Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
E A EXPERIÊNCIA
Ensaios sobre tecnologia e modernidade
ANDREW FEENBERG
Prefácio
Brian Wayne
Posfácio
Michel Callon
2019
Inovatec (Portugal)
com
Indíce
Prólogo 3
Brian Wayne
Prefácio 13
liii
liv Cristiano Cruz
apenas para se apropriar dela, mas quem sabe, mesmo para se envolver de
algum modo no processo de conformação democrática da realidade social e
técnica (ou sociotécnica) em que nos é dado viver.
Parece-nos, com efeito, que a intenção central de Feenberg não é senão
a de, munindo-nos de uma afiada reflexão crítica sobre a técnica, capacitar-
-nos e aliciar-nos para participar ativamente no processo político da contí-
nua (re)construção da tecnologia que criamos (ou que nos é proporcionada).
Processo que não nos opõe necessariamente à técnica em si, mas que nos
revela que ela não é um destino, mas sim – e em boa medida – o resultado
da configuração de forças dos distintos atores sociais que se conseguem fa-
zer ouvir nas múltiplas fases do seu projeto e implementação.
Seja como for e adiantando algo que se desenvolverá melhor na segunda
parte desta introdução, é impossível – ou será inevitavelmente condenado
ao insucesso, no entendimento que Feenberg sustenta sobre a tecnologia –,
lutar-se por qualquer transformação valorativa da sociedade (e.g., empo-
deramento popular, equidade, justiça social etc.), sem que se lute, também
ou prioritariamente , pelo desenvolvimento das tecnologias (ou sistemas
técnicos ) capazes de sustentar tais transformações (ou, de uma maneira
mais apropriada, tais valores).
Vida e obra
Andrew Lewis Feenberg nasceu em Nova York, nos Estados Unidos,
em 1943. Filho de um proeminente físico teórico, esteve desde muito cedo
em contato com a ciência, com cientistas e com os aparelhos técnicos por
Andrew Feenberg e a teoria crítica da tecnologia lv
eles utilizados. Não obstante, os seus interesses nas áreas das humani-
dades (marcadamente em filosofia e na literatura) levaram-no a trilhar a
formação em filosofia. Iniciou-a na Universidade John Hopkins, na qual
se graduou (1965), seguindo, então, para a Universidade da Califórnia,
em San Diego, onde obteve o título de mestre (1967). Os anos seguintes,
passou -os na França (na Universidade de Paris ), onde a sua filiação ao
pensamento de esquerda podia encontrar terrenos mais férteis para se de
- senvolver , fora do macartismo dos Estados Unidos nessa época. Estava
lá , assim , em 1968 , o que lhe deu a oportunidade não apenas de
testemunhar os eventos do Maio de 68, como de também tomar parte
ativa neles. Segundo seu próprio testemunho, isso marcaria para sempre
a sua vida – e a sua compreensão do fenômeno técnico e do
imbricamento entre tecnologia e sociedade.
De volta aos Estados Unidos, Feenberg retornou a San Diego e à Uni-
versidade da Califórnia para se doutorar sob orientação de Herbert Mar-
cuse, um dos grandes nomes da Nova Esquerda de então. Obtém o título
de doutor em 1973, aos 30 anos.
Profissionalmente, para além das inúmeras intervenções como confe-
rencista e professor visitante em instituições de prestígio em diferentes
países, Feenberg trabalhou como professor na Universidade Estatal de
San Diego, de 1969 a 2003. Mudou-se então para Vancouver, Canadá, as-
sumindo a posição de professor na Universidade Simon Fraser (posição
que ocupa desde então ) e a cátedra em filosofia da tecnologia (“Canada
Research Chair”).
Entre as muitas publicações de Feenberg, podem-se citar os seguintes
livros: Lukács, Marx and the Sources of Critical Theory (Rowman and
Littlefield, 1981; Oxford University Press, 1986), Critical Theory of Tech-
nology (Oxford University Press, 1991), Alternative Modernity (Universi-
ty of California Press, 1995), Questioning Technology (Routledge, 1999),
Heidegger and Marcuse: The Catastrophe and Redemption of History
(Routledge, 2005), Between Reason and Experience: Essays in Techno-
logy and Modernity (MIT Press, 2010), The Philosophy of Praxis: Marx,
Lukács and the Frankfurt School (Verso Press, 2014) e ainda o seu livro
mais recente, Technosystem: The Social Life of Reason (Harvard Univer-
sity Press, 2017).
lvi Cristiano Cruz
1 Cf. https://www.sfu.ca/~andrewf/translations.html.
Andrew Feenberg e a teoria crítica da tecnologia lvii
6 2002 [1964]
14 Na verdade , Feenberg sustenta em diversos lugares , como em 2019 (p. 247 ), que a ob -
jetificação se aplica , no nível da produção técnica , também ao trabalhador . Com efeito ,
alega ele, no trabalho o indivíduo deve atuar desligado de todos os seus outros espaços de
pertença e vinculação social (que é, como se verá , a descontextualização ) e, além disso ,
apenas segundo a sua condição , por assim dizer , trabalhadora , desconsiderando os as-
pectos religiosos , políticos e outros (o que seria reducionismo ). Contudo , de uma parte ,
nessas análises não fica muito claro se tal coisa estaria no contexto da produção técnica ou
antes no da gestão burocrática (no caso , a gestão do trabalho ). De outra parte , ademais, ele
deixa de explicar – e será complicado de imaginar – no que consistiriam os complemen -
tares desses dois elementos da instrumentalização primária , ou seja, o que viriam a ser,
respectivamente, a sistematização e a mediação desse trabalhador reduzido, nos termos de
Heidegger , a “reserva à disposição ”. Por conta disso, não incorporamos o ser humano nos
dois primeiros pares que apresentaremos.
19 (Idem, p. 300)
Racionalidade sociotécnica
Apresentada nesses termos, a teoria da dupla instrumentalização per-
mite a Feenberg dar um passo em relação à teoria crítica. Tal passo pro-
cura mostrar que a solução para os problemas trazidos pela modernidade,
e identificados com o que se chamou de racionalidade instrumental, não
pressupõe a eliminação ou a delimitação da técnica, a partir de fora, como
pode – e deve! – ser também dado a partir da técnica e de modo interno
a ela própria. Esse seria o caso porque, por um lado, a racionalidade que
preside ao desenvolvimento técnico não é puramente instrumental, como
seríamos levados a crer se reduzíssemos tal processo apenas à instrumen-
talização primária, mas, dado que há que se considerar também a instru-
mentalização secundária, envolve e pressupõe valores sociais. Além disso,
por outro lado, como a técnica traduz e estabiliza os valores sociais que
conseguiram prevalecer no momento do seu projeto (unidade ou realidade
sociotécnica), se tentamos transformar a sociedade sem fazer o mesmo
com respeito ao substrato técnico que a conforma, estaremos condenados
ao insucesso.
Ou seja, a técnica é regida por uma racionalidade sociotécnica que,
como apresentado na teoria da dupla instrumentalização, procura resolver
desafios técnicos que definimos (ou que encontramos) de acordo com os
princípios instrumentais da descontextualização, da redução e do contro-
lxviii Cristiano Cruz
lo, mas que necessita, para tanto, de condições fronteira providas pela cul-
tura – através de significados, limites aceitáveis e múltiplos valores sociais
contingentes.
A tradição crítica, diante da qual a racionalidade sociotécnica teria a
pretensão de representar um passo adiante, tem suas raízes em Weber.
Para este, a racionalidade manifesta-se segundo duas formas autónomas,
a partir da modernidade: a formal – aquela que busca os meios mais efi-
cientes para se alcançar determinado fim assumido – e a substantiva –
que analisa a correção ou adequação dos fins que assumimos28. Para além
disso, o processo de racionalização por que passará o mundo a partir daí
vai-nos conduzir cada vez mais à convicção de que tudo é, ou poderá vir
a ser, passível de ser conhecido (pela nossa ciência) e controlado (pela
nossa técnica), libertando-nos do império das forças misteriosas e impre-
visíveis que moviam a realidade dos grupos primitivos29. É isso que nos
conduzirá à intelectualização, isto é, à racionalização da vida e do mundo
como uma realidade desencantada30, na qual não existem mais interditos
a manipular, ou para nos apropriarmos de tudo o que existe, de acordo
exclusivamente com a utilidade que isso possa ter para a otimização ou
racionalização de toda a nossa vida31. Trata-se, noutros termos, do pro-
gressivo império da racionalidade formal, isto é, da eficiência e do
controle assumidos como princípios não negociáveis e válidos por si
mesmos32.
Com isso, as múltiplas esferas da vida – economia, política, ciência
etc. – que se vão diferenciando e autonomizando socialmente, passam
a operar segundo materializações próprias desses princípios, imunes a
quaisquer controles substantivos33 (em movimento que significará a cisão
da unidade clássica entre o bom, belo e verdadeiro, e que nos conduzirá a
distintas encarnações da separação entre fato e valor ). A modernidade ,
assim, acaba transformando “relações sociais e instituições em objetos de
28 Cf. Habermas, 1984, p. 170-1
troca e gestão”34. Chega-se, por esse meio, à “gaiola de ferro” de uma gestão
burocrática sempre mais total e imobilizadora da ação política (ou imune
a ela, porque exercida de forma tecnocrática), ou cerceadora da liberdade
individual (ou seja, não sensível à contingência representada pela singula-
ridade de cada indivíduo). E isso, que é exatamente o oposto da liberdade
prometida ou pretendida pelo iluminismo, seria uma realidade inapelável
no mundo regido pela eficiência e pelo controle formal, ou seja, pela racio
- nalização e pela otimização tomadas como fins por si mesmos35, 36.
De Horkheimer e Adorno a Habermas, passando por Marcuse, perma-
necerá esse diagnóstico de que a modernidade nos conduziu à perda pro-
gressiva do poder da ação social transformadora, por estar fundamentada
numa forma específica de racionalidade – a racionalidade formal, como
lhe chama Weber, ou racionalidade instrumental/ tecnológica, como lhe
chamará a Escola de Frankfurt – que se ocupa unicamente com os meios
– mais precisos (controle ) e mais eficientes – sem se permitir qualquer
controle ou conformação substantiva.
Para os autores da Dialética do Iluminismo, a causa estaria na pro-
gressiva restrição da racionalidade teórica, em cada novo passo que o
conhecimento dava no Ocidente, na procura por garantir a segurança e
por nos libertar das forças e fantasias que a nossa imaginação supunha
existirem37. Porém, o esclarecimento acaba, com isso, por nos interditar
a possibilidade de conceptualizar, isto é, de transcender dialeticamente
aquilo que é imediato e cientificamente enunciável (aquilo que o positi-
vismo afirmava ser o único conhecimento possível de construção) e aca-
bamos por nos conformar a um conhecimento – e a uma prática – apenas
instrumentais do/no mundo38. Ou seja, como paga por esse processo, ve-
35 Trata-se aqui da perspectiva da qual não nos afastamos hoje em dia, com o ordenamento
tecnocrático da vida social, pela qual ações que vão em direção distinta, por exemplo,
daquelas ditadas pelos grandes atores econômicos (i.e., FMI, Banco Mundial, OMC etc.)
são reputadas como irracionais ou ideológicas. Dos governos nacionais não se espera,
nesse contexto, outra coisa senão a concretização dessas diretivas. Com isso, a “gaiola de
ferro” do mundo globalizado torna-se, também ela, globalizada.
36 Cf. Weber, 1978, p. 979-80; Habermas, 1984, p. 247-51; Feenberg, 2019, p.32-3
55 [compliant trust]
56 Idem, p. 33
Andrew Feenberg e a teoria crítica da tecnologia lxxiii
58 Cf. nota 2.
Em síntese, então,
Democratização da tecnologia
Para Feenberg, existem essencialmente três modos de incidência so-
cial ou democratizante sobre a técnica62. Ela pode:
66 Cf. http://recode.net/2015/04/06/where-apple-products-are-born-a-rare-glimpse-in-
side- foxconns-factory-gates/
70 1999, p. 112-4
Andrew Feenberg e a teoria crítica da tecnologia lxxvii
71 Cf.Simondon,2008[1965-6],p.171-3;Barthélémy,2014,p.91
Referências Bibliográficas
___________. A Critical Theory of Technology . In: FELT, U.; FOUCHÉ , R.; MIL-
LER, C. & SMITH- DOERR, L. (Ed.). Handbook of Science and Technology Stu
- dies. MIT Press, 2017a. p. 635-663.
dade. Trad. E. Beira & C. Cruz. Vila Nova de Gaia: Inovatec, 2019
HOVEN, Jeroen van den; VERMAAS, Pieter & POEL, Ibo van de. In: HOVEN, Jeroen
van den; VERMAAS, Pieter & POEL (eds.). Handbook of Ethics, Values and
Technological Design. Dordrecht: Springer, 2015. p. 1-7.
MARCUSE, H. One-Dimensional Man. London & New York: Routledge, 2002 [1964].
MARKOWITZ, G. & ROSNER, D. Deceit and Denial: The Deadly Politics of Industrial
Pollution. Berkley: University of California Press, 2002.
PINCH, T. & BIJKER, W. The social construction of facts and artifacts: or how
sociology of science and the sociology of technology might benefit each other. In:
BIJKER, W.; HUGHES, T. & PINCH, T. The social construction of technological
systems: New directions in the sociology and history of technology. MIT Press,
1989.
lxxxiv Cristiano Cruz
ROSNER, D. & MARKOWITZ, G. Dying for Work: Worker’s Safety and Health
in Twentieth-Century America. Indianapolis: Indiana University Press, 1987.
SHCULER, Douglas & NAMIOKA, Aki (Ed.). Participatory Design - principles and
practices. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 1993.
SIMON, H. The sciences of the artificial. Cambridge, Mass: The MIT Press, 1981
[1969].
WINNER, L. Do artifacts have politics? In: WINNER, L. (Org.). The whale and the
reactor: a search for limits in an age of high technology. Chicago: University
of Chicago Press, 1986. p. 19-39.