Você está na página 1de 8

A TOALETE FEMININA EM TERTULIANO: TEOLOGIZAÇÃO,

ASCETISMO E MISOGINIA1

Pedro Carlos Louzada Fonseca2

Resumo: A preocupação do cristianismo dos primeiros séculos medievais com a aparência da


mulher constitui um tema recorrente na chamada literatura patrística caracterizada por uma
jurisdição teológica e patriarcal e comprometida com certas posturas e atitudes tendenciosamente
misóginas que vê a mulher ab origine como propensa ao disfarce e à adulteração de sua imagem
criada por Deus. Nessa visão medieval da mulher, destaca-se Tertuliano (c. 160-c. 225) como autor
de um discurso moralista fortemente religioso que submete o vestuário e o ornamento femininos a
preceitos e prescrições teologicamente constituídos. São os principais aspectos dessa retórica
cosmetológica e teológica, asceticamente misógina, que este trabalho pretende discutir em De cultu
feminarum, de Tertuliano.
Palavras-chave: Patrística. Misoginia. Toalete feminina. Tertuliano.

A obsessiva preocupação doutrinária da patrística medieval com a aparência da mulher,


visando a um rígido e prescritivo protocolo indumentário e de boas maneiras, encontra-se
fundamentada não só em pronunciamentos bíblicos mas também em posicionamentos da literatura
clássica do mundo antigo. Dessa forma, a partir dos primeiros Padres da Igreja, a regência do
aspecto feminino se fez nitidamente em termos de tendenciosa jurisdição teológica e androcêntrica,
com posturas, atitudes e tratamento misóginos da realidade da mulher, impiedosamente naturalizada
como propensa ao disfarce e à adulteração da sua própria imagem divinamente criada.
No âmbito da patrística medieval, Tertuliano (Quintus Septimius Florens Tertullianus, c.
160-c. 225) destaca-se como uma das vozes primordiais desse tipo de teologização da aparência
feminina, perspectivada em direção a um ascetismo misógino que impunha, especialmente à
mulher, a se restaurar pela pureza e castidade, visto ter sido ela a responsável pela introdução do
pecado e do mal.
São escassos os detalhes da carreira de Tertuliano, sendo certo que foi nos seus escritos,
bastante elaborados em termos retóricos e de doutrinação ascética e espiritual, que São Jerônimo (c.
342-420) – integrante da patrística medieval ao lado de São João Crisóstomo (c. 347-407), Santo

1
Este trabalho é produto parcial da pesquisa intitulada “Mulher difamada e mulher defendida no pensamento medieval:
textos fundadores”, que integra a Rede Goiana de Pesquisa sobre a Mulher na Cultura e na Literatura Ocidental da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg). A pesquisa, sob a coordenação do Prof. Dr. Pedro Carlos
Louzada Fonseca, recebeu apoio financeiro dessa instituição de fomento para o período de 2013 – 2014. É também
produto de plano de trabalho de projeto de pesquisa relacionado ao tema e desenvolvido em estágio de pós-doutorado
em 2013, com bolsa da Fapeg, junto ao Programa de Pós-Doutorado da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, sob a
supervisão da Profa. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval.
2
Professor Titular. Doutor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Brasil.

1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Ambrósio (c. 339-397) e Santo Agostinho (354-430) –, intensamente se inspirou, a fim de dar
continuidade ao tradicional pensamento cristão da época que ligava ascetismo à misoginia e ao
celibatarismo.
Apesar de Tertuliano não ter sido o iniciador do ascetismo cristão medieval, o que não pode
ser desconsiderado é o fato de ele ter estabelecido para o mundo latino a primeira afirmação
influente da crença de que a abstinência sexual era a mais eficiente técnica com a qual adquirir a
iluminação da alma (BROWN, 1988, p. 78), conforme pode ser especialmente comprovado no
capítulo X do seu De exhortatione castitatis [Sobre a exortação da castidade] (TERTULLIAN,
1951).
Endereçando-se especialmente às mulheres, cujo danoso apelo sexual corrompia o espírito,
Tertuliano, lutando contra os mores pagãos e seus resquícios ainda presentes nas mulheres
convertidas à nova fé cristã, lança sobre elas as imprecações estridentes de seu De cultu feminarum
[A toalete das mulheres], composto de dois volumes bastante complexos em suas estratégias
narrativas e elaboração retórica, sofrível e exagerada, na defesa da misoginia ascética e na
recomendação da modéstia e da limpeza moral da aparência feminina, chegando mesmo essa sua
obsessão a ser, se não intencionalmente irônica, ao menos engraçada. É o que acontece, por
exemplo, naquela passagem em que, comentando sobre a ressurreição dos mortos no dia do Juízo
Final, espera que, apesar de ser um desgraçado, possa nesse dia levantar a sua cabeça tão alta
quanto os sapatos de saltos altos das mulheres (BLAMIRES, 1992, p. 50).
Argumentando a tão discutida questão de se as mulheres, no dia do Juízo Final, se
ressuscitarão adornadas e maquiadas para se encontrar com Cristo, aproveita o ensejo para
recuperar o ensinamento religioso de que ninguém poderá ressuscitar exceto em forma de carne e
espírito, tais quais criados por Deus (TERTULLIAN, 1959, II. 7).3 Todas as referências a passagens
citadas do De cultu feminarum serão, não decorrer deste trabalho, a exemplo da presente citação,
para efeito de melhor propriedade de localização, referidas apenas em relação ao ano de edição da
obra e respectivos livros e sessões em que se encontram.
Tertuliano começa, no Livro I, a sua proposta de teologizar a aparência das mulheres por
meio da prédica ascética endereçada ao seu modo de vestir e de adornar, a fim de propor o seu
resgate como filhas decaídas de Eva que devem se arrepender usando roupas de condolências e de
piedade. Tudo isto para que, ao adotarem a vestimenta de penitentes, elas possam se mostrar mais

3
Todas as referências a passagens citadas do De cultu feminarum serão, não decorrer deste trabalho, a exemplo da
presente citação, para efeito de melhor propriedade de localização, referidas apenas em relação ao ano de edição da obra
e respectivos livros e sessões em que se encontram.

2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
completamente conscientes da desgraça que provocaram por ter sido o seu gênero e sexo os
introdutores do pecado e da falência do mundo. Nesse ponto, Tertuliano torneia a sua retórica para
promover no seu discurso um dos muitos curtos-circuitos ligando tematicamente a sua doutrina de
ascetismo teológico da aparência feminina a prerrogativas de um tradicional patriarcalismo
misógino, apoiando-se no comentário de Gênesis 3: 16, em que o Senhor diz à mulher: “[...] é com
dor que hás de gerar filhos. Teu desejo te impelirá para o teu homem, e este te dominará” (Bíblia.
Tradução Ecumênica, 1994).4
O processo de teologização da mulher por Tertuliano fundamenta-se, portanto, na
necessidade de um redirecionamento doutrinário a partir da sua realidade física e aparente que,
alçada ao grau máximo de corrupção, recebe a consideração demonológica de ser a responsável por
introduzir a morte no mundo e causar, inclusive, a morte do Filho de Deus (1959, I. 1). Daqui por
diante, por um tendencioso silogismo retórico, fica definitivamente estabelecida uma relação de
causa e efeito entre paramento feminino, pecado e perdição.
Na sequência de comentários dessa natureza, expostos no inacabado Livro I, Tertuliano
procede, agora no Livro II, a um verdadeiro tratado doutrinário acerca de certos conceitos e
mandamentos caros à religião cristã, seguidos de conselhos prescritivos de virulento ascetismo e
tom edificante não isentos de posturas misóginas, aspectos esses ideologicamente fundamentais
para os primeiros tempos de um cristianismo empenhado em estabelecer as suas bases num contexto
ainda convivente com costumes pagãos.
Sintonizando essa situação, Tertuliano expõe princípios morais ligados ao ascetismo, como
o conceito de castidade completamente desligado do trato material do corpo que a vestimenta e o
adorno promovem (1959, II. 1). A apóstrofe à castidade das mulheres é feita com tal requinte no
trato ascético do material sensual e sexual que acaba por reproduzir elementos que caracterizam o
discurso do erótico enquanto desejo do moralista, cabendo à mulher, objeto desse seu ambíguo
discurso, nenhuma fruição, nem mesmo retórica, mas apenas uma obediência prescritiva de não
desejar nem ser desejada por causa da natureza ostensiva da sua sedução (1959, II. 2).
A teologia da castidade, relembrando Mateus 5: 28, como eliminação do desejo suscitado
pela aparência ou beleza feminina não faz distinção, em termos de condenação e penalidade, entre o
ato do intercurso sexual propriamente dito e o simples desejo dele, pois ambos levam igualmente à
danação e são provocados de forma mais condenatória pela beleza como fruto do adorno e da
maquiagem. É nesse sentido que Tertuliano, a fim de evitar a danação, chega a recomendar às
4
Daqui por diante neste trabalho, todas as citações de livros bíblicos referir-se-ão a esta edição da Bíblia e serão
referenciadas no próprio corpo do texto.

3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
mulheres removerem o esplendor mesmo da beleza natural dotada por Deus (1959, II. 3), mas
cuidando do corpo sem desleixo, ponto de vista que São Jerônimo, apesar da sua grande inspiração
despertada pelos ensinamentos de Tertuliano, não seguiu, pois, na sua Carta 107. 11, parece
recomendar a atitude da virgem que por um deliberado descuido apressa-se a estragar a sua natural
beleza (JEROME, 1893, p. 194).
A cosmetologia teológica de Tertuliano adquire um tratamento demonológico ao invocar o
tema da mulher que, insatisfeita com a sua imagem criada por Deus, cede às tentações do Demônio,
o arcano rival teogônico obcecado em superar a grandeza das criações de Deus, conforme comenta
Santo Ambrósio no seu Hexameron VI, 18 (AMBROSE, 1961, p. 259-260). São Jerônimo,
sintonizando essa mesma disposição, na sua Carta 54. 7, comenta ironicamente sobre o quão
confiantemente uma mulher é capaz de criar atrações que o seu Criador deve não reconhecer
(JEROME, 1893, p. 104).
Discorrendo sobre a instrução do demônio para transformar o espírito do homem em coisa
má através das suas próprias ações, Tertuliano chega a radicalizar não serem dignas do nome de
cristãs aquelas mulheres que são compelidas a rejeitar a simplicidade, a arranjar uma face
contrafeita, que não é natural. Nesse sentido, considera que o culto da aparência feminina é uma
espécie de mentira, como aquela praticada pela língua, resgatando com essa analogia a antiga
referência da mentira como maquiagem, a exemplo do que diz Xenofonte (Xenophon, c. 430-357)
em Oeconomics (ALLEN, 1985, p. 56).
Continuando a sua anatomia crítica censória da aparência feminina, Tertuliano faz um
verdadeiro inventário do que se pode fazer num salão de beleza da época, incorrendo naquele já
comentado gosto pela sensualidade que o seu discurso paradoxalmente, promove ao condenar.
Assim, comenta, com sérios propósitos de condenação moral de práticas licenciosas, sobre a tintura
loira dos cabelos das mulheres cristãs com o uso de açafrão usado nas perucas pagãs das germânicas
e gaulesas, um costume xenófobo já verificado em Amores, de Ovídio (43 a. C.-18 d. C.) (OVID,
1982, I. 14) e também na Sátira VI, versos 115-132, de Juvenal (início do século II) (JUVENAL,
1958).
Ainda refletindo sobre o mandamento divino da aparência da mulher não poder ser alterada
sem comprometer a sua salvação, Tertuliano incorre naquela mesma sedução retórica da
enumeração de gosto detalhado dos aparatos femininos, responsável por conferir ao discurso certa
sensualidade, recordando o mandamento bíblico de Mateus 6: 27 de que ninguém pode, de sua livre
vontade, adicionar à sua estatura.

4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Na verdade, Tetuliano admite que, por um defeito da natureza, existe não só entre as
mulheres mas também entre os homens, um desejo de agradar que se excita com artifícios.
Entretanto, o verdadeiro cristão depõe esse desejo porque a sensualidade do supérfluo é prejudicial
à castidade, companheira de Deus porque equivalente à dignidade. Portanto, com mais um
silogismo arbitrado por seu característico pensamento teologista, Tertuliano fundamenta a castidade
na dignidade e esta, por sua vez, na seriedade da aparência (1959, II. 8).
Depois da fundamentação desse raciocínio, como acontece de forma bastante característica
na retórica tertuliana, segue-se um conjunto de prédicas conclusivas a reforçarem o tema do
desvestimento total do enfeite feminino, considerado contrário ao ensinamento divino por estar
facilmente ligado à busca da luxúria e à falta da castidade (1959, II. 9).
Apesar de completamente avaro na concessão do adorno feminino, Tertuliano, em coerência
com a onisciência divina, não fere o princípio absolutamente inteligível de que Deus criou e deu
sabedoria ao homem para o artefato das coisas, inclusive, para o que era apreciado na época, a
tintura da lã. E também o artesanato das conchas e das roupas leves e finas, apenas pesadas no
preço, e das primorosas obras de ouro e pedrarias. Entretanto, se tais coisas desfiguram física, moral
e espiritualmente a naturalidade da compleição humana originalmente criada por Deus, aí residem a
danação e o pecado contra a sua dignidade e castidade.
A seguir, Tertuliano comenta que muitas coisas preciosas não são boas por causa do seu
valor intrínseco, mas devido à sua raridade e manufatura, como é o caso das joias em ouro e pedras
preciosas, para as quais o autor dá uma explicação teológica baseada em I Enoque 8: 1, em que se
encontra o comentário apócrifo de que anjos teriam dormido com as mulheres e passado a elas o
segredo dos ornamentos e dos cosméticos (PRUZAC, 1974, p. 90). Entretanto, mantendo a
coerência do seu princípio teológico sobre a criação original de todas as coisas por Deus, inclusive
os adornos e cosméticos potencialmente danosos, Tertuliano aborda a questão, fundamental à
doutrina cristã, do livre-arbítrio, aconselhando a usá-lo de maneira proveitosa e cuidadosa, sem ferir
a castidade, princípio da dignidade.
Associada à prescrição da contenção do culto da aparência feminina, Tertuliano reforça o
inarredável preconceito misógino disseminado entre os Padres da Igreja, de ascendência fincada na
lei hebraica, da necessidade de coibição da mulher em participar da vida e das funções públicas,
principalmente vestidas de forma por demais elaborada. Esse topos do desejo provocador,
principalmente ligado à paixão da mulher de ver e ser motivo da visão dos outros, entre outras
numerosas fontes, merece ser referido em Ars Amatoria [A arte de amar], de Ovídio (OVID, 1982,

5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
I. 99) e em The Wife of Bath [A esposa de Bath], est. 543 (c. 1343-1400), de Geoffrey Chaucer
(CHAUCER, 1985, p. 219-239), para se considerar aqui, respectivamente, uma significativa fonte
tida com raiz da misoginia medieval e outra, como adiantada produção continuadora dessa tradição
no final da Idade Média.
Nesse sentido, Tertuliano comenta que o afã feminino de aparecer em lugares publicamente
frequentados provém do desejo inato de as mulheres verem e serem vistas, motivadas por sua
necessidade incontida de negócios de lascívia e de ostentação da vaidade, aspectos que as
enquadram em dois da lista que ficou posteriormente conhecida como pecados capitais: a vaidade e
a luxúria.
Num momento, como o de Tertuliano, de fundação do cristianismo, tudo indica ter sido de
dificultosa eficácia as prédicas do religioso para convencer mulheres pagãs recém convertidas à
nova fé cristã, possivelmente de elevadas camadas sociais, dada a riqueza de seus trajes e costumes
próprios de sua antiga formação, de abandonar esses hábitos pagãos. Nesse sentido, apresentava-se
a objeção de que o rebaixamento no modo de vestir da mulher, ao se tornar cristã, poderia parecer
como uma espécie de blasfêmia ou insultante descaso à nova fé. A essa questão, Tertuliano
temerariamente responde que seria uma blasfêmia maior para as convertidas parecerem prostitutas.
Para tanto, o seu fundamento é escritural, baseado, portanto, na palavra de Deus. Expõe que
as escrituras sugerem que o estímulo à beleza usualmente está associado à prostituição, lembrando o
caso daquela poderosa cidade que governou sobre sete colinas e muitas águas, a qual mereceu ser
chamada prostituta pelo Senhor, em Apocalipse 17: 1 e seguintes, devido a se vestir como uma,
portando-se de provocativas vestes em púrpura e escarlate, ouro e pedras preciosas, ficando aqui
bem claro o princípio religioso, bastante cultuado pela mentalidade medieval, de que o meio e o
hábito é que constituem a realidade e a natureza das coisas.
Tertuliano segue um procedimento estratégico bastante praticado em seu discurso de
convencimento e que consiste em produzir um tipo de arrazoamento contra-argumentativo ao que
propõe, a fim de ter condições retóricas de finalmente provar o que quer estabelecer como verdade
de suas posições. Nesse sentido, discutindo sobre o alcance verdadeiramente religioso da intenção
do vestuário e do ornamento das mulheres, citando Filipenses 4-5, diz que elas afirmam apenas
necessitar do testemunho de Deus, ao que Tertuliano retruca que o próprio Senhor disse através do
Apóstolo que a virtude deve aparecer aos homens (1959, II. 13), afirmando que a verdadeira
castidade, vinda da alma, deve transparecer no vestuário e emanar da consciência para ele, a fim de
se tornar plenamente manifesta.

6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Finalmente, após um desfile retórico dos ornamentos e da aparência que devem ser evitados
em função da integridade da fé cristã, Tertuliano descreve os instrumentos da indumentária e do
adorno do verdadeiro cristão, procedendo a uma alegorização cosmetológica ricamente mística,
baseada em caros preceitos da moral e fé religiosas. Nesse sentido, profere que a vida dos cristãos
deve ser vestida pelas marcas do ferro do martírio, adornada com os unguentos e ornamentos dos
profetas e apóstolos, extraindo o seu brilho da simplicidade, o róseo da face, da castidade, pintando
os olhos com a modéstia e a boca com o silêncio, apertando ao redor do pescoço o colar de Cristo
(1959, II. 13).
Na verdade, Tertuliano, ao metaforizar a ornamentação do corpo com esses valores tão caros
à doutrina e fé cristãs, ampara-se aqui numa das mais primordiais vozes da misoginia presente nas
Sagradas Escrituras, o pronunciamento de São Paulo, em I Timóteo 2: 9-10, acerca da necessidade
de contenção, modéstia, sobriedade, obediência, amor, fé e santificação da mulher, que somente
poderá se salvar se vestir essas roupas da espiritualidade para compensar a sua transgressão
original. Apesar da boa intenção edificante e espiritual, ainda que comprometida com o ideário
próprio de uma principiante misoginia ao feitio patrístico, muito há ainda que se considerar, no
discurso edificante e teológico de Tertuliano, como fatores e razões de ordem política e ideológica
que devem ser buscados e explicados no contexto da realidade social, histórica e material do seu
tempo, de uma época como a sua, extremamente importante para a formação e êxito de uma nova fé
religiosa, o cristianismo, cujo mundo e forma apresentavam-se extremamente contrários ao do
paganismo reinante.

Referências

ALLEN, Sr Prudence. The Concept of Women: The Aristotelian Revolution 750 BC-AD 1250.
Montreal: Eden Press, 1985.
AMBROSE, St. Hexameron, Paradise, and Cain and Abel. Trad. J. J. Savage. FOX, xlii. New
York: Fathers of the Church Inc., 1961.
BÍBLIA. Tradução Ecumênica. São Paulo: Edições Loyola, 1994.
BROWN, Peter. The Body and Society: Men, Women, and Sexual Renunciation in Early
Christianity. New York: Cambridge University Press, 1988.
CHAUCER, Geoffrey. The Wife of Bath’s Prologue. In: ______. The Canterbury Tales. Oxford:
Oxford University Press, 1985, p. 219-239.

7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
JEROME. The Principal Woks of St. Jerome. Trad. W. H. Fremantle. Select Library of Nicene and
Post-Nicene Fathers. 2 nd. ser., vi. Oxford: James Parker; and New York: Christian Literature Co.,
1893.
JUVENAL. Satire VI. In:_____. The Satires of Juvenal. Trad. Rolfe Humphries. Bloomington:
Indiana University Press, 1958, p. 64-85.
OVID. The Erotic Poems. Trad. Peter Green. Harmondsworth: Penguin, 1982.
PRUZAK, B. P. Woman: Seductive Siren and Source of Sin? Pseudepigraphical Myth and
Christian Origins. In: R. R. RUETHER, R. R. (Ed.), Religion and Sexism: Images of Women in the
Jewish and Christian Tradition. New York: Simon and Schuster, 1974, p. 89-116.
TERTULLIAN. De exhortatione castitatis. In: Tertullian: Treatises on Marriage and Remarriage.
Trad. W. P. le Saint. Ancient Christian Writers, xiii. London, 1951.
_____. The Apparel of Women (De cultu feminarum). Tr. E. Quain. In: Tertullian: Disciplinary,
Moral and Ascetics Works. Trad. R. Arbesmann and others, FOX, xl. New York, 1959.

The female toilet in Tertullian: theologization, asceticism and misogyny


Abstract: The concern of the early centuries of medieval Christianity about the appearance of
woman is a recurring theme in the so called Patristic literature characterized by a theological and
patriarchal jurisdiction, and committed to certain postures and tendentiously misogynistic attitudes
that see woman as ab origine prone to tampering and to disguise her image created by God. In this
medieval vision of the female, Tertullian (c. 160-c. 225) stands out as author of a moralist discourse
strongly religious that submits the feminine clothing and ornament to precepts and prescriptions
theologically formed. These are the main aspects of that cosmetologycal and theological rhetoric,
ascetically misogynous, that this paper intends to discuss in De cultu feminarum by Tertullian.
Keywords: Patristic. Misogyny. Female toilet. Tertullian.

8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

Você também pode gostar