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Vitória, ES

2015
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(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

F935 Fronteiras e identidades no Império Romano : aspectos sociopolíticos e religiosos / Gilvan


Ventura da Silva, Érica Cristhyane Morais da Silva, organizadores. – Vitória : GM Editora,
2015.
210 p. ; 23 cm.
ISBN: 978-85-8087-141-8
1. Roma - Política e governo - 30 aC. - 476 d.C. 2. Roma - História - Império, 30 aC.
- 476 d.C. I. Silva, Gilvan Ventura da, 1967-. II. Silva, Érica Cristhyane Morais da, 1975-.
CDU: 94(37)

Ilustração da capa
Mosaico representando o banho de Dioniso. Sentado no colo de Hermes, Dioniso recebe a adoração das
personagens ao redor, numa clara alusão à cena evangélica da visita dos reis magos a Jesus. O mosaico é
proveniente de Nea Pafos, cidade situada no sudoeste de Chipre, e data da época tardia (séculos III-V d.C.)
SumárIo

APRESENTAção ............................................................................................................................... 7

PREFáCIo: UM IMPÉRIo PLURAL ............................................................................................... 9


Silvia M. A. Siqueira

Parte I
FoRMAS PoLíTICAS E DINâMICAS CULTURAIS No PRINCIPADo

RELIGIão E PoDER: AUGUSTo E o pontifex maximVs (36-12 AEC) ....................... 15


Claudia Beltrão da Rosa

ENTRE CALíGULA E NERo: o GoVERNo DE CLáUDIo


NA oBRA DE DIoN CáSSIo .........................................................................................................35
Ana Teresa Marques Gonçalves

Virtus romana EN LA FRoNTERA NoRTE DEL IMPERIo:


GERMANoS y BRITANoS SEGúN TáCITo ............................................................................. 49
Catalina Balmaceda

ESCRAVIDão E FRoNTEIRAS SoCIAIS E


IDENTITáRIAS No MUNDo RoMANo ................................................................................... 69
Fábio Duarte Joly

PERCEPçõES IMPERIAIS SoBRE o DESENVoLVIMENTo


DA ALExANDRIA PToLoMAICA .............................................................................................. 79
Joana Campos Clímaco

Parte II
PoDER, RELIGIão E IDENTIDADE NA ANTIGUIDADE TARDIA

¿RoMANoS o CRISTIANoS? LA APRoPIACIóN


DE LA IDENTIDAD RoMANA PoR EL CRISTIANISMo ...................................................... 93
Ramón Teja

JULIANo E A IMAGEM DE ANTIoqUIA No misopogon .............................................119


Gilvan Ventura da Silva

CIDADE, PoDER E CoNFLITo No SÉCULo IV D.C.:


ANTIoqUIA DE oRoNTES, LAoDICEIA Do MAR E
A DISPUTA PELo STATUS DE METRóPoLE .........................................................................141
Érica Cristhyane Morais da Silva
o DISCURSo AGoSTINIANo EM a cidade de deus:
A CoNSTRUção DE UMA FRoNTEIRA ENTRE CRISTãoS E PAGãoS .......................155
Márcia Santos Lemos

RELAçõES E DISTINçõES DoS CoNCEIToS DE gens E populus


E A CoNSTRUção DE UMA identidade nobiliárquica NA
Hispania VISIGoDA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SÉCULoS VI – VII) ......................177
Renan Frighetto

SoBRE oS AUToRES .....................................................................................................................209


aPreSeNtaÇÃo

os capítulos que integram esta coletânea são provenientes, em sua


maioria, das conferências apresentadas no V Colóquio Internacional do
Laboratório de Estudos sobre o Império Romano, fronteiras sociais e
identitárias no mediterrâneo antigo, ocorrido em outubro de 2013, nas
dependências da Universidade Federal do Espírito Santo. Às conferências
originais foi acrescida a contribuição de três colegas que, embora ausentes
do evento, se distinguem como eminentes especialistas em estudos romanos,
dentro de um macrocampo de investigação que inclui o assunto da obra.
Esses textos, acreditamos, complementam e enriquecem o debate suscitado
por ocasião do V Colóquio, razão pela qual os acolhemos aqui com grande
satisfação.
A deinição do tema do evento e, por extensão, da coletânea, resulta da
constatação de alguns impasses que caracterizam a pós-modernidade. Se,
por meio da integração proporcionada pela globalização, o mundo caminha
para a superação progressiva de diversas fronteiras mediante a uniformização
do consumo de massa e da produção industrial, a crescente rapidez da troca
de informação e o deslocamento incessante de populações entre os países e
hemisférios, constata-se, por outro lado, o surpreendente fortalecimento das
identidades locais e/ou regionais, o retorno dos nacionalismos excludentes e,
por vezes, agressivos, além do fechamento das sociedades em comunidades/
grupos que se autodeinem como “homogêneos” ou “puros”.
quando refletimos acerca de assuntos tão contemporâneos como
o esgarçamento de fronteiras, a globalização econômica, a diversidade
étnica e a ixação das identidades sociais, é impossível não evocarmos
experiências similares extraídas de outros momentos da história. Nesse
sentido, o Império Romano logo se impõe à consciência dos pesquisadores
como um espaço privilegiado para se observar a dialética da unidade e da
diversidade, da semelhança e da diferença expressa com uma vitalidade
ímpar. No imaginário contemporâneo, Roma se encontra associada a um
extraordinário esforço de conquista que garantiu o seu extenso domínio

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 7


sobre uma vasta região, mas sem que isso implicasse a criação de estruturas
uniformes, homogêneas, muito pelo contrário.
No Império Romano, as clivagens socioculturais separavam cidadãos
e não cidadãos, livres e não livres, ricos e pobres, letrados e iletrados,
proprietários de terra e trabalhadores manuais, romanos e “bárbaros” e, a
partir do século I, pagãos e cristãos, dentre outras categorias. Exemplos dessa
diversidade, tão característica do Império, é o que o leitor encontrará nos
capítulos a seguir. Neles, os autores tratam o jogo das identidades/alteridades
e a construção das fronteiras no Império tendo como referência aspectos
políticos, sociais e religiosos, razão pela qual, em termos historiográicos,
a coletânea se encontra construída grosso modo à luz dos pressupostos da
Nova História Política e da História Cultural. Por im, cumpre destacar a
necessidade que tivemos de agrupar os capítulos em dois grandes blocos,
um reservado aos três primeiros séculos da era imperial e outro à época
tardia, que se prolonga até o início da Idade Média, não para delimitar uma
fronteira intransponível entre essas duas fases da História de Roma, mas para
salientar as especiicidades de cada uma delas, como, esperamos, a leitura
da obra possa revelar.

Vitória, janeiro de 2015


os organizadores

8 Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos


PreFáCIo

um ImPérIo Plural

Silvia M. A. Siqueira

Eis aqui uma signiicativa obra, fruto da dedicação e apreço aos estudos
clássicos, elaborada pela relevante iniciativa dos organizadores, Gilvan
Ventura da Silva e Érica Cristhyane Morais da Silva, ambos docentes da
Universidade Federal do Espírito Santo. Um valioso presente para o público
leitor, carecido de boas leituras oriundas de relexões profundas e instigantes.
Este livro representa, sobretudo, o encontro entre estudiosos brasileiros
e estrangeiros provenientes de destacadas universidades e centros de
excelência em pesquisa que comungam o interesse pelos diferentes aspectos
do mundo romano. Resultado de um profícuo intercâmbio cientíico que
privilegia a diversiicação de temas relevantes para os estudos sobre Roma
e seus domínios desde o saeculum augustum até os séculos VI e VII d.C.
os capítulos aqui apresentados evocam a imagem de um contexto
permeado pela diversidade, contradições e desagregação. os autores usam
diferentes conceitos, especialmente o de identidade ou identidades. Conceito
cada vez mais importante para várias disciplinas, ele está calcado no aspecto
relacional e na construção histórica; ou seja, para identiicar algo é preciso
recorrer à comparação, ao diferente, em determinado contexto temporal
e espacial. Assim, as questões estabelecidas no processo de constituição
identitária contemplam um imenso universo no qual interagem aspectos
urbanos, sociais, religiosos e culturais. Estes, por sua vez, evidenciam
distintos componentes da memória, da identidade histórica, das práticas
urbanas, das formas de apropriação material e simbólica, dos processos de
signiicação, das representações sociais e dos imaginários coletivos. Todos
esses elementos estão aqui contemplados por meio de autores iluminados,
como Juliano, Agostinho, Tácito, Dion Cássio, Cícero, Isidoro de Sevilha,
apenas para citar alguns.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 9


A ides, a pietas, a humanitas, ao lado da virtus, comparecem no elenco
dos mais altos valores da romanidade. Catalina Balmaceda analisa este último
conceito em ‘Virtus’ romana en la frontera norte del imperio: germanos y
britanos según tácito, veriicando como este ideal funcionou como uma
fronteira delimitadora de identidade estabelecida na relação entre bárbaros
e romanos. Ana Teresa Marques Gonçalves elegeu um ilustre indivíduo da
elite romana, historiador e senador que escreveu em língua grega, para nos
conduzir a uma instigante relexão em entre calígula e nero: o governo de
cláudio na obra de dion cássio. Segundo ela, a partir da narrativa deste
autor é possível veriicar a existência de várias tradições concorrentes e/ou
complementares na elaboração das imagens e das representações desses dois
imperadores para a posteridade.
A diversidade religiosa é um tema presente em diferentes capítulos, seja
de modo direto ou indireto. o complexo sistema religioso romano, também
um elemento constitutivo da identidade romana, é contemplado na análise de
Claudia Beltrão da Rosa em religião e poder: augusto e o ‘pontifex maximus’
(36-12 aec). o texto propõe uma relexão sobre o poder de Augusto quando
este passa a ocupar o cargo de pontifex maximus, posto que teve muita
importância a partir da República, especialmente, por manter o controle
dos sacra. Também problematiza o longo processo de consolidação do poder
e do prestígio religioso e repensa biógrafos e autores que registraram uma
suposta vitória inabalável do imperador.
o processo de constituição de uma identidade cristã por meio da
apropriação da identidade romana é apresentado em ¿romanos o cristianos?
la apropiación de la identidad romana por el cristianismo, por Ramón Teja,
que problematiza várias evidências das transformações do mundo romano
e destaca, em particular, a força das diferenças linguísticas e seu grande peso
social e cultural, que impossibilitou a unidade religiosa cristã. A variedade da
mensagem evangélica se integrou com culturas de regiões e línguas distintas,
permitindo manifestações de identidades diversificadas e culminando
em variados cristianismos. Ainda sob a égide da religião, Márcia Santos
Lemos, em o discurso agostiniano em ‘a cidade de deus’: a construção de
uma fronteira entre cristãos e pagãos, argumenta como Agostinho constrói
sua narrativa delimitando o que é ou não cristão por meio de uma relação
dialética indissolúvel e necessária para a construção de uma identidade

10 Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos


para os cristãos pela negação de toda e qualquer prática que os aproxime
dos pagãos, ainda que atualmente se conteste a ideia de um mundo romano
rigidamente dividido entre cristãos e pagãos.
A identidade romana é igualmente analisada por meio da cidade e do
ambiente urbano, pois alguns capítulos demonstram como a urbs deine-se
no espaço do orbis. Assim, em cidade, poder e conlito no século iV d.c.:
antioquia de orontes, laodiceia do mar e a disputa pelo status de metrópole,
Érica Cristhyane Morais da Silva destaca, no caso das cidades da Síria, a
necessidade de se compreender a competição pelo status de metrópole
e as implicações de se tornar um centro romano importante de difusão
e promoção de novas realidades que envolveriam tanto cristãos como
pagãos. outro aspecto, o do modo de vida na cidade, é analisado em
Juliano e a imagem de antioquia no ‘misopogon’ por Gilvan Ventura da Silva,
que ilustra a imagem vivaz da cidade elaborada pelo imperador, supondo
que a reforma do paganismo idealizada por ele comportasse a “helenização”
da urbs. Esta, por sua vez, parecia resistir às investidas reformadoras,
permanecendo unida a tudo aquilo que, sob o Império, havia caracterizado
o modus uiuendi urbano.
outra grande cidade comparece na coletânea, revelando também a
questão da disputa pela primazia urbana em percepções imperiais sobre o
desenvolvimento da alexandria ptolomaica, no qual Joana Campos Clímaco
demonstra que os escritos sobre a Alexandria ptolomaica ganharam relevo
na documentação a partir do século I a.C. e foram abundantes até a época
de Adriano. A crescente importância adquirida pela cidade causou alarde,
pois esta começou a aproximar-se de Roma em muitos aspectos, às vezes até
superando a capital do Império.
A obra traz ainda relexões que tratam da construção de identidades
e fronteiras a partir da perspectiva social e econômica. Em escravidão e
fronteiras sociais e identitárias no mundo romano, Fábio Duarte Joly propõe
a superação do viés essencialista dos estudos sobre escravidão antiga e sua
respectiva tendência à uniformização da escravidão, por meio de análises
que tratem do sistema escravista no contexto do Mediterrâneo, cuja crescente
integração histórica articulou as comunidades e produziu sistemas sociais
cada vez mais complexos, deinindo novos limites sociais e de identiicação.
Por seu turno, Renan Frighetto, em relações e distinções dos conceitos de

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 11


‘gen’s e ‘populus’ e a construção de uma identidade nobiliárquica na ‘Hispania’
visigoda na antiguidade tardia (séculos Vi – Vii), analisa e problematiza
os conceitos de gens/gentes e populus/populorum, supondo que ambos,
justiicados por meio da tradição greco-romana vívida exposta na obra de
alguns autores, evidenciavam tanto a elaboração como a construção de um
modelo identitário capaz de relevar o papel dos elementos aristocráticos e
nobiliárquicos como guias e defensores do regnum gothorum e do conjunto
da sociedade hispano-visigoda (populus gothorum).
Conforme o exposto, o livro seguramente proporciona um cenário rico
de um grandioso mundo liderado por Roma, caracterizado pela diversidade
da língua, visto predominar nele o bilinguismo, pela cultura helenístico-
romana e que revela, nas “identidades” das suas diferentes formas, os vários
motivos da sua complexidade.

Fortaleza, CE, 16 de novembro de 2014.

12 Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos


PARTE I

FORMAS POLÍTICAS E DINÂMICAS


CULTURAIS NO PRINCIPADO
relIGIÃo e PoDer:
auGuSto e o PONTIFEX MAXIMVS (36-12 aeC)

Claudia Beltrão da Rosa

Recusei ser nomeado pontifex maximus no lugar do meu colega que ainda vivia,
quando o povo me ofereceu este sacerdócio que meu pai ocupou (Augusto,
res gestae, 10.2).1

Caio Júlio César otaviano, o Augusto, transformou a paisagem religiosa


da urbs,2 agindo sobre o espaço físico dos cultos, renovando suas instituições
religiosas e recriando muitas de suas tradições. o bom sucesso e o bom
funcionamento da urbs e de seu imperium eram o objetivo central dos sacra
publica,3 e o cuidado da urbs implicava o cuidado de seus rituais por seus
guardiães: magistrados, senadores e sacerdotes. Nas res gestae e nas imagens
augustanas, depreende-se que Augusto valorizava seus títulos sacerdotais tanto
quanto, ou mais que, suas magistraturas: pontifex maximus, augur, xV uirum
sacris faciundis, Vii uirum epulonum, frater arualis, sodalis titius, fetialis fui
(rg, 7.3). E suas ações religiosas são apresentadas como partes integrantes de
sua carreira pública, e não como preferências religiosas privadas.

1 pontifex maximus ne ierem in vivi conlegae mei locum, populo id sacerdotium deferente mihi quod pater
meus habuerat, recusavi (tradução minha).
2 Compreendo paisagem religiosa como uma construção simbólica e dinâmica do espaço por meio da ação
conjunta da performance dos rituais e da pragmática poética dos mitos e narrativas, de acordo com as
propostas de J. Scheid e F. de Polignac, que apresentam o conceito de paisagem religiosa como uma leitura
simbólica do espaço, entendida simultaneamente “em sua materialidade visível e, metaforicamente, como
o espectro de identidades religiosas múltiplas e negociadas” (SCHEID; PoLIGNAC, 2010, p. 430).
3 A distinção entre sacra publica e sacra priuata fornecida por Festo é um guia para a compreensão dos
sacra romanos: “os ritos públicos são aqueles realizados às expensas públicas em benefício do povo [...]
em contraste com os ritos privados, que são realizados em benefício de indivíduos, das famílias, dos
descendentes” (publica sacra, quae publico sumptu pro populo iunt quaeque pro montibus pagis curis
sacellis; at priuata, quae pro singulis hominibus familiis gentibus iunt: 350L). Em outras palavras, são os
ritos realizados em benefício do povo romano (pro populo), por oiciantes sancionados e inanciados
pelo tesouro público, com participação ativa de magistrados e sacerdotes. A própria deinição de sacrum
é reservada para coisas e lugares consagrados oicialmente pelos pontíices (cf. Gaio, inst. 2, 5; Ulpiano,
dig. I, 8.9). Podemos assumir que a deinição de sacra – ao menos juridicamente – seguia os mesmos
passos que deiniam o ritual público, ou seja, um objeto ou lugar que se tornava sagrado através de um
ato ritual especíico – a consecratio – que devia ser autorizado pelo Senado, presidido por sacerdotes e
magistrados e promovido com fundos públicos.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 15


CLAUDIA BELTRão DA RoSA

A chamada restauratio augustana pode ser vista como um grande


movimento que transformou profundamente os elementos-chave daquilo
que os romanos denominavam res publica, ou seja, as instituições, a vida
política, a vida religiosa e o espaço físico da urbs. o butim do Egito, os
coniscos e as fortunas de amici garantiram ao futuro Augusto os meios
inanceiros e políticos para a realização de grandes intervenções na paisagem
urbana e religiosa da cidade. E os efeitos concretos dessas intervenções são
visíveis desde 36 AEC,4 quando otaviano passa a realizar ou a encorajar
restaurações de edifícios em eixos religiosos fulcrais da urbs: a regia,
residência oicial do pontifex maximus no forum romanum, uma obra de Cn.
Domício Calvino, em 36; o templo de Apolo no sopé do Capitólio, restaurado
por C. Sósio em torno de 34; o templo de Júpiter feretrius, obra inanciada
pelo próprio otaviano antes de 32, dentre outras (HASELBERGER, 2007).
Entre 36 e 32, do mesmo modo, colégios sacerdotais são ‘restaurados’, e.g.,
o colégio dos fetiales.5 Mas, uma das primeiras ações de otaviano foi a
destituição do triúnviro Marco Emílio Lépido, em 36, e seu subsequente
exílio, o que signiicou o exílio do pontifex maximus, um dos principais e mais
prestigiados sacerdotes romanos. Em outras palavras, uma das primeiras
ações do futuro princeps foi exilar o pontifex maximus da urbs, o que pode
parecer paradoxal e, talvez, potencialmente perigoso para a consolidação da
imagem do piedoso restaurador da res publica. Ao exilar Lépido, otaviano
não lhe retirou a dignidade de senador (D. Cássio, Hist. rom. LIV, 15.7-8;
Suet., aug. 54.2), muito menos o pontiicado máximo. E otaviano/Augusto
esperou 24 anos até ser eleito pontifex maximus, em 6 de março de 12, após
a morte do seu velho inimigo e antecessor, no ano anterior.
Marco Emílio Lépido, contudo, geralmente surge nos comentários e
análises historiográicas como uma igura secundária, com pouca expressão
política no chamado II Triunvirato, rapidamente afastada do centro da
disputa entre Marco Antônio e otaviano. Mas, o quanto podemos coniar
nessa imagem? Talvez esta imagem seja a principal responsável pelo paradoxo

4 A maioria das datas mencionadas neste texto são anteriores à Era Comum, dispensando assim a
indicação AEC.
5 Sacerdotes encarregados de velar pela aplicação do direito nas situações de conlito com outros povos.

16 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


RELIGIão E PoDER: AUGUSTo E o pontifex maximus (36-12 AEc)

(para nós) do princeps aguardando mais de duas décadas até a morte de Lépido
para assumir o maior posto no colégio dos pontíices e, consequentemente,
realizar algumas das principais ações das suas restaurationes religiosas. o fato
de otaviano não afastar Lépido do sacerdócio e a longa espera do Augusto
até inalmente se tornar pontifex maximus são temas que já renderam muitas
e divergentes especulações, dada a estranheza da situação. Pode-se perguntar
por que, ainal, Lépido continuou a ser – e a agir como – pontifex maximus,
assim como podem ser indicadas as limitações trazidas às intervenções
urbanas e religiosas de otaviano/Augusto, pois, para determinadas ações, era
necessário o aval do colégio dos pontíices, ou mesmo a presença, a anuência
ou a intervenção formal do pontifex maximus eram requeridas. Para além
dos fatos políticos imediatos, a conduta de Augusto permite-nos perceber,
em seu feixe de poderes, a importância do colégio dos pontíices em geral e
do pontifex maximus, em particular.
Interessa-me aqui observar especialmente os elementos religiosos de
tal situação no que tange às intervenções augustanas na urbs e, ao mesmo
tempo, alguns aspectos do jogo político augustano em relação às grandes
gentes republicanas, tendo como eixo a gens aemilia. Para tal, apresentarei
algumas considerações sobre o colégio dos pontíices, suas atribuições e
funções, passando à observação de certos aspectos das relações entre o
princeps e membros dos aemilii, com destaque para o pontifex maximus
Marco Emílio Lépido, e à observação das linhas gerais das ações de Augusto
após 6 de março de 12, visando à compreensão da relevância do pontiicado
máximo na chamada restauratio augustana.

os sacerdócios, o colégio dos pontíices e o pontifex maximus

[...] os auspicia fundados por Rômulo, e os sacra por Numa, constituem os


fundamentos de nosso estado, que jamais teria sido capaz de se tornar tão
grande sem que tivéssemos o maior cuidado em aplacar os deuses imortais
(Cícero, de natura deorum, III.2.5).6

6 [...] romulum auspiciis, numam sacris constitutis fundamenta iecisse nostrae civitatis, quae numquam
profecto sine summa placatione deorum inmortalium tanta esse potuisset (tradução minha).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 17


cLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

O número e a complexidade dos colégios sacerdotais romanos são


características da religio publica que mais chamaram a atenção dos modernos.
Esses colégios, nos séculos II e I, tinham áreas de competência e obrigações
distintas, e tradicionalmente escolhiam seus membros, realizavam seus
próprios rituais ou supervisionavam rituais realizados por magistrados,
tomavam decisões relativas aos seus colégios ou que tangiam à vida pública,
e mantinham registros próprios. Estavam, portanto, envolvidos em diferentes
áreas da vida pública romana, desde festivais anuais, em datas ixas ou
móveis, até responsabilidades que atualmente diríamos “civis” e “políticas”,
e eram responsáveis diretos por numerosos rituais e registros públicos
(GoRDoN, 1990; SZEMLER, 1972).7
Em linhas gerais, estudiosos ressaltam algumas características dos
colégios sacerdotais romanos, no século I, que podemos tomar como
premissas: a autoridade religiosa era bastante distribuída entre os colégios;
os diversos colégios tinham diferentes responsabilidades e não interferiam
diretamente nas demais áreas de competência religiosa; os membros dos
colégios dividiam as responsabilidades entre si; nos séculos II e I, talvez
o pontifex maximus tivesse mais inluência que seus colegas, um destaque
que o augure maximus não parece ter tido, mas precisava consultá-los e
considerar sua opinião; os colégios tinham diferentes níveis de inluência na
vida religiosa e política; desde áugures e pontíices, muito destacados na cena
pública, aos colégios menores, havia uma nítida hierarquia religiosa e, por
im, os maiores colégios recrutavam seus membros na elite política romana,
ou seja, nas famílias senatoriais e na elite equestre (cf. esp. SCHEID, 1985,
p. 17-57). Neste ponto, remeto às pesquisas de John North (2011) e de Jörg
Rüpke (2005; 2011) sobre os colégios sacerdotais, sua composição, formas
de cooptação e eleição, regras e competências, e à economia de prestígio que
regia a busca por cargos sacerdotais.
Para a modernidade, o colégio sacerdotal mais destacado da “República
tardia” é o colégio dos pontíices, um colégio de grande complexidade
constituído não somente pelos pontiices, mas também pelo rex sacrorum,
pelas seis vestais e pelos lamines (lamen dialis, quirinalis, martialis e os
doze lamines menores), e Cícero (de re pub. II) acrescenta os sálios ao

7
Ver quadro dos colégios sacerdotais em Beltrão (2006, p. 146).

18 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


RELIGIÃO E PODER: AUGUSTO E O pontifex maximus (36-12 AEc)

colégio. Os pontíices, responsáveis pelo calendário e pelos aspectos rituais


dos cultos e festivais públicos,8 pela manutenção dos registros religiosos
públicos, pela interpretação dos prodígios e portentos, pela preservação
da forma correta de promessas e juramentos e pelas fórmulas rituais,
dedicações e sacrifícios eram também responsáveis pela supervisão das leis
funerárias, pelos casamentos de gentes patrícias, pelas adoções, testamentos
e heranças, emitiam pareceres sobre delitos religiosos e incestos, e outras
ações e elementos que diríamos pertencer ao âmbito privado das vidas
e relações humanas (BELTRão, 2013; VAN HAEPEREN, 2002). Cícero
exaltou a auctoritas, a ides e a prudentia dos pontíices, responsáveis pelas
cerimônias e pela instituição do sagrado (Har. resp. 14, 18; dom. 104);
Tito Lívio (a.u.c. I, 20.5-7) destacou a supervisão pontiical dos sacra, da
forma correta da realização dos rituais, e, segundo Varrão, no momento da
consagração de santuários, os pontíices especiicavam seus limites físicos
(l.l. 6, 54). os pontíices eram, em suma, os experts em ius sacrum e a
própria residência oicial do pontifex maximus, em pleno forum romanum,
indica sua importância religiosa, política e social.9 Mary Beard, John North
e Simon Price ressaltam os registros pontiicais, argumentando:

Há uma estreita conexão [...] entre seu interesse na continuidade da família


e em sua prática de manter registros; e muitas de suas funções compartilham
um interesse para com a preservação, do passado ao futuro, de status e direitos
nas famílias, entre as gentes e na comunidade com um todo – e também com a
transmissão ao futuro de ritos ancestrais. Isso garante ao calendário também

8
Segundo Macróbio (sat. 1.14.6), os pontíices eram os sacerdotes qui curabant mensibus ac diebus (os
sacerdotes que cuidavam dos meses e dos dias).
9
Ressaltamos a participação dos membros do colégio dos pontíices nas festas religiosas tradicionais – o
colégio tem uma importância quase exclusiva nas festas relacionadas ao ciclo natural do ano, exceção feita à
festa de dea dia, realizada pelos Arvais, sobre a qual temos documentos relativos a consultas dos Arvais ao
colégio dos pontíices acerca da execução do rito, e as fornacalia, de fevereiro, celebradas pelos membros das
cúrias, que faziam a torrefação dos grãos. Já nas festas do ciclo cívico vemos maior variedade de celebrantes
(outros collegia, magistrados). Há festivais para os quais não temos informação sobre os celebrantes
(terminalia, equirria), mas os pontíices celebravam um bom número delas (agonalia, carmentalia,
Virgo parentat, quirinalia, regifugium, argeus, Vestalia, uitutatio, equus october, bona dea, larentalia,
além dos sacrifícios das Calendas, das Nonas e dos Idos). É possível que os pontíices participassem com
os magistrados dos sacrifícios aos penates do Lavinium, e atesta-se também a participação dos pontíices
em cerimônias circunstanciais, como a confarreatio (a forma antiga do conuentio in manum), difarreatio,
a assistência a magistrados (por exemplo, quando dos votos extraordinários, seguidos de um senatus
consultum, o magistrado era assistido pelo pontifex maximus, que lhe ditava a fórmula: praeiunte pontíice
maximo).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 19


cLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

um papel central, com sua organização do tempo anual e em suas funções cor-
respondentes, e sua ênfase na prática ritual transmitida como um modelo para
o futuro. Os pontíices [...] ligam o passado ao futuro pela lei, pela memória e
pelo registro (BEARD; NoRTH; PRICE, 1998, p. 26. v. I).

Este colégio e seu mais destacado membro, o pontifex maximus,


assomam no século I como elementos centrais na vida pública em geral e
na religio romana, em particular, ao lado do colégio dos áugures, ao qual
tradicionalmente cabiam os auspicia e as inaugurationes de pessoas, edifícios
e lugares. A aprovação de uma lei ou a eleição de um magistrado, e.g., eram
atos que exigiam a prévia tomada dos auspícios, e a validade desses auspícios
era jurisdição dos áugures, responsáveis pelo ius augurale, grosso modo o
sistema de regras tradicionais que os controlava (LINDERSKI, 1986).10
o pontifex maximus parece ter tido um destaque especial. É possível que
convocasse seu collegium e detivesse alguma autoridade especial em relação
às vestais, ao rex sacrorum, aos lamines e, a crer em Cícero, aos sálios. Esse
destaque não invalidava o caráter colegiado dos pontíices, pois suas decisões
são apresentadas em textos antigos, literários ou epigráicos, a exemplo de
decretos do colégio, bem como a ausência do pontifex maximus não parece
ter impedido o colégio de tomar decisões, segundo o princípio do tres
faciunt collegia (Cícero, de domo sua, 2-3). Essas informações denotam, com
clareza, a importância religiosa, política e social desses colégios sacerdotais,
sem que os destacados pontíices e áugures fossem os únicos. o Senado e
as magistraturas em suas decisões e ações públicas, o populus nos comitia e
mesmo cidadãos em questões particulares (priuati) podiam contar com esses
experts em assuntos religiosos e nas leis.
A obtenção de um cargo sacerdotal era, portanto, de fundamental
importância para a carreira pública dos nobiles romanos, e essa importância
transparece nos modos como estes são representados. Esses sacerdócios

10
Importa observar que o ius augurale não implicava que os áugures pudessem invalidar leis ou eleições
per se, mas muitas vezes se envolviam em disputas e controvérsias políticas. Na República tardia, querelas
políticas envolvendo áugures não eram incomuns. Um exemplo famoso é a legislação controversa do início
dos anos 50, em que os oponentes de César e seus aliados repetidamente tentaram fazer com que suas
ações fossem invalidadas e/ou canceladas dada uma objeção religiosa quanto à sua validade (BEARD;
NoRTH; PRICE, 1998, p. 126-9. v. I).

20 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


RELIGIÃO E PODER: AUGUSTO E O pontifex maximus (36-12 AEc)

garantiam prestígio e autoridade, além de conhecimentos especializados e,


não menos importante, a solidariedade dos colegas, criada e consolidada em
ritos e banquetes sacerdotais.
Restringindo o foco de observação apenas a moedas de personagens
célebres entre os anos 60-30, vemos insígnias de colégios sacerdotais
em destaque. No caso de Júlio césar é notória a recorrência de suas
representações como pontifex maximus e/ou com insígnias pontificais
(e.g., RRc 443/1); insígnias pontiicais também surgem em moedas de Bruto
(e.g. RRC 502), enquanto instrumenta sacra dos xV uiri sacris faciundis são
utilizadas por Cássio (RRC 498); Pompeu se fazia representar como áugure
(e.g. RRC 402), assim como Marco Antônio (e.g. RRC 496) e Sexto Pompeu
(RRC 511), e chegaram até nós muitas moedas nas quais otaviano era
representado como pontíice e áugure (e.g. RRC 537). Estes são exemplos
pontuais de um intenso investimento nos cargos, nas competências e nos
poderes dos colégios sacerdotais, pelos quais podemos entrever o destaque
e o valor desses collegia na vida pública romana.

os Aemilii e marco emílio lépido

Em meio à confusão e ao tumulto, M. Lépido usurpou o pontiicado máximo


(Tito Lívio, periochae, 117).11

Após o assassinato de Júlio César e a consequente vacância de seus cargos


sacerdotais, seu magister equitum, Marco Emílio Lépido, tornou-se pontifex
maximus numa eleição feita pelos sacerdotes e presidida por Marco Antô-
nio, cônsul colega de César (D. Cássio, Hist. rom. xLIV, 53, 6-7). Suetônio
(iul. LxxVI.1) diz que Antônio realizou poucos ou nenhum dos ritos usuais
deste tipo de eleição. Antônio, porém, era membro do colégio dos áugures
e fora recentemente nomeado lamen de César, ou seja, provavelmente era
competente em matéria religiosa. Mas, ao contrário de outros autores anti-
gos, Suetônio não desenvolve o tema da suposta irregularidade da eleição
de Lépido como pontifex maximus, como chama a atenção David Wardle
(2011, p. 273-5), enfatizando a “magnanimidade” de otaviano por não o
privar de seu cargo sacerdotal e aguardar tantos anos para obtê-lo (ver tb.

11
in confusione rerum ac tumultu m. lepidus pontiicatum maximum intercepit (tradução minha).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 21


cLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

SIMPSON, 2006; RIDLEy, 2005; WEIGEL, 1992; TAyLOR, 1942).12 A histo-


riograia moderna acreditou nas versões augustanas e posteriores dessa elei-
ção, apesar de Cícero na philippica ii, seu mais contundente ataque a Antônio,
ou em outros textos, nada dizer sobre irregularidades na eleição de Lépido
como pontifex maximus – o que é um forte indício de que a eleição de Lépido
tenha ocorrido dentro da normalidade institucional. Ao que tudo indica, os
pontiices maximi eram tradicionalmente escolhidos pelos seus colegas (Tito
Lívio, a.u.c. 43, 11.13), e as eleições para esse posto parecem ter ocorrido
apenas em 140, 81 e 63 (NoRTH, 2011; RÜPKE, 2005). Além disso, qualquer
irregularidade de Antônio numa ação religiosa pública provavelmente não
seria desperdiçada por Cícero em suas invectivas contra o triúnviro.
Análises de North (2011; 1990) e de Rüpke (2005) permitem lançar luz
sobre a questão da eleição do pontifex maximus. Até a lex domitia, de 104, a
eleição era feita exclusivamente por sacerdotes, apesar de, a partir do século
III, haver indícios de algum tipo de eleição por 17 das 35 tribos eleitorais
de Roma. Após 104, a eleição do pontifex maximus foi expandida a todas as
tribos, mas a cooptação sacerdotal foi restaurada por Sila. Em 63, quando
o pontifex maximus q. Cecílio Metelo morreu, foi restabelecido o princípio
eleitoral pelo tribuno T. Labieno (lex labiena). Nesse momento, Júlio César
foi eleito pontifex maximus, concorrendo com P. Servílio Vatia Isáurico (cos.
79) e q. Lutácio Catulo (cos. 78). Há indícios de que, com a morte de César,
foi aplicado o princípio da cooptação pelos pares, e o magister equitum M.
Lépido, o segundo homem na vida política de Roma, procônsul da Gália
Narbonense e da Hispânia Citerior, tinha todos os requisitos familiares,
títulos e experiência para ser pontifex maximus sem qualquer problema,
numa seleção legítima (WEIGEL, 1992; SIMPSoN, 2006; LANGE, 2009).
Lépido foi cônsul em 46 e 42, e triumphator duas vezes, além de ter recebido
do Senado a honra pública de uma estátua equestre (Cícero, phil. V, 40). Em
suma, a acusação posterior de “usurpação” do cargo sacerdotal por Lépido
pode ter sido uma criação augustana.

12
Para David Wardle (2011, p. 273), Suetônio dá pouco destaque às questões relativas à chegada de Augusto
ao cargo de pontifex maximus talvez porque, em sua época, este cargo sacerdotal fosse um direito inalienável
do princeps, ressaltando, contudo, que é preciso pensar o que o cargo signiicava na República tardia.
Júlio César foi eleito para o cargo e Augusto teve de esperar longos anos por ele, até a morte de seu rival,
Lépido.

22 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


RELIGIÃO E PODER: AUGUSTO E O pontifex maximus (36-12 AEc)

Para alguns historiadores, o mais importante nesse caso é perguntar


por que Lépido, o colega triúnviro de Otaviano e Antônio, permaneceu no
cargo por tantos anos após ter sido derrotado, preso e exilado por Otaviano.
Beard, North e Price (1998, p. 189. v. I), e.g., ressaltam o uso político da não
destituição (ou assassinato) de Lépido por Otaviano/Augusto, enquanto
Karl Galinsky (1996, p. 294) defende uma “obediência à estrita legalidade”
do princeps, o que é bastante discutível por suas diversas manifestações de
“desobediência”.13 É certo que Otaviano poderia ter mandado matar Lépido
em 36, quando retirou dele o comando da Sicília, ou mesmo depois disso,
mas o único precedente era o caso do assassinato do pontifex maximus cévola
no uestibulum da casa das vestais por partidários de Mário, em 82 (cícero,
de or. III, 10). Então, talvez matar Lépido não fosse muito recomendável.
E se a eleição de Lépido fosse discutível, Otaviano poderia tê-la questionado,
ou mesmo tê-lo destituído do cargo sacerdotal, mas talvez não o fosse, ou
talvez o princeps não tivesse suiciente autoridade religiosa para ir contra
uma ação de Antônio, áugure e lamen diui iulii, assim como é possível
que o apoio político da gens aemilia não fosse desprezível à época, e nas
décadas seguintes, para o jovem César. Seja como for, o fato é que entre
36 e 13, otaviano/Augusto optou por – ou teve de – manter Lépido como
pontifex maximus, bem como teve de lidar com sua autoridade religiosa.
Uma observação da gens aemilia pode ser útil neste ponto.
Marco Emílio Lépido era um dos membros mais importantes dos
aemilii, uma prestigiada gens patrícia. Como outras gentes republicanas,
os aemilii faziam suas origens remontarem aos deuses e a personagens
fundadoras de Roma. Plutarco (rom. II. 3), e.g., reporta duas tradições:
numa, é feita alusão a uma vestal aemilia, que seria ilha de Enéias e Lavínia
e, mesmo, mãe de Rômulo e Remo. Em outra tradição, mamercus aemilius
seria ilho de Numa Pompílio (numa, VIII, 18-9; aem., II.2). Mesmo sendo
tardias, nessas narrativas os aemilii surgem vinculados às origens de Roma.
Nos fasti consulares, o primeiro registro de um aemilius é o de L. Emílio
Mamerco (cos. 484, 478 e 473; cf. WISEMAN, 1993, p. 183), fazendo o nome
remontar ao século V.

13
Para as ações dos triúnviros, ver Lange (2009).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 23


cLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

Essa gens se dividia em sete ramos, e os aemilii lepidi surgem nos


fasti com um M. Emílio Lépido, cônsul em 285. No século II, outro M.
Emílio Lépido foi censor em 179, cônsul em 187 e 175, triumphator, seis
vezes princeps senatus e tornou-se pontifex maximus, o primeiro aemilius
registrado como tal. Esse Lépido deixou também sua marca no plano
urbanístico, construindo o porticus aemilia com seu parente, L. Emílio Paulo
e, em 187, a via aemilia, que ligava Placentia ao Ariminum (Tito Lívio. a.u.c.,
xxxIx, 2 .10).14 Em 79, seu neto M. Emílio Lépido teria sido o responsável
pela primeira restauração da basilica aemilia-fulvia (Plínio, nH, xxxV, 13),
um dos mais destacados edifícios do forum romanum. Nos séculos II e I, os
aemilii foram responsáveis por muitas construções (pons aemilius, porticus
aemilia, aedes aemiliana, talvez um lucus aemilius, e a basilica aemilia).
Esse M. Emílio Lépido, pai do triúnviro, era um personagem controverso
na vida pública romana, surgindo como partidário de Mário, em 83, e
de Sila, em 80; ele foi governador da Sicília, beneiciário das proscrições,
restaurador da basilica aemilia-fulvia com inanciamento privado, cônsul
em 78, apresentou propostas que foram consideradas populares, como a
restauração dos poderes dos tribunos da plebe e a redistribuição de terras
e de grãos a cidadãos. Tornando-se procônsul, foi proscrito em 77 por ter
apoiado veteranos insurgentes de Sila em Fiesole. Foi combatido por Pompeu
e derrotado por q. Lutácio Catulo no Janículo, e por Pompeu na Etrúria,
morrendo na Sardenha, onde se refugiou (WISEMAN, 1993; WEIGEL,
1992). Ele foi um dos mais ricos nobiles romanos e sua domus era uma das
mais belas de Roma (Salústio. Hist. 18). Destaque-se que este Lépido tornou a
basilica plena de imagines clipeatae, gloriicando sua domus e seus ancestrais,
e a partir de então a basilica será nomeada apenas aemilia. Gilles Sauron
(1994, p. 173-6) apontou nesta restauração uma apropriação gentilícia de um
monumento público sancionado pelo Senado. Lépido, o triúnviro, nascido
em 89-88, foi seu terceiro ilho. o ilho mais velho fora adotado por L.
Cornélio Cipião Asiático, e o segundo chamava-se L. Emílio Paulo.15

14
L. Emílio Paulo era mais conhecido como conquistador da Macedônia e pai de Públio Cornélio Cipião
Emiliano, o Africano.
15
o fato de ter sido o terceiro ilho, e não o segundo – pois o mais velho fora adotado – a ter os tria nomina
do pai não é usual nas gentes romanas.

24 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


RELIGIÃO E PODER: AUGUSTO E O pontifex maximus (36-12 AEc)

Os irmãos L. Emílio Paulo e M. Emílio Lépido foram triumuiri


monetales em 62-61, e as moedas emitidas por Lépido fazem referência à
Vestal aemilia e às origens míticas de sua gens, a seu avô (censor em 179 e
pontifex maximus) e à basilica aemilia – uma referência a seu pai, portanto,
exemplo de pietas familiar, mas também um vetor de autopromoção política
(e.g. RRc 419/3ª; PEREZ, 1989). Seu irmão, o jovem Paulo, edil curul em
54, é citado por cícero, numa carta a ático, como responsável por uma nova
restauração da basilica (att. 4. 16), mas essa obra não estava terminada em
50, quando Paulo se tornou cônsul. Júlio césar inanciou as obras – segundo
Plutarco (caes. xxIx), desejando angariar apoio para a prorrogação de seu
imperium nas Gálias –, e a restauração ainda não estava encerrada nos Idos
de março de 44.
Por sua vez, o “cesariano” Lépido foi interrex em 52, pretor em 49,
procônsul na Hispânia Citerior em 48-47, triumphator, cônsul em 46 e
magister equitum de César entre 46 e 44, tendo sido responsável por algumas
intervenções arquitetônicas na urbs inanciadas pelo dictator, como o início
da construção das saepta (D. Cássio, Hist. rom. LIII, 23.2), e do templo
da felicitas, talvez no local da antiga curia cornelia (CoARELLI, 1985,
p. 235-6). Após o assassinato de César, Lépido foi novamente procônsul
da Hispânia Citerior e da Gália Narbonense, e mais uma vez triumphator,
cônsul em 42 e procônsul da áfrica em 40-36. Percebe-se, portanto, que a
carreira política de Lépido foi das mais brilhantes até o ponto de “inlexão”:
sua derrota e destituição por otaviano. Após sua derrota, seu sobrinho,
L. Emílio Paulo, se reconciliou com otaviano, foi cônsul sufectus em 34
e dedicou, inalmente, a basilica aemilia neste ano (D. Cássio, Hist.rom.
xL, 42.2).16 Com isso, o status e a continuidade da gens aemilia foram
salvaguardados.
R. D. Weigel (1985) ressaltou a preocupação de Augusto em manter
boas relações com os aemilii. o princeps tinha necessidade do apoio das
antigas gentes para assegurar seu poder, e se associou a alguns membros do

16
A basilica aemilia foi incendiada em 14 e restaurada por Augusto e por amici dos aemilii (D. Cássio,
Hist. rom. LIV, 24.2) e uma nova restauração foi realizada por um ilho de L. Emílio Paulo, chamado M.
Emílio Lépido, em 22 EC (Tácito, ann. III, 72). Foi sobre esta nova versão da Basílica que Plínio, o Velho
teceu seus comentários elogiosos (nH, xxxVI, 102)

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 25


cLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

ramo Lépido dos aemilii, garantindo-lhes cargos políticos e sacerdócios,


bem como consolidou essas relações com alianças matrimoniais.17 E os laços
entre a domus augusta e a gens aemilia são visíveis quando observamos a
basilica aemilia: após a vitória de ácio, Otaviano promove intervenções
arquitetônicas que transformam o aspecto do forum romanum, garantindo-
lhe elementos que promovem o prestígio da domus augusta. A basilica
aemilia, ao sul, recebeu vários investimentos de Augusto e, pouco antes de
sua morte, apresentava então uma fachada de duas ordens superpostas de
seis arcos sobre pilares com colunas, através das quais era entrevisto o Pórtico
de Gaio e Lúcio,18 os falecidos netos e herdeiros de Augusto, dedicado em
12 Ec (RIcHARDSON, 1992, p. 56). Integrava-se a ordem republicana e as
antigas gentes à nova ordem “augustana”.

o pontifex maximus e as ações religiosas de augusto

E, inalmente, ocupei o sacerdócio alguns anos depois, após a morte daquele


que aproveitou a oportunidade da guerra civil para usurpá-lo, e por ocasião da
minha eleição, sob os cônsules P. Sulpício e C. Válgio, uma imensa multidão
aluiu da Itália, tão grande quanto jamais se vira antes (rg, 10.3).19

Ao subir sexto sol do oceano ao polo/ ó vós, que rendeis culto à prisca Vesta,/
taças levai, e incenso ao fogo ilíaco./ Do grande César aos títulos sem conta/
acresceu neste dia o que mais enche/ de almo prazer; por tê-lo merecido: a
suma, a pontifícia autoridade (ovídio, fasti, III, 415-420)!20

17
L. Emílio Lépido, cônsul de 1 EC, foi casado com Júlia, neta de Augusto e ilha de Júlia e de Agripa, e desta
união nasceu Emília Lépida, que foi prometida ao futuro imperador Cláudio; uma ilha de M. Emílio
Lépido, cônsul de 6 EC, casou-se com Druso, ilho de Germânico, dentre outros casamentos (WEIGEL,
1985, p. 185).
18
Um incêndio na primeira década EC destruiu a basilica iulia, dedicada pelo jovem otaviano; em seu
lugar, Augusto reconstruiu-a como um memorial para seus netos Gaio e Lúcio (rg, 20).
19
quod sacerdotium aliquod post annos, eo mortuo qui civilis motus occasione occupaverat, cuncta ex italia
ad comitia mea conluente multitudine, quanta romae nunquam fertur ante id tempus fuisse, recepi, p.
sulpicio c. Valgio consulibus (tradução minha).
20
sextus ubi oceano clivosum scandit olympum/ phoebus et alatis aethera carpit equis,/ quisquis ades
castaeque colis penetralia Vestae,/ gratare, iliacis turaque pone focis. /caesaris innumeris, quos maluit ille
mereri,/accessit titulis pontiicalis honor (Tradução de Antônio Feliciano de Castilho para clássicos Jackson:
Horácio/Sátiras; ovídio/os Fastos. São Paulo: W. M. Jackson, 1970. v. IV.).

26 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


RELIGIÃO E PODER: AUGUSTO E O pontifex maximus (36-12 AEc)

Textos como os supracitados criaram uma imagem de um consenso


universal – ou, pelo menos, itálico – em torno de Augusto, o novo pontifex
maximus. certamente, ser o pontifex maximus permitiu-lhe promover
reformas religiosas importantes na urbs, que só foram possíveis após a morte
de Lépido. como se sabe, Lépido viveu no exílio, em circeii, durante quase
um quarto de século após sua derrota, e questões sobre como o pontifex
maximus pôde ter sido um exilado por tanto tempo, sobre quais as relações
entre as reformas religiosas e arquitetônicas augustanas e o pontifex maximus,
dentre outras, ainda demandam estudos.
com apenas 15 anos, em 48, Augusto, então c. Otávio, foi nomeado
pontíice, ocupando o lugar de L. Domício Enobarbo, morto em Farsália.
No momento em que o colégio dos pontífices escolheu Lépido como
pontifex maximus, otávio ainda não era reconhecido pela lei (baseada no ius
pontiicale) como ilho de Júlio César, o que só ocorreu em agosto ou setembro
de 43. Na condição de pontíice, o jovem César estava, portanto, teoricamente
submetido ao pontifex maximus, ou seja, estava sob a autoridade de Lépido.
Consequentemente, o colégio das vestais, os lâmines maiores, o calendário
e parte do direito sagrado lhe escapavam, e as ações religiosas realizadas
pelo princeps entre 36 e 12, rigorosamente falando, não necessitavam da
intervenção do colégio dos pontíices. Augusto, portanto, parece ter evitado
todas as reformas religiosas que exigiam o recurso ao colégio dos pontíices
enquanto Lépido estava vivo, e as ações posteriores à morte de seu rival, que
ocorreram em curto espaço de tempo, podem ser observadas, para além das
restaurações de sacerdócios, em suas intervenções no tempo (calendário) e
no espaço (intervenções arquitetônicas) da urbs.
Em relação aos sacerdócios, e.g., o pontifex maximus tinha um papel
central no processo de seleção (captio) dos lâmines e das vestais, e Augusto
parece ter postergado a nomeação dos postos vacantes desses sacerdócios
até sua inauguração como pontifex maximus. Françoise van Haeperen (2002,
p. 261-2) cogita que, se o novo lamen dialis celebrou a supplicatio na eleição
de Augusto como pontifex maximus,21 então o novo sacerdote pode ter sido
designado quase imediatamente após Augusto, sendo uma das primeiras

21
A principal referência literária para os ritos da eleição de Augusto como pontifex maximus é ovídio, fasti,
3. 417-20. A presença do lamen dialis na procissão do lado sul da ara pacis é também um indício para
uma rápida nomeação do novo sacerdote.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 27


cLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

nomeações, junto com novas vestais. Por sua vez, o controle do calendário,
competência dos pontíices, era um elemento central do governo da urbs.
A reforma promovida por Júlio César modiicou o tradicional calendário
lunar romano, aumentando o número de dias e alinhando-os ao ano solar
(cf. esp. RÜPKE, 2011, p. 109-39). Com isso, problemas e diiculdades
advindos das intercalações irregulares poderiam ser eliminados, e os
pontíices passariam a acrescentar apenas mais um dia em fevereiro, a cada
quatro anos completos, a im de que se mantivesse a correspondência entre
o calendário e o ciclo natural das estações. Para Rüpke, os sacerdotes teriam
seguido à risca o texto do edito cesariano,22 mas isso levou a um erro, pois
o mês tradicional da intercalação era fevereiro, e o acréscimo de um dia
após o quarto ano completo implicaria a intercalação no início do quinto
ano. Seria este o motivo que, segundo Rüpke, levou ao fato de os pontíices
acrescentarem o dia extra no terceiro ano e à não solução do problema das
intercalações irregulares. No ano 8, o problema foi solucionado pelo colégio
dos pontíices presidido por Augusto através do ajuste do texto do edito de
César,23 acompanhado pelo senatus consultum que alterava o nome do mês
sextilis em sua homenagem (Suet., aug. 31.2).24 Para John Scheid (1999,
p. 15), “o ajuste permitia aperfeiçoar e completar a obra de César, mostrando
um príncipe preocupado com a ordem do mundo. Por outro lado, ele podia
ressaltar a incompetência do grande pontíice Lépido”. Andrew Wallace-
Hadrill (2008, p. 244) segue esta mesma linha interpretativa, argumentando
que Augusto soube capitalizar este erro do colégio sacerdotal no período de
Lépido “para destacar a falta de legitimidade da velha aristocracia pontiical”.
Augusto era um dos pontíices, e é difícil compreender de outro modo o
longo atraso no ajuste, relativamente simples, do calendário juliano. Mas
também podemos supor que Augusto desejasse evitar qualquer possibilidade
de resistência ativa de Lépido e/ou atritos com os aemilii.
No que tange às intervenções arquitetônicas, é interessante observar
que os primeiros templos a serem restaurados na urbs não foram nem os

22
Toda e qualquer alteração no calendário tinha de ser aprovada por um senatus consultum ou por uma
lei, e o aconselhamento do colégio dos pontíices sob a presidência do pontifex maximus era requerido.
Segundo Macróbio, o edito de César trazia a determinação: quarto quoque anno confecto, antequam
quintus incipere (sat. 1,14,13-4).
23
Segundo Macróbio, o texto do senatus consultum propunha: quinto quoque incipiente anno (sat. 1, 14, 14-5).
24
Suetônio destaca o controle do calendário como elemento central do governo da urbs e o vincula à obtenção
do pontiicado máximo por Augusto.

28 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


RELIGIÃO E PODER: AUGUSTO E O pontifex maximus (36-12 AEc)

maiores, nem os mais destacados templos do século I, e sim os mais antigos


(Júpiter feretrius, Victoria e Saturno), e que as inovações arquitetônicas do
período anterior à morte de Lépido foram feitas extra urbem, especialmente
no campo de Marte (cf. esp. HASELBERGER, 2007). A ênfase da análise
de Lothar Haselberger nos aspectos legais das construções augustanas é
relevante, distinguindo o espaço físico da urbs propriamente dita – o solo
sob a jurisdição do colégio dos pontíices (BELTRão, 2013) – dos demais
espaços físicos da cidade de Roma (cf. tb. GRANDAZZI, 2010). Por exemplo,
até se tornar pontifex maximus, Augusto não promoveu nenhuma alteração
na regia, nem na domus publica, a residência oicial do detentor deste
sacerdócio, vizinhas ao aedes Vestae no forum romanum. Após se tornar
pontifex maximus, Augusto não mudou sua residência para a domus publica
tradicional, mas uniu esse edifício ao atrium Vestae e declarou parte de sua
domus no Palatino como propriedade pública, na qual instituiu um culto a
Vesta. Do mesmo modo, Augusto transferiu os Livros Sibilinos do Capitólio
para o Palatino,25 e restaurou o templo dos Lares na Via Sacra após 12
(rg. 19; cf. esp. GALINSKy, 1996, p. 216; 293-204; 300; PRICE, 1996, p.
827-8), bem como as reformas urbanas e religiosas relacionadas ao culto dos
lares compitales,26 que demandavam a participação do pontifex maximus,27

25
A transferência dos Livros Sibilinos, do Capitólio ao Palatino, envolvia as competências do colégio dos
pontíices e do colégio dos xV uiri sacris faciundis, ao qual Augusto também pertencia.
26
J. Scheid (1999, p. 18-9) data a restauração das compitalia em 12, com base em CIL 6.452, ligando-a
diretamente à eleição de Augusto como pontifex maximus, mas J. Bert Lott (2004, p. 35-7) defende a data de
7, fazendo coincidir a restauração do festival com a inauguração da reforma dos uici, controlando os bairros
e canalizando o potencial religioso dos lares compitales para si mesmo, o que me parece convincente.
27
É possível, contudo, que Lépido tenha estado em Roma algumas vezes durante seu ostracismo e, mesmo,
tenha participado de reuniões do Senado, mas não há referências nem indícios seguros de participações
de Lépido em rituais atuando como pontifex maximus. Sobre sua participação em reuniões do Senado, a
referência mais famosa é um comentário tardio sobre o comportamento de Augusto em relação a Lépido,
de Dion Cássio: “[...] No tempo do qual estamos falando, Augusto executou alguns homens; no caso de
Lépido, embora o odiasse, entre outras razões porque seu ilho fora detectado num complô contra ele e
fora punido, contudo, ele não quis matá-lo, mas manteve-o sujeito a diversos tipos de insultos ao longo do
tempo. Assim, podia ordenar-lhe que [Lépido], querendo ou não, deixasse sua propriedade no campo e
voltasse à cidade, e podia sempre levá-lo às reuniões do Senado, de modo que pudesse ser submetido a graves
zombarias e insultos, e assim pudesse perceber sua perda de poder e dignidade. Em geral, não o tratava
como alguém digno de qualquer consideração de sua parte, e nas vezes em que era chamado a votar, o fazia
como o último dos ex-cônsules. [...] Foi assim que ele costumava tratar Lépido. E, quando Antístio Labeão
escreveu o nome de Lépido entre aqueles que podiam ser senadores, no momento em que o processo de
seleção que descrevemos ocorria, o imperador primeiro declarou que ele [Labeão] cometera perjúrio contra
si e ameaçou puni-lo. Então, Labeão respondeu: ‘Por quê? que mal iz ao manter no Senado aquele a quem
você até agora permitiu ser o sumo pontíice?’ Com isso, Augusto abrandou sua ira, pois, embora ele tivesse
sido muitas vezes convidado, privada ou publicamente, a ocupar este sacerdócio, não se sentia no direito
de fazê-lo enquanto Lépido vivesse (D. Cássio, Hist. rom. 54, 15.4-7; seguimos aqui a tradução inglesa de
E. Cary para a loeb classical library).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 29


cLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

foram postergadas até que Augusto se tornou o pontifex maximus. É certo que
os sacra regulares dispensavam a presença do pontifex maximus,28 podendo
ser realizados por outro pontíice, agindo como promagister,29 contudo,
intervenções radicais no espaço da urbs dependiam do consenso do colégio
dos pontíices, que Augusto, ao que parece, não mantinha sob seu controle
enquanto Lépido viveu.
Por esses dados, é possível perceber que a obtenção do pontiicado
máximo foi signiicativa para as ações augustanas, permitindo a Augusto a
consecução de ações capitais na urbs, que, até então, eram diicultadas, ou
mesmo impedidas, pelo pontifex maximus Lépido. E, após 12, o investimento
nas restaurações urbanas e institucionais na urbs foi visivelmente intensiicado,
encontrando seu eco na nova mitograia augustana. o pontiicado máximo de
Augusto foi exaltado por escritores augustanos, que destacaram uma ligação
entre o princeps – ilho do divino Júlio – com Vesta, cujo fogo teria sido
trazido de Troia à Itália por Enéias, antepassado dos iulii, e transferido de Alba
Longa para Roma, e com Rômulo, ilho de uma vestal e de Marte (Virgílio,
aen. II, 296, 567; ovídio, fasti I, 527-8; III, 29; VI, 227; Dion. Hal., II, 65.2).30
o augustus estava, portanto, ligado à Vesta, e essa conexão foi corporiicada
em sua domus no Palatino. Beard, North e Price (1998, p. 191, v. I) comentam:

Não só o pontifex maximus agora podia ser chamado “príncipe de Vesta” (ovídio,
fasti, III, 669); não só Vesta foi realocada num novo cenário imperial, mas, e mais
crucialmente, a lareira pública do Estado, com sua associação ao bom sucesso do
Império Romano, foi fundida com a lareira privada de Augusto. o imperador (e
sua casa) podia agora ser chamado a representar o Estado.

28
Ridley (2005, p. 296) apresenta uma lista de ausências de pontiici maximi de Roma, iniciada com Cipião
Barbatus, pontifex maximus entre 304 e 208, ausente durante 4 anos durante as Guerras Samnitas; Crasso
Dives (pontifex maximus entre 212 e 183), ausente durante a guerra contra Aníbal; M. Emílio Lépido
(pontifex maximus entre 180-152), fora de Roma quando foi procônsul na Ligúria; Cipião Nasica (pontifex
maximus entre 141 e 132), ausente quando atuou como legado na ásia; Crasso Muciano (pontifex maximus
entre 132 e 130), o primeiro pontifex maximus a se ausentar da Itália durante um longo tempo; Metelo
Pio (pontifex maximus entre 81 e 63), ausente de Roma entre 79 e 71, quando foi procônsul na Hispania,
e do próprio Júlio César (pontifex maximus entre 63 e 44), quando ocupou o proconsulado da Gália entre
58 e 50, e durante as guerras civis de 49 a 45. cf, também Rüpke (2005).
29
o promagister é atestado, no Principado, por uma inscrição de 155 EC (cil, VI 2120, ils 8380, cil¸VI,
32398a), e anteriormente para o colégio dos Arvais (SCHEID, 1990), substituindo o pontifex maximus
na Itália em caso de afastamento.
30
Dionísio de Halicarnasso (II, 65.2) apresenta também a versão de Numa como instaurador do culto de
Vesta, assim como Tito Lívio (a.u.c. I, 20).

30 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


RELIGIÃO E PODER: AUGUSTO E O pontifex maximus (36-12 AEc)

O sucesso e a longevidade das reformas religiosas augustanas não foram,


porém, simples derivações do pontiicado máximo, pois o princeps detinha
outros sacerdócios que agiam sobre a urbs e cujas competências foram
fundamentais para a realização das ações governamentais e reformas do
período, a começar pelo augurato, de cujo caráter deriva seu maior título,
augustus.31 Esse feixe de poderes sacerdotais, para o qual Jean Gagé (1931)
chamou a atenção, vem sendo paulatinamente explorado por especialistas
em religião romana, mas muito resta a pesquisar (e.g. KEARSLEy, 2009;
DALLA RoSA, 2011). o pontificado máximo, contudo, conferiu-lhe,
somada às competências dos demais sacerdócios que ocupava, a expertise
em direito sagrado. Do mesmo modo, é preciso repensar a crença moderna
numa vitória inabalável de Augusto e num “consenso universal” cantado por
ovídio e outros escritores. A consolidação do poder e do prestígio religioso
de Augusto e, ressalto, de sua gens, a nova domus augusta, foi um longo
processo e, distintamente do postulado tradicional de que o Principado
augustano representou a individualização do poder centrado no princeps em
detrimento das grandes famílias romanas, há fortes indícios de que as gentes
e suas inter-relações foram elementos fundamentais e nada desprezíveis de
um movimento que elevou uma gens ao patamar divino e tornou impensável
que o pontifex maximus fosse outro que não o princeps que vivia no Palatino.

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31
É como augure que Augusto, e.g., realiza as transformações físicas e religiosas do Palatino, bem como a
transferência dos Livros Sibilinos para seu novo templo de Apolo deveu-se a uma conjugação de poderes
sacerdotais.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 31


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34 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


eNtre CalÍGula e Nero:
o GoVerNo De CláuDIo Na oBra De DIoN CáSSIo

Ana Teresa Marques Gonçalves

Os trabalhos sobre a cidade de Roma e seu Império tendem, cada vez


mais, a enfatizar a diversidade frente à unidade, defendendo a utilização
de conceitos plurais no lugar de termos no singular. Temos culturas,
identidades, tradições, representações, sempre no plural, ressaltando a
diversidade de formas de análise que se impuseram a partir da ampliação
das temáticas, metodologias, documentos de naturezas diversas, teorias e
práticas empregadas na elaboração de relatos sobre a vida e os costumes dos
romanos. Sempre nos lembramos da airmação de Jean orieux (1989, p. 41),
num texto sobre a construção de biograias, que airma: “outros disporão,
sem dúvida, de chaves diferentes para forçar as portas da História”.
Ao nos debruçarmos sobre a obra História romana, de Dion Cássio
Cocceiano, pudemos perceber a seleção de conteúdo feita pelo autor, bem
como sua preocupação estilística e retórica na produção de sua narrativa.
Devemos também sempre recordar que seu relato nos chegou por meio
de uma reconstrução elaborada ao longo dos séculos xVIII e xIx, da qual
participaram inúmeros linguistas e ilólogos, de origens e formações diversas,
que concorreram para a formatação do que seria um corpus diôneo a partir
dos epitomes, dos fragmentos e das cópias que nos chegaram por meio de
onze manuscritos produzidos no século xI, que copiavam extensas e diversas
partes da obra de Dion. A maior parte do texto que compõe atualmente a obra
diônea foi recuperada dos breviários dos monges bizantinos João xiphilino,
monge copista em Constantinopla, e Zonaras, secretário do imperador Alexis I
e monge copista do Mosteiro de Athos. Pelos fragmentos dos primeiros livros,
percebe-se que a narrativa começava com a chegada de Enéias à Península
Itálica, prolongava-se para a descrição do sistema de realeza (basileia) e se
estendia até as primeiras conquistas territoriais romanas. Dion chega a citar,
por exemplo, diretamente Plutarco, para falar de Pirro (Dion Cássio, História
romana, Ix, 8.2). Sua narrativa se estendeu até o período severiano, cujos livros
encontram-se dentre os mais fragmentados e lacunares da obra como um todo.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 35


ANA TERESA MARqUES GONçALVES

Apesar destas características, que marcam a narrativa e que certamente


restringem as possibilidades de análise da obra diônea, parece-nos que
os epitomadores permitiram a permanência de certo estilo de escrita que
marcou a confecção do relato. Nas partes que nos sobraram, é possível
perceber a preocupação de Dion em enfatizar a relevância de seu relato
pela grandeza dos fatos narrados e pela forma como o conteúdo estaria
disposto, de forma cronológica e encadeada, garantindo uma leitura e/ou
audição agradável e adequada ao gênero histórico. Enquanto, nos primeiros
livros, enfatiza sua disposição de utilizar as melhores fontes existentes no
seu tempo, nos últimos livros apresenta-se como testemunha dos fatos
relatados, garantindo a veracidade possível do que foi disposto, como, por
exemplo, quando descreve sua presença num banquete promovido por
Septímio Severo para os senadores, por ocasião de seus Jogos Decenais:
“E nós participamos juntos de um banquete, em parte real em parte com
um estilo bárbaro, no qual foram servidos não somente todas as costumeiras
carnes cozidas, mas também carne crua e diversos animais ainda vivos”
(D. cássio, Hist. rom. LxxVII, 1.3).
Recordemos ainda que o período de vida de Dion cássio se estendeu
provavelmente de 150 a 235 d.C. Era ilho do governador da Cilícia e foi
feito governador de Pérgamo e Esmirna, cônsul em 220 d.C., procônsul
na áfrica, governador da Dalmácia e da Panônia e cônsul novamente
em 229 d.C., como o próprio Dion indica na sua obra. Assim, trata-se a
obra diônea da impressão gráica do pensamento e do imaginário de um
membro da elite imperial, daqueles que se sentiam e se mostravam como
construtores e mantenedores do Império territorial, assumindo cargos
públicos que permitiam certo acesso ao príncipe e conhecimento dos
meandros senatoriais. Como ilho de governador e governador ele mesmo
em províncias tão diversas, Dion participou da vida política em Roma e junto
às elites provinciais, visto que como governador encarnava a face de Roma
nas províncias. Sua obra não deve ser desvinculada de suas vivências como
magistrado e funcionário público, pois foi elaborada no inverno de seus dias,
quando já se encontrava vivenciando um ócio produtivo e com dignidade,
afastado dos cargos mais proeminentes.
Produziu sua obra em grego. Diversos pesquisadores têm se debruçado
sobre a inserção da elite de fala e escrita gregas no seio imperial. A leitura de

36 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


ENTRE cALíGULA E NERO: O GOVERNO DE cLáUDIO NA OBRA DE DION cáSSIO

suas obras tem nos feito repensar a noção de “Segunda Sofística”, cunhada a
partir de um excerto da obra de Filostrato, Vidas dos soistas. Simon Swain
(1996, p. 28), em sua obra Hellenism and empire, chega a gerar o termo
“greicidade” (greekness) para explicar a reconstituição da koiné e a adoção
de um aticismo construído de forma quase artiicial, efetuada nos séculos
II e III de nossa era, por alguns autores que escreveram em grego, como
é o caso diôneo. Tom Whitmarsh (2001, p. 23), no livro greek literature
and the roman empire: the politics of imitation, retoma o pensamento de
Swain de forma crítica, tentando demonstrar como a utilização de cânones
culturais gregos serviu, muitas vezes, para demonstrar como os romanos
conseguiam superar os modelos helênicos, mais do que imitá-los ou mesmo
se sentirem presos a eles.
Lembremos que Dion Cássio, ao ter nascido na cidade de Niceia, na
Bitínia, ou seja, na região da ásia Menor, pode ser encaixado na igura de
membro de uma elite provincial que passou a ocupar, durante o governo
de Cômodo, uma posição de destaque no Senado de Roma. No dizer de
Eugène Cizek (1990, p. 160), apesar da inserção de novos membros no
Senado, teria permanecido uma forma mentis senatorial, pois os senadores
continuaram se distinguindo do resto da população por sua forma de vida
e suas aspirações, apesar da diversidade crescente de sua origem territorial.
Contudo, é como senador romano e antigo magistrado que Dion se
posiciona como auctor de seu relato.
Para Martin Hose (2007, p. 464), no artigo “Cassius Dio: a Senator and
Historian in the Age of Anxiety”, parte integrante do livro a companion
to greek and roman historiography, editado por John Marincola (2007,
p. 461-7), Dion viu-se confrontado por um problema na composição interna
de seu trabalho no III século d.C.: prévios paradigmas de interpretação da
história romana haviam se tornado impraticáveis depois das guerras civis,
que se estenderam de 193 a 197 d.C. Após a violência ocorrida, ele teria
percebido que as ações humanas eram impulsionadas pela avareza, pela
ambição e pelo medo. Assim, para Dion, os conlitos eram explicáveis, antes
de tudo, como expressões do poder político. Ele retorna ao passado em sua
narrativa para perceber a perda de poder dos senadores e a criação de um
tipo de poder autocrático que não está conseguindo garantir a abundância
e a estabilidade em seu tempo.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 37


ANA TERESA MARqUES GONçALVES

Os problemas que identiica no momento de construção de seu relato,


como um redimensionamento das forças sociais que pendia a balança para
o lado dos militares em detrimento dos senadores, permitiu que Dion
selecionasse o conteúdo de sua obra com vistas a fornecer um relato válido
para seu tempo e para as futuras gerações, no qual o aumento progressivo
do elemento militar na ascensão, manutenção e supressão dos imperadores
implicava a desorganização das estruturas implementadas a partir de otávio
Augusto, tendo seu ápice no período severiano.
Como bem diz Cesare Letta (1979, p. 169), Dion soube tecer relexões
políticas a respeito da situação geral de seu tempo e buscou sugerir algumas
opções de governo, nas quais a aristocracia senatorial ocuparia função
sempre relevante na reconstrução do Estado romano. Segundo Dion Cássio:

A democracia tem um nome ilustre e parece proporcionar a todos certa


igualdade de direitos a partir da igualdade perante a lei, mas nos fatos se põe
de manifesto que não coincide em absoluto com seu nome. [...] Uma cidade
que é tão grande e que governa a parte maior e mais importante do mundo
habitado, e que tem poder sobre homens de muitas e diferentes raças e possui
muitas e grandes riquezas, e que se lança a todo tipo de empreendimentos e
tem êxito tanto individual quanto coletivamente, é impossível que pratique
a moderação numa democracia e mais impossível ainda que se chegue ao
acordo em que se pratique a moderação. De modo que, se Marco Bruto e
Caio Cássio tivessem parado para pensar nisso, nunca teriam matado um
líder e protetor da cidade, nem teriam se tornado culpados por muitas des-
graças para si mesmos e para os demais homens de então (D. Cássio, Hist.
rom. xLIV, 2, 4-5).

Sendo assim, percebe-se como, no pensamento diôneo, o assassinato de


um líder acabava por trazer maiores desgraças do que a sua manutenção no
poder, ao abrir espaço para a eclosão de guerras internas. E a guerra civil era
o campo do incontrolável, do imprevisível, do improvável, por isso era tão
perigosa, pois não se podia prever a quem a Fortuna iria agraciar. Parece-nos
que ica claro, na obra diônea, que se deveria evitar a guerra civil mediante
a manutenção, no poder, de homens clementes, capazes de manterem a
concórdia no seio da sociedade romana e na relação com as províncias.

38 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


ENTRE cALíGULA E NERO: O GOVERNO DE cLáUDIO NA OBRA DE DION cáSSIO

Só assim se conseguiria manter a abundância e evitar o caos social, como o


vivido pelo próprio Dion, durante as guerras civis de 193 a 197 d.c.
O imperador construía sua autoridade, ou seja, sua possibilidade
de ordenar e de ser obedecido, em grego, sua dínamis, pela união de
fatores diversos em sua pessoa, como o apoio de membros de distintas
forças sociais, civis e militares. Dion acrescenta, ao prestígio social e
político, a dignidade da linhagem e a capacidade de ação. O poder fora
redimensionado para garantir a paz e a prosperidade para Roma e as
províncias, pela manutenção da segurança e da ordem. O imperador, na
percepção severiana de Dion, é antes de tudo um “decididor”, para usar o
temo cunhado por Fergus Millar (1992, p. 207), aquele que sabe o que é
melhor para a comunidade e que toma decisões em seu nome, visando a
sua perpetuação. como demonstra Zvi yavetz (1994, p. 64-5), no artigo
existimatio, fama and the ides of march, um mínimo, mas operacional,
consensus civitatis deveria ser formado a partir do príncipe, que contaria
com a credulitas para controlar os timores.
E é a partir destas premissas mais gerais, identiicadas na releitura crítica
da obra diônea, que acreditamos perceber, na representação do governo
de Cláudio, como realizada por Dion, sua vinculação a uma tradição
menos virulentamente contrária aos fatos empreendidos por este príncipe.
Tal governo encontra-se descrito no volume sexto, livro Lx, que apresenta
várias lacunas e disposições diferentes nos textos de Zonaras e xiphilino, o
que complica bastante sua leitura.
Ao relatar os governos de Calígula, no volume sexto, livro LIx, e de Nero,
no volume sexto, livros LxI, LxII e LxIII, Dion airma que todas as ações
implementadas por estes dois soberanos indicariam certo grau de mania,
ou seja, uma indecisão, uma instabilidade, uma indisciplina de caráter,
partindo do fato de o homem não ser mestre de si, não se autocontrolar, não
se autodirigir. Como nos relembra Paul Veyne (1988, p. 13), um homem que
não é senhor de si jamais poderia governar de forma adequada seus súditos,
segundo a moral aristocrática romana. Nero é ainda descrito como capaz de
perpetrar ações que geravam o risível (geloía) (D. Cássio, Hist. rom. 62.29.1),
o que também pode ser encarado como uma manifestação de mania, capaz
de surpreender os súditos, mas de diicultar sua função de magistrado
máximo na condução dos negócios imperiais.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 39


ANA TERESA MARqUES GONçALVES

Desse modo, o governo de cláudio, no relato diôneo, aparece como


um momento de certa estabilidade nos negócios e funções públicas.
Por isso, ressaltamos no título desta nossa intervenção que, na construção
da representação diônea, o governo de cláudio deve sempre ser relembrado
como disposto politicamente entre os de calígula e Nero, criando um
tríptico de interpretação. A representação de cláudio em Dion parece-nos
mais próxima de uma tradição também fomentadora da imagem formada
por Flávio Josefo, em suas antiguidades Judaicas (xIx, 212-36), e no bellum
iudaicum (II, 204-15), do que a que triunfou com as visões de Suetônio,
Tácito e Sêneca, bem mais críticos às condutas claudianas. Autores como
Marta Sordi (1993, p. 213-9), por exemplo, defendem que Josefo e cássio
teriam usado os comentarii de Vita sua, escritos por cláudio em oito livros,
sobre os quais nos informa Suetônio, na “Vida de cláudio”, em as Vidas dos
doze césares (41.3).
Para Dion, bem como para Josefo, cláudio foi encontrado na
penumbra de uma sala do palácio por soldados e levado aos pretorianos,
que o aclamaram imperador, mais por sua linhagem e vinculação à família
augustana que pelos serviços até então prestados ao bem público (D. cássio,
Hist. rom. Lx, 1.2). cria-se assim uma imagem compassiva do novo príncipe,
mas também de um ser humilde e pouco ambicioso, características que
não eram particularmente exemplares para um soberano, mas também
não podem ser vistas como inadequadas ao momento. Dion ressalta que
logo após a supressão de calígula, antes de cláudio se tornar autocrata, o
Senado, reunido pelos cônsules em frente ao Templo de Júpiter, no capitólio,
passou a discutir as possibilidades de formação de um governo republicano
ou a manutenção do regime de tipo monárquico. O encontro de cláudio
e sua aclamação pelos pretorianos izeram cessar o debate imediatamente
(D. Cássio, Hist. rom. Lx, 1.1-2). Parece-nos que dois fatores concorreram
para isto: a manifestação pública das forças militares em Roma e a linhagem
de Cláudio, que “conferiram-lhe o poder supremo, dado que era um membro
da família imperial” – te basilikou genous (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 1.2).
Cláudio se submeteu ao povo (demos), ao Senado (boulé) e às leis (nomoi),
ao assumir o poder absoluto (autocracia) (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 1.3),
que, pelo relato diôneo, não parece tão absoluto assim. Tibério Cláudio Nero
Germânico tinha 50 anos, é descrito como inteligente e bem instruído, tendo

40 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


ENTRE cALíGULA E NERO: O GOVERNO DE cLáUDIO NA OBRA DE DION cáSSIO

inclusive composto algumas obras literárias, mas devido à idade avançada


apresentava uma doença que se manifestava por um leve tremor da cabeça e
das mãos. Por ter uma voz trêmula, não apresentava pessoalmente todas as
suas propostas ao Senado, preferindo que alguns questores e, posteriormente,
libertos o izessem em seu nome (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 2.2). Tinha
passado parte de sua vida com a avó, Lívia, e com a mãe, Antônia, e com vários
libertos que o circundavam, principalmente quando bebia (D. Cássio, Hist.
rom. Lx, 2.5). E é dessa criação entre mulheres fortes e libertos coniáveis que
viriam seus principais problemas como governante, visto que Dion ressalta
que tal criação lhe deu um caráter medroso, passível de torná-lo dependente
das mulheres e dos libertos que o cercaram na vida pública e na privada,
tanto que demorou 30 dias para se apresentar ao Senado após sua aclamação,
quando aceitou todos os títulos que lhe foram oferecidos, menos o de Pai da
Pátria, que aceitou pouco depois (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 3.2).
Dion cita seu primeiro casamento com Pláucia Urgulanila, com quem
teve Druso e Cláudia; o segundo com Élia Petina, com quem teve Antônia;
o terceiro com Valéria Messalina, mãe de otávia e Britânico; e o quarto com
Agripina Menor, ilha de seu irmão Germânico e de Agripina Maior, mãe
de Nero, com Lúcio Domício Enobarbo. Várias vezes no relato ica claro
o descontentamento de Dion por Britânico ter sido afastado do pai por
Agripina, em prol da ascensão de Nero, após a morte do ilho mais velho,
Druso (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 32.1).
Para Cássio, Cláudio só usou a lex de lesa maiestatis para se livrar de
Cássio Cherea, implicado no assassinato de Calígula, tendo abolido a aplicação
desta lei ao longo de seu governo (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 3.6). Não que
Cláudio não tenha combatido a oposição ao seu governo no Senado, mas usou
outra ferramenta: a censura. Como censor, Cláudio passou a retirar nomes de
senadores do album senatorium e a promover exílios, coniscos e suicídios. Foi
o caso, por exemplo, de Umbônio Silione, governador da Bética:

Ele foi expulso do Senado porque havia expedido uma quantidade de grãos
insuiciente para abastecer os soldados acampados na Mauritânia. Esta foi
a acusação oicial feita contra ele, mas o verdadeiro episódio que custou a
expulsão não foi este, mas o fato de que ele havia brigado com alguns libertos
(D. Cássio, Hist. rom. Lx, 24.5).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 41


ANA TERESA MARqUES GONçALVES

Todos os assassinatos cometidos em nome do governo e do governante


são imputados a Messalina e à ação dos libertos imperiais, no relato diôneo
(D. cássio, Hist. rom. Lx, 14.1), dentre os quais sublinham-se os nomes de
calixto, Narciso, Políbio e Palante, também citados por Suetônio na “Vida
de cláudio” (as Vidas dos doze césares, 28). Para Dion, cláudio organizou
uma verdadeira hierarquia entre seus principais libertos: Políbio era seu
conselheiro (apoblemantos) (D. cássio, Hist. rom. Lx, 29.3), calixto era
libelli/biblois (responsável por receber os apelos dirigidos ao imperador);
Narciso era ab epistulis/epistolon epestatei (secretário do palácio e responsável
pela correspondência); e Palante era rationibus/empepisteuto (cuidava das
inanças do palácio) (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 30.6). o primeiro eliminado
teria sido Gaio ápio Silano, governador da Hispania e casado com a mãe de
Messalina, Domícia Lépida, que não teria cedido aos avanços de Messalina
e teria se tornado inimiga de Narciso (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 14.3).
Para Dion, Cláudio era um homem moderado:

A sua moderação em todas as circunstâncias aparece também na ocasião do


nascimento de seu ilho, que naquele tempo se chamou Cláudio Tibério Germâ-
nico, tornando-se mais tarde Britânico, pois não permitiu que lhe fossem dadas
grandes insígnias e nem permitiu que a ele fosse dado o título de Augusto e nem
que Messalina recebesse o título de Augusta (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 12.5).

E esta disposição de caráter permitiu que fosse dominado por Messalina


e pelos libertos:

Nesse tempo, Messalina e os libertos de Cláudio continuavam a vender não


somente o direito de cidadania, mas os comandos militares, os cargos de go-
vernador e procurador e todo o resto, com tal falta de zelo que provocaram a
exaustão de todo tipo de mercadoria no mercado. Em consequência, Cláudio foi
obrigado a reunir a população no Campo de Marte e, do alto de uma tribuna,
pôs-se a ixar os preços de diversas mercadorias (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 17.8).

Assim, a ação da imperatriz e dos libertos não desorganizava somente


a política romana, pela redisposição dos cargos públicos por critérios que
fugiam ao interesse pessoal do governante e geral da pátria, mas também a

42 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


ENTRE cALíGULA E NERO: O GOVERNO DE cLáUDIO NA OBRA DE DION cáSSIO

economia, restringindo a livre circulação de bens, o que punha em cheque


a abundância e a ordenação a serem mantidas pelo imperador. Mais do
que a imagem de um aristocrata ressentido pela presença de libertos na
aula caesaris, Dion fornece-nos a representação de um nobre preocupado
com o bem-estar de um governo controlado por um soberano moderado
e inteligente, mas que não conseguia coibir os abusos femininos e de seus
libertos.
A moderação de cláudio também é conirmada pelo exílio e pelo não
assassinato de Asínio Galo:

Sabe-se que conspirou contra Cláudio, mas não pagou com a morte e sim com
o exílio. Uma razão para isto foi provavelmente o fato de que não havia organi-
zado previamente um exército, nem tinha recolhido inanciadores para isto, mas
encontrava-se aturdido por sua loucura [nóia – leitura equivocada da realidade],
com a ilusão de que os romanos se submeteriam ao seu domínio devido à sua
linhagem [primo de Druso por parte de mãe] (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 27.5).

Cássio também ressalta a habilidade de Cláudio de se cercar de bons


generais, que lhe garantiram grandes vitórias na Bretanha. A maior parte
do livro Lx é dedicada ao relato dos empreendimentos bélicos bretões e à
ascensão de grandes líderes militares, como Galba (D. Cássio, Hist. rom.
Lx, 8.7), Vitélio (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 21.2) e Vespasiano (D. Cássio,
Hist. rom. 20.2), que demonstraram mais abertamente seu poderio após a
morte de Nero.
A morte de Messalina foi acompanhada de uma redisposição de forças no
interior da corte, principalmente após as núpcias de Cláudio com Agripina.
Junto à nova imperatriz regressavam antigos exilados, como Sêneca; foram
afastados todos os que cercavam Britânico (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 32.3) e
aumentaram os poderes de Narciso e Palante (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 33.3).
Airma Cássio (Hist. rom. Lx, 33, 2): “Agripina tornou-se rapidamente uma
segunda Messalina, sobretudo quando, após receber várias honras, obteve
do Senado o direito de usar o carpentum [carro de duas rodas para circular
na cidade] durante as festas”.
E Cláudio promoveu várias festividades. Para reforçar a linhagem,
logo no início de seu governo, dedicou corridas de cavalo para comemorar

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 43


ANA TERESA MARqUES GONçALVES

o aniversário de seu pai Druso e de sua mãe Antônia; honrou sua avó
Lívia com corridas de cavalo e com sua divinização, pondo sua estátua no
Templo de Augusto e impondo às vestais a realização de sacrifícios em sua
memória e a invocação de seu nome durante os juramentos (D. cássio, Hist.
rom. Lx, 5.1). Em agosto, promovia corridas de cavalos em honra de seu
nascimento, lembrando que era também o mês de consagração do Templo
de Marte (agosto de 2 a.c.). Aceitou com moderação sacrifícios em sua
honra, numerosas aclamações (37 em 13 anos de governo, que se estendeu
de 41 a 54 d.c.) e uma estátua de prata e duas de bronze e mármore em
sua homenagem. Promoveu poucos combates de gladiadores (D. cássio,
Hist. rom. Lx, 5.5-6). Preferia o circo ao teatro e ao aniteatro. Certa vez,
no hipódromo, promoveu uma corrida de camelos e mandou matar 300
ursos e outros animais provenientes da Líbia (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 7.3).
Aproveitava as cerimônias para se mostrar afável e indulgente,
visitava senadores quando estes se encontravam doentes e participava de
festas particulares destes (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 12.1). No primeiro
aniversário de sua ascensão ao poder (25 de janeiro de 41 d.C.), distribuiu
aos pretorianos 100 sestércios, iniciativa que repetiu todo ano e também
no aniversário de Messalina (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 12.5). o nascimento
de Britânico ensejou a realização de combates de gladiadores e de um
banquete (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 17.9). Para comemorar as vitórias
bélicas na Bretanha, o Senado lhe conferiu o título de Britânico e lhe deu
autorização para executar a procissão do triunfo. os senadores votaram que
se festejassem anualmente as vitórias militares e que se erigissem dois arcos
triunfais, um em Roma e outro na Gália, local de nascimento de Cláudio
e ponto de partida das tropas para as conquistas bretãs (D. Cássio, Hist.
rom. Lx, 22.1). Do primeiro, construído na capital, em plena Via Flamínia,
só se conservou a inscrição; do segundo, nada sobrou.
Em 45 d.C., comemorou seu aniversário distribuindo grãos para
a plebe e trezentos sestércios por cidadão. Além disso, a festividade
natalícia coincidiu com um eclipse solar. Temendo a repercussão do fato
e a interpretação do mesmo, mandou distribuir panletos explicando o
fenômeno de forma a não comprometer seu governo nem ser visto como
um presságio do im de seu imperium e/ou de sua vida (D. Cássio, Hist.
rom. Lx, 26.1). Já em 51 d.C., Cláudio sentiu vontade de exibir uma batalha

44 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


ENTRE cALíGULA E NERO: O GOVERNO DE cLáUDIO NA OBRA DE DION cáSSIO

naval em um lago. Mandou, então, construir um lago artiicial, cercado


de madeira. Cláudio e Nero portavam hábito militar e Agripina, uma
clâmide ricamente adornada de dourado. Dispôs de 50 navios, divididos
entre os de Rodes e os da Sicília, nos quais se dispuseram para a batalha
escravos e condenados à morte (D. Cássio, Hist. rom. Lx, 33.3). quando,
no ano seguinte, Cláudio icou muito doente, Nero se apresentou no
Senado e prometeu uma corrida de cavalos quando o imperador se curasse.
o sumiço de Britânico fez com que rumores de que ele fosse demente ou
epiléptico se espalhassem, provavelmente espalhados por Agripina, na
opinião diônea. Assim que Cláudio recobrou a saúde, Nero cumpriu sua
palavra e organizou uma grandiosa corrida de cavalos, aproveitando a
festividade para desposar otávia, ilha de Cláudio (D. Cássio, Hist. rom.
Lx, 33.9-11).
Segundo Dion, Cláudio, no entanto, voltou a aproximar-se de Britânico
e dos que o cercavam, o que levou Agripina a procurar uma famosa
formuladora de venenos, chamada Locusta, que preparou uma fórmula
para ser colocada em cogumelos, ingeridos pelo imperador numa refeição.
Frente os relatos de Tácito e de Suetônio, a morte de Cláudio, em Dion,
é bem menos elaborada. De fato, os dois primeiros autores fornecem
detalhes, como o nome do escravo responsável por administrar a substância
venenosa, Aloto, conforme lemos em Suetônio (“Vida de Cláudio”, as Vidas
dos doze césares, 44) e Tácito (anais, xII, 66.2). Ambos trazem também
uma segunda versão para o passamento, segundo a qual Cláudio teria
sobrevivido ao veneno na comida, mas, ao ser levado a um médico, que
seria cúmplice de Agripina, aquele lhe ministrou um veneno ainda mais
forte (Tácito, anais, xII, 67.2; Suetônio, “Vida de Cláudio”, as Vidas dos
doze césares, 44). Dion Cássio, por sua vez, apenas enfatiza que o óbito
ocorreu no dia 13 de outubro de 54 d.C.; que o príncipe, ao morrer, contava
com 63 anos, 2 meses e 13 dias, tendo governado o Império por 13 anos,
8 meses e 20 dias; e que Agripina só teve sucesso em seu plano pelo fato de
Narciso, o mais iel dos libertos, encontrar-se então na Campânia. Narciso
foi assassinado pouco tempo depois da morte de seu patrono (D. Cássio,
Hist. rom. Lx, 34.2-4).
Bem ao estilo da retórica diônea, tais eventos funerários são sucedidos
pelo relato dos omina mortis de Cláudio: o aparecimento de um cometa,

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 45


ANA TERESA MARqUES GONçALVES

uma chuva de sangue sobre o pretório e a abertura espontânea das portas


do Templo de Júpiter Vencedor. O autor informa que cláudio recebeu
sepultura e todas as honras fúnebres que eram concedidas comumente
desde Augusto, mas que sua memória icou manchada pela publicação
da obra apokolocyntosis por Sêneca e por piadas feitas insistentemente
por Nero. Por exemplo, num banquete, este comentou que os cogumelos
ingeridos por Cláudio eram tão bons que o transformaram num divus
(D. Cássio, Hist. rom. Lx, 35.1-4). E é esta pilhéria neroniana que encerra
o livro Lx de Dion, da forma como ele nos chegou.
Do ponto de vista metodológico, parece-nos adequado, portanto, que
o governo de Cláudio seja estudado em consonância e em comparação com
os relatos diôneos referentes aos governos de Calígula e Nero, pois frente
a estes a tradição que representa Cláudio como um príncipe moderado,
compassivo e inteligente, mas que sucumbiu aos poderes exercidos pelas
suas esposas e pelos seus libertos, parece predominar na narrativa de
Dion Cássio, indicando a existência de várias tradições concorrentes
e/ou complementares na constituição das imagens e das representações
dos imperadores pelos seus pósteros.

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48 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


VIRTUS ROMANA eN la FroNtera Norte Del
ImPerIo: GermaNoS Y BrItaNoS SeGÚN táCIto

Catalina Balmaceda

Las obras de Tácito, agricola y germania, comúnmente han sido


utilizadas para mostrar un buen ejemplo del contraste que existe entre
las sociedades bárbaras de la frontera norte del Imperio, los britanos y los
germanos por un lado, y la sociedad romana de ese mismo periodo por
otro. Este contraste queda plasmado en la comparación – a veces explícita,
otras implícita – que el historiador deja ver a través de su narración. Estas
obras sirven también para mostrar que entre los bárbaros y los romanos
existe algo más que una frontera o límite geográico-espacial, pues hay
también una frontera temporal, que se relaciona principalmente con el
sistema político, y otra frontera – invisible pero profunda – que podríamos
llamar de identidad cultural. Es a esta doble frontera, la político-temporal
y la de identidad cultural, a las que quiero referirme especialmente en
este trabajo. Para ello, tomo como guía un concepto clave para entender
la cultura romana: el concepto de virtus. ¿qué pasa con el concepto de
virtus, tan propio de la identiicación del romano, cuando empieza a usarse
para describir al enemigo, a un otro que no es romano? ¿De qué manera la
virtus romana se ve desaiada y cuestionada cuando aparecen habitantes
que, fuera de las fronteras geográicas del Imperio romano, poseen esta
cualidad y pueden ser deinidos y juzgados en cuanto a su mayor o menor
posesión de virtus? ¿Es la virtus romana semejante a la virtus de estos
pueblos bárbaros?
Rápidamente revisemos el concepto. Virtus era una idea central y clave
de identiicación para los romanos; tradicionalmente, virtus era deinida
como la cualidad más propiamente masculina (de vir), es decir, en primer
lugar la valentía, el coraje. Pero en casi todos sus contextos, virtus es
también una cualidad del varón puesta al servicio del Estado a través de
buenas acciones adecuadas a un estándar de conducta correcta, a la vez que
una meta para la vida, un modo de adquirir gloria, el criterio para juzgar a
las personas y el código moral de los mayores. Para los romanos era difícil

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 49


cATALINA BALMAcEDA

acercarse a un tema de cierta importancia en la vida política, social y moral


sin tener que lidiar con el concepto de virtus.1
Virtus era un concepto particularmente importante para los historiadores
de Roma. Si la historia tenía que ser magistra vitae como lo había dicho
cicerón (de or. 2.36), entonces el estudio de la vida y de las costumbres de
las personas era muy relevante, ya que de sus vicios y virtudes se obtenían los
ejemplos para evitar o imitar. Tácito lo había dicho con palabras muy precisas
en sus annales (3.65): “la tarea fundamental del historiador es que no queden
en silencio los ejemplos de virtud [ne virtutes sileantur] y que el miedo a la
infamia en la posteridad reprima las malas acciones”. Es por eso que, aunque
las obras agricola y germania juegan distintos papeles en la deinición e
interpretación de la virtus romana bajo el Principado y representan géneros
literarios diferentes, su preocupación central y sus objetivos tienen una base
común. El mensaje de Tácito – a veces un poco escondido bajo la supericie
de los elementos propiamente biográicos o etnográicos de estas obras – se
desarrolla enfatizando la misma idea: Tácito muestra que hay una frontera de
identidad y límite cultural entre bárbaros y romanos, pero a la vez plantea a los
romanos de su tiempo la importancia de reconocer y aceptar que no existe una
sola y rígida manera de ser romano: de la misma manera que éstos se habían
adaptado – con variados resultados y éxitos – a los cambios políticos, tendrían
que adaptar su sistema de valores – virtus entre ellos – también integrando
nuevas cualidades y al mismo tiempo permaneciendo romanos en el fondo.
La importancia y omnipresencia del concepto de virtus nos permite
analizar las obras bajo un punto de vista político y de las mores (costumbres)
propias de romanos y bárbaros de la frontera norte. Primero comenzaremos
con el análisis del modelo de conducta que nos entrega Tácito en su primera
obra histórica, agricola.

Virtus romana bajo Domiciano

La vida de su suegro Agrícola, fue para Tácito una fuente de inspiración


para mostrar cómo se deben comportar los hombres bajo un princeps.

1
Para virtus en diferentes perspectivas, ver Hellegouarc’h (1972), Eisenhut (1973), Sarsila (2006), McDonnell
(2006) e Balmaceda (2007).

50 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


Virtus romana EN LA FRONTERA NORTE DEL IMPERIO: GERMANOS y BRITANOS SEGúN TácITO

En la primera parte de la obra,2 Tácito presenta a Agrícola como un romano


virtuoso y honrado, especialmente admirable por su moderación: moderatio.3
La moderación aparecía en ese tiempo casi como una condición necesaria
para los romanos si querían mantener una cierta cantidad de libertad
(libertas) e independencia de los emperadores, y Agrícola ciertamente
representa al campeón de estas virtudes bajo el régimen del tiránico
Domiciano. El cambio de la República al Principado había reorganizado los
valores republicanos y la moderatio llegó a estar casi encabezando la lista
de ellos. La moderación aparece como un más adecuado bajo peril para
mostrar virtus durante el Principado. Tácito caliica esta modestia como
activa y vigorosa (Tac., agr. 42.4),4 para la cual la vida de Agrícola es sin
duda un modelo clarísimo.
Tácito inicia la descripción de Agrícola volviendo atrás en su familia
para mostrar que los exempla virtutis no habían faltado al joven Agrícola:
su padre había sido valiente y no había cedido a hacer el mal siguiendo los
caprichos de Calígula (Tac., agr. 4.1), y su madre había tenido la virtud más
preciada en una mujer: la castidad (Tac., agr. 4.2). A esto se le añadía una
vida vivida con reinamiento y simplicidad en Masilia que fue un terreno
fértil para que las virtudes de su hijo pudieran lorecer también.
El joven Agrícola encontró la oportunidad de mostrar su moderatio
cuando, teniendo una fuerte inclinación a dedicar demasiado tiempo y
energía en el estudio de la ilosofía, siguió el consejo de su prudente madre
(prudentia matris) y pronto llegó a ser culto, pero guardando un sentido de
proporción (ex sapientia modum) (Tac., agr. 4.3). Es posible observar este
mismo modelo para su entrenamiento militar (Tac., agr. 4.5).5
Las virtudes marciales de Agrícola son las que primero conocemos:
mantuvo una estricta disciplina sin caer en la relajación típica de los soldados

2
Para la compleja identiicación de un género exacto para agricola, ver Marincola (1999, p. 281-324, esp.
318). Ver también ogilvie; Richmond (1967, p. 11) y Dorey (1969, p. 1-4); y más recientemente, Sailor
(2008, p. 116-8).
3
Para la moderatio de Agrícola, ver por ejemplo, Liebeschuetz (1966, esp. p. 134); ogilvie; Richmond (1967,
esp. p. 17); Martin (1981, esp. p. 25); Martin (1998, p. 9-12); Classen (1988, esp. p. 115-6); Clarke (2001,
esp. p. 112).
4
modestia, si industria ac vigor adsint, eo laudis excedere.
5
neque licenter ... neque segniter.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 51


cATALINA BALMAcEDA

jóvenes; se hizo conocido al ejército y aprendió de los expertos a seguir a


los mejores hombres (Tac., agr. 5.1).6 Tácito señala que la mejor y primera
cualidad es la valentía militar (militaris virtus), y describe a su suegro como
el balance perfecto de conducta entre cautela y entusiasmo “sin intentar nada
por temeridad, pero sin detenerse tampoco por miedo [nihil adpetere in
iactationem, nihil ob formidine recusare]” (Tac., agr. 5.1). Puede verse así, que
Agrícola es prudente, pero a la vez, activo como lo muestra su cursus honorum:
fue tribuno militar en Britania bajo Suetonio Paulino del 58 al 62; cuestor en la
provincia de Asia el 64; una vez de vuelta en Roma fue tribuno de la plebe en
el 66 y pretor el 68. Después de la muerte de Nerón, Agrícola se pasó al bando
de Vespasiano y obedeció las órdenes de Muciano honesta y vigorosamente
(integreque ac strenue) (Tac., agr. 7.3). Le fue encomendada la difícil tarea de
aquietar a la Vigésima Legión y hacerla leal a Vespasiano, tarea que podría
haber cumplido con castigos y severidad, pero sin embargo, consiguió los
resultados esperados con rarissima moderatione (Tac., agr. 7.3).7
En los capítulos 7, 8 y 9, las virtudes de Agrícola son dadas en una
larga y exhaustiva lista: pietas (7.2), moderatio (7.3); temperantia (8.1);
modestia (8.3); verecundia (8.3); prudentia (9.2); iustitia, gravitas, severitas,
misericordia (9.3); integritas, abstinentia (9.4) eran todas logros personales:
no había podido encontrar ni la decisión ni los modelos en Domiciano.
Esto, por supuesto, hacía su virtus todavía más admirable. Además, Agrícola
también poseía la rara cualidad de ser amable sin menoscabar su autoridad;
afectuoso, pero a la vez exigente (nec illi … aut facilitas auctoritatem at
severitas amorem deminuit) (Tac., agr. 9.4).
Según Tácito, una vez en Britania, Agrícola se distinguió como general
por su ingenio (ratio) en sus planes y por su irmeza (constantia) en la
elección de duros trabajos y peligros (Tac., agr. 18.4-6). Como buen general,
en consonancia con la tradición romana, restauró la disciplina en el ejército
(Tac., agr. 20-21).8 En el gobierno de la provincia condujo los asuntos
públicos con justicia, pero amablemente (Tac., agr. 19). Como resultado, fue

6
sed noscere provinciam, nosci exercitui, discere a peritis, sequi optimos.
7
Nótese el sentido activo del adverbio strenue.
8
Ver también 36-7 para su rol en la batalla del monte Graupio.

52 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


Virtus romana EN LA FRONTERA NORTE DEL IMPERIO: GERMANOS y BRITANOS SEGúN TácITO

considerado un hombre excelente y grande (clarus ac magnus), y su gloria


creció (Tac., agr. 18.4-6). Agrícola parece haber llevado a cabo la conquista y
romanización de Britania con todo éxito, y Tácito añade que su actitud hacia
los vencidos iba más allá de la simple clementia, pues incluso empezó a dar a
los hijos de los líderes britanos una educación liberal (liberalibus artibus) y
a preferir los talentos nativos de los britanos por sobre el de los galos (Tac.,
agr. 21.2). Las campañas, batallas, tierras conquistadas, peligros y triunfos
se nos cuentan detalladamente en el discurso que Agrícola pronuncia antes
de la batalla del monte Graupio en el 84 d.c.
Para Tácito, Agrícola posee la rara combinación de seguir ielmente las
mores maiorum de los antiguos romanos y al mismo tiempo adaptarse a los
tiempos que le toca vivir. La adaptabilidad o lexibilidad de Agrícola en las
turbias aguas de la política del Principado se maniiesta en que precisamente
cuando todo parecía triunfo y victoria para Agrícola, él sabe retirarse del
brillo del primer plano y pasar a la oscuridad de un privado: se retira de la
vida pública y vive in tranquillitate atque otium. Es peligroso competir con la
virtus del emperador, como dice Tácito, los tiempos son crueles y cínicos con
respecto a la virtud (tam saeva et infesta virtutibus tempora) (Tac., agr. 1.4).
Un hecho llamativo del que Tácito hace mención es que los celos que
Domiciano tiene de Agrícola se ven menguados gracias a la prudencia y
moderación del exitoso general (moderatione tamen prudentiaque agricolae
leniebatur) (Tac., agr. 42.3). y por eso es aquí donde Tácito elige entregarnos
su conclusión con toda claridad y sin ambigüedades:

pueden existir grandes hombres incluso bajo malos príncipes; y la sumisión y


la modestia, si la energía y el vigor van de la mano, alcanzan las mismas cimas
de la fama, adonde más comúnmente otros hombres han llegado por arduos
caminos, pero sin beneicio para el estado, ganando su gloria con una muerte
aparatosa (Tac., agr. 42.4).9

La vida de Agrícola, no solo con su sabiduría y sentido común, sino


también con su activo y laborioso trabajo, se encuentra al medio de estos

9
posse etiam sub malis principibus magnos viros esse, obsequiumque ac modestiam, si industria ac vigor adsint,
eo laudis excedere, quo plerique per abrupta sed in nullum rei publicae usum ambitiosa morte inclaruerunt.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 53


cATALINA BALMAcEDA

dos polos que Tácito describiría luego en sus annales como servidumbre
vergonzosa (deforme obsequium) y rebeldía violenta (abrupta contumacia)
(Tac., ann. 4.20). La moderación que Tácito le concede a su suegro no es
pasiva, sino verdadera virtud; es justamente una zona de frontera entre la
valentía ostentosa por un lado y la desidia o inacción por otro. Agrícola es
un ejemplo de una vida de trabajo duro y prestigio, sin hacer un alarde de
independencia (inani iactatione libertatis) (Tac., agr. 42.3). La moderación
de Agrícola ayudó a re-deinir la virtud de la moderatio y su importante rol
no solo en el Principado sino incluso bajo una tiranía.
Pero Tácito no se interesa solo por la virtus y la libertad romana, se
preocupa también por la naturaleza de la virtud y la libertad mismas, incluso
si las formas más puras de éstas se encuentran fuera de Roma. Por eso Tácito,
en su agricola, se detiene a describir tan exhaustivamente a los britanos. y
lo que aparece a Tácito como la primera virtud de Britania es su imbatible
energía en mantener su libertad. Los britanos parecen haber encontrado
una vía media para aceptar a un extranjero como su amo, porque no se
han rendido completamente a él: “su sujeción implica obediencia, pero
no esclavitud [iam domiti pareant, nondum ut serviant]” (Tac., agr. 13.1).
libertas es, por lo tanto, mostrada como la primera cualidad de este pueblo.
Su condición espacial y fronteras geográicas los ayuda a asegurar su libertad
de movimientos e ideales.
Britania tenía muchas ventajas geográicas: la ubicación de la isla,10 su
riqueza, incluso su clima había actuado en su favor en diferentes ocasiones
(Tac., agr. 22.1-2). Los guerreros eran valientes y feroces – ferocii – y le habían
dado rudos golpes a los romanos (Tac., agr. 11.4). Los britanos no habían
caído en el ocio y la indolencia de los galos que los había hecho perder al
mismo tiempo su valentía y su libertad (amissa virtute pariter ac libertate)
(Tac., agr. 11.4). Virtus y libertas trabajan juntas para Tácito: la libertad era
un requisito para la virtud y al mismo tiempo la valentía era necesaria para
mantener la propia libertad.
Según Tácito, los britanos poseen algunas características propias de
los romanos, que se maniiestan especialmente en su lucha por mantener

10
Para el tema de Britania como isla con sus consecuencias políticas e ideológicas, ver Clarke (2001,
p. 94-112).

54 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


Virtus romana EN LA FRONTERA NORTE DEL IMPERIO: GERMANOS y BRITANOS SEGúN TácITO

la libertad: así como los romanos recordaban las acciones memorables de


sus antepasados para incitar a la defensa de su libertad y sus conquistas,
así también lo hacían los britanos que recordaban las acciones y el valor
de sus maiores: “los invasores dejarían nuestro territorio, como el feliz
Julio lo había abandonado, si los britanos emularan el coraje de sus padres
(virtutem maiorum suorum aemularentur)” (Tac., agr. 15.4). La libertad
y el espíritu propio de las previas generaciones de britanos habían sido
el resultado de su energía, vigor al enfrentar la adversidad (el caso de la
revuelta de Boudica es un ejemplo). El coraje para preservar la propia libertad
necesariamente signiicaba una activa, dinámica y, a veces riesgosa respuesta
a las circunstancias.
Mantener la propia libertad también se relacionaba con guardar
vivas y seguras las propias tradiciones. No ser arrastrados a vivir según la
manera de ser de otros. Tácito señala cómo, poco a poco, los britanos van
traspasando la frontera cultural que los divide de los romanos y da el ejemplo
de gobernadores como Petronio Turpiliano y Trebelio Maximo que fueron
más suaves (mitior), menos enérgicos (segnior) y mantuvieron la provincia
tranquila e inactiva. Esta situación de adormecimiento habría hecho más
mal que bien a Britania, pues los bárbaros habrían aprendido a gozar de los
vicios del otium (Tac., agr. 16.3). Hay todavía más ejemplos de este traspaso
cultural de romanos a britanos, quienes antes “rechazaban la lengua latina, y
luego empezaron a aspirar a la retórica: incluso el vestir como romanos llegó
a ser signo de distinción, y la toga se puso de moda; poco a poco los britanos
se dejaron arrastrar a vicios placenteros: al paseo, los baños y la mesa bien
provista” (Tac., agr. 21.2).
Los efectos de la “romanización” no siempre aparecieron para Tácito
como positivos; si este traspaso de frontera cultural era solo una ciega
imitación, estaba claro para el historiador que podía signiicar una cierta
esclavitud. Tácito parece empeñado en ilustrar los estados y fases de esta
pérdida de la libertad en Britania. Primero, la paz en la tierra conquistada
trajo el otium, y con él la pasividad; ésta engendró vicios y pereza. Los simples
e inexpertos nativos llamaron humanitas a este tipo de reinados placeres,
pero para Tácito eran solo servidumbre, servitus. Para el autor, existe un
fuerte vínculo entre la inacción, el ocio y la esclavitud por un lado, y la
energía, la acción y la libertad por otro.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 55


cATALINA BALMAcEDA

Si bien se observa que el deseo enérgico de preservar la libertad se


va poco a poco diluyendo en los britanos principalmente a causa de la
incorporación de costumbres romanas, todavía este deseo se puede ver
en el discurso del jefe britano, calgaco, antes de la batalla inal contra los
romanos (oGILVIE; RICHMoND, 1967, ad loc.).11 El discurso – una pieza
maestra de la oratoria tacítea y para nada lo que podría esperarse de un líder
bárbaro12 –, mostró el otro lado de la moneda con respecto a la conquista y
dominación romana:

los romanos, cuya soberbia en vano se evita con la obediencia y el someti-


miento. Saqueadores de mundo, cuando les faltan tierras para su sistemático
pillaje, dirigen sus ojos escrutadores al mar. Si el enemigo es rico, se muestran
codiciosos; si es pobre, despóticos; ni el oriente ni el occidente han conseguido
saciarlos; son los únicos que codician con igual ansia las riquezas y la pobreza.
A robar, asesinar y asaltar llaman con falso nombre imperio, y paz al sembrar
la desolación (Tac., agr. 30.3-5).

Et infestiores Romani, quorum superbiam frustra per obsequium ac modes-


tiam efugias, raptores orbis, postquam cuncta vastantibus defuere terrae, iam
mare scrutantur: si locuples hostis est, avari, si pauper ambitiosi, quos non
oriens, non occidens satiaverit: soli omnium opes atque inopiam pari adfectu
concupiscunt. Auferre trucidare rapere falsis nominibus imperium, atque ubi
solitudinem faciunt, pacem appellant.

Este discurso revela, por una parte, la lexibilidad y apertura de mente


de Tácito para traspasar una frontera de identidad y poder “pensar” o
“sentir” como un enemigo de Roma lo hubiera hecho, aunque no signiica
necesariamente que estas opiniones hubieran sido sostenidas sinceramente
por el autor. Por otro lado, este discurso sí puede relejar la opinión del autor
en otro sentido, es decir, en cómo era realizada la conquista en su propia

11
Estos autores insertan este tipo de discursos dentro de una tradición historiográica. Para los elementos
retóricos del discurso, ver Clarke (2001, p. 105).
12
Para Walser (1951, p. 155-60), Calgaco era totalmente una construcción tacítea. Ver también Fick (1994).

56 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


Virtus romana EN LA FRONTERA NORTE DEL IMPERIO: GERMANOS y BRITANOS SEGúN TácITO

época. Aparece la ambigüedad: los tiempos de la euforia virgiliana en que


el imperio crecía bajo Augusto – recordemos el imperium sine ine – habían
pasado (Virg., aen. 1.278),13 y se ve cómo Tácito, traspasando el umbral
y cuestionando su propia identidad romana, no está muy seguro de si los
valores que han hecho grande a Roma puedan seguir siendo transmitidos
todavía por los romanos a otros pueblos. Los tres vicios salustianos, que
habían descrito magistralmente la crisis republicana – superbia, avaritia y
ambitio – y que Tácito le asigna al discurso sobre el imperialismo romano,
dan un tono deinitivamente negativo al proceso de conquista y muestran
el cambio de valores sobre la expansión de Roma. Su misión – claramente
expresada en la frase de Anquises a Eneas: tu regere imperio populos, romane,
memento (Virg., aen. 6.851.) – no tenía nada en común con robar (auferre),
asesinar (trucidare), y asaltar (rapere) que vemos en Tácito a través de las
palabras de Calgaco.
El discurso es todo un himno a la libertad de Britania y todo lo que
Calgaco utiliza para animar a los britanos a luchar. El deseo de libertad llama
a la acción. Su animus, su virtus, su ferocitas incluso, son convocados y se
les recuerda que fue su propia inactividad (socordia) la que había impedido
sacudirse el yugo de los opresores (Tac., agr. 31.3-4). Calgaco los urge a
“pelear como hombres íntegros y libres, que han sido hechos para la libertad
sin vuelta atrás” (Tac., agr. 31.4). Los adjetivos integri e indomiti están
puestos aquí para subrayar, una vez más, el contraste entre los britanos y los
romanos. Los britanos son en el presente como los romanos habían sido en
el pasado. Hay aquí un traspaso de frontera temporal: el ahora de los britanos
no coincide con el de los romanos.
Esto se ve más claramente cuando Calgaco ridiculiza la supuesta grandeza
de su enemigo y minimiza la presencia de la virtus romana: “han sido nuestras
luchas internas y desacuerdos los que les han dado fama: el error del enemigo
se transforma en la gloria del ejército” (Tac., agr. 32.1).14 El jefe britano les
recuerda también a sus soldados que el ejército romano al que ellos se están
enfrentando no es el mismo valiente ejército que había conquistado Cartago:

13
Aunque se puede decir que el inal de la eneida sugiere algo diferente.
14
nostris illi dissensionibus ac discordiis clari vitia hostium in gloriam exercitus sui vertunt.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 57


cATALINA BALMAcEDA

el valor (virtus) que muestran en la batalla los romanos no se corresponde


con la avaricia que tienen cuando hay paz (Tac., agr. 32.1).15
El llamado de calgaco a la virtus y la libertas de alguna manera expresa
todo lo que signiicaba ser romano, e incluso se ha argumentado que la Britania
del agricola aparece como un “espacio republicano” (SAILoR, 2008, p. 92).16
Tácito, traspasando fronteras de identidad, ilustraba a los romanos dónde
se podían encontrar los verdaderos valores y lo fácil que podía ser verlos
desaparecer bajo los nuevos vicios de la tranquilidad. ¿Cuánto tiempo podría
vivir la Britania como en una república, manteniendo su virtus y libertas,
resistiendo a la tentación de una pasiva sumisión que signiicara esclavitud?
Cuando Tácito decide introducir a los britanos como estos bárbaros
todavía valientes y libres, y su presencia contrasta con la virtus de Agrícola,
Tácito introduce la idea de que virtus no es algo rígido y unívoco. Hay una
virtus múltiple que se maniiesta en distintos tipos de libertades. Primero
estaba la libertad política, la que los senadores habían ejercido durante
la República y que ahora parecía perdida – era olim dissociabiles – con el
advenimiento del Principado, pero es la que se ve en los britanos. Esta
libertad implicaba el derecho de expresar la propia opinión en materias
políticas, tal como lo hace Calgaco en su discurso; en segundo lugar, existía
también la libertad de los pueblos indomiti, que no habían sido conquistados
por los romanos todavía, y en tercer lugar, y muy cerca del anterior, estaba
también la libertad de los pueblos ya dominados por los romanos, como los
britanos, pero que evitaban una conducta servil hacia sus dominadores. otro
tipo de libertad era la libertad personal, que es principalmente encarnada en
Agrícola, el hombre que se mantiene libre ante un tirano porque no se siente
forzado a actuar de una determinada manera en razón de las circunstancias.
Es una libertad difícil y exigente, que requiere más fuerza interna que las
otras libertades y su recompensa es inmaterial. Esta fortaleza interna se
manifestaba particularmente en la virtud de la constantia que pertenecía al
tipo de hombre a quien ninguna adversidad podría resistirse de cumplir su
propósito o resolución.17

15
an eandem romanis in bello virtutis quam in pace lasciviam adesse creditis?
16
Ver también Rutledge (2000) y Clarke (2001).
17
Para la constantia de Agrícola, ver 18.3; 41.3; 45.3.

58 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


Virtus romana EN LA FRONTERA NORTE DEL IMPERIO: GERMANOS y BRITANOS SEGúN TácITO

con la excusa de escribir la biografía de su suegro, Tácito nos da un


complejo relato de la libertad y sobre todo de la virtus no solo bajo malos
gobernantes, sino también en una sociedad no romana. Su conclusión es que
estos conceptos siguen plenamente vigentes aunque de formas diferentes
a uno y otro lado de la frontera: a pesar de que primeramente en Britania
representaban valores republicanos, era posible todavía encontrarlos en la
Roma de Domiciano; las virtudes de Agrícola hay que mirarlas bajo el nuevo
ángulo de lo que signiica el Principado. Pero lo que Tácito condena en ambos
lados de la frontera era el dejarse llevar por la desidia y la inertia. De ahí a
que ponga un acento tan marcado en la energía (industria) y el vigor en su
conclusión: la virtus se mantiene a ambos lados de la frontera con acción,
perseverancia y energía. A un lado con más énfasis en la constancia y la
moderación bajo el gobierno de uno solo; al otro, con la energía, la acción y
la competitividad propias de un espacio republicano.

Virtus en la Germania

El caso de la frontera nororiente con la Germania es un poco distinto.18


El mismo inicio de la obra, que nos recuerda vivamente al comentario de las
guerras de las galias de César (Caes. bg, 1.1),19 nos pone en un escenario
de frontera total: en el espacio, en el tiempo y en la identidad, los germanos
van a ser diferentes a los romanos. La descripción geográica y espacial
es necesaria, poderosa y a la vez precisa: “Germania como un todo está
separada de la Galia y de la Raecia y Panonia por los ríos Rin y Danubio;
de los sármatas y dacios se separan por sospechas mutuas y por montañas:
el resto está rodeado por el océano” (Tac., germ. 1.1).20 Con el intento de
ilustrar y explicar el origine et situ germanorum, el autor está buscando
adquirir cierto control de la tierra y de su gente. Se ha argumentado que
de alguna manera Tácito “conquistó” la Germania a través de sus escritos

18
Para el propósito de la germania, ver por ejemplo: Lund (1991), Perl (1993) y Rives (1999, esp. p. 48-56).
19
gallia est omnis divisa in partes tres, quarum unam incolunt belgae, aliam aquitani, tertiam qui ipsorum
lingua celtae, nostra gallia appellantur.
20
germania omnis a gallis raetisque et pannoniis rheno et danuvio luminibus, a sarmatis dacisque mutuo
metu aut montibus separatur: cetera oceanus ambit. Para la importancia de descripciones geográicas en
Tácito, ver Giua (1991).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 59


cATALINA BALMAcEDA

– como césar había hecho en la Galia con sus guerras – incorporándola al


mundo literario romano (RIVES, 1999, p. 56). con esta obra de “etnografía”
(MARINcOLA, 1999, p. 296), Tácito una vez más está expresando algo
más que la descripción de una poderosa nación bárbara. Decir que el autor
no pretendía dar una lección moral o política, excepto la de advertir a los
romanos de una amenaza (WARMINGTON, 1970, p. 120), me parece a mí
una conclusión un poco apresurada. Se puede decir que la germania no es
una obra de historia propiamente tal,21 pero ciertamente buscaba delimitar
fronteras de identiicación y autodeinición, y estas categorías en la escritura
romana eran ciertamente morales y políticas.
La visión de que Tácito idealiza a las tribus germanas y las pone como
espejo de la moral de los corruptos romanos de su tiempo, aunque cierta en
algunos puntos, ha perdido parte de su fuerza hoy en día, y podría aparecer
como una sobre-simpliicación de la lectura de la germania (DoREy,
1969, 12-3).
Lo que me parece interesante de mostrar aquí es que la germania de
Tácito, leída en conjunto con el agricola, muestran que la libertad esencial –
que signiica libertad de un amo – y la antigua virtus, o el coraje demostrado
en la guerra para preservar la libertad estaban presentes en el tiempo de
Tácito en sociedades más primitivas y que actuaban como contraste de Roma
no solo en la esfera moral – mostrando virtudes bárbaras en oposición a
vicios romanos – sino también en la esfera política, contrastando el modo
de hacer política: por un lado la competitividad republicana presente en los
bárbaros de las fronteras y por otro, la sumisión imperial en Roma.
Nuevas virtudes se habían hecho necesarias en la Roma imperial, virtudes
más acordes con el nuevo sistema político. Tácito nos habla en concreto de
la moderatio, la constantia y otras parecidas que podían desarrollarse más
naturalmente en regímenes aristocráticos, como se puede ver en los annales
o en las Historias.22 Por el contrario, estas mismas virtudes, la moderatio y la
constantia no se podían encontrar en la sociedad de las tribus germánicas,
por ejemplo, donde la valentía demostrada en la guerra sigue siendo esencial
para conseguir la gloria personal.

21
Para las características especíicas de la tradición etnográica, ver Rives (1999, p. 11-21).
22
Aunque esto no signiicaba que fuese fácil cultivarlas.

60 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


Virtus romana EN LA FRONTERA NORTE DEL IMPERIO: GERMANOS y BRITANOS SEGúN TácITO

En la segunda parte de su germania, Tácito no sólo da un exhaustivo


recuento de los pueblos germanos con una exactitud y precisión
enciclopédicas, sino que también con esto quiere abrir y ampliar la mente
romana. A Tácito le interesa por un lado la “otredad” de las tribus germanas
como opuestas a los romanos y por otro lado quiere transmitir una idea. Si
los romanos comprenden bien lo que Tácito les quiere decir no solo estarán
mejor preparados para la “futura amenaza” que signiican los germanos para
Roma, sino que también, aprendiendo de las costumbres y maneras de los
pueblos que vivían más allá del limes, les ayudará a los romanos a identiicar
y evaluar sus propias mores más adecuadamente.
Tácito no solo enfatiza las diferencias o fronteras étnicas y espaciales
entre los romanos y los germanos, sino también, al igual que con los britanos,
destaca la existencia de una frontera político-temporal. En ciertos aspectos,
los germanos parecen comportarse como los romanos lo habían hecho en
tiempos anteriores (o’GoRMAN, 1993, p. 146); y aun siendo sociedades
contemporáneas, aparecían poniendo en práctica un diferente código de
valores. ¿qué identiicaba realmente al romano? ¿qué había cambiado con
las nuevas circunstancias del in de la república y el advenimiento de la
autocracia? Tácito pone delante de los romanos a los pueblos germanos para
sacar lecciones políticas y morales, pero especialmente políticas.
Tácito se aproxima al tema de la virtus germana con alabanzas implícita:
el matrimonio y la castidad se toman seriamente y este es probablemente el
punto más alto de su carácter (Tac., germ. 18.1 y 19.1.); los buenos hábitos,
por otro lado, tienen más fuerza con ellos que la fuerza de las leyes en otros
sitios (Tac., germ. 19.5),23 “cuando están en el campo de batalla, es una
vergüenza para un jefe ser superado en valentía (virtus); una vergüenza para
el subordinado no igualar la valentía (virtus) de su jefe; pero dejar el campo
de batalla y haber sobrevivido al jefe signiica llevar una vida de infamia
e ignominia” (Tac., germ. 14.1). Está claro que para Tácito estas prácticas
eran muy loables, así como también la elección del rey y los generales, que
se hacía de acuerdo a su nobleza y valor: reges ex nobilitate, duces ex virtute
sumunt (Tac., germ. 7.1). Las tribus germánicas parecen haber puesto sus

23
plusque ibi boni mores valent quam alibi bonae leges.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 61


cATALINA BALMAcEDA

esperanzas para la guerra sobre fundamentos irmes y sólidos, se apoyaban


en el coraje y no tomaban mucho en cuenta la suerte: fortunam inter dubia,
virtutem inter certa numerare (Tac., germ. 30.2).
En la descripción de las tribus individuales en la segunda parte de la
germania,24 la palabra clave es una vez más: virtus. El valor de los germanos
recibe la más alta alabanza. Los batavos eran virtute praecipui (Tac., germ.
29.1.), los chatii tienen su nombre vinculado a virtus al menos en tres
ocasiones (Tac., germ. 30.2; 31.1; 31.3), los chaucii son también praecipui
virtute (Tac., germ. 35.4), y los cimbrios han probado su virtus peleando
con los romanos desde ines del siglo II a.C. (Tac., germ. 37.2). Todos los
pueblos descritos por Tácito brillan por su virtus de una u otra manera. Los
romanos han experimentado esto en carne propia y Tácito les recuerda:
“ni los samnitas, ni los cartagineses, ni Hispania ni la Galia, ni siquiera
los partos nos han enseñado tantas lecciones. Los germanos luchando
por la libertad han sido un enemigo más tremendo que el absolutismo de
Arsaces” (Tac., germ. 37.3). Han llegado a ser más peligrosos que otros
pueblos porque su libertad es más fuerte. La virtus germana se practicaba
en todo lugar porque ellos eran libres, y no dejan de luchar con valentía
por su libertad.
Pero el coraje no era la única virtud alabada en los germanos. Aunque
ya la visión tradicional de deinir la Germania como la tierra del “buen
salvaje” ha cambiado un poco, hay elementos suicientes para decir que
Tácito quiere mostrar el alto estándar moral de las tribus germánicas.
No ambicionaban ni oro ni plata, y tampoco les afectaba la posesión de
tales cosas (Tac., germ. 5.4); dar un buen ejemplo era lo más importante
para el general si quería controlar a la gente bajo su mando (Tac., germ.
7.2); tenían una dieta simple (Tac., germ. 23); y en sus entierros no había
ostentación (Tac., germ. 27).
Algunas veces Tácito describe las costumbres germánicas de manera que
resultaran más chocantes para los romanos de su propio tiempo y, aunque
no hace referencia explícita a Roma, es evidente que la comparación saltaría
a la vista del lector:

24
Desde el capítulo 28 al 37.

62 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


Virtus romana EN LA FRONTERA NORTE DEL IMPERIO: GERMANOS y BRITANOS SEGúN TácITO

no tenían el circo ni sus seducciones, tampoco banquetes lujosos con sus pro-
vocaciones para corromperlos. Hombre y mujeres eran inocentes con respecto
al intercambio secreto de cartas… Para la castidad manchada no había perdón.
Nadie se reía de los vicios; nadie llamaba ‘el espíritu del tiempo’ a la seducción,
sufrida o perpetrada (Tac., germ. 19).

Las alusiones no podrían haber sido más claras.


Pero, ¿eran los germanos simplemente como habían sido los romanos
en el pasado? ¿Es solo una frontera temporal la que Tácito nos propone en
la germania? Un lado de la germania tiene, indudablemente un tono de
reproche con respecto al abandono de las cualidades romanas propias, entre
ellas: la virtus y la libertas. Pero el otro lado de la obra nos puede llevar a
inferir que precisamente estas dos cualidades en los germanos aparecen como
manchadas o teñidas con un toque de indisciplina que era particularmente
maniiesto en la despreocupación general hacia el bien del Estado o res
publica. Esta falta germana es ilustrada especialmente en la descripción de
los germanos en tiempo de paz. Durante la guerra, éstos luchaban por la
libertad y eso era ciertamente elogiable, pero en tiempos de paz pasaban el
día comiendo, bebiendo y durmiendo (Tac., germ. 15.1). Las borracheras
y los festines eran las ocupaciones principales de estos bárbaros cuando no
estaban en guerra (Tac., germ. 23-24). Tácito no entrega ningún signo de
moderación en los germanos, que se dejaban llevar tanto por los deseos de
lucha tanto como por los de satisfacer sus necesidades básicas. Además, no
estaban acostumbrados al trabajo esforzado para el que no tenían paciencia
ni constancia (Tac., germ. 4.3).25 En tiempos de paz, los mejores y más
valientes hombres no hacían nada (nihil agens) por asegurar sus hogares o
servir al estado, ni siquiera algo para establecer un gobierno, por el contrario,
le dejaban esas tareas a las mujeres y viejos (Tac., germ. 15.1). Esta inacción
con respecto a la res publica – algo ajeno a los romanos, al menos en su
discurso – es tácitamente censurado por el autor de la germania y puede
ser visto como una especie de advertencia. Al alertar a los romanos contra
la pereza y la inercia,26 en la cual parecía tan fácil caer bajo el gobierno de

25
laboris atque operum non eadem patientia.
26
Para referencias de inertia y otium en el sentido de inacción, ver Tac., germ. 15.1-2; 28.4; 36.2; 37.6;
44.3; 45.4.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 63


cATALINA BALMAcEDA

los emperadores, Tácito parece estar urgiéndolos para que se muevan hacia
una activa colaboración en la perpetuación del Estado. Les recuerda que,
para los romanos – contrariamente que para los bárbaros germanos –, la res
publica es siempre una preocupación y responsabilidad de todos. La virtus
un poco salvaje de los germanos es verdaderamente admirable y a través de
ella han podido preservar una cierta libertas política frente a un dominador
extranjero, pero los romanos bajo un princeps se encuentran bajo una
situación diferente. Ellos necesitan “domesticar” sus deseos de sobresalir en
gloria con su valentía a través de la templanza o autodominio (moderatio),
y también controlar sus aspiraciones de libertad ilimitada permaneciendo
irmes y constantes en su propósito (constantia), no dejándose llevar por
la tentación de la indolencia que podía ser compañera de la obediencia.
Domesticar, moderar o controlar la competitividad propia de la política
republicana implica una cierta adaptabilidad por un lado, pero la misma
energía y fortaleza para alcanzar la meta por otro.
Los germanos de Tácito no pueden ser simplemente comparados o
equiparados a los primeros romanos. Ambos pueblos tienen como supremos
valores la valentía y la libertad, pero la virtus y libertas en los romanos –
así como las nuevas manifestaciones de éstas bajo el Principado – están
permeadas por una energía o industria hacia la res publica que no se ve en
los germanos, que tienen una tendencia a la inacción en tiempos de paz
según Tácito. quizá es justamente esta industria la que había permitido
que los romanos adaptaran su virtus mostrando moderación (moderatio) y
constancia (constantia) más tarde. Su trabajo (labor), paciencia (patientia),
y gravedad (gravitas) tradicional los han entrenado hacia la adquisición
de estas virtudes más soisticadas. En las categorías de Tácito, es difícil
para un bárbaro ser constante o moderado. Estas características aparecen
como virtudes propias de pueblos “civilizados”; pueblos que habiendo
experimentado la dramática caída de la libertad a la servidumbre ahora
buscaban maneras de recobrar cierta libertad.
En la obra germania nos enfrentamos a una valentía y a una libertad
más “básica” y elemental. Pero en la germania no nos movemos tan solo en
una frontera temporal, sino también de identidad. La virtus es importante en
ambas sociedades, pero en los romanos está unida a una responsabilidad para
con la comunidad, a un preocuparse por la res publica, especíicamente la idea

64 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


Virtus romana EN LA FRONTERA NORTE DEL IMPERIO: GERMANOS y BRITANOS SEGúN TácITO

de que es algo que se hace entre todos que no se ve en las tribus germanas.
La germania muestra que otras sociedades con una versión más “simple”
de política pueden mantener en cierta manera esta virtus romana original,
y en ese sentido Tácito propone la redeinición a partir del sistema político:
era necesario para Roma transformar estas virtudes en unas versiones más
exigentes de moderación y irmeza en la lucha valiente por la libertad bajo
un autócrata. En las revueltas aguas del Principado los romanos debían
moverse con más cuidado y cautela en el ejercicio de sus derechos políticos
lo que signiicó que los valores de virtus y libertas necesitaran ser redeinidos.

Consideraciones inales

¿Por qué es interesante para Tácito mostrar las fronteras culturales,


políticas e identitarias que hay entre los bárbaros del norte y los romanos?
¿Para qué darnos la molestia de intentar ver algo más allá en estas obras
de Tácito – caliicadas de menores – que cumplen un in bastante claro tan
solo con su primera lectura? quizá interesa porque en sus obras agricola
y germania Tácito nos da numerosos ejemplos de traspasos culturales de
fronteras, que siempre enriquecen la perspectiva con la que se mira una
cultura, y en segundo lugar porque nos presenta un concepto de virtus
que, aunque a primera vista podría acercarse mucho al concepto romano
primitivo – de hecho el mismo Tácito de alguna manera anima a los romanos
a imitar esta virtus de los bárbaros –, es, sin embargo, profundamente
diferente. El historiador maniiesta sutilmente que existe una frontera de
identidad, un límite cultural entre bárbaros y romanos. Para entender la
virtus romana es necesario considerar su aspecto esencialmente activo en
servicio de la res publica, perfectamente ejempliicado en la carrera política
de Agrícola, que no deja lugar a la desidia y al otium bárbaros. La virtus
romana tiene así una connotación eminentemente política y por eso es en
la acción política donde debe ser probada. Esta virtus se maniiesta también
en la lexibilidad, que se ve como absolutamente necesaria para encontrar
una respuesta adecuada a cualquier situación política en que se encuentren
los romanos: las características propias de la virtus durante la República no
son las mismas que bajo el Principado como se ve en especíicamente en
la moderación y constancia de Agrícola bajo un déspota. La redeinición

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 65


cATALINA BALMAcEDA

y reevaluación de estos importantes conceptos políticos propuestas por el


historiador pudo haber ayudado a los romanos a ser más conscientes de los
cambios que estaban viviendo; los exempla de Tácito también ayudaron a
dar forma a la manera en que ellos mismos iban a reaccionar frente a estos
cambios.
La frontera norte del Imperio, en cambio, donde habitaban britanos y
germanos, signiicaba para Tácito un territorio donde la libertad y la virtud
o valentía esenciales podían ser encontradas tal vez con más facilidad que
en Roma, pero por otro lado era una virtus mucho más primitiva, originaria
y básica. Se presenta como un fenómeno más natural y menos soisticado
que el romano: la lucha con valentía (virtus) para mantener la libertad
(libertas), personal o comunitaria, es algo propio de toda sociedad y juega
un papel deinitivo en el panorama más general de la visión del autor sobre
la historia de esos pueblos, su impacto en la historia romana y en general
de toda historia.
Aventurándonos a dar un paso más allá de lo que Tácito dice en su
agricola y su germania se podría argüir que la deinición de un concepto
tan clave como virtus, un concepto esencial para entender lo que signiicaba
ser romano, se va a identiicar para Tácito irremediablemente con su sistema
político. Ser virtuoso en un espacio primitivo o bárbaro no es lo mismo que
ser virtuoso en Roma, como tampoco es lo mismo vivir la virtus en una
República que bajo un régimen imperial y autocrático como el romano de
ines del siglo I d.C. Cuando se ha establecido al menos parte de la propia
identidad en el sistema político, el cambio de este último puede implicar una
seria fractura en los cimientos de esa identidad. Es precisamente el modo
en que se maniiesta esa fractura y ese quiebre de identidad lo que Tácito
mostrará magistralmente en sus dos grandes obras posteriores: las Historias
y los anales.

66 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


Virtus romana EN LA FRONTERA NORTE DEL IMPERIO: GERMANOS y BRITANOS SEGúN TácITO

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68 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


eSCraVIDÃo e FroNteIraS SoCIaIS
e IDeNtItárIaS No muNDo romaNo

Fábio Duarte Joly

O objetivo deste capítulo é apresentar uma breve discussão acerca do


atual estado da historiograia sobre escravidão antiga em geral, e romana em
particular, e como esse tem apontado determinadas maneiras de se pensar
as fronteiras sociais e identitárias no mundo romano entre livres e escravos.
o ponto principal que gostaria de comentar é a tendência a se abandonar
– ainda que muitas vezes não de forma explícita – o conceito de “sociedade
escravista” e se adotar deinições de escravidão que deixam em segundo
plano o aspecto da propriedade privada e priorizam o tema mais amplo da
dominação, tanto do ponto de vista do senhor como daquele do escravo.
Trata-se de um tema que está vinculado a um projeto de pesquisa
que desenvolvo, com apoio do CNPq, e cuja proposta é estudar, de forma
comparada, a dinâmica da manumissão na Roma antiga e no Império do Brasil.
Desta maneira, o texto aqui terá como linha de argumentação não apenas uma
análise do debate a respeito da escravidão romana desde a década de 1980,
com a publicação de escravidão antiga e ideologia moderna, de Moses Finley –
ainda uma referência a ser enfrentada –, mas também uma ponderação sobre
as formas de se pensar a comparação entre escravidão antiga e moderna.
Cabe então inicialmente considerar o conceito de “sociedade escravista” e
suas limitações. Tal conceito remonta particularmente à obra de Moses Finley,
escravidão antiga e ideologia moderna (1980), que sustenta que Atenas, no
século VI a.C., e Roma desde o século III a.C. foram sociedades genuinamente
escravistas no sentido de que a escravidão se tornou uma instituição essencial
para a sua economia e seu modo de vida, pois os rendimentos que mantinham
a elite dominante provinham substancialmente do trabalho escravo.
Para a constituição de tal sociedade seria preciso a combinação de três
fatores: a propriedade privada da terra e sua concentração em poucas mãos;
o desenvolvimento dos bens de produção e a existência de um mercado
para venda; e a ausência de mão de obra interna disponível, obrigando os
agenciadores de trabalho a recorrer a estrangeiros. Nesse quadro, o escravo
surgia como a mão de obra ideal, devido à íntima relação entre cidadania e

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 69


FáBIO DUARTE JOLy

propriedade privada da terra, que se reforçou em Atenas e Roma com o im


da escravidão de cidadãos por dívidas, colocando então a necessidade de
mão de obra estrangeira.
Finley explica, portanto, o surgimento de uma sociedade escravista
nos quadros de disputas internas entre os cidadãos nas cidades-Estado,
embora também declare que a escravidão, para se desenvolver, pressupõe “o
desenvolvimento dos bens de produção e a existência de um mercado para
venda”, ou seja, um elemento não necessariamente ligado às tensões no seio
da cidadania, mas que pode remeter a contextos externos às cidades. De
todo modo, é a vinculação com a política que explicaria o estabelecimento
de uma sociedade escravista e não tanto um papel econômico da escravidão
para além de sua utilização por uma elite (VLASSoPoULoS, 2012).
Decorrente dessa última, outra limitação de sua análise consiste em que
Finley uniica as experiências escravistas grega e romana a partir do modelo
da escravidão-mercadoria. A inluência de tal perspectiva sente-se, por
exemplo, no livro em que Jean Andreau e Raymond Descat propõem tratar
conjuntamente da escravidão grega e romana. Segundo os autores, “apesar
das fortes diferenças entre Grécia e Roma, de fato existiu uma ‘cidade antiga’
que, de uma ponta a outra do Adriático, apresentou características comuns”
(ANDREA; DESCAT, 2006, p. 63). Nesse contexto, o escravo aparece como a
antítese por excelência do cidadão, reforçando-se uma pretensa contradição,
qual seja, a de que o escravo está simultaneamente dentro e fora da cidade,
dentro de seu território, mas fora de sua política.
qual o seu lugar então? o modelo de cidade consumidora propugnado
por Weber e retomado por Finley ilustra como essa imagem do escravo (e
de outros excluídos) coaduna-se com a concepção de economia operante
na cidade antiga. Uma vez que a política está formalmente restrita aos
cidadãos, a inclusão de estrangeiros, escravos e libertos resume-se ao campo
do trabalho ou do comércio. Assim como os metecos atenienses seriam os
homens econômicos que cidadãos plenos, por questões estamentais e de
prestígio, não poderiam ser, tal seria o caso também dos libertos em Roma.1
E aos escravos caberia principalmente o trabalho doméstico ou agrícola.
Em suma, por este modelo, é através da mediação do estatuto político que

1
Para uma crítica dessa representação dos metecos atenienses, ver Morales (2008).

70 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


EScRAVIDÃO E FRONTEIRAS SOcIAIS E IDENTITáRIAS NO MUNDO ROMANO

se estabelece a função econômica dos diversos indivíduos, bem como seus


interesses materiais e necessidades sociais, além de orientar sua ação social
e política em solidariedade com tal grupo ou oposição a outro.
Essa exclusão do escravo de qualquer participação no jogo político é
ainda vinculada à diversidade do universo servil: a distribuição dos escravos
pelos mais diferentes setores da economia (além de diferenciações étnicas)
contribuiria para uma permanente desmobilização desse grupo e consequente
incapacidade de vislumbrar projetos coletivos de transformação de suas
condições. Não por acaso priorizam-se, nos estudos sobre escravidão antiga
que se atêm ao modelo de Finley, mais os elementos que separam os escravos
entre si do que aqueles que os aproximam. Isso se explica por uma ênfase na
apresentação de uma identidade ixa do escravo – como propriedade –, que
pressupõe, como seu oposto, apenas o senhor. A essa identidade é relacionada
uma determinada forma de atuar que seria, em grande parte individualista,
com poucas chances de compor uma ação coletiva.
Por outro lado, assume-se uma unidade dos senhores de escravos,
provenientes de uma aristocracia política e econômica, que demonstraria
um consenso diante de problemas gerados pelo controle de escravarias. Uma
ilustração dessa percepção encontra-se no conjunto da obra de Keith Bradley.
Partindo da premissa da vulnerabilidade do escravo, e rejeitando qualquer
possibilidade de transformação social que reverta esse fato, Bradley defende que
“a mentalidade dos romanos em relação à escravidão era estática, dependente
de visões profundamente enraizadas e imutáveis de uma hierarquia social que
por si mesma era alheia à mudança” (BRADLEy, 1996, p. 173).
Essa mesma ótica permeia as análises mais recentes sobre os libertos
em Roma, embora sejam mais valorizadas as relações comunitárias entre os
setores servis, uma mudança, aliás, derivada do afastamento do tradicional
conceito de sociedade escravista. Como exemplo, pode-se citar o último
livro publicado sobre os libertos em Roma, de autoria de Henrik Mouritsen
(2011). Em primeiro lugar, não há como negar que sua contribuição é
muito benvinda, pois, além de cobrir tanto o período republicano quanto o
imperial, revela certa reorientação dos estudos sobre escravidão antiga nos
últimos dez anos rumo à valorização da igura do liberto na sociedade greco-
romana, como testemunha também, por exemplo, a publicação dos livros
de R. Zelnick-Abramovitz (2006) sobre a manumissão no mundo grego e da
coletânea organizada por Sinclair Bell e Teresa Ramsby (2012).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 71


FáBIO DUARTE JOLy

A publicação dessas obras nos leva a reletir sobre o desenvolvimento


dos estudos referentes à escravidão antiga, tendo em vista que até então obras
integralmente dedicadas aos libertos eram poucas e um tanto antigas. Para o
caso de Roma, que nos interessa aqui mais de perto, data de 1928 o livro de
A. M. Duf, freedmen in the early roman empire, e de 1969 o livro de Susan
Treggiari, roman freedmen during the late republic. Ainda sobre o período
republicano saiu, em 1981, o estudo de Georges Fabre.
como se vê, sobre os libertos no Império Romano, a obra de Duf
permanecia como a principal síntese disponível, reunindo dados sobre
as práticas de manumissão, as relações legais entre patronos e libertos e
observações sobre a vida privada e pública dos ex-escravos. contudo, a
análise de Duf esposava uma perspectiva comum à historiograia das
décadas de 1920 e 1930 sobre o Império Romano ao associar manumissão e
degeneração racial do povo romano. A libertação de escravos teria, portanto,
um efeito corrosivo na sociedade romana, uma ideia que permaneceu latente
mesmo naquelas obras que buscavam oferecer uma visão mais positiva da
contribuição dos libertos para Roma (como é o caso do estudo de Treggiari,
que ainda menciona a “pureza racial de Roma”) (McKEoWN, 2007, p. 16-9).
Estudos como o de Mouritsen indicam que escravidão e manumissão
estão deixando de ser tomadas como fenômenos separados, visão esta muitas
vezes reforçada por um entendimento da libertação do escravo como tendo
um efeito desestruturante numa sociedade escravista. Signiica também
uma crítica ao legado abolicionista dos séculos xVIII e xIx que moldou
nossa compreensão da escravidão antiga, que, com sua ênfase na violência
e desumanidade da instituição, inibiu estudos que colocassem em cena
o liberto, personagem que poderia mitigar o lado cruel da escravidão ao
mostrá-la como um estado transitório, que comprometeria a formação de
uma solidariedade de classe entre os escravizados.
A proposta de Mouritsen, nesse contexto, é estudar o liberto como uma
categoria sui generis da sociedade romana, que não pode ser enquadrada
num modelo de mobilidade social típico da época industrial moderna.
É o passado servil que determina seu lugar social, isto é, a libertação do
escravo apresenta-se, acima de tudo, como uma reconiguração das relações
de dependência servis no interior da casa senhorial, e isto seria um dado
estrutural da sociedade romana, valendo para um largo espectro de tempo,
da Segunda Guerra Púnica ao início do século III d.C.

72 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


EScRAVIDÃO E FRONTEIRAS SOcIAIS E IDENTITáRIAS NO MUNDO ROMANO

Para demonstrar sua tese, Mouritsen parte do princípio de que libertas/


servitus era a distinção básica no desenvolvimento histórico de Roma e
ambos os status eram deinidos como naturais. Logo, a manumissão causaria
um problema, pois signiicava a transição de uma categoria supostamente
natural para outra, seu oposto. Era necessário então regular e conduzir esse
processo de transição, no nível prático e ideológico, para manter a validade
daquela distinção. No tocante ao primeiro nível, os procedimentos formais
de manumissão – manumissio vindicta, censu, e testamento – representariam
a ficção de restituição do estado natural de liberdade a um indivíduo
erroneamente escravizado.
Do ponto de vista ideológico, tratava-se de lidar com o estereótipo de
que alguém submetido à escravidão passava por uma degradação social que o
maculava e infantilizava doravante. Nos termos de orlando Patterson (1982),
que Mouritsen acompanha de perto, a “morte social” do escravo aparece
como insuperável, resultado da violação do corpo servil. A alternativa era
explicar a manumissão como um processo de recuperação/melhoramento
daqueles escravos que se mostrassem aplicados e leais.
o autor frisa que, a despeito das tensões geradas pela manumissão no
tecido social romano, calcado por uma hierarquia em que a relação entre
status e honra ocupa um lugar central, em momento algum se observa, na
longa duração, uma autonomização dos libertos frente às domus a que estão
ligados, enfraquecendo os vínculos com os patronos. Devido a essa integração
socioeconômica em estruturas de poder existentes, a vida cotidiana dos
libertos em Roma restringia-se à comunidade doméstica em que estavam
inseridos, ou, quando muito, ao contato com outros libertos de outras casas.
Enim, teríamos uma “comunidade de libertos” baseada em laços familiares
e na experiência pregressa da escravidão, e o futuro econômico do liberto e
seus ilhos dependeria do apoio dos respectivos patronos.
A meu ver, o limite principal de he freedman in the roman world não
reside meramente neste enquadramento da questão dos libertos na estrutura
aristocrática da sociedade romana, e sim na falta de uma historicização
mais adequada dessa estrutura no contexto da República e, em especial,
do Principado. Mouritsen se atém à descrição do que seriam os traços
essenciais da prática da manumissão que replicariam aqueles da escravidão
como instituição, ou seja, de uma relação tensa entre senhores que dominam

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 73


FáBIO DUARTE JOLy

e escravos que são dominados. Não por acaso o pano de fundo teórico
do livro seja a obra citada de Orlando Patterson, que frisa justamente as
“características universais da estrutura interna da escravidão”, deinindo-a
como “a dominação permanente e violenta de pessoas desenraizadas e
geralmente desonradas” (PATTERSoN, 1982, p. 13). Nas palavras de
Patterson (1982, p. 79), “aqueles que não competem por honra, ou que não
estão inclinados para tanto, estão, de fato, fora da ordem social”. A posse de
escravos é um elemento central na construção dessa honra.
os artigos coligidos na he cambridge world history of slavery, cujo
primeiro volume, sobre o Mediterrâneo antigo, foi organizado por Keith
Bradley e Paul Cartledge (2011), seguem especialmente essa linha de
raciocínio. Assim, Dimitris Kyrtatas (2011), ao tratar da economia da
escravidão grega, airma que a difusão da escravidão-mercadoria pelo
mundo grego a partir do século V a.C. permitiu que a escravidão se
conigurasse como essencialmente uma forma de dominação, uma vez que
os antigos gregos visavam antes à maximização da honra do que do lucro
e daí não se preocuparem em entrar em detalhes sobre a produtividade e
empregabilidade dos escravos. John Bodel (2011, p. 313-4), em seu capítulo
sobre o trabalho escravo na sociedade romana, segue semelhante abordagem
quando fala: “Pelo fato de a escravidão na Antiguidade estar fundada em
considerações ideológicas antes que econômicas, o trabalho escravo era
endêmico na cultura romana – e estava fadado a sê-lo, independentemente
de sua lucratividade”.
Não só os estudos de economia da escravidão partem do princípio de
uma unidade cultural, mas recentemente cada vez mais isso é observável
em análises das relações entre escravidão e religião na Antiguidade.
Por exemplo, Catherine Hezser (2006) busca examinar se haveria uma
perspectiva especiicamente judaica no tocante à escravidão. Sua discussão
aponta para um predomínio de traços de similaridade com a escravidão
greco-romana por conta de as elites da sociedade judaica viverem sob uma
estrutura socioeconômica assimilada a um contexto mais amplo greco-
romano. Igualmente, Jennifer Glancy (2002) considera as atitudes cristãs
frente à escravidão e indaga sobre o possível impacto do cristianismo na
melhora das relações escravistas no Império. A autora conclui que a imersão
do cristianismo no contexto social e econômico da cultura greco-romana

74 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


EScRAVIDÃO E FRONTEIRAS SOcIAIS E IDENTITáRIAS NO MUNDO ROMANO

impedia a prevalência de comportamentos diferenciados da parte dos


cristãos ou uma crítica contundente à escravidão.
Essas abordagens são reveladoras de como tem se delineado, nos
últimos anos, o estudo da escravidão antiga, agora mais voltado para sua
interpretação como instituição social e ideológica do que propriamente
como modo de produção, e daí a maior ênfase nas permanências do que nas
rupturas ao longo da história da escravidão no Império Romano.
Percebe-se todavia, nessa perspectiva, uma conciliação imperfeita
entre a noção de uma cultura greco-romana de extensão mediterrânea que
uniicaria as experiências escravistas em seus traços essenciais (ausência de
crítica à instituição servil, honra senhorial, minimização de racionalidade
econômica) e as transformações políticas e econômicas que conformariam a
estrutura material da escravidão, ou seja, as formas de emprego do trabalho
escravo e suas áreas de atuação.
Isso é ainda corroborado pelo método comparativo, como aquele
esposado por Patterson, que parte do princípio de que certas atitudes diante
da escravidão seriam independentes de variações temporais e regionais,
aceitando-se uma unidade transhistórica da própria escravidão. A tendência,
nesse caso, é se deter na comparação de aspectos formais de sociedades
escravistas ou com escravos. A deinição inleyriana de sociedade escravista
de certa maneira também contribuiu para isso ao prever muito mais as
comparações formais entre sociedades genuinamente escravistas (Atenas,
Roma, Brasil, Sul dos Estados Unidos e Caribe).
Consequentemente, a despeito da multiplicação dos estudos
comparativos, o foco nos elementos essenciais da interação senhor/escravo
e patrono/liberto acaba por deixar em segundo plano uma possibilidade de
análise que mencione o fato de que – como tem sustentado Joseph Miller
(2012) em crítica direta a Patterson – a escravidão situa-se historicamente em
contextos de disputas entre elites por recursos humanos para se airmarem
política e economicamente em suas comunidades. Miller propõe então uma
abordagem da escravização (slaving) como um processo histórico, realçando
as relações dos escravizadores, não somente com seus escravos, mas com
seus rivais sociais, econômicos, políticos e militares. Enfatiza também as
identidades e comunidades alternativas que os escravizados forjam entre si,
independentemente das tentativas dos senhores de obterem suas lealdades.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 75


FáBIO DUARTE JOLy

como se pode observar, ao colocar em primeiro plano o termo


“escravização”, Miller airma explicitamente que expressões como “escravidão
como instituição”, “sociedade escravista” ou “sociedade com escravos” sejam
deixadas de lado, pois remetem a um fato consumado, estático, gerenciado
unilateralmente pelos senhores de escravos.
No campo dos estudos sobre escravidão antiga, Kostas Vlassopoulos
aparece endossando essa perspectiva aberta por Miller quando ressalta que se
deve descartar o conceito de sociedade escravista e reconhecer a pluralidade
de estratégias de escravização (slaving) que coexistem numa dada sociedade,
bem como examinar as interconexões entre essas diferentes estratégias
mediante uma análise histórica concreta.
quando parte para a análise da documentação grega a partir dessa
concepção, o autor, contudo, centra-se sobretudo na descrição da escravidão
como uma forma de dominação que seria dinâmica por extrapolar a igura
do senhor e envolver sobretudo negociações da parte dos escravos, a criação
de comunidades de escravos e mesmo a intervenção de não-senhores de
escravos. Em suas palavras:

Se quisermos escrever um relato dinâmico da escravidão grega, devemos ir além


do entendimento essencialista da escravidão que Aristóteles nos legou. É preciso
observar a negociação constante dessa relação de poder. Nessa negociação, o polo
do escravo não se mantém constante, e tampouco era deinido unilateralmente
pelos senhores. Muitos outros aspectos eram importantes: as maneiras pelas
quais os escravos tentavam evitar ou superar suas identidades como escravos;
as novas identidades que os escravos buscavam forjar; as redes e associações em
que os escravos participavam e das quais tentavam tirar vantagens; e os esforços
dos escravos em usar as várias brechas que os processos econômicos, políticos e
sociais lhes deixavam abertas (VLASSoPoULoS, 2011, p. 128).

Penso que, para estudar a dinâmica da escravidão, não basta todavia


redirecionar a análise da visão do senhor para aquela do escravo. Ser uma
forma de dominação ou uma relação assimétrica de poder não distingue a
escravidão em uma ou mais sociedades de um ponto de vista diacrônico e
tampouco esclarece completamente acerca das condições históricas de seu
funcionamento. É um argumento que vale para a escravidão grega como para
aquela do Sul dos Estados Unidos, como o próprio Vlassopoulos reconhece

76 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


EScRAVIDÃO E FRONTEIRAS SOcIAIS E IDENTITáRIAS NO MUNDO ROMANO

ao se basear nas relexões de Ira Berlin. corremos o risco, enim, de cair no


mesmo essencialismo que se critica na obra de Patterson.
Talvez uma alternativa para tentar superar esse limite seja fazermos uma
análise comparada entre escravismo antigo e moderno que não se detenha
apenas no contraste de aspectos formais da escravidão, mas que assuma a
existência de sistemas escravistas que se transformam na longa duração de
acordo com o quadro material, ideológico e político em que operam. É o caso,
por exemplo, do sistema escravista atlântico, que Robin Blackburn, em seu
último livro he american crucible: slavery, emancipation and Human rights
(2012), caracteriza como marcado por três fases: a escravidão doméstica
da fase inicial da colonização ibérica; a fase mercantilista e colonial da
escravidão de plantation no século xVII no Brasil, Barbados, São Domingos
e Virginia; e a época da escravidão americana independente liderada pelos
Estados Unidos, Império do Brasil e Cuba.
Para concluir, sugiro pensar um sistema escravista mediterrâneo, no qual
o Império Romano tem um papel chave com a disseminação da escravidão-
mercadoria, também marcado por fases, que podem se sobrepor, mas que
têm caraterísticas particulares. Isso, de certa maneira contrabalançaria
o viés essencialista dos estudos sobre escravidão antiga e sua respectiva
tendência à uniformização da escravidão no Mediterrâneo. Uma proposta
nesse sentido, que pode se mostrar proveitosa, é inserir esse estudo da
escravidão no contexto de abordagens, como aquela avançada por Norberto
Guarinello (2013), que entendem o Mediterrâneo como palco de uma
progressiva integração histórica que articulou as comunidades, produzindo
sistemas sociais cada vez mais complexos, e deinindo suas fronteiras sociais
e identitárias.

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78 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


PerCePÇÕeS ImPerIaIS SoBre o
DeSeNVolVImeNto Da aleXaNDrIa PtolomaICa

Joana Campos Clímaco

O contexto da fundação de Alexandria por Alexandre foi extensivamente


narrado no período romano, talvez como forma de legitimar a importância
conquistada pela cidade posteriormente. Ou seja, é atribuída a esta
conjuntura grande parte do potencial e desenvolvimento futuro da cidade,
provavelmente pelos autores terem em mente a Alexandria de seu tempo,
e não dissociarem essa imagem de sua fundação. Alexandre era, portanto,
entendido como um visionário por ter escolhido um terreno predestinado
para a fundação do sítio que levaria o seu nome.
Os aspectos mais realçados pela literatura (Diodoro de Sicília, Estrabão,
Plutarco, Arriano, Pausânias, Vitrúvio, Plínio e quinto cúrcio) são a
grandeza territorial, a boa posição defensiva do novo centro urbano e os
presságios que conirmavam a escolha do local adequado e que garantiriam a
prosperidade do terreno. os relatos atribuem, portanto, certa racionalidade,
planejamento e predestinação ao projeto de Alexandre.
Neste capítulo, temos por intenção observar como os autores narram
o desenvolvimento inicial do novo estabelecimento e a importância dos
primeiros reis em garantir o esplendor e a soisticação de sua fachada, ou
seja, o objetivo é investigar o contexto imediatamente posterior ao cenário
de fundação. Pretende-se reletir sobre o quanto o desenvolvimento de
Alexandria e sua dinâmica cultural eram atribuídos aos primeiros reis. ou
seja, nas representações da Alexandria imperial, que espaço era reservado
aos reis helenísticos e como os relatos exploram o vínculo dos reis com
Alexandre e os entendem como seus herdeiros?
A documentação é consideravelmente mais escassa do que para o
contexto de fundação. Assim, sobre a época de formação e a respeito da
política administrativa implementada pelos primeiros reis há poucas
informações. As fontes do período romano enfocam mais episódios isolados
da história dinástica, que denotam o esbanjamento da corte, as festas, a
suntuosidade dos edifícios e depois se deslocam para os primeiros conlitos

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 79


JOANA cAMPOS cLíMAcO

entre Ptolomeus e Selêucidas, e em seguida para a progressiva presença


de Roma na resolução dos impasses. Portanto, o foco sobre os Ptolomeus
aumenta conforme eles começam a se relacionar com Roma. A escolha das
temáticas tratadas já sugere um pouco do que as fontes queriam divulgar e
do que pretendiam ignorar. Assim, são indícios sugestivos do modo como
concebiam o passado ptolomaico de Alexandria.
Diodoro menciona o rápido desenvolvimento da cidade, a divisão
por uma grande avenida, que estava adornada em toda sua extensão com
uma fachada rica em casas e templos. Enfatiza que Alexandre já ordenara a
construção de um palácio admirável pelo tamanho e magnitude, que os reis
posteriores engrandeceram. E observa:

A cidade no geral tem crescido tanto nos últimos tempos que muitos a tomam
como a primeira cidade do mundo habitado, e certamente ultrapassa todas
as outras cidades em beleza, extensão, abundância e luxo. O número de seus
habitantes supera o de outras cidades. Na época em que estávamos no Egito,
aqueles que mantinham os registros de censos da população diziam que sua
população livre ultrapassava os trezentos mil, e que o rei recebia dos rendi-
mentos do Egito, mais do que seis mil talentos (bibliotheca Historica 17.52.3-6).

Percebe-se a quantidade de adjetivos usados por Diodoro para


descrever a cidade, todos associados à grandeza e riqueza. O autor icara
tão impressionado com o local, que chegou a colocá-lo à frente de Roma em
termos de beleza e soisticação. Diodoro fornece indício do tipo de rumor
em circulação no seu meio (nas províncias e talvez até em Roma) sobre a
monumentalidade da Alexandria de seu tempo. Nota o crescimento contínuo
da cidade, talvez por isso a classiique como primeira, ou seja, mantendo
tal ritmo de desenvolvimento o potencial da cidade seria enorme. Enfoca a
importância de Alexandre e dos reis no desenvolvimento inicial, atribuindo
uma forte identidade real a Alexandria devido aos grandes investimentos
nos palácios.
Depois de enumerar as várias vantagens do local concedidas por
Alexandre, Estrabão explica o formato da cidade e suas dimensões, o
entrecruzamento de duas avenidas largas e perpendiculares e as ediicações
estabelecidas pelos reis (geographica 17.1.8). o autor destaca também que,

80 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


PERcEPçõES IMPERIAIS SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA ALExANDRIA PTOLOMAIcA

em outra parte do palácio real, repousavam os túmulos de Alexandre e dos


reis, talvez uma forma de estabelecer a forte ligação entre Alexandre e os reis
lágidas (ERSKINE, 2002, p. 164). Estrabão encerra com a narrativa sobre
os portos, ressaltando a existência do porto privado dos reis, a distribuição
de templos e do teatro (geographica 17.1.8). com toda essa estruturação, o
autor sublinha a importância da cidade ao mesmo tempo como centro real,
espiritual e comercial. Porém, como em Diodoro, o enfoque principal da
descrição de Estrabão é a suntuosidade dos palácios e dos recintos públicos,
que foram aumentados e adornados sucessivamente por cada rei, algo que
faziam por amor ao esplendor (geographica 17.1.8). Estrabão destaca então
as identidades: real e administrativa de Alexandria ainda nos seus dias, com
sua riqueza de monumentos e edifícios públicos e sugere que a estrutura
da cidade e sua fachada pouco tinham se alterado na sua época, mantendo
grande parte do antigo esplendor real.
O autor demonstra o impacto da construção da nova cidade ao
mencionar a diminuição da importância de Tebas e Mênfis, embora
destaque a continuidade dos dois centros como os principais locais de culto
dos egípcios. Assim, ocorre uma “divisão de funções” entre as principais
cidades do Egito, Alexandria tornara-se a capital real, ao passo que Tebas e
Mênis continuaram sendo as sedes da religiosidade. Por mais que Estrabão
deina Alexandria como uma instalação grega no Egito, ele a insere em uma
dinâmica própria do país, pois sua fundação resultara no remanejamento
de outros polos, demonstrando assim o impacto de sua construção no Egito
como um todo.
outro destaque dado pelos autores referente às realizações dos primeiros
reis se refere à concretização da transferência do corpo de Alexandre da
Babilônia para Alexandria. Embora haja algumas contradições entre os
relatos, todos ressaltam o vínculo entre a cidade e seu fundador (Diodoro,
Estrabão, quinto Cúrcio e Pausânias). o corpo de Alexandre na cidade
seria também um importante vínculo entre a nova localidade e o mundo
grego (FINNERAN, 2005, p. 52). Reforçaria, portanto, o valor de Alexandria
naquele universo, passando a ser mais um motivo para se respeitar a cidade.
Diodoro e Estrabão sublinham a grandeza das edificações e dos
palácios reais de Alexandria, algo menos notado pelas fontes latinas, com
exceção do farol de Faros, edifício que se sobressaía e impressionava pela

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 81


JOANA cAMPOS cLíMAcO

imponência. césar ressalta a sua enormidade no relato da guerra de Roma


com os alexandrinos (bell. civ. 3.112.2.1). Plínio aponta a responsabilidade
do rei na construção do Farol e seu alto custo, advertindo que Ptolomeu
Filadelfo deveria ser louvado pela obra e pela generosidade, pois deixou
o nome do arquiteto inscrito no edifício, ao invés de vincular a obra a si
mesmo (naturalis Historiae 36.18.83.2). Dessa forma, infere o esbanjamento
(pelo custo do projeto) atrelado à humildade e generosidade, pela qual o
rei deveria ser louvado. A menção ao arquiteto talvez tivesse a intenção de
realçar o planejamento do projeto. Assim, a monumentalidade do farol era
obra humana é fruto de grande elaboração e não deveria ser vinculada a um
ato heroico de Alexandre.
Em contraste com a opinião de Plínio, Arriano atribui a primazia pela
construção do Farol à orientação oracular e não à decisão real. Assim,
Alexandre encarregara cleômenes de sua construção, ressaltando que o
Farol deveria ser “enorme e marcante” (anabasis alexandri 7.23.7-8). Por
ser centrado em Alexandre, o relato de Arriano pretendia associar toda
a magnificência de Alexandria ao fundador e não à realeza posterior,
marcando também sua inspiração divina.
Nessa fase do desenvolvimento inicial da cidade, a ênfase dos autores
é na motivação dos reis em transformar Alexandria na sede de uma realeza
herdeira de Alexandre. Portanto, os investimentos foram feitos para
divulgar a sua riqueza e poder. Mas os retratos sobre o signiicado dos
primeiros reis para a história alexandrina são divulgados diferentemente
segundo os autores. As representações de Diodoro e Estrabão são de reis
ambiciosos e de Alexandria como a manifestação suprema do monumental,
do grandioso e do excessivo. Suas narrativas são entusiastas com relação à
dedicação dos reis a Alexandre como conciliador entre vários povos. os
latinos e gregos posteriores mencionam menos a importância dos reis e
ressaltam a funcionalidade e o planejamento da cidade, como ica aparente
nos comentários de César e Plínio sobre Faros. Apenas Arriano direciona
novamente o foco para Alexandre, que presenteou a cidade com um
imponente farol.
Se a fundação de Alexandria era um eixo comum nas representações da
cidade segundo autorias diversas, o cenário já se tornou mais diversiicado
no período imediatamente subsequente. As representações do início do

82 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


PERcEPçõES IMPERIAIS SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA ALExANDRIA PTOLOMAIcA

período helenístico são mais complexas, pois as identidades criadas para a


cidade eram múltiplas, e não se resumiam apenas ao vínculo entre Alexandre
e Alexandria, como para o contexto anterior.
As menções à Biblioteca e ao Museu de Alexandria produzidas no
período romano também são fundamentais para analisar a percepção
imperial da realeza, responsável pelo desenvolvimento das instituições que
conquistaram grande renome na posteridade. Estrabão explica que Aristóteles
fora o primeiro a começar uma coleção de livros, deixando o exemplo de
como organizar uma biblioteca para os reis do Egito, talvez sugerindo que
se tratava de uma invenção peripatética, que chegara a Ptolomeu através do
ateniense Demétrio de Falareu (BAGNALL, 2002, p. 351). Menciona que no
processo de transmissão dos livros, muitos foram daniicados, algo que ainda
ocorria na Alexandria de seu tempo. E lamenta que vendedores de livros com
frequência faziam uso de cópias ruins e repletas de erros, sem examinar os
textos, algo que ainda acontecia com os livros copiados à venda em Roma e
Alexandria (geographica 13.1.54).
o comentário de Estrabão pode ser entendido como uma reclamação
sobre a negligência dos copistas comerciais da época (KNox, 1985, p.
20). Apesar de Estrabão não fazer nenhum julgamento evidente acerca do
trabalho realizado na Biblioteca, sua menção ao amontoado de cópias indica
que, apesar da quantidade, tratar-se-ia de um material pouco coniável para a
pesquisa. Porém, ressalta a contínua atividade de investigação da instituição
sob o Império e a grandeza de seu acervo, embora a ênfase na produção
de cópias talvez servisse para desmerecer a originalidade dos trabalhos
realizados no local.
Estrabão menciona rapidamente o Museu e o seu pertencimento aos
palácios reais. Airma que o lugar tinha um caminho público e um local
comum dos eruditos que dividiam o recinto. Esse grupo de homens tinha
propriedades compartilhadas e um sacerdote encarregado, antes indicado
pelo rei e no seu tempo apontado pelo imperador (geographica 17.1.8). A
passagem é breve, mas ilustra certo isolamento dos intelectuais do Museu,
que tinham uma vivência voltada para a instituição, assistida por um
sacerdote e patrocinada pelos reis. Assim, o conhecimento produzido era
proporcionado pela realeza e os bons resultados ajudavam no fortalecimento
de sua imagem.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 83


JOANA cAMPOS cLíMAcO

Dois séculos depois de Estrabão, Ateneu apresentou outra versão a


respeito do destino da biblioteca de Neleu, discípulo de Aristóteles. Airma
que o rei Ptolomeu Filadelfo havia comprado todos os livros de sua grande
biblioteca, e os transferiu para Alexandria, juntamente com os obtidos em
Atenas e Rodes (deipnosophistae 1.3.b). ou seja, segundo Ateneu, a biblioteca
herdada por Atenas foi para Alexandria, e não para Roma, como conta a
estória de Estrabão. o fato de o autor ser procedente de Náucratis pode ter
interferido na sua defesa em favor de Alexandria. A respeito do número de
livros e da coleção no salão das musas, Ateneu diz que não precisava nem
falar, pois era algo que estava na memória de todos (deipnosophistae 5.203e).
Essa observação de Ateneu é importante para ressaltar que as estórias da
Biblioteca estavam presentes no imaginário de todos, mesmo dos que não
conheciam Alexandria.
Com relação ao Museu, Ateneu não descreve a sua organização, talvez
pelos mesmos motivos que achava não ser necessário descrever a Biblioteca
por estar na memória de todos. o autor cita um sátiro que comparava os
homens do Museu aos “pássaros numa gaiola”, como uma forma de ironizar
os ilósofos que icavam discutindo no local, pois eram alimentados como
os mais requintados pássaros (deipnosophistae. 1.22d). A alimentação é
provavelmente uma metáfora em relação aos investimentos reais para as
atividades do Museu (BARNES, 2000, p. 62). Como Estrabão, Ateneu ilustra
o isolamento dos eruditos do recinto e o gerenciamento dos reis. Dessa
forma, enfatiza a subordinação e dependência do Museu à realeza.
Flávio Josefo se refere à Biblioteca para ressaltar a boa disposição dos
Ptolomeus em relação à comunidade judaica. o autor relata detalhadamente
o processo da tradução da Septuaginta pelo segundo Ptolomeu (Filadelfo),
considerado por ele como um rei profundamente interessado no aprendizado
e um grande colecionador de livros (antiquitates Judaicae 1.10-13). Além
da tradução, o rei permitiu a libertação de milhares de judeus escravizados
no Egito. Josefo faz uma paráfrase da carta de aristeas, um documento
apologético do judaísmo (do séc. II a.C.) e a primeira fonte a falar dos
investimentos de Ptolomeu na Biblioteca. o relato assinala também a
importância do ateniense Demétrio de Falareu no processo de aquisição de
livros e como auxiliar do rei, que o informara sobre a importância dos livros
dos judeus (antiquitates Judaicae 12.12-25). Josefo narra o seguinte:

84 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


PERcEPçõES IMPERIAIS SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA ALExANDRIA PTOLOMAIcA

Demétrio de Falareu, que estava encarregado da biblioteca do rei, estava ansioso


para reunir, se conseguisse, todos os livros do mundo habitado, então, se ouvisse
falar ou visse, qualquer livro que compensasse o estudo, ele o compraria; e então
ele se esforçou para realizar os desejos do rei, pois era um grande devoto da arte
de colecionar livros. Então, quando Ptolomeu lhe perguntou quantas dezenas de
milhares de livros ele já tinha reunido, ele respondeu que o número atual estava
por volta de duzentos mil, mas que em um curto período ele juntaria em torno
de quinhentos mil. Ele mencionou que tinha sido informado que entre os judeus
também havia muitos trabalhos sobre a lei, que valiam o estudo e mereciam um
lugar na biblioteca do rei, mas tendo sido escrita na caligraia e no seu dialeto, não
seria pouco trabalhoso realizar a sua tradução para a língua grega. Pois, apesar da
caligraia ser semelhante à escrita peculiar siríaca (aramaico), e da língua parecer
com a outra, era de um tipo distinto. Não havia nada, contudo, ele disse, que os
impedia de ter esses livros traduzidos e ter os escritos em sua biblioteca, pois ele
tinha recursos abundantes para realizar esse gasto. E então o rei, convencido de
que Demétrio tinha lhe dado um excelente conselho sobre como realizar essa
ambição de obter uma grande quantidade de livros, escreveu para o sacerdote
supremo dos judeus que isso deveria ser feito (antiquitates Judaicae 12.12-25).

Josefo ressalta a generosidade de Ptolomeu diante dos judeus, mas


também toda a pompa, riqueza e exuberância da realeza. Assinala a ambição
e grandeza do projeto universal pretendido pelos reis, de reunir todos os livros
do mundo habitado. Elogia também a devoção de Ptolomeu por conhecimento
e estudos, denotando que sua apreciação por livros era autêntica. Apesar de
sua visão favorável à realeza, ica claro que seu julgamento é parcial, por ser
grato aos reis pela boa vontade diante do judaísmo.
Apesar de ser elogioso a Filadelfo, seu retrato da realeza dialoga
exatamente com os aspectos que eram criticados entre outros autores com
relação aos excessos da realeza. o autor destaca a grandeza do projeto
universal da Biblioteca, do qual Alexandria seria o centro, mas talvez exagere
o interesse do rei pelas leis, objetivando principalmente suscitar a curiosidade
generalizada em relação aos preceitos judaicos.
Se entre os autores gregos citados nota-se uma relativa admiração com
relação ao conhecimento elaborado na Biblioteca, os latinos Vitrúvio e
Sêneca expressam claramente sua opinião negativa sobre o saber veiculado na

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 85


JOANA cAMPOS cLíMAcO

instituição. Vitrúvio tece um julgamento da importância de se ter ampliado o


acesso aos livros, que legariam o conhecimento humano para a posteridade.
contudo, condena os que aproveitaram ideias dos outros como se fossem
suas, algo praticado na sua época.
Em seguida, Vitrúvio narra a fundação das bibliotecas de Alexandria
e Pérgamo, advertindo que os Ptolomeus deveriam ser censurados, pois
Filadelfo fundou a Biblioteca em Alexandria seguindo o mesmo modelo
de Pérgamo, motivado unicamente pela inveja. No entanto, sabe-se que a
biblioteca de Alexandria era anterior à de Pérgamo. Portanto, mesmo que
ambas disputassem prestígio, o comentário sugerindo que Ptolomeu imitara
os Atálidas expressa um juízo equivocado.
Vitrúvio descreve também as competições realizadas no local, onde
os autores mais atuantes disputariam prêmios. Menciona uma competição
de poetas em que o rei escolhera seis juízes experientes para examinar
os competidores (de architectura 7 praefatio 5.1). O autor relata que a
multidão manifestou suas preferências, porém Aristófanes,1 um dos juízes,
considerava que o prêmio deveria ser entregue ao que menos satisizera o
público, pois os outros tinham recitado cópias, e os juízes deveriam avaliar
composições originais. Aristófanes citou um grande número de textos que
havia memorizado, exatamente iguais aos recitados, e insistiu para que
os autores confessassem ser ladrões. Estes foram condenados, enquanto
Aristófanes se tornou bibliotecário (195 a.C.) (de architectura 7 praefatio
7.1). Vitrúvio talvez conte essa estória com o intuito de ressaltar a falta de
originalidade da produção da Biblioteca, da mesma forma que anteriormente
censurara a abundância de livros. Narra mais um episódio sobre um poeta
macedônio que foi para Alexandria e citou suas composições de crítica à
ilíada e à odisseia diante do rei. Ptolomeu icou furioso e o condenou por
ousar falar mal de Homero (de architectura 7 praefatio 8.3).
Se, na situação anterior, o autor sugeria o predomínio do plágio,
nessa segunda narrativa é provável que estivesse fazendo referência aos
trabalhos de revisão, crítica e interpretação de Homero realizados na

1
o crítico, que viveu entre 257-180, no governo de Euergetes, provavelmente trabalhava na Biblioteca,
antes de suceder Eratóstenes como diretor.

86 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


PERcEPçõES IMPERIAIS SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA ALExANDRIA PTOLOMAIcA

Biblioteca, considerando que tal herança grega não deveria ser questionada
e nem retrabalhada. É plausível que o intuito fosse rebaixar a produção
da Biblioteca, reforçando novamente a ausência de originalidade. A
condenação se estende à realeza por ter perdido o controle do que era
realizado no local. Vitrúvio assinala ainda que Homero foi a maior
autoridade literária em meio à nova realeza instalada no Egito e esboça
certo preconceito com relação às inovações produzidas em contexto
alexandrino, sugerindo que a identidade mista da cidade enfraquecera os
valores helênicos. Mas, como Estrabão e Ateneu, também ressalta o forte
vínculo das duas instituições com a realeza.
como Vitrúvio, Sêneca indica certa aversão à instituição, por
considerá-la um exemplo de esbanjamento. Argumenta que até para os
estudos, gastos só eram justiicáveis se existissem limites e questiona o
sentido de se ter ininitos livros, cujos títulos diicilmente seriam lidos no
decorrer de uma vida inteira. E esclarece que não se daria ao trabalho de
elogiar essa Biblioteca, como izera Tito Lívio, que a considerava como o
mais bonito memorial da riqueza real. Sêneca considera que tal projeto só
estimulava o luxo, pois se colecionavam livros unicamente para exibição e
decoração. Portanto, o problema eram a ostentação e o acúmulo desmedido
(Sêneca, ad serenum. de tranquillitate animi, 9.5; Tito Lívio, periochae
112.42). Em outro momento, Tito Lívio (ab urbe condita 45.33.7.3)
faz menção ao esbanjamento dos Ptolomeus, dizendo que o palácio de
Alexandria icava abarrotado de objetos para exibição e sugerindo que a
coleção não tinha inalidade prática e estava exposta apenas para o desfrute,
da mesma forma como os livros mencionados por Sêneca eram usados
como adornos.
Percebe-se que os latinos celebram menos a cultura erudita da cidade,
entendida como mero esbanjamento, e não um projeto intelectual em
grande escala. o silêncio a respeito do conhecimento produzido na
Biblioteca e no Museu e com relação ao potencial intelectual de Alexandria
é sugestivo, principalmente se analisado paralelamente aos mesmos relatos
que descreviam a grandeza e a riqueza da metrópole. Evitavam tecer
testemunhos sobre a Biblioteca, pois não era um assunto conveniente para
os romanos reforçarem? ou seja, a centralidade cultural de Alexandria não
deveria ser estimulada, pois poderia abalar Roma caso se desenvolvesse.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 87


JOANA cAMPOS cLíMAcO

Diferentemente da riqueza do Egito, necessária ao Império Romano,


portanto, havia todo o interesse em sua continuidade e rememorá-la poderia
ajudar na manutenção. Nos poucos momentos em que se descrevem os
estabelecimentos culturais, estes são associados aos excessos da realeza.
Ou seja, era mais conveniente divulgar a imagem das instituições como
caprichos dos reis do que como setores nos quais Alexandria inovou e
adquiriu destaque naquele mundo.
As narrativas sobre a cidade e a quantidade de adjetivações promovidas
tornaram-se mais escassas conforme se afastaram do tempo de Alexandre.
Enquanto Diodoro e Estrabão são elogiosos, Vitrúvio e Sêneca fazem mais
uso de julgamentos negativos ao caracterizá-la. Entre os latinos, interessava
sublinhar a magniicência da dinastia que abusou da ostentação para
desenvolver a cidade. o enfoque é principalmente nos investimentos em
ediicações, no embelezamento da cidade e nos festivais. No entanto, a
perda de foco fez com que a cidade se tornasse um exemplo de ostentação
e excessos. Sobre a Biblioteca e o Museu, observa-se uma tendência a evitar
tecer comentários sobre as realizações das instituições e uma propensão a
destituir a cidade e a realeza do mérito pela criação dos estabelecimentos.
A intenção aqui foi demonstrar que os escritos sobre a Alexandria
ptolomaica ganharam relevo na documentação a partir do século I a.C.
e foram abundantes até a época de Adriano. Depois disso, apenas Ateneu
abordou a época dos primeiros reis com mais fôlego. Não são poupados
adjetivos para descrever a notoriedade que a cidade adquiriu, indicando
a sua proeminência naquele contexto. Mas o que causava mais alarde era
que a crescente importância adquirida pela cidade começou a aproximá-la
de Roma em muitos aspectos, às vezes até superando a capital do Império.
os relatos dos gregos são mais detalhados, elogiosos e associam o
desenvolvimento da cidade a Alexandre. Já os escritos latinos são mais
pontuais, breves e enfocam questões especíicas que interessava divulgar no
Império. ou seja, era mais importante apontar a prosperidade e os deslizes
dos reis do que descrever a herança helênica da cidade e sua imponência em
vários setores. Censurar os reis era uma forma de louvar a superioridade da
era romana. Nesse sentido, Alexandria é retratada como uma cidade imperial
e deinida a partir de uma perspectiva do poder e conforme convinha às suas
elites retratá-la.

88 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


PERcEPçõES IMPERIAIS SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA ALExANDRIA PTOLOMAIcA

Alguns eixos comuns para explicar a cidade são observáveis, como


a importância de Alexandre, a prosperidade, localização privilegiada,
grandeza, beleza, e exuberância, mas conforme os relatos avançam no tempo
(tanto no contexto de escrita, quanto na história alexandrina) é perceptível
que Alexandria é retratada de forma mais plural e complexa. Mesmo que as
imagens recebidas privilegiassem um ou outro tema, elas eram retrabalhadas
no contexto especíico de cada autor.

referências

documentação primária impressa


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Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 89


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90 parte i – Formas políticas e dinÂmicas cUltUrais no principado


PARTE II

PODER, RELIGIÃO E IDENTIDADE


NA ANTIGUIDADE TARDIA
¿romaNoS o CrIStIaNoS?
la aProPIaCIÓN De la IDeNtIDaD
romaNa Por el CrIStIaNISmo

Ramón Teja

El autor anónimo de la denominada epístola a diogneto (1)


manifestaba en el s. II que los cristianos constituían en el mundo una
“nueva raza (kainon genos)” frente a los romanos, lo que, en cierta medida,
recuerda la expresión petrarquiana sum peregrinus ubique, evocación, a
su vez, quizá, del salmo 39,13: “Soy un forastero y un peregrino, como
todos mis mayores”. Por los mismos años, el apologista Arístides dividía
a la humanidad en cuatro gene: bárbaros, griegos, judíos y cristianos,
incluyendo a los romanos entre los griegos, en base a un principio
religioso, su politeísmo, y étnico. Sin embargo, en la mente del apologeta,
todos los pueblos estaban llamados a entrar en un nuevo y único genos,
el de los cristianos (Arist., apologia, 2; sobre el tema de las distinciones
étnico-religiosas y su evolución en el Imperio, vide HENGEL, 1981, p. 110
donde pone de relieve, que frente a la clásica oposición hellenos-barbaros
de época helenística, los romanos “terminaron por ocupar entre griegos
y bárbaros un rango nuevo, especíico y particular”). Cuándo se llegaría
a la instauración de este único genos cristiano, Arístides no fue capaz de
imaginarlo. Un siglo después, a mediados del siglo III, el gran pensador
cristiano, orígenes, tampoco creía imaginable que alguna vez hubiese un
emperador romano y cristiano. Para responder a las objeciones de Celso
de que “sería algo magníico que los que habitan Asia, Europa y Libia,
los griegos al igual que los bárbaros convinieran en una única ley (la
romana), pero quien eso piensa nada sabe” responde orígenes con la visión
escatológica de que las peculiaridades de cada pueblo no desaparecerán
hasta el último día bajo el futuro reinado del Logos (orígenes, contra celso,
VIII, 72). Pero sólo cincuenta años después, a comienzos del siglo IV, se
produjo algo que ningún cristiano había soñado como posible: la aparición
en la escena de un emperador que, aunque cristiano a su manera, podía
ser identiicado con la divinidad, al igual que lo habían sido los Tetrarcas

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 93


RAMóN TEJA

que le precedieron. constantino comenzó en el 311 a desempeñar el papel


que los cristianos habían previsto para un Jesucristo triunfante en la tierra.
En efecto, el sucesor de Orígenes en la cátedra de cesarea de Palestina, el
obispo, historiador y panegirista de constantino, Eusebio, pudo declarar
que, cuando los obispos convocados al concilio de Nicea del 325 cruzaron
las puertas del palacio imperial precediendo al emperador que “avanzó
por en medio de ellos cual celeste mensajero de Dios” pensaron que
“se estaba representando una imagen del reino de cristo y lo que estaba
sucediendo <un sueño era que no la realidad>(odis. 19, 547)” (Eusebio,
Vita constantini, III, 1; sobre el paralelismo entre constantino y cristo
y la concepción por Eusebio de la Vita eusebiana como algo similar a un
Evangelio de un emperador cristiano, vide VAN DAM 2013, p. 312-6).
En un artículo ya clásico, J. Straub, inspirándose, quizá en Orígenes,
desarrolló la idea de que la Iglesia no estaba preparada para tener un
emperador como constantino, es decir para jugar un papel esencial dentro
del Imperio y explica así la escasa importancia que tanto Eusebio primero
(Historia ecclesiastica VI, 34), como Orosio después (Historiae VII, 20)
atribuyeron a Filipo el árabe al presentarlo como un cristiano en secreto
para evitar escándalos políticos y religiosos (STRAUB, 1967, especialmente
p. 46). G. Dagron piensa que la de J. Straub es una contraposición entre
Filipo y constantino, seductora, pero poco convincente y que proyecta hacia
el pasado una oposición entre poder espiritual y poder temporal que sólo
aparecerá más tarde cuando se intente limitar la inluencia del emperador en
temas doctrinales (DAGRON, 1996, p. 142-3). coincido con el bizantinista
francés en lo indemostrable de la hipótesis, pero no en considerar el
ilocristianismo o criptocristianismo de Filipo una simple invención tardía
pues Eusebio, que escribe sólo medio siglo después, se basa en una tradición
anterior. Creo, más bien, que el silencio de las fuentes obedece al intento
de atribuir a Constantino el privilegio de haber sido el primer emperador
cristiano (TEJA, 2003, p. 307).
La política religiosa de Constantino representó un gran salto en el devenir
histórico y el inicio del largo proceso que culminará en la identiicación entre
romanidad – hasta entonces identiicada por algunos con el Anticristo –
y cristianismo. Los principales hombres de la Iglesia de la segunda mitad del
siglo IV se adaptaron a las nuevas circunstancias históricas realizando una

94 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


¿Romanos o cRistianos? La apRopiación de La identidad Romana poR eL cRistianismo

nueva lectura de la Vita constantini de Eusebio y emperadores tan dispares


como constancio II, arriano, y Teodosio I, niceno intransigente, intentaron
presentarse también como imitadores de constantino y fueron reconocidos
como tales por los líderes eclesiásticos. Así, por ejemplo, el gran teólogo y
obispo, Gregorio de Nacianzo, no tendrá escrúpulos en caliicar a Constancio
II como “el más divino de los emperadores” y ensalzarlo como modelo de
Príncipe cristiano (Gregorio de Nacianzo, oratio IV, 34): ideología política
pagana y cristiana se daban la mano. Resulta enormemente signiicativo
que el propio Gregorio de Nacianzo acuñase la expresión “sacerdocio regio”
(basileion hierateuma) aplicado al emperador para reprochar a Constancio
II el nombramiento de Juliano traicionando con ello, al mismo tiempo, la fe
cristiana y la romanidad (Greg. Nac. oratio IV, 35). Ello se explica porque,
como ha escrito G. Ventura da Silva, en un capítulo modélico titulado
“As duas monarquias” de uno de sus primeros libros, “Constancio e seu irmão
Constante participam da sociedade do mundo celeste como os executores
predestinados da missão iniciada por Cristo” (DA SILVA, 2003, p. 114).
La rápida identiicación que se produjo entre imperio y cristianismo quedó
muy bien relejada en el juramento de los soldados a de inales del s. IV
recogido por Vegecio:

Ellos juran por Dios, por Cristo, por el Santo Espíritu y por la majestad del
emperador que, el primero después de Dios, debe ser adorado y venerado por
el género humano. En efecto, al emperador, desde que recibió el nombre de
Augusto, le son debidas una iel devoción y una sumisión incondicional como a
un dios físicamente presente (praesenti et corporali deo) (Vegetius, institutiones
rei militaris, II, 5).

Siglos después y hasta el presente, el grupo más numeroso de aquellos


que se consideran cristianos, aquel grupo cuya cabeza tiene su sede en Roma,
al igual que los emperadores, se proclama y distingue de los otros grupos o
iglesias por declararse “católico-romano”. y el obispo de Roma se denomina
“pontíice romano”. Con buenas razones algunos teólogos actuales critican
que en Roma, sin ningún rigor histórico, se vea a la ecclesia romana, en vez
de a la Iglesia de Jerusalén, como la “madre de todas las iglesias” (KÜNG,
2007, p. 201).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 95


RAMóN TEJA

******
El proceso que condujo a la identiicación entre cristianos y romanos
constituye una de las más profundas transformaciones “identitarias” que ha
conocido la historia de occidente: lo que convencionalmente denominamos
“Antigüedad Tardía” es la historia de la integración entre el cristianismo
y la cultura e instituciones romanas; una integración que neutralizó la
inicial demonización de la romanidad por algunos cristianos, minoritarios
ciertamente, representados ya en la literatura apocalíptica del Nuevo
Testamento y después en escritores como Hipólito de Roma que consideraba
el Imperio como obra de Satanás y coniaba en su inminente inal profetizado
en el sueño de Nabucodonosor (Hipólito, in danielem IV, 9, 2). Se trata de
una concepción que era compartida también por muchos escritores paganos
que no concebían la posibilidad de conciliar el cristianismo con el Imperio.
Pero se dio la gran paradoja histórica de que la identidad cultural romana se
convirtió en identidad religiosa y terminó por ser asumida por los cristianos
como una forma de patriotismo cultural. Los primeros historiadores
romanos en lengua latina, como es el caso de san Agustín y orosio, crearon
una sincronía Cristo-Augusto que constituyó la base de una auténtica
teología de la historia y del Imperio transformado en cristiano. En realidad
el proceso venía de muy atrás. El primero en poner en relación el éxito del
Imperio con la aparición de Cristo y una religión de origen “bárbaro” como la
cristiana había sido, que sepamos, Melitón de Sardes en su apología dirigida
a M. Aurelio, de hacia el 170:

Efectivamente, nuestra ilosofía alcanzó su plena madurez entre bárbaros,


pero, habiéndose extendido también a tus pueblos bajo el gran imperio de tu
antepasado Augusto, se ha convertido, sobre todo para tu reinado, en un buen
augurio, pues desde entonces la fuerza de los romanos ha crecido en grandeza
y esplendor [...] La prueba mayor de que nuestra doctrina loreció para bien
junto con el Imperio felizmente comenzado es que, desde el reinado de Augusto,
nada malo ha sucedido, antes, al contrario, todo ha sido brillante y glorioso, de
acuerdo con las plegarias de todos (Citado por Eusebio, Hist. eccles. IV, 26,7-8).

Casi un siglo después, orígenes, en su comentario a romanos (13, 1-2),


sigue a Melitón y resalta que el hecho de que cristianismo e Imperio naciesen

96 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


¿Romanos o cRistianos? La apRopiación de La identidad Romana poR eL cRistianismo

al mismo tiempo fue obra de la Providencia. Pero fue Eusebio de cesarea,


gracias a la época en que escribió, quien llevó a sus últimas consecuencias
esta asociación. Eusebio establece una estrecha relación entre la historia
del Imperio y el régimen monárquico en cuanto superior a todos los otros
y generador de paz. Esto se demostró primero, dice, con el gobierno de
Augusto y en su época con el de constantino después de haber eliminado
la Tetrarquía. En su pensamiento monarquía y monoteísmo van unidos
mientras que la autoridad compartida en base al principio de igualdad sólo
genera anarquía y guerras. Este axioma aparece ya expuesto al inicio de su
praeparatio evangelica: antes de la venida de cristo, la situación del mundo
romano era intolerable; pero, cuando llegó cristo, la raza humana, gracias a
“un poder secreto y divino” se vio liberada inmediatamente de la “multitud
de jefes entre las naciones”: “La división del poder desapareció entre los
romanos cuando Augusto se convirtió en dueño único de la Ecumene, al
mismo tiempo que se produjo la venida de nuestro Salvador […]” (praep. ev.
14, 2-4). Las ideas expuestas por Eusebio tuvieron una enorme repercusión
en los escritores cristianos griegos y latinos (GRANT, 1987, p. 49-50;
FARINA 1966, p. 142).
No es este el lugar para recordar la teología de la historia expuesta por
s. Agustín en su civitas dei y desarrollada en sus Historiae por su discípulo,
Orosio: me limitaré a recordar que la identiicación providencial Imperio-
Cristianismo constituye el leit motiv omnipresente en la concepción histórica
del escritor hispano desde que, al inicio de su capítulo primero, identiica
el reinado de Augusto con el nacimiento de Cristo. Es suiciente con una
lectura de sus prolíicas relexiones contenidas en el Libro VI sobre cómo
la Providencia divina lo preparó todo de forma que durante el reinado de
César Augusto viniera Cristo al mundo. Todo el Libro VI está destinado a
demostrar que el Imperio de Augusto no fue sino una preparación divina
para la venida de Cristo y “para que, en medio de aquella gran tranquilidad
y de aquella paz que se extendía ampliamente, se difundiese sin peligro y
rápidamente la gloria de la Buena Nueva y la rápida fama de la anunciada
Salvación” (orosio, Hist. VI, 1, 8). Más adelante hace coincidir el día de la
vuelta de Augusto de oriente como vencedor, en el 725 de Roma, en que
cerró por vez primera las puertas del templo de Jano y fue aclamado como
Augusto, con el de la Epifanía, es decir el de la aparición de Cristo sobre la

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 97


RAMóN TEJA

tierra (Oros. Hist. VI, 20). E. Peterson ha caliicado este libro VI de orosio
como “el desarrollo de toda una teología política de Augusto” donde “este
español provincial entrelazó Imperio y Cristianismo como tal vez nadie
hizo, y los relacionó de una manera impresionante, vinculando Augusto a
Cristo. Evidentemente con ello cristianiza a Augusto y romaniza a Cristo,
que resulta ser un civis romanus” (PETERSoN, 1999, p. 91). Me permito
recordar también un pasaje poco conocido de Gregorio de Nacianzo donde
reiriéndose al emperador Constancio II, dice: “Sabía bien, porque su idea
sobre estas cosas era más alta, más digna de un rey de lo que es común
entre la mayoría, que la grandeza de los romanos había aumentado con la
de los cristianos, que el Imperio se había iniciado con la llegada de Cristo
pues nunca hasta entonces todo el poder había estado en manos de un solo
hombre” (Greg. Nac., oratio IV, 37; vide PETERSoN, 1999, p. 81 ss. en
donde traza la evolución de la idea desde Melitón de Sardes a Eusebio y los
escritores que después se inspiraron en él; vide LUGARESI, 1993, p. 271-2).
De este paralelismo o sincronía, a partir del siglo V, comenzaron a
ser protagonistas también los bárbaros en cuanto parte integrante de la
polémica entre paganos y cristianos que caracterizó el inal de la Antigüedad.
El término paganus, derivado de pagus (aldea), fue utilizado por los escritores
cristianos latinos, a partir del siglo IV, para indicar todos los ritos o cultos
presentes en la ecúmene romana – fuesen de matriz grecorromana, céltica o
germánica – y que permanecían coninados en las aldeas en un momento en
que el cristianismo se expandía por las ciudades: estos autores, como Isidoro
de Sevilla para Hispania, Gregorio Magno para Italia o Gregorio de Tours para
la Galia, todo lo que no consideraban cristiano lo relegaban a la condición
de pagano. Ello demuestra que se había producido ya la identiicación del
cristianismo con las sociedades urbanas, y no se debe olvidar que fue la civitas
lo que caracterizó la civilización greco-romana, aunque sabemos bien que,
todavía en el s. V en Roma – y más aún en otras muchas ciudades – el espacio
cívico continuaba siendo compartido por cristianos y paganos.
Salvando las peculiaridades religiosas de las minorías que en las aldeas o
pagi seguían siendo “paganas”, la presencia de los bárbaros en el interior de la
viejas fronteras del Imperio aceleró el proceso que, por contraste, llevó a los
cristianos a reconocerse en la cultura de los romanos dando origen a nuevos
paralelismos bien señalados, en un estudio aún inédito, por la estudiosa

98 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


¿Romanos o cRistianos? La apRopiación de La identidad Romana poR eL cRistianismo

italiana T. Sardella: por un lado, romanismo=cultura=cristianismo; por


otro, barbarie=incultura=paganismo (celta o germánico principalmente).
Los más importantes escritores cristianos de los ss. V y VI como Salviano de
Marsella, Sidonio Apolinar, Gregorio de Tours, Gregorio Magno o Isidoro
de Sevilla, ya no serán capaces de distinguir entre romanidad y cristianismo.
Por ello, en la historiografía moderna, el debatido tema del “inal del Mundo
Antiguo” no se plantea ya en términos de “caída del Imperio Romano”, sino
como “transformación del mundo romano” que dio paso a los tiempos
post-romanos deinidos como “cristianos” y “barbáricos” al mismo tiempo.
Frente a la clásica interpretación de E. Gibbon que atribuyó al cristianismo la
desintegración del Imperio Romano y la muerte de la civilización antigua, se
preiere ver en el cristianismo, especialmente en occidente, como elemento
di “riaggregazione” – me sirvo del término italiano, más expresivo – cultural
y religiosa o, si se preiere, como el cemento o el pegamento que hizo posible
que cuajase la transformación o integración identitaria entre lo romano y
lo bárbaro. En la misma época en oriente el cristianismo era visto como
el elemento clave sobre el que los emperadores bizantinos construían el
sueño vano de una reuniicación del Imperio. El bizantinista francés Alain
Ducellier (1976) deinió la sociedad romana del oriente bizantino como el
más orgánico intento de dar vida a una sociedad totalmente cristiana y su
fracaso es lo que deinió como “el drama de Bizancio”. quizá el problema es
que tanto los emperadores de oriente como los papas en occidente se sentían
los legítimos y únicos representantes del Imperio Romano. Cuando subió
al trono el emperador Justino, el papa Hormisdas (514-523) pensó por un
momento que estaba a punto de recomponerse la unidad perdida. No pasó
de ser un espejismo, aunque su hijo Silverio pudo componer un epitaio en
su honor en tonos triunfales: “Tú has sanado el cuerpo de la patria lacerado
por el cisma, devolviendo a su lugar los miembros separados con violencia
(membra revulsa). En el piadoso Imperio, la Grecia conquistada ha cedido
ante ti alegrándose de haber recuperado la fe perdida [...] (ICUR, NS 2,
4150). Ph. Blaudeau ha comentado, a este respecto, que “un tel bulletin de
victoire est solidaire d´une conception traditionnelle qui identiie la patria à
l´imperium romanum: ordonné autor du monde méditerranéen, il a Rome
pour centre, Rome dont le pontiice confère eicacement l´unité à l´Église
universelle” (BLAUDEAU, 2012, p. 148).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 99


RAMóN TEJA

ya que he aludido por vez primera a la división Oriente-Occidente


creo que merece la pena recordar el juicio del gran historiador R. Syme,
parafraseando a E. Gibbon, de que el hecho más sorprendente en la larga
historia del Imperio no es que terminase dividiéndose en dos partes, sino
el que hubiese permanecido unido durante tantos siglos, dadas las enormes
diferencias lingüísticas, culturales y étnicas que convivían en su seno. Unas
diferencias que se vieron atenuadas en gran parte en Occidente cuando el
Imperio se hizo cristiano. Pero no ocurrió lo mismo en Oriente. Aquí la
nueva religión, a pesar de que se decía “universal” o “ecuménica”, no logró
superar los viejos y arraigados prejuicios raciales y culturales de los orientales
respecto a los occidentales. A este respecto, me parece enormemente
revelador el juicio expresado por el gran orador y pensador que fue Gregorio
de Nacianzo. comentando las divisiones entre los obispos de una y otro
pars del Imperio, de las que fue observador privilegiado mientras ocupó
la sede episcopal de constantinopla durante los años 379-381, recordaba
que sus colegas orientales aducían como prueba de su superioridad sobre
los occidentales el hecho de que cristo había elegido nacer en Oriente. A
esto, dice que él les respondía que también había sido el Oriente donde se le
había dado muerte. Vale la pena recordar que por los mismos años el rétor
antioqueno Libanio caliicaba como “estafador” al gobernador de Siria Festo,
porque era un itálico que no conocía el griego (Libanio, oratio 1,156). De
la pervivencia de este profundo sentimiento de superioridad que tenían
los orientales y de la idea que sólo hay un Imperio indivisible, la romania,
cuya capital solo podía ser Constantinopla da cumplida cuenta la narración
que dejó el obispo de Cremona Liutprando de su viaje a Constantinopla en
968 enviado por otón I. Indignado el emperador Nicéforo Focas porque en
algunos textos papales había sido denominado “emperador de los griegos”,
espetó airado al embajador: “Vosotros no sois Romanos, sois Longobardos”
(citado por ARNALDI, 1956, p. 23-34).

******

Pero fue el elemento lingüístico el que terminó por imponer al inal


de la Antigüedad su enorme peso socio-cultural. Estoy convencido de que
si las iglesias cristianas no pudieron superar los procesos de división entre

100 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


¿Romanos o cRistianos? La apRopiación de La identidad Romana poR eL cRistianismo

Oriente y Occidente a partir del s. V, se debió a que las divisiones lingüísticas


impusieron su predominio sobre la unidad religiosa haciendo bueno el
aserto de S. Agustín de que linguarum diversitas hominem alienat ab homine
(civitas dei 19,7). La mejor demostración es la forma como se desarrollaron
los denominados concilios ecuménicos o universales. A pesar del ambicioso
título con que han pasado a la historia, la realidad es que todos fueron
concilios Orientales pues la presencia de obispos occidentales – latinos
– no pasó en todos ellos de ser testimonial: Nicea, constantinopla, Éfeso,
calcedonia. Además, los obispos de Roma nunca participaron en persona
en ningún concilio y con el tiempo se vieron en diicultades crecientes
para enviar delegados que conociesen el griego. La barrera lingüística entre
ambas partes imperii era una realidad que se puso de maniiesto en toda su
crudeza cuando en el 428 se inició el enfrentamiento entre Nestorio, recién
nombrado obispo de Constantinopla, y Cirilo de Alejandría. Nestorio fue
acusado por el alejandrino de predicar ideas heréticas y, para defenderse de
la acusación, envió los textos de sus homilías al obispo de Roma, Celestino.
Pero en Roma no se encontró a nadie que conociese el griego y tuvieron que
hacer venir desde Marsella al famoso monje Juan Casiano, que había vivido
varios años en Egipto, para que interpretase y tradujese sus textos al latín
(TEJA, 1995, p. 63-4).
Las diferencias lingüísticas no sólo contribuyeron a dividir el oriente
del occidente, sino que también fueron el principal elemento de división
entre los propios cristianos de oriente. Cuando, después de los acuerdos
de Calcedonia en el 451 se inició el proceso de enfrentamiento entre los
obispos “calcedonianos” y los denominados “monoisitas” o “mioisitas”, este
se coniguró en pocos años como un enfrentamiento entre los cristianos de
lengua griega frente a aquellos en que la lengua dominante era el siriaco o el
copto dando lugar rápidamente al nacimiento de tres iglesia bien deinidas,
división que todavía persiste. otro ejemplo revelador de hasta qué punto
el elemento lingüístico fue fundamental en la plasmación de identidades
religiosas al inal de la Antigüedad con su correspondiente trascendencia
política y cultural lo encontramos en las consecuencias que se derivaron de
la traducción de la Biblia a la lengua gótica por parte de úlilas. Los visigodos
ya habían entrado en contacto con el cristianismo antes de 341 en que úlilas
fue consagrado obispo de confesión arriana, pero desde que contaron con

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 101


RAMóN TEJA

una biblia, traducida por éste a su propia lengua, el arrianismo se convirtió


en un signo identitario de enorme trascendencia, no sólo para los visigodos,
sino también para otros pueblos germánicos como los ostrogodos. Sólo
cuando estos pueblos adoptaron la lengua latina, el cristianismo niceno
pudo imponerse en Occidente como el elemento de identiicación con la
romanidad que había previsto un siglo antes orosio cuando, huyendo de
las invasiones en Hispania, encontró refugio y asilo en el áfrica romana,
símbolo entonces del Imperio: “yo aprovecho para huir a la primera señal
de perturbación, seguro de encontrar un lugar de refugio porque tengo mi
patria donde está mi ley y mi religión (ubique patria, ubi lex et religió mea est
)” (oros. Hist. V, 2, 1). Haciendo un paréntesis en estas relexiones, me atrevo
a sugerir una comparación entre la trascendencia que tuvo la traducción de
úlilas con la que tendrá en el s. xVI la traducción por Lutero del nuevo
testamento al alemán.

******

Los historiadores modernos se han esforzado en analizar y explicar la


gran fractura ya señalada que se produjo en el mundo cristiano después de
Calcedonia y que convirtió en infructuosas las intervenciones del poder
imperial bizantino tendentes a recomponer la unidad religiosa. Se han
aducido factores como el canon 3 del concilio de Constantinopla – 28 de
Calcedonia – por el que se elevó a Constantinopla a la condición de “nueva
Roma”, y que no fue aceptado ni por Roma ni por Alejandría; se han aducido
diferencias doctrinales, que ciertamente contribuyeron de una manera
importante a consolidar la ideología del primado romano con papas como
León Magno y Gelasio, al igual que el dogma de Calcedonia enfrentó entre
sí al oriente cristiano. La tesis central que subyace en la reciente obra de
P. Blaudeau (2012) sobre las relaciones entre la sede romana y el oriente
es la demostración de que las circunstancias que provocaron el debate
“mioisita”, término más apropiado que “monoisita”, dieron a Roma la
ocasión de promocionar sus aspiraciones y su propia identidad, al tiempo
que resultó ser un experimento de lo diferente que era la realidad oriental
frente a lo que se creía que debía ser la comunión romana. Pero la enorme
importancia de los factores lingüísticos se releja, vuelvo a repetirlo, en las

102 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


¿Romanos o cRistianos? La apRopiación de La identidad Romana poR eL cRistianismo

cuatro grandes identidades religioso-culturales que entonces surgieron y aún


perviven: la latina, la griega, la siriaca y la copta. Han acertado a valorar bien
la importancia de las lenguas en esta época historiadores modernos de tanto
prestigio como Fergus Millar: después de dedicar la mayor parte de su vida
a estudiar la igura del emperador en cuanto principal institución unitaria
del Imperio (he emperor in the roman World), ha volcado en los últimos
años su atención en la historia de los países de lengua siriaca (vide MILLAR,
2013). S. Agustín fue muy consciente de la enorme importancia de la lengua
cuando escribió: “La ciudad dominante ha impuesto, no sólo su yugo, sino
también su lengua a los pueblos conquistados como un medio para asegurar
la paz en la sociedad” (civitas dei, 19, 7). El pasaje releja bien cómo el uso
del latín era una señal de dominio cultural y político; y es que las lenguas
han sido siempre indicadores muy precisos del poder, de la administración,
de la cultura y de la religión lo que explica que su imposición haya sido casi
siempre contestada. Por ello, en las provincias orientales del Imperio en
que predominaba el griego, que también había sido una lengua impuesta,
los emperadores se esforzaron siempre en mantener el latín, al menos en
los documentos oiciales; o recurrieron al bilingüismo como es el caso bien
conocido de las res gestae de Augusto en Ancira. Por ello, la ruptura con el
oriente se puede explicar porque, como ha escrito G. Woolf (1994, p. 130),
“los romanos no lograron nunca reconciliarse plenamente con la cultura
griega y los griegos no dejaron nunca de ser griegos”. El mismo S. Agustín
reconoció que la imposición fue una política miope y autodestructiva pues,
en la práctica, la imposición lleva a guerras y derramamientos de sangre y, en
el mejor de los casos, a la incomunicación y la incomprensión, como sucedió
a partir del s. V entre las iglesias romana y bizantina. Se podría aplicar al caso
el dicho de S. Agustín de que “un hombre es más feliz con su perro que con un
extraño” (civ. dei, 19, 7), tal como lo ha interpretado R. Van Dam: un perro
que ladrase en griego era preferido a un magistrado romano que hablase en
latín (VAN DAM 2013, p. 189; vide LAFFERTy, 2003). Es muy signiicativa la
anécdota recogida en la Historia augusta de que, cuando Apolonio de Tiana
se apareció al emperador Aureliano, se dirigió a él respetuosamente en latín
“para que pudiese entenderle un hombre nacido en Panonia” (aurelianus, 24,
3). Esto nos plantea un tema tan apasionante como es el problema teológico
de las lenguas en relación con la revelación divina y que explica, por ej., que el

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 103


RAMóN TEJA

judaísmo rabínico renegase en el s. II. d.c. de la traducción bíblica conocida


como la Septuaginta.
He querido recordar que en Oriente, a pesar de que pervivió durante
más tiempo la unidad política bajo el poder de constantinopla – hasta las
invasiones árabes del s. VII –, las diferencias lingüísticas y doctrinales hicieron
del cristianismo un factor, al mismo tiempo, de continuidad/discontinuidad,
de unidad y de división pues desembocaron en la constitución de Iglesias
enfrentadas entre sí y diferenciadas étnica y lingüísticamente. Por el
contrario, en Occidente, aunque la fragmentación del Imperio se plasmó en
la formación de Iglesias nacionales, las instituciones eclesiásticas lideradas
por los obispos y los monjes suplieron el vacío dejado por la estructura
política imperial. Pero la homogenización impuesta por el cristianismo
no logró eliminar ciertos particularismos locales. Estos particularismos
encontraron su mejor expresión en las formas litúrgicas como fue el caso de
la ambrosiana en Italia, la galicana, la irlandesa, o la hispana del rito visigodo
o mozárabe que sobrevivió en la Península Ibérica hasta la nueva uniicación
“imperial” impuesta por Gregorio VII a inales del s. xI. Por si hubiera alguna
duda sobre la ideología centralizadora en base al modelo “imperial” que
empezó a asumir el papado de esta época, se puede recordar que un siglo
después Bonifacio VIII, al tiempo que sostenía en sus manos la espada y las
llaves, rechazó la pretensiones imperiales del legado del Sacro Imperio con
estas palabras: ego sum caesar, ego sum imperator.
El desarrollo y formalización de las diversa liturgias en los distintos reinos
romano-germánicos a partir del siglo V había sido una consecuencia de la
relevancia que, en un mundo de escasa formación, adquirió la dimensión
ritual del cristianismo. Solo una liturgia oicializada, por lo menos, a escala de
un reino o de una “Iglesia nacional” podía en esta época asumir o armonizar
las expresiones devocionales de procedencias muy dispares integrándolas con
las que pervivían de los diversos paganismos (GARCIA DE CoRTAZAR,
2012, p. 160). A pesar de ello, o quizá precisamente por ello, el cristianismo
desempeñó en occidente el papel de elemento identitario y catalizador de
las diversidades, creó nuevos equilibrios entre las culturas germánicas y
la romanidad y fue el principal elemento uniicador en el plano religioso.
Gracias a él “la romanità è traghettata nell´attuale civiltà occidentale”,
según expresión de T. Sardella o, como yo mismo escribí en otra ocasión,

104 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


¿Romanos o cRistianos? La apRopiación de La identidad Romana poR eL cRistianismo

dado que el cristianismo es un producto de la sociedad imperial romana y


uno de los legados más importantes de la Antigüedad que ha llegado hasta
nuestros días, “podemos airmar que todos los que vivimos inmersos en la
cultura occidental somos cristianos, al margen de las creencias religiosas de
cada uno” (TEJA, 1990, p. 21). Me atrevo a sugerir que es lo mismo que ha
expresado el ilósofo italiano Gianni Vattimo, cuando sentencia que “gracias
al cristianismo podemos ser ateos… ¡sin dejar de ser religiosos!”
El tema saltó al primer plano de los debates político-religiosas en
Europa con motivo de la discusión sobre sus raíces culturales y/o cristianas
al momento de redactar el preámbulo de la frustrada Constitución europea.
Al margen de las intenciones espúreas subyacentes en el debate – piénsese en
el modelo polaco –, éste demostró la necesidad de hacer un balance histórico
actualizado sobre los orígenes de Europa superando viejos prejuicios
historiográicos de tipo nacionalista que durante siglos han dividido a los
estudiosos del Norte – alemanes y anglosajones – con los estudiosos del
Sur – franceses, italianos y españoles – en la valoración de las denominadas
“invasiones” o “migraciones” de pueblos: portadores de un nuevo ethos o
una nueva civilización de cuño germánico para un Imperio que, piensan los
primeros, ya no era romano; acontecimiento para estos últimos catastróico y
violento que destruyó (“asesinó”, cf. Piganiol) la brillante civilización romana.
Las interpretaciones contrapuestas desaparecen, o se atenúan, si se considera
al cristianismo como el elemento de unión de las diversas fuerzas centrífugas
que estaban en juego al inal de la Antigüedad. El propio E. Gibbon, al tiempo
que acusó al cristianismo de haber asesinado la romanidad, dio una respuesta
optimista al interrogante sobre el futuro de la civilización y el destino de
occidente: “Europa está protegida de cualquier futura invasión de bárbaros
porque, antes de poderla conquistar, deben dejar de ser bárbaros” (vide
GIARDINA; VAUCHEZ, 2000, p. 167).
He aludido anteriormente a que el cristianismo, si por un lado
homogeneizó, por otro acentuó los particularismos locales: ritos, creencias,
supersticiones antiguas que en el seno del cristianismo han pervivido hasta
nuestros días (los feiticeiros de G. V da Silva). Ello se explica, a mi modo de
ver, por el sincretismo que es el elemento que mejor deine el éxito de la nueva
religión, aunque el término sigue teniendo en ciertos ámbitos connotaciones
peyorativas y provoca rechazos ideológicos. Como muy bien expresó, hace ya

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 105


RAMóN TEJA

más de un siglo, el famoso estudioso de los orígenes del cristianismo, Adolf


von Harnack en la frase que se le atribuye de que en el siglo IV cristianismo y
paganismo “tenían dos mitologías, pero una sola teología”: si nos detenemos
en el debate entre celso y Orígenes, se comprueba que ambos “comparten la
creencia en que Dios es incorpóreo, impasible, inmutable y está situado más
allá de la inteligencia humana; ambos atacan las creencias antropomóricas
del vulgo” (DoDDS, 1975, p. 156 y n. 44). Dedicaré, pues, la segunda parte
de mi exposición a analizar aquellos elementos de carácter sincretístico que
coniguraron el cristianismo en su época de formación y que hicieron posible
que después pudiese desempeñar un papel identitario tan importante.

******

En el mundo romano las relaciones entre los distintos grupos religiosos


se caracterizaron normalmente por aspectos o matices de controversia, más
que de diálogo. El concepto de “tolerancia” es moderno y más moderno aún
el de “diálogo religioso” basado en la idea de que la verdad no es patrimonio
exclusivo de ninguna de las partes. Pero, al mismo tiempo, en aquella época
los distintos cultos estaban estrechamente relacionados con la pertenencia,
por lo general, a un grupo bien deinido – étnica, social o lingüísticamente
– lo que facilitaba en cierto modo una convivencia pacíica. Sin embargo,
los cristianos, desde que rompieron con el judaísmo, constituyeron un
movimiento transversal y con fuertes motivaciones proselitistas. Además, se
trataba de un movimiento con una clara conciencia de que su posesión de la
verdad determinaba la necesidad de condenar los errores de los otros y una
predisposición a dar la vida por verdades que no se podían demostrar: “No
hagas preguntas, limítate a creer”, era un principio que les reprochaba Celso
(apud orígenes, contra celso 1,9; cf. et. 6,11). Por otro lado, el movimiento
cristiano era en los primeros siglos una galaxia caracterizada por un pulular
de denominaciones que luchaban entre sí por la supremacía: por ello hasta
el siglo III los estudiosos preieren ahora hablar de “cristianismos” y no de
“cristianismo” en singular. La maduración como sistema religioso se produjo,
por ello, mediante la controversia entre los diversos grupos entre sí y frente a
la pluralidad de grupos religiosos que convivían en las ciudades del Imperio:
seguidores de cultos mistéricos, gnósticos, maniqueos, adeptos a cultos de

106 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


¿Romanos o cRistianos? La apRopiación de La identidad Romana poR eL cRistianismo

carácter exclusivamente local, judíos y también de seguidores de Jesús (vide


MUScOLINO, 2011, p. cxcVI). Se ha puesto de relieve que en su famoso
diálogo con trifón, Justino, un converso griego de Neápolis de Samaría, se
propone impedir que los christianoi, es decir, los seguidores de Jesús que no
son judíos, se integren sin una identidad propia en el Imperio y en la cultura
helenístico-romana. Es el motivo que le lleva a denunciar a aquellos que se
acercan demasiado a las costumbres religiosas y las inclinaciones religiosas
de los gentiles: “Hay personas que se dicen cristianas […] pero profesan las
enseñanzas que provienen de los espíritus del error” (Justino, diálogo, 35,
2; vide PEScE 2013, p. 200-5).
Esto demuestra, y es otro elemento que debe ser tenido en cuenta, que las
relaciones interreligiosas eran tan estrechas en las ciudades más importantes
que hacen imposible al estudioso moderno un tratamiento separado de cada
grupo. Sin embargo, por comodidad expositiva establecemos con frecuencia
distinciones que son muchas veces artiiciales y arbitrarias porque tendemos
a resaltar las diferencias que acentuaron por razones apologéticas los
propios autores antiguos. Los nombres de grupos como paganos, cristianos,
gnósticos, judíos, judeocristianos etc son sólo indicativos porque las fronteras
entre ellos eran mucho más lábiles y confusas de lo que solemos imaginar.
Me limitaré a señalar un solo ejemplo a propósito de las relaciones que se
establecían entre cristianos y judíos: M. Pesce (2013, p. 202) ha podido
diferenciar en base al cap. 47 de el diálogo con trifón los siguientes tipos de
seguidores de Jesús:
1. Judíos que A) creen en Cristo; B) observan la Ley de Moisés;
C) “eligen vivir con los christianoi y con los ieles (pistoi)”; pero
D) sin inducirles a observar la Ley de Moisés.
2. Judíos que A) creen en Cristo; B) observan la Ley de Moisés;
C) “eligen no tener comunión con (los cristianos y los ieles)”;
D) o bien, pretenden que los cristianos observen la Ley de Moisés.
3. Judíos que “maldicen” en las sinagogas a aquellos que creen en Cristo.
Es muy probable que estos judíos se opusiesen a aquellos otros judíos
internos al propio grupo que creían que Jesús fuese el Mesías.
4. “Cristianos”, es decir, no judíos que A) creen en Cristo; B) no
observan la Ley de Moisés; C) aceptan vivir con judíos que son
seguidores de Jesús.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 107


RAMóN TEJA

5. “cristianos”, es decir, no judíos que A) creen en cristo; B) no


observan la Ley de Moisés; c) no quieren ni hablar ni comer con
judíos que son seguidores de Jesús.
6. No-judíos que, en un primer momento, se hacen seguidores de Jesús,
después añaden a la fe en Jesús la observancia de la Ley de Moisés
y, en un tercer momento, observan la Ley de Moisés, pero dejan de
creer en Jesús.
En otro contexto y otra época merece la pena recordar el variado
mosaico de los cultos y creencias imperantes entre la aristocracia romana
del siglo IV. queda bien relejado en esta descripción de los corresponsales
del senador quinto Aurelio Símaco:

cristianos fervorosos como Ambrosio o moderados como Ausonio, neoplató-


nicos como Manlio Teodoro, orientalizantes como Pretextato o tradicionalistas
como como Aviano Símaco o Nicómaco Flaviano son ejemplos del mosaico
religioso que componen los corresponsales simaquianos (BELTRAN RIZO,
2013, p. 34).

El cristiano puro no existía entonces – y podemos añadir que no existe


ahora – sino convencionalmente: ¿cuántas conversiones del paganismo eran
consecuentes hasta el fondo?; ¿en qué medida el judaísmo seguía seduciendo a
muchos que se consideraban cristianos?; ¿cuántas prácticas y creencias paganas
– y me sirvo también del término por comodidad expositiva – convivían
con la praxis evangélica? Esto sucedía, no sólo en lo que se suele denominar
“religión popular” donde las supersticiones y las actitudes que llamamos
sincretísticas eran una realidad cotidiana, sino también a un nivel más culto:
cabe preguntarse, por ejemplo, cuánto hay de Platón y cuánto de la biblia en un
personaje tan importante como Orígenes. Siglo y medio más tarde, S. Agustín
constataba que la mayoría de los platónicos de su época podrían convertirse
al cristianismo “paucis mutatis verbis atque sententiis” (de vera religione,
23). Un buen ejemplo podría ser el bien conocido de Sinesio de cirene. La
supericialidad de la mayor parte de las “conversiones”, ya antes de la época
constantiniana, se pone de maniiesto en el enorme número de “apostasías”
que se producía en los momentos de persecución. Baste recordar un pasaje
como este del obispo Cipriano de Cartago a mediados del s. III:

108 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


¿Romanos o cRistianos? La apRopiación de La identidad Romana poR eL cRistianismo

El Señor ha querido poner a prueba a sus hijos, y como una paz larga había
relajado los preceptos que nos enseñó Dios, la justicia del cielo se encargó
de levantar nuestra fe decaída y casi diría aletargada, y aunque por nuestros
pecados merecíamos más castigos, Dios clementísimo lo dispuso de manera
que todo lo que hasta aquí sucedido pareciese más un sondeo (exploratio) que
una persecución (cipriano, de lapsis, 5).

continúa cipriano con una larga enumeración de delitos o faltas que


atribuye a los cristianos de su tiempo entre las que señalamos éstas:

Se unían en matrimonio con los inieles, se prostituían con los gentiles los
miembros de Cristo [...] Se despreciaba con soberbia altanería a los prelados,
se maldecían recíprocamente con venenosas lenguas, se destrozaban con obsti-
nado odio unos a otros. Muchos obispos, que deben ser un estímulo y ejemplo
para los demás, despreciando su sagrado ministerio, se empleaban en el manejo
de bienes mundanos y, abandonando su cátedra y su ciudad, recorrían los mer-
cados por las provincias extranjeras a la caza de negocios lucrativos, buscando
acumular dinero en abundancia, mientras pasaban necesidad los hermanos de
la Iglesia; se apoderaban con ardides y fraudes de heredades ajenas, cargaban
el interés con desmesurada usura […] (Cipriano, de lapsis, 6).

Esta enumeración de “vicios” extendidos entre los cristianos se puede


comparar, por contraste, con las exigentes prescripciones que se impartían
a los ieles gentiles, tan denostados, por lo demás, en la apologética cristiana
de la época, de un santuario privado en honor de la diosa local Agdistis en
Filadelia de Lidia (Asia Menor), del s. I o II:

Al entrar en este templo los hombres y mujeres, esclavos y libres, juren por
todos los dioses que no maquinarán deliberadamente algún engaño o veneno
letal contra algún hombre o mujer; que no conocerán, ni harán, ni recurrirán
a iltros amorosos, a fármacos para abortar, a anticonceptivos, ni a acciones
de rapiña o de sangre; que no robarán y que tendrán buenas acciones respecto
a esta casa (templo), y que, si alguien hace o proyecta algunas de estas cosas,
no lo callarán, sino que lo denunciarán y lo castigarán. Los hombres no de-
ben tener relaciones con las mujeres de otros, ya sean libres o esclavas, ni con

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RAMóN TEJA

niños, ni con vírgenes, ni incitarán a otros a tenerlas… El hombre y la mujer


que hagan estas cosas no entren en esta casa (templo) pues en ella tienen su
trono poderosas divinidades que son sensibles a estos pecados y no toleran a
aquellos que transgreden sus mandatos […]” (Dittenberg, Syllogen I.G. 985;
SOKOLOWSKI 1955, n. 20).

Sin duda alguna, un judío helenizado como Pablo de Tarso hubiera


subscrito de buen grado un código de conducta como éste. El Dionysos que
había fundado esta comunidad religiosa impuso una serie de prescripciones
cultuales y morales de carácter universalista que relejan que debía tratarse
de una especie de ilósofo místico muy próximo a los primeros seguidores
de Jesús, aunque, quizá, sin el espíritu misionero de Pablo. Sin duda, un
observador imparcial difícilmente hubiera logrado distinguir, por su moral
pública y privada, entre un miembro de la comunidad de Agdistis y un
miembro de una de las comunidades fundadas por Pablo. La moral que inspira
a unos y otros era de cuño estoico, y la asunción de la moral estoica marcó una
de las primeras formas de sincretismo del cristianismo en su inserción en la
sociedad grecorromana y su transformación en religión universal.
Textos poco conocidos como el que he citado demuestran que, en
realidad, las fronteras entre los seguidores de Cristo y los de otras divinidades
eran mucho más confusas de lo que ciertas fuentes cristianas de la época –
y también la historiografía tradicional – parecen reflejar y que la
contraposición entre la moral de los cristianos y la degrada inmoralidad de los
“paganos” es, en gran medida, fruto de la propaganda apologética. Además,
quiero hacer constar que los estudios más recientes sobre el cristianismo
en el Imperio Romano tienden a sacar a la supericie las peculiaridades
locales, las formas muy variadas como el mensaje evangélico se integró con
las culturas de regiones y lenguas diferentes dando lugar a manifestaciones
muy heterogéneas que revelan identidades muy diferentes. El problema
para el historiador radica en que conocemos principalmente las sedes más
importantes de las primitivas comunidades cristianas, los “baricentros”
por usar una expresión italiana, en que se plasmaron los “diferentes
cristianismos”: Antioquía, Alejandría, Éfeso, Roma, Cartago, ciudades,
todas ellas cosmopolitas y greco-latinas. Recientemente la historiografía ha
centrado su atención en una ciudad como Cesarea de Palestina, que es muy

110 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


¿Romanos o cRistianos? La apRopiación de La identidad Romana poR eL cRistianismo

signiicativa en cuanto lugar de encuentro de culturas y manifestaciones


religiosas diversas. Allí desarrollaron su actividad intelectual en los siglos
III y IV personajes tan relevantes como los ya mencionados orígenes y
Eusebio de Cesarea. Sus escritos revelan que la ciudad era un mosaico muy
variado de cultos grecorromanos con una importante presencia de judíos y
una importante comunidad cristiana “ortodoxa” dotada de peso cultural en
convivencia pacíica con los grupos que convencionalmente denominamos
sectas: gnósticos, marcionitas… Si nos atenemos a la predicación de orígenes,
se constata que en la vida diaria de sus oyentes cristianos se mezclaba la fe
en Jesús con prácticas tan arraigadas en las sociedades de la época como la
necromancia, la astrología, la aruspicina, las formas ocultas de adivinación
etc (orígenes, Homilia sobre Josué, V, 6; VII, 1). Estaban también aquellos
que, aunque formaban parte de la comunidad, frecuentaban muy poco las
asambleas religiosas (Ibid. I, 7; Homilia sobre génesis, x, 1) o las hacían
compatibles con la asistencia a los espectáculos propios de las ciudades de
la época con su fuerte contenido de violencia e inmoralidades escénicas.
Los ricos eran reacios a demostrar su generosidad con la Iglesia o daban la
espalda a principios éticos tan elementales como no descargar su ira con los
esclavos o entregarse a crápulas, borracheras o cometer todo tipo de abusos
en sus prácticas comerciales (Vide RINALDI 2013, p. 25-94) En deinitiva,
el panorama de las formas de vida de la comunidad cristiana de Cesarea
de Palestina difería muy poco del que ofrecía la comunidad de la africana
Cartago, si nos atenemos a los escritos de S. Cipriano. y tampoco el nivel de
compromiso con los principios de su religión por parte de los obispos y los
líderes de las diversas comunidades difería mucho de un extremo al otro del
Mediterráneo. Las mencionadas críticas a los obispos de Cipriano con motivo
de la persecución de Decio se pueden cotejar con las que hace Eusebio de
Cesarea con motivo de la persecución de Diocleciano. En su famosa obra
sobre los mártires de palestina (1), después de recordar a los mártires de la
región, se siente en la obligación de decir que renuncia a evocar las bajezas
y los malos ejemplos ofrecidos por muchos creyentes y, en especial por los
denominados “cabezas de las iglesias”. y concluye con una consideración de
carácter apologético similar a la de Cipriano: muchos jefes de comunidades
que previamente no habían desempeñado con idelidad su ministerio fueron
también condenados con lo que recibieron de Dios un digno castigo.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 111


RAMóN TEJA

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Si, como he intentado poner de maniiesto, la fe y la moral de las


comunidades cristianas no difería en gran medida de la imperante entre los
seguidores de otros cultos, y si partimos del hecho de que en la mentalidad
grecorromana dominante el aspecto privado de la religión era irrelevante,
cabe preguntarse por qué una religión como la cristiana terminó por
imponerse a las otras hasta el punto de que en poco más de un siglo
romanidad y cristianismo terminaron por identiicarse. La respuesta creo
que hay que buscarla en la política de Constantino respecto al cristianismo.
La denominada “cristianización del Imperio” constituye uno de los temas más
debatidos de la historiografía universal. Pero, lejos de buscar explicaciones
simples o voluntaristas como la de F. Cumont cuando afirmó que
“si Constantino se hubiese convertido al mitraismo en vez de al cristianismo,
todos seríamos mitraicos”, pienso que hay que analizar con rigor conceptos
como “cristianismo”, “religión” y “sociedad” cuando nos servimos de ellos
los historiadores. Se requiere precisar conceptos, en apariencia tan evidentes
como “religio” o “cristiano”. ¿Con que signiicado nos servimos del término
“cristiano”: étnico, religioso o cultural? La misma diferenciación entre
signiicado étnico, religioso y cultural se debe aplicar al uso que hacemos de
los término “judaico” y “gentil”. Es de hacer notar también, como ha puesto
de maniiesto M. Sachot (1998), que el concepto religio es sólo uno de los
sistemas conceptuales posibles con que una determinada cultura y, a partir de
Tertuliano, la latina, interpretó el cristianismo, por lo que se debería ser más
cautos al servirse de un concepto tan abusado e impreciso como “religión”.
Hoy se suele preferir hablar de “sistema religioso”. Hay tres elementos
imprescindibles que lo componen: un grupo social, un conjunto coherente
de prácticas religiosas y un conjunto de concepciones culturales o visiones
del mundo compartidas por el mismo grupo social. Cabe preguntarse si,
cuando Eusebio de Cesarea caliica al cristianismo como un nuevo ethnos
(Hist. eccles, I, 4,2; vide PESCE 2013, p. 199) está pensando en lo mismo
que el autor anónimo de la epístola a diogneto cuando siglo y medio antes
lo caliicaba de genos. Lo que deine al cristianismo constantiniano es la
culminación de un largo proceso que desembocó en un sistema religioso,
autónomo del pueblo judío en cuanto a sus instituciones, la composición de

112 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


¿Romanos o cRistianos? La apRopiación de La identidad Romana poR eL cRistianismo

su grupo social y las prácticas y concepciones religiosas, pero muy próximo


al paganismo. como ha escrito J. Fernandez Ubiña (2009, p. 85-6):

El cristianismo sólo se hizo fuerte y socialmente atractivo tras su romanización,


tras convertirse en una religión de masas sincrética y ritualista, baluarte del
Imperio [...] Acabó revistiendo el ropaje y la esencia de la religión romana y
pudo por ello ocupar su puesto en el organigrama institucional del Estado y
en la mentalidad dominante. Si fue así, cabría concluir que el cristianismo dio
sus primeros pasos en el mundo del Judaismo, pero su independencia y su
conformación religiosa (aunque no deinitiva) se la debe en esencia al Imperio.

El enorme protagonismo que Constantino atribuyó a los obispos (TEJA,


2013) determinó que estos se convirtiesen en los artíices principales del
proceso sincretístico que dio lugar a este sistema religioso autónomo que
denominamos cristianismo, diverso del judaísmo, pero que no me atrevería
a identiicar con el paganismo, aunque en otra ocasión me he atrevido a
airmar que “más que de una conversión al cristianismo habría que hablar
de una paganización del cristianismo”. Creo que es lo mismo, o algo similar,
a lo expresado por Martin Wallraf (2013, p. 304) cuando dice que:

[...] la religiosidad de Constantino no se correspondía con ninguna ortodoxia


de ningún tipo y, desde luego, no con la cristiana. La intención del emperador
fue integrar el cristianismo, junto con las otras religiones de su Imperio, en un
nuevo tipo de religión imperial, una religión que, en el fondo, nadie quería.

Es fácil, a la hora de interpretar el proceso, dejarse llevar por el


triunfalismo de los escritores cristianos postconstantinianos. En el año 400,
S. Jerónimo, un cristiano profundamente romano, expresaba el orgullo con
que “su dios vencedor” celebraba el triunfo de la Roma cristiana sobre la
Roma pagana cuyos templos, abandonados por los ieles y cerrados por orden
de los emperadores, amenazaban ruina con estas palabras:

Sucio está el dorado Capitolio, cubiertos de hollín y telarañas se encuentran


todos los templos de Roma (auratum squalet capitolium, fuligine et aranearum
telis omnia romae templa coperta sunt). La ciudad tiembla en sus cimientos

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 113


RAMóN TEJA

(movetur urbs sedibus suis) y el pueblo, que pasa de largo en oleadas ante los
santuarios semiderruidos, corre a los sepulcros de los mártires (Jerónimo,
epistola 107, 1).

Muchas expresiones similares pueden recogerse en las plumas de


los escritores cristianos de la época, como es el caso de otro occidental y
contemporáneo de Jerónimo, Ruino de Aquileya. R. Lizzi Testa ha resaltado
recientemente que, a inales del siglo IV el terreno estaba bien preparado para
que Ruino presentase la época de Teodosio como el momento decisivo para
el colapso del culto pagano, que no fue destruido por las leyes imperiales,
sino que vino a menos naturaliter durante este reinado, y concluye que «con
Ruino nació aquel mito del inal imprevisto del paganismo en torno al cual
tanta historiografía moderna y contemporánea ha intentado reconstruir <i
particulari storici della inevitabile parabola dell´antica religione romana>”
(LIZZI TESTA, 2011, p. 473).
Es especialmente signiicativa del lenguaje que se impuso en aquellos
años una ley del 423 de Teodosio II en que se da por supuesto que los
paganos que sobreviven en el Imperio eran ya algo muy residual: paganos
qui supersunt, quamquam iam nullos esse credamus […] (c. h. 16,10, 22)
(vide ahora TEJA, 2013).
Es evidente que estas imágenes se resienten con fuerza del partidismo
apologético de los líderes de la nueva sociedad y del desprecio por las
creencias y los sentimientos de los “vencidos” y de sus dioses. Un desprecio
que llevó a la identificación de la rusticitas, es decir, las creencias y
costumbres de los rustici, con las de los habitantes de los pagi o aldeas, es
decir, con los pagani. Solo los otros, los christiani de la civitas, eran ahora los
romani. Como expresó de forma concisa y con un bello juego de palabras
el hispano provincial orosio, “el ancho oriente, el abundante Septentrión,
el vasto Sur y los muy fértiles y seguros lugares de las grandes islas me
pertenecen en virtud del derecho (romano) y del nombre (cristiano) porque
me acerco a los romanos y a los cristianos como romano y cristiano (ad
christianos et romanos, romanus et christianus accedo)” (Hist. V, 2, 3.
El mismo orosio (Hist. 2, 1-45) había interpretado la profecía de Daniel,
al comentar el famoso sueño de Nabucodonosor sobre las cuatro bestias,
símbolo de los cuatro Imperios, en el sentido de que el cuarto coloso (dan.

114 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


¿Romanos o cRistianos? La apRopiación de La identidad Romana poR eL cRistianismo

7) representaba al Imperio romano destinado a durar hasta el in de los


tiempos porque, bajo su impulso, proseguiría la cristianización del mundo
(vide PAVAN, 1983, p. 300 ss.; MoMIGLIANo, 1984, p. 257-64). Se trata,
pienso, de una reinterpretación cristiana del famoso verso de la Eneida (I,
279): His… imperium sine ine dedi. Siglos después, en el Alto Medievo,
me parece que estas ideas tomaron cuerpo en un texto literario y en una
imagen que expresan muy bien la creencia en la eternidad de Roma a través
del cristianismo y que me permito recordar para poner un punto inal a
este ensayo. El texto proviene de un poema anónimo citado por Beda el
Venerable en el s. VII:

Mientras el Coliseo se mantenga en pie, lo estará también Roma. Cuando el


Coliseo caiga, caerá también Roma. Cuando caiga Roma, caerá también el
Mundo” (quandiu stat colisaeus / stat et roma / quando cadet colisaeus /
cadet roma / quando cadet roma / cadet et mundus) (citado en GIARDINA;
VAUCHEZ, 2000, p. 25).

Un díptico de maril del s. x conservado


en los Museos Vaticanos en el que se
representa a la Loba Capitolina que sirve de
pedestal a una imagen de Cristo cruciicado
pienso que es la mejor expresión gráica de
las ideas que aquí he desarrollado (Fig. 1)

Figura 1 – Díptico de Rambona: La Cruciixión


con Rómulo y Remo y la loba. Maril, siglo x,
Biblioteca Apostólica Vaticana

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 115


RAMóN TEJA

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118 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


JulIaNo e a ImaGem De
aNtIoQuIa No MISOPOGON1

Gilvan Ventura da Silva

os rumos da cidade pós-clássica

quando tratamos da fase inal do Império Romano ou, como tem se


tornado habitual nos meios acadêmicos, da assim denominada Antiguidade
Tardia, um dos temas recorrentes é, sem dúvida, o da cristianização da
cidade, querendo-se com isso exprimir um amplo movimento de controle
da vida urbana delagrado pelos cristãos ao longo dos séculos IV e V que
implicou, dentre outras tarefas, a apropriação do território cívico, a ingerência
dos bispos sobre a administração municipal e a intervenção gradual no
calendário e nas atividades urbanas, de maneira que a cristianização foi
responsável por alterar, pouco a pouco, o peril da cidade antiga, ainda
que essa alteração, na maioria dos casos, não tenha sido tão absoluta como
outrora se supunha. De fato, temos conhecimento de casos nos quais, a
contrapelo do discurso eclesiástico “oicial” que condenava os gastos com as
formas de lazer próprias da cidade, os bispos faziam instalar, nas residências
episcopais, termas cujo uso era compartilhado com os demais integrantes do
clero, ao mesmo tempo em que se estabeleciam em amplas moradias, não
muito distintas daquelas ocupadas pelos funcionários imperiais e membros
da elite local, revelando-nos assim a inserção inequívoca da Igreja nas
estruturas urbanas preexistentes (RAPP, 2005, p. 210). Todavia, é forçoso
reconhecer que a cidade, ao menos aquela projetada pelas autoridades
eclesiásticas, comportava traços peculiares que a afastavam bastante do
modelo “clássico”, a começar pelo protagonismo do culto aos mártires
e santos, cujos santuários se multiplicavam na paisagem, numa notável
inversão da cosmovisão antiga que considerava a cidade um espaço sagrado

1
Este texto é uma versão ampliada do artigo un imperatore in cerca della città perfetta: giuliano e l’immagine
di antiochia nel ‘misopogon’ publicado na revista Khaos et kosmos de 2013. Gostaríamos de deixar aqui
registrados nossos agradecimentos ao Prof. Ennio Sanzi pela atenta leitura dos originais e pelas sugestões
visando ao aprimoramento do texto.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 119


GILVAN VENTURA DA SILVA

de congraçamento entre deuses e homens, como nos dão testemunho as


necrópoles, construídas por via de regra na região extra muros a im de
evitar que a cidade fosse contaminada pela degeneração primaz contida na
matéria morta (MARKUS, 1997, p. 145). outro aspecto proeminente da
cristianização da cidade diz respeito à interferência crescente das autoridades
eclesiásticas nas manifestações culturais de gregos, romanos e judeus, o que
resultou num ataque inclemente a todas as atividades lúdicas e religiosas que
tinham como cenário os principais edifícios públicos (teatros, aniteatros,
hipódromos, templos, sinagogas), mas também as ruas, as avenidas, os
pórticos e as praças, espaços ocupados pela multidão nos dias de festa, para
desconsolo e irritação dos pregadores, que nessas ocasiões costumavam
assistir, impotentes, a evasão dos iéis.
A transição da cidade clássica para a pós-clássica, e isso tanto no oriente
quanto no ocidente, foi marcada por um jogo complexo de rupturas e
de permanências, de estímulo à inovação e de apego à tradição que pode
ser acompanhado mediante a investigação dos repertórios artísticos e dos
arranjos arquitetônicos, pois muito da arte e arquitetura cristãs é tributário
dos modelos clássicos, fato sobejamente conhecido, mas que nunca é excessivo
recordar. Do ponto de vista simbólico, no entanto, vemos se esboçar, no século
IV, uma imagem da cidade que contrasta agudamente com tudo aquilo que
até então se pensava a respeito do assunto. No torvelinho das transformações
operadas a partir da segunda metade do século III e que culminaram com
a redefinição de muitos elementos da sociedade romana, emerge uma
representação da vida urbana, das suas atividades e entretenimentos, calcada,
por um lado, num profundo pessimismo e, por outro, no pressuposto segundo
o qual a cidade não é mais um ambiente consagrado aos deuses, um território
colocado sob a proteção divina e, portanto, imune aos perigos e calamidades,
tanto as do corpo quanto as da alma.2
É inegável que toda uma linhagem de moralistas pagãos sempre
nutriu certo desprezo por tudo aquilo que dissesse respeito ao modus

2
De acordo com Caseau (2001, p. 24), a sacralidade do solo cívico era resguardada por meio de dois ritos
ancestrais: o da dedicatio, a oferta da cidade aos deuses, executado pelo fundador, por magistrados ou
generais; e o da consecratio. Realizado em nome do populus, esse rito convertia o território da urbs em res
sacra, espaço público sagrado onde qualquer ato violento ou destrutivo era qualiicado como sacrilegium.

120 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


JULIANO E A IMAGEM DE ANTIOqUIA NO misopogon

uiuendi urbano, isto é, por tudo o que fosse apreciado pela multidão,
criticando amiúde o apego excessivo dos citadinos às termas, aos teatros,
às tavernas, aos lupanares, aos circos e aniteatros como prova de mollitia,
de frouxidão de caráter, atributo dos escravos e das mulheres, em oposição
à simplicidade e rudeza da vida no campo, capaz de estimular, no homem,
a têmpera inquebrantável da uirtus. Como assinala Edwards (2002, p. 194),
numerosos textos das fases republicana e imperial exprimem o desejo
da elite greco-romana, ou ao menos de uma parte dela, de se conservar
distante de tudo aquilo tido como apanágio do populacho, da ralé, sem,
contudo, defender o argumento segundo o qual a cidade comportaria, em
si mesma, um risco iminente à integridade física, moral e espiritual de seus
habitantes, o que, no limite, reclamaria uma ação urgente com o propósito
de restaurá-la. Muito pelo contrário, no decorrer dos três primeiros séculos
da era imperial, a possibilidade de se residir numa cidade, com todos os
atrativos e confortos que lhe eram inerentes, foi sempre tida como um fator
de prestígio, um componente distintivo da própria humanitas, conceito
por vezes associado à paideia, mas também à urbanitas, na medida em
que a constelação de atributos positivos que faziam de gregos e romanos
seres humanos superiores diante do barbaricum se resolvia, em termos
topográicos, no recinto da cidade. organizadas em cidades, as populações
dispersas pelas províncias se integravam assim nessa extensa “comunidade
imaginada” que era o Império Romano. Reletindo sobre os elementos
capazes de conferir identidade aos habitantes do Império, Revell (2009, p. 5)
sugere o emprego do conceito de romanidade (roman-ness) para exprimir a
solidariedade proporcionada pelas estruturas imperiais. Segundo a autora,
a romanidade repousaria em, pelo menos, três pilares: o culto imperial, a
práxis religiosa e o urbanismo, ou seja, uma ideologia a respeito do modo
correto ou apropriado de se viver que envolvia, para além da interface física
de uma cidade, seu traçado, edifícios e monumentos, uma maneira de
executar as atividades cotidianas nesses ambientes, que seria incorporada
ao mapa mental dos usuários. o afeto incondicional que gregos e romanos
costumavam nutrir pela sua cidade de nascimento ou de opção pode
ser avaliado pelos panegíricos, gênero literário empregado a serviço do
orgulho cívico desde pelo menos o panatenaico, de Isócrates (séc. IV a.C.,
cf. HARVEy, 1998, p. 291).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 121


GILVAN VENTURA DA SILVA

Disso resulta que a cidade antiga nunca foi tida a priori como uma
ameaça aos seus habitantes, como um ambiente inóspito, degradado,
privado de carisma e que merecesse ser regenerado, reformado ou mesmo
puriicado. No século IV, todavia, parece pouco a pouco tomar forma uma
representação que, ao converter a cidade numa realidade potencialmente
nociva, uma heterotopia, como certa vez sugeriu Lefebvre (2004, p.
45), engendra um conjunto de discursos e de práticas que visam à sua
reabilitação, segundo uma lógica na qual prevalece a obsessão pela pureza,
de modo a se obter, ao término da operação, uma cidade coesa, una, solidária
e isenta de qualquer agente que a coloque em risco. Tal procedimento, como
assinala Sennet (2008, p. 9), é próprio das conjunturas nas quais irrompem
transformações intensas e por vezes dramáticas na ordem social, quando
as certezas do passado são confrontadas pela chegada dos “novos tempos”,
que portam consigo a perspectiva de um futuro desejado, mas ainda não
conhecido, impelindo os homens a se preocupar com o estatuto do lugar
onde residem, o palco onde se desenrola o drama da vida em sociedade,
seja com a inalidade de recuperar uma essência já perdida ou de instituir
uma experiência radicalmente nova. o projeto de uma cidade livre do mal,
do pecado e da idolatria tem, entre os autores cristãos, bastante prolíicos
no Império Romano tardio, os seus principais defensores. Valendo-se
dos recursos da retórica clássica posta a serviço da cristianização, bispos
e presbíteros darão início, no século IV, a uma pregação ostensiva com o
irme propósito de reformar a cidade greco-romana, dissolvendo assim os
laços ancestrais que a uniam aos deuses, vale dizer, a Satanás e suas falanges,
mediante a condenação dos lugares, dos monumentos e das atividades
características da vida urbana. Desse modo, embora do ponto de vista da
realidade vivida a cidade, na Antiguidade Tardia, ainda conserve, em maior
ou menor grau, o seu ethos greco-romano e/ou judaico, constatação que a
investigação arqueológica não cessa de reiterar (Brown, 2010, p. 407), do
ponto de vista discursivo ela tende a ser representada como um território
totalmente cristão ou em vias de ser cristianizado, o que equivale a uma
autêntica regeneração, pois, mediante o emprego da “terapêutica” cristã, a
cidade pode ser “curada” das “moléstias” que há séculos a aligem, como
comprova a abundância de metáforas médicas presentes nos tratados e
homilias dos Padres da Igreja.

122 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


JULIANO E A IMAGEM DE ANTIOqUIA NO misopogon

O estranhamento entre os cristãos e a cidade antiga que desemboca,


ao im e ao cabo, numa proposta de reforma social bastante ambiciosa, é
um processo complexo e que exibe inúmeras particularidades, conforme
o período e a região. Desde pelo menos a redação do de spectaculis,
de Tertuliano, este estranhamento já aparecia enunciado, cabendo às
autoridades eclesiásticas dos séculos posteriores mobilizar um conjunto
de estratégias, incluindo as discursivas, a im de obter a depuração da
cidade. Nesse domínio, despontam pregadores inspirados como Efrém,
João Crisóstomo, Agostinho e tantos outros que, valendo-se de argumentos
vigorosos e, no limite, abusivos, investem contra a cidade greco-romana e
tudo o que ela comporta. Mas, e quanto aos pagãos? Teriam eles, no século
IV, alguma alternativa a propor ao discurso cristão no que se refere à imagem
de cidade que gostariam de ver concretizada? No caso de Antioquia, cujo
processo de cristianização vimos investigando há alguns anos, um exame da
literatura pagã disponível nos permite captar alguns pontos de interseção
absolutamente insuspeitos entre a representação pagã e a cristã acerca
da cidade antiga. Nesse aspecto, uma obra emblemática e até certo ponto
desconcertante é o misopogon, de Juliano, sátira na qual o imperador,3 sob
o pretexto de se defender da intensa zombaria da qual foi vítima durante
a estada em Antioquia, esboça os contornos da sua concepção de cidade,
concepção esta que, acreditamos, não deva ser tomada como mero produto
de um desacordo trivial entre os súditos e Juliano, mas como parte do
programa de governo que este almeja implementar após a sua proclamação
como Augusto, em 361.4

3
Segundo Marcone (1984, p. 228), a sátira grega, ao contrário da sua homônima latina, não possuía uma
forma literária deinida, razão pela qual quando tratamos da sátira grega estamos falando de uma obra
que comporta elementos satíricos, mas que não segue cânones estritos na sua composição. É possível
também, conforme sugere o autor, identiicar no misopogon características da diatribe, pois o texto de
Juliano conjuga temas cômicos e temas sérios com inalidade pedagógica.
4
Sabemos que Juliano, apesar do seu curto governo, manifestou desde o início um cuidado particular
com a situação das cidades e de suas cúrias, tendo desenvolvido toda uma legislação visando a aprimorar
a administração urbana. De acordo com Carvalho (2005, p. 118), Juliano buscou fortalecer o sistema
administrativo do Império por meio da revitalização das cúrias municipais.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 123


GILVAN VENTURA DA SILVA

o Misopogon, um antipanegírico

Juliano permaneceu em Antioquia cerca de oito meses, entre julho de


362 e março de 363, após uma breve passagem por constantinopla, onde
celebrou as exéquias de constâncio II, morto em novembro de 361. Muito
se tem conjecturado a respeito das razões que levaram Juliano a deixar
constantinopla tão cedo, bem como da sua opção por ixar residência em
Antioquia. A explicação usual se fundamenta na intenção do imperador em
delagrar uma ampla ofensiva contra a Pérsia, o que justiicaria plenamente a
escolha de Antioquia, a metrópole da província da Síria e sede da prefeitura
do pretório do oriente, posto estratégico a meio-caminho do front persa.5
Não obstante as facilidades de logística, é plausível supor também que
Antioquia tenha atraído a atenção de Juliano em virtude da reforma
do paganismo por ele pretendida e que reclamava, em contrapartida, o
confronto direto com os cristãos, cujo controle sobre o território urbano
avançava a cada dia. Em termos religiosos, Antioquia, em meados do século
IV, era uma cidade muito mais heterogênea do que Constantinopla, desde o
início marcada por uma inluência cristã evidente. Em Antioquia, um centro
de difusão da cultura helênica, vicejavam à época não apenas diversas escolas
de retórica, dentre as quais sobressaía o didaskaleion de Libânio, capaz de
atrair estudantes de muitas localidades da Síria e da ásia Menor, mas também
templos e santuários ancestrais e bastante respeitados, como o oráculo de
Apolo, em Dafne, subúrbio distante cerca de 8 km, no sentido sul. Some-se
a isso a existência, na cidade, da mais importante comunidade judaica da
Diáspora oriental, o que certamente incentivou Juliano a negociar o apoio
dos judeus em troca da reconstrução do Templo, aspiração que, todavia,
não logrou sucesso devido aos repetidos incêndios que irromperam no
canteiro de obras (CHRISTENSEN-ERNST, 2012, p. 48). Tudo leva a crer
que Antioquia, na avaliação do imperador, fosse, ao menos a princípio, um
sítio mais apropriado para implementar o seu plano de reforma religiosa, pois
diversos editos visando a conferir ao paganismo maior unidade institucional

5
Tal interpretação é compartilhada, dentre outros, por Norwich (1989, p. 94), Ferril (1989, p. 46) e
Christensen-Ernst (2012, p. 48).

124 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


JULIANO E A IMAGEM DE ANTIOqUIA NO misopogon

surgem no decorrer do deslocamento da corte para a Síria, ou seja, entre


maio e julho de 362, ao passo que logo no início do ano o imperador já havia
nomeado seu tio, também denominado Juliano, um cristão convertido ao
paganismo, para o cargo de comes orientis, enviando-o a Antioquia não
apenas com a incumbência de cuidar dos preparativos para o aduentus
imperial, mas também de supervisionar a manutenção dos santuários e dos
sacrifícios (DOWNEy, 1939, p. 306-7).
Juliano fez sua entrada solene em Antioquia em 18 de julho de 362,
no segundo dia do festival de Adonis, quando se pranteava a morte da
divindade, o que mais tarde foi reportado por Amiano Marcelino (22.9)
como um mau presságio. A cidade, àquela altura, encontrava-se imersa
em uma grave crise de abastecimento, resultado de uma longa estiagem
durante o verão dos anos 361 e 362 que havia arruinado a colheita do trigo
(DOWNEy, 1961, p. 384). De acordo com Petit (1955, p. 113), a chegada
da comitiva imperial contribuiu para acentuar a crise, pois a necessidade
de aprovisionamento das tropas elevou a demanda pelo cereal, estimulando
a cobiça dos proprietários locais, que se aproveitaram da situação para
especular com o preço dos alimentos. Após uma tentativa fracassada de
negociação com os agricultores e comerciantes, Juliano decidiu ixar o preço
dos produtos alimentícios e determinar a importação de trigo de Cálcis,
Hierápolis e do Egito, soluções meramente paliativas em face da seca, que
se prolongou ainda por todo o ano seguinte. A despeito da conjuntura
desfavorável, o imperador, ao adentrar a cidade, foi bem recebido pela
população reunida no hipódromo para saudá-lo. Em pouco tempo, no
entanto, sua relação com os antioquenos tornou-se conlituosa, e isso por
diversos motivos. Em primeiro lugar, os esforços de Juliano para contornar a
crise foram vãos, pois o trigo importado, vendido a preço ixo, era adquirido
pelos atravessadores e pelos grandes proprietários com vistas à especulação.
os comerciantes urbanos, culpando os grandes proprietários pela carestia,
decidiram cruzar os braços, em protesto. o tabelamento do preço do pão,
expediente destinado a conferir algum alívio à população urbana, não surtiu
o efeito desejado, pois os camponeses aluíram em massa à cidade para se
beneiciar do subsídio. Já o aquartelamento de um extenso contingente
de soldados em Antioquia aumentava a demanda por víveres. Por im, a
campanha da Pérsia era tida como um erro de estratégia e carecia, portanto,

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 125


GILVAN VENTURA DA SILVA

de apoio popular (DOWNEy, 1961, p. 390 e ss.). À parte todas essas variáveis
de ordem econômica e militar, bastante inluentes por sinal, é necessário
atentar para o fato de que o “ruído” entre Juliano e a população da cidade
foi agravado também pela política religiosa do imperador, que desencadeou
uma série de atritos, não apenas com os adeptos do cristianismo, como seria
de se esperar, mas igualmente com os pagãos.
Nos meses em que residiu em Antioquia, Juliano dedicou-se a uma
autêntica peregrinação pelos templos e santuários em sinal de reverência
às divindades cívicas, dentre as quais Zeus, Deméter, Hermes, Pan, Ares,
calíope, Apolo, ísis e a tyché. Uma peculiaridade da devoção de Juliano era
o seu apego aos sacrifícios sangrentos, com o abate de um grande número
de vítimas prontamente consumidas pelos soldados de sua comitiva, atitude
um tanto ou quanto acintosa diante de uma crise de abastecimento então
em curso. O palácio imperial da ilha do Orontes, por sua vez, foi convertido
num templo, erigindo-se altares nos jardins, sob as árvores, onde o imperador
poderia acompanhar os sacrifícios com maior comodidade (SOLER, 2006,
p. 44). crítico contumaz dos jogos, dos mimos e pantomimas, Juliano se
afasta deliberadamente do teatro e do aniteatro, proibindo inclusive que
os sacerdotes pagãos compareçam aos espetáculos ou recebam a visita de
atores, dançarinos e aurigas (ep. 89b, 304). Agindo com singular audácia,
decide suprimir a Maiuma, um antigo festival orgiástico celebrado a cada
três anos em honra a Dioniso e Afrodite (SoLER, 2006, p. 39). Inclinado a
uma postura rigorista e altaneira, Juliano se apresenta, na cidade, como um
ilósofo, evitando o contato com a população nos espaços de lazer, censurando
suas modalidades de entretenimento e acusando-a de indiferença para com
os deuses. Irritados, os antioquenos não tardam a revidar com irreverência
e deboche. De acordo com Gleason (1986, p. 108), no início de janeiro de
363, quando da comemoração das Calendas, que anunciavam o Ano Novo,
o desconforto da população com o imperador teria se tornado insustentável,
pois a festa, ao assumir um tom claramente jocoso, forneceu aos antioquenos
o pretexto para exercitar amplamente a sua verve satírica, sendo Juliano
comparado a um macaco, a um anão, a um bode barbado e mesmo a um
victimarius, um açougueiro, devido à pletora de sacrifícios que promoveu
(Am. Marc. 22,14). Não obstante a indignação pelo ultraje sofrido, Juliano
evitou o uso da força contra a cidade, preferindo responder aos insultos

126 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


JULIANO E A IMAGEM DE ANTIOqUIA NO misopogon

mediante a redação de uma obra sui generis, o misopogon, na qual recorria


à ironia para justiicar suas ações, ao mesmo tempo em que censurava
asperamente os habitantes de Antioquia pela sua leviandade e indisciplina.
o misopogon, em tradução literal, o “inimigo da barba”, foi composto
entre a segunda quinzena de janeiro e o mês de fevereiro de 363, num
momento em que Juliano se preparava para partir rumo à Babilônia, onde
daria combate aos persas. o título é uma alusão direta à sua barba de ilósofo
que tanto desconforto causava aos antioquenos. os manuscritos registram,
no entanto, um outro título pelo qual a obra também era conhecida:
antiochikos, o que reforça o teor satírico do texto, pois antiochikos evocaria
um panegírico em louvor à cidade, como aquele pronunciado por Libânio
por ocasião dos Jogos olímpicos de 356. Invertendo os cânones literários
dos panegíricos, nos quais era de praxe se exaltar a nobreza do fundador
da cidade, a reverência dos habitantes para com os deuses, a temperança
dos cidadãos na vida pública e a correta educação dispensada à juventude,
Juliano faz do misopogon um antipanegírico (MARCoNE, 1984, p. 233-4),
um discurso decerto dirigido à cidade, mas não para a enaltecer e sim para
denunciar as suas imperfeições, permitindo-nos captar, nas entrelinhas, a
representação da cidade ideal que pretendia erigir. Sendo o misopogon uma
obra que se aproxima muito mais do psogos, da inventiva, do que dos textos
legislativos, é muito difícil enquadrá-la nos assim denominados “editos de
castigo” que desde o Principado os imperadores de quando em quando
promulgaram contra uma cidade ou outra devido ao mau comportamento
da população, o que nos obriga a refutar a hipótese de Gleason (1986,
p. 116) sobre os antecedentes jurídicos do texto. Como argumentam Van
Hoof e Van Nufelen (2011), em contraposição a Gleason, o misopogon se
distingue dos “editos de castigo” por duas características que lhe conferem
uma inequívoca singularidade. A primeira delas diz respeito à forma, uma
inventiva extensa e erudita de um imperador contra o “desatino” dos súditos.
A segunda, ao conteúdo, pois, no misopogon, Juliano se propõe a aclarar a
sua própria interpretação acerca do conlito que o opôs aos antioquenos e
que foi suscitado, ao que tudo indica, por uma grave falha de comunicação
entre o poder imperial e a população.
Um exemplar do misopogon foi aixado no Tetrapilo dos Elefantes,
arco triunfal que suportava uma quadriga puxada por esculturas desses

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 127


GILVAN VENTURA DA SILVA

mamíferos. Segundo o relato de Malalas (chronicon, 13, 19), o monumento


situava-se na regia, a avenida que conduzia à entrada do complexo palacial do
Orontes. De fácil acesso, o Tetrapilo adequava-se bastante bem à publicidade
que Juliano desejava conferir à obra (DOWNEy, 1961, p. 393-4). cópias do
misopogon foram certamente enviadas às principais cidades do Império,
de maneira que o texto era de amplo conhecimento, tendo sido citado por
Amiano Marcelino, Gregório de Nazianzo, Eunápio, Sócrates e Sozomeno,
além de Libânio. Sobre a sua repercussão, logo após Juliano deixar a cidade,
Libânio escreveu duas orações, uma destinada ao imperador (or. xV) e
outra aos seus concidadãos (or. xVI), nas quais os exortava à reconciliação.
Receosa da decisão de Juliano de não mais retornar a Antioquia após a
campanha da Pérsia, a cúria se apressa em enviar uma embaixada a Litarba
a im de demover o imperador, que já teria eleito Tarso como sua nova
residência (VAN HooF; VAN NUFFELEN, 2011). os antioquenos, ou ao
menos a elite local, pareciam assim tomar consciência do quanto haviam
desagradado o imperador, que os deixou à mercê de Alexandre de Heliópolis,
o recém nomeado consularis da Síria, personagem reputado como irascível
e implacável na cobrança dos impostos (PETIT, 1955, p. 117).

a utopia de Juliano

Sócrates, um cronista cristão do século V, menciona, na sua História


eclesiástica (III, xVII), que por meio do misopogon Juliano teria lançado
um “estigma indelével” sobre Antioquia e seus habitantes, sugerindo assim
que o texto teria gerado ou ao menos reforçado uma imagem depreciativa
da cidade. Mas qual seria o teor dessa imagem contida no misopogon? Numa
apreciação geral, é possível perceber que a principal censura de Juliano
refere-se ao apego excessivo dos antioquenos a tudo aquilo que diz respeito
às modalidades de entretenimento público, um dos pressupostos da vida
urbana sob o Império Romano. Em sua opinião, Antioquia constituía um
exemplo extremo de polis tryphosa (mis. 6), ou seja, de uma polis refém
da tryphé, vocábulo que pode ser traduzido como “moleza”, “delicadeza”,
“voluptuosidade”, “indolência” ou mesmo “humor desdenhoso e altivo”,
traços da personalidade de indivíduos inclinados à calúnia, à insolência e à
devassidão, tais como os histriões, os bêbados e os glutões (SALIoU, 2011, p.

128 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


JULIANO E A IMAGEM DE ANTIOqUIA NO misopogon

153). Muito embora, em algumas circunstâncias, a tryphé pudesse adquirir


uma conotação positiva, exprimindo a alegria de se viver numa cidade plena
de conforto e de bem-estar, como celebra Libânio em seu panegírico de 356
(SILVA, 2011), a tryphé, de modo geral, era empregada como um rótulo
contra aqueles que se deixavam seduzir pelos prazeres da cidade e que,
portanto, careciam de autocontrole, de sobriedade e de decência. Acerca
disso, uma das críticas mais ácidas de Juliano versa sobre a predileção dos
antioquenos pelas performances cênicas e pelas competições do hipódromo.
Fazendo o elogio da própria austeridade, o imperador se gaba de sempre ter
evitado o teatro (mis. 4) e de detestar os ludi circenses (mis. 5), lições que
teria aprendido com o seu preceptor, Mardônio, responsável por instruí-
lo no gosto pelos clássicos, afastando-o assim das pantomimas (mis. 21),
ou seja, dos solos de dança dramática bastante apreciados à época pelos
habitantes de Antioquia, que se repartiam em claques ruidosas para torcer
pelos bailarinos.6 Tomando o teatro como expoente da tryphé, Juliano
compara a conduta dos antioquenos à dos celtas e germanos, com os quais
havia convivido durante a campanha das Gálias. Afeitos à frugalidade
e à simplicidade (rusticitas), assim como o imperador, esses povos não
poderiam, naturalmente, apreciar os ludi theatralis, que reputavam como
grotescos e indecentes, principalmente devido à encenação do cordax
(mis. 30-31), um estilo de dança lasciva em louvor a ártemis que teria sido
incorporado pelos bailarinos às apresentações de pantomima (JIMÉNEZ
SáNcHEZ, 2003, p. 117).7
A principal razão pela qual Juliano combatia com tanta veemência
o teatro, tendo inclusive se recusado a comparecer, em Antioquia, às
encenações, como ele mesmo declara (mis. 38), era de fundo religioso.
Juliano desprezava o teatro não apenas pelo fato de este corromper a
personalidade dos indivíduos, incentivando-os à prática de atos indecorosos,
mas de atentar contra a dignidade dos deuses, pois nele os atores zombavam
publicamente de Héracles e de Dioniso. Na avaliação do imperador, o teatro

6
Sobre o tema, consultar o estudo clássico de Browning (1952).
7
Juliano era particularmente avesso ao cordax, acusando os antioquenos, por ele qualiicados genericamente
como sírios, de uma inclinação excessiva pela embriaguez e pela dança do cordax (mis. 20).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 129


GILVAN VENTURA DA SILVA

de seu tempo havia sido esvaziado por completo do ethos sagrado que outrora
possuía, desconectando-se do culto aos deuses e adquirindo um matiz
sacrílego, ímpio. Numa carta ao sacerdote Teodoro, escrita em janeiro de 363,
quando ainda se encontrava em Antioquia, Juliano confessava que, se fosse
possível banir dos teatros a indecência de modo a restituí-los, puriicados, à
tutela de Dioniso, não hesitaria em o fazer, mas, diante das circunstâncias,
recomendava expressamente aos sacerdotes pagãos que evitassem os
espetáculos teatrais (ep. 89b, 304). Considerando o teatro uma atividade
ofensiva aos deuses, Juliano o transformava em algo que, ao menos em meios
pagãos, ele nunca havia sido, ou seja, um vetor de poluição capaz de romper
os liames entre os deuses e a polis. Aqui não se trata mais de apenas qualiicar
os atores e atrizes como infames, tendência já bem consolidada entre os
juristas romanos do período imperial, mas de condenar os ludi theatralis e
o recinto que os abrigava como uma ameaça à sacralidade do solo urbano.
No intento de demonstrar como Antioquia era a antítese das hierai
poleis, ou seja, das cidades sagradas que veneravam as divindades, a exemplo
de Emesa (mis. 28; 33), Juliano acusa os antioquenos de negligenciar o
cuidado com os cultos e os templos. A esse respeito, a maior decepção
experimentada pelo imperador teria ocorrido entre ins de julho e início
de agosto de 362, ao se dirigir a Dafne para celebrar a festa de Apolo.
Ansiando por participar de uma cerimônia esplêndida, repleta de oferendas,
incensos, coros e libações, Juliano se depara, no recinto do templo, apenas
com o sacerdote do deus, que trazia um ganso de sua propriedade para
ser imolado. A cúria, por sua vez, não teria tomado nenhuma providência
para honrar Apolo com a pompa devida, o que irrita profundamente o
imperador (mis. 34). Para Juliano, era inadmissível que uma cidade como
Antioquia despendesse tantos recursos com a festa da Maiuma, mas fosse
incapaz de oferecer ao menos uma vítima a Apolo, um de seus deuses
tutelares. o descuido para com a festa de Apolo poderia ser interpretado,
a princípio, como uma evidência de que Antioquia, em meados do século
IV, já estivesse plenamente cristianizada, como sugerem Lacombrade (1964,
p. 141), Gleason (1986, p. 114) e Jiménez Sánchez (2003, p. 118). Todavia,
essa não nos parece a melhor explicação para o episódio, uma vez que,
em outra passagem do misopogon (11), Juliano se queixa de que, em sua
peregrinação pelos templos, uma multidão costumava segui-lo com gritos

130 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


JULIANO E A IMAGEM DE ANTIOqUIA NO misopogon

e arengas, não pelo desejo de prestar culto aos deuses, mas de ver de perto
o imperador, adotando assim uma conduta absolutamente imprópria em
lugares reservados à oração e ao silêncio. Na medida em que a visita aos
templos, como de resto qualquer outro deslocamento do imperador pelo
perímetro urbano, era um acontecimento que mobilizava a população, o
esvaziamento da festa de Apolo parece sugerir uma visita inesperada de
Juliano a Dafne, sem que os decuriões tivessem tido a oportunidade de
planejar uma recepção à altura. Por outro lado, tal esvaziamento pode
se encontrar igualmente conectado com a crise econômica que assolou
Antioquia em 362. Além disso, não podemos descartar a hipótese de que
a igura solitária do sacerdote trazendo nas mãos um ganso, um animal de
pequeno porte, conigure um artifício retórico empregado para reforçar a
negligência dos antioquenos para com Apolo.
Antioquia, na concepção de Juliano, era uma cidade sacrílega por
recusar a contrição e o recolhimento dos templos, preferindo a festa, o canto
e a dança em praça pública, como vemos na seguinte passagem:

o imperador sacriicou uma vez nos templos de Zeus, depois no da Fortuna.


Depois ele se dirigiu três vezes seguidas ao de Deméter. [...] o Ano Novo
dos sírios (neomenia) chegou e eis aqui de novo o imperador no templo de
Zeus Protetor. ocorre em seguida a festa popular, e o imperador se dirige ao
santuário da Fortuna. Ele deixa passar um dia nefasto e retorna ao templo de
Zeus Protetor, a quem dirige suas preces conforme os ritos tradicionais. Ah,
como se acostumar com um imperador que frequenta tantas vezes os templos,
quando ele poderia importunar os deuses apenas uma ou duas vezes e nos
dar estas grandes festas que são largamente abertas a todo o povo, e das quais
podem participar não apenas aqueles que conhecem os deuses, mas todo o
povo reunido na cidade? Festas de júbilo e de prazer das quais se participaria
sem cessar, com espetáculos de dança reunindo homens, adolescentes e alegres
mulheres em profusão (mis. 15).

Vemos aqui delinear-se um jogo retórico recorrente ao longo de todo o


misopogon, isto é, a tensão entre as aspirações ascéticas de Juliano, imbuído
da missão de ediicar espiritualmente a polis, e a predileção dos antioquenos
pela pândega, pelos mimos e espetáculos, sinais explícitos de degradação

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 131


GILVAN VENTURA DA SILVA

(mis. 8; 14; 27). Nessa tarefa de reintroduzir a cidade na esfera do sagrado,


Juliano se apresenta como um devoto obstinado dos deuses, alguém que
não perde a oportunidade de frequentar os templos, mesmo quando a
população se encontra em festa. O fervor da sua devoção ultrapassava a do
simples crente, aproximando-o do estatuto de hierofante, mais um motivo
de zombaria por parte dos antioquenos, que o censuravam pela excessiva
satisfação com que portava os objetos do culto, em vez de delegar a tarefa a
um sacerdote de status inferior, como registra Amiano Marcelino (22, 14).
Ambicionando incutir nos antioquenos uma rigorosa disciplina espiritual,
exercitá-los numa ascese coletiva, poderíamos mesmo acrescentar,
Juliano se recusava a patrocinar os jogos e os festivais, impedindo assim
o congraçamento de todos os setores que compunham a polis. Dentre os
excluídos da cidade de Juliano contavam-se os cristãos, e isso por um motivo
bastante peculiar. Sendo a priori um espaço de convívio entre homens e
deuses, Antioquia não poderia comportar um culto como o dos adeptos
de cristo, responsáveis por profanar, com seus ritos em honra aos mortos,
o solo consagrado da cidade.
Juliano, como se sabe, nutria uma animosidade visceral contra os
cristãos, que, em tom de desprezo, costumava chamar de galileus, sendo
inclusive o autor de um tratado cujo objetivo era o de demonstrar a
impropriedade da crença em cristo, o contra o galileus, redigido durante o
inverno de 362/363, em Antioquia, e do qual possuímos apenas fragmentos
conservados por cirilo de Alexandria numa refutação bem posterior.8 Afora
tal animosidade, que se reproduz amiúde ao longo de todas as suas obras
(MALOSSE, 2010, p. 99), importa ressaltar que, no misopogon, Juliano
não atribui ao cristianismo a parcela maior de culpa pelo comportamento
indigno da população, preferindo centrar seus argumentos no apego dos
citadinos à volúpia dos jogos, dos espetáculos e dos festivais. Todavia, em
pelo menos três ocasiões o imperador faz referência aos cristãos como iguras
de desordem. Na primeira delas, Juliano acusa os habitantes de Antioquia
de preferir Cristo aos deuses, tomando-o como o protetor da cidade em

8
Trata-se de em favor da santa religião dos cristãos contra os livros do ímpio Juliano. De data incerta, supõe-
se que tenha sido escrito entre 433 e 444, ano da morte de Cirilo.

132 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


JULIANO E A IMAGEM DE ANTIOqUIA NO misopogon

lugar de Zeus, Apolo e calíope, divindades que, de longa data, eram as


padroeiras da polis (mis. 28). Na segunda, Juliano admoesta os antioquenos
por permitir que suas mulheres dilapidem o patrimônio familiar com os
pobres e indigentes, induzindo-os assim ao cristianismo, ou melhor, ao
“ateísmo” (atheta, cf. mis. 35). Na terceira (mis. 11), Juliano recorda que, a
despeito das glórias cantadas por Homero, os troianos não dirigiam súplicas
a Príamo, a Heitor ou a qualquer uma das suas esposas e ilhos, mas sim a
Atená. Já os antioquenos teriam por hábito atribuir louvores próprios dos
deuses a homens, numa clara alusão ao culto dos santos que, no século IV,
encontrava-se em franca expansão. Mediante a devoção aos restos mortais
dos seus theioi andrés, dos quais os mártires foram os precursores, seguidos
pelos monges e bispos, os cristãos redeiniram pouco a pouco a paisagem da
cidade antiga ao trazer para dentro das muralhas os defuntos, cujas relíquias,
entronizadas em santuários (martyria) e mesmo em igrejas de amplas
dimensões, se converteram num poderoso instrumento de cristianização
do território cívico, acontecimento seguido pela cristianização não menos
espetacular do tempo, na medida em que o calendário passava agora a
conter um extenso número de festivais em memória dos santos. Segundo
Juliano, a traslatio dos cadáveres para a zona intra muros ou mesmo para as
imediações dos templos pagãos constituía um atentado direto à sacralidade
da polis, o que não poderia ser tolerado. Por esse motivo é que, logo após
o malsucedido festival de Apolo ao qual aludimos, Juliano determina a
remoção das relíquias de Bábilas de Dafne, devolvendo-as à necrópole da
Porta do Sul. Bábilas fora um bispo de Antioquia martirizado em 251, sob a
perseguição de Décio, cujo culto, em meados do século IV, havia se tornado
bastante popular. Certamente com o intento de minar a dynamis do oráculo
de Apolo, o César Galo (351-354), irmão de Juliano, havia transferido os
restos mortais de Bábilas da necrópole da Porta do Sul para um martyrion
especialmente construído na entrada de Dafne, a poucos metros do templo
de Apolo e da fonte Castália, onde a sacerdotisa do deus realizava as suas
previsões (SoLER, 2006, p. 37).
Sabemos, por Amiano Marcelino (22.12), que Juliano, ao devolver as
relíquias de Bábilas e de outros defuntos sepultados ao redor do martyrion
para a necrópole da Porta do Sul, o fez conforme o ritual empregado pelos
atenienses na puriicação da ilha de Delos. Entretanto, o desejo do imperador

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 133


GILVAN VENTURA DA SILVA

em livrar Antioquia da contaminação gerada pelos defuntos cristãos não


se limitou a uma intervenção pontual em Dafne, assumindo contornos
de uma autêntica política de governo, pois em fevereiro de 363, logo após
o encerramento das parentalia, a festa dos mortos, que durava nove dias,
Juliano promulgou um edito ad populum (c. h. 9, 17, 5) proibindo ao
mesmo tempo a pilhagem do material das tumbas, sobretudo as pagãs, que
era reaproveitado na construção de pórticos e residências, e a realização
de cortejos fúnebres durante o dia, prática que difundia o contágio entre
os transeuntes. Numa carta sem dúvida contemporânea, cujo destinatário
desconhecemos, Juliano esclarece as razões que o levaram a emitir o edito:

A morte é descanso e a noite harmoniza com o descanso. Portanto, convém que


nela se leve a cabo o relativo aos enterros dos mortos, já que fazer algo assim
de dia é reprovável por muitos motivos. cada um vai resolver seus assuntos
na cidade e tudo está repleto dos que vão aos tribunais, dos que vão e vem
na ágora, dos que estão instalados em suas oicinas, dos que vão aos templos
para reairmar as boas esperanças que depositam nos deuses. E então não sei
quem, colocando em seu esquife um morto, o empurra em meio àqueles que
exercem estas ocupações e a situação se torna completamente intolerável, pois
amiúde os que se deparam com eles se enchem de aversão, uns porque creem
que é um mau presságio e outros, os que se dirigem aos templos, porque após
tal visão não lhes é lícito aproximar-se dos deuses, que são a causa da vida e
que são os mais distantes de toda a corrupção. E contudo não iz ainda a acu-
sação mais grave. qual é? os recintos sagrados e os templos dos deuses estão
abertos e amiúde alguém, no interior, faz sacrifícios, libações e preces, porém
eles passam ao lado do mesmo santuário transportando o cadáver, e o ruído de
seus lamentos e suas palavras de mau agouro chegam até os altares (ep. 136b).

Nesse excerto, talvez por inluência de Máximo de Éfeso, um dos


seus principais conselheiros, Juliano se posiciona abertamente contra
o hábito, que começa a se tornar corrente em seu tempo, de se realizar
cortejos fúnebres durante o dia, o que não apenas expõe os espectadores ao
risco de contaminação pelos cadáveres, mas também profana os templos,
neutralizando a eicácia dos ritos. Contrapondo-se à cosmovisão cristã
segundo à qual não haveria nenhuma incompatibilidade entre os cadáveres

134 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


JULIANO E A IMAGEM DE ANTIOqUIA NO misopogon

e a vida urbana, a ponto de santos e mártires terem sido entronizados como


protetores espirituais da polis, o que lhes permitia habitar o território intra
muros, Juliano busca reforçar os antigos códigos do paganismo, que proibiam
o livre trânsito dos defuntos. Tal constatação poderia nos induzir a supor,
como querem alguns, que Juliano, ao implementar tais medidas, estivesse de
certa maneira “revivendo”, “restaurando” ou “reabilitando” um paganismo
moribundo diante de um cristianismo já consolidado. No entanto, uma
leitura mais atenta da imagem da cidade que ressalta do misopogon e de
outros textos contemporâneos nos desautoriza a concluir que Juliano foi
tão somente um restaurador dos cultos ancestrais. Na avaliação de Soler
(2006, p. 43) e Limberis (2000, p. 378), Juliano teria sido antes um inovador
em assuntos religiosos, na medida em que, por intermédio da sua atuação
político-ilosóica, pretendeu oferecer uma nova face ao paganismo. Para
tanto, não hesitou sequer em recorrer a elementos extraídos do cristianismo,
o que explica, em diversos momentos, a proximidade entre as concepções
do imperador e as dos cristãos.

Considerações inais

Como argumenta com propriedade Bowersock (1996), ao lidarmos com


o paganismo tardio não nos encontramos, a princípio, diante de um sistema
religioso ineicaz, obsoleto e destinado a desaparecer por conta do avanço
do cristianismo, nem muito menos diante de um sistema religioso refratário
à inovação, à renovação e às adaptações requeridas pelo seu tempo. Desse
modo, devemos estar atentos para captar a própria historicidade das crenças
e práticas que costumamos reunir sob a categoria de “pagãs”, pois não raro
a unidade sugerida pelo vocábulo tende a ocultar a extrema diversidade e
plasticidade daquilo que foi o paganismo. Na obra de Juliano, é possível
observar já uma inlexão no léxico, pois, ao se referir aos cultos tradicionais,
o imperador opta por hellenismos, vocábulo durante muito tempo empregado
para designar a cultura grega em sentido lato, isto é, a língua, as formas de
pensamento e de comportamento próprias dos gregos, mas que, no início
do século IV, começa a exibir um signiicado mais estrito, o de crença nos
deuses do Império, como vemos na correspondência de Jâmblico, um
dos mestres de Juliano, diga-se de passagem. Doravante hellenismos será

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 135


GILVAN VENTURA DA SILVA

utilizado para qualiicar tanto aquilo que pertencia à cultura grega quanto
as crenças e práticas do politeísmo, tornando-se assim sinônimo de um
sistema religioso distinto do cristianismo. Em pouco tempo hellenismos será
igualmente incorporado ao vocabulário dos autores cristãos, em substituição
a ethnikon. A ressigniicação de hellenismos nos sugere a tentativa de criação,
ao menos por parte dos ilósofos neoplatônicos, de uma identidade de
teor religioso capaz de confrontar o cristianismo, muito embora isso não
exclua empréstimos mútuos, como demonstra Juliano, cuja reforma do
paganismo inspirou-se, até certo ponto, em princípios cristãos. Dentre tais
empréstimos, um dos mais evidentes foi a noção de philanthropia, ou seja, o
exercício da caridade para com os pobres, tema que o imperador desenvolve
extensamente na carta ao sacerdote Teodoro (ep. 89b). Num contexto em que
as autoridades episcopais, ao liderar as redes de assistencialismo, começavam
a controlar uma massa anônima de pobres e indigentes, uma poderosa base
de apoio para o trabalho de cristianização da cidade, Juliano propõe uma
contraofensiva em moldes pagãos, exortando os sacerdotes ao cuidado com
os pobres e prisioneiros, que deveriam ser protegidos da ganância alheia.
A conexão entre o pensamento de Juliano e a doutrina cristã alora,
igualmente, na maneira pela qual o imperador se refere a Antioquia, como
vemos no misopogon. Em sua opinião, Antioquia não seria apenas uma
cidade tryphosa, como tantas outras do Império, mas uma cidade marcada
pela impiedade, pela falta de respeito para com os deuses. Juliano condena
o estilo de vida dos antioquenos, sua frequência ao teatro e ao hipódromo,
seus festivais, seu gosto pelas comemorações em praça pública, não como
um desvio moral próprio de indivíduos de categoria inferior, mas como uma
afronta à majestade divina. Para Juliano a cidade deveria aspirar à santidade,
à elevação espiritual, o que exigia a rejeição a tudo aquilo que até então a
caracterizava em prol da autopuriicação. Talvez não fosse incorreto supor
que, diante da cristianização da cidade antiga, processo cada vez mais nítido
em meados do século IV, a reforma do paganismo idealizada por Juliano
comportasse a “helenização” da cidade, desde que esta helenização não
seja compreendida tão somente como um bloqueio à atuação dos cristãos
no recinto urbano, como uma reabilitação dos cultos ancestrais da polis ou
como o restauro dos templos e santuários. De fato, pensar nos termos de uma
helenização da cidade greco-romana sob Juliano é pensar na coniguração

136 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


JULIANO E A IMAGEM DE ANTIOqUIA NO misopogon

da polis como uma cidade hierática e ascética na qual as redes tradicionais


de sociabilidade urbana tendem a ser suplantadas por um estilo de vida
calcado na frugalidade, na simplicidade, no autocontrole, mas, acima de
tudo, numa atitude de permanente veneração. Levando em conta que Juliano
buscava erodir a inluência cristã sobre a vida pública e reatar os laços que
uniam a cidade ao mundo divino, tal reverência não poderia restar oculta
no interior dos templos. Por esse motivo, a devoção de Juliano assume uma
dramaticidade hiperbólica, com a multiplicação de procissões, rituais e
sacrifícios na expectativa de mobilizar a população em prol da causa dos
deuses (LIMBERIS, 2000, p. 380). Antioquia, no entanto, parecia resistir às
investidas reformadoras do imperador, do mesmo modo que resistirá, alguns
anos depois, às pretensões de João crisóstomo. Permanecendo unidos a tudo
aquilo que, sob o Império, havia caracterizado o modus uiuendi urbano, os
antioquenos se recusavam a abandonar a praça pública para se recolher,
em oração, nos templos. Por meio da dança, da algazarra e, em especial, do
deboche, a população desaiava as propostas de enquadramento autoritário
do seu cotidiano, preferindo prestar culto aos seus deuses como por séculos
havia feito, ou seja, com alegria e espontaneidade, o que a levava a ignorar o
fervor religioso nutrido por um imperador-ilósofo atormentado pela busca
da pureza, da simplicidade e da perfeição.

referências

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Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 139


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140 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


CIDaDe, PoDer e CoNFlIto No SéCulo IV d.C.:
aNtIoQuIa De oroNteS, laoDICeIa Do mar
e a DISPuta Pelo StatuS De metrÓPole

Érica Cristhyane Morais da Silva

Introdução

“o uso do termo ‘metrópole’, na síria, nunca foi estudado


de forma detalhada”.
(BUTcHER, 2004, p. 220)

As cidades antigas são, continuamente, um objeto importante de


investigação e conhecimento cientíico seja entre os sociólogos, os antropólogos,
os geógrafos, os economistas, os urbanistas, seja entre os arqueólogos e
os historiadores da Antiguidade. E, de fato, os estudos sobre as cidades é
um empreendimento ininito pela abundância de material ainda por ser
explorado e pelo que ainda podemos compreender dessa fascinante estrutura
e organização social, político-econômica e cultural, bem como em razão da
dinâmica, da multiplicidade de abordagens e teorias disponíveis. Avançamos
muito na compreensão acerca da cidade antiga, sua dinâmica, organização
e planejamento espacial, sua estrutura administrativa e funcionamento, sua
cultura e política urbanas, seus conlitos e violências, sua população seja no
âmbito geral, seja no contexto particular. Não obstante, o estudo das cidades
antigas ainda é cercado de problemas conceituais, teóricos e de abordagens
importantes que suscitam novos debates e novas interpretações. o conceito
de metrópole, por exemplo, é recorrentemente evocado por autores da época
da Antiguidade Tardia e em diferentes tipos de fontes, mas o status mesmo de
metrópole de muitas das cidades romanas tardo-antigas ainda não tem sido
objeto de uma investigação mais sistemática. E a província da Síria antiga –
especialmente, o caso das cidades de Antioquia de orontes e Laodiceia do
Mar, incluindo o tema da disputa entre ambas pelo status de metrópole – tem
sido objeto de pouca atenção a esse respeito. Em razão disso, nos propomos
a compreender essa temática, que desenvolvemos com o projeto de pesquisa

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 141


ÉRIcA cRISTHyANE MORAIS DA SILVA

intitulado as metrópoles no império romano do oriente: a situação de antioquia


na antiguidade tardia (séc. iV e V) cadastrado na Pró-Reitoria de Pesquisa
e Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo e com apoio
institucional do laboratório de estudos sobre o império romano – seção es
(LEIR/ES). O texto que ora apresentamos para esta coletânea foi produzido
com base em investigações iniciais. Para tanto, comecemos com a exposição
de uma historiograia que verse sobre o tema.

uma historiograia sobre a rivalidade


entre as cidades romanas do Império

Nos últimos vinte anos, um conjunto de estudiosos têm se interessado


pelo tema do status e dos títulos cívicos atribuídos às cidades antigas
dentro de contextos determinados.1 Todavia, esse não é um tema novo.
Em 1995, Steven Friesen (1995, p. 236-9) já destacava uma série de autores
contemporâneos, representantes de uma tradição historiográica, que havia
se dedicado ao estudo dos títulos cívicos aplicados às cidades antigas:
homas Robert Shannon Broughton,2 David Magie,3 Anthony D. Macro,4
Stephen Mitchell.5 A maneira como esses autores abordam o fenômeno
da concorrência por títulos cívicos fundamenta-se grosso modo numa
visão negativa, em “uma explicação psicopolítica”, ou ainda relacionada à
“competição por recursos materiais” bem como pelo “anseio por autonomia”
(FRIESEN, 1995, p. 236-9).

1
o capítulo intitulado “he cult of the Roman emperors in Ephesus”, de Steven Friesen, publicado na obra
ephesus, metropolis of asia editada por Helmut Koester, em 1995, teve como objeto de relexão a cidade de
Éfeso no que se refere ao título de neokoros. Em 1996, a obra metropolis and Hinterland de Neville Morley
trouxe um estudo sobre a cidade de Roma antiga e seus arredores na Península Itálica sob a ótica da economia
e segundo uma concepção teórica da relação entre metrópole-periferia. Em 2013, Judith Herrin organizou
uma obra intitulada margins and metropolis composta por capítulos referentes ao chamado Império Bizantino.
Já neokoroi: greek cities and roman emperors, embora seja resultado de uma tese de doutorado defendida
em 1980, foi publicada apenas em 2004. Barbara Burrell (2004, p. 1-13) se dedicou ao estudo da origem, do
desenvolvimento e da deinição do título de neokoros associado às cidades entre ins do século I aos ins do
século III d.C.
2
roman asia minor foi publicada como parte de obra an economic survey of ancient rome, volume IV,
editada por Tenney Frank.
3
o título da obra é roman rule in asia minor.
4
Conferir, he cities of asia minor under the roman imperium.
5
A obra se intitula anatolia, land, men and gods in asia minor.

142 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


cIDADE, PODER E cONFLITO NO SÉcULO IV d.c.:
ANTIOqUIA DE ORONTES, LAODIcEIA DO MAR E A DISPUTA PELO STATUS DE METRóPOLE

Em artigo intitulado he roman ‘coloniae’ of the near east, Fergus


Millar apresenta uma visão revigorada acerca das concessões imperiais de
títulos cívicos às cidades conquistadas do Império Romano do Oriente,
destacando, em particular, o título de colonia. Millar (2006, p. 165) propõe
a compreensão deste cenário em termos de uma “história cultural da região
do crescente Fértil” mediante a consideração da “intervenção romana na
estrutura social e da construção da identidade regional”. O cenário que
emerge do texto de Millar é o de um ambiente de inter-relações culturais,
de intercâmbios linguísticos que contribuíram para a construção de um
Império Greco-romano. Para o caso especíico da Síria antiga, pesquisas
recentes foram publicadas com contribuições interessantes. Num esforço
de sistematização da documentação numismática referente à região da
Síria antiga, Kevin Butcher produz um verdadeiro manual sobre o trabalho
com as moedas sírias, apresentando produção, circulação, metragem e
denominações, tipologia e legendas, além de incluir uma interpretação
do conjunto de moedas, que também compõem um catálogo final.6
o estudo de Butcher se refere ao intervalo temporal entre os anos 64 a.C.
e 253 d.C. A obra syria identity in the greco-roman world, de Nathanael
J. Andrade, também oferece uma nova perspectiva. Em uma das seções
na qual discorre sobre Antioquia como “a cidade-mãe da Síria”, Nathanael
Andrade destaca a participação ativa dos membros da boulé em parceria
com a administração imperial em “atos de performance cívica” mediante
a “ediicação de inscrições públicas em grego” as quais, “como nas moedas
municipais”, apresentam “Antioquia como a ‘metrópole dos Antioquenos’,
um título que deine Antioquia como a ‘mãe’ ou a mais importante cidade
grega da província da Síria”.
os títulos em disputa são os mais variados: colonia, neokoros, protopolis
(no sentido de “primeira cidade”), metropolis (BoWERSoCK, 2002, p. 87).
E, segundo Glen Bowersock (2002, p. 88), ocorre “um alarmante crescimento
na disputa por títulos a partir do século II d.C.” e isto estaria relacionado
“aparentemente, às mudanças na política romana no que se refere ao status
de metrópole”. Segundo Pascale Linant de Bellefonds (2011, p. 26-7):

6
coinage in roman syria, obra publicada em 2004.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 143


ÉRIcA cRISTHyANE MORAIS DA SILVA

Todos os historiadores do Império Romano enfatizam que, desde a dinastia la-


viana, a rivalidade entre as cidades em um contexto de competição por privilégios
e títulos cívicos era uma característica importante da vida pública na ásia Menor.

Essa extensiva bibliografia sobre a disputa pelos títulos cívicos nos


contextos históricos anteriores ao que nos propomos a estudar, a Antiguidade
Tardia, se por um lado nos fornece ferramentas de compreensão da temática,
por outro, signiica a quase ausência absoluta de estudos sobre as cidades
romanas tardo-antigas. Para o contexto da Antiguidade Tardia, até o presente
momento, não temos notícias de estudos que se proponham a estudar as
disputas e rivalidades entre as cidades no concernente aos títulos cívicos.
Entretanto, podemos observar uma produção historiográfica particular
que menciona a imagem das cidades, sua situação privilegiada em termos
territoriais, históricos e político-culturais, recorrendo signiicativamente
a epítetos como “metrópole”, “metrópole da ásia” ou ainda “metrópole do
oriente”, “metrópole terrestre”, “metrópole celeste”.7 Assim, embora tenhamos
referências acerca da utilização recorrente desses títulos, esses não são
colocados em um ambiente mais amplo de concorrências e disputas. Em
termos de hierarquia citadina, na obra intitulada ordo urbium nobilium, no
Livro xI, 4,5,46, Décimo Magno Ausônio discorre sobre um ranking particular
das cidades do Império Romano. E a composição desse ranking também
pode ser compreendida como um indício da existência de diferentes status,
privilégios e rivalidades entre as cidades tardo-antigas. Nesse sentido, nos
propomos a compreender o contexto dessas evidências na Antiguidade Tardia,
considerando que, certamente, podemos observar avanços nos estudos acerca
dos títulos cívicos em situações particulares. Apesar dessas contribuições,
as controvérsias e as disputas acerca dos títulos cívicos relativos às cidades
romanas ainda permanecem um acontecimento complexo, conigurando, na
historiograia especializada, um tema restrito grosso modo a um momento
particular do período helenístico e da história do Império Romano.

7
Libânio (or. xI, 130 e 187) utiliza o termo na expressão “metrópole da ásia”. Cf. Foerster. Libanii Cf. Foerster.
Libanii opera, vol. I, oratione xI, p. 479. No artigo l’image d’antioche dans les Homélies sur les statues de
Jean chrysostome, Laurence Brottier (1993, p. 619-35) argumenta que Antioquia, para João Crisóstomo,
será concebida como a “metrópole do oriente” e também uma “metrópole terrestre” e, para além disso, uma
“metrópole celeste”.

144 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


cIDADE, PODER E cONFLITO NO SÉcULO IV d.c.:
ANTIOqUIA DE ORONTES, LAODIcEIA DO MAR E A DISPUTA PELO STATUS DE METRóPOLE

No que se refere ao período romano, o arco cronológico mais explorado


pelos historiadores para o estudo da temática concentra-se entre ins do
século I e ins do século III d.C. Tal temática é geralmente interpretada
tendo como pano de fundo o processo de colonização e de conquista
romanas, bem como se vincula a fontes de informação específicas: a
epigraia e a numismática.8 Por outro lado, embora sejam problemáticas, em
algum aspecto, essas abordagens apresentam um cenário diverso no qual a
concorrência e a rivalidade envolvem uma pletora de cidades que disputam
entre si. Nesse sentido, mesmo que aqui nos dediquemos à rivalidade entre
Antioquia e Laodiceia, isso não signiica pensar que apenas essas duas
cidades estejam em disputa. Assim, como hipótese, argumentamos que,
na Antiguidade Tardia, havia disputas e concorrências por títulos cívicos
citadinos que mobilizavam grupos especíicos da sociedade romana tardo-
antiga na airmação e conirmação do status privilegiado de cada uma das
cidades em disputa, que ocorriam sob novos termos e segundo uma nova
forma de competição, como nos revelam as homilias e orações do período.

antioquia de orontes, laodiceia do mar


e a disputa pelo status de metrópole

As cidades tardo-antigas podem ser referenciadas das mais diversas


formas mediante títulos cívicos que deiniam sua posição na hierarquia das
cidades dentro do Império Romano. os títulos cívicos apresentam as mais
diversas fórmulas. Dentre tantas, podemos destacar o status cívico de neokoros,
de colonia e de metropolis. De acordo com Steven Friesen (1995, p. 230-6),
neokoros evoluiu da designação de um funcionário guardião de um templo
para a designação de uma cidade que abrigava um importante templo do culto
imperial. o status de colonia foi uma concessão ampla a todas as cidades da
região do oriente Próximo na época severiana, vindo a se tornar mais um
título cívico que as cidades poderiam portar, mas que podia incluir privilégios,
como o ius italicum, que garantiria às cidades autonomia suiciente para serem

8
homas Robert Shannon Broughton (1975, p. 696) argumenta que “o estudo sobre as cidades da ásia Menor
durante os dois primeiros séculos do Império é um estudo sobre o progresso da urbanização e sobre o
aumento da prosperidade” citadina e que “as evidências para ambos são provenientes, principalmente, das
moedas e das inscrições”.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 145


ÉRIcA cRISTHyANE MORAIS DA SILVA

administradas por um ordo próprio, assim como imunidade de impostos


(MILLAR, 2006, p. 164-5; MAcRO, 1980, p. 675). Já o epíteto de metropolis
parece ser o mais importante pela recorrência nos textos e nas moedas.
O termo metrópole provém, etimologicamente, do vocábulo grego
metropolis, composto da junção de outras duas palavras gregas: mater e polis.
Na história da Grécia arcaica, o termo metropolis remete, frequentemente, à
ideia de “cidade-mãe”, evocando assim uma relação de parentesco entre poleis,
um sentido original relativo à fase da colonização grega (SMITH, 1854, p.
239; TALBERT, 1985, p. 13 e 157).9 A natureza da relação entre a metrópole
(“cidade-mãe”) e sua colônia (apoikia) foi objeto de vários estudos.10 No período
helenístico, as metrópoles já não eram mais as “cidades-mãe” associadas às suas
apoikiai por intermédio da diáspora e da ação de um oikiste, mas resultado da
fundação, por um monarca, de cidades que seriam consideradas metrópoles
do reino. Na Antiguidade Tardia, em contexto romano imperial, a ideia de
uma cidade líder entre um grupo de cidades permanece.
O termo metrópole era utilizado para identiicar as cidades que eram
capitais de províncias da parte oriental do Império (BRoWN, 1992, p. 11 e
151; HUEBNER, 2009, p. 170). Também não podemos deixar de destacar que
aquelas cidades eram consideradas líderes, de acordo com sua importância
cultural, militar, econômica e político-religiosa e por isso também receberam
a dignidade de metrópole. Há ainda outro critério: somente aquelas cidades
que fossem centros do poder imperial, residência do governador de província
e lugar privilegiado na nova geograia da administração imperial tardo-antiga
poderiam gozar da honra e do status conferido pelo título de metrópole
(BRoWN, 1992, p. 18-9). o termo metrópole implica um todo que pode ainda
denotar também o fato de que líderes político-religiosos poderiam presidir
sob os templos ou sés das cidades. Roma, Constantinopla, Alexandria, Éfeso,
Antioquia são cidades que têm sido constantemente referidas como metrópoles
do Mundo Antigo pela historiograia contemporânea.11 Antioquia, em especial,
parece ter recebido o status de metrópole muito cedo na sua história.

9
Sobre a documentação disponível para esse tema, no que se refere, por exemplo, à fundação de Cirene, em
c. 430 a.C., conferir: Heródoto (Historias, Livro IV, 154-6).
10
Conferir, por exemplo, a obra colony and mother city in ancient greece de Alexander John Graham.
11
Vanderspoel (1995, p. 54) argumenta que Roma, em lugar de ser a metrópole de uma província, era a
metrópole de um Império.

146 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


cIDADE, PODER E cONFLITO NO SÉcULO IV d.c.:
ANTIOqUIA DE ORONTES, LAODIcEIA DO MAR E A DISPUTA PELO STATUS DE METRóPOLE

Antioquia de Orontes foi fundada por Seleuco Nicator em 300 a.c.


O título de metrópole associado à cidade de Antioquia aparece, pela primeira
vez, a partir de 92/1 a.c., em uma moeda da época selêucida, quando esta
recebe o direito de cunhar moedas de bronze (RIGBy, 1996, p. 497). O uso
do termo metrópole ou sua variante, metrocolonia, aparece em Antioquia na
época do imperador Valeriano (BUTcHER, 2004, p. 220-1; 403; PLATE 19).
João Malalas (chronographia, Ix, 5) relata um registro acerca da conirmação,
em contexto romano, do status de metrópole atribuída à cidade de Antioquia:

A notícia sobre a chegada de Júlio César, o ditador, ou melhor, o monarca, o


tirano que capturou Roma, matou o Senado e se tornou monarca, foi enviada.
o edito chegou à cidade de Antioquia no décimo segundo dia do mês de
Artemísio, maio, da convocação seguinte. A liberdade da cidade (desde quando
se tornou submetida a Roma) foi enviada por Júlio César e proclamada no
vigésimo dia do mês de Artemísio. o edito foi proclamado como se segue:
“Em Antioquia, a sagrada, inviolável e autônoma metrópole lidera e preside sob
o oriente, Júlio Gaio César e assim por diante”.

Esse registro de um edito de Júlio César acerca da promessa de


autonomia a Antioquia aparece também impresso em moedas de bronze
que apresentam a seguinte inscrição (BRUNN, 1999, p. 29-30): antioquia,
metrópole autônoma e intangível. outros documentos também fazem
uso do termo. Duas estelas, denominadas como A e B, encontradas no
sítio arqueológico de Antioquia, em 1945, datadas do ano 73 e 74 d.C.,
possuem uma inscrição epigráica que trata da construção de um canal e da
contribuição antioquena para a realização dessa obra, elevando e celebrando
“a metrópole dos antioquenos” (ANDRADE, 2013; FEISSEL, 1985, p. 79-83;
SHERK, 1988, p. 174-5). Em outra inscrição, datada de inícios do século
II d.C. (119-120 d.C.), proveniente da cidade de Gerasa (atual Jarash, na
Jordânia), Antioquia de orontes é destacada como “a metrópole das quatro
regiões” (SEG 7 847). Desse modo, Antioquia é, historicamente, concebida
como uma metrópole desde tempos do reinado selêucida, sendo tal
concepção reforçada no período romano. Na Antiguidade Tardia, Antioquia
ainda é tida como uma metrópole e, com o cristianismo, a aspiração é de se
airmar, por um lado, pelo desejo dos membros da comunidade cristã, como
centro metropolitano, capital de um mundo cristão e, por outro, como um

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 147


ÉRIcA cRISTHyANE MORAIS DA SILVA

centro helênico longevo, berço e lugar da cultura greco-romana, visões de


mundo que, colocadas em oposição, numa luta de representações, explicam
apenas supericialmente uma realidade mais complexa.
A história de Laodiceia do Mar parece ser menos documentada com
relação ao título de metrópole. Até o momento, as notícias que temos são
mais esparsas e, geralmente, a partir da história da perda/restituição dessa
honraria à cidade de Antioquia. No entanto, em uma moeda cunhada em
Laodiceia do Mar sob Macrino, a inscrição refere-se ao culto imperial e a
Laodiceia como centro deste culto.12 Kevin Butcher (2004, p. 220 e 234)
argumenta que o uso do termo metrópole para Laodiceia do Mar estava
relacionado ao culto imperial. Logo, essa evidência nos leva a inferir que a
oposição entre Antioquia e Laodiceia não corresponderia, propriamente,
àquilo que o status de metrópole signiicaria para os antioquenos e que
estes desejassem que fosse outorgado a Antioquia. Esse caso ainda nos faz
ponderar sobre a polissemia do termo metrópole e sobre o sentido deste
título para os habitantes das cidades. Sendo assim, apenas opor as cidades
não resolve ou explica as disputas, uma vez que cada uma reclamava para si
privilégios diversos com base no título de metrópole.
Libânio (or. xI, 130) destacou que os antioquenos resguardariam a
fama existente da cidade e a partir dos próprios costumes a manteriam na
posição de “metrópole da ásia”. Todavia a cidade de Antioquia teve esse
título revogado em algumas ocasiões. As cidades de Antioquia de orontes
e Laodiceia do Mar são, geralmente, postas em um contexto tradicional de
disputas e concorrências históricas (BUTCHER, 2004, p. 219).
Na História augusta (de Vita Hadriani, xIV, 1), Adriano é acusado de,
por ódio, ter decidido dividir a Síria para que Antioquia não pudesse ser
considerada uma metrópole e, além disso, ser líder de uma área tão vasta:
“Durante suas viagens, ele [o imperador Adriano] nutriu tanto ódio pela
população de Antioquia que ele desejou separar a Síria da Fenícia para
que Antioquia não pudesse ser chamada de metrópole de várias cidades”.
Em 194, Septímio Severo revogou o status de metrópole de Antioquia

12
Para esses argumentos e a moeda que ora citamos, conferir o sítio da University of Warwick: http://www2.
warwick.ac.uk/fac/arts/classics/students/modules/romanneareast/resources/

148 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


cIDADE, PODER E cONFLITO NO SÉcULO IV d.c.:
ANTIOqUIA DE ORONTES, LAODIcEIA DO MAR E A DISPUTA PELO STATUS DE METRóPOLE

(SIDEBOTHAM, 1986, p. 169). Após a batalha de Issos, em 194 d.c.,


Septímio Severo privou Antioquia de seus status de metrópole e seus
privilégios como o ius italicum, e os transferiu a Laodiceia do Mar, como
punição à população antioquena pelo apoio dado a Pescênio Nigro na
disputa com Severo pela autoridade imperial, no Oriente (BURRELL, 2004,
p. 286-7). O status de metrópole parece ter sido restituído apenas em 212
d.c. por caracala, que buscava apoio popular para suas campanhas contra
a Pártia (WALLAcE-HADRILL, 1982, p. 5). E, novamente, em 387 d.c.,
Antioquia perde o título de metrópole para Laodiceia devido ao chamado
levante das estátuas. Nesse último caso, os textos, especialmente as homilias
e orações, oferecem importantes evidências acerca da rivalidade existente
entre estas cidades romanas. Na Antiguidade Tardia, essas evidências
se tornam ainda mais importantes para a compreensão das disputas e
concorrências por títulos entre as cidades. contudo, esses documentos
ainda carecem de um tratamento sistemático e particularizado para a
compreensão da cidade tardo-antiga a partir dessa temática.
João crisóstomo, por exemplo, nos fornece notícias sobre o status de
metrópole de Antioquia, pois evoca o termo metrópole em alguns excertos
em as Homilias sobre as estátuas ao povo de antioquia, enaltecendo a cidade
tanto como metrópole do Oriente quanto como capital de todo o mundo
(BROTTIER, 1993, p. 622-5). Em seu artigo l’image d’antioche dans les
Homélies sur les statues de Jean chrysostome, Laurence Brottier (1993,
p. 619-35) argumenta que Antioquia, para João crisóstomo, é concebida
como a “metrópole do Oriente”. Nesse sentido, de acordo com Brottier
(1993, p. 622-3), Antioquia seria a metrópole do Oriente e, mais do que
isso, se “fosse iel à tradição apostólica e aos arquétipos de virtude daquela
época” Antioquia seria também uma “metrópole terrestre” e, para além
disso, uma “metrópole celeste”. Considerando que o cristianismo aspirava à
universalidade, nada mais coerente que uma capital, que, aos olhos de João
Crisóstomo, era a mais cristã das cidades, fosse concebida como sede da
ordem terrena, celestial e cósmica. Antioquia era uma metrópole do mundo
considerada, por Crisóstomo, como cristã. Devido ao Levante das Estátuas,
essa posição foi ameaçada pela gravidade dos acontecimentos. Assim, a
dignidade da cidade teria sido maculada e sua população considerada vil no
pensamento de João Crisóstomo (BRoTTIER, 1993, p. 619-35).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 149


ÉRIcA cRISTHyANE MORAIS DA SILVA

Outro elemento importante para João crisóstomo (de statui, Hom.


xVII, 10) no que se refere à dignidade da cidade, é que esta deveria estar
relacionada aos atributos da população e não à estrutura urbanística:

Aprende o que a dignidade da cidade é; e, então, tu saberás claramente que, se


os habitantes não a traíram, ninguém mais será capaz de retirar a dignidade da
cidade! Não pelo fato de que ela é uma metrópole; nem que ela tenha edifícios
grandes e ornamentados; nem que tenha muitas colunas, pórticos amplos e
passeios, nem que seja nomeada, em proclamação, antes das outras cidades,
mas a virtude e piedade de seus habitantes, estas são a dignidade da cidade, e o
ornamento, e a proteção; de modo que, se estas coisas lhe faltam, torna-se a mais
vil de todo o mundo, embora possa desfrutar de honras ilimitadas do imperador!

Nessa passagem, João crisóstomo fornece alguns elementos que


deinem, ou pelo menos delimitam, o que o status de metrópole poderia
signiicar para a cidade. A estrutura urbanística e a qualidade da polis
parecem ser componentes intrínsecos de uma metrópole. Mas não somente
isso, pois Crisóstomo ainda acrescenta outro aspecto: o privilégio de “honras
ilimitadas provindas do imperador”. Na Homilia xVII, seção 10, o autor
enobrece a cidade e justiica que o status de metrópole de Antioquia se deve
à qualidade de sua população:

Tu gostarias de aprender sobre uma outra dignidade desta cidade? Certos


homens vieram da Judéia para Antioquia, perturbando a prédica da doutrina,
e introduzindo observações judaicas. os homens de Antioquia não toleraram
essa inovação em silêncio. Eles não se mantiveram quietos, mas, reunindo-se
em assembleia, eles enviaram Paulo e Barnabé para Jerusalém, e consegui-
ram que os Apóstolos predicassem aquela doutrina pura, limpa de todas as
imperfeições judaicas, distribuindo-a por todas as partes do mundo! Esta é a
dignidade da cidade! Esta é a sua precedência! Isto faz dela uma metrópole,
não na Terra, mas no Céu; tanto mais que todas as outras honras são corrup-
tíveis, e transitórias, e perecem com a vida presente e, geralmente, chegam ao
seu im antes da vida presente, como eles izeram neste momento! Para mim,
a cidade que não tem cidadãos pios é mais vil que qualquer povoado, e mais
ignóbil do que qualquer caverna.

150 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


cIDADE, PODER E cONFLITO NO SÉcULO IV d.c.:
ANTIOqUIA DE ORONTES, LAODIcEIA DO MAR E A DISPUTA PELO STATUS DE METRóPOLE

Interessante notar aqui como João crisóstomo descreve os habitantes da


cidade: “os homens de Antioquia não toleraram essa inovação em silêncio”,
destacando a natureza de um povo propenso a adotar um comportamento
“sedicioso”, quando confrontados.
Antioquia sempre apresentou, no decorrer de sua história, conlitos e
problemas com imperadores. Se considerarmos que os títulos cívicos são
uma concessão imperial, a relação entre os imperadores e as cidades constitui
um importante elemento a ser considerado em nossa relexão. O imperador
Juliano é o exemplo clássico a ser evocado nessa relação entre imperadores e
a cidade de Antioquia. O misopogon de Juliano é a resposta, sob uma forma
retórica, de um imperador incomodado com as maneiras da cidade, com
um comportamento tido como inadequado diante do soberano, embora
as razões da tensão entre os antioquenos e Juliano ainda sejam assunto que
necessite ser revisto, na medida em que as explicações disponíveis são ainda
pouco satisfatórias (GLEASON, 1986, p. 107; DOWNEy, 1939, p. 303-15).
Num cenário como esse, o estudo acerca da metrópole tardo-antiga é um
importante objeto de pesquisa pelas questões que suscita. Além disso, o
exemplo da disputa entre Antioquia e Laodiceia muito pode nos revelar
acerca das relações entre as cidades na Antiguidade Tardia.

Considerações inais

Antioquia e Laodiceia, como cidades importantes da antiga província


da Síria, são colocadas numa relação de oposição particular pela disputa
em torno do status de metrópole. Não obstante, essa disputa e a história da
relação dessas duas cidades no contexto da Antiguidade Tardia são ainda um
tema que demanda mais atenção. Aparentemente, podemos pensar que para
o estudo de ambas as cidades, a documentação referente a esse tema é mais
abundante para o período helenístico e o período do Principado. contudo,
a documentação escrita tem se mostrado um importante e signiicativo
manancial de evidências. Com base nessa documentação, podemos inferir
que a constante recorrência do termo metrópole signiica que a airmação
da cidade como metrópole era ainda algo importante na Antiguidade Tardia.
Mas, além disso, a concorrência pelo status de metrópole ultrapassava os
parâmetros da disputa tradicional por esse título cívico, bem como referia-se

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 151


ÉRIcA cRISTHyANE MORAIS DA SILVA

a uma concorrência mais ampla envolvendo outras cidades tardo-antigas,


não se restringindo assim à oposição entre aquelas duas únicas cidades,
como nos quer fazer crer, a priori, a historiograia e a documentação. Na
Antiguidade Tardia, a disputa pelo status de metrópole implicava a conversão
da cidade em questão num centro importante, e isso tanto para os pagãos
quanto para os cristãos. Nosso desaio, com a pesquisa ora em andamento,
é compreender o lugar preciso do status de metrópole na Antiguidade
Tardia. Desse modo, o teor da relação mantida entre Antioquia de orontes
e Laodiceia do Mar, na época imperial, parece ser um tema de investigação
bastante promissor.

agradecimentos

Gostaria de agradecer ao Prof. Gilvan Ventura da Silva pelo convite


realizado, pelo espaço a mim cedido para a publicação deste texto e pelo
momento em que me tornou possível a relexão de tema tão fascinante e, ao
mesmo tempo, árduo. Sem dúvida, uma oportunidade ímpar mas, sobretudo,
importante na pesquisa e na produção do conhecimento.

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152 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


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154 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


o DISCurSo aGoStINIaNo em A CIDADE DE DEUS:
a CoNStruÇÃo De uma FroNteIra eNtre
CrIStÃoS e PaGÃoS

Márcia Santos Lemos

O imperador Teodósio, convicto seguidor do credo niceno1, em 380,


por meio do Edito de Tessalônica, ordenou seus súditos a seguirem a fé
católica de Roma e de Alexandria, tornando o cristianismo a religião oicial
do Império Romano (cod. h. xVI, 1, 2). A essa decisão, seguiram-se, nas
províncias, a apreensão ou destruição de templos e lugares consagrados aos
cultos politeístas e a proibição de ritos e sacrifícios pagãos.2
A Igreja, além de benefícios e prerrogativas garantidas entre os governos
de Constantino e Teodósio, apenas com um pequeno intervalo durante o
reinado de Juliano (361-363), recorreu com frequência ao imperador para
coibir as práticas pagãs, para proteger os templos cristãos e para intervir nas
polêmicas teológicas e político-religiosas. o soberano não se fazia de rogado,

1
o cristianismo, desde a sua origem é controverso, plural e, nos séculos IV e V, também está marcado por
divergências doutrinárias, disciplinares e regionais, que icam bem explícitas no Concílio de Niceia. Este
concílio, celebrado em 325, organizado por Constantino, visava fundamentalmente a resolver a questão
ariana. o presbítero ário defendia que Cristo, por ter sido criado pelo Pai, não era da mesma substância
Dele, era inferior. Esta tese dividiu a Igreja e deu origem a vários concílios. Em Niceia, as ideias de ário
foram rejeitadas e foi imposta a fórmula de fé, conhecida como o Credo de Niceia, que ressalta a unidade
de Cristo com o Pai (a consubstancialidade = homoousia) e nega a doutrina das três hipóstases trinitárias
que prevalecia no oriente. Como consequência dos embates travados em Niceia, a Igreja icou dividida
entre partidários do credo niceno e do credo ariano (SIMoNETTI, 2002, p. 149-53).
2
Segundo Brown (1999, p. 53), paganus é um vocábulo latino utilizado para designar aquilo que é rústico,
do campo, da aldeia; muitas vezes servia para tratar de modo pejorativo pessoas sem instrução, “iletradas”,
“subalternos em relação aos oiciais”. É difícil determinar com precisão como essa palavra ganhou um
signiicado religioso, mas há algumas inferências sobre o assunto. A resistência dos homens que viviam
no campo em abandonar suas antigas crenças e se converterem ao cristianismo teria levado à associação
entre paganus e a pertença ao antigo politeísmo. Siniscalco (2002, p. 1059) não discute o motivo da
identiicação, mas indica que o uso do termo com o signiicado de “idólatra” passa a ser comum a partir
do século IV e airma que esta noção é absolutamente inútil para compreender o sistema religioso dos
antigos romanos, porque era uma forma de os cristãos denominarem aqueles que não eram judeus nem
professavam a fé em Cristo. Entre os autores cristãos que escreveram em grego no século IV, os termos
utilizados para designar aqueles que praticavam o politeísmo eram ethnikos, helenos e anomos como
sinônimos para injusto e ímpio; entre os latinos, é comum gentilis, impius e sacrilegus. Portanto, paganismo
foi um termo que começou a aparecer nos textos cristãos com maior frequência a partir do século V para
designar “crença nos falsos deuses e a prática de ritos e costumes condenáveis” (LEMoS, 2013, p. 37).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 155


MáRcIA SANTOS LEMOS

agia como um pontíice supremo, pois determinadas heresias colocavam


em risco não só a unidade da Igreja, mas a própria segurança do Império.
Em contrapartida, a Igreja tornou-se uma aliada, que cumpria a função
ideológica e administrativa, justiicando o poder imperial e assumindo
atribuições civis. Conforme ressalta Veyne (2009, p. 141), um novo modelo
de relação começou a ser esboçado:

Com o triunfo do cristianismo, as relações entre religião e poder […] foram


teorizadas, sistematizadas. Deus e César deixaram de agir cada qual para o
seu lado, Deus começou a fazer pressão sobre César, era necessário que César
desse a Deus o que a Deus era devido. o cristianismo exigirá aos reis o que o
paganismo nunca exigira ao poder: estender o mais possível o culto de Deus
e pôr-se ao serviço da majestade divina.

o Império Cristão era uma realidade, mas o ideal de um Estado terreno


que espelhasse a “cidade celeste” estava longe de se realizar. o cristianismo
era a religião oicial no inal do século IV, mas a sociedade romana preservava
em seus gestos, ações, gostos, vestuário, antigas práticas do mundo politeísta.3
o referencial simbólico e social dos primeiros cristãos seria, segundo
Meeks (1996, p. 7-13; 80-89), inluenciado pelos universos judaico e greco-
romano. Estes mundos estavam presentes em seus pensamentos, linguagem,
relacionamentos, enim, em suas tradições, seus hábitos cotidianos e suas
crenças. No discurso do apóstolo Paulo, o convertido era estimulado a
separar-se desses universos, a adotar práticas que o identiicassem com os
discípulos de Cristo:

Vós sois testemunhas e Deus também o é, de quão puro, justo e irrepreensível


tem sido o nosso modo de proceder para convosco, os iéis. Bem sabeis que
exortamos a cada um de vós como um pai aos ilhos; nós vos exortávamos, vos
encorajávamos e vos conjurávamos a viver de maneira digna de Deus, que vos
chama ao seu Reino e à sua glória (1tessalonicenses, 2, 10-12).4

3
Sobre a relação entre pagãos e cristãos no Império Romano ver Macmullen (1998) e o atual Cameron (2013).
4
As citações bíblicas usadas neste texto foram extraídas de A BIBLíA DE JERUSALÉM, edição coordenada
por Gilberto Gorgulho, Ivo Storniolo e Ana Flora Anderson.

156 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


O DIScURSO AGOSTINIANO EM a cidade de deus: A cONSTRUçÃO DE UMA FRONTEIRA ENTRE cRISTÃOS E PAGÃOS

De acordo com Paulo, o iel cristão era um cidadão celeste que peregrinava
pela Jerusalém terrestre aguardando o momento da salvação, quando seria
levado à “cidade celeste”, livre de toda a ignomínia. Na “cidade terrena”, os
inimigos de Deus eram escravizados pelos vícios e punidos com a dor eterna,
e os cristãos eram colocados à prova pela Providência divina. Nas escrituras
sagradas, a “cidade celeste” é a morada eterna dos cristãos, somente alcançada
por aqueles que, durante a peregrinação pela Jerusalém terrestre, não se
deixaram corromper pelo mundo e viveram segundo os princípios da fé
(LEMoS, 2004, p. 81). Agostinho, bispo de Hipona, no século V d.C., enfatizou
a diferença e a distância entre os cidadãos que habitavam as duas cidades:

[…] a vida bem-aventurada e eterna possuirá um amor e uma alegria, não


apenas retos, mas também certos: sem temor e sem dor. Assim já de certo modo
aparece o que devem ser, nesta peregrinação, os cidadãos da Cidade de Deus,
vivendo como ao espírito apraz, não como apraz a carne, isto é, como apraz
a Deus e não como apraz ao homem – e o que serão um dia na imortalidade
para a qual caminham. Mas a cidade, isto é, a sociedade dos ímpios que vivem
como aos homens apraz e não como apraz a Deus, que professam doutrinas
humanas e demoníacas no próprio culto das falsas divindades com desprezo
da verdadeira divindade – essa cidade é atormentada por aqueles afetos como
outras tantas doenças e paixões (a cidade de deus, xIV, 9, 6). 5

Apóstolos e bispos foram os responsáveis pela ixação de uma ética cristã,


um conjunto de valores que produziu elementos de identiicação entre os iéis
e criou uma fronteira entre eles e aqueles que eram considerados ímpios –
judeus, pagãos e heréticos (MoMIGLIANo, 1992). Na perspectiva de Rives
(2000, p. 245; 273), a escolha de uma religião tem implicações importantes
na autopercepção de uma pessoa e no modo como ela se posiciona no

5
A doutrina da “cidade celeste é tema recorrente na Bíblia, aparece no apocalipse (III, 12; xxI, 1-10),
na epístola aos Hebreus (xIII, 14-15), aos gálatas (IV, 22-26) e aos filipenses (III, 18-21). Em a cidade
de deus, Agostinho desenvolveu essa doutrina: há uma “Cidade Celeste”, chamada de Nova Jerusalém,
fundada por Deus e morada eterna dos cristãos. Ela possui uma parte que peregrina pela terra, através
de seus cidadãos reunidos na Igreja. E há uma outra cidade, a “Terrestre”, dos homens, denominada de
Jerusalém terrestre ou Babilônia, ilha de Caim, ou seja, do pecado, da corrupção humana. Não existe uma
clara separação entre essas duas cidades, elas formariam um único corpo místico, vivendo misturadas no
mundo, até o dia do Juízo Final (civ. dei, xVIII, 54).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 157


MáRcIA SANTOS LEMOS

mundo e diante dele. Neste sentido, a conversão ao cristianismo não trazia


uma mudança generalizada na vida do novo iel, mas exigia um alto nível
de lealdade que, observado com rigor, representava ausentar-se dos cultos
públicos tradicionais e romper com os laços entre a identidade cívica e a
religiosa no Império Romano. os cônsules, por exemplo, como magistrados,
faziam os votos anuais a Júpiter optimus maximus todo dia 1o de janeiro,
enquanto os edis, magistrados inferiores responsáveis por edifícios públicos
e mercados, presidiam durante os ludi romani (RIVES, 2000, p. 254-5).
Na Grécia clássica, os banquetes realizados em honra a um deus
celebravam a concidadania; a prática ritual reforçava o modelo da sociedade;
e as diversas atividades da pólis estavam vinculadas aos cultos (BURKERT,
1993, p. 478-96). No mundo romano, em que prevalecia um sistema religioso
profundamente imbricado com as práticas políticas e com a vida cívica, o
secular e o sagrado não ocupavam espaços separados,6 conforme enuncia
Scheid (1989, p. 61):

Tanto nos enunciados cultuais como na relexão ilosóica, os romanos conce-


bem a cidade ou, num plano subordinado, qualquer comunidade civilizada,
como o local onde os deuses e os homens coabitam, hic et nunc. os deuses
participam com os homens na vida comunitária e visam, em certo sentido como
os magistrados, ao bem comum. Segundo a tradição romana, essa coabitação
remonta às origens da cidade, e a religião é o conjunto das relações que a ci-
dade (ou uma dada comunidade) mantém e deve manter com os seus deuses:
essas relações materiais são aquilo a que se chama o culto dos deuses (cultus
deorum), expressão que, para os romanos, traduzia não só as homenagens que
eram devidas a esses “concidadãos” muito poderosos, em virtude da sua supre-
macia e em troca dos seus favores, mas também ao diálogo regular com eles.

6
“É sacer “tudo que é considerado propriedade dos deuses” (Macróbio, saturnais, III, 3, 2, segundo o jurista
Trebácio, contemporâneo de Cícero). o que signiica que é “o que foi dedicado e consagrado aos deuses”
(Festo, da signiicação das palavras, p. 424, edição Lindsay, segundo o jurista Élio Galo, contemporâneo de
Cícero). o sagrado não é, propriamente falando, uma qualidade divina que se constata num ser ou numa
coisa, mas uma qualidade que os homens ali colocam. [...] o sagrado não é “uma força mágica” que se
coloca num objeto, mas simplesmente uma qualidade jurídica que este objeto possui. […] A consagração,
em nível dos cultos públicos, pode ser efetuada somente pelos magistrados ou por pessoas que foram
encarregadas disto por uma lei. De fato, no culto público somente eram sagrados os edifícios ou objetos
consagrados pelos magistrados supremos ou por aqueles que a assembleia do povo elegia para fazer em
seu nome” (SCHEID, 1998, p. 2).

158 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


O DIScURSO AGOSTINIANO EM a cidade de deus: A cONSTRUçÃO DE UMA FRONTEIRA ENTRE cRISTÃOS E PAGÃOS

Na língua grega, nem mesmo havia uma palavra cujo campo semântico
fosse equivalente ao termo religião. A que mais se aproximava era eusèbeia,
deinida como os cuidados (therapeia) devidos aos deuses (VEGETTI, 1994,
p. 232). Durante muito tempo, os latinos também não tiveram um termo para
designar a religião. A palavra religio sofreu muitas variações no decorrer da
história,7 até assumir o signiicado de “verdadeira religião”, no cristianismo.
Por fim, para gregos e romanos pagãos, conforme Vegetti (1994,
p. 232), “a religiosidade consistia na observância pontual dos ritos cultuais
que exprimiam o respeito, a veneração e a deferência dos homens pela
divindade.” Não havia um profeta fundador e muito menos o monopólio
do sagrado por um grupo ixo de intérpretes especializados. o espaço do
secular se confundia com o do sagrado, e este não era identiicado com uma
religião, como explica Nola (1987, p. 109):

[...] as formas do sagrado, isto é, os mitos, os rituais, as organizações sacerdo-


tais estão tão substancialmente inseridas no cotidiano, que alguns estudiosos
preferem não as isolar, mas, examiná-las, pelo contrário, como componentes
funcionais de um único quadro, que é a atitude perante o mundo e a interpre-
tação existencial deste. Não acontece, porém, que em tais sociedades não se
sinta a diversidade entre o momento do laico-profano e o momento do sacro.
[…] Mas, mesmo estando as duas dimensões separadas, continua a haver en-
tre elas a pulsão de uma dialética uniicante que se manifesta como histórica
do grupo e do homem. o mundo do sagrado e da religião não explode como
esfera autônoma, insigniicante do ponto de vista laico, estranha à realidade
que, na nossa linguagem se chamaria racional, mas exprime-se e manifesta-se
precisamente nessa realidade, na relação contínua que a justiica e a explica.

7
“os antigos se referem a duas etimologias diferentes para exprimir o que eles entendem por este termo
sempre perigoso ao traduzir. Eles tanto relacionam a religare (“ligar”) como a relegere (“retomar”, “controlar”;
“zelo religioso”). No primeiro caso, eles sublinham os elos entre homens e deuses, no segundo, o zelo
da observância. A religião como comunidade com os deuses e a religião como sistema de obrigações
induzido por esta comunidade, tais são os dois aspectos principais que os romanos revelam por trás do
termo religio, um sendo como corolário do outro. Em todo caso, religio, não designa o elo sentimental,
direto e pessoal do indivíduo com uma divindade, mas um conjunto de regras formais e objetivas legadas
pela tradição. É no quadro destas regras tradicionais e desta ‘etiqueta’ que o indivíduo entra em relação
com os deuses” (SCHEID, 1998, p. 2).

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 159


MáRcIA SANTOS LEMOS

Essa forma de viver a religião e esse imbricamento entre o sagrado e


o secular impôs muitas incertezas aos recém-convertidos ao cristianismo,
como ressalta Markus (1997, p. 18):

[...] Poder-se-ia sugerir que é apenas sua religião anterior, e não sua maneira de
vida, a que o convertido precisaria renunciar. Mas onde essa religião termina,
e sua maneira de vida, seus costumes “seculares” ou “cultura” começam? quais
são as fronteiras do cristianismo, parte de sua substância essencial? O que,
minimamente, fará de um convertido um cristão?

A Igreja cristã não teve dúvidas. Era preciso monopolizar o sagrado,


identiicá-lo com o cristianismo, desautorizar quaisquer outras manifestações
cultuais fora dos seus limites e empreender uma conversão que alcançasse os
variados aspectos da cultura. os intelectuais da Igreja combatiam todos os
hábitos considerados incompatíveis com a doutrina. Em teoria, um gentio,
ao adotar a fé cristã, deveria abdicar dos antigos costumes, herdados de seus
ancestrais, e orientar-se para a cidadania celeste. o fato é que a religião cristã
sugeria normas de conduta, tanto no âmbito privado quanto no público,
porque converter-se ao cristianismo era muito mais do que frequentar os
cultos e ter uma bíblia; implicava na obediência a novos padrões culturais.
quando o Estado romano uniu-se à Igreja, o poder imperial tornou-se a
imagem da monarquia divina e as sagradas escrituras, ao lado do direito
romano, tornaram-se a lei.
Assim, no século V, a construção de uma fronteira entre o pagão e o
cristão comportava uma relação dialética indissolúvel e necessária, pois a
identidade depende de uma diferenciação tanto quanto de uma identiicação,
conforme enuncia Todorov (2003, p. 3):

Podem-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma


substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo;
eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu.
Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou só aqui,
pode realmente separá-los e distingui-los de mim. Posso conceber os outros
como uma abstração, como uma instância da coniguração psíquica de todo
indivíduo, como o outro, outro ou outrem em relação a mim. ou então como
um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos.

160 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


O DIScURSO AGOSTINIANO EM a cidade de deus: A cONSTRUçÃO DE UMA FRONTEIRA ENTRE cRISTÃOS E PAGÃOS

Para Bourdieu (2001, p. 114-5), a fronteira nunca é natural, ela é sempre


produto de um discurso elaborado dentro de determinado campo a partir
de uma relação de força. No caso das regiões, a fronteira é o produto do ato
jurídico de delimitação que considera inúmeros fatores. Em se tratando da
separação entre dois grupos que vivem dentro da mesma sociedade, como os
cristãos e os pagãos no Império Romano do século V, a fronteira é produto
do trabalho de diferenciação fomentado, inicialmente, pelo discurso dos
eruditos da Igreja cristã.
Markus (1997, p. 29), referindo-se ao mundo antigo, airma que a
história religiosa da Europa ocidental, entre 380 e 430, vivenciou grandes
debates entre pagãos e cristãos, bem como dentro do próprio grupo
cristão; mas todos eles, de uma forma ou de outra, giravam em torno de
um problema: o que é ser cristão? Uma pergunta muito pertinente para
um tempo em que eram variadas as implicâncias de uma conversão ao
cristianismo. Paulatinamente, as respostas foram sendo formuladas pelos
doutores da Igreja e pela própria comunidade cristã:

[...] Ser cristão signiicava ser membro de um grupo que se estendia através
do abismo que dividia o céu e a terra. Agostinho fazia eco a essa convicção
universal ao dizer que “essa Igreja que agora está em viagem, está unida com
a Igreja celeste onde temos os anjos como nossos concidadãos”, pois “todos
somos membros de um só Corpo, quer estejamos aqui ou em qualquer outro
tempo, do justo Abel até o im do mundo” (MARKUS, 1997, p. 32).

o cristão era, sem dúvida, o cidadão celeste, o oposto do pagão, cidadão


da “cidade terrena”. Todavia, como ressalta Markus (1997, p. 38), a imagem
de uma sociedade nitidamente dividida entre cristãos e pagãos foi uma
criação dos clérigos no inal do século IV, que acabou sendo apressadamente
absorvida em seu valor aparente pelos historiadores modernos.
De fato, a cristianização da sociedade romana impôs a necessidade
de deinir uma identidade para o cristão, separá-lo do “outro”, do suposto
ímpio; contudo, esse objetivo encontrou limitações para se concretizar.
os clérigos acreditavam que a conversão acelerada de muitos “gentios”
havia conduzido à Igreja indivíduos absolutamente descrentes, ou melhor,
sem a vocação cristã:

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 161


MáRcIA SANTOS LEMOS

Se uma grande dor me prostra, é a dor de ver cristãos, meus irmãos, entrarem
na igreja só com os corpos, deixando os corações lá fora […] Tudo deve vir
para dentro da igreja, corpo e alma; por que deve o corpo, que é visto pelos
homens, icar dentro, enquanto se deixa fora o que é visto por Deus? […]
Nós pregamos, com efeito, contra os ídolos: é de seus corações que queremos
desenraizá-los (Agostinho, sermão 62).

Era preciso investir em um processo de conversão profunda; daí, a


necessidade de criar um modelo de comportamento cristão com valores
sociais correspondentes, que fornecesse parâmetro para os iéis e unidade
para o grupo. Cristãos e pagãos no século V, conforme já dito anteriormente,
partilhavam espaços, gostos, categorias sociais, empregos, cargos públicos,
dentre outras coisas. Contudo, havia uma fronteira em construção, elaborada
tanto no cotidiano quanto em formulações teóricas como essa de Agostinho
de Hipona (a cidade de deus, xIx, 19):

Claro que não têm importância para esta Cidade, desde que se professe a fé
que conduz a Deus, os hábitos ou costumes de cada um, contanto que não
sejam contrários aos preceitos divinos. Aos próprios ilósofos, não impõe ela,
quando eles se tornam cristãos, que mudem as maneiras de se comportarem
e de viverem se elas não forem contrárias à religião, mas apenas lhes impõe
que renunciem às falsas doutrinas.

outro aspecto importante no processo de construção identitária é


a elaboração de uma memória coletiva, pois ela produz elementos de
aproximação entre os indivíduos e forja um sentimento de unidade. Le Gof
(2003, p. 470) defende que a memória coletiva, sobretudo quando escrita,
constitui um instrumento de poder, um meio de dominar a tradição, de
selecionar o que deve ser recordado. Acreditamos que esta não é uma tarefa
inconsciente, pelo contrário, nas sociedades que conhecem um sistema de
escrita, cabe aos intelectuais institucionalizarem as recordações e divulgá-las
por meio da narrativa histórica.
Assim o fez a Igreja cristã. A memória coletiva da comunidade cristã foi
elaborada a partir das memórias individuais. Foram selecionados os fatos
considerados relevantes para a história do cristianismo e estes ganharam uma

162 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


O DIScURSO AGOSTINIANO EM a cidade de deus: A cONSTRUçÃO DE UMA FRONTEIRA ENTRE cRISTÃOS E PAGÃOS

sistematização de forma a modelar a autoimagem do grupo. A organização


dos acontecimentos esparsos que marcaram a trajetória dos cristãos foi uma
tarefa desenvolvida pelos intelectuais da Igreja:

Embora a sorte da nação cristã não pudesse ser acomodada dentro das histórias
convencionais, a história do crescimento da Igreja e sua relação com o governo
imperial foi incluída no novo gênero, a história eclesiástica, estabelecido por
Eusébio. Sua proposta era reforçar a identidade da Igreja, delinear suas relações
com fatores externos e estabelecer uma linhagem de ortodoxia para assinalar
as fronteiras da doutrina (cROKE; EMMETT, 1983, p. 5-6).

Para garantir a existência de uma memória comum a todos os


cristãos, foi essencial a atuação dos historiadores eclesiásticos. Eusébio de
cesareia, considerado o precursor do gênero, fez correções no trabalho
dos cronologistas que o antecederam, utilizou fontes variadas e uma
documentação a que os historiadores pagãos ainda não tinham recorrido.
Na sua História eclesiástica, foram relatados os episódios das perseguições,
do sofrimento inligido aos mártires, dos imperadores ímpios, dos concílios
até a época de constantino, quando o cristianismo foi transformado numa
religião lícita. Esta obra tornou-se canônica e modelo para os demais clérigos
historiadores, os quais proclamaram a identidade cristã dos séculos IV, V e
VI, construída a partir da Igreja perseguida dos três primeiros:

Ler Eusébio e as traduções e continuações de sua História eclesiástica foram


então uma forma dos cristãos posteriores poderem se convencer de que eram
os verdadeiros descendentes dos mártires. Essa forma estava disponível aos que
sabiam ler, e era seguida amplamente no meio das classes altas eruditas. Havia
uma alternativa que gozava de atração bem mais ampla: o culto dos mártires.
Há muito tempo honrados na Igreja [...]. O mártir era a imagem humana da
perfeição, modelo a ser seguido. Ser perseguido por causa do Senhor era o
sinete do cristão genuíno (MARKUS, 1997, p. 100).

Dentre os eruditos que trabalharam para efetivar o projeto cristão na


Antiguidade Tardia, está Agostinho, um experiente bispo da igreja do norte
da áfrica, cuja obra escrita é um dos testemunhos mais signiicativos sobre

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 163


MáRcIA SANTOS LEMOS

os acontecimentos que marcaram o cristianismo e o Império Romano nos


séculos IV e V. A invasão da Itália e o saque de Roma pelos godos, no ano
de 410, tiveram enorme repercussão na produção do bispo. A “cidade
Eterna” representava a perenidade do Império e a romanitas, o ideal de
civilização. Para além de romper com o ideal que Roma simbolizava, a
invasão evidenciara tanto a fragilidade do Império quanto a fragilidade do
processo de conversão ao cristianismo.
A violência dos visigodos tornou mais tensa a relação entre cristãos
e pagãos. Estes últimos atribuíram a derrota romana ao abandono dos
seus deuses tutelares em favor do cristianismo. Os pagãos encontraram no
credo oicial o fator responsável pela humilhação sofrida frente àqueles que
consideravam bárbaros e inferiores. As acusações vieram de ambos os lados:
discutia-se cotidianamente, e a querela resultou num amplo debate intelectual
e na produção de uma importante literatura acerca da matéria. o bispo de
Hipona transformou o conjunto de ideias que desenvolveu para defender a fé
cristã numa obra, de civitate dei contra paganos, ou simplesmente, a cidade
de deus, escrita em latim, entre 413 e 426, composta de vinte e dois livros.
De acordo com Ladrière (1977, p. 185), a linguagem da fé expressa
acontecimentos, compromissos e uma referência escatológica por meio de
signos. A fé não é apenas uma atitude interior; comporta representações,
porque anuncia a palavra salvíica que parece ser absolutamente real para
o crente. Nesta perspectiva, recorremos às premissas de Todorov sobre
as categorias da narrativa literária para começar a compreender como
Agostinho organizou o seu discurso em a cidade de deus e, a partir deste,
formulou uma fronteira entre cristãos e pagãos. Segundo o formalista russo,
a obra literária possui dois aspectos:

[...] ela é ao mesmo tempo uma história e um discurso. Ela é história, no sen-
tido em que evoca uma certa realidade [...]. Mas a obra é ao mesmo tempo
discurso: existe um narrador que relata a história; há diante dele um leitor que
a percebe. Neste nível, não são os acontecimentos relatados que contam, mas a
maneira pela qual o narrador nos faz conhecê-los (ToDoRoV, 2009, p. 220-1).

Para Todorov (2009, p. 241), são três os elementos a serem observados:


“o tempo da narrativa”, no qual aparece a relação entre o tempo da história e o

164 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


O DIScURSO AGOSTINIANO EM a cidade de deus: A cONSTRUçÃO DE UMA FRONTEIRA ENTRE cRISTÃOS E PAGÃOS

do discurso; “os aspectos da narrativa”, ou a forma como o narrador percebe a


história; e “os modos da narrativa”, que dependem do tipo de discurso usado
pelo narrador para fazer conhecer a história.
Na história, o tempo é pluridimensional, vários fatos podem se
desenrolar de modo simultâneo. O narrador, em função dos seus objetivos,
ou com ins meramente estéticos, recorre à deformação temporal, ou seja,
cria uma sequência para os acontecimentos da narrativa, combinando frases,
imagens e ações num jogo de encadeamento, alternância ou encaixamento
das diversas histórias (ToDoRoV, 2009, p. 232-4). o princípio da
deformação temporal foi um recurso muito usado por Agostinho em
a cidade de deus. Ele partiu de sua própria época para elaborar os argumentos
em defesa da religião oicial, selecionou vários episódios da história dos
romanos e da história cristã e os ordenou dentro do texto, intercalando-os
em conformidade com seus interesses.
quanto aos aspectos da narrativa, observamos que Agostinho
desenvolveu uma maneira de abordar os fatos e transmitir as suas impressões
ao leitor, própria dos apologistas. o envolvimento afetivo do autor se expressa
nos fatos históricos e míticos que foram manipulados a serviço de uma
história que pretendia difundir valores cristãos e obliterar as práticas pagãs.
os modos da narrativa referem-se à forma como o narrador faz sua
exposição. Em a cidade de deus há um predomínio da narração direta, mas
em muitas oportunidades Agostinho deu voz a outros autores, no intuito de
reforçar as imagens que desejava construir. Nesse exemplo, o bispo usou as
palavras do historiador Salústio para representar negativamente as práticas
de guerra dos romanos:

Como escreve Salústio, historiador de notável idelidade, [...] fez notar esse
costume ao expor perante ao Senado o seu parecer sobre os conjurados:
“Donzelas e jovens são raptados; meninos são arrancados dos braços dos
pais; mães sofrendo os caprichos dos vencedores; templos e casas saqueados;
praticam-se morticínios e incêndios. Finalmente, armas, cadáveres, sangue e
lamentos por toda parte” (civ. dei, I, 5).

Nos dez primeiros livros de sua obra, o bispo censurou rigorosamente os


pagãos, seus deuses, ritos e hábitos de guerra, seus poetas, os jogos cênicos,

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 165


MáRcIA SANTOS LEMOS

a astrologia e as adivinhações. Apresentou os males que aligiram Roma


antes de cristo e buscou convencer que o cristianismo era a verdadeira
religião; Deus era onipotente, onipresente, onisciente e único; cristo era o
único mediador entre Deus e os homens; os cristãos eram cidadãos celestes,
absolutamente diferentes dos pagãos; e, a “cidade do mundo” deveria viver
em concórdia para aproximar-se do ideal da “cidade celeste”. Essas são as
linhas gerais do seu discurso, as quais tomamos como objeto de análise.8
Todos os argumentos usados na construção de a cidade de deus foram
gerados a partir da censura ao paganismo e da apologia ao cristianismo. Há
um forte investimento tímico (emocional) na narrativa que opõe o pagão ao
cristão; o primeiro é sempre disforizado e o segundo, euforizado.
No discurso agostiniano, os deuses pagãos são representados como
demônios nocivos, soberbos, invejosos, tiranos cruéis, imorais, propícios ao
crime, eivados de vícios, alheios à justiça, corruptores das almas humanas e
incapazes de proteger a humanidade e conduzi-la à imortalidade. São espíritos
imundos, iracundos, enganadores e egoístas, deleitam-se com obscenidades
e adultérios, não possuem lugares de reunião onde se reprimam a avareza, a
ambição e a luxúria. Ao construir essa imagem dos deuses pagãos, Agostinho
negava a necessidade dos cultos, dos sacrifícios, ou seja, de qualquer prática
religiosa cuja iniciativa tivesse por inalidade aplacar esses espíritos ou
deles algo conseguir (civ. dei, I, 31; II, 4, 6, 10, 24-26; III, 3, 20; IV, 13; VI,
1, 8; VII, 21, 24, 28; VIII, 22; Ix, 8). Há o claro objetivo de demonstrar que
os deuses não eram deuses, mas seres imperfeitos, condenados a viver na
“cidade terrestre” pela eternidade, dispostos a arrastar todos os homens para
compartilhar do seu im:

Foi nos dado a conhecer nas Escrituras Sagradas, e os próprios fatos o indicam
suicientemente, que esses deuses são demônios que tratam dos seus negócios
para serem tidos e venerados como deuses e serem obsequiados com ritos
que tornam cúmplices os seus adoradores para que tenha com eles o mesmo
péssimo veredicto no juízo de Deus (civ. dei, II, 24).

8
Para auxiliar na compreensão da estrutura interna do texto agostiniano usamos os pressupostos da leitura
isotópica, concebida no âmbito da semiótica narrativa e textual.

166 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


O DIScURSO AGOSTINIANO EM a cidade de deus: A cONSTRUçÃO DE UMA FRONTEIRA ENTRE cRISTÃOS E PAGÃOS

Já o Deus cristão é o único e verdadeiro, criador de tudo, justo, onipotente,


onisciente, onipresente e misericordioso. Por amor à humanidade, entregou
seu unigênito para sacriicar-se por ela e fez do Cristo o mediador entre ele
e os homens; é o chefe supremo da “cidade celeste”, onde é possível a vida
eterna (civ. dei, II, 18-19, 28-29; III, 9, 12; IV, 1, 12; V, 9, 11; VI, 8; VII, 12,
31; VIII, 4, 19, 27; x, 25). Nos templos cristãos, ao contrário dos pagãos,
Agostinho expõe a imagem de uma casta assembleia, com separação de sexos,
na qual se aprendia a viver virtuosamente conforme as sagradas escrituras
e nada de vergonhoso ou vicioso era proposto ou imitado (civ. dei, II, 28).
o bispo de Hipona tem por objetivo airmar o cristianismo como o
único meio para alcançar a eterna felicidade e a forma de vida cristã como
a única perfeita e capaz de conduzir o homem à “cidade do alto”. Para
atingir esse propósito, ele parte da negação do “outro”; refuta, censura e
desconstrói o modo de vida dos pagãos. Essa é uma atitude típica dos padres
apologistas desde o século II d.C.: “limpar o terreno das ervas daninhas
para torná-lo propício ao plantio;”9 ou seja, mostrar como as crenças pagãs
eram improfícuas, a im de substituí-las com maior facilidade pela fé cristã:

que insensatez, ou melhor, que demência pode submeter-nos por qualquer


motivo religioso, aos demônios, quando pela verdadeira religião nos libertamos
da perversidade que nos torna semelhantes a eles? Ao passo que, na verdade,
os demônios estão sujeitos à cólera [...], a verdadeira religião prescreve-nos que
não cedamos à cólera, mas, pelo contrário, que lhe resistamos; ao passo que os
demônios se deixam subornar com presentes – a verdadeira religião impõe-nos
que a ninguém favoreçamos em paga dos presentes recebidos; ao passo que os
demônios icam lisonjeados com as honras – a verdadeira religião preceitua
que de modo nenhum nos deixemos mover; ao passo que os demônios odeiam
certos homens e amam outros, não por um juízo reletido e sereno, mas, [...]
por um movimento apaixonado da alma – a verdadeira religião ordena-nos
que amemos os próprios inimigos; em suma – todos esses movimentos do co-
ração, todas essas agitações do espírito, todas estas turbulentas tempestades da
alma que, segundo Apuleio, inlamam e arrastam os demônios – a verdadeira
religião impõe-nos que as dominemos (civ. dei, VIII, 17).

9
Cf. padres apologistas, 1995.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 167


MáRcIA SANTOS LEMOS

Agostinho busca forjar uma clara diferenciação entre os valores que


devem orientar a vida de um cristão, a conduta própria de um seguidor de
cristo, e as práticas dos pagãos e dos seus deuses. Ele ixa a perversidade, a
cólera, a corrupção, o ódio e as paixões como vícios a serem combatidos, pois
ao cristão cabe a bondade, o amor ao próximo, a busca pela glória eterna e
a retidão de caráter.
As práticas de guerra também constituíram um objeto do discurso
agostiniano. o bispo narrou o incêndio de ílion, a destruição de Cartago,
as sedições dos Graco e as guerras civis do tempo de Mário e Sila com o
propósito de demonstrar que, no mundo romano pagão, a guerra estava
marcada pela violência extrema, a ambição, a carniicina e a destruição
dos templos. Recontar a história das guerras romanas foi uma estratégia
utilizada para representar a ineicácia dos deuses tutelares diante das alições
humanas e um meio para convencer os não-cristãos a descartá-los em favor
do cristianismo, mais uma vez valorado positivamente (civ. dei, I, 1-2, 7,
34, 30; II, 24-25; III, 7, 10, 28-29; IV, 6; V, 27-28). Ainda com este objetivo,
Agostinho fez menção ao comportamento dos godos na invasão de Roma,
em 410, e airmou que as vidas preservadas, a renúncia ao desejo de fazer
cativos e o respeito aos templos cristãos devia-se ao “amor de Cristo”:

o que primeiro me ocorreu é que devia responder aos que atribuem à religião
cristã todas essas guerras que estão esfacelando o mundo e principalmente a
recente devastação da Urbe romana pelos bárbaros, isto porque foi proibido
por esta religião servir aos demônios com nefandos sacrifícios. Pois deviam
antes prestar honras a Cristo, já que foi por causa do seu nome e contra os
estabelecidos costumes de guerra que os bárbaros lhes ofereceram, para a sua
liberdade, os mais espaçosos lugares para lá procurarem asilo. E para muitos o
fato de se declararem servidores de Cristo, sinceros e hipocritamente, impelidos
pelo medo, foi de tal modo respeitado que até julgaram proibido o que por
direito de guerra lhes era permitido (civ. dei, II, 2).

Agostinho conseguiu articular com perícia os argumentos necessários


para disforizar tanto as práticas religiosas do paganismo quanto as bélicas.
A guerra, para a Providência Divina, era um meio para puriicar e castigar
os costumes corrompidos dos homens e “separar o joio do trigo”; para os

168 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


O DIScURSO AGOSTINIANO EM a cidade de deus: A cONSTRUçÃO DE UMA FRONTEIRA ENTRE cRISTÃOS E PAGÃOS

pagãos, um meio para alcançar a glória terrena, obter riqueza, poder e


prestígio. Ao refutar determinadas práticas pagãs, o bispo esboça o peril do
cidadão celeste e deine uma ética especíica para os cristãos.
o discurso agostiniano afirma o sagrado e o secular como pares
complementares e reforça a nossa compreensão de que a cidade de deus
contém uma proposta de reordenação da sociedade romana, que implica a
construção de uma fronteira, em condenar as tradições pagãs, consideradas
ilícitas pela doutrina cristã. Não é gratuita a quantidade de páginas que o
bispo ocupou para tratar dos costumes pagãos nem os termos que escolheu
para referir-se a eles:

Também nós, quando éramos adolescentes, vínhamos outrora a esses espetáculos


ridículos e sacrílegos; víamos os arrebatamentos, ouvíamos os flautistas;
deleitávamo-nos com as obscenas representações que se exibiam em honra dos
deuses e das deusas, da Virgem Celeste e Berecíntia, mãe de todos. No dia solene
da sua puriicação, junto da sua liteira, eram cantaroladas perante o público, pelos
mais vis comediantes, coisas tais que de as ouvir se envergonharia, já não digo
a mãe dos deuses, mas a mãe de qualquer dos senadores ou homens de bem, e
até a mãe desses palhaços. É que a vergonha humana que qualquer um deve aos
seus pais, nem a própria depravação pode apagar. Todavia tal espetáculo, torpe
de palavras e de atos obscenos, que os atores teriam vergonha de ensaiar em sua
casa diante de suas mães, representavam-no eles em público diante da mãe dos
deuses e na presença de enorme multidão de ambos os sexos que o estava a ver
e a ouvir.
[...] Se aquilo é sagrado – que será um sacrílego? Se aquilo é puriicação –que será
inquinação? E a isto chamavam fércula como se celebrassem um banquete em que
os demônios imundos se fartassem com iguarias suas. quem não se aperceberá
de que categoria eram os espíritos que se deleitavam com tais obscenidades? Só
quem ignora por completo a existência de espíritos imundos que com o nome
de Deus nos enganam ou quem leva uma vida tal que preira ao verdadeiro Deus
tê-los a eles por propícios, ou os receie quando irados (civ. dei, II, 4).

o teatro é caracterizado como sacrílego, obsceno, vergonhoso e


depravado (civ. dei, I, 32; II, 14; VI, 6); os poetas são apresentados como a
escória da humanidade, impudicos e mentirosos (civ. dei, II, 8, 12; VII, 18);

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 169


MáRcIA SANTOS LEMOS

os comediantes são vis; os jogos são impuros; os banquetes são sacrifícios


homicidas (civ. dei, III, 18; VII, 27); as práticas divinatórias e a astrologia
são falsas opiniões que devem ser castigadas e extirpadas (civ. dei, V, 7;
x, 9, 16). Ou seja, o Império Romano, segundo o próprio Agostinho, seria
“um estado de altas muralhas e baixos costumes” (civ. dei, I, 33). Daí a
necessidade evidente de pautar novos valores para orientar a vida dos cristãos
dentro deste mundo. Os argumentos usados pelo bispo de Hipona revelam a
construção de uma identidade para o cristão pela negação de toda e qualquer
prática que o aproxime do pagão:

Incomparavelmente mais gloriosa é a cidade do Alto, onde a vitória é a ver-


dade, onde a dignidade é a santidade, onde a paz é a felicidade, onde a vida é
a eternidade. Se te envergonhas de teres tais homens na tua sociedade, muito
menos terá ela tais deuses na sua. Se, portanto, deseja chegar à cidade bem-
-aventurada, evita a sociedade dos demônios. É indigno que sejam venerados
por gente honesta aqueles que são aplacados por gente desprezível. Sejam, pois,
afastados da tua piedade pela puriicação cristã (civ. dei, II, 29).

Nesta perspectiva, aquele que deseja tornar-se um cidadão celeste


precisa abandonar qualquer hábito próprio dos romanos pagãos – “evita a
sociedade dos demônios” – que o afaste da “cidade do alto”. Esta condição,
inevitavelmente, cria elementos de inclusão e exclusão no grupo cristão.
o discurso de Agostinho sobre o comportamento das mulheres diante do
estupro expressa esse processo de diferenciação. As imagens fornecidas
pela narrativa do bispo informam sobre dois tipos de reação: a amargura,
o suicídio e a debilidade da vergonha representam a conduta das pagãs; a
santidade espiritual, o amor à castidade, a pudicícia e a fé representam a
conduta das cristãs. Pois bem, o valor que estrutura os argumentos do bispo
é o da reprovação da conduta pagã:

Dissemos que, quando há violência corporal sem que haja mudado para o mal,
no mais íntimo, a resolução de manter a castidade, a torpeza recai somente sobre
quem satisfaz a paixão carnal e nunca sobre quem caiu, contra sua vontade, sob
a violência carnal. ousarão contradizer isto aqueles contra os quais defendemos,
não só a santidade espiritual mas também a santidade corporal das mulheres

170 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


O DIScURSO AGOSTINIANO EM a cidade de deus: A cONSTRUçÃO DE UMA FRONTEIRA ENTRE cRISTÃOS E PAGÃOS

cristãs violadas no cativeiro? Tecem altos louvores à pudicícia de Lucrécia, no-


bre matrona da velha Roma. O ilho do rei Tarquínio cevou a sua lascívia com
violência no corpo dela. Ela relatou este crime do devasso jovem a seu marido
Colatino e a Bruto, seu parente, varões de estirpe e coragem das mais elevadas,
fazendo com que eles lhe prometessem vingança. Em seguida, amargurada pela
ofensa contra si cometida e não podendo suportar, pôs termo à vida.
[...] Certamente que não tereis argumentos para a defender perante os juízes
dos infernos, mesmo que estes sejam como os cantam os vossos poetas nos seus
poemas. Com certeza que ela se encontrará entre aqueles “que, sendo inocentes,
com suas próprias mãos se mataram e exaltaram suas vidas renegando a luz”
e, quando pretenda voltar à terra, “os fados obstam a isto e o charco odioso
retém-na presa nas suas repugnantes águas”.
[...] Não procederam assim as mulheres cristãs que, apesar de terem suporta-
do situações semelhantes, continuam a viver. Não vingaram em si um crime
alheio, para não acrescentarem o seu aos crimes dos outros. […] No seu íntimo,
mantêm com certeza a glória da castidade e o testemunho da sua consciência.
Mantêm-na também perante o seu Deus e de nada mais precisam. Isto lhes
basta para procederem com retidão – não aconteça que, para evitarem a ferida
da suspeita humana, se desviem da autoridade e da lei divina (civ. dei, I, 19).

As mulheres pagãs cometem dois pecados graves: adultério e suicídio.


As cristãs, mesmo submetidas ao estupro, não cometeriam as mesmas faltas
que uma pagã, pois a fé garantiria a castidade dos seus pensamentos e o
temor de perder a eternidade celeste lhes impediria de praticar qualquer
crime contra as suas próprias vidas. observa-se que a narrativa investe numa
cruel classiicação, na oposição entre o “nós” e o “eles” para materializar uma
identidade religiosa que cria um comportamento ideal a partir da recusa
ao “outro”, recusa essa fundamentada no princípio da superioridade de
um grupo de pessoas que, neste caso, são consideradas “melhores” porque
escolheram cultuar um deus ao invés de muitos.

algumas considerações sobre o tema

Enim, quando Agostinho começou a escrever a cidade de deus, em


413, o cristianismo era a religião oicial do Império Romano. Mas, a eicácia

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 171


MáRcIA SANTOS LEMOS

do novo culto fora questionada pelos pagãos, principalmente, a partir dos


acontecimentos de 410. Os membros da comunidade cristã buscavam
airmar sua identidade e se defender das acusações pagãs, baseando-se no
estabelecido pelas sagradas escrituras. o imperador continuava exercendo
funções de sacerdote da Igreja; porém, as certezas do tempo constantiniano,
de que o Império Romano era a realização do reino celeste na terra, e o
imperador, o vigário de Cristo, foram abaladas pelos episódios protagonizados
pelos visigodos. Era fundamental, naquele momento, demonstrar que o
cristianismo era superior ao paganismo. Com este objetivo, o bispo de Hipona
escreveu a cidade de deus, na qual a história dos romanos é recontada sob
o prisma cristão.
As práticas sociais e as concepções religiosas pagãs, consideradas
inconciliáveis com a nova fé, foram disforizadas pelo bispo; ou seja, os
deuses, os ritos, os jogos, os banquetes, os hábitos de guerra, o teatro, os
poetas, a astrologia, foram valorados negativamente nas representações de
Agostinho. Ao mesmo tempo em que censurou alguns dos hábitos pagãos,
buscou evidenciar que as alições pelas quais Roma estava passando não
deveriam ser atribuídas ao cristianismo; elas deveriam ser tomadas como
resultantes da impiedade dos cidadãos romanos pagãos, da corrupção dos
seus costumes, da imoralidade de seus cultos e, principalmente, do não
reconhecimento de que a grandeza do Império era devida ao “único Deus”,
onipresente, onipotente e onisciente. Agostinho construiu, assim, o “outro” a
ser combatido. o não cristão era o “outro”, o “ímpio”, o “cidadão do mundo”,
aquele que não alcançaria a “cidade celeste”.
Pagãos e cristãos que viviam no Império Romano do século V
partilhavam, de modo geral, dos mesmos espaços; mas havia uma fronteira
que os separava. os primeiros, prestavam homenagens a vários deuses e,
na ótica agostiniana, eram cidadãos da “cidade terrestre”; já os cristãos, que
cultuavam apenas um Deus, eram considerados cidadãos da “cidade celeste”,
peregrinos na “cidade do mundo” em direção à “morada eterna”. o bispo
de Hipona forneceu importantes elementos para a airmação da identidade
cristã e a construção de uma fronteira: estabeleceu um limite entre o “nós”
e o “eles”; formalizou, por meio da escrita, as diferenças entre cristãos e
pagãos e procurou demonstrar que, apesar de viverem lado a lado, o pagão
era o “outro”.

172 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


O DIScURSO AGOSTINIANO EM a cidade de deus: A cONSTRUçÃO DE UMA FRONTEIRA ENTRE cRISTÃOS E PAGÃOS

Somaram-se a esse tipo de discurso tantos outros ao longo da história


da Igreja cristã. Para triunfar, segundo Brown (1997, p. 30), “religiões
organizadas em igrejas poderosas e no poder normalmente oprimem”.
A fronteira, ainda que artiicial, serviu não apenas para separar o “iel”
do “ímpio”, mas para justiicar a sobreposição do cristianismo aos demais
sistemas de crença com os quais ele se deparou, para legitimar o monopólio
do sagrado e o direito ao uso da violência, para constranger, julgar e punir
os supostos “desviantes”, da Roma antiga à “descoberta das Américas”, quiçá
no mundo contemporâneo.
os estudos de Alan Cameron (1977; 2013), no entanto, têm contestado
a ideia de um mundo romano rigidamente dividido entre cristãos e pagãos.
o autor questiona a existência de uma reação pagã no século IV –
supostamente presidida pelo senador Símaco – e airma que a aristocracia
culta não parece ter empreendido esforços para responder ao cristianismo
ou criado um círculo intelectual que excluía os cristãos. Nesta perspectiva,
observamos que as cisões são mais visíveis, dentro da Igreja, entre os
partidários de distintas correntes no processo de constituição da ortodoxia.
Portanto, ainda é preciso reletir sobre a repercussão das formulações de
Agostinho e outros eruditos do seu tempo no cotidiano das pessoas que
viveram no Império Romano da Antiguidade Tardia. a cidade de deus
foi lida em diversas partes do Império e inluenciou a produção de outras
narrativas, como a de Paulo orósio. Ainda assim, não se pode airmar que o
discurso agostiniano produziu novas práticas naquela sociedade, mas, sem
dúvida, foi fundamental àqueles que pretendiam tornar o cristianismo um
sistema hegemônico de interpretação do mundo.
No mais, parafraseando Bourdieu (2001, p. 17-8), espero não ter
apresentado um discurso defensivo e fechado em si mesmo, mas algumas
relexões abertas ao debate e às críticas, dado que a exposição de uma
pesquisa é sempre uma oportunidade ímpar para dialogar sobre o tema e
fugir ao silêncio do trabalho realizado, muitas vezes, de forma solitária.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 173


MáRcIA SANTOS LEMOS

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176 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


relaÇÕeS e DIStINÇÕeS DoS CoNCeItoS De GENS
e POPULUS e a CoNStruÇÃo De uma IDENTIDADE
NOBILIÁRQUICA Na HISPANIA VISIGoDa Na
aNtIGuIDaDe tarDIa (SéCuloS VI – VII)

Renan Frighetto

algumas deinições e conceitos

Identidade, ou identidades, eis um conceito que encontra-se em voga


nos estudos historiográicos atuais.1 Certamente que a busca contemporânea
por explicações relativas às origens mais remotas das identidades nacionais
europeias, buscadas com especial ainco pelos pensadores e historiadores
do século xIx, serviu de motor para várias análises que, em alguns
casos, redundaram em resultados muito tendenciosos e extremamente
inconclusivos.2 Certamente que no último terço do século xx e nos
primórdios do século xxI os historiadores retomaram tal discussão, mas
de uma forma menos apaixonada desde a perspectiva nacional, embora
na União Europeia as discussões sobre o nascimento da europa tenham
dominado o cenário científico e, de certa forma, reavivado questões

1
Citaremos, a título de exemplo, apenas dois livros recentes que tratam do tema das identidades,
FERNANDES, F. R. (Coord.). identidades e fronteiras no medievo ibérico. Curitiba: Juruá, 2012; CABALLoS
RUFINo, A.; LEFEBVRE, S. (Ed.) roma generadora de identidades: la experiencia hispana. Madrid: Casa
de Velázquez – Universidad de Sevilla, 2011.
2
Critica observada tanto por WooD, I. Barbarians, historians, and the construction of national identities.
Journal of late antiquity, Washington, 1,1, 2008, p. 61-81, do qual destacamos a passagem da p. 67, “[…]
from Walther Scott’s ivanhoe […]. And he also wrote in a popular format; many of his historical writings
initially appeared as journal articles, and they were set out as narratives, inspired by the historical iction
of Scott. As a result, the history of the barbarian invasions was changed from being a history of conquest,
enslavement, and a debate over privilege, to a history of class conlict […]”, como por DIAZ MARTINEZ,
P. C. Los godos como epopeya y la construcción de identidades en la historiografía española. anales de
Historia antigua, medieval y moderna. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 2008, p. 59. v. 40:
“[...] A comienzo de los años 80 del siglo xIx la obsesión de identiicar heroicos españoles ne la larga
historia peninsular había dejado exhaustos a los constructores de España, ya fuesen historiadores, poetas,
dramaturgos, novelistas o artistas plásticos[...]”, que seguem a mesma forma interpretativa sugerida por
GEARy, P. o mito das nações: a invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad, 2005, p. 28, “[…] os
Estados-nações de base étnica dos dias de hoje foram descritos como ‘comunidades imaginadas’, geradas
pelos esforços criativos dos intelectuais e políticos do século xIx, que transformaram antigas tradições
românticas e nacionalistas em programas políticos[...]”.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 177


RENAN FRIGHETTO

candentes e mais afetas aos problemas do mundo contemporâneo.3 A pari


passu desenvolveu-se, também, uma série de estudos voltados à análise
historiográica dos discursos identitários presentes nas fontes históricas das
antiguidades – Clássica, Helenística e Tardia – que trazem no seu bojo as
noções de fronteiras que vão desde as deinições geopolíticas até as distinções
sociais, econômicas e culturais.4
Partindo de uma perspectiva que está amparada, por um lado, na relação
existente entre os conceitos teóricos propostos pelo conjunto das fontes
históricas abordadas e, por outro, no pragmatismo inerente ao contexto
histórico analisado, inserimos nosso debate sobre os conceitos de gens/gentes
e populus/populorum apresentados pelas fontes hispano-visigodas de inais do
século VI e de todo o século VII. Estas nos levam a sugerir, como hipótese, que
ambos os conceitos, apoiados por uma legitimadora tradição greco-romana
vívida e apresentada no pensamento de autores como Isidoro de Sevilha,
Bráulio de Zaragoza e Juliano de Toledo,5 revelavam tanto a elaboração como
a construção de um modelo identitário que realçava e destacava o papel dos
elementos aristocráticos e nobiliárquicos como condutores e defensores do
regnum gothorum e do conjunto da sociedade hispano-visigoda, o populus
gothorum.6 Um pressuposto identitário que encontrava eco na tradição

3
Um estudo muito interessante sobre essa questão é o de GEARy, P. he crisis of European Identity. In:
NoBLE, T. F. (Ed.) from roman provinces to medieval kingdom. London-New york: Routdlege, 2006, p.
27-34; para CABALLoS RUFINo, A.; LEFEBVRE, S. (2011). Introducción, op. cit., p. 1, “La construcción
de Europa como proyecto vertebrador y solidario es resultado, no sólo de una voluntad política, sino de la
asunción de una dinámica histórica común. Aquí surge, como referente inexcusable, el mundo romano, en
el que las tendencias a la homogeneización organizativa, la adaptación a una cultura supraprovincial y el
mantenimiento de diferentes peculiaridades regionales fueron entre sí compatibles[…]”.
4
De forma especíica, vide FRIGHETTo, R. Identidade(s) e fronteira(s) na Hispania visigoda, segundo o
pensamento de Isidoro de Sevilha (século VII). In: FERNANDES, F. R. (Coord.). identidades e fronteiras
no medievo ibérico. Curitiba: Juruá, 2012, p. 91-126.
5
A título de exemplo, isid.,etym.,i,22,1: Vulgares notas ennius primus mile et centum invenit [...]; ix,3,4: [...]
Vnde et apud veteres tale erat proverbium: ‘rex eris, si recte facias: si non facias, non eris’ [...]; braul.,ep., (ad
emiliano) 25: [...] intumescat pelagus et hoc mare magnum uerticosam erigat ceruicem, penitus dissolvi nec
caribde ebibi nec latrantibus scilleis canibus deborari nec modulamine sirenarum resolui [...]; iul.tol.,ep. ad
mod.,2: [...] Hinc et caterua doctiorum multiplex, socras, acates, ferecides, ennius, focas, omerus, Varro,
cesar, symmachus vel caeterorum turba saecularium seu sint sophistae seu poetae carminum [...].
6
A relação entre o populus e o ambiente civilizacional romano, amparado no modelo sociopolítico da
ciuitas, é realçado por LE RoUx, P. Identités civiques, identités provinciales dans l’Empire Romain, in:
CABALLoS RUFINo, A.; LEFEBVRE, S. (2011), op. cit., p. 10-11, “[...] Les sources évoquées résument
une construction identitaire longue de deux siècles. Avec Auguste et la in des opérations militaires
traditionnelles, une relecture des données dans le contexte d’une réorganisation en trois provinces privilégia
déinitivement le modèle civilisé de la civitas et du populus [...]”.

178 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


RELAçõES E DISTINçõES DOS cONcEITOS DE gens E populus E A cONSTRUçÃO DE UMA
identidade nobiliárquica NA Hispania VISIGODA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SÉcULOS VI – vii)

ciceroniana7 e que associava, também, a ideia de pertencimento do indivíduo


a uma patria de duas formas, uma natural, relacionada ao ambiente provincial
conquistado pelos romanos, outra relativa à própria ciuitas.8 Assim, podemos
observar e constatar a efetiva preservação de ideias políticas, culturais e sociais
relacionadas ao passado romano e que foram transmitidas às monarquias
romano-bárbaras do Ocidente latino através das interpretações dos pensadores
cristãos, como Agostinho de Hipona, que deixaram uma marca indelével junto
aos pensadores daquele mundo tardo-antigo.9
Por certo que incluímos o reino hispano-visigodo de Toledo naquele re-
corte temporal denominado pela historiograia como a antiguidade tardia.10
Logo, vale dizer que seguimos as abordagens que defendem este período his-
tórico como uma fase marcada pelas transformações, mutações e readequações

7
cic.,de leg.,iii,2: Videtis igitur magistratus hanc esse uim, ut praesit praescribatque recta et utilia et coniuncta
cum legibus. Vt enim magistratibus leges, sic populo praesunt magistratus uereque dici potest, magistratum legem
esse loquentem, legem autem mutum magistratum; 4: [...] quod genus imperii primum ad homines iustissimos
et sapientissimos deferebatur [...]; 5: magistratibus igitur opus est, sine quorum prudentia ac diligentia esse
ciuitas non potest, quorumque descriptione omnis rei publicae moderatio continetur [...]; 6:[...] magistratus
nec oboedientem et noxium, ciuem multa uinculis uerberibusque coherceto [...].
8
cic.,de leg.,ii,5: [...] ego mehercule et illi et omnibus municipibus duas esse censeo patrias, unam naturae,
alteram civitatis [...].
9
Segundo BENoIST, S. Penser la limite: de la cité au territoire impérial. In: HEKSTER, o.; KAIZER, T. (Ed.)
frontiers in the roman World. Leiden-Boston: Brill, 2011, p. 31, “Débutons ce parcours des conceptions
impériales de la cité, de son territoire et des pouvoirs qui s’y exercent, du dernier siècle de la République,
fondateur des approches postérieures, aux Ve et VIe siècles de notre ère, par une première tentative de
déinition des limites, temporelles et spatiale de l’Vrbs, et de la signiication qu’il convient de leur donner. Des
antiquités divines de Varron (16, 231) à la cité de dieu d’Agustin (VII, 7) qui s’en est très largement nourrie,
la perception de l’approche romaine des dieux, du temps et de l’espace, par-delà la césure arbitraire de la
christianisation, s’avére structurante et confère à l’aventure impériale une profonde unité conceptuelle [...]”
; para isid.,etym.,Vi,7,3 : Horum tamen omnium studia augustinus ingenio vel scientia sui vicit. nam tanta
scripsit ut diebus ac noctibus non solum scribere libros eius quisquam, sed nec legere quidem occurrat; iul.tol.,
prog. fut. saec.,ii,2: legimus in beato augustino [...]; ii,3: [...] cum inter ceteros ambrosius, augustinus atque
gregorius tanti patriarchae [...]; iul.tol.,de compr.sex.aet.,i,4: [...] quod etiam et beatus augustinus exsequens
dicit: ‘ausi sunt’, inquit, ‘homines praesumere scientiam temporum, quod scire cupientibus discipulis dominus
ait: non est uestrum scire tempora, quae pater posuit in sua potestate, et deinierunt hoc saeculum sex annorum
millibus, tamquam sex diebus posse iniri [...]; iii,9,24: Haec beatus augustinus de annis breuibus Hebraeorum
unde nulla ratio redderetur, exposuit [...].
10
Sobre o conceito de Antiguidade Tardia alguns trabalhos destacam-se como os clássicos RIEGL, A. die
spätrömische Kunsindustrie nach den funden in Österreich-ungarn. Vien: K.K.Hof-und Staatsdrückeri, 1901;
BRoWN, P. o fim do mundo clássico de marco aurélio a maomé. Lisboa: Verbo, 1972; MARRoU, H. I.
decadência romana ou antiguidade tardia? Lisboa: Aster, 1979; CARRIÉ, J. M. & RoUSSELLE, A. l’empire
romain en mutation. des séveres à constantin 192-337. Paris : du Paris: Du Seuil, 1999, p. 9-25, ou estudos
recentes como os de WARD-PERKINS,B. la caída de roma y el in de la civilización. Madrid: Espasa Calpe,
2007; MARCoNE, A. A long Late Antiquity? Considerations on a controversial periodization. Journal of late
antiquity, Washington, v. 1/1, 2008, p. 4-19; e FRIGHETTo, R. a antigüidade tardia. roma e as monarquias
romano-bárbaras numa época de transformações (séculos ii-Viii). Curitiba: Juruá, 2012, p.19-33; e um estudo
especíico sobre a Hispania visigoda em FRIGHETTo, R. A Hispania visigoda (séculos VI-VII) e a Antiguidade
Tardia: algumas considerações. territórios e fronteiras, Cuiabá, n. 6, 6. Cuiabá: 2013, p. 63-96.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 179


RENAN FRIGHETTO

políticas, sociais e culturais ocorridas no âmbito do mundo greco-romano


entre os séculos II e VIII, limitando e reduzindo signiicativamente aquelas
perspectivas que apontavam, ou que ainda apontam a existência de uma crise
total da civilização romana, análises que conduzem ao trágico desapareci-
mento daquela no século V.11 Como recentemente apontou Gonzalo Bravo,
torna-se essencial que interpretemos o conceito de crise, até que ponto as
fontes históricas tardo-antigas dimensionam-na e mesmo deinem-na, sem
cometermos exageros e excessos positivos ou negativos que tal conceito com-
porta.12 Nesse sentido, parece-nos indubitável que problemas e instabilidades
sociopolíticas izeram parte do contexto tardo-antigo sem que os mesmos
provocassem decadência, ruína ou o im da civilização romana na medida
em que os regna romano-bárbaros que substituíram a autoridade imperial
romana nos territórios ocidentais podem ser considerados como substitu-
tos políticos e mantenedores institucionais das antigas estruturas políticas
imperiais romanas.13 ou seja, os reinos romano-bárbaros, estabelecidos nos

11
Para tanto, vide FRIGHETTo, R. a antiguidade tardia..., p.24 e ss.
12
Para BRAVo, G. ? Crisis del Imperio Romano? Desmontando un tópico historiográico. In: Vínculos de
Historia, Toledo, n. 2, 2013, p.14, “[...] algunas crisis de la Antigüedad Romana son más un producto
historiográico que una realidad histórica, propiamente dicha, aunque la idea de crisis ha trascendido a
menudo el ámbito historiográico convirtiéndose, de hecho, en un mero tópico, asumido de forma acrítica
generación tras generación [...]”, culminando com a airmação presente na p.17, “[...] Finalmente, el tercer
problema que plantea el tratamiento histórico de la crisis del Imperio es su materialización, si no incluso
su visualización, a la luz de los testimonios escritos y de cultura material de ese mismo periodo [...]”.
13
Segundo PoHL, W. Introduction: he Empire and the integration of barbarians. In: PoHL, W. (Ed.) Kingdoms
of the empire. he integration of barbarians in late antiquity. Leiden-New york-Köln: Brill, 1997, p. 4, “[...]
In a long process of ‘state-embedding’, the Empire had acquired a considerable sway over local communities.
In this sense, research on ‘imperium, gentes et regna’ has to deal with the ways in which the Empire and the
new kingdoms succeeded in involving people, in shaping their thoughts and their lives. From the beginning,
the Romans used their tremendous potential for integration to draw together countless cities, ethnic and
regional groups [...]”; na mesma linha de abordagem, CHRySoS, E. he Empire, the gentes and the regna. In:
GoETZ, H. W.; PoHL, W.; JARNUT, J. regna and gentes. he relationship between late antique and early
middle peoples and kingdoms in the transformation of the roman World. Leiden-Boston: Brill, 2003, p. 16: “[...]
Following this demand several forms of imitatio imperii were placed on the agenda. he court, the language,
public ceremonies involving the king, court rituals, his titles and dress, forms of distinct muniicence to the
people and many other expressions of power were imitating of Roman forms that were thought to safeguard
and support the position of the rex as dominus over his gens and the Roman population in his regnum
[...]”; Hydt.,chron.,a.453: [...] per fredericum heuderici regis fratrem bacaudae terraconensis caeduntur ex
autoritate romana; a.456: per augustum auitum fronto comes legatos mittitur ad sueuos. similiter et a rege
gothorum heuderico, quia idus romano esset imperio, legati ad eosdem mittuntur, ut tam secum quam cum
roman meri, quia uno essent pacis foedere copulati, iurati foederis promissa seruarent [...]; sid.ap.,epist.,i,2,1:
saepenumero postulauisti ut, quia heudorici regis gothorum commendat populis fama ciuilitatem, litteris tibi
formae suae quantitas, uitae qualitas signiicaretur [...]; 6: [...] quid multis? uideas ibi elegantiam graecam,
abundantiam gallicanam, celeritatem italam, publicam pompam, priuatam diligentiam, regiam disciplinam
[...]; ver também conc.ii Hisp.,a.619,c.1: [...] pro qua re placuit ut omnis parrochia quae ab antiqua ditione
ante militarem hostilitatem retinuisse ecclesiam suam conprobaret eius privilegio restitueretur [...].

180 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


RELAçõES E DISTINçõES DOS cONcEITOS DE gens E populus E A cONSTRUçÃO DE UMA
identidade nobiliárquica NA Hispania VISIGODA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SÉcULOS VI – vii)

territórios ocidentais a partir de 418 podem ser entendidos, numa dinâmica


estrutural, como verdadeiros restituidores tanto da ordem política imperial
como de seus mecanismos administrativos,14 aspectos que fariam dos regna
francos, burgúndio, ostrogodo, visigodo da aquitania e hispano-visigodo
mais herdeiros do passado imperial romano que propriamente criadores
de uma nova instituição política.15 Se levarmos em consideração a gama
do conjunto institucional existente nas monarquias romano-bárbaras que
abarcava os cargos e funções existentes tanto na administração régia como
na eclesiástica, sem esquecermos os corpora legislativos relacionados tanto ao
ambiente laico como ao eclesiástico, parecer-nos-á inquestionável constatar
que a renovação e a readequação, que implicavam em adaptações pontuais e
necessárias, foram as características mais signiicativas daqueles séculos de
trânsito e de preparação para o futuro medievo.16
Essa dinâmica, marcada pela relação tradição/renovação/readequação,
pode encontrar um interessante significado na ideia apresentada por
Isidoro de Sevilha de que o poder de império é próprio dos romanos,17

14
De acordo com sid.ap.,epist.,i,2,4: [...] reliquum mane regni administrandi cura sibi deputat. circumsistit
sellam comes armiger; pellitorum turba satellitum ne absit, admittitur, ne obstrepat, eliminatur, sicque pro foribus
immurmurat exclusa uelis, inclusa cancellis [...]. Hora est secunda : surgit e solio aut thesauris inspiciendis
uacaturus aut stabulis [...]; greg.tour.,Hf,ii,37,22 : [...] chlodovechus vero apud burdigalinsi urbe hiemem
agens, cunctos thesauros alarici a holosa auferens, ecolisnam venit. cui tantam dominus gratiam tribuit,
ut in eius contemplatione muri sponte corruerent. tunc, exclusis gothis, urbem suo dominio subiugavit. post
haec, patrata victuria, turonus est regressus multa sanctae basilicae beati martini munera oferens; isid.,Hg,51:
(leuuigildus) [...] aerarium quoque ac iscum primus iste auxit, primusque inter suos regali ueste opertus solio
resedit, nam ante eum et habitus et consessus communis ut genti, ita et regibus erat [...]; conc.ii Hisp.,a.619,c.1
: [...] consedentibus igitur nobis in secretario sacrosanctae ierusalem spalensis ecclesiae cum inlustribus viris
sisisclo rectore rerum publicarum atque suanilane rectore rerum iscalium[...].
15
Nesse sentido, isid.,Hg,35: (euricus) [...] sub hoc rege gothi legum instituta scriptis habere coeperunt, nam
antea tantum moribus et consuetudine tenebantur [...], certamente relacionadas com as apresentadas em
isid.,etym.,V,1,7: novae a constantino caesare coeperunt et reliquis succedentibus, erantque permixtae et
inordinatae. postea heodosius minor augustus ad similitudinem gregoriani et Hermogeniani codicem factum
constitutionum a constantini temporibus sub proprio cuiusque imperatoris titulo disposuit, quem a suo nomine
heodosianum vocavit; nessa mesma linha PoLH, W. Introduction: Strategies of distiction. In: PoHL, W.;
REIMITZ, H. (Ed.) strategies of distinction: he construction of ethnic communities, 300 – 800. Leiden-
Boston-Köln: Brill, 1998, p.1-2, “[...] But at a closer look, the new ethnic kingdom of the Franks, Goths or
Lombards had grown, and could only grow on Roman territory. hey were not ‘wandering states’ whose
alien forms of organization were transplanted to imperial territory [...]. he new forms of integration that
ethnic communities ofered, especially among the military, were shaped within the Roman world [...]”.
16
Um estudo interessante desde o ponto de vista legislativo é o de MATTHEWS, J. F. Interpreting the
interpretationes of the breviarium. In: MATHISEN, R. (Ed.) law, society and authority in late antiquity.
oxford: oxford University Press, 2001, p. 13-32.
17
isid.,etym.,ix,3,14: imperatorum autem nomen apud romanos eorum tantum prius fuit apud quos summa
rei militaris consisteret, et ideo imperatores dicti ab imperando exercitui: sed dum diu duces titulis imperatoris
fungerentur, senatus censuit ut augusti caesaris hoc tantum nomen esset [...].

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 181


RENAN FRIGHETTO

estabelecendo uma diferenciação entre os poderes detidos pelos soberanos


dos regna romano-bárbaros, portadores do regnum,18 com aquele reservado
e desenvolvido pelos romanos, o poder de imperium. Podemos dizer
que tal translatio, do imperium ao regnum, ganhava, no pensamento do
hispalense, uma conotação civilizacional na medida em que o conceito
de regnum encontrava-se associado ao exercício do governo que deveria
ser desenvolvido com retidão e em prol do populus.19 Um poder régio que
seria exercido por uma autoridade legítima e validado por meio da eleição
e da concessão legadas pelos maiores gentes, os representantes dos grupos
políticos mais destacados da sociedade política hispano-visigoda,20 ao
escolhido por todos para exercer aquele poder, o rex.21 Por outro lado, tal
perspectiva ganhou também, a partir da conversão de godos e dos suevos
ao catolicismo no III concílio de Toledo de 589, uma aura de concessão
divina22 que foi reforçada no IV concílio de Toledo de 633, quando os
representantes episcopais passaram a desfrutar de uma condição paritária a
dos maiores gentes laicos na escolha, na aclamação e na eleição do soberano

18
isid.,etym.,ix,3,14: [...] eoque is distingueretur a ceteris gentium regibus [...]; or.,Hist.adv.pag., Vii,43,10: [...]
deinde Vallia successit in regnum ad hoc electus a gothis [...]; Hydt.,chron.,a.416,1: [...] cui succedens Vallia
in regno [...]; sid.ap.,pan.av.,576-580: [...] tertia lux refugis Hyperiona fuderat astris: concurrunt proceres ac
milite circumfuso aggere composito statuunt ac torque coronant castrensi maestum donantque insignia regni;
nam prius induerat solas de principe curas [...].
19
isid.,sent.,iii,48,6: qui intra saeculum bene temporaliter imperat, sine ine in perpetuum regnat; et de gloria
saeculi huius ad aeternam transmeat gloriam [...]; 48,7: [...] recte enim illi reges uocatur, qui tam semetipsos,
quam subiectos, bene regendo modiicare nouerunt; 49,3: dedit deus principibus praesulatum pro regimine
populorum, illis eos praesse uoluit, cum quibus uma est eis nascendi moriendique conditio [...].
20
Segundo VELáZqUEZ, I. pro patriae gentisqve gothorvm statv (4th council of Toledo, canon 75, a.633).
In: regna and gentes…, p. 200: “[...] he elements that shape and sustain power are being deined here:
rex, the nobility of the gens and the Church. he aristocracy and the bishops choose the king. his system will
ensure social harmony and will prevent disunity of patria and gens as a result of ambition and violence [...]”.
21
Perspectiva apontada por ioan.bicl.,chron.,a.573,2: His diebus liuua rex vitae inem accepit et Hispania
omnis galliaque narbonensis in regno et potestate liuuigildi concurrit; a.586,2: Hoc anno leovegildus rex
diem clausit extremum et ilius eius reccaredus cum tranquillitate regni eius sumit sceptra.
22
conc. iii tol.,a.589,tomus:. [...] quum pro idei suae sinceritate idem gloriosissimus princeps omnes regiminis
suis pontiices in unum convenire mandasset, ut tam eius conversione quam de gentis gothorum innovatione in
domino exultarent et divinae dignationi pro tanto munere gratias agerent [...]; ioan.bicl.,chron.,a.590,1: sancta
synodus episcoporum totius Hispaniae, galliae et gallaetiae in urbe toletana praecepto principis reccaredi
congregatur episcoporum numero lxxii, in qua synodo intererat memoratus christianissimus reccaredus,
ordinem conversionis suae et omnium sacerdotum vel gentis gothicae professionem tomo scripta manu sua
episcopis porrigens et omnia [...]; isid.,Hg,53: synodum deinde episcoporum ad condemnationem arrianae
haeresis de diuersis spaniae et galliae prouinciis congregat, cui concílio idem religiosissimus princeps interfuit
gestaque eius praesentia sua et subscriptione irmauit, abdicans cum omnibus suis peridiam quam hucusque
gothorum populus arrio docente didicerat [...].

182 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


RELAçõES E DISTINçõES DOS cONcEITOS DE gens E populus E A cONSTRUçÃO DE UMA
identidade nobiliárquica NA Hispania VISIGODA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SÉcULOS VI – vii)

hispano-visigodo,23 oferecendo uma força moral e prática ao princeps que


seria reconhecido por meio do consenso de todos, em detrimento daquele
que fosse escolhido de forma tirânica.24
Assim, a partir de inais do século VI e ao longo de todo o século VII,
encontramos evidentes sinais políticos, institucionais, religiosos e ideológicos,
do momento da readequação estrutural da tradicional comunidade cívica
clássico-helenística25 que se transformava em uma comunidade cristã.26
De fato, observamos, na descrição oferecida pelas fontes, que os integrantes
da instituição eclesiástica passaram a ocupar um importantíssimo papel como
interlocutores políticos entre o poder régio hispano-visigodo e os grupos
sociais vinculados aos ambientes provinciais e locais,27 tanto urbanos como

23
conc. iV tol.,a.633,c.75: [...] sed defuncto in pace principe primatus totius gentis cum sacerdotibus successorem
regni concílio conmuni constituant, ut dum unitatis concordia a nobis retinetur [...]; conc.Viii tol.,a.653,c.10:
[...] adhinc ergo deinceps ita erunt in regni gloriam periciendi rectores, ut aut in urbe regia aut in loco ubi
princeps decesserit cum pontiicum maiorumque palatii omnimodo eligantur adsensu [...].
24
conc. iV tol.,a.633,c.75: [...] non sit in nobis sicut in quibusdam gentibus inidelitatis subtilitas impia, non
subdola mentis peridia, non periurii nefas, coniurationum nefanda molimina ; nullus apud nos praesumtione
regnum arripiat ; nullus excitet mutuas seditiones civium [...].
25
De acordo com HoRSTER, M. Priestly hierarchies in cities of the Western Roman Empire? In: CABALLoS
RUFINo, A. (Ed.) del municipio a la corte: la renovación de las elites romanas. Sevilla: Ediciones Universidad
de Sevilla, 2012, p. 290, “[...] A city’s civic identity, that the collective identity of its citizen body, can be
characterized, from the classical period right through to the imperial period, under three aspects: irstly,
the political aspect, that is, the citizenry as a political unit, with its institutions and rituals; secondly, the
religious aspect, i.e. the citizens as a community of shared worship and cult; and thirdly, the communicative
aspect, that is, their shared history and narratives[...]”.
26
Vale dizer que já encontramos essa caracterização desde a época romano tardia, conforme ESCRIBANo,
M. V. maternvs cynegivs, un hispano en la corte teodosiana. In: DEL MUNICIPIo A LA CoRTE, p. 317,
“[...] Sin embargo, el análisis de las leyes en cuyo tenor Cinegio pudo intervenir [...] demuestra que las
relacionadas con asuntos religiosos no predominan dentro del conjunto, si bien como hombre de poder
compartió con Teodosio el pragmatismo y contribuyó a la necesaria adecuación de la normativa jurídica a la
nueva realidad político-religiosa que tendía a identiicar al romano con el cristiano niceno después del 380
[...]”; no reino hispanovisigodo a relação entre a comunidade cristã com a ideia de uma concordia interna,
desde o período de Augusto, aparece indicada em iul.tol.,de compr.sex.aet.,i,8: [...] cessantibus enim bellis
in toto orbe terrarum, christus pax nostra oboritur [...] ad uigesimum octauum annum caesaris augusti, cuis
quadragesimo primo anno christus natus est in iudaea, in toto orbe terrarum fuisse discordiam [...]. orto
autem domino saluatore [...] est in orbe terrarum facta descriptio, et euangelicae doctrinae pax romani imperii
praeparata [...]; nesse caso há uma conexão evidente com isid.,etym.,V,39,26: octavianus ann. lVi. christus
nascitur [...]; or.,Hist.adv.pag.,Vii,1,11:[...] quoniam inter sacra continua incessabilibus cladibus nullus inis
ac nulla requies fuit, nisi cum saluator mundi christus inluxit: cuius aduentui praedestinatam fuisse imperii
romani pacem [...].
27
Ideia que podemos observar a partir da admoestação apresentada no conc. iV tol.,a.633,c.75: [...] quiquumque
igitur a nobis vel totius spaniae populis qualibet coniuratione vel studio sacramentum idei suae, quod patriae
gentisque gothorum statu vel observatione regiae salutis pollicitus est, temtaverit aut regem nesse adtrectaverit
aut potestatem regni exuerit aut praesumtione tyrannica regni fastigium usurpaverit, anathema sit in conspectu
dei patris et angelorum, atque ab ecclesia catholica quam periurio profanaverit eiciatur extraneus et ab omni
coetu christianorum alienus cum omnibus inpietatis suae sociis[...].

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 183


RENAN FRIGHETTO

rurais, coabitando com as antigas e ainda existentes estruturas institucionais


e administrativas cívicas de cariz romano, como o senatus de cordoba
ainda operante nos primórdios do século VIII.28 Nesse sentido, a elaboração
de um discurso homogêneo e unitário, tendente à valorização da realeza
como instituição válida e reconhecida ideologicamente como condutora e
integradora dos desígnios do regnum gothorum,29 aparece associado à relação
entre regem, patriam e gentem gothorum,30 onde o soberano apareceria como a
cabeça do corpo da sociedade hispano-visigoda31 que conduziria e defenderia
a fé católica,32 sendo apoiado tanto pelos maiores gentes como pelo conjunto
dos integrantes do episcopado hispano-visigodo. Por isso observamos a

28
chron.moz.,a.754,52: [...] rudericus tumultuose regnum ortante senatu inuadit [...]; 54: [...] adque in
eandem infelicem spaniam cordoba in sede dudum patricia, que semper extitit pre ceteras adiacentes ciuitates
opulentissima [...]; form.Visig.,xxi,4-8: [...] quod si ad ius praetorium et urbanum [supra] ualere non potuerit
[...] hanc uoluntatis meae epistolam apud curiae ordinem gestis publicis facias adcorporare [...]; xxV, 1-3: gesta
[...], acta habita patricia corduba apud illum et illum principales, illum curatorem, illos magistratos [...]; ver
também GARcIA MORENO, L. A. Nobleza goda bajo el Islam: el ocaso de una elite. In: DEL MUNIcIPIO
A LA cORTE, p. 336 e ss.
29
conc.iii tol.,a.589,tomus: [...] pro qua re quanto subditorum gloria regali extollimur, tanto providi esse debemus
in his quae ad deum sunt vel spem augere vel gentibus a deo nobis creditis consulere [...]. tunc adclamatum
est in laudibus dei et in favore principis ab universo concílio: i. gloria deo patri et filio et spiritui sancto, cui
cura est pacem et unitatem ecclesiae suae sanctae catholicae providere [...]. iiii. cui a deo aeternum meritum
nisi vero catholico recaredo regi? V. cui a deo aeterna corona nisi vero orthodoxo recaredo regi? Vi. cui
praesens gloria et aeterna nisi vero amatori dei recaredo regi? Vii. ipse novarum plebium in ecclesia catholica
conquisitor [...].
30
form.Visg.,ix,39-42: [...] obtestamur etiam eos quibus post foelicissimis temporibus nostris regnum dabitur
per aeterni regis imperium, sic deus gotorum gentem et regnum usque in inem seculi conseruare dignetu
r[...]; conc.Vii tol.,a.646,c.1: [...] sive etiam quod gentem gothorum vel patriam aut regem [...]; conc.Viii
tol,a.653,tomus: [...] in necem regiam excidiumque gothorum gentis ac patriae detecta fuisset [...]; c.2: [...]
ceterum quaequumque iuramenta pro regiae potestatis salute vel contutatione gentis et patriae vel hactenus
sunt exacta vel deinceps extiterint exigenda [...]; conc.xVi tol.,a.693,tomus: [...] quicumque amodo ex palatinis
cuiuslibet sit ordinis vel honoris persona in necem regiam vel excidium gentis ac patriae gothorum [...]; conc.
xVii tol.,a.694,tomus: [...] quia satis longum est ea quae regni nostri utilitatibus seu genti et patriae nostrae
necessaria [...]; esta aparece como substituta da relação, existente desde o principado romano, entre princeps/
senatus/populus, para tanto vide HIDALGO DE LA VEGA, M. J. el intelectual, la realeza y el poder político
en el imperio romano. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1995, p.120.
31
l.V.,ii,1,3 (recesvinthus rex): [...] bene deus, conditor rerum, disponens humani corporis formam, in sublimem
caput erexit adque ex illo cunctas membrorum ibras exoriri decrevit; unde hoc etiam a capiendis initiis caput
vocari precensuit [...]. ordinanda ergo sunt primo negotia principum, tutanda salus, defendenda vita, sicque
in statu et negotiis plebium ordinatio dirigenda, ut dum salus competens prospicitur regum, ida valentius
teneatur salvatio populorum.
32
Para isid.,sent.,iii,51,5: saepe per regnum terrenum caeleste regnum proicit, ut qui intra ecclesiam positi contra
idem et disciplinam ecclesiae agunt, rigore principum conterantur; ipsamque disciplinam, quam ecclesiae
Humilitas exercere non praevalet, cervicibus superborum potestas principalis imponat; et ut venerationem
mereatur, virtute potestatis impertiat; isid.,de eccl.of.,i,1,3: [...] ecclesia autem uocatur proprie, propter
quod omnes ad se uocet et in unum congreget. catholica autem ideo dicitur, quia per uniuersum mundum est
constituta; uel quoniam catholica, hoc est generalis, in ea doctrina est ad instructionem hominum de uisibilibus
atque inuisibilibus rebus caelestium ac terrestrium [...].

184 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


RELAçõES E DISTINçõES DOS cONcEITOS DE gens E populus E A cONSTRUçÃO DE UMA
identidade nobiliárquica NA Hispania VISIGODA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SÉcULOS VI – vii)

reincidente ação régia hispano-visigoda, com notória tendência política e


ideológica, mais que religiosa, da imposição de diversos placita à comunidade
judaica hispano-visigoda,33 bem como a tentativa de conversão de hereges e
pagãos ao catolicismo,34 ações que obtiveram resultados bastante limitados
em termos práticos e que foram criticadas pelo próprio Isidoro de Sevilha.35
Ou seja, deparamo-nos com um discurso defensor e incentivador da unidade
político-religiosa36 da comunidade cristã hispano-visigoda que deve ser
igualmente analisado à luz das concepções escatológicas, com impacto
direto nas ações políticas, que circulavam pelo mundo do Mediterrâneo
tardo-antigo e que viam na diversidade hebraica, herética e pagã uma ameaça
para alcançar-se a ideia de perfeição que colocaria em entredito a assunção

33
Uma deinição de placitum em isid.,etym.,V,24,19: placitum quoque similiter ab eo, quod placeat. alii dictunt
pactum esse quod volens quisque facit; placitum vero etiam nolens conpellitur, veluti quando quisque paratus sit
in iudicio ad respondendum; quod nemo potest dicere pactum, sed placitum; l.V.,xii,2,17 (recesvinthus rex):
placitum iudeorum in nomine principis factum. clementissimo hac serenissimo domino nostro reccessvindo
regi omnes nos ex Hebreis toletane civitatis, qui infra suscripturi vel signa facturi sumus. bene quidem hac
iuste dudum nos meminimus conpulsos fuisse, ut placitum in nomine dive et fecimus. sed quia et peridia
nostre obstinationis et vetustas parentalis erroris nos ita detinuit, ut nec veraciter iesum christum dominum
crederemus nec catholicam idem sinceriter teneremus [...].
34
Para tanto, vide FRIGHETTo, R. Religião e poder no reino hispano-visigodo de Toledo: a busca da unidade
político-religiosa e a permanência das práticas pagãs no século VII. iberia, revista de la antigüedad, Logroño,
v. 2, p. 133-49, 1999.
35
Especialmente no caso da imposição do placitum no tempo de Sisebuto, isid.,Hist.goth.,60: [...] sisebutus
post gundemarum regali fastigio euocatur [...]. qui initio regni iudaeos ad idem christianam permouens
aemulationem quidem habuit, sed non secundum scientiam: potestate enim conpulit, quos prouocare idei
ratione oportuit [...]; crítica que também aparece em no conc.iV tol.,a.633,c.57: [...] de iudaeis autem hoc
praecepit sancta synodus nemini deinceps ad crededum vim inferre, cui enim vult “deus miseretur et quam
vult indurat”; non enim tales inviti salvandi sunt sed volentes, ut integra sit forma iustitiae [...]. ergo non vi
sed liberi arbitrii facultate ut convertantur suadendi sunt non potius inpellendi [...]; sobre a conversão dos
judeus, isid.,chron.,120: [...] in Hispania quoque sisebutus, gothorum rex [...] Judaeos sui regni subditos ad
christi idem convertit.
36
conc.iii tol.,a.589,Homelia leand.: [...] qui ut notesceret quae uentura essent genti uel populo, quae ab unius
ecclesiae communione recidissent, secutus est: “gens enim et regnum quod non seruierit tibi peribit”. alio denique
loco similiter ait: “ecce gentem quam nesciebas, uocabis, et gentes quae non cognouerunt te ad te current”. unum
enim est christus dominus, cuius est uma per totum mundum ecclesia sancta possessio. ille igitur caput, et
ista corpus [...]; isid.,sent.,iii,51,4: principes saeculi nonnunquam intra ecclesiam potestatis adeptae culmina
tenente, ut per eamdem potestatem disciplinam ecclesiasticam muniant [...]; l.V.,xii,2,14(flavius sisebutus
rex): [...] universis populis ad regni nostri, provincias pertinentibus salutifera remedia nobis gentique nostre
conquirimus, cum idei nostrae coniunctos de inidorum manibus clementer eripimus. in hoc enim ortodoxa
gloriatur idei regula, cum nullam in christianis habuerit potestatem ebreorum execranda peridia [...]; iul.tol.,
de compr. sex.aet., praef.: [...] et nisi ante manu praecidatur artiicis, infectis membris omnibus, occasum
parturit mortis. Huius admirabilis medelae peritiam credo uestram, sacratissime princeps, uoluisse imitari
clementiam. qui dum populos a deo tibi creditos contingi exitio lethali formidas, utile praecisionis genus
excogitas, quo exitiabilem membrorum inutilium saniem, et purulentae faecis insanabilem cutem, remediabili
queant hi, qui saluandi sunt [...].

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 185


RENAN FRIGHETTO

do populus gothorum ao mundo celeste.37 Um discurso político-religioso


voltado ao reforço da instituição régia hispano-visigoda 38 e que pode ser
interpretado como um sinal eloquente da própria contestação sofrida pelo
poder régio diante dos diversos grupos políticos regionais e locais receosos
de perderem prerrogativas e privilégios adquiridos de forma ancestral. como
assevera Diaz Martinez, estaríamos diante de disputas políticas internas,
incrementadas pelo processo de readequação estrutural da comunidade cívica
clássico-helenística à comunidade cristã, que alimentaram as rivalidades que
geraram o enfraquecimento institucional da realeza hispano-visigoda e o seu
futuro esfacelamento político,39 esvaziando o conteúdo unitário da ideia de
uma gens gothorum coesa presente no discurso dos pensadores eclesiásticos
hispano-visigodos.

Gens/gentes, populus/populorum: do discurso unitário à


constituição de identidades aristocrático-nobiliárquicas

Ora, parece-nos indubitável a constatação da existência de uma dicoto-


mia, apresentada nas fontes hispano-visigodas de inais do século VI e pri-
mórdios do século VII, no que se refere à construção e a elaboração do que
deinimos como a identidade dos godos.40 Nesse sentido, veriicamos que em

37
Como aponta GARCIA MoRENo, L. A. Expectativas milenaristas y escatológicas en la España tardoantigüa
(SS. V-VII)”. In: JoRNADAS INTERNACIoNALES LoS VISIGoDoS y SU MUNDo: Arqueología,
Paleontología y Etnografía. Madrid: Comunidad de Madrid, 1998, p. 251-2, “[...] Las expectativas mesiánicas
judaicas y los temores cristianos, calentados y escendidos por la toma de Jerusalén por Sharbaroz, coinciden
en el Reino visigodo con el reinado de Sisebuto. Isidoro de Sevilla en su crónica universal – escrita con
el claro propósito de demostrar lo avanzado de la Edad inita del Mundo[...] recuerda cuatro cosas de
Sisebuto: la conquista a los bizantinos de varias posesiones suyas en España; la conversión de los judíos; y
la construcción de la iglesia de Santa Leocadia en Toledo [...]. Seguidamente vamos a intentar demostrar
cómo estas cuatro cosas se encuentran muy afectadas, y hasta relacionadas entre sí, por íntimas expectativas
escatológicas sentidas por el propio rey y ampliamente compartidas por sus súbditos, pudiéndose dibujar
un paralelismo bastante estrecho entre Heraclio – Bizancio y Sisebuto – Reino de Toledo [...]”; braul., ep.
(fructuosus), 43: [...] Hob hoc indesinentes regi et conditori nostro domino referimus laudes quod, mundi iam
termino propinquante [...].
38
Cf. FRIGHETTo, R. A Hispania visigoda (séculos VI-VII) e a Antiguidade Tardia..., p.88 e ss.
39
Vide DIAZ MARTINEZ, P. C., La dinámica del poder y la defensa del territorio: para una comprensión del
in del reino visigodo de Toledo. In: ACTAS xxxIx SEMANA DE ESTUDIoS MEDIEVALES – ESTELLA.
DE MAHoMA A CARLoMAGNo. LoS PRIMERoS TIEMPoS (SIGLoS VII – Ix). Estella: Gobierno de
Navarra, 2013, p. 170; ver também FRIGHETTo, R. ‘in eadem infelicem spaniam, regnum eferum conlocant’:
Las motivaciones de la fragmentación política del reino hispanovisigodo de Toledo (siglo VIII)”. temas
medievales, Buenos Aires, n. 19, p.137-64, 2012.
40
Para tanto ver FRIGHETTo, R. Identidade(s) e Fronteira(s) na Hispania visigoda, segundo o pensamento
de Isidoro de Sevilha (século VII), p. 105 e ss.

186 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


RELAçõES E DISTINçõES DOS cONcEITOS DE gens E populus E A cONSTRUçÃO DE UMA
identidade nobiliárquica NA Hispania VISIGODA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SÉcULOS VI – vii)

um único documento, como, por exemplo, as atas do III concílio de Toledo


de 589, podemos encontrar referências singulares a uma única identidade
dos godos ou, pelo contrário, apontar as várias identidades que passaram a
constituir a natio gothorum,41 a partir daquele momento convertida ao cato-
licismo. Assim encontramos na ata conciliar referência à inclita gens dos godos
associada com a multidão das gentes suevas que, ao lado dos godos, passaram
a formar parte da gens gothorum,42 que também incluiria, desse momento em
diante, o conjunto dos grupos aristocráticos e nobiliárquicos hispano-romanos
já adeptos dos preceitos e dogmas defendidos em Niceia e calcedônia.43
Portanto, podemos estabelecer uma vinculação entre a formulação de uma
nova gens gothorum,44 que reuniria o conjunto dos godos e dos suevos re-
centemente convertidos, ao lado dos hispano-romanos, e a constituição de
uma comunidade cristã na qual se destacavam, em nível teórico, as virtudes,45

41
Muito interessante a deinição oferecida por LE RoUx, P. “Identités civiques, identités provinciales dans
l’Empire Romain”. In: RUFINo, A.; LEFEBVRE, S. (2011), op. cit., p. 8: “[...] La natio parlait d’une origine
qui ne pouvait pas être insérée dans un modèle d’organisation en cité, ce qui veut dire qu’elle ressortissait
à une communauté ethnique, étrangere à l’institution civique [...]”.
42
conc.iii tol.,a.589,tomus: [...] gens gothorum inclyta [...]. nec enim sola gothorum conversio ad cumulum
nostrae mercedis accessit, quinimmo et suevorum gentis ininita multitudo, quam praesidio coelesti nostro
regno subiecimus [...].
43
ioan.bicl.,chron.,a.590,1: [...] memoratus vero reccaredus rex ut diximus, sancto intererat concílio,
renovans temporibus nostris antiquum principem constantinum magnum sanctam synodum nicaenam
sua illustrasse praesentia nec non et marcianum, chistianissimum imperatorem, cuius chalcedonensis
synodii decreta irmata sun t[...]; para isid.,chron.,118: [...] Hoc tempore leander episcopus in Hispaniis
ad gentis gothorum conversione doctrina idei et scientiarum claruit; já em isid., Hg,53: synodum deinde
episcoporum ad condemnationem arrianae haeresis de diuersis spaniae et galliae prouinciis congregat,
cui concílio idem religiosissimus princeps interfuit gestaque eius praesentia sua et subscriptione irmauit,
abdicans cum omnibus suis peridiam quam hucusque gothorum populos arrio docente didicerat [...].
44
Podemos establecer uma aproximação ao apontado por LE RoUx, P. Identités civiques, identités
provinciales dans l’Empire Romain. In: RUFINo, A.; LEFEBVRE, S. (2011), op. cit., p. 11: “[...] patria et
res publica sont, du point de vue de Rome, complémentaires et l’héritage ancestral inclut l’idéal politique
et civilisé qu’il convient de protéger et défendre. La citoyenneté romaine était porteuse d’une identité
nouvelle à l’échelle individuelle [...] ”.
45
isid.,etym.,ix,3,5: regiae virtutes praecipuae duae: iustitia et pietas. plus autem in regibus laudatur pietas;
nam iustitia per se severa est; isid.,sent.,iii,49,1: qui recte utitur regni potestate, ita se praestare omnibus
debet, ut quanto magis honoris celsitudine claret, tanto semetipsum mente humiliet, proponens sibi exemplum
humilitatis david [...]; 2: qui recte utitur regni potestate formam iustitiae factis magis quam verbis instituit
[...]; iii,50,2: multi adversus principes coniurationis crimine deteguntur, sed probare volens deus clementiam
principum [...]; iii,51,1: iustum est principem legibus obtemperare suis [...].

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 187


RENAN FRIGHETTO

a língua,46 os costumes religiosos,47 a elaboração de uma memória coletiva


baseada na escrita de uma História 48 e os valores comuns ao passado político
tanto clássico como helenístico que, desde o século IV, encontravam-se conec-
tados com as tradições imperiais romano-tardias cristianizadas.49 com isso, a
gens gothorum, desde 589 também adjetivada como uma gens christianorum,50
passava a ocupar seu espaço no conjunto da christiana ciuilitas 51 e o seu

46
eug.tol.,epist.,iV: [...] tanquam unus ex collegio esurientium puerorum inediae coactus impulsu, eiusdem
ianuam paradisi pedetemptim adgressus et quasi temerarius introrsus explorator ingressus [...] quorsum
ista praecipua quadam curiositate quibusdam comparationibus praemittens verbis simplicibus quasi oris
obstrusi aditum resero nisi ut tam inconparabilis excellentiam viri, sancti scilicet papae gregorii, in ipso
locutionis exordio quibusdam parabolis anteferrem eiusque magnitudinem sapientiae, quo perspicuo lumine
sanctam inlustravit ecclesiam [...] quae sunt eloquia pulcritudinis, oicia linguae retorqueam. igitur cum
romae positus eius quae in Hispaniis deerant volumina sedulus vestigator perquirerem, inventaque propria
manu transcriberem [...]; braul.,epist.,11(ad taio): [...] sed, ne in multiloquio ofendamus amicum [...]
iuxta flaccum, didicimus litterulas et sepe manum ferule subtraximus [...] ymmo illut uirgilianum [...],
ne habeat ingratos fabula nostra iocos secundum ouidium ac secundum appium caninam uideamur
exercere facundiam [...], ut ait terentius [...]; conc.Viii tol.,a.653,c.8:...repperimus quosdam divinis oiciis
mancipatos tanta nescientiae socordia plenos, ut nec illis prohibentur instructi conpetenter ordinibus, qui
cotidianos versantur in usu. proinde sollicite constituitur atque decernitur, ut nullus cuiusquumque dignitatis
ecclesiasticae deinceps percipiant gradum, qui non totum psalterium vel canticorum usualium et hymnorum
sive babtizandi perfecte noverint supplementum. illi sane qui iam honorum dignitate funguntur, huiusque
tamen ignorantiae cecitate vexantur [...].
47
Aspectos reforçados em siseb.,epist.ad: [...] instar indesecabilis idei catholicae puritas quousque detersos
erroribus coeperit, tanta frugam nobilitate multiplicat, tantaque celsitudine sufragando sublimat [...].
mortem hic inimicum idei cultorem haereticorum ostendet qui vexillo crucis perterritus, atque orthodoxa
professionem turbatus, cum nequeat catholicis inferre nequissimum damnum, in suum praeceps fertur extirpatus
semper interitum [...]; braul.,renot.isid.: [...] sunt et alia eius uiri multa opuscula, et in ecclesia dei multo
ornamento instrumenta. quem deus post tot defectus Hispaniae nouissimis temporibus suscitans, credo ad
restaurandaantiquorum monumenta [...].
48
Para tanto vide FRIGHETTO, R. ‘memoriae conseruandae causa facit’. A Memória e a História como veículos
da construção das identidades no reino hispano-visigodo de Toledo (inais do século VI – primórdios do
século VII). de rebus antiquis, Buenos Aires, v. 2., p. 1-18, 2012.
49
Para ESCRIBANo, M. V. maternvs cynegivs, un hispano en la corte teodosiana, p. 331: “[...] El vínculo
tradicional entre salus imperii y pietas conservaba toda su vigencia y el emperador cristiano y sus funcionarios,
al margen de sus creencias personales, estaban obligados a mantener la observancia de la religio [...] quam
diuinum petrum apostolum tradidisse romanis en los términos anunciados en la cunctos populos [...]; eug.
tol.,epist.iV: [...] ut censeo, graecae romanaeque facundiae philosophorum praecipui, socrates scilicet vel
plato, cicero atque Varro, si nostris temporibus adfuissent, condigna eius meritis verba promsissent. sed ne
panegyricis uti censear eloquiis plurima de eiusdem virtutibus auditu comperta praemittens [...].
50
conc.iii tol.,a.589,Hom..leand.: [...] condigne ergo ecclesia catholica gentes, quas sibi aemulas senserit idei
suae decore [...]: ecclesiae vero catholica, sicut per totum mundum tenditur, ita et omnium gentium societate
constituitur [...].
51
conc.iii tol.,a.589,Hom..leand.: [...] ergo, fratres, reposita est loco malignitatis bonitas, et errori occurrit veritas,
ut quia superbia linguarum diversitate ab unione gentes separaverat, eas rursum gremio germanitatis collegeret
caritas, et quemadmodum unius possessor est totius mundi dominus [...]; cf. FRIGHETTo, R. Da Antiguidade
Clássica à Idade Média: a idéia de Humanitas na Antiguidade Tardia ocidental. temas medievales, Buenos
Aires, v. 12, p. 161-3, 2004.

188 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


RELAçõES E DISTINçõES DOS cONcEITOS DE gens E populus E A cONSTRUçÃO DE UMA
identidade nobiliárquica NA Hispania VISIGODA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SÉcULOS VI – vii)

representante e conductor, o princeps christianus sacratissimus, era validado


enquanto legítimo soberano seguidor e defensor da verdadeira fé.52
Evidentemente que tal elaboração teórica positiva deveria ser
acompanhada por um conjunto sociopolítico igualmente ideal, na medida
em que, na companhia do rex sacratissimus, encontraríamos grupos
sociais voltados à busca pelo consenso universal e do bem-comum,53
sempre na perspectiva da defesa do rex, da patria e do populus gothorum.54
De fato, o principal articulador teórico destas ideias políticas na Hispania
visigoda foi Isidoro de Sevilha, apontado como o autêntico construtor da
identidade hispano-visigoda unitária no século VII.55 É interessante notar
que o discurso elaborado pelo hispalense nos faz pensar na articulação
dessa identidade goda com o binômio gens/populus gothorum, trazendo,
inclusive, uma sutil diferenciação entre ambos os conceitos. Para tanto,
Isidoro de Sevilha baseou-se em uma tradição política e ideológica
anterior, amparada especialmente nos escritos de Agostinho de Hipona
que recuperavam, em termos gerais, o pensamento ciceroniano relativo

52
conc.iii tol.,a.589,tomus: [...] erit enim mici inmarcesibilis corona gaudium in retributione iustorum, si hii
populi qui nostra ad unitatem ecclesiae solertia transcucurrerunt, fundati in eandem et stabiliti permaneant.
sicut enim divino nutu nostrae curae fuit hos populus ad unitatem christi ecclesiae pertrahere [...]: regia cura
usque in eum modum protendi debet, et dirigi, quem plenam constet veritati et scientiae capere rationem; nam
sicut in rebus humanis gloriosus eminet potestas regia, ita et prospiciendae commoditati conprovincialium
maior debet esse et providencia [...].
53
conc.iV tol.,a.633,c.75: [...] quod si haec admonitio mentes nostras non corrigit et ad salutem conmunem
cor nostrum nequaquam perducit [...]; isid.,sent.,iii,51,2: principes legibus teneri suis, neque in se posse
damnare iura quae in subiectis constituunt. iusta est enim vocis eorum auctoritas, si, quod populis prohibent,
sibi licere non patiantur; l.V.,ii,1,2 (flavius gloriosus reccessvindus rex): omnipotens rerum dominus et
conditor unus, providens commoda humane salutis, discere iustitiam habitatores terre, sacre legis sacris
decenter imperavit oraculis [...] quibus ita et nostri culminis clementia et succedentium regum nobitas
adfutura uma cum regimonii nostri generali multitudine universa obedire decernitur hac parere iubetur
[...] sese alienam reddat cuiuslibet persona vel potentia dignitatis, quatenus subiectos ad reverentiam legis
inpellat necessitas, principis voluntas.
54
conc.iV tol.,a.633,c.75:...sed idem promissam erga gloriosissimum domnum nostrum sisenandum regem
custodientes ac sincera illi devotione famulantes, non solum divinae pietatis clementiam in nobis provocemus,
sed etiam gratiam antefati principis percipere mereamur [...]; isid.,sent.,50,6: reges vitam subditorum facile
exemplis suis vel aediicant, vel subvertunt, ideoque principem non oportet delinquere, ne formam peccandi
faciat peccati eius impunita licentia. nam rex qui ruit in vitiis cito viam ostendit erroris [...]. illi namque
ascribitur, quidquid exemplo eius a subditis perpetratur.
55
cf. FRIGHETTO, R. Identidade(s) e fronteira(s) na Hispania visigoda, segundo o pensamento de Isidoro
de Sevilha (século VII), p.120-1.

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 189


RENAN FRIGHETTO

à definição de populus. 56 Ancorado nos pressupostos agostiniano e


ciceroniano, o pensamento do hispalense apresentava, a princípio tanto
nas etimologias como no livro das diferenças, a ideia de um único populus
que reuniria grupos de indivíduos livres que respeitariam a mesma norma
legal com a clara intenção de se atingir a concórdia coletiva,57 proposta
idealizadora para alcançar-se a tão propalada concórdia das ordens que
seria a base do sistema político perfeito.58 Nessa linha de pensamento é que
podemos encontrar a construção isidoriana da unidade régia consolidada à
volta da conversão ao cristianismo católico,59 sendo esta entendida como o
único veículo para atingir-se a concórdia que favoreceria a integração entre
o princeps christianus sacratissimus e o populus gothorum, união que teria
a função de proteger tanto o legítimo soberano católico, como a própria
patria hispana e a natio gothorum nela ixada desde 589.60
Por outro lado, apesar da proposta integradora e unitária do conjunto
rex/patria/populus, esta construção ideológica isidoriana encontrava-se
amparada na notória diferença sociopolítica e jurídica existente entre os que
seriam detentores de um maior prestígio e poder, os seniores,61 em relação aos

56
cic., de rep., i, 39: [...] res publica res populi, populus autem non omnis hominum coetus quoquo modo
congregatus, sed coetus multitudinis iuris consensu et utilitatis communione sociatus [...]; aug.,de civ.
dei,xix,21: [...] breuiter enim rem publicam deinit esse rem populi. quae deinitio si uera est, numquam
fuit romana res publica, quia numquam fuit res populi, quam deinitionem uoluit esse rei publicae. populum
enim esse deiniuit coetum multitudinis iuris consensu et utilitatis communione sociatum. quid autem dicat
iuris consensum, disputando explicat, per hoc ostendens geri sine iustitia non posse rem publicam; ubi ergo
iustitia uera non est, nec ius potest esse [...]; 24: si autem populus non isto, sed alio deiniatur modo, uelut si
dicatur; “populus est coetus multitudinis rationalis rerum quas diligit concordi communione sociatus”, profecto,
ut uideatur qualis quisque populus sit, illa sunt intuenda, quae diligit. quaecumque tamen diligat, si coetus
est multitudinis non pecorum, sed rationalium creaturarum et eorum quae diligit concordi communione
sociatus est [...].
57
isid.,etym.,ix,4,5: populus est humanae multitudinis, iuris consensu et concordi communione sociatus [...];
isid.,de dif.,331 : item rursus inter populum et populos. cum enim populos numero plurali dicimis, urbes
signiicamus ; cum populum, unius multitudinem ciuitatis intelligimus.
58
Representação que aparece em cic.,de leg.,iii,28: [...] nam ita se res habet, ut si senatus dominus sit publici
consilii, quodque is creverit defendant omnes, et si ordines reliqui principis ordinis consilio rem publicam
gubernari velint, possit ex temperatione iuris, cum potestas in populo, auctoritas in senatu sit, teneri ille
moderatus et concors civitatis status, praesertim si proximae legi parebitur [...].
59
Vide nota 52.
60
Para tanto, vide nota 36.
61
Uma interessante análise sobre a postura sociopolítica dos grupos sociais superiores é oferecida por TEJA,
R. La cristianización de los ideales del mundo clássico: el obispo. In: TEJA, R. emperadores, obispos, monjes
y mujeres. protagonistas del cristianismo antiguo. Madrid: Trotta, 1999, p. 82, “[...] En la elaboración y
difusión de este topos del rechazo del poder, que después concluye en aceptación más o menos forzada,
hay también un alto componente de orgullo aristocrático. El ansia de poder no cuadra con espíritus
nobles. El hombre noble ha nacido para mandar y ocupar los primeros lugares, son los innobles quienes
no tienen escrúpulos en ocupar el poder y cuando no lo ocupan lo degradan [...]”.

190 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


RELAçõES E DISTINçõES DOS cONcEITOS DE gens E populus E A cONSTRUçÃO DE UMA
identidade nobiliárquica NA Hispania VISIGODA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SÉcULOS VI – vii)

demais integrantes do populus com algum direito e os participantes da plebs,


inseridos no populus, mas sem os mesmos direitos e benefícios dos demais.62
certamente que podemos estabelecer paralelos, apresentados em outras
fontes hispano-visigodas, com os quais temos condições de visualizar tais
diferenças apontadas pelo hispalense no próprio ambiente sociopolítico
hispano-visigodo, a começar pelos seniores,63 também denominados nas
fontes pelos apelativos maiores, primates, optimates e illustres que,64 em
parceria com os representantes episcopais, seriam os mais destacados
representantes dos grupos políticos do reino hispano-visigodo de Toledo.65
Em oposição a estes, integrando o universo da plebs, encontraríamos
aqueles indivíduos que eram alijados dos ambientes políticos, econômicos
e sociais mais elevados, como os humiliores,66 os minores loci personae 67 e os

62
isid.,etym.,ix,4,5: [...] populus autem eo distat a plebibus, quod populus universi cives sunt, connumeratis
senioribus civitatis [plebs autem reliquum vulgus sine senioribus civitatis]; 6: populus ergo tota civitas est;
vulgus vero plebs est. plebs autem dicta a pluralitate; maior est enim numerus minorum quam seniorum...;
isid., de dif.,330: inter plebem et populum. plebs a populo eo distat, quod populus est generalis uniuersitatis
ciuium cum senioribus, plebs autem humilis et abiecta.
63
conc.iii tol.,a.589,tomus: [...] omnium episcoporum et totius gentis gothicae seniorum [...]; iul.tol.,iud.,5:
[...] omnibus nobis, id est senioribus cunctis palatii, gardingis omnibus omnique palatio oicio [...]; conc.xii
tol.,a.681,tomus: [...] et clarissimis palatii nostri senioribus [...]; iul.tol.,iud.,5: Hic igitur sceleratissimus paulus,
dum, conuocatis adunatisque omnibus nobis, id est senioribus cunctis palatii, gardingis omnibus omnique
palatino oicio [...].
64
conc.iii tol.,a.589,tomus: [...] praecipiente autem universo venerabili concílio atque iubente, unus episcoporum
catholicorum ad episcopos et religiosos vel maiores natu [...]. tunc episcopi omnes uma cum clericis suis
primoresque gentis gothicae [...]; conc.Viii tol.,a.653,tomus: [...] maioribusque personis [...]; l.V.,ii,4,6
(cintasvintus rex): [...] si maioris persona est [...]; l.V.,ix,2,9 (ervigius rex): [...] si maioris loci persona fuerit, id
est dux, comes seu etiam gardingus [...]; conc.Vi tol.,a.638,c.13: [...] qui primatuum dignitate atque reverentiae
vel gratia ob meritum in palatio honorabiles [...]; fred.,chron.,82 : [...] fertur de primatibus gotthorum hoc
vitio reprimendo ducentos fuisse interfectos [...]; iul.tol.,H.W.,9:...Vbi cum de his, quae intra gallias gerebantur,
fama se ad aures principis deduxisset, mox negotium primatibus palatii innotuit pertractandum [...]; conc.xiii
tol.,a.683,c.2: de acusatis sacerdotibus seu etiam obtimatibus palatii atque gardingis sub que eos iustitiae cautela
examinari conveniat. [...] in publica sacerdotum, seniorum atque etiam gardingorum [...]; isid.,etym.,x,126: [...]
illustris nomen notitiae est, quod clareat multis splendoris generis, vel sapientiae, vel virtutis, cuius contrarius
est obscure natus (idoneus) [...]; conc.xii tol.,a.681,tomus: [...] et vos illustres aulae regiae viros [...].
65
conc.Viii tol.,a.653,tomus: [...] Vos etiam inlustres viros, quos ex oicio palatino huic sanctae synodo interesse
mos primaevus obtinuit ac non vilitas exspectabilis honoravit et experientia aequitatis plebium rectores exegit,
quos in regimine socios, in adversitate idos et in prosperis amplecturos strenuos...
66
isid.,etym.,x,115: Humilis, quasi humo adclinis...; a condição de humilis era tremendamente pejorativa em
termos jurídicos, segundo l.V.,ii,3,4 (chindasvintus rex): ut in personis nobilibus quaestio per mandatum
nullatenus agitetur, et qualiter humilior ingenuus, sive servus per mandatum quaestioni subdatur. quaestionem
in personis nobilibus nullatenus per mandatum patimur agitari. ingenuam vero, et pauperem personam, atque
in crimine iam ante repertam non aliter ex mandato subdendam quaestioni permittimus [...].
67
isid.,etym.,x,171: [...] minor, minimus, a numero monadis, quod post eum non sit alter; na concepção isidoriana
os minores seriam possuidores de um limitado pecúlio, isid.,etym.,V,25,5: peculium proprie minorum
est personarum sive servorum. nam peculium est quod pater vel dominus ilium suum vel servum pro suo
tractare patitur. peculium autem a pecudibus dictum, in quibus veterum constabat universa substantia; conc.
Vi tol.,a.638,c.13: [...] qui etiam minores a senioribus et dilectionis amplectatur afectu et utilitatis inbuantur
exemplo [...].

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 191


RENAN FRIGHETTO

pauperes,68 que, de acordo com as atas conciliares e a legislação régia, mereciam


atenção e cuidado da parte dos representantes episcopais 69. Porém, chama-nos
a atenção aquela parcela do populus que a descrição isidoriana situava entre
os extremos sociais, um tanto indeinida e genérica, política e socialmente
menos importante que os seniores e mais destacada que os elementos da
plebs. Tratava-se, sem dúvida, de uma considerável parcela da população
livre que, no caso hispano-visigodo, envolveria os súditos que viviam
tanto nos espaços urbanos como nos rurais, os priuati,70 abarcando desde
pequenos comerciantes e pequenos proprietários de terras 71, até membros
da nobreza de serviço e funcionários da administração régia hispano-
visigoda com atuação local e regional, denominados como mediocres 72

68
isid.,de dif.,138: item egestatem et paupertatem. quod egestas peior est quam paupertas; paupertas enim
potest honesta esse, nam semper egestas turpis est; 139: rursus inter pauperiem et paupertatem. pauperies
damnum est, paupertas ipsa conditio; l.V.,ii,3,9 (chindasvintus rex): [...] nam etiam si potens cum paupere
causam habuerit, et per se adserere noluerit, non aliter quam aequali pauperi, aut fortasse inferiori a potente
poterit causa committi. pauper vero, si voluerit, tam potenti suam causam debeat committeret, quam potens
ille est, cum quo negotium videtur habere.
69
conc.iV tol.,a.633,c.32: de cura populorum et pauperum. episcopi in protegendis populis ac defendendis
inpositam a deo sibi curam non ambigant, ideoque dum conspiciunt iudices ac potentes pauperum oppressores
existere [...]; c.38: [...] praebendum est a sacerdotibus vitae solatium indigestibus [...]; conc.Vi tol.,a.638,c.15:
[...] ita ecclesiis conlata quae proprie sunt pauperum alimenta eorum in iure pro mercede oferentum maneant
inconvulsa [...]; conc.x tol.,a.656,tomus: [...] verum et rem suam ita in nomine pauperum religasset [...];
isid.,sent.,iii,45,4: quando a potentibus pauperes opprimuntur, ad eripiendos eos boni sacerdotes protectionis
auxilium ferunt; nec verentur cuiusquam inimicitiarum molestias, sed oppressores pauperum palam arguunt,
increpant, excommunicant [...]; l.V.,ii,1,28(flavius recesvintus rex): de data episcopi potestate distringendi
iudices nequier iudicantes. sacerdotes dei, quibus pro remediis oppressorum vel pauperum divinitus cura
commisa est, deo mediante testamur, ut iudices pervesis iudiciis populos opprimentes paterna pietate
commoneant [...].
70
isid.,etym.,ix,4,30 : [...] privati sunt extranei ab oiciis publicis. est enim nomen magistratum habenti
contrarium, et dicti privati quod sint ab oiciis curiae absoluti[...]; l.V.,V,4,19 (cintasvindus rex): de non
alienandis priuatorum, et curialium rebus. [...] curiales igitur vel privati, qui caballos ponere, vel in arca publica
functionem exsolvere consueti sunt, nunquam quidem facultatem suam vendere, vel donare, vel commutatione
aliqua debent alienare [...]; conc.xiii tol.,a.683, edictum: [...] in nomine divino omnibus populis regni nostri
tam privatis quam etiam iscalibus servis, viris seu etiam faeminis sub tributali exactione in provinciam galliae
vel galliciae atque in omnes provincias Hispaniae [...].
71
l.V.,ii,5,9 (antiqua): [...] certe nec de aliis causis, nec de maioribus rebus esse sibi credendum sciant, nisi de
minimis quibuscumque rebus, ac de terris et vineis, vel de ediiciis, quae non grandia esse constiterint, propter
quod solet inter haeredes aut vicinos possessores intentio exoriri [...]; conc.xiii tol.,a.683, editum: [...] terras
vero vineas, quae pro eodem tributo quicumque supradictorum curam publicam agencium vobis privatis vel
iscalibus populis abstulit vel accepit, fruges aridas et liquidas exinde in praeteritis annis unusquisque exactor
collegit in ratione ipsius tributi [...].
72
isid.,etym.,x,172: [...] mediocris, quod modicum illi suiciat ; fred.,chron.,82 : [...] de mediocribus quingentos
intericere jussit [...]; seriam, provavelmente, os mesmos personagens portadores de um razoável patrimônio
quantiicado na l.V.,iii,1,6 (cintasvindus rex): [...] cui autem mille solidorum facultas est, de centum solidis
tali adaeratione dotem facturus est [...]; conc.Viii tol.,a.653,decretum: [...] ecce etenim ita ex gentis nostrae
mediocribus maioribusque personis [...].

192 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


RELAçõES E DISTINçõES DOS cONcEITOS DE gens E populus E A cONSTRUçÃO DE UMA
identidade nobiliárquica NA Hispania VISIGODA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SÉcULOS VI – vii)

ou inferiores,73 detentores de algum patrimônio, cargo ou benefício concedido


por sua ação junto da administração régia, embora estivessem distantes
dos altos cargos e funções destinados aos membros das gothicae gentes, os
mais tradicionais e destacados grupos políticos do reino hispano-visigodo
de Toledo.74
Logo, podemos dizer que a condução dos desígnios do populus gothorum,
seguindo a interpretação do hispalense, estava centrada na igura do princeps
christianus sacratissimus e naqueles que faziam parte dos grupos políticos
mais importantes do regnum gothorum. Referimo-nos, certamente, às
poderosas famílias políticas denominadas nas fontes hispano-visigodas como
as gentes, que tinham a sua origem amparada no genus,75 na linhagem, que
conferia-lhes uma ancestralidade aristocrática que colocava-as em destaque
no universo político, social, econômico e cultural hispano-visigodo.76 Destas
várias gentes, com origens tanto bárbara como hispano-romana e neste século
VII já imbricadas, saíam os autênticos líderes políticos que alcançavam o
poder régio, de forma legítima ou ilegítima, assim como os mais elevados
cargos e funções da administração régia, como duces 77 e comites,78 e

73
l.V.,ix,2,9 (ervigius rex):...inferiores sane vilioresque persone, thiufadi scilicet omnisque exercitus compulsores
vel hi [...].
74
Uma hierarquização das funções administrativas e militares, numa escala dos cargos mais importantes para os
de menor expressão, aparece descrita na l.V.,ii,1,25 (chindasvinthus rex): [...] quoniam negotiorum remedia
multimodae diversitatis compendio gaudent, adeo dux, comes, vicarius, pacis assertor, tiufadus, millenarius,
centenarius, decanus [...]; l.V.,ix,2,8(Wamba rex): [...] adeo presenti sanctione decernimus [...], si quelibet
inimicorum adversitas contra partem nostram commota extiterit, seu sit episcopus sive etiam in quocumque
ecclesiastico ordine constitutus, seu sit dux aut comes,thiufadus aut vicarius, gardingus vel quelibet persona [...];
conc.xiii tol.,a.683,edictum: [...] certe si quisquis ille dux, comes, tiufadus, numerarius, vilicus aut quicumque
curam publicam agens tributa [...]. Hoc tamen speciali et evidenti serenitatis nostrae sententia deinimus, ut
nullus de supradictis comitibus, tiufadis, vicariis, numerariis seu quibuscumque curam publicam agentibus [...].
75
isid.,etym.,ix,2,1 : gens est multitudo ab uno principio orta, sive alia natione secundum propriam collectionem
distincta [...]. Hinc et gentilitas dicitur. gens autem appellata propter generationes familiarum [...] ; 4,4: genus
aut a gignendo et progenerando dictum, aut a deinitione certorum prognatorum, ut nationes, quae propriis
cognationibus terminatae gentes appellantur ; isid.,de dif.,332 : inter gentem et gentes et genus. gens nationis
est, ut graeciae, asiae ; hinc et gentilitas dicitur. gentes autem familiae, ut iuliae, claudiae. genus uero ad
qualitatem refertur [...].
76
form.Visig.,xiV,6-8: [...] itaque quum consentienti parentum tuorum animo teque praebenti consensum,
intercedentibus nobilibus atque bene natis uiris [...]; para tanto vide FRIGHETTo, R. Considerações sobre o
conceito de gens e a sua relação com a idéia de identidade nobiliárquica no pensamento de Isidoro de Sevilha
(século VII). imago temporis. medium aevum, Lerida, v. VI, p. 420-39, 2013.
77
isid.,etym.,ix,22: [...] dux dictus eo quod sit doctor exercitus [...].
78
form.Visig.xxxix,35-6: [...] late conditiones sub die ill., anno ill., era ill. ill. uicem agens illustrissimi uiri
comitis [...]; Vf,15: [...] sicque de praesentia regis leuauit iudicem qui inter eis examinaret iudicii ueritatem
comité nomine angelate [...].

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 193


RENAN FRIGHETTO

também da esfera eclesiástica. Portanto, tratava-se daqueles que partilhavam


da solidariedade aristocrática indicada pelos estudos de Domingo Plácido
desde o mundo grego clássico,79 sendo possuidores de uma origo preclara,
aristocrática e nobre,80 exaltada, em termos gerais, pelas atas conciliares
hispano-visigodas ou em obras como a chronica de João de Biclaro, a Historia
gothorum de Isidoro de Sevilha e o speculum atribuído ao Pseudo – Eugênio
de Toledo. Nestas fontes hispanovisigodas todos os aristocratas e nobres
de alta estirpe aparecem denominados como integrantes da lorentissima
gothorum gens,81 devotados iéis do legítimo soberano católico,82 que tinham
como destacada virtude a fortitudo guerreira 83 que, segundo a tradição
historiográica, situava a gens dos godos dentre os mais temidos combatentes
que foram responsáveis pela redução da potentia romana 84 e, também, pela
conquista do território hispano.85 Essa associação entre a gens gothorum e a
Hispania surge, de maneira evidente, nas obras históricas do biclarense e do
hispalense a partir do reinado de Leovigildo (568 – 586), sendo continuada
por seu sucessor e ilho Recaredo (586 – 601) para ser culminada, no ano

79
Para tanto, ver PLACIDo, D. Las formas del poder personal: la monarquía, la realeza y la tiranía, gerión,
Madrid, v. 25-1, p.130-6, 2007.
80
form.Visig.,xx,1: insigni merito et getice de stirpe senatus [...]; isid.,etym.,x,184: nobilis, non vilis, cuius et
nomen et genus scitur [...]; Vf,8 : [...] multas idoneas ac nobiles personas, etiam ex palatio, seruitium regis[...].
81
conc.iii tol.,a.589,praef.: [...] adest enim omnis gens gothorum inclyta et fere omnium gentium genuina
virilitate opinata [...]; isid.,etym.,ix,2,89: gothi [...] gens fortis et potentissima, corporum mole ardua, armorum
genere terribilis [...]; isid., de laud.span.,28-29: [...] denuo tamen gothorum lorentissima gens post multiplices
in orbe uictorias [...].
82
ioan.bicl.,chron.,a.589,2: [...] in hoc ergo certamine gratia divina et ides catholica, quam reccaredus rex
cum gothis ideliter adeptus est [...]; ps.eug.tol.,spec.,18: accipe consilium multis de cordibus unum, quod
tibi disponens faciat discretio gratum. utile consilium regis conirmat honorem totius et regni ines defendit ab
hoste. alto consilio debes disponere regnum, rex, tibi commissum regnum per compita totum.
83
ioan.bicl.,chron.,a.589,2: [...] quoniam non est diicile deo nostro, si in paucis, uma in multis detur victoria.
nam claudius dux vix cum ccc viris lx ferme milia francorum noscitur infugasse et maximam eorum partem
gladio trucidasse [...]; isid.,Hg,69: [...] porro in armorum artibus satis expectabiles, et non solum hastis, sed
et iaculis equitando conligunt, nec equestre tantum proeli, sed et pedestri incedunt [...]; ps.eug.tol.,spec.,19:
praesidio domini irmantur brachia regis eius et in manibus uictrix seruabitur hasta [...].
84
isid.,Hg,67: populi natura pernices, ingenio alacres, conscientiae uiribus freti, robore corporis ualidi, staturae
proceritate ardui, gestu habituque conspicui, manu prompti, duri uulneribus [...]. quibus tanta extitit magnitudo
bellorum et tam extollens gloriosae uictoriae uirtus ut roma ipsa uictrix omnium populorum subacta captiuitatis
iugo gothicis triumphi adcederet et domina cunctarum gentium illis ut famula deseruiret; 68: Hos europae omnes
tremuere gentes, alpium his caesere óbices, Wandalica ipsa crebro opinata barbaries non tantum praesentia
eorum exterrita quam opinione fugata est [...].
85
isid.,Hg,66:gothi de magog iapheth ilio orti cum scythis uma probantur origine sati, unde nec longe a uocabulo
discrepant [...], gallias adgrediuntur patefactisque pyrenaeis montibus spanias usque perueniunt ibique sedem
uitae atque imperium locauerunt.

194 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


RELAçõES E DISTINçõES DOS cONcEITOS DE gens E populus E A cONSTRUçÃO DE UMA
identidade nobiliárquica NA Hispania VISIGODA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SÉcULOS VI – vii)

de 624, pelo soberano Suinthila,86 recordando apenas que a ideia de uma


unidade total do território hispano ao regnum gothorum é, como sabemos,
retórica.87 Por certo que a autoridade régia dos godos alcançou diversas áreas
da antiga Hispania romana e podemos mapeá-las a partir das descrições
apresentadas pelos relatos historiográicos de João de Biclaro e de Isidoro de
Sevilha. Através destes relatos podemos averiguar a dimensão das vitórias
militares alcançadas pelos godos tanto contra os inimigos externos, como
as forças romano-orientais/bizantinas,88 as francas 89 e as suevas,90 contra as

86
isid.,Hg,62: [...] (suinthila) proelio conserto obtinuit auctamque triumphi gloriam prae ceteris regibus felicitate
mirabili reportauit, totius spaniae intra oceani fretum monarchiam regni primus idem politus, quod nulli
retro principum est conlatum [...]. Interessante para esta análise é o exposto por BELTRáN LLoRIS, F. In:
RUFINo, A.; LEFEBVRE, S. (2011), op. cit., p. 55: “[...] et sola omnivm provinciarvm vires svas postqvam
victa est intellexit. Una aproximación a Hispania como referente identitário en el mundo romano. [...] El
énfasis sobre la falta de cohesión de los pueblos peninsulares pone de maniiesto que esta percepción unitaria
no existía con anterioridad a la conquista, sino que, por el contrario, fue consecuencia de ella, esto es una
creación propiamente romana, de suerte que sólo una vez integrados en el Imperio adquirieron los hispanos
conciencia de sí mismos bajo la nueva identidad acuñada por Roma [...]”.
87
Cf. FRIGHETTo, R. A Hispania visigoda (séculos VI-VII) e a Antiguidade Tardia, p.92-3.
88
ioan.bicl.,chron.,a.570,2: liuuigildus rex loca bastetaniae et malacitanae urbis repulsis militibus vastat, et
victor solio redit; a.571,3: liuuigildus rex asidonam fortissimam civitatem proditione cuiusdam framidanci
nocte occupat et militibus interfectis memoratam urbem ad gothorum revocat iura; isid.,Hg,49: [...] fudit
quoque diuerso proelio militem et quaedam castra ab eis occupata dimicando recepit [...]; 54: [...] (recaredus)
saepe etiam et lacertos contra romanas insolentias [...]; 57: [...] Wittericus [...] uir quidem strenuus in
armorum arte, sed tamen expers uictoriae. namque aduersus militem romanum proelio saepe molitus nihil
satis gloriae gessit praeter quod milites quosdam sagontia per duces obtinuit [...]; 59: [...] (gundemarus) alia
militem romanum obsedit [...]; 61: [...] (sisebutus) de romanis quoque praesens bis feliciter triumphavit et
quasdam eorum urbs pugnando sibi subiecit [...]; 62: [...] (suinthila) postquam uero apicem fastigii regalis
conscendit, urbes residuas, quas in spaniis romana manus agebat [...].
89
ioan.bicl.,chron.,a.585,4: franci galliam narbonensem occupare cupientes cum exercitu ingressi, in quorum
congressionem leouegildus reccaredum ilium obviam mittens et francorum est ab eo repulsus exercitus et
provincia galliae ab eorum est infestatione liberata [...]; a.587,6: desiderius francorum dux, gothis satis
infestus a ducibus reccaredi regis superatur et caesa francorum multitudine in campo moritur; a.589,2:
francorum exercitus a gonteramno rege transmissus bosone duce in galliam narbonensem obveniunt et
iuxta carcassonensem urbem castra metati sunt. cui claudius lusitaniae dux a reccaredo rege directus
obviam inibi occurrit. tunc congressione facta franci in fugam vertuntur et direpta castra francorum et
exercitus a gothis caeditur [...]; isid.,Hg,54: (recaredus) egit etiam gloriose bellum aduersus infestas gentes
idei suscepto auxilio. francis enim sexaginta fere milium armatorum gallias inruentibus misso claudio
duce aduersus eos glorioso triumphavit euentu. nulla umquam in spaniis gothorum uictoria uel maior uel
similis extitit [...]; para max.caes.,chron.,a.587: [...] Venientem de francia reccaredum victoriem toletani
graviter inirmatur [...].
90
ioan.bicl.,chron.,a.576,3: liuuigildus rex in gallaecia suevorum ines conturbat: et a rege mirone per legatos
rogatus pacem eis pro parvo tempore tribuit; 585,2: liuuigildus rex gallaecias uastat, audecanem regem
comprehensum regno privat, suevorum gentem, thesaurum et patriam suam redigit potestatem et gothorum
provinciam facit; isid.,Hg,49: [...] (leuuigildus) postremum bellum sueuis intulit regnumque eorum in iure
gentis suae mira celeritati transmisit [...]; segundo max.caes.,chron.,a.587: [...] leovigildus rex rediens e
bello contra suevos toleti graviter inirmatur [...].

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 195


RENAN FRIGHETTO

populações bárbaras celtiberas, astures e vascas estabelecidas nas vertentes


do norte e do noroeste hispânico,91 bem como o êxito logrado diante da
resistente aristocracia hispano-romana da província da baetica apoiante
da ação de tirania levada a cabo por Hermenegildo, entre os anos de 579 e
584.92 Em todas aquelas campanhas militares levadas a cabo por Leovigildo se
realçava a fortitudo guerreira como a virtude primordial da gens gothorum
antes da realização do III concílio de Toledo de 589.93 De fato, a partir da
conversão ao catolicismo no reinado de Recaredo agregavam-se a ela outras
virtudes como a misericordia, a pietas, a pax e um estado individual que

91
ioan.bicl.,chron.,a.573,5: liuuigildus rex sabariam ingressus sappos vastat et provinciam ipsam in suam
[...]; a.574,2: His diebus liuuigildus rex cantabriam ingressus provinciae pervasores intericit, amaiam
occupat, opes eorum pervadit et provinciam in suam revocat dictionem; a.575,2: liuuigildus rex aregenses
montes ingreditur [...]; a.577,2: liuuigildus rex orospedam ingreditur et civitates atque castella eiusdem
provinciae occupat et suam provinciam facit [...]; a.578,4: liuuigildus rex extinctis undique tyrannis, et
pervasoribus Hispaniae superatis sortitus requiem propriam cum plebe resedit civitatem in celtiberia ex
nomine ilii condidit, quae recopolis nuncupatur [...]; a.581,3: liuuigildus rex partem Vasconiae occupat
et civitatem, que Victoriaco nuncupatur, condidit; a.584,3: liuuigildus rex ilio Hermenegildo ad rem
publicam commigrante Hispalim pugnando ingreditur, civitates et castella, quas ilius occupaverat, cepit, et
non multo post memoratum ilium in cordubensi urbe comprehendit [...]; isid.,Hg,49: [...] (leuuigildus)
cantabrum namque iste obtinuit, aregiam iste cepit, sabaria ab eo omnis deuicta est [...]; 54: [...] (recaredus)
et inruptiones Vasconum mouit [...]; 59: [...] (gundemarus) Hic Wascones una expeditione uastauit [...]
; 61:(sisebutus) in bellicis quoque documentis ac uictoriis clarus. astures enim rebellantes misso exercitu
in dicionem suam reduxit. ruccones montibus arduis undique consaeptos per duces euicit [...]; 62: [...]
(suinthila) ruccones superauit [...]; 63: (suinthila) Habuit quoque et initio regni expeditionem contra
incursus Vasconum terraconensem prouinciam infestantium, ubi adeo montiuagi populi terrore aduentus
eius perculsi sunt, ut confestim quase debita iura noscentes remissis telis et expeditis ad precem manibus
supplices ei colla submitterent, obsides darent, ologicus ciuitatem gothorum stipendiis suis [...]; outros autores
também referem-se a estas populações, como taius,sent.,V,praef.,2: [...] Hujus itaque sceleris causa gens
efera Vasconum pyrenaeis montibus promota, diversis vastationibus Hiberiae patriam populando crassatur
[...]; iul.tol.,H.W.,10: [...] mox cum omni exercitu Vasconiae partes ingreditur, ubi per septem dies quaqua
uersa per patentes campos depraedatio et hostilitas castrorum domorumque incensio tam ualide acta est,
ut Vascones ipsi, animorum feritate deposita, datis obsidibus, uitam sibi dari pacemque largiri non tam
precibus muneribus exoptarent [...].
92
ioan.bicl.,chron.,a.572,2: liuuigildus rex cordubam civitatem diu gothis rebellem nocte occupat et caesis
hostibus propriam facit multasque urbes et castella interfecta rusticorum multitudine in gothorum dominium
revocat; a.579,3: [...] nam eodem anno ilius eius Hermenegildus factione gosuinthae reginae tyrannidem
assumens in Hispali civitate rebelione facta recluditur facit, et alias civitates atque castella secum contra patrem
rebellare facit [...]; isid.,Hg,49: [...] (leuuigildus) Hermenegildum deinde ilium imperiis suis tyrannizantem
obsessum exsuperauit [...]; para max.caes.,chron.,a.580: leovigildus ilium Hermenegildum Hispali obsidet
[...]. prius tamen contra leovigildum rebellaverant Hispalis, corduba, astigis, carthago nova [...]; a.586:
Hermenegildus Hispali dilapsus, et cordubae captus, Valentiae exsulat [...].
93
isid.,Hg,49:...(leuuigildus) adepto spaniae et galliae principatu ampliare regnum bello augere opus statuit.
studio quippe exercitus concordante fauore uictoriarum multa praeclare sortitus est (...) spania magna ex
parte potitus, nam antea gens gothorum angustis inibus artabatur...; 52:...namque ille inreligiosus et bello
promptissimus (...), ille armorum artibus gentis imperium dilatans...

196 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


RELAçõES E DISTINçõES DOS cONcEITOS DE gens E populus E A cONSTRUçÃO DE UMA
identidade nobiliárquica NA Hispania VISIGODA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SÉcULOS VI – vii)

ganhou, desse momento em diante, uma conotação virtuosa, a religiositas,


todas projetadas na igura do princeps christianus sacratissimus.94
Virtudes que mantiveram-se perenes junto da imagem do soberano
hispano-visigodo ideal ao longo do século VII e que aparecem muito bem
articuladas na imagem construída do rex descrito na Historia Wambae de
Juliano de Toledo 95. É curioso notar que, no relato do bispo toledano, que
descreve com detalhes a grande rebelião aristocrática-nobiliárquica da galia
narbonense ocorrida no ano de 672, tais virtudes estavam vinculadas mais
ao soberano vitorioso que propriamente sobre seus aliados aristocráticos,
interessados em aplicar a justiça consuetudinária aos traidores derrotados 96
– a tortura, seguida da eliminação física – cabendo ao religiosissimus princeps
recordar aos seus iéis o estabelecido pelos cânones conciliares acerca do
impedimentum da aplicação da pena de morte aos acusados de cometerem
atos de perfídia e traição contra o legítimo soberano.97 Contudo a substituição

94
isid.,Hg,52:...recaredus regno est coronatus, cultu praeditus religionis (...) hic ide pius et pace preaclarus
(...) hic gloriosius eandem gentem idei trophaeo sublimans. in ipsis enim regni sui exordiis catholicam idem
adeptus totius gothicae gentis populos...; isid.,sent.,iii,51,3: sub religionis disciplina saeculi potestates subiectae
sunt; et quamvis culmine regni sunt praedicti, vinculo tamen idei tenentur astricti...; iul.tol.,H.W.,3:...nam
eundem uirum quamquam diuinitus abinceps et per hanelantia pleuium uota et per eorum obsequentia regali
cultu iam cucumdederant magna oicia, ungi se tamen per sacerdotis manus ante non passus est, quam sedem
adiret regiae urbis atque solium peteret paternae antiquitatis, in qua sibi oportunum esset et sacrae unctionis
uexilla suscipere et longe positorum consensus ob praeelectionem sui patientissime sustinere...
95
Um estudo recente sobre o tema em FRIGHETTo, R. Memória, História e Identidades: considerações a
partir da Historia Wambae de Juliano de Toledo (século VII). revista de História comparada, Rio de Janeiro,
n. 5-2, p. 50-73, 2011.
96
iul.tol.,H.W., 27: tertia iam post uictoriam uictoribus aduenerat dies, et paulus ipse onustus ferro cum ceteris
consedenti in throno principi exibetur. tunc antiquorum more curba spina dorsi uestigiis regalibus sua colla
submittit, deinde coram exercitibus cunctis adiudicatur cum ceteris, quum uniuersorum iudicio et mortem
exciperent, qui mortem principi praeparassent [...]; iud.,7: [...] ob hoc secundum latae legis edita hoc omnes
communi deiniuimus sententia, ut idem peridus paulus cum iam dictis sociis suis morte turpissima condemnati
interirent, qualiter casum perpetuae perditionis uidentur excipere, qui et euersionem meditati sunt patriae et
principis interitum conati sunt eximere [...].
97
iul.tol.,H.W., iud.,7: [...] quodsi forsam eis principe condonata fuerit uita, non aliter quam euulsis luminibus
reseruentur, ut uiuant. res tamen omnes eiusdem pauli sociorumque eius in potestate gloriosi nostri domni
persistenda esse decernimos, qualiter, quicquid de his agere uel iudicare elegerit serenitatis, suae clementia,
potestas illi indubitata elegerit [...]; passagem certamente amparada no conc.Viii tol.,a.653,c.2: [...] restat
ergo ut eo nostra pergat sententia quum misericordiae patuerit via, quae ita domino probatur accepta, ut plus
eam cupiat quam sacriicia veneranda, dicente ipso: ‘misericordiam voluit et non sacriicium’. Hec indulgentiae
concessa licentia miserationis ipsius opus in gloriosi principis potestate redigimus, ut quia deus illi miserendi
aditum patefecit, remedia pietatis ipse quoque non deneget, quae ita principali discretione moderata persistant,
ut et illis sit aliquatenus misericordia contributa et nusquam gens aut patria per eosdem aut periculum
quodquumque perferat aut iacturam, haec miserationis obtentu temperasse suiciat [...] omni custodia omnique
vigilantia insolubiliter decernimus observanda, a membrorum truncatione mortisque sententia religione penitus
absoluta [...].

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 197


RENAN FRIGHETTO

da pena capital pela decaluatio dos derrotados e seu ingresso na urbs regia
na forma de triunfo do vitorioso soberano 98 demonstra-nos a dinâmica da
iustitia régia,99 ao mesmo tempo em que revela-nos uma constante tensão
entre o discurso idealizador e carregado de exempla direcionados ao conjunto
da gens gothorum e as ações efetivas levadas a cabo pelos que a integravam,
adeptos das velhas tradições do morbo gothorum que levaram soberanos
como chindasvinto (642 – 651) e Egica (687 – 702) a exercerem o poder
de uma forma bastante enérgica contra seus rivais políticos, promovendo
expurgos que culminaram, em muitos casos, com o desterro de muitas gentes
para territórios fora dos limites do regnum gothorum.100
Ora, para entendermos as motivações geradoras das confrontações
políticas existentes no universo das gothicae gentes nos séculos VI e VII
devemos, igualmente, recuperar quais foram as formas de estabelecimento
e de fixação dos segmentos aristocráticos godos desde os meados do
século V nas áreas hispanas, especialmente no que diz respeito às alianças
estabelecidas, a nível local e regional, com as aristocracias hispano-romanas

98
iul.tol.,H.W.,27: [...] sed nulla mortis super eos inlata sententia, decaluationis tantum, ut praecipitur, sustinuere
uindictam [...]; 30: etenim quarto fere ab urbe regia miliario paulus princeps tyrannidis uel ceteri incentores
seditionum eius, decaluatis capitibus, abrasis barbis pedibusque nudatis, subsqualentibus ueste uel habitu
induti, camelorum uehiculis imponuntur. rex ipse perditionis praeibat in capite, omni confusionis ignominia
dignus et picea ex coreis laurea coronatus. sequebatur deinde hunc regem suum longa deductione ordo suorum
dispositus ministrorum, eisdem omnes quibus relatum est uehiculis insedentes eisdemque inlusionibus acti, hinc
inde adstantibus populis, urbem intrantes. nec enim ista sine dispensatione iusti iudicii dei eisdem accessisse
credendum est [...].
99
iul.tol.,H.W.,30: [...] sint ergo haec insequuturis reposita saeculis, probis ad uotum, improbis ad exemplum,
idelibus ad gaudium, inidis ad tormentum [...].
100
fred.,chron., 83: [...] tandem unus ex primatibus, nomine chintasindus, collectis plurimis senatoribus
gotthorum, caeteroque populo, in regnum spaniae sublimatur [...]: cumque omne regnum spaniae suae
dictioni irmasset, cognito morbo gotthorum, quem de regibus degradandis habebant, unde saepius cum ipsis
in consilio fuerat, quoscunque ex eis hujus vitii promptum contra reges, qui a regno expulsi fuerant, cognoverat
fuisse noxios, totos singillatim jubet interici aliosque exsilio condemnari, eorumque uxores et ilias suis idelibus
cum facultatibus tradit [...]. quoadusque hunc morbo gotthorum chintasindus cognovisset perdomitum, non
cessavit quos in suscipione habebat gladio trucidare [...]; chron.moz.,a.754,22:...chindasuintus per tirannidem
regnum gothorum inuasum. Yberie triumphabiliter principat demoliens gothos [...]; 41: [...] egika ad tutelam
regni gothorum primum et summum obtinet principatum [...]. Hic gothos acerua morte persequitur [...];
44: [...] egika in consortio regni uuittizanem ilium sibi heredem faciens gothorum regnum retemtant [...].
qui non solum eos quos pater damnauerat ad gratiam recipit temtos exilio, uerum etiam clientulus manet in
restaurando [...].
101
Alianças que faziam parte de uma ação política tradicionalmente perpetrada por Roma, segundo HORSTER,
M. Priestly hierarchies in cities of the Western Roman Empire?, p. 292: “[...] he portion of Romanness in
the above mentioned political, religious, and communicative aspects of the identity of people living outside
Italy is therefore oten described as the result of a ‘negotiation’ between Roman culture and local culture
[...]; while they are also visible symbols of Romanisation, and one of the features that demonstrate loyalty
to the Roman state and its representatives [...]”.

198 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


RELAçõES E DISTINçõES DOS cONcEITOS DE gens E populus E A cONSTRUçÃO DE UMA
identidade nobiliárquica NA Hispania VISIGODA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SÉcULOS VI – vii)

e autóctones 101 e o grau de aproximação, bem como de distanciamento,


com o poder régio ixado em Tolosa, na Aquitânia, até a sua desaparição no
ano de 507.102 Com o ressurgimento da autoridade régia goda na Hispania,
principalmente a partir das várias vitórias militares obtidas no reinado
de Leovigildo, vitorioso sobre importantíssimas gentes hispano-romanas,
godas e bárbaras,103 a necessidade de se encontrar uma identidade coesa
que explicasse a condição aristocrática unívoca das gothicae gentes, com
origens e objetivos coletivos vocacionados ao fortalecimento das instituições
políticas e sociais, acabou gerando uma ação ideológica e discursiva em prol
da unidade das várias gentes em uma única e poderosa gens gothorum.
De fato, sabemos que Leovigildo tentou articular essa unidade por meio
da tentativa de convencimento à conversão dos integrantes da aristocracia
hispano-romana e goda ao arianismo,104 sem ter obtido sucesso em sua
iniciativa. No reinado de Recaredo, como já apontamos anteriormente,
encontramos os primeiros passos efetivos dessa construção identitária a
partir da conversão das gentes godas e suevas ao catolicismo, já que pelos
escritos de João de Biclaro e de Isidoro de Sevilha associavam-se as gentes
aristocráticas e nobiliárquicas de forma uníssona, tratadas e apresentadas
de maneira singular como uma única gens gothorum que protegeria,

102
Ideia apontada igualmente por GARCIA MoRENo, L. A. Nobleza goda bajo el Islam, p. 336: [...] Esa
nobleza cordobesa de inales del reino godo tenia origenes mixtos, fruto de las alianzas matrimoniales
entre antiguos y ricos linajes decurionales romanos y los nuevos militares godos asentados en la región ya
a principios del siglo V [...]”. Para VALVERDE CASTRo, M. R. ideología, simbolismo y ejercicio del poder
real en la monarquía visigoda: un proceso de cambio. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca,
2000, p.128-9: “[...] Frente a la ocupación visigoda de los territorios galos, coordinada, en virtud del foedus,
por la autoridad central, la del rey visigodo, aceptada por todos independientemente de que lo hicieran
por su calidad de rey o por ser el delegado del poder romano imperial con atribuciones para dirigirla,
el traslado de la población visigoda a la Península Ibérica no contó con una dirección real tan acusada
[...]. En consonancia con el tipo de estructura social imperante, es lógico pensar que fuesen los seniores
gothorum quienes, seguidos de sus familiares, de sus comitivas privadas y de sus servidores, dirigieran
los desplazamientos y regulasen los asentamientos, asegurándose así un poder local que ya no derivaba
de su directa relación con la institución monárquica [...]”.
103
Vale recordar o indicado por VALVERDE CASTRo, M. R. ideología, simbolismo y ejercicio del poder real en
la monarquía visigoda, p. 129, “[...] el resultado del modo en que se llevó a cabo la inmigración visigoda a
la Península Ibérica fue el fortalecimiento de la nobleza, que se consolida como grupo de poder enfrentado
a la monarquía [...].”
104
Como indica ioan.bicl.,chron.,a.580,2: liuuigildus rex in urbem toletanam synodum episcoporum sectae
arrianae congregat et antiquam haeresim novello errore emendat, dicens de romana religione ad nostram
catholicam idem venientes non debere baptizari, sed tantummodo per manus impositionem et communionis
perceptione ablui, et gloriam patri per ilium in spiritu sancto dari [...].

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 199


RENAN FRIGHETTO

ao lado do princeps christianus, a patria hispana, a natio e o populus gothorum.


contudo, devemos recordar que esta ideia da gens unitária, condizente com o
discurso dos pensadores eclesiásticos hispano-visigodos e característico das
fontes historiográicas e moralizantes, dissipava-se no universo legislativo,
tanto laico como eclesiástico, assim como nos corpora de poemas e de
epístolas legados pelos escritores do regnum gothorum. Ao im e ao cabo,
o pragmatismo sociopolítico terminava por revelar-se nestes documentos,
onde a existência de várias gentes aristocráticas e nobiliárquicas que ora
aliavam-se e ora disputavam a primazia em um ambiente político comum
transformavam aquela realidade singular e unitária em uma cruenta disputa
plural que acabava por prejudicar todo o conjunto institucional do reino
hispano-visigodo de Toledo.

Considerações parciais

Com isso, podemos dizer que a confrontação política entre os grupos


aristocráticos-nobiliárquicos hispano-visigodos, conigurados por elementos
de procedência hispano-romana, goda, sueva e autóctone, determinou
a busca por parte da realeza católica da constituição ideológica da gens
gothorum, utilizando-se para tanto de um grupo de pensadores do ambiente
eclesiástico católico, como João de Biclaro, Isidoro de Sevilha e, mais para
o inal do século VII, Juliano de Toledo, interessados na construção da
unidade política e religiosa do regnum gothorum. Para além disso, as querelas
políticas internas entre as gentes hispano-visigodas seriam um fator a mais
de desunião, gerando instabilidades que atingiriam a instituição condutora
desse processo unitário, a realeza hispano-visigoda católica. No intuito de
se evitarem as turbulências políticas internas, comuns desde os tempos do
ariano Leovigildo, os pensadores eclesiásticos, na maioria dos casos apoiantes
do soberano reinante, elaboraram um relato histórico e moral voltado à
construção da unidade da gens gothorum, sendo esta portadora de valores
e virtudes aristocráticas ancestrais e, desde o III Concílio de Toledo de 589,
católicas. Essa gens gothorum, criada a partir de um discurso catalisador das
múltiplas e antagônicas gentes, seria responsável, juntamente com a igura do
princeps christianus, pela condução do populus à unidade político-religiosa do

200 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


RELAçõES E DISTINçõES DOS cONcEITOS DE gens E populus E A cONSTRUçÃO DE UMA
identidade nobiliárquica NA Hispania VISIGODA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SÉcULOS VI – vii)

regnum gothorum. contudo, paralelamente à constituição de uma única gens


dos godos, observamos que os autores analisados apresentam uma diversidade
social entre os partícipes do populus, estabelecendo um grau de hierarquização
social acorde com a tradição clássica e helenística greco-romana segundo a
qual os melhores e mais bem preparados seriam os verdadeiros responsáveis
pela condução dos desígnios do populus.
Devemos notar que esse discurso em prol da unidade encontrava-
se distante da realidade apresentada pelos acontecimentos descritos nas
fontes, na medida em que a proposta unificadora das gentes revelava,
ainda mais, as diferenças existentes entre elas e os demais segmentos
sociopolíticos hispano-visigodos. Além dessa evidente diferença entre
as gentes e os demais segmentos sociais do populus gothorum parece-nos
inquestionável constatar que as disputas e confrontações políticas entre os
integrantes das gentes hispano-visigodas, relacionadas com a própria eleição
régia, tornavam impossível uma unidade à volta de uma gens gothorum
idealizada, por exemplo, pelo relato histórico do hispalense. Apesar dessa
constatação, veriicamos certos indícios que revelavam a coesão das gentes
hispano-visigodas em termos sociais e culturais, como se observássemos
a formação de uma instituição aristocrático-nobiliárquica concorrente da
própria realeza, onde a interação entre aqueles grupos políticos tornava-os
verdadeiros potentados aristocráticos e nobiliárquicos portadores de poderes
e de patrimônios avultadíssimos que atingiam várias regiões da Hispania
visigoda, ensombrecendo e contrariando a autoridade régia e conigurando o
que denominamos como uma identidade nobiliárquica. gentes detentoras de
força e prestígio sociopolíticos que, em muitos casos, extrapolavam a própria
fronteira física do regnum gothorum, especialmente por meio de estratégias e
alianças matrimoniais que reforçavam a noção de solidariedade aristocrática
entre as gentes dos regna romano-bárbaros do ocidente tardo-antigo.
Apoios trocados entre grupos aristocráticos e nobiliárquicos que aparecem,
com certa intensidade, nos momentos em que os desterros de várias gentes
para fora do espaço de dominação da autoridade régia hispano-visigoda
mostram-nos por um lado exemplos de uma confrontação política interna
e de outro o suporte e a hospitalidade oferecidos pelos pares aristocráticos
externos, atitudes vistas pelo poder régio hispano-visigodo como atos de
perfídia e de traição dos que haviam abandonado o reino. Enim, parece-nos

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 201


RENAN FRIGHETTO

correto airmar que a unidade sociopolítica e cultural proposta pelo discurso


ideológico dos pensadores hispano-visigodos foi sobreposta pela diversidade
revelada pelas intensas disputas políticas entre as gentes hispano-visigodas
que culminaram com a derrocada da instituição régia hispano-visigoda nos
primórdios da oitava centúria.

abreviaturas

aug., de civ. dei: AUGUSTINUS HIPPoNENSIS, de civitate dei.


braul., epist.: BRAULIoNE CAESARAUGUSTANo EPISCoPo, epistulae.
braul., renot.isid: BRAULIoNE CAESARAUGUSTANo EPISCoPo, renotatio
isidori.
chron. moz., a.754: chronica mozarabica anno 754.
cic., de leg.: MARCUS TULIUS CICERUS, de legibus.
cic., de rep.: MARCUS TULIUS CICERUS, de republica.
conc.: concílios visigoticos e hispano-romanos.
eug. tol.,epist.: EUGENII ToLETANI EPISCoPI, epistulae.
form.Visg.: formulae Visigothicae.
fred., chron.: FREDEGARII SCHoLASTICI, chronicum.
greg. tour., Hf: GREGoRIUS TURoNENSIS, Historia francorum.
Hydt.,chron.: HyDATIUS AqUAFLAVIENSIS, chronica.
ild., de uir.ill.: ILDEPHoNSUS ToLETANUS EPISCoPUS, liber de uiris
illustribus.
ioan. bicl., chron.: IoANNIS BICLARENSIS, chronicon.
isid., carm.: ISIDoRUS HISPALENSIS, carmina.
isid., chron.: ISIDoRI EPISCoPI HISPALENSIS, chronica maiora.
isid., de dif.: ISIDoRUS HISPALENSIS, de diferentiis.
isid., de eccl. of.: ISIDoRUS HISPALENSIS, de ecclesiasticis oiciis.
isid., de uir.: ISIDoRUS HISPALENSIS, de Viris illustribus.
isid., etym.: ISIDoRUS HISPALENSIS, etymologiarum libri xx, ed. Manuel
DIAZ y DIAZ.

202 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


RELAçõES E DISTINçõES DOS cONcEITOS DE gens E populus E A cONSTRUçÃO DE UMA
identidade nobiliárquica NA Hispania VISIGODA NA ANTIGUIDADE TARDIA (SÉcULOS VI – vii)

isid., Hg: ISIDORI HISPALENSIS EPIScOPI, de origine gothorum.


isid., sent. ISIDORI HISPALENSIS EPIScOPI, sententiarum libri tres.
iul. tol., de compr. sex.aet.: IULIANUS TOLETANUS, de comprobatione
sextae aetatis.
iul. tol., ep. ad mod.: IULIANUS TOLETANUS, epistula ad modoenum.
iul. tol., H.W.; iud.; ins.: IULIANUS TOLETANUS, Historia Wambae; iudicium;
insultatio.
iul. tol., prog. fut. saec.: IULIANUS TOLETANUS, prognosticon futuri saeculi.
l. V.: lex Visigothorum.
max. caes., chron.: MAxIMI cAESARAUGUSTANI, chronicon.
or., Hist. adv. pag.: PAULUS OROSIUS, Historiarum adversum paganus.
ps. eug. tol., spec.: PSEUDO EUGENII TOLETANI, speculum.
sid. ap., epist.: SIDONII APOLINARIS, epistularum.
sid. ap., pan. av.: SIDONII APOLINARIS, panegyricus avito augusto.
siseb., epist. ad.: SISEBUTI GOTHORUM REGI, epistulae adualualdum.
taius, sent.: TAIONIS cAESARAUGUSTANI EPIScOPI, sententiarum libri
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Vf = ANONIMUS, Vita fructuosi.

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208 parte ii – poder, religião e identidade na antigUidade tardia


SoBre oS autoreS

aNa tereSa marQueS GoNÇalVeS é professora do Programa


de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, mestra
em História Social pela Universidade de São Paulo, doutora em História
Econômica pela mesma instituição, pesquisadora do Laboratório de Estudos
sobre o Império Romano (Leir) e bolsista produtividade do cNPq.

CatalINa BalmaCeDa é professora associada de História Antiga


da Pontifícia Universidade católica do chile, mestra e doutora pela
Universidade de Oxford.

ClauDIa BeltrÃo Da roSa é professora do Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
mestra em História Antiga e Medieval pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro, doutora em História pela Universidade Federal Fluminense e
membro do Núcleo de Estudos e Referências da Antiguidade e do Medievo
(Nero), da UniRio. Realizou ainda estágio pós-doutoral junto ao Programa
de Pós-Graduação em História comparada da UFRJ.

FáBIo Duarte JolY é professor do Programa de Pós-Graduação em


História da Universidade Federal de Ouro Preto, mestre e doutor em História
Econômica pela Universidade de São Paulo, pesquisador do Laboratório de
Estudos sobre o Império Romano (Leir) e bolsista produtividade do cNPq.

érICa CrIStHYaNe moraIS Da SIlVa é professora de História


Antiga do Departamento de História da Universidade Federal do Espírito
Santo, mestra em História pela mesma instituição, doutora em História
pela Universidade Estadual Paulista, campus de Franca, e pesquisadora do
Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir).

GIlVaN VeNtura Da SIlVa é professor dos Programas de Pós-


Graduação em História e em Letras da Universidade Federal do Espírito

Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos 209


SOBRE OS AUTORES

Santo, mestre em História Antiga e Medieval pela Universidade Federal do


Rio de Janeiro, doutor em História Econômica pela Universidade de São
Paulo, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano
(Leir) e bolsista produtividade do cNPq.

JoaNa CamPoS ClÍmaCo é professora de História Antiga da


Universidade Federal do Amazonas, mestra e doutora em História Social
pela Universidade de São Paulo e pesquisadora do Laboratório de Estudos
sobre o Império Romano (Leir).

márCIa SaNtoS lemoS é professora de História Antiga da


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (campus de Vitória da
conquista), mestra e doutora em História pela Universidade Federal
Fluminense.

ramÓN teJa é Professor catedrático de História Antiga da


Universidade de cantabria-Santander, doutor em História pela Universidade
de Salamanca e doutor honoris causa pela Universidade de Bolonha.

reNaN FrIGHetto é professor do Programa de Pós-Graduação em


História da Universidade Federal do Paraná, mestre em História Antiga e
Medieval pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em História
Antiga pela Universidade de Salamanca, pesquisador do Núcleo de Estudos
Mediterrânicos (Nemed), da UFPR, e bolsista produtividade do cNPq.

SIlVIa marCIa alVeS SIQueIra é professora do Programa de


Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do ceará, mestra e
doutora em História pela Universidade Estadual Paulista, campus de Assis.
Realizou ainda estágio pós-doutoral em História Antiga junto à Università
degli Studi Roma Tre.

210 Fronteiras e identidades no império romano: aspectos sociopolíticos e religiosos

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