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Isto implica dizer que o desejo, por parte dos modernistas, em compor um
panorama que revelasse o verdadeiro cenário nacional, livre de estéticas e formas
já estabelecidas.
Dito isso, o plano ideológico de Lobato mostra aspectos visíveis do
modernismo e é no conto “Marabá” onde o autor demonstra a expectativa de
renovação que dominava a década de 20. No meio da história, o narrador a
transforma em roteiro para cinema, trazendo a fusão das artes. Durante o texto, é
fácil notar elementos que demonstram o interesse do famoso autor com as grandes
transformações do começo do século, apesar de não ter participado diretamente do
modernismo, Lobato tinha contato com os modernistas. É significativo analisar como
o autor engloba no conto as turbinas elétricas da época, captando, mesmo que
sutilmente, os feitos da literatura futurista e a maior novidade no mundo das artes
daquela época, resultado da industrialização: o cinema.
A ironia está presente em todo o conto, construída sobre o paralelo entre a arte
nova e a arte velha, a proposta da linguagem cinematográfica e o resgate de antigos
modelos românticos. Esse teor irônico da obra se dá no momento em que é usada
uma linguagem literária ousada, formalmente moderna, conectada a um conteúdo
que segue as receitas literárias tradicionais, as quais Lobato critica no começo do
conto. A ironia demonstra a ligação entre tradicional e moderno nas artes e a própria
literatura lobatiana era um exemplo.
Em "O destino da literatura", Lima Barreto decide discutir sobre um tema que
não perde nunca sua atualidade: qual seria a função da literatura? Enquanto nos
conta suas admirações humanas e seu receio de palestras - já que não se sentia
confortável com o público - o autor nos apresenta perguntas, que tanto ele quanto o
público já fizeram. Novamente, qual o valor da literatura e de quem constrói essa
arte, comparada à máquina de costura, ou a quem a criou? Para muitos autores,
como discorre Barreto, a beleza da literatura está em suas formas estruturais, no
entanto, é possível perceber que a beleza é um ponto relativo para cada autor.
Segundo Lima Barreto, a beleza não se resume a essa questão da harmonia
das formas. A verdadeira beleza está na capacidade de exprimir ideias, a beleza é a
possibilidade de expor uma realidade social e discutir sobre os pontos atrelados a
ela em uma obra literária. Após a leitura de um "verdadeiro livro artístico", nos
parece que a sensação que ele transmite não é nova, como se já nos tivesse sido
transmitida antes. Essa é a força da literatura. A “ideia" ou o “argumento", por si só,
não têm força, mas, como bem aponta o autor, se essa "ideia" for transformada em
sentimento, pelo poder da arte e da literatura, ela também se tornará memória e
será incorporada pelo leitor. Se refletindo a realidade social e as injustiças, seu
poder é tamanho que, segundo Lima Barreto "O homem por intermédio da Arte, não
fica adstrito aos preceitos e preconceitos do seu tempo, de seu nascimento, de sua
pátria, de sua raça". Ou seja, o homem alcança o universo e incorpora sua vida no
mundo. Enquanto em "Prefácio a História dos Sonhos" o escritor retoma as
questões dos moldes literários e dos estilos, seus autores não precisam mais estar
ligados aos moldes da "falecida Grécia". Agora, possuem a liberdade de escrever
sobre o que desejarem, na forma que preferirem, buscando uma "comunhão de
todos os homens", o que indica que independente da classe ou da cor, a literatura
pode ser contemplativa. Barreto indica que o tempo não exigia mais essa literatura
"contemplativa e plástica", mas sim uma literatura militante e compromissada com
as causas sociais.
A obra "O especialista" consegue exprimir muito bem os pontos principais já
levantados em "O destino da literatura" e "Prefácio a História dos Sonos". No conto,
temos três personagens principais, desde os burgueses portugueses, que chegaram
ao Brasil em momentos diferentes; o Comendador, aos vinte e quatro anos; e o
Coronel, aos sete anos. Como amigos, passam as tardes conversando sobre
política, mulheres, bebendo e fumando charutos, e observando o movimento na
mesa do botequim Largo do Carioca. O Comendador, homem casado e com filhos,
deixava sua mulher em casa em busca de mulatas, já o Coronel "preferia" as atrizes
e as mulheres estrangeiras. O Coronel, após quinze dias sem encontrar o amigo,
pede uma daquelas corriqueiras conversas, das quais sentia falta, e como sempre
acontecia, beberam, fumaram, jantaram e falaram sobre política. Nessa conversa
específica, o Comendador explica que seu sumiço tem relação com a "mulata
deliciosa" que ele encontrou, mais bonita ainda que a que havia deixado no Recife,
ainda aos vinte e poucos anos.
No fim do conto, após uma noite de espetáculos no Cassino, um homem
aponta a semelhança entre o Comendador e Alice, a mulata. Em uma breve
conversa, Alice conta sobre seus sofrimentos de vida, como foi explorada e como
sua mãe foi abandonada e roubada por seu pai - que ela nem mesmo chegou a
conhecer. A partir de seus relatos, uma série de coincidências em sua história,
como o local onde ela morava e a herança roubada de sua mãe, fez com que o
Comendador percebesse que havia se relacionado com a própria filha.
O conto tem linguagem clara e simples, característica forte das obras
modernas, ele é construído de tal maneira que não é difícil imaginar os encontros
entres o Comendador e seu amigo Coronel. Tudo é muito simples e rotineiro, parece
ser a observação da vida habitual dos homens burgueses, que resumem seus dias
em negócios, bebidas, charutos e mulheres. Como um retrato social, o
Comendador, homem importante, deixa sua família em casa e se entrega aos
"prazeres da rua", buscando na classe social mais baixa e à margem, como as
mulheres de cor, sua principal diversão.
As relações modernas e cheias de tensão são apresentadas, a complexidade
das relações sociais e familiares da sociedade moderna, são apresentadas na figura
do Comendador, que possui uma família e deve ser considerado um homem de
respeito. Um homem da nata social e corrupto, que não se incomoda em aplicar
golpes em mulheres, como vimos em sua relação com a mãe de Alice. Apesar do
fim da escravatura, a mulher negra segue sendo um mero objeto. A interessante
percepção de que as relações entre os portugueses e os negros não mudou, um
homem português privilegiado ainda é apresentado no conto como um aproveitador,
que após alcançar seu objetivo, descarta a mulher negra e em seguida se relaciona
com a própria filha, demonstrando a imagem do passado escravista que não foi
superado ou esquecido. Para Lima Barreto, as questões sociais e suas ideias
precisam ser argumentadas através da literatura.
Com o conto, ele expõe como a sociedade da época, ainda ligada aos
moldes de exploração e subjugação do período escravista, se desenrola em seu
cotidiano. O português corrupto que ao abandonar a "mulher de cor", a colocou em
uma situação de vulnerabilidade ainda maior, sozinha e sem marido, e passou para
Alice a ideia de não confiar em ninguém. Já Alice, uma órfã de pai, conta suas dores
e abusos ao homem que roubou e abandonou sua mãe. Numa ironia cruel, a
imoralidade incestuosa do português é o retrato daquela sociedade moderna, do
abandono parental, do racismo e da exploração aos menores. No cassino, um
deputado se diverte entre as mulheres estrangeiras. Até mesmo a exploração
sexual das mulheres é contada através da cor. As mulheres de cor são encontradas
nas esquinas, já as estrangeiras, italianas, francesas e espanholas são expostas
nos cassinos frequentados pelos homens da alta sociedade. Explorada e forçada a
submissão, Alice expõe suas dores, em enfrentamento com a vida boêmia de seu
pai e do Coronel, duas realidades distintas que se encontram "ao acaso", mostrando
a fragilidade da sociedade e da construção das relações sociais e familiares na
modernidade. Do Recife, onde nasceu e foi abandonada pelo Comendador, ao Rio,
quando se relacionou com o próprio pai, duas cidades distintas, mas que com a
modernidade, não exprimem de fato uma distância entre os pares.
Lima Barreto traz nesse conto os embates da sociedade moderna, a
exploração, a objetificação do corpo negro e da mulher, a corrupção da burguesia
brasileira, o abandono paternal, a imoralidade e o incesto. Retratando o sentimento
da exploração da mulher negra e da imoralidade da elite, representada por dois
portugueses no Brasil, o autor traz a normalidade das conversas de botequim até a
chocante revelação incestuosa. É interessante perceber no conto suas principais
defesas: a linguagem clara sem a preocupação com a "beleza plástica Grega". A
idéia ou argumento da exploração do corpo da mulher negra e do seu sofrimento na
pobreza; a identificação com o sentimento de Alice, que abandona, sofreu por toda
sua vida e só foi tratada dignamente por apenas três homens; também a
identificação da mãe de Alice, roubada e enganada pelo homem que se relacionava
e confiava.
Notamos, portanto, que o autor de fato abandona a ideia de uma "literatura
bela" neste conto, ao trazer um tema extremamente indigesto, como o incesto, e o
tratar com a naturalidade de uma sociedade que normaliza atitudes como a do
Comendador. O conto expõe uma realidade incômoda, mas que precisava ser
exposta. A irresponsabilidade e a imoralidade dos homens burgueses foi
contemplada com o choque da relação do Comendador com a própria filha. O
sentimento de choque e revolta que a obra causa, como apontado em "O destino da
literatura" se torna muito mais latente do que a pura ideia de "incesto", "exploração"
e "racismo". A transformação da sociedade para a obra literária, cria o sentimento, e
o sentimento cria a memória. É através dessa indigestão, desse desconforto que a
literatura exprime sua verdadeira força de transformação social. A "ideia" se
concretiza na crítica que um verdadeiro livro literário pode oferecer, criando assim
um ambiente para indivíduos mais adeptos a uma mudança social e a uma reflexão
sobre os moldes que os cercam.