação: formação de
-Branca-GRAB (online), do Município de professores e funcionários dos estabeleci-
Fortaleza, num encontro realizado no dia mentos escolares municipais sobre o direito
13 de agosto de 2008: de não discriminação dos homossexuais;
a) em matéria de direitos humanos: inclusão de temas relativos à sexualidade
criação de uma Secretaria Municipal de Di- e à homossexualidade nos currículos e
reitos Humanos com dotação orçamentária material didático escolar; reconhecimento
própria; criação de um Centro de Referên- da identidade LGBTT no cotidiano escolar;
cia em Direitos Humanos de lésbicas, gays, inclusão, no calendário escolar municipal,
bissexuais, travestis e transexuais – LGBTT, das datas relativas à população LGBTT;
com assistência jurídica e psicossocial, além f) em matéria de lazer: promoção de ati-
de um Disque Cidadania LGBTT; implan- vidades sociorrecreativas e esportivas vol-
tação de um programa de formação e sen- tadas para jovens e idosos homossexuais;
sibilização em direitos humanos de LGBTT g) em matéria de cidade: garantia de
destinado à Guarda Municipal, Agentes de uma sociabilidade livre e autônoma de
Cidadania e demais funcionários públicos LGBTT nos espaços públicos municipais
do Município de Fortaleza; inclusão do Dia (resguardadas as leis vigentes);
da Visibilidade Lésbica (29 de agosto) e do h) em matéria de cultura: realização e/
Dia da Visibilidade Trans-travestis e tran- ou apoio de eventos relativos à forma de
sexuais (29 de janeiro); realização de uma vida de LGBTT, a exemplo da Parada da
Campanha de Divulgação da Lei Municipal Diversidade Sexual; inclusão, na agenda

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 81


cultural e turística do município, dos even- Passando à análise do mérito da ques-
tos de LGBTT. tão, destaca-se, entre os temas mais relevan-
Trata-se de propostas concretas 1 de tes ao presente trabalho, a defesa da sexua-
políticas de reconhecimento que visam lidade do ser humano como emanação de
superar a situação de discriminação em um direito constitucional que diz respeito à
que os homossexuais se encontram, sendo, esfera privada do indivíduo. As liberdades
junto com as políticas de redistribuição, o sexuais – salientaram os Ministros – estão
caminho certo para a construção de uma inseridas dentro do rol dos direitos funda-
sociedade justa, livre e solidária, conforme mentais do indivíduo e suas manifestações
os ditames estabelecidos na Constituição guardam estreito relacionamento com o
Federal de 1988. princípio da dignidade da pessoa humana.
“Em segundo lugar, o emprego da
sexualidade humana diria respeito à
3. Análise da ADI no 4.277
intimidade e à vida privada, as quais
A união estável homoafetiva foi reco- seriam direito da personalidade e,
nhecida pelo Supremo Tribunal Federal por último, dever-se-ia considerar
no dia 5 de maio de 2011, em sede da ação a âncora normativa do § 1o do art.
direta de inconstitucionalidade (ADI no 5o da CF. Destacou, outrossim, que
4.277) e da arguição de descumprimento essa liberdade para dispor da própria
de preceito fundamental (ADPF no 132), sexualidade inserir-se-ia no rol dos
propostas pelo Procurador-Geral da Repú- direitos fundamentais do indivíduo,
blica e pelo Governador do Estado do Rio sendo direta emanação do princípio
de Janeiro, respectivamente. da dignidade da pessoa humana e
Primeiramente, faz-se necessário a res- até mesmo cláusula pétrea. Frisou
salva para o fato de que o Relator do proces- que esse direito de exploração dos
so, Ministro Carlos Ayres Britto, subsumiu potenciais da própria sexualidade
a ADPF na ADI devido à convergência de seria exercitável tanto no plano da
objetos entre ambas as ações, intimidade (absenteísmo sexual e
“Seja como for, o fato é que me foi onanismo) quanto da privacidade
redistribuída a ADI 4.277, versando o (intercurso sexual)” (BRASIL, 2011b).
mesmo tema central da ADPF no 132. O princípio da dignidade da pessoa
Dando-se, por efeito mesmo dessa humana, conforme aponta Barroso (2009,
distribuição, uma convergência de p. 20), identifica um espaço de integridade
objetos que me leva a subsumir ao a ser assegurado a todas as pessoas:
mais amplo regime jurídico da ADI “O princípio da dignidade da pes-
os pedidos insertos na ADPF, até por- soa humana migrou da religião e da
que nela mesma, ADPF, se contém o filosofia para o Direito nas últimas
pleito subsidiário do seu recebimento décadas, tendo sido incluído em
como ADI. Por igual, entendo franca- documentos internacionais e em
mente encampados pela ADI no 4.277 Constituições democráticas. A Cons-
os fundamentos da ADPF em tela de tituição brasileira de 1988 abrigou-o
no 132-DF” (BRASIL, 2011a). expressamente, dando início a uma
fecunda produção doutrinária que
1
Cita-se, também, o projeto de lei para criar o Es- procura dar-lhe densidade jurídica e
tatuto da Diversidade Sexual que a Frente Parlamentar objetividade. A dignidade humana
Mista entregou ao presidente do Senado José Sarney
no mês de agosto de 2011. O projeto foi elaborado por
identifica um espaço de integridade
uma comissão especial da Ordem dos Advogados do a ser assegurado a todas as pessoas
Brasil – OAB (Ordem..., 2011). por sua só existência no mundo. É

82 Revista de Informação Legislativa


um respeito à criação, independente é um refinamento da concepção fraca
da crença que se professe quanto à do enunciado geral de igualdade, a
sua origem. Expressão nuclear dos que aqui se deu preferência: se não
direitos fundamentais, a dignidade houver uma razão suficiente para a
abriga conteúdos diversos, que in- permissibilidade de um tratamento
cluem condições materiais mínimas desigual, então o tratamento igual é
de existência, integridade física e obrigatório” (ALEXY, 2008, p. 408).
valores morais e espirituais. As coisas Sem dúvida, não aceitar o direito dos
têm preço; as pessoas têm dignidade. homossexuais de serem titulares dos
Do ponto de vista moral, ser é muito mesmos direitos fundamentais reconhe-
mais do que ter” (Barroso, 2011, cidos aos heterossexuais fere de maneira
p. 20). substancial os princípios da dignidade e
Quando a Constituição Federal, ainda da igualdade, desequilibrando a harmonia
em seu Preâmbulo, anuncia o propósito de social que deve existir para a convivência
constituir uma sociedade fraterna, pluralis- pacífica entre os seres humanos.
ta e livre de preconceitos, já está traçando “Mas é preciso aduzir, já agora no
o caminho da rejeição de qualquer injusta espaço da cognição jurídica pro-
diferenciação, seja o motivo que for. priamente dita, que a vedação de
“Ventilar-se a possibilidade de des- preconceito em razão da compos-
respeito ou prejuízo a um ser humano tura masculina ou então feminina
em função da orientação sexual sig- das pessoas também incide quanto
nifica dispensar tratamento indigno à possibilidade do concreto uso da
a um ser humano. Não se pode, sexualidade de que eles são necessá-
simplesmente, ignorar a condição rios portadores. Logo, é tão proibido
pessoal do indivíduo (na qual, sem discriminar as pessoas em razão da
sombra de dúvida, inclui-se a orien- sua espécie masculina ou feminina
tação sexual), como se tal aspecto quanto em função da respectiva
não tivesse relação com a dignidade preferência sexual” (BRASIL, 2011a).
humana” (Rios, 2006, p. 29). A respeito do reconhecimento da união
Robert Alexy, fazendo uma análise da estável homoafetiva, os Ministros Ricardo
necessidade de se dispensar tratamento Lewandowski e Gilmar Mendes, por oca-
igual ou desigual a determinado caso con- sião dos seus votos, levantaram importante
creto, traz importante ensinamento que questão acerca das bases interpretativas nas
embasa a discussão, quais se apoiaram para a tomada de suas
“De tudo isso se infere a necessidade respectivas decisões.
de haver uma razão suficiente que Assim, para o Ministro Ricardo Lewan-
justifique uma diferenciação e tam- dowski, as relações homoafetivas não deve-
bém que a qualificação dessa razão riam configurar uma união estável de fato,
como suficiente é um problema de por entender que o rol previsto no art. 226
valoração. Nesse ponto, interessa da Constituição Federal, embora meramen-
apenas a primeira questão. A ne- te exemplificativo, compreenderia apenas
cessidade de se fornecer uma razão relações de diferentes sexos. Apesar dessa
suficiente que se justifique a ad- consideração, o Ministro Lewandowski
missibilidade de uma diferenciação entendeu como cabível o mecanismo da
significa que, se uma tal razão não integração analógica de forma a aplicar,
existe, é obrigatório um tratamento às uniões homoafetivas, as prescrições
igual. Essa idéia pode ser expressa legalmente formuladas às uniões estáveis
por meio do seguinte enunciado, que heteroafetivas, fazendo a ressalva para a

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 83


inaplicabilidade dos mecanismos que exi- “O que significa o óbvio reconheci-
jam a presença de casais de sexos opostos, mento de que todos são iguais em
por questões meramente práticas e lógicas. razão da espécie humana de que
O Ministro Gilmar Mendes, por sua vez, façam parte e das tendências ou pre-
ao proferir seu voto, limitou-se a reconhecer ferências sexuais que lhes ditar, com
a possibilidade da aplicação dos preceitos exclusividade, a própria natureza,
da união estável aos casais homoafetivos, qualificada pela nossa Constituição
por aplicação analógica ou dando inter- como autonomia de vontade. Iguais
pretação extensiva ao §3o do art. 226 da para suportar deveres, ônus e obri-
Constituição Federal. Aos óbvios desdobra- gações de caráter jurídico-positivo,
mentos que poderiam advir de sua decisão, iguais para titularizar direitos, bônus
Gilmar Mendes não prestou qualquer tipo e interesses também juridicamente
de esclarecimento. Essas considerações são positivados” (BRASIL, 2011a).
encontradas em passagem do Informativo Partindo desse pressuposto claro da
625/2011: igualdade entre os sexos e sua livre expres-
“[...] O segundo (Min. Gilmar Men- são de escolha, o Ministro Relator inquiriu
des) se limitou a reconhecer a exis- sobre se a mesma Constituição, que trouxe
tência dessa união por aplicação de maneira tão democrática a liberdade e
analógica ou, na falta de outra pos- igualdade sexual, poderia manifestar-se de
sibilidade, por interpretação exten- maneira a excluir e proibir que sejam esten-
siva da cláusula constante do texto didos aos parceiros homoafetivos as mes-
constitucional (CF, art. 226, § 3o), sem mas regras e prerrogativas legais referentes
se pronunciar sobre outros desdo- às uniões estabilizadas e duradouras que
bramentos. Ao salientar que a idéia são conferidas aos parceiros heterossexuais.
de opção sexual estaria contemplada Para responder a essas questões, referiu-
no exercício do direito de liberdade -se aos preceitos elencados no Capítulo
(auto-desenvolvimento da persona- VII do Título VIII da Constituição Federal,
lidade), acenou que a ausência de que tratam da ordem social e que trazem
modelo institucional que permitisse especial proteção ao instituto da família.
a proteção dos direitos fundamentais Assim, para uma efetiva compreensão
em apreço contribuiria para a discri- dos institutos que orbitam a discussão, le-
minação. No ponto, ressaltou que a vou em consideração os aspectos técnicos
omissão da Corte poderia representar e doutrinários do significado do termo
agravamento no quadro de desprote- família que, segundo Ayres, destaca-se por
ção das minorias, as quais estariam ser vocacionalmente amorosa, parental
tendo seus direitos lesionados” e protetora dos respectivos membros,
(BRASIL, 2011b). constituindo-se no espaço ideal das mais
Sobre o voto do Relator do processo, duradouras e espiritualizadas relações
Ministro Ayres Britto, alguns aspectos humanas de índole privada.
merecem ser salientados, a fim de obtermos Da análise e da compreensão dos ar-
uma melhor compreensão sobre o que foi gumentos que permeiam a discussão, o
tratado nessa histórica decisão da Corte Relator do caso concluiu que, por respeito
Suprema. aos princípios da igualdade (isonomia) e da
O Ministro Relator fundamentou seu liberdade, e para dar entendimento confor-
posicionamento na previsão constitucio- me à Constituição dos preceitos elencados
nal que garante a igualdade de homens e no Capítulo VII do Título VIII, que trata
mulheres, sendo, portanto, possível incluir da família, não se pode realizar qualquer
também as escolhas sexuais, tipo de diferença no tratamento dado às

84 Revista de Informação Legislativa


famílias formadas por casais heteroafetivos Seguindo a análise dos pontos impor-
ou homoafetivos, tantes para a conclusão do raciocínio, foi
“E assim é que, mais uma vez, a analisado o art. 1.723 do Código Civil de
Constituição Federal não faz a menor 2002, que é peça chave na formulação da
diferenciação entre a família formal- questão e na tomada de posicionamento
mente constituída e aquela existente acerca da discussão judicial que se desen-
ao rés dos fatos. Como também não volve. Isso porque o referido artigo tem
distingue entre a família que se forma a seguinte redação: “É reconhecida como
por sujeitos heteroafetivos e a que se entidade familiar a união estável entre o
constitui por pessoas de inclinação homem e a mulher, configurada na con-
homoafetiva. Por isso que, sem ne- vivência pública, contínua e duradoura e
nhuma ginástica mental ou alquimia estabelecida com o objetivo de constituição
interpretativa, dá para compreender de família”.
que a nossa Magna Carta não empres- O entendimento perfilado pelo Rela-
tou ao substantivo ‘família’ nenhum tor deu-se no sentido de que devem ser
significado ortodoxo ou da própria aceitas como entidades familiares as uni-
técnica jurídica. Recolheu-o com o ões estáveis e duradouras de casais que
sentido coloquial praticamente aberto mantenham relações de homoafetividade,
que sempre portou como realidade quando presentes os demais e necessários
do mundo do ser” (BRASIL, 2011a). pressupostos legais.
Desse modo, afirmou a necessidade de “E, desde logo, verbalizo que mere-
conferir igual tratamento aos casais homoa- cem guarida os pedidos formulados
fetivos, na medida em que qualquer enten- pelos requerentes de ambas as ações.
dimento contrário serviria para reforçar um Pedido de ‘interpretação conforme à
indisfarçado sentimento, nas palavras do Constituição’ do dispositivo legal im-
Ministro, “preconceituoso ou homofóbico”. pugnado (art. 1.723 do Código Civil),
Ainda nessa linha, prosseguiu o Minis- porquanto nela mesma, Constituição,
tro na defesa do entendimento de que a ter- é que se encontram as decisivas res-
minologia “família” em nada se diferencia postas para o tratamento jurídico a
do termo “entidade familiar”, no sentido de ser conferido às uniões homoafetivas
que não deve haver hierarquia ou diferença que se caracterizem por sua dura-
de qualidade jurídica entre as duas formas bilidade, conhecimento do público
de construção de um núcleo doméstico, (não-clandestinidade, portanto) e
como encontramos no texto do seu voto: continuidade, além do propósito ou
“Estou a dizer: a expressão ‘entidade verdadeiro anseio de constituição de
familiar’ não foi usada para designar uma família” (BRASIL, 2011a).
um tipo inferior de unidade domésti- Finalmente, assim julgou o Ministro
ca, porque apenas a meio caminho da Relator:
família que se forma pelo casamento “Dando por suficiente a presente aná-
civil. Não foi e não é isso, pois inexiste lise da Constituição, julgo, em caráter
essa figura da sub-família, família de preliminar, parcialmente prejudicada
segunda classe ou família ‘mais ou me- a ADPF no 132-RJ, e, na parte rema-
nos’ (relembrando o poema de Chico nescente, dela conheço como ação
Xavier). O fraseado apenas foi usado direta de inconstitucionalidade. No
como sinônimo perfeito de família, mérito, julgo procedentes as duas
que é um organismo, um aparelho, ações em causa. Pelo que dou ao art.
uma entidade, embora sem perso- 1.723 do Código Civil interpretação
nalidade jurídica” (BRASIL, 2011a). conforme à Constituição para dele ex-

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 85


cluir qualquer significado que impeça o efetivo tratamento igualitário de todo
o reconhecimento da união contínua, ser humano foram adotadas. No entanto,
pública e duradoura entre pessoas do o preconceito e a discriminação contra os
mesmo sexo como ‘entidade fami- homossexuais continuam sendo uma marca
liar’, entendida esta como sinônimo da sociedade brasileira, manifestando-se
perfeito de ‘família’. Reconhecimento desde aberta e violentamente até velada e
que é de ser feito segundo as mesmas dissimuladamente.
regras e com as mesmas conseqüên- Perante esse panorama, o Estado tem a
cias da união estável heteroafetiva” obrigação constitucional de adotar políticas
(BRASIL, 2011a). públicas destinadas a modificar os valores
Os demais Ministros acompanharam o preconceituosos dos seus membros, como
Relator no sentido de interpretar o art. 1.723 forma de extinguir a exclusão injusta dos
do Código Civil conforme a Constituição setores minoritários do exercício legítimo
Federal de 1988, de forma a expurgar qual- dos seus direitos.
quer tipo de dúvida que impeça a aplicação Nesse contexto, no presente trabalho,
do citado artigo para o reconhecimento de apresentou-se o pensamento de Nancy
união contínua, pública e duradoura entre Fraser (1997, 2010), que propõe a adoção de
pessoas do mesmo sexo, como entidade políticas públicas de reconhecimento como
familiar. Reconheceu-se, nesse momento, forma de extinguir não apenas a discrimi-
como resultado de uma luta legítima e não nação identitária, mas também as injustiças
menos árdua, a igualdade entre os seres econômicas sofridas pelos homossexuais,
humanos, sua liberdade sexual e o respeito garantindo-se, desse modo, o respeito à
à união homoafetiva. dignidade de todo ser humano no Estado
A decisão tem caráter histórico por Democrático de Direito brasileiro.
marcar o fim de duradouras e repetitivas
batalhas judiciais, tomando proporções que
extrapolam o âmbito jurídico, para atingir Referências
as esferas políticas, sociais e religiosas.
Para os defensores de uma sociedade ALEXY. Robert. Teoria dos direitos fundamentais.
livre de amarras ideológicas e preconcei- Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2008.
tos cruéis que freavam o desenvolvimento
social de toda uma significativa parcela BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o
da população, a vitória soou como o reco- reconhecimento jurídico das relações homoafetivas
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nhecimento de uma realidade que se torna cional, São Paulo, n. 17, p. 105-138, jan./jun. 2011.
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Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 87


Neoconstitucionalismo e ciberdemocracia
Desafios para implementação da cibercidadania na
perspectiva de Pérez Luño

Valéria Ribas do Nascimento

Sumário
1. Introdução. 2. Fundamentos do neocons-
titucionalismo e o desenvolvimento da ciberde-
mocracia. 2.1. O que há de novo no neoconstitu-
cionalismo? 2.2. O sentido da ciberdemocracia.
2.3. A necessária relação entre neoconstituciona-
lismo e ciberdemocracia. 3. Cibercidadani@ ou
cidadani@.com? Apontamentos segundo Pérez
Luño. 3.1. A versão fraca e forte da teledemo-
cracia planetária. 3.2. Os riscos para efetivação
da cibercidadani@. 4. Conclusão.

Quis custodiet ipsos custodes?


(Quem vigia os vigilantes? – Frase
em latim do poeta romano Juvenal)

1. Introdução
A temática deste trabalho, inicialmente,
remete às alterações na concepção clássica
de constitucionalismo, o que se pode de-
nominar de neoconstitucionalismo. Essa
nomenclatura pressupõe, via de regra,
uma concepção antipositivista, com pre-
dominância dos princípios e valores sobre
as regras, tendo como consequência uma
amplitude da jurisdição constitucional, em
Valéria Ribas do Nascimento é Doutora em diversos países, e o surgimento de novos
Direito pela Universidade do Vale do Rio dos desenvolvimentos teóricos, para dar conta
Sinos (UNISINOS), com período de pesquisa
dessa sociedade em constante transforma-
na Universidade de Sevilha (US); Mestre em
Direito Público pela Universidade de Santa
ção e interação.
Cruz do Sul (UNISC); Graduada em Direito pela Primeiramente, questiona-se o sig-
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); nificado do prefixo “neo”, inserido na
Professora Adjunta de Direito Constitucional da palavra constitucionalismo, bem como a
UFSM; Advogada. época de surgimento e significado desse

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 89


movimento, que, atualmente, abarca uma -se destacar, seguindo o autor espanhol,
diversidade de conceitos que se cruzam e contornos possíveis a serem trilhados em
se entrecruzam entre vozes positivistas e prol do constitucionalismo, que pressupõe
pós-positivistas. Posteriormente, pretende- democracia, cidadania e respeito aos direi-
-se lançar um novo conjunto tecnocultural tos fundamentais.
do final do século XX – impulsionado pela Ainda que a pesquisa indique a utiliza-
propagação das novas tecnologias, princi- ção de método de abordagem dialético1, em
palmente a informacional, que surge com o vertentes conservadoras, não é possível a
vertiginoso avanço da internet – intitulado interpretação sem a compreensão, uma vez
ciberdemocracia. que, para interpretar, antes é preciso com-
Com isso, é importante se repensar o preender. Por isso, opta-se por não fazer
próprio conceito tradicional de “Cons- uso de métodos tradicionais, já que esses se
tituição”, que traz em seu bojo certas fecham à realidade, bem como podem ser
implicações, como “cidadania”, “direitos todos e nenhum com o decorrer do tempo.
fundamentais”, “limitações de poderes”, Assim, entende-se que a metodologia da
etc., para se fazer uma relação com as fenomenologia é mais adequada aos obje-
novas sociedades em rede. Não é mais tivos desta proposta de pesquisa.
possível, entender o constitucionalismo Vale afirmar, também, que a discussão
contemporâneo, fechado em torno da pi- ora apresentada relaciona-se com problemá-
râmide kelseniana, ao contrário, usando ticas já trabalhadas em projetos do CNPq/
a terminologia de Antonio-Enrique Pérez CAPES, no interior de Grupos de Pesquisa
Luño (2007), pode-se imaginar a figura de da Universidade Federal de Santa Maria
uma “abóboda”, ou seja, a confluência de (UFSM/RS), denominados “Núcleo de
um conjunto de arcos esféricos, ou vários Direito Informacional” (NUDI) e “A recons-
sistemas policêntricos (PÉREZ LUÑO, trução de sentido do constitucionalismo”.
2007, p. 510). Assim, é possível perceber
claramente a importância da abertura e
2. Fundamentos do
amplitude de conceituações mais antigas.
Na segunda parte do texto, discute-se neoconstitucionalismo e o
sobre os efeitos que a sociedade da infor- desenvolvimento da ciberdemocracia
mação, com a utilização principalmente O aparecimento das constituições na
da internet, lança sobre a cidadania, na época moderna, bem como sua importância
visão de Pérez Luño (2004), que a divide para a instituição e posterior manutenção
em duas frentes: uma positiva, que seria a da democracia 2, representou verdadei-
cibercidadani@, traduzida em seu sentido ra revolução, baseada no fato de que a
autêntico de participação pública ampla,
nas diversas partes do mundo; outra nega- 1
Pedro Demo (1987, p. 118), ressalta que a dialética
sabe apontar o caráter contraditório e ambíguo da
tiva, entendida como cidadani@.com, que realidade e de si mesma. Assim, seria a metodologia
seria a evidência de uma massa acrítica, mais condizente com as ciências sociais. Ressalta,
manipulada pelos poderes públicos e pri- também, que “em combinação com hermenêutica,
vados (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 100). a dialética realça a face subjetiva do conhecimento,
sobretudo sua marca interpretativa”. No tocante à
Nesse sentido, serão apresentados utilização da fenomenologia hermenêutica, consultar,
argumentos favoráveis e contrários ao Martin Heidegger (2002) e Hans-Gerg Gadamer (2003).
crescimento das novas tecnologias em es- 2
Existem várias definições, trabalhos e teses sobre
cala global, sendo indispensável ressaltar este importante tema. Bobbio (2000, p. 29-52) afirma
que o único modo de se chegar a um acordo quando
que não se pretende defender um dos dois se fala de democracia, entendida como contraposta
caminhos, já que essa estrada apresenta-se às formas autocráticas de governo, é pensá-la como
como uma direção sem retorno. Buscam- um conjunto de regas que estabelecem quem está

90 Revista de Informação Legislativa


constituição proporcionou afirmação da dade e originalidade. Por exemplo,
coletividade e subordinou a atuação do a idéia de constituição como lei geral
ente estatal. Contudo, mesmo destacando da organização do Estado é posterior
a visão de certos autores de que o Estado às revoluções liberais. Mas esta con-
e o constitucionalismo seriam uma experi- cepção conviveu, ainda, por muito
ência moderna, é possível perceber formas tempo com a da constituição como
de organização social na antiguidade, e, estrutura política, como forma de or-
com isso, uma espécie de “Constituição do ganização do poder político. Isto sem
antigos”3 (FIORAVANTI, 2001). mencionar que foi só no decorrer do
Nessa mesma orientação, Manuel Gar- século XIX que a visão majoritária de
cía-Pelayo (1991) ressalta que o Direito constituição passou a ser a de uma lei
Constitucional como disciplina autônoma e formal e hierarquicamente superior
sistemática não nasce até o século XIX; toda- às demais, e a tradicional distinção
via, isso não quer dizer que antes não exis- entre constituições rígidas e flexíveis
tissem normas constitucionais. Cita, como só foi consolidada por James Bryce na
exemplo, Grécia, Roma e os sistemas dos passagem do século XIX para o século
tratadistas medievais (GARCÍA-PELAYO, XX” (BERCOVICI, 2008, p. 16).
1991, p. 25). Dalmo de Abreu Dallari (1985) Assim, na verdade, deve-se questio-
expõe que, no sentido comum da palavra, nar não propriamente quando surgiu o
“todos os povos sempre tiveram uma consti- constitucionalismo, mas qual é o sentido
tuição, assim como se diz que todas as coisas atribuído a esse movimento nos diferentes
formadas de diversas partes são constituídas momentos e culturas ao longo da história
dessas partes (...)” (DALLARI, 1985, p. 3). da humanidade. Nesse sentido, é pacífica
Na mesma orientação, pontua Gilberto a afirmação de que a ideia de limitação de
Bercovici (2008) que o constitucionalismo funções do Estado e de proteção dos direitos
diz respeito às circustâncias históricas fundamentais é fruto das revoluções liberais
europeias e ocidentais, com conexões e burguesas do século XVIII, destacando-se as
influências de outros períodos históricos, experiências americana e francesa.
não possuindo um momento único. Salienta Em torno dos dois eixos paradigmáticos
que as relações de continuidade são, geral- mencionados acima, surgem os alicerces do
mente, enganosas. Insta observar por meio constitucionalismo clássico, que paulatina-
das palavras do autor: mente irá se reestruturando no tempo, até
“Há pluralidade de experimentos e a fase em que atualmente se denomina de
visões, cada um com sua especifici- neoconstitucionalismo ou constitucionalis-
mo contemporâneo.
autorizado a tomar decisões coletivas e com quais
procedimentos. 2.1. O que há de novo no
3
Fioravanti (2001) utiliza “antigos” para se referir neoconstitucionalismo?
aos gregos, bem como aos romanos e “modernos”,
para dirigir-se aos homens e mulheres da sociedade O constitucionalismo contemporâneo –
ocidental pós-medieval. Entretanto, esses termos em do Estado Democrático de Direito – estabe-
castelhano e com esse significado não são usados cor- leceu seus principais traços característicos
rentemente pela doutrina. O destaque realizado pelo
tradutor Manuel Martínez Neira pode ser utilizado no
nos últimos cinquenta anos, sobretudo a
Brasil, que, igualmente em português, não é comum partir da Segunda Guerra Mundial. Com
a utilização dessas expressões (FIORAVANTI, 2001). isso, ocorreram transformações significati-
Salienta-se também o livro de Charles Howard McI- vas nas constituições, principalmente nos
lwain (1991. p. 37), no qual está elencado que o traço
característico mais antigo, constante e duradouro do
textos fundamentais da Itália, em 1947;
constitucionalismo continua sendo, como foi desde o da Alemanha, em 1949; de Portugal, em
começo, a limitação do governo pelo direito. 1976; da Espanha, em 1978. Também em

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 91


diversos países da América Latina, como lações entre os poderes estatais e ao grau
na Argentina, com as respectivas reformas de importância dos valores existentes nos
de 1957 e de 1994; na Colômbia, de 1991; e, ordenamentos jurídicos.
logicamente, no Brasil, com a Carta de 1988 Carbonell (2005) acredita que existem
(CARBONELL, 2007, p. 9). três distintos níveis a serem analisados ao
Entretanto, vale mencionar a ressalva tratar de neoconstitucionalismo. Entre eles
exposta por Pérez Luño (2003), quando está a época histórica, pois esse novo mo-
o mesmo destaca que, hoje, as variantes vimento constitucional pretende explicar
e prolongamentos de doutrinas tradicio- um conjunto de textos constitucionais que
nais, denominadas de pós-positivismos, surgem depois da Segunda Guerra Mun-
e as neodogmáticas, implicam no risco de dial, mais particularmente a partir dos anos
gerar doses de indeterminação conceitual setenta do século XX. Nas palavras do juris-
incompatíveis com o rigor e a claridade ta, são Constituições que não se limitam à
exigidos pela teorização do direito. Ade- disposição de competências ou à separação
mais, “la pretensión de resolver problemas dos poderes públicos, mas, para além disso,
conceptuales como meras adjetivaciones o contêm um alto nível de normas materiais
innovaciones terminológicas (...) pueden ou substantivas que condicionam o Estado
degenerar en una ideseable logomaquia” por meio de fins e objetivos (CARBONELL,
(PÉREZ LUÑO, 2003, p. 57-58). 2005, p. 10).
Dessa forma não são poucos os autores Em segundo lugar, estão as práticas ju-
que se perguntam se, realmente, surge um risprudenciais, que exigem dos juízes novos
novo constitucionalismo – neoconstitucio- parâmetros interpretativos. Aqui, entram
nalismo – ou apenas se trata de uma nova em jogo técnicas hermenêuticas apoiadas
roupagem para os mesmos problemas do em princípios constitucionais e em dife-
passado. rentes teorias, como a da ponderação, a da
Nesse sentido, recorrendo à posição de proporcionalidade, a da razoabilidade, a da
Miguel Carbonell (2005), acredita-se que, maximização dos efeitos normativos dos
como explicação para a complexidade de direitos fundamentais, entre outras4. Isso
fenômenos jurídicos, é possível admitir essa leva os juízes a trabalharem com valores
nova nomenclatura na teoria e na prática do 4
Sublinham-se as obras brasileiras de Lenio Luiz
Estado Constitucional. Talvez, ainda, para Streck, nas quais aparece uma posição firme ao dife-
além de neoconstitucionalismo, igualmente renciar o novo constitucionalismo (compromissário,
se projete o termo neoconstitucionalismos, principiológico e dirigente) do positivismo em suas
no plural, dependendo do enfoque aborda- mais variadas formas. “Qualquer postura que, de
algum modo, se enquadre nas características ou teses
do (CARBONELL, 2005, p. 9-10). Convém que sustentam o positivismo, entra em linha de colisão
ter presente que, quando se fala de neocons- com esse (novo) tipo de constitucionalismo.” Assim,
titucionalismo, é necessário observar um compactuando com a teoria ora apresentada, marcada
processo complexo de questões, as quais pela viragem da hermenêutica filosófica, acredita-se
que o neoconstitucionalismo deve ser entendido como
podem ser experimentadas em separado, superação e não mera continuidade do modelo ante-
dificultando ainda mais a atribuição de rior. Ademais, Streck é contra toda forma de discricio-
uma definição. nariedade judicial, uma vez que a discricionariedade
Constata-se que são muitas as varia- está ligada a subjetivismo (esquema sujeito-objeto),
avesso ao Estado Democrático de Direito. Com base
ções terminológicas que costumam ser na hermenêutica da faticidade, no que denomina de
encontradas para o referido fenômeno, tais Crítica Hermenêutica do Direito (Nova Crítica do
como constitucionalismo do pós-guerra, Direito), recoloca-se a discussão do enfretamento do
positivismo e da indeterminabilidade do direito no
pós-positivismo, neoconstitucionalismo
contexto, não da simples dicotomia texto e norma, mas
ou constitucionalismo contemporâneo, sim a partir da filosofia da diferença, que é ontológica
sendo que todas remetem a diferentes re- entre texto e sentido do texto (STRECK, 2009, 2007).

92 Revista de Informação Legislativa


constitucionalizados, mas muitas vezes de Cabe lembrar que o direito se rege pela
difícil aplicação, o que pode acarretar em palavra. É interpretando a palavra escrita
decisões disfarçadas de real poder consti- na lei que se faz a justiça do caso concreto.
tuinte (CARBONELL, 2007, p. 9). A partir Por isso, a necessidade da retomada da
do que foi mencionado, é perceptível a filosofia pelo direito, na denominação de
dificuldade de se manter o equilíbrio das Streck (2009), de “filosofia no direito”, e
três funções estatais. não do direito. Atualmente, os operadores
O terceiro e último nível para tratar do jurídicos permanecem reféns da metafísica,
neoconstitucionalismo está ligado a novos o que leva ao distanciamento entre fato e
desenvolvimentos teóricos, que partem do legislação, entre necessidade de aplicação
sentido material de textos constitucionais dos direitos fundamentais e a Constituição
para tentar explicar os fenômenos jurídicos. (STRECK, 2009, p. 97-100).
Podem-se citar várias doutrinas, como por Nesse contexto, verifica-se que o neo-
exemplo, a de Ronand Dworkin, Robert constitucionalismo é um termo que entrou
Alexy, Gustavo Zagrebelky, Luigi Ferrajo- na linguagem jurídica há pouco tempo e
li, Carlos Nino e Luis Prieto Sanchís, para que, mesmo não possuindo um significado
provar que diferentes âmbitos culturais têm unívoco, adquiriu grande aceitação. Geral-
contribuído não apenas para compreender mente, é empregado para indicar uma pers-
as constituições e práticas jurisprudenciais, pectiva jusfilosófica que se caracteriza por
mas também para ajudar a criá-las. Nessa ser um constitucionalismo antipositivista.
linha de orientação, é possível encontrar Streck (2009) critica as teses discursivo-
referência aos autores ora mencionados, -procedimentais habermasianas, bem como
nas Cortes Constitucionais da Colômbia, do as teorias da argumentação baseadas em
México, do Brasil e de vários outros países Alexy; ambas, segundo Carbonell (2007),
(CARBONELL, 2007, p. 9). podem ser também classificadas sob o
Para Lenio Luiz Streck (2009, p. 9), a prisma do neoconstitucionalismo. Observa-
invasão da filosofia pela linguagem, em -se que mesmo sob enfoques diversos é
uma era da pós-metafísica objetiva a (re) importante a reflexão em torno de dife-
inclusão da faticidade, que, principalmente rentes posicionamentos para tentar melhor
depois da década de cinquenta, atravessa compreender o mosaico de fenômenos que
o esquema sujeito-objeto para abarcar a abarcam o constitucionalismo contempo-
“circularidade”5 da compreensão. râneo. Ao concluir os três distintos níveis
de observação do neoconstitucionalismo,
5
Considerando a teoria desenvolvida por Heideg-
Carbonell (2007, p. 11) acredita que a no-
ger (2002) de radicalização da fenomenologia, em que
o mesmo liga hermenêutica e faticidade, recoloca-se vidade consista no conjunto, não tanto em
a questão da ontologia, mas não para abandoná-la, seus aspectos isolados, mas quando anali-
e sim, para buscar uma ontologia fundamental do sados no mesmo tempo e no mesmo espa-
ser, como filosofia hermenêutica, abrangendo a cir-
ço. Igualmente, Luis Prieto Sanchís (2004)
cularidade. “(...) Superada estava, assim, a idéia da
fundamentação na consciência e na representação afirma que o constitucionalismo europeu
da humanidade”. Ernildo Stein (2007) dispõe que, do pós-guerra adquiriu uma singularidade
com isso, introduziu-se uma dupla estrutura na fe-
nomenologia. “A compreensão de ser sempre se dá linguagem. Heidegger (2002) depois irá chamar esse
no modo prático de ser do ser-aí, enquanto esse se primeiro “logos” da compreensão de uma proposição,
explicita (interpreta, compreende), e só a partir daí do “logos apofântico”, o “logos” que se manifesta na
podemos dominar a lógica dos entes” (STEIN, 2007. linguagem. E o outro “logos”, aquele que se dá prati-
p. 105). Ocorre que a hermenêutica deve ser observada camente no compreender enquanto somos um modo
a partir dos dois teoremas fundamentais: o círculo de compreender, irá chamar de “logos hermenêutico”.
hermenêutico e a diferença ontológica, vale dizer por Esses dois elementos, o “logos apofântico” e o “logos
meio da existência de um “logos” que se bifurca, “o hermenêutico” irão constituir a distinção que dará
logos da compreensão da linguagem, que comunica material para que se possa depois falar numa herme-
e o “logos” no qual se dá o sentido que sustenta a nêutica filosófica” (STEIN, 1996, p. 27).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 93


tão grande que alguns autores não somente gando todos os países do planeta. Em uma
vislumbram uma nova e peculiar forma sociedade internacional, mesclando o local
política do continente, mas inclusive o e o global, pode-se pensar um novo sentido
surgimento de uma nova cultura jurídica. de constitucionalismo, relacionado com a
Assim, vale a pena citar alguns alcances do ciberdemocracia.
neoconstitucionalismo:
“(...) no cabe la menor duda de que 2.2. O sentido da ciberdemocracia
ese constitucionalismo ha propiciado As pessoas, atualmente, ligam-se não
el alumbramiento de una teoría del apenas por meio dos computadores, mas
Derecho en muchos aspectos dis- também, com telefones convencionais ou
tintas y hasta contradictoria con la celulares em franca expansão. Os serviços
teoría positivista que sirvio de marco de governo eletrônico são implementados,
conceptual y fecundas consecuencias: comunidades e redes sociais surgem com as
constitucionalismo de los derechos ferramentas da web 2.0, formas de ativismo
o, si se prefiere, Constituciones político e protestos nascem, utilizando-se
materiales y garantizadas. Que una de tecnologias das mais diferentes redes
Constitución es material significa informacionais.
aquí que presenta un denso conteni- Nessa linha de orientação, surge o que
do sustantivo formado por normas se pode denominar de cibercultura, ou
de diferente denominación (valores, seja, o conjunto tecnocultural emergente do
principios, derechos o diretrices) final do século XX, impulsionado pela so-
pero de un idéndico sentido, que es ciabilidade pós-moderna em sinergia com
decirle también qué es lo que puede a microinformática e o aparecimento das
e incluso, a veces, qué es lo que debe redes telemáticas mundiais. Ou uma forma
decidir. Constitución material se sociocultural que modifica hábitos sociais,
opone así a Constitución formal o práticas de consumo, ritmos de produção
meramente procedimental. Que una e difusão de informação, criando outras
Constitucional se halla garantizada formas de relações de trabalho, lazer, so-
significa sencillamente que, como ciabilidade e comunicação social (LEMOS;
ocurre con cualquier otra norma LEVY, 2010, p. 21-22). Esse conjunto de
primaria, su protección o efectividad novas informações e tecnologias comanda
se encomienda a los jueces; o si se o ritmo das transformações sociais, econô-
prefiere, que en el sistema existen micas, culturais e políticas do século XXI.
normas secundarias, de organización As consequências da cibercultura se
y procedimiento, destindas a depurar fazem presentes em todos os países do glo-
o sancionar la infración de las normas bo, e somente um pensamento global pode
sustantivas o relativas a derechos” dar conta dos desafios da atual sociedade
(PRIETRO SANCHÍS, 2004, p 47-48). da comunicação e informação planetária
O novo constitucionalismo de direitos (LEMOS; LEVY, 2010, p. 22). Nesse atual
ou essa supremacia material da constituição modelo de Estado Democrático do Direito,
funciona como uma diretiva fundamental a deve-se dar especial atenção ao qualifica-
orientar as três funções estatais, servindo, tivo “democrático”, para tentar entender
ao mesmo tempo, como limite e garantia do como essas novas formas de conexão mun-
Estado Democrático de Direito. E, quando dial influenciarão a ciberdemocracia global.
se menciona sobre esse novo paradigma André Lemos e Pierre Lévy (2010, p. 22),
estatal, é importante destacar que, atual- trazem alguns dados:
mente, se vive na sociedade da informação. “(...) Segundo a Internet WordStats, nú-
A internet já é realidade mundial, interli- meros de junho de 2008, há 1,5 bilhão

94 Revista de Informação Legislativa


de usuários da internet no mundo e vertiginosamente o espaço de redes como
em todas as regiões. África, Oriente MySpace – mais popular entre os músicos
Médio, América Latina e Caribe são as –, Facebook e Twitter. Esses espaços pos-
regiões que mais crescem, mostrando sibilitam que internautas menos dotados
uma descentralização, embora a taxa de capital cultural e financeiro entrem em
de penetração seja maior em países cena de maneira mais rápida.
desenvolvidos (Sudeste asiático, Segundo dados, o recém nascido Goo-
Europa e América do Norte). Mas já gle+, lançado no fim de junho de 2011, em
podemos afirmar que o crescimento um mês já contava com 25 milhões de ins-
do acesso é exponencial e mundial. O critos. O Facebook somente chegou nessa
Brasil tem hoje 45 milhões de usuários cifra com três anos de existência e o Twitter
(sendo 24,4 milhões de usuários resi- com 33 meses, recebendo uma injeção de
denciais), segundo dados do Ibopel/ capital, em agosto, valorizou U$ 8 bilhões,
NetRating. Embora não haja estatísti- levando ao surgimento do termo “bolha
cas definitivas, o Brasil está entre os 10 especulativa” (CHOLLET, 2011, p. 36).
países em números absolutos de usuá- No Twitter tudo é público, o que é
rios, embora uma taxa de penetração postado ou porque se é seguido. Enquan-
muito pequena e inferior mesmo em to no Facebook o acesso restrito é a regra,
comparação a países vizinhos da Amé- raramente são os usuários do Twitter que
rica do Sul. Os brasileiros são ativos ativam a função “proteger seus tweets”. O
produtores de informação e partici- objetivo do Twitter está na circulação mais
pação de redes sociais. Os internautas ampla de mensagens. Fotos de uma viagem
brasileiros são aqueles que ficam mais ou de uma festa encontrarão sempre lugar
tempo on-line por mês e usam muito mais apropriado no Facebook. Entretanto,
ferramentas da computação social. De o Twitter longe de ser um telégrafo neutro,
acordo com o Ibotel/NetRatings, chega- criou uma relação nova com a informação,
mos a nove milhões de usuários que a qual é amplamente transmitida por meio
acessam e leem blogs em um universo de links para várias fontes. A “twittosfera”
de aproximadamente 170 milhões de abarca uma mistura inédita de informações,
blogueiros. O número representa 46% fofocas e comentários dos mais diversos,
de internautas ativos no país.” recebendo o apelido de “canivete suíço”.
Além desses dados, que demonstram o Esse fato pode provar a desconfiança e o
Brasil como um país com enorme número desprezo daqueles que não estão familiari-
de usuários de internet, destacam-se novas zados com ele. Equivocadamente, segundo
modalidades como telefones celulares, Cardon, “se a afirmação da subjetividade, a
redes 3G e intenet sem fio Wi-Fi, além de flexibilização das formas de enunciação, a
várias comunidades oferecerem redes sem ludificação da informação (...) estão se tor-
fio de graça. Ademais, as iniciativas em nando tendências centrais da relação com
governos eletrônicos crescem exponen- a informação, a exigência de veracidade e
cialmente. Todas as manifestações federais a busca por novos dados (...) não param de
estão ligadas no portal Redegoverno, com se fortalecer”. De fato, verdades e mentiras
inúmeras informações em nível federal, es- são facilmente identificadas (CHOLLET,
tadual e municipal. Algumas experiências 2011, p. 37).
brasileiras são consideradas de ponta, como Devido a esses fatores, as redes sociais
a declaração do Imposto de Renda e o voto crescem em popularidade e a extrema di-
eletrônico (LEMOS; LEVY, 2010, p. 24). versidade de usuários permite que um con-
A ascensão das redes sociais deve-se junto de códigos comunitários se fortifique.
perceber em perspectiva global: cresce Todos compartilham a mesma interface

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 95


virtual e o resultado é um esperanto digital “O Direito Constitucional não come-
cujos componentes foram reproduzidos ça onde cessa o Direito Internacional.
nos cartazes de manifestantes árabes no Também é válido o contrário, ou seja,
inverno (do Hemisfério Norte) de 2011, ou o Direito Internacional não termina
dos “indignados” espanhóis, como sinais onde começa o Direito Constitu-
de reconhecimento (CHOLLET, 2011, p. 37). cional. Os cruzamentos e as ações
Além, é claro, do “Ocupe Wall Street” nos recíprocas são por demais intensivas
Estados Unidos da América, no qual mani- para que se dê a este forma externa de
festantes mantém uma ocupação constante complementariedade ou idéia exata.
da Wall Street, o setor financeiro da cidade O resultado é Direito comum de coo-
de Nova Iorque, em protesto contra a desi- peração” (HÄBERLE, 2007, p. 11-12).
gualdade social, a ganância empresarial e o Com isso, para Häberle (2007), o Esta-
sistema capitalista como um todo. do Constitucional Cooperativo deveria se
Vale observar que essas redes sociais de colocar no lugar do Estado Constitucional
informação trazem o risco de acorrentarem Nacional. Contudo, pondera-se que o
seus adeptos a um presente imediato, mui- direito comum de cooperação não pode
tas vezes sem fundamentação consistente, simplesmente aderir ao Estado Constitu-
densa ou profunda. O desafio é saber como cional em um processo de substituição,
explorar o fluxo digital, interligando o local particularmente, nos países “em via de
e o global, com o objetivo de fortalecer os desenvolvimento”, que sofrem com as
direitos fundamentais e a democracia. negociações internacionais, muitas vezes
inviabilizando o comércio de suas matérias-
2.3. A necessária relação entre -primas. Deve ocorrer um entrecruzamento
neoconstitucionalismo e ciberdemocracia entre eles, na tentativa de manter suas
Como já foi mencionado, anteriormente, simetrias e assimetrias.
o neoconstitucionalismo é um movimen- Por outro lado, Zagrebelky (2005, 2007),
to que surge depois da Segunda Guerra trazendo o modelo de um direito dúctil,
Mundial, vinculado à proteção dos direitos defende um esgotamento do positivismo
fundamentais da pessoa humana, tendo jurídico, afirmando inclusive que ele não
como característica marcante a atuação seria muito útil nos atuais contextos cons-
das Cortes Constitucionais e os novos titucionais, enquanto Luigi Ferrajoli (2000)
desenvolvimentos teóricos que buscam não é totalmente contrário ao positivismo,
outra forma de entendimento sobre o papel reconhecendo laços de reconstrução de um
das Constituições na sociedade contem- Estado Constitucional que ponham limites
porânea. E, quando se mencionam novos ao poder das maiorias. Também, esse autor,
desenvolvimentos teóricos, é possível se aborda a teoria garantista e o constituciona-
perceberem certas projeções das teorias lismo multinível (FERRAJOLI, 2006, 2007).
tradicionais, sendo que nenhuma dessas Zagrebelky (2007, p. 13) constata, ob-
correntes pode ser pensada sem um Estado servando os modelos de Estados europeus,
democrático e a defesa de uma abertura do que é notória a perda da posição hierar-
constitucionalismo. quizada da Constituição e, para visualizar
De fato, Peter Häberle (2000, 2002), com essa afirmação, traz a imagem do direito
a teoria da constituição como ciência da constitucional como um conjunto de ma-
cultura e a teoria do Estado Constitucional teriais de construção, considerando que o
Cooperativo, refere que, hoje, o direito edifício concreto não seria obra da consti-
constitucional e o direito internacional não tuição enquanto tal, mas de uma política
têm o mesmo sentido de outrora, e que, em constitucional que estabelece possíveis
conjunto, transformaram-se: combinações de materiais.

96 Revista de Informação Legislativa


A metáfora ora mencionada, relacionan- Pérez Luño (2007), ainda, refere que o
do o constitucionalismo a uma espécie de jurista do presente, acostumado à teoria
laço ou integração com valores e procedi- pura do direito, deve encaixar o positivis-
mentos comunicativos, tem recebido vários mo jurídico em um novo significado de
adeptos, em diversos locais do mundo. ordenamento normativo. Se, até o momen-
Pode-se citar, a título de exemplificação, to, houve um excesso de concentração em
Joaquim José Gomes Canotilho (2006), em um ponto único e hierárquico, atualmente,
Portugal, que trata da interconstitucio- devem-se acomodar os olhares para orde-
nalidade ou rede de constitucionalismos. namentos policêntricos.
Nessa seara, como o nome indica, ocorre a Assim, se é possível entender o cons-
concorrência, convergência ou justaposição titucionalismo em uma nova perspectiva
de várias Constituições e de vários poderes policêntrica, devem-se pensar os princípios
constituintes no mesmo espaço político. do direito informacional, da cibercultura e
Pode-se inferir que Canotilho (2006) tem da ciberdemocracia em uma perspectiva
recuperado algumas categorias trabalhadas global, como referido por Lemos e Lévy
por Niklas Luhmann, que, para ele, possibi- (2010).
litam “uma leitura constitucional progres- Em primeiro lugar parece estar em jogo,
siva”, que responde a ruídos, perturbações no que se relaciona à dimensão política da
e irritações aos processos de diferenciação sociedade informacional uma nova ligação
funcional dos diferentes sistemas. Aqui, entre a tecnologia e os processos comu-
abre-se um parêntese para destacar que nicacionais sociais. Daí que o primeiro
a leitura procedimentalista luhmaniana é princípio da cibercultura seria a “liberação”
severamente criticada por determinados da palavra. Segundo esses autores, esse
doutrinadores6, pois leva à perda da subs- traz consequências para a constituição da
tantividade presente no texto constitucional opinião e da esfera públicas, pois o círculo
e a um considerável enfraquecimento dos da conversação mundial se ampliou, com
valores fundamentais. “blogs, wikins, podcasting, softwares so-
Na Espanha, evidencia-se sob outra ciais como o Orkut e o Facebook”, permi-
perspectiva de viés substancialista a pro- tindo a troca de informações entre pessoas e
posta de Pérez Luño (2007), que apresenta comunidades (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 25).
a imagem da constituição não com uma Da liberação da palavra em redes tele-
estrutura piramidal baseada na teoria kelse- máticas surge um segundo princípio, “o
niana, mas como “abóbada”. Essa estrutura da conexão e da conversação mundial”
implicaria a confluência ou interação de um (ou o que Lévy chamou de “inteligência
conjunto de arcos esféricos que fechariam coletiva”). A circulação da palavra em redes
os espaços compreendidos entre muros e abertas, faz surgir uma interconexão pla-
colunas (PÉREZ LUÑO, 2007, p. 510). As- netária fomentando uma opinião pública
sim, infere-se que os atuais deslocamentos, ao mesmo tempo local e global (LEMOS;
da unidade ao pluralismo e da plenitude LÉVY, 2010, p. 25), o que se poderia enten-
à abertura, exigem uma nova postura do der como “glocal”.
constitucionalismo. Aparecendo aqui o terceiro princípio da
cibercultura denominado de “reconfigura-
6
Luhmann (apud PEREZ LUÑO, 2005. p. 63) de-
senvolve a teoria dos sistemas, em que trabalha com ção social, cultural e política”:
variadas instituições sociais dispostas em diferentes “As mídias de massa surgem a partir
subsistemas, o que leva a perda da dimensão reivin- de século XVI com a formação da
dicativa e emancipatória desempenhada pelos direitos
opinião, do público, primeiro pela
fundamentais. Isso acaba por desvalorizar o papel dos
mesmos e percebê-los como meros componentes de imprensa e, mais tarde, pelos meios
uma organização já estabelecida. audiovisuais como o rádio e a tele-

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 97


visão. O transporte à distância do qual ela é, estruturada pela utilização da
‘pensamento e da força’ (de Tarde, comunicação. Essa mesma extensão do ci-
2005) vai criar as redes das primeiras berespaço leva a um aumento da liberdade
cidades modernas ganhando novas (individual ou coletiva), o que acarreta no
dimensões nos séculos XIX com a crescimento dessas mesmas liberdades em
revolução industrial e com as mídias escala planetária.
de emergência de processos comuni- Pérez Luño (2004, p. 60) define a tele-
cativos com funções pós-massivas e democracia como a projeção das novas
a emergência de processos comuni- tecnologias aos processos de participação
cativos com funções pós-massivas, política das sociedades democráticas, sendo
surgem formas de produção e circu- que os elementos constitutivos dessa noção
lação da opinião pública abertas mul- se cifram em três exigências básicas: do
timidiáticas e interativas” (LEMOS; ponto de vista metodológico, trata-se de
LÉVY, 2010, p. 26). aplicações das novas tecnologias em grande
Há, portanto, além do sistema infoco- escala, como televisão, informática, telemá-
municativo massivo, em que os cidadãos tica, internet; no que se refere ao seu objeto,
apenas recebiam as informações, o sistema projeta-se sobre processos de participação
pós-massivo, no sentido da produção da política dos cidadãos; e no que se refere ao
palavra pelos antigos receptores. Dessa seu contexto de aplicação, apenas possível
forma, o ciberespaço, faz emergir um sis- em sociedades democráticas.
tema de retroalimentação (LEMOS; LÉVY, Essas novas tecnologias, sobretudo, a
2010, p. 26). Daí, que o sistema pós-massivo internet, ao entrarem no mundo jurídico-
permite um novo espaço para debate não -político suscitam dilemas que afetam dire-
mediado, de conversação ampla e desterri- tamente a discussão em torno da cidadania,
torializão estatal. Com isso, vislumbram-se desdobrando-a em dois polos: um polo
outros desafios para a implementação da positivo – a cibercidadania – que implica
cibercidadani@, berço da ciberdemocracia um novo modo mais autêntico e profundo
em gestação. para participação política de vocação plane-
tária; outro polo negativo – cidadania.com
– cujo titular permanece como mero sujeito
3. Cibercidadani@ ou cidadani@.com?
passivo à manipulação de poderes públicos
Apontamentos segundo Pérez Luño e privados (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 100).
A palavra ciberespaço foi um neologis- Considerando os efeitos que a tecnolo-
mo criado nos anos oitenta e faz evidência à gia causa na concepção de cidadania, im-
cibernética, corrente científica transdiscipli- porta considerar alguns aspectos favoráveis
nar dos anos de 1940 e 1950, que consagrou e contrários à teledemocracia, atentando
as noções de informação e comunicação no primeiramente para sua acepção ampla,
mundo científico. Segundo Lemos e Lévy que se bifurca em duas espécies, possuindo
(2010, p. 51), de maneira significativa, a significado e alcance distintos.
cibernética designa a ciência do comando e
do controle, ou pensando de outra maneira, 3.1. A versão fraca e forte da
a ciência do governo. Não há governança teledemocracia planetária
possível sem circuito de comunicação ou Com base na teoria de Yoneji Masuda,
espaço de circulação da informação. Pérez Luño (2004) apresenta a versão
O poder governamental das diversas fraca e forte da teledemocracia. Aquela,
sociedades passa por um ciberespaço tem por objetivo reforçar o procedimento
em sentido amplo, ou seja, uma viagem de representação parlamentar, não impli-
pelo universo da linguagem humana tal cando uma substituição ou alternativa ao

98 Revista de Informação Legislativa


sistema de participação política, baseado e Poder Judiciário, que além de informar
na democracia indireta, que se articula com sobre as últimas notícias vinculadas ao
base nos partidos políticos (PÉREZ LUÑO, governo, possibilitam, muitas vezes, a
2004, p. 61). Atualmente, é inimaginável coleta de opinião direta do cidadão sobre
uma eleição em países democráticos, sem diferentes projetos e temáticas. Vale men-
a forte influência das novas tecnologias. cionar, a criação da TV Justiça, que surge
Além das propagandas eleitorais, dos como um canal de televisão – sem fins
sites e e-mails dos candidatos, os mesmos lucrativos – relacionado à ampliação da
possuem várias páginas na internet como visibilidade do Supremo Tribunal Federal
Blogs, Twitter e Facebook, apenas para (STF) e administrado pela Secretaria de
citar alguns exemplos. Isso permite ao Comunicação do STF, com o auxílio de um
candidato e aos eleitores trocar informa- Conselho Consultivo. Ela começou suas
ções, bem como, em brevíssimo espaço de transmissões em 11 de agosto de 2002, com
tempo, verificar as reações sobre propostas objetivo de divulgar os julgamentos, deba-
e planos de governo. tes e programas didáticos essenciais à pro-
Dessa forma, os novos meios de comu- moção da justiça, sendo seu sinal captado
nicação permitem uma aproximação entre por antenas parabólicas, além do sistema
candidatos e eleitores, além de facilitar o a cabo e via satélite (DHT). Ainda importa
processo eleitoral. Em Arizona, um juiz nas destacar o programa “Direto do Plenário”,
eleições presidenciais norte-americanas, transmitido nas quartas e quintas-feiras em
autorizou o exercício do sufrágio por meio tempo real, ou seja, ocorre a transmissão
da internet. A votação pela rede simplifica imediata dos julgamentos submetidos às
os trâmites de atuação do sistema eleitoral sessões plenárias da Corte Constitucional.
(PÉREZ LUÑO, 2004, p. 63-64). No Brasil, é Isso apresenta-se como uma iniciativa
possível citar a urna eletrônica ou máquina inédita em âmbito global, uma vez que o
de votar brasileira, que é um computador Brasil foi o primeiro Estado a dar tamanha
responsável pelo armazenamento de votos visibilidade aos seus julgamentos.
durante as eleições. O dispositivo foi desen- Retomando o debate sobre as novas
volvido em 1996 e, desde então, diversos tecnologias no processo eleitoral, importa
outros países vêm testando equipamentos também mencionar algumas vozes discre-
semelhantes. pantes ou que manifestam determinadas
As repercussões das novas tecnologias reservas sobre a propagação dessas ideias.
não param nos processos eleitorais, mas se Entre os autores que manifestam gran-
projetam em um amplo mosaico de relações de preocupação com o tema, destaca-se
entre os poderes públicos e os cidadãos. É Giovanni Sartori, pois ele denuncia riscos
indispensável se pensar, cada vez mais, ineludíveis dessas novas tecnologias. Como
em uma rede de comunicação direta entre fundamentação, primeiramente, afirma que
a Administração e os administrados para a telepolítica, em lugar de contribuir com
facilitar a transparência e eficiência da a maturidade dos cidadãos, enfraquece
atividade pública. Em países anglo-saxões sua responsabilidade política. O fluxo de
e escandinavos existe, há alguns anos, ex- informações e seu crescimento quanti-
periências de conexão dos cidadãos e redes tativo não se traduzem na ampliação de
virtuais aplicadas à Administração Pública conhecimento, nem no desenvolvimento da
(PÉREZ LUÑO, 2004, p. 64). capacidade crítica dos cidadãos. Basta ver
O Brasil, da mesma forma, possui ex- o efeito da televisão na vida das pessoas, já
periências inovadoras nesse sentido, como que as mesmas empobrecem drasticamen-
sites oficiais, vinculados às três funções te a informação e a formação do cidadão
estatais, Poder Executivo, Poder Legislativo (SARTORI; SOLER, 1998, p. 127).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 99


Sartori e Soler (1998, p. 127) denominam decisiva descentralização e desconcentra-
os novos usuários das tecnologias de “ho- ção do poder. A internet, veio facilitar a
mens-bestas”, sem noções claras, genuínas e realização dessa prática, já que cada do-
diferentes. Longe de formar cidadãos livres micílio pode estar conectado a uma rede
e responsáveis, a sociedade informacional comunicativa universal. Nas palavras do
gera um proletariado intelectual sem ne- professor espanhol “el sistema permite
nhuma consistência intelectual. A forma fá- maximizar y optimizar la comunicación
cil, rápida e sem rigor conceitual acarretaria directa, sin ningún tipo de mediatizacio-
em conclusões simples e simplificadoras. nes, entre los ciudadanos y quiens tienen
Mais comedido nas críticas, Cass Suns- a su cargo el poder político responsable de
tein (2001, p. 13) não vacila em reconhecer tomar las decisiones” (PÉREZ LUÑO, 2004,
as possibilidades para uma renovação na p. 68). Assim, a votação eletrônica instantâ-
política mediante a utilização das novas nea permite aos governantes condições de
tecnologias, mas apresenta algumas ponde- conhecerem a vontade dos governados de
rações. Sustenta que há muita fragmentação forma muito mais rápida e eficaz.
na opinião pública, já que cada usuário, Ainda, Pérez Luño (2004, p. 68), citando
individualmente, com o acesso aos diversos Arterton, Bennett e Tribe, traz a possi-
meios de comunicação, forma seu próprio bilidade de os referendos instantâneos e
entendimento sobre os mais diversos te- permanentes substituírem os trâmites insti-
mas, o que pode levar a uma difícil coesão tucionais das eleições pela possibilidade de
estrutural da experiência republicana. uma “urna ininterrupta”, constantemente
Sunstein (2001, p. 105) afirma que a rede aberta. Como é sabido, para Rousseau, a
pode levar ao surgimento de um tipo de soberania não poderia ser representada.
usuário consumidor, que apenas pensaria Porém, importa trazer alguns perigos de
em seus interesses egoísticos, voltados ao uma democracia plebiscitária, pois ela
consumo próprio e não na acepção coleti- pode gerar fenômenos políticos involutivos
va e solidária. Citando esses dois autores, evidenciando lideranças personalíssimas, o
Pérez Luño (2004) entende que os doutri- que pode gerar regimes totalitários, assim
nadores não negam totalmente a contribui- como dificultar o processo de tomada de
ção das novas tecnologias e os processos decisões deliberativas pela administração
de participação política, porque algumas pública.
vantagens que derivam da teledemocracia Nesse sentido, o Tribunal Constitu-
na versão fraca são, hoje, avanços irrenun- cional espanhol sustenta uma concepção
ciáveis à sociedade contemporânea. No restritiva e excepcional da democracia
entanto, as críticas apresentadas, indiscu- direta. Pérez Luño (2004) traz o exemplo
tivelmente, possuem o mérito de denunciar de uma sentença relativa ao recurso de
os riscos de determinadas opiniões simplifi- amparo apresentado contra uma lei do
cadas ou ingênuas (PÉREZ LUÑO, 2004, p. Parlamento vasco que limitava o exercício
66-67). Como foi afirmado, anteriormente, da democracia direta dos cidadãos de
particularmente o Brasil apresenta muitos mencionada comunidade. Invocou-se o di-
progressos com relação a esse tema, como reito fundamental da participação política
o voto eletrônico, por exemplo. direta, derivado do exercício da soberania
Com relação à versão forte de telede- popular. A Corte espanhola não acatou o
mocracia, Pérez Luño (2004), trazendo pedido, considerando como excepcionais os
Masuda, assevera que existe um especial casos de democracia semidireta ou direta,
interesse em desenvolver formas de de- afirmando que a regra seria a democracia
mocracia direta e baseadas na participação representativa. Cita-se trecho elencado pelo
imediata do cidadão, o que favoreceria a respectivo Tribunal:

100 Revista de Informação Legislativa


“El derecho a participar directamente jurídicas y políticas” (PÉREZ LUÑO,
en los asuntos públicos, como todos 2004, p. 72-73).
los derechos que la Constitución Pode-se perceber que, sem a democracia
establece, no puede sino ejercerse en direta, a democracia representativa é vazia
la forma jurídicamente prevista em e exposta a perversões, ao passo que, sem
cada caso. Lo contrario, lejos de sa- a democracia representativa, a democracia
tisfacer las exigencias de la soberanía direta pode reproduzir vícios de represen-
popular, supondría la imposibilidad tação e ser desprovida de garantias cons-
misma de la existencia del ordena- titucionais, pois carece de recursos para
miento, a cuya obediencia todos – ciu- deliberação. Em que pese as insuficiências
dadanos y poderes públicos – vienen da democracia direta, a teledemocracia,
constitucionalmente obligados” em sua versão forte, mostra-se como um
(PERÉZ LUÑO, 2004, p. 70). instrumento para tornar viáveis experi-
Percebe-se que a Corte espanhola ências políticas de democracia direta, que
sustenta uma interpretação restritiva do anteriormente resultavam problemáticas
exercício das formas de democracia dire- (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 73). Assim, os
ta, afirmando que o Estado democrático defensores dessa ampliação tecnológica
equivale à democracia representativa. Com entendem que essa nova versão guarda um
efeito, não se objetiva negar o valor dessa salto qualitativo, em seu sentido político,
forma de democracia, mas sim demonstrar jurídico e moral, como será demonstrado a
que é necessário um equilíbrio e comple- seguir, conforme exposição de Pérez Luño.
mentaridade entre as espécies de sistemas A contribuição política representa uma
democráticos. determinada opção das novas tecnologias
“Estas observaciones no pretenden para se renovar e melhorar o processo po-
abolir o infravalor la democracia re- lítico das sociedades democráticas. Os pos-
presentativa, porque, como hemos re- tulantes dessa perspectiva entendem que,
cordado oportunamente, ésta resulta graças às experiências teledemocráticas, se
imprescindible para segurar la deli- reforçará a presença imediata da cidadania
beración, mientras que la democracia em todas as esferas da vida pública, pois
direta es más eficaz para garantizar la os novos métodos possibilitam a operati-
participación (Fishekin, 1995:50-51). vidade democrática real e efetiva do povo,
Por eso, para la plena garantia no que não ficará apenas nas mãos de uma
se debe optar por uno de esos tipos ditadura dos partidos políticos, ademais, de
alternativos de democracia, sino que representar um meio de evitar as disfunções
debe reforzarse su complementarie- dos sistemas eleitorais, já que, em muitos lo-
dad. Por decirlo en términos de Luigi cais, o sistema majoritário eleitoral deixa de
Ferrajoli (1995: 948): En ausência de representar as minorias, que muitas vezes
democracia directa, en efecto, la de- são um grande número de eleitores. Ainda,
mocracia representativa únicamente é possível citar, o recurso à teledemocracia
puede valerse de un consenso vacío em seu sentido político, como uma forma
y pasivo y se halla expuesta a todas de impedir a corrupção da democracia
las aventuras y perversiones. En au- representativa, muitas vezes manipulada
sência de democracia representativa, por lobbies, por grupos públicos ou privados
la democracia directa está destinada das mais diversas naturezas. No sentido
a replegarse sobre si misma , repro- jurídico, a teledemocracia consiste em uma
duciendo en su interior las formas de colaboração no próprio processo legislati-
la representación y sucumbiendo a vo, consistindo na formação da vontade
largo plazo por defecto de garantias legislativa do Estado, e, quanto à inovadora

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 101


contribuição em seu sentido moral, pode-se longe de contribuir com o aprofundamento
mencionar a existência de uma ética cibe- de uma autêntica participação cívica, repre-
respacial, que gera e estimula atitudes de senta uma via para manipulação e controle
consciência coletiva sobre as liberdades e os ideológico dos cidadãos, degenerando
bens, o que deflagra a formação de vínculos em uma “democracia totalitária”, sendo
solidários em rede local, regional e global controlada por uma elite tecnológica, que
(PÉREZ LUÑO, 2004, p. 73-84). comandaria meros súditos por uma adesão
De tudo que foi exposto, nota-se a ampla incondicional.
gama de opções e remodelações pelas quais Em outro sentido, Daniel M. Downes e
tem passado a noção tradicional de demo- Richard Janda (apud PÉREZ LUÑO, 2004,
cracia, com o crescimento do ciberespaço, p. 90), em seu estudo sobre “cidadania vir-
até a crescente expansão da ciberdemocra- tual”, propõem captar a ambivalência que
cia, que traz em seu âmago a formação e comporta a projeção das novas tecnologias
desenvolvimento de novos atores sociais. no âmbito da cidadania, ou seja, a internet
Estes, em conexão mediata e imediata, levaria a quatro grandes deslocamentos:
formam um conjunto assimétrico em escala 1. Do Estado à comunidade virtual; 2. Da
“glocal”, que podem ser denominados de localização territorial ao ciberespaço; 3. Da
cibercidadãos. cidadania à cidadania virtual; 4. Da comu-
nidade de Estados ao mercado global. Daí
3.2. Os riscos para efetivação da que seria ingênuo pensar que o aumento de
cibercidadani@ comunicação levaria a mais cidadania, pois
As razões que se postulam para des- a mesma pode ser controlada por grandes
qualificar a teledemocracia, igualmente, empresas comerciais.
podem ser separadas em três frentes: riscos Com relação aos riscos jurídicos, esses
políticos, jurídicos e morais. Quanto aos são facilmente perceptíveis, pois é compli-
riscos políticos, pode-se destacar o receio cado se pensar em um processo legislativo
de que as novas tecnologias promovam unicamente teledemocrático. Na maioria
uma estrutura vertical das reações socio- dos procedimentos tradicionais, a delibe-
políticas, levando à despersonalização do ração legislativa ocorre com a submissão às
cidadão e à alienação política. Isso porque o diferentes casas legislativas, posteriomente,
sistema teledemocrático tenderia a esvaziar em uma segunda fase, com a possibilidade
as estruturas associativas e comunitárias de emendas para reanálise, entre outras for-
de caráter intermediário entre o Estado e mas de debate. Com as novas tecnologias,
o indivíduo, como, por exemplo, partidos, em que os cidadãos participariam desse
sindicatos, associações e movimentos cí- processo diretamente de suas residências,
vicos coletivos, que são os que reforçam ocorreria um empobrecimento normativo
a coesão da sociedade civil. Facilmente é com a perda da qualidade das leis. Ade-
possível lembrar do poder hipnótico, mui- mais, o sistema teledemocrático, poderia
tas vezes com mensagens subliminares, ser violado por determinadas formas de
que a televisão exerce sobre as grandes crimes da internet, já que os hackers, podem
massas da população, acarretando apatia conseguir a manipulação do sistema. É
e despolitização do cidadão. Da mesma importante destacar ainda o grave perigo
forma pode ocorrer com as novas tecnolo- de desrespeito ao direito à intimidade,
gias, que, ao invés da formação crítica das garantido constitucionalmente, na grande
pessoas, resultariam em um instrumento maioria dos países democráticos. Segundo
de manipulação política. Citando Nicholas Pérez Luño (2004, p. 95):
Negroponte, Pérez Luño (2004, p. 84-89), “(...) Junto con las incuestionables
traz a informação de que teledemocracia, ventajas derivadas de las inmensas

102 Revista de Informação Legislativa


posibilidades de conocimiento, ac- pretende mascarar a carência de realidade
tuación y comunicación que permite (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 97). Do mesmo
la navegación por el ciberespacio, In- modo, as consequências das novas tecno-
ternet há hecho surgir em los últimos logias podem gerar, até mesmo, uma forma
tiempos graves motivos de inquietud. real de incomunicação, como denunciam
El escándalo de contínuos atentados pediatras e pedagogos, com a denominação
contra la vida privada de los ciuda- de “síndrome do autismo provocado”. As
danos, perpetrados a través de la Red crianças deixam de se comunicar e brincar
por entes públicos y privados, ha com colegas de classe, preferindo o mundo
creado uma fundada inquietud sobre virtual (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 98).
los abusos que pueden derivarse de Todos esses fatores, além de demonstrar
tales prácticas”. os perigos da teledemocracia, mostram que
Os atentados à vida privada e à inti- ela é um caminho sem volta. Assim, melhor
midade podem ser facilmente percebidos que recorrer aos seus pontos negativos
em diversos programas, sites e páginas é pensar os porquês de sua existência e
da internet, o que leva a sérios riscos aos surgimento, e, ao mesmo instante, tentar
direitos do cidadão. Também, o controle usufruir de seus benefícios sem cair no
de dados pessoais é um outro problema, abismo de uma “ágora virtual” sem ligação
já que é possível se verificarem preferên- com o real.
cias musicais, artísticas, literárias, hábitos
de vida, viagens, operações financeiras,
4. Conclusão
crenças religiosas, problemas de saúde,
etc., apenas com um monitoramento on- As novas tecnologias, principalmente
-line. Com o cruzamento desses dados, a internet, avançam no âmbito jurídico-
origina-se, conforme o doutrinador espa- -político, na forma de teledemocracia, como
nhol, a “síndrome do aquário”, ou seja, os foi exposto no decorrer deste trabalho.
cidadãos vivem em uma casa de cristal, em Pérez Luño (2004) traz um polo positivo,
que todas as ações podem ser controladas chamado de cibercidadani@, como um
(PÉREZ LUÑO, 2004, p. 96). Devido a esses protótipo de participação política de vo-
fatores é importante que, cada vez mais, se cação democrática planetária, que levaria
desenvolvam normas jurídicas, nacionais e ao debate global e pensamento conjunto
internacionais, de proteção de dados. de problemas gerais e o polo negativo,
No tocante aos riscos morais, a telede- trazendo a indesejável cidadani@.com,
mocracia pode acarretar em um atomismo cujos titulares representariam uma massa
ético em que, longe de fomentar relações de manobra de diferentes poderes públicos
solidárias, propõe-se um vazio de valores e privados.
comunitários. Nesse sentido, Jean Bau- Para combater esse viés negativo, citan-
drillard, conforme a semiótica, afirma que do a epígrafe deste trabalho, é importante
os símbolos cumpriram três tarefas ao se encontrarem meios de responder a per-
longo do tempo: nas civilizações pré-indus- gunta: Quis custodiet ipsos custodes? (Quem
triais, apresentavam o reflexo da realidade, vigia os vigilantes). Ou seja, devem-se en-
como os brasões e as cores de Bandeiras; contrar novas maneiras para não eliminar a
nas sociedades capitalistas, dirigiam-se a pesquisa e o avanço tecnológico, sem deixar
encobrir ou mascarar a realidade, como os especialistas no assunto completamente
por exemplo, os anúncios de cigarro com livres. Nas palavras do jurista espanhol:
mulheres e homens bonitos e de porte “(...) Urge, por ello, evitar que la
atlético, etc.; nas sociedades tecnológicas consideración jurídica y política de
dos dias atuais, por sua vez, o símbolo la teledemocracia degenere en pura

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 103


meditación utópica o en una apología BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução
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Indubitavelmente, atualmente, o acesso
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à informação é quase instantâneo, o que, Neira. Madrid: Trotta, 2001.
por si só, já representa um grande avanço
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humanidade, em que pouquíssimas pessoas de Flávio Paulo Meurer. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
tinham acesso à informação. Porém, deve-
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manobra de políticos, grupos políticos, ins- Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
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Urge ressignificar o sentido do constitucio-
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Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 105


Planejamento e ordenamento territorial no
sistema jurídico brasileiro

Daniella Maria dos Santos Dias

Sumário
1. Introdução. 2. Planejamento e ordena-
mento territorial no sistema jurídico brasileiro.
3. Conclusão.

1. Introdução
O modelo capitalista gera efeitos nos
espaços físico-territoriais, nos espaços de
integração social. Problemas como desem-
prego estrutural (BECK, 2000), pobreza,
miséria, fome, degradação ambiental, vio-
lência, aumento da criminalidade são temas
diretamente relacionados com os efeitos do
modelo econômico, que geram diminuição
da qualidade de vida e do bem-estar de
todos (BAUMAN, 1999).
Autores que focam seus estudos sobre
a produção capitalista e a análise espacial,
com recorte marxista, como é o caso de
Lojkine (1997) e David Harvey (2005),
ressaltam os efeitos sobre os espaços físico-
-territoriais, sobretudo sobre a qualidade
de vida da população, que as decisões
econômicas tomadas por grupos dominan-
tes causam, com especial destaque para
a segregação socioespacial. Esses efeitos
se potencializam por meio da produção
de novos objetos técnicos – dotados de
racionalidade hegemônica expressa pelo
novo modelo capitalista transnacional –,
Daniella Maria dos Santos Dias é Doutora que tomam conta dos espaços físicos e pro-
em Direito UFPE (2001) e Professora Associada vocam sua reestruturação, transformando
I UFPA – ICJ. inclusive as relações sociais.
Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 107
Therborn (1995, p. 47), ao tratar dos efei- Estados em todo o mundo, pois a pobreza
tos do modelo capitalista sobre os espaços urbana, as precárias condições de vida nas
sociais, sobre a população e a destruição favelas, a inexistência de políticas habita-
social que causa, afirma: cionais, a marginalidade econômica, terri-
“Vemos em todos os países, não so- torial, política e social a que são submetidos
mente na América Latina, tendências milhares de cidadãos, a inexistência de
a um desemprego de massas de cará- higiene e de condições sanitárias, a falta
ter permanente, uma reprodução da de acesso à água potável, a insegurança
pobreza e, também, o surgimento de da posse tornam esses habitantes e seus
altos graus de desesperança e de vio- territórios invisíveis.
lência, inclusive nos países escandi- A favelização em massa em áreas urba-
navos. Esta tendência autodestrutiva nas tem intrínseca relação com a questão
da competição atual no capitalismo, agrária.
geradora de mecanismos cada vez A falta de acesso a terra e aos recursos
mais intensos de exclusão social de naturais para milhares de famílias no
uma grande parte da população, é campo traz à tona a reforma agrária como
um aspecto central desta contradição eixo estratégico de análise de projetos de
sociológica. desenvolvimento para o país, como forma
No entanto, o problema não se esgo- de redução da pobreza e realização de
ta aí. As tendências destrutivas do justiça social. Para Moraes, Árabe e Silva
capitalismo se enfrentam também (2008, p. 20), o desenvolvimento rural ou
com populações historicamente agrário é pressuposto para o desenvolvi-
mais capacitadas. Tanto em nível mento do país.
mundial como local, estas tendências Segundo os autores: “Reforma agrária e
tropeçam com classes populares e desenvolvimento rural aparecem, portanto,
classes médias mais instruídas, o como condição para desenvolvimento na-
que constitui um dado sumamente cional, não podendo ser vistos como ‘con-
importante.” seqüências naturais’ do desenvolvimento”
O sistema capitalista, na atualidade, (MORAES; ÁRABE; SILVA, 2008, p. 22).
possui ritmo de expansão bastante frenético O enfrentamento dos problemas decor-
e tende a empurrar massas populacionais rentes do processo de produção capitalista
em direção às áreas urbanas, assim como do espaço em países periféricos, como o
as áreas urbanas tendem a se estender para Brasil, é tema intrinsecamente relaciona-
as áreas rurais, sem qualquer tipo de plane- do ao enfrentamento da exclusão social.
jamento. Essa nova forma de urbanização A superação das desigualdades sociais e
tem potencializado a miséria e a formação espaciais depende da reconstrução dos es-
de áreas ilegais, onde o crescimento urbano paços físicos – rurais e urbanos – de forma
é desordenado e os problemas dele decor- a superar as desigualdades e a diversas
rentes geram a deterioração da qualidade formas de segregação.
de vida de toda a população. Não se pode Essa reconstrução depende de planeja-
esquecer que o processo de ocupação mento integrado e de políticas públicas que
urbana reflete um urbanismo difuso, uma viabilizem a cooperação e a interconexão de
paisagem hermafrodita, a fusão do urbano e políticas e metas para o desenvolvimento
o rural, numa morfologia difusa, desigual, urbano mais justo e humano. No entanto,
injusta e desorganizada (DAVIS, 2006, p. esse desafio depende da reformulação das
20). funções e competências para o ordenamen-
O crescimento, em massa, das favelas to e planejamento territorial; reformulação
é o grande desafio a ser enfrentado pelos que objetive o planejamento urbano, em

108 Revista de Informação Legislativa


bases democráticas, integrado às políti- Sobre a temática, aos municípios cabe a
cas econômicas, agrárias, ambientais. O competência para suplementar o que for
planejamento urbano deve ter por meta disposto em norma federal e estadual em
a organização do espaço coletivo em face razão do interesse local. Portanto, o muni-
da inter-relação entre os ambientes rurais cípio deve gerenciar e resolver as questões
e urbanos. de interesse local (art. 30, inciso I, CF). No
entanto, a legitimidade de suas políticas e
planos depende do respeito às diretrizes
2. Planejamento e ordenamento territorial
gerais nacionais para a política de desen-
no sistema jurídico brasileiro volvimento urbano.
O texto constitucional determina que Consoante o sistema jurídico brasileiro,
a política de desenvolvimento urbano a intervenção do poder público para orde-
seja desenvolvida, precipuamente, pelo nar os espaços habitáveis é função pública
poder público municipal (art. 182, CF). que deve desenvolver-se em consonância
No entanto, não podemos olvidar que a com os parâmetros constitucionais e legais,
responsabilidade do ente municipal para a os quais servirão de moldura legal à criação
implementação de políticas públicas de de- dos planos para o desenvolvimento das
senvolvimento urbano deve coadunar-se às funções sociais da cidade.
diretrizes federais para o desenvolvimento O planejamento para o desenvolvimen-
urbano, diretrizes que tratarão do sanea- to urbano, a política do solo, a ordenação
mento básico, dos transportes urbanos e das edificações, a ordenação adequada do
da habitação (art. 21, XX). espaço físico de forma a dar cumprimento
A União, em razão de sua competência às funções sociais da cidade são atividades
para tratar de assuntos de âmbito federal, públicas que, ao intervirem na realidade
há que produzir normas e diretrizes gerais territorial de forma a disciplinar o uso e a
para a política de desenvolvimento urbano transformação do solo, atingem interesses
nacional, diretrizes essas que os entes mu- públicos e privados, muitas vezes conflitan-
nicipais haverão de obedecer e considerar, tes. Por isso, o poder público municipal, ao
quando da criação de suas leis orgânicas objetivar a melhoria da qualidade de vida
e da produção de seus planos diretores e nos espaços urbanos, não poderá descu-
demais normas urbanísticas. rar das normas federais e estaduais que
Vale ressaltar que, consoante a na- tratem dos temas habitação, locomoção,
tureza do Federalismo político (BRITO, transporte, trânsito, segurança pública, ge-
1997), a consecução do bem-estar social, o renciamento dos recursos hídricos, saúde,
cumprimento dos objetivos, fundamentos proteção e garantia às pessoas portadoras
e princípios da República estão intrinseca- de necessidades especiais, meio ambiente,
mente relacionados à técnica de repartição entre outros.
de competências, que revela a complexa O município, em razão do interesse local
estrutura de normas jurídicas e de exercício e em decorrência de sua autonomia política,
da autonomia política dos entes da Fede- deve suplementar a legislação federal e
ração. O Federalismo político pressupõe a estadual em temas como meio ambiente,
técnica de participação dos entes políticos, educação, cultura, ciência, proteção e con-
de forma descentralizada, para a realização servação da natureza, defesa do solo e dos
dos interesses da nação. recursos naturais, controle da poluição,
Todos os entes federativos têm com- proteção ao patrimônio histórico, cultural,
petência para tratar da política urbana, artístico, turístico e paisagístico, ensino e
o que se deduz da leitura do artigo 24 desporto; proteção e defesa à saúde; prote-
da Constituição Federal (BRASIL, 2010). ção, integração social e garantia dos direitos

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 109


das pessoas portadoras de deficiência; dos assuntos públicos, em diferentes esfe-
proteção à infância e juventude; promoção ras de poder, mas com interesses comuns.
de programas de construção de moradias A cooperação entre entes políticos é con-
e melhoria nas condições habitacionais e dição sine qua non para o desenvolvimento
sobre direito urbanístico. nacional, para o combate às desigualdades
Mas não é só isso. A determinação socioespacial, política e ambiental por meio
constitucional (BRASIL, 2010), que impõe de políticas inclusivas; para a implemen-
ao município a responsabilidade de dispor tação de políticas que possam concretizar
sobre o ordenamento territorial por meio o princípio da igualdade de forma que
do planejamento, controle do uso, parce- todos possam ter acesso à moradia digna,
lamento e ocupação do território (art. 30, à circulação digna, ao trabalho, ao acesso
inciso VIII, CF), somente poderá ser devi- a equipamentos públicos e de lazer; para a
damente compreendida por meio da análise proteção ao meio ambiente, ao patrimônio
dos objetivos, fundamentos e princípios da histórico-cultural, à biodiversidade e à
República que delineiam, juntamente com sociodiversidade.
o capítulo da Política Urbana, os eixos pa- O texto constitucional enuncia diversas
radigmáticos para a conformação da ordem competências comuns (art. 23, CF), que
urbanística (art. 182 c/c arts. 1o, 3o e 4o, CF). devem ser implementadas pelos entes
A ordem urbanística deve ter por federados por meio de políticas públicas
objetivo precípuo a necessária proteção integradas (BRASIL, 2010). A promoção
à dignidade humana, em suas diversas de programas de construção de moradias
dimensões, o que pressupõe a criação de e a melhoria das condições habitacionais
políticas públicas que possibilitem a rea- e de saneamento básico paralelamente ao
lização do desenvolvimento sustentável combate às causas da pobreza, aos fatores
por meio da proteção ao meio ambiente, de marginalização; a integração sociopolí-
do cumprimento das funções sociais da tica das camadas mais frágeis e desfavore-
cidade e da propriedade e, sobretudo, por cidas, juntamente com a proteção ao meio
meio da práxis democrática, que ganha ambiente natural e cultural; o combate à
novos contornos a partir da existência de poluição, o acesso à cultura, à educação, à
inovadores institutos, que fazem da aber- ciência, cuidando-se da saúde e assistência
tura democrática uma necessidade. pública; a proteção e garantia dos direitos
Contudo, a responsabilidade municipal das pessoas portadoras de deficiência; a
para o planejamento e para a implemen- integração campo-cidade, fomentando a
tação de políticas de desenvolvimento produção agropecuária e a organização
urbano é extremamente complexa, vez que do abastecimento alimentar, são algumas
o próprio significado de desenvolvimento ações essenciais para o equilíbrio e susten-
urbano é denso e pressupõe a articulação tabilidade dos espaços urbanos e rurais.
de políticas e ações, nos âmbitos federal, Urge que a Federação brasileira pense a
estadual e local, que consigam conciliar o problemática urbana e os complexos fatores
progresso econômico, o equilíbrio ecológico decorrentes do processo de periferização
e a justiça social (DRUCKER, 2005). urbana como questões cuja resolução de-
O fato é que a promoção do bem-estar pende do planejamento integrado e da
de todos, nos espaços urbanos brasileiros, vivência do federalismo cooperativo.
depende da cooperação intergovernamen- O artigo 23 da Constituição Federal
tal, por meio da descentralização de tarefas tem por objetivo a cooperação e a inter-
e atribuições, em que a cooperação e a coor- dependência de funções e atividades na
denação entre os entes federativos e entre Federação (BRASIL, 2010). O referido dis-
suas normas possibilitem a administração positivo objetiva atuação lógica, racional,

110 Revista de Informação Legislativa


consentânea com os princípios e objetivos pleno desenvolvimento das funções sociais
da República Federativa, por meio de atu- da cidade para garantir o bem-estar de seus
ação adequada de cada esfera federativa. habitantes em cooperação com os demais
Por outro lado, em âmbito local, a obri- entes federativos.
gação jurídica decorrente de determinação Diversas atribuições constitucionais,
constitucional em elaborar planos por parte relacionadas ao gerenciamento da política
do Poder Público municipal (artigos 182 de desenvolvimento urbano, cabem aos
e 183, CF) compreende a necessidade de municípios. Entre várias, destacamos: a
planificação de políticas para toda a área realização (prestação) dos serviços públicos
municipal, que sejam congruentes com a de interesse local (artigo 30, inciso V, C.F.),
realidade, que se tornem exequíveis pelo como a prestação de transporte coletivo
Poder Público municipal e passíveis de que tem caráter essencial; a promoção do
fiscalização por parte dos cidadãos, o que, adequado planejamento territorial (artigo
na atualidade, é uma verdadeira utopia 30, inciso VIII, C.F.); a proteção do patri-
em face da incipiente democracia e da ine- mônio histórico-cultural local, consoante
xistência de autonomia financeira para a as normas federais e estaduais sobre a te-
grande maioria dos municípios brasileiros mática; o incentivo ao turismo, como fator
(BRASIL, 2010). de desenvolvimento social e econômico,
No que tange às políticas de desenvol- simultaneamente à atuação dos demais en-
vimento urbano e meio ambiente, faz-se tes federativos (artigo 180, C.F.); a proteção
necessária uma política de desenvolvimen- ao patrimônio cultural brasileiro, por meio
to urbano, consubstanciada em objetivos, de inventários, registros, vigilância, tomba-
estratégias, parcerias e ações integradas mento e desapropriação, e de outras formas
em prol do desenvolvimento sustentável. de acautelamento e preservação (artigo 216,
Os problemas urbanos não se limitam parágrafo primeiro, C.F.); a proteção ao
aos aspectos locais, pois os problemas de- meio ambiente (artigo 225, C.F.); a manu-
correntes da urbanização se refletem para tenção, em cooperação técnica e financeira
além dos espaços locais e nacional. Por isso, com a União e o Estado, de programas de
é preciso que se envidem esforços para a educação pré-escolar e de ensino fundamen-
construção do planejamento integrado, ou tal (artigo 30, inciso VI, C.F.), bem como a
seja, um planejamento que consiga ter refle- prestação, em regime de cooperação com os
tidas as interfaces local, regional e nacional. outros entes federativos (Estado e União), de
Apesar de ter sido delegada ao municí- serviços de atendimento à saúde da popula-
pio a função primeira de executar a política ção (artigo 30, inciso VII, C.F.), ao participar
de desenvolvimento urbano municipal, do sistema único de saúde (artigos 198 e 200,
esse não poderá fazê-lo com esmero se as C.F.); a constituição de guardas municipais,
diretrizes e princípios, em níveis nacional objetivando a proteção dos bens, serviços
e regional, forem obscuros e inexistentes. e instalações municipais (artigo 144, pa-
Em outras palavras, a política de desen- rágrafo 8o, C.F.) (BRASIL, 2010). Essas são
volvimento urbano municipal será restrita algumas das atribuições relacionadas aos
e ineficaz, se não estiver consubstanciada objetivos constitucionais para o desenvolvi-
nos planos e metas nacional e regional para mento e planejamento de políticas urbanas
o desenvolvimento urbano. que cabem ao ente municipal.
Analisar restritivamente o artigo 182 do Deve-se considerar, contudo, que a com-
texto constitucional (BRASIL, 2010) como petência municipal para o desenvolvimento
comando normativo definidor da atuação de políticas públicas e de planos urbanís-
exclusiva do poder público municipal é um ticos, por meio de atividades legislativas
contrassenso. O município deve ordenar o e administrativas, não se restringe à área

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 111


urbana. Toda aglomeração humana que espaço, por meio do trabalho e do sistema
tenha importância como centro de vida e de de técnicas, é que irá delinear as nuanças
relações sociais necessita de ordenamentos entre os espaços urbanos e rurais.
urbanísticos. Aliás, seria um verdadeiro O processo de planejamento e o ordena-
reducionismo considerar que, somente nos mento territorial devem expressar o conte-
espaços urbanos, o município deva primar údo socioespacial em sua complexidade e
pelo pleno desenvolvimento das funções contradições, pois o urbano e o rural são
sociais da cidade. expressões de modos de vida.
A implementação do direito à cidade A dicotomia entre espaços urbanos e
sustentável (direito à terra urbana, à mo- rurais deve ser superada, e novas perspec-
radia, ao saneamento, ao transporte, ao tivas analíticas devem ser produzidas para
trabalho, ao lazer) (BRASIL, 2001) é direito compreensão da realidade urbana, intrin-
difuso dos cidadãos. secamente relacionada às questões rurais.
A política de desenvolvimento urbano, Certamente, essa mudança paradigmática
prevista no artigo 182 do texto constitucio- pressupõe considerar que o processo de
nal, não se restringe às áreas urbanas, até urbanização – intrinsecamente relacionado
porque o plano diretor – instrumento obri- ao processo de apropriação do espaço pelo
gatório para a política de desenvolvimento modelo capitalista – é reflexo de uma nova
urbano para cidades com mais de 20.000 lógica social e espacial, de uma nova lógica
habitantes – deve tratar das interações e de produção/reprodução e apropriação do
influências entre áreas rurais e urbanas. espaço, e jamais pode ser analisado de forma
Logo, a responsabilidade do poder público descontextualizada do processo histórico,
municipal para o controle eficaz do cresci- das relações sociais, econômicas e técnicas.
mento da cidade implica a consideração do É sob a perspectiva da integração socio-
território municipal, que não se restringe à espacial e da urgente integração socioespa-
vida em áreas urbanas (CORREIA, 1997). cial do Brasil – no que tange ao processo
A produção de planejamento que con- de desenvolvimento e à implementação
siga abranger as influências do binômio de políticas urbanas – que os entes da Fe-
rural e urbano, e, por consequência, a com- deração devem enfrentar o aumento das
plementaridade das atividades urbanas e áreas periféricas, a degradação do meio
rurais, é meta cuja responsabilidade é de ambiente, a pobreza, a criminalidade, a
todos os poderes políticos da Federação. insegurança, a especulação imobiliária,
Se, antes, eram bastante claros os limites a diminuição da oferta de empregos, a
físicos entre a cidade e o campo em razão falta de planejamento e de políticas para a
das atividades, funções e produção neles circulação e para a mobilidade, a falta de
desenvolvidos, na atualidade, essa tarefa infraestrutura e de políticas de saneamento
se torna inglória. Por isso, não se pode mais básico universal, o aumento da poluição, a
pensar o planejamento e o ordenamento ter- diminuição da qualidade de vida, a escassa
ritorial, considerando os limites territoriais participação política, os escassos recur-
entre cidade e campo, como delimitações es- sos financeiros estatais, a inexistência de
tanques, porque esses critérios não são mais um planejamento adequado que consiga
factíveis de implementação. É preciso que abranger as influências do binômio rural e
o planejamento e ordenamento territorial urbano, entre outros desafios.
consigam abarcar a complexidade das dinâ-
micas sociais e seu registro no espaço. Logo,
3. Conclusão
o processo de planejamento e ordenamento
territorial não pode ser implementado sem É claro o papel do Direito Urbanístico
a consideração de que o uso produtivo do para transformações positivas e negativas

112 Revista de Informação Legislativa


na qualidade de vida dos cidadãos, nas capitalista e as decorrentes interferências
dinâmicas sociais. Se as relações capitalistas econômicas, políticas, tecnológicas, cultu-
se registram nos espaços territoriais e pro- rais sobre os espaços territoriais.
duzem uma geografia histórica diferencia- O contexto urbano, na atualidade, pre-
da (HARVEY, 2005, p. 165), o ordenamento cisa ser analisado com coerência.
territorial, função precipuamente estatal, Apesar de o Estatuto da Cidade conter
deve ser um projeto político consistente de diretrizes gerais para o desenvolvimento
forma a brecar os efeitos do modelo capita- da política urbana e, atualmente, existirem
lista, nos espaços territoriais, que venham padrões legais, princípios, objetivos e diver-
limitar a liberdade, a dignidade humana e sos institutos que objetivam a realização de
a realização da justiça social. Nesse sentido, políticas de desenvolvimento urbano, em
novos projetos políticos e novas propostas bases democráticas, bem como a concre-
e modelos de desenvolvimento devem ser tização da função social da propriedade,
gestados para o enfrentamento das grandes consoante os objetivos e valores expressos
mudanças causadas pela reestruturação no Estatuto; apesar de existirem parâme-
organizacional, tecnológica e industrial do tros gerais para que os Estados-membros e
modelo capitalista atual. municípios criem e adequem suas normas
Se a urbanização é um processo social urbanísticas e o processo de planejamento
(HARVEY, 2005, p. 170), em que vários urbano às diretrizes contidas no Estatuto da
atores atuam no palco da cidade e pos- Cidade, estamos muito longe de conseguir
suem interesses, compromissos, objetivos uma harmonização legislativa sobre o tema
e necessidades muitas vezes distintos e por desenvolvimento urbano.
vezes conflitantes, pensar a organização do No que tange à necessidade de se pen-
espaço depende da análise do complexo sar o planejamento e o desenvolvimento
conjunto de forças, do papel dos agentes urbano de forma integrada, a realidade
sociais, políticos, econômicos e também do brasileira revela que estamos muito longe
papel das instituições públicas (GRAZIA de garantir a harmonia em objetivos, estra-
et al, 2001). tégias e ações tendo em vista o acesso ao
O Estado – diante da nova ordem capi- direito à cidade sustentável, em igualdade
talista e do significado de poder político, de condições, para todos. Os entes políticos
na pós-modernidade – deve desenvolver da Federação ainda não conseguiram plas-
papéis fundamentais para a realização mar relações congruentes para a criação de
dos interesses sociais. Nesse sentido, o políticas para o desenvolvimento urbano.
Estado precisa considerar, no processo A falta de compatibilidade e inter-
de desenvolvimento e ordenamento ter- -relação entre as políticas públicas, no
ritorial, o papel das novas tecnologias na Brasil, é consequência da inexistência de
conformação e estruturação das cidades parâmetros claros de atuação, o que gera
e dos espaços rurais. Significa dizer que políticas replicadas, incongruentes e muitas
o Estado não pode produzir inovadoras vezes incompatíveis.
perspectivas para análise do espaço e do Não existem pautas claras que definam
processo de ordenamento territorial sem as bases de ação para os entes políticos
dar a devida atenção às novas revoluções desenvolverem suas atribuições de forma
científicas e tecnológicas, e seus decorrentes cooperativa, pois não há a coordenação
efeitos sobre os espaços físicos. entre as atividades administrativas. Essa
É preciso que as instituições políticas problemática se reforça e recrudesce com
revisem as formas de intervenção nos es- as disfunções decorrentes da incorreta
paços urbanos, geralmente desconectadas compreensão da técnica de distribuição
das análises sobre os efeitos do modelo de competência legislativa concorrente,

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 113


cumulada com a profusão legislativa nos democrático –, pois a sociedade deve con-
três níveis políticos. tribuir para a construção do território. No
Portanto, os paradigmas de análise do entanto, essas práticas deliberativas devem
território e de concepções de políticas pú- se estender aos espaços urbanos e rurais, as-
blicas devem ser revistos, o que dependerá sim como devem objetivar a resolução dos
da renovação das bases políticas, do debate problemas urbanos por meio de perspec-
acerca da crise do pensamento econômico tiva inovadora que consiga contemplar as
e territorial, da criação de novos projetos interferências e inter-relações econômicas
políticos e modelos de desenvolvimento entre municípios, cidades, regiões.
que vislumbrem o planejamento e o or- O Estado deve, urgentemente, assumir
denamento territorial como instrumentos seu papel para o controle da apropriação e
necessários para o enfrentamento das utilização dos territórios. A possibilidade
mudanças causadas pela reestruturação de intervenção do Estado na ordem eco-
organizacional, tecnológica e industrial do nômica depende de vontade política, mas
modelo capitalista. também de cooperação.
É preciso que se busquem novas for- A única forma para a reversão dos pro-
mas de planejamento que sejam realmente cessos deletérios causados pelo modelo
inclusivas. É fato que o modelo capitalista econômico sobre os espaços territoriais é
transnacional, além de produzir fragmen- a firme atuação do Estado, na condução
tação territorial, potencializa as diferenças do processo político, por meio de instru-
sociais, econômicas, culturais e de vivência mentos jurídicos, financeiros, urbanísticos,
da cidadania, entre Estados e nos Estados. tributários que consigam, efetivamente,
Portanto, os políticos no Brasil não podem vincular a obrigatoriedade de utilização
perder a capacidade crítica de analisar que da propriedade privada de acordo com sua
os modelos de planejamento não têm sido função social.
eficientes para diminuir as diferenças abis-
sais nos níveis e na qualidade de vida de
mulheres, homens, meninos, meninas, ricos
e pobres das áreas urbanas e rurais e de Referências
analisar como essas diferentes qualidades BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências
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Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 115


Estudo comparativo sobre o combate
ao planejamento tributário abusivo na
Espanha e no Brasil
Sugestão de alterações legislativas no ordenamento
brasileiro

Marciano Seabra de Godoi

Sumário
1. Introdução. 2. Elisão, evasão e elusão
tributária. 3. Evolução histórica e situação atual
do combate à elusão tributária na Espanha. 3.1.
A fraude à lei tributária em sua versão original
do Código Tributário de 1963. 3.2. A reforma
legislativa de 1995. 3.3. O atual Código Tributá-
rio (2003) e a figura do “conflito na aplicação da
norma tributária”. 3.4. Conclusão sobre a situa-
ção atual da norma geral antiabuso espanhola. 4.
Evolução histórica e situação atual do combate
à elusão tributária no Brasil. 4.1. Normas gerais
antielusão constantes do Anteprojeto e Projeto
de Código Tributário Nacional elaborado por
Rubens Gomes de Sousa. 4.2. O Código Tribu-
tário Nacional de 1966 e a completa ausência de
normas gerais antielusão. 4.3. Formação de uma
doutrina majoritariamente formalista e avessa à
possibilidade de combater as fraudes à lei tribu-
tária mediante normas gerais. 4.4. A norma in-
troduzida no CTN pela Lei Complementar 104,
de 2001. 4.5. A Medida Provisória 66/2002. 4.6. O
conceito amplo e causalista de simulação como
a efetiva norma geral antielusão em vigor no or-
denamento brasileiro. Análise da jurisprudência
brasileira (tribunais administrativos e judiciais).
5. À guisa de conclusão: sugestão de alterações
legislativas no ordenamento brasileiro.

Marciano Seabra de Godoi é professor nos


cursos de graduação, mestrado e doutorado em
Direito da PUC Minas, em Belo Horizonte. É 1. Introdução
mestre em Direito Tributário pela UFMG (1999)
e doutor em Direito Financeiro e Tributário pela
O objetivo do presente artigo, viabili-
Universidade Complutense de Madri (2004), zado por bolsa de estudos concedida pela
com Pós-Doutorado (bolsista da CAPES) na CAPES para atividades de pós-doutorado
Universidade Autônoma de Madri, onde foi na Espanha, é realizar uma investigação de
professor visitante nos anos de 2011-2012. direito comparado sobre o funcionamento,
Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 117
no ordenamento tributário da Espanha somente passará a gerar efeitos concretos
e do Brasil, das normas gerais antiabuso depois que o Congresso Nacional definir,
ou antielusão, ou seja, das normas gerais em lei ordinária, os procedimentos para
destinadas ao combate dos planejamen- sua aplicação.
tos tributários considerados abusivos ou Nesse contexto, justifica-se a iniciativa
artificiosos. de investigar os resultados a que a Espanha
A experiência demonstra que, além chegou ao cabo de sete anos de aplicação da
dos problemas relativos à pura e simples nova versão de sua norma geral antiabuso
sonegação fiscal, há uma tendência natu- aprovada em dezembro de 2003. Como
ral de que uma parcela dos contribuintes Brasil e Espanha, ademais dos fortes laços
(geralmente aqueles com mais capacidade culturais, têm vivências jurídicas asseme-
econômica e maior acesso a jurisdições lhadas – ambos são tributários da secular
estrangeiras, especialmente os paraísos tradição romano-germânica do civil law
fiscais) procure desviar-se de suas obriga- e ambos se afirmam constitucionalmente
ções tributárias, recorrendo, dentro de uma como Estados Democráticos de Direito2 –,
aparente legalidade e com o apoio técnico o conhecimento dos desafios enfrentados
de assessores especializados, a esquemas pela Espanha nesses sete anos de aplicação
negociais artificiosos (planejamentos da norma geral antiabuso, com seus logros
tributários abusivos), que manipulam e e seus fracassos, terá muita valia para o
distorcem normas jurídicas em busca de processo legislativo de regulamentação da
vantagens econômicas indevidas. norma brasileira.
As chamadas normas gerais antiabuso, Não se trata, naturalmente, de assimilar
ou normas gerais antielusão, constituem acriticamente soluções jurídicas engen-
um conjunto de medidas legislativas ou dradas em outro país, nem de buscar um
de construções jurisprudenciais por meio modelo ideal de norma geral antiabuso.
do qual o ordenamento de diversos países Trata-se de conhecer e refletir sobre a expe-
do mundo capitalista desenvolvido vem riência de um país cultural e politicamente
procurando, desde as primeiras décadas do próximo ao Brasil a respeito de um tema
século XX, resolver essa delicada equação: jurídico tão controverso aqui como lá, e por
combater com eficácia os planejamentos motivos bastante semelhantes, para fazer
tributários abusivos, sem negar aos contri- chegar aos operadores do direito brasileiro
buintes as garantias do Estado de Direito, e aos formuladores da política tributária
e sem ter que sobrecarregar a legislação brasileira as devidas sugestões e ponde-
tributária com centenas de regras casuís- rações acerca do tratamento legislativo da
ticas, feitas sob medida para cada novo norma geral antiabuso.
planejamento tributário engendrado arti- Nossa intenção é contribuir concre-
ficiosamente no mercado. tamente com o processo legislativo que
A principal justificativa para o estudo redundará na definição de um importante
do tema no momento atual é que, no final aspecto do sistema tributário nacional, cuja
de 2010, o governo brasileiro trouxe a conformação jurídica consiste numa das
público1 sua intenção de finalmente regu- mais importantes políticas públicas diu-
lamentar a norma geral antiabuso criada
pela Lei Complementar 104 em 2001, que 2
O art. 1o da Constituição espanhola de 1978 afir-
ma que a Espanha “se constitui num Estado social e
1
Nos dias 4 e 5 de outubro de 2010, a Escola de democrático de Direito (...)”. O art. 1o da Constituição
Administração Fazendária – ESAF – do Ministério brasileira de 1988, claramente inspirado na Consti-
da Fazenda realizou o Seminário Internacional sobre tuição espanhola, afirma que a República Federativa
Regulamentação da Norma Geral Antielisiva, em do Brasil “constitui-se em Estado Democrático de
Brasília. Direito (...)”.

118 Revista de Informação Legislativa


turnamente desenvolvidas pelos Estados na Espanha significam o mesmo que tax
contemporâneos. planning nos países anglo-saxões, risparmio
O marco teórico do presente estudo é d’imposta na Itália e optimisation fiscale na
constituído pela tese de doutorado que França (Di Pietro, 1999).
defendemos em 2004 na Universidade Em contextos constitucionais em que,
Complutense de Madri (GODOI, 2005). sob o modo capitalista de produção e
Segundo essa postura teórica, a imposição apropriação de riquezas, vigoram a livre
de limites aos planejamentos tributários iniciativa3 e a economia de mercado4, não
ditos sofisticados é tarefa necessária em chega a ser objeto de real controvérsia a
qualquer Estado Democrático de Direito existência do direito de pessoas físicas e
que pretenda aplicar com justiça o seu jurídicas buscarem reduzir, por meio do
sistema tributário. A norma de incidência planejamento de suas ações econômicas
tributária há muito perdeu o ranço de nor- e financeiras, suas obrigações tributárias
ma odiosa ou excepcional que lhe atribuía (VOGEL, 1997; PISTONE, 1995). A pro-
o ultraliberalismo do século XIX, portanto clamação constitucional da função social
deve-se admitir que, tal como qualquer da propriedade5 ou do dever solidário de
norma jurídica, a norma de incidência contribuir, por meio dos impostos, para o
tributária está sujeita a ser defraudada por sustento dos gastos públicos6 não constitui
meio de um comportamento que no ramo óbice ao direito de o contribuinte praticar
do direito civil se denomina de fraude à elisão tributária ou de realizar economías
lei ou abuso do direito. Nos ordenamentos de opción.
vinculados à tradição do civil law, como o Se o contribuinte evita, reduz ou pos-
brasileiro, a imposição de limites aos pla- terga o pagamento dos tributos por meio
nejamentos tributários ditos sofisticados é de condutas ilícitas, que implicam infração
tarefa na qual o protagonismo deve caber do ordenamento jurídico, tem-se o fenô-
ao legislador, e sua omissão em desempe- meno que se designa genericamente com
nhar tal tarefa provoca sérias perdas de a expressão evasão tributária (IFA, 1983).
legitimidade e racionalidade na atividade Nesse caso, que no Brasil também pode
de combate aos planejamentos tributários ser denominado de sonegação tributária,
que a administração, sob controle do Poder o contribuinte pratica o fato gerador da
Judiciário, certamente desempenhará. obrigação e busca de maneira fraudulenta
escapar do dever de recolher o tributo.
Um exemplo típico de evasão tributária é
2. Elisão, evasão e elusão tributária
a prática comum de vender um imóvel por
No Brasil, a expressão elisão tributária determinado preço e registrar o contrato
é bastante utilizada e designa tradicional- de compra e venda por um valor inferior
mente os comportamentos lícitos por meio ao realmente recebido pelo vendedor, de
dos quais os contribuintes organizam e modo a buscar escapar do dever de pagar
dispõem sua vida patrimonial e negocial o imposto sobre o ganho de capital ocorrido
de modo a, sem infringir o ordenamento na operação.
jurídico, atrair a menor carga possível Na evasão tributária, o difícil ou o pro-
de obrigações tributárias (DÓRIA, 1971; blemático para o aplicador da norma é afas-
MARTINS, 1988). Na Espanha, esses com- tar as manobras fraudulentas de ocultação
portamentos são conhecidos pela expressão
economía de opción, utilizada já em 1952 num 3
Vide Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 (CF/88), art. 1o, IV, art. 170, caput.
estudo de José Larraz que se tornaria um 4
Vide Constituição Espanhola de 1978 (CE), art.38.
clássico nessa matéria (LARRAZ, 1952). Eli- 5
Vide CF/88, art. 170, III, art. 5o, XXIII.
são tributária no Brasil e economía de opción 6
Vide CE, art. 31.1.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 119


ou engano engendradas pelo contribuinte 2007a, p. 237-288), por motivos que serão
e eventualmente por terceiros. Afastadas analisados na seção 4 do presente estudo.
essas manobras, a constatação da infração Para descrever e compreender a condu-
do ordenamento jurídico é incontroversa. ta de elusión fiscal, ou seja, de planejamentos
Portanto, nos supostos de evasão o caráter tributários ilegítimos ou abusivos, a doutri-
devido do tributo é admitido de plano, na e o legislador tributário historicamente
sem que se apresentem problemas reais e lançaram mão de institutos jurídicos secu-
efetivos de interpretação ou de qualificação larmente conhecidos e estudados no direito
jurídica. civil, que foram incorporados às chamadas
Com base nas afirmações acima, pode-se normas gerais antiabuso (GODOI, 2005, p.
dizer que na elisão se evita a prática do fato 133-136).
gerador do tributo, ao passo que na evasão Nos países com ordenamento jurídico
o que se busca é ocultar a realização do fato de tradição romano-germânica, o legis-
gerador do tributo. lador tributário descreveu e combateu o
A expressão elusión fiscal começou fenômeno da elusão por meio de normas
a ser utilizada pela doutrina espanhola gerais que o caracterizavam como uma es-
na década de 60 do século XX (PALAO pécie de fraude à lei (Alemanha, Holanda,
TABOADA, 1966, p. 677-695; HERRERO Espanha, Portugal) ou como uma forma
MADARIAGA, 1976, p. 319-334). Com essa de abuso do direito (França). Já nos países
expressão, designa-se o comportamento anglo-saxões, essa conduta foi compreendi-
pelo qual o contribuinte se utiliza de meios da e combatida diretamente pela jurispru-
artificiosos e abusivos para, sob uma apa- dência, que, primeiro nos Estados Unidos
rência de legalidade e licitude, buscar evitar (GUSTAFSON, 1997) e posteriormente na
a ocorrência do fato gerador do tributo ou Inglaterra (FROMMEL, 1991; BALLARD;
buscar se colocar dentro do pressuposto DAVISON, 2002), pouco a pouco foi desen-
de fato de um regime tributário mais be- volvendo uma doutrina que desconsidera,
néfico, criado pela legislação para abarcar para efeitos tributários, os atos e negócios
outras situações. A expressão elusión fiscal jurídicos que, em seu conjunto, se mostrem
designa o mesmo que a expressão inglesa desprovidos de substância econômica e
tax avoidance e a expressão italiana elusione racionalidade empresarial, que visem ex-
(DI PIETRO, 1999). clusivamente a reduzir encargos tributários
Curiosamente, em Portugal a doutrina sem respeitar a teleologia que deve presidir
utiliza a expressão elisão fiscal para designar a interpretação e aplicação das normas tri-
esse fenômeno de “evitação abusiva de butárias (PALAO TABOADA, 2002; RUIZ
encargos fiscais” (SALDANHA SANCHES, ALMENDRAL, 2006; PÉREZ ROYO, 2005).
2006, p. 22), ou de “planeamento fiscal Em suma: enquanto na evasão o que se
abusivo” (COURINHA, 2004, p. 15). Ou busca é ocultar a prática do fato gerador
seja, a mesma expressão em língua por- ou ocultar da Administração os reais ele-
tuguesa – elisão fiscal – tem significados mentos da obrigação tributária, na elisão
bem distintos no Brasil e em Portugal: no (tal como se utiliza esse termo no Brasil) e
Brasil designa os planejamentos tributários na elusão fiscal o objetivo do contribuinte é
perfeitamente lícitos e eficazes, executados praticar atos e negócios jurídicos que não
sem abuso ou artificiosidade, ao passo que provoquem ou provoquem na menor me-
em Portugal designa os planejamentos tri- dida possível a incidência de obrigações tri-
butários abusivos e artificiosos. butárias, com a diferença de que, na elusão,
No Brasil, a expressão elusão fiscal so- os atos e negócios engendrados pelas partes
mente passou a ser utilizada por alguns são abusivos/artificiosos, posto que sua
doutrinadores em período recente (GODOI, formalização não reflete os reais propósitos

120 Revista de Informação Legislativa


práticos buscados pelas partes e distorcem casos, o Código autorizava o intérprete/
as finalidades e objetivos contidos nas nor- aplicador a estender “mais além de seus
mas que regulam a espécie, enquanto que termos estritos” o âmbito do fato imponível
na elisão (tal como se utiliza esse termo no previsto na lei. A norma contida no Código
Brasil) a conduta das partes é considerada de 1963 exigia a abertura de um “procedi-
perfeitamente válida e eficaz. mento especial” para que a Administração
tributária pudesse declarar a existência de
3. Evolução histórica e situação atual do uma fraude à lei tributária, procedimento
combate à elusão tributária na Espanha no qual a Administração deveria apresentar
a prova da existência da fraude à lei e dar
audiência ao contribuinte.
3.1. A fraude à lei tributária em sua versão
original do Código Tributário de 1963 3.2. A reforma legislativa de 1995
A figura da elusão tributária e o meca- Como grande parte da doutrina con-
nismo para seu combate foram previstos siderou que o art. 24 do Código estaria
expressamente num dos artigos do Código autorizando erroneamente a utilização da
Tributário (Ley General Tributaria) criado na analogia como instrumento de combate
Espanha no ano de 1963. Para compreender à elusão (PALAO TABOADA, 1966), o
esse primeiro tratamento legislativo dado Código espanhol sofreu uma reforma sig-
ao tema, é necessário recorrer à já citada nificativa em 1995. Essa alteração situou em
obra de José Larraz (1952), que assentou normas distintas a figura da analogia (art.
as bases metodológicas sobre essa questão, 23.3) e a figura do mecanismo de reação à
que viriam a ser posteriormente positivadas fraude à lei tributária (art. 24)7. A reforma
no Código Tributário de 1963. de 1995 também procurou aproximar o
Larraz (1952) concebeu a elusão tribu- conceito de fraude à lei tributária ao con-
tária como uma espécie de fraude à lei, tal ceito mais geral de fraude à lei que passara
como já havia ocorrido em décadas anterio- a figurar no Título Preliminar do Código
res na Alemanha, Suíça e Holanda. Segundo Civil espanhol a partir de 19738. Com essa
ele, na elusão o contribuinte busca uma reforma de 1995, a fraude à lei tributária
economia tributária de má-fé, no sentido de passou a ser caracterizada como “fatos,
burlar o espírito da lei e preservar somente atos ou negócios jurídicos realizados com o
sua letra, confiando numa interpretação
automática e acrítica das normas aplicáveis
7
Alguns doutrinadores, como Falcón Y Tella
(1995), continuaram a defender que, mesmo após a
ao caso. Larraz (1952, p. 61) propunha que o reforma do Código tributário em 1995, o mecanismo
combate à elusão consistisse em dar “uma de reação à fraude à lei tributária em nada se parecia
interpretación extensiva a la letra gravatoria, à fraude à lei do direito civil e consistia numa simples
quedando el negocio in fraudem fiscalmente autorização legal para gravar determinadas situações
com base na analogia. Para nossas críticas a esse po-
parificado con el que se rehuyó, y burlado sicionamento, ver também Godoi (2005, p. 205-220).
quien del Erario pretendió burlarse”. 8
O art. 6.4, que compõe o Título Preliminar do
A solução legislativa adotada pelo Código Civil espanhol, dispõe: “Os atos realizados ao
Código Tributário de 1963 seguiu exata- amparo do texto de uma norma que persigam um resul-
tado proibido pelo ordenamento jurídico, ou contrário
mente essa linha. No art. 24 desse Código, a ele, serão considerados como executados em fraude à
o fenômeno da elusão foi tratado como um lei e não impedirão a devida aplicação da norma que se
caso de fraude de Ley, definido como aquelas houver tratado de eludir”. Há um julgado do Tribunal
atividades “realizadas com o propósito Constitucional espanhol (STC 37/1987) que considera
que o combate à fraude à lei é um mecanismo neces-
provado de eludir o imposto, sempre que sário para assegurar a eficácia das normas jurídicas
produzam um resultado equivalente ao em geral, sendo o art. 6.4 do Código Civil aplicável a
derivado do fato imponível”. Diante desses todo o ordenamento e não só ao âmbito do direito civil.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 121


propósito de eludir o pagamento do tributo, simulados” e promover sua regularização
amparando-se no texto de normas ditadas com recorrendo aos dispositivos legais que
distinta finalidade, sempre que produzam tratam da qualificação tributária de acordo
um resultado equivalente ao derivado do com os atos e negócios “efetivamente rea-
fato imponível” (o trecho destacado cor- lizados pelas partes, com independência
responde à identificação que se procurou das formas ou denominações jurídicas
estabelecer entre a fraude à lei tributária utilizadas pelos interessados” (art. 25 do
e a fraude à lei prevista no Código Civil). Código, após a reforma de 1995).
A reforma do Código Tributário reali- Há amplo consenso doutrinário (PA-
zada em 1995 também procurou resolver LAO TABOADA, 2001, p. 127-139) no sen-
outro problema. É que os casos de elusão tido de que a reforma de 1995 não logrou
tributária vinham sendo combatidos pela alterar essa tendência porque continuaram
Administração por outra via que não a do atuando dois fatores de claro efeito de de-
mecanismo de reação à fraude à lei tributá- sincentivo para a utilização do mecanismo
ria. Essa outra via era a da qualificação dos específico de correção da fraude à lei. Em
atos e negócios jurídicos praticados pelas primeiro lugar, há o fato de que o Código
partes conforme as “situações e relações espanhol proíbe a imposição de multas
econômicas que efetivamente existam ou administrativas aos casos de fraude à lei, ao
se estabeleçam pelos interessados, com contrário do que ocorre nos casos de simu-
independência das formas jurídicas que se lação e nos casos em que a Administração
utilizem” (art. 25.3 do Código em sua reda- se limita a corrigir um erro de qualificação
ção original). A possibilidade de combater jurídica cometido pelo contribuinte. Em
os casos de elusão recorrendo a esses tão segundo lugar, a exigência de um procedi-
amplos poderes de qualificação (SÁINZ DE mento especial para declarar a fraude à lei
BUJANDA, 1966, p. 522-550), e sem a neces- dá a essa via um grau de complexidade e
sidade de abrir os procedimentos especiais incerteza do qual a Administração natural-
exigidos para a declaração da fraude à lei mente tende a escapar, preferindo uma via
tributária, fez com que o art. 24 do Código mais expedita e simples.
(fraude à lei) ostentasse, na verdade, uma
pouquíssima relevância prática (PALAO 3.3. O atual Código Tributário
TABOADA, 1996, p. 3-20; AGUALLO AVI- (2003) e a figura do “conflito na
LÉS; PÉREZ ROYO, 1996, p. 51-56). aplicação da norma tributária”
Por isso, a reforma de 1995 revogou o O atual Código Tributário (Ley General
art. 25.3 acima mencionado, e passou a dis- Tributaria), aprovado em 2003, pretendeu
por que “o tributo será exigido de acordo inovar no tema dos mecanismos de com-
com a natureza jurídica do pressuposto de bate à elusão fiscal (ARRIETA MARTÍNEZ
fato definido pela lei (...)” – art. 28.3 do Có- DE PISÓN, 2010; SANZ GADEA, 2009;
digo, com a redação após a reforma de 1995. RUIZ ALMENDRAL; ZORNOZA PÉREZ,
Após essa reforma de 1995, esperava- 2005; DELGADO PACHECO, 2004; GAR-
-se que o combate às operações de elusão CÍA NOVOA, 2004).
fosse ser realizado pela via da abertura dos A tradicional figura da fraude à lei tri-
procedimentos especiais exigidos para a de- butária foi substituída por uma nova figura,
claração da fraude à lei tributária. Contudo, batizada estranhamente de “conflito na
não foi isso o que de fato aconteceu. Mes- aplicação da norma tributária”9, tal como
mo após a reforma de 1995, manteve-se a previsto nos artigos 15 e 159 do Código.
tendência de a Administração qualificar as 9
Como indica Carlos Palao Taboada (2009, p.
operações de elusão como “negócios indi- 167), essa denominação é “técnicamente tosca, pues
retos”, “negócios fiduciários” ou “negócios los conflictos en la aplicación de las normas tributarias

122 Revista de Informação Legislativa


Na exposição de motivos do Código buso. Contudo, os critérios explicitados
de 2003, afirma-se que essa nova figura nas alíneas a e b do art. 15.1 do Código de
estaria livre dos problemas de aplicação 2003 representam basicamente a adoção
do mecanismo da fraude à lei tributária. A da teoria do abuso de formas jurídicas,
novidade consistiu em tentar fixar critérios tradicionalmente ligada ao mecanismo do
mais precisos, que pudessem diferenciar, combate à fraude à lei tributária. Por isso
com mais nitidez que a norma anterior, os a nova regulamentação do tema da elusão
casos de elusão dos casos de meras econo- não deve ser vista como uma negação ou
mías de opción10. Esses critérios cumulativos um distanciamento do mecanismo anterior
explicitados no art. 15.1 do texto legal de da fraude à lei tributária (art. 24 do Códi-
2003 são conceitos já presentes em normas go de 1963), e sim como uma tentativa de
gerais antiabuso de outros países. Veja-se dar mais nitidez a critérios implícitos e
a redação do dispositivo (nossa tradução): subentendidos na norma anterior (PALAO
“Art. 15. Conflito na aplicação da TABOADA, 2006, p. 112).
norma tributária. A busca de maior segurança jurídica
1. Entender-se-á que existe conflito também parece haver motivado a nova con-
na aplicação da norma tributária figuração dos aspectos procedimentais para
quando se evite total ou parcialmente a declaração da existência de conflito na
a realização do fato imponível ou se aplicação da norma tributária. Segundo os
diminua a base de cálculo ou o mon- arts. 159 do Código Tributário (Lei 58/2003)
tante do tributo mediante atos ou e 194 do Regulamento de Administração
negócios nos quais estejam presentes e Fiscalização Tributária (Real Decreto
as seguintes circunstâncias: 1.065/2007), a competência para declarar
a) Que, individualmente conside- a existência do conflito não é conferida
rados ou em seu conjunto, [os atos a cada um dos agentes administrativos
ou negócios] sejam notoriamente que fiscalizam o imposto, mas reservada
artificiosos ou impróprios para a exclusivamente a uma Comissão de qua-
consecução do resultado obtido. tro membros (todos eles funcionários da
b) Que de sua utilização não resultem Fazenda Pública) estreitamente vinculada
efeitos jurídicos ou econômicos rele- ao órgão central responsável por respon-
vantes, distintos da economia fiscal e der as consultas tributárias formuladas
dos efeitos que seriam obtidos com os pelos contribuintes. A ideia parece clara:
atos ou negócios usuais ou próprios.” garantir que o repertório de decisões sobre
A ideia sempre cativante de mais se- a existência ou não de conflito seja coerente
gurança jurídica parece de fato explicar a e consistente com o repertório de decisões
iniciativa de se haver definido com mais que interpretam a legislação tributária
clareza, na própria legislação, os requisitos como um todo, no bojo de processos de
para a aplicação da norma geral antia- consulta tributária.
pueden plantearse por motivos que nada tienen que
A respeito da reação do ordenamento
ver con la elusión tributaria” . Juan Manuel Herrero aos casos de elusão tributária, o Anteprojeto
de Egaña (2003, p. 1155) também formula críticas cer- de Código Tributário elaborado pelo Poder
teiras a essa denominação, que aparentemente teve a Executivo espanhol previa originalmente
intenção de retirar da elusão tributária todo e qualquer
conteúdo pejorativo, como se se tratasse de um com- uma autorização para imposição de multas
portamento neutro do ponto de vista ético-jurídico. administrativas naqueles casos em que o
10
Fernando Pérez Royo (2011, p. 253) afirma que o contribuinte houvesse atuado “com ânimo
art. 15 do Código atual “ha definido los requisitos sus-
defraudatório”. Como houve forte crítica do
tanciales de la figura [fraude à lei tributária/conflito
na aplicação da norma tributária] en términos menos Conselho de Estado espanhol e da doutrina
abstractos o conceptuales que la [LGT] anterior”. contra essa possibilidade, acabou sendo

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 123


mantido no Código de 2003 o mesmo regime global do conjunto de atos e negócios pra-
previsto anteriormente: o reconhecimento ticados pelo contribuinte, bem como seus
da existência de um conflito (antes chamado reais efeitos econômicos e empresariais12.
de fraude à lei tributária) provoca a aplica- A respeito dos critérios estabelecidos
ção da norma tributária que o contribuinte pelo legislador no art. 15.1 do Código de
procurou eludir, a cobrança do tributo e dos 2003 a fim de caracterizar os casos de confli-
juros de mora, não cabendo a imposição de to na aplicação da norma tributária (notória
multas administrativas. Vale ressaltar que artificiosidade dos negócios praticados,
um considerável número de doutrinadores não existência de efeitos jurídicos ou eco-
considera injusta a proibição de imposição nômicos distintos da economia fiscal e dos
de multas administrativas aos casos de efeitos que seriam obtidos com os negócios
conflito/fraude à lei tributária (RUIZ AL- usuais ou próprios), sua aplicação prática
MENDRAL, 2006, p. 130; GARCÍA BERRO, pela Administração tributária permanece
2010, p. 93-95; PÉREZ ROYO, 2005, p. 28). um mistério, pois não se criou um canal
Passados mais de sete anos da entrada institucional que dê publicidade, ainda que
em vigor do atual Código Tributário, os parcial, às decisões das Comissões encarre-
desígnios de mudança e inovação do le- gadas de decidir sobre a existência ou não
gislador parecem longe de haverem sido de conflitos. Por isso ainda não há condi-
alcançados. A norma geral antielusão à ções de a comunidade jurídica ter acesso
qual a Administração realmente recorre na a informações essenciais como o número
grande maioria dos casos de planejamen- de decisões já tomadas pelas Comissões, a
tos abusivos segue sendo a norma sobre proporção entre as decisões que declararam
simulação (art. 16 do Código Tributário11), e as decisões que não declararam o conflito,
que permite a imposição de multas admi- e, principalmente, qual foi a racionalidade
nistrativas e não exige a abertura de um jurídica que presidiu a interpretação, pelas
procedimento especial para sua declaração. Comissões, dos referidos critérios legais
A novidade dos últimos anos é a linha contidos no art. 15 do Código.
jurisprudencial que vem se consolidando no No que diz respeito ao regime das san-
Tribunal Supremo espanhol (equivalente ao ções às figuras da fraude à lei tributária e do
Superior Tribunal de Justiça na organização conflito na aplicação da norma tributária,
judiciária brasileira) no sentido de aplicar a situação atual na jurisprudência pode
aos casos de elusão um conceito amplo de ser descrita da seguinte maneira. Se os
simulação. Para avaliar se há ou não simu- tribunais qualificarem os atos e negócios
lação em casos de alegada elusão fiscal, o jurídicos praticados pelo contribuinte
contribuinte geralmente alega que se deve como fraude à lei tributária, a imposição
avaliar isoladamente cada um dos atos e de multas administrativas ou eventuais
negócios jurídicos estabelecidos pelas par- sanções criminais (pelo crime de defrau-
tes, mas o Tribunal Supremo rechaça essa dação tributária) fica proibida, conforme
orientação e leva em conta o sentido prático decidiu o Tribunal Constitucional espanhol
11
“Art. 16. Simulação. 1. Nos atos ou negócios nos 12
Exemplos de decisões do Tribunal Supremo que
quais exista simulação, o fato imponível gravado será adotam esse conceito amplo de simulação: sentença
o efetivamente realizado pelas partes. 2. A existência de 20 de setembro de 2005 (RJ 2005, 8361); sentença
de simulação será declarada pela Administração de 18 de março de 2008 (RJ 2008, 2707); sentença de
tributária no correspondente lançamento tributário, 27 de maio de 2008 (RJ 2008, 2870); sentença de 15 de
sem que dita qualificação produza outros efeitos que julho de 2008 (RJ 2008, 3911); sentença de 28 de maio
os exclusivamente tributários. 3. Na regularização de 2009 (RJ 2009, 4414); sentença de 25 de setembro
devida como consequência da existência de simula- de 2009 (RJ 2009, 5487); sentença de 2 de abril de 2011
ção serão exigidos juros de mora e, sendo o caso, a (RJ 2011, 2919); sentença de 29 de junho de 2011 (RJ
sanção cabível”. 2011, 5608).

124 Revista de Informação Legislativa


na sentença de 10 de maio de 2005 (STC Rubens Gomes de Sousa iniciou a redação
120/2005); contudo, se os mesmos atos de um anteprojeto de Código Tributário
e negócios jurídicos forem qualificados Nacional, que, segundo os planos de Baleei-
pelos tribunais de justiça como simulados, ro e Bilac Pinto, seria por eles apresentado à
a imposição de multas administrativas e Câmara dos Deputados (BALEEIRO, 1975,
sanções penais são admitidas, mesmo que p. 5-33).
aquela qualificação tenha sido feita a partir O Anteprojeto, finalizado por Gomes de
de um conceito amplo de simulação, já que Sousa em 1952, não chegou a ser apresen-
o Tribunal Constitucional considera que tado à Câmara dos Deputados por Baleeiro
não cabe a ele se imiscuir na competência e Bilac Pinto. Em 1953, Baleeiro sugeriu ao
dos tribunais de justiça para a qualificação Ministro da Fazenda Osvaldo Aranha que
penal das condutas (sentença de 27 de ou- o Governo promovesse a codificação do di-
tubro de 2008 – STC 129/2008)13. reito tributário em nível nacional, e indicou
o nome de Gomes de Sousa para presidir a
3.4. Conclusão sobre a situação atual comissão que se encarregaria da elaboração
da norma geral antiabuso espanhola do Projeto. A comissão foi constituída – sob
Caso se consolide realmente a linha a presidência de Gomes de Sousa – em 1953,
jurisprudencial hoje predominante no e em 1954 o Projeto de Código Tributário
Tribunal Supremo, que combate as elusões Nacional foi enviado pelo Presidente da
sofisticadas por meio de um conceito amplo República Getúlio Vargas ao Congresso
de simulação, em que a pedra de toque é a Nacional (SOUSA, 1954).
causa ou o objetivo prático perseguido pelos Apesar de esse Projeto remetido ao
negócios jurídicos avaliados globalmente Congresso Nacional em 1954 nunca ter
e não individualmente considerados, a sido apreciado e votado pelo Legislativo,
norma geral do conflito na aplicação da ele constituiu a base do que veio a ser apro-
norma tributária terá escassa importância vado em 1966 – já sob o regime ditatorial
prática. Nesse caso, será esse conceito am- instalado em 1964 – como Código Tributário
plo de simulação a verdadeira norma geral Nacional (Lei 5.172, de 1966).
antielusão do sistema jurídico espanhol. Tanto o Anteprojeto como o Projeto de
Gomes de Sousa (1954) continham algumas
normas um tanto confusas, que buscavam
4. Evolução histórica e situação atual do
traduzir a visão da consideração econômica
combate à elusão tributária no Brasil do direito tributário tal como formulada
nas primeiras décadas do século XX na
4.1. Normas gerais antielusão constantes
Alemanha14. O art. 74 do Projeto (derivado
do Anteprojeto e Projeto de Código
do art. 129 do Anteprojeto) dispunha que
Tributário Nacional elaborado por
“a interpretação da legislação tributária
Rubens Gomes de Sousa
visará sua aplicação não só aos atos, fatos
Em 1951, por sugestão dos então par- ou situações jurídicas nela nominalmente
lamentares Aliomar Baleeiro e Bilac Pinto, referidos, como também àqueles que pro-
duzam ou sejam suscetíveis de produzir
13
Florián García Berro (2010, p. 89-91) critica
fortemente essa sentença, que qualifica como “um
resultados equivalentes”.
passo decepcionante” em relação às expectativas Nos seus comentários ao Projeto,
criadas pelo Tribunal Constitucional com a anterior Rubens Gomes de Sousa (1954, p. 181)
STC 120/2005. Da mesma opinião é Juan Zornoza
Pérez (2010, p. 562-563), que critica que o Tribunal 14
Sobre a chamada “interpretação econômica do
Constitucional haja assumido “mecánicamente y sin direito tributário” e o processo de evolução histórica
mayores análisis la calificación de simulación, con dessa ideia, ver também Godoi e Saliba (2010, p.
renuncia al examen de sus elementos”. 268-293).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 125


afirma que tal dispositivo “inspirou-se” efetivamente ocorrente ou constituí-
no art. 9o do Código Alemão de 1931. O da, nos termos do art. 129, quando
dispositivo do Código alemão estabelecia os conceitos, formas ou institutos de
que “na interpretação das leis tributárias direito privado utilizados pelas par-
devem ser consideradas sua finalidade, tes não correspondam aos legalmente
seu significado econômico e o desenvolvi- ou usualmente aplicáveis à hipótese
mento das circunstâncias”. O dispositivo de que se tratar.”
do Código alemão simplesmente aponta A redação do artigo é criticável, pois
para os pressupostos de uma interpretação no abuso de formas ou no abuso das pos-
finalística e teleológica, sem determinar a sibilidades de configuração do direito não
orientação geral no sentido da tributação se trata de usar formas não usuais ou não
de fatos capazes de “produzir resultados correntes, e sim de formas artificiosas, dis-
equivalentes” aos fatos previstos nas nor- torcidas e manipuladas. De todo modo, é de
mas de incidência tributária. Parece-nos, se registrar a preocupação do Anteprojeto
portanto, que Rubens Gomes de Sousa e do Projeto de “cercear a evasão tributária
(1954) se inspirou menos no próprio art. 9o procurada através do que a doutrina ale-
do Código alemão e mais nos comentários mã chama ‘o abuso de formas de direito
de Enno Becker (bastante criticados pelos privado’”. Rubens Gomes de Sousa (1954,
próprios alemães) ao referido dispositivo. p. 195-196) também entendia que tal dispo-
Como o Anteprojeto e o Projeto adota- sitivo era de se aplicar em casos de fraude
vam uma norma que resvalava para a in- à lei tributária.
terpretação econômica do direito tributário
em sua versão primitiva, não era coerente 4.2. O Código Tributário Nacional
que adotassem em outro dispositivo uma de 1966 e a completa ausência de
norma destinada a combater pontualmente
normas gerais antielusão
os casos de elusão ou fraudes à lei tributá-
ria. Mas tal ocorria. No art. 131, parágrafo A equivocada obstinação de Alfredo
único do Anteprojeto de Gomes de Sousa Augusto Becker (1999) em vincular o
(1954)(art. 86 do Projeto), dispunha-se: autoritarismo em geral e o nazismo em
“Art. 131. Os conceitos, formas e particular a qualquer forma de doutrina
institutos de direito privado, a que que combata o abuso do direito ou a fraude
faça referência a legislação tributária, à lei no direito tributário parece ter sido
serão aplicados segundo a sua con- determinante para que o Código Tributário
ceituação própria, salvo quando seja Nacional de 1966, ao contrário do Antepro-
expressamente alterada ou modifica- jeto (1953) e do Projeto (1954) anteriormente
da pela legislação tributária. preparados por Rubens Gomes de Sousa
Parágrafo único. A autoridade admi- (1954), não contivesse qualquer norma
nistrativa ou judiciária competente geral antielusão. A julgar pelo depoimento
para aplicar a legislação tributária do próprio Becker (1999), seu amigo Rubens
terá em vista, independentemente da Gomes de Sousa, em dezembro de 1965,
intenção das partes, mas sem prejuí- teria lhe enviado uma carta, na qualidade
zo dos efeitos penais dessa intenção de Presidente da Comissão que redigiu o
quando seja o caso, que a utilização Código Tributário Nacional, rogando-lhe
de conceitos, formas e institutos de um Parecer Jurídico que demonstrasse
direito privado não deverá dar lugar que “a ‘Teoria do Abuso das Formas Jurí-
à evasão ou redução do tributo devi- dicas e a Interpretação Econômica das Leis
do com base nos resultados efetivos Fiscais’ era um absurdo jurídico (...) uma
do estado de fato ou situação jurídica teoria introduzida no Código Tributário

126 Revista de Informação Legislativa


alemão pelo Nazismo e que autorizou a tes entre si, a primeira parte valorizando a
morte financeira dos contribuintes alemães forma e o direito privado, a segunda parte
de forma igual à morte física dos judeus” valorizando a substância e o direito tribu-
(BECKER, 1999, p. 30-31). tário. Johnson Barbosa Nogueira (1982, p.
É estranho Becker (1999) afirmar que 54) afirma que o art. 109 adota uma espécie
essa teoria teria sido “introduzida” no de interpretação econômica consistente na
Código Tributário alemão pelo nazismo, autonomização do direito tributário em
pois, por suas leituras, ele sabia certamente detrimento dos conceitos privatísticos.
que essa norma surgiu no Código de 1919 Rubens Gomes de Sousa (1954), por sua
e permaneceu no direito alemão – como vez, responsável pela paternidade intelec-
permanece até hoje (artigo 42 do Código de tual do dispositivo, interpreta-o de uma
1977) – após a queda do nazismo. Também maneira extremamente confusa e pouco
é estranho que Rubens Gomes de Sousa convincente15.
(1954), após introduzir em seu Anteprojeto A nosso ver, o art. 109 se destina a de-
(art. 131, parágrafo único) e manter no seu limitar o papel que os princípios gerais de
Projeto de Código Tributário (art. 86) uma direito privado têm na interpretação da lei
norma antielusão combatendo o abuso das tributária. Caso a legislação tributária faça
formas jurídicas e a fraude à lei tributária, menção a conceitos, institutos e formas de
tenha requerido um parecer de Alfredo direito privado (salário, doação, hipoteca,
Augusto Becker destinado a sepultar sua usufruto etc.) sem criar uma conceitua-
própria iniciativa. ção própria desses institutos para fins de
Mas o que é mais estranho é que Rubens aplicação da norma tributária, o art. 109
Gomes de Sousa, que, segundo Becker determina que o intérprete deve lançar
(1999), teve a ideia de pedir o seu referido mão dos princípios gerais de direito pri-
parecer em 1965, tenha defendido de forma vado para verificar o alcance ou o sentido
expressa, em palestra dada no Seminário desses institutos. Se a lei tributária impõe
organizado pelo Prof. Geraldo Ataliba na um imposto sobre os contratos de leasing
PUC-SP, em 1971, exatamente a ideia de (sem transfigurar seu sentido oriundo do
aplicar a interpretação econômica “à hi- direito privado) e se num caso concreto
pótese, que se poderia dizer ‘patológica’, se discute se o imposto é devido ou não
do chamado ‘abuso de formas’, ou seja, da exatamente porque se discute se a opera-
distorção das formas do direito privado ção é ou não de leasing, o intérprete da lei
pelos contribuintes, com intenção de evadir tributária terá eventualmente que recorrer
o imposto” (SOUSA, 1975, p. 373). aos princípios gerais de direito privado
O único dispositivo do Código Tribu- implícitos na legislação do leasing para ve-
tário Nacional de 1966 que alguma parcela rificar o verdadeiro alcance do instituto, e
da doutrina brasileira considera ter relação consequentemente concluir pela incidência
com o tema do combate à elusão tributária ou não do imposto. Isso é o que se estatui
é o artigo 109, que dispõe: na primeira parte do art. 109: “os princípios
“Art. 109. Os princípios gerais de gerais de direito privado utilizam-se, para
direito privado utilizam-se para pes- pesquisa da definição, do conteúdo e do
quisa da definição, do conteúdo e do 15
“O conteúdo real deste dispositivo é, portanto,
alcance de seus institutos, conceitos e um mecanismo para permitir ao aplicador da lei con-
formas, mas não para definição dos trariar as manobras de evasão, aplicando, aliás, a nor-
respectivos efeitos tributários.” ma geral de direito processual, de que o juiz, quando
se convença de que as partes instauraram o processo
A interpretação desse art. 109 não é fácil.
para obter resultado diverso daquele que aparece, dará
Ricardo Lobo Torres (2006, p. 147) afirma sentença por forma que obste esse resultado, ou seja,
que o dispositivo tem duas partes conflitan- ao abuso da lei” (SOUSA, 1975, p. 378).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 127


alcance de seus institutos e formas (...)”. vado mencionado na legislação tributária,
Na redação do Projeto (art. 76), ficava mais os princípios gerais de direito privado são
claro o sentido dessa norma: “os princípios irrelevantes em matéria tributária. Tal con-
gerais de direito privado constituem méto- clusão está em linha com o art. 108 do CTN,
do ou processo supletivo de interpretação que não prevê em seus incisos (“processos
da legislação tributária unicamente para supletivos de interpretação” na expressão
pesquisa da definição, conteúdo e alcance do art. 75 do Projeto) os princípios gerais de
próprios dos conceitos, formas e institutos direito privado, daí o Relatório de Rubens
de direito privado a que faça referência Gomes de Sousa (1954, p. 183) ao Projeto
aquela legislação [tributária]...”. de CTN afirmar que o art. 76 do Projeto
No entanto, a segunda parte do art. (atual art. 109) “completaria” a norma do
109 determina que o intérprete não use os atual art. 108.
princípios gerais de direito privado para Não vemos nesse art. 109 a marca da
interpretar a própria legislação que regule interpretação econômica no sentido pe-
os efeitos ou as consequências tributárias jorativo da presunção absoluta de que os
da prática daqueles institutos, conceitos e conceitos de direito privado mencionados
formas de direito privado. Luciano Amaro pela norma tributária têm sempre um
exemplifica muito bem essa questão, ao afir- conteúdo distinto do conceito privado, ou
mar que os princípios (contidos, por exem- no sentido de permitir ao intérprete a livre
plo, no Código de Defesa do Consumidor) investigação dos fatos a fim de aplicar o
que informam a relação entre o consumidor mesmo tratamento tributário a situações
e o fornecedor não podem ser usados para economicamente semelhantes. Tampouco
interpretar normas tributárias relativas às vemos neste artigo um mecanismo para
obrigações desse consumidor (como contri- “permitir ao aplicador da lei contrariar as
buinte) para com o fisco. Da mesma forma, manobras de evasão” mediante abuso do
“o empregado, hipossuficiente na relação direito, como afirmou Gomes de Sousa
trabalhista, não pode invocar essa condi- (1954, p. 184), pois não vemos como o con-
ção na relação tributária cujo pólo passivo tribuinte elusor poderia buscar se escudar,
venha a ocupar” (AMARO, 2007, p. 219). na urdidura dos atos artificiosos e abusivos,
Em resumo: se a legislação tributária nos “princípios gerais de direito privado” .
não se referir a institutos e conceitos do
direito privado ou a eles se referir transfor- 4.3. Formação de uma doutrina
mando seu sentido “para fins de aplicação majoritariamente formalista e avessa à
da legislação tributária”, não caberá utilizar possibilidade de combater as fraudes à
os princípios gerais do direito privado para lei tributária mediante normas gerais
verificar o alcance da norma. Contudo, se Como vimos nas primeiras seções do
a legislação tributária fizer menção a um presente estudo, a maioria das legislações e
instituto do direito privado sem lhe espe- dos juristas dos países ocidentais comunga
cificar um sentido diferente, então o con- da consciência de que, a partir de um certo
ceito desse instituto tal como configurado ponto, o planejamento tributário ou a elisão
no direito privado será determinante para fiscal, ainda que não configurem evasão ou
concluir se a lei tributária incidirá ou não, sonegação, já não se mostram idôneos para
e os princípios gerais de direito privado atingir seus objetivos. Como afirma o jurista
podem ser utilizados para investigar se alemão Klaus Vogel (1997, p. 77), “o plane-
num caso concreto houve ou não a prática jamento tributário pode alcançar um ponto
daquele instituto de direito privado. Fora acima do qual não pode ser tolerado por um
disso, fora dessa investigação do alcance ou sistema jurídico que pretende conformar-
do conteúdo de um instituto do direito pri- -se a princípios de justiça” . Por isso esses

128 Revista de Informação Legislativa


países dividem os comportamentos dos ou outras fraudes do gênero (que caracte-
contribuintes que resistem aos tributos rizam evasão), sua conduta é considerada
em três campos: elisão/economía de opción inatacável, mesmo que o contribuinte tenha
(lícita, eficaz), evasão tributária (ilícita e adotado formas jurídicas manifestamente
sujeita a multas e sanções penais) e elusão artificiosas para atingir resultados práticos
tributária (planejamentos tributários abusi- completamente distanciados daqueles para
vos/artificiosos) (ZIMMER, 2002, p. 21-67). os quais as tais formas jurídicas foram cria-
No Brasil, a maioria dos tributaristas das pelo direito positivo.
atuais ainda se recusa a admitir a existência Para essa posição ainda majoritária
de um terceiro campo distinto da elisão e da doutrina brasileira, os princípios da
da evasão tributária. Por isso mesmo é que, “reserva absoluta de lei em sentido for-
ao contrário dos demais países ocidentais, mal”, “tipicidade fechada” e da proibição
ainda não existe um termo ou uma expres- de tributar mediante analogia tornariam
são consagrada na doutrina brasileira para inconstitucional qualquer combate a ope-
designar os fenômenos que vimos chaman- rações de planejamento tributário mediante
do neste estudo de elusão tributária. Em a aplicação de normas gerais lastreadas
estudo publicado em 2001, afirmamos que em institutos como o abuso do direito ou
a elusão seria “um tipo de planejamento a fraude à lei16. Nem mesmo por força de
[tributário] que não é nem propriamente uma emenda constitucional essa forma de
simulado nem propriamente elisivo” (GO- combater determinados planejamentos
DOI, 2001, p. 110). Heleno Torres publicou tributários poderia ser adotada no direito
em 2003 uma obra que utiliza exatamente a brasileiro17. Ou seja, a doutrina majoritária
expressão elusão tributária para designar o atual insiste em que uma prática que há
conjunto de atos que se diferenciam tanto décadas se desenvolve na grande maioria
da elisão quanto da evasão (TORRES, 2003). dos países de democracia liberal-capitalista
Consideramos que se devem classificar somente poderia ser introduzida no Brasil
as atuações dos contribuintes em três cam- mediante uma ruptura institucional ou um
pos (e não em dois campos, como ainda é golpe de Estado que instituísse uma nova
usual na doutrina brasileira) e utilizar o ordem constitucional em substituição ao
termo elusão para nomear o conjunto das atual Estado Democrático de Direito.
condutas pelas quais o contribuinte procura Contudo, os autores que podemos cha-
evitar a incidência da norma tributária me- mar clássicos, que iniciaram a construção
diante formalizações jurídicas artificiosas científica do direito tributário no Brasil,
e distorcidas. Afinal de contas, o vocábulo encaravam com muito mais naturalidade
elusão, ainda que não dicionarizado, é termo
que deriva do verbo eludir, cujo sentido é
16
O autor que expõe com maior clareza e rigor
técnico essa corrente doutrinária é Alberto Xavier
bem conhecido e se ajusta à perfeição ao (2001). Alguns doutrinadores, como Sacha Calmon
comportamento que queremos estudar e Misabel Derzi, apesar de rechaçarem e criticarem
no presente artigo: “evitar algo de modo vivamente as normas gerais antiabuso, por violado-
astucioso, com destreza ou com artifício” ras da tipicidade e da proibição da analogia, diante
de casos concretos utilizam os clássicos critérios das
(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1113).
tradicionais normas gerais (divergência entre intentio
A maioria dos autores brasileiros só re- facti e intentio juris, divergência entre a causa típica
conhece e nomeia dois campos de atuação do negócio e os propósitos práticos buscados pelas
do contribuinte: o da elisão (lícita) e o da partes) para afastarem a validade de determinados
evasão (ilícita) (BECKER, 1998, p. 130). Se o planejamentos abusivos (GODOI, 2007b, p. 272-298).
17
Essa foi a conclusão da maioria dos doutrina-
contribuinte não pratica simulação (no sen- dores que participaram de um Congresso de Direito
tido de uma declaração de vontade total ou Tributário em São Paulo no ano de 2000, cujas conclu-
parcialmente falsa), falsificação documental sões estão refletidas em Martins (2000).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 129


a aplicação de técnicas como a fraude à lei mento dos limites entre a elisão e a elusão,
tributária. E muitos desses autores defende- e a doutrina majoritária manejava unica-
ram especificamente a contenção da elusão mente os conceitos de evasão (simulação,
tributária mediante a técnica da fraude à lei defraudação) e elisão (planejamento tribu-
tributária ou do abuso de formas jurídicas. tário lícito). Em 2001, o Poder Executivo
Autores como Rubens Gomes de Sousa, encaminhou ao Congresso Nacional um
Amílcar de Araújo Falcão, Ruy Barbosa projeto que veio a ser convertido na Lei
Nogueira e Geraldo Ataliba sustentaram Complementar 104/2001, que entre outras
pontos de vista sobre os limites do plane- providências incluiu no CTN o seguinte
jamento tributário muito menos formalistas dispositivo:
do que os da doutrina atual majoritária “Art. 116, parágrafo único: A autori-
(SOUSA, 1975, p. 75-82; FALCÃO, 1993, dade administrativa poderá descon-
p. 61; 1995, p. 32; NOGUEIRA, 1965, p. siderar atos ou negócios jurídicos
65-66; 1994, p. 93; ATALIBA, 1969, p. 295; praticados com a finalidade de dissi-
1975, p. 193). mular a ocorrência do fato gerador do
Ademais, na jurisprudência do Su- tributo ou a natureza dos elementos
premo Tribunal Federal dos anos 50 e 60, constitutivos da obrigação tributária,
diversos Ministros reconhecidamente de observados os procedimentos a se-
sólida formação acadêmica se manifesta- rem estabelecidos em lei ordinária.”
ram expressamente a favor da aplicação do A Exposição de Motivos do Projeto de
secular instituto da fraude à lei no direito Lei Complementar afirmava que a norma
tributário brasileiro (GODOI, 2002). constituiria “um instrumento eficaz para
Amílcar de Araújo Falcão demonstrava o combate aos procedimentos de planeja-
total conhecimento da doutrina tributária mento tributário praticados com abuso de
alemã do “abuso das possibilidades de forma ou de direito”. Diante dessa norma,
configuração oferecidas pelo direito”, que parte da doutrina nacional adotou a se-
corresponde exatamente à utilização da no- guinte interpretação: o dispositivo regula
ção de fraude à lei para disciplinar os casos a hipótese de “atos ou negócios simulados”
de elusão. Falcão anotou que o fenômeno (“dissimulação” teria o sentido jurídico de
“não passa de um caso particular de fraus “simulação relativa”) e assim não trouxe
legis, a que a praxis deu uma importância nada de realmente novo, pois doutrina e
especial”, e propôs que a conduta fosse jurisprudência há muito chegaram a uma
frustrada quando o contribuinte promoves- sólida posição de que os atos ou negócios
se uma grave “distorção da forma jurídica” simulados não fazem parte da elisão tribu-
para dar um “rodeio” na norma tributária tária, mas constituem formas de praticar
desvantajosa. Sem negar o direito de o “infração tributária” ou simplesmente
contribuinte “dispor de seus negócios, de “evasão”. Alberto Xavier (2001, p. 70-73)
modo a pagar menos tributos”, o autor res- defendeu que o efeito do dispositivo teria
salta que não se pode admitir uma grosseira sido permitir que o fisco desconsiderasse
“manipulação” do “revestimento jurídico” o ato simulado sem ter que previamente
do fato gerador (FALCÃO, 1995, p. 34). demandar a nulidade do ato em juízo (vide
artigo 105 do antigo Código Civil). Consi-
4.4. A norma introduzida no CTN deramos um equívoco essa afirmação, pois
pela Lei Complementar 104, de 2001 doutrina e jurisprudência anteriores à LC
Até o ano de 2001, a legislação brasi- 104 já consideravam sem maiores hesita-
leira não continha qualquer norma geral ções que o fisco, para combater a simulação
(comparável às normas espanholas sobre relativa praticada pelo contribuinte, não
a fraude à lei tributária) voltada ao trata- necessita requerer que o Poder Judiciário

130 Revista de Informação Legislativa


decrete a nulidade do ato simulado18, estan- um uso artificioso e forçado de determinados
do essa orientação implícita no art. 149, VII atos ou negócios jurídicos previstos na lei
do CTN, posterior ao Código Civil de 1916. civil ou comercial para outros fins, então as
Outra parte da doutrina brasileira pre- autoridades fiscalizadoras podem descon-
feriu a interpretação de que o dispositivo siderar tais formalizações e aplicar a norma
veio, de maneira inconstitucional, proibir tributária eludida ou defraudada.
radical e terminantemente todo e qualquer Por outro lado, consideramos que a
planejamento tributário, e para tanto deu existência de uma norma geral antielusão
poderes à Administração tributária para contida no código tributário obriga o fisco
realizar a interpretação econômica das a recorrer a tal via para corrigir os atos elu-
normas impositivas e exigir tributos por sivos dos contribuintes, não sendo correta
analogia. Essa é a interpretação defendida a aplicação conjunta ou mesmo subsidiária
na petição inicial da Ação Direta de In- das figuras da fraude à lei e do abuso do
constitucionalidade 2.446, proposta pela direito previstas no código civil de 2002
Confederação Nacional do Comércio em (art. 166, VI, e 187, respectivamente). Nesse
2001 e até hoje não apreciada pelo STF. particular, discordamos das orientações de
Essa Ação Direta – que lamentavelmente Marco Aurélio Greco (2011), que defende
tramita há mais de dez anos no STF sem que um caso de planejamento tributário
qualquer manifestação do Tribunal a res- com fraude à lei ou abuso do direito pode
peito da matéria – reza o credo do ultrafor- ser combatido pela administração mediante
malismo liberal e requer a declaração de a aplicação do código civil.
inconstitucionalidade da referida norma, Em nossa opinião, a sistematização que
por violação aos “princípios da legalidade o Código Civil de 2002 imprimiu às figu-
e da tipicidade cerrada e da certeza e segu- ras da fraude à lei e do abuso do direito é
rança das relações jurídicas” (página 29 da inapropriada para o tratamento da elusão
petição inicial). tributária. Quanto à fraude à lei, a discip-
Em nossa opinião19, a alteração do CTN lina do Código Civil brasileiro considera
veio ao encontro de uma tendência mun- nulo o negócio praticado em fraude à lei
dial de adotar normas gerais de combate (art. 166, VI), e naturalmente faz depender
à elusão tributária20: certamente continua essa nulidade de uma sentença judicial,
permitido o planejamento tributário, mas ao passo que todos os países que possuem
quando este promove uma distorção ou normas gerais antielusão utilizam a técnica
da desconsideração ou inoponibilidade fiscal
18
Sampaio Dória (1971, p. 42) observava corre-
tamente, que “o propósito fiscal é unicamente o de
do ato elusivo, que obviamente independe
receber o tributo devido pela prática do ato dissimu- de uma decisão judicial (embora natural-
lado, pouco importando a permanência dos efeitos mente a desconsideração possa ser revista
jurídicos dos atos aparentes”, concluindo que “a a posteriori por um ato judicial). além disso,
decretação de nulidade do negócio simulado, em seu
aspecto substancial, não é imprescindível para que
o art. 166, VI, do código civil restringe-se
o fisco receba os tributos devidos”. Essa orientação aos negócios jurídicos em fraude à lei, sem
sempre prevaleceu no Conselho de Contribuintes do abranger os casos não incomuns de atos
Ministério da Fazenda. in fraudem legis que não são contratos ou
19
No mesmo sentido, ver também Torres (2006).
Marco Aurelio Greco (1998; 2011) também sustentou
negócios jurídicos stricto sensu (PONTES
desde a década de 90 a necessidade de abandonar DE MIRANDA, 1954, p. 45).
a visão formalista presente na maioria da doutrina Como o art. 166, VI, do novo Código
brasileira. Civil é claramente influenciado pelo Có-
20
Vale relembrar que a exposição de motivos do
projeto de lei e os debates parlamentares sempre se
digo Civil italiano (arts. 1.344 e 1.418),
referiram claramente aos limites do planejamento e da vale lembrar que a doutrina e os tribunais
elisão fiscal, e não à hipótese de simulação. italianos (LUPO, 2002; MORELLO, 1991)

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 131


consideram inapropriada a aplicação do pratiquem a “dissimulação da ocorrência
art. 1.344 do Código Civil21 à esfera tri- do fato gerador ou da natureza dos elemen-
butária, entre outros motivos porque o tos constitutivos da obrigação tributária”.
Código Civil italiano também considera É certo que as normas gerais antielusão
nulo o negócio em fraude à lei (art. 1.418), têm, por definição, uma textura aberta e não
e o combate à elusão tributária não se faz se destinam a uma aplicação automática
mediante anulação judicial, e sim mediante por mera subsunção lógica, cabendo à ju-
desconsideração administrativa de atos. risprudência o papel de ir paulatinamente
Combater a elusão tributária mediante definindo, à luz dos casos concretos, seus
anulação judicial de atos da vida civil e contornos precisos. Contudo, comparada
comercial significaria, além de procrastinar por exemplo com as normas gerais antie-
e tumultuar o procedimento, criar desne- lusão de países como Espanha (vide seção
cessariamente uma série de contratempos anterior do presente estudo) e Portugal, a
e efeitos colaterais a terceiros. Da mesma norma brasileira de 2001 se destaca por sua
forma que no Brasil a simulação dos atos redação lacônica e vaga, sem nem mesmo
dos contribuintes prevista no CTN (por esboçar uma definição mais concreta dos
exemplo no art. 149, VII) e em leis tributá- atos passíveis de desconsideração. Em 2000,
rias esparsas nunca foi demandada previa- quando a redação da norma geral antielu-
mente no juízo cível pela Fazenda Pública, e são provavelmente estava sendo gestada
sim caracterizada pela autoridade fiscal no no âmbito do Poder Executivo brasileiro,
exercício do lançamento, pensamos que a a norma geral portuguesa, após haver pas-
qualificação dos atos do contribuinte como sado por mudanças de redação em 1999 e
“elusivos” (e sua consequente “desconside- 2000, apresentava o seguinte texto:
ração”) somente deve ocorrer no bojo dos “São ineficazes no âmbito tributário
procedimentos administrativos específicos os actos ou negócios jurídicos essen-
previstos na parte final do art. 116, parágra- cial ou principalmente dirigidos, por
fo único, do CTN. Se a desconsideração se meios artificiosos ou fraudulentos e
tornar definitiva na esfera administrativa, com abuso das formas jurídicas, à
então o contribuinte poderá questioná-la redução, eliminação ou diferimento
no Poder Judiciário, nas varas competentes temporal de impostos que seriam
para examinar a matéria tributária, e não devidos em resultado de factos, ac-
nas varas cíveis. tos ou negócios jurídicos de idêntico
Parece-nos que foi algo saudável e mes- fim económico, ou à obtenção de
mo necessário a iniciativa de criar legislati- vantagens fiscais que não seriam al-
vamente uma norma geral antielusão como cançadas, total ou parcialmente, sem
“um instrumento eficaz para o combate aos utilização desses meios, efectuando-
procedimentos de planejamento tributário -se então a tributação de acordo com
praticados com abuso de forma ou de di- as normas aplicáveis na sua ausência
reito”, expressão utilizada na Exposição de e não se produzindo as vantagens
Motivos do Projeto de Lei Complementar. fiscais referidas.”
O que nos parece criticável no art. 116, A norma portuguesa, assim como a
parágrafo único, do CTN é a falta de esta- norma espanhola atualmente em vigor,
belecimento de critérios substantivos para estabelece o critério do abuso de formas
uma definição mais precisa do que se deve jurídicas como a pedra de toque para a
entender por atos ou negócios jurídicos que interpretação e aplicação da norma geral.
A referência no texto da norma aos motivos
21
O art. 1.344 determina que a causa do contrato
é ilícita quando o contrato se utiliza, como meio para exclusiva ou preponderantemente voltados
eludir a aplicação, de uma norma imperativa. à eliminação ou diferimento de tributos, e

132 Revista de Informação Legislativa


cumulativamente ao caráter artificioso dos 12. O projeto identifica as hipóteses
atos ou negócios jurídicos praticados, cons- de atos ou negócios jurídicos que são
titui um valioso elemento inicial para que, passíveis de desconsideração, pois,
a partir dele, a jurisprudência desempenhe embora lícitos, buscam tratamento
sua tarefa concretizadora. tributário favorecido e configuram
O Poder Executivo buscou corrigir a va- abuso de forma ou falta de propósito
gueza ou o laconismo do art. 116, parágrafo negocial.”
único, do CTN com a edição da Medida O art. 13, parágrafo único, define que a
Provisória no 66, no ano seguinte à aprova- norma geral não deve se aplicar a casos de
ção da norma geral. Mas essa tentativa não simulação, dolo ou fraude. O art. 14 define
se mostrou correta de um ponto de vista que a identificação dos atos ou negócios
técnico-jurídico, como se explicará a seguir. jurídicos passíveis de desconsideração deve
levar em conta, “entre outras, a ocorrência
4.5. A Medida Provisória 66/2002 de falta de propósito negocial ou abuso de
A parte final do art. 116, parágrafo forma”, adotando-se em seguida uma de-
único, do CTN estabelece que a descon- finição apressada e pouco técnica de cada
sideração administrativa dos atos e ne- um desses critérios. Tem razão a Exposi-
gócios ali previstos deve ocorrer segundo ção de Motivos da MP quando afirma em
“procedimentos a serem estabelecidos em seu item 13 que os conceitos de abuso de
lei ordinária”. No ano seguinte ao da apro- forma e falta de propósito negocial “guar-
vação da Lei Complementar 104/2001, o dam consistência com os estabelecidos na
Poder Executivo encaminhou ao Congresso legislação tributária de países que, desde
Nacional a Medida Provisória 66, de 29 algum tempo, disciplinaram a elisão fiscal”,
de agosto de 2002, cuja ementa se refere como de resto deixou claro o estudo sobre
ao estabelecimento dos “procedimentos a legislação espanhola que desenvolvemos
para desconsideração de atos ou negócios anteriormente. Contudo, a forma com que
jurídicos, para fins tributários”. o art. 14 da Medida Provisória 66 definiu
Os artigos 13 a 19 da Medida Provisória e regulou o abuso de forma e a falta de
têm como epígrafe a expressão “procedi- propósito negocial deixa muito a desejar
mentos relativos à norma geral anti-elisão”. do ponto de vista técnico-jurídico.
O problema é que alguns desses artigos O primeiro ponto a criticar é a referência
não se referem em absoluto a procedimentos ao abuso de forma e à falta de propósito
para aplicação da norma (como manda a negocial como critérios que, “entre outros”,
parte final do art. 116, parágrafo único, do presidem a aplicação da norma geral. Ora,
CTN), e sim a critérios substantivos sobre o se o objetivo era definir critérios para a apli-
alcance da norma, e sobre as consequências cação da norma, como aliás fica expressa-
normativas de sua aplicação. Aliás, isso é mente registrado na Exposição de Motivos
reconhecido na própria Exposição de Mo- da Medida Provisória, não faz sentido a
tivos da MP 66, quando se afirma: menção vaga e aberta a “outros critérios”
“11. Os arts. 13 a 19 dispõem sobre ou “outras circunstâncias” que podem de-
as hipóteses em que a autoridade terminar a desconsideração administrativa
administrativa, apenas para efeitos de atos ou negócios jurídicos.
tributários, pode desconsiderar atos O segundo ponto a criticar é a forma
ou negócios jurídicos, ressalvadas as tosca com que o art. 14, § 3o, da Medida
situações relacionadas com a prática Provisória definiu o critério do abuso de
de dolo, fraude ou simulação, para as formas jurídicas: “considera-se abuso de
quais a legislação tributária brasileira forma jurídica a prática de ato ou negócio
já oferece tratamento específico. jurídico indireto que produza o mesmo

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 133


resultado econômico do ato ou negócio Cobrar ou não multa de ofício não se refere
jurídico dissimulado”. Por um lado, há aos procedimentos, e sim às consequências
um problema de lógica formal: a definição da aplicação da norma.
remete à figura do “negócio indireto”, que Os procedimentos para aplicação da
a norma não define. Por outro lado, a de- norma geral são definidos, isto sim, nos
finição não toca nos aspectos principais da arts. 15 a 19 da Medida Provisória (com
figura do abuso de forma: a artificiosidade exceção dos arts. 17, § 2o, e 18, caput, como
dos atos e o abuso das possibilidades de explicado no parágrafo acima). Segundo
configuração oferecidas pelo direito, tal as regras aí estabelecidas, o procedimento
como consta do núcleo das normas gerais começa com uma representação dirigida
espanhola, alemã e portuguesa. pelo servidor competente para lançar
De qualquer maneira, esses dispositi- o tributo à autoridade administrativa
vos da Medida Provisória nada têm a ver superior que houver determinado a ins-
com o estabelecimento de procedimentos tauração do procedimento de fiscalização
para aplicação da norma (que o art. 116, do contribuinte. Essa representação deve
parágrafo único, manda serem definidos ser precedida de notificação ao sujeito
em lei ordinária), e sim com a delimitação passivo, notificação em que se relatarão os
substantiva do que se deve entender por fatos que justificam a desconsideração. O
“dissimular a ocorrência do fato gerador contribuinte então disporá de um prazo de
do tributo ou a natureza dos elementos 30 dias para apresentar esclarecimentos e
constitutivos da obrigação tributária”. provas que considere cabíveis. Em seguida,
Essa delimitação das hipóteses em que o servidor deve remeter à apreciação da au-
se deve aplicar o art. 116, parágrafo único, toridade administrativa superior a referida
do CTN não pode ser feita por lei ordinária, representação, que sobre ela decidirá em
mas sim por lei complementar de âmbito despacho fundamentado (não há previsão
nacional. A lei ordinária deve definir so- de prazo). Caso conclua pela desconside-
mente os procedimentos para a aplicação ração administrativa, a fundamentação
da norma, conforme determina a parte final da decisão deve explicitar quais foram os
do art. 116, parágrafo único, do CTN. Caso atos ou negócios praticados e quais foram
se pudessem disciplinar por lei ordinária os elementos ou fatos caracterizadores da
os critérios substantivos para aplicação da dissimulação da ocorrência do fato gerador
norma geral antielusão, haveria o risco de ou da natureza dos elementos constituti-
coexistirem vinte e sete normas gerais di- vos da obrigação tributária. Além disso, a
ferentes, pois a legislação dos Estados e do decisão deve fornecer a descrição dos atos
Distrito Federal, tal como a União, poderia ou negócios equivalentes aos praticados,
definir critérios distintos para delimitar os com as respectivas normas de incidência,
casos de aplicação da norma. e descrever qual o resultado tributário pro-
Os arts. 17, § 2o, e 18, caput, por sua duzido pela adoção dos atos ou negócios
vez, definem as consequências sanciona- equivalentes, com especificação, por tribu-
tórias da aplicação da norma geral: caso to, da base de cálculo, da alíquota incidente
o contribuinte opte por pagar o tributo e e dos encargos moratórios.
os juros de mora em 30 dias do despacho A regulação dos procedimentos de
que promover a desconsideração, não se aplicação da norma do art. 116, parágrafo
lhe exigirá multa de ofício, a qual somente único, do CTN termina com a regra (art.
será lançada caso o contribuinte não pague 18 da Medida Provisória) de que a con-
o tributo e os juros de mora naquele prazo. testação do despacho de desconsideração
Tampouco aí reside qualquer definição de dos atos ou negócios jurídicos e a impug-
um procedimento para aplicação da norma. nação do lançamento serão reunidas em

134 Revista de Informação Legislativa


um único processo, para serem decididas deve desconsiderar os atos negócios jurí-
simultaneamente no processo tributário dicos praticados com simulação, aplicando
administrativo. o direito tributário aos atos e negócios efe-
Todos os dispositivos da Medida Provi- tivamente postos em prática pelas partes.
sória 66/2002 que tratavam da norma do O entendimento tradicional na dou-
art. 116, parágrafo único, do CTN foram trina brasileira é o de que a simulação só
rechaçados pelo Congresso Nacional, e ocorre quando as partes de um negócio
por isso mesmo retirados do ordenamento jurídico declaram, num contrato ou numa
jurídico. Desde então, o Poder Executivo escritura, algum fato ou um dado concreto
deixou de enviar propostas ao Congresso que se mostra falso (p.ex. declara-se que o
Nacional para fins de definição dos pro- preço de venda de um imóvel é de R$ 500
cedimentos de aplicação da norma geral mil, mas o vendedor recebe do comprador
antielusão, por motivos que ficarão claros de fato R$ 1 milhão). Ou então se as partes
na exposição do item a seguir. omitem ou escondem, num contrato ou
numa escritura, um fato real que nega o que
4.6. O conceito amplo e causalista de simulação está declarado no documento. A simulação
como a efetiva norma geral antielusão em seria portanto uma questão de “fingimen-
vigor no ordenamento brasileiro. Análise to ou manipulação dos fatos praticados”
da jurisprudência brasileira (tribunais (TORRES, 2007, p. 334), com intuito de lesar
administrativos e judiciais) a terceiros, inclusive o fisco.
O art. 116, parágrafo único, do CTN foi Essa visão considera a divergência
criado em 2001 para, segundo a Exposição entre a vontade interna e a vontade manifesta
de Motivos do projeto de lei complementar como o principal requisito da simulação
elaborado pelo Poder Executivo, combater (MOREIRA ALVES, 2001, p. 64-65; VENO-
os procedimentos de planejamento tribu- SA, 2003, p. 467; PONTES DE MIRANDA,
tário praticados com abuso de forma ou 1954, p. 53). Na clássica explicação do
de direito. Portanto, a percepção do Poder jurista italiano Ferrara, na simulação a
Executivo era de que o ordenamento não “não-conformidade entre o que se quer e o
contava ainda com uma norma geral antie- que se declara é comum a ambas as partes
lusão. Como até o presente momento não e concertada entre elas” (FERRARA, 1999,
foram definidos os procedimentos para a p. 52). Segundo essa concepção, que pode
aplicação da referida norma, que permane- ser considerada como restritiva, somente há
ce numa espécie de limbo jurídico, poder- simulação se as partes mentem sobre fatos
-se-ia pensar que o ordenamento brasileiro ou sobre dados concretos, escondendo-os
segue desprovido de uma norma geral que ou inventando-os, total ou parcialmente,
combata os planejamentos tributários tidos qualitativa ou quantitativamente. Por isso
por abusivos. Ricardo Lobo Torres (2007, p. 345) afirma
Contudo, a análise da jurisprudência do que na simulação “discute-se sobretudo a
Conselho de Contribuintes do Ministério respeito da matéria de fato”, e a prova “é
da Fazenda (atual Conselho Administra- seu ponto nevrálgico”.
tivo de Recursos Fiscais) e dos tribunais Contudo, o conceito de simulação é, no
do Poder Judiciário não deixa dúvidas de âmbito do próprio direito civil brasileiro,
que os planejamentos tributários abusivos bastante controverso. Ainda que nem sem-
são combatidos pela Administração e pelos pre deixem isso explícito, diversos civilistas
juízes pela aplicação de uma norma geral definem e aplicam o conceito de simulação
antielusão alternativa. Essa norma alterna- com base numa visão causalista. A causa dos
tiva é aquela que determina (art. 149, VII, negócios jurídicos pode ser definida como
do CTN) que a autoridade administrativa o “fim econômico ou social reconhecido

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 135


e garantido pelo direito, uma finalidade de uma “declaração em desacordo com o
objetiva e determinante do negócio que objetivo proposto [pelas partes], ou, o que é
o agente busca além da realização do ato o mesmo, uma declaração com causa falsa”
em si mesmo” (PEREIRA, 2005, p. 505). A (CASTRO Y BRAVO, 1985, p. 336).
causa é portanto o propósito, a razão de Tanto na concepção causalista, quanto
ser, a finalidade prática que se persegue na concepção restritiva vista anteriormen-
com a prática de determinado negócio te, o negócio simulado é visto como “não
jurídico (CLAVERÍA GOSÁLBEZ, 1998). verdadeiro”. Mas isso a partir de perspec-
Orlando Gomes inclusive promove uma tivas diferentes. Com efeito, na perspectiva
classificação dos negócios jurídicos com causalista haverá simulação mesmo que
base nas causas típicas de cada um deles (a as partes não inventem nem escondam de
cada negócio “corresponde causa específica ninguém um fato ou um dado específico no
que o distingue dos outros tipos”): o seguro bojo de cada um dos negócios praticados.
é, por exemplo, um negócio jurídico cuja Na jurisprudência do antigo Conselho
causa é a “prevenção de riscos”, ao passo de Contribuintes do Ministério da Fazenda
que o contrato de sociedade tem como cau- (atual CARF), esse conceito causalista de
sa uma associação de interesses, compondo simulação é a norma geral com a qual se
a categoria dos “negócios associativos” combatem os planejamentos tributários
(GOMES, 1977, p. 364-365). tidos por abusivos. E isso não é um fenô-
Muitos autores consideram a simulação meno somente brasileiro. Uma pesquisa
não como um problema de divergência promovida pela IFA no ordenamento de
entre a vontade interna e a vontade de- diversos países chegou à conclusão de que o
clarada, mas sim como um vício na causa dos instituto da simulação tem uma amplitude
negócios, no sentido de que as partes usam distinta segundo seu papel pragmático no
determinada estrutura negocial (compra e ordenamento tributário: quanto maior é o
venda) para atingir um resultado prático espaço de atuação de uma típica norma ge-
(doar um patrimônio) que não corresponde ral antielusão, menor é o raio de amplitude
à causa típica do negócio posto em prática. do conceito de simulação, e vice-versa. O
Na formulação de Orlando Gomes sobre a Relator Geral das conclusões de referida
simulação relativa, “ao lado do contrato pesquisa notou que, em países sem típicas
simulado há um contrato dissimulado, que normas gerais antielusão, a fundamentação
disfarça sua verdadeira causa” (GOMES, que o fisco e a doutrina utilizam para indi-
1977, p. 516). car que houve simulação é muito parecida
Os autores causalistas afirmam que na com a lógica de funcionamento das típicas
simulação não há propriamente um vício normas gerais antiabuso (ZIMMER, 2002,
do consentimento (como no erro ou no p. 30-31).
dolo), pois as partes consciente e delib- Na jurisprudência brasileira, é cada vez
eradamente emitem um ato de vontade mais comum o contribuinte escudar-se na
(ABREU, 1988, p. 276-277). O que ocorre teoria do negócio jurídico indireto para
é que o ato simulado não corresponde aos demonstrar a inexistência de ato simulado,
propósitos efetivos dos agentes da simu- mas os julgadores aplicam um conceito
lação. Por isso diversos autores veem na amplo de simulação, que leva em conta as
simulação uma “divergência consciente circunstâncias do caso concreto e indaga a
entre a intenção prática e a causa típica do substância real do negócio.
negócio” (BETTI, 2003, p. 277). O espanhol Até 1996, todos os julgados da Câmara
Federico de Castro y Bravo sustenta que a Superior de Recursos Fiscais do Conselho
natureza específica da simulação não é a de de Contribuintes do Ministério da Fazenda
“uma declaração vazia de vontade”, mas a adotavam a postura de que, se a incorpora-

136 Revista de Informação Legislativa


ção de uma empresa por outra se fez confor- Região seguiram a mesma linha da nova
me os trâmites formais previstos no direito tendência jurisprudencial do Conselho de
privado, não havia simulação e a autorida- Contribuintes.
de fiscal não poderia desconsiderá-la para Três notas merecem destaque
efeitos tributários. Mas, num julgamento no julgamento da Apelação Cível n o
de 1996 (Acórdão CSRF/01-02.107), a CSRF 2004.71.10.003965-9/RS, Relator Desembar-
passou a lançar mão de um conceito mais gador Federal Dirceu de Almeida Soares (2a
amplo de simulação, para coibir operações Turma, DJ 06.09.2006). A primeira é que o
artificiosas que, para atrair a aplicação de acórdão fez a distinção tradicional entre
uma norma tributária benéfica (como a de elisão fiscal (utilização de meios lícitos e
compensação de prejuízos fiscais) que de diretos, anteriormente à ocorrência do fato
outra forma não seria aplicável, usam a gerador, para evitar ou minimizar a tribu-
estrutura formal de contratos e outros ins- tação) e evasão fiscal (utilização de meios
titutos jurídicos esvaziando-os de qualquer ilícitos para reduzir a carga tributária, pos-
substância jurídica real. teriormente à ocorrência do fato gerador),
Duas notas desse conceito amplo de para concluir que é admitida a elisão fiscal
simulação (que propomos chamar de quando não houver simulação do contri-
simulação-elusão) merecem destaque. Por buinte. Mas o conceito de simulação ado-
um lado, a simulação passa a ser um con- tado pelo acórdão foi um conceito amplo,
ceito mais fluido e dinâmico, que indaga o que leva em conta as condições econômicas
grau de “artificialidade” do planejamento e operacionais da operação como um todo.
tributário (p. 9 do voto do relator no Ac. A segunda nota é que o acórdão não
CSRF/01-02.107) e, levando em conta os tomou como sinônimas as expressões
“verdadeiros efeitos econômicos subjacen- simulação e evasão, na medida em que
tes”, não consente que o aplicador fique distinguiu a evasão ou fraude fiscal (utiliza-
“aprisionado aos princípios do direito ção de meios ilícitos para ocultar, enganar,
privado no que diz respeito à definição dos iludir o fisco) da elisão fiscal com simulação
efeitos tributários dos atos e fatos jurídicos” (utilização de meios lícitos, porém indiretos,
(p. 11 do voto do relator no Ac. CSRF/01- anteriormente à ocorrência do fato gerador,
02.107). Por outro lado, a jurisprudência para burlar norma tributária, com vistas à
mais recente das Câmaras do 1o Conselho redução ou à eliminação da tributação por
de Contribuintes vem distinguindo essa meio da realização de negócios jurídicos
simulação-elusão da tradicional simulação- artificiais e desprovidos de qualquer racio-
-evasão-sonegação (prevista nos arts. 71 a nalidade negocial).
73 da Lei 4.502/64) e não vem aplicando Um terceiro aspecto que merece ser con-
à primeira as multas agravadas previstas siderado é que o acórdão não só examinou a
para a segunda. operação do ponto de vista econômico, para
No âmbito da jurisprudência dos concluir que as circunstâncias levavam à
tribunais do Poder Judiciário22, em duas inviabilidade da operação de incorporação
recentes decisões colegiadas, proferidas da empresa superavitária pela empresa de-
nas Apelações Cíveis 2004.71.10.003965- ficitária, como também examinou outros as-
9/RS e 2002.04.01.014021-6/RS, a 1a e a 2a pectos relacionados a questões societárias,
Turma do Tribunal Regional Federal da 4a como a manutenção, após a incorporação,
da razão social, do estabelecimento, dos
22
A investigação da jurisprudência dos tribunais funcionários e dos membros do Conselho
administrativos e do Poder Judiciário sobre o conceito
de simulação para efeitos tributários foi feita em con-
de Administração. Ou seja, após a análise
junto com a Dra. Andrea Karla Ferraz, a quem também global da situação, e não apenas do ato de
se atribuem as conclusões expostas no presente estudo. incorporação isoladamente considerado,

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 137


concluiu o Tribunal que restou demons- nas operações realizadas”. Mas o acórdão
trado que, de fato, a incorporada é que subscreveu a conclusão da sentença, segun-
“absorveu” a deficitária/incorporadora, e do a qual há simulação se a operação “não
não o contrário, “tendo-se formalizado o refletir a realidade econômica do negócio”
inverso apenas a fim de serem aproveitados ou se o negócio “for realizado com o único
os prejuízos fiscais da empresa deficitária, objetivo de permitir o aproveitamento de
que não poderiam ter sido considerados prejuízos fiscais ou de balanços negativos
caso tivesse sido ela a incorporada, e não para a redução da carga tributária”.
a incorporadora, restando evidenciada, Num exemplo de como o tribunal valo-
portanto, a simulação.” rizou aspectos negociais e econômicos da
Contudo, no julgamento da Apelação operação, foi ressaltado o fato de que, nas
Cível 2002.04.01.014021-6/RS (Relatora duas últimas incorporações, o pagamento
Desembargadora Federal Maria Lúcia Luz pela aquisição do controle das empresas
Leiria – DJ 22.06.2005), a 1a Turma do TRF que posteriormente viriam a ser incor-
da 4a Região buscou marcar a diferença poradoras foi feito pela própria empresa
entre a elisão fiscal eficaz e a ineficaz, incorporada, em momento anterior à incor-
valendo-se da tese de que se configura eli- poração. Numa postura bastante realista e
são fiscal se o ato de evitar o recolhimento atenta à causa concreta da operação naquele
do tributo ocorreu em momento anterior à caso em particular, a sentença confirmada
ocorrência do fato gerador. Contudo, se já pelo acórdão observou que “no mundo dos
ocorrido o fato gerador, a solução para o negócios as coisas não acontecem dessa
não pagamento do tributo devido configura maneira; claramente o que ocorreu foi a
evasão fiscal. inversão de papéis com o objetivo de lograr
A despeito de se utilizar de um aspecto a situação fiscal mais favorável”.
insuficiente para fazer a distinção entre A conclusão é que o TRF da 4a Região
elisão e evasão fiscal, qual seja o momento julgou a questão aplicando um conceito
em que ocorrido o fato gerador do tributo, ampliado de simulação, identificando a
chama a atenção o fato de que o acórdão causa concreta das incorporações efetuadas
não analisou somente a última operação do pelas empresas Josapar e Rexnord, com-
negócio, mas todo o conjunto fático-proba- parando-a com a causa típica do contrato
tório, inclusive o substrato econômico da de incorporação, para concluir – num tom
operação, para concluir que existiu uma claramente causalista – que “não é lícito
incongruência entre a realidade dos fatos que se realizem cisões, incorporações ou
e a argumentação ou a pretendida atitude fusões levadas não pelo conteúdo próprio
das partes envolvidas. desses negócios, mas sim de modo diferente
No caso concreto da Apelação Cível da forma que tais negócios normalmente
2002.04.01.014021-6/RS (empresa Rex- se realizam, mediante incorporação das
nord), houve diversas incorporações às empresas deficitárias pelas lucrativas, das
avessas ao longo do tempo: uma mesma empresas de menor patrimônio pelas de
empresa (Rexnord Correntes) formalmen- maior patrimônio”. Restou clara, assim,
te “morria” (visto que era incorporada) e a adesão do tribunal a uma posição que
materialmente “renascia” (pois a empresa se dispõe (independente do resultado a
incorporadora passava a adotar todas as que se chegue em cada caso) a avaliar a
características operacionais e societárias operação no seu todo, levando em conta
da empresa incorporada) várias vezes. O as circunstâncias que compõem a causa
contribuinte se batia por uma aplicação for- concreta do negócio, e dessa forma medir
malista do conceito de simulação, alegando o quão artificioso foi o caminho escolhido
que “não existem falhas formais ou legais pelo contribuinte.

138 Revista de Informação Legislativa


O contribuinte (empresa Josapar) que CC a maneira pela qual o TRF interpretou e
saiu perdedor na AC 2004.71.10.003965-9/ aplicou o instituto da simulação. Portanto,
RS interpôs recurso especial dirigido ao é manifestamente errônea a assertiva do
Superior Tribunal de Justiça, alegando que Relator do acórdão do STJ segundo a qual
o acórdão recorrido violou o dispositivo do “não há controvérsia quanto à legislação
Código Civil que dispõe sobre os casos em federal”. Havia claramente uma controvér-
que se configura simulação. Sua alegação sia de mérito: tratava-se de duas posições
foi a de que houve violação ao “art. 102 do antagônicas (a do recorrente e a do acórdão
CC/1916, pois a operação de incorporação recorrido) sobre o conteúdo do conceito
realizada foi lícita e não representou simu- jurídico de simulação.
lação para evasão de tributos”. A 2a Turma do STJ, no caso concreto,
De fato, caso se utilize o conceito restriti- confundiu o pleito de reexame fático de
vo e tradicional de simulação, que se recusa provas levadas em conta no acórdão recor-
a ver determinado ato jurídico no contexto rido (vedado no âmbito do recurso especial)
amplo de toda uma estrutura negocial e com o pleito – perfeitamente cabível e
econômica posta em prática em busca de mesmo natural no âmbito do recurso es-
certa finalidade concreta, o acórdão do TRF pecial – de nova valoração jurídica de fatos
da 4a Região pode ser visto como um caso incontroversos estabelecidos nas instâncias
de violação aos dispositivos do Código inferiores.
Civil que regulam o instituto jurídico da Se do ponto de vista processual o STJ
simulação. se recusou indevidamente a enfrentar o
Por isso mesmo o veredicto do STJ nesse mérito da questão, o fato é que, de um
processo específico era muito esperado tan- ponto de vista pragmático, o acórdão do
to pelo fisco quanto pelos contribuintes em STJ pareceu apoiar a postura interpretativa
geral, pois, conforme o art. 105 da Consti- do TRF da 4a Região. O seguinte parágrafo,
tuição Federal de 1988, cabe exatamente ao contido no voto do Relator Ministro Her-
STJ a função de uniformizar a interpretação man Benjamin, indica que implicitamente
da legislação federal – no caso concreto, a o STJ concordou com a valoração jurídica
legislação que dispõe sobre o conceito de efetuada pelo TRF da 4a Região, ou seja,
simulação. com a maneira causalista pela qual o acór-
Do ponto de vista estritamente proces- dão recorrido concebeu e aplicou ao caso
sual, a 2a Turma do STJ se recusou a entrar concreto o instituto da simulação:
no mérito da ocorrência de violação do “Assim, para chegar à conclusão
acórdão do TRF ao art. 102 do Código Civil, de que houve simulação, o Tribu-
alegando que para entrar nesse mérito teria nal de origem apreciou cuidadosa
que proceder à “análise de todo o arcabou- e aprofundadamente os balanços
ço fático apreciado pelo Tribunal de origem e demonstrativos de Supremo e
e adotado no acórdão recorrido, o que é Suprarroz [empresas envolvidas na
inviável em Recurso Especial, nos termos incorporação], a configuração socie-
da Súmula 7/STJ”. A nosso ver, essa razão tária superveniente, a composição
processual dada para o não conhecimento do conselho de administração, as
do recurso não procede, pois o contribuin- operações comerciais realizadas pela
te não pedia em seu recurso especial que empresa resultante da incorporação.
o STJ revisse algum aspecto estritamente Concluiu, peremptoriamente, pela
fático quanto às provas produzidas e va- ‘inviabilidade econômica da opera-
loradas nas instâncias inferiores. O que o ção’ simulada” (fl.1.133, verso).
contribuinte requeria é que o STJ decidisse A empresa recorrente defendia em seu
se estava ou não acorde com o art. 102 do recurso especial que o conceito de simula-

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 139


ção agasalhado no Código Civil só permite ocultação e divergência entre vontade real
avaliar isoladamente cada ato jurídico, e e declarada, o STJ preferiu relacionar o
não consente com que se leve em considera- tema da simulação com a constatação do
ção aspectos como a situação dos balanços artificialismo da concatenação negocial e
contábeis, a configuração societária super- com a “inviabilidade econômica da ope-
veniente à incorporação, a mudança na ração”. Ao decidir, nesses termos, pela
composição do Conselho de Administração manutenção do acórdão proferido pelo
etc. Ora, se o TRF da 4a Região decidiu com Tribunal de origem, o STJ corroborou o
base exatamente nesses aspectos, e o STJ conceito causalista de simulação adotado
considerou que ocorreu no acórdão recor- pelo TRF da 4a Região, considerando como
rido uma apreciação cuidadosa e aprofundada válida a solução interpretativa e aplicativa
de determinados fatos que apontavam a de buscar a verdadeira causa concreta de
“inviabilidade econômica da operação”, atos e negócios jurídicos artificiosos postos
então houve implicitamente a emissão de em prática pelos contribuintes e terceiros, e
um juízo por parte do STJ, segundo o qual o verificar suas possíveis incompatibilidades
conceito de simulação deve sim ser sensível com a causa típica em função da qual o
a tais ordens de fatos e circunstâncias, ao ordenamento concebeu e regulou referidos
contrário do que sustentava a tese de mérito atos e negócios jurídicos.
do recurso especial do contribuinte. Em suma: atualmente a jurisprudência
Relembre-se que o que o contribuinte brasileira (administrativa e judicial) com-
sustentava é que a simulação (definida bate os planejamentos tributários tidos por
como divergência entre a vontade interna e abusivos com a aplicação de um conceito
a vontade manifesta) só ocorre se as partes amplo e causalista de simulação, conceito
de um negócio jurídico enganam, ocultam, esse que exerce, do ponto de vista prag-
iludem ou dificultam a autuação fiscal, tal mático, o papel de norma geral antielusão
como se dá nos casos clássicos de simu- do ordenamento. Portanto, ainda que os
lação presentes na doutrina tradicional: procedimentos para aplicação do art. 116,
compra e venda em que na verdade não parágrafo único, do CTN não tenham sido
há pagamento do preço (simulação para até o presente momento definidos pelo
fugir ao imposto sobre doações), compra legislador, os objetivos que esse mesmo
e venda com preço declarado inferior ao legislador perseguia com a criação de re-
efetivamente pago (simulação para fugir ferida norma são atualmente alcançados,
ao imposto de renda sobre o ganho de ainda que por uma via distinta.
capital), contrato de prestação de serviços
sem que tenha havido prestação efetiva 5. À guisa de conclusão: sugestão
nem pagamento do preço (simulação para
de alterações legislativas no
lastrear dedução de despesas na base de
ordenamento brasileiro
cálculo do imposto de renda).
Mas o acórdão do STJ afirmou que “não As propostas que ora fazemos não se di-
se trata de discutir a regularidade formal rigem a viabilizar o funcionamento prático
da incorporação, como faz a recorrente”, de uma norma geral antielusão no Brasil,
e reconheceu que o TRF levou em conta pois em nossa jurisprudência já há uma
diversos aspectos contábeis, operacionais e norma geral em funcionamento, como se
societários para afirmar que foi a empresa viu na seção anterior.
incorporada que “de fato” incorporou a A primeira questão que se deve enfren-
pretensa empresa incorporadora. Ao invés tar é se é ou não recomendável combater
de levar em conta os topoi do conceito tra- os planejamentos tributários abusivos
dicional de simulação, tais como falsidade, de um modo distinto do atual, com uma

140 Revista de Informação Legislativa


norma geral distinta da que atualmente é regime dos procedimentos para aplicação
reconhecida pela jurisprudência brasileira. da norma?
Nossa opinião é que é recomendável essa Pensamos que a própria redação do art.
mudança, pois o atual sistema, ainda que 116, parágrafo único, deve ser alterada, de
não chegue a ser inconstitucional, gera modo a introduzir no texto legal referências
uma carga excessiva e desnecessária de mais claras e concretas aos critérios com
insegurança. base nos quais a autoridade administrativa
São dois os principais problemas do sis- poderá promover a desconsideração de
tema atual. Em primeiro lugar, um mesmo atos e negócios jurídicos. Esses critérios po-
instituto jurídico – a simulação – é utilizado dem perfeitamente ser os utilizados pelas
para combater situações bem distintas do normas portuguesa, espanhola e alemã, ou
ponto de vista fiscal: os casos de sonega- seja, os critérios de notória artificiosidade e
ção/defraudação e os casos de elusão. Pen- de inexistência de efeitos econômicos ou ju-
samos que esses dois grupos de possíveis rídicos relevantes, distintos da economia de
condutas do contribuinte devem ter um tributos e distintos dos efeitos derivados de
tratamento claramente distinto por parte uma formalização jurídica não abusiva dos
do ordenamento. Com o sistema atual, ora propósitos práticos buscados pelas partes.
os planejamentos tidos por abusivos são A introdução desses critérios no próprio
equiparados a atos de sonegação e sofrem texto do art. 116, parágrafo único, do CTN
imposição de pesadas multas administra- teria resultados muito positivos. Em pri-
tivas, ora são vistos como um tipo distinto meiro lugar, acabaria com a ambiguidade
de simulação e, portanto, se veem livres de quanto ao sentido do verbo “dissimular”
multas agravadas, sem que exista um claro utilizado pela norma. Em segundo lugar,
e racional discurso aplicativo que permita daria à Administração e à jurisprudência
distinguir as razões que levam a uma ou ou- uma orientação mais concreta sobre como
tra solução. Em segundo lugar, atualmente se devem estabelecer os limites entre o
a desconsideração administrativa de atos e planejamento artificioso/abusivo e o plane-
negócios jurídicos é feita sem respeitar um jamento lícito, diminuindo sensivelmente
procedimento que garanta que o contri- o risco de que cada autoridade adminis-
buinte possa, antes de se tomar a decisão trativa ou cada tribunal administrativo ou
por desconsiderar ou não os seus atos, judicial interprete e aplique de forma radi-
conhecer os fatos que levam a autoridade calmente distinta a norma geral antielusão.
fiscal a considerar que seu planejamento é Essa definição dos critérios com base
abusivo e produzir os argumentos e provas nos quais a autoridade administrativa
que considere pertinentes. Vale dizer: atu- poderá promover a desconsideração de
almente os objetivos do art. 116, parágrafo atos e negócios jurídicos deve também ser
único, do CTN (combate dos planejamentos acompanhada por uma norma legal que
com abuso de forma jurídica) vêm sendo defina que, na presença desses critérios,
perseguidos, sem que as garantias proce- afasta-se a qualificação de simulação, sob
dimentais para a aplicação da norma sejam pena de continuar operando a atual norma
oferecidas ao contribuinte. geral antielusão representada pelo conceito
Aceita a premissa de que se deve alterar amplo e causalista de simulação.
a via pela qual atualmente se combate a Alterada a redação do art. 116, pará-
elusão, a primeira questão que se coloca é: grafo único, do CTN no sentido acima
deve ser alterada a redação do próprio art. proposto, coloca-se a questão de como
116, parágrafo único, do CTN por meio de regular os procedimentos para aplicação da
uma lei complementar, ou deve ser sim- norma. Nesse particular, pensamos que os
plesmente disciplinado por lei ordinária o procedimentos estabelecidos nos arts. 15 a

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 141


19 da Medida Provisória 66/2002 são bas- existem há tempos na legislação tributária23,
tante satisfatórios, visto que asseguram ao que a administração aplica de ofício e com
contribuinte a oportunidade de conhecer os sujeição ao controle posterior dos conselhos
fatos com base nos quais o servidor pensa de contribuintes e do poder judiciário. A
estar configurada a elusão, e sobre esses paridade entre membros da administração
fatos poder produzir provas e argumentos e da sociedade civil já está garantida no
antes que a decisão pela desconsideração Conselho Administrativo de Recursos Fis-
esteja tomada (art. 16, §§ 1o e 2o, da MP cais, ao qual o contribuinte poderá recorrer
66). Além disso, os procedimentos aí pre- em caso de considerar que a aplicação do
vistos exigem que tanto a representação dispositivo não se deu de acordo com o
do servidor (art. 16, § 3o) quanto a decisão ordenamento jurídico em vigor.
da autoridade superior que eventualmen- Quanto à aplicação de sanções aos casos
te decidir pela desconsideração (art. 17, § de elusão, consideramos que a cominação
1o) sejam racionalmente fundamentadas, de multas administrativas para os casos de
com a exigência de expressa especificação elusão pode apresentar dúvidas de consti-
dos atos ou negócios praticados, dos ele- tucionalidade, pois o pressuposto de fato de
mentos ou fatos caracterizadores de que normas sancionatórias deve ser desenhado
os atos ou negócios jurídicos teriam sido com o máximo de precisão conceitual, e
praticados com abuso, dos atos ou negócios os limites conceituais do planejamento
equivalentes aos praticados, e do resultado tributário abusivo apresentam um grau de
tributário produzido pela adoção dos atos indeterminação que podem ser vistos como
ou negócios equivalentes. incompatíveis com o chamado princípio
Ainda com relação a esses procedimen- sancionatório da lex certa (GODOI, 2005,
tos, consideramos que não se deve optar p. 243-245).
por reservar a uma comissão de expertos Por fim, consideramos que a definição
ou de autoridades centrais da administra- dos elementos conceituais, dos procedi-
ção tributária a decisão por desconsiderar mentos e das consequências da aplicação
ou não os atos e negócios praticados com da norma geral antielusão deve ser acom-
abuso. A experiência espanhola demonstra panhada do estabelecimento, pela lei, de
que tornar o procedimento de desconsi- um dever de informação detalhada sobre os
deração demasiado específico, e fazê-lo atos de planejamento tributário, indepen-
depender do funcionamento de uma dentemente de sua qualificação como lícitos
Comissão centralizada tem o efeito de ou abusivos. Trata-se de obrigar os sujeitos
aumentar consideravelmente o risco de a passivos que implementem operações de
norma geral antielusão simplesmente não planejamento tributário cuja economia
sair do papel. alcançada supere determinada quantia
Marco Aurelio Greco (2011) propõe 23
Ao contrário de Marco Aurelio Greco (2011), não
que o art. 116, parágrafo único, do CTN vemos na norma geral do art. 116, parágrafo único,
seja aplicado com base no parecer de uma do CTN uma manifestação de eficácia positiva do
comissão formada paritariamente por princípio de capacidade contributiva, que permitiria
membros da administração e da socieda- ao aplicador corrigir uma situação anti-isonômica e
submeter determinada conduta à tributação, mesmo
de civil. O propósito dessa proposta é de reconhecendo não ter ocorrido o fato gerador do
fato elogiável: trazer legitimidade e mais tributo, nem ter agido o contribuinte com fraude à lei
abertura valorativa para a aplicação do ou abuso do direito. Em nossa opinião, o art. 116, pará-
dispositivo. Contudo, não vemos na nor- grafo único, do CTN é a via pela qual a Administração
pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos em que
ma geral antiabuso uma natureza assim há fraude à lei ou abuso do direito, conceitos jurídicos
tão distinta das demais cláusulas abertas presentes nas normas gerais antiabuso contidas no or-
e conceitos jurídicos indeterminados que denamento da generalidade dos países desenvolvidos.

142 Revista de Informação Legislativa


a informar à Administração, de maneira tributários postos em prática pelos con-
detalhada e no mesmo exercício fiscal em tribuintes não incidiria na definição das
que as operações tenham sido praticadas, hipóteses em que um planejamento tribu-
quais foram os atos societários e comerciais tário se considera abusivo ou não. Poderia
que compuseram o planejamento, seja no ocorrer, por exemplo, que um contribuinte
Brasil ou no exterior. providenciasse o envio das informações
Esses deveres de ampla e detalhada sobre determinado planejamento e a Ad-
informação já existem sob diversas moda- ministração, considerando o caso como
lidades na legislação de alguns países, e um planejamento lícito, nada tivesse que
recentemente foram objeto de um estudo lançar.
específico do Comitê de Assuntos Fiscais Em suma, com as propostas de previsão
da OCDE (2011). Com a existência desses legislativa de critérios substantivos para
deveres de informação, acompanhada da identificação dos casos de aplicação do art.
previsão de sanções administrativas para 116, § 1o, do CTN e de criação de deveres de
os sujeitos passivos que não os cumprirem, informação detalhada sobre os planejamen-
somente estariam livres de multas adminis- tos tributários realizados, consideramos
trativas as situações de elusão fiscal em que que haveria sensíveis melhoras no que diz
o contribuinte tenha informado detalhada respeito ao grau de transparência, justiça e
e tempestivamente sobre as operações co- segurança jurídica do sistema de combate
merciais e societárias por meio das quais aos planejamentos tributários abusivos.
engendrou seu planejamento tributário.
Com efeito, no sistema atual, é uma
meia verdade a afirmação de que nos casos
Referências
de planejamento tributário não simula-
do – seja lícito, seja com abuso de formas ABREU, José. O negócio jurídico e sua teoria geral. São
jurídicas – os contribuintes nada ocultam Paulo: Saraiva, 1988.
nem escondem da Administração. No sis-
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tema atual, os contribuintes que põem em Comentarios a la Reforma de la Ley General Tributaria.
prática complexas e sofisticadas operações Pamplona: Aranzadi, 1996.
de planejamento tributário – quase sempre
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 13. ed.
com atos e negócios praticados também no São Paulo: Saraiva, 2007.
exterior – têm somente o dever de fazer re-
ARRIETA MARTÍNEZ DE PISÓN, Juan et al (Coord.).
fletir tais operações em suas demonstrações
Tratado sobre la Ley General Tributaria. Cizur Menor:
financeiras e em suas declarações, como a Aranzadi, 2010. v. 1.
do imposto sobre a renda. Contudo, isso
ATALIBA, Geraldo. Apontamentos de Ciência das Finan-
está muito longe de um efetivo dever de
ças, Direito Financeiro e Tributário. São Paulo: Revista
propiciar à Administração o conhecimen- dos Tribunais, 1969.
to do contexto global dos planejamentos
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tributários. Com isso, os contribuintes
Saraiva, 1975.
que realizam sofisticados planejamentos
tributários internacionais se beneficiam da BALEEIRO, Aliomar. O Código Tributário Nacional,
segundo a correspondência de Rubens Gomes de Sou-
considerável probabilidade de que a fisca-
sa. In: BALEEIRO, Aliomar et al. Proposições tributárias.
lização tributária não consiga, dentro do São Paulo: Resenha Tributária, 1975. p. 5-33.
prazo de decadência, tomar conhecimento
BALLARD, Richard M; DAVISON, Paul E.M. Branch
das operações praticadas, nem do nexo
Report: United Kingdon. In: International Fis-
existente entre elas. cal Association (IFA). Form and substance in
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146 Revista de Informação Legislativa


Direito de Águas
Arranjo jurídico-institucional, política e gestão

Erivaldo Moreira Barbosa e


Maria de Fátima Nóbrega Barbosa

Sumário
1. Introdução. 2. Constituição federal e águas.
3. Infraconstitucionalidade (Lei de Águas no
9.433/97): paradigmas e racionalidade. 4. Infra-
constitucionalidade (Lei de Águas no 9.433/97):
instrumentos, dissensos e consensos. 5. Infra-
constitucionalidade (Lei de Águas no 9.433/97):
escassez e inclusão social. 6. Considerações finais.

1. Introdução
O Direito de Águas, denominado de
direito emergente, é um ramo do Direito
Público que vem ascendendo rumo ao pro-
cesso de autonomia didática, legislativa e
jurídica. Nas últimas décadas do século XX,
ganhou musculatura com a nova Política
Nacional de Recursos Hídricos – PNRH, e
a Instituição do Sistema Nacional de Geren-
ciamento de Recursos Hídricos – SNGRH.
Diante da importância despontada pelo
novel ramo jurídico, objetiva-se traçar um
panorama reflexivo do Direito de Águas
Erivaldo Moreira Barbosa é doutor em Re- do Brasil em suas relações com o recente ar-
cursos Naturais pela UFCG/PPGRN. Mestre em ranjo jurídico-institucional implementado,
Ciências Jurídicas pela UFPB/CCJ. Pós-Doutor permeado por articulações políticas, visan-
em Educação pela UFPB/PPGE. Professor e do ao alcance de uma gestão sustentável.
Orientador do (Doutorado, Mestrado, Especia- A investigação epistemológica em cur-
lização e Graduação) da Universidade Federal
so, em face de critérios metodológicos na
de Campina Grande (UFCG/PPGRN) e do
DINTER/UFCG-IFRN. delimitação do tema, secciona o processo
Maria de Fátima Nóbrega Barbosa é doutora histórico-jurídico do Direito de Águas e
em Recursos Naturais pela UFCG/PPGRN. adota como marcos temporais a promul-
Professora da Universidade Federal de Campina gação da Constituição da República de
Grande – UFCG/CCJS/UACC. Pesquisadora. 1988 e a Reforma do Estado Brasileiro de
Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 147
1995, como sendo início de processos de Observa-se que as águas doces contidas
mudanças do arranjo jurídico-institucional nos lagos, rios, águas fluentes pertencentes
hídrico nacional. em terrenos de titularidade da União, além
Após o exposto das mutações ocorridas, das águas fronteiriças que perpassem ao
decompõe-se esse Direito e analisam-se menos por dois Estados-Membros, ou então
as componentes estruturais desse arranjo as águas que saiam do Brasil para outros
institucional, por meio do método hermenêu- países contíguos ou migrem de países vizi-
tico-sistêmico (BARBOSA, 2010). Assim, os nhos e adentrem o território pátrio tornam-
paradigmas; o princípio da racionalidade -se, em face do mandamento constitucional,
do uso da água; os fundamentos e o ins- águas federais. O art. 26, inciso I, prevê ainda
trumento da cobrança pelo uso da água da que as águas internas, ou seja, decorrentes
PNRH; as agências de água e os comitês de de obras da União também se tornem águas
bacia hidrográfica do SNGRH; bem como a federais, pertencentes então à União.
escassez e a inclusão social, necessariamen- No que tange aos Estados-Membros, são
te, desvelam-se em dimensões relevantes no suas as águas superficiais e subterrâneas,
cenário do Estado e da sociedade brasileira. fluentes, emergentes e em depósitos que
À guisa de abertura investigativa, nasçam e deságuem no próprio território.
adverte-se que a água doce, direito funda- (art. 26, caput, primeira parte). A doutrina
mental da pessoa humana, jamais deve ser as denomina de águas estaduais. Pautadas
desconsiderada pelo Direito, pela política na analogia, as águas que estiverem nas
e pelo Estado. condições similares a essas descritas do art.
26, e emergirem e desaguarem no Distrito
Federal serão, pois, grafadas com a expres-
2. Constituição federal e águas
são águas distritais.
Antes da promulgação da Carta Ma- Quanto às Competências Constitucio-
ter/88, vigia no Brasil um Direito de Águas nais, somente a União e os Estados gozam
disciplinado pelo denominado Código de do direito de legislar sobre as águas. A
Águas de 1934 (BRASIL, 1934). O Texto União usufrui da permissão de criar e le-
Mater vigente modificou profundamente gislar sobre o direito de águas e os Estados-
o rumo da PNRH pátria, na medida em -Membros absorvem o poderio de legislar
que derrogou o Código de Águas, uma vez acerca da administração (gestão) das águas
que as águas particulares previstas nesse sob o seu domínio (POMPEU, 2006, p. 47).
diploma legal foram expurgadas do orde- É forçoso informar que os Municípios não
namento jurídico brasileiro. possuem o domínio ou titularidade das águas.
Atualmente, em conformidade com o Tão somente a esses são permitidos o direito
Diploma Excelsior de 1988, não mais exis- de uso das águas doces e o poder-dever
tem águas particulares. As águas, hodier- de zelar por esses recursos naturais, pre-
namente, são federais, estaduais ou, ainda, servando-os e evitando que determinadas
distritais. A melhor argumentação obriga pessoas físicas ou jurídicas pratiquem atos
que se mostre o artigo 20, abarcador da contributivos à degradação e à poluição das
extinção das águas particulares. Assim, a C. águas que fluem por seu espaço terrestre.
F. expõe que são bens da União: lagos, rios A Constituição Federal como Diploma
e quaisquer correntes de água em terrenos vetor, apesar de se preocupar com os recur-
de seu domínio, ou que banhem mais de um sos hídricos, não alçou as águas ao Título
Estado, sirvam de limites com outros paí- II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais,
ses, ou se estendam a território estrangeiro como reza a boa doutrina. Caso assim
ou dele provenham, bem como os terrenos procedesse, elencaria a água na esfera dos
marginais e as praias fluviais (art. 20, III). Direitos Sociais, incorporada no art. 6o.

148 Revista de Informação Legislativa


A Proposta de Emenda Constitucional busca promover novas ideias e desconstruir
– PEC1 – de inclusão da água como Direito valores tradicionais.
Fundamental é um porvir que tecnicamente Nesse período, o país passou por várias
vem desempenhando formalidades; toda- transições que marcaram o desenvolvimen-
via, os entraves ideológicos políticos vêm to dos recursos hídricos e o meio ambiente
retardando a aprovação e inserção da PEC no Brasil e a nível internacional (TUCCI,
no bojo constitucional. Ausculte-se que se 2005, p. 81). O Direito de Águas pátrio so-
o Texto erigir a água a esse plano, a mes- freu o influxo das mudanças e incorporou,
ma se positivará e ganhará fortalecimento, em seu texto hídrico regulamentador da
obrigando gestores, empresas, pessoas C.F./88, instituições planejadas nessa con-
jurídicas e físicas aos seus comandos. Em cepção reformadora. Um exemplo nítido é a
síntese, todas as pessoas do Brasil, sem Agência Nacional de Águas – ANA – criada
exceção, teriam, a partir da sua vigência, o pela Lei no 9.984, de 17 de julho de 2000,
direito de acesso à água potável, condição com atribuições de implementar a PNRH e
sine qua non à vida digna. coordenar o SNGRH (BRASIL, 2000).
A Carta Excelsior, em outro comparti-
mento, grafou que fosse instituído um siste- 3. Infraconstitucionalidade (Lei de Águas
ma nacional de gerenciamento de recursos no 9.433/97): paradigmas e racionalidade
hídricos, bem como se definissem critérios
de outorga de direitos de uso (art. 20, XIX). No Brasil, as águas doces são disci-
Destarte, essa regulamentação se deu com plinadas por dois comandos de grande
o advento da Lei de Águas no 9.433/97, magnitude jurídica: a Carta Federal e a Lei
instituidora da PNRH e criação do SNGRH. de Águas. As linhas disciplinares gerais
O processo de regulamentação da foram ditadas no Texto Mater/88, e sua
C.F./88 ocorreu no calor da Reforma do PNRH combinada com o SNGRH foram
Estado Brasileiro em meados dos anos detalhadas pela Lei de Águas 9.433/97
90, do século XX. Assim, adverte Pereira que decompõe o assunto hídrico de forma
(2002) que a tese fundamental desse novo estrutural e sistemático.
modelo de gerenciar o Estado permite aos A lei infraconstitucional em debate
administradores públicos intervirem em formatou um novo arranjo jurídico-insti-
cenários ambientais com maior eficiência. tucional que imprime mudanças no para-
Essa reforma amparou-se, em princípio, digma das águas e um reordenamento de
no documento básico o Plano Diretor da atribuições aos atores sociais (Poder Públi-
Reforma do Aparelho do Estado (1995), for- co, usuários e sociedade civil organizada).
mulado em 1995, contendo diretrizes para O paradigma de abundância da água,
a implementação da nova forma de gerir apesar de ainda vigorar em nosso país,
o Estado. Assim, arremata que essa refor- não tem mais a permissão legal para se
ma estatal vem sendo sustentada por três estabelecer em nossos limites territoriais,
pilares fundamentais: legal, institucional e uma vez que a Lei no 9.433/97 adicionou
cultural. Em resumo, Pereira (1998) diz que determinados fundamentos2 que impõem
é legal, por pautar-se em textos normativos; 2
Lei de Águas, no 9.433/97, art. 1o, Dos Funda-
é institucional, uma vez que se centra em mentos: a água bem de domínio público; a água é um
instituições públicas, mas não estatais, tais recurso natural limitado, dotado de valor econômico;
como, agências reguladoras; e cultural, pois em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos
hídricos é o consumo humano e a dessedentação de
1
Ver Proposta de Emenda Constitucional – PEC animais; a gestão dos recursos hídricos deve sempre
– que define a água como Direito Fundamental, em proporcionar o uso múltiplo das águas; a bacia hi-
tramitação no Congresso Nacional, especificamente, drográfica é a unidade territorial para implementa-
nesse momento, no Senado Federal. ção da PNRH e Atuação do SNGRH, e a gestão dos

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 149


mudanças culturais nos comportamentos e conseguem debelar os processos comple-
dos diversos atores. Afora os fundamentos, xos de poluição, degradação e deterioração
um princípio que jamais deve ser descuida- dos recursos naturais, especificamente, das
do intitula-se de princípio racional das águas. águas. Ainda que conseguisse tal intento,
Racionalidade hídrica significa di- os custos operacionais seriam por demais
zer que não se devem usar as águas em altos, tornando-os, assim, impraticáveis ao
abundância, com desperdício, de forma processo de gestão. Por outro lado, adicio-
imoderada. As águas, muito embora sejam nar inovações tecnológicas de per si não é
recursos naturais renováveis, são finitas suficiente, mas é necessário ao alcance de
e, portanto, devem obrigatoriamente ser uma gestão hídrica consistente.
utilizadas com parcimônia e muita reserva. Os processos de inovações tecnológicas
No cenário contemporâneo pátrio, as na gestão de águas aumentam considera-
campanhas de esclarecimentos procedi- velmente sua sinergia se forem utilizados
das na mídia ainda não surtiram o efeito em interação com o desenvolvimento de
desejado, talvez porque as poucas vezes pesquisas epistemológicas das universida-
que os noticiários foram veiculados vieram des e de investigações científicas dos insti-
ausentes dos princípios norteadores da tutos (TUNDISI, 2006, p. 34). Atente-se ao
educação ambiental, listados incialmente detalhe de que a tecnologia deverá ser sus-
no plano geral na Constituição no art. 25, tentável, vista do prisma socioambiental.
§ 1o, que afirma: incumbe ao Poder Público O princípio da racionalidade desloca-se
promover a educação ambiental em todos em múltiplas direções e alcança a moderna
os níveis de ensino e a conscientização pú- gestão ambiental e de águas, valendo-se
blica para a preservação do meio ambiente. da articulação de quatro instrumentos, a
Ora, planejar e ensinar uma temática de saber: I – os instrumentos tradicionais de
tamanha complexidade requer: 1. Com- Comando e Controle, próprios à operação
prometimento educacional dos poderes centralizada no Aparelho de Estado; II – a
federal, estaduais, municipais, distritais. construção de consensos sociais na defini-
2. Articulação desses atores por meio do ção de objetivos e no estabelecimento de
princípio federativo. 3. Simetria e não so- planos de intervenção, o que exige modelos
breposições de atribuições, funções e ações institucionais para a gestão compartilhada
entre os atores que compõem o sistema de responsabilidades; III – a esfera dos
federativo. 4. Mecanismos de controle efi- chamados instrumentos econômicos de
cazes e eficientes. 5. Engajamento de ONGs gestão, cuja natureza de indução descen-
ambientais/educacionais e outros setores tralizada do comportamento ambiental
da sociedade civil organizada. também implica arranjos institucionais de
O princípio da racionalidade das águas responsabilidades compartilhadas; e IV – o
alcança uma área extensa de atuação, isto campo de mecanismos de adesão voluntá-
porque incorpora, em seu interior, o uso, a ria, geralmente baseados em certificações
preservação e o consumo de forma susten- da qualidade dos processos e das formas
tável. É um princípio não captado em sua de produção ambientalmente corretas, mais
essência por Estado e sociedade, apregoa-se próprios ao espaço decisório dos agentes
em quase todos os discursos e já descam- privados. Essas diferentes esferas de atu-
ba ao campo da banalidade. O princípio ação, com suas respectivas vantagens e
racional não nos permite acreditar que os desvantagens, não são excludentes entre si.
procedimentos tecnológicos são ilimitados Os mecanismos devem atuar em conjunto
para se alcançarem efeitos satisfatórios no
recursos hídricos deve ser descentralizada e contar
com a participação do Poder Público, dos usuários e processo de gestão das águas (LOBATO,
das comunidades (BRASIL, 1997). 2004, p. 113).

150 Revista de Informação Legislativa


Observe-se que o princípio da racionali- arranjo institucional-hídrico à sociedade,
dade paira sobre os modelos institucionais em linguagem compreensível.
(tradicionais e modernos) ao exigir deter- A PNRH contém ao menos um instru-
minadas condutas éticas dos destinatários mento (a cobrança) que merece ser discuti-
da norma hídrica. Mas qual seria essa ética? do em virtude de ser o mais polêmico, pois
Infere-se que seja a ética comportamental tem gerado diatribes entre os gestores, pes-
do aceite da solidariedade e subsidiarieda- quisadores, membros de ONGs e demais
de que leva à permissão de responsabilida- atores sociais interessados na problemática.
des compartilhadas entre os atores sociais. A cobrança pelo uso de recursos hídri-
As posturas exigidas dos atores podem cos é um instrumento previsto na Lei no
ser compreendidas na Teoria da Ação Co- 9.433/97, art. 5o, inciso IV. Encontram-se
municativa de Habermas (2003), na qual os seus objetivos no art. 19, que busca: I –
é proposta uma racionalidade comunicativa, reconhecer a água como bem econômico e
que apesar dos conflitos e das contradições, dar ao usuário uma indicação de seu real
ruma em direção ao consenso e à compreen- valor; e II – incentivar a racionalização do
são até o ápice do processo decisório. Desse uso da água.
modo, nada impede que essas formulações Ao estabelecer os objetivos da cobrança
teóricas sejam efetivamente aplicadas em pelo uso da água a PNRH mostra, portan-
escala nacional da PNRH e do SNGRH. to, a novidade de permitir a cobrança de:
Entretanto, força-se dizer que ainda falta 1. Água disponível no ambiente – água
vontade política e consciência hídrico- bruta – como fator de produção ou bem
-ambiental para sua efetivação. de consumo final; e 2. Água disponível no
ambiente como receptor de resíduos – ca-
4. Infraconstitucionalidade (Lei de pacidade de assimilação de poluentes pela
água (LANNA, 2003, p. 442). O argumento
Águas no 9.433/97): instrumentos,
descrito é plausível e desmistificador da
dissensos e consensos
confusão propagada pelos detratores, uma
Um fator importante no tocante às vez que estes não diferenciam a cobrança
normas de recursos hídricos “se deve não de água bruta e água como efluentes da
à falta de leis, mas à sua implementação” cobrança pelo uso de serviços de captação,
(GRANZIERA, 2006, p. 109). Essa é uma tratamento e distribuição de água – serviços
frase curta com um raio de ação de longo de abastecimento a usuários domésticos.
alcance. O Brasil, que antes da C.F./88 e O princípio da racionalidade, já ex-
da Lei no 9.433/97 se ressentia de um ar- posto em tópico retro, poderá ter a sua
cabouço jurídico hídrico que abordasse a esfera de fruição elevada se o instrumento
água como um bem de domínio público, da cobrança for efetivamente alcançado?
usos múltiplos, dotada de valor econômico, Responde-se de forma afirmativa, mas, con-
descentralizada e participativa, a partir dicionada. A efetividade desse instrumento
dessas demarcações cronológicas não mais de cobrança de per si pode garantir o pleno
tem do que reclamar. Os meios já foram gozo do princípio da racionalidade, se esse
delineados no setor hídrico, iniciando-se mecanismo de cobrança funcionar com efi-
com a Reforma do Estado e concluídos ciência nos ecossistemas, daí inferir o uso
com a Carta e a Lei de Águas, faltando das águas encetando-se como dimensão
agora dar prosseguimento ao processo de importante da PNRH.
gestão, o qual deverá ser efetivado com a No tocante ao SNGRH, ora vinculado
adoção dos instrumentos da PNRH, de uma ao Título II da Lei de Águas no 9.433/97,
melhor articulação entre os atores sociais objetiva coordenar a gestão integrada das
estatais e a exposição democrática do novo águas; arbitrar administrativamente os con-

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 151


flitos relacionados com os recursos hídricos; figurantes da gestão de águas. Entretanto,
implementar a PNRH, bem como planejar, lhes falta incentivo político por parte do
regular e controlar o uso, a preservação e a Poder Executivo Federal. Apregoa-se na
recuperação dos recursos hídricos, além de mídia e nos fóruns políticos que a PNRH
promover a cobrança pelo uso de recursos não se consubstancia por culpa exclusiva
hídricos (BRASIL, 1997). Ademais, inte- da ANA. Ora, pura falácia; se assim fosse,
gram o SNGRH o Conselho Nacional de por que o Governo Federal não resolveu
Recursos Hídricos; a ANA; os Conselhos o problema da gestão hídrica antes da
de Recursos Hídricos dos Estados e Distrito implementação do novo arranjo jurídico-
Federal; os Comitês de Bacia Hidrográfica; -institucional formatado entre 1988-1997?
os órgãos dos poderes públicos federal, Atente-se que a ANA é somente uma das
estaduais, do Distrito Federal e municipais, componentes da totalidade do SNGRH e
cujas competências se relacionem com suas atribuições dependem forçosamente
a gestão de recursos hídricos, além das de fluência das articulações entre a União,
Agências de Água. os Estados-Membros, o Distrito Federal e
Do exposto, ousa-se dizer que a ANA os Municípios.
(BRASIL, 2000) e os Comitês de Bacia Na seara do Direito Administrativo
Hidrográfica são vistos como pontos de Brasileiro – DAB – podem ocorrer duas situ-
tensões em torno da gestão de águas. A ações circundantes nas Agências Regulado-
ANA, parte integrante do SNGRH, é uma ras: 1. Realização de atividades econômicas;
autarquia sob o regime especial, com auto- e 2. Prestação de serviços públicos (FILHO,
nomia administrativa e financeira, vincula- 2006, p. 400). O nosso interesse concentra-
da ao Ministério do Meio Ambiente, com a -se no tópico 2 (dois), uma vez que a ANA
finalidade de implementar, em sua esfera é uma autarquia especial que tem por fun-
de atribuições, a PNRH. Sua natureza autár- ção precípua atuar na prestação de serviço
quica é peculiar, na medida em que goza de público em torno da água e em nome do
privilégios em face da independência finan- interesse público. A prestação de serviços pú-
ceira, administrativa e na estabilidade dos blicos é uma função administrativa de Esta-
seus dirigentes (MEIRELLES, 2006, p. 353). do, em face do mandamento constitucional
A ANA se desdobra em três grandes no art. 175, o qual prevê essa modalidade.
pilares: normativo, administrativo e pu- Essa prestação de serviços públicos tenciona
nitivo. Assim, essa Agência adquire uma atender melhor aos interesses da sociedade
robustez e, em determinadas situações, em áreas que jamais devem ficar adstritas à
aparentemente se rivaliza com o Gover- esfera privada, sob pena de parte da popu-
no Federal. A rivalidade é aparente, pois lação, especificamente a menos aquinhoada
as normas do Direito de Águas, Direito economicamente, ficar desprovida desse
Administrativo e Direito Constitucional bem vital para uma vida digna (OLIVEIRA,
convivem harmonicamente e obstam que 2006, p. 115). O interesse público, em nenhu-
ocorram antinomias ou conflitos entre as ma hipótese, deve ser negligenciado. Sua
diversas leis que perfazem o ordenamento preponderância é flagrante ante os interes-
jurídico pátrio. ses particulares. O Direito Privado contém
A ANA desponta com sua originalidade normas de interesses individuais e o direito
e dinamismo, e muito embora não tenha público, normas de interesse público (DI
ainda conseguido seu objetivo maior, qual PIETRO, 2000, p. 68). Em resumo, a ANA,
seja a implementação da PNRH de forma ao desempenhar as funções de prestação de
cabal, tem desenvolvido ações contributi- serviços públicos, de forma cogente, deve
vas ao movimento de articulação da har- reger-se sob o regime do Direito Público, em
monia do pacto federativo entre os atores nome da supremacia do interesse público.

152 Revista de Informação Legislativa


No tocante aos comitês de bacia hidrográ- A principal crítica que diariamente so-
fica, sem receio, apreende-se que esse inte- frem os CBHs se refere ao aparelhamento
grante do SNGRH é componente moderno e do Estado (leia-se: Governo Federal ou
relevante em nosso arranjo jurídico-institu- Governos Estaduais). Vários membros de
cional hídrico (BRASIL, 1997). É, pois, uma ONGs e grupos de pesquisadores envolvi-
instituição do arranjo jurídico-institucional dos com a questão advertem que a hipertro-
que suscita muitas controvérsias. fia estatal tolhe ou reduz significativamente
Os Comitês de Bacia Hidrográfica terão a participação dos outros dois atores (os
como área de atuação: I – a totalidade de uma usuários e a sociedade civil organizada)
bacia hidrográfica; II – sub-bacia hidrográ- no debate, em suas fases de discussão
fica de tributário do curso de água principal e votação, além de se valer de métodos
da bacia, ou de tributário desse tributário; não éticos nos bastidores, com o escopo
ou III – grupo de bacias ou sub-bacias de ter seus interesses políticos aprovados
hidrográficas contíguas. Por sua vez, com- no interior dos CBHs. Percebe-se que esse
pete aos Comitês de Bacia Hidrográfica, no não é um debate simples, especificamente
âmbito de sua área de atuação: I – promo- para o ator – Sociedade Civil Organizada
ver o debate das questões relacionadas a –, pois o debate dessa forma apresenta-se
recursos hídricos e articular a atuação das assimétrico na correlação de forças. Uma
entidades intervenientes; II – arbitrar, em possibilidade para os atores que se sentem
primeira instância administrativa, os con- inferiorizados politicamente no embate na
flitos relacionados aos recursos hídricos; III esfera dos CBHs será o uso da rica dimen-
– aprovar o Plano de Recursos Hídricos da são política denominada largamente de em-
bacia; IV – acompanhar a execução do Plano poderamento (empowerment), que permite
de Recursos Hídricos da bacia e sugerir os uma organização mais coesa desses atores
valores a serem cobrados; VII – VETADO; sociais; isso porque, ao se organizarem, am-
VIII – VETADO; e IX – estabelecer critérios pliam sua sinergia política e, paralelamente,
e promover o rateio de custo das obras se fortalecem ante o poderio do Poder
de uso múltiplo, de interesse comum ou Público. Os CBHs centrados na Teoria da
coletivo. Frise-se, ainda, que das decisões Ação Comunicativa (HABERMAS, 2003),
dos Comitês de Bacia Hidrográfica caberá a qual em seus detalhes comenta sobre a
recurso ao Conselho Nacional ou aos Con- racionalidade comunicativa3, poderiam
selhos Estaduais de Recursos Hídricos, fornecer a base teórica no fortalecimento
de acordo com sua esfera de competência da ação do empoderamento mencionado.
(BRASIL, 1997)). Outro ponto importante dos CBHs
Do exposto, um jushídrico, ao inter- trata da sua competência para aprovação
pretar o inciso I, advoga a tese de que o do Plano de Recursos Hídricos da bacia4. O
Comitê de Bacia Hidrográfica – CBH – tem crítico perspicaz da PNRH e do SNGRH,
múltiplas funções: de ordem política, de Caubet (2003, p. 195), enaltece esse pre-
fomento de debates e de integração entre ceito e afirma que essa atribuição é uma
as entidades que possuem competências das poucas prerrogativas do CBH que têm
em matéria de recursos hídricos (CAUBET, caráter efetivamente deliberativo. Assim,
2005, p. 195). Talvez a principal função do num Plano de Bacia deve figurar: um
CBH seja a de revestimento político. Atual-
mente, muitos CBHs vêm desempenhando 3
Ver comentário em tópico retro.
atribuições que legalmente não lhes perten- 4
Os Planos de Recursos Hídricos são dos se-
guintes tipos: 1. Plano de Bacia Hidrográfica. 2. Plano
cem, uma vez que cabe ao Estado-Membro Estadual de Recursos Hídricos e Plano Nacional de
ou à União realizar determinadas tarefas da Recursos Hídricos. Ver Lei de Águas no 9.433/97, art.
esfera organizacional. 8o (BRASIL, 1997).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 153


diagnóstico da situação atual dos recursos Em síntese, o Brasil se encontra apare-
hídricos; uma análise de alternativas de lhado com os três tipos de Planos: a) Planos
crescimento demográfico, de evolução de Hidrográficos de Bacia; b) Plano Nacional
atividades produtivas e de modificações de Recursos Hídricos; e c) Planos Estaduais
dos padrões de ocupação do solo; o balanço de Recursos Hídricos.
entre disponibilidades e demandas futuras
dos recursos, em quantidade e qualidade, 5. Infraconstitucionalidade (Lei de Águas
com identificação de conflitos potenciais;
no 9.433/97): escassez e inclusão social
as metas de racionalização de uso, aumento
de quantidade e melhoria da qualidade dos A ONU, durante a Conferência da Se-
recursos disponíveis; as medidas a serem mana Mundial da Água (2011), divulgou
tomadas, programas a serem desenvolvi- que um investimento anual no setor hídrico
dos e projetos a serem implantados, para de 0,16% do PIB mundial – o equivalente a
o atendimento das metas previstas; as 198 bilhões de dólares – poderia diminuir
prioridades para outorga de direitos de uso a escassez de água e reduzir pela metade
de recursos hídricos; as diretrizes e os crité- o número de pessoas sem acesso à água
rios para a cobrança pelo uso dos recursos potável e aos serviços de saneamento básico
hídricos e as propostas para a criação de (ORGANIZAÇÃO..., 2011).
áreas sujeitas à restrição de uso, com vistas A escassez hídrica é menos um fenôme-
à proteção dos recursos hídricos (BRASIL, no natural e mais consequência de ações
1997). Os Planos de Recursos Hídricos antrópicas. A escassez pode ser explicada
são planos diretores de longo prazo que pelos dois ângulos, mas uma coisa é certa:
visam a fundamentar e orientar a PNRH nas últimas décadas, o homem tem contri-
e o GNRH. Longe da redundância, são os buído na quase totalidade com o processo
CBHs que aprovam os planos de bacia. de escassez das águas.
Sobre o Plano Nacional de Recursos Hí- Sobre o assunto, a reconhecida pes-
dricos, por ser um instrumento estratégico quisadora canadense Barlow (2009, p. 17)
para a implementação da PNRH, deve ser informa que o mundo está ficando sem
revisado a cada quatro anos. Aprovado água e escreve que os Objetivos de Desen-
pelo Conselho Nacional em 2005 e sancio- volvimento do Milênio da Organização das
nado em 2006, na atual redação o Plano Nações Unidas – ONU – incluem reduzir
é composto por quatro componentes, 13 pela metade a proporção de pessoas que
programas e 30 subprogramas (COSTA, vivem sem água potável não contaminada
2011, p. 14). até 2015. Argumenta ainda que, embora a
Ainda de acordo com os escritos de iniciativa seja interessante, os resultados
Costa (2011, p. 14), o Ministério do Meio esperados não vêm ocorrendo. Arremata,
Ambiente realizou oficinas regionais em pois, em seus escritos, que, ao atuar em
várias regiões hidrográficas para a primei- parceria com o Banco Mundial, a ONU
ra revisão do Plano Nacional de Recursos promove um modelo de desenvolvimento
Hídricos, com o escopo de integrar as insustentável, que crê na existência de
prioridades, a definição de metas e os águas para todos, sem atentar para os pro-
acordos sob as responsabilidades entre os blemas da poluição.
representantes dos Estados. No Brasil, o quadro da questão hídrica
Os Estados-Membros, por sua vez, já é peculiar, na medida em que o Nordeste
dispõem de Planos Estaduais de Recursos apresenta um quadro deficitário em ra-
Hídricos, exceção seja feita a alguns Estados zão da quantidade de água disponível,
da região Norte, que ainda padecem de enquanto que o Sul, apesar de dispor de
formulações e aprovações. uma quantidade satisfatória de água, fica

154 Revista de Informação Legislativa


a desejar em seus aspectos qualitativos. de responsabilidade em casos de omissões.
O Norte, muito embora seja uma região Aliás, até as pessoas físicas, ricas ou pobres,
que figura entre as de maiores taxas de valendo-se do consumo insustentável, por
disponibilidade hídrica, apresenta-se com impulso, vontade própria ou necessidade,
problemas de infraestrutura que resultam também acabam impactando e aumentando
em falta d’água em cidades de grande e o processo da escassez de água. A partici-
médio porte. O Centro-Oeste, em face da pação de cada ator social, entretanto, varia
grande escalada da produção de grãos, na magnitude escalar.
incorpora problemas de degradação e po- A Lei de Águas no 9.433/97, art. 1o, no
luição de corpos d’água. O Sul, em menor inciso III, grafa como fundamento da PNRH
proporção, também vem tendo falta d’água que, em situações de escassez, o uso prio-
em determinados períodos de seca. ritário dos recursos hídricos é o consumo
Interpreta-se que o panorama da escas- humano e a dessedentação de animais.
sez no Brasil não é localizado em regiões, tal Vê-se que o legislador nesse preceito dá
como se apregoava em décadas anteriores, prioridade ao consumo de água doce aos se-
quando se discursava dizendo que escassez res humanos e aos animais. Por outro lado,
e/ou seca é problema do semiárido do país. a escassez de água é problema que ocorre
Fica configurado que a escassez hídrica é anualmente no país, ora no Nordeste ora no
um problema global, regional, nacional, Sul, às vezes no Sudeste, Centro-Oeste ou
estadual, municipal e local. Ademais, essa Norte! Inclusive o Governo Federal elabora
questão diz respeito ao Estado, à sociedade, diversos programas, planejamentos, pla-
às ONGs e a todos individualmente. nos e projetos com o fito de controlar esse
O problema da escassez ou falta d’água, problema (BRASIL, 2004b; 2004a). Apesar
inclusive, já vem gerando inúmeros con- dos esforços estatais, o problema vem se
flitos alhures e aqui, em nossos limites alastrando em altas proporções.
geográficos. São conflitos internacionais; É de suma importância observar o alar-
conflitos envolvendo pessoas físicas, con- gamento dos Objetivos da Lei de Águas,
flitos inter e intrausuários; conflitos ocor- ao dizer que um dos objetivos da PNRH
rentes na esfera federal, estadual, municipal é a prevenção e a defesa contra eventos
e distrital; conflitos nas empresas, entre hidrológicos críticos de origem natural ou
outras modalidades de conflitos geradas decorrentes do uso inadequado dos recur-
pela escassez de água. sos naturais (art. 2o, III). Ora, o problema da
Um pesquisador da USP advoga a escassez hídrica mostra-se presente nesse
tese de que o principal fator que agrava a inciso de duas maneiras: 1a) a escassez de
escassez de água doce na terra é o seu uso água, ocasionada por processo natural, e
na esfera privada de maneira irresponsável 2a) a escassez de água, ocorrente em face
com fins de acumulação de capital. Não há de ações antrópicas. A 2a modalidade de
um reconhecimento de caráter público da escassez hídrica é a mais grave na con-
água pelas camadas dominantes da socie- temporaneidade. No Brasil, essa escassez
dade “planetária” que estamos vivendo provocada pelo ser humano vem ocorrendo
(RIBEIRO, 2008, p. 54). Ainda que alguns em diversos setores, tais como: agricultu-
críticos mais moderados ou os defensores ra, indústria, piscicultura, turismo, lazer,
do mercado de água não concordem com hidrelétrica e consumo doméstico.
essa argumentação em sua totalidade, hão Quanto à inclusão social, o Direito de
de convir que o grande capital é respon- Águas brasileiro verticalizado por inter-
sável em larga escala pelo processo de médio da C.F./88 e da Lei de Águas, ao
escassez de águas nas últimas décadas. determinar que todas as águas são públicas,
Porém, os Estados também têm sua parcela dá um passo preliminar, mas importante,

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 155


ao reconhecimento da água como direito de magnitude complexa, há necessidade de
fundamental da pessoa humana. Contudo, uma PNRH com robusta musculatura e um
os procedimentos definitivos devem ser SNGRH mais bem articulado, centrado no
capitaneados pelo Governo e Congresso princípio federativo.
Nacional, ao promoverem a aprovação da A Lei de Águas, ao incorporar em
PEC sobre o acesso à água potável, a qual seu bojo a PNRH e o SNGRH, exige dos
atualmente se encontra em tramitação no receptores da norma que respeitem os
Senado Federal. seus fundamentos, tais como os planos de
Incluir pessoas desprovidas desse recursos hídricos e a cobrança pelo uso da
bem – social, econômico, político, jurídico água, bem como compreendam o espírito
e ambiental – não é somente um ato de filosófico-jurídico das agências de águas e
solidariedade, mas também de dignidade. os comitês de bacia hidrográfica. Ademais,
Aliás, a interpretação da C.F./88 mostra o processo de articulação entre os atores
que o princípio da dignidade humana sociais públicos, por força cogente, tem
paira sobre todos os outros direitos funda- a obrigação e responsabilidade de não se
mentais, tornando-se de certa forma um omitir e praticar ações de gestão rumo ao
princípio mor que deve obrigatoriamente desenvolvimento sustentável e à melhoria
ser aplicado nas questões do Direito, da de acesso à água potável para as pessoas.
política e da gestão dos recursos hídricos. À guisa de considerações finais, o Di-
A inclusão social, nesse caso específico, reito de Águas, valendo-se de estratégias
significa que as pessoas desprovidas de re- infra e constitucionais, ascende em busca
cursos financeiros devem ter acesso à água de sua autonomia e contribui significativa-
potável e ao saneamento básico de acordo mente com a produção do Direito, visando
com a ONU. Mas, às vezes, soa como um ao alcance da máxima intitulada água doce:
paradoxo tal exigência desse Organismo direito fundamental da pessoa humana.
Internacional, pois a mesma ainda não re-
conhece a água como direito fundamental
da pessoa humana, uma vez que a concebe
Referências
como bem econômico (BARBOSA, 2008).
BARBOSA, Erivaldo Moreira. Água doce: direito
fundamental da pessoa humana. Âmbito Jurídico, Rio
6. Considerações finais Grande, ano 11, n. 58, out. 2008.
Ao investigar o Direito de Águas do ______. Método hermenêutico-sistêmico aplicado
Brasil por meio do método hermenêutico- ao direito ambiental e dos recursos naturais. Revista
-sistêmico, tornou-se possível mostrar as Fórum de Direito Urbano e Ambiental, Belo Horizonte,
imbricações dos recentes arranjos jurídico- ano 9, n. 50, mar./abr. 2010.
-institucionais em suas relações com a BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Repú-
PNRH e o SNGRH. A C.F./88, jungida blica Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial [da]
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tudo, para que ocorram mudanças culturais Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, regu-

156 Revista de Informação Legislativa


lamenta o inc. XIX do art. 21 da Constituição Federal, ambientais. Revista de Informação Legislativa, Brasília,
e altera o art. 1o da Lei no 8.001, de 13.03.1990, que v. 43, n. 172, out./dez. 2006.
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negociação institucional na efetividade das políticas

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 157


A questão do endividamento público
dez anos após a publicação da Lei de
Responsabilidade Fiscal
Avanços e limitações

Ana Carla Bliacheriene e


Renato Jorge Brown Ribeiro

Sumário
1. Introdução. 2. Descrevendo o que foi con-
trolado pelo arcabouço estabelecido pela LRF.
2.1. Limites da dívida e endividamento. 2.2.
Operações de crédito. 2.3. Operações de crédito
por antecipação de receitas e restos a pagar. 2.4.
Operações com o Banco Central. 2.5. Garantias
e contragarantias. 2.6. Avanços na transparên-
cia na dívida. 2.7. Limites de endividamento
estabelecidos para os estados e municípios. 2.8.
Limites de endividamento estabelecidos para a
União. 3. Efeitos dos controles estabelecidos. 4.
O que não está controlado. 4.1. Restos a pagar.
4.2. Efeitos da política monetária e cambial
sobre a política fiscal. 4.3. O enfraquecimento
das metas fiscais na União. 4.4. Procedimentos
que geram desequilíbrios entre o financeiro e
orçamentário – reaberturas de crédito, carry over,
créditos extraordinários, reestimativas de recei-
tas e “excessos de arrecadação”. 5. Conclusões.

1. Introdução
Ao articular esse texto – em um mo-
mento tão interessante como a análise dos
efeitos de dez anos de vigência da Lei de
Ana Carla Bliacheriene é professora doutora Responsabilidade Fiscal, principalmente
de Finanças Públicas e Orçamento e de Direito no aspecto da dívida pública – observou-
Econômico da Faculdade de Direito de Ribeirão -se ser essencial discutir o que não esteja
Preto, da USP (FDRP-USP), doutora e mestre
controlado (fundamentalmente partes da
em Direito.
Renato Jorge Brown Ribeiro é consultor de
dívida pública federal e conceitos que afe-
Orçamentos do Senado Federal. Doutor em tam a União), embora não possamos nos
Gestão da Produção, mestre em Administração esquivar de uma análise do conteúdo da
Pública, Especialista em Políticas Públicas e Lei e dos seus efeitos na estrutura da dívida
Administração Financeira. nesse período.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 159


Inicialmente é importante desmistificar ser feitos em percentuais da receita corrente
o espírito da LC 101/00, que está consigna- líquida3, estabelecendo verificações qua-
do no seu art. 1o, ou seja, a manutenção das drimestrais dos limites de endividamento4
condições para o equilíbrio orçamentário. e que os precatórios não pagos nos orça-
Isso indica que a LRF tem por objetivo mentos em que estiveram incluídos, devam
central apontar as condições para que se fazer parte da dívida consolidada5.
instale um equilíbrio razoavelmente efe- O art. 31 da LRF trata da recondução
tivo entre as receitas e despesas públicas, da dívida ao seu limite e estabelece que o
ao menos em um primeiro momento, com ente que extrapolar os limites, fixados em
um foco bastante claro nos estados e mu- Resolução do Senado Federal, ao final de
nicípios. um quadrimestre, deverá ser a ele recondu-
O Capítulo VII da LRF trata de Dívida zida até o término dos três subsequentes,
e Endividamento, que é dividido em seis reduzindo o excedente em pelo menos
seções: a primeira trata de definições bási- 25% (vinte e cinco por cento) no primeiro
cas (tratadas no item VI desse capítulo), a quadrimestre subsequente.
segunda seção dos limites da dívida pública Estabelece, também, sanções institucio-
e das operações de crédito, a terceira seção nais semelhantes às impostas ao ente que
da recondução da dívida aos seus limites, desrespeita os limites de despesas com
a quarta seção das operações de crédito, a pessoal6 e atribui ao Ministério da Fazenda
quinta das garantias e contragarantias e a o papel de elaborar e divulgar mensalmente
sexta dos restos a pagar. a relação dos entes que tenham ultrapas-
No nosso ordenamento constitucional sado os limites das dívidas consolidada e
cabe à Câmara do parlamento – que re- mobiliária.
presenta os entes da federação – estipular A parte do processo de contratação da
os limites de endividamento de cada um dívida interna e externa, que são temas dos
destes. arts. 32 e 33 da LRF, será objeto de capítulo
específico. Nas demais subseções das ope-
2. Descrevendo o que foi controlado
mente sobre: XIV – moeda, seus limites de emissão, e
pelo arcabouço estabelecido pela LRF montante da dívida mobiliária federal.”
3
“Art. 30. § 3o Os limites de que tratam os incisos
2.1. Limites da dívida e endividamento I e II do caput serão fixados em percentual da receita
corrente líquida para cada esfera de governo e apli-
A fixação dos limites, propriamente di- cados igualmente a todos os entes da Federação que
tos, de endividamento dos entes federados a integrem, constituindo, para cada um deles, limites
é de atribuição constitucional do Senado máximos.”
Federal1, no caso da dívida consolidada, ou
4
“§ 4o Para fins de verificação do atendimento do
limite, a apuração do montante da dívida consolidada
ao Congresso Nacional, no caso da dívida será efetuada ao final de cada quadrimestre.”
mobiliária2. O que a Lei Complementar ino- 5
“§ 7o Os precatórios judiciais não pagos durante
va é em estipular que esses limites devam a execução do orçamento em que houverem sido
incluídos integram a dívida consolidada, para fins de
1
“Art. 52. Compete privativamente ao Senado aplicação dos limites.”
Federal: VI – fixar, por proposta do Presidente da 6
“I – estará proibido de realizar operação de
República, limites globais para o montante da dívida crédito interna ou externa, inclusive por antecipação
consolidada da União, dos Estados, do Distrito Federal de receita, ressalvado o refinanciamento do principal
e dos Municípios; IX – estabelecer limites globais e atualizado da dívida mobiliária; II – obterá resultado
condições para o montante da dívida mobiliária dos primário necessário à recondução da dívida ao limi-
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;” te, promovendo, entre outras medidas, limitação de
2
“Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a empenho, na forma do art. 9o. § 2o Vencido o prazo
sanção do Presidente da República, não exigida esta para retorno da dívida ao limite, e enquanto perdurar
para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre o excesso, o ente ficará também impedido de receber
todas as matérias de competência da União, especial- transferências voluntárias da União ou do Estado.”

160 Revista de Informação Legislativa


rações de crédito tratamos de limitações a crédito, não se aplicando essa veda-
operações de crédito específicas e tratamos ção a empresas estatais dependentes;
de: vedações, operações de antecipação de IV – assunção de obrigação, sem
receitas orçamentárias e operações com o autorização orçamentária, com for-
Banco Central. necedores para pagamento a posteriori
de bens e serviços.”
2.2. Operações de crédito É importante destacar que os itens III
Os arts. 35 e 36 e o inciso II do art. 37 e IV do art. 37 possibilitam, inclusive, o
tinham por objetivo evitar que os fundos, enquadramento penal de uma prática ir-
autarquias, fundações e empresas públicas regular, a longo tempo utilizada na gestão
(principalmente dependentes) e os entes financeira dos entes federados: a execução
que os controlem se financiassem de forma de despesa sem prévio empenho.
a não preservar o princípio da entidade
2.3. Operações de crédito por antecipação
contábil e a situação financeira do ente
de receitas e restos a pagar
federado e das entidades da administração
indireta. O fantasma que rondava à época A operação de crédito por antecipação
era a relação quase incestuosa que levou à de receitas orçamentárias (ARO) é uma
falência de boa parte dos bancos estaduais. modalidade de empréstimo com preceden-
O art. 36 veda expressamente a operação tes de mais de um século. No século XIX
de crédito entre uma instituição finan- a garantia dos empréstimos mais comuns
ceira estatal e o ente da Federação que a eram as receitas alfandegárias.
controle, na qualidade de beneficiário do A LRF inova ao vedar a realização da
empréstimo. antecipação da receita orçamentária no
O art. 37 é especialmente interessante, último ano de mandato do Presidente, Go-
no sentido de que faz equiparações a ope- vernador ou Prefeito Municipal e o papel
rações de crédito, e, por conseguinte, ao dado ao Banco Central de promover leilões
endividamento irregular a operações rea- eletrônicos junto às instituições financeiras
lizadas com fornecedores ou antecipações para concessão de antecipações para Esta-
de receitas. Isso traz uma inovação interes- dos e Municípios, bem como a manutenção
sante ao aproximar o conceito jurídico ao pelo Bacen de sistema de acompanhamento
econômico de operação de crédito: e controle do saldo do crédito aberto e, no
“I – captação de recursos a título de caso de inobservância dos limites, aplicará
antecipação de receita de tributo ou as sanções cabíveis à instituição credora.
contribuição cujo fato gerador ainda A LRF, no seu art. 42, estabelece uma
não tenha ocorrido, sem prejuízo restrição para o final do mandato dos chefes
do disposto no § 7o do art. 150 da de poder: “nos últimos dois quadrimestres
Constituição; do seu mandato, contrair obrigação de des-
II – recebimento antecipado de valo- pesa que não possa ser cumprida integral-
res de empresa em que o Poder Públi- mente dentro dele, ou que tenha parcelas
co detenha, direta ou indiretamente, a a serem pagas no exercício seguinte sem
maioria do capital social com direito que haja suficiente disponibilidade de caixa
a voto, salvo lucros e dividendos, na para este efeito”.
forma da legislação; É importante destacar que não há uni-
III – assunção direta de compromisso, formidade de interpretação desse artigo
confissão de dívida ou operação as- da LRF entre os vários tribunais de contas.
semelhada, com fornecedor de bens, Os Tribunais de Contas do Rio Grande do
mercadorias ou serviços, mediante Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro, entre
emissão, aceite ou aval de título de outros, adotam a interpretação literal do
Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 161
prazo dos dois últimos quadrimestres. 2.5. Garantias e contragarantias
O Tribunal de Contas da União e alguns
A concessão de garantias e contragaran-
Tribunais de Contas estaduais interpretam
tias em operações de crédito, por vezes, é
esse artigo em conjunto e em confronto
obrigatória para a obtenção dos emprésti-
com os dispositivos da Lei no 4320/64, que
mos, porém, ela representa um risco real
estabelecem a ordem de pagamento dos
para quem as concede.
títulos como a ordem de apresentação em
Nesse sentido, a LRF estabeleceu um
tesouraria, o que impede o pagamento de
um título dos dois últimos quadrimestres regramento geral para minimizar riscos e
sem o pagamento de um título do primeiro garantir o pagamento das garantias e das
quadrimestre. Nesse sentido, o TCU de- contragarantias, no seu art. 40, do qual
fende que todos os recursos inscritos em alguns dispositivos destacamos:
restos a pagar devam ser transferidos com a) A garantia estará condicionada ao
disponibilidade de caixa. oferecimento de contragarantia, em valor
Outro aspecto que devemos destacar igual ou superior ao da garantia a ser con-
é o que realmente vem a ser disponibili- cedida, e à adimplência da entidade que
dade de caixa. O que no caso da União é a pleitear relativamente a suas obrigações
extremamente relevante, pois os valores junto ao garantidor e às entidades por este
colocados como disponibilidades financei- controladas.
ras englobam títulos sob posse do Tesouro, b) A contragarantia exigida pela União a
que por razões estruturais e conjunturais, Estado ou Município, ou pelos Estados aos
na maioria das vezes, não podem retornar Municípios, poderá consistir na vinculação
ao mercado sem algum custo macroeco- de receitas tributárias diretamente arre-
nômico. cadadas e provenientes de transferências
constitucionais, com outorga de poderes
2.4. Operações com o Banco Central ao garantidor para retê-las e empregar o
As limitações às operações do Banco respectivo valor na liquidação da dívida
Central tiveram dois objetivos: tornar trans- vencida.
parente os resultados da política monetária c) É vedado às entidades da administra-
e evitar que o Banco Central financie o te- ção indireta, inclusive suas empresas con-
souro, com impactos inflacionários óbvios troladas e subsidiárias, conceder garantia,
no resultado da política monetária. ainda que com recursos de fundos.
A limitação de operação com títulos da d) Quando honrarem dívida de outro
dívida está especialmente consignada nos ente, em razão de garantia prestada, a
arts. 34 e 39. O Banco Central ficou proibido União e os Estados poderão condicionar
de emitir títulos da dívida a partir de 2002 as transferências constitucionais ao ressar-
e foram estabelecidas sérias vedações para cimento daquele pagamento.
o Bacen operar, principalmente na compra e) O ente da Federação cuja dívida tiver
primária de títulos do tesouro e na vedação sido honrada pela União ou por Estado, em
de compra de títulos estaduais. decorrência de garantia prestada em ope-
A partir dessa lógica de que o Banco ração de crédito, terá suspenso o acesso a
Central se tornaria cada vez mais apartado novos créditos ou financiamentos até a total
das necessidades de financiamento do setor liquidação da mencionada dívida.
público e, por conseguinte, mais afastado É importante consignar que após esse
da política fiscal e tornando-se mais pró- aparato a União só teve de honrar as ga-
ximo da política monetária, a titularidade rantias de nove anos seguidos em 2004,
da gestão da dívida externa foi transferida que foram cobertas com as contragarantias
para o Tesouro Nacional em 2004. oferecidas.
162 Revista de Informação Legislativa
2.6. Avanços na transparência na dívida refere o art. 33 da Lei Complementar
no 101, de 2000;
A Lei de Responsabilidade Fiscal con-
ii. As despesas realizadas e as previs-
solidou uma série de procedimentos que
tas que representem empréstimo ou
aumentam a transparência no endivida-
financiamento a contribuinte, com o
mento, tais como:
intuito de promover incentivo fiscal,
a) O refinanciamento da dívida pública
tendo por base tributo de competên-
constará separadamente na lei orçamentá-
cia do Ente da Federação, se resultar
ria e nas de crédito adicional.
a diminuição, direta ou indireta, do
b) Todas as despesas relativas à dívi-
ônus deste; e
da pública, mobiliária ou contratual, e as
iii. As despesas realizadas e as pre-
receitas que as atenderão, constarão da lei
vistas que representem inversões
orçamentária anual.
financeiras na forma de participação
c) A atualização monetária do principal
acionária em empresas que não sejam
da dívida mobiliária refinanciada não po-
controladas, direta ou indiretamente,
derá superar a variação do índice de preços
pelos Entes da Federação ou pela
previsto na lei de diretrizes orçamentárias,
União.”
ou em legislação específica.
c) O empréstimo ou financiamento a que
2.7. Limites de endividamento estabelecidos se refere o inciso ii da alínea b, se concedido
para os estados e municípios por instituição financeira controlada pelo
Ente da Federação, terá seu valor deduzido
2.7.1. Regra de ouro das despesas de capital;
O cumprimento do limite a que se refere d) As operações de antecipação de re-
o inciso III do art. 167 da Constituição Fede- ceitas orçamentárias não serão computadas
ral deverá ser comprovado mediante apura- para os fins desse limite, desde que liqui-
ção das operações de crédito e das despesas dadas no mesmo exercício em que forem
de capital conforme os critérios definidos no contratadas;
§ 3o do art. 32 da Lei Complementar no 101, e) Para efeito do disposto neste artigo,
de 2000 (art. 6o da Resolução no 43/2001-SF): entende-se por operação de crédito realiza-
a) Para fins de cálculo desse limite, da em um exercício o montante de liberação
verificar-se-ão, separadamente, o exercício contratualmente previsto para o mesmo
anterior e o exercício corrente, tomando-se exercício; e
por base: f) Nas operações de crédito com libe-
“i. No exercício anterior, as receitas ração prevista para mais de um exercício
de operações de crédito nele reali- financeiro, o limite computado a cada ano
zadas e as despesas de capital nele levará em consideração apenas a parcela a
executadas; e ser nele liberada.
ii. No exercício corrente, as receitas
2.7.2. Limite das operações
de operação de crédito e as despesas
de crédito – fluxo
de capital constantes da lei orçamen-
tária.” O montante global das operações reali-
b) Não serão computadas como des- zadas em um exercício financeiro não pode-
pesas de capital, para os fins do art. 6o da rá ser superior a 16% (dezesseis por cento)
RSF no 43/01: da receita corrente líquida – RCL (inciso I
“i. O montante referente às despe- do art. 7o da Resolução no 43/2001-SF):
sas realizadas, ou constantes da lei Para o caso de operações de crédito com
orçamentária, conforme o caso, em liberação prevista para mais de um exercí-
cumprimento da devolução a que se cio, esse limite será calculado levando em

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 163


consideração o cronograma anual de ingres- de 2001 deverá ser reduzido, no mínimo, à
so, projetando-se a receita corrente líquida proporção de 1/15 (um quinze avos) a cada
de acordo com os critérios estabelecidos no exercício financeiro;
§ 6o do art. 7o da Resolução no 43/2001-SF ii. Para fins de acompanhamento da
(§ 1o do art. 7o da Resolução no 43/2001-SF); trajetória de ajuste dos limites de que se
trata, a relação entre o montante da dívida
2.7.3. Limite das operações consolidada líquida e a receita corrente
de crédito – dispêndio líquida será apurada a cada quadrimestre
O comprometimento anual com amor- civil e consignada no Relatório de Gestão
tizações, juros e demais encargos da dívida Fiscal a que se refere o art. 54 da Lei Com-
consolidada, inclusive relativos a valores a plementar no 101, de 2000;
desembolsar de operações de crédito já con- iii. O limite apurado anualmente após a
tratadas e a contratar, não poderá exceder aplicação da redução de 1/15 (um quinze
a 11,5% (onze inteiros e cinco décimos por avos) estabelecido neste item será regis-
cento) da receita corrente líquida (inciso trado no Relatório de Gestão Fiscal a que
II do art. 7o da Resolução no 43/2001-SF). se refere o art. 54 da Lei Complementar no
O cálculo do comprometimento anual 101, de 2000;
será feito pela média anual de todos os iv. Durante o período de ajuste de 15
exercícios financeiros em que houver paga- (quinze) exercícios financeiros já referidos,
mentos previstos da operação pretendida aplicar-se-ão os limites previstos de 2 (duas)
da relação entre o comprometimento pre- vezes e 1,2 (um inteiro e dois décimos) ve-
visto e a receita corrente líquida projetada zes a receita corrente líquida para o Estado,
ano a ano (§ 4o do art. 7o da Resolução no o Distrito Federal ou o Município que:
43/2001-SF e suas alterações). Apresente relação entre o montante
da dívida consolidada líquida e a receita
2.7.4. Limite das operações corrente líquida inferior a esses limites, no
de crédito – estoque final do exercício de 2001; e atinja o limite
A dívida consolidada líquida dos Esta- previsto (2 ou 1,2 vezes a RCL) antes do
dos, do Distrito Federal e dos Municípios, final do período de ajuste de 15 (quinze)
ao final do décimo quinto exercício finan- exercícios financeiros.
ceiro contado a partir do encerramento do 2.7.5. Limite das operações
ano de 2001, não poderá exceder, respecti- por ARO – estoque
vamente, a (inciso III do art. 7o da Resolução
no 43/2001-SF, combinado com art. 3o da O saldo devedor das operações de crédi-
Resolução no 40, de 2001- SF): to por antecipação de receita orçamentária
a) No caso dos Estados e do Distrito (ARO) em um exercício financeiro não
Federal: 2 (duas) vezes a receita corrente poderá ser superior a 7% (sete por cento)
líquida; da receita corrente líquida – RCL (art. 10 da
b) No caso dos Municípios: 1,2 (um Resolução no 43/2001-SF).
inteiro e dois décimos) vezes a receita cor-
2.7.6. Limite das garantias
rente líquida;
c) No período compreendido entre 31 O saldo global das garantias concedidas
de dezembro de 2001 e o final do exercício pelos Estados, pelo Distrito Federal e pe-
de 2016, serão observadas as seguintes los Municípios não poderá exceder a 22%
condições: (vinte e dois por cento) da RCL (art. 9o da
i. O excedente em relação aos limites Resolução do SF no 43, de 2001).
previstos para Estados, Distrito Federal e O limite acima poderá ser elevado para
Municípios apurado ao final do exercício 32% (trinta e dois por cento) da receita cor-

164 Revista de Informação Legislativa


rente líquida, desde que, cumulativamente, sido objeto de análise e Parecer favorável
quando aplicável, o garantidor: pela STN;
a) Não tenha sido chamado a honrar, c) Se os Estados, o Distrito Federal e
nos últimos 24 (vinte e quatro) meses, a os Municípios não publicarem o Relatório
contar da análise, quaisquer garantias an- Resumido da Execução Orçamentária até
teriormente prestadas; trinta dias após o encerramento de cada
b) Esteja atendendo o limite da dívida bimestre. Tal vedação persistirá até a re-
consolidada líquida, estabelecido na Re- gularização dessa pendência (§ 2o do art.
solução no 40, de 2001, do Senado Federal; 52 da Lei Complementar no 101, de 2000);
c) Esteja cumprindo os limites de des- d) Se os Estados, o Distrito Federal e os
pesa com pessoal previstos na Lei Comple- Municípios não publicarem o Relatório de
mentar no 101, de 2000; e Gestão Fiscal até trinta dias após o encerra-
d) Esteja cumprindo o Programa de mento de cada quadrimestre. Tal vedação
Ajuste Fiscal acordado com a União, nos persistirá até a regularização dessa pendên-
termos da Lei no 9.496, de 1997. cia (§ 3o do art. 55 da Lei Complementar no
101, de 2000, com ressalva prevista na letra
2.7.2.1. Critério de projeção da RCL “b” do art. 63 da mesma Lei);
A receita corrente líquida (RCL) é proje- e) Se os Estados (considerado o Distrito
tada mediante a aplicação de fator de atua- Federal) e os Municípios não encaminha-
lização sobre a receita corrente líquida do rem suas contas ao Poder Executivo da
período de 12 (doze) meses findos no mês União até 31 de maio e 30 de abril, respec-
de referência (§ 6o do art. 7o da Resolução tivamente.
no 43/2001-SF). Aos Municípios cabe, também, encami-
A partir de 2009, e considerando revi- nhar cópia de suas contas ao Poder Executi-
sões pelo IBGE, o fator de atualização a ser vo do respectivo Estado (inciso I do § 1o do
utilizado é de 3,38%, e foi obtido a partir da art. 51 da LRF). A vedação persistirá até a
média geométrica das taxas de crescimento regularização dessa pendência (§ 2o do art.
real do PIB nacional nos últimos oito anos 51 da Lei Complementar no 101, de 2000);
(art. 8o da Portaria do STN no 396, de 2 de f) Se houver violação dos acordos de
julho de 2009). refinanciamento firmados com a União
(inciso IV do art. 5 o da Resolução n o
2.7.2.2. Condições 43/2001-SF);
O não atendimento de algum dos re- g) Se houver garantia ao Estado, ao
quisitos mínimos definidos pela Resolução Distrito Federal ou ao Município por insti-
do Senado Federal no 43/2001 impede a tuição financeira por ele controlada (art. 17
continuidade do processo de análise e, por da Resolução no 43/2001-SF); e
conseguinte, a conclusão da verificação de h) Se o ente da federação tiver dívida
limites e condições da operação pleiteada. honrada pela União ou pelo Estado, em
De acordo com a legislação, é vedada a decorrência de garantia prestada em ope-
contratação de operação de Crédito Interno: ração de crédito. Tal vedação persistirá até
a) Se as despesas com pessoal não esti- a total liquidação da mencionada dívida (§
verem enquadradas nos limites previstos 10 do art. 40 da Lei Complementar no 101,
no art. 20 da Lei Complementar no 101, de de 2000, e § 4o do art. 18 da Resolução no
2000, com ressalva prevista no inciso III do 43/2001-SF).
§ 3o do art. 23 da mesma Lei; É vedada, ainda, a contratação de ope-
b) Se o ente houver contratado alguma ração por ARO:
operação que se equipare a operação de cré- a) Antes do dia dez de janeiro de cada
dito cujos limites e condições não tenham ano (inciso I do art. 38 da Lei Complemen-

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 165


tar no 101, de 2000; inciso I do art. 14 da Poder Executivo, nunca foi efetivamente
Resolução no 43/2001-SF); aprovado (em parte, por pressão do próprio
b) Enquanto existir operação anterior Poder Executivo).
da mesma natureza não integralmente A questão atual é que existe uma forte
resgatada (inciso IV-a do art. 38, da Lei ligação entre a política fiscal e monetária/
Complementar no 101, de 2000; e inciso IV cambial por meio das operações com os
do art. 14 da Resolução no 43/2001-SF); títulos da dívida pública, quer pelas ope-
c) No último ano do mandato do Chefe rações compromissadas quer pela manu-
do Poder Executivo (inciso IV-b do art. 38 tenção das reservas e coberturas dos swaps
da Lei Complementar no 101, de 2000; e § cambiais. Essa situação explica a defesa do
2o do art. 15 da Resolução no 43/2001-SF); Ministro da Fazenda na não fixação de um
d) Se forem cobrados outros encargos limite de endividamento da União, que ao
que não a taxa de juros prefixada ou inde- fim e ao cabo estipularia de forma indireta
xada à Taxa Básica Financeira – TBF (inciso um limite para a política monetária.
III do art. 38 da Lei Complementar no 101, A proposta apresentada pelo líder do
de 2000; e inciso III do art. 14 da Resolução governo à época, o Senador Romero Jucá,
no 43/2001-SF); no Projeto de Resolução no 84/2007, prevê
Encontram-se ainda definidas as se- um limite de estoque de endividamento de
guintes condições para a contratação de 3,5 vezes a Receita Corrente Líquida (RCL)
operação por ARO: da União, que é inferior ao seu máximo
a) O valor da operação pretendida não histórico atingido no segundo quadrimes-
poderá exceder o limite fixado na lei auto- tre do ano 2001 que foi de 3,4 vezes a RCL.
rizadora (inciso I do art. 22 da Resolução
no 43/2001-SF);
3. Efeitos dos controles estabelecidos
b) A taxa de juros das operações por
ARO não poderá ser superior a uma vez Um conjunto de controles estabelecidos
e meia a TBF (1,5xTBF) vigente no dia do sobre as metas de resultado primário da
encaminhamento da proposta firme (§ 4o União, que se viram razoavelmente res-
do art. 37 da Resolução no 43/2001-SF); e peitados no período entre 2000 a 2008, e
c) A operação deverá ser liquidada, o forte controle sobre o estoque da dívida
com juros e outros encargos incidentes, de Estados e Municípios (com a vedação
até o dia dez de dezembro de cada ano de de renegociação de parcelas e principal da
contratação (inciso II do art. 38 da Lei Com- dívida contraída com a União) fez com que
plementar no 101, de 2000, e inciso II do art. a relação entre a dívida líquida do Setor
14 da Resolução no 43/2001-SF). Público Consolidado e o Produto Interno
Bruto caísse de 60,4% para 39,9% em menos
2.8. Limites de endividamento de uma década.
estabelecidos para a União Há uma tendência de regularização e
As questões gerais do endividamento alongamento dos prazos de rolagem da
previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal dívida pública federal que, há uma década,
aplicam-se à União em condições seme- era inferior a um ano e, hoje, chega próximo
lhantes às aplicadas aos Estados e Municí- de três anos.
pios. A questão que não está regulada (ou Com relação à dívida dos Estados,
pelo menos totalmente regulada) envolve destacamos que hoje todos estão rumando
os limites de endividamento. para a adequação nos limites previstos
O limite de endividamento para es- pelas resoluções do Senado. O Rio Grande
toque da dívida, em que pese tenha sido do Sul, último a se adequar, acaba de ser
encaminhado pelo menos duas vezes pelo incluído no Plano de Ajuste Fiscal da União

166 Revista de Informação Legislativa


de 2011 (PAF-2011), com o aval de contrair Tribunais de Contas Estaduais fazem a
nova dívida. interpretação literal da LRF, o que permite
a situação esdrúxula de despesas anteriores
4. O que não está controlado aos dois quadrimestres finais poderem ser
inscritas sem cobertura financeira e onerar
Quando falamos do que não está con- a disponibilidade financeira da execução
trolado, estamos falando daquilo que, em do orçamento anual seguinte.
princípio, fere ou pode vir a ferir o disposto Quanto à União, a questão relaciona-se
no § 1o do art. 1o da LC no 101/2000, ou com o que efetivamente está classificado,
seja, as condições necessárias para prever com as disponibilidades transferidas de
e equilibrar as contas públicas. Estabele- um exercício financeiro para o outro e com
cendo as condições de que o financeiro e o a forma de cálculo do superávit primário.
orçamentário andem juntos. O superávit primário é calculado pelo
fluxo de desembolso financeiro (metodo-
4.1. Restos a pagar
logia abaixo da linha) e os restos a pagar
Inicialmente, devemos entender a na- acabam tendo o efeito de uma despesa, ou
tureza dos restos a pagar, principalmente quase isso, e só são contabilizados quan-
dos restos a pagar processados e dos que, do são pagos, impactando nos exercícios
mesmo não processados, tenham as despe- seguintes.
sas efetivamente realizadas. Sua natureza Em relação às disponibilidades, con-
está relacionada com dívida, uma dívida não tabilizam-se os superávits financeiros de
contraída com instituições financeiras, mas exercícios anteriores levados a resultado
contraída com fornecedores e prestadores de primário e os títulos públicos em posse do
serviço do Estado. Logo, os restos a pagar, Tesouro. Na primeira situação, caso seja
representam obrigação do ente federado e utilizada, tem efeito de endividamento
devem ser honrados, sob pena de que se- novo; no segundo, caso seja colocado no
jam passados com o orçamento financeiro mercado, tem efeito na base monetária.
equivalente, concorrendo com o orçamento Assim, ambas não são neutras.
financeiro gerado no exercício seguinte. O fato é que esse “orçamento paralelo”
A LRF estabelece, como regra de fim de de restos a pagar saiu de um patamar de
mandato em relação a restos a pagar, que é R$ 18 bilhões em 2003, para um patamar de
vedado ao gestor público, nos últimos dois R$ 128 bilhões em 2010. Em 2003, poder-se-
quadrimestres do seu mandato, contrair -ia dizer que as disponibilidades reais da
obrigação de despesa que não possa ser União os cobririam (ou chegariam muito
cumprida integralmente dentro dele, ou que próximo a isso). Em 2010, certamente isso
tenha parcelas a serem pagas no exercício não é possível. O ponto de inflexão desse
seguinte sem que haja suficiente disponibi- movimento foram os anos de 2007/2008,
lidade de caixa para esse efeito. Cabe assi- onde se passou de um patamar de R$ 43
nalar que, no projeto original, tal proibição bilhões para R$ 78 bilhões. Na verdade
se estendia a todo o exercício financeiro isso inaugurou uma plurianualidade nas
referente ao último ano do mandato. autorizações orçamentárias que não esta-
Nos tribunais de contas há divergên- va na estrutura constitucional das nossas
cia de interpretação desse dispositivo. O finanças públicas.
TCU entende que deva ser interpretado
em consonância com a Lei no 4.320/64 no 4.2. Efeitos da política monetária e
que se refere à liquidação dos débitos em cambial sobre a política fiscal
tesouraria, obrigando a ter disponibilidade Em sentido estrito, a política monetária e
suficiente para quitar os débitos. Vários cambial e o resultado do Bacen não deveriam

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 167


  2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Processados 3.589.250 7.925.682 4.337.736 4.846.506 5.235.625 26.925.058 22.906.682 25.381.944

Não Proces-
14.501.257 23.754.861 17.304.756 34.133.754 38.694.069 51.912.330 92.088.667 103.221.907
sados

TOTAL 18.090.507 31.680.543 21.642.492 38.980.260 43.929.694 78.837.388 114.995.349 128.603.851


Fonte: SIGA Brasil

ser interpretados como dívida, mas a LC no 48,6 bilhões, com sua atualização monetá-
101/00 determinou que o resultado da polí- ria chegamos a um montante de R$ 50,5
tica monetária fosse levado contra o Tesouro. bilhões. No acumulado dos três anos temos
Além disso, o art. 6o da Lei no 11.803/2008 um recebimento líquido do Banco Central,
autoriza a transferência ao Tesouro, com o contra o Tesouro, de R$ 25 bilhões de reais.
resultado do Bacen, do saldo da equalização A partir do mês de maio de 2002, por
do resultado financeiro das operações com força da LRF, o Bacen deixou de emitir
reservas cambiais e das operações com de- títulos de sua responsabilidade para a
rivativos realizadas pelo Bacen. Essa mesma operacionalização da política monetária.
lei autorizou a União a emitir títulos da dívi- Para tanto, passou a contratar as chamadas
da para suprir os possíveis déficits existentes. operações compromissadas, lastreadas
Em dezembro de 2008, esse saldo positi- e limitadas pelo montante dos títulos do
vo foi de R$ 171,4 bilhões, resultando, após Tesouro Nacional registrados no ativo da
atualização monetária, em transferência de autoridade monetária.
R$ 175 bilhões do Bacen para o Tesouro. O percentual da dívida mobiliária na
Entretanto, em dezembro de 2009, o saldo carteira do Bacen, vinculado a contratos de
foi negativo em R$ 147,7 bilhões. Em vista operações compromissadas, tem trajetória
de sua atualização monetária, alcançou R$ ascendente desde o mês de janeiro de 2006,
151,1 bilhões, da qual se deduz o recebi- conforme revelado na linha de tendência
mento, em 2009, de R$ 97,1 bilhões, resul- pontilhada do gráfico acima. Em dezembro
tando num saldo final de R$ 53,9 bilhões a de 2008, atingiu a marca de 64,5% e, em ja-
receber do Tesouro Nacional. Em dezembro neiro de 2009, de mais de 80%. Isso decorre
de 2010, foi registrado saldo negativo de R$ do aumento no montante dessas operações

168 Revista de Informação Legislativa


em função da necessidade de reduzir o as necessidades de financiamento do setor
excesso de liquidez da economia. Esse público para entregar bens ou serviços pú-
movimento já havia sido comentado no blicos. Porém, desde o avanço do processo
Relatório e Parecer Prévio sobre as Contas de estabilização da economia do país, pós-
de 2007, inclusive prevendo a necessidade -Plano Real, o uso da dívida pública tem
de aumento da carteira de títulos do Bacen sido utilizado como forma de aumentar
para diminuir a liquidez da economia. ou enxugar a liquidez monetária, sem
A principal função das operações necessariamente utilizar os instrumentos
compromissadas realizadas pelo Bacen é tradicionais de taxas básicas de juros ou
possibilitar o ajuste fino de liquidez da eco- encaixe bancário. É importante ressaltar
nomia (dinheiro em circulação), mas elas que esse procedimento não é neutro em
podem cumprir outras duas serventias, termos de custo fiscal e esses valores não
quais sejam, contribuir para a construção ficam claros para a sociedade.
de uma estrutura a termo da taxa de juros O argumento tradicionalmente utilizado
e enxugar a liquidez provocada por uma é o do “Estado gastador”, o que não é neces-
recusa do Tesouro de rolar dívida vincen- sariamente correto, uma vez que faz mais de
da, cujas propostas não se coadunem com uma década que a relação dívida líquida/
as expectativas de custo do dinheiro. Em PIB está declinante e o perfil da dívida tem
dezembro de 2009, o saldo dos contratos melhorado substancialmente. O que siste-
de operações compromissadas alcançou R$ maticamente tem acontecido é que, ao invés
427,9 bilhões. Esse volume substancial de de utilizar os instrumentos tradicionais de
recursos demonstra o impacto da política política monetária, a política fiscal tem sido
fiscal sobre as operações da autoridade usada para enxugar liquidez do mercado.
monetária, ao tempo que reforça a impor- Como nosso sistema tributário é excessi-
tância da Lei no 11.803/2008 ao adequar a vamente vinculado ao consumo, isso tem
carteira de títulos do Bacen às flutuações um efeito muito rápido. Isso pode ser visto
da liquidez bancária decorrentes inclusive ao analisarmos os detentores dos títulos da
dos depósitos à ordem do Governo Federal. dívida pública e vermos que quase um terço
O percentual da dívida mobiliária na car- está na mão do Bacen, e cerca de dez por
teira do Bacen comprometido com contratos cento está na mão do Tesouro, esterilizando
de operações compromissadas permaneceu a conta de produção de resultado primário.
elevado ao longo de 2009 conforme se mos-
tra no gráfico da página anterior. Após esse 4.3. O enfraquecimento das
percentual atingir um pico em setembro metas fiscais na União
de 2009 (90%), verificou-se uma diminui- Nos últimos anos, uma série de medidas
ção nos três últimos meses, encerrando o que tornam menos transparentes e críveis
exercíco em patamares próximos a 80%. O os resultados primários obtidos pelo Setor
importante é tentar definir uma tendência Público tem sido tomadas, em geral e em
em que as operações compromissadas saí- particular, pela União.
ram de um patamar próximo aos 30% em A retirada das obras do Programa de
dezembro de 2003 e atingiram patamares Aceleração do Crescimento da Base do
superiores a 80% em dezembro de 2009. Resultado Primário, verdadeiros exercícios
contábeis para produzir resultado primá-
4.2.1. Utilização sistemática do rio como a capitalização da Petrobrás e a
endividamento como instrumento da utilização do Fundo Soberano e do BN-
política monetária DES, conforme descrevemos abaixo como
Tradicionalmente os manuais falam da exemplo, representa perigosos precedentes
dívida pública como uma forma de atender e compromete os resultados declarados.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 169


4.3.1. Capitalização da Petrobrás e são acima do valor da capitalização; nesse
a produção de superávit primário caso, a receita do Tesouro seria maior do
para o Tesouro Nacional que a despesa, o que ajudaria a melhorar os
Como a atual administração federal não indicadores fiscais. Mas essa via deixaria a
desejava reduzir a participação do Estado Petrobrás sujeita à necessidade imediata de
no capital da empresa, foi necessário mo- levantar mais capital, para obter recursos
bilizar recursos públicos para efetuar essa com os quais poderia complementar o pa-
capitalização. No entanto, a metodologia gamento de parte do direito de exploração
contábil atualmente vigente reconheceria, do petróleo, já que nem todo o valor da
na simples capitalização em dinheiro ou concessão seria coberto pela entrega de
títulos, uma despesa primária – opção ações da empresa.
indesejável em um ano de grande eleva- Por outro lado, se o valor da concessão
ção de despesas públicas e dificuldade de ficasse abaixo do valor da capitalização, a
cumprimento das metas fiscais. Petrobrás teria uma sobra de caixa para in-
A solução encontrada foi capitalizar a vestir, mas os indicadores fiscais sofreriam
empresa por meio da outorga do direito uma indesejável deterioração.
de exploração de reservas petrolíferas, em A solução encontrada para esse dilema
substituição à simples entrega de recursos foi dividir essa operação em duas partes7:
orçamentários ou títulos públicos. Em tro- a) uma de capitalização da Petrobrás,
ca, a União receberia ações da empresa. A no valor de R$ 43 bilhões, integralizada
rigor, a transação seria realizada em duas em petróleo do Pré-Sal – neutra, portanto,
etapas, com o uso de títulos públicos fede- do ponto de vista do superávit primário;
rais, que seriam posteriormente cancelados, b) outra de venda de barris adicionais
mas essa etapa intermediária não tem maior do Pré-Sal à Petrobrás, no valor de R$ 31,8
importância. Essa concessão foi realizada, bilhões – valor que, com a capitalização, re-
sem licitação, ao amparo da Lei 12.276/10, sultou no total divulgado de R$ 74,8 bilhões.
que autoriza a União a ceder onerosamente Note-se que a Petrobrás recebeu direito
à Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobrás – o de exploração do petróleo, em parte como
exercício das atividades de pesquisa e lavra integralização de capital, pagando em ações
de petróleo, de gás natural e de outros hi- e aumentando a participação da União, e
drocarbonetos fluidos de que trata o inciso em parte a título de compra, pagando em
I do art. 177 da Constituição Federal, e dá dinheiro ou títulos do Tesouro. Foi essa
outras providências. segunda parte que resultou na elevação do
É claro que, se o valor da capitalização superávit primário.
coincidisse com o valor dos campos conce- Até aqui, a solução adotada parece simi-
didos onerosamente à empresa, o impacto lar à alternativa de fixar o valor da capitali-
sobre o resultado primário seria nulo. A zação abaixo do valor da concessão do petró-
receita da cessão onerosa dos campos – leo. Mas há uma diferença marcante, relativa
considerada primária – seria equivalente à origem dos recursos que a Petrobrás usou
à despesa representada pela absorção das para pagar o petróleo enterrado que recebeu
ações da empresa pelo Tesouro. A operação na etapa “b”. Em vez de obtê-los pela entre-
se reduziria à troca de ações pela concessão ga de ações ao Tesouro, a empresa levantou
de campos petrolíferos. esse montante no BNDES e no FSB, que
Uma vez levantada essa alternativa, adquiriram, também, ações da companhia.
que evitaria o impacto negativo nas contas Isto é, a forma de fazer com que o montante
públicas da capitalização, é fácil perceber 7
Essa exposição busca maior clareza e não corres-
que essa estratégia poderia ser levada mais ponde exatamente à forma assumida pela operação,
longe. Seria possível fixar o valor da conces- mas equivale a ela em valores e resultados.

170 Revista de Informação Legislativa


de recursos do Tesouro comprometidos com orçamentário e acabam por impactar nas
a capitalização da Petrobrás fosse inferior finanças, e causam o endividamento, de
ao valor recebido pela cessão onerosa dos forma indireta.
campos petrolíferos foi tornar o BNDES e A possibilidade aberta pela Lei n o
o FSB sócios da Petrobrás, que, ao fim e ao 4.320/64 de proporcionar reabertura dos
cabo, pagou tudo em ações à União – embora créditos especiais e extraordinários, aber-
não diretamente ao Tesouro Nacional. tos no último quadrimestre do ano, até o
Como as operações realizadas por inter- limite dos seus saldos não utilizados, sem
médio do BNDES não são consideradas des- vinculá-los a uma limitação ou equivalên-
pesas primárias, o impacto da operação so- cia com o financeiro transferido, gera um
bre as receitas de concessão seria superior ao desequilíbrio na origem de sua reabertura.
impacto da capitalização da Petrobrás. No Os créditos extraordinários, sem indica-
entanto, para que essa operação se concreti- ção de fonte, eram um problema seriíssimo
zasse, seria necessário que o BNDES tivesse até que, em 2008, o STF deu a limitação
recursos para capitalizar a Petrobrás. Como interpretando a constituição que, além
o Banco não dispunha desse montante – e dos quesitos necessários para a medida
nisto reside o ponto crucial da operação –, provisória (urgência e relevância), o crédito
o próprio Tesouro Nacional emprestou ao extraordinário deveria obedecer também
Banco os recursos com que o BNDES pagou aos quesitos de imprevisibilidade.
as ações que adquiriu da Petrobrás. A Lei de Diretrizes Orçamentárias para
A associação da operação entre o Te- 2010 inovou criando a possibilidade de
souro Nacional, o BNDES e a Petrobrás à transferir os créditos não utilizados nas
geração de um superávit primário traz em si áreas de Ciência e Tecnologia e em relação
alguns perigos. O primeiro é criar a ilusão de às obras da Copa do Mundo de 2014. A
que o superávit primário, no sentido em que questão de criar um crédito plurianual não
o conceito foi criado, está crescendo e atende é tecnicamente um problema em que pese
as metas da Lei de Diretrizes Orçamentárias. haja previsão em Lei Complementar e men-
Além disso, a contabilização da opera- ção na Constituição sobre a anualidade.
ção, da forma como foi realizada, equivale a Vários países trabalham com orçamentos
uma licença para elevar os gastos correntes. ou parte de orçamentos plurianuais. O
Como a triangulação de recursos por meio problema é não condicionar a passagem
do BNDES evita a contabilização de parte desses créditos a um financeiro equivalente
da capitalização da Petrobrás como despesa ou às reservas no orçamento seguinte, de
primária, abre-se, no orçamento, uma lacu- forma a não produzir desequilíbrios entre
na para a elevação das despesas. o financeiro e orçamentário. Da forma que
Em suma, a capitalização da Petrobrás estamos tratando atualmente a matéria, o
descaracterizou os indicadores fiscais e carry over de créditos orçamentários sem
abriu espaço para o aumento dos gastos dotação financeira representa um carry off
correntes, sob a aparência de que o superá- sobre a programação financeira.
vit primário foi preservado e até ampliado. A estimativa e reestimativa de receita
foi colocada como um dos procedimentos
4.4. Procedimentos que geram desequilíbrios prioritários pela Lei de Responsabilidade
entre o financeiro e orçamentário – Fiscal e foi criado o gatilho que, caso o pla-
reaberturas de crédito, carry over, créditos nejamento não seja bem feito, o financeiro
extraordinários, reestimativas de receitas e e o orçamentário previstos devam ser veri-
“excessos de arrecadação” ficados bimestralmente, sendo procedidos
Existem vários procedimentos no pro- automaticamente os ajustes necessários.
cesso orçamentário que afetam o equilíbrio Porém, a não utilização de critérios técnicos

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 171


para estimativa e reestimativa de receitas Referências
exerce uma pressão política sobre as fontes
de financiamento. BANCO MUNDIAL. Dívida pública: a experiência
brasileira. Secretaria do Tesouro Nacional e Banco
A utilização de excessos de arrecadação
Mundial: Brasília, 2009.
por fontes para abertura de créditos espe-
ciais ou suplementares, se por um lado BRASIL. Relatório de contas do Presidente da República.
Brasília: Tribunal de Contas da União, 2010.
pode ter uma razão técnica no sentido de
que várias fontes são vinculadas, por outro BRASIL. Relatório e demonstrações financeiras do Banco
pode fazer o movimento de expandir as Central do Brasil. Brasília: Banco Central do Brasil, 2011.
autorizações sem fazer as restrições nas BRASIL. Relatório e Demonstrações Financeiras do Banco
fontes em que haja frustração de receitas, Central do Brasil. Brasília: Banco Central do Brasil, 2010.
gerando o mesmo problema de pressões BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das
sobre as fontes de financiamento do Estado. finanças. 14. ed. rev. atual. por Flávio Bauer Novelli.
Rio de Janeiro: Forense, 1996.

5. Conclusões IMA FILHO, José Batista de. O processamento da des-


pesa pública com ênfase em programas de trabalho.
A Lei de Responsabilidade Fiscal re- Classe Contábil, Fortaleza, jan. 2004. Disponível em:
presentou um indubitável avanço em um <http://www.classecontabil.com.br/trabalhos.php>.
processo lento e gradual de ajuste do endi- Acesso em 2 jul. 2004.
vidamento e melhoria do perfil da dívida MACHADO JÚNIOR, José Teixeira; REIS, Heraldo da
pública. Sem dúvida, após uma década de Costa. A lei 4.320 comentada. 31. ed. rev. atual. Rio de
vigência, o perfil de endividamento tem Janeiro: IBAM, 2003.
melhorado muito, já que em menos de uma MOTTA, Carlos Pinto Coelho; FERNANDES, Jorge
década a relação dívida/PIB passou de Ulisses Jacoby. Responsabilidade fiscal: lei complemen-
tar n. 101 de 4/5/2000. 2. ed. rev. atual. e ampl. Belo
mais de 60% para valores próximos a 40%.
Horizonte: Del Rey, 2001.
Não obstante o franco progresso, há
uma série de aspectos da dívida que ain- OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Responsabilidade fiscal.
2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
da não são controlados como: os restos a
pagar; o afrouxamento da disciplina fiscal SERRA, José. A Constituição e o gasto público. Fe-
da União; pouca transparência na relação derativo/BNDES, Brasília, jun. 1989. Disponível em:
<http://www.federativo.bndes.gov.br>. Acesso em
entre política fiscal e monetária e pressões
6 jun. 2004.
sobre o equilíbrio entre as autorizações
orçamentárias e o fluxo financeiro que TOLEDO JÚNIOR, Flávio de; ROSSI, Sérgio Ciquera.
O processo orçamentário municipal à vista da Lei
ainda representam dúvidas e problemas de Responsabilidade Fiscal. Portal Interlegis, Brasília.
que devem ser acompanhados e discuti- Disponível em: <http://www.interlegis.gov.br/
dos, principalmente no que se refere ao fiscalizacao/20040317105351>. Acesso em 2 jul. 2004.
orçamento federal. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitu-
cional Financeiro e Tributário. 2. ed. rev. atual. Rio de
Janeiro: Renovar, 2000. 5 v.

172 Revista de Informação Legislativa


A democracia nos estados islâmicos
Variáveis determinantes da compleição no limiar do
século XXI

Urbano Carvelli

Sumário
1. Introdução. 2. A terminologia dissimulan-
te no limiar do século XXI. 3. Variáveis deter-
minantes da democracia nos Estados islâmicos.
3.1. Perspectiva normativa da democracia nos
Estados islâmicos. 3.2. Tendências dogmáticas
da democracia nos Estados islâmicos. 3.3. A
situação empírica da democracia nos Estados
islâmicos. 4. Considerações finais.

1. Introdução
O Anno Domini 2011 certamente será
retratado na história da humanidade como
um ano de revoluções e protestos em todo o
mundo, marcado por um clamar uníssono
pela democracia e seus valores contíguos.
Para um observador neutro, a situação
não poderia ser mais ambígua. No mundo
ocidental e no oriental, o clamar pela de-
mocracia advém da necessidade de novos
impulsos e novas essências diante dos
problemas estruturais e do sentimento da
perda da equidade desses sistemas (BEN
JELLOUN, 2011, p. 13; CROUCH, 2003, p.
133; LÜBBEN, 2006, p. 164; RODRIK, 2011,
Urbano Carvelli é professor encarregado p. 9; SANDCHNEIDER, 2011, p. 13). Con-
para Direito Público Luso-Brasileiro na Faculda-
tudo, apesar da ambivalência evidente em
de de Direito da Universität zu Köln (República
Federal da Alemanha). Bacharel em direito
que vivenciamos a democracia, dos desafios
(LL.B.) pela Universidade do Vale do Paraíba sistêmicos com os quais somos confronta-
(República Federativa do Brasil); especialista dos e o notório desconhecimento aonde
em direito alemão pela Friedrich-Wilhelms- isso irá nos levar, a paráfrase democrática
-Universität Bonn; mestre (LL.M.) e doutorando da aspiração dos povos orientais islâmicos
em direito pela Universität zu Köln. compreenderia certamente a existência de
Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 173
Direitos Fundamentais, do Estado de Direi- (BERGSDORF, 1978, p. 17; CIFTCI, 2010, p.
to, do Pluralismo e do Sufrágio Universal; 1442; NUSCHELER, 1992, p. 67; SCHMITZ,
afinal, “l’homme est condamné à être libre” 2000). Contudo, dentro do nosso contexto
(SARTRE, 1970, p. 36) e tais valores, como temporal, as discussões praticamente do-
inerentes a condição humana, não são minaram os séculos XIX e XX (KELSEN,
exclusivamente ocidentais (ALBRECHT, 1920, p. 1) e retomaram a sua posição de
2011; DEUTSCHE…, 2011a; KUHN, 2011; atualidade na realidade da “Weltstunde
MERKEL A.; NETANYAHU, 2011; NEW..., des Verfassungsstaates” (HÄBERLE,
2011; PORTAL…, 2011; SHLAIM, 2011). 1997, p. 279) por meio do renascimento e
Dessa forma, se a liberdade é um axioma da globalização do Estado Constitucional
inato do ser humano e a democracia é noto- (WEIDENFELD, 1996, p. 15). No entanto,
riamente a forma de gestão política que ofe- ao se contemplarem as discussões atuais,
rece as melhores condições para a realização torna-se evidente que a utilização inflacio-
da liberdade, o entendimento do que perfaz nária do atributo “democracia” nos últimos
a democracia não é necessariamente unifor- anos conduziu a uma universalidade termi-
me (BODEMER; KRUMWIEDE; NOLTE, nológica dissimulante do termo (STERN,
1999, p. 9-32; HELD, 2006; LAUGA, 1999; 1984. p. 440). Na esfera internacional, a
MERKEL W., 2010; SCHMIDT, 2000). E, utilização inflacionária pelos Estados da
nesse sentido, num primeiro momento, se comunidade internacional pode ser fa-
as aspirações são as mesmas, nada poderia cilmente constatada por meio da simples
garantir que os povos islâmicos compre- análise dos diversos instrumentos jurídicos
endem a democracia assim como nós a dos últimos anos (CARIBBEAN…, 2000;
entendemos ou vice-versa (DEUTSCHE…, COMUNIDAD…, 2000; COMMUNITY…,
2011b). Aqui, porém, é evidente que se a 2000, 2002, 2005, 2007, 2009; Free…, 2001,
acepção da palavra é disjuntiva, o valor 2004; INTERNATIONAL…, 2003; INTER-
representado pelo conceito na percepção -PARLIAMENTARY…, 1997, 2009; MER-
do termo nos Estados islâmicos não o é: COSUR, 2001; ORGANIZATION…, 2001,
cidadãos que clamam pela democracia nas 2003, 2004, 2005). Na esfera nacional, a
ruas de seus Estados de cunho islâmicos universalidade terminológica dissimulan-
evidenciam que a questão não é se os povos te repousa na utilização inflacionária do
fundados explicitamente no islã seriam ap- atributo “democracia” pelos Estados nas
tos a viver numa democracia – e sim, qual suas esferas jurídicas internas (como, por
a compleição de uma democracia fundada exemplo, na própria Constituição), o que
explicitamente no Estado de cunho islâmico propicia a formação de uma biosfera com
(FUKUYAMA, 1992; HUNTINGTON, 1991; entendimento sistêmico próprio. Assim, a
KRÄMER, 2011; LACHMAN, 2011; STEIN, deformação do termo possibilita uma es-
2011). Assim, este artigo pretende tratar peciação terminológica com a consolidação
da problemática intrínseca e das variáveis de uma base conceitual de autolegitimação
determinantes que dão compleição ao fenô- própria. Consequentemente, tornou-se co-
meno da democracia dos Estados islâmicos mum encontrar Estados que se denominem
orientais no limiar do século XXI. democracias, nos quais inexistem variáveis
democráticas determinantes básicas como,
2. A terminologia dissimulante no por exemplo, Direitos Fundamentais, Esta-
do de Direito, Pluralismo e Sufrágio Uni-
limiar do século XXI
versal (WALKER, 2009, p. 1). Em resumo, a
As discussões sobre a democracia globalização da utilização inflacionária do
são uma variável constante na história atributo “democracia” e a erosão causada
da civilização há mais de dois milênios pela universalidade terminológica dissimu-

174 Revista de Informação Legislativa


lante vigente tanto no plano internacional Líbia (97%), Malásia (60,4%), Maldivas
quanto nacional devem permanecer no foco (100%), Mali (90%), Marrocos (98,7%), Mau-
da ciência diante dos atuais acontecimentos ritânia (100%), Níger (80%), Nigéria (50%),
democráticos nos Estados islâmicos (BIRLE Omã (75%), Paquistão (95%), Qatar (77,5%),
et al, 2002, p. 7; HORNUNG, 1993, p. 353). Quirguistão (75%), Senegal (94%), Serra
Leoa (60%), Síria (74%), Somália (100%), Su-
dão (70%), Tajiquistão (90%), Tunísia (98%),
3. Variáveis determinantes da
Turquemenistão (89%), Turquia (99,8%) e
democracia nos Estados islâmicos Uzbequistão (88%) (PULSFORT, 2010).
Enquanto o novum das revoluções
democráticas nos Estados islâmicos é 3.1. Perspectiva normativa da democracia
noticiado pela literatura jornalística, as nos Estados islâmicos
discussões acadêmicas procuram acurar A análise das variáveis determinantes
o conhecimento dos denominadores co- da democracia nos Estados islâmicos per-
muns. Assim a literatura científica perti- manece um tema da atualidade com uma
nente dos últimos anos comporta vários dinâmica própria vinculada a realidade
estudos que, em suma, analisam partes normativa e a práxis dos respectivos Esta-
constitutivas de um problema: a demo- dos. O termo Estado advém da Modernida-
cracia nos Estados islâmicos (METZGER, de; surge na Renaissance e se espalha como
2007, p. 7). Uma parte da literatura segue termo jurídico por toda a Europa no século
uma perspectiva normativa da democracia nos XIX, como na Alemanha “Staat”, na Itália
Estados islâmicos. Outra linha de trabalho “Stato” e na França “Ètat” (ISENSEE, 1985,
trata das tendências dogmáticas da democracia p. 133). Porém, uma definição do termo Es-
nos Estados islâmicos. Por fim, tem-se ainda tado que adquira uma validade atemporal e
uma linha de trabalho que trata da situação universal é impossível, pois a sua essência
empírica da democracia nos Estados islâmicos. abrange um contexto científico com diver-
Outro aspecto importante das discussões sas perspectivas normativas e empíricas as-
é a quantificação das democracias nos sim como posições antagônicas no tempo e
Estados islâmicos como objeto de estudo. no espaço que não se deixam resumir numa
Aqui, os países membros e associados da definição escolar primária ou ginasial. No
Organização da Conferência Islâmica (OCI) entanto, a experiência metodológica e a prá-
compõem certamente uma lista referencial tica consuetudinária dos Estados modernos
importante. Contudo, a existência de uma sugere aqui uma distinção funcional entre
população com uma “maioria islâmica” é o as variáveis determinantes mínimas que
fator decisivo para o estudo de uma demo- perfazem a compleição da substancialidade
cracia islâmica (GHOLAMASAD, 2002, p. democrática nos Estados islâmicos.
16; MERKEL, 2003). Esses são os 48 Estados
com maiorias islâmicas: Afeganistão (99%), 3.1.1. O Estado islâmico
Albânia (70%), Arábia Saudita (100%), O entendimento do Estado na Moder-
Argélia (99%), Azerbaijão (93,4%), Barém nidade abrange duas dimensões distintas:
(81,2%), Bangladesh (89,5%), Brunei (67%), uma dimensão supranacional e outra nacio-
Burquina Fasso (50%), Cazaquistão (47%), nal. A dimensão supranacional comporta
Chade (53,1%), Comores (98%), Djibouti uma visão consuetudinária do Estado com
(94%), Egito (90%), Emirados Árabes (96%), elementos legitimados sobretudo na ordem
Gâmbia (90%), Guiné (85%), Guiné-Bissau das Nações Unidas adotada após a última
(50%), Iêmen (97%), Indonésia (86,1%), Irã guerra mundial (HOBE, 2008, p. 51). Como
(98%), Iraque (97%), Jordânia (92%), Koso- sujeito do direito internacional, a definição
vo (90%), Kuwait (85%), Líbano (59,7%), do Estado nesse patamar é imprescindível

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 175


para a sua inclusão num sistema suprana- O Tratado de Medina, firmado (por volta
cional de direitos e obrigações. de 620 d.C.) entre Maomé e os líderes
Na prática supranacional, a doutrina dos diversos clãs, serve de base para a
adota uma definição mínima para o reco- constituição do primeiro Estado islâmico
nhecimento do Estado, a qual prevê a exis- e a definição da legitimidade do soberano
tência de três elementos básicos: território naquela comunidade política(KHAN, 2007,
(Staatsgebiet), poder constituído (Staats- p. 21). A posição de Maomé como chefe
gewalt) e povo (Staatsvolk) (SCHWEITZER, de Estado e líder espiritual por dez anos
2010, p. 231; VERDROSS; SIMMA, 1984, embasa, já nos primeiros momentos, um
p. 599). Dentro desse contexto suprana- entendimento duplo da legitimidade do
cional, todos os Estados islâmicos citados soberano com aspectos terrenos e religiosos
possuem um determinado território, apre- e o monismo entre o Estado e a religião. A
sentam um poder constituído, possuem evidência do problema da legitimidade no
uma população politicamente organizada islã surge, pela primeira vez, na ocasião do
e são reconhecidos, como tal, pela comu- falecimento do profeta Maomé no ano de
nidade internacional. Dessa forma, as três 632 d.C. perante a necessidade da nome-
condições básicas para o reconhecimento ação de um sucessor terreno. Seguindo o
de uma estrutura estatal mandamental já direito consuetudinário sunita vigente, a
são uma realidade na práxis consuetudi- comunidade elege Abu Bakr como sucessor
nária desses Estados islâmicos, alinhada legítimo – a minoria xiita, no entanto, reco-
ao entendimento jurídico de uma filosofia nhecia apenas Ali Ibn Abu Talib, o qual além
do Estado internacional que não pode de ter parentesco com Maomé era casado
ser ignorada (CONZE; BOLDT, 2004, p. com a sua filha Fátima1 (TRAUB, 2011, p.
1). Essa realidade perante a comunidade 45). Tem-se aqui uma primeira disparidade
internacional dos Estados forma a condi- no entendimento da legitimidade do sobe-
ção determinante da soberania externa, rano na comunidade política islâmica: no
internacional, reforçando, no raciocínio califado (acepção sunita), o califa assume
inverso, a existência de uma soberania uma posição política representativa com
interna, ou melhor, nacional, legitimadora uma pretensão religiosa; enquanto no
daqueles elementos constitutivos básicos imanato (acepção xiita), o imã assume uma
também nos Estados islâmicos. Na dimen- posição religiosa representativa com uma
são nacional, as características do poder pretensão política. Assim, nos dois modelos
constituído (Staatsgewalt) são os coeficientes há uma coexistência e interdependência
que formam a chave para compreensão de entre representação e religião.
quase todos os problemas relacionados com Em suma, a legitimação aqui é teocrática
o Estado e a democracia (KRIELE, 2009, p. de menor ou maior intensidade, resultan-
29). A soberania é materializada dentro do num ou noutro soberano. Contudo,
do Estado, delimitando e especificando o enquanto o imã sempre usufruiu de uma
soberano e fundamentando a legitimidade função primordialmente religiosa sendo
no e do Estado. Assim, a questão da legiti- considerado sábio e indefectível, o califa
midade perfaz a parte interna da questão muitas vezes era considerado pedante e
da soberania (KRIELE, 2009, p. 29). 1
Dentro desse contexto, é importante distinguir
primeiramente entre a acepção dos povos muçulma-
3.1.2. A legitimidade do soberano
nos sunitas e xiitas. Os sunitas formam a maior facção
A questão da legitimidade do soberano religiosa dentro do islã comportando cerca de 85% da
nos Estados islâmicos está diretamente população muçulmana enquanto os xiitas perfazem
apenas15% dos muçulmanos em todo o mundo e
relacionada a um entendimento e desen- estão localizados sobretudo no Iraque, Irã, Barém,
volvimento histórico-teológico sempiterno. Omã e Líbano.

176 Revista de Informação Legislativa


presunçoso na sua função primordialmente guiu sobreviver aos interesses geopolíticos,
terrena (KRAWIETZ; REIFELD, 2008, p. à realidade colonial e à repulsa interna nos
21). Essa dicotomia da legitimidade marca o respectivos Estados à ideia da ocidentaliza-
início do Estado islâmico, no qual Abu Bakr ção. O resultado foi, em regra, a transfor-
submete os povos islâmicos ao seu califado, mação dos Estados islâmicos em regimes
consolida a legitimidade do terreno para si totalitários, nos quais a legitimidade do
e impõe um marco para o reconhecimento soberano repousa em dinastias sempiter-
da legitimidade terrena do soberano em nas (soberano é o ente monárquico) ou em
detrimento e na concomitância do divino. regimes de cunho ditatorial instituídos a
Um novo patamar da legitimidade do partir de convulsões internas com caráter
soberano ocorre já em 661 d.C., quando a radical militar (soberano é o usurpador)
ascensão da dinastia dos Omíadas revoga ou religioso (soberano é o líder clerical).
a tradição democrática da eleição do califa Assim, a ressonância da democracia nos
e a transforma em hereditária. Com as Estados islâmicos, vivenciada nos últimos
conquistas militares do califa, a concepção meses, pode significar uma retomada da-
da legitimidade do soberano no Estado is- quele momento de transformação político
lâmico começa a se consolidar na crença da malfadado da história institucional dos
supremacia de uma Nação “Dar al Islam” e Estados islâmicos e o desenvolvimento de
a expandir sua área de influência político- uma estrutura normativa condizente com
-social. Uma nova fase da legitimidade do os desafios no limiar do século XXI, em que
soberano dentro do Estado islâmico surge o povo figure como o verdadeiro soberano.
apenas a partir de 1683. Com o fracasso das
tentativas de tomar Viena, a derrota nas 3.1.3. Fundamento do poder constituído
estepes russas e a consequente assinatura O movimento de renascença islâmico
do Tratado de Paz de Kuchuk Kainarji em “Nahda” apresenta um ponto de partida
1774, fica evidente que a tradição do siste- importante para o entendimento da funda-
ma e dos mandamentos político-sociais do mentação do poder constituído nos Estados
islã necessitava de mudanças profundas islâmicos a partir da Idade Moderna. Com
(GHADBAN, 2011). Impulsionadas pelo o seu malogro precoce, falta no mundo
pensamento reformador do movimento islâmico a introdução de um conceito antro-
“Nahda” (Renaissance) orientado à moder- pocentrista fundamentador da autonomia
nidade ocidental, as transformações come- humana que seja comparável ao pensamen-
çam pela modernização da técnica, depois to de Machiavelli, em que a ordem terrena da
da organização militar e, já no século XIX, pessoa humana é defendida em detrimento
da política e da economia. de uma ordem divina (LHOTTA, 2006, p.
Exatamente aqui – na modernização da 1.796; SCHWAN, 1985, p. 429; STEFFANI,
política – surge o novo patamar da legiti- 1980, p. 33). Faltou também uma tradição
midade do soberano no Estado islâmico. teológico-filosófica que fundamentasse
Abandonou-se a ideia de uma Nação “Dar uma realidade pluralista e o poder na ex-
al Islam” e passou-se, então, a aceitar a tensão de uma teoria contratual político-
ideia do Estado nacional autônomo com -pluralista como em Hobbes, Locke e Rousseau
elementos nacionalistas, surgindo assim (BRÄUER, 2003, p. 541; KERBER, 2007, p.
o primeiro impulso no sentido de uma 988; LEISNER-EGENSPERGER, 2004, p. 33;
separação entre Estado e religião segundo SCHMIDT H., 1982, p. 544). Por fim, não
a visão secular do egípcio Ali Abdel-Razeq e houve um Iluminismo no sentido de Kant,
seu livro “Islã e os fundamentos do Poder” no qual as linhas limítrofes entre religião e
de 1925 (Abdel-Razeq, 1925). Contudo, razão também fossem aclaradas (MERKEL,
a Renaissance Islâmica “Nahda” não conse- 2003). Contudo, essa ausência de elementos

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 177


históricos que conduziram aos pressupos- racterísticas da hegemonia colonial: tinham
tos da democracia no mundo ocidental a respaldo político das elites locais, mas não
partir da Idade Moderna não é totalmente eram aceitos pela maioria da população.
estranha à Antiguidade islâmica e poderia Em resumo, permanece o conhecimento
até ser considerada, tendo-se em vista os de que a ideia da fundamentação do poder
acontecimentos presentes com um certo oti- constituído por uma constituição não é es-
mismo, como um intermezzo. O Tratado de tranha ao islã, tendo sido implementada na
Medina (acima citado) não apenas definiu a Antiguidade, mas pouco desenvolvida na
legitimidade e o soberano naquela comuni- Idade Moderna. Assim as transformações
dade política, ele também serviu como um ocorridas nos Estados islâmicos nos últimos
primeiro modelo de “Contrato Social” na meses e o clamar pela democracia podem
história da civilização (islâmica) (KHAN, chegar a impulsionar o desenvolvimento
2007, p. 21). Assim, o Tratado de Medina de uma constitucionalidade moderna con-
fundamenta o poder constituído por todos gruente com as aspirações daqueles povos
os habitantes residentes naquela região e no século XXI.
apresenta características de um contrato
ideal entre pessoas em um “Estado Natural” 3.1.4. Fundamento do Direito
que leva à formação de um Estado – ideia O fundamento estrutural do Direito na
desenvolvida mais tarde por Hobbes, Locke Modernidade repousa nas diversas fontes
e Rosseau (BULAC, 1998; HAYKAL, 1988, p. reconhecidas pela culturalidade do Estado,
180). Por fim, o Tratado de Medina também nas quais as particularidades microscópicas
apresenta as características de uma consti- formam as famílias jurídicas e as macroscó-
tuição política, pois regula o contrato social picas dão contorno aos sistemas jurídicos
e define, ao mesmo tempo, onde e com que existentes hoje no mundo (CARVELLI;
base o poder constituído está fundamenta- SCHOLL, 2011, p. 711; CONSTANTINES-
do. Importante no estudo do Tratado de Me- CO, 1983, p. 74; GRASMANN, 1988, p. 46;
dina é, portanto, a aceitação do fato de que ZWEIGERT; KÖTZ, 1996, p. 62). Na litera-
as pessoas no Estado Natural eram livres tura internacional pertinente, os Estados
e soberanas, que tinham diversas religiões islâmicos perfazem um sistema jurídico
(multiculturalismo) e que fundamentavam próprio com diversas famílias jurídicas
o poder constituído mediante um contrato (Madh-hābib), as quais se formaram após a
social. Isso demonstra que o islã, em termos divisão da religião islâmica em uma linha
gerais, já oferecia na Antiguidade as primei- de interpretação sunita e outra xiita (ROHE,
ras linhas estruturais de um sistema político 2001, p. 21). A linha sunita é composta pela
que surgiria no ocidente apenas séculos família Hanafista2, Malikista3, Schafiista4 e
mais tarde (KRÄMER, 2011, p. 53). A ideia Hanbalista5. A família jurídica Jafarista6 per-
de uma constituição como instrumento de
fundamento do poder também faz parte 2
Fundada por Abu Hanifa e fartamente presente
presente da história moderna do islã. Em no Egito, Afeganistão, subcontinente índico e parcial-
1861, a Tunísia, na época uma província mente na Turquia.
3
Fundada por Malik Ibn Anas e fartamente pre-
autônoma do Império Otomano, introdu-
sente no noroeste, leste e porção central da África.
ziu uma constituição política. Ao mesmo 4
Fundada por Mohammed Ibn Idris Al Schafi’i e
tempo um grupo de intelectuais também fartamente presente no oeste da África e parcialmente
preparava um projeto de constituição para o no sul da Arábia e sudeste asiático.
Império Otomano, a qual foi introduzida em
5
Fundada por Ibn Hanbal e fartamente presente
na Arábia Saudita.
1876, revogada pelo sultão dois anos mais 6
Fundada por Abū ‘Abd Allāh Dscha’far ibn Muham-
tarde e novamente promulgada em 1908. mad as-Sādiq e fartamente presente entre os sunitas
Porém, tais instrumentos apresentavam ca- ortodoxos da península arábica.

178 Revista de Informação Legislativa


tence a linha xiita (SERAUKY, 2003, p. 130; de interpretação em que o Qur’an e a Sunna
WATT; WELCH, 1980, p. 247). Para todas têm uma função primordial (GARTNER,
essas famílias jurídicas islâmicas existem 2006, p. 20). Em resumo, permanece o conhe-
duas fontes do Direito (Fiqh): a Scharī’a como cimento de que os fundamentos do Direito
direito canônico primordial e a Qānūn como nas democracias islâmicas são diretamente
direito terreno promulgado pelo soberano orientados a uma acepção religiosa da pes-
com importância subsidiária (ERMACO- soa humana, da sociedade e do Estado, na
RA, 1983, p. 365). As fontes primárias são qual o Direito está diretamente vinculado à
o Qur’an como a palavra divina e a Sunna interpretação da palavra de Alá no Qur’an,
como os ensinamentos provenientes da vida que assume uma posição “constitucional”
de Maomé (SALEM, 2009, p. 34). As fontes no Estado, fazendo do Estado islâmico uma
secundárias são a ijmā como o consenso, urf garantia para a religião e a vida islâmicas7.
e ādāt como os usos e costumes reconhecidos
e istihsān como o interesse comum. 3.1.5. Representação e pluralismo
Ademais também temos a qiyās como Em contraposição, a vida nos países
a analogia e a ra’i como a própria opinião cristãos é caracterizada pela ortodoxia, ou
convergente com o islã. Por fim, surge o seja, pela simples orientação humana a um
Qānūn como fonte terciária de importância ensinamento religioso correto; a vida huma-
subsidiária (EBERT, 1989, p. 199). Em geral, na nos países islâmicos é caracterizada pela
o Qur’an e a Sunna são as principais fontes ortopraxia, ou seja, pela orientação humana
do Direito para todas as famílias jurídicas e à prática religiosa correta (AKASOY, 2007,
a intensidade da inclusão das demais fon- p. 12). Assim, para os povos muçulmanos
tes varia no tempo e no espaço durante o a vivência religiosa prática é muito mais
desenvolvimento dessas famílias jurídicas. importante do que para os povos cristãos.
A escola Hanafista é a mais liberal da linha Esse fato coloca a dimensão teológica da
sunita, na qual ra’i, qiyās e istihsān também existência humana não apenas no centro
assumem uma função primordial – com da vida espiritual, mas também da vida
a ressalva de que apenas as passagens social e, consequentemente, no centro da
consideradas autênticas são reconhecidas questão da representação política no islã
(KHOURY, 2006, p. 261). Uma linha mais (SCHÄFER, 2000, p. 135). Esse fato eviden-
tradicional de interpretação do Qur’an e da cia a interdependência entre representação
Sunna e uma restrita aplicação da urf e ādāt e religião no islã, em que fica evidente que
são praticadas pela escola Hambalista. Tal o heterogêneo é dissonante nas acepções
escola é característica na Arábia Saudita e seculares e islâmicas da representação na
a sua proliferação mundial com uma visão democracia (LADEUR, 2011, p. 17). Nas
mais restrita da religião é fartamente finan- democracias seculares, a presença do hete-
ciada pelo governo daquele Estado (KHOU- rogêneo sempre foi uma variável constante;
RY, 2006, p. 261). Uma visão interessante é apenas sua interpretação e trato comportam
diversas acepções na filosofia do Estado8.
praticada pela escola Malikista, na qual as
fontes secundárias do direito, a urf e ādāt, 7
Um aspecto importante nesse sentido é o fato da
estão num primeiro plano. A ra’i, no entanto, língua do Alcorão ainda ser a língua árabe original, o
só é válida quando a urf e ādāt não forem ca- que dá ao texto um grau de autenticidade muito maior
do que a Bíblia, pois aquele não passou por inúmeras
pazes de conduzir a um resultado coerente. traduções e adaptações linguísticas.
O objetivo da escola Schafiista era a unifi- 8
Sobre a problemática do pluralismo, as diversas
cação do islã por meio do fomento da sua acepções e fases: (BIRKE, 1978, p. 222; KREMEN-
DAHL, 1977, p. 108; QUARITSCH, 1980, p. 37; SCH-
jurisprudência. A característica dessa escola MIDT, 2000, p. 103; SCHMITZ, 2000, p. 224; SEPTH,
é uma negação da istihsān e a utilização da 2000, p. 123; STEFFANI, 1980, p. 72; VON BEYME;
qiyās e ijmā dentro de uma linha tradicional HELMS, 2004, p. 198).

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A posição do heterogêneo no Estado de- repousar na vontade divina, na natureza
mocrático secular moderno do pós-guerra ou na própria razão humana (CARVELLI;
é marcada pelo Pluralismo. Característica SCHOLL, 2011, p. 167; RIEDEL, 2004, p.
do Pluralismo é a existência de um setor 546). Na sua dimensão formal, sua funda-
controverso e outro não controverso na es- mentação pode estar alocada no âmbito
trutura do Estado (FRAENKEL, 1982, p. 161; supranacional ou nacional, apresentando
SCHMIDT, 2010, p. 220). Aqui, enquanto a características sistêmicas específicas. No
constituição define a parte não controversa âmbito internacional, segue-se a nomen-
do Estado, o setor político é necessaria- clatura implementada pelas Nações Unidas
mente controverso, e, portanto, dinâmico, para os Direitos Humanos. A titularidade
mudando constantemente por meio da dos Direitos Humanos é inerente à condi-
interação política dos interesses existentes ção de pessoa humana e a existência de um
na sociedade. Por sua vez, o Estado secular perímetro estatal é irrelevante para o seu
democrático moderno desconhece o resulta- reconhecimento. No âmbito nacional, os di-
do final dessa dinâmica, afinal o Estado não reitos da pessoa humana estão diretamente
conhece nenhuma religião, mundividência acoplados ao sistema jurídico proveniente
e opinião (KRÜGER, 1966, p. 179). Essa da carta política de um determinado Esta-
abertura dinâmica permite uma constante do e, portanto, interligados aos elementos
adaptação a priori do setor político, uma constitutivos do Estado – na práxis luso-
nova formação da vontade no Estado e -brasileira fala-se de Direitos Fundamentais.
uma mutação do objetivo a posteriori, pois Os Direitos Fundamentais são restritos no
conteúdo e objetivo permanecem abertos espaço do território (Staatsgebiet) do Estado
à dinâmica heterogênea dos intérpretes da e vinculam apenas o poder constituído
constituição (HÄBERLE, 1975, p. 297). Na (Staatsgewalt) pela carta política. Contudo,
democracia islâmica, por sua vez, também é as constituições modernas costumam di-
possível encontrar um setor não controverso ferenciar ainda entre direitos do cidadão
e um setor controverso dentro do Estado. (Staatsvolk) e direitos da pessoa humana de
Contudo, o setor não controverso abrange modo a estender a proteção constitucional
aqui uma religião, mundividência e opinião aos residentes não nacionais e transeuntes
adotada pelo Estado. Isso limita uma aber- do perímetro estatal, o que gera uma certa
tura dinâmica no setor controverso, pois o dificuldade entre a diferença classificatória
espectro da pluralidade temática disponível de Direitos Fundamentais da pessoa huma-
para a interação e o desenvolvimento da co- na e Direitos Fundamentais do cidadão, os
munidade política é limitado ou até mesmo quais estão ancorados dentro da constitui-
inexistente. Característica da democracia ção e não perfazem Direitos Humanos no
islâmica é assim uma redução temática e sentido clássico do termo.
humana da representação dentro do político
a um mínimo ínfimo, pois o Estado conhece 3.1.6.1. Direitos Humanos
os objetivos a priori e a posteriori dessa co- Uma das características básicas da
munidade política e não deixa uma abertura segunda metade do século XX na história
para o heterogêneo temático e humano da humanidade foi a grande importância
entre os intérpretes da constituição. temática dos Direitos Humanos na comuni-
dade internacional. No perímetro ocidental,
3.1.6. Direitos da pessoa humana
tal importância impulsionou a implemen-
Na sua evolução histórica, o fundamen- tação de tratados, sistemas supranacionais
to dos direitos da pessoa humana apresenta e estruturas de justiciabilidade daqueles
critérios materiais e formais. Na sua di- direitos inerentes à condição humana.
mensão material, a fundamentação pode Contudo, o reconhecimento desses instru-
180 Revista de Informação Legislativa
mentos pelos Estados islâmicos no decorrer mos ainda as versões de 1994 e 2004 da The
do século XX foi marcado, em regra, por po- Arab Charter on Human Rights. Tal carta foi
sições que vão desde indiferença, passando adotada pela Liga Árabe mediante resolução
por reconhecimento parcial e chegando até e promulgada primeiramente em 1994.
posições de elevadas ressalvas (FISCHER; Contudo, devido a um insatisfatório pro-
DIAB, 2007, p. 2972). Nos últimos anos do cesso de ratificação por parte dos Estados
século XX, a temática encontrou uma res- islâmicos membros daquela organização,
sonância própria dentro das organizações tal documento não pôde entrar em vigor.
islâmicas internacionais, a qual culminou O trabalho conjunto daquela organização
na promulgação de alguns instrumentos com as Nações Unidas possibilitou uma
de Direitos Humanos eminentemente segunda versão daquela carta em 2004
islâmicos. (LEAGUE..., 2006, p. 147). Ao contrário dos
Entre tais instrumentos podemos encon- demais instrumentos islâmicos, essa carta
trar a Universal Islamic Declaration of Human aparenta implementar um novo entendi-
Rights de 1981 (RIEDEL, 2004, p. 546); The mento dos Direitos Humanos dentro do
Cairo Declaration of Human Rights in Islam islã, como podemos perceber já em algumas
de 1990 (RIEDEL, 2004, p. 562) e The Arab passagens da introdução:
Charter on Human Rights nas versões de 1994 “Given the Arab nation’s belief in
(RIEDEL, 2004, p. 568) e 2004 (LEAGUE…, human dignity since God honoured it
1994). Porém, tendo em vista a universali- by making the Arab World the cradle
dade dos Direitos Humanos conferida aos of religions and the birthplace of
e pelos instrumentos das Nações Unidas civilizations which confirms its right
no Direito internacional, o paralelismo to a life of dignity, based on freedom,
daquelas declarações islâmicas gera uma justice and equality, Pursuant to the
maior necessidade de esclarecimento das eternal principles of brotherhood,
implicações imanentes. A Universal Islamic equality and tolerance among all
Declaration of Human Rights foi proclamada human beings which were firmly
em 1981 e possui um caráter tradicional, established by the Islamic Shari’a
em que a Scharī’a define a interpretação de and other divinely-revealed religions,
seu conteúdo (vide como exemplo: Art. 1 (...)” (LEAGUE…, 2006, p. 149).
a) (BOGDANDY; WEILERT; WOLFRUM, Entre os principais aspectos dessa
2009, p. 329). Contudo, a referida declara- carta, tem-se o reconhecimento de diver-
ção foi promulgada pelo Islamic Council sas religiões, a igualdade entre o homem
of Europe, uma organização privada sem e a mulher e o fato de a interpretação
competência de caráter vinculante, a qual desse documento não estar vinculada à
não representa a maioria dos muçulmanos mundividência da Scharī’a (BOGDANDY;
(WÜRTH, 2003, p. 37). The Cairo Declaration WEILERT; WOLFRUM, 2009, p. 329). Ade-
of Human Rights in Islam foi proclamada em mais, fica evidente que a pessoa humana
1990 pela Organização da Conferência Islâmica deixa de receber a sua dignidade humana
(OCI) e também coloca a Scharī’a no centro apenas dentro da religião e passa a ter uma
da interpretação de seu conteúdo (vide dignidade humana universal congruente
como exemplo: Art. 2 und 25). com as demais declarações pertinentes.
Contudo tal declaração não tem caráter Assim fica evidente na leitura do docu-
vinculativo, servindo apenas de inspiração mento que a carta pretende reforçar a
aos Estados-Membros daquela organiza- vigência da ideia dos Direitos Humanos
ção que comporta quase todos os países estabelecidos pelos instrumentos das
islâmicos existentes e tem fins meramente Nações Unidas (FISCHER; DIAB, 2007, p.
culturais (WÜRTH, 2003, p. 39). Por fim, te- 2972). Na prática jurídica, é inegável que

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 181


esses instrumentos internacionais acabam welchen Staat Du hast”10. Dessa forma, os
proporcionando uma operacionalidade e Direitos Fundamentais perfazem a essência
canalização das linhas dogmáticas sobre os nuclear do Estado democrático constitu-
Direitos Humanos nas democracias islâmi- cional ocidental secular moderno e são
cas. Contudo, tais linhas são antagônicas. um critério constitutivo das democracias
Um entendimento vê os Direitos Humanos na globalização do Estado constitucional.
como uma invenção da filosofia ocidental, Neste sentido, hoje em dia, a maioria dos
os quais refletem, portanto, as posições im- Estados islâmicos possui uma carta política
perialistas e colonialistas daqueles países. ou um documento equivalente como fun-
Dessa forma, a única opção do oriente seria damento da estrutura e da organização do
rejeitar tal conhecimento veementemente9. Estado e como base da relação entre Estado
Uma outra acepção entende os Direitos e pessoa humana. Na sua concepção teóri-
Humanos como uma parte integrante da ca, o Estado islâmico é parcial: ele conhece
Scharī’a, pois tais direitos teriam sua ori- uma religião, uma mundividência e uma
gem em Alá e, portanto, sempre fizeram opinião. Essa acepção indica a posição da
parte do Qur’na (BIELEFELDT, 2003, p. religião islâmica dentro do Estado, a qual
30; FRITZSCHE, 2004, p. 88). Em resumo, toma diversas conotações dentro da carta
permanece o conhecimento de que The Arab política pertinente.
Charter on Human Rights na sua versão de Com a globalização constitucional, tais
2004 representa um marco milenar para cartas políticas possuem, em regra, uma
uma nova acepção universal dos Direitos lista de Direitos Fundamentais equivalen-
Humanos dentro das democracias nos tes aos garantidos nos Estados ocidentais.
Estados islâmicos, cujo desenvolvimento Contudo, tais acepções dos Direitos Fun-
no limiar do século XXI deve permanecer damentais são consideradas apenas num
no foco da ciência jurídica. contexto islâmico, em que as permissões e
as proibições da ordem religiosa islâmica
3.1.6.2. Direitos Fundamentais perfazem os guard rail (Leitplanken) que
Na sua acepção moderna, o Estado definem e delimitam o fluxo dos direitos
surge como expressão do consenso político de liberdade e igualdade no cotidiano (NA-
normativo da comunidade pela paz e da EEM, 2008, p. 76). Assim, as democracias
pessoa humana pela liberdade (KRIELE, islâmicas colocam a pessoa humana numa
2009, p. 67). Sua força normativa garante a posição, na qual a dignidade só existe na
paz, a vigência do Direito, institucionaliza medida da religião. Isso reduz a materia-
a liberdade e proporciona a eficiência da lidade dos Direitos Fundamentais, pois o
liberdade inata com maior ou menor efeti- entendimento dogmático da vinculação
vidade normativa dentro da comunidade (Grundrechtsbindung) (STERN; SACHS,
política e dentro do Estado. A pessoa hu- 1988, p. 1177), da multifuncionalidade
mana é assim o coeficiente exponencial na (Multifunktionalität) (STERN; SACHS, 1988,
estrutura normativa do Estado moderno e a p. 455) e da ordem de valores (Wertord-
vigência, a eficiência e a efetividade de suas nung) (STERN; SACHS, 1988, p. 899) – se
liberdades e igualdades inatas delineiam, existentes – estão interligados a uma in-
em raciocínio inverso, a silhueta do Estado terpretação religiosa estática. O mesmo
moderno conforme prediz a máxima “Zei- também acontece com os critérios formais,
ge mir Dein Staatsrecht, und ich sage Dir, em que a definição terminológica especial
(sprachliche Sonderstellung) (STERN; SA-
Essa posição é defendida, por exemplo, pelos
9
CHS, 1988, p. 111,328), a codificação (Ver-
seguintes autores: Mohammed Imara, Mohammed al-
-Ghazali e também por Ruhollah Musavi Khomeini (TIBI, 10
“Mostre-me o seu Direito do Estado e eu lhe direi
1996, p. 21,42,248). qual é o tipo do teu Estado” (STERN, 1984).

182 Revista de Informação Legislativa


briefung) (STERN; SACHS, 1988, p. 220) e democrático é a concomitância da abertura
a proteção jurídica contra a violação dos sistêmica e do dinamismo temático re-
Direitos Fundamentais (gerichtlicher Schutz) sultando na inexistência de uma verdade
(STERN; SACHS, 1988, p. 1293) também são objetiva (OBERREUTER, 1980, p. 20). Tal
definidas pela religião – com a ressalva de caraterística representa a base histórica na
uma proteção contra a violação de Direito qual todas as democracias estão embasadas.
Fundamental pelo divino, pois naquele Já em Atena (462 – 429 a.C.) era direito de
sistema, o próprio divino define a materia- todos os cidadãos (HANSEN, 1984, p. 17)
lidade jurídica dos Direitos Fundamentais. participar das sessões na Agora e tomar par-
Em resumo, permanece o conhecimento de te dos debates da Eclésia (BLEICKEN, 1986,
que os Direitos Fundamentais dos sistemas p. 128; STÜWE; WEBER, 2004, p. 24; Ta-
jurídicos islâmicos nacionais estão funda- Rkiainen, 1966, p. 224). A identidade en-
mentados, em regra, na vontade divina. tre representantes e representados naquela
Essa característica impede que os Direitos democracia permitia que todos os cidadãos
Fundamentais assumam o seu lugar no ápi- participassem ativamente na formação da
ce da ordem jurídica e definam a silhueta vontade do Estado (Staatswillensbildung) e
do Estado na medida da pessoa humana. que tomassem ciência das diversas opiniões
existentes sobre os vários temas políticos
3.1.7. Estrutura da Öffentlichkeit11 (Meinungs-und Willensbildung des Bürgers)
O conhecimento de que a capacidade (FINLEY; PACK, 1980, p. 22).
dialética da pessoa humana perfaz uma Porém, essa concepção da Öffentlichkeit
característica imanente e constitutiva da muda com o advento do Estado Nacional
nossa espécie, a qual permite ao Zoon moderno (em contraposição à minúscula
Politikon interagir com outras pessoas, territorialidade da Cidade-Estado) (FRA-
tomar decisões e a criar condições para ENKEL, 2011, p. 165; VORLÄNDER, 2003,
a vida em sociedade, pertence ao rol das p. 49; STERN, 1992, p. 1.027). A introdução
máximas elementares da nossa civilização. desse novo tipo de Estado trouxe o elemen-
Na história da humanidade, é possível to da representação a nível organizacional e
encontrar vários modelos políticos nos uma separação da formação da vontade do
quais essa característica dialética é consi- Estado (Staatswillensbildung) e da formação
derada. O modelo que oferece a melhor da opinião e vontade políticas do cidadão
concepção dialética no Estado constituído (Meinungs-und Willensbildung des Bürgers).
é a democracia (BEIERWALTES, 1999, Nas democracias modernas, o soberano
p. 34; GUGGENBERGER, 1998, p. 89; elege os seus representantes por meio de
WIESENDAHL, 1981, p. 124). No Estado eleições, os quais exercem a soberania e
constitucional democrático moderno, a dão forma à vontade do Estado em nome
dialética da pessoa humana tem caráter su- do povo (Staatswillensbildung) (STERN,
praestatal, fundamenta a soberania interna, 1984, p. 615). O controle da comunidade
usufrui de imunidade e obriga o Estado à política ocorre na sociedade com a for-
neutralidade. Característica básica dessa mação da opinião e vontade políticas do
estrutura dialética no Estado constitucional cidadão (Meinungs-und Willensbildung des
Bürgers). Porém, na prática do cotidiano,
11
As dimensões e as variáveis que o termo sua consecução depende exclusivamente
Öffentlichkeit usado dentro da Filosofia do Estado da estrutura da Öffentlichkeit delineada
alemão emana não se deixam resumir numa expres- pela concepção dialética definida na cons-
são equivalente da língua portuguesa, o que torna
imperativo o uso da grafia idiomático original. Sobre
tituição, a qual reflete, em geral, posições
o termo na filosofia do Estado ver Habermas (1962) garantidas pelos Direitos Fundamentais.
e Häberle (2000). Nas democracias dos Estados islâmicos,

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 183


a estrutura da Öffentlichkeit também é in- a retomada dos valores e das estruturas
fluenciada por fatores sistêmicos próprios. tradicionais proporciona soluções para os
Contudo, em linhas gerais, a dialética problemas da atualidade. Assim, os funda-
humana não apresenta uma condição su- mentalistas pregam a derrocada da moder-
praestatal no Estado islâmico, pois existe nidade pela retomada estrita dos valores e
somente em função do divino e do Estado conceitos contidos na palavra divina (da Bí-
como guardião da religião. Ademais, a blia na fé cristã, da Torá na fé judaica ou do
dialética humana não conduz necessaria- Qur’an para a fé islâmica) – o que também
mente a uma fundamentação da soberania implica numa crítica ao individualismo e
interna. Consequentemente, a ausência do ao pluralismo em sociedades secularistas
caráter soberano na dialética humana tolhe (MARTY; APPEBLY; MÜNZ, 1996, p. 197;
a perspectiva de imunidade desta dentro NOHLEN, 1998, p. 199; PRUTSCH, 2008,
do Estado islâmico – e tal ausência também p. 59). Da mundivisão teológica surge,
não obriga o Estado à neutralidade. Carac- frequentemente, uma dimensão política,
terística básica dessa estrutura dialética a qual objetiva a implementação daquelas
nas democracias dos Estados islâmicos é a premissas teológicas no campo político e
concomitância do monoteísmo sistêmico e requer a adoção de posições conservadoras,
temático resultando na existência de uma podendo conduzir ao “radicalismo” ou ao
verdade estatal objetiva (HÄBERLE, 2008, “extremismo”. No caso do islã, o funda-
p. 105). mentalismo teológico prega a retomada do
Como apresentado acima, o Estado ideal do século VII pelo respeito à Scharī’a,
islâmico é, na sua concepção, parcial: ele da permissibilidade de penas dracônicas e
conhece uma religião, uma mundividên- de uma rigorosa proibição do contato entre
cia e uma opinião. Ademais, ele também homens e mulheres em todas as esferas da
conhece os objetivos a priori e a posteriori vida humana – a qual implica num trata-
da comunidade política e não permite uma mento desigual e numa desequiparação
abertura para o heterogêneo temático e hu- social e legal da mulher perante aquele. Em
mano entre os intérpretes da constituição. sua dimensão política, o Fundamentalismo
Em resumo, permanece o conhecimento dentro do islã é comumente simbolizado
de que a relação do Estado com a tríade pelo termo Islamismo (TARTSCH, 2008,
das liberdades de opinião, informação e p. 26; WIMMER, 2009, p. 432;), o qual dá
imprensa permanece um problema central forma à busca pela concretização política12
das democracias nos Estados islâmicos que da pretensão teológica como único cami-
merece uma atenção especial no decorrer nho para o retorno à idealidade da pessoa
do século XXI.
12
O modus operandi para a concretização política
3.2. Tendências dogmáticas da das pretensões religiosas fundamentalistas pode ser
democracia nos Estados islâmicos reduzido a duas linhas distintas: a facção legalista
age por meio de entidades de representação com
Ponto de partida do estudo das tendên- amplos programas sociais e procura criar as condi-
cias dogmáticas modernas da democracia ções necessárias para a expansão de um pensamento
nos Estados islâmicos são as transforma- político condicente com aquelas pretensões religiosas
fundamentalistas. A facção militante, por sua vez,
ções no início da década de 80 decorrentes procura impor sua política por meio da força. Entre
da Revolução Islâmica no Irã e a conse- seus representantes temos, por exemplo: Al-Quaeda
quente politização e polarização do Fun- (com a utilização do terrorismo a nível internacional);
damentalismo e do Secularismo islâmicos Ansar al-Islam (com a utilização de terrorismo a nível
nacional no Iraque) e as instituições Hamas, HizbAllah,
(KRAMER, 1997, p. 102). Izzadin al-Qassam-Brigaden (as quais atuam em seus
Aspecto central do Fundamentalismo respectivos territórios e possuem poderio bélico para
é a mundivisão teológica de que apenas ações militares/terroristas) (BUNDESAMT..., 2008).

184 Revista de Informação Legislativa


humana, da sociedade e do Estado (AH- 3.2.1. Impossibilidade de coexistência
MAD, 1963; ECCEL, 1984; FIGIL, 2004, p. entre o islã e a democracia
33; RIESEBRODT, 1998, p. 67). Por sua vez, A posição de que o islã e a democracia
a característica básica do Secularismo, na não podem coexistir é típica dos fundamen-
sua dimensão teológica, repousa na eman- talistas islâmicos, os quais defendem a im-
cipação e na consequente autonomia dos possibilidade baseados em diversas linhas
indivíduos, dos grupos sociais e do Estado argumentativas13. Para uma primeira linha
dos valores e normas consagrados pelas de argumentação, a impossibilidade advém
instituições canônicas. Como termo da filo- do princípio hakimiyat allah, ou seja, “Poder
sofia política, o Secularismo é comumente de Alá”, pois como única autoridade uni-
utilizado para materializar o constante versal, somente Alá é capaz de formular
processo de emancipação da sociedade civil leis verdadeiras. Para uma segunda linha
burguesa desde a Idade Média e a conse- de argumentação, Alá transmite as suas
quente modernização por meio da transição leis para o mundo terreno por meio das
de valores do indivíduo, da sociedade e do revelações aos seus profetas. Ainda nessa
Estado (EVERHARD, 2000, p. 6.150; FIGL, linha de argumentação, o último profeta en-
1992, p. 87). Como resultado da supressão viado por Alá foi Maomé, o qual entregou
dos valores e das estruturas tradicionais e à humanidade o Qur’an – uma compilação
da convicção de domínio do mundo terreno dos mandamentos divinos transmitidos
pela ciência e pela técnica, surgem aqueles diretamente por Alá. O Qur’an assume
elementos que perfazem o Kernbereich da assim a posição de um instrumento divino
nossa sociedade ocidental, como um novo normativo da vida e do direito islâmico
entendimento do Estado (res publica); do que regula a religião, a sociedade e o Esta-
governo (“government of the people, by do. Dessa forma, não cabe ao ser humano
the people, for the people” – na inigualável legislar, mas somente assumir a função
expressão de Abraham Lincoln); da socie- passiva de empreendedor dos mandamen-
dade (pluralismo); do indivíduo (liberdade tos de Alá14. Para uma terceira linha de
e igualdade) e de domínio e compreensão
do mundo mediante verdade científica (li- 13
Entre os defensores dessa posição do mundo
berdade da ciência). Em resumo, a dialética ocidental (FUKUYAMA, 1992; HUNTINGTON, 1991).
14
O egípcio Sayyid Qutb (1906-1966) pertence ao rol
da mundividência dessas posições desem- dos mais importantes pensadores do islã da segunda
bocou, no âmbito dos Estados islâmicos, metade do século XX. Ele atuou como escritor e críti-
em diversas posições políticas (AMIRPUR; co literário. Após uma viagem aos EUA nos anos 50,
AMMANN, 2006; BIELEFELDT, 2003; DU- tornou-se um forte crítico da vida e da ordem ocidental
iniciando o desenvolvimento de um sistema oposto
RÁN, 1984, p. 560; ENDE; FLORES, 2005, com base numa visão radical do islã. Como membro
p. 620; STEINBACH, 2005; GERHARD, da “Irmandade Muçulmana”, foi preso e torturado
2003; NÖKEL, 2002; PRENNER, 2003, p. várias vezes pelo Estado Egípcio – o que provocou
436; RIESEBRODT, 2000; RUMPF; SYNEK, uma radicalização ainda maior da sua visão do Islã.
Suas obras descrevem a estrutura de uma sociedade em
2003, p. 786). Entrementes, o espectro de um estado de “ignorância” (jahiliya), a qual se afastou
posições nas discussões sobre a democracia completamente dos ensinamentos do Islã. A resistência
nos Estados islâmicos pode ser reduzida, dos muçulmanos deve, portanto, dirigir-se não apenas
grosso modo, a três posições básicas: uma contra os colonialistas ocidentais, mas também contra
os regimes hipócritas do mundo islâmico. Objetivo
posição argumenta a impossibilidade de coe- dessa luta deveria ser a instauração de um governo legi-
xistência entre o islã e a democracia; outra timado por Alá. Todos os muçulmanos e seus governos
posição defende a compatibilidade entre o que pactuassem com o mundo ocidental deveriam ser
declarados infiéis e combatidos. Até hoje, as obras de
islã e a democracia e uma terceira posição
Qutb servem de legitimação ideológica para as lutas
defende a possibilidade de coexistência entre militares contra os sistemas infiéis e formam a base do
o islã e a democracia. pensamento radical do Islã (BUNDESAMT..., 2006).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 185


argumentação, a impossibilidade também 2002, p. 33). Um exemplo prático desse
advém do princípio Tawhid15. Segundo esse entendimento teológico do Estado pode
princípio, Alá não detém apenas a posição ser encontrado no Afeganistão, onde a co-
de legislador, mas também a de soberano munidade internacional enfrenta enormes
(ESPOSITO; VOLL, 1996, p. 23). Assim, a dificuldades para implementar as mais
máxima de que “só existe um Deus e este simples estruturas constitutivas e cogni-
Deus é Alá” comporta a certeza de que a tivas do Estado Democrático de Direito
coexistência de outro soberano (no caso, (MAHMOUDI, 2004, p. 867).
o povo) é profana e estaria em desacordo
com a onipotência de Alá, pois o que não 3.2.2. Islã e democracia são compatíveis
está escrito no Qur’an não é a sua vontade A compatibilidade do islã com a demo-
(RADOS, 2005, p. 129; SALAMÉ, 1994, p. cracia é assegurada tanto pelos fundamen-
3). Em resumo, permanece a visão de que talistas quanto pelos secularistas mediante
a democracia é incompatível com essa diferentes argumentações. Segundo os
posição, sobretudo, devido ao monismo fundamentalistas, o princípio shūrā (consul-
existente entre o divino e o terreno – e a tação) é uma figura constante da tradição
prevalência daquele sobre este, em que, islâmica que comporta o pluralismo de
por fim, o divino representa uma Teoria opinião, de interesses, de grupos sociais
do Estado e o Qur’na, sua Constituição, não e a participação política pela consultação
sendo possível a existência de um pouvoir em todos os perímetros da vida (MELZER,
constituant e/ou de um pouvoir constitué, 2008, p. 5). Para demonstrar que esses ele-
pois tudo que não advém do divino não é mentos democráticos fazem parte da vida
apenas profano, mas também ilícito (JUNG, islâmica, os fundamentalistas apontam
ao exemplo da República Islâmica do Irã.
15
Abul Ala al-Maududi (1903-1979) foi o funda- Eles chamam a atenção, sobretudo, para a
dor, em 1941, da organização paquistanesa Jamaat-e
Islami e pertence ao rol dos pensadores islâmicos mais
Constituição da República Islâmica do Irã,
importantes do século XX, cujas obras ainda tem uma que foi desenvolvida conforme o pluralis-
ressonância exponencial. Conforme seu pensamento, mo político, ou seja, com a participação das
a força central de sociedades islâmicas é a luta contra forças liberais e de outros líderes políticos
os infiéis (kufr), o que conduz, em última análise, a
formação de um Estado com base na ordem islâmica.
e religiosos, sendo aprovada pelo povo por
Condição sine qua non da ordem islâmica é a implemen- meio de plebiscito. Ademais, eles também
tação da Scharī’a em todos os perímetros da vida. Em argumentam que a Constituição do Irã
seu pensamento figura o termo “Teo-Democracia”, a prescreve uma série de eleições para os
qual ele pretendia erigir e aonde somente aqueles que
realmente entendessem e concretizassem a vontade
cargos políticos do país: o parlamento e o
divina deveriam governar. No entanto, a silhueta do presidente são eleitos pelos cidadãos maio-
seu Estado varia de autoritário a totalitário. O chefe res de 16 anos a cada 4 anos conforme os Ar-
do Estado islâmico deve ser eleito por um grêmio e tigos 62, 63 e 114 daquela Constituição. Por
governar até seu falecimento. Pessoas com outras fés só
poderiam coexistir como “protegidos” com um status
fim, ainda existem Direitos Fundamentais
inferior. As mulheres devem permanecer distantes da na Constituição iraniana, os quais, numa
política e se dedicar aos afazeres domésticos e a família. visão geral, completariam a silhueta de um
Em seus pensamentos, al-Maududi cria conceitos como Estado Democrático de Direito e reforçam
“revolução islâmica”, “Estado islâmico” e “ideologia
islâmica”. Ademais, ele defende que na luta contra o
a ideia de que o islã e a democracia são
“Mal”, até mesmo os princípios do Islã podem ser feri- compatíveis.
dos. Com os seus conceitos e ideias al-Maududi politiza Para os secularistas, a dissonância dessa
a religião de uma forma excepcional. Para ele, o Islã argumentação está nas entrelinhas, pois
deveria ser limpo das influências negativas acumula-
das durante os séculos – o que torna sua visão atrativa,
objetiva chegar a uma aprovação tácita da
sobretudo, para os radicais islâmicos que tratavam das Teoria do Estado instaurada pelo conceito
influências ocidentais (BUNDESAMT..., 2006). Velayat-e faqih, ou melhor, do governo do

186 Revista de Informação Legislativa


jurisconsulto canônico superior desenvolvi- tucionalização constitucional do princípio
do pelo Aiatolá Ruhollah Musavi Khomeini shūrā por meio de estruturas formais com
(GÖBEL, 1984, p. 142; Hoeppner, 1980, p. função deliberativa mas sem função deci-
183; KHOMEINI, 1983, p. 34; MOIN, 1999; siva material como uma prova da referida
Naumann; Joffe, 1980, p. 214; TAHE- compatibilidade é ignorar, dolosamente, o
RI, 1985, p. 3). Característica desse conceito problema da substancialidade democrática
é a admissão da existência do canônico e do no islã18. Em resumo, permanece a certeza
terreno como duas áreas distintas do todo de que enquanto a máxima da Rule of Law
divino; em que o clero tem a obrigação de na práxis dos Estados Democráticos de
fomentar a espiritualidade das pessoas e Direito ocidentais prediz pelo Princípio da
a permissão de interagir na gestão da vida Proporcionalidade que “o fim não justifica
terrena da comunidade até a retomada o meio”, o observador ocidental obtém
do divino com o retorno de Alá16. Assim, aqui facilmente a lamentável impressão
diferentemente das linhas mais funda- de que, na práxis do Estado iraniano, a
mentalistas do islã, o Aiatolá Khomeini cria máxima da Rule of Law prediz que “o fim
uma Teoria do Estado que permite tanto a justifica o meio” – o que nos remete a
existência de elementos democráticos (por acepções totalitárias do Estado, em que a
meio do pouvoir constituant e do pouvoir figura da pessoa humana é degradada à
constitué e seus desdobramentos partici- condição de um simples objeto (veja aqui
pativos de caráter representativo) quanto a Objektformell do Bundesverfassungsgericht
a existência de elementos teocráticos (por alemão) em relação a sua utilidade para
meio do jurisconsulto canônico superior) a consecução do objetivo do Estado e a
em um sistema político cujo objetivo da consequente ineficiência sistêmica dos
Staatsräson é constituir uma estrutura de poucos Direitos Fundamentais existentes
transição até o retorno do divino17. Contu- só protege a pessoa humana da coerção,
do, na prática, tal sistema desemboca numa do abuso estatal e da plena erradicação
anulação dos elementos democráticos, indubitável de sua condição humana na
pois todas as decisões, independente do medida em que a totalidade de sua exis-
trâmite, são tomadas, de fato, no patamar tência esteja orientada àquelas pretensões,
teocrático. Assim, os secularistas criticam necessidades e objetivos estatais. Assim,
aqui exatamente que tanto o presidente mesmo perante a existência de elementos
quanto o parlamento não têm poder de democráticos materiais na Constituição,
veto às decisões do jurisconsulto canônico sua efetividade é anulada por elementos
superior. Como agravante, todos os inte- formais derivados da hegemonia teocrática
ressados no exercício do direito eleitoral implícita na Staatsräson, eliminando tam-
passivo passam pelo crivo selecionador bém o equilíbrio institucional natural (veja
do jurisconsulto canônico superior e seus aqui a jurisprudência da Supreme Court
assistentes antes de figurarem nas listas americana sobre os checks and balances)
eleitorais como candidatos oficiais – o que entre as entidades derivadas do pouvoir
praticamente elimina a oposição indeseja- constitué.
da. Dessa forma, a afirmação de que o islã
e a democracia são compatíveis não é errô-
18
Os Conselhos de Consultação encontrados na Ará-
bia Saudita, em Omã e no Irã (na forma de um modelo
nea, porém incompleta, pois elevar a insti- parlamentar) também não levaram a um florescimento
da substancialidade democrática. O problema dos
16
Veja exemplarmente o enunciado do artigo 5o conselhos shūrā é que a sua posição na ordem estatal
da Constituição do Irã, em que está explicitamente é muito fraca para chegar a ter uma influência sobre
definido que a Constituição só vale até o momento o governo. O Poder remanesce, em Omã, no Sultão;
do retorno de Alá. na Arábia Saudita, no Rei e no Irã, no Jurisconsulto
17
Artigo 5o da Constituição do Irã. Canônico Superior (MELZER, 2008, p. 9).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 187


3.2.3. Islã e democracia podem coexistir Constituição da Turquia, a qual foi adotada
por referendo popular em 1982, após uma
Característica básica dessa posição é
aprovação de 97% da população. Contu-
a mundivisão secularista de que o islã e
do, no processo de contemplação da atual
a democracia podem coexistir, a qual é
coexistência entre o islã e a democracia na
sustentada por uma parte (crescente) da
Turquia, é impossível ignorar a dimensão
literatura científica (EL FADL ABOU;
histórica despótica que possibilitou essa
COHEN; CHASMAN, 2004; KHAN, 2007,
realidade. A base ideológica para a atual
p. 17). Ponto de partida dessa posição é
coexistência do islã e da democracia na
a realocação da religião dentro do Esta-
Turquia advém do processo de transforma-
do para a concretização da coexistência ção introduzido pelo General Mustafa Kemal
(KALLSCHEUER, 2002, p. 3). Consequen- Atatürk em 1923. O Kemalismo representa
temente, a primeira questão dessa posição assim, em primeiro plano, um movimento
é relativamente simples e tem o seguinte de alinhamento forçoso da Turquia ao
teor: seria possível realocar a religião den- ocidente por uma profunda transformação
tro do Estado e da sociedade sem perder a do Estado segundo as disposições de seis
identidade religiosa característica do islã? A princípios básicos: Republicano, Populista,
resposta dessa questão é delineada primei- Revolucionário, Nacionalista, Estadista e
ramente com base na experiência prática da Laicista19.
Turquia como um exemplo bem-sucedido Tal processo forçoso também comporta
de reconhecimento internacional da coexis- em segundo plano uma transformação da
tência do islã e da democracia (ETZIONI, sociedade por meio de diversas reformas
2008, p. 11; GÖLE, 2008; KÁLNOKY, 2009, sociais como a abolição do califado, a uni-
p. 12; NASR, 2005, p. 13; SPIEGEL, 2011). ficação do sistema escolar, a proibição da
A realocação da religião dentro do Estado poligamia (com a adoção do direito civil
turco está ancorada no laicismo do Estado
fixado no art. 2o da Constituição (GÖZLER, 19
O Princípio Republicano determina a forma do
2010). Além disso, o referido mandamento Estado turco e está ancorado no art. 1o da Constitui-
ção Turca. Entre os efeitos desse princípio, tem-se
é inalterável, pois faz parte das Cláusulas a eliminação da Monarquia na forma dos Sultana-
Pétreas (Ewigkeitsklauseln) conforme as tos, dos Califados e do sistema Millet otomano. O
disposições do art. 4o daquele documen- Princípio Populista segue uma acepção própria do
to. Assim, a posição da Constituição no termo no idioma original e trata de uma pretensão
de cooperação entre todas as classes para um bem
ordenamento jurídico turco é claramente comum, com a consequente mobilização de todas as
definida e o Direito Constitucional forma a classes na construção de um Estado novo. O Princípio
porção central do Direito do Estado em que Revolucionário prediz, na linguagem marcial utilizada
nas reformas da sociedade turca dos anos 20, que o
figuram todos os aspectos principais da- processo de transformação deveria ser dinâmico e
quele Estado (STERN, 1984, p. 11). Também continuar a ser implementado pelas gerações futuras.
é interessante notar que a interpretação O termo também comporta a transformação institu-
da Constituição, de acordo com o art. 146, cional revolucionária das instituições tradicionais
por instituições modernas. O Princípio Nacionalista
assume uma posição importante naquela enfatiza a necessidade de formar uma nação a partir
comunidade política como parte central da dos diversos povos existentes dentro do Império
realidade jurídica da sociedade e do Estado Otomano, os que possuem uma história e uma língua
comum (o que também independe de um conceito de
turcos por meio do Tribunal Constitucional raça). O Principio Estadista prediz que o Estado tem o
e conforme os ditames da literatura espe- dever de promover o desenvolvimento e o progresso
cífica sobre o constitucionalismo moderno do país e se necessário atuar aonde o engajamento
privado não esteja presente. O Princípio Laicista, na
(STERN, 1992, p. 120). Por fim, a legiti-
Turquia, determina a separação dos assuntos estatais
mação popular desse documento político e dos religiosos, a qual compreende a proibição de
respalda a substancialidade democrática da partidos religiosos.

188 Revista de Informação Legislativa


helvético e a consequente equiparação ju- também vê na infrutibilidade da demo-
rídica do homem e da mulher), a suspensão cracia nos países islâmicos nos últimos
da Scharī’a, a proibição do véu islâmico, decênios o resultado do interesse geopo-
a introdução das vestimentas europeias, lítico e sobretudo econômico de outras
introdução do alfabeto latino, introdução nações apontando para a sustentabilidade
do calendário gregoriano e a proibição de artificial de regimes não democráticos por
partidos religiosos. potências democráticas ocidentais como,
Uma segunda linha explanativa tam- por exemplo, do absolutismo monárquico
bém defende a coexistência entre o islã e a na Arábia Saudita ou do absolutismo repu-
democracia tomando a existência de outros blicano vigente no Egito até poucos meses
Estados democráticos como base para o co- (EL-MAHDI, 2009, p. 1023; ROß; ULRICH,
rolário das suas argumentações. Os adeptos 2011). A difícil acepção da teoria e da práxis
dessa posição veem uma prova de que o islã da democracia ocidental também é influen-
e a democracia não se excluem ou anulam ciada pelo passado colonial extremamente
mutuamente na incontestabilidade de que explorador em muitos desses Estados
vários daqueles Estados, considerados islâmicos e impulsiona fartamente o já
eminentemente democráticos, possuem existente ceticismo histórico em relação à
uma expressiva minoria islâmica, que vive dogmática ocidental e a uma concepção da
perfeitamente integrada nas respectivas democracia orientada somente a variáveis
realidades políticas e oferece uma contri- eminentemente ocidentais (Franken-
buição constitutiva para a substancialidade berger, 2006, p. 1; KRÄMER, G., 2007).
democrática (AYDIN; HALM; ŞEN, 2003, Em resumo, permanece contudo a visão
p. 3; GOLZ, 2005, p. 3). Afinal, a história de que o islã e a democracia podem coe-
ensina que, em quase todos os países do xistir, mesmo não sendo ainda evidente a
mundo, islâmicos ou não, já ocorreram composição das variáveis determinantes da
tentativas de implementar a democracia democracia desses países na transição e a
– e, enquanto umas malograram, outras consequente compleição que irão difundir
frutificaram. Dessa realidade não se pode, após a consolidação (KRÄMER, G., 2006).
contudo, subsumir uma regra geral de
que alguns povos seriam mais aptos à 3.3. A situação empírica da democracia
democracia que outros (HOTTINGER, nos Estados islâmicos
1991, p. 279). O parco desenvolvimento da Com a globalização do Estado Constitu-
democracia nos Estados islâmicos não seria, cional e a utilização inflacionária do termo
assim, uma consequência direta apenas do “democracia”, coube à ciência criar uma
islã e sim, primeiramente, das cobiças e técnica adequada que fosse capaz de pos-
intrigas de alguns déspotas e usurpadores, sibilitar o trato das transições e, mais tarde,
os quais não estavam dispostos a permitir das consolidações democráticas (COPPED-
a emancipação política e a consecução da GE, 2002, p. 35; HELD, 2006; NUSCHELER,
democracia (HOTTINGER, 2000, p. 419). 1992, p. 67). A técnica utilizada inicialmente
Aliás, a culturalidade democrática para tratar das transições e/ou das con-
ocidental não tem como ignorar essa reali- solidações democráticas visava apenas a
dade, pois também advém de um processo uma classificação primária de algumas
histórico semelhante, em que a democracia variáveis democráticas (DIAMOND, 1996,
surge somente após um longo processo p. 20; HUMAN..., 1995; KARATNYCKY
de desenvolvimento político-filosófico e et al, 1995). Contudo, essa metodologia
da luta contra o conceito do soberano que permitia apenas uma parca caracterização,
recebia todo seu poder de Deus (KELSEN, não distinguindo, porém, de antemão, entre
1970, p. 164). Por fim, a literatura pertinente democracias e não democracias (CROIS-

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 189


SANT; THIERY, 2000, p. 9; KRENNERICH 3.3.1. Critério unidimensional
et al, 2003, p. 8; KRENNERICH, 2002, p. 55).
A análise da substancialidade democrá-
Dessa forma, mediante a constatação
tica pode ocorrer, primeiramente, por um
de que diversas daquelas cristalizações
critério unidimensional. Característica da
apresentavam algumas anomalias, passou-
posição minimalista é a concentração da
-se a ordenar os regimes conforme suas ca-
análise qualitativa apenas nas variáveis da
racterísticas imperativas, e a especificação
dimensão vertical de uma democracia, ou
linguística do modelo sempre ocorria por
seja, todos os aspectos do acesso às posi-
meio de adjetivos melhores ou piores para
ções de poder estatais como: o instituto do
especificar uma determinada disposição
Sufrágio Universal, os Direitos Eleitorais
das variáveis democráticas determinan-
ativos e passivos, a existência de Partidos
tes e, consequentemente, a determinação
Políticos e a regularidade e condições das
de um tipo específico de democracia
Eleições (DAHL, 1956, 1971; FRAENKEL,
(COLLIER; LEVITSKY, 1997, p. 430). As-
1962, 1991; LOCKE, 1974; MONTESQUIEU,
sim, ainda é comum encontrar na literatura
1965; MILL, 1991; SCHUMPETER, 1950;
uma farta referência terminológica àqueles
TOCQUEVILLE, 1997; TRUMAN, 1971;
primeiros modelos referenciais que se utili-
WEBER, 1988). Contudo, os críticos dessa
zam de jargões como, por exemplo, demo-
avaliação argumentam – corretamente –
cracia “eleitoral”, “restrita”, “controlada”,
que a utilização de um critério qualitativo
“de baixa intensidade”, “delegada”, “não
unidimensional, por considerar apenas a
liberal” ou “defeituosa” (MERKEL, 1999,
dimensão vertical e negligenciar toda a
p. 361). No entanto, a problemática da uni-
dimensão constitucional da democracia
versalidade terminológica dissimulante já
pela ignorância consciente de uma série
é tratada, há algum tempo, de uma forma
de outros aspectos qualitativos fundamen-
diferente pela ciência, por meio de um pris-
tais, não é adequada (GASTIL, 1990, p. 25;
ma qualitativo com critérios quantitativos
JAGGERS; GURR, 1995, p. 469; MÜLLER;
das variáveis democráticas determinantes
PICKEL, 2007, p. 511; VANHANEN, 2003).
(ALTMANN; Pérez-Liñán, 2002, p. 85;
No entanto, permanece o entendimento de
Berg-Schlosser, 2004. p. 248; BÜHL-
que um critério unidimensional é capaz
MANN et al., 2008, p. 114). Assim, a clas-
de oferecer resultados mínimos palpáveis
sificação democrática contemporânea não
para o estudo das democracias – e neste
ocorre simplesmente através da análise da
caso, também das democracias nos Estados
existência de algumas variáveis democrá-
islâmicos. Em seu estudo sobre as demo-
ticas determinantes, mas, sim, pela medida
cracias publicado no ano de 2010, a NGO
da eficiência de cada uma dessas diversas
americana Freedom House adotou uma visão
variáveis dentro de um sistema político
unidimensional, a qual é frequentemente
estabelecido, as quais fornecem, analisadas
assinalada pela definição “democracia
em suas dimensões conjunturais, uma base
eleitoral” (PUDDINGTON, 2009). Das 194
de conhecimento referencial para a defini-
democracias estudadas, 116 receberam a
ção da substancialidade democrática do sis-
denominação de “democracias eleitorais”,
tema político em estudo. Entre os diversos
ou seja, uma percentagem de apenas 59,8%.
índices existentes, tomar-se-ão aqui apenas
três como referência para uma análise das ish Overseas Department; Polity IV Project da Principal
democracias nos Estados islâmicos20. Investigators Societal-Systems Research Inc. and Colorado
State University; Transition Report do European Bank
20
Entre os índices não considerados temos: Human for Reconstruction and Development; Country Policy
Development Index das United Nations; Democracy-Index and Institutional Assessment do World Bank; Corruption
do professor Tatu Vanhanen; Nations in Transit da Perception Index da Transparency International; Transfor-
Freedom House; World Governance Assessment do Brit- mationsindex da Bertelsmann Stiftung.

190 Revista de Informação Legislativa


Das 116 “democracias eleitorais” apenas 10 transportar facilmente para as especiali-
eram islâmicas21 contra 106 não islâmicas, dades atuais dos Estados islâmicos23. Em
o que corresponde a uma percentagem de resumo, permanece o entendimento de que
8,6% para as islâmicas e 92,4% para as não um critério bidimensional para a análise
islâmicas. Ademais, a representatividade qualitativa da democracia pode gerar bons
da “democracia eleitoral” entre os países resultados para o estudo das democracias –
islâmicos é precária: entre os 48 países de e nesse caso, também das democracias nos
maioria islâmica (KRAWIETZ; REIFELD, Estados islâmicos. Em seu estudo Failed
2008, p. 21), a representação da democracia States Index de 2010 (THE FUND..., 2010), a
eleitoral é de apenas 20,8%. Contudo, cabe ONG americana The Fund for Peace adotou
lembrar que o estudo acima considera ape- uma visão bidimensional e analisa 177 de-
nas uma visão unidimensional da democra- mocracias24. Das 37 democracias alocadas
cia, ou seja, parte de condições minimalistas no menor índice qualitativo denominado
da dimensão vertical22. “democracias em alerta”, 17 são democra-
cias islâmicas25. Isso perfaz um índice de
3.3.2. Critério bidimensional 45,9% para as democracias islâmicas contra
Uma análise da substancialidade demo- 54,1% para as democracias não islâmicas.
crática também é possível pela utilização de Ao considerarmos as democracias islâmicas
um critério bidimensional. Característica alocadas em relação à totalidade de de-
dessa posição participativa é uma exten- mocracias islâmicas existentes, temos um
são da análise unidimensional à dimensão índice de 35,4% (KRAWIETZ; REIFELD,
horizontal da democracia, ou seja, dos 2008, p. 21). Entre as 92 democracias alo-
elementos constitutivos do Estado de Di- cadas no segundo menor índice qualitativo
reito: Direitos Fundamentais, Separação de denominado “democracias em perigo”,
Poderes, Supremacia do Direito, proteção temos 27 democracias islâmicas, o que em
jurídica contra o Poder Público, acesso aos percentuais corresponde a 29,3% contra
Tribunais e vigência do Princípio do Juiz 70,7% para democracias não islâmicas26.
Natural (BOS, 1996, p. 81). No entanto, Ao considerarmos a presença em relação à
alguns autores argumentam que existe totalidade de democracias islâmicas temos
uma diferença na dimensão horizontal 23
Os críticos argumentam, sobretudo, que os ele-
entre as democracias na fase de transição mentos da dimensão do Estado de Direito na fase de
e de consolidação. Segundo esses autores, transição da América Latina praticamente inexistem
enquanto a dimensão horizontal é encon- ou apresentam formas mínimas, sugerindo a adoção
trada nas democracias em fase de consoli- de um critério diferencial regional para análise daque-
las democracias: a dimensão do controle civil sobre as
dação, ela praticamente inexiste na fase da forças policiais e militares poderia fornecer o grau de
transição democrática, tomando a América desenvolvimento do Estado de Direito e proporcionar
Latina como exemplo. Assim, os autores uma visão da estrutura institucional daquelas demo-
propõem, sobretudo, a consideração de cracias (KRENNERICH, 2003, p. 8).
24
O Index of State Weakness in the Developing World
especialidades regionais para os Estados da organização americana Brookings Institution é muito
em transição, como, por exemplo, no caso semelhante e será ignorado aqui neste ensaio.
da América Latina, o que também se deixa 25
Afeganistão, Bangladesh, Burquina Fasso,
Chade, Guiné, Guiné-Bissau, Iran, Iraque, Líbano,
21
Albânia, Bangladesh, Comores, Guiné-Bissau, Níger, Nigéria, Paquistão, Serra Leoa, Somália, Sudão,
Indonésia, Maldivas, Mali, Senegal, Serra Leoa e Uzbequistão e Iêmen.
Turquia. 26
Albânia, Arábia Saudita, Argélia, Azerbaijão,
22
Para uma quantificação dos problemas dos 10 Brunei, Cazaquistão, Comores, Djibouti, Egito,
países islâmicos categorizados como “democracias Gâmbia, Indonésia, Jordânia, Kuwait, Kosovo, Líbia,
eleitorais” veja os respectivos relatórios no estudo: Malásia, Maldivas, Mali, Marrocos, Mauritânia,
Freedom in the World 2010: Erosion of Freedom Intensifies Quirguistão, Senegal, Síria, Tajiquistão, Tunísia, Tur-
(PUDDINGTON, 2009). quemenistão e Turquia.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 191


um índice de 56,3%. Contudo, a situação outras áreas da vida humana e também
diverge um pouco no segundo critério não perfaria um elemento constitutivo
qualitativo mais elevado denominado “de- da democracia (HABERMAS, 1973, p. 33;
mocracias moderadas”. Das 35 democracias LUHMANN, 1981a, 1981b, p. 287). Con-
alocadas nesse nível, apenas 4 são islâmi- tudo, permanece o entendimento de que
cas27. Isso significa, em percentuais, apenas um critério multidimensional comporta
11,4% contra 88,6% para democracias não elementos inerentes à sustentabilidade da
islâmicas. Ao considerarmos a presença democracia que podem gerar excelentes
em relação à totalidade de democracias resultados para o estudo da qualidade
islâmicas temos um índice de apenas 8,3%. socioeconômica das democracias – e neste
Por fim, no mais alto patamar qualitativo caso, também das democracias nos Estados
denominado “democracias sustentáveis”, islâmicos (MEYER, 2005, p. 20; MILLER et
temos 13 democracias, das quais nenhuma al., 1967, p. 16; RAWLS, 1971, p. 120; SEN,
é islâmica28. 1996, p. 394). Em seu estudo Worldwide Go-
vernance Indicators, o Banco Mundial adota
3.3.3. Critério multidimensional uma visão multidimensional analisando
Uma análise da substancialidade demo- dimensões do Estado de Direito, da efetivi-
crática também é possível por meio de um dade do Governo e da estabilidade política
critério multidimensional. Característica a partir de 6 dimensões em 213 democracias
dessa posição maximalista é uma extensão (THE WORLDWILD...; THE WORLD...;
da análise bidimensional à dimensão trans- KAUFMANN; KRAAY; MASTRUZZI,
versal da democracia mediante a inclusão 2007). De acordo com as bases estatísticas
de pressupostos de bem-estar social como a de 2009, das 105 democracias alocadas nas
redução das diferenças sociais e a qualidade posições negativas do critério Voice and
de vida. Como um critério qualitativo mais Accountability29, 45 são democracias islâmi-
complexo, o critério multidimensional é cas30. Isso corresponde a um percentual de
ideal para analisar a qualidade do compor- 42,9% contra 57,1% de países não islâmicos.
tamento, da estrutura e da estabilidade da Ao considerarmos a presença em relação à
democracia de países que se encontrem em totalidade de democracias islâmicas, temos
pontos avançados da transição democrática um índice de 93,6%. Nas posições positivas
e do desenvolvimento econômico e social dessa variável, temos 107 democracias
(BARRIOS, 1999, p. 9; SCHEDLER, 1998, p. das quais apenas 2 possuem uma maioria
91; WEIHRAUCH, 1996, p. 7). Os críticos islâmica31, o que corresponde a 1,9% contra
dessa posição afirmam, no entanto, que 98,1% para democracias não islâmicas. Ao
uma análise qualitativa da democracia a considerarmos a presença em relação à tota-
partir de pressupostos sociais não deve ser
rejeitada apenas por motivos pragmáticos,
29
“Voice and accountability captures perceptions
of the extent to which a country’s citizens are able to
mas também por razões teórico-democrá- participate in selecting their government, as well as
ticas, pois a democracia compreende uma freedom of expression, freedom of association, and a
igualdade em liberdade que se cristaliza free media” (THE WORLD…).
na igualdade de chances na participação
30
Afeganistão, Arábia Saudita, Argélia, Azer-
baijão, Barém, Bangladesh, Brunei, Burquina Fasso,
política, na formação da opinião pública, Cazaquistão, Chade, Comoro, Djibouti, Egito, Emi-
no exercício do governo e no exercício da rados Árabes, Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau, Iêmen,
oposição; o que não valeria, porém, para Irã, Iraque, Jordânia, Kosovo, Kuwait, Líbano, Líbia,
Malásia, Maldivas, Marrocos, Mauritânia, Níger, Ni-
Barém, Emirados Árabes, Omã e Qatar.
27
géria, Omã, Paquistão, Qatar, Quirguistão, Senegal,
Áustria, Austrália, Canada, Dinamarca, Fin-
28
Serra Leoa, Síria, Somália, Sudão, Tajiquistão, Tunísia,
lândia, Holanda, Irlanda, Islândia, Luxemburgo, Turquemenistão, Turquia e Uzbequistão.
Noruega, Nova Zelândia, Suécia e Suíça. 31
Albânia e Mali.

192 Revista de Informação Legislativa


lidade de democracias islâmicas, temos um maioria islâmica37, o que corresponde a
índice de 4,2%. No critério Political Stability 10,5% contra 89,5% de democracias não
and Absence of Violence32, das 94 democracias islâmicas. Ao considerarmos a presença em
alocadas nas posições negativas, 35 são is- relação à totalidade de democracias islâmi-
lâmicas33. Isso corresponde a um índice de cas, temos um índice de 20,8%. No critério
37,2% contra 62,8% para democracias não Regulatory Quality38, das 110 democracias
islâmicas. Ao considerarmos a presença alocadas nas posições negativas, 35 são islâ-
em relação à totalidade de democracias micas39, o que corresponde a um percentual
islâmicas, temos um índice de 72,9%. Nas de 31,8% contra 66,2% para não islâmicas.
posições positivas dessa variável, temos 119 Ao considerarmos a presença em relação
democracias, das quais apenas 13 possuem à totalidade de democracias islâmicas,
uma maioria islâmica34. Isso corresponde temos um índice de 72,9%. Nas posições
a 10,9% contra 89,1% para não islâmicas. positivas dessa variável, temos 101 demo-
Ao considerarmos a presença em rela- cracias das quais 13 possuem uma maioria
ção à totalidade de democracias islâmicas, islâmica40. Isso corresponde a 12,9% contra
temos um índice de 26,5%. No critério Go- 87,1% para democracias não islâmicas. Ao
vernment effectiveness35, das 116 democracias considerarmos a presença em relação à
alocadas nas posições negativas, 38 são totalidade de democracias islâmicas, temos
democracias islâmicas36. Isso corresponde a um índice de 27,1%. No critério Rule of
um percentual de 32,6% contra 67,4% para Law41, das 117 democracias alocadas nas
não islâmicas. Ao considerarmos a presença posições negativas, 38 são islâmicas42. Isso
em relação à totalidade de democracias corresponde a um índice de 32,5% contra
islâmicas, temos um índice de 79,1%. Nas 67,5% para democracias não islâmicas. Ao
posições positivas dessa variável, temos
95 democracias das quais 10 possuem uma 37
Barém, Brunei, Emirados Árabes, Kuwait,
Malásia, Mauritânia, Omã, Qatar, Tunísia e Turquia.
32
“Political stability and absence of violence
38
“Regulatory quality captures perceptions of the
measures the perceptions of the likelihood that the ability of the government to formulate and implement
government will be destabilized or overthrown by sound policies and regulations that permit and pro-
unconstitutional or violent means, including domestic mote private sector development” (THE WORLD…).
violence and terrorism” (THE WORLD…).
39
Afeganistão, Argélia, Azerbaijão, Bangladesh,
33
Afeganistão, Albânia, Arábia Saudita, Argélia, Burquina Fasso, Cazaquistão, Chade, Cômoros, Dji-
Azerbaijão, Barém, Bangladesh, Burquina Fasso, bouti, Egito, Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau, Iêmen,
Chade, Comoro, Egito, Guiné, Guiné-Bissau, Iêmen, Indonésia, Irã, Iraque, Líbano, Líbia, Maldivas, Mali,
Indonésia, Irã, Iraque, Jordânia, Kosovo, Líbano, Mauritânia, Marrocos, Níger, Nigéria, Paquistão,
Maldivas, Mali, Marrocos, Mauritânia, Níger, Nigéria, Quirguistão, Senegal, Serra Leoa, Síria, Somália,
Omã, Paquistão, Quirguistão, Senegal, Serra Leoa, Sudão, Tajiquistão, Turquemenistão e Uzbequistão.
Síria, Sudão, Tajiquistão e Turquia.
40
Albânia, Arábia Saudita, Barém, Brunei, Emira-
34
Albânia e Mali. dos Árabes, Jordânia, Kosovo, Kuwait, Malásia, Omã,
35
“Government effectiveness captures percep- Qatar, Tunísia e Turquia.
tions of the quality of public services, the quality of 41
“Rule of law captures perceptions of the extent
the civil service and the degree of its independence to which agents have confidence in and abide by the
from political pressures, the quality of policy formu- rules of society, and in particular the quality of con-
lation and implementation, and the credibility of the tract enforcement, property rights, the police, and the
government’s commitment to such policies” (THE courts, as well as the likelihood of crime and violence”
WORLD…). (THE WORLD…).
36
Afeganistão, Albânia, Arábia Saudita, Argélia, 42
Afeganistão, Albânia, Arábia Saudita, Argélia,
Azerbaijão, Bangladesh, Burquina Fasso, Cazaquis- Azerbaijão, Bangladesh, Burquina Fasso, Cazaquis-
tão, Chade, Comoro, Djibouti, Egito, Gâmbia, Guiné, tão, Chade, Comoro, Djibouti, Egito, Gâmbia, Guiné,
Guiné-Bissau, Iêmen, Indonésia, Irã, Iraque, Kosovo, Guiné-Bissau, Iêmen, Indonésia, Irã, Iraque, Kosovo,
Líbano, Líbia, Maldivas, Mali, Marrocos, Mauritânia, Líbano, Líbia, Maldivas, Mali, Marrocos, Mauritânia,
Níger, Nigéria, Paquistão, Quirguistão, Senegal, Serra Níger, Nigéria, Paquistão, Quirguistão, Senegal, Serra
Leoa, Síria, Somália, Sudão, Tajiquistão, Turqueme- Leoa, Síria, Somália, Sudão, Tajiquistão, Turqueme-
nistão e Uzbequistão. nistão e Uzbequistão.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 193


considerarmos a presença em relação à século XXI irão conduzir a humanidade a
totalidade de democracias islâmicas, temos novos patamares democráticos é inegável.
um índice de 79,2%. Nas posições positivas Os acontecimentos nos Estados islâmicos
dessa variável, temos 96 democracias das provam que a democracia é interessante,
quais 10 possuem uma maioria islâmica43. tem validade universal e pode contribuir
Isso corresponde a 10,4% contra 89,6% para à tradição milenar daqueles povos.
democracias não islâmicas. Ao considerar- Contudo, enquanto a sociedade oci-
mos a presença em relação à totalidade de dental no limiar do século XXI discute as
democracias islâmicas, temos um índice de linhas gerais de um esboço com um novo
20,8%. No critério Controll of Corruption44, semblante para a democracia, o croqui nos
das 121 democracias alocadas nas posições Estados islâmicos ainda não apresenta os
negativas, 36 são democracias islâmicas45. traços gerais de uma fisionomia democrá-
Isso corresponde a um percentual de 29,8% tica. Sobre a democracia, existem, desde a
contra 70,2% de democracias não islâmicas. terceira onda de democratização mundial,
Ao considerarmos a presença em relação à vários entendimentos sistêmicos, e o estudo
totalidade de democracias islâmicas, temos científico de suas variáveis determinantes
um índice de 75%. Nas posições positivas tem mobilizado a ciência com intensi-
dessa variável, temos 90 países dos quais dade crescente. O especial interesse em
10 possuem uma maioria islâmica46, o que operacionalizar o conhecimento sobre as
corresponde a 11,1% contra 88,9% de países democracias dos Estados islâmicos surge
não islâmicos. Ao considerarmos a presen- exatamente no início do século XXI diante
ça em relação à totalidade de democracias da necessidade de um trato científico mais
islâmicas, temos um índice de 20,8%. intenso dos valores e preceitos evidentes
em 11 de Setembro de 2001 (BECKER;
ZIMMERLING, 2006, p. 416).
4. Conclusões finais
Hoje, os caminhos percorridos pela
A democracia e os seus valores contí- ciência evidenciam três perspectivas das
guos têm, como nós os conhecemos, pouco democracias nos Estados islâmicos. A
mais de 200 anos (NEVES, 1992, p. 1). Nesse perspectiva normativa mostra que a situa-
relativamente curto espaço de tempo, essa ção da democracia nos Estados islâmicos
ideia política conquistou uma acepção clara ainda necessita de grandes avanços. No
com grande ressonância. Que a universali- decorrer do século XXI, o grande desafio
dade terminológica dissimulante e os desa- das democracias islâmicas será o repensar
fios do paradoxo democrático no limiar do e a reconstrução dogmática da figura do
soberano e de sua fundamentação dentro
43
Arábia Saudita, Barém, Brunei, Jordânia, do Estado islâmico moderno. A história
Kuwait, Malásia, Omã, Qatar, Tunísia e Turquia. islâmica comprova que o molde de um
44
“Control of corruption captures perceptions
of the extent to which public power is exercised for
contrato social já foi possível muito antes
private gain, including both petty and grand forms of de os Estados ocidentais chegarem a (e
corruption, as well as ‘capture’ of the state by elites aperfeiçoarem) modelos semelhantes de co-
and private interests” (THE WORLD…). munidades políticas. Essa fase da constru-
45
Afeganistão, Albânia, Argélia, Azerbaijão,
Bangladesh, Burquina Fasso, Cazaquistão, Chade, Cô-
ção do pensamento democrático falta aos
moros, Djibouti, Egito, Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau, Estados islâmicos e seu desenvolvimento
Iêmen, Indonésia, Irã, Iraque, Kosovo, Líbano, Líbia, ainda terá de ser recuperado nos próximos
Maldivas, Mali, Marrocos, Mauritânia, Níger, Nigéria, anos. Nesse sentido, o fundamento do di-
Paquistão, Quirguistão, Serra Leoa, Síria, Somália,
Sudão, Tajiquistão, Turquemenistão e Uzbequistão.
reito nos Estados islâmicos também é um
46
Arábia Saudita, Barém, Brunei, Emirados Ára- aspecto que deverá ser retrabalhado pelas
bes, Jordânia, Malásia, Omã, Qatar e Turquia. democracias islâmicas no decorrer do sécu-

194 Revista de Informação Legislativa


lo XXI. Aqui os Estados islâmicos terão que ência dos Direitos Fundamentais em uma
encontrar um caminho para desenvolver comunidade política construída na verdade
um novo balanço entre Direito e Religião, da democracia. A perspectiva dogmática da
no qual o Direito contenha vários valores democracia nos Estados islâmicos no início
religiosos e não que uma Religião contenha do século XXI torna evidente que o leque
o Direito. Assim, a neutralidade do Estado teórico comporta acepções que vão desde
islâmico também será um tema importante posições fundamentalistas, passando por
para a consecução de uma nova visão do democracias eminentemente teocráticas e
Estado e da sociedade nas democracias chegando até posições de democracias em
islâmicas no século XXI, a fim de que: o transição. Nas posições islâmicas, o divino
Estado não conheça de antemão uma reli- representa uma Teoria do Estado e o Qur’an
gião, uma mundividência e uma opinião; é a sua Constituição, não sendo possível
a flexibilidade na definição dos objetivos a a existência de um pouvoir constituant e/
priori e a posteriori da comunidade política ou de um pouvoir constitué, pois o que não
não seja reduzida a um ínfimo mínimo e está escrito no Qur’an não representa a
exista uma abertura humana e temática vontade de Alá e não é apenas profano,
para o heterogêneo entre os intérpretes de mas também ilícito. As democracias teocrá-
uma constituição aberta e dinâmica. Por ticas, por sua vez, permitem a existência do
fim, a posição da pessoa humana dentro do pouvoir constituant, do pouvoir constitué e de
Estado islâmico no decorrer do século XXI vários elementos institucionais no Estado.
é a chave para o desenvolvimento demo- Contudo, a democracia teocrática também
crático e para a frutificação das aspirações conhece de antemão uma religião, uma
e anseios existentes hoje naqueles Estados. mundividência e uma opinião. O resultado
Nesse sentido, os últimos desenvolvimen- dessa interação é uma negação humana e
tos alcançados a nível internacional em temática do heterogêneo, em que a pessoa
relação aos direitos da pessoa humana humana é degradada à condição de um
já indicam um avanço muito grande da simples objeto em relação a sua utilidade
acepção islâmica regente no século XX. para a consecução do objetivo (da religião
Contudo, a prática dos Direitos Humanos por meio) do Estado e os instrumentos da
mostra que existe uma lacuna entre decla- coerção, do abuso estatal e da erradicação
rações universais de direitos benevolentes ocorrem na medida proporcional inversa
e a realidade de sistemas políticos imatu- em que a totalidade da dignidade humana
ros ou em transição. Assim, no decorrer esteja fora daquelas pretensões, neces-
do século XXI, a ciência deverá dar uma sidades e objetivos estatais. Um grande
atenção toda especial a vigência, eficiência potencial de desenvolvimento no decorrer
e vinculação dos direitos da pessoa humana do século XXI pode ser encontrado entre
não somente como Direitos Humanos, mas as democracias islâmicas em transição. No
também como Direitos Fundamentais, para entanto, a realidade das características que
que o Estado islâmico possa ser moldado na irão perdurar nos próximos anos ainda é
silhueta e na culturalidade da pessoa hu- insípida e necessita de um monitoramento
mana. Aqui a comunidade científica deverá da ciência internacional.
monitorar sobretudo o desenvolvimento Além das perspectivas normativa e
da tríade das liberdades de opinião, de dogmática da democracia nos Estados is-
informação e de imprensa no decorrer do lâmicos, também é possível ter uma visão
século XXI, as quais espelham de maneira da realidade naqueles Estados no início do
exemplar o pluralismo da sociedade, a século XXI a partir de uma perspectiva empí-
neutralidade do Estado, a flexibilidade da rica tomando vários estudos internacionais
política, a posição do soberano e a efici- como referência. A partir da análise de

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 195


uma perspectiva unidimensional, torna-se intercâmbio científico para implementar
evidente que 79,2% das democracias nos o desenvolvimento da democracia na
Estados islâmicos apresentam grandes culturalidade da pessoa humana daqueles
déficits na dimensão vertical. Essa situação Estados islâmicos: multiplex doctrina, veritas
agrava-se ainda mais por meio da pers- una47 – e a essa verdade nós, europeus, não
pectiva bidimensional, na qual é possível somos apenas historicamente vinculados,
verificar que 56,3% das democracias nos mas também moralmente obrigados como
Estados islâmicos estão em perigo devi- o diferencial fundamental da nossa cultu-
do aos enormes problemas na dimensão ralidade democrática.
horizontal. Por fim, a análise sistêmica da
perspectiva multidimensional proporciona
uma setorização dos problemas nas de- Referências
mocracias nos Estados islâmicos. Assim, é
possível evidenciar um déficit exorbitante AHMAD, Abdelhamid Muhammad. Die Auseinan-
na eficiência da participação dos cidadãos dersetzung zwischen Al-Azhar und der modernistischen
Bewegung in Ägypten von Muhammad Abduh bis zur
na seleção de seu governo e da liberdade de Gegenwart. Hamburg: [s.n.], 1963.
expressão, associação e imprensa em 93,6%
AKASOY, Anna. Glaube und Vernunft im Islam.
(!) das democracias islâmicas. Ademais
Bundeszentrale für politische Bildung, Bonn, Juni 2007.
também existe um alto déficit na eficiência
institucional do Direito, da polícia e dos ALBRECHT, Holger. Ägyptens zukunf zwischen
junta und demokratie. Ziet Online, Berlin, März 2011.
tribunais em 79,2% e na eficiência insti-
tucional da gestão do governo em 79,1% ALTMANN, David; PÉREZ-LIÑÁN, Aníbal. Asses-
das democracias islâmicas. Um acentuado sing the quality of democracy: freedom, competiti-
veness and participation in eighteen latin american
déficit no controle da corrupção também é a countries. Democratization, Warwick, v. 9, n. 2, p.
realidade de 75% das democracias islâmicas 85-100, Summer 2002.
enquanto 72,9% apresentam acentuados
AMIRPUR, Katajun; AMMANN, Ludwig. Der Islam
déficits na estabilidade política e violência. am Wendepunkt: liberale und konservative Reformer
Tendo em vista todos os fatos, tendên- einer Weltreligion. Freiburg: Herder, 2006.
cias e dados apresentados, fica evidente
AYDIN, Hayrettin; HALM, Dirk; ŞEN, Faruk. Euro-
que, ao clamar pela democracia nas ruas -Islam: das neue Islamverständnis der Muslime in der
de seus Estados islâmicos, aqueles cidadãos Migration. Renner-Institut: Essen, 2003.
buscam claramente por novos impulsos e BARRIOS, Harald. Konsolidierung der Demokratie:
novas essências para solução dos proble- Zur Substanz eines strapazierten Konzeptes. In: BO-
mas existentes em seus Estados. A doutrina DEMER, Klaus; KRUMWIEDE, Heinrich-Wilhelm;
e a culturalidade europeias podem oferecer, NOLTE, Detlef (Ed.). Lateinamerika Jahrbuch: 1999.
apesar dos problemas atuais evidentes Hamburg: Institut für Iberoamerika-Kunde, 1999.
(SCHÜMER, 2012, p. 25), uma excelente BECKER, Michael; ZIMMERLING, Ruth (Org.). Politik
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chaften, 2006.
mento democrático naqueles Estados islâ-
micos. Aos Estados e a ciência na Europa BEIERWALTES, Adreas. Demokratie und Medien:
cabem, porém, tarefas distintas no decorrer der Begriff der Öffentlichkeit und seine Bedeutung
für die Demokratie in Europa. 2. ed. Baden-Baden:
do século XXI: os Estados europeus devem Nomos, 1999.
procurar oferecer o maior suporte possível
para o desenvolvimento de uma culturali- BEN JELLOUN, Tahar. Arabischer Frühling: Vom
Wiedererlangen der arabischen Würde. Berlin: Berlin
dade democrática institucional. Já a ciên- Verlag, 2011.
cia, a qual é primordialmente vinculada
à verdade, deverá monitorar os aconteci- 47
Vide a inscrição sobre a entrada da Universidade
mentos, promover o diálogo e fomentar o de Rostock (1419) na Alemanha.

196 Revista de Informação Legislativa


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Coisa julgada e decisões de controle
externo terminativas

Wremyr Scliar

Sumário
1. Introdução. 2. Constituição e coisa julga-
da. 3. Decisões terminativas extrajudiciais. 3.1.
Acesso ao Poder Judiciário. 3.2. Similitude do
processo administrativo ao processo judicial.
3.3. Decisões administrativas tributárias. 3.4.
Decisões administrativas. 3.5. Decisões em julga-
mento constitucional (conforme Diogo de Figuei-
redo Neto). 3.6. Atos de governo, atos políticos e
atos de política pública. 4. O Tribunal de Contas
e a natureza de suas decisões. 4.1. O Tribunal
de Contas. 4.2. Tribunal de Contas – natureza –
evolução – Constituição de 1988. 5. Conclusões.

1. Introdução
O objeto deste trabalho é o estudo com-
parativo entre o instituto da coisa julgada
e as decisões prolatadas pelo órgão de
controle externo da administração pública,
notadamente frente aos institutos constitu-
cionais fixados na Carta Federal brasileira
que não sofrem o reexame judicial quanto
ao seu mérito.
A primeira parte examinará a coisa jul-
gada – manifestação do Poder Judiciário – e
a sua relativização por meio da rescisão.
A matéria pode se apresentar polêmica
quando examinada pelo ângulo positivista,
quando excluída a apreciação dinâmica e
contemporânea, que considera a existência
Wremyr Scliar é professor (PUCRS). Douto- de outros centros de poder, manifestações
rando em Direito Público. Conselheiro Substi- autenticamente republicanas e democráti-
tuto aposentado do Tribunal de Contas do RS. cas, situados além da clássica divisão ilumi-

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 205


nista que conceitua e separa os poderes em de indiscutível de um determinado objeto.
Legislativo, Executivo e Judiciário. É perfeitamente possível. Agora, acresce-se:
A importância de uma compreensão o objeto era um escravo. Em 1888, por lei, a
mais ampla, que por um lado tem a qua- escravidão é abolida no Brasil. O conflito que
lidade de demonstrar que a realidade não se propõe é entre a coisa julgada e a nova lei.
está dogmatizada aos cânones clássicos, Ele também poderia ser o conflito entre
mas que, ao contrário, considera-os como a coisa julgada e o fato revolucionário. No
os fundamentos de uma evolução civiliza- Haiti, a escravidão foi abolida pela revo-
tória que comprova que a atividade estatal lução e a declaração de independência do
e a sociedade civil se tornaram e vêm se país caribenho.
tornando muito mais complexas do que Demonstra isso que os fatos políticos
aquelas previstas pelos teóricos do estado – sempre legítimos, porque históricos – re-
moderno e contemporâneo. lativizam a coisa julgada e, de resto, outros
A coisa julgada é um dos valores histó- institutos.
ricos relevantes da democracia e da repú- É um demérito a esses institutos ou a sua
blica, na mais ampla compreensão histórica adaptação às novas circunstâncias?
e política dos valores que regem e regerão, De outra parte – esse o aspecto principal
cada vez mais aperfeiçoados, a civilização. a ser abordado neste trabalho – há outros
Mas eles, se não são imutáveis e petri- institutos aflorados que guardam uma
ficados em si, também sofrem injunções e indeterminada similaridade com a coisa
pressões, assim como conflitos dialéticos, julgada. São notadamente políticos, mani-
que os adaptam, transformam e permitem festação da soberania popular. Há outros,
que convivam com novas instituições – que igualmente manifestações da soberania
algumas das quais somente sonhadas por popular, têm uma proteção político-consti-
aqueles que construíram os alicerces do tucional, mas são essencialmente técnicos
estado e da sociedade contemporâneos. e entre eles serão abordadas decisões que
A coisa julgada, produzida pela ação se reputam terminativas, no seu âmbito,
política do estado no curso de uma das pertinentes às funções de controle externo
suas três funções de governo, a de dirimir da administração pública.
os conflitos segundo um sistema jurídico O sistema jurídico é estável – produz
adotado, é um dos institutos pétreos que segurança – mas não é imutável.
se mantém como fenômeno civilizatório O exemplo de uma sentença que atribui
adotado pela democracia e pela república. ao demandante a propriedade de um escra-
Mas a sua petrificidade não implica vo, e que é relativizada (senão extinta), vale
imutabilidade. Ele permanece, e isso é a também para a amplitude dos fenômenos
denominada cláusula pétrea; mas para inumeráveis do direito: a propriedade, a
permanecer ele se adapta constantemente, família, a sociedade e, por fim, mais pre-
evolui, relativiza e ganha novos contornos sentemente, os direitos humanos, sociais,
à medida que o estado e a sociedade se econômicos e políticos.
tornam mais complexos. Conclui-se, nesta parte, que a coisa
De um lado, e radicalmente, sempre se julgada pode ser relativizada, segundo
pode refletir sobre a coisa julgada frente circunstâncias políticas e sociais que são
à nova constituição, aos sucessos revo- reconhecidas, e, logo, acolhidas, pelo sis-
lucionários e até mesmo aos retrocessos tema jurídico.
reacionários. O âmbito deste trabalho é exatamente
Pode-se imaginar alguém, que antes de o confronto entre situações institucionais
1888, tivesse sido contemplado com uma que não podem ser apreciadas pelo Poder
sentença judicial atribuindo-lhe a proprieda- Judiciário e, portanto, em uma primeira

206 Revista de Informação Legislativa


aproximação, diz-se que estão guarneci- A coisa julgada material, ou substancial,
das por parâmetros estabilizadores que, existe, nas palavras de Couture, quando
fenomelogicamente, assemelham-se à coisa à condição de inimpugnável no mesmo
julgada, sem com ela se confundirem. processo, a sentença reúne a imutabilidade
até mesmo em processo posterior (funda-
mentos do direito processual civil).
2. Constituição e coisa julgada
Já para Wilson de Campos Batalha, coisa
Dispõe o artigo 5o, XXXVI, da Consti- julgada formal significa sentença transita-
tuição brasileira, que trata dos direitos e da em julgado, isto é, preclusão de todas
deveres individuais e coletivos, inserido no as impugnações, e coisa julgada material
Título II, que abriga os direitos e garantias significa o bem da vida reconhecido ou
fundamentais: denegado pela sentença irrecorrível. O pro-
“Art. 5o (...) blema que se põe, do ângulo constitucional,
(...) é o de saber se a proteção assegurada pela
XXXVI – a lei não prejudicará o direi- Lei maior é atribuída tão somente à coisa
to adquirido, o ato jurídico perfeito e julgada material ou também à formal.
a coisa julgada;” O art. 5o, XXXVI, da Constituição Fe-
De outra parte, o artigo 60, parágrafo deral, não faz qualquer discriminação; a
4o, IV, fixa: distinção é feita pelos processualistas.
“Art. 60. A Constituição poderá “A nosso ver, a Constituição assegura
emendada mediante proposta:” uma proteção integral das situações de
E no parágrafo quarto deste artigo: coisa julgada” (MORAES, 2011, p. 225).1
“Não será objeto de deliberação a A “autoritas rei judicatae” resulta na
proposta de emenda tende a abolir: imutabilidade da sentença cuja qualidade
(...) intrínseca e extrínseca nessas circunstâncias
IV – os direitos e garantias indivi- é a coisa julgada.
duais.” Uma vez que estejam esgotados os
Caracterizado como princípio, com meios de revisão do julgado, diz-se que a
natureza pétrea, a Constituição veda – em sentença passa em julgado, como já afirma-
vetor principiológico dirigido aos legisla- ra Enrico Tullio Liebman (1945, p. 33-60).
dores constituintes – proposta de emenda  Ovídio A. Baptista da Silva (2005, p.
tendente a abolir a coisa julgada, entre 455-491) define a coisa julgada:
outros direitos e garantias fundamentais. “Dissemos que se pode defini-la
Celso Bastos (2001) define a coisa julga- como a virtude própria de certas
da afirmando que sentenças judiciais, que as faz imunes
“‘é a decisão judicial transitada em às futuras controvérsias, impedindo
julgado’, ou seja ‘a decisão judicial que se modifique, ou discuta, num
de que já não caiba mais recurso processo subseqüente, aquilo que o
(LICC, art. 6o, parágrafo 3o) (...). Na juiz tiver declarado como sendo a ‘lei
coisa julgada, o direito incorpora-se do caso em concreto’”.
ao patrimônio de seu titular por força Isso não significa a absoluta irrevisibi-
da proteção que recebe da imutabili- lidade da sentença transitada em julgado.
dade da decisão judicial. Daí falar-se O Código de Processo Civil estatui as
em coisa julgada formal e material.” hipóteses em que, confirmadas, a sentença
Coisa julgada formal é aquela que se será rescindida.
dá no âmbito do próprio processo. Seus 1
Para Moraes (2011), a coisa julgada tem impor-
efeitos restringem-se, pois, a este, não o tante relevo no catálogo constitucional de 1988, como
extrapolando. direito humano fundamental.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 207


Citado por Luiz Guilherme Marinoni Concluindo: pode-se afirmar que as re-
(2004)2, Pontes de Miranda, no seu Tratado lativizações da coisa julgada, atendidos os
da ação rescisória das sentenças e de outras princípios da proporcionalidade, legalida-
decisões, afirmara existirem sentenças nu- de e instrumentalidade, demonstram que
las e sentenças inexistentes – que dispensa- a sentença não pode afrontar a realidade.
riam a rescisão por meio de ação própria. Assim, como em sentido mais elevado, tam-
Nula a sentença, nula é, poderia o juiz bém não pode afrontar circunstâncias ins-
desconstituí-la de ofício. titucionais extrínsecas à própria sentença,
Não é, entretanto, a posição de Marinoni. cujo principal fenômeno jurídico é a nova
Diz o autor que as teorias que vêm se Constituição e uma nova ordem jurídica,
disseminando sobre a relativização da coisa além, evidentemente, das situações evolu-
não podem ser aceitas. tivas da própria sociedade e do estado que
De um lado, os relativistas invocam resultem em novo ordenamento.
a realidade e o valor justiça; enquanto Afinal, a coisa julgada é um dos prin-
aqueles que sustentam a imutabilidade cípios constitucionais, proporcional e re-
prendem-se aos valores da estabilidade e lativizado como ocorre com os princípios.
segurança jurídicas. Somente a situação concreta submetida
Reconhece Marinoni que nem todos os à valoração de governo (Legislativo, Execu-
processos concluem com a sentença justa, tivo, Judiciário, bem como à valoração de
o que é apenas um ideal. Mas também, diz instituições dotadas de poder sem serem
que os relativistas não conceituam justiça. poder – o controle externo ou a fiscaliza-
Concluindo com John Rawls (1976 apud ção da aplicação da lei – e, por que não, o
MARINONI, 2004), adota a ideia de que próprio poder direto popular) pode indicar
é preferível aquiescer de que uma teoria o rumo a seguir, jurídico ou político, no
errônea é a carência de uma melhor; uma interesse público e que fará parte dos anais
injustiça é tolerável somente quando é da crônica histórica.
necessária para evitar uma injustiça ainda
maior3. 3. Decisões terminativas extrajudiciais
2
O autor sustena a relativização da coisa julgada, 3.1. Acesso ao Poder Judiciário
por ser apenas um dos princípios constitucionais e
quando frente ao confronto em caso concreto com a O artigo 5o, XXXV, comanda que a lei
dignidade humana. É ela – a dignidade humana – o não excluirá da apreciação do Poder Judi-
vetor do sistema do direito e, além disso, quando se
afirma que a sentença é justa, não há base disciplinar ciário lesão ou ameaça a direito:
para determinar a obtenção de um resultado justo. “Art. 5o (...)
Também pondera o confronto entre a segurança e a (...)
estabilidade jurídicas com a realidade, ou, segundo XXXV – a lei não excluirá da apre-
sua expressão, entre a facticidade (“faktizität”) e a
validade do direito (“geltung”), explicitado no refe- ciação do Poder Judiciário lesão ou
rido artigo à página 14 (MARINONI, 2004, p. 14-33). ameaça a direito.”
3
A posição de Rawls (1976, p. 4), literalmente no Evidente que a lesão ou a ameaça a direi-
vernáculo: “A única coisa que permite que aquies-
to não deixará de ser apreciada pelo Poder
çamos com uma teoria errônea é a carência de uma
melhor, analogicamente, uma injustiça é tolerável Judiciário, conquista notável da Carta de
somente quando é necessária para evitar uma injustiça 1988, porque, durante longas décadas, as
ainda maior”. Louvado na citação, a opinião é eivada lesões ou ameaças a direitos políticos, assim
de filosofia calvinista, uma certa dose de pragmatis-
mo liberal e utilitarismo, recordando algo de Mills.
como a outros direitos, quando ditadas pe-
A injustiça jamais deve ser aceitável, a História é um las autoridades que empalmaram o poder
repositório de injustiças para as quais aqueles que com
ela convivem alegam ser a injustiça sempre melhor humanidade é a extirpação das injustiças, jamais a
do que injustiça mais grave ou pior. O vetor ético da convivência (ou a conivência) com elas.

208 Revista de Informação Legislativa


político em 1o de abril de 1964, estavam 3.3. Decisões administrativas tributárias
vedadas de apreciação judicial.
Para o Estado, as decisões dos seus
Garantido o direito de apreciação ju-
tribunais administrativos tributários, que
dicial nos casos de lesão ou ameaça, quais
pendem para os direitos dos contribuintes,
seriam, portanto, as decisões terminativas
são terminativas.
que, sem ofensa ou lesão – e no acolhimento
Ao Estado é vedado, nessas circuns-
de situações constitucionais ou legais assi-
tâncias, o acesso ao Poder Judiciário, sob a
miladas ao sistema novo – não se submetem
ótima singela de que a decisão, em primeiro
ao julgamento judicial?
plano, é emanada legalmente por órgão
Seriam elas de variadas espécies, as
integrante da sua própria administração
quais passam a ser examinadas, concluin-
pública tributária.
do-se pela última, relativa ao controle
O Código Tributário Nacional, embora
externo, foco deste trabalho.
não discipline o processo administrativo
Deixa-se consignado que todas as exclu-
tributário, estabelece que a decisão nele
sões de apreciação, decorrentes da própria
Carta ou de legislação infraconstitucional, proferida, favorável ao contribuinte, extin-
não subvertem a apreciação judicial dos gue a obrigação tributária.
demais princípios, exemplificativamente, A matéria está minuciosamente regrada
aqueles que garantem aos administrados no Decreto no 70.235/1972, emitido com
direitos fundamentais e as necessárias base no Decreto-Lei no 822/1969 e plena-
molduras processuais-administrativas mente em vigor nesse aspecto, embora haja
garantidoras de seus direitos. modificações quanto à forma e composição
dos órgãos administrativos de julgamento
3.2. Similitude do processo tributário.
administrativo ao processo judicial A matéria é aplicável à União, Estados,
A Constituição de 1988, art. 5 o, LV, Municípios, Distrito Federal e autarquias
em notável avanço e marco civilizatório, que possuem em sua sede legal a arreca-
determina que: dação de tributos, como as contribuições
“Art. 5o (...) sociais, além de taxas e emolumentos,
(...) submetidos em seu universo aos princípios
LV – aos litigantes em processo judi- tributários.
cial ou administrativo, e aos acusados Em relação ao contribuinte, apresenta-se
em geral são assegurados o contradi- impossível o acesso ao Judiciário, porque
tório e ampla defesa, com os meios e para ele não há lesão ou ameaça a direito.
recursos a ela inerentes.” 3.4. Decisões administrativas
A consequência é indiscutível: houve
de parte do constituinte uma incisiva Nesse âmbito de decisões administra-
aproximação entre o processo judicial e, o tivas estão incluídas aquelas decorrentes
administrativo, e, em ambos, guardadas as do processo disciplinar, do processo de
peculiaridades, submetem-se os mais caros fiscalização, assim como outras espécies,
dos valores derrogadores do processo in- nas quais se inclui o poder de polícia.
quisitorial: o contraditório e a ampla defesa. Também podem ser incluídas as deci-
Essa similaridade é que permite garantir sões prolatadas por comissão de concurso
no curso dos processos administrativos a ou comissão de licitação, amparadas em
segurança indispensável aos direitos fun- suas respectivas matrizes constitucionais
damentais, vetorizando a sua decisão em e legais.
função do afloramento da verdade e da Da mesma forma como demonstrado
concretização da justiça. para as decisões dos tribunais adminis-

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 209


trativos tributários, quando contrárias ao crimes de responsabilidade, bem como dos
Estado, também lhes é vedada a apreciação Ministros de Estado nos crimes da mesma
pelo Poder Judiciário; enquanto que, se fa- natureza, conexos com aqueles (CF, art.
voráveis aos denominados administrados 52, I);
ou servidores públicos, restaria nenhum b) o processo e julgamento, pelo Senado
seu interesse em apreciação judicial. Federal, dos Ministros do Supremo Tribu-
No processo administrativo disciplinar, nal Federal, do Procurador-Geral da Repú-
concluído com a decisão favorável ao desti- blica e do Advogado-Geral da União, nos
natário da norma administrativa (servidor crimes de responsabilidade (CF, art. 49, II);
ou administrado), tolhe-se ao Estado pro- c) julgamento anual, pelo Congresso
pugnar por reexame da sua própria valo- Nacional, das contas prestadas pelo Presi-
ração na aplicação da lei ao caso concreto. dente da República (art. 49, IX);
A jurisprudência é pacífica no sentido d) parecer prévio emitido pelo Tribunal
de que não cabe ao Poder Judiciário subs- de Contas da União sobre as contas que o
tituir-se à banca examinadora de concursos Presidente da República deve prestar anu-
públicos e substituir o resultado aquilatado almente (CF, art. 71, I);
segundo determina o artigo 37, II, da Cons- e) processo e julgamento das contas,
tituição Federal. pelo Tribunal de Contas da União, dos
Igual critério nos processos de fiscali- demais administradores federais, da ad-
zação, licitação e poder de polícia, quando ministração pública direta e indireta (CF,
o órgão julgador estatal prolata decisão art. 71, II).
que exonera da conduta antes acusada o f) as fixadas às letras c, d e e são aplicá-
administratado. veis, por similaridade federativa constitu-
Poder-se-ia agregar a decisão sobre os cional, aos Estados, Municípios e Distrito
atos discricionários, cuja conveniência e Federal.
oportunidade é  alheia ao julgamento ju-
dicial, segundo dominante entendimento 3.6. Atos de governo, atos políticos
jurisprudencial e doutrinário. e atos de política pública
Os atos de governo, sem serem atos
3.5. Decisões em julgamento constitucional
de administração, são aqueles que variam
(conforme Diogo de Figueiredo Neto)4
desde a escolha de Ministros do Poder
a) o processo e julgamento, pelo Senado Executivo até as hipóteses de instituição
Federal, do Presidente da República nos de normas “interna corpore”. Situam-se na
espécie os regimentos legislativos, execu-
4
A classificação apresentada, com adaptação ao
presente ensaio, é de Moreira Neto (2003, p. 226 et tivos e judiciários e, ainda, as deliberações
seq). Poucos administrativistas incursionam no tema de âmbito exclusivo adotadas ao impulso e
da relativiação do acesso ao Poder Judiciário e das
características terminativas de determinadas decisões,
apresentar a esta Instituição de Estado anualmente,
sejam políticas, tributárias, administrativas ou de
embora documentado (ou corporificado em uma peça
controle externo – mas em qualquer das suas espécies
opinativa), é um ato político-administrativo e cujo
sempre transpostas para um ato administrativo, em
que ficam documentalizadas. Assim, a escolha de julgamento cabe ao corpo legislativo respectivo. No
um Ministro de Estado tem a sua documentabilidade seu mérito, o parecer prévio é uma peça institucional
em um ato administrativo, com pura índole política, com base no dever-poder estatuído na Carta Magna de
vez que os ocupantes desses cargos são auxiliares 1988, e tem uma nítida avaliação auditorial e pericial
do Presidente da República, e, simetricamente com de valor. Nesse aspecto, seu mérito encontra guarida
o princípio federativo, municipais e Distritais, dos na relativização do acesso ao Poder Judiciário, excetu-
Governadores de Estado, Prefeitos Municipais e Go- adas as questões relativas à lesão ou ameaça de lesão
vernador do Distrito Federal. Desde logo, o parecer a direito (nos quais podem-se incluir, v.g., o devido
prévio emitido pelo Tribunal de Contas sobre a pres- processo e o cumprimento dos demais princípios e
tação de contas que o Presidente da República deve regras constitucionais legais.

210 Revista de Informação Legislativa


sob a guarida da independência e harmonia afirmativa criação independente e técnica
dos poderes. do Estado.
Ressalte-se, por fim, os atos relativos à Nenhuma empresa privada ou ente pri-
adoção e execução de políticas públicas, vado, por mais poderoso que possa ser – e
todos notadamente sob a égide da conve- muitos o são – possuem a independência
niência e oportunidade. de controle que o Estado se auto-constitui.
Não mais do que mil empresas privadas
4. O Tribunal de Contas e a (complexo industrial, militar, química,
natureza de suas decisões informática, infraestrutura, aeronáutica,
bancos, minérios) detêm o mesmo valor
A avaliação da exoneração de apre- do produto nacional público da soma dos
ciação – quanto ao mérito – das decisões Estados do planeta.
arroladas do Tribunal de Contas, inscritas Nenhuma delas, contudo, possui o sis-
na Carta Federal para o Tribunal de Con- tema de controle externo, como realização
tas da União, mas aplicáveis aos demais democrática e dos direitos humanos, que
tribunais por força do modelo federativo qualquer Estado civilizado dispõe, com a
obrigatório estatuído no artigo 75 da Carta, independência política e técnica, mesmo
exige algumas observações. comparadas ao Estado mais empobrecido
da África ou da América Latina.
4.1. O Tribunal de Contas
As empresas privadas valem-se, para
O Tribunal de Contas da União está o controle especializado, de empresas de
regrado no artigo 71 e seguintes da Carta auditoria, cujos relatórios não têm força
de 1988. A Constituição não define sua de poder de polícia (obrigatórios para os
natureza jurídica. sistemas financeiros e securitários, como
A sua denominação (Tribunal), a locali- nos países europeus, Estados Unidos ou
zação constitucional junto ao Poder Legisla- Brasil – Lei no 4595/64).
tivo e a qualificação de suas competências As últimas falências (para ficar nas mais
(como apoio ou colaboração) são questões recentes) nos Estados Unidos ou nas empre-
tormentosas que não encontram pacífica sas financeiras no Brasil contavam com pare-
conceituação na doutrina; no Poder Judi- ceres favoráveis de auditoria independente.
ciário as decisões são discrepantes. Isso permite concluir o grau de aperfei-
Necessário, pois, enfrentar essas ques- çoamento e qualificação, fruto da indepen-
tões, salientando-se que, embora o artigo 71 dência da qual está dotado, modernamente,
discipline o Tribunal de Contas da União, o sistema de controle estatal.
por força do artigo 75, como já dito ante- Conclui-se: o controle externo da admi-
riormente, é ele modelo obrigatório para os nistração pública é instrumento da demo-
demais Tribunais ou Conselhos de Contas cracia, realização da cidadania e dos direi-
do Brasil, segundo a simetria federativa tos humanos – indisponível e indelegável,
adotada na Carta de 1988. fundado no princípio do interesse público5.
A dissertação se concentra, quanto a
esse órgão – Tribunal de Contas –, na sua 4.2. Tribunal de Contas – natureza –
natureza, competência e organização e o evolução – Constituição de 1988
referirá no singular, entendido assim que A questão principal a respeito do Tribu-
a citação singular também é válida para os nal de Contas é o exame e conclusão sobre
demais Tribunais ou Conselhos de Conta. 5
O controle externo se integra no Estado Demo-
Como resultado da longa evolução crático de Direito, indisponível e indelegável. De
histórica acima assinalada, o controle e resto, não há administração pública evoluída sem o
seu agente Tribunal de Contas são a mais dever-controle independente.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 211


a sua natureza jurídica, que se reflete na Mas em nenhum há maior facilidade
sua organização e nas suas competências. aos mais graves e perigosos abusos6.”
Viu-se antes que a iniciativa de criação Apontando os requisitos de estabilidade
do Tribunal de Contas coube a Ruy Barbo- de qualquer forma de governo constitucio-
sa, como Ministro da Fazenda, ao alvorecer nal, dos quais salienta o orçamento, o qual
da República. deixa de ser uma “contribuição formal”,
Embora não tenha sido implantado, o preconiza que se revista do “caráter de
Tribunal de Contas previsto no Decreto no uma realidade segura, solene, inacessível
966-A, de 7 de novembro de 1890, firmado a transgressões impunes”.
por Manoel Deodoro da Fonseca e Ruy “Acautelar e vencer esses escusos” que
Barbosa, Chefe do Governo Provisório e atentam contra a lei, inspirados em oposi-
Ministro da Fazenda, respectivamente, foi ção ao “interesse geral”. Esse foi sempre,
o embrião do Tribunal na Carta de 1891. diz Ruy Barbosa, o empenho de todas as
A peça legal para a primeira abordagem nações regularmente organizadas desde
sobre a sua natureza não é exatamente o que os orçamentos deixaram de ser “l’état
texto do decreto, de resto singelo, mas a du roi”.
Exposição de Motivos, longa e minuciosa, Para a instrumentação desse “acautelar
obra jurídica e literária de Ruy Barbosa. e vencer”, para superação do “l’état du
Dirigindo-se ao Generalíssimo, que roi”, para que a lei das leis (orçamento)
firmaria o Decreto, inicia Ruy Barbosa a se transforme na realidade segura, solene,
Exposição de Motivos com a oração de inacessível a transgressões impunes, Ruy
fé na “democracia”, “Constituição livre”, Barbosa propõe a instituição do Tribunal
“como base da democracia” e “o julgamen- de Contas.
to popular”. O Tribunal de Contas será apenas a
Em seguida, Ruy Barbosa afirma que tarefa política da missão de um governo
para o Governo Provisório coroar as suas que proclamou a República, propôs ao país
obras (a República) faltava-lhe a mais im- uma Constituição livre para firmar as insti-
portante providência, exigência que uma tuições democráticas em bases sólidas – o
“sociedade política bem constituída pôde Tribunal de Contas é o ente (futuramente
exigir de seus representantes”. constitucional) integrante das instituições
Referia-se o então Ministro da Fazenda democráticas que garantem que as mesmas
e autor do texto do Decreto proposto na Ex- instituições democráticas se firmam em
posição de Motivos do Decreto no 966-A à: bases sólidas.
“necessidade de tornar o orçamento Acresce Ruy Barbosa:
uma instituição inviolável e sobe- “Cumpre à República mostrar, ainda
rana, em sua missão de prover as neste assumpto, a sua força regene-
necessidades públicas mediante o radora, fazendo observar escrupulo-
menor sacrifício dos contribuintes, à samente, no regimen constitucional
necessidade urgente de fazer dessa em que vamos entrar, o orçamento
lei das leis uma força da nação, um federal.
sistema sábio, econômico, escudado Se não conseguir este desideratum:
contra todos os desvios, todas as von- si não pudermos chegar a uma vida
tades, todos os poderes que ousem orçamentaria perfeitamente equili-
perturbar-lhe o curso traçado.
Nenhuma instituição é mais relevan- 6
O documento original do Decreto no 966-A e sua
Exposição de Motivos encontram-se na Casa de Ruy
te, para o movimento regular do me- Barbosa, instituição privada criada pelos Tribunais de
canismo administrativo e político de Contas. O autor teve acesso a uma cópia reprográfica.
um povo, do que a lei orçamentária. Dela são as transcrições seguintes.

212 Revista de Informação Legislativa


brada, não nos será dado presumir expor, está hoje reconhecida em todos
que hajamos reconstituído a pátria, os países, e satisfeita em quase todos
e organizado o futuro. os sistemas de governo estabelecidos,
É, entre nós, o sistema de contabili- que apenas divergem quanto à esco-
dade orçamentaria defeituoso em seu lha dos moldes; havendo não menos
mecanismo e fraco de sua execução. de quatorze constituições, onde se
O Governo Provisório reconheceu a consigna o princípio do Tribunal de
urgência inadiável de reorganizá-lo; Contas8.”
e a medida que vem propor-vos é a O Ministro da Fazenda a seguir enume-
criação de um Tribunal de Contas, ra dois tipos de Tribunal de Contas: um no
corpo de magistratura intermediaria modelo originário da França e adotado pela
à administração e à legislatura, que, Suécia, Espanha, Grécia, Sérvia, Romênia e
colocado em posição autônoma, com Turquia, além dos “dois” grandes Estados
attribuições de revisão e julgamento, centrais da Europa – Alemanha e Império
cercado de garantias – contra quais- Austro-Húngaro, supostamente.
quer ameaças, possa exercer as suas O segundo adotado é o modelo da Itália,
funções vitais no organismo consti- perfilado pela Holanda, Bélgica, Portugal
tucional, sem risco de converter-se (há quatro anos), Chile (há dois anos) e
em instituição de ornato aparatoso recentemente o Japão – considerada a data
e inútil. do projeto.
Só assim o orçamento, passando, Ruy Barbosa explicita sobre os sistemas
em sua execução, por esse cadinho, de controle dos Tribunais de Contas: no pri-
tornar-se-á verdadeiramente essa meiro grupo “a fiscalização se limita a im-
verdade, de que se fala entre nós em pedir que as despesas sejam ordenadas ou
vão, desde que neste país se inaugu- pagas, além das faculdades do orçamento”.
raram assembléias parlamentares7.” No segundo grupo, “a ação dessa ma-
Melhor sorte teve o projeto de Ruy Bar- gistratura vai muito mais longe: antecipa-se
bosa do que os projetos anteriores, ainda que ao abuso, atalhando em sua origem os atos
não instalado o Tribunal ali previsto, o que do poder executivo susceptíveis de gerar
ocorreria com a Carta Republicana de 1891. despesa ilegal”.
Para Ruy Barbosa não se tratava apenas Para Ruy Barbosa, o segundo sistema é
de criar um Tribunal de Contas. Sua ideia o mais adequado, satisfaz a finalidade da
política era essencialmente republicana, instituição.
democrática, moralizadora, um escudo Explicita:
protetor do Tesouro, com força punitiva em “Dos dois sistemas, o último é o que
caso de transgressão ao seu objeto principal satisfaz cabalmente os fins da institui-
(e único) – acautelar e vencer os atentados ção, o que dá toda a elasticidade ne-
contra a lei das leis – o orçamento. cessária ao seu pensamento criador.
Diz Ruy Barbosa: Não basta julgar a administração, de-
“Mas para a edificação republicana nunciar o excesso cometido, colher a
esta reforma deve ser uma das pedras exorbitância, ou a prevaricação, para
fundamentais. os punir. Circunscrita a estes limites,
A necessidade de confiar a revisão de essa função tutelar dos dinheiros
todas as operações orçamentarias da públicos será muitas vezes inútil,
receita e despesa a uma corporação por omissa, tardia, ou impotente.
com as attribuições que vimos de Convém levantar, entre o poder que
autoriza periodicamente a despesa e
7
BARBOSA, Ruy. Exposição de Motivos ao Decre-
to no 966-A. Transcrição do texto grafado no original. 8
BARBOSA, Ruy. Op. cit.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 213


o poder que quotidianamente a exe- •  o Tribunal de Contas é uma institui-
cuta, um mediador independente, au- ção democrática;
xiliar de um e de outro, que, comuni- •  resulta de uma Constituição livre des-
cando com a legislatura, e intervindo tinada a firmar constituições democráticas
na administração, seja, não só o vigia, em bases sólidas;
como a mão forte da primeira sobre a •  providência de uma sociedade po-
segunda, obstando a perpetração das lítica bem constituída, exigida dos seus
infrações orçamentárias por um veto representantes;
oportuno aos atos do executivo, que •  o Tribunal de Contas é um corpo da
direta ou indireta, próxima ou remo- magistratura intermediária à administração
tamente discrepem da linha rigorosa e à legislatura;
das leis de finanças9.” •  cercado de garantias, com atribuições
Prossegue Ruy Barbosa na Exposição de de revisão e julgamento;
Motivos historiando a respeito do projeto •  exerce funções vitais no organismo
de 1845 para a criação de um Tribunal de constitucional, sem risco de converter-se
Contas elaborado por Manuel Alves Bran- em instituição de ornato aparatoso e inútil;
co. Transcreve-o integralmente, frustrado, •  os membros do Tribunal de Contas
como já se viu, segundo Ruy Barbosa: são nomeados pelo Presidente da Repúbli-
“Mas, como não é de estranhar, atente ca, sujeitos à aprovação do Senado;
a importância do assumpto, a idéia •  gozarão seus membros das mesmas
adormeceu, na Mesa da Câmara, des- garantias de inamovibilidade dos membros
se bom sono de que raramente acor- do Supremo Tribunal Federal;
davam as idéias úteis, especialmente •  incumbe-lhe o exame, a revisão e o
as que podiam criar incômodos à julgamento de todas as operações concer-
liberdade da politicagem eleitoral. nentes à receita e à despesa da República;
E quarenta e cinco anos deixou a •  todos os decretos do Poder Executivo,
monarquia entregue o grande pen- ordens ou avisos de Ministérios, que sejam
samento ao pó protetor dos arquivos suscetíveis de criar despesas ou interessar
parlamentares10.” às finanças da República, para poderem
Ruy Barbosa, com suas costumeiras ter publicidade e execução, serão sujeitos
lições, esmiúça o modo operacional do Tri- primeiro ao Tribunal de Contas, que os re-
bunal belga e do Tribunal italiano, salien- gistrará quando reconheça que não violem
tando que, neste último, com competências disposição de lei nem excedam os créditos
além do orçamento e das finanças, transpôs votados pelo Poder Legislativo;
ele a linha divisória, forçando a natureza •  julgará anualmente as contas de
da instituição. Ruy Barbosa era severo todos os responsáveis pelas mesmas,
quanto à rigorosa e estrita obediência à lei independentemente dos Ministérios a
orçamentária, pretendendo alheio o novo que pertençam, dando-lhes quitação,
Tribunal à matéria estranha. condenando-os a pagar, e, quando não o
Da Exposição de Motivos, aula magna cumprem, mandando proceder na forma
inaugural do Tribunal de Contas da Repú- de direito.
blica, pode-se concluir que o Tribunal nascia Como se verifica, o Tribunal é instituído
sob os seguintes valores (coligidos e trans- no movimento político da Proclamação
critos no peculiar estilo de Ruy Barbosa)11: da República, instrumento democrático
e autônomo, cercado de garantias, e seus
BARBOSA, Ruy. Op. cit.
9
membros predicamentados com a ina-
Ibidem.
10

11
Resumo da Exposição de Motivos de Ruy Bar- movibilidade dos magistrados da Corte
bosa elaborado pelo autor. Suprema.

214 Revista de Informação Legislativa


Também instituição constitucional, é atendimento das necessidades públicas,
corpo de magistratura intermediária12 en- atuar firmemente no exame e julgamento
tre o Poder Executivo e o Legislativo. Suas do fiel cumprimento às leis.
atribuições, rigorosas e severas, examinam, É uma nova instituição republicana e
revisam e julgam as operações previamen- democrática, que, constitucionalizada em
te. Sua negativa de registro impede a publi- 1891, irá firmar com os Poderes a sólida
cidade e a execução, sempre sob o critério base institucional, somente interrompida
da inviolabilidade da lei. nos intervalos extraconstitucionais.
Em 8 de outubro de 1896, a Lei no 392, Republicano e democrático – o Tribunal
que ainda se denominava como as demais de Contas no Brasil somente exerceu suas
por decreto, atribuiu ao Tribunal de Contas, amplas funções vitais enquanto vigente o
além da função de fiscal da administração sistema democrático. Em 1938, logo após
financeira (art. 2o, § 1o, no I), a sua isonomia a decretação do Estado Novo, o governo
de funcionamento “como Tribunal de Jus- colocou em recesso o Tribunal de Contas
tiça com jurisdição contenciosa e graciosa” e os Tribunais de Contas estaduais e Con-
(art. 2o, § 1o, no II) mediante processo em selhos de Contas municipais. Em 1946,
estilo judicial (artigos 3o e 4o), no julgamento reinstalaram-se as Cortes de Contas, com
e revisão das contas a ele devidas. a redemocratização do país.
Nos Comentários à Constituição Federal O episódio que dá origem ao recesso
Brasileira, coligidos e ordenados por Ho- ditatorial do Tribunal remonta à época
mero Pires, Ruy Barbosa (1934 apud FA- do Ministro Thompson Flores, quando,
GUNDES, 1976, p. 393 et seq) define-o com por seu voto, a Corte rejeitou as contas
precisão (na grafia da língua portuguesa à do Presidente da República relativas ao
época de Ruy Barbosa): exercício de 1936, na sessão do Pleno de
“Tribunal é, mas Tribunal sui generis. 26 de abril de 1937. Colocado em dispo-
(...) nibilidade, o Ministro Thompson Flores
Corpo da magistratura intermediária não mais retornou à Corte, vindo a ser
á administração e á legislatura, que aposentado em 30 de outubro de 1950. O
collocado em posição autônoma com episódio é revelado pelo Desembargador
atribuições de revisão e julgamento, Federal Carlos Eduardo Thompson Flores
cercado de garantias contra quaesquer Lenz (2005)14.
ameaças, possa exercer funções vitaes Instituição vital ao Estado Democrático
no organismo constitucional (...) de Direito, sem ser poder, é-lhe atribuído
(...) sem risco de converter-se em ins- dever-poder para fiscalizar os Poderes, o
tituição de ornoso apparatoso e inútil. Ministério Público e exercer o seu auto-
Só assim o orçamento, passando, controle.
em sua execução, por esse cadinho, Sua natureza jurídica, além da histórica
tornar-se-á verdadeiramente essa e autêntica interpretação extraída de Ruy
verdade, de que fala entre nós, em Barbosa, na sua doutrina e na Exposição
vão, desde que neste paiz se inaugu- de Motivos, encontra em Seabra Fagundes
raram assembléias parlamentares13.” e Castro Nunes outras lições, cuja impor-
Nasce com a incumbência de, com a tância merece reprodução.
necessária reorganização financeira para A respeito da natureza jurídica do Tri-
bunal de Contas, Castro Nunes (1943 apud
12
A definição é de Ruy Barbosa na referida Expo- FAGUNDES, 1976) disse:
sição de Motivos.
13
Os anais estão arquivados nas bibliotecas do 14
Originado de Conferência proferida na Escola de
Tribunal de Contas da União e na Casa de Ruy Bar- Gestão e Controle Francisco Juruena daquele Tribunal
bosa, no Rio de Janeiro. em 26 de outubro de 2004.

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“É um instituto sui generis, posto de ‘a fortiori’ quando existe regra de
permeio entre os poderes políticos direito constitucional separando as
da Nação, o Legislativo e o Executi- competências.
vo, sem sujeição, porém, a qualquer (...)
deles (...).” Em virtude da Constituição, o juiz co-
Seabra Fagundes, em memorável con- mum não julga contas dos responsá-
ferência no VIII Congresso dos Tribunais veis por dinheiros ou bens públicos,
de Contas do Brasil, em novembro de 1975, – só as julga o Tribunal de Contas.
ressalta a projeção das Cortes de Contas (...)
em seu papel controlador sobre todos os Nem a lei ordinária, nem a interpre-
poderes estatais, participando de ativida- tação pode inverter o que decorre de
des legislativas, executivas e judicantes que regras de competência, insertas na
lhes comunicam um certo hibridismo. própria Constituição.”
Referindo-se ao seu Controle dos Atos Ruy Cirne Lima (1963, p. 245 et seq), que
Administrativos, clássico do Direito Ad- assina notável peça opinativa de 8 de abril
ministrativo, assevera Seabra Fagundes de1963, parte II, afirma:
(1976, p. 393 et seq), no VIII Congresso já “Onde se abre campo à ação (em
referido, que o Tribunal possui compe- sentido material), aí, entretanto, tem
tência dupla: emite parecer prévio e julga a competência do Tribunal de Contas
irretratavelmente as contas; aqui sua função terminado, Ruy Barbosa, ainda, é
é jurisdicional. quem diz: ‘Se o Tribunal de Contas,
Pontes de Miranda (1953, p. 344 et seq) por uma decisão sua, ou o Congresso
diz caber ao Tribunal de Contas o julga- Nacional, por um ato fundado no
mento das contas dos responsáveis e que: Tribunal de Contas, invadirem usur-
“As questões decididas pelo Tribunal patòriamente o terreno inviolável...
de Contas, no julgamento das contas (das) garantias e direitos (individu-
dos responsáveis pelos dinheiros ais), poderão as vítimas ir buscar o
ou bens públicos, não são simples remédio jurídico na autoridade dos
questões prévias; são questões pre- Juízes e Tribunais...’
judiciais, constituem o ‘prius’ lógico- (...)
-jurídico de um crime, ou pelo menos, Tem, portanto, entre nós, o Tribunal
de circunstancial material desse. de Contas, ‘jurisdictio’; falta-lhe, po-
É elemento indispensável à repressão rém, competência para o ‘judicium’
do crime de peculato, por parte do e, ‘a fartiorí’, competência para dá-lo
juiz comum, o julgamento das contas e cometê-lo a outrem, porque, estra-
dos responsáveis, e esse julgamento nha à sua função, naquêle ou neste
sòmente pode ser feito pelo Tribunal aspecto, a idéia de ação (em sentido
de Contas. material). Certo, são, as decisões do
Quando o juiz comum despreza o Tribunal de Contas, terminativas,
julgamento do Tribunal de Contas, quando julga, ele, as contas dos
infringindo-o, ou modificando-o, ou responsáveis por dinheiros ou bens
tendo-o por desnecessário, usurpa públicos (Const. Fed., art. 77, II). Esse
funções do Tribunal de Contas, sem julgamento compete-lhe, porém, em
proveito dos acusados, ou contra eles. função do ato político do Congresso
(...) Nacional, que julga as contas do Po-
Trata-se de regra de direito civil, que der Executivo (Const. Fed., art. 66,
de nenhum modo poderia ter reper- VIII). E como a competência do Tribu-
cussão no direito administrativo, nal de Contas, acerca do julgamento

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das contas dos responsáveis por jurisdicional (do Tribunal de Contas)
dinheiros ou bens públicos, sòmente e legislativo (das Câmaras), ora se
lhe é atribuída em função daquele ato fixando dentro de teses doutrinárias
político, as decisões do Tribunal de em que a questão do controle prévio
Contas, nessa matéria, não poderiam, tomou grande destaque, ora, final-
por isso mesmo, ficar sujeitas a reexa- mente, reagindo contra esses critérios
me judiciário. O julgamento político e conferindo ao Tribunal de Contas
exclui o pronunciamento judiciário posição meramente formal, que
ulterior, nos mesmos termos em levaria, em suas últimas conseqüên-
que o julgado criminal exclui a ação cias, à própria extinção do Tribunal
civil. ‘... não se poderá... questionar de Contas’” (CAVALCANTI apud
mais sobre a existência do fato, ou GALAZZI, 1992b, p. 190).
quem seja o autor...’ (art. 1525, Cód. Também Aliomar Baleeiro (apud GA-
Civ.). De outro lado, o julgamento LAZZI, 1992b, p. 190) ressalta o papel
político tem precedência necessária político da Corte:
sobre o pronunciamento judiciário. “(...) à primeira vista, o Tribunal de
Em conseqüência, nem antes nem Contas poderá parecer simples ór-
depois das decisões do Tribunal gão administrativo, colegiado, com
de Contas, enquanto às contas dos funções jurisdicionais sobre os or-
responsáveis por dinheiros ou bens denadores e pagadores de dinheiros
públicos, toca, aos Juízes e Tribunais públicos, no interesse da probidade
comuns, pronunciar-se sobre o fato da Administração. Assim é numa
sujeito, ou quem lhe seja o autor. A primeira aproximação. Mas, se o
eficácia exclusiva e terminativa das analisarmos detidamente, por outros
decisões do Tribunal de Contas, nessa aspectos, chegaremos à conclusão de
matéria, não é mais, no entanto, do que existe algo de mais importante e
que uma aplicação do princípio de profundo nesse órgão ‘imediato’ da
independência e harmonia dos pode- Constituição: é a sua função essen-
res políticos (Const. Fed., art. 36). Não cialmente política que decorre desses
é, certamente, expressão do poder de aspectos menos ostensivos.”
julgar, que ao Tribunal de Contas, en- José Afonso da Silva comenta sobra a
tre nós, falece por completo, embora natureza jurídica do Tribunal de Contas em
seja, ele, e, também, atentas as linhas seu Curso de Direito Constitucional Positivo:
estruturais de nosso regime, porque “Tem por objetivo, nos termos da
seja, ele, a mais alta jurisdição admi- Constituição, a apreciação das con-
nistrativa da República.” tas do Chefe do Poder Executivo,
Citado por Eduardo Lobo Botelho Gua- o desempenho das funções de au-
lazzi, Themistocles Brandão Cavalcanti, ditoria financeira e orçamentária, a
autor clássico das décadas de 40 e 50, sobre apreciação da legalidade dos atos de
a Carta de 1946, a respeito do Tribunal de admissão de pessoal, bem como o
Contas e competências, dissertava no julgamento das contas dos adminis-
“(...) sentido de que ‘as correntes tradores e demais responsáveis por
divergentes têm encarado o pro- bens e valores públicos. Em suma,
blema do controle financeiro dos verificar da legalidade, da legitimi-
atos da Administração sob prismas dade e da economicidade dos atos
muito diversos, ora adotando um contábeis, financeiros, orçamentários,
critério político de subordinação da operacionais e patrimoniais da admi-
Administração a um duplo controle nistração direta e indireta da União.

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O controle externo é, pois, função do Castro Nunes, de outro lado, defensor do
Poder Legislativo, sendo de competên- órgão de jurisdição administrativa.
cia do Congresso Nacional no âmbito Gualazzi, ao examinar os diferentes
federal, das Assembléias Legislativas conceitos, conclui:
nos Estados, da Câmara Legislativa “Assim, pode-se definir Tribunal
no Distrito federal e das Câmaras Mu- de Contas, no Brasil, como o órgão
nicipais nos Municípios com o auxílio administrativo parajudicial, funcio-
dos respectivos Tribunais de Contas. nalmente autônomo, cuja função
Consiste, assim, na atuação da função consiste em exercer, de ofício, o con-
fiscalizadora do povo, através de seus trole externo, fático e jurídico, sobre
representantes, sobre a administração a execução financeiro-orçamentária,
financeira e orçamentária. É, portan- em face dos três Poderes do Estado,
to, um controle de natureza política, sem a definitividade jurisdicional.
no Brasil, mas sujeito à prévia apre- Esta definição é cabalmente aplicável
ciação técnico-administrativa do ao Direito Brasileiro, mas discrepa da
Tribunal de Contas competente, que concepção comparatística de Tribu-
assim se apresenta como órgão técni- nal de Contas.
co, e suas decisões são administrativas, Em termos de Direito Administrativo
não jurisdicionais, como, às vezes, se Comparado, Tribunal de Contas é o ór-
sustenta, à vista da expressão ‘julgar gão de controle externo e jurisdição,
as contas’ referida à sua atividade judicial e extrajudicial, sobre a exe-
(art. 71, I). A mesma expressão é cução financeiro-orçamentária, com
também empregada no art. 49, IX, eventual definitividade jurisdicional.
em que se dá ao Congresso Nacional Assim é porque, conforme se verifi-
competência para julgar anualmente as cou nesta tese, nos itens dedicados a
contas prestadas pelo Presidente da Direito Comparado, os Tribunais de
República, e nem por isso se dirá que Contas de muitos Estados soberanos
ele exerce função judificante.” constituem ramificações especializa-
A posição de José Afonso da Silva, em- das do ‘contencioso administrativo’
bora o seu brilhantismo, é restritiva quanto ou ‘justiça administrativa’ e, destarte,
à natureza da Corte. Sem dúvida, órgão exercem jurisdição stricto sensu, com
administrativo apenas não é. Que possui decisões finais suscetíveis de carac-
atribuições duplas, elenco das competên- terizarem a coisa julgada, em sentido
cias constitucionais, não deixa margem à técnico de Teoria do Processo” (GUA-
discussão. LAZZI, 1992a, p. 187).
Seu hibridismo é percebível, segundo Ricardo Lobo Torres (1999, p. 178)
Ruy Barbosa e Ruy Cirne Lima: emite aponta que o “Tribunal de Contas tem o
parecer em apoio técnico como instituição seu papel dilargado na democracia social
política, julga em decisões judicialiformes e participativa e não se deixa aprisionar no
e ainda tem competências administrativas esquema da rígida separação de poderes”.
de controle. De outro lado, salienta que a Constitui-
É também o ensino de Eduardo Lobo ção Federal declara expressamente o direito
Botelho Gualazzi, no minucioso Regime de qualquer cidadão, partido político, as-
Jurídico dos Tribunais de Contas, no qual sociação ou sindicato de, legitimamente,
arrola as correntes polêmicas a respeito da denunciar irregularidades ou ilegalidades
natureza do Tribunal de Contas, lideradas ao Tribunal de Contas (art. 74, § 2o).
por José Cretella Júnior, de um lado, como A medida, segundo Torres (1999),
órgão especificamente administrativo, e insere-se na moderna concepção de que o

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Tribunal de Contas é colaborador (auxiliar, idéia de subordinação. Confunde-se,
como diz Torres), tanto da Administração desse modo, a função com a natureza
e do Legislativo quanto da própria comu- do órgão. A Constituição Federal,
nidade. em artigo algum, utiliza a expressão
E expressa: ‘órgão auxiliar’; dispõe que o controle
“A democracia hodierna é represen- externo do Congresso Nacional será
tativa e participativa, como deixa exercido com o auxílio do Tribunal
claro a CF de 1988, assegurando de Contas; a sua função, portanto, é
às associações e demais órgãos da de exercer o controle financeiro e
comunidade a possibilidade de de- orçamentário da Administração em
fesas dos direitos públicos, coletivos auxílio ao poder responsável, em
e difusos. última instância, por essa fiscaliza-
O Tribunal de Contas, que está es- ção. Tendo em vista que a própria
sencialmente ligado aos direitos fun- Constituição assegura ao Tribunal
damentais, pela dimensão financeira de Contas as mesmas garantias de
que estes exibem, aparece na CF 88 independência do Poder Judiciário,
como uma das garantias institucio- impossível considerá-lo subordinado
nais da liberdade, a que o cidadão ao Legislativo ou inserido na estru-
tem acesso através das garantias tura do Legislativo. Se a sua função
processuais. Pode a comunidade é de atuar em auxílio ao Legislativo,
invocar a proteção do Tribunal de sua natureza, em razão das próprias
Contas para o combate à corrupção, normas da Constituição, é a de órgão
para o controle dos incentivos fiscais, independente, desvinculado da es-
para promover a fiscalização sobre trutura de qualquer dos três poderes.
as entidades financeiras privadas A nosso ver, por conseguinte, o Tri-
que, causando prejuízos a terceiros, bunal de Contas configura instituição
possam atingir o Tesouro, para fixar o estatal independente.”
valor do dano ambiental causado por A autora, com adequada análise, com-
funcionário público ou terceiros, etc.” prova, previamente ao texto transcrito
(TORRES, 1999, p. 179-180). acima, que o “auxílio” ao Poder Legislativo
Odete Medauar (1993, p. 140-141), no não subordina o Tribunal de Contas nem
seu Controle da Administração Pública, após o insere no âmbito do Poder Legislativo,
excluir as hipóteses de inclusão do Tribunal porque a própria Constituição assegura ao
de Contas no âmbito dos Poderes Executi- Tribunal de Contas as mesmas garantias de
vo, Judiciário ou Legislativo, conclui: independência do Poder Judiciário.
“Resta verificar se a Corte de Contas Carlos Ayres Britto (2002, p. 96 et seq),
insere-se no âmbito do Poder Legisla- a respeito da polêmica natureza jurídica do
tivo. Parece-nos que a expressão ‘com Tribunal de Contas, expõe15:
o auxílio do Tribunal de Contas’, “Feita a ressalva, começo por dizer
contida no art. 71 da Constituição que o Tribunal de Contas da União
Federal tem gerado certa confusão no não é órgão do Congresso Nacional, não é
tocante aos vínculos entre esse órgão órgão do Poder Legislativo. Quem assim
e o Legislativo, para considerá-lo me autoriza a falar é a Constituição
subordinado hierarquicamente a tal
poder, dada sua condição de auxiliar. 15
O Ministro Carlos Ayres Britto, antes de assu-
mir seu cargo de Ministro do Supremo Tribunal, foi
Muito comum é a menção do Tribu- Procurador junto ao Tribunal de Contas de Contas
nal de Contas como órgão auxiliar do de Sergipe. A relevância do seu entendimento deriva
Poder Legislativo, o que acarreta a também da experiência profissional.

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federal, com todas as letras do seu ou da própria técnica jurídica (sub-
art. 44, litteris: ‘O Poder Legislativo sunção de fatos e pessoas à objetivi-
é exercido pelo Congresso Nacional, dade das normas constitucionais e le-
que se compõe da Câmara dos deputados gais). Segundamente, porque o fazem
e do Senado Federal’ (grifo à parte). com a força ou a irretratabilidade que
Logo, o parlamento brasileiro não é própria das decisões judiciais com
se compõe do Tribunal de Contas da trânsito em julgado. Isso quanto ao
União. Da sua estrutura orgânica ou mérito das avaliações que as Cortes
formal deixa de fazer parte a Corte de Contas fazem incidir sobre a gestão
Federal de Contas e o mesmo é de se financeira, orçamentária, patrimonial,
dizer para a dualidade Poder Legis- contábil e operacional do Poder Pú-
lativo/Tribunal de Contas, no âmbito blico. Não, porém, quanto aos direitos
das demais pessoas estatais de base propriamente subjetivos dos agentes
territorial e natureza federada. estatais e das demais pessoas envolvi-
Não que a função de julgamento de das em processos de contas, porque,
contas seja desconhecida das Casas aí, prevalece a norma constitucional
Legislativas. Mas é que os julgamen- que submete à competência judicante
tos legislativos se dão por um critério do Supremo Tribunal Federal a impe-
subjetivo de conveniência e oportu- tração de habeas corpus, mandado de
nidade, critério esse que é forma dis- segurança e habeas data contra atos do
cricionária de avaliar fatos e pessoas. TCU (art. 102, inciso I, alínea d). Por
Ao contrário, pois, dos julgamentos extensão, caem sob a competência dos
a cargo dos Tribunais de Contas, que Tribunais de Justiça dos Estados e do
só podem obedecer a parâmetros Distrito Federal, conforme a situação,
de ordem técnico-jurídica, isto é, o processo e o julgamento dessas
parâmetros de subsunção de fatos e mesmas ações constitucionais contra
pessoas à objetividade das normas atos dos demais Tribunais de Contas.
constitucionais e legais. (...)
(...) Por outro aspecto, ajunte-se que
Diga-se mais: além de não ser órgão nenhum Tribunal de Contas é tribu-
do Poder Legislativo, o Tribunal de nal singelamente administrativo (ao
Contas não é órgão auxiliando o contrário do que se tem afirmado,
Parlamento Nacional, naquele sen- amiúde). Não pode ser um tribunal
tido de inferioridade hierárquica ou tão-somente administrativo um ór-
subalternidade funcional. gão cujo regime jurídico é centralmente
(...) constitucional. É dizer: os Tribunais de
Tudo fica mais claro quando se faz a Contas têm quase todo o seu arcabou-
distinção entre competências e fun- ço normativo montado pelo próprio
ções. A função de que nos ocupamos Poder Constituinte. Assim no plano
é a mesma, pois outra não é senão o da sua função, como respeitantemen-
controle externo. As competências, te às suas competências e atribuições
no entanto, descoincidem. e ainda quanto ao regime jurídico dos
(...) agentes que o formam.
Algumas características da jurisdição, Com efeito, o recorte jurídico-positivo
no entanto, permeiam os julgamentos das Casas de Contas é nuclearmente
a cargo dos Tribunais de Contas. Pri- feito nas pranchetas da Constituição.
meiramente, porque os TCs julgam Foi o legislador de primeiríssimo
sob critério exclusivamente objetivo escalão quem estruturou e funcio-

220 Revista de Informação Legislativa


nalizou todos eles (os Tribunais de (...)
Contas), prescindindo das achegas Ora, essa caracterização de auxiliar
da lei menor. É só abrir os olhos sobre do Poder Legislativo era perfeitamen-
os 6 artigos e os 40 dispositivos que te adequada à Constituição de 81, que
a Lei das Leis reservou às Cortes de se limitara a prever a existência de um
Contas (para citar apenas a seção de Tribunal de Contas com uma única
n. IX do capítulo atinente ao Poder competência: a de emitir parecer
Legislativo) para se perceber que prévio sobre as contas do Presidente
somente em uma oportunidade é que da República e submetê-las ao Con-
existe menção à lei infraconstitucional. gresso Nacional.
Menção que é feita em matéria de (...)
aplicação de sanções (inciso VIII do O que me parece é que, não obstante
art. 71), porque, em tudo o mais, todas as dificuldades de operaciona-
o Código Supremo fez questão de lização deste imenso poder, o Tribu-
semear no campo da eficácia plena e nal de Contas se constitui, no perfil
da aplicabilidade imediata.” que lhe traçou a Constituição de 88,
Sepúlveda Pertence (1998, p. 46-47), numa magistratura essencial de uma
em conferência para o XIX Congresso dos função verdadeiramente irredutível à
Tribunais de Contas do Brasil, esclarece: tripartição clássica dos Poderes, em
“Creio ser hora de concluir, renovan- que não tem ele monopólio, mas, ao
do escusas pelo desataviado das no- contrário, se soma às tarefas novas
tas da madrugada, mas permitam-me do Judiciário, por exemplo, em todo
uma observação final. A competência o imenso poder do controle abstrato
do Tribunal de Contas, tal como a da constitucionalidade das leis, ou
vem reafirmando essencialmente a a esse imenso poder de iniciativa
jurisprudência do Supremo Tribu- que se outorgou à figura sem para-
nal, ligada ao status constitucional, à lelo no direito comparado que é o
extensão das garantias e do poder de Ministério Público no ordenamento
autogoverno dos órgãos judiciários constitucional vigente, com a função
que se lhe conferiu, possui um relevo genérica de controle, do maior relevo
que não tem sido suficientemente na construção de um Estado de Di-
enfatizado. A meu ver, apesar das reito democrático que seja adequado
competências, como as do artigo 71, II ao inevitável gigantismo do Estado
e sua extensão impressionante, quer contemporâneo – que não me inter-
do ponto de vista objetivo, quer do pretem mal os pregoeiros do fim do
ponto de vista subjetivo (...). Nesta Estado, do neoliberalismo.”
definição, às vezes este apego não Robertônio Santos Pessoa (2003, p. 626 et
é apenas do jurista; é do legislador seq), em seu recente Curso de Direito Admi-
mesmo, por vezes – e é este exemplo nistrativo Moderno, retoma a polêmica sobre
do constituinte mesmo – quando en- a natureza do Tribunal e apresenta solução
fatiza a competência de fiscalização adequada ao sistema de 1988:
como primordialmente entregue ao “Parcela significativa da doutrina e
Congresso Nacional com o auxílio do da jurisprudência, por outro lado,
Tribunal de Contas e, posteriormente, vem sustentando que nem todas as
lhe dá competências de todo indepen- decisões pronunciadas pelas Cortes
dentes do Legislativo, a começar pelo de Contas são de natureza admi-
julgamento das contas do próprio nistrativa. A jurisdição de contas
Legislativo. apresenta-se, para esta corrente,

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 221


como um juízo constitucional priva- instauradas na forma da lei. O proces-
tivo das Cortes de Contas. Somente samento e julgamento de tais contas
tais órgãos têm competência para devem se dar com plena observância
‘julgar as contas dos administradores e dos princípios do contraditório, da
demais responsáveis por dinheiro, bens ampla defesa e do devido processo legal.
e valores públicos’, nos termos fixados Tal observância conferirá maior le-
no art. 70, inciso II, do texto constitu- gitimidade às decisões destas cortes.
cional. Ao conferir tais poderes aos Questionamentos pertinentes à vio-
Tribunais de Contas, a própria Cons- lação destas garantias constitucionais
tituição limitou o controle judicial poderão ser levados à apreciação do
no que concerne às contas públicas. Poder Judiciário, conforme já deci-
Abraçam tal corrente no Brasil admi- diu o STF no MS-21644-DF (DJ de
nistrativistas como Seabra Fagundes, 08.11.93, p. 43.204).
Temístocles Brandão Cavalcante e Nesta linha, as decisões do tribunal
Pinto Ferreira. de que resulte imputação de débito
Segundo esta última corrente, a que ou multa terão eficácia de título
nos filiarmos, na sistemática adotada executivo (art. 71, § 3o). A execução
pela Constituição de 1988, o Poder forçada destes títulos, advindos
Judiciário não tem poderes para de decisões do tribunal de contas,
apreciar ou rever contas públicas, sob deverá ser efetivada junto ao Poder
o aspecto contábil-financeiro do seu Judiciário, na forma da lei.
mérito. Tratar-se-ia, aqui, de uma li- A jurisprudência dos Tribunais
mitação imposta ao princípio do con- Superiores vem admitindo a não-
trole jurisdicional (art. 5o, XXXV, da -apreciação do mérito de julgamentos
CF) pela própria Constituição, e não de contas realizadas pelas cortes de
por lei. O tribunal de contas, como contas no exercício de suas atribui-
regra, não tem competência para ções constitucionais. A revisão judi-
dizer o direito no caso concreto, de cial somente é possível em caso de
modo definitivo, com força de coisa irregularidade formal grave ou ma-
julgada; por exceção, tem essa com- nifesta ilegalidade (STF, MS no 7.280,
petência na forma do art. 71, inciso II, publicado em 17.9.1962, p. 460).”
da Constituição federal. Em suma: as Conclui-se com o conceito próprio da
decisões editadas na apreciação dos dissertação sobre a natureza do Tribunal
atos da Administração Pública têm de Contas.
eficácia apenas administrativa. Tais É instituição do Estado Democrático,
decisões podem ser reexaminadas cujas competências constitucionais são
pelo Poder Judiciário. Por outro lado, exercidas com independência e autonomia.
os julgamentos relativos a contas pú- Tribunal sui generis, que exerce dever-poder
blicas (art. 71, II, da CF) constituem sem ser Poder e a nenhum deles vinculado.
matéria de apreciação privativa dos Órgão de colaboração com os Poderes e Mi-
tribunais de contas, não sendo admi- nistério Público, republicano, indisponível
tido reexame pelo Poder Judiciário. e indelegável, cercado de garantias que o
Deve-se observar que tal julgamento assimilam ao Tribunal Judicial. Presta auxí-
se impõe ao Poder Judiciário ape- lio ao Poder Legislativo sem ser seu auxiliar
nas no seu aspecto contábil, no que e exerce outras competências terminativas
concerne à regularidade da conta no seu âmbito constitucional.
apresentada. Tais ‘contas’ podem A jurisdição una, adotada na Carta
ser anuais ou especiais, estas últimas de 1988, entretanto, não permite admitir

222 Revista de Informação Legislativa


rejulgamento das decisões do Tribunal de Nesse sentido, as decisões extrajudiciais,
Contas em matéria de parecer prévio sobre nas circunstâncias e nas condições arrola-
as contas do Chefe do Poder Executivo nem das, têm caráter terminativo – quanto ao
da decisão em julgamento sobre as contas seu mérito – e a amplitude do princípio da
dos demais responsáveis, exceto no que apreciação pelo Poder Judiciário fica restri-
colidirem com a Constituição Federal e ta e limitada pelo princípio republicano e
legislação infraconstitucional, ressalvado, democrático insculpido na Carta e relativo
entretanto, o mérito técnico da decisão do à separação,harmonia e independência dos
Tribunal de Contas. O julgamento se res- poderes, nesses também incluído, ainda
tringe à lesão de direito individual. que não seja poder, mas dele exercente, o
Destaca-se, ainda, por ser instituição de controle externo.
Estado com inscrição constitucional, que as Igual senda limitadora e restritiva, como
competências enumeradas na Carta Federal observado, se aplica quando ao Poder Ju-
atribuem ao parecer prévio, julgamento diciário é vedada a substituição, mediante
das contas, apreciação de atos de admis- decisão judicial, das decisões de mérito
são e inativação, auditorias, fiscalizações, reservadas aos demais poderes e controle
informações, aplicação de sanções, sustação externo.
de atos e representações um caráter emi- A crescente – e democrática – aproxi-
nentemente técnico-pericial, insuscetível mação da similaridade entre o processo
de reapreciação quanto ao mérito, em judicial e o administrativo, de outra parte,
qualquer Poder. é motivo de reflexão sobre as decisões ter-
minativas, as quais, embora inconfundíveis
com a coisa julgada, possuem efeitos asse-
5. Conclusões
melhados, e com ênfase mais acentuada,
As matérias enunciadas não podem ser a afastabilidade do exame de mérito dos
decididas por via judiciária quanto ao seu atos de governo e dos atos ou programas
mérito exclusivo, ou também denomina- políticos, excetuada – sempre – a apreciação
do de núcleo próprio; nem por isso estão de ameaça ou lesão a direito individual ou
imunes à apreciação pelo Poder Judiciário, injuricidade à Constituição Federal.
quando caracterizada a ameaça ou lesão Nesse conjunto encontram-se o parecer
a direito, concretizando uma ilegalidade prévio sobre as contas prestadas anualmen-
subjetiva, ou uma ilegalidade objetiva, fe- te pelo Presidente da República ao Tribunal
ridora do próprio sistema normativo, como de Contas da União; o julgamento das con-
insculpido no artigo 5o, XXXV, da Consti- tas pelo Congresso Nacional e o julgamento
tuição Federal brasileira, valor republicano das contas dos demais administradores
e democrático e vetor da dignificação da públicos federais pelo Tribunal de Contas –
pessoa humana. acentuando-se as situações similares decor-
Quaisquer outros aspectos dessas maté- rentes do modelo constitucional adotado
rias têm a garantia de apreciação judicial e a em face da simetria federativa brasileira.
hipótese corretiva em caso de ilegitimidade.
As restrições que aqui se demonstra-
ram, adotadas pelo sistema institucional
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226 Revista de Informação Legislativa


Do ordo à cognitio
Mudanças políticas e estruturais na função jurisdicional
em Roma

Gustavo César Machado Cabral

Sumário
Introdução. 1. Augusto e a criação do Prin-
cipado. 2. O iudex e o ordo iudiciorum privatorum.
3. A cognitio extra ordinem. 4. As consequências
dessa mudança de perspectiva.

Introdução
O título deste trabalho é autoexplicativo
e com ele tentou-se delimitar o objeto de
estudo e o período específico a ser exami-
nado. A análise da história do processo
civil em Roma almejada tem como ponto
de partida o confronto entre dois momentos
bem definidos: no primeiro, o ordo, ainda
que existisse uma etapa inicial perante
um magistrado, o pretor, a decisão final
caberia a um particular que ocupava essa
posição em virtude da vontade das partes,
enquanto que, no segundo, a cognitio, todo
o processo, até a sentença, dava-se diante
de um representante do poder central.
Quando se decidiu falar em ordo, a inten-
ção foi abordar, de um modo semelhante, as
duas fases iniciais do processo civil romano,
a das leges actiones e a do processo formular.
Optou-se por tratar de modo semelhante
dois períodos que guardam consideráveis
diferenças entre si, as quais serão aborda-
Gustavo César Machado Cabral é Bacharel das a seguir, em virtude de uma convergên-
e Mestre em Direito pela Universidade Federal cia fundamental para a abordagem que se
do Ceará (UFC). Doutorando em História do quer dar aqui. Em ambos os momentos, a
Direito pela Universidade de São Paulo (USP). decisão final ficava a cargo de um cidadão
Advogado. sem qualquer vinculação com o poder po-

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 227


lítico, o iudex. Portanto, ao falar em ordo, o poder republicano no processo formular e
título se refere, mais precisamente, ao ordo a centralização política do Império. Direito
iudiciorum privatorum. e política não se confundem, mas guardam
Essa divisão do processo romano em relações profundas demais para não serem
fases pode dar a falsa impressão de que lembradas.
esses períodos se sobrepuseram uns aos Dessa forma, passa-se ao texto, não sem
outros, o que, de fato, não aconteceu. As antes apresentar a sua estrutura, dividida
leges actiones conviveram longo tempo com em quatro tópicos. No primeiro deles,
o processo formular, da mesma forma que serão abordadas as mudanças em Roma a
com ele conviveu a cognio extra ordinem, até partir da ascensão de Otaviano e da criação
que esta deixou de ser extraordinária e pas- do principado, momento paradigmático
sou a ser o procedimento padrão, no final para o processo. O segundo cuidará do
do Império, o que implica a necessidade de processo no ordo iudiciorum privatorum,
se perceber não uma diacronia, mas uma especificamente do iudex, ao passo que o
sincronia entre essas fases. terceiro trará informações sobre a cognitio.
Desses pontos de partidas, chega-se ao Por fim, o quarto será uma confrontação
objeto principal do trabalho, que são as entre esses dois momentos, e nele serão
mudanças ocorridas nessas fases. Obvia- feitas as conclusões.
mente, não se quer elaborar um trabalho
abrangente a ponto de tratar de todas as 1. Augusto e a criação do Principado
diferenças e de tudo o que se alterou nesses Começar este trabalho falando de Au-
dois grandes momentos, o que seria um gusto e do início do principado não é uma
propósito muito mais de uma monografia opção; na verdade, se a pretensão é abordar
do que de um simples artigo. Por isso, o as principais mudanças no exercício da
ponto principal será o exercício da função função jurisdicional em Roma, outro não
jurisdicional, ou, mais precisamente, os pode ser o momento a servir de paradigma.
órgãos judicantes, especificamente aqueles Augusto representou o início de uma era
que tomavam a decisão, proferindo as sen- de alterações estruturais extremamente
tenças. Isso explica, por exemplo, por que relevantes na realidade romana, as quais
se deu muito mais atenção ao iudex do que levaram a cidade a viver o seu apogeu po-
ao pretor ao tratar do ordo. lítico e militar, numa posição hegemônica
Delimitado o objeto, deve-se esclarecer frente aos demais povos.
qual o enfoque que se quer dar, pois uma Até o ano 27 a.C., momento que re-
mera descrição dos órgãos judicantes não presenta o início do principado, a história
constitui, propriamente, uma hipótese a externa de Roma já havia visto o período
ser discutida. Para servir de fio condutor da realeza, obscuro em razão da escassez
deste trabalho, escolheram-se as relações de fontes1, e a República, a qual atravessa-
entre jurisdição e poder, tema abordado va, há algumas décadas, fortes problemas.
em obra homônima de José Rogério Cruz e Guerras e problemas econômicos e sociais
Tucci. Ao longo de todo o trabalho, quis-se marcaram o século 1 a.C. (MARTINO,
demonstrar que as mudanças estruturais e 1974, p. 1-46), ocasionando um clima de
orgânicas no exercício da função jurisdi- instabilidade geral que crescia ainda mais
cional guardaram profunda relação com em razão da esfera política. A disputa pelo
a experiência política romana. Cada uma poder levou Roma a uma guerra civil entre
das fases do processo em Roma reflete bem César e Pompeu, a qual só terminou com
a realidade do seu tempo: o misticismo
da Monarquia e dos primeiros tempos da 1
Sobre o período, ver, entre outros, Mommsen
República nas leges actiones, a divisão do (1856, p. 3-222).

228 Revista de Informação Legislativa


a morte deste e dos principais opositores supremacia frente aos demais cidadãos
do primeiro. Em razão das suas vitórias romanos. A partir daí, em 27 a.C., até a
militares, César foi ovacionado pelo Senado sua morte, em 14 d.C., Otaviano, agora
e pelo povo romano, numa demonstração Augusto, exerceu sozinho o máximo poder
de que a ordem era objeto do desejo geral, político em Roma.
mas o seu assassinato, em 44 a.C., adiou o É importante ter em mente o que simbo-
processo de centralização do poder, o qual lizou essa concessão de poderes a Augusto,
voltou a ser dividido em um novo triunvi- e, para isso, faz-se fundamental entender
rato, composto por Lépido, Marco Antônio a distinção entre os conceitos de auctoritas
e Otaviano em 43 a.C.2 e de potestas. Este era a fonte originária do
Após nova guerra civil, Otaviano der- poder, aquilo que é conhecido pela publi-
rota Marco Antônio em 30 a.C. e passa a cística contemporânea como soberania,
ocupar sozinho o poder político. A existên- ao passo que auctoritas seria a parcela do
cia de um triunvirato garantiu o exercício potestas entregue a uma instituição (DINIZ,
de poderes extraordinários durante um 2006, p. 101). O potestas se ligava ao povo
período determinado 3, o qual findaria, romano, o qual, no período, ainda era en-
definitivamente, em 33 a.C. (MARTINO, carado como composto, eminentemente,
1974, p. 92-103), quando o conflito entre pelos patrícios, descendentes dos funda-
os dois já estava instalado; o medo de que dores de Roma. Tanto é verdade que, do
uma vitória de Marco Antônio simbolizasse Senado, órgão máximo do período repu-
a transformação de Roma numa monarquia blicano por representar o populus romanus,
nos moldes orientais, em virtude do seu só fazia parte a aristocracia. Portanto, na
casamento com a rainha Cleópatra VII, da lógica da República, o potestas era guardado
dinastia ptolomaica que governava o Egito4, pelo Senado, ao passo que a titularidade da
foi suficiente para que ele continuasse, de auctoritas mudou conforme se alteraram as
fato, com esses poderes extraordinários. configurações políticas de Roma. Durante
Findos os conflitos e depois de ter todos esses séculos, a divisão das magistra-
manifestado a sua intenção de devolver turas implicou a inexistência do exercício
os poderes ao povo romano, Otaviano foi definitivo de um summa potestas por uma
agraciado pelo Senado não somente com a só pessoa.
manutenção dos seus poderes, mas com a Se os fatos acontecidos em 27 a.C. não
sua ampliação e com a concessão dos títulos representaram uma revolução quanto às
de augustus e princeps5, simbolizando a sua estruturas sociais (MARTINO, 1974, p.
44-45), do ponto de vista político as mu-
2
Tanto Marco Antônio quanto Otaviano tinham danças foram significativas. Ao transmitir,
relações com César; enquanto o primeiro foi seu com-
panheiro em várias campanhas militares, o segundo de modo perpétuo, o exercício supremo
era seu sobrinho, tendo sido adotado postumamente. das magistraturas a apenas um homem, o
Isso os legitimou na disputa pela herança política de Senado o transformou no princeps, o primei-
César.
3
Inicialmente, foram cinco anos, prorrogados
ro dos cidadãos, criando um novo órgão
em 39 a.C. inexistente na sistemática anterior (TUCCI,
4
De Martino (1974, p. 90-92) retrata esse momento 1987, p. 24-25). Ainda que a extensão e a
como o de uma guerra entre Ocidente, representado perpetuidade da sua auctoritas tenha se
por Otaviano, e Oriente, de Marco Antônio e Cleópa-
tra. Tanto isso é verdade que, após a vitória em 30 a.C., dado em virtude de ação do Senado, que
destitui-se a dinastia ptolomaica e o Egito passa a ser
considerada uma província romana, simbolizando a dante supremo; foi concedido a César, e, em virtude
vitória contra o helenismo e o orientalismo (MARTI- de Augusto ser seu herdeiro, passou a utilizá-lo, sem,
NO, 1974, p. 148-149). contudo, o fazer de forma exclusiva, ao contrário do
5
Além dos dois títulos mencionados, houve ainda que acontecia com os demais (MARTINO, 1974, p.
o de imperator, relacionado à ideia militar de coman- 212-229).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 229


o fazia em nome do povo e, portanto, em poderes imperiais alcançavam até mesmo
decorrência do seu potestas6, essa concentra- áreas que, originalmente, não estavam sob
ção inverteu a lógica posta e fez com que a sua esfera de interferência, como se verá.
a auctoritas fosse além do potestas (TUCCI, Ainda que tenha sido uma compilação da
1987, p. 26). Isso implicou, na realidade, prática pretoriana, o Edictum perpetuum é
que o princeps, pouco a pouco, superaria ilustrativo de um crescente poder imperial
as demais estruturas de poder oriundas da no âmbito jurídico.
República e se posicionaria como o detentor Com essa rápida apresentação do início
do summa potestas. do Principado, quis-se demonstrar as bases
Os reflexos disso foram sentidos prin- sob as quais ocorreram essas mudanças
cipalmente no Direito. Essa nova situação relatadas neste trabalho. O princeps, que
fez surgir uma nova fonte do Direito, as reunia em si todas as magistraturas, passou
constituições imperiais, baseadas na ideia a exercer, progressivamente, um enorme
sintetizada por Ulpiano de que o decidido papel no funcionamento de Roma; con-
pelo príncipe vigoraria como lei7. Pouco sequentemente, outra não foi a realidade
a pouco, a constitutio foi superando em observada nos assuntos relativos à justiça,
importância as outras fontes do Direito, as em que o princeps atuou tanto na elaboração
mais tradicionais8, passando a ser a princi- legislativa quanto na função jurisdicional.
pal fonte do Direito romano no Principado A grande demonstração de que as maté-
e no Dominato. rias jurídicas ligadas à função jurisdicional
Além de atuar mediante as constituições eram de vital importância para o poder
imperiais, o princeps passou a disciplinar central foi a implantação da cognitio extra
estruturas que, anteriormente, se desen- ordinem, tema que será examinado a seguir.
volviam ao largo do poder central. É o caso Antes, porém, serão analisados os órgãos
do ius honorarium ou direito pretoriano, judicantes no ordo iudiciorum privatorum, a
elaborado pelos pretores, os quais tinham fim de se estabelecer a comparação neces-
poder para conhecer de situações não pre- sária para o que se pretende demonstrar ao
vistas nas chamadas leges actiones que com- final destas páginas.
punham o antigo ius civile. Ao assumirem
as suas funções, os pretores lançavam um
2. O iudex e o ordo
edito, no qual faziam constar as fórmulas
para o provimento jurisdicional, as quais iudiciorum privatorum
passaram a se repetir. Em 117 d.C., o im- O objeto do próximo capítulo é a cog-
perador Adriano mandou consolidar os nitio, chamada, durante alguns séculos, de
editos no que ficou conhecido como Edic- extra ordinem justamente por se realizar fora
tum perpetuum9. Esse monumento represen- do ordo, do sistema processual padrão. Nas
tava, entre outras coisas, o fato de que os duas primeiras fases em que comumente se
divide a história do processo civil romano,
6
É com base nesse raciocínio que Marcio Diniz
tenta reconstruir a teoria da legitimidade do poder havia uma estrutura semelhante, a qual será
imperial em Roma (DINIZ, 2006, passim). tratada neste momento.
7
“Quod principi placuit, legis habet vigorem: A primeira fase foi a das leges actiones,
utpote cum lege regia, quae de imperio eius lata est,
ligada às origens e à fundação de Roma e,
populus ei et in eum omne suum imperium et potes-
tatem conferat” (ULPIANO, D. 1.4.1). por isso, marcada pelo formalismo, pela
8
Sobre o sentido de constitutio no Direito Romano: solenidade e pelo segredo quase religio-
(MOHNHAUPT, 1995, p. 10-14). so característico desse período, em que
9
A obra, não encontrada na íntegra, foi reconstru-
ída, na segunda metade do século XIX, por Otto Lenel
se aproximavam ius e fas. Na monarquia
(1974, p. 3-48), a partir de fragmentos encontrados romana, o rex, que tinha funções eminen-
principalmente no Digesto. temente militares e religiosas, também

230 Revista de Informação Legislativa


fazia o papel de juiz (TUCCI; AZEVEDO, lizadas por meio das fórmulas. Essas eram
1996, p. 41-42), o que parece ser comum em modelos abstratos, fruto do ius honorarium
sociedades arcaicas. À medida que a socie- ou pretoriano, que permitiam a litigância
dade romana foi ganhando complexidade, por escrito (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p.
aliando-se a isso o fato de a monarquia ter 73-74), em contraposição ao formalismo
sido substituída pela República, por volta e à oralidade das ações da lei. O processo
de 509 a.C., mudou-se a forma de se dizer o formular foi admitido pela lendária lex
direito, surgindo uma estrutura jurisdicio- Aebutia15, que teria surgido entre 149 e 129
nal que perdurou durante muitos séculos. a.C., mas foi através da lex Julia iudiciorum
Bipartiu-se o processo em dois momen- privatorum, de 17 a.C., ou seja, já no Princi-
tos. Inicialmente, dava-se o procedimento pado de Augusto, que o processo formular
in iure, quando o processo corria diante do se tornou o oficial e o padrão no processo
pretor10, autoridade a quem cabia organizar civil romano. Vê-se, portanto, que o lugar
e fixar os termos da controvérsia. Dotado de para o desenvolvimento do processo, nesse
iurisdictio11, o pretor tinha papel fundamen- período, era o ordo, daí a identificação da
tal na solução dos conflitos por possuir um expressão “processo ordinário” como sen-
conhecimento técnico do Direito, cabendo a do o processo normal ou comum.
ele deixar o processo apto para ser julgado12, A importância do pretor na elaboração
momento em que se firmava a chamada litis do direito romano é amplamente conhecida
contestatio, pacto celebrado entre as partes e estudada, em virtude das razões já expos-
em que elas se comprometiam a participar tas. Quer-se chamar atenção, porém, para
da fase processual seguinte e a acatarem o iudex, figura frequentemente relegada a
ao seu julgamento13. O segundo momento, uma posição menos importante do que a
por sua vez, era o do procedimento apud pretoriana justamente por conta dessa fun-
iudicem, realizado após o compromisso ção criativa que os pretores desenvolveram
das partes e perante o iudex, a quem cabia ao longo dos tempos16.
decidir a causa a partir de toda a instrução Não existem fontes seguras que per-
processual desenvolvida perante o pretor. mitam determinar o momento em que foi
Essa bipartição perdurou tanto na fase criada essa função, mas referências na Lei
das leges actiones quanto no processo formu- das XII Tábuas fazem crer na existência do
lar, ainda que esses dois tipos de processo iudex desde tempos longínquos. Max Kaser
tenham sido bem diferentes. No processo (1996, p. 57), ao tratar do tema, indica que
per formulas, o papel do pretor foi bem mais em duas das ações da lei, a legis actio sacra-
destacado, pois eles passaram a admitir mento e a legis actio per iudicis arbitrive postu-
ações em situações bem mais amplas do lationem, percebe-se a existência do iudex, o
que as previstas nas ações da lei14, materia- qual teria, na segunda delas, as funções de
arbiter. Em virtude disso, é bastante comum
10
Pelo que se tem notícia, a função de pretor
surgiu em 367 a.C., com a criação do praetor urbanus;
a identificação dessa figura com a função
posteriormente, surgiram outras espécies de pretores, arbitral, estando compreendidas as tarefas
como o praetor peregrinus. do arbiter nas do iudex (KASER, 1996, p. 59).
11
Segundo Max Kasern (1996, p. 183), iurisdictio é
o poder soberano concedido aos magistrados judiciais actio per manus iniectionem e legis actio per pignoris ca-
para defenderem as obrigações privadas. pionem (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 63-72).
12
Sobre o procedimento in iure no período das leges 15
Sobre a lex Aebutia, ver, entre outros, Wlassak
actiones: (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 55-57). (1891, p. 1-9, 218-219, 347-357).
13
Sobre a litis contestatio: (TUCCI; AZEVEDO, 16
Tucci e Azevedo (1996, p. 123) constatam a
1996, p. 98-100). escassez das fontes sobre o procedimento in iudicio
14
Gaio (4.12) traz as cinco possibilidades de ações em razão de os juristas clássicos não se interessarem
da lei: legis actio per sacramentum, legis actio per iudicis em escrever obras específicas sobre esse ofício, o qual
arbitrive postulationem, legis actio per condictionem, legis seria regulado pelos costumes.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 231


Como já mencionado, a atividade do lhido pelas partes e pelo pretor em comum
iudex consistia exatamente em examinar lití- acordo, sendo responsável pelo julgamento
gios para determinar qual das partes envol- apenas da controvérsia específica, não se
vidas possuía o direito alegado17. Como a tratando, propriamente, de um ofício, mas
instrução processual se desenvolvia perante de exercício de uma tarefa única. Só poderia
o pretor, o iudex se deparava com um caso já ser escolhido iudex quem compusesse uma
pronto para ser julgado, no qual o seu papel lista oficial, o album iudicum, anualmente re-
se resumia a proferir a decisão. Não havia, novado e cuja composição ajuda a entender
contudo, obrigação de decidir, pois o iudex o verdadeiro papel dessa personagem: só
que não estivesse convencido das alegações poderia compor essa lista e, consequen-
das partes, inexistindo evidências para ele temente, ser iudex quem pertencesse às
tomar uma decisão, poderia, simplesmente, classes aristocráticas romanas, a senatorial
se abster de decidir e declarar sibi non liquere e a equestre (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p.
(TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 59). 86-87). Ou seja, só quem poderia decidir as
Sua liberdade, portanto, consistia em causas cíveis no ordo iudiciorum privatorum
examinar o processo como ele tivesse sido eram os aristocratas, que compunham o
recebido e formar, a partir do que lhe fora populus romano.
dado, o seu convencimento, não sendo exa-
gerado afirmar que, pelo menos nas ações
3. A cognitio extra ordinem
da lei, a sua liberdade era restrita (HON-
SELLL et al, 1987, p. 530-531). O desenvolvi- Logo nos primeiros anos do Principado
mento da instrução probatória, contudo, se de Augusto, deram-se mudanças signifi-
dava perante o iudex, destacando-se a prova cativas no âmbito do processo. No ano 17
testemunhal (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. a.C., como mencionado, editou-se a lex Julia
58)18. Se, nas leges actiones, o formalismo ex- iudiciorum privatorum, a qual, de um lado,
plicava essa vinculação, no processo formu- oficializou o processo formular como o pa-
lar essa situação se alterou, ampliando-se a drão para processamento das causas cíveis,
liberdade do iudex, permitindo-se a forma- mas, de outro, subtraiu o poder de império
ção livre da sua convicção e criando-se, em do magistrado, pois o que antes era regula-
certa medida, uma discricionariedade para do pelo pretor passou a ser matéria legal,
elaborar a ratio decidendi (TUCCI; AZEVE- limitando a atividade pretoriana (TUCCI,
DO, 1996, p. 126). 1987, p. 27). Também Augusto passou a
Por fim, um último ponto que precisa admitir procedimentos diferenciados em
ser esclarecido, para ajudar a entender o determinadas situações não previstas no ius
papel do iudex na sistemática processual civile nem no ius honorarium. O fato de não
romana, é o da sua indicação. O pretor era ser tão formalista quanto as leges actiones
um magistrado, detendo, portanto, iuris- não fazia do processo formular um proce-
dictio, o que implicava a transitoriedade dimento aberto a toda e qualquer situação
na função. O iudex, por sua vez, era esco- jurídica; ao contrário, a própria estrutura
das fórmulas19 dá a entender que, para se
17
“Der iudex (im engeren Sinn) hat einen Rechtss- mover uma ação, seria necessário o total
treit, in den sich die Parteien mit kontradiktorischen
enquadramento no esquema construído
Behauptungen gegenüberstehen, dadurch zu entschei-
den, daß er dem einen Teil recht und dem anderen pelos pretores.
unrecht gibt” (KASER, 1996, p. 56). O reconhecimento de que havia situ-
18
Sobre a instrução probatória no processo formu- ações jurídicas que não se enquadravam
lar: (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 124-125). Para uma
nesses esquemas fez surgir a necessidade
visão mais ampla, englobando o período arcaico, o das
ações da lei e o ordo iudiciorum privatorum: (MORAES,
2008, p. 40-131). 19
Sobre as fórmulas, cf. Gaio, 4.37-60.

232 Revista de Informação Legislativa


de um sistema processual mais abran- romanos Suetônio (69-141) e Dio Cassio
gente, o qual foi utilizado, nos primeiros (155-229). Partindo do que foi dito no pri-
tempos, no âmbito das províncias, longe meiro capítulo sobre o poder de imperium
da realidade da capital do império. A essa e sobre a auctoritas do princeps, não é de
causa soma-se o aparecimento de uma nova se estranhar que ele se pusesse a discutir
fonte do Direito, as constitutiones imperiais, ou rediscutir determinadas matérias que
baseadas no princípio do princeps legibus chegassem ao seu conhecimento; por ser
solutus (MARTINO, 1974, p. 503-505) e o primeiro entre os seus pares, aquele que
fundamentais para a unificação do Direito recebeu do populus romanus, por intermédio
romano no período imperial20, as quais, do Senado, o poder supremo de governo,
pouco a pouco, foram suplantando em nada mais coerente do que a autorização
importância as demais. Certamente, isso para dizer o direito no caso concreto. Mas
favoreceu a necessidade de criação de ins- uma coisa deve ficar clara: essa possibili-
trumentos hábeis para tutelar o conteúdo dade de o princeps conhecer de determi-
desse novo Direito. nadas causas, muito comum em matérias
De modo geral, esse novo processo pode criminais (MARTINO, 1974, p. 505-510),
ser chamado, inicialmente, de cognitio extra não era algo institucionalizado, mas uma
ordinem, ou, em época posterior, apenas de prerrogativa imperial de se conceder uma
cognitio, a partir do século IV. A escassez de espécie de graça. Orestano afirma que a
fontes sobre o começo da sua utilização21 cognitio extra ordinem ficou caracterizada
torna o tema extremamente nebuloso, por falta de sistematicidade até o período
especialmente em virtude do seu caráter do imperador Marco Aurélio, momento
subsidiário. O termo cognitio parece ter em que a appellatio, da qual se tratará mais
sido conhecido anteriormente (KASER, à frente, começou a ganhar forma (ORES-
1996, p. 189-191), mas sem esse sentido TANO, 1953, p. 216-217).
de modalidade processual específica; ela Foi somente com os Severos que a
se contrapunha a tudo o que estivesse no appellatio, instrumento característico da
procedimento oficial republicano (MARTI- cognitio extra ordinem, ganhou regramentos
NO, 1937, p. 294), o ordo iudiciorum, razão específicos, o que facilitou a sua utilização
pela qual, nesses primeiros tempos, se fala como elemento normal e corrente nos
em cognitio extra ordinem. Cognitio, neste processos (ORESTANO, 1953, p. 432-433).
trabalho, refere-se, nos termos de Giovanni Isso representou a perda do caráter de bene-
Pugliesi (1985, p. 285), ao procedimento ficium ou de auxilium, passando a ser mais
em que, por antonomásia, o magistrado ou um elemento estrutural do ordenamento
funcionário conhecia a causa. processual (ORESTANO, 1953, p. 435). Em
É tradicional a afirmação de que os 342 houve mais uma mudança significativa,
imperadores, desde Augusto, costuma- a extinção do processo formular22, o qual
vam distribuir a justiça em determinadas já estava em desuso (MARTINO, 1937, p.
situações (ORESTANO, 1953, p. 203-224; 316); como consequência, esse novo pro-
KASER, 1996, p. 439; TUCCI, 1987, p. 36-40), cesso, baseado na jurisdição imperial, foi
lançando mão de relatos dos historiadores oficializado como o novo ordo de Roma,
daí por que, a partir de então, não faz mais
20
Como as constitutiones eram oriundas do poder sentido falar em cognitio extra ordinem, mas
imperial, na prática elas garantiam a independência
do magistrado no exercício da jurisdição (KASER,
somente em cognitio.
1996, p. 448).
21
Riccardo Orestano (1953, p. 16-18, 36-38) re- 22
Essa extinção se deu por meio de constituição
conhece essa dificuldade de fontes, o que explica a dos imperadores Constantio e Constante: “Iuris for-
pouca proliferação de estudos sobre específicos sobre mulae aucupatione syllabarum insidiantes cunctorum
a cognitio extra ordinem. actibus radicitus amputentur” (C. 2.57.1).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 233


Esses relatos mostram casos em que o magistrado, os iudices24, os quais podiam
princeps conhecia pessoalmente dos proces- delegar seus poderes jurisdicionais por
sos, mas a prática, com o passar dos tempos, inteiro ou apenas parcialmente (KASER,
foi no sentido da delegação desse poder a 1996, p. 460-461), os chamados iudices data
outras pessoas, razão pela qual Orestano ou iudices pedanei. Até o processo formu-
aponta como características da cognitio lar, o magistrado apenas organizava o
extra ordinem a intervenção direta do im- processo, sem sentenciar, mas, nessa nova
perador (cognitio principis) e a intervenção realidade, perante os iudices ou os seus
de magistrados e de funcionários imperiais delegados, desenvolvia-se todo o processo,
(ORESTANO, 1953, p. 9). Tais magistrados, até o conhecimento das provas e a prolação
diferentemente do que ocorria em momen- da sentença. Decidir não era mais uma
tos anteriores, não intervinham no processo prerrogativa dos cidadãos da confiança
como autônomos titulares de uma função das partes, e ser iudex agora independia de
jurisdicional destacada do poder político, questões pessoais (COSTA, 1918, p. 145).
mas sim como imediata emanação deste, À medida que a cognitio foi ganhando
passando a atuar como delegados do po- volume e complexidade, outras magis-
der imperial (TUCCI; AZEVEDO, 1996, traturas foram criadas, enquanto que as
p. 139). Trata-se de importante mudança tradicionais se mantiveram. Foi o caso
de perspectiva, pois denota a titularidade do pretor urbano, a cujas competências
dessa nova modalidade processual (o prin- ordinárias foi acrescido o julgamento de
ceps) e natureza do exercício dessa função, recursos, como se verá à frente, e do prae-
exercida pelo magistrado (delegação), fectus urbi, magistratura antiga e de atuação
implicando, na prática, a transferência de apenas na capital do Império, mas que foi
prerrogativas imperiais para esses magis- revitalizada com Augusto25. No ano 2 a.C,
trados funcionários públicos. Augusto criou o cargo de praefectus pretorio,
Apesar de já existirem, tecnicamente, encarregado de servir de chefe dos preto-
alguns funcionários na República, como res e, como tal, tinha funções militares e
os scribae, Augusto pode ser considerado, jurisdicionais26, especialmente nos casos de
de acordo com Mario Talamanca, o verda- apelação (KASER, 1996, p. 464). Ainda com
deiro criador do sistema da administração funções não exclusivamente jurisdicionais
imperial (TALAMANCA, M., 1989, p. 470), e em grau de recurso, havia um importante
significando um efetivo controle do poder órgão colegiado, o consilium principis27, tam-
e possibilitando que, durante o Principado bém criado por Augusto. Suas atividades
e o Dominato, o império fosse efetivamente eram de aconselhamento do princeps, o que
governado pelo princeps (TALAMANCA, o levou a tratar de matérias jurisdicionais;
M., 1989, p. 476). Isso acontecia porque ele no Dominato, ele foi substituído pelo consis-
era o chefe dessa administração e todos os torium principis, que manteve as funções de
funcionários estavam hierarquicamente aconselhamento ao imperador, incluindo a
subordinados a ele, inclusive aqueles en- de servir como alta corte de justiça, a única
carregados da aplicação da justiça.
24
“Si se subiciant aliqui iurisdictioni et consen-
No lugar da bipartição do período tiant, inter consentientes cuiusvis iudicis, qui tribunali
formular23, na cognitio extra ordinem o pro- praeest vel aliam iurisdictionem habet, est iurisdictio”
cesso inteiro ficava a cargo de apenas um (ULPIANO [D, 5.1.1]).
25
Sobre o prafectus urbi: (MARTINO, 1974, p.
641-647).
23
Orestano (1998, p. 1065) indica que essa supe- 26
Sobre o praefectus pretório: (D. 1.11; MARTINO,
ração da bipartição entre procedimento in iure e apud 1974, p. 647-652).
iudicem é característica externa fundamental da cognitio 27
Sobre o concilium principis: (D. 1.12; MARTINO,
extra ordinem. 1974, p. 671-674).

234 Revista de Informação Legislativa


das quais continuou a ser observada na A inexistência de pretores em determinadas
decadência do império, nos séculos V e VI províncias, por exemplo, fez com que as
(TALAMANCA, M., 1989, 564). demandas passassem a ser julgadas pelos
Essa estrutura descrita era observada próprios governadores, que cumulavam as
em Roma e nas regiões mais próximas, funções típicas de administração civil com
especialmente na Península Itálica. Quanto o exercício da função jurisdicional (TALA-
mais distantes da capital do Império, mais MANCA, M., 1989, p. 489).
difícil era manter uma estrutura adminis- Uma dessas províncias foi especialmen-
trativa complexa como a descrita, razão te importante para o desenvolvimento da
pela qual é importante chamar a atenção cognitio extra ordinem. Trata-se do Egito,
para a realidade processual existente nas o qual, depois de mais de três séculos de
províncias. Apesar de já existirem desde domínio grego, foi conquistado por Roma
a República, as províncias ganharam um em 30 a.C. Em virtude da sua importância
novo perfil no Principado, especialmente política e econômica e da visão de que o
quando, em 27 a. C., Augusto as dividiu em imperador romano seria sucessor da dinas-
províncias imperiais, as quais, por serem tia ptolomaica, recebeu o Egito tratamento
non pacatae, precisavam de defesa militar, diferenciado das outras províncias (TA-
e senatoriais, pacatae e, portanto, dispen- LAMANCA, M., 1989, p. 492), possuindo,
sando legiões (TALAMANCA, M., 1989, inclusive, estrutura administrativa com
p. 487). As diferenças na administração características próprias, o que também
dessas duas espécies de províncias eram pode ser explicado pelo argumento de
notórias, pois, nas imperiais, os governa- De Martino de que o Egito teria sido uma
dores recebiam instruções diretamente do espécie de monarquia pessoal de Augusto
princeps e eram quase todos seus delegados, (MARTINO, 1975, p. 854)28.
pressupondo uma relação de confiança O máximo mandatário do princeps na
entre eles e o poder central, ao passo que, província era o praefectus Aegypti, que
nas senatoriais, os governadores passavam servia como uma espécie de governador29,
pouco tempo nos cargos e, ainda assim, tendo entre as suas atribuições30, portanto,
eram frequentemente assistidos pelos fun- a de distribuir a justiça, o que era feito
cionários imperiais (TALAMANCA, M., em assembleias periódicas, os conventus31.
1989, p. 488-489). Quando se encarregava dessas funções, o
Segundo Kaser (1996), nas províncias praefectus Aegypti não se aproximava do
não ficavam muito claros os limites que se- iudex privatus do ordo, mas, segundo Giu-
paravam a aplicação do processo formular e liana Talamanca, do iudex pedaneus, um
da cognitio, apesar de, provavelmente, pre- delegado do titular daquele poder inicial, o
dominar a primeira espécie nas senatoriais imperador (TALAMANCA, G., 1979, p. 26);
e em algumas imperiais (TALAMANCA, 28
O autor relata que Augusto teria proibido, inclu-
M., 1989, p. 468). A importância das pro- sive, a entrada de senadores e cavaleiros no Egito sem
víncias para a cognitio, contudo, é muito a sua autorização (MARTINO, 1975, p. 857).
grande, havendo opiniões de que teria 29
De Martino (1975, p. 854), ao tratar desse ofício,
sido a praxe judiciária nelas seguida um indica que o praefectus Aegypti era escolhido entre os
membros da ordem equestre e praticamente não sofria
modelo importante e influente nessa espé- ingerência dos demais órgãos do governo romano,
cie de processo (TUCCI; AZEVEDO, 1996, mas diretamente do princeps.
p. 138). Uma coisa era certa: as províncias 30
Para as competências do praefectus Aegypti:
imperiais constituíram uma realidade nova, (TALAMANCA, M., 1989, p. 492; KASER, 1996, p.
468-469).
a qual não se encaixava na sistemática do 31
Sobre os conventus e os procedimentos nele
processo formular, razão pela qual foi ne- aplicados, organizados em diferentes épocas: (TALA-
cessário adaptar as práticas às realidades. MANCA, G., 1974, passim).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 235


era comum, contudo, que ele também dele- Não se pretendeu lhe dar uma relevância
gasse essa atribuição a outros funcionários, equiparada a do pretor, figura bem mais
especialmente aos epistratego (MARTINO, lembrada pelo seu papel modificador, em
1975, p. 862-863). Outro funcionário impor- certa medida, da ordem imposta, tendo
tante foi iuridicus ou διχαιοδότης, magistrado sido responsável pelo surgimento de uma
nomeado diretamente pelo imperador e ordem concorrente com o tradicional ius
também com funções jurisdicionais, especi- civile, o ius honorarium.
ficamente para litígios civis, e competentes, A importância que aqui se pretendeu
a partir do tempo de Marco Aurélio, para conferir ao iudex, em verdade, é justamente
cuidar da jurisdição voluntária (MARTI- pelo seu caráter mantenedor da ordem, fun-
NO, 1975, 864-865). damental para se entender com mais clareza
Essa forma de organização encontrada o real funcionamento do processo romano
no Egito influenciou o regramento poste- do período. Ainda que se reconhecesse na
rior da cognitio. A existência de um agente tarefa pretoriana, que tinha, inclusive, o sta-
subordinado diretamente ao Imperador e à tus de magistratura, papel elementar para
estrutura burocrática por ele criada, substi- resolver as questões jurídicas, aplicando,
tuindo-se a jurisdição privada pela pública, portanto, o conhecimento técnico, ao iudex
foi a marca característica da cognitio. E essa cabia a decisão final, o dizer quem tinha o
ideia de hierarquia, em que conviviam dele- direito. Ainda que tivesse como pressupos-
gantes e delegados do poder jurisdicional, tos argumentos jurídicos e técnicos, o iudex
fez supor uma ideia fundamental: já que decidia conforme a sua racionalidade, de
o processo havia sido julgado por alguém acordo com o que lhe parecesse mais correto
que não era titular dessa prerrogativa, um a partir da instrução processual e da produ-
julgamento que desagradasse poderia ser ção de provas. Portanto, o direito parece ter
levado ao conhecimento do titular daquele sido, nesse momento, mais um instrumento
ofício, a fim de que fosse proferida uma para criar condições ideais para a decisão
nova decisão. Essa é a lógica dos recursos, do que o próprio fundamento delas, o que
outra consequência da cognitio que será ajuda a explicar o porquê dessa liberdade
abordada a seguir. de decisão, não estando o iudex obrigado a
motivar a sua sentença.
Aliando-se a isso, ergue-se o fato de o
4. As consequências dessa
iudex ser representante do populus romano.
mudança de perspectiva Como membro das classes aristocráticas,
Os dois capítulos precedentes tiveram ele compartilhava a racionalidade a elas
a intenção de servir de perfil geral do pro- comum, e a sua decisão, quando seguisse
cesso e dos órgãos judicantes em duas fases o procedimento estabelecido, representa-
da experiência processual romana. Quis-se va a vontade do povo. Qualquer romano,
esclarecer, separadamente, essas realidades independentemente de ter ou não conheci-
distintas que foram o ordo iudiciorum priva- mentos jurídicos, tomaria a mesma decisão,
torum e a cognitio, a fim de que, neste último razão pela qual não havia sentido em se
capítulo, fosse possível discutir a extensão estabelecer possibilidade de interposição de
dessa mudança de perspectiva e as suas recursos contra ela. A sentença era plena,
consequências, especialmente quando se por ter sido proferida pelo povo romano
relacionam, na feliz expressão José Rogério por meio de seu representante, consistindo
Cruz e Tucci (1987), jurisdição e poder. em declaração que tinha o condão de por
Ao tratar do processo das leges actiones e fim à controvérsia e de fazer surgir uma
do formular, evidenciou-se a importância, nova relação jurídica entre os litigantes
ainda que muitas vezes esquecida, do iudex. (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 128).

236 Revista de Informação Legislativa


Proferida a decisão, absolvendo ou experiência e a realidade política ocasiona-
condenando o réu, punha-se fim à contro- ram a sua extensão às sentenças proferidas
vérsia e formava-se a rei iudicata32, a qual no ordo (ORESTANO, 1953, p. 188; TUCCI,
era consequência imediata da sentença e 1987, p. 31-40). A posição soberana do
impedia a nova discussão da decisão. Essa princeps acarretava a viabilidade da sua
característica demonstra bem a força da interferência na estrutura já posta, o que
decisão do iudex, a qual, obviamente, não contribuiu sensivelmente para a decadência
era infalível, existindo situações caracteri- do processo formular. Quando a cognitio
zadoras de nulidade da sentença (TUCCI; virou o procedimento oficial do Império,
AZEVEDO, 1996, p. 128-129), que indica- a appellatio deixou de ser remédio excep-
vam tão somente problemas nas condições cional para se converter em instrumento
para que ela fosse proferida, e não direta- ordinário da sistemática processual roma-
mente nela, no seu conteúdo. na34. Inicialmente, essa possibilidade de se
A cognitio extra ordinem, por sua vez, é julgar novamente cabia ao princeps, mas,
inserida em um contexto diverso, o qual mediante delegações, esse poder foi re-
explica bem a sua razão de ser. A decisão passado a outros burocratas, a exemplo do
judicial não mais era proferida por um pretor urbano, se as partes residissem em
representante do populus romanus, mas por Roma, dos viri consulares, caso elas fossem
um delegado do princeps. O imperador, oriundas das províncias, ou do praefectus
portanto, era o titular da função jurisdicio- preotrio, quando as decisões tivessem sido
nal, e o magistrado exercia os seus poderes proferidas por altos funcionários de todo o
em razão de uma delegação imperial, império (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 169;
acontecendo, em vários momentos, de os KASER, 1996, p. 501-505).
delegados repassarem a outras pessoas essa Como os órgãos competentes para
competência, estabelecendo outro nível de julgar a appellatio haviam recebido essa in-
delegação. Isso implicava que a decisão do cumbência a partir de delegação imperial,
magistrado era a decisão do princeps, ou, os mesmos fundamentos que ocasionaram
em outros termos, que o princeps decidia o seu aparecimento fizeram surgir a ideia
por meio do magistrado. de que o verdadeiro titular da jurisdição
Tantas delegações proporcionaram o deveria ser chamado para solucionar de-
surgimento de uma clara noção de hierar- terminados casos. Como não havia outra
quia entre os vários níveis de jurisdição. possibilidade, dentro da estrutura juris-
Isso possibilitou aos insatisfeitos com as dicional organizada e oficial, para se im-
decisões dos iudices recorrerem desse pro- pugnar as decisões no que hoje se conhece
vimento a quem estava acima deles. Essa como segunda instância35, apareceu outro
possibilidade foi surgindo com a praxe,
mas, pouco a pouco, foi reconhecida pelo da provocatio ad populum, instrumentos tipicamente
republicanos.
poder imperial e recebeu tratamento espe- 34
Sobre a appellatio como recurso ordinário: (TUC-
cífico, fazendo surgir o recurso conhecido CI; AZEVEDO, 1996, p. 168-169).
como appellatio. 35
Das decisões proferidas pelo praefectus pretorio
Sua origem se liga à cognitio, em virtude e pelos outros magistrados responsáveis por julgar a
appellatio não cabiam recursos. (TUCCI; AZEVEDO,
da comentada noção de hierarquia33, mas a 1996, p. 175-177). Os autores indicam que essa ina-
pelabilidade seria fruto da natureza de magistrado,
32
“Res iudicata dicitur, quae finem controversia- percebida a partir de uma constituição imperial de
rum pronuntiatione iudicis accipit: quod vel condem- Constantino, do ano 331: “A proconsulibus et comiti-
natione vel absolutione contingit” (D, 42, 1, 1). bus et his qui vice praefectorum cognoscunt, sive ex
33
Orestano (1953, p. 139-154, 166), ao defender appellatione sive ex delegato sive ex ordine iudica-
essa hipótese, rechaçando alegações de que a appellatio verint, provocari permittimus, ita ut appellanti iudex
seria uma reminiscência da appellatio tribunorum ou praebeat opinionis exemplum et acta cum refutatoriis

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 237


remédio extraordinário, a suplicatio. Seu rias objeto da cognitio37. Percebe-se também
escopo era obter uma ordem imperial para que o engessamento do direito pretoriano,
que houvesse o reexame da controvérsia, favorecido pelo Edictum perpetuum, e que
e os seus fundamentos estavam no poder as mudanças na sociedade romana ao
político de graça exclusivo do imperador longo dos tempos, da mesma forma que
(TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 179). A sup- tornaram odiosas as ações da lei38, fizeram
plicatio, portanto, não era um reexame pelo o processo formular não mais corresponder
próprio imperador, mas um comando para à realidade posta, razão pela qual, quando
que o praefectus pretorio o fizesse (KASER, da sua extinção oficial, ele já havia caído
1996, p. 623). em desuso há tempos.
A análise dos fatos e a confrontação des- Portanto, mudanças sociais e políticas
sas duas realidades parecem demonstrar explicam o surgimento de um processo emi-
que a cognitio foi formada lentamente e sem nentemente público, superando-se o caráter
uma intenção precípua do poder central36. privado das fases anteriores (ORESTANO,
Seria arriscado afirmar que, quando Augus- 1953, p. 13). Pensar nessa mudança como
to criou magistrados especiais para julgar algo necessário é entender que os eventos
algumas causas, como as que envolviam que levaram ao Principado e às consequ-
os fideicomissos, ou quando julgava, ele ências dessa mudança de regime fizeram
mesmo, determinados pleitos, ele já ante- natural a centralização da ordem jurídica.
veria a possibilidade de, no futuro, o poder A experiência processual e de organiza-
imperial ser suficientemente forte a ponto ção judiciária romana influenciou profun-
de suplantar a via ordinária de resolução damente os demais países europeus. Se não
de conflitos. Parece mais viável crer que as se tem certeza de que a cognitio foi a primei-
condições para a oficialização da cognitio ra manifestação de um processo público e
foram sendo criadas naturalmente e como controlado pelo poder central, é certo que
consequência dos grandes poderes conce- esse modelo inspirou a organização judi-
didos ao princeps. A atividade legislativa ciária dos reinos que se seguiram a Roma
dos imperadores fez surgir novas relações e serviram de matrizes para a construção
jurídicas que não poderiam ser tuteladas dos Estados atuais. Ainda que não se possa
mediante processo formular, o que explica falar em monopólio estatal da jurisdição
o crescente aumento no número de maté- no Medievo39, havia uma justiça régia com
características bem semelhantes às descritas
partium suisque litteris ad nos dirigat. A praefectis em Roma, como se percebe no caso de Por-
autem praetorio, qui soli vice sacra cognoscere vere
dicendi sunt, provocari non sinimus, ne iam nostra
tugal40. Assim, entender o funcionamento
contingi veneratio videatur. Quod si victus oblatam dessas estruturas em Roma ajuda a compre-
nec receptam a iudice appellationem adfirmet, prae- ender a justiça régia da transição da Idade
fectos adeat, ut aput eos de integro litiget tamquam Média para o Antigo Regime, sob a qual se
appellatione suscepta. Superatus enim si iniuste
appellasse videbitur, lite perdita notatus abscedet, aut,
funda a jurisdição contemporânea.
si vicerit, contra eum iudicem, qui appellationem non
receperat, ad nos referri necesse est, ut digno supplicio 37
Sobre os objetos da cognitio extra ordinem: (KA-
puniatur” (C. Th. 11.30.16). SER, 1996, p. 451-460; COSTA, 1996, p. 140).
36
Parece ser nesse sentido a opinião de Riccardo 38
“Sed istae omnes legis actiones paulatim in
Orestano (1998, p. 1056-1057): “‘La cognitio extra ordi- odium uenerunt. Namque ex nimia subtilitate ueterum
nem non nasce da alcun provvedimento legislativo Ed qui tunc iura condiderunt eo res perducta est, ut uel
è esclusivamente basata sull’autorità dell’imperatore. qui minimum errasset, litem perderet” (GAIO, 4, 30).
Si ebbero dapprima singole cognitiones isolate e spo- 39
Sobre o pluralismo jurídico na Idade Média:
radiche, che poi divennero via via più frequenti sino (CABRAL, 2011, p. 56-61).
a formare delle prassi costanti. L’origine degl’istituti 40
Sobre a organização judiciária e o processo em
procedurali della cognitio extra ordinem è sempre Portugal no Antigo Regime: (TUCCI; AZEVEDO,
nella prassi’. Appunti sulla ‘cognitio extra ordinem’”. 2009; CABRAL, 2011, p. 54-63, 153-164).

238 Revista de Informação Legislativa


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Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 239


A “responsibility to protect” no caso de
violação de direitos humanos
Um conceito em busca de juridicidade e legitimidade
decisória

Carlos Wagner Dias Ferreira

Sumário
1. Considerações preambulares. 2. Con-
cepção clássica da soberania do Estado. 3. A
universalidade dos direitos humanos e o dever
de proteger o distante. 4. A responsabilidade de
proteger como norma jurídica em construção.
5. Necessidade de judicialização da responsa-
bilidade de proteger: problemáticas em torno
da legitimidade do órgão decisório. 6. Consi-
derações finais.

1. Considerações preambulares
Mesmo com todos os avanços civiliza-
tórios conquistados pela humanidade ao
longo das últimas décadas, na seara da
ciência, tecnologia e, sobretudo, no palco
dos direitos do homem, a comunidade
internacional tem testemunhado graves
atentados contra os direitos humanos co-
metidos por Estados contra a sua própria
população, desde a prática de genocídio,
limpeza étnica, crimes de guerra ou mesmo
crimes contra a humanidade.
Na tentativa de coibir tais práticas ocor-
ridas em alguns casos sistematicamente, a
Organização das Nações Unidas desenvol-
veu a figura da intervenção humanitária a
partir do disposto no art. 2.7 de sua Carta1,
Carlos Wagner Dias Ferreira é Doutorando 1
O art. 2.7 da Carta das Nações Unidas de 1948
em Direito Público na Universidade de Coimbra, tem a seguinte dicção: “Nenhum dispositivo da pre-
Mestre em Direito Constitucional pela UFRN, sente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem
Professor Assistente da UFRN e Juiz Federal no em assuntos que dependam essencialmente da juris-
Rio Grande do Norte. dição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 241


que estabelece, em sua parte final, uma traditórias ações de intervenção da NATO
exceção ao princípio da não intervenção nas situações específicas de Ruanda e do
em assuntos internos e, por via de consequ- Kosovo (McCLEAN, 2008, p. 125).
ência, da soberania estatal. Com base nesse Em resposta a essa provocação e por
preceito normativo, o mundo assistiu, na iniciativa do governo canadense, foi
década seguinte ao final da guerra fria, a instituída, no final do ano 2000, a Interna-
seguidas intervenções militares autorizadas tional Commission on Intervention and State
por resoluções do Conselho de Segurança ­Sovereignty (ICISS), destinada a aprofundar
da Organização das Nações Unidas2 na estudos que procurassem compatibilizar as
Somália (1992), na Libéria (1992), em Ru- intervenções militares em caso de graves
anda (1994), no Haiti (1994), em Serra Leoa violações de direitos humanos perpetradas
(1998) e no Kosovo (1999), sob a alegação de por um Estado contra os seus próprios
que tais Estados estariam amesquinhando, civis com a soberania estatal, tendo cul-
brutal e violentamente, direitos humanos minado com a elaboração e a consequente
de suas próprias populações. apresentação, em dezembro de 2001, de
Todavia, como ressalta Rebecca J. Ha- um relatório intitulado “Responsibility to
milton (2006, p. 289-290), essas intervenções Protect”3 (McCLEAN, 2008, p. 125). Esse
humanitárias desencadeadas na década relatório, pela primeira vez, menciona a
de noventa do século pretérito estavam, a expressão “Responsabilidade de proteger”
bem da verdade, despidas de alguma base para tratar do polêmico tema da interven-
teórica consistente. Isso motivou ao então ção humanitária.
Secretário-Geral Kofi Annan a lançar, em Nunca é demais recordar que a sobera-
setembro de 2000, um desafio sintetizado nia numa perspectiva externa dos Estados
na seguinte indagação: “If humanitarian nasceu, como lembra Luigi Ferrajoli (2002,
intervention is, indeed, an unacceptable p. 47-50), da necessidade de defesa contra
assault on sovereignty, how should we os inimigos externos. Porém, na atualidade,
respond to a Rwanda, to a Srebrenica – to com a rapidez e multiplicidade das comu-
Gross and systematic violations of human nicações nas várias sociedades de culturas
rights that offend every precept of our com- diversas, reacende a aspiração por identi-
mon humanity?”. dade dos povos, das etnias, das minorias
Em realidade, essa pergunta do então e, por conseguinte, pelo reconhecimento
Secretário-Geral Kofi Annan expôs um das diferenças, surgindo conflitos dentro
verdadeiro dilema, em casos de genocídio dos limites fronteiriços do próprio Estado.
ou limpeza étnica, entre a “defesa da so- Ferrajoli ainda atribui à divisão do mundo
berania” e a “defesa da humanidade” ou em Estados soberanos e à arbitrariedade de
dos direitos humanos, agravada com con- suas fronteiras um dos principais motivos
dos conflitos entre os países e, em parti-
submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos
da presente Carta; esse princípio, porém, não preju-
cular, dos conflitos internos ocorridos no
dicará a aplicação das medidas coercitivas constantes próprio Estado, gerados, segundo sustenta,
no Capítulo VII.” as mais das vezes, por fatores étnicos e
2
O art. 24.1 concede ao Conselho de Segurança da religiosos.
ONU competência para adotar medidas interventivas
militares nos Estados, como se depreende da redação a
Nestes últimos meses, justamente em
seguir alinhada: “A fim de assegurar a pronta e eficaz razão de dissidências internas, esse tema
ação por parte das Nações Unidas, seus Membros voltou à baila com as recentes ações mili-
conferem ao Conselho de Segurança a principal res- tares da NATO na Líbia e, nomeadamente,
ponsabilidade na manutenção da paz e da segurança
internacionais e concordam em que no cumprimento 3
Esse relatório da ICISS pode ser encontrado no
dos deveres impostos por essa responsabilidade o seguinte sítio: www.iciss.ca/pdf/Comission-Report.
Conselho de Segurança aja em nome deles”. pdf.

242 Revista de Informação Legislativa


na Costa do Marfim, como denuncia o Investigar a legitimidade do órgão, no
seguinte trecho de um ensaio jornalístico caso, do Conselho de Segurança da ONU,
que assim se principia: que decreta algum tipo de medida interven-
“‘Dei ordem para serem tomadas as tiva a teor da responsabilidade de proteger
medidas necessárias para impedir o significa tocar na espinha dorsal de tal dou-
uso de armas pesadas contra a popu- trina e, possivelmente, no ponto mais im-
lação civil’, declara o secretário-geral portante que circunda tal teorização. Mas,
da Organização das Nações Unidas para isso, também se mostra imprescindível
(ONU), Ban Ki-moon, no dia 4 de meditar, em momento anterior, sobre a
abril. Algumas horas mais tarde, em possível natureza jurídico-normativa da
Abidjan, os helicópteros de combate responsabilidade de proteger e avaliar se
da ONU e a força francesa Licorne há alguma ligação dela com o órgão que
juntam-se à ofensiva das tropas de a decide.
Alassane Dramane Guattara contra Qualquer análise da doutrina da “res-
as do presidente cessante Laurent ponsibility to protect” pressupõe um exa-
Gbagbo” (ROBERT, 2011, p. 18)4. me, talvez até mesmo ponderativo, entre
A perplexidade da jornalista, ao escrever a soberania dos Estados e a necessidade
essa matéria, residiu justamente na dis- de tutela da pretensão universalizante dos
cutível atribuição do Secretário-Geral da direitos humanos, notadamente naquelas
ONU, que, isoladamente e sem qualquer situações de grave ofensa. Daí por que
autorização do Conselho de Segurança, esse trabalho os abordará preliminarmente
determinou a execução de uma ação mili- antes de enveredar pelas temáticas da na-
tar que mais representava uma autêntica tureza da responsabilidade de proteção e
intervenção humanitária. da legitimidade decisória do Conselho de
Talvez um dos problemas mais com- Segurança da ONU.
plexos relativamente a essa matéria diga
respeito à legitimidade das ordens de 2. Concepção clássica da
intervenção militar à luz da novel dou- soberania do Estado
trina da responsabilidade de proteger. A
compreensível desconfiança dos Estados Em meados do século XVII, como histo-
em aceitar algum tipo de interferência em ria Christopher C. Joyner (2007, p. 703), sur-
seus respectivos assuntos internos deve-se ge a noção de soberania como prerrogativa
muito ao caráter eminentemente político de autoridade e controle do Estado. Essa
das decisões do Conselho de Segurança da noção de soberania, acentuada no modelo
ONU, que, a pretexto de se posicionarem de Vestfália do direito internacional, sem-
em defesa da proteção dos direitos hu- pre esteve ancorada no poder exclusivo e
manos, estão, em última análise, na busca absoluto do soberano dentro dos limites
de satisfazer seus particulares interesses territoriais do Estado e no dever dos demais
políticos e econômicos. Estados de não interferirem em assuntos in-
ternos daquele. Em princípio, ao soberano
4
Nesse artigo, Anne-Cécile Robert questiona tudo podia em relação aos seus súditos in-
a legitimidade do Secretário-Geral da ONU em ternamente. De outra banda, prevalecia, na
determinar, unilateralmente, em abril de 2011, uma
intervenção militar na Costa do Marfim, suposta-
relação externa entre os Estados, o princípio
mente fundado na Resolução no 1975 do Conselho da não interferência em assuntos internos5.
de Segurança, que decretou sanções ao Presidente
do país, Laurent Gbagbo, e à sua esposa. Gbagbo não 5
A propósito, Kant (2009, p. 133) lança a noção
teria reconhecido a sua derrota nas últimas eleições basilar que, tempos depois, vem a se constituir no
realizadas na Costa do Marfim e, para se manter no alicerce filosófico do princípio da não intervenção,
poder, imprimira violência contra a população civil. para assegurar a paz universal entre as nações, ao

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 243


Demonstra Luigi Ferrajoli (2002, p. 1-2) século XX. Desde o surgimento do Estado
que a ideia de soberania, entendida como de direito liberal, com o advento das revo-
suprema potestas superiorem non recognos- luções liberais, passando pela criação de
cens (poder supremo que não reconhece constituições nacionais, com a consequente
outro acima de si), remonta à época do proclamação do partilhamento do poder
nascimento e da formação político-jurídica estatal e do reconhecimento da legalidade
dos Estados nacionais modernos europeus e dos direitos fundamentais, que a sobera-
(KANT, 2009, p. 1-2). E pode ser concebida nia interna vem sendo alvo de constantes
em duas dimensões, a interna e a externa. e ininterruptas restrições.
A soberania interna e externa não se com- Por sua vez, a soberania nas relações
preende como dois institutos diversos, mas entre Estados, e portanto externa, cami-
duas dimensões de um mesmo fenômeno nhou, no curso do tempo, a passos largos
político-estatal (PETERS, 2009, p. 516). rumo à construção de princípios na esfera
A primeira a se desenvolver foi a dimen- do direito internacional relacionados à
são externa da soberania e, de acordo com absolutização do poder político de cada
Luigi Ferrajoli (2002, p. 5-6), os seus esqua- Estado, como a independência nacional, a
drinhamentos iniciais deram-se por meio não interferência em assuntos internos e a
das penas dos teólogos espanhóis Francisco autodeterminação dos povos, possivelmen-
de Vitoria, Gabriel Vasquez de Menchaca, te em virtude da ausência de um poder a
Balthazar de Ayala e de Francisco Suarez e ele superior.
tinham um fim bem pragmático: “oferecer No atual cenário das relações interna-
um fundamento jurídico à conquista do cionais, Anne Peters (2009, p. 517) conse-
Novo Mundo, logo após seu descobrimen- gue enxergar um certo paralelo entre os
to”. A consolidação dos Estados nacionais caminhos traçados pelas soberanias externa
e a sua autonomia em relação sobretudo a e interna. Compreende que a soberania ex-
vínculos religiosos tornaram-nos, em prin- terna, hoje, vem seguindo idêntica trajetória
cípio, livres de qualquer limite, inclusive histórica por que passou a soberania interna
jurídico, vindo a se constituir em pessoas ao longo dos séculos, desde a concepção de
artificiais dotadas de poderes absolutos divisão de poderes e a busca por legitimi-
(FERRAJOLI, 2002, p. 16-17). dade dos atos do governo até a prestação
Conta Ferrajoli (2002, p. 27-28) que as de contas à população6.
soberanias interna e externa, embora pro- Adverte Otfried Höffe (2008b, p. 256),
venientes do mesmo tronco comum, segui- no entanto, que a soberania jamais se cons-
ram trajetos diversos, sofrendo a primeira tituiu em poder absoluto e ilimitado, talvez
progressiva limitação ao longo dos séculos como pudesse pretender originariamente.
e a segunda, ao contrário, uma progressiva A legitimação do Estado sempre esteve
absolutização no palco do direito interna- associada diretamente à limitação de seu
cional, em especial no período compreendi- poder soberano. O próprio Jean Bodin, a
do entre metade do século XIX e meados do quem se credita tal concepção absolutista
da soberania em uma perspectiva externa,
pontificar que “nenhum Estado deve imiscuir-se pela
força na constituição e no governo de outro Estado”. 6
Emma Dunlop (2009, p. 558), todavia, discorda
E, mesmo que houvesse uma disputa interna pelo dessa aproximação evolutiva entre as soberanias
poder em um Estado, com o país dividido em duas externa e a interna, já que, por mais que a “humani-
partes, enquanto essa luta interna não estivesse ainda zação” do direito tenha, de alguma forma, enaltecido
decidida, Kant entendia que “a ingerência de potências a figura do indivíduo na esfera internacional, ainda
estrangeiras seria uma violação do direito de um povo não os transformou em verdadeiros agentes, perma-
independente que combate a sua enfermidade interna; necendo os Estados como pedras sólidas da ordem
seria, portanto, um escândalo, e poria em perigo a internacional com deveres unicamente de proteção
autonomia de todos os Estados”. dos cidadãos dentro dos seus respectivos territórios.

244 Revista de Informação Legislativa


ponderava que o soberano submetia-se a Na concepção hobbesiana, nem mesmo
obrigatoriedades jurídico-morais, constan- quando o soberano supostamente cometia
tes nos preceitos divinos e no direito natu- algum ato ofensivo ao contrato, ficava o sú-
ral, e também nas obrigações assumidas nos dito liberado de a ele se vincular (HOBBES,
tratados de direito internacional público. 2009, p. 160). E isso porque, como a criação
Para Bodin (1591, p. 266), a soberania do Estado resultava da participação volitiva
correspondia ao poder absoluto do Estado, de todos, cada súdito era autor de todas
perpétuo e superior à própria lei. Poder as ações do soberano e, portanto, nada do
absoluto significava que o soberano podia que este fazia se constituía em injúria para
dele dispor livremente, como se fora um aquele. Assim, quem se queixava de algum
proprietário que dispõe de seu próprio ato do soberano estava, em última análise,
bem, inclusive doar sem qualquer condição insurgindo-se contra algo que ele mesmo
restritiva, a menos que tais condições decor- era autor e, como consequência disso, não
ressem de leis divinas e humanas (BODIN, podia acusar ninguém a não ser si mesmo
1591, p. 275)7. Aliás, para ele, todo o poder (HOBBES, 2009, p. 162).
absoluto desaparecia à vista das leis divinas Mas é certo, pondera Hobbes (2009, p.
e humanas (BODIN, 1591, p. 283). 193), que, por ser a soberania um acordo de
No mesmo compasso, só que em uma todos com todos com vistas à preservação
perspectiva interna, Thomas Hobbes (2009, da criatura humana ameaçada de destrui-
p. 156) assinalava que a única forma de pro- ção pela constante guerra no estado de
porcionar paz e segurança aos indivíduos natureza, os convênios mediante os quais
que viviam, no estado de natureza, numa os homens renunciam à defesa de seu pró-
eterna guerra de todos contra todos, e decli- prio corpo ou à sua própria existência eram
nar a inevitável destruição de todos, residia considerados inválidos, daí se constituindo,
em estabelecer um acordo (natureza con- nesse sentido, um dos limites intrínsecos ao
tratual) entre os indivíduos no qual cada poder soberano, ao lado das leis da natu-
um cedia os seus respectivos poderes em reza e das leis divinas (HOBBES, 2009, p.
favor de uma única pessoa a que designara 190). E mais do que isso, o próprio Hobbes
Estado (Leviatã), instituída ficticiamente8. (2009, p. 195) admitia que a obrigação
dos súditos para com o soberano apenas
7
É oportuno realçar que, na sua concepção, leis subsistia enquanto perdurasse o poder
divinas eram as leis de Deus e leis humanas, as leis
da natureza, não podendo confundir estas últimas, de
deste para protegê-los, na medida em que
forma alguma, com os direitos humanos tal como fo- era irrenunciável o direito natural que os
ram concebidos em meados do século XX, nem muito homens tinham de protegerem-se quando
menos com a noção dos direitos do homem edificada ninguém o podia fazer em seu favor.
nos séculos XVII e XVIII.
8
Hobbes (2009, p. 156) assim se expressa ao justifi- É claro que Hobbes, quando escreveu
car a necessidade da criação de um Estado nas relações tais situações de exoneração da sujeição do
entre os vários países existentes e entre o soberano e súdito perante o soberano, sequer imaginou
os seus súditos: “El único modo de erigir un poder
comum que pueda defenderlos de la invasión de ex-
ou cogitou de possíveis violações de direi-
traños y de las injurias entre ellos mismos, dándoles tos humanos, mas o que importa ressaltar
seguridad que les permita alimentarse con el fruto de
su trabajo y con los productos de la tierra y llevar así da liberdade que possui, deseja uma lei que limite a
una vida satisfecha, es el de conferir todo su poder y liberdade de todos e o force a obedecer uma vontade
toda su fuerza individuales a un solo hombre o a una universalmente válida. Esse senhor é o Estado. E nas
asamblea de hombres que, mediante una pluralidad de relações internacionais, a mesma ideia de segurança e
votos, puedan reducir las voluntades de los súbditos a sobrevivência que justificou o seu nascimento no âm-
una sola voluntad”. Na mesma esteira contratualista, bito interno inspirou, como acrescenta Kant (2009b, p.
Immanuel Kant (2009b, p. 27) acentua que o homem 28), a necessidade de cada sociedade relacionar-se com
é um animal que precisa de um senhor, quando con- outras sociedades, num laço externo de um Estado em
vive com os seus semelhantes, pois, ainda que abuse relação a outros Estados.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 245


é que, desde o princípio de sua concepção, “a violação do direito num lugar da
o poder soberano nunca foi absoluto e Terra se sente em todos os outros, a
inexpugnável, admitindo exceções, em es- ideia de um direito cosmopolita não
pecial alicerçada na natureza das coisas ou é nenhuma representação fantástica
em algum modelo ético-moral dominante e extravagante do direito, mas um
da época. complemento necessário de código
Como decorrência da soberania estatal, não escrito, tanto do direito político
o princípio da não intervenção seguramen- como do direito das gentes, num
te sempre se constituiu, ao longo dos anos, direito público da humanidade em
em uma das poucas normas em defesa dos geral”.
Estados mais fracos contra os interesses Contudo, Kant (2009a, p. 180-181) con-
políticos e econômicos dos Estados mais dicionava a existência e subsistência do
poderosos internacionalmente (EVANS, direito das gentes à presença do Estado
2006, p. 705). No entanto, as constantes ou, para ser mais preciso, a uma federação
agressões aos direitos humanos cometidos de vários Estados, na medida em que, sem
por Estados contra a sua própria população um estado jurídico nascido de tal relação
civil redundaram na progressiva mitigação associativa de nítido perfil contratualista,
do âmbito desse princípio. À medida que que ligasse as distintas pessoas físicas e
se alcançava a universalização dos direitos morais (jurídicas), apenas remanescia um
humanos, mais se limitavam os princípios direito meramente privado.
derivados da intocabilidade da soberania Diferente, no entanto, é o pensamento
estatal. de Amartya Sen (2010, p. 207). Para ele, no
contexto atual, os vínculos que ligam os ho-
mens em suas relações externas, justamente
3. A universalidade dos direitos humanos fundadas no dever, na preocupação e no
e o dever de proteger o distante cuidado, podem se perfectibilizar indepen-
Nos dias de hoje, torna-se cada vez mais dentemente do Estado. Há quem defenda,
comum ver pessoas ou grupos, organizados inclusive, o fim da soberania do Estado
ou não, indignarem-se com ações ou omis- em face da emergência de um novo huma-
sões que atentem contra os direitos huma- nismo que enaltece a figura do indivíduo
nos, mesmo que sejam praticados além dos perante o poder estatal, mesmo nas relações
limites fronteiriços em que se achem situ- internacionais9. Mas esse entendimento fa-
ados, mormente se essas agressões forem talista não merece prosperar, uma vez que
promovidas pelo próprio Estado contra os os Estados ainda continuam, mesmo com
seus civis. Isso pode revelar que, na socie- todo o incremento dos direitos humanos,
dade atual, existe uma indubitável espécie como leciona Jónatas Machado (2006, p.
de ética universal dos direitos humanos. 220), a participar da cena internacional,
Amartya Sen (2007, p. 168), inclusive, se não como figura central, certamente,
constata que um dos sinais que revelam embora com menos autonomia, como ins-
a existência de um sentido de identidade trumento decisivo mais colaborante e mais
global ou uma certa preocupação com a competitivo na luta do mercado global por
ética global repousa no descontentamento investimento e “know-how”.
de movimentos de protesto organizados Sen (2010, p. 208) exemplifica o caso de
por pessoas de uma parte do mundo que uma ativista feminista americana que busca
não se conformam com tratamentos injus- impedir situações desvantajosas para as
tos infligidos a outros indivíduos de outros mulheres do Sudão. Nessa hipótese, o que
quadrantes. 9
Para um estudo sério a respeito desse tema, ver
Kant (2009a, p. 151) chega a dizer que também Ward (2003, p. 2091-2112).

246 Revista de Informação Legislativa


a faz se indignar pela situação, a seu ver, grande sociedade da humanidade (VIN-
de injustiça no país africano não é a sua CENT, 1992, p. 244)11.
condição de cidadã americana, mas a sua Kant (2009c, p. 91-92) erige posição
identidade como mulher diante de outras contrária a qualquer direito de resistência
mulheres. Assim, a preocupação com a tu- dos indivíduos contra o Estado, ainda que
tela dos direitos humanos, longe de derivar o seu chefe viole o contrato originário e
apenas da cidadania de um Estado ou de perca a sua própria legitimidade de legislar.
pertença a ele, antes pressupõe reivindica- E o defende por uma razão nitidamente
ções que atingem todos os seres humanos10. contratualista, caracterizada pela ideia de
Como consequência disso, emerge uma superioridade decisória do chefe do Estado.
obrigação, umbilicalmente ligada ao re- Para ele, o povo não teria o direito de deci-
conhecimento dos direitos humanos, que dir como o Estado deve ser administrado,
recai sobre todos que estejam em posição já que, em caso de conflito, não poderia
de ajudar (SEN, 2009, p. 208). nem o chefe nem o povo ser juiz em causa
Mas, mesmo antes de Kant, Hugo própria, necessitando haver um chefe aci-
Grocio (1987, p. 62) já havia reconhecido ma do chefe, o que seria, no seu entender,
o direito das gentes, comum a todas as contraditório para a própria manutenção
nações e resultante da vontade de todos da figura do Estado.
os povos. Esse direito comum a todas as Há quem considere a ideia de univer-
nações decorreria da natureza humana, salização dos direitos humanos uma forma
e, portanto, do direito natural, amparado “sutil” de imperialismo, um “imperialismo
na vontade divina (GROCIO, 1987, p. 63). jurídico-cultural” (HÖFFE, 2008a, p. 165).
Como anota Jónatas E. M. Machado (2006, Um imperialismo marcantemente ocidental
p. 74), Grocio (1987) incluía no domínio do e, sobretudo, como já dito, europeu.
direito todas as relações internacionais, re- Castanheira Neves (2010a, p. 106) dife-
jeitando a invocação da “razão de Estado” rencia universalização de internacionaliza-
para deixar de aplicá-lo. E é justamente ção. Em seu entender, enquanto a univer-
com base na validade universal do direito salização tem a ver com a intencionalidade
das gentes que Grocio (1987) defende para voltada à possibilidade ou à exigência de
a Holanda a autodeterminação dos povos um mesmo sentido, a internacionalização
oprimidos e o direito de resistência contra pressupõe um liame espacial calcada em
abusos dos soberanos. uma referência objetiva (entidade cultural,
R. J. Vincent (1992, p. 243) observa político-cultural ou de outra perspectiva),
que, apesar de Grocio (1987) nem sequer segundo o qual se busca a unidade na pres-
cogitar a expressão “direitos humanos”, suposição real do mundo, embora esteja
o desenvolvimento do direito das nações, dividido nos seus limites convencionais.
na sua visão, centrado na figura do Estado, Critica Castanheira Neves (2010a, p.
começava com o indivíduo. Daí sustentar 125) a pretensa universalização do direito,
Grocio que a sociedade não era formada sobretudo a ideia defendida por John Rawls
apenas de Estados, mas também de uma da existência, no plano internacional, de
uma lei dos povos, por considerá-la ine-
10
Acrescenta Amartya Sen (2010, p. 143-144), ai-
nda, que “They differ, therefore, from constitutionally
xequível e seletiva na escolha dos povos e
created rights guaranteed for specified people (such
as American or French citizens); for example, the hu- 11
Nada obstante ter sido sensível à figura humana
man right of a person not to be tortured or subjected na órbita internacional, Grocio, pontifica R. J. Vincent
to terrorist attacks is affirmed independently of the (1992, p. 246-247), não pode ser considerado um de-
country of which this person is a citizen, and also fensor do intervencionismo nos Estados, na medida
is quite irrespective of what the government of that em que alimentava grande deferência à autoridade
country – or any other – wants to provide or support”. soberana e à manutenção da ordem internacional.

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dos interlocutores, o que a compromete ab essenciais da cultura ocidental, tais como a
initio. Como se não bastasse, ainda vaticina sua técnica, a sua economia e a sua língua
que alguns dos princípios constantes nessa dominante, o inglês americano.
lei dos povos seriam de uma evidência tão Entretanto, nomeadamente no caso dos
banal e sem importância que se afigurariam países africanos ao sul do Saara, Höffe nega
praticamente inócuos, e, outros, fundados acolhida a tais justificações. Acusa Höffe
em profundas diferenças político-culturais, (2008a, p. 173) que as elites desses Estados
seriam, de logo, rechaçados in limine, em africanos têm sido educadas em Paris,
especial por decorrerem de uma concep- Oxford, Cambrigde ou Harvard e, assim,
ção contratualista demasiado localizada e no seio da cultura jurídica dita ocidental.
europeicamente comprometida. E mais, as suas constituições contemplam
No entanto, como ilumina Amartya “con la mayor naturalidad del mundo,
Sen (2007, p. 176), se a Europa tivesse, no declaraciones de los derechos humanos”,
princípio do segundo milênio, resistido à ainda que seja um mero adorno exótico na
globalização da matemática, da ciência e prática. Como se não bastasse, a “African
da tecnologia oriundas da China, da Índia, Charter on Human and People’s Rights”
do Irã e do mundo árabe, não alcançaria é uma cópia das declarações americanas
a prosperidade conquistada nos séculos e europeias.
que o compuseram. O mesmo raciocínio, Mas, sem embargo disso, Höffe (2008a,
como pontifica Sen, aplica-se hoje, só que p. 174) não se deixa seduzir por esses argu-
em direção inversa. Além da privação dos mentos simplistas de que, se os direitos hu-
benefícios que todos poderiam desfrutar, manos se acham positivados em declarações
recusar a globalização da ciência e da e documentos africanos é porque tem-se
tecnologia, sob o pretexto de se tratar de que concretizá-los prontamente a qualquer
imperialismo, representaria negar a própria custo. Propugna ele que se deve exigi-los em
origem e influência oriental de tais avanços. outras culturas, com um diálogo intercultu-
No olhar jurídico, Otfried Höffe (2008a, ral que substitua a ensinança autossuficiente
p. 172) explicita que um dos maiores de- e unilateral para um discurso recíproco que
safios encontrados na consolidação dos permita vários pontos de vista.
direitos humanos em países de culturas Não se pode confundir, esclarece Otfried
diferentes ocorre mais propriamente na Höffe (2008a, p. 179-180), universalidade
ótica do discurso jurídico. Teme-se que, com uniformidade. A universalização de
embora todas as culturas exijam direitos princípios jurídicos e dos direitos humanos
humanos, o seu discurso só se desenvolva não elimina as diferenças sociais e culturais
dentro de uma única cultura e que, em vez entre as sociedades, nem mesmo conduz à
de reconhecê-los como o núcleo de uma imposição de modelos de comportamento,
moral jurídica universal, acabe por reduzi- costumes e valores, mas antes converge
-los a um “artículo de exportación de la para uma maior convivência e tolerância
cultural occidental”, sobretudo resultante com o diverso.
de uma mentalidade eurocentrista. E isso Pouco importa, como esclarece Jónatas
por três motivos fundamentais: a) desco- E. M. Machado (2006, p. 133), em quais do-
nhecimento por outras culturas dos direitos cumentos possam se encontrar as normas
humanos, devido, entre outros aspectos, a de direito internacional, pois a hierarquia
sua imagem individualista da pessoa; b) assenta em fundamentos de legitimidade
as outras culturas teriam um direito a não (direito, justiça, dignidade da pessoa hu-
intromissão; e c) a ameaça e o consequente mana) cuja consciência da comunidade
perigo de os direitos humanos serem expor- internacional sobrepuja até mesmo o pró-
tados “em pacote”, refletindo os elementos prio consentimento dos Estados, sendo

248 Revista de Informação Legislativa


imperativos os direitos nelas previstos, Entretanto, essa pretensão da univer-
ainda quando sistematicamente violados. salidade dos direitos humanos não se
Ensina Castanheira Neves (2010b, p. apoia em um direito natural, tal como fora
176) que há princípios normativos funda- concebido na mente de Hugo Grocio, mas
mentais os quais, construídos pela expe- no diálogo intercultural fruto do discurso
riência histórico constitutiva do direito, recíproco entre os vários atores interna-
consistem em elementos irrenunciáveis da cionais, incluindo nesse debate Estados,
juridicidade, fazendo parte de tal repertório fortes e fracos, política e economicamente,
os direitos do homem12. indivíduos e organizações de cunho inter-
De fato, como bem assinala Otfried nacional.
Höffe (2008b, p. 252), os direitos humanos Jónatas Machado (2006, p. 33) cogita até
são “derechos interculturalmente válidos”. mesmo de se falar de um hipotético direito
Em lugar algum do mundo, a expulsão de natural, porém fundado em um diálogo
civis, a violação de mulheres e a execução permanente, livre e aberto a diferentes
de pessoas desarmadas podem estar em tradições religiosas e filosóficas, completa-
consonância com o direito. Para Ferrajoli mente distante do direito natural clássico,
(2002, p. 40), a Declaração de 1948, ao se- já que a “natureza em si mesma não tem
pultar o modelo Vestfália, eleva os direitos consciência moral nem capacidade volitiva
humanos à categoria de normas supraesta- para criar absolutos morais. Quando muito,
tais a impor limites externos ao poder dos isso é um atributo de Deus ou de um Ser
Estados13. Supremo”.
Essa interação recíproca entre os indi-
12
Complementa Castanheira Neves (2010b, p. 178) víduos, independentemente dos limites
que essa estrutura normativa, não apenas principio-
lógica, deve centrar-se no valor da criatura humana fronteiriços em que se encontrem, torna,
e na sua inseparável dignidade, quando assinala mesmo aqueles que estejam distantes
que “são decerto os valores da pessoa humana, a territorialmente, mais próximos e mais
especificarem-se nos valores da sua autonomia assim
cientes dos problemas e das dificuldades
como nos valores da sua comunitária realização. O
homem-pessoa com a sua dignidade, e esta tanto na de cada um, o que faz nascer daí, de igual
sua autônoma igualdade participativa como na sua forma, também dever recíproco de ajuda e
comunitária corresponsabilidade, é o valor fundamen- de proteção.
tal, o pressuposto decisivo e o fim último na humana
existência finita que uma comunidade do nosso tempo
Destaca John Rawls (1971, p. 114-115)
terá que assumir e cumprir para ser uma comunidade que existem deveres naturais do homem,
válida. É este o pólo para onde toda a normatividade tais como, por exemplo, o dever de ajudar
humano-social converge, em pressuposição, e de onde o próximo quando este está necessitado ou
também toda ela diverge, em realização – é o núcleo
axiológico da dialéctica”.
correndo perigo, sem que, para isso, depen-
13
Ferrajoli (2002, p. 63) não se satisfaz, como era de da de qualquer ato voluntário ou mesmo
se esperar, com o simples reconhecimento do caráter tenha que se comprometer com eles. Além
supraestatal dos direitos humanos no plano das rela- disso, os deveres naturais não guardam
ções internacionais, porém, nesse processo, assume
uma postura otimista ao exortar que: “se é verdade qualquer liame necessário com instituições
que a curto prazo não podemos nos iludir, é também ou práticas sociais, incidindo, portanto,
verdade que a história nos ensina que os direitos não sobre as pessoas independentemente de
caem do céu, e um sistema de garantias efetivas não suas relações institucionais, como pessoas
nasce numa prancheta, não se constrói em poucos
anos, nem tampouco em algumas décadas. Assim foi morais iguais. E, ainda, arremata que a
com o estado de direito e com nossas democracias meta do direito internacional é reconhecê-
ainda frágeis, que só se afirmaram à custa de longas -los na conduta das nações.
batalhas no campo das ideias e de lutas sangrentas.
Nessa mesma linha é a lição de Amar-
Seria irracional pensar que o mesmo não acontecerá
com o direito internacional e não nos empenharemos tya Sen (2010, p. 373-374), para quem, “se
na parte que nos cabe”. alguém está em posição de fazer algo que

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eficazmente impeça a violação de dito direi- bilidade de proteção é a Role-Responsibility,
to humano, então, há uma boa razão para que é uma responsabilidade derivada do
se fazer isso mesmo – uma razão que deve papel que a pessoa física ou jurídica ocu-
ser levada em conta ao decidir-se o que deve pa particularmente em algum lugar ou
ser feito”. Segundo Amartya Sen (2010, p. organização social, nascendo daí deveres
491), nesse momento decisório, a bem da específicos de atuar em determinado senti-
verdade, a escolha das ações, por possuir do e de acompanhar o desempenho desses
considerável margem de variação, depende mesmos deveres. Nesse sentido, esse dever,
das prioridades, da avaliação e da atribuição decorrente da role-responsibility, apresenta
dos pesos correspondentes. Tudo isso para características protetivas, pois independe
evitar que, na tentativa de ajudar, acabe da ação ou omissão do responsável. Parece
por prejudicar o titular do direito humano. claro que a responsabilidade de todos os
Esse laço de aproximação que faz nas- Estados, no cenário internacional, na defesa
cer uma obrigação de proteção, mesmo dos direitos humanos, decorre do papel a
para com o mais distante, constitui-se, que se encontram incumbidos por força
verdadeiramente, na semente que, lança- da Carta das Nações Unidas, logo em seu
da em terreno fecundo e propício para se preâmbulo.
desenvolver, poderá germinar um sólido Poder-se-ia questionar, como proble-
e relevante esquema de responsabilidade matiza Otfried Höffe (2008c, p. 262-263),
dirigido e tendente a proteger efetivamente a própria concepção de um direito à in-
quem dela necessita. tervenção humanitária, como uma espécie
de retorno à obsoleta ideia de uma guerra
4. A responsabilidade de proteger justa. Porém, Höffe mesmo responde par-
tindo da premissa de que toda guerra é em
como norma jurídica em construção
si injusta e ilegítima tanto numa perspectiva
A grande dificuldade, porém, de alcan- ético-jurídico como no plano do direito
çar esse desiderato é que não se sabe bem internacional. Considera ele a intervenção
que contornos, extensão e, em especial, humanitária uma exceção do tipo e da cate-
natureza têm a chamada responsabilidade goria de uma ajuda de emergência, a ponto
de proteger (responsibility to protect). Será de afirmar que comete injustiça não quem
que a responsabilidade de proteger pode assiste ao outro em caso de necessidade,
ser considerada uma norma jurídica? In- mas quem se abstém de fazê-lo.
tegra o direito internacional imperativo No relatório intitulado “Responsibility
(jus cogens)? É uma norma emergente ou to Protect” entregue ao Secretário-Geral da
simples norma moral ou opção política? Os ONU no final de 2001, a International Com-
documentos internacionais que o proclama- mission on Intervention and State Sovereignty
ram, longe de esclarecer esse ponto, antes (ICISS), em princípio, no plano termino-
tornaram essa definição um tanto quanto lógico, deixou de mencionar a expressão
confusa. Além disso, a própria palavra “intervenção humanitária” e, sobretudo, a
“responsabilidade”, por si só, já comporta um direito à intervenção, e passou a fazer
vários significados diferentes. referência a uma “responsabilidade de
Atento à ambiguidade da palavra “res- proteger” dos Estados e, portanto, a um
ponsabilidade”, Herbert Hart (2008, p. 212) dever de proteção. Essa mudança teve o
procura classificá-la em quatro concepções inequívoco intento de instigar uma maior
diversas: a) Role-Responsibility; b) Causal adesão a essa nova construção interventiva
Responsibility; c) Liability-Responsibility; e dos Estados a ela contrários e minimizar a
d) Capacity-Responsibility. A que mais se veia emocional nos debates políticos trava-
aproxima da ideia veiculada pela responsa- dos (EVANS, 2006, p. 708).

250 Revista de Informação Legislativa


Por outro lado, outra alteração signifi- gitimidade das ações interventivas na ótica
cativa ocorreu no conteúdo do que se en- moral. Daí por que estipulou seis princípios
tende por soberania. A Comissão rechaçou basilares de avaliação da legitimidade das
a concepção de soberania como controle e decisões que autorizam a intervenção mi-
autoridade, tal como fora construída na litar na soberania de um Estado à luz da
época do direito internacional clássico dos responsabilidade de proteger (Just cause,
séculos XVII a meados do século XX, pas- right intention, proportional means, last resort,
sando a concebê-la como responsabilidade reasonable prospects e right authority).
(EVANS, 2006, p. 708). Para Carsten Stahn No entanto, Gareth Evans (2006, p.
(2007, p. 102), a Comissão nada mais fez do 711,720) constata que a intervenção militar
que uma reconfiguração dos contornos do sob a égide da responsabilidade de prote-
conceito de soberania, concebendo os direi- ger só ganha maior efetividade quando se
tos humanos como seu limite intrínseco. É, afeta algum interesse de alguma das cinco
nas palavras de Emma McClean (2008, p. potências mundiais que integram o Conse-
134-135,143), como se a Comissão houvesse lho permanente de Segurança, faltando, as
“humanizado” a soberania. Mesmo assim, mais das vezes, portanto, vontade política
McClean não a considera norma emergente, de implementar idêntico parâmetro político
mas simples opção política do Conselho de quando se trata de outros países e interesses
Segurança da ONU, ainda que se alargue envolvidos (EVANS, 2006, p. 711-720).
o feixe luminoso dos direitos humanos14. De fato, Carlo Focarelli (2008, p. 327)
Na concepção da soberania como res- observa que o relatório da International
ponsabilidade, os Estados seriam apenas Commission on Intervention and State Sove-
instrumentos a serviço dos cidadãos – e reignty (ICISS) não faz qualquer distinção
não o contrário –, totalmente submetidos entre o valor moral que fundamenta a res-
ao direito internacional e aos valores trans- ponsabilidade de proteger e os interesses
nacionais da dignidade da pessoa humana político-estratégicos dos países que com-
e dos direitos basilares da criatura humana põem o Conselho de Segurança da ONU.
(MACHADO, 2006, p. 214). Relevante impacto foi provocado pelo
Demais disso, a Comissão tornou clara relatório do High-Level Panel de 2004, pois,
que a responsabilidade de proteger deti- embora destinado a amparar uma reforma
nha uma dimensão bem maior do que a institucional das Nações Unidas, veio a
intervenção humanitária, mais adstrita a consolidar a ideia de que a efetivação da res-
ações militares, já que compreendia, em seu ponsabilidade de proteger fortalece o siste-
âmbito, as responsabilidades de prevenir ma de segurança internacional contemplado
(responsibility to prevent), de reagir (responsi- na Carta das Nações Unidas de 1948, o que
bility to react) e de reconstruir (responsibility a torna uma verdadeira norma emergente
to rebuild) (EVANS, 2006, p. 709). (STAHN, 2007, p. 108). Norma emergente,
Gareth Evans (2006, p. 710-711) assinala, no dizer de Carlo Focarelli (2008, p. 319),
ainda, uma quarta contribuição da Comis- seria uma norma que se coloca no limbo
são nesse debate, ao buscar não apenas a entre a sua existência e a sua inexistência.
legalidade das decisões, mas também a le- Todavia, no Outcome Document of the
2005 World Summit, fica evidente que a
14
Emma McClean (2008, p. 128), malgrado não
reconheça a natureza normativa, destaca a impor- responsabilidade de proteger foi reduzi-
tância da responsabilidade de proteção, porquanto da a um conceito exclusivamente moral,
atribui aos Estados a responsabilidade, no campo apesar da ambiguidade do texto (STAHN,
interno, pela segurança e a vida dos seus cidadãos, e,
2007, p. 108).
externamente, perante a comunidade internacional,
além de pressupor a responsabilização dos agentes Mehrdad Payandeh (2010, p. 471) sus-
estatais por suas ações ou omissões. tenta que a responsabilidade de proteger, a

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 251


despeito de acarretar profunda repercussão que, mesmo quando uma norma do direito
na gramática do discurso político inter- internacional assume o caráter de obrigação
nacional, não pode ser considerada uma erga omnes, isso não implica a partir daí um
norma jurídica internacional emergente, automático dever de proteção por parte da
mas dentro de um contexto sistêmico no sociedade de Estados.
âmbito internacional do uso da força e da Particularmente interessante é a posição
segurança coletiva. O problema, segundo sufragada por Anne Peters (2009a, p. 514),
ele, descansa, em princípio, na ambiguida- que identifica o status normativo da sobe-
de do conceito, provocada pela combinação rania na humanidade. A juridicidade da
das linguagens jurídica, moral e política, soberania, no seu pensar, reside justamente
o que torna difícil compatibilizá-las em no respeito e na promoção dos direitos
uma única norma jurídica. Além disso, na humanos, dos interesses, das necessida-
arena jurídica, a responsabilidade não se des e da segurança dos cidadãos. Chega a
equipara ao dever, estando aquele conceito proclamar que a humanidade é o “A” da
mais associado à ideia de violação de obri- soberania e que os direitos humanos não a
gações internacionais. E, por derradeiro, limitam, mas antes a constituem. É por essa
não se reconhece a natureza normativa da circunstância que nega a possibilidade de
responsabilidade de proteger, nem sequer uma ponderação entre os direitos humanos
no universo do direito costumeiro interna- e a soberania, na medida em que sempre há
cional, na medida em que não se verifica a uma presunção em favor da humanidade.
prática da reiteração de condutas que dele Em sua concepção, o exercício dos atos de
poderiam decorrer pelos Estados (PAYAN- soberania do Estado necessita de justifica-
DEH, 2010, p. 481-483). ção e, portanto, deve buscar legitimidade
Por isso mesmo, discorda da concepção (PETERS, 2009a, p. 518).
edificada no relatório da International Com- Nesse sentido, entende que o Conselho
mission on Intervention and State Sovereignty de Segurança da ONU tem a obrigação – e
(ICISS) de uma “soberania como responsa- não apenas o direito nem mesmo discricio-
bilidade”, porquanto qualquer mudança na nariedade – de decretar a medida interven-
ideia de soberania, tradicionalmente ligada tiva à luz da responsabilidade de proteger,
à independência dos Estados, não leva à uma espécie de dever moral nos casos de
construção de uma concreta norma jurídica. flagrante violação aos direitos humanos
A soberania, ao contrário, é um paradigma (PETERS, 2009a, p. 533-535,538-539)15.
estruturante do sistema jurídico internacio- No entanto, por mais brilhante e bem
nal do qual é possível se estabelecer outras intencionado que seja, o pensamento de
normas de caráter autônomo, como a não Anne Peters peca por um detalhe simples:
intervenção, a integridade territorial e a ca- o Conselho de Segurança da ONU é hoje,
pacidade jurídica internacional dos Estados sempre foi e tudo indica que não deixará
(PAYANDEH, 2010, p. 485). de ser tão cedo, um órgão, genuína e essen-
Charlotte Kreuter-Kirchhof (2010, p. cialmente, político. Nessa condição, profere
376-377) afirma, por sua vez, que a respon-
sabilidade de proteger, como conceito ain- 15
Amrita Kapur (2009, p. 561) critica esse entendi-
mento sob a alegação de que o Conselho de Segurança
da em desenvolvimento, representa uma da ONU é um órgão puramente político, caindo por
responsabilidade de proteção internacional terra qualquer tentativa de dotar a responsabilidade
meramente complementar que não impõe de proteger de feição normativo-jurídica. Em resposta,
um dever ou uma obrigação de proteção Anne Peters (2009, p. 569-570) rebate tal crítica escla-
recendo que jamais colocou o direito e a política em
em relação a outros Estados, mas apenas se esferas distintas no exame da soberania e que a obriga-
dirige a sua população dentro de seus limi- ção normativa de intervir, e, por isso, de agir, acha-se
tes territoriais. Enfatiza Kreuter-Kirchhof capitulada no art. 24 da Carta das Nações Unidas.

252 Revista de Informação Legislativa


decisões naturalmente políticas, valendo-se jus cogens. Porém, como ensina Charlotte
da lógica da conveniência e da oportunida- Kreuter-Kirchhof (2010, p. 358), a atribuição
de, próprias da política em geral. da natureza jus cogens sempre interessa a
E, por isso, é forçoso concluir quanto à qualquer norma e, como se não bastasse, a
natureza da responsabilidade de proteger responsabilidade de proteção tem o poder
que, enquanto a sua efetivação estiver nas de estender o âmbito de aplicação dessas
mãos do Conselho de Segurança da ONU, normas imperativas para outras hipóteses
essa teoria não passará de mera retórica de violação de direitos humanos.
moral ao sabor dos interesses e conjunturas Dizer que a responsabilidade de pro-
políticas, em particular dos cinco membros teger constitui-se em conceito em desen-
permanentes que têm poder de veto. volvimento e mantê-lo confinado a uma
Note-se que isso sempre ocorreu na arena exclusivamente política é o mesmo
história. Não foi a soberania, como uma que condená-lo ao eterno subdesenvolvi-
concepção em si mesma, que criou o Estado mento. E o que é pior, com a consciência
dotado de poder absoluto, mas a forma de de que nunca se desenvolverá plenamente,
exercício desse poder estatal que o fez so- limitando-se a um simples dever moral
berano. A necessidade de um Estado forte despido de qualquer obrigação ou conse-
é que formatou a feitura de uma noção quência jurídica concreta.
de soberania igualmente forte. Por isso, Christopher C. Joyner (2007, p. 708-709)
sempre houve na história Estados mais vê vantagens em reconhecer a condição
fortes, política e economicamente, que pos- normativa da responsabilidade de prote-
suíam uma soberania quase que absoluta, ger como guia a nortear o comportamento
e outros, fracos, que sofriam constantes internacional. Em princípio, a responsa-
interferências em seus assuntos internos bilidade de proteger desvia o olhar da
promovidos por aqueles. comunidade internacional para quem está
Nas relações internacionais, quase precisando urgentemente de ajuda, desfo-
sempre prevaleceu a lei dos Estados mais cando-o de uma perspectiva unicamente
fortes devido à predominância da política estatal. Além do mais, impõe um dever aos
sobre o direito. “Confiar” a responsabilida- governantes de proteger os seus cidadãos,
de de proteger ao Conselho de Segurança estando, assim, sujeitos à responsabilização
da ONU significa eternizar esse quadro em caso de descumprimento. Sem falar que
de supremacia da política sobre o direito. estimula uma série de medidas voltadas à
Mais do que uma pretensa “humanização”, prevenção de possível violação de direitos
a soberania e, consequentemente, a respon- humanos, como tratativas políticas, ini-
sabilidade de proteger precisam de uma ciativas diplomáticas, processos jurídicos,
“juridicização” para ingressar, definitiva- estratégias econômicas e, em último caso,
mente, no universo do direito internacional o uso da força militar.
e das normas do jus cogens. Malgrado se almeje alçar a responsabili-
Assinala Jónatas Machado (2006, p. dade de proteger à condição de jus cogens, o
134-135) que, para se constituir como jus seu estádio de construção, nesse momento,
cogens no direito internacional, as normas ainda a faz ser considerada como mera
devem ser “reconhecidas e aceitas pela norma jurídica emergente, necessitando
comunidade dos Estados globalmente con- de maior maturação até um dia alcançar a
siderada como dotadas de força imperativa, necessária imperatividade típica daquela
susceptível de alteração apenas por uma normatividade do direito internacional
outra norma com a mesma natureza”. Para vinculativo. Só que esse desenvolvimento
ele, somente o núcleo essencial dos direitos pode ficar comprometido se o poder inter-
humanos é que ostentaria essa qualidade de ventivo que decorre da responsabilidade

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de proteger continuar nas mãos do Con- se a tivesse sido ordenada pelo Conselho
selho de Segurança da ONU. Urge pensar de Segurança? Muito provavelmente sim,
em outras alternativas que transformem o pois, embora não satisfizesse o requisito
debate eminentemente político de hoje em da estrita legalidade – já que não dispunha
marcantemente jurídico de amanhã. de poderes para tanto –, o Secretário-Geral
pode ter agido, certamente, na intenção de
evitar graves violações de direitos humanos
5. Necessidade de judicialização
contra a população civil da Costa do Mar-
da responsabilidade de proteger: fim e, portanto, legitimamente.
problemáticas em torno da O relatório da International Commission
legitimidade do órgão decisório on Intervention and State Sovereignty (ICISS)
Com efeito, a definição da extensão e do de 2001 estipulou os critérios de aferição
conteúdo de determinada teoria ou doutri- da legitimidade das decisões do Conselho
na, como a responsabilidade de proteger, de Segurança da ONU, mas nem por isso
acha-se intrinsecamente ligada ao órgão se pode garanti-la, como se observará. Os
que a aplica, justamente porque dispõe do critérios encontram-se assim delineados:
poder de concretizá-la no juízo decisório. a) just cause; b) right intention; c) reasonable
Por essa circunstância, se a responsabilida- prospects; d) proportional means; e) last resort;
de de proteger, efetivamente, deseja alçar e f) right authority (HAMILTON, 2006, p.
voos mais altos no plano da normatividade, 290-291).
tem que se libertar das correntes exclusiva- Antes de tudo, no que toca à just cause,
mente políticas que a aprisionam. somente se admite a intervenção militar
É inegável o poder do Conselho de quando houver grave atentado à vida, atual
Segurança da ONU de decretar medidas ou iminente, com intenção genocida ou não;
interventivas nos Estados à luz da respon- limpeza étnica em larga escala, atual ou
sabilidade de proteger, conferido inequi- iminente, com possibilidade de acarretar
vocamente pela interpretação sistêmica mortes; expulsão forçada; atos de terror e
dos arts. 24.216, 37.117 e 37.218 da Carta das de extorsão (HAMILTON, 2006, p. 290-291).
Nações Unidas. Mas será que a decisão A justa causa, a tanto necessária, como se
tomada recentemente pelo Secretário- observa, deve ostentar um caráter extremo,
-Geral da ONU Ban Ki-moon no caso da estando, por conseguinte, excetuadas desse
Costa do Marfim não se mostrou mais ou, elenco certas situações de privação de direi-
pelo menos, igualmente legítima do que tos humanos, por não se tratar de genocídio
nem limpeza étnica (JOYNER, 2007, p. 711).
16
Art. 24.2: “No cumprimento desses deveres, Entrementes, a avaliação desse critério
o Conselho de Segurança agirá de acordo com os não é tão simples como possa inicialmente
Propósitos e Princípios das Nações Unidas. As atri- parecer. A própria ideia subjacente da
buições específicas do Conselho de Segurança para o
cumprimento desses deveres estão enumeradas nos
responsabilidade de proteger induz, já
capítulos VI, VII, VIII e XII”. em si mesma, uma tentação de aplicá-la
17
Art. 37.1: “No caso em que as partes em con- a outras situações de violação de direitos
trovérsia da natureza a que se refere o Artigo 33 não humanos que não apenas se relacionam a
conseguirem resolvê-los pelos meios indicados no
mesmo Artigo, deverão submetê-la ao Conselho de
graves ofensas aos direitos humanos, como
Segurança”. genocídio, limpeza étnica, crimes de guerra
18
Art. 37.2: “O Conselho de Segurança, caso julgue e contra a humanidade.
que a continuação da controvérsia poderá realmente Aliás, este talvez seja um dos maiores
constituir uma ameaça à manutenção da paz e da segu-
rança internacionais, decidirá sobre a conveniência de
receios da comunidade internacional. O
agir de acordo com o Artigo 36 ou recomendar as con- temor de que a teoria da responsabilidade
dições que lhe parecerem apropriadas à sua solução”. de proteger venha, paulatinamente, a se

254 Revista de Informação Legislativa


estender para outras situações menos gra- intervenção militar não pode infligir mais
vosas sob os mais variados argumentos, mortes e violações de direitos humanos e,
mas que configurem manifesta ofensa aos para tanto, convém que seja limitada no
direitos humanos, como sugere, por exem- tempo e que não signifique anexação ou
plo, William Magnuson (2010, p. 257-312), integração do território de um Estado por
ao defender a aplicação dessa doutrina na outro (JOYNER, 2007, p. 713-714).
hipótese de violação da liberdade de ex- Naquilo que concerne ao critério do
pressão dos cidadãos pelos Estados. last resort, a intervenção militar só cabe
Essa suposta tentação de abranger quando todas as outras opções anteriores
outras situações de possível malferição de restaram infrutíferas (HAMILTON, 2006,
direitos humanos, especialmente em uma p. 290-291). Antes de tal passo, podem ser
ótica preventiva, tais como ameaças de prá- reconhecidas como medidas preliminares
ticas terroristas ou utilização de armas de à possível intervenção militar protestos
destruição de massa ou mesmo em outras diplomáticos, recursos e demandas para o
calamidades, desde portadores de enfermi- Conselho de Segurança da ONU, sanções
dades graves (HIV/AIDS) a desastres natu- econômicas, entre outras. Além disso, im-
rais, é motivada, consoante explica Hitoshi põe-se aquilatar, como alerta Christopher
Nasu (2009, p. 212-214), pela imprecisão do C. Joyner (2007, p. 712-713), se a adoção
conteúdo da responsabilidade de proteger dessas medidas preliminares, em razão
quanto ao objeto sobre o qual devem recair do tempo que demandam, não acabe por
as medidas interventivas, quanto ao mo- comprometer a vida de milhares de pesso-
mento exato em que se deve realizá-las e as inocentes que poderiam ser salvas caso
quanto à intensidade que se deve imprimir fosse consubstanciada a intervenção militar
às operações militares. Tanto isso é verdade desde o princípio. A necessidade de tomar
que China e Rússia rejeitam, veemente- medidas interventivas imediatas, assim que
mente, qualquer iniciativa do Conselho de caracterizadas situações de grave violação
Segurança da ONU de tomar algum ato em de direitos humanos, parece se afigurar
antecipação à crise humanitária. incompatível com a discricionariedade do
Em seguida, na seara do right intention, Conselho de Segurança da ONU quanto
impende atentar que o objetivo primário ao momento que entender oportuno para
deve ser prevenir ou parar o sofrimento agir. Daí, certamente, um dos motivos que
humano (HAMILTON, 2006, p. 290). Em se justificou a isolada decisão do Secretário-
tratando de órgão político que não necessita -Geral Ban Ki-moon na situação da Costa
justificar as suas decisões com parâmetros do Marfim. Havia necessidade de uma ação
de juridicidade, impossível assegurar que rápida e eficaz.
o Conselho de Segurança da ONU não pre- E, por fim, o critério do right authority,
tenderá satisfazer algum interesse geopo- que só permite a intervenção militar com
lítico ou econômico nas ações ou omissões a autorização do Conselho de Segurança
interventivas. da ONU (HAMILTON, 2006, p. 290-291).
No exame do princípio do reasonable Christopher C. Joyner (2007, p. 715) reco-
prospects, a medida interventiva só pode nhece ser inegável que o Conselho de Segu-
ser adotada quando se tem grande proba- rança consiste no órgão das Nações Unidas
bilidade de sucesso (HAMILTON, 2006, p. de maior responsabilidade na manutenção
291). Quanto aos proportional means, os atos da paz e da segurança internacionais, in-
de interferência devem ser absolutamente clusive no que atine à violência praticada
necessários a prevenir ou parar o sofrimen- na esfera interna do Estado. Porém, ques-
to das pessoas atingidas (HAMILTON, tiona se o Conselho de Segurança não for
2006, p. 290-291). Como resultado disso, a capaz de emitir alguma ação interventiva

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 255


de prevenção ou impedir atrocidades em membros), tal como preconiza o art. 2.1 da
algum Estado. Carta das Nações Unidas, reforçado pelo
Otfried Höffe (2008b, p. 255) critica disposto no art. 7, que possibilita o veto
o poder do Conselho de Segurança nas de qualquer ingerência da entidade em
autorizações de intervenção humanitária, assuntos internos dos Estados. Para ele,
porquanto, à míngua de uma ordem ju- tais preceitos desvalorizam a nova norma-
rídica global e de um Estado mundial, a tividade que vem emergindo no direito
própria Organização das Nações Unidas internacional e ainda o submete às relações
padece, segundo entende, de um grave de força entre os Estados.
defeito congênito de teor ético-jurídico. Neville F. Dastoor (2009, p. 32) propõe,
A despeito de proclamar em sua carta a para atenuar esse problema, a criação de
universalidade dos direitos humanos, o um comitê da responsabilidade de proteger
Conselho de Segurança, representado pela no Conselho de Segurança, composto de
hegemonia de cinco grandes potências, especialista de renome dos estados mem-
alimenta privilégios particulares e age de bros, representativo das várias regiões do
maneira seletiva, mesmo diante de graves planeta e da economia, política e das forças
violações nessa matéria. militares, para monitorar e analisar situa-
De fato, na abertura da 63a Assembleia ções de adequada aplicação da figura da
Geral das Nações Unidas, vários países responsabilidade de proteger. Mas, ainda
expressaram preocupação quanto aos assim, a decisão no final das contas sobre
contornos da responsabilidade de prote- a decretação da medida de intervenção
ger, temendo abusos de países mais fortes, permanecerá nas mãos do Conselho de
política e economicamente, sob o pretexto Segurança da ONU, não havendo, desse
de estarem realizando intervenções huma- modo, qualquer alteração de relevo no
nitárias. Outros acusam a composição do quadro da legitimidade decisória.
Conselho de Segurança e o poder de veto Seguramente, a melhor alternativa para
de seus membros permanentes como um levar a sério a responsabilidade de proteger
dos maiores óbices à efetivação das ações e seu consequente status jurídico-normativo
das Nações Unidas, tendo vários países ma- repousa em reconhecer à Corte Internacio-
nifestado preferência na implementação da nal de Justiça, órgão integrante da estrutura
responsabilidade de proteger pela Assem- da Organização das Nações Unidas, o po-
bleia Geral (PAYANDEH, 2010, p. 479)19. der de determinar medidas interventivas,
Ferrajoli (2002, p. 42) aponta um para- em consonância com o insculpido no art.
doxo na própria Organização das Nações 36.320 da Carta, que admite essa compe-
Unidas, ao identificar que, embora tenha tência em hipóteses cujas controvérsias
uma pretensão universalista, notadamente ostentem caráter jurídico.
no âmbito da concretização dos direitos As controvérsias de cunho jurídico a
humanos, ainda se encontra condicionada, que se refere esse ditame normativo cor-
tanto na dimensão factual como jurídica, respondem àquelas que comprometem a
pelo princípio da soberania dos Estados paz e a segurança internacionais, recaindo
(igualdade soberana de todos os Estados exatamente nas circunstâncias relacionadas
19
Christopher C. Joyner (2007, p. 700) conta que 20
A redação do art. 36.3 da Carta das Nações
a história das intervenções militares humanitárias é Unidas de 1948 tem o seguinte teor: “Ao fazer reco-
marcada por vários exemplos de estados poderosos mendações de acordo com este Artigo, o Conselho
que invocaram a intervenção humanitária para satis- de Segurança deverá tomar em consideração que as
fazer os seus próprios interesses geopolíticos. Para controvérsias de caráter jurídico devem, em regra ge-
conhecer as principais linhas de objeção à adoção da ral, ser submetidas pelas partes à Corte Internacional
responsabilidade de proteger invocadas pelos Estados, de Justiça, de acordo com os dispositivos do Estatuto
ver Focarelli (2008, p. 330-341). da Corte”.

256 Revista de Informação Legislativa


às graves violações de direitos humanos, humanos mais básicos sonegados por seus
objeto de tutela da responsabilidade de próprios governantes, justamente quem
proteger nos termos do relatório High-Level deveria mais patrociná-los.
Panel de 2004.
Para tanto, é imprescindível que se im-
6. Considerações finais
plementem as modificações estruturantes
defendidas por Ferrajoli (2002, p. 54-55) na Diante desses apontamentos, podem
jurisdição da Corte Internacional de Justiça ser sintetizadas as seguintes premissas à
de Haia, para que venha a possibilitar: a) guisa de conclusão a respeito da premente
julgamentos de responsabilidade indivi- necessidade de juridicização e correlata
dual de pessoas físicas, e não apenas dos judicialização da doutrina da responsa-
Estados, em matéria de violações de direi- bilidade de proteger no atual cenário das
tos humanos; b) a obrigatoriedade de sua relações internacionais.
jurisdição, e não meramente subordinada Por mais que, no passado, os princípios
à aceitação preventiva dos Estados; c) o re- da soberania estatal e da não intervenção
conhecimento da legitimição ativa dos indi- em assuntos internos tenham se constituído
víduos, titulares dos direitos humanos; e d) em uma das poucas normas em defesa dos
responsabilidade pessoal dos governantes, Estados mais fracos contra os interesses
quando do exercício do poder soberano, políticos e econômicos dos Estados mais
por crimes contra os direitos humanos. poderosos internacionalmente, os constan-
Poder-se-ia alegar que os Tribunais tes e graves atentados aos direitos humanos
constitucionais europeus também seriam cometidos por Estados contra a sua própria
órgãos políticos e que nem por isso deixa- população civil redundaram na progressiva
riam de emitir juízos decisórios de naipe ju- mitigação do âmbito desses postulados em
rídico. No entanto, pode parecer especiosa a face da crescente universalização desse
diferença entre os Tribunais constitucionais código ético da humanidade.
e o Conselho de Segurança, mas não o é. A interação recíproca entre os indiví-
Ambos, efetivamente, exaram decisões, duos hoje, independentemente dos limites
porém o processo de legitimação de cada fronteiriços em que se encontrem, torna,
uma delas segue uma lógica e um proce- mesmo aqueles que estejam distantes ter-
dimento distintos. Enquanto os Tribunais ritorialmente, mais próximos e mais cientes
constitucionais, a rigor, amparam-se na rea- dos problemas e das dificuldades de cada
lização judicativo-decisória na juridicidade um, o que faz nascer daí, de igual forma,
normativa da ordem jurídico-constitucional também dever recíproco de ajuda e de
existente, o Conselho de Segurança possui proteção e, por conseguinte, esquema de
ampla discricionariedade política para responsabilidade de proteger (responsibility
avaliar a conveniência e a oportunidade to protect) dirigido contra os Estados que
de suas decisões, estando, contudo, apenas praticam violações aos direitos humanos.
sujeito às regras procedimentais ínsitas à Embora competente legalmente para
sua própria atuação nas Nações Unidas. decidir a respeito de medidas interventivas
Como se vê, a se reconhecer, ainda nos termos da Carta das Nações Unidas,
que como norma emergente, o caráter o Conselho de Segurança da ONU é um
jurídico da doutrina da responsabilidade órgão eminentemente político e, por essa
de proteger, seria assegurado o adequado condição, profere decisões naturalmente
e alvissareiro desenvolvimento de seus políticas, valendo-se da lógica da conveni-
contornos pela Corte Internacional de ência e da oportunidade, o que se mostra
Justiça, necessário à efetiva proteção das incompatível com a necessária juridicização
populações civis que têm os seus direitos da figura da responsabilidade de proteger.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 257


A definição da extensão e do conteúdo GROCIO, Hugo. Del derecho de presa; Del derecho
da responsabilidade de proteger depende, de la guerra y de la paz: textos de las obras “De iure
praedae” y “De jure belli ac pacis”. Madrid: Centro
fundamentalmente, do órgão que a aplica. de Estudios Constitucionales, 1987.
E por isso, enquanto a sua efetivação esti-
ver nas mãos do Conselho de Segurança HAMILTON, Rebecca J. The Responsability to Protect:
from Document to Doctrine: but what of implementa-
da ONU, essa teoria não passará de mera tion? Harvard Human Rights Journal, Harvard, v. 19, p.
retórica moral ao sabor dos interesses e 289-297, Spring 2006.
conjunturas políticas, em particular dos
HART, Herbert L. A. Punishment and responsibility:
cinco membros permanentes que têm poder essays in the philosophy of law. 2. ed. New York:
de veto. Oxford University, 2008.
Nesse sentido, a melhor alternativa para
HOBBES, Thomas. Leviatán: o la materia, forma y poder
levar a sério a responsabilidade de proteger de un Estado eclesiástico y civil. Madrid: Alianza, 2009.
e seu consequente status jurídico-normativo
HÖFFE, Otfried. Derecho Intercultural. Barcelona:
repousa em reconhecer à Corte Internacio- Gedisa, 2008a.
nal de Justiça, órgão integrante da estrutura
da Organização das Nações Unidas, o po- ______. Intervención Humanitaria? Reflexiones ético-
jurídicas. In: ______. Derecho Intercultural. Barcelona:
der de determinar medidas interventivas, Gedisa, 2008b.
em consonância com o insculpido no art.
______. No sólo una Cuestión Interna: La misión del
36.3 da Carta, que admite essa competência
Kosovo como acto legítimo de asistencia humanitaria
em hipóteses cujas controvérsias ostentem de emergencia. In: ______. Derecho Intercultural. Bar-
caráter jurídico. Mas, para tanto, é impres- celona: Gedisa, 2008c.
cindível que se implementem as modifica-
JOYNER, Christopher C. The Responsibility to Pro-
ções estruturantes na jurisdição da Corte tect: Humanitarian Concern and the Lawfulness of
Internacional de Justiça de Haia, para que Armed Intervention. Virginia Journal of International
venha a possibilitar a efetiva proteção das Law, Charlottesville, v. 47. n. 3, p. 693-723, Spring 2007.
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recto na teoría, mas nada vale na prática. In: ______.
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Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 259


O direito do consumidor nas relações de
consumo virtuais

Michael César Silva e


Wellington Fonseca dos Santos

Sumário
1. Introdução. 2. A proteção ao consumidor.
2.1. Escorço histórico. 2.2. Do consumerismo. 2.3.
A relação jurídica de consumo. 2.4. Princípios do
direito do consumidor. 2.4.1. Princípio da boa-fé
objetiva. 2.4.2. Princípio da informação. 2.4.3.
Princípio da transparência. 2.4.4. Princípio da
confiança. 3. As lojas virtuais. 4. Responsabili-
dade civil do fornecedor no comércio eletrônico.
5. Direito de arrependimento. 5.1. Proposições
legislativas sobre o direito de arrependimento.
6. Conclusão.

1. Introdução
Em duas décadas de vigência do Código
de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90),
este se mantém eficaz e plenamente aplicá-
vel, como procura demonstrar esta análise,
em direção a uma nova fronteira, qual seja,
Michael César Silva é doutorando e mestre o mundo cibernético, para onde se deslo-
em Direito Privado pela Pontifícia Universida- caram os mesmos negócios jurídicos já co-
de Católica de Minas Gerais. Especialista em nhecidos e regulamentados desde outrora
Direito de Empresa pelo Instituto de Educação na realidade física.
Continuada (IEC) da Pontifícia Universidade No entanto, há peculiaridades na rela-
Católica de Minas Gerais. Professor do Curso de ção de consumo virtual que exigem uma
Direito do Centro Universitário Newton Paiva. adequação das normas consumeristas,
Membro da Associação Mineira de Direito & considerando-se a complexidade técnica,
Economia (AMDE). Advogado.
tecnológica e jurídica em que se efetiva
Wellington Fonseca dos Santos é pós-
-graduando em Direito Civil pela Faculdade de essa relação jurídica, garantindo-se, as-
Direito Professor Damásio de Jesus. Bacharel sim, a efetiva aplicabilidade do CDC, bem
em Direito pela Faculdade de Direito Promove. como a plena proteção ao consumidor no
Coordenador de Atendimento e Suporte Técnico ambiente virtual.
da PRODABEL (Empresa de Informática e In- Os problemas e dificuldades no ambien-
formação do Município de Belo Horizonte S/A). te virtual, ensejadores das controvérsias e

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 261


questionamentos estabelecidas a respeito mico do século XIX, que veio consagrar o
da relação de consumo virtual, encontram- dogma da autonomia da vontade, por meio
-se relacionados ao meio e aos mecanismos da liberdade de contratação e igualdade (for-
pelos quais a relação jurídica se efetiva mal) jurídica dos contratantes (NISHIYA-
– Internet, softwares, equipamentos eletrô- MA, 2002, p. 21; CORDEIRO, 2005, p. 653).
nicos e informáticos – os quais evoluíram Com as transformações sociais advindas
tecnologicamente em espantosa velocidade no final do século XIX, e com a crescente
nessas duas últimas décadas. Contudo, tal massificação dos meios de produção, dá-se
avanço não refletiu em efetiva regulamen- o surgimento da denominada sociedade de
tação legal da matéria, e, sobretudo, no consumo (mass consumption society), na qual
desenvolvimento jurisprudencial. a produção manual dos bens (produtos)
Nesse sentido, o estudo propõe proce- passa a ser exceção, pela introdução da
der a uma releitura das relações virtuais mecanização, produção em série etc.
de consumo, a partir dos princípios nor- Essa evolução do processo produtivo
teadores do Direito do Consumidor, os causou um aumento progressivo dos riscos
quais se amoldam a essa nova realidade gerados aos consumidores, por meio de
mercadológica-tecnológica. De igual modo, falhas resultantes desse processo. Nesse
tem-se como relevante analisar ainda as contexto, verificam-se o domínio do crédi-
repercussões do direito de arrependimen- to, do marketing, da publicidade ilícita (abu-
to (artigo 49 CDC) sobre as relações de siva e enganosa), das práticas abusivas, das
consumo virtuais, o papel das sociedades cláusulas contratuais abusivas, da falta de
empresárias virtuais, alocadas fisicamente informação adequada e do surgimento dos
no espaço cibernético – estabelecimentos contratos de adesão, os quais diminuíam ou
virtuais ou lojas virtuais – e por fim o im- impossibilitavam o exercício da liberdade
pacto da publicidade realizada pelos forne- contratual, bem como impunham dificulda-
cedores no ambiente virtual. Pretende-se, des de acesso à justiça (GRINOVER et al,
ainda, delinear breve histórico sobre a pro- 2007, p. 6-7; NISHIYAMA, 2002, p. 24-25).
teção do consumidor, determinar o âmbito Portanto, o fenômeno do consumerismo
das relações de consumo, e os parâmetros e o advento da sociedade de consumo en-
norteadores impostos pela principiologia contram-se diretamente relacionados com a
contratual contemporânea. proteção do consumidor, que exsurge para
Nessa esteira, o princípio da informa- coibir os abusos impostos pelos grandes
ção, transparência e confiança, em conso- conglomerados econômicos aos contra-
nância com os preceitos norteadores da tantes (consumidores). Havia, também, a
boa-fé objetiva, apresentam-se como funda- insuficiência dos esquemas tradicionais do
mentais, no intuito de garantir contratações direito substancial e processual, que já não
no ambiente virtual que assegurem a justiça mais tutelavam eficazmente novos interes-
contratual por meio da consagração da ses identificados como coletivos e difusos.
igualdade material entre os contratantes. Desse modo, o contexto histórico-social,
diante dos avanços tecnológicos dos meios
2. A proteção ao consumidor de produção e da posição de inferiorida-
de dos contratantes, passou a demandar
uma legislação moderna, que não apenas
2.1. Escorço histórico
resguardasse direitos, mas também que
O movimento de proteção ao consumi- punisse com rigor o desrespeito aos direitos
dor inicia-se na Europa com o advento da estabelecidos em favor dos contratantes.
Revolução Industrial no século XVIII e com É nesse cenário que se desenvolve
o aperfeiçoamento do Liberalismo Econô- efetivamente a ideia de proteção ao consu-

262 Revista de Informação Legislativa


midor, parte presumivelmente vulnerável, sentido de viabilizar a proteção efetiva do
em posição de patente inferioridade em consumidor.
face aos conglomerados econômicos, por Insta destacar que, no âmbito das rela-
meio do reconhecimento dessa proteção na ções de consumo, exsurge como pressupos-
esfera dos poderes Legislativo, Executivo e to fundamental de reconhecimento da tutela
Judiciário (NISHIYAMA, 2002, p. 22). do consumidor o princípio da vulnerabilida-
Entretanto, é recente a inserção da prote- de do consumidor, esculpido no artigo 4o,
ção ao consumidor em texto constitucional, I, do Código de Defesa do Consumidor, o
o que ocorreu, somente, com a promulga- qual norteia toda a legislação consumeris-
ção da Constituição Espanhola de 1978. ta. O princípio em comento é reconhecido
No Brasil, com o advento da Constituição como o traço marcante, distintivo do Códi-
da República de 1988, a proteção ao con- go de Defesa do Consumidor, estando re-
sumidor foi expressamente delineada no lacionado, intimamente, com os princípios
ordenamento jurídico brasileiro, seguindo da transparência (artigo 4o, caput, CDC) e
a tendência mundial (NISHIYAMA, 2002, da boa-fé objetiva (artigos 4o, III, e 51, IV,
p. 26-27). A Constituição da República CDC), no intuito de garantir o reequilíbrio
de 1988 adotou a sistemática da proteção e a justiça nas relações contratuais de con-
ao consumidor de forma ampla, conforme sumo (MARQUES, 2006, p. 318-320, 355).
previsto nos artigos 5 o, XXXII, 170, V, Por fim, o Código de Defesa do Consu-
CR/88 e no artigo 48 do Ato das Disposi- midor destaca-se como fonte de indiscutível
ções Constitucionais Transitórias (ADCT), força renovadora da teoria dos contratos,
consagrando-a como direito fundamental pois é reflexo de uma concepção social do
(NISHIYAMA, 2002, p. 15-16; GRINOVER contrato, em que a vontade das partes não é
et al, 2007, p. 8). mais a única fonte das obrigações, mas, so-
Tal perspectiva consolida-se com o ad- bretudo os princípios constitucionais, que
vento do Código de Defesa do Consumidor migram para o direito privado e consagram
(Lei 8.078/90), que positivou a proteção ao uma nova perspectiva interpretativa do
consumidor de forma específica, assegurando direito contratual na contemporaneidade.
direitos individuais e coletivos, mediante
a introdução de princípios contratuais, 2.2. Do consumerismo
norteados pela sistemática dos preceitos Os mais significativos e importantes
constitucionais e pela concepção social de movimentos sociais que impulsionaram o
contrato esculpida na nova teoria contratu- consumerismo surgiram a partir dos anos
al, os quais passaram a direcionar a inter- 60, quando se sobressaíram as associações
pretação da relação contratual de consumo. de consumidores nos Estados Unidos,
O Código de Defesa do Consumidor é uma questionando as práticas abusivas realiza-
lei que consagra princípios fundamentais das pelos fornecedores, culminando com
da República, o mínimo essencial para pro- a consagração de direitos fundamentais
teção do consumidor e a sobreposição deste do consumidor (GIANCOLI; ARAÚJO
em relação aos demais ramos do direito, nos JÚNIOR, 2009, p. 18).
quais se evidenciem relações de consumo. A consagração dos direitos fundamen-
Ele foi erigido sob a égide de um sis- tais do consumidor, no discurso do presi-
tema de proteção específica destinado ao dente norte-americano John. F. Kennedy,
consumidor, fundado na técnica legislativa em 1962, apresentou-se como um marco
das cláusulas gerais (de normas flexíveis, de do consumerismo no mundo (BENJAMIN;
caráter exemplificativo) visando à constan- MARQUES; BESSA, 2008, p. 26).
te evolução da legislação consumerista, A defesa do consumidor ganhou, então,
diante das demandas da sociedade, no amplitude mundial, lançando-se as bases

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 263


do movimento consumerista internacional, Leonardo de Medeiros Garcia (2008, p.
culminando com a declaração do dia 15 7, grifo do autor) preleciona que:
de março de 1962 como o dia mundial dos “Trata-se de um verdadeiro microssis-
direitos do consumidor. tema jurídico, em que o objetivo não
Segundo José Geraldo Brito Filomeno é tutelar os iguais, cuja proteção já é
(2007, p. 4), trata-se de um ramo do Di- encontrada no Direito Civil, mas jus-
reito que dispõe de princípios próprios e tamente tutelar os desiguais, tratando
normas específicas (v.g., responsabilidade de maneira diferente fornecedor e
pelo fato do produto e do serviço, inversão consumidor com o fito de alcançar a
do ônus da prova, declaração de nulidade igualdade”.
de cláusulas abusivas, tutela coletiva dos Nesse mesmo sentido, José Geraldo
consumidores, etc.), que visam à efetiva Brito Filomeno (2007, p. 15, grifo do autor)
proteção e defesa dos interesses e direitos explica:
dos consumidores, sem, contudo, pres- “Nós diríamos que o Código de
cindir de outros princípios e normas de Defesa do Consumidor, muito mais
direito, quando necessários àquela proteção do que um conjunto de normas ino-
e defesa do consumidor. vadoras, em diversos aspectos do
No Brasil, o movimento consumerista, direito, é muito mais uma filosofia de
iniciou-se timidamente nos anos 70, com a ação, eis que traça uma política ou um
criação das primeiras associações civis e en- conjunto de diretrizes que devem ser
tidades governamentais; em 1974, foi criado seguidas para que o consumidor seja
o Conselho de Defesa do Consumidor no efetivamente protegido e defendido.
Rio de Janeiro; em 1976, a Associação de Com efeito, o seu art. 4o constitui-se
Defesa e Orientação do Consumidor em numa verdadeira alma, no sentido
Curitiba; no ano de 1976, a Associação de de que se visa a atender não apenas
Proteção ao Consumidor em Porto Alegre; às necessidades dos consumidores e
e, também em 1976, foi promulgado o respeito à sua dignidade – de sua saúde
Decreto no 7.890 do Governo de São Paulo, e segurança, proteção de seus interesses
que criou o Sistema Estadual de Proteção econômicos, melhoria de sua qualidade de
ao Consumidor e, em sua estrutura, dois vida –, como também à imprescindí-
órgãos centrais: Conselho Estadual de Pro- vel harmonia das relações de consumo”.
teção ao Consumidor e o Grupo Executivo No comércio eletrônico, essencialmente,
de Proteção ao Consumidor, depois deno- a contratação que se identifica como relação
minado PROCON (GIANCOLI; ARAÚJO jurídica de consumo, independente de não
JÚNIOR, 2009, p. 19). existir ainda, no caso do Brasil, uma tutela
Com o advento da Constituição da normativa específica, é perfeitamente apli-
República de 1988, consagrou-se no Brasil cável o CDC, nos termos de seu artigo 1o,
a proteção jurídica do consumidor como verbis: “O presente Código estabelece nor-
direito e garantia fundamental, no artigo mas de proteção e defesa do consumidor,
5o, XXXII. Ademais, a Constituição erigiu de ordem pública e interesse social, nos
ainda a defesa do consumidor como princí- termos dos arts. 5o, inciso XXXII, 170, inciso
pio a ser observado pela Ordem Econômica, V, da Constituição Federal e art. 48 de suas
conforme preconizado no artigo 170, V, Disposições Transitórias” (BRASIL, 1990).
CR/88 (BRASIL, 2010a). Nesse contexto, o Ada Pellegrini Grinover et al (2007, p.
Código de Defesa do Consumidor surgiu, 24) destacam que no artigo 1o do CDC, ao se
então, a partir desse comando constitu- referir às normas de ordem pública e interesse
cional, com base no artigo 48 do ADCT social, equivale a dizer que tais normas são
(BRASIL, 2010a). inderrogáveis por vontade dos interessados

264 Revista de Informação Legislativa


em determinada relação de consumo, ou O conceito de fornecedor encontra-se
seja, são normas que não podem ser descar- estabelecido no artigo 3o do CDC1. Não
tadas, ou de uso facultativo pelos sujeitos obstante, outros termos utilizados para
da relação de consumo (consumidores e denominá-lo, como industrial, comercian-
fornecedores). te, banqueiro, segurador, importador, ou,
“[...] tenha-se em conta que o Código genericamente, como empresário, Ada Pel-
ora comentado visa a resgatar a imen- legrini Grinover e outros (2007, p. 47) expli-
sa coletividade de consumidores da cam que “são considerados todos quantos
marginalização não apenas em face propiciem a oferta de produtos e serviços
do poder econômico, como também no mercado de consumo, de maneira a
dotá-la de instrumentos adequados atender às necessidades dos consumidores,
para o acesso à justiça do ponto de sendo despiciendo indagar-se a que título”.
vista individual e, sobretudo, coleti- O conceito padrão de consumidor (con-
vo. Assim, embora destinatária final sumidor strictu sensu) encontra-se esculpi-
de tudo que é produzido em termos do no artigo 2o, caput do CDC2. Contudo,
de bens e serviços, a comunidade de em face da dificuldade de se precisar o
consumidores é sabidamente frágil conteúdo e alcance da expressão destinatário
em face da outra personagem das final, esculpida no artigo 2o do CDC, desen-
relações de consumo, donde pretende volveu relevante divergência doutrinária e
o Código de Consumidor estabelecer jurisprudencial acerca da definição jurídica
o necessário equilíbrio de forças” de consumidor.
(GRINOVER et al, 2007, p. 27). Para os finalistas, a interpretação do
Torna-se evidente que a inderrogabili- conceito de consumidor deveria ser mais
dade trata-se da impossibilidade de qual- restritiva, visando a não banalizar o CDC,
quer afastamento da incidência do CDC a com base num critério fático-econômico,
toda e qualquer relação de consumo esta- pautado na figura do destinatário final.
belecida, por ser lei de função social. Desse Para tanto, entendem que seria necessário
modo, “as normas de ordem pública esta- não tirar proveito econômico do produto/
belecem valores básicos e fundamentais de serviço, fundando sua teoria na distinção
nossa ordem jurídica, são normas de direito se o bem ou serviço adquirido é para uso
privado, mas de forte interesse público, daí pessoal ou familiar ou profissional. Para os
serem indisponíveis e inafastáveis através maximalistas, a aplicação do CDC deveria
de contratos” (BENJAMIN; MARQUES; ser a mais ampla possível, incluindo-se
BESSA, 2008, p. 55). pessoas jurídicas e profissionais liberais,
Portanto, no contrato eletrônico a re- com fundamento num conceito jurídico de
lação de consumo estabelecida não pode consumidor, de índole objetiva, pautado no
afastar as normas protetivas do direito mero ato de consumir, e sendo a figura do
do consumidor (CDC e as demais leis que 1
“Art. 3o Fornecedor é toda pessoa física ou jurí-
compõem o sistema de proteção ao con- dica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem
sumidor). como os entes despersonalizados, que desenvolvem
atividade de produção, montagem, criação, constru-
2.3. A relação jurídica de consumo ção, transformação, importação, exportação, distribui-
ção ou comercialização de produtos ou prestação de
A relação jurídica de consumo é esta- serviços” (BRASIL, 1990).
belecida pela composição de fornecedor 2
“Art. 2o Consumidor é toda pessoa física ou
e consumidor em lados opostos, tendo jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço
como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se
como objeto produto ou serviço, conforme a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que
se depreende da análise dos artigos 2o e 3o indetermináveis, que haja intervindo nas relações de
do CDC. consumo” (BRASIL, 1990).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 265


destinatário final interpretada como o des- rência do grande poderio econômico
tinatário fático do produto ou serviço (BRA- deste último, seja pela sua posição de
GA NETTO, 2011, p. 88-94; MARQUES, monopólio, ou em razão da essencia-
2006, p. 303-305, 346-347; BENJAMIN; lidade do serviço que presta, impon-
MARQUES; BESSA, 2008, p. 70-72). do, numa relação contratual, uma
Nesse sentido, a jurisprudência do Su- posição de superioridade” (GARCIA,
perior Tribunal de Justiça mitigou a teoria 2008, p. 17, grifo nosso).
finalista (teoria finalista mitigada ou fina- Claudia Lima Marques destaca, ainda, a
lismo aprofundado) no sentido de aceitar vulnerabilidade informacional, como sendo
que o profissional ou a pessoa jurídica, a vulnerabilidade básica do consumidor,
seja considerado consumidor, desde que, por ser característica intrínseca da socie-
demonstrada sua vulnerabilidade e produto dade contemporânea, posto que “[...] o
ou serviço adquirido fora de sua área de espe- consumidor/usuário experimenta, neste
cialidade (não implicando na revenda ou mundo livre, veloz e global (relembre-se
comercialização dos mesmos).3 aqui o consumo pela internet, pela televisão,
No que tange à vulnerabilidade do con- pelo celular, pelos novos tipos de computa-
sumidor, importa destacar que a mesma é dores, cartões e chips), uma nova vulnerabi-
reconhecida como princípio disposto no lidade” (BENJAMIN; MARQUES; BESSA,
artigo 4o, caput, I, do CDC4. Segundo Leo- 2008, p. 77, grifo nosso).
nardo de Medeiros Garcia (2008), a vulne- O poder da informação sobre os pro-
rabilidade do consumidor será constatada dutos e serviços concentra-se nas mãos do
a partir da análise do desequilíbrio técnico, fornecedor e, por conseguinte, é fator de
jurídico e fático existente entre as partes, desequilíbrio na relação estabelecida com o
como sustenta: consumidor que busca por esses serviços e
“[...] a vulnerabilidade técnica seria produtos, ainda mais ao adquiri-los fora do
aquela na qual o comprador não pos- estabelecimento comercial, via Internet, em
sui conhecimentos específicos sobre que a vulnerabilidade tende a se agravar,
o produto ou o serviço, podendo, uma vez que, se de um lado há ampliação
portanto, ser mais facilmente iludido da oferta e da informação, por outro as ca-
no momento da contratação. A vul- racterísticas de distanciamento econômico
nerabilidade jurídica seria a própria e de conhecimento, presentes no mundo
falta de conhecimentos jurídicos, ou real, são acompanhadas das tecnológicas
de outros pertinentes à relação, como (LIMA, 2006, p. 44).
contabilidade, matemática financeira Em resumo, a vulnerabilidade do con-
e economia. Já a vulnerabilidade fática sumidor na relação de consumo virtual
é a vulnerabilidade real diante do alcança a jurídica, a fática, e prospera muito
parceiro contratual, seja em decor- mais na informacional e na técnica. Pode-se
até dividir esta última quanto ao desco-
3
Nesse sentido ver: Marques (2006, p. 305-306, nhecimento das características técnicas do
338-339, 347-353); Braga Netto (2011, p. 90-93); Benja- produto ou serviço, lembrando-se de que
min, Marques e Bessa (2008, p. 72-73).
no comércio eletrônico o consumidor não
4
“Art. 4o A Política Nacional das Relações de
Consumo tem por objetivo o atendimento das neces- tem acesso direto ao produto, nem se faz
sidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, presente no estabelecimento comercial; e
saúde e segurança, a proteção de seus interesses econô- técnica, no sentido de desconhecimento,
micos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como falta de domínio sobre as próprias ferra-
a transparência e harmonia das relações de consumo,
atendidos os seguintes princípios: I – reconhecimento
mentas que manuseia ou que tem acesso,
da vulnerabilidade do consumidor no mercado de como exemplo: o computador e seus
consumo” (BRASIL, 1990). periféricos (scanner, impressora, mouse,

266 Revista de Informação Legislativa


teclado, webcam, rede wirelless, modem, “O sujeito fornecedor agora é um
etc.); e os softwares instalados ou a instalar ofertante profissional automatizado e
(browser – Internet Explorer, Firefox, Mozzila; globalizado, presente em uma cadeia
gerenciadores de downloads; gerenciadores sem fim de intermediários (portal,
de e-mail, antivírus, etc.). website, link, provider, empresas de
Ademais, o consumidor está sujeito a cartão de crédito, etc.), um fornece-
outros elementos do ambiente virtual, que dor sem sede e sem tempo (a oferta
podem de alguma forma afetar o processo é permanente, no espaço privado e
de contratação via Internet. Por exemplo, no público), um fornecedor que fala
pela ação de maliciosos programas de com- todas as línguas ou usa a língua franca,
putador disseminados na Internet: vírus, o inglês, e utiliza-se da linguagem vir-
spywares, backdoors, keyloggers, worms5, entre tual (imagens, sons, textos em janelas,
outros desenvolvidos por agentes experts da textos interativos, ícones, etc.) para
informática: hackers e crackers.6 marketing, negociação e contratação.
Nesse contexto tecnológico, Claudia O sujeito consumidor é agora um des-
Lima Marques traz novas concepções a tinatário final contratante (art. 2o do
respeito dos protagonistas da relação de CDC), um sujeito ‘mudo’ na frente
consumo: de um écran, em qualquer tempo, em
qualquer língua, com qualquer idade,
5
Spyware consiste num programa automático de
computador que recolhe informações sobre o usuário, identificado por uma senha (PIN),
sobre os seus costumes na Internet e transmite essa uma assinatura eletrônica (chaves-
informação a uma entidade externa na Internet, sem o -públicas e privadas), por um número
seu conhecimento nem o seu consentimento. Backdoor de cartão de crédito ou por impres-
(também conhecido por Porta dos fundos) é uma
falha de segurança que pode existir em um programa sões biométricas, é uma coletividade
de computador ou sistema operacional, que pode de pessoas, que intervém na relação
permitir a invasão do sistema por um cracker para que de consumo (por exemplo, receben-
ele possa obter um total controle da máquina. Muitos
do o compact disc (CD) de presente,
crackers utilizam-se de um Backdoor para instalar vírus
de computador ou outros programas maliciosos, comprado por meio eletrônico, ou
conhecidos como malware. Keylogger (que significa o grupo de crianças que está vendo
registrador do teclado em inglês) é um programa de o filme baixado por Internet, ex vi
computador do tipo spyware cuja finalidade é coletar
informações de usuários, como nomes de usuário e
parágrafo único do art. 2o do CDC)
senhas de contas de e-mail, sites de relacionamento, ou a coletividade afetada por um
mensageiros instantâneos e qualquer outro serviço que spam ou marketing agressivo (art. 29 do
precise de senha para se conectar, inclusive dados de CDC) ou todas as vítimas de um fato
acesso a contas bancárias, números de cartão de crédito
e afins. Worm (verme, em português), em computação,
do serviço do provedor de conteúdo,
é um programa autorreplicante, semelhante a um que enviou um vírus ‘destruidor’ por
vírus. Enquanto um vírus infecta um programa e sua comunicação semanal, ou todas
necessita desse programa hospedeiro para se propagar, as pessoas cujos números da conta
o Worm é um programa completo e não precisa de
outro para se propagar. Um worm pode ser projetado corrente ou do cartão de crédito e
para tomar ações maliciosas após infestar um sistema, senha foram descobertos pelo hacker
além de se autorreplicar, pode deletar arquivos em um ou cracker que atacou o computador
sistema ou enviar documentos por email. principal do serviço financeiro, ou do
6
Hackers (singular: hacker) são indivíduos
que elaboram e modificam software e hardware de fornecedor de livros eletrônicos (e-
computadores, seja desenvolvendo funcionalidades -books) – art. 17 do CDC” (MARQUES,
novas, seja adaptando as antigas. A verdadeira 2004, p. 61-63, grifo do autor).
expressão para invasores de computadores é
Ademais, o elemento objetivo da relação
denominada Cracker e o termo designa programadores
maliciosos e ciberpiratas que agem com o intuito de de consumo, composto pelos produtos e
violar ilegal ou imoralmente sistemas cibernéticos. serviços postos à disposição do consumidor

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 267


no mercado consumidor, é definido no arti- Segundo Leonardo de Medeiros Garcia
go 3o, parágrafos 1o e 2o, do CDC, in verbis: (2008, p. 41), traduz-se em:
“§ 1o Produto é qualquer bem, móvel “[...] um conjunto de padrões éticos
ou imóvel, material ou imaterial. de comportamento, aferíveis obje-
§ 2o Serviço é qualquer atividade tivamente, que devem ser seguidos
fornecida no mercado de consumo, pelas partes contratantes em todas
mediante remuneração, inclusive as fases da existência da relação con-
as de natureza bancária, financeira, tratual, desde a sua criação, durante
de crédito e securitária, salvo as o período de cumprimento e, até
decorrentes das relações de caráter mesmo, após a sua extinção”.
trabalhista” (BRASIL, 1990). Bruno Pandori Giancoli e Marco An-
Pode-se concluir, assim, que há uma tônio Araújo Júnior (2009) explicam que
ampla abrangência da lei no que se refere a objetividade da boa-fé é a forma de se
ao que sejam produtos e serviços no âmbito indicar o comportamento adequado aos
das relações de consumo, principalmente, padrões de ética, lealdade, honestidade
no âmbito das relações virtuais de consumo. e colaboração, exigíveis nas relações de
consumo, desvinculando-se, assim, das
2.4. Princípios do direito do consumidor intenções íntimas do sujeito, ou seja, do
Toda a legislação consumerista, e em es- caráter subjetivo da conduta.
pecial o CDC, erigiu amplo rol de institutos Destarte, fundamenta-se na necessida-
do Direito e seus princípios e garantias para de de as partes atuarem reciprocamente
a proteção do consumidor e da relação de com cooperação, lealdade, honestidade e
consumo harmonizada. Todavia, no con- confiança (FIUZA, 2006, p. 410-411; HI-
texto da relação de consumo estabelecida RONAKA, 2003, p. 112-113), no intuito de
via Internet, ater-se-á especificamente no concretizar a diretriz da eticidade preconi-
estudo daqueles dispositivos, princípios zada no Código Civil.
e direitos do consumidor que lhe são cor- O princípio da boa-fé objetiva possui ca-
relatos. ráter tridimensional, que se exterioriza por
meio de três funções elencadas no Código
2.4.1 Princípio da boa-fé objetiva Civil de 2002, quais sejam: a interpretativa
O princípio da boa-fé objetiva apresen- (artigo 113), a qual a boa-fé atua como refe-
ta-se na contemporaneidade como um dos rencial hermenêutico das relações jurídicas
mais importantes princípios do Direito pri- contratuais, a de controle (artigo 187), na
vado. Possui grande relevância no Direito qual visa a limitar o exercício abusivo do
contratual, dada sua inserção por meio da direito subjetivo e a integrativa (artigo 422),
positivação expressa tanto no Código de na qual a boa-fé objetiva destaca-se como
Defesa do Consumidor (artigo 4o, III, e 51, fonte criadora de novos deveres especiais
IV, CDC) quanto no Código Civil de 2002 de conduta a serem observados pelas par-
(artigos 113, 187 e 422). tes durante todo o vínculo obrigacional, e,
O princípio da boa-fé objetiva constitui- que passam obrigatoriamente a integrar
-se em regra de conduta, de comportamento qualquer relação obrigacional, como obri-
ético, social imposta às partes, pautada nos gação secundária, visando a garantir seu
ideais de honestidade, retidão e lealdade, adimplemento (NORONHA, 1994, p. 157;
no intuito de não frustrar a legítima con- BIERWAGEN, 2003, p. 56; MARTINS-
fiança, expectativa da outra parte, tendo, -COSTA, 2002, p. 634; LÔBO, 2005, p. 76).
ainda, a finalidade de estabelecer o equilí- O princípio da boa-fé objetiva criou
brio nas relações jurídicas (ROSENVALD, os chamados deveres anexos de conduta
2005, p. 80). (laterais, instrumentais, etc.), os quais se

268 Revista de Informação Legislativa


introjetam em toda relação jurídica obri- 2.4.2. Princípio da informação
gacional, no intuito de instrumentalizar o O princípio da informação impõe às
correto cumprimento da obrigação princi- partes o dever jurídico de reciprocamente
pal e a satisfação dos interesses envolvidos apresentarem todas as circunstâncias rele-
no contrato (NEGREIROS, 2002, p. 153-154). vantes sobre o contrato, desde a fase pré-
Assim, para além do dever da prestação -contratual até a fase pós-contratual, para
(obrigação principal) surgem também ou- que os contratantes possam, livremente,
tros deveres de conduta durante a relação exercitar sua autonomia privada em conso-
jurídica (obrigação secundária) (MARTINS, nância com os preceitos estabelecidos pela
2000, p. 104-105; MARTINS-COSTA, 2002, boa-fé objetiva.
p. 634; LÔBO, 2005, p. 76), os quais devem “Hoje o contrato é informação, daí
ser observados pelos contratantes, sob pena a importância de sua interpretação
de ofensa à boa-fé objetiva. sempre a favor do contratante mais
Nesse sentido, a boa-fé objetiva integra fraco e das expectativas legítimas
o negócio jurídico por meio dos chamados nele criadas por aquele tipo de con-
deveres anexos (de proteção, cooperação, trato. Neste momento, o elaborador
informação, etc.), os quais visam a consa- do contrato e aquele que o utiliza no
grar sua finalidade precípua, o adimple- mercado de consumo [...] devem ter
mento do contrato, devendo ser observados em conta o seu dever próprio de in-
na fase pré-contratual, de execução e pós- formar, que inclui o dever de redação
-contratual (MELLO, 2001, p. 316; NORO- clara e com destaque, além do dever
NHA, 2007, p. 80). de considerar a condição leiga do ou-
Entre os deveres anexos de conduta tro, evitando dubiedades na redação
da boa-fé objetiva, o dever de informação contratual” (MARQUES, 2006, p. 229).
(ou de informar) destaca-se como o mais No âmbito das relações de consumo, o
importante, pois, a informação é funda- direito à informação, esculpido no artigo 6o,
mental para que os contratantes possam III, do CDC, em consonância com o prin-
ser alertados sobre fatos que poderiam não cípio da informação, expresso no artigo 4o,
perceber por sua própria diligência ordiná- IV, do CDC, estabelece a obrigatoriedade
ria (ROSENVALD, 2005, p. 109). da informação entre os direitos básicos do
Devido à importância concretizada pe- consumidor, a qual constitui dever funda-
los deveres anexos de conduta nas relações mental do fornecedor em prestar informações
jurídicas obrigacionais, firmou-se enten- claras e adequadas ao consumidor, rela-
dimento de que, quando se descumprem cionadas aos produtos/serviços fornecidos
os deveres anexos de conduta, tem-se a (FABIAN, 2002, p. 157).
chamada violação positiva do contrato ou “[...] a informação, nesse âmbito da ci-
adimplemento ruim (GARCIA, 2008), pois, ência jurídica, tem dupla face: o dever
a obrigação principal é cumprida, porém, de informar e o direito de ser informado,
ocorre o descumprimento dos deveres sendo o primeiro relacionado com
anexos (obrigação secundária). quem oferece o seu produto ou ser-
Desse modo, a boa-fé objetiva destaca- viço ao mercado; e o segundo, com o
-se como elemento transformador de todo consumidor vulnerável” (TARTUCE,
o Direito obrigacional, irradiando-se para 2007, p. 141).
os demais ramos do Direito, e em especial, Claudia Lima Marques sustenta que
para o contratual (MARTINS-COSTA, 2002, “o dever de informar passa a representar,
p. 611). Trata-se de princípio a ser concre- no sistema do CDC, um verdadeiro dever
tizado pelo intérprete de acordo com as essencial, dever básico [...] para a harmonia
circunstâncias do caso concreto. e transparência das relações de consumo”

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 269


(MARQUES, 2006, p. 646). Esse direito é es- O CDC preocupou-se com a oferta nas
sencial tratando-se da relação de consumo vendas à distância, o que inclui, por uma
na Internet, uma vez que o produto ou ser- interpretação extensiva, as vendas reali-
viço somente é visualizado pelo consumi- zadas no comércio eletrônico, dispondo
dor por meio de imagens (fotos, desenhos, assim, em seu artigo 33, que, “em caso de
esboços, croqui, planta) e ou descrições oferta ou venda por telefone ou reembolso
textuais dispostos nas lojas virtuais, que, postal, deve constar o nome do fabricante e
em muitas vezes, não retratam a realidade endereço na embalagem, publicidade e em
física, técnica e informacional do bem. todos os impressos utilizados na transação
O princípio da informação apresenta-se comercial” (BRASIL, 1990).
como fundamental ao sistema consumerista Pela força do princípio da informação,
(BRAGA NETTO, 2011, p. 50) e, em conjunto corroborando o binômio dever de informar,
com o princípio da transparência, impõe ao imposto ao fornecedor, e direito de informação
fornecedor o dever de veicular informações do consumidor, destaca-se o Projeto de Lei
sobre seus produtos e serviços, de forma no 7.459, de 8 de junho de 2010, do Deputado
clara, correta, precisa e ostensiva, conforme Celso Russomanno [PP-SP], que obriga as
preconizam os artigos 30 e 31 do CDC7. pessoas jurídicas que comercializem produ-
Destarte, as informações prestadas tos ou serviços pela Internet a informar seu
devem possuir destaque e clareza em seu número no Cadastro Nacional da Pessoa
conteúdo, para que os contratantes possam Jurídica – CNPJ, e o endereço e o telefone
ter conhecimento prévio e efetivo de todas de suas instalações físicas (BRASIL, 2010c).
as obrigações assumidas no vínculo con- Pela proposta, os vendedores também de-
tratual. No ambiente virtual, a informação verão disponibilizar o número da inscrição
inserida em uma publicidade ou oferta, por estadual ou municipal. O texto prevê que
uma loja virtual, vincula o fornecedor, que os infratores serão penalizados de acordo
não pode mais modificar as características com o Código de Defesa do Consumidor.
da proposta original e permite que o con- Encontra-se essa proposta atualmente sob
sumidor exija o seu cumprimento forçado, apreciação, na Câmara dos Deputados, da
nos termos dos artigos 35 e 84 do CDC.8 CCTCI – Comissão de Ciência e Tecnologia,
Comunicação e Informática.
7
“Art. 30. Toda informação ou publicidade, su- Ainda que não esteja expressamente
ficientemente precisa, veiculada por qualquer forma
ou meio de comunicação com relação a produtos e
previsto em lei, o fornecedor virtual deve
serviços oferecidos ou apresentados, obriga o forne- informar o seu CNPJ (Cadastro Nacional da
cedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra Pessoa Jurídica) ao consumidor, ressaltando-
o contrato que vier a ser celebrado. Art. 31. A oferta e -se que o item 3.1.1, alínea ‘i’, das Diretrizes
apresentação de produtos ou serviços devem assegu-
rar informações corretas, claras, precisas, ostensivas para as Relações de Consumo estabelecidas
e em língua portuguesa sobre suas características, no comércio eletrônico (Ministério da Justiça
qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, – Secretaria de Direito Econômico) determi-
prazos de validade e origem, entre outros dados, bem
como sobre os riscos que apresentam à saúde e segu-
na que os fornecedores devem identificar-se
rança dos consumidores” (BRASIL, 1990). em sua página inicial da Internet, de modo
8
“Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou servi- a assegurar o acesso do consumidor às
ços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou informações relativas ao endereço postal
publicidade, o consumidor poderá, alternativamente
e à sua livre escolha: I – exigir o cumprimento forçado e eletrônico do mesmo, à denominação e à
da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou forma comercial, bem como, ao seu CNPJ.
publicidade. Art. 84. Na ação que tenha por objeto o
cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz 2.4.3. Princípio da transparência
concederá a tutela específica da obrigação ou determi-
nará providências que assegurem o resultado prático O princípio da transparência (artigo 4o,
equivalente ao do adimplemento” (BRASIL, 1990). caput, CDC) apresenta-se como princípio

270 Revista de Informação Legislativa


básico norteador dos contratos de consu- O artigo 36 reconhece o princípio da
mo. Preconiza a forma como a informação transparência da fundamentação da pu-
deve ser prestada ao consumidor no ato da blicidade, enquanto o artigo 37 é a forma
contratação (qualificação da informação), coercitiva e expressa da lei de se garantir
a qual deve ser clara, ostensiva, precisa e o direito do consumidor de proteção ao
correta, visando a sanar quaisquer dúvidas engano e ao abuso, nos moldes do inciso
no ato da contratação e garantir o equilíbrio IV do artigo 6o do CDC.
contratual entre as partes contratantes. Segundo Ada Pellegrini Grinover e
A transparência impõe a qualificação outros “a publicidade enganosa provoca
da informação sobre aspectos relevantes [...] uma distorção no processo decisório do
durante as tratativas (fase pré-contratual) consumidor, levando-o a adquirir produtos
e, por conseguinte, no ato da contratação, e serviços que, estivesse melhor informado,
sob pena de haver violação do princípio possivelmente não o faria.” (GRINOVER et
da transparência, por descumprimentos al, 2007, p. 337). Lado outro, a publicidade
aos preceitos deste princípio (MARQUES, abusiva “carreia a idéia de exploração ou
2006, p. 715). opressão do consumidor, [...] mas não se
Para Claudia Lima Marques (2006, p. limita a tal, [...] tutelando valores outros
57), o princípio da transparência atua como que sejam caros à sociedade de consumo,
um reflexo da boa-fé exigida aos agentes como o meio ambiente” (GRINOVER et al,
contratuais. Assim, entende-se que o dever 2007, p. 350).
de agir com transparência significa qualifi- Assim, a conjugação dos princípios
car a informação fornecida de forma ampla da transparência e da informação, em
ao consumidor, prezando-se pela clareza, consonância com os preceitos norteadores
lealdade, sinceridade e respeito. da boa-fé objetiva apresentam-se como
Sendo assim, o fornecedor tem o dever instrumentos imprescindíveis a garantir a
de informar ao consumidor não somente as proteção do consumidor diante de condu-
características do produto ou serviço, mas tas do fornecedor que venham a infringir as
também todo o conteúdo contratual, sendo normas basilares do direito consumerista,
que a transparência necessariamente deve tendo-se em consideração a vulnerabili-
ser observada a partir das manifestações dade do consumidor, principalmente, na
pré-contratuais, em especial, a publicidade. relação jurídica de consumo virtual.
Neste sentido, Felipe Peixoto Braga
Netto (2011, p. 49) sustenta que a “con- 2.4.5. Princípio da confiança
duta transparente é conduta não ardilosa, O princípio da confiança é considerado
conduta que não se esconde atrás do apa- por Claudia Lima Marques um novo para-
rente, propósitos pouco louváveis”. Essas digma no contrato de consumo eletrônico.
condutas impróprias à boa-fé objetiva que, Segundo a autora “confiar é acreditar (cre-
manifestas pelo fornecedor na publicidade
veiculada, caracterizam a publicidade en- de informação ou comunicação de caráter publicitário,
inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro
ganosa ou abusiva, descritas nos artigos 36
modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro
e 37 do CDC9. o consumidor a respeito da natureza, características,
qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e
9
“Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de quaisquer outros dados sobre produtos e serviços. § 2o
tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória
identifique como tal. Parágrafo único. O fornecedor, na de qualquer natureza, a que incite à violência, explore
publicidade de produtos ou serviços, manterá, em seu o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de
poder, para informação dos legítimos interessados, os julgamento e experiência da criança, desrespeita valores
dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor
à mensagem. Art. 37. É proibida toda publicidade enga- a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua
nosa ou abusiva. § 1o É enganosa qualquer modalidade saúde ou segurança” (BRASIL, 1990, grifo nosso).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 271


dere), é manter, com fé (fides) e fidelidade, sua credibilidade no meio eletrônico, deve
a conduta, as escolhas e o meio; confiança buscar conquistar a confiança do consu-
é aparência, informação, transparência, midor, mediante observância às regras de
diligência e ética no exteriorizar vontades boa conduta, colaboração, equilíbrio con-
negociais” (MARQUES, 2004, p. 32, grifo tratual, respeito às leis consumeristas e ao
do autor). consumidor enquanto pessoa de direito e
A autora afirma que a era digital de- agente econômico. Nessa esteira, ao Direito
sencadeou a “segunda crise do contrato”, cabe prover ampla informação e educação
em razão da despersonalização extrema à sociedade de consumo, sempre inovando
oriunda dos contratos em massa de adesão suas normas e evoluindo como Ciência que
e dos contratos firmados no meio eletrôni- acompanha o avanço social e tecnológico.
co, onde se verifica uma “desumanização
do contrato” (MARQUES, 2004, p. 65).
3. As lojas virtuais
“A confiança é colocada no núcleo
das relações de comércio eletrônico, Na Internet encontram-se diversas lojas
impondo deveres anexos específicos, virtuais que oferecem os mais variados
porque, ao contrário do que ocorre tipos de produtos e serviços, o que muito
no mundo real, onde é possível se facilita a procura desses pelo consumidor.
utilizar da teoria da aparência, aqui, Efrain Turban e David King (2004, p.
a própria aparência se desmaterializou 37) conceituam o estabelecimento virtual,
restando, apenas, a transparência, dado in verbis:
ou informação de um texto contratual “Uma loja virtual é o site de uma
complexo, rápido e especializado. única empresa por meio do qual são
Com a reumanização do contrato vendidos produtos ou serviços. Ela
eletrônico, a dogmática da aparência pode pertencer ao fabricante (por
retorna” (MATTOS, 2009, p. 36). exemplo, geappliances.com), a um
Destarte, “aquele que utiliza o meio varejista (por exemplo, walmart.
eletrônico e cria a aparência de que este com), a pessoas físicas que vendem
pertence a sua esfera de interesses arca a partir de suas casas, etc.”
com os riscos e os ônus de demonstrar o Essas lojas virtuais podem ser uma
contrário” (LORENZETTI, 2004, p. 293). ramificação na Internet de uma rede de
Não há dúvidas de que uma das questões estabelecimentos comerciais, já consolidada
mais relevantes no comércio eletrônico é a da no mercado tradicional, pertencendo a um
confiança do consumidor nesse novo merca- fabricante de produtos (Sony, Fiat, e outros),
do tecnológico. Por um lado, o consumidor a um prestador de serviços (PUC Virtual,
vislumbra uma enormidade de ofertas de TAM, etc.), ou um varejista comerciante
produtos e serviços, obtendo diversas van- (Renner, Casas Bahia, e outros), e até mesmo
tagens por adquirir em uma loja virtual um a uma pessoa física – empresário individual
produto por um preço bem mais econômico –, que vende produtos artesanais ou mesmo
do que o mesmo produto no estabelecimento revende por meio de divulgação publicitária
físico do fornecedor; por outro lado, sente-se na Internet. Todos, sem exceção, são conside-
inseguro em arriscar fornecer seus dados rados como fornecedores, à luz do artigo 3o
nesse ambiente, o número do cartão de do CDC. Assim, o meio virtual ou eletrônico
crédito, por exemplo, ou de não receber o em que realizam sua atividade de caráter
produto após o pagamento efetuado. empresarial não modifica a qualificação
Desta análise, considerando-se o prin- dos mesmos, sendo-lhes impostas todas as
cípio da confiança imanente a todo o regras de responsabilidade, deveres e direi-
Direito, o fornecedor, para a mantença de tos previstos pela legislação consumerista.

272 Revista de Informação Legislativa


Analice Castor de Mattos (2009, p. 85) res- violação de um dever jurídico a que se
salta que a loja virtual pode ser desenvolvida obrigue o fornecedor. Nesse sentido, Sérgio
e mantida por um fornecedor que possui o Cavalieri Filho (2008, p. 1), dispõe que se
seu próprio provedor, sendo, portanto, o trata da “conduta externa de uma pessoa
único responsável pelos danos que causar imposta pelo Direito Positivo por exigência
ao consumidor no comércio eletrônico, como da convivência social”, isto é, uma ordem
exemplo a Americanas.com. Em outra situa- advinda de um sistema normativo dirigida
ção, o fornecedor desenvolve o software da à vontade dos indivíduos, de modo a criar
loja virtual e todo o sistema de segurança e obrigações para os mesmos.
política de privacidade, mas terceiriza o ser- Antes do advento do Código de Defesa
viço de hospedagem em um provedor. Por do Consumidor (1990), a responsabilidade
fim, o fornecedor pode ainda contratar com civil do fornecedor era subjetiva, ou seja,
uma desenvolvedora de software especializa- firmava-se na verificação da existência de
da em comércio eletrônico a qual desenvolve culpa e nexo de causalidade entre a conduta
a loja virtual, oferece toda a infraestrutura e culposa e o dano, regendo-se, até então,
sistemas para a negociação eletrônica, po- pelo artigo 159 do Código Civil de 191610.
dendo hospedar a loja virtual ou contratar O Código de Defesa do Consumidor,
esse serviço com um terceiro-provedor. inspirado na moderna legislação consu-
Nos dois últimos casos apresentados, merista da época, contrariamente, adotou
somente a análise do caso concreto poderá a responsabilidade objetiva do fornecedor,
aferir a responsabilidade de cada parte por pelos “danos que cause no mercado de
um dano causado ao consumidor. Há que consumo, o fornecedor – cujo conceito é
se analisar o dano e o nexo causal, pois “a amplo para compreender todos que dis-
empresa de softwares responde solidaria- ponibilizam produtos ou serviços com
mente com o fornecedor por danos que habitualidade, mediante remuneração –
o consumidor venha sofrer em razão de responde, sem culpa, pelos danos sofridos
falhas no sistema de segurança eletrônica pelos consumidores” (BRAGA NETTO,
de dados” (MATTOS, 2009, p. 86). 2011, p. 118). É o que preceitua o artigo 12,
A conscientização do mercado eletrôni- caput, do CDC, in verbis:
co de que o consumidor é peça fundamental “Art. 12. O fabricante, o produtor, o
para a sua própria existência, mais do que construtor, nacional ou estrangeiro,
a estrutura e novidade tecnológica dos e o importador respondem, indepen-
meios empregados para se negociar, deve dentemente da existência de culpa, pela
atingir o fornecedor virtual nos moldes da reparação dos danos causados aos
evolução do movimento consumerista que, consumidores por defeitos decorren-
como visto, suplantou as bases da produção tes de projeto, fabricação, construção,
industrial e do mercado capitalista a partir montagem, fórmulas, manipulação,
da valorização do agente que fomenta o apresentação ou acondicionamento
mercado de consumo e, por conseguinte, de seus produtos, bem como por
a economia: o consumidor. informações insuficientes ou inade-
quadas sobre sua utilização e riscos”
4. Responsabilidade civil do (BRASIL, 1990, grifo nosso).
fornecedor no comércio eletrônico 10
“Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão vo-
O consumidor que contrata por meio luntária, negligência, ou imprudência, violar direito,
ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o
da Internet possui, no instituto da respon-
dano. A verificação da culpa e a avaliação da responsa-
sabilidade civil, a garantia de reparação bilidade regulam-se pelo disposto neste Código, arts.
de eventual dano que venha a sofrer pela 1.518 a 1.532 e 1.537 a 1.553” (BRASIL, 1916).

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 273


Todavia, há que se ressaltar a exceção re- fornecedores ali cadastrados para ofertar ao
lativa aos profissionais liberais que, segun- consumidor, condenando-a à indenização
do o artigo 14, §4o, do CDC11, respondem pelo dano causado ao último por aqueles.
apenas se apurada a culpa. Também salien- Sobre as causas jurídicas que ensejam a
tar que há a necessidade de o consumidor obrigação de indenizar:
provar o nexo entre a causa e o dano, para “As mais importantes são as seguin-
que a responsabilidade seja imputada ao tes: a) ato ilícito (stricto sensu), isto
fornecedor e, por conseguinte, a obrigação é, lesão antijurídica e culposa dos
de indenizar. comandos que devem ser observa-
Nesse sentido, o acórdão colacionado dos por todos; b) ilícito contratual
abaixo demonstra a aplicação da responsa- (inadimplemento), consistente no
bilidade objetiva, independente de culpa, descumprimento de obrigação as-
ao intermediário na prestação de serviço: sumida pela vontade das partes; c)
“Apelação – ação de indenização violação dos deveres especiais de
– compra e venda pela Internet – segurança, incolumidade ou garantia
empresa mantenedora de sítio ele- impostos pela lei àqueles que exer-
trônico de intermediação – fraude cem atividades de risco ou utilizam
– responsabilidade – danos morais coisas perigosas; d) obrigação con-
– mero descumprimento contratual tratualmente assumida de reparar o
– recurso parcialmente provido. A dano, como nos contratos de seguro
empresa, que mantém sítio eletrônico e de fiança [...]” (CAVALIERI FILHO,
para intermediar venda pela internet 2008, p. 5, grifo do autor).
e fornece informações no sentido de Entre as causas acima expostas, o ilícito
que os vendedores ali certificados contratual (inadimplemento) talvez seja a
são confiáveis, responde pelos danos causa que mais se verifica quando da res-
materiais suportados pelos usuários ponsabilização do fornecedor na relação de
que confiaram nas informações consumo estabelecida na Internet, vez que
prestadas e foram vítimas de ações são expressivas as reclamações do consu-
de falsários. O transtorno decorrente midor quanto ao descumprimento do prazo
de descumprimento contratual, por ou a não entrega dos produtos e serviços
si só, não enseja indenização por adquiridos nas lojas virtuais12. Saliente-se,
danos morais” (MINAS GERAIS, novamente, que a violação dos deveres
Tribunal de Justiça, Apelação Cível anexos da boa-fé objetiva constitui uma es-
no 10071080385462001, 2010). pécie de inadimplemento, independente de
O caso acima é interessante no sentido culpa, a chamada violação positiva do contrato
de que a responsabilidade objetiva, por (LÔBO, 2005, p. 300-302)13, o que leva à res-
interpretação do artigo 14 do Código de ponsabilidade objetiva do fornecedor que
Defesa do Consumidor, foi imposta solida- 12
Reclamações contra empresas de comércio
riamente ao terceiro na relação de consumo, eletrônico estão em alta, principalmente quando o
à pessoa jurídica que mantinha o sítio de assunto é atraso na entrega. Para se ter uma ideia, o
Internet e prestava as informações sobre os Procon Municipal de Belo Horizonte recebeu somente
nos primeiros 10 meses deste ano 1.268 queixas contra
11
“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, lojas virtuais, sendo que no mesmo período de 2009
independentemente da existência de culpa, pela esse número era de 767, crescimento de 60,5% em
reparação dos danos causados aos consumidores por apenas um ano (TAKAHASHI, 2010).
defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como 13
“Em virtude do princípio da boa-fé, positivado
por informações insuficientes ou inadequadas sobre no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos de-
sua fruição e riscos. § 4o A responsabilidade pessoal veres anexos constitui espécie de inadimplemento,
dos profissionais liberais será apurada mediante a independentemente de culpa” (CONSELHO DA
verificação de culpa” (BRASIL, 1990). JUSTIÇA FEDERAL, [200-?]).

274 Revista de Informação Legislativa


deu causa ao inadimplemento contratual fora do estabelecimento comercial, a con-
por sua inobservância na relação jurídica. tratação é realizada por uma oferta advinda
de uma ligação telefônica no local onde se
encontra o consumidor, não podendo visu-
5. Direito de arrependimento
alizar/examinar adequadamente o produto
O direito de arrependimento encontra- ou mesmo aferir a qualidade do serviço
-se previsto no artigo 49 do Código de ofertado, em razão de não ter contato efe-
Defesa do Consumidor, sendo aplicado tivo com o produto/serviço. Ademais, o
quando se efetuam vendas fora do estabele- consumidor é abordado em momentos no
cimento empresarial14. Segundo José Carlos qual não esperava, encontrando-se muitas
Maldonado de Carvalho (2008, p. 135-136, vezes vulnerável e exposto a práticas abusi-
grifo do autor): vas de fornecedores, donde se fundamenta
“O Código ao referir-se às contrata- a necessidade de proteção do consumidor
ções “especialmente por telefone ou por meio do exercício do direito de arre-
a domicílio”, o fez de modo exempli- pendimento, em face da impossibilidade de
ficativo (numerus apertus), razão pela contato físico com o produto/serviço.
qual sujeita-se também ao direito Todavia, manifesta a declaração de
de arrependimento toda e qualquer vontade do consumidor ao contratar na
contratação celebrada fora do estabe- Internet e sendo aceita pelo proponente,
lecimento comercial, o que inclui, ipso surge uma obrigação entre as partes e que
facto, as que venham a ser realizadas impõe a imprescindível observância do
através de fax, videotexto, mala dire- princípio basilar da boa-fé objetiva nas
ta, e-mail, em domicílio, etc. “ relações jurídicas virtuais. Ainda assim,
Quanto às demais situações descritas ao pode o consumidor desistir do negócio
final do caput do artigo 49, as vendas em realizado no prazo de reflexão de sete dias, a
domicílio ou de porta em porta, essas foram contar de sua assinatura ou do recebimento
as primeiras modalidades de vendas fora do produto/serviço.
do estabelecimento comercial, merecendo Leonardo Roscoe Bessa expõe que, espe-
atenção especial na proteção dos direitos do cificamente, quanto à compra por telefone
consumidor por não dispor de informações ou por Internet, a contagem inicia-se a partir
precisas, transparentes e técnicas sobre o do ato de recebimento do produto e não
produto adquirido pela simples demons- do dia da solicitação (contratação), pois “a
tração visual de um catálogo ou de um interpretação deve prestigiar a finalidade
produto mostruário que o vendedor nem da norma: proteger o comprador que, até
sempre porta consigo. o recebimento físico do bem, não pode exa-
Posteriormente, surgiram as vendas por minar adequadamente o produto” (BEN-
telemarketing, ou seja, o marketing realizado JAMIN; MARQUES; BESSA, 2008, p. 292).
pela comunicação por telefone. Portanto, O legislador considerou um período ra-
zoável ao estipular o lapso de tempo de sete
14
“Art. 49. O consumidor pode desistir do contra- dias ao consumidor para que este reflita
to, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do sobre a contratação realizada. De maneira
ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que
a contratação de fornecimento de produtos e serviços
que, arrependendo-se, efetue a devolução
ocorrer fora do estabelecimento comercial, especial- do produto adquirido se já o recebeu; ou
mente por telefone ou a domicílio. Parágrafo único. Se desista do serviço contratado15. Segundo
o consumidor exercitar o direito de arrependimento
previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, 15
A título ilustrativo colaciona-se acórdão do
a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em que foi
devolvidos, de imediato, monetariamente atualiza- negado, por unanimidade, provimento ao recurso de
dos” (BRASIL, 1990). apelação civil contra a sentença que proveu em favor

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 275


Leonardo de Medeiros Garcia (2008), a abusiva e, portanto, nula qualquer cláusula
desistência do contrato pelo consumidor que impossibilite essa restituição ou que
é um direito imotivado, sendo qualquer imponha qualquer ônus ao consumidor
explicação sua um ato voluntário. pela sua desistência.
Quanto ao parágrafo único do art. 49, o Ada Pellegrini Grinover et al (2007, p.
mesmo autor ensina que: 563) comentam que:
“Exercido o direito de arrependi- “O fornecedor que opta por práticas
mento, o consumidor deverá receber comerciais mais incisivas, como as
de forma imediata a quantia paga, vendas em domicílio ou por marke-
monetariamente atualizada, voltan- ting direto, isto é, fora do estabele-
do ao status quo ante. Assim, todo cimento comercial, corre o risco do
e qualquer custo despendido pelo negócio, de modo que não tem nem
consumidor deverá ser ressarcido, do que reclamar se a relação jurídica
como o valor das parcelas pagas, é desfeita em virtude do arrependi-
além de outros custos, como os de mento do consumidor. Essa situação
transporte, por exemplo. Além disso, de arrependimento e resolução do
a norma autoriza que a restituição contrato de consumo é ínsita aos ne-
seja feita de forma imediata, ou seja, gócios estabelecidos mediantes essa
o fornecedor não poderá impor prazo prática comercial.”
ao consumidor para que restitua os No entanto, apesar de o risco do negócio
valores” (GARCIA, 2008, p. 260). ser inerente à atividade empresarial, Fabrí-
Destarte, o direito de desistir do contra- cio da Mota Alves (2007) aponta situações
to independe de qualquer vício do produto que entende caracterizar injustiça social
ou serviço, posto que, “não se trata de defei- e desequilíbrio nas relações comerciais
tos que oportunizam a rescisão contratual” em relação ao fornecedor. Cita, então, o
(BRAGA NETTO, 2011, p. 295). Nessa es- comércio eletrônico de passagens aéreas,
teira, o artigo 51 do CDC16 enumera um rol questionando-se se a venda de passagens
de cláusulas abusivas consideradas nulas aéreas pela Internet deve ou não respeitar
de pleno direito, entre elas, faz referência o prazo de reflexão do direito de arrepen-
à devolução dos valores pagos pelo con- dimento.
sumidor, garantida pelo parágrafo único “Em primeiro lugar, considerando
do artigo 49. Devem, então, ser restituídos a mens legis do CDC, no tocante à
integralmente pelo fornecedor, e com necessidade de proteção do consu-
atualização monetária, sendo considerada midor contra técnicas agressivas de
marketing publicitário ou aquisição
do direito de arrependimento em compra realizada
pela internet. EMENTA: Consumidor. Compra e
irrefletida ou, ainda, desconheci-
venda fora do estabelecimento comercial. Exercício mento quanto ao produto a ser co-
do Direito de Arrependimento. Pagamento parcelado mercializado, não vemos como possa
através de cartão de crédito. Persistência das cobranças ser aplicado o art. 49. Isso porque o
em que pese o cancelamento da compra. Responsabili-
dade solidária da comerciante e da administradora do objeto do negócio jurídico – ou seja,
cartão. Situação que culmina com a inscrição do nome a prestação de serviço de transporte
da demandante em róis de inadimplentes. Danos aéreo – é atividade de conhecimento
morais configurados in re ipsa. Recursos desprovidos
(RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça, Recurso público e notório, que independe
Cível no71001783364, 2008). de prévia ciência do consumidor
16
“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, quanto à forma elementar de seu
as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de
funcionamento. Resguardando-se
produtos e serviços que: II – subtraiam ao consumidor
a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos a empresa de divulgar informações
previstos neste código” (BRASIL, 1990). essenciais ao consumidor – em aten-

276 Revista de Informação Legislativa


ção, inclusive, ao que dispõe o CDC 2) No caso de aplicativos, criar chaves
– como horários dos vôos, conexões, de restrição ou desenvolver aplica-
escalas, valor da passagem, tarifas, tivos demonstrativos das principais
tipo de aeronave, serviços de bordo capacidades do programa;
etc., estará plenamente satisfeita a 3) No caso de imagens, apresentar
exigência legal de publicidade das em tamanho reduzido uma pequena
informações referentes ao serviço amostra” (ALVES, 2007, p. 2).
a ser prestado. Independe, pois, do As orientações acima são válidas e pode-
desconhecimento do consumidor que rão evitar que o fornecedor seja prejudicado
pretende contratar o serviço de trans- diante do exercício do direito de arrepen-
porte aéreo. Além disso, a respeito dimento do consumidor, mas não afastam
das técnicas de marketing publicitário totalmente a sua incidência, sobretudo
ou de aquisição irrefletida, também porque os critérios de aplicação da norma
sobre isso não merece prosperar o jurídica são, ainda, muito subjetivos, dada
direito de arrependimento. Ora, o a falta de restrições do CDC. Em linhas
consumidor, ao acessar a internet para gerais, demonstra-se que, no caso concre-
adquirir uma passagem aérea, tem à to, acaso o direito de arrependimento seja
sua disposição uma rede de informa- utilizado abusivamente pelo consumidor,
ções ainda mais completa e de fácil haverá inegável prejuízo à parte fornece-
visualização que o consumidor que dora da relação de consumo, o que não
adquire a passagem pessoalmente, no se compatibiliza com nosso ordenamento
próprio estabelecimento comercial da jurídico.
empresa” (ALVES, 2007, p. 6). Por outro lado, insta ressaltar que o
Da mesma forma, o comércio de arqui- consumidor, em razão da desistência, tem a
vos digitais de som, imagens ou textos, pela obrigação de devolver ao fornecedor o pro-
facilidade de reprodução de mídias devido duto que adquiriu. E sendo um serviço, por
ao avanço tecnológico atual, pode condu- exemplo, de acesso à Internet, solicitar o seu
zir a quebra da boa-fé objetiva do usuário cancelamento dentro do prazo de reflexão.
que, ao abrir o lacre do recipiente que lhe Do exposto, verifica-se a extrema neces-
foi enviado ou concluída a transmissão do sidade de evolução legislativa dessa norma,
arquivo digital para o seu computador, de forma a garantir o equilíbrio das relações
estará apto a simplesmente reproduzir entre consumidores e fornecedores, e aten-
o conteúdo e, em seguida, suscitar o seu dimento aos novos meios de se contratar,
arrependimento sobre o negócio efetivado, especialmente, no comércio eletrônico.
acarretando inegável prejuízo ao fornece-
dor do produto. 5.1. Proposições legislativas sobre o
Fabrício da Mota Alves (2007) explica, direito de arrependimento
ainda, que sob a ótica do princípio da Em última análise, o prazo de reflexão
isonomia e do equilíbrio das relações co- para alguns é considerado insuficiente,
merciais, em consonância com o princípio tendo em vista que, em muitos casos, a
da boa-fé objetiva, o fornecedor, a fim de complexidade técnica do produto ou servi-
evitar situação de aplicabilidade do direito ço exige uma avaliação mais apurada pelo
de arrependimento, deve cercar-se de certas consumidor ao contratar fora do estabeleci-
cautelas: mento comercial, em especial, ao se tratar
“1) No caso de músicas e textos, de contratação via Internet, no comércio
disponibilizar pequenos trechos, em eletrônico praticado por fornecedores atra-
qualidade suficiente para o conheci- vés de suas lojas virtuais. As expectativas
mento do consumidor; do consumidor podem ser frustradas ao

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 277


refletir sobre o negócio celebrado, quando – PLS no 396, de 2005: no Senado Federal,
do recebimento do produto ou da prestação foi apresentado pelo Senador Rodolpho
do serviço, ou antes, ao ponderar se aquela Tourinho [PFL/BA], propondo a alteração
era a sua vontade de fato. da Lei no 8.078/1990, para disciplinar as
Sobre o direito de arrependimento do relações de consumo realizadas por meio
consumidor, consubstanciado no artigo 49 eletrônico. No tocante ao artigo 49, a pro-
do CDC, o legislador brasileiro tem apre- posta apenas aumenta o rol exemplificativo
sentado propostas para atender à atualiza- de transações realizáveis fora do estabele-
ção dos negócios efetivados no ambiente da cimento comercial, para abranger aquelas
Internet, como se seguem: concluídas “pela rede mundial de computa-
– PL no 371, de 1999: apresentado pelo dores ou outro meio eletrônico”. O projeto
Deputado Enio Bacci [PDT/RS], fixava, encontra-se em tramitação na Comissão de
pela proposta inicial, o prazo de arrepen- Constituição, Justiça e Cidadania daquela
dimento em dez dias. Em 11 de novembro Casa legislativa, desde 14 de novembro de
2008 foi aprovado pela CCJ [Comissão de 2008 (BRASIL, 2005).
Constituição e Justiça] com redação final – PL no 5.995, de 2009: apresentado pelo
alterando o artigo 49 do CDC para fixar o Deputado Antônio Bulhões [PMDB-SP],
prazo de arrependimento em 15 dias. Em que propõe a alteração da Lei no 8.078/1990,
3 de dezembro de 2008 foi remetido ao para estender o direito de arrependimento
Senado Federal (BRASIL, 1999). ao consumidor que adquire produtos ou
– PL no 975, de 2003: apresentado pelo serviços, ou contrata o fornecimento deles,
Deputado Antônio Carlos Pannunzio dentro do estabelecimento empresarial.
[PSDB/SP]. A proposta acrescenta o arti- Esta proposição retornou em 12 de maio de
go 48-A à Lei no 8.078/1990, ampliando o 2010 à apreciação da Comissão de Defesa
direito de arrependimento a todos os tipos do Consumidor, tendo em vista ter sido
de contrato, determinando que a devolução apresentado pelo Deputado Elismar Prado
do valor pago ocorra de forma imediata, em 16 de março de 2010 um substitutivo a
com correção monetária, “ressalvados os este Projeto, mantendo a redação atual do
custos do fornecedor referentes a transporte artigo 49 do CDC, com o prazo de 7 (sete)
e faturamento”. A proposta foi apensada dias para o exercício do direito de arre-
ao PL 371/99, sendo arquivada em 18 de pendimento quando a contratação ocorrer
fevereiro de 2009 (BRASIL, 2003a). fora do estabelecimento empresarial, e
– PL no 1.451, de 2003: apresentado pelo alterando a parte final da redação para
Deputado Severino Cavalcanti [PP/PE]. A “especialmente por telefone, a domicílio ou
matéria, no tocante ao artigo 49 do CDC, por comércio eletrônico” (BRASIL, 2009).
prevê expressamente o direito de arrepen- – PL no 7.194, de 2010: apresentado pelo
dimento nas compras realizadas pela via Deputado César Silvestri [PPS-PR], altera
do comércio eletrônico. Foi distribuída às a parte final do caput do artigo 49 do CDC
Comissões de Defesa do Consumidor e de para “especialmente por telefone, a domicí-
Constituição e Justiça e de Cidadania. Na pri- lio ou pela internet”. Acrescenta o §4o a esse
meira, em 22 de setembro de 2005, recebeu dispositivo para determinar que o direito
parecer favorável do relator, Deputado Celso de arrependimento só se concretize caso o
Russomano [PP/SP], com substitutivo que consumidor devolva o produto nas mesmas
amplia o prazo de reflexão para 15 dias, man- condições em que o recebeu. Este projeto foi
tendo a proposta original do autor quanto ao apensado ao PL de no 5.995/2009, em 5 de
comércio eletrônico. Em 6 de março de 2008 maio de 2010 (BRASIL, 2010).
a proposta foi arquivada pela Coordenação O que se percebe, portanto, é que as
de Comissões Permanentes (BRASIL, 2003b). propostas do legislador brasileiro, apesar

278 Revista de Informação Legislativa


de serem diversas, não chegam a um senso e, cognitivamente, possa se definir entre
comum, de maneira a atender os anseios do os diversos projetos de lei apresentados,
consumidor por uma normatização segura pertinentes à matéria contextualizada no
e que contemple todos os aspectos tecno- direito de arrependimento, ou, então, pro-
lógicos e jurídicos da relação de consumo duzir norma especial que atinja toda a seara
estabelecida no meio eletrônico. do Direito Eletrônico. Quanto à segurança
e à confiança no comércio eletrônico, têm
sido elas demonstradas nos altos índices
6. Conclusão
de contratações realizadas, cada vez mais
A Internet produziu uma revolução firmadas pela utilização de ferramentas
para o comércio, fomentando a economia tecnológicas, como a assinatura digital e
ao movimentar bilhões de reais no e-com- certificação digital.
merce. Também o acesso à rede mundial dei- Essas contratações pela Internet, já se
xou de ser um requinte das classes sociais consolidam como indispensáveis ao coti-
mais elevadas, popularizando-se o seu uso diano das pessoas, uma vez que, por meio
de forma a prover as necessidades humanas das lojas virtuais abertas 365 dias no ano, o
de consumo em um mundo imediatista e consumidor pode efetuar compras durante
globalizado. 7 dias por semana, 24 horas por dia e em
Em contrapartida aos benefícios apre- qualquer lugar do mundo.
sentados na relação de consumo virtual, Todavia, o fornecedor virtual não pode
surgem também novas formas de agressão fazer do comércio eletrônico um meio
ao direito do consumidor, exigindo-se que de manipulação, pelo marketing direto e
haja um acompanhamento permanente e agressivo de produtos e serviços, da von-
modulação da regulamentação legal de for- tade do consumidor, tendo em vista a
ma a coibir os excessos da publicidade e do vulnerabilidade informacional, técnica,
marketing agressivo, e, também, a omissão jurídica, econômica e fática deste último.
ou imprecisão de informações na oferta Nesse contexto, não é por um clik do mouse
veiculada via Internet pelos fornecedores de forma impensada e correspondendo
virtuais. à assinatura de um contrato indesejado,
Enquanto no Legislativo os projetos que o consumidor se encontrará obrigado
de lei a respeito são diversos e ainda não contratualmente.
concluídos, no Judiciário a resolução de Também não estará o consumidor obri-
conflitos oriundos da contratação eletrônica gado a manter-se vinculado a um contrato,
é feita com fundamento na interpretação mesmo que tenha sido celebrado por sua
doutrinária e jurisprudencial dos atuais declaração de vontade expressa, caso a
diplomas legais, o Código de Defesa do contratação se dê fora do estabelecimento
Consumidor, e, subsidiariamente, o Código comercial, in casu, nas lojas virtuais, pois
Civil, não se olvidando das demais leis que tem o direito de refletir durante o prazo de
compõem o sistema de proteção ao consu- sete dias após o recebimento do produto
midor no Brasil. Todavia, as incertezas na ou serviço e, independente de justificativas
aplicação das referidas leis, que não alcan- e sem incidir em perdas e danos, poderá
çam tecnicamente todas as novas situações exercer o seu direito de arrependimento.
fáticas desse meio (virtual), causam descon- Deve, então, devolver o produto ou can-
forto e insegurança maior para os sujeitos celar o serviço e, por conseguinte, ser-lhe-
da relação jurídica de consumo em litígio. -ão devolvidos pelo fornecedor todos os
Para tanto, não é a lei somente que valores desembolsados, monetariamente
deve se modernizar, mas o legislador, para atualizados, inclusive, as despesas com
que compreenda o ambiente eletrônico frete e postagem eventualmente pagas.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 279


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desistir das compras por telefone ou correspondência
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Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 281


Os princípios numa perspectiva
hermenêutica
Novos diálogos com Nelson Saldanha

Francysco Pablo Feitosa Gonçalves

Sumário
1. Introdução. 2. Brevíssimo panorama da
temática dos princípios no direito. 2.1. A teoria
clássica dos princípios. 2.2. A teoria neoconsti-
tucionalista dos princípios. 3. Os princípios na
perspectiva hermenêutica de Nelson Saldanha.
4. Considerações finais.

Na verdade o que ocorre é que no pensamento


jurídico, como no econômico, no filosófico e em
todos os campos, sempre pesam os modismos, e
com eles as inclinações ideológicas.
Nelson Saldanha

1. Introdução
Este ensaio, tendo por objetivo tecer
algumas considerações sobre a ideia de
princípio na perspectiva hermenêutica de
Nelson Saldanha, ao mesmo tempo em
que se trata de um desenvolvimento de
reflexões anteriores, constitui um trabalho
novo e pretende ser um mote para outras
reflexões futuras. A retomada do tema se
deve tanto à relevância da noção de princí-
pio para o Direito, como pela oportunidade
de estudar a obra de Nelson Saldanha.
Para a pesquisa e realização do ensaio
procuramos imprimir um método que fosse
algo hermenêutico, sem desconsiderar o
ponto de vista histórico. Nessa perspectiva, os
Francysco Pablo Feitosa Gonçalves é Mestre
em Direito pela Universidade Católica de Per-
textos e autores foram interpretados numa
nambuco – UNICAP. Professor da Faculdade perspectiva muito mais aproximada da
Estácio do Recife (Estácio-FIR) e da Faculdade exegese empregada na Literatura do que da
Integrada de Pernambuco – FACIPE. pretensa rigidez que volta e meia reaparece

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 283


em alguns setores da Dogmática Jurídica1. que os princípios não sejam mencionados.
Eis, portanto, algo de mea culpa: eventuais Conceituar exatamente o que é princípio,
incoerências que eventualmente estejam nas por outro lado, é tarefa difícil, muitas são as
linhas que se seguem se devem à nossa leitu- definições existentes e mais numerosos ain-
ra – e à necessidade de sintetizar concepções da o que se pretende denominar de princípio
extensas – e não aos autores consultados. nos vários ramos e sub-ramos do Direito.3
Para a consecução do objetivo traçado Nessa perspectiva, esse escorço inicial
fizemos um brevíssimo recorte panorâ- não visa outra coisa senão apresentar, em li-
mico da atual compreensão e aplicação nhas muito gerais e de forma não exaustiva,
dos princípios jurídicos, para em seguida algumas concepções mais recorrentes do
apresentar sucintamente a concepção de que é princípio, as quais foram classificadas
princípio na filosofia do direito presente em duas correntes gerais, que denomina-
em Saldanha. Como é evidente, o presente mos de clássica e neoconstitucionalista.
ensaio não pretende exaurir a questão dos
princípios ou analisar plenamente – nem
3
Vale trazer aqui uma passagem de Vicente Ráo
(2005), pela menção aos princípios e, sobretudo, pela
em profundidade nem em extensão – a rica crítica à ramificação no Direito: “Considerando-se o
obra de Nelson Saldanha. Pretende, muito Direito tal qual se deve considerar, isto é, como ciência,
mais, estimular o debate e a reflexão sobre a seu estudo e sua aplicação não podem dispensar o co-
questão dos princípios e sobre a obra desse nhecimento, nem a constante invocação dos princípios
gerais. Mesmo o Direito objetivo, concretizado em
importante jusfilósofo pernambucano.2 preceitos obrigatórios, é uma ciência, ou melhor, é a
própria ciência do Direito aplicada. São conceitos cor-
riqueiros, estes; mas, preciso é recordá-los nesta fase
2. Brevíssimo panorama da temática histórica da vida do Direito, quando múltiplos e graves
dos princípios no direito fatores operam no sentido de sustar o curso normal de
seu desenvolvimento e procuram destruir, de ponta
A temática dos princípios tanto é das a ponta, toda a ordem jurídica que caracteriza a civi-
mais importantes como das mais recorrentes lização contemporânea. Diria melhor se dissesse que
necessário se faz restaurar o significado, o alcance e for-
no Direito, dificilmente vemos uma pes- ça dos princípios gerais, ora ameaçados, senão de des-
quisa, doutrina ou mesmo um processo em truição, quando menos de esquecimento. Assinalarei,
de início, na ordem desses fatores, uma circunstância
1
Sobre isso, é interessante que embora os léxicos que assume alta significação: as disciplinas jurídicas,
apresentem hermenêutica e exegese como sinônimos, cedendo à pressão das vicissitudes contemporâneas
alguns estudiosos da Literatura associam à hermenêu- da vida social, dividem-se e subdividem-se em um
tica as interpretações mais fechadas, mais herméticas, número sempre crescente de ramos e sub-ramos, os
por assim dizer, e associam à exegese as interpretações quais, por sua vez, padecendo de gigantismo, tendem
mais livres – se está na obra autoriza a interpretação a se construir em disciplinas autônomas e distintas.
– ao passo que muitos estudiosos do direito pensam E assim assistimos a uma marcha acelerada, muitas
de forma inversa, associam à hermenêutica, as inter- vezes sem compasso nem ritmo, em busca de espe-
pretações mais livres, e associam à exegese técnicas cializações e subespecializações, que poderiam ser
de interpretação mais restritas, talvez uma herança úteis se ordenadas e ligadas aos princípios gerais, sem
da escola da exegese, onde o juiz devia ser apenas la quebra da unidade substancial e conceitual do Direito.
bouche de la loi. No entanto, guiada, apenas, por um objetivismo inex-
2
Ainda sobre a forma como interpretamos os pressivo e intransigente, revestindo, intencionalmente,
textos para este trabalho, se fôssemos pensar em ana- ostensivamente e exclusivamente, um caráter técnico,
logia com os quatro cânones clássicos; dois referidos essa tendência despreza, a par dos postulados ideoló-
ao objeto interpretado – a) totalidade ou coerência do gicos do Direito, até mesmo os elementos intelectuais,
sentido e b) autonomia hermenêutica do objeto – e dois morais e espirituais, que integram a personalidade
referentes ao sujeito que interpreta – c) adequação e d) humana. No tumulto dessas especializações e desses
atualidade –; poderíamos dizer que sobrevalorizamos tecnicismos, o homem, que se dizia ser uma criatura
o cânone da atualidade da compreensão, talvez exa- dotada de corpo e alma, não passa de uma unidade
gerando na reconstrução do objeto interpretado. Na matemática, simples material de construção das novas
Teoria da Literatura, por outro lado, essa perspectiva estruturas, freqüentemente sustentadas pelas colunas
é interessantemente deslocada para o objeto: se está de algarismos que certas estatísticas mais ou menos
o texto autoriza a interpretação. Eis, pois, a mea culpa. científicas fabricam” (RÁO, 2005, p. 43-44).

284 Revista de Informação Legislativa


2.1. A teoria clássica dos princípios lhes conferirá uma grande importância na
ordem jurídica.
Por teoria clássica, fazemos referência às Uma disposição constitucional, por
concepções tradicionais de princípio, ge- outro lado, pode ser elaborada com grande
ralmente em referência às normas e valores especialidade. Uma crítica similar pode ser
que são tomados como verdades fundantes, feita em relação à programaticidade, que se
e como tais, dotadas de elevado grau de torna um critério problemático principal-
fundamentalidade e/ou generalidade. mente se a pensarmos em relação à ideia
Nelson Saldanha (2005, p. 224, grifo do de fim ou objetivo, tanto na medida em que
autor) noticia que a temática referente aos se pretenda definir os fins a alcançar (e.g.
princípios é antiga; “Em grego o corres- igualdade e em que consistiria tal igual-
pondente de princípio seria archè, e alguns dade) como de fins em termos de relação
dos primeiros pensadores – Anaximandro, entre meios e fins (e.g. podem haver regras
talvez o primeiro – meditaram sobre o as- que contêm finalidades, como por exemplo
sunto”. O emprego do vocábulo princípio uma regra presente numa lei municipal que
no meio científico, por sua vez, parece ter estabelece como fins determinadas obras)
sua origem na matemática de Pascal, tendo (NEVES, 2006).
daí se expandido para os demais ramos do No que concerne à associação entre
conhecimento, o que talvez justifique seu princípio e normas de hierarquia elevada,
emprego no Direito, ainda hoje, no sentido se pensarmos apenas em relação ao que se
de verdade primeira, ponto de partida a extrai do Direito positivado, simplesmente
partir do qual um sistema se desenvolve. podemos chegar à conclusão de que todos
Paulo Bonavides (2003) fala em alguns os dispositivos constitucionais são prin-
autores como sendo os precursores em cípios. Quando pensamos em termos de
relação aos princípios jurídicos – mencio- hierarquia, tão somente, temos um critério
na, por exemplo, Vezzio Crisafulli e Jean de utilidade questionável. O paradigma
Boulanger – e remete ao levantamento feito largamente aceito da pirâmide normativa,
por Ricardo Guastini (2009) sobre o que os com a Constituição em seu topo, dispensa
juristas tradicionalmente compreendem a necessidade de todas as normas hierar-
por princípio, a saber, normas que possu- quicamente superiores serem denominadas
íssem uma das seguintes características: (a) princípios.
fossem dotadas de elevado grau de genera- Igualmente questionável definir como
lidade e/ou (b) indeterminação, (c) normas de princípio a norma dirigida aos órgãos de
caráter programático, (d) normas de hierarquia aplicação, porquanto todas as normas
elevada, (e) normas tidas como importantes acabam se destinando a incidir e, nesta
e fundamentais, e (f) normas dirigidas aos perspectiva, prescindem de cumprimento e
órgãos de aplicação (BONAVIDES, 2003, aplicação. Por fim, no que concerne às nor-
p. 257-258). mas tidas como importantes e fundamentais,
Sobre os critérios, podemos fazer algu- temos um critério mais difícil de refutar, até
mas críticas: generalidade e indeterminação, porque se mantém próximo da noção inicial
por exemplo, conduzem à imprecisão e a de princípio enquanto verdade primeira e
uma construção principiológica questio- fundante. De qualquer forma, vimos uma
nável. A título de exemplo, pensemos que multiplicidade de critérios – alguns ques-
um dispositivo de uma lei municipal pode tionáveis – definidores do que se deveria
ser elaborado de forma geral, ou mesmo compreender como princípio, todos de
um ato infralegal, como uma instrução alguma forma ligados à ideia de norma.
normativa, pode ser elaborado com inde- Em termos históricos, as coisas ficariam
terminação, e isso não necessariamente mais ou menos neste pé até o advento do

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 285


neoconstitucionalismo, um movimento de- Mesmo reconhecendo o marco inaugu-
corrente de um contexto histórico específico ral em Dworkin (1977, 2001), é necessário
(a partir do pós-segunda guerra) que pode lembrar que sua concepção não é inteira-
ser compreendido como uma tentativa de mente original. Aqui cabem duas obser-
(re)valorizar a Constituição, favorável à vações: a primeira é que a localização de
constitucionalização de princípios, redefi- antecedentes do modelo dworkiniano de
nindo o seu papel no ordenamento jurídico. princípio vai depender, em muito, da nossa
própria perspectiva interpretativa – esta-
2.2. A teoria neoconstitucionalista mos buscando semelhanças ou diferenças?
dos princípios – e a segunda no sentido de que isso não
significa que Dworkin teria se inspirado
Em termos de marco inicial do neocons-
em tais autores.
titucionalismo é possível remeter a Ronald
De qualquer forma, autores como
Dworkin (1977, 2001) em seu ataque ao po-
Roscoe Pound e Jean Boulanger parecem
sitivismo jurídico capitaneado por Herbert
ter antecipado alguns elementos da noção
Hart, mais especificamente em relação ao
neoconstitucionalista de princípio. Em
argumento dos princípios. Segundo reco-
Pound (1965) temos a crítica à concepção
nhece o próprio Hart (2000, 2009) no post
de Direito composto apenas por regras e a
scriptum incluído em O Conceito de Direito,
elaboração de uma concepção de princípio
a crítica mais conhecida feita por Dworkin
que em parte antecipa a de Dworkin (1977,
(1977, 2001) é justamente a de que o positi-
2001)5. Boulanger é reconhecido por Paulo
vismo hartiano “representa erroneamente
Bonavides (2003 ?) como sendo o precursor
o direito como constituído apenas por nor-
da diferenciação entre princípios e regras6.
mas do tipo ‘tudo ou nada’, e que ignora
uma espécie diferente de padrão jurídico, 5
“É usual descrever o Direito como um agregado
isto é, os princípios” (HART, 2009, p. 334; de leis e regras. Mas, a menos que a palavra regra
BARBERIS, 2003, p. 260); o que coloca a seja usada numa acepção tão lata que nos engane,
questão dos princípios como uma das pe- tal definição, enquadrada na referência a códigos
ou por juristas que têm seus olhos fixos no direito
dras angulares do neoconstitucionalismo.4 de propriedade, fornece uma inadequada imagem
dos múltiplos componentes de um moderno sistema
4
A ascensão do neoconstitucionalismo, em oposi- legal. (…) Com o advento da escrita legal e da teoria
ção ao relativo influxo do positivismo se dá, portanto, jurídica na transição da lei estrita para a eqüidade e o
a partir do ataque declarado de Dworkin (1977, 2001) direito natural, um segundo elemento se desenvolveu
ao positivismo, um ataque que aliás surge com um e tornou-se um fator de contrôle na administração da
título bem sugestivo: Is a Law a System of Rules?, tra- justiça. Em lugar de regras detalhadas, determinando
balho de 1977 que, como bem lembra Antonio Carlos exatamente o que acontecerá em face de uma situação
de Souza Cavalcanti Maia (2002), é a pedra de toque de fato precisamente detalhada, passa a confiar-se em
de Taking Rights Seriously. Vale trazer as palavras do premissas gerais para o raciocínio dedutivo, judicial e
próprio Dworkin (2001, p. 22), quando ele deixa claro jurídico. Êsses princípios legais, como lhes chamamos,
que o alvo de seu ataque é o positivismo hartiano: “I são utilizados para fornecer novas leis, interpretar an-
want to make a general attack on positivism, and I tigas, medir o âmbito e aplicação de regras e normas,
shall use H. L. A. Hart’s version as a target, when a e reconciliá-las quando conflitam ou se sobrepõem”
particular target is needed. My strategy will be orga- (POUND, 1965, p. 62).
nized arround the fact that when lawyers reason or 6
“Antes de Alexy e Dworkin, Boulanger, na
dispute about legal rights and obligations, particularly mesma senda inovadora, onde ingressa como um dos
in those hard cases when our problems with these precursores, posto que atuasse numa epoca em que as
concepts seen most acute, they make use of standards posições doutrinárias de cunho jusprivatista, civilista
that do not function as rules, but operate differently ou romanista – consolidadas pelo antigo Estado libe-
as principles, policies, and other sorts of standards. ral – ainda conservavam considerável parcela de seu
Positivism, I shall argue, is a model of and for a system velho predomínio na Ciência do Direito, já distinguia
of rules, and its central notion of a single fundamental regras e princípios” (BONAVIDES, 2003, p. 266). “A
test for law forces us to miss the important roles of seguir, com propriedade e rigor, acentua que uma re-
these standards that are nor rules”. gra juridica e geral se for estabelecida para um numero

286 Revista de Informação Legislativa


Poderíamos questionar, também, até onde somente das possibilidades fáticas,
é válido o estereótipo de que o Direito em mas também das possibilidades ju-
Hart (2000, 2009) seria composto apenas por rídicas. O âmbito das possibilidades
regras e se ele não teria antecipado alguns jurídicas é determinado pelos princí-
pontos interessantes do neoconstituciona- pios e regras colidentes.
lismo, mas isso talvez seja tema para outros Já as regras são normas que são sem-
trabalhos. pre satisfeitas ou não satisfeitas. Se
Um ponto interessante do ataque de uma regra vale, então, deve se fazer
Dworkin (1977, 2001) ao positivismo é que, exatamente aquilo que ela exige; nem
ao mesmo tempo em que há uma crítica mais, nem menos. Regras contêm,
ao Direito como sistema composto apenas portanto, determinações no âmbito
por regras, há uma preocupação em tentar daquilo que é fática e juridicamente
vinculá-lo a um conceito de norma que seria possível. Isso significa que a distinção
mais amplo – com a finalidade de enfrentar entre regras e princípios é uma distin-
a questão da discricionariedade judicial. ção qualitativa, e não uma distinção
Nessa perspectiva, talvez possamos pensar de grau. Toda norma é ou uma regra
a proposta de Dworkin (1977, 2001), como ou um princípio.”
uma tentativa de superar o paradigma Sem embargo das eventuais divergên-
anterior, mas sem romper totalmente com cias entre Dworkin e Alexy – entre outras,
suas bases, na medida em que acaba per- podemos mencionar apenas en passant que
manecendo um certo apego à norma. Alexy (2008) não se atém à distinção entre
Acreditamos estar claro que no presente princípios e policies, elaborada por Dworkin
trabalho iremos focar apenas a questão (1977, 2001), e a questão da discricionarie-
estrutural dos princípios no neoconstitucio- dade das decisões judiciais não vai ser a
nalismo, e, nessa perspectiva, a concepção mesma na perspectiva dos mandados de oti-
de princípio em Dworkin (1977, 2001), como mização alexianos e na tese da única resposta
norma de abrangência semântica indeter- correta dworkiniana – o presente estudo toma
minada, em oposição à regra como outra como equivalente o caráter estrutural da
espécie normativa, acaba sendo apropriada diferenciação entre regra e princípio dos re-
pela teoria dos direitos fundamentais de outro feridos autores. As regras seriam as normas
estudioso ilustre, o alemão Robert Alexy que teriam uma abrangência semântica bem
(2008, p. 90-91, grifo do original): determinada, e estes as normas indetermina-
“O ponto decisivo para a distinção das semanticamente (DUTRA, 2008, p. 116).
entre regras e princípios é que os prin- Mesmo tendo demorado a chegar ao
cípios são normas que ordenam que Brasil, o modelo neoconstitucionalista de
algo seja realizado na maior medida princípio ganhou larga aceitação, tornou-
possível dentro das possibilidades ju- -se o “modelo da moda” (NEVES, 2006).
rídicas e fáticas existentes. Princípios A concepção neoconstitucionalista não é,
são, por conseguinte, mandamentos contudo, isenta de críticas. Se as regras,
de otimização, que são caracterizados para esse modelo, são normas que pos-
por poderem ser satisfeitos em graus suem abrangência semântica bem determinada,
variados e pelo fato de que a medida aplicáveis com base no tudo ou nada, e os
devida de sua satisfação não depende princípios são indeterminados semanticamen-
te, e portanto ponderáveis (DUTRA, 2008,
indeterminado de atos ou fatos (Ripert e Boulanger), p. 116), como fica a questão da colisão entre
mas sob certo aspecto ‘ela e especial na medida em
que rege tão-somente atos ou fatos, ou seja, e editada
regra e princípio? Hart (2000), em sua répli-
contemplando uma situação jurídica determinada’” ca a Dworkin, já atenta para o fato de que
(BONAVIDES, 2003, p. 267, grifo do autor). “as regras podem entrar em conflito com

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 287


princípios e que um princípio pode, algu- tórico, e aproveitamos a menção ao ponto
mas vezes, vencer uma regra e em outros de vista histórico para fazer referência às
casos ser vencido”, o que, invariavelmente, fases do pensamento saldanhiano, confor-
leva à conclusão de que “as regras não têm me indicadas por Gustavo Just (2009, p. 15):
um caráter de tudo ou nada, porquanto “O elemento mais constante de sua
são susceptíveis de entrar em conflito com vasta obra, e o mais unificador do
os princípios, os quais podem vencê-las” seu pensamento (que se autocensura
(HART, 2000, p. 41-42). de disperso) é exatamente o ponto de
Não bastasse o problema da colisão vista histórico.
entre regras e princípios, apontado por Um ponto de vista que se exerceu,
Hart (2000, 2009), em determinados casos com o perdão da esquematização,
concretos, pode haver a necessidade de se em sucessivas etapas: num primeiro
ponderarem e relativizarem regras, ou, melhor momento, aparece ‘aplicado’, por
dizendo, de relativizá-las a fim de encontrar assim dizer, aos fundamentos do
a melhor solução para o caso concreto, sem, constitucionalismo, isso desde a tese
entretanto, invalidar ou incluir uma cláu- sobre as formas de governo. Num
sula de exceção em qualquer delas. O caso segundo momento, que se sobre-
do curandeiro Roux, narrado por Perelman põe cronologicamente à segunda
(2000, p. 56-58), no qual há “contradição parte do primeiro, o ponto de vista
evidente entre as regras que proíbem a uma histórico se projeta, como método
pessoa não formada em medicina imiscuir- crítico, sobre a tradição, sobretudo
-se na prática da profissão médica e as a recente, da teoria do direito. Em
disposições que obrigam qualquer pessoa a ambos os períodos, a sensibilidade
prestar assistência a um terceiro em perigo, hermenêutica está presente mas não
na medida em que possa fazê-lo sem expor integra as articulações conceituais –
a si própria o perigo”, exemplifica bem isso. e sua presença se deve muito mais
Poderíamos seguir discorrendo sobre à ligação do autor à vasta tradição
o que entendemos serem as incoerências culturalista e historicista do que a
da concepção neoconstitucionalista de uma influência específica da guinada
princípio; o espaço que aqui temos, entre- ontológico-existencial da hermenêu-
tanto, não é o mais adequado. Se há algo tica heideggo-gadameriana: esta
em comum, contudo, entre a concepção deve ter sido recebida, na verdade,
neoconstitucionalista e a tradicional, é a muito mais como uma espécie de
afirmação do caráter normativo dos prin- confirmação de intuições historicistas
cípios. Princípios seriam, portanto, normas. mais antigas. E é, por isso, que ao se
E é precisamente aqui que exsurge a crítica explicitar, num terceiro momento
saldanhiana, defendendo que princípios e do pensamento de Saldanha, a pers-
normas são realidades que não necessaria- pectiva hermenêutica não poderia
mente se confundem. deixar de estar radicalmente associada
ao ponto de vista histórico, e por ele de
certa forma envolvida.”
3. Os princípios na perspectiva
Com o risco que é inerente ao reducio-
hermenêutica de Nelson Saldanha nismo e à classificação, diríamos que é um
O pensamento de Nelson Saldanha pensamento crítico-hermenêutico, pontua-
(1994, 2000, 2005, 2008) – exposto em uma do por um viés historicista – embora talvez
obra vasta, versando sobre temas variados não possa ser chamado de historiográfico.
– é marcado por um elemento que lhe é No que concerne à alusão aos princípios,
constante e unificador, o ponto de vista his- contida na Filosofia do Direito de Saldanha

288 Revista de Informação Legislativa


(2005), é interessante anotar com o jusfi- As palavras, ou ao menos algumas pa-
lósofo pernambucano que a problemática lavras, parecem guardar alguma conexão
dos princípios acaba sendo próxima à da com as formas com que tradicionalmente
hermenêutica: são empregadas. Nessa perspectiva, pode
“Princípios, se falamos em um senti- ser interessante repensar o termo regra, ora
do ‘amplo’ e implícito, encontram-se empregado como sinônimo de norma, ora
em todas as filosofias, sobretudo no como espécie normativa – e aqui tornamos a
sentido de ‘pontos de partida’ ou de aludir aos princípios – o que nos remete à
intuições fundamentais, e de maneira análise que o próprio Saldanha (1999) fez
especial nos pensadores posteriores da convivência dos termos em questão:
a Kant. “Põe-se contudo o problema dos
No que concerne ao direito, a questão limites da convivência entre os ter-
dos princípios veio ampliando-se nos mos lei, norma e regra. Às vezes, e
decênios mais recentes. Em parte com frequência, diz-se que a norma
permanece algo da idéia tradicional, é o gênero e a regra a espécie; outras
que via nos princípios pontos de vezes diz-se o inverso, e esta posição
referência que informam a ordem nos parece preferível. O termo regra,
jurídica e servem de base às normas; do latim regula, alude à relação de
ou que podem ser nelas reconheci- algo com um padrão (ou um ‘câno-
dos ou ‘extraídos’ delas através de ne’), mesmo sem conotações éticas
um trabalho exegético. O conceito nem ‘normativas’. O ‘regular’ pode
de standard, usado por determina- aludir ao mediano, ao ‘comum’, bem
dos franceses, se acha próximo ao como ao que possui regularidade.
primeiro caso. Recentemente certos O ‘normal’, também (opondo-se a
movimentos têm procurado rechaçar anormal); mas o emprego de norma
a idéia tradicional, buscando subs- e de regra veio assumindo conotações
tituí-la por formulações polêmicas mais complexas.
ou concepções insólitas, fundindo a ‘Regras do método’ talvez tenha me-
noção de princípios com a de norma nos força obrigante do que ‘normas
ou entendendo que princípios e normas do método’: o uso do termo règle
seriam ‘espécies’ do gênero regra” pelos franceses que trabalharam em
(SALDANHA, 2005, p. 224-226, grifo torno da constituição de 1875 tinha
do autor). porém uma conotação clássica, in-
Cabe aqui um esclarecimento, a fim de serida na tradição gaulesa. Após
contextualizar a frase final do excerto trans- o fim da belle époque, muitas coisas
crito. É que atualmente a tendência parece mudaram, inclusive com o advento
ser entender o princípio e a regra como sendo do neopositivismo, que foi uma das
espécies do gênero norma. Se por um lado bases do positivismo kelsiano; e com
bem havemos de convir que as palavras o sociologismo, com a axiologia e os
não podem ter outros significados além tridimensionalismos” (SALDANHA,
daqueles que lhes são dados pelos usos 1999, p. 209-210, grifo do autor).
e convenções (CARRIÓ, 2001), por outro, E permaneceram mudando, principal-
tais significados podem ser depreendidos mente com o advento do neoconstitucio-
– além do contexto em que as palavras se nalismo, sobretudo com o debate dos prin-
encontram, evidentemente – da análise cípios enquanto normas de abrangência
de sua história, como se as palavras pos- semântica ampla, abrindo o Direito à moral,
suíssem uma certa memória, quase numa uma abertura que, contudo, não consegue
perspectiva habwachiana. se desvencilhar do texto legal e de certos

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 289


fetichismos matematizantes quando da dizer, que parece apontar para uma
ponderação de princípios. suprapositividade apreensível pela
Necessário anotar que Saldanha (2005), visão hermenêutica. Princípios não
ao aceitar a construção hermenêutica dos são valores, se bem contenham ob-
princípios a partir do texto da norma, não viamente um conteúdo axiológico;
é exatamente contra a positivação de prin- os valores, por outro lado, tendem a
cípios, mas entende que princípio e norma traduzir-se em princípios. Realmen-
positivada são coisas distintas; “os princí- te os princípios (repita-se), não são
pios da razão, expressados por Leibniz no normas, embora sua presença dentro
século XVII, não eram ‘regras’; nem as regu- da experiência jurídica conviva com
lae de Descartes, nem as regras-do-método a das normas, que de certo modo se
de Durkheim eram ‘normas’ no sentido de ‘fundam’ sobre eles” (SALDANHA,
um artigo do Código civil” (SALDANHA, 2005, p. 226-227).
2005, p. 227, grifo do autor). Os princípios desempenham um papel
Partindo da clássica obra de Josef Esser, importantíssimo na perspectiva hermenêutica
Nelson Saldanha (1994, 2005, 2008) cons- do direito de Nelson Saldanha (2008), na
trói uma concepção original de princípio medida em que são hermeneuticamente
– dentro de um contexto original maior extraídos das normas e, paralelamente,
que é a sua compreensão da relação entre informam a sua interpretação. Sobre esse
hermenêutica e ordem7 – o que acaba trazendo segundo aspecto, aliás, oportunas são as
possibilidades interessantes, dentro da sua palavras do autor extraídas da obra intitu-
concepção filosófica original do Direito, lada Ordem e Hermenêutica:
compreendido como composto de ordem “Toda interpretação, se se trata de
e hermenêutica. estruturas sociais e de sua atuação,
Em apertada síntese, embora entenda tem a ver com princípios. Mas é pre-
que normas e princípios não se confun- ciso que estes princípios se articulem
dem, não os entende como antagônicos, os dentro de uma ordem, e estejam nela
princípios podem ser extraídos das normas como significações, para que o traba-
positivadas (que neles, de certa forma, se lho interpretativo seja requerido com
arrimam). O que fica claro é que os princí- o fim de ‘desentranhar’ significações
pios não se resumem e não se reduzem ao texto e de ‘remontar’ aos princípios” (SAL-
positivo, se a norma na qual se encontra posi- DANHA, 2008, p. 257).
tivado o princípio porventura deixar de existir, Os princípios, conforme compreendidos
este segue existindo. Princípios usualmente na referida perspectiva, desempenham, por-
consistem na tradução de valores vigentes tanto, um papel fundamental na construção
e podem ser decantados das normas, nas de qualquer conhecimento e no próprio
palavras do autor: estabelecimento de uma ordem, porquanto
“A alusão a princípios diz respeito, tal estabelecimento é em si, em grande par-
na terminologia jurídica, a algo que te, uma construção hermenêutica. Segundo
se acha entre o plano dos valores e Ortega y Gasset (apud SALDANHA, 2005, p.
o das normas positivas. Algo, vale 224), todo conhecimento sempre será a “con-
templação de algo através de um princípio”.
7
Ordem e hermenêutica se condicionam e relacio- Ainda é Nelson Saldanha (2005) quem
nam mutuamente, a interpretação remete à ordem mas esclarece, em um excerto longo, mas que
esta só se apresenta diante de uma interpretação, algo merece ser integralmente transcrito, por
à primeira vista paradoxal, mas que filosoficamente
é pleno de sentido, sobre o tema, convém conferir os
possibilitar uma adequada aproximação
trabalhos do próprio Saldanha (1994, 2005 e 2008) e do que realmente deveria se compreender
de Gustavo Just (2007 e 2009). por princípio:

290 Revista de Informação Legislativa


“Diremos, pois, que, enquanto os menor dos mesmos, o que parece
valores são entidades metafísicas, e desnecessário. Todo princípio é geral
as normas um dado positivo (do di- (como todo valor é ‘fundante’): não
reito positivo), os princípios são uma há um princípio que se esgote no
construção hermenêutica. Os ‘prin- âmbito de determinada pessoa ou
cípios’, mencionados por Leibniz e situação.
readmitidos ao filosofar no tempo O direito ‘positivo’, como conjunto de
de Hegel e de Schelling, aparecem fontes (os princípios não são fontes,
na experiência jurídica como uma ao menos neste sentido) se apresen-
coisa ambígua, com algo de citação ta sempre como uma variedade de
anônima e algo de preceito ético; sua níveis e de planos positivos. Quanto
atuação se achará no ponto em que o ao argumento, que alguns esgrimem,
marco teórico se acerca do trabalho de que o princípio é a norma quando
prático. ‘positivado’, a própria frase já indica
Temos com isso um esquema que que não: por que positivar, ou seja
muitos acharão pouco próximo a transformar em norma, algo que já é
certas novidades doutrinárias. [Sal- norma? E mais: se tal norma, na qual
danha refere-se a Dworkin, o que se acha positivado o princípio, deixa
fica consignado em nota de rodapé] de existir, por desuso ou ab-rogação,
Há cem anos surgiram novidades o princípio, como princípio, segue
doutrinárias das quais hoje ninguém existindo” (SALDANHA, 2005, p.
mais fala. O mérito dos conceitos 228-229, grifo do autor).
pouco tem a ver com o fato de se- Do exposto, convém extrair e reafirmar
rem ou não ‘novidades’, embora a que o jusfilósofo pernambucano não parece
sua situação histórica seja útil para ser exatamente contra a sua positivação,
compreendê-los. mas deixa claro que os princípios não se
Destarte mencionamos os valores, as resumem e não se reduzem ao texto posi-
normas e os princípios com alusão a tivo, se a norma na qual se encontra positivado
três níveis (ou planos) concernentes o princípio porventura deixar de existir, o prin-
ao referencial metafísico, ao direito cípio segue existindo. A esse respeito, apenas
positivo e à hermenêutica: os princí- a título de exemplo dentro da experiência
pios, sempre reelaborados pela her- jurídica brasileira, temos notícia de pelo
menêutica, são uma das passagens menos um caso8, referente ao princípio da
através das quais ocorre a ligação en- capacidade contributiva. Parece convenien-
tre o direito e a ética. Certamente que te citá-lo já que se trata de um dos ramos
os princípios se vinculam às normas: mais pretensamente formais do Direito
eles delineiam uma parte da conexão brasileiro.
entre valores e normas (a relação en- Houve no passado uma reforma consti-
tre norma e princípio é um correlato tucional que aboliu a disposição expressa
da relação entre ordem e hermenêu- da capacidade contributiva, o princípio,
tica). O princípio não participa da contudo, continuou existindo e sendo va-
‘positividade’ da norma estatal, que 8
Dada a brevidade deste ensaio, não convém elen-
integra o sistema de fontes e portanto car mais exemplos, mas, um estudo de determinados
perfaz o ‘ordenamento’. períodos da nossa História, por exemplo a ditadura
Certos autores vêm fazendo uma dis- militar, pode facilmente trazer exemplos de vários
“princípios” cujas normas foram revogadas, mas
tinção entre princípios ‘gerais’ e prin-
que permaneceram presentes nos debates jurídicos,
cípios jurídicos tout court, buscando eventualmente sendo até reconhecidos no âmbito do
aludir com isto ao alcance maior ou judiciário.

Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012 291


lorizado, passando a ser extraído de outras Em suma, os princípios – hermeneutica-
normas (BALEEIRO, 1977, p. 307). Outros mente depreendidos, diretamente a partir
exemplos certamente existem e poderiam dos valores, ou da decantação destes últi-
ser pinçados da experiência jurídica bra- mos a partir das normas vigentes – são uma
sileira, por hora, aproveitamos esse para, das passagens possibilitadoras da ligação
em analogia ao entendimento de Nelson entre direito e ética; sendo sempre reelabo-
Saldanha, dizer que seria possível pensar rados pela hermenêutica, são importantes
que o referido princípio da capacidade instrumentos para a própria interpretação
contributiva, intermediário entre o plano das normas presentes no ordenamento,
dos valores de justiça fiscal e o plano das porquanto traçam contornos da conexão
normas escritas, permaneceu à revogação entre valores e normas.
do texto que o positivava.
Nessa perspectiva, quer parecer que o 4. Considerações finais
princípio, na supramencionada perspectiva
hermenêutica, embora mantenha alguma Em linhas anteriores, vimos em breve
analogia, de certa forma, tanto da noção síntese como a reflexão sobre os princí-
tradicional de princípio (no que concerne pios, antiga e importante, se desenrolou;
a fundamentalidade, um standard), quanto ao os juristas, possivelmente inspirados pela
paradigma neoconstitucionalista (na medida matemática, introduziram o conceito de
em que normas de grande abrangência princípio no Direito. Vimos também como
semântica não deixam de ser um critério os princípios foram associados à ideia de
de interpretação), não se confunde com norma e como sua normatividade é consi-
qualquer das duas. Assume, muito mais, derada, por alguns, como uma vantagem.
a característica de uma estrutura interpre- O entendimento que se pode chamar
tativa intermediária entre valor e norma. de tradicional compreende como sendo
Aqui parece haver alguma aproximação princípios as normas dotadas de elevado
entre a concepção de princípio em Saldanha grau de fundamentalidade e generalidade,
e o modelo neoconstitucionalista – e cabe o que viria a ser revisto a partir do neocons-
observar que a possibilidade de diálogo titucionalismo desde aquele que pode ser
com Dworkin é maior que com Alexy considerado seu ponto inaugural: as críticas
(2008) – sobretudo quando lembramos do de Dworkin (1997, 2001) ao positivismo
primeiro caso concreto que Dworkin (2001) de Hart (2000, 2009), sendo que, entre tais
traz pra apresentar seu modelo, o celebre críticas, a mais conhecida é justamente a
Riggs v. Palmer. No caso em questão, um suposta incapacidade do positivismo har-
tribunal de New York se baseou no standard tiano de compreender um direito que não
não positivado nemo turpitudinem suam fosse composto apenas por regras. A partir
allegare potest para negar a herança a um de Dworkin (1977, 2001), temos a biparti-
herdeiro que havia matado o ascendente ção da norma em duas espécies: princípio
intencionado a recebê-la.9 e regra, de acordo com sua abrangência
semântica. Tal bipartição, que é um dos
9
“In 1889 a New York court, in the famous case of pontos-chave do neoconstitucionalismo
Riggs v. Palmer, had to decide whether an heir named
in the will of his grandfather could inherit under that der’. But the court continued to note that ‘all laws as
will, even though he had murdered his grandfather well as all contracts may be controlled in their opera-
to do so. The court began its reasoning with this ad- tion and effect by general, fundamental maxims of the
mission: ‘It is quite true that statutes regulating the common law. No one shall be permitted to profit by
making, proof and effect of wills, and the devolution his own fraud, or to take advantage of his own wrong,
of property, if literally construed, and if their force and or to found any claim upon his own iniquity, or to
effect can in no way and under no circumstances be acquire property by his own crime’. The murderer did
controlled or modified, give this property to the mur- not receive his inheritance” (DWORKIN, 2001, p. 23).

292 Revista de Informação Legislativa


e angaria vários seguidores, entretanto, DUTRA, Delamar Volpato. A filosofia do direito dos
não é absoluta, encerrando em si mesma filósofos e a filosofia do direito dos juristas. Recife: Uni-
versidade Católica de Pernambuco, 2009.
várias contradições decorrentes da colisão
entre regra e princípio e possibilidade de ______. Manual de Filosofia do Direito. Caxias do Sul:
EDUCS, 2008.
ponderação de regras.
A partir das insuficiências do modelo DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambrid-
tradicional e do modelo neoconstituciona- ge: Harward University, 1977.
lista, procuramos uma nova perspectiva ______. ______. 18. ed. Cambridge: Harvard Univer-
na Filosofia do Direito de Nelson Saldanha sity, 2001.
(2005), autor que, embora não se posicione GUASTINI, Riccardo. Os princípios constitucionais
contrariamente à positivação, propõe a como fonte de perplexidade. Interesse Público, Belo Ho-
desidentificação entre princípio e norma, rizonte, v. 11, n. 55, maio 2009. Disponível em: <http://
bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/35952>. Acesso
situando os princípios num plano interme-
em: 29 maio 2011.
diário entre valor e norma. Essa desidenti-
ficação parece coerente na medida em que HAAGE, Jaap. A theory of legal reasoning and a logic
to match. In. PRAKKEN, Henry; SARTOR, Giovanni.
a revogação de uma norma que contenha
Logical models of legal argumentation. Dordrecht: Kluwer
um determinado princípio não faz necessa- Academic, 1997.
riamente com que o princípio em questão
HABA, Enrique. Precomprensiones, racionalidad y
deixe de existir. Sobre esse aspecto, vimos métodos, en las resoluciones judiciales. Doxa, Alicante,
um breve exemplo extraído do direito tri- n. 22, p. 49-78, 1999.
butário brasileiro.
______. Rehabilitación del no-saber en la actual Teoría
Certamente não esperamos, nesse breve del Derecho: el Bluff Dworkin. Doxa, Alicante, n. 24,
ensaio, ter apresentado respostas definiti- p. 165-201, 2001.
vas no que concerne à discussão sobre os
HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de Direito.
princípios ou uma compreensão adequada Tradução de Antonio de Oliveira Sette-Câmara. São
do vasto e rico pensamento saldanhiano; Paulo: Martins Fontes, 2009.
aliás, não esperamos ter apresentado res- ______. Post scríptum al concepto del derecho. Tradução
posta alguma. Nossa pretensão vai na via de Rolando Tamayo y Salmorán. México: UNAM,
inversa, de suscitar questões e reflexões. 2000. (Serie Estudios Jurédicos).
Nessa perspectiva acreditamos ter deixado JUST, Gustavo. Nelson Saldanha e a idéia de uma
vários motes para outros trabalhos. teoria hermenêutica do direito. Anuário dos cursos de
pós-graduação em Direito (UFPE), Recife, v. 17, n. 17,
p. 117-138, 2007.
Referências ______. O direito como ordem e hermenêutica: a filoso-
fia do direito de Nelson Saldanha. Revista de Informação
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Legislativa, Brasília, v. 46, n. 181, jan./mar. 2009.
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BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder siderações acerca da tese da autoctonia do discurso
de tributar. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977. jusfilosófico: considerações introdutórias. In: STRU-
CHINER, Noel. Direito e linguagem: uma análise da
BARBERIS, Mauro. Neoconstitucionalismo, demo-
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Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito
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NEVES, Marcelo. Palestra de Marcelo Neves sobre a in-
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CARRIÓ, Genaro. Sobre los límites del lenguaje norma- e regras. In: CONGRESSO NACIONAL DE ESTUDOS
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de Janeiro: Zahar, 1965. duação em Direito (UFPE), Recife, n. 10, p. 203-216, 2000.
RÁO, Vicente. O Direito e a vida dos Direitos. 6. ed. São SILVA, Luís Virgílio Afonso da. Princípios e regras:
Paulo: Revista dos Tribunais, 2005 mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista
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Horizonte: Del Rey, 1994.
______. Filosofia do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Re-
novar, 2005.

294 Revista de Informação Legislativa


Orientações Editoriais

A Revista de Informação Legislativa divulga trabalhos elaborados pela Subsecretaria


de Edições Técnicas e artigos de colaboração. Os trabalhos devem reportar-se a assuntos
da área do direito e áreas afins – de interesse dos temas em debate no Congresso Na-
cional – e de cunho histórico que se relacionem com o Poder Legislativo. Somente serão
publicadas colaborações inéditas, que serão selecionadas por conselho.
As colaborações deverão ser encaminhadas ao Editor por e-mail (livros@senado.gov.
br) com indicação do endereço do autor para eventual envio de exemplar impresso. Da
mensagem eletrônica deverá constar autorização para publicação sem ônus na Revista
e posterior visualização na Internet, bem como declaração de ineditismo do artigo.
Referida mensagem deverá ainda ser seguida de assinatura digital. Não havendo esse
recurso, pedimos o encaminhamento em separado por fax ou pelos Correios da carta de
autorização/declaração de ineditismo devidamente assinada.
O texto do artigo a ser publicado deve ser formatado preferencialmente para papel A4,
em corpo 12 e espaçamento entre linhas de 1,5 e gravado no formato Word for Windows.
Dos artigos deverão constar resumo curricular e local de trabalho do colaborador. Após
o título e nome do autor, deve ser apresentado um sumário da matéria. Os desenhos,
gráficos, ilustrações e tabelas – se estritamente indispensáveis à clareza do texto – deverão
ser encaminhados em arquivos separados (um para cada desenho, gráfico ou tabela),
com indicação do ponto em que devem ser inseridos no texto.
Ressaltamos que o artigo enviado para publicação ficará disponível para avaliação
durante seis meses. Findo esse prazo e ainda havendo interesse das Edições Técnicas
em publicá-lo, entraremos em contato para confirmar o ineditismo e a atualidade do
conteúdo. Não havendo mais interesse do Editor, o artigo será desconsiderado sem
comunicação prévia.
Com o objetivo de melhorar a legibilidade dos artigos e dinamizar o processo de
pesquisa dos seus leitores, recomenda-se a adoção de alguns procedimentos básicos no
que diz respeito às citações e referências bibliográficas:
a) Não devem ser incluídas as referências bibliográficas completas em rodapé, exceto
em casos de citação de citação, em que somente o autor citado figura em nota de
rodapé e o autor que o citou, em lista de referências;
b) a referência completa deverá constar em lista, no final do artigo, organizada em
ordem alfabética e alinhada à esquerda;
c) as notas de rodapé explicativas ou informativas são chamadas no texto por números altos
ou alceados, podendo inclusive ser feita citação bibliográfica relativa ao seu conteúdo;
d) a fonte da qual foi extraída a citação deverá constar no próprio corpo do texto
conforme os exemplos que se seguem:

Exemplos de citação direta:


Segundo Falcão (1984, p. 59), “não basta a existência de demanda estudantil para
que as faculdades continuem a produzir bacharéis”.
“Não basta a existência de demanda estudantil para que as faculdades continuem
a produzir bacharéis” (FALCÃO, 1984, p. 59).
Observação: A citação direta incluída em texto e/ou em nota de rodapé aparece
entre aspas.

Exemplos de citação indireta:


Para que a produção de bacharéis continue, vários fatores devem ser observados
além da demanda estudantil (Cf. FALCÃO, 1984, p. 59).
Para que a produção de bacharéis continue, vários fatores devem ser observados
além da demanda estudantil (FALCÃO, 1984, p. 59).
Observação: A falta de aspas e/ou o termo Cf. (confira, compare) evidenciam
que não se trata de uma transcrição e sim da utilização da fonte citada a fim de
respaldar a idéia do autor do artigo.

Monografias (livros, folhetos, teses, enciclopédias, etc.) deverão conter: sobrenome


do autor, prenome(s), título da obra, subtítulo (se houver), local de publicação, editor(a),
data de publicação.

Exemplo de monografia no todo:


MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 1974.

Exemplo de parte de monografia:


ROMANO, G. Imagens da juventude na era moderna. In: LEVI, G.; SCHMIT, J.
(Org.). História dos jovens: a época contemporânea. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996. p. 7-16.

Para artigos de periódicos, as informações essenciais são: sobrenome do autor,


prenome(s), título do artigo, subtítulo (se houver), título da revista, local de publicação,
indicação de volume, ano, número, página inicial e final, período e data de publicação.

Exemplo de artigos de periódicos:


TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Lopes da Costa e o processo civil brasileiro. Re-
vista de Informação Legislativa, Brasília, ano 37, n. 148, p. 97-111, out./dez. 2000.

Para artigos de jornais: sobrenome do autor, prenome(s), título do artigo, subtítulo


(se houver), título do jornal, local de publicação, data de publicação, seção ou caderno
do jornal e paginação.

Exemplo de artigos de jornais:


MOURA, Ana Lúcia; FEITOZA, Valéria. Escola pública: a tristeza de quem fica.
Correio Braziliense, Brasília, 6 mar. 2001. Tema do Dia, p. 6-7.

Para referências em meio eletrônico: sobrenome do autor ou entidade, prenome(s),


título, subtítulo (se houver), também são essenciais as informações sobre o endereço
eletrônico, apresentado entre os sinais <>, precedido da expressão “Disponível em:” e
data de acesso ao documento precedido da expressão “Acesso em:”.

Exemplo de referências em meio eletrônico:


CORREIO Braziliense. Disponível em: <http://www.correioweb.com.br>.
Acesso em: 5 jul. 2003.

A cada artigo publicado serão fornecidas 50 separatas e uma assinatura anual da


Revista. Artigos não publicados não serão devolvidos, salvo expressa solicitação.

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