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FORMAS E IMAGENS

DA CIDADE ANTIGA
BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO
Érica Cristhyane Morais da Silva
Gilvan Ventura da Silva
Organizadores
BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO
ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA
GILVAN VENTURA DA SILVA
(ORGANIZADORES)

FORMAS E IMAGENS
DA CIDADE ANTIGA

EDITORA MILFONTES

VITÓRIA
2020
EDITORA MILFONTES

Av. Adalberto Simão Nader, 1065, sala 302, Vitória/ES


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Os autores

Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica


João Carlos Furlani

Imagem da capa
Mosaico policromático de pavimento representando Jerusalém,
nomeada como hagia polis. O painel se encontra instalado na nave
central da Igreja de São Estêvão, em Umm Er-Rasas, atual Jordânia.
Sua confecção remonta ao período bizantino (século VIII).

CTP, impressão e acabamento


GM Gráfica e Editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

L732 Formas e imagens da cidade antiga / Belchior Monteiro Lima


Neto; Érica Cristhyane Morais da Silva; Gilvan Ventura da Silva
(Organizadores). - Vitória: Editora Milfontes, 2020. (Coleção Lux
Antiquitatis).
316 p.: 20 cm.: il.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-86207-10-1

1. Civilização Clássica. 2. Cidade. 3. Sociabilidades. 4. Espaço. I.


Lima Neto, Belchior Monteiro. II. Silva, Érica Cristhyane Morais
da. III. Silva, Gilvan Ventura da.

CDU: 94(37)
Sumário

Apresentação
9
Os organizadores

Arquitetura doméstica e moralidade: uma leitura da


Mostellaria, de Plauto 11
Claudia Beltrão da Rosa

In festiuo loco: observações sobre o teatro e a audiência na


época de Plauto 33
José Guilherme Rodrigues da Silva

A arquitetura romana entre a Arqueologia e a obra de


Vitrúvio: o exemplo do teatro romano de Bracara Augusta 61
Manuela Martins

A cidade entre duas arces: topografia e identidade na Roma


augustana 91
Thiago de A. L. C. Pires

Forma, função e uso dos espaços domésticos na cidade


antiga: as domus da Hispânia romana 117
Fernanda Magalhães

Urbanismo romano no Norte da África: considerações a


partir da documentação arqueológica 145
Maria Cristina Nicolau Kormikiari
A construção do espaço como estratégia política:
a romanização da paisagem urbana de Lepcis Magna
(sécs. I a.C.-II d.C.) 173
Belchior Monteiro Lima Neto

O platô de Dafne na Antiguidade Tardia: os usos do espaço


e a relação com a asty de Antioquia de Orontes 201
Érica Cristhyane Morais da Silva

Constantinopla além do Império Bizantino: a formação de


uma capital (séc. IV) 231
João Carlos Furlani

A rua e suas funções na cidade pós-clássica: algumas


reflexões sobre o caso de Antioquia (351-450) 265
Gilvan Ventura da Silva

Bracara e a cristianização das cidades ocidentais na


Antiguidade Tardia, algumas reflexões 293
Francisco Andrade e Luís Fontes

Sobre os autores 315


Apresentação

N
a atualidade, o estudo da cidade antiga revela-se cada
vez mais dependente do enfoque interdisciplinar, pois
é praticamente impossível, em virtude do extenso
repertório de informações provenientes das fontes literárias e,
sobretudo, da cultura material empreender-se qualquer incursão
nesta área sem considerar, ao mesmo tempo, os pressupostos
teóricos e os métodos de trabalho próprios da História Antiga e
da Arqueologia Clássica. Apesar das particularidades de cada uma
delas, não sendo por acaso que constituem dois ramos de saber
distintos, é indiscutível a notável contribuição de ambas para o
estudo da cidade antiga no que diz respeito ao seu ordenamento
territorial, aos arranjos arquitetônicos, às características da
população e outros tantos objetos possíveis. Ainda que as
reflexões em torno da cidade antiga constituam, desde pelo
menos a publicação, em 1864, de La cité antique, obra pioneira de
Fustel de Coulanges, um assunto amplamente debatido pelos
historiadores, não se pode, em absoluto, ignorar o trabalho
dos arqueólogos, profissionais laboriosos na identificação de
dezenas de cidades gregas e romanas, algumas das quais apenas
mencionadas de passagem nas fontes textuais, cujas características
físicas têm sido reconstituídas com base nos vestígios materiais.
Mediante a identificação de equipamentos arquitetônicos de
caráter público, bem como das habitações, das necrópoles ou dos
espaços conectados ao mundo do trabalho, é possível identificar a
morfologia urbana que enquadrava a vida das populações dessas
cidades, abrindo caminho para outras inferências relativas aos
domínios da política, da sociedade, da economia e da cultura.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 9


Esta coletânea situa-se nesse amplo campo de reflexão acerca
da cidade antiga, sendo um dos resultados do projeto de cooperação
internacional Usos do espaço na cidade antiga executado pelo
Laboratório de Estudos sobre o Império Romano da Universidade
Federal do Espírito Santo e pela Unidade de Arqueologia da
Universidade do Minho com financiamento da Capes e da FCT.
Por meio de um approach eminentemente interdisciplinar, os
investigadores brasileiros e portugueses têm se dedicado ao estudo
da configuração da cidade antiga com ênfase nas modalidades de
ocupação do espaço urbano pelos usuários. O principal objetivo
do projeto é verificar como os lugares e monumentos citadinos
– fóruns, teatros, anfiteatros, hipódromos, ruas, pórticos, praças,
termas – eram apropriados por aqueles que os frequentavam, que
com eles estabeleciam relações materiais, decerto, mas igualmente
simbólicas. Para tanto, foram selecionadas cinco cidades, três
situadas no Ocidente (Roma, Bracara Augusta e Cartago) e duas no
Oriente (Antioquia e Constantinopla). Os textos reunidos nesta
coletânea se referem todos a estes casos, num arco cronológico que
vai do século II a.C. ao VII d.C.
A obra que o leitor ora tem em mãos é, decerto, uma sólida
evidência de que o diálogo entre a História Antiga e a Arqueologia
Clássica, não obstante toda a complexidade que o cerca, tem-se
revelado, no limite, bastante produtivo, permitindo-nos hoje
conhecer muito mais sobre a cidade antiga do que no passado.
A coletânea foi concebida com o propósito de demonstrar
o quanto ambas as disciplinas, em conjunto, são capazes de
ampliar os nossos conhecimentos acerca da cidade, uma realidade
tão importante para os antigos quanto o é para nós, homens e
mulheres do século XXI.

Vitória, ES, fevereiro de 2020


Os organizadores

10 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


Arquitetura doméstica e moralidade:
uma leitura da Mostellaria, de Plauto

Claudia Beltrão da Rosa

C
ornélio Nepos, ao descrever a casa de Ático, o famoso
amigo de Cícero, apresenta uma distinção entre elegantia
(moralmente positiva) e magnificentia (moralmente
negativa), por meio de uma série de antíteses na qual termos
abstratos, e não informações objetivas, descrevem a domus como
um reflexo do seu proprietário:

Elegans, non magnificus; splendidus, non sumptuosus; omnisque diligentia


munditiam, no affluentiam. Supellex modica, non multa... nam cum esset
pecuniosus, nemo illo minus fuit emax, minus aedificator (Att., 13).

Elegante, não pretensiosa; esplêndida, não suntuosa, e todo


esforço se dava na busca da elegância, não da opulência. Seus
móveis eram razoáveis, não profusos... apesar de ser muito rico,
nenhum homem era menos inclinado a excessos em compras ou
em construções.1

Essa passagem tem uma lógica circular, decerto, e destaca


o tema ciceroniano do decorum.2 Cícero foi um dos mais prolíficos

1
As traduções dos trechos citados de Cícero são minhas.
2
Cf. Ernout e Meillet (2001, p. 166-167), s.v. decet, -uit, -êre, indicando o
sentido geral de “o que convém a”, o “conveniente”. O termo gerou muitas
derivações, significando o que é digno ou decente (decus), honrado (dedecus),
até os sentidos – notadamente ciceronianos – de ornar, embelezar, decorar,
decoroso (decor, decorus, decoratus) e seus opostos (e.g. indecorosus), que

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 11


ARQUITETURA DOMÉSTICA E MORALIDADE

autores latinos sobre o decoro na arquitetura doméstica (cf. Off.,


1, 126-138). A construção e o embelezamento de uma domus
eram, para Cícero, análogos ao comportamento pessoal, ao
discurso e ao porte:

Ornanda enim est dignitas domo, non ex domo tota quaerenda, nec domo
dominus sed domino domus honestanda est (Off., 1, 139).

A dignitas pode ser aumentada pela casa ornada, mas não


completamente obtida dela; o proprietário deve conceder honra à
sua casa, não a casa a seu proprietário.

As declarações de Cícero sobre a domus estão inseridas em


um debate secular sobre o luxo na arquitetura e na decoração
domésticas. Qual o limite a partir do qual a boa sofisticação se
torna a má opulência? Nossas mais antigas fontes da literatura
latina lidam com o problema moral do luxo na arquitetura
doméstica, assim como sua época, fins do século III e o século
II AEC,3 assistiu a uma intrigante legislação suntuária, com
repetidas – e muitas vezes ineficazes – tentativas de regulação de
banquetes, vestimentas e entretenimentos. A lex Orchia (181),
que limitava o número de convivas nos banquetes (Macr., 3, 17,
2-3) e a lex Oppia (215, repetida em 195) que, de acordo com
Tito Lívio (34, 1), restringia o total de ouro que as mulheres
podiam possuir, as proibia de vestir roupas multicoloridas e
restringia seu uso de carros, são as mais famosas.4 Mas, como

geraram, dentre outros vocábulos, um vasto campo semântico que chegou


até nós, mesmo que alguns empregos, como em nossa “decoração”, não
tenham mais um sentido moral explícito.
3
Todas as datas presentes neste capítulo são anteriores à Era Comum.
4
Ver Wallace- Hadrill (2008, p. 319-329) e Zanda (2001, p. 114-117).
Zanda argumentou que a lex Oppia não foi exatamente uma lei suntuária,
mas uma “medida de guerra”. Considero, porém, o argumento de Gruen

12 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


CLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

Plínio, o Velho (Naturalis Historia, 36, 4), chamou a atenção, se


as leis suntuárias, como a de C. Pulchro em 169, se importavam
com o consumo de arganazes nos banquetes, jamais se ocuparam
em regulamentar a importação de mármore colorido para os
edifícios privados.
Este texto não tem a intenção de entrar no longo debate
acadêmico sobre essa ausência de regulação da arquitetura
doméstica.5 Os textos supérstites de Catão, o Antigo, por
exemplo, sugerem que, seja qual for o motivo da ausência
de preocupação com as casas na legislação suntuária, o luxo
arquitetônico era um dos temas literários do século II. De
fato, na tradição literária romana, muitas vezes percebe-se que
a arquitetura doméstica podia ter um forte valor moral, tanto
positivo quanto negativo, e Boris Krostenko (2001), ao analisar
desenvolvimentos linguísticos na literatura romana no que
tange ao que denominou “a linguagem da performance social”,
argumentou que autores romanos do século II desaprovavam
práticas estéticas helenizantes e não reconheciam seus
benefícios sociais, sugerindo que não haveria evidências que
indicassem uma atitude benevolente em relação a essas práticas
anteriores à época de Plauto.6 Krostenko (2001, p. 75) declara

(1990, p. 143-146) mais persuasivo. Para Gruen, as provisões que esta


lei poderia garantir para o esforço de guerra eram muito limitadas, mas,
durante uma época de privação e grandes incertezas em relação ao futuro,
a finalidade era coibir atitudes extravagantes e ruidosas.
5
Argumentar que as casas ficaram excluídas dessas leis devido à sua
importância política e comercial para seus proprietários, como muitos
argumentam (cf. ZANDA, 2011, p. 18), não faz muito sentido, pois o
banquete, um dos maiores alvos dessa legislação, parece ter sido tão
importante para a vida pública de um paterfamilias quanto a decoração da
sua casa. Mas este tema não faz parte do escopo deste texto.
6
Catão, o Antigo, certamente teve um papel importante no discurso
moralista contra o luxo, mas apesar de ser usual interpretar este autor
como um ferrenho anti-helenista, contrário a qualquer coisa refinada,

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 13


ARQUITETURA DOMÉSTICA E MORALIDADE

que “é possível que alguns desses desenvolvimentos semânticos


tenham ocorrido durante, ou mesmo antes da vida de Plauto,
mas simplesmente não deixaram traços”. A comédia Mostellaria,
de Plauto, entretanto, pode trazer algumas nuances a essa visão.
A Mostellaria (“A comédia do fantasma”), do início dos
anos 190, é uma fonte ímpar para o estudo das modalizações
morais que podiam ser atreladas à casa. Dada a popularidade
das comédias e a escassez de textos provenientes da época de
Plauto, suas comédias são uma fonte inestimável para o estudo
da arquitetura doméstica em um momento no qual Roma
recebeu um grande influxo cultural grego.7 Escrita no contexto
da legislação suntuária, esta comédia revela a sofisticação do
discurso moralizante sobre a casa no século II.8 O uso recorrente
do termo pergraecari,9 invariavelmente relacionado ao excesso
moral (Mos., 22; 64; 960), é um bom indicativo da relevância desta
fonte para o estudo da linguagem dos mores romanos em relação
à casa urbana da elite. Do mesmo modo, estudiosos já chamaram
a atenção para a relevância desta comédia para o entendimento
da família e da casa romanas.10 Após apresentar as linhas gerais
do enredo da peça, o foco deste texto será concentrado no tema
da domus, sua ornamentação e o jogo entre virtudes e vícios,
com o objetivo de contribuir com alguns elementos para nosso

estudos mais recentes o apresentam como uma figura multivalente, com


um interesse genuíno na cultura grega.
7
Sobre as relações entre a cultura latina e romana no século II, ver
especialmente Gruen (1990, p. 124-157), Manuwald (2011, p. 282-292),
Mcelduff (2013) e Feeney (2016, p. 138-146).
8
Sobre os sofisticados jogos de palavras nas comédias plautinas, que
pressupunham grande habilidade linguística em latim e em grego, ver
Fontaine (2010).
9
Reina Pereira (2014) traduz pergraecari como “viver à grega”, na tradução
portuguesa da Mostellaria utilizada neste texto. Outra tradução possível é:
“se comportar como um grego”.
10
Ver, esp., Leach (1969), Grimal (1976), Perutelli (2000) e Milnor (2002).

14 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


CLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

conhecimento sobre os aspectos moralizantes da arquitetura


doméstica romana nesta obra que se propõe a discutir as
diversas modalidades de apropriação dos espaços na cidade
greco-romana, seus monumentos arquitetônicos e as múltiplas
representações da vida urbana.

As linhas gerais da comédia Mostellaria

O enredo da Mostellaria se desenvolve em torno do jovem


ateniense Filólaques que, no retorno inesperado de seu pai, o
mercador Teoprópides, de uma longa viagem ao Egito, tem que
prestar contas de sua vida irresponsável e perdulária – e o maior
dos gastos foi a libertação e a manutenção de Filemácio como
uma rica meretriz. Em vez de confrontar seu pai, Filólaques,
com a ajuda de cúmplices, especialmente de seu mentor, um
escravo inteligente chamado Tranião, ganha tempo usando dois
estratagemas. Em ambos, uma casa desempenha o papel central.
O primeiro estratagema é que a casa de Teoprópides estaria mal-
assombrada e, por isso, seu pai não deveria entrar nela – pois,
se o fizesse, perceberia os rastros das atividades de Filólaques.11
A segunda maquinação é que Filólaques teria comprado a
suntuosa casa vizinha, que de fato pertencia a Simão. Essa
segunda artimanha provê um motivo para Filólaques justificar
ao pai o imenso gasto de dinheiro que fez durante sua ausência,
ao passo que distraía sua atenção de sua própria casa para a casa
do vizinho.12 As mentiras de Tranião e Filólaques vão por água
abaixo quanto o honesto escravo Fanisco revela a verdade ao
arruinado Teoprópides. Um final feliz, todavia, é garantido pelo

11
Sobre o tema das casas mal-assombradas na literatura grega e romana,
ver Felton (1999).
12
Sobre essas artimanhas, ver Sharrock (2000, p. 101-105).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 15


ARQUITETURA DOMÉSTICA E MORALIDADE

jovem Calidamates, sodalis de Filólaques, que paga todo o débito


de seu amigo. Filólaques e Tranião são perdoados pelo pater, e
todas as personagens masculinas terminam felizes e contentes.
Até certo ponto, o enredo da Mostellaria segue o padrão das
comédias plautinas: um caso de amor envolvendo meretrizes,
a viagem de uma ou mais personagens e seu retorno sem aviso
prévio, e escravos inteligentes e criativos sobrepujando seus
mestres. Outros aspectos, porém, são anômalos: por exemplo,
o affair entre Filólaques e Filemácio é superficialmente tratado
e não tem conclusão. A meretriz Filemácio não tem fala após
Mos., 347, em uma peça com 1181 linhas. Nem ela, nem
Filólaques estão em cena após Mos., 406. De fato, o próprio
Filólaques não retorna à cena sequer para a reconciliação final
com seu pai – ele é perdoado in absentia, durante uma transação
financeira entre seu pai e seu amigo de banquetes. Não há
também nenhuma sugestão de um casamento, mas apenas
transações financeiras em cena, configurando uma conclusão
peculiar para essa comédia.13
Um tema recorrente na Mostellaria é o vício e suas
consequências. O gosto desenfreado de Filólaques por
banquetes, bebedeiras e meretrizes é definido como “vícios
gregos”, de modo estereotipado, fazendo ressoar no palco
convenções do discurso moralizante romano: a depreciação
do filelenismo, caracterizado pelo gosto dos banquetes, do
excesso de bebida e pela prostituição.14 Um tema correlato é
a constante comparação entre a virtude das gerações passadas
e o vício da presente. Quando se trata de criticar práticas

13
Para alguns estudiosos esta peça não tem um final robusto e adequado
no interior do corpus plautino: ver Leach (1969, p. 331-332) e Milnor (2002,
p. 21-22). No entanto, se observarmos a centralidade do tema da domus na
comédia, essa conclusão é plenamente satisfatória.
14
Sobre o discurso moralizante romano, ver especialmente Edwards (1993).

16 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


CLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

helenizantes, as personagens não medem palavras. Um bom


exemplo é quando o escravo rústico Grumião critica Tranião
por encorajar o mau comportamento de Filólaques, falando
sobre o estilo de vida do rapaz durante a ausência do pai.15
Trata-se de uma súmula de vícios:

nunc, dum tibi lubet licetque, pota, perde rem,


corrumpe erilem adulescentem optumum;
dies noctesque bibite, pergraecamini,
amicas emite liberate, pascite
parasitos, obsonate pollucibiliter (Mos., 20-24).16

Dentro de pouco tempo, Tranião, estarás a engrossar o número


daqueles que labutam no campo, no grupo dos que estão a ferros.
Por ora, enquanto quiseres e puderes, embebeda-te, dissipa os
bens, corrompe o teu jovem e excelso patrão! Bebam dia e noite!
Continuem a viver à grega! Adquiram umas concubinas e depois
libertem-nas! Alimentem os parasitas! Comam à larga!17

A comparação entre o escravo urbano e o rústico era


um tema tradicional na comédia grega, mas na cena plautina
ganha um novo significado: se excessos alimentares, etílicos
e sexuais seriam características gregas, em uma época de
grande enriquecimento, intensos contatos culturais e crescente
sofisticação da vida romana, o que seria “comportar-se como um
romano”?18 De fato, em todas as ocorrências na peça, pergraecari

15
Leigh (2004, p. 102-3) é um bom comentário sobre a oposição
entre a rusticidade e a urbanidade personificadas pelos dois escravos,
respectivamente Grumião e Tranião.
16
Texto em latim extraído da edição de F. Leo (1895).
17
Todas as traduções da Mostellaria são de Reina M. T. Pereira, para a
coleção Classica Digitalia (2014), levemente modificadas quando necessário.
18
Sobre o tópico tradicional da comparação entre escravo urbano e escravo
rústico na Comédia Nova, com nítida valorização moral do escravo rústico,
ver Hunter (1985, p. 110). Como Denis Feeney (2016, p. 56) recentemente

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 17


ARQUITETURA DOMÉSTICA E MORALIDADE

tem um sentido pejorativo, referindo-se a um comportamento


imoral.19 A súmula de Grumião apresenta formas excessivas e
moralmente condenáveis de “comportar-se como um grego”.
Nessa súmula de vícios, a forma, o arranjo e a disposição
da arquitetura doméstica não são citadas. Contudo, envolvidas
em uma série de eventos que giram em torno de duas casas,
as personagens repetidamente trazem questões e temas
que se tornarão típicos das críticas romanas a construções
excessivamente luxuosas – por exemplo, as insinuações de
libertinagem e comparações moralmente assimétricas entre o
luxo em edifícios públicos e privados. Mesmo assim, a arquitetura
doméstica luxuosa jamais é nomeada explicitamente como um
vício nesta comédia. Mais ainda, a domus luxuosa surge como um
elemento compatível com – e às vezes um estímulo para – tanto
a retidão moral quanto o sucesso social e político.
Na cena citada, Teoprópides, o pater, realmente acredita que
seu dinheiro foi muito bem investido na compra da casa de Simão.
O inventivo Tranião convencera Simão de que Teoprópides queria
usar sua casa como um exemplum (Mos., 762), fazendo com que
o rico proprietário abrisse suas portas para o iludido mercator, e
as personagens apresentam à audiência uma riqueza de detalhes
arquitetônicos dessa domus. Os espaços domésticos mencionados
em outras comédias plautinas, como os impluvia (cf. Mil., 173-175;
Am., 1108) e os atria (e.g. Aul., 518) são tipicamente romanos.20

defendeu: “Uma parte importante do projeto de apropriação desses textos


não é apenas encontrar o grau certo de uniformidade, mas encontrar o grau
certo de deslize para acomodar e representar as diferenças entre as culturas
e seus idiomas”.
19
Assim como em Bacchides, 813, e o correlato congraecare aparece em Bac.,
743. Ver também o “discurso” de Estico em St., 446-448, que lista vícios e
os define como sendo gregos. Cf. Gruen (1990, p. 153).
20
Sobre essas características romanas, ver Leach (1969, p. 324) e Milnor
(2002, p. 21).

18 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


CLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

A descrição da casa de Simão, com seu gynaeceum e seu porticus,


por sua vez, deve ter parecido exótica para a audiência. Ainda
que algumas características da casa de Simão tenham paralelos
com o registro arqueológico grego, suas exageradas dimensões
tornavam-na caricaturais.21 Ao ser informado de que Filólaques
comprara a casa, o pai exulta de alegria pelo sábio investimento
do filho, que “se parece com o pai e se tornou um mercador”
(eugai! Philolaches/ patrissat: iam homo in mercatura uirtitur, Mos., 638-
639). Inspecionando a casa no palco cômico, ele admira sua bela
“aquisição”, guiado por Tranião:

Tr. - ... quid porticum?


Th. - Insanum bonam. non equidem ullam in publico esse maiorem hac existimo.
Tr. - Quin ego ipse et Philolaches in publico omnis porticus sumus commensi.
Th. - Quid igitur?
Tr.- Longe omnium longissima est.
Th. - Di immortales, mercimoni lepidi. si hercle nunc ferat sex talenta magna
argenti pro istis praesentaria, numquam accipiam (Mos., 908-911).

Tranião - ... E o pórtico?


Teoprópides - Muitíssimo bom. Estou praticamente certo de que
não há nenhum pórtico público que seja maior do que este.
Tranião - O quê?! Eu e Filólaques chegámos mesmo a medir todos
os pórticos nos edifícios públicos.
Teoprópides - E então?
Tranião - É de longe o maior de todos.
Teoprópides - Ó deuses imortais, que excelente compra! Por
Hércules, se ele me pusesse agora à disposição seis talentos de
prata em troca disto, eu não aceitaria.

21
Kristina Milnor (2002, p. 21-22; 2005, p. 132-139) apresenta o gynaeceum
como um sinal de “grecidade” nos textos romanos, assim como comenta a
atual controvérsia acadêmica em relação à presença desses elementos nas
casas gregas. Ver também Fontaine (2010, p. 183-187) sobre o tema. Sobre
a “casa de Simão”, ver Leach (1969, p. 326-329).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 19


ARQUITETURA DOMÉSTICA E MORALIDADE

Neste breve diálogo entre Tranião e Teoprópides,


encontramos um pórtico maior que todos os pórticos públicos,
um absurdo que estimula o riso.22 Não há, porém, uma indicação
direta de que esse exagero arquitetônico seja imoral.23 O riso
assoma não porque o velho mercador aprova os elementos
helenizantes e exageradamente suntuosos da casa de Simão,
mas porque a personagem se deixa facilmente enganar pelo
escravo devido à sua avidez pela propriedade. As preocupações
de Teoprópides são totalmente financeiras, não morais, o que é
comprovado pela rapidez com que perdoa o filho irresponsável
assim que recupera seu dinheiro perdido. De fato, Teoprópides
chega a estimular o comportamento desregrado do filho – desde
que não seja às suas expensas:

immo me praesente amato, bibito, facito quod lubet/sic hoc pudet, fecisse
sumptum, supplici habeo satis (Mos., 1164-1165).

Que a minha presença não o impeça de amar, de beber e de fazer


o que queira! Desde que ele tenha honradez e pague a despesa,
dou-me por satisfeito.

Uma amoralidade similar caracteriza as reações de Simão


que, como Teoprópides, está interessado apenas no lado prático
das coisas. Sempre que surge em cena, Simão está apressado
e ocupadíssimo, com negotia a tratar, correndo ao forum, assim
como não aprecia as lautas refeições para não ficar sonolento
e distraído. Simão chega mesmo a simpatizar com o estilo de

22
Wallace-Hadrill (1994, p. 20-23; 1997) e Dickmann (1997) defendem que
o pórtico ou peristilo não foi um elemento característico da casa romana até
o fim do século II.
23
Ver contra: Leach (1969, p. 32), que argumenta em prol da imoralidade
das características da casa de Simão e que a aprovação de Teoprópides seria
um vitium.

20 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


CLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

vida de Filólaques e Tranião (Mos., 728-731), e concorda em não


revelar os malfeitos do filho ao velho mercador (Mos., 744-745).
Mas, quando Tranião o cumprimenta dizendo patrone salve, Simão
afasta o escravo dizendo: nil moror mi istiusmodi clientes (Mos., 746,
“Não dou valor nenhum a este tipo de clientes”). Simão, com
isso, deixa claro que sua declaração de simpatia não implicava
um vínculo social com os dois jovens perdulários.

Os mores, a ornamentação e a casa

A devassidão de Filólaques é sintetizada na domus que


ele supervisionou durante os três anos de ausência de seu pai.
Não só suas bebedeiras, festins e excessos sexuais aconteciam
ali, mas a casa também evoca o estado de ruína das finanças da
família na fala de Grumião:

pro di immortales, obsecro vostram fidem/facite, huc ut redeat noster quam


primum senex/triennium qui iam hinc abest, prius quam omnia/periere, et
aedis et ager (Mos., 79-80).

Ó deuses imortais, dai-me o vosso apoio! Fazei com que o nosso


velho senhor, ausente há já três anos, regresse o mais rápido
possível, antes que tudo esteja perdido: não só a casa, mas também
as terras.

E o canticum de Filólaques em Mos., 84-156 explicita


a analogia entre seres humanos e as formas arquitetônicas,
comparando a responsabilidade cívica e a masculinidade social
adequada a uma casa bem disposta e gerida:

[...] hominem cuius rei, quando natus esset,/similem esse arbitrarer


simulacrumque habere:/ id repperi iam exemplum/ novarum aedium esse

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 21


ARQUITETURA DOMÉSTICA E MORALIDADE

arbitror similem ego hominem/quando natus est/ei rei argumenta dicam


(Mos., 88-92).

[...] a que poderia eu comparar o homem quando nasce, e a que


é que eu poderia dizer que se assemelha? E já encontrei uma
comparação para isso. Eu penso que o homem, ao nascer, se parece
a uma casa nova e vou apresentar algumas provas disso.

Uma casa nova é inocente como um bebê, e as influências


externas posteriores podem tanto melhorá-la quanto destruí-la.
Os gastos na construção e decoração de uma casa são equiparados
à educação e ao desenvolvimento do caráter:

Philolaches - [...] aedes quom extemplo sunt paratae, expolitae, factae


probe examussim,/laudant fabrum atque aedes probant, sibi quisque inde
exemplum expetunt,/ sibi quisque similis volt suas, sumptum operam non
parcunt suam./atque ubi illo immigrat nequam homo, indiligens/ cum pigra
familia, immundus, instrenuos,/ hic iam aedibus vitium additur, bonae cum
curantur male (Mos., 101-107).

Filólaques - Assim que uma casa está pronta, ornamentada,


eximiamente bem-acabada, louva-se o arquiteto e aprecia-se a
habitação. Cada um, a partir de então, deseja adquirir um exemplar
idêntico para si. Cada qual quer que a sua casa seja semelhante
e não poupa custos, nem esforços. Mas quando um libertino,
negligente, imundo, preguiçoso, com uma caterva de escravos
indolentes aí se instala, vai introduzir o vício na casa, a qual, ainda
que seja de boa qualidade, é malcuidada.

A profusão de adjetivos disfóricos aplicada ao


proprietário negligente indica que moralmente condenável não
é o luxo doméstico, e sim descuidar da casa. As frases seguintes
explicitam a condenação:

22 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


CLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

Philolaches – [...] atque illud saepe fit: tempestas venit,/ confringit tegulas
imbricesque: ibi/ dominus indiligens reddere alias nevolt;/ venit imber,
perlavit parietes, perpluont,/ tigna putefacit, perdit operam fabri:/ nequior
factus iam est usus aedium./ atque ea haud est fabri culpa, sed magna pars/
morem hunc induxerunt: si quid nummo sarciri potest,/ usque mantant neque
id faciunt, donicum/ parietes ruont: aedificantur aades totae denuo./ haec
argumenta ego aedificiis dixi;/ nunc etiam volo/ dicere, ut homines aadium
esse similis arbitremini./ primumdum parentes fabri liberum sunt:/ ei
fundamentum substruont liberorum;/ extollunt, parant sedulo in firmitatem/
et ut in usum boni et in speciem/ poplo sint sibique, haud materiae reparcunt/
nec sumptus ibi sumptui esse ducunt;/ expoliunt: docent litteras, iura leges,/
sumptu suo et labore/ nituntur, ut alii sibi esse illorum similis expetant./ ad
legionem cum ita paratos mittunt, adminiclum eis danunt/ tum iam, aliquem
cognatum suom/ atenus. abeunt a fabris. unum ubi emeritum est stipendium,
igitur tum specimen cernitur, quo eveniat aedificatio... (Mos., 105-130).

Filólaques – [...] E, muitas vezes, acontece isto: chega o mau


tempo e a chuva quebra as telhas. Então, o dono indiligente
recusa-se a colocar outras. Vem a chuva: humedece as paredes,
que começam a verter água; apodrece os barrotes e arruína a obra
do construtor. A casa já não se encontra em bom estado, mas não
é por culpa do empreiteiro. Contudo, um considerável número de
pessoas adquiriu este hábito - se uma coisa puder reparar-se com
dinheiro, deixam sempre andar e não o fazem até que as paredes
caem e a casa tem de ser toda reconstruída de novo. Acabei de
expor o meu raciocínio no que respeita às casas e agora pretendo
dizer-vos em que medida é que pode julgar-se que os homens se
assemelham a uma casa. Inicialmente, os pais são os empreiteiros
dos seus filhos. São eles que fundam os seus alicerces, os erguem
e os preparam com zelo, no que diz respeito à firmeza de carácter,
e para que se mostrem bons para o trabalho e também aos olhos
do povo. Não poupam nos materiais, nem consideram a despesa
com isso elevada. Cultivam-nos, ensinam-lhes gramática, direito,
leis, esforçam-se, a expensas e trabalhos seus, para que os outros
pais desejem que os filhos deles sejam idênticos aos seus. Quando
chega a altura, enviam-nos para o serviço militar e dão-lhes, como
escora, um parente seu. Nesse momento saem das mãos dos seus
construtores. Quando se recebe o soldo, então pode ver-se uma
amostra daquilo em que irá tornar-se a casa [...].

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 23


ARQUITETURA DOMÉSTICA E MORALIDADE

A educação dos filhos é comparada à construção e


refinamento de casas, e os filhos surgem como proprietários
dessas casas, que podem ser melhoradas ou destruídas. Uma
casa malcuidada, arruinada, é sinal de uma vida dissoluta. A
ênfase do canticum de Filólaques não é dada às fundações da
casa que os pais/construtores provêm aos filhos. Os pais são os
construtores dos seus filhos, mas um resultado ruim não é culpa
dos construtores e sim do proprietário da casa. As expressões
aedes quom extemplo sunt paratae, expolitae, factae probe examussim,/
laudant fabrum atque aedes probant (Mos., 101-102) e ut alii sibi esse
illorum similis expetant (Mos., 128) remetem à aprovação social
e a resposta esperada é a emulação da casa bem decorada e
bem-cuidada. Os gastos com os refinamentos arquitetônicos
domésticos de modo algum merecem censura. Ao contrário, a
casa “ornamentada e eximiamente bem-acabada” é motivo de
elogios públicos.
Observemos agora o uso, na Mostellaria, de um verbo
em especial: expolire. Uma busca simples do uso deste verbo
por Plauto revela que era utilizado especialmente para
falar do embelezamento de pessoas, tendo um significado
cosmético.24 Logo após o canticum de Filólaques, ocorre
um diálogo entre a bela meretriz Filemácio e sua escrava
Escafa, no qual as expolitiones cosméticas têm um lugar
central, aproximando o embelezamento de Filemácio e a
ornamentação da casa romana.

24
No Truculentus 553, por exemplo, uma personagem “se embeleza com
atributos ímprobos” (inprobis se artibus expoliat). No Poenulus 188, o termo
também é usado para descrever o embelezamento artificial de uma meretriz.

24 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


CLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

A domus e a meretriz

O diálogo entre Filemácio e Escafa traz o embelezamento


da meretrix para a exterioridade do palco cênico, tornando-o
visível para a audiência. Há um forte contraste entre a
apresentação positiva do refinamento arquitetônico e decorativo
da domus no canticum de Filólaques e a apresentação negativa
do embelezamento da meretriz pela ama Escafa. A cuidadosa
preparação cosmética de Filemácio tem um objetivo muito claro:
a sedução de Filólaques:

cedo mi speculum et cum ornamentis arculam, Scapha/ ornata ut sim, quom


huc adveniat Philolaches voluptas mea (Mos., 248-249).

Escafa, dá-me cá imediatamente o espelho e a caixa das joias para eu


me adornar, para quando Filólaques, a alegria da minha vida, chegar.

Enquanto no canticum de Filólaques, o caráter masculino,


assim como a casa, deve ser decorado com refinamento, no
diálogo em questão Escafa diz a Filemácio:

quin tu te exornas moribus lepidis, quom lepida tute es? non vestem amatores
amant mulieris, sed vestis fartim (Mos., 168).

Por que motivo estás a enfeitar-te, graciosa como tu és, com os


teus modos encantadores? Não é a vestimenta da mulher que os
namorados apreciam, mas sim o seu conteúdo.

De fato, muitos aspectos do embelezamento de Filemácio


têm ressonâncias artísticas e arquitetônicas. Ela pede que Escafa lhe
entregue a cerussa (alvaiade) e o purpurissum (carmim), substâncias
também usadas na decoração de paredes (Mos., 255; 260), ao que

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 25


ARQUITETURA DOMÉSTICA E MORALIDADE

a escrava retruca: nova pictura interpolare vis opus lepidissimum? (Mos.,


262, “Então estás a querer alterar a mais formosa das obras de arte
com uma nova pintura?”). Segundo Kelly Olson (2009, p. 309):

[...] os materiais com os quais as mulheres costumavam se pintar


eram frequentemente as tintas usadas pelos artistas antigos. A
fuligem ou cinzas, usadas pelas mulheres para delinear os olhos,
também foram coletadas e usadas por pintores de afrescos; melinum
e alvaiade foram empregados como tintas [...]. Isso é intrigante em
vista do fato de que é possível ver as mulheres romanas da elegia
erótica como uma construção artística, algo observado por vários
estudiosos. Ela literalmente se constrói como um objeto de arte
usando inclusive os mesmos materiais que os artistas.

A comédia Mostellaria provê uma das mais antigas


evidências dessa relação entre a cosmética e a produção da obra
de arte. E Escafa tenta dissuadir Filemácio de usar o espelho:
quae tute speculo speculum es maxumum? (Mos., 251, “tu que és o
melhor espelho em que alguém pode espelhar-se?”). Mais tarde,
na peça, o uso do espelho também aparece na verificação cômica
da beleza da suposta nova casa de Teoprópides (Mos., 642). O
diálogo entre a meretriz e sua ama explicita a questão moral
das expolitiones que, de um modo ou de outro, são investimentos
financeiros. Aplicado à casa, expolire significa o aperfeiçoamento
estético, incluindo um sentido moral. Escafa, porém, insiste
em relembrar Filemácio de que a beleza da jovem em breve
desaparecerá (Mos., 196; 202) e Filólaques a abandonará,
assim como ela, Escafa, foi abandonada quando seus cabelos
começaram a embranquecer (Mos., 201). Isso porque matronae,
non meretricium est unum inservire amantem (Mos., 188, “Estar ao
serviço de um só é para uma matrona, não para uma meretriz”).
Escafa destaca aqui a diferença social e moral entre uma matrona
e uma meretriz.

26 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


CLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

Desse modo, por mais que Filemácio se esforçasse com


seus artifícios cosméticos, sua decadência era inexorável, e ela
desperdiçava um tempo precioso sendo fiel a Filólaques. A
decadência da casa no canticum de Filólaques, ao contrário, podia
ser revertida. A comédia, então, justapõe a ornamentação da domus
e a ornamentação da jovem meretriz como conflitantes focos de
investimento financeiro por parte de seus “proprietários”, e a
casa é vitoriosa na disputa moral: a meretriz necessariamente
falhará em atingir seu objetivo. Teoprópides – fonte última e
árbitro das despesas da família – não tem a menor intenção em
investir em uma dispendiosa meretriz, mas se mostra muito
satisfeito em investir em uma rica domus (Mos., 970-980).
É certo que a Mostellaria não nos fornece muitos detalhes
práticos sobre as casas romanas, mas quando observada em
comparação com outras fontes literárias da época, a comédia
plautina indica uma crescente sofisticação na decoração e na
arquitetura domésticas. A Mostellaria também não oferece uma
visão uniforme sobre os aspectos morais ligados à suntuosidade
arquitetônica, mas sugere que investir verdadeiras fortunas
em casas privadas – em vez de esbanjar em “vícios gregos”
como as comilanças, as bebedeiras e as meretrizes – podia ser
um investimento sólido e compatível com as virtudes morais
romanas. Talvez as mesmas audiências que assentiram ao discurso
moralizante de Catão, o Antigo, contra o luxo arquitetônico,
podem também ter participado de um contra-discurso que dava
um valor positivo ao crescente refinamento doméstico.

Conclusão

Na comédia Mostellaria, a casa refinada, bem ornamentada,


suntuosa, aparece ora como uma manifestação visível de falta de

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 27


ARQUITETURA DOMÉSTICA E MORALIDADE

moderação ou ostentação, mas também como um investimento


moral e financeiramente positivo. É consenso pensar que a
domus urbana era uma arena de poder social e político na Roma
antiga, e a literatura romana permite concluir que também havia
implicações éticas relacionadas à forma e à disposição das casas.
Enquanto as peças de Plauto se baseiam fortemente na Comédia
Nova, especialmente em Menandro, e apresentam personagens
com nomes gregos em locais distantes de Roma, elas são
construídas para atrair um público romano. O resultado no
palco da Mostellaria está longe de ser uma representação literal
de Roma, mas, situada no contexto do discurso retórico e moral
contemporâneos, a comédia plautina contribui fortemente para
o estudo das casas romanas.
É em consonância com os valores culturais e costumes
sociais romanos que suas representações arquitetônicas refletem
mais visivelmente as preocupações de sua época na construção
e decoração das casas de elite, o que era aceitável e o que não
era. Uma domus – que abrigava familiares, visitantes, clientes em
diversas atividades que a ligavam diretamente ao forum romanum
– não refletia uma vida íntima ou privada, compartilhada com
amigos e familiares, mas principalmente a imagem que um
paterfamilias desejava projetar em Roma, mesclada com interesses
econômicos, sociais, culturais e políticos. No século II, essas casas
se sofisticavam com o fluxo crescente de riquezas materiais que
chegavam a Roma. Os moralistas romanos do período augustano
e depois, quando censuram as casas de seus contemporâneos,
muitas vezes evocam uma suposta simplicidade modesta dos
tempos de Catão, o Antigo (Hor., Carm., 2, 15, 10-12). Essa
nostalgia melancólica do moralismo romano tardio não nos
fornece uma visão precisa da vida material e dos valores morais
romanos do século II. As fontes que chegaram até nós e aqui,
especialmente, a comédia Mostellaria, de Plauto, revelam um

28 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


CLAUDIA BELTRÃO DA ROSA

alto nível de sofisticação nas casas e no discurso da arquitetura


doméstica em Roma desde muito cedo.
A comédia de Plauto zomba da relação entre materialismo
e moralidade, e é profundamente irônica. O afã desmedido do
paterfamilias Teoprópides pela magnificamente ornamentada e
extravagante casa de Simão é ridículo, assim como ridículo é o
comportamento embasbacado e perdulário de Filólaques diante
da magnífica Filemácio. Contudo, o ridículo Teoprópides não é
moralmente condenável na peça, ao contrário do comportamento
de seu filho dissoluto. Além disso, sua casa se recuperará
com o dinheiro que recebeu de Calidamates – e os motivos do
companheiro de banquetes de Filólaques para desembolsar tão
vultosa quantia não são explicados. No entanto, a ornamentação
dispendiosa e exuberante de Filemácio, apesar de encantadora, está
destinada a se esvair no abandono das meretrizes envelhecidas,
nesta comédia sem promessas finais de casamentos ou qualquer
indício de que “viveram felizes para sempre”. Diante da cena
plautina, provavelmente alguns espectadores acreditavam que
investir largas somas em uma bela domus não era o mesmo que
se endividar para manter e embelezar uma bela meretrix, mas
também podia haver quem classificasse o luxo na arquitetura
doméstica como um vício ao lado da prostituição, uma maneira
de “comportar-se como um grego”.

Referências

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32 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


In festiuo loco: observações sobre o teatro e
a audiência na época de Plauto

José Guilherme Rodrigues da Silva

Introdução

P
lauto floresceu entre o final do século III a.C. e 184 a.C.,
o ano de sua morte. Provavelmente iniciou a carreira de
comediógrafo em idade madura, durante os anos finais
da Segunda Guerra Púnica,1 quando as comédias em Roma se
tornaram mais frequentes e populares (Festus, 274; Hieronymus,
Chronicon, Ol., 145, 1; Cicero, De senectute, XIV, 50; Cicero,
Brutus, XV, 60; Aulus Gellius, Noctes atticae, XVII, 21, 46-47).
Suas comédias – as palliatae2 – são modelo para textos teatrais e
traduzidas do latim para os vernáculos desde o final do século
XV (HARDIN, 2003-2004, p. 255 e ss.).
As apresentações dramáticas, das quais as comédias
plautinas faziam parte, eram denominadas ludi scaenici.3 Foram

1
A Segunda Guerra Púnica ocorreu entre 218 e 202 a.C.
2
As comédias romanas das primeiras décadas eram adaptações de
comédias gregas. São denominadas de palliatae, ou seja, comédias “em
vestimenta grega”, pois preservam temas, personagens e ambientes de
palco dos originais gregos. O nome provém da vestimenta grega himátion,
denominada pelos romanos de pallium. Todos os atores da palliata eram
homens, que representavam inclusive os papéis femininos (BEARE, 1951,
p. 176; DUCKWORTH, 1994, p. 18).
3
“Jogos cênicos”, “festivais cênicos”, “jogos teatrais”. As traduções podem
variar entre “cênicos”, “dramáticos”, “de palco”, “teatrais”, etc.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 33


IN FESTIVO LOCO

instituídas em 364 a.C. para expiar uma pestilência surgida no


ano anterior, nos informa Tito Lívio (VII, 1-2). Mais de cem
anos depois, em 240 a.C., as primeiras peças com enredo foram
compostas por Lívio Andrônico (WARMINGTON, 1936, p.
x-xi).4 Na época de Plauto, os ludi scaenici estavam estabelecidos,
e os atores – histriones5 – se uniam em greges,6 guildas moldadas
nas texnîtai gregas.7 Plauto menciona a sua (Poenulus, 1425):
“grex plaudite”.8
Os ludi scaenici ocorriam como parte de ludi, ou “festivais”,
celebrados em honra de uma divindade, durante a dedicação de
um templo, em triunfos, ou por ocasião da morte de um cives
de prestígio – ludi funebres –, nesse último caso organizados
pela família do falecido.9 Festividades circenses – ludi circenses
–, como as corridas, também faziam parte dos ludi (TAYLOR,
1937, p. 284 e ss.; BEARE, 1951, p. 154; DUCKWORTH, 1994,
p. 76-77). Existiam ludi em honra de uma divindade celebrados

4
Uma tragédia e uma comédia.
5
O ator de teatro era denominado histrio, termo, segundo Tito Lívio (VII, 2,
6), derivado do etrusco ister. Encontramo-lo em várias comédias de Plauto,
por exemplo, em Anfitrião (77) e O pequeno cartaginês (20).
6
Plural de grex, literalmente, “rebanho”.
7
“Artífices”, “artesãos”, “artistas” do palco. Eram grandes corporações
de músicos, poetas e diferentes indivíduos relacionados à representação
dramática, que surgiram no início do século III a.C. Os texnîtai espalharam-
se pelas regiões de cultura grega, desde a Ásia Menor até o sul da Itália e
a Sicília. Organizavam-se em guildas devido à necessidade de mobilidade
para as apresentações nos diferentes festivais, de música e até atletismo,
difundidos no mundo grego a partir do final do século IV a.C. (LIGHTFOOT,
2008, p. 246 e ss.).
8
“Aplaudam nossa guilda”.
9
Possuímos três exemplos de ocorrência de ludi scaenici em ludi funebres:
o primeiro, atestado por Tito Lívio (XLI, 28, 11), durante os funerais de
Tito Quíncio Flaminino, em 174 a.C., e os outros dois atestados por duas
didascálias de Terêncio (Hecyra e Adelphi), ambos durante os funerais de
Lúcio Emílio Paulo, em 160 a.C.

34 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOSÉ GUILHERME RODRIGUES DA SILVA

anualmente, denominados ludi Romani, ludi plebeii – ambos em


honra de Júpiter Optimus Maximus –, ludi Apollinares, ludi Megalenses,
ludi Ceriales e ludi Florales – em honra de Apolo, Magna Mater,
Ceres e Flora, respectivamente –, organizados, dependendo do
caso, pelos edis curuis, edis plebeus ou por um pretor.10 Nos
ludi Romani, plebeii, Apollinares e Megalenses havia a execução de
ludi scaenici no período aqui considerado. Quanto aos ludi Ceriales,
não se sabe ao certo se incluíam ludi scaenici no século II a.C. As
apresentações dramáticas nos ludi Florales eram, em sua maioria,
provavelmente mimos.11 Júpiter também era honrado por ludi
votados por um magistrado ou um comandante, em situações
especiais (TAYLOR, 1937, p. 284-286, 302; BEARE, 1951, p.
154; DUCKWORTH, 1994, p. 77). Além disso, eram frequentes
as repetições dos ludi Romani e plebeii, denominadas instaurationes,
principalmente por razões religiosas (TAYLOR, 1937, p. 291 e
ss.). Procuraremos, a seguir, tecer alguns comentários a respeito
dos teatros republicanos e da audiência das comédias, entre o
período em que Plauto esteve ativo e meados do século II a.C.

10
Cada um desses festivais, ou ludi, possui história distinta, com diferentes
datas de primeira ocorrência e de regularização como celebração anual.
Vide detalhes em Taylor (1937, p. 286 e ss.).
11
Representações originalmente não literárias, executadas por indivíduos
dos sexos masculino e feminino, comandadas por um ator ou uma atriz
principal. Eram apresentações improvisadas, curtas, sem preocupações
técnicas, e com liberalidade no tema e nas apresentações, nas quais os
atores se utilizavam de mímica e dança. A primeira evidência de mimos em
Roma é atestada em 211 a.C., mas sua presença na Urbs deve ser bem mais
antiga. A partir do final do século II a.C. surgiram mimos escritos, cujos
fragmentos apontam temas e linguagem obscenos (BEARE, 1951, p. 141 e
ss.; DUCKWORTH, 1994, p. 13-15).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 35


IN FESTIVO LOCO

Os teatros da República

Estruturas temporárias, construídas para a observação de


cerimônias, procissões e outros eventos foram comuns tanto no
mundo grego quanto no romano. Erigidas em madeira, eram
desmontadas após sua utilização.12 Encontramos um exemplo
de assentos de madeira erigidos para o público da procissão das
Dionísias – destruídos por um ciclone – em Curcúlio (644-647),
de Plauto. Na comédia, Planésio conta que, quando criança, foi
levada “para assistir as Dionísias.13 Após ter chegado, quando [a

12
Assentos de madeira temporários eram erigidos em stadia – e cortes
legais – nas poleis gregas, por exemplo, para a Apollonia, em Delos, e os jogos
Pítios, em Delfos. Esses eventos, assim como diversos outros nas poleis,
eram comumente realizados com intervalos de alguns anos entre cada um
(bienalmente, quadrienalmente, etc.), de forma que os terrenos dispensados
para sua execução eram reservados para outras funções nos períodos
intermediários. Inscrições mostram que as áreas onde eram erguidos os stadia
para a Apollonia em Delos e as Panatenaicas em Atenas eram arrendadas para
pastoreio ao final dos jogos. No caso das Panatenaicas, os assentos eram
erigidos na ágora, “e teriam que ser removidos imediatamente após o festival,
de forma a não atrapalhar a atividade normal” (CSAPO, 2007, 103-105). A
título de curiosidade, os primeiros teatros gregos dos quais temos vestígios
tinham em comum algumas características, como assentos frontais (proedría)
de pedra e demais de madeira, e skené construída com material perecível
(MORETTI, 2011, p. 135). Diversos teatros gregos dos séculos V e IV a.C.
tinham assentos de madeira, nos quais apenas a proedría (ou sua base) era de
pedra (CSAPO, 2007, p. 105-106). O teatro de Dioniso Eleutério, em Atenas,
durante o século V a.C. – quando floresceram Ésquilo, Eurípides, Sófocles e
Aristófanes – e parte do século IV a.C., era composto por assentos de madeira,
sendo que a proedría (ou sua base), assim como em outros teatros gregos do
período, era feita de pedra. A skené também era de madeira. A prática de se
escavar e elevar o terreno regularmente para o auditório é do século IV a.C.,
e apenas em meados deste último século, ou na segunda metade, o auditório
do teatro de Dionísio em Atenas foi reconstruído em pedra (TOMLINSON,
1995, p. 44-46; ROBERTSON, 1988, p. 164-166; MORETTI, 2011, p. 122-
125, 154 e ss.; GOETTE; CSAPO, 2007, p. 116 e ss.).
13
Csapo (2007, p. 105, nota 32) associa a referência de Plauto aos assentos

36 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOSÉ GUILHERME RODRIGUES DA SILVA

ama de leite] me posicionava [no assento], surgiu um vento em


turbilhão e os assentos ruíram.”14
Em Roma, os teatros foram construções temporárias,
de madeira, até 55 a.C., quando foi erigido o primeiro teatro
construído com pedras e concreto, o teatro de Pompeu. Porém,
mesmo após a conclusão do teatro de Pompeu, segundo Vitrúvio
(De architectura, V, 5, 7), ainda eram “levantados todos os anos
em Roma muitos teatros [...] públicos de madeira”. A tentativa
de construção de alguns teatros está documentada nas fontes, e
o fato de terem sido mencionadas sugere que eram estruturas
notáveis de alguma forma – muito provavelmente construções
de pedra (BEACHAM, 1991, 62-65).
A primeira menção sobre a edificação de um teatro em
Roma está em Tito Lívio (XL, 51, 3). Segundo ele, Marco Emílio
Lépido, um dos censores de 179 a.C., contratou a construção
de assentos e palco15 na área do templo de Apolo.16 Não se tem
notícia posterior desse teatro, mas a área do templo de Apolo,

de madeira à pompa, ou procissão solene que precede as Dionísias, à qual


Plauto se refere diretamente em Cistelária (89-90): “Durante as Dionísias,
minha mãe me levou parar assistir a pompa”.
14
Os ciclones na região do Mar Egeu ocorrem principalmente no
período frio do ano, preferencialmente entre outubro e maio (FLOCAS;
KARACOSTAS, 2007, p. 53 e ss.). As Dionísias Rurais eram celebradas
na Ática no final de dezembro ou início de janeiro, enquanto as Dionísias,
em Atenas, eram celebradas na segunda metade de março (PICKARD-
CAMBRIDGE, 1973, p. 42, 64-66; MORETTI, 2011, p. 77, 130). Em Delos
as Dionísias eram celebradas entre março e abril (MORETTI, 2011, p.
90). Todas essas festividades aconteciam no período de ocorrência mais
provável dos ciclones na região do Egeu.
15
“theatrum et proscaenium ad Apollinis […] locavit”.
16
De acordo com Ascônio (in Toga candida, 90C, 6-14), esse era o único
templo de Apolo em Roma antes da época de Augusto. Localizava-se a
noroeste do Capitólio, próximo ao Circo Flaminino.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 37


IN FESTIVO LOCO

escolhida para a construção do teatro, nos remete às razões da


construção do próprio templo.
Tanto o templo de Apolo quanto os ludi scaenici surgiram
como resposta a períodos de pestilência. O templo foi votado
em 433 a.C., “pela saúde do povo”, para aplacar uma doença
que atingira as pessoas e o gado, quando havia inclusive o
medo de que à peste sobreviesse a fome, pois o povo nas áreas
rurais estava sucumbindo à enfermidade (Liv., IV, 25, 3-4).17 O
templo foi dedicado em 431 a.C. (Liv., IV, 29, 7).18 Da mesma
forma, conforme comentamos, os primeiros ludi scaenici foram
instituídos em 364 a.C. para expiar uma pestilência (Liv., VII,
1-2). Somos tentados a interpretar que a ereção de um teatro na
área do templo de Apolo tinha motivos religiosos, unindo dois
antigos meios de aplacar a peste.19
Em 174 a.C., cinco anos depois da primeira contratação,
os censores contrataram a construção de uma “scaena para ficar à
disposição dos edis e pretores” (Liv., XLI, 27, 6).20 Essa segunda
contratação sugere que a de 179 a.C. não foi realizada, e a falta
de outras informações sobre ambos os teatros nas fontes permite
interpretar que a segunda contratação também não se concretizou.
Uma terceira contratação para a construção de um teatro
permanente levou ao início de sua ereção, em 154 a.C. Porém,
a estrutura foi demolida por ordem do Senado algum tempo
depois, a partir de uma proposta de Cipião Nasica, sob a alegação
de que era “[...] inútil e danoso aos costumes públicos” (Liv.,

17
A ligação de Apolo com a capacidade de promover a pestilência é antiga.
A encontramos nos versos iniciais da Ilíada (I, 1-10) com a praga enviada
por Apolo aos gregos acampados diante da cidade de Troia.
18
O templo foi dedicado a Apolo Medicus (Liv., XL, 51).
19
Mais de duzentos anos depois foram instituídos ludi em honra de Apolo,
os ludi Apollinares, também para aplacar uma peste.
20
“et scaenam aedilibus practoribusque praebendam [locaverunt]”.

38 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOSÉ GUILHERME RODRIGUES DA SILVA

Periochae, XLVIII).21 Outro senatus consultum adicionou a proibição


da provisão de assentos nos jogos que ocorressem em Roma ou
no perímetro de mil passos da cidade, proibição suspensa em
145 a.C., por ocasião das peças realizadas no triunfo de Lúcio
Múmio (Liv., Periochae, XLVIII; Valerius Maximus, II,4, 2; Tacitus,
Annales, XIV, 20).22
As estruturas temporárias não deixaram traços,
aparentemente.23 Porém, mesmo que não tenhamos hoje

21
“Quando um teatro contratado pelos censores foi construído, pela
proposta de Públio Cornélio Nasica, como se [fosse] inútil e danoso aos
costumes públicos, foi destruído por ordem de um senatus consultum, e o
povo por algum tempo assistiu os jogos de pé” – “Cum locatum a censoribus
theatrum exstrueretur, P. Cornelio Nasica auctore tamquam inutile et nociturum
publicis moribus ex senatus consulto destructumm est, populusque aliquamdiu stans
ludos spectavit” (Liv., Periochae, XLVIII).
22
Tácito (Annales, XIV, 20) afirma que antes da construção do teatro de
Pompeu, ou seja, antes de 55 a.C., os assentos e o palco eram erigidos às
pressas e, antes disso, o povo assistia de pé os ludi, mas suas afirmações são
vagas com relação à época de cada fase à qual se refere.
23
Campbell (2003, p. 67 e ss.), com base em fontes textuais e em dados
arqueológicos, sugere uma explicação tecnológica para a inexistência de
teatros permanentes em Roma até a construção do teatro de Pompeu, em 55
a.C. Segundo a autora, o único material capaz de permitir a construção dos
vãos e arcos característicos dos auditórios dos teatros romanos, construídos
em terrenos planos ou apoiados em encostas – e não nas encostas –, é o
concreto. Os romanos utilizaram o concreto desde pelo menos o início do
século III a.C., porém, para a construção de estradas. Uma das estruturas de
teatro mais antigas é o Odeon de Pompeia, construído pelos romanos em
cerca de 80 a.C. Nele, os vãos que levam à arena são de concreto e suportam
parte do peso dos assentos e das pessoas na cauea – a área dos assentos.
A técnica de ereção de estruturas com concreto, incluindo abóbadas, só
foi dominada pelos romanos no século I a.C. – um exemplo é o próprio
Odeon mencionado (CAMPBELL, 2003, p. 76). Vitrúvio (De architectura, II,
8, 2-3), por exemplo, reclama de antigas estruturas de concreto em tumbas
da Via Ápia que estavam ruindo em sua época. Concretos desse tipo,
escreve Campbell (2003, p. 76), não poderiam suportar o peso de assentos
de pedra e da audiência. Portanto, teatros permanentes não poderiam ser
construídos antes da técnica ser dominada, e os teatros que começavam

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 39


IN FESTIVO LOCO

vestígios materiais dos teatros onde foram representadas as


peças de Plauto, outros vestígios podem, de maneira indireta,
proporcionar indícios para a interpretação de como eram aquelas
estruturas temporárias. De acordo com Robertson (1988, p. 252
e ss.), os exemplos de teatros romanos, desde os mais antigos
que podemos observar atualmente, são diferentes de todos os
teatros gregos conhecidos, clássicos ou helenísticos, em diversos
aspectos.24 Não se sabe ao certo as origens das diferenças, e não
são encontrados, em lugar nenhum, indícios arquitetônicos
que forneçam dados que caracterizem uma transição entre os
modelos gregos – principalmente da Sicília e do sul da Itália
– e os teatros romanos permanentes. A solução do impasse,
segundo Robertson (1988, p. 253), deve ser buscada nos restos
arquitetônicos dos teatros de pedra do sul da Itália e da região
da Campânia, construídos entre a segunda metade do século
IV e o século III a.C., e nas estruturas temporárias de madeira
construídas para encenação das phlyakes25 e das farsas atelanas.26

a ser erigidos, por questões estruturais – somadas às questões morais –,


tinham a construção interrompida. Logo, as poucas tentativas de ereção de
teatros permanentes documentadas pelas fontes se devem, provavelmente,
à velocidade com que a técnica de construção com concreto foi dominada
pelos romanos (CAMPBELL, 2003, p. 67 e ss.).
24
Só existem restos, observáveis nos porões de edifícios antigos de Roma, do
teatro de Pompeu, o primeiro teatro permanente em Roma. O primeiro teatro
planejado e construído sob um governo romano é o Odeon de Pompeia, de
80 a.C. Os vestígios dos outros teatros romanos sobreviventes, tanto em
Roma quanto em outros locais, são de idade posterior ao teatro de Pompeu,
sendo que vários são teatros gregos – na Sicília, no sul da Itália, na Grécia
e na Ásia Menor – que passaram por uma “drástica reforma” no final do
período republicano e no período imperial (ROBERTSON, 1988, p. 253).
25
Representações burlescas de cenas mitológicas, apresentadas nas regiões
do sul da Itália. Os indivíduos que as representavam frequentemente
usavam máscaras (BEARE, 1951, p. 142).
26
Farsas curtas, desenvolvidas na Campânia, praticadas em Roma desde
muito tempo. Tratam principalmente da vida no campo ou em pequenas

40 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOSÉ GUILHERME RODRIGUES DA SILVA

Podemos ter um vislumbre dessas últimas nos testemunhos das


pinturas em cerâmica do século IV a.C. – encontradas no sul da
Itália e na Sicília –, nas quais é possível observar basicamente
dois tipos de tema: cenas de paródias de mitos gregos – ou de
tragédias – e cenas cômicas, da vida diária (ROBERTSON, 1988,
p. 253; BEACHAM, 1991, p. 8-9; 57-60).
É a partir desses indícios, e de curtas passagens dos textos
das comédias romanas, que Beacham (1991, p. 60 e ss.) reconstrói,
tentativamente, os teatros temporários romanos.27 De acordo
com Beacham (1991, p. 57), a necessidade de frequentemente
erigir e desmontar os edifícios teatrais permitiu que os romanos
fizessem experiências ao longo do tempo, moldando estruturas
que traduziam essa mesma experiência, durante o processo de
desenvolvimento do que viria a ser o modelo do edifício teatral
romano. A princípio, segundo o autor, os teatros temporários
deveriam ser bastante parecidos aos modelos que vemos nas
representações pintadas nas cerâmicas referidas acima. Durante
o século II a.C., porém, com o aumento do papel do teatro na
vida romana devido aos ludi, e por causa das crescentes trocas
culturais com os gregos, aos edifícios temporários foram,
provavelmente, sendo adaptados mais elementos helenísticos
(BEACHAM, 1991, p. 60 e ss.).
Para a época de Plauto, Beacham (1991) sugere que os
teatros temporários eram, em sua maioria, construídos com

propriedades. Tornaram-se muito populares no século I a.C., quando


se assimilaram, em certo grau, à palliata e à comédia com ambiente e
personagens latinos – a togata (DUCKWORTH, 1994, p. 10-13).
27
Beacham (1991, p. 56) comenta que os palcos temporários romanos
“moldaram” as peças e “foram moldados” por elas, de forma que devem
prover “evidências cruciais” para o entendimento das próprias peças, “não
como textos na página, mas como ações planejadas para acontecer em um
formato arquitetônico particular”, peças que acabaram por modificar a
arquitetura dos próprios teatros.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 41


IN FESTIVO LOCO

palco elevado, atrás do qual havia uma fachada (o edifício de


cena).28 Esta fachada possuía duas estruturas projetadas laterais
(denominadas paraskenia), cada uma das quais apresentando uma
porta – passagens para os fundos do palco. Uma terceira porta,
central, podia também ocorrer. Todas essas portas representavam
entradas para os edifícios (casas, etc.) que faziam parte da cena
e do enredo. Havia pórticos elevados em frente às portas, e ao
menos uma delas era coberta por um telhado. A área em frente
às portas fazia às vezes de uma rua, chamada platea ou via. Uma
passagem, atrás do edifício de cena e escondida da audiência – o
angiportum,29 servia para os atores se moverem sem serem vistos
de um lado para o outro do palco (BEACHAM, 1991, p. 60-63).
Existiam assentos para ao menos parte da audiência.30
Os prólogos das comédias de Plauto são caracterizados por
instâncias nas quais um ator se dirige diretamente à audiência,31

28
Beacham (1991, p. 60) comenta que os termos utilizados por Plauto para
designar o palco, scaena e proscaenium, não são exatos, pois o termo “scaena
poderia ser utilizado também para designar o edifício de cena, ou mesmo a
sua fachada cênica”, e o termo proscaenium é uma tradução possível para o
edifício cênico. Esse comentário de Beacham, ao nosso ver, é temerário, pois,
se Plauto denomina dessa forma o tablado sobre o qual os atores encenam
suas comédias, é porque estes termos eram aceitos e reconhecidos como
significantes para o que denominamos de palco. As palavras podem ter seus
significados mudados com o passar do tempo. Em francês, por exemplo,
o termo acteur significava, no século XVII, “personagem”, e não “ator”
(MOLIÈRE, 1962, p. 33). Vários termos latinos referentes às estruturas e
componentes dos edifícios teatrais são derivados de textos cuja antiguidade
remonta ao século I a.C., como o de Vitrúvio e o de Tito Lívio, sendo,
portanto, cerca de cento e cinquenta anos posteriores aos textos de Plauto.
29
Em certas ocasiões, o espaço onde os atores estão no palco é denominado
também de angiportum (BEARE, 1951, p. 173; DUCKWORTH, 1994, p. 87-88).
30
A existência de assentos nos teatros temporários romanos do período da
República é advogada por Beare (1951, p. 163-164) e Duckworth (1994, p.
80-81). Robertson (1988, p. 253) afirma que a audiência assistia às peças
de pé, mas não fornece explicação para sua afirmação.
31
Há dúvidas sobre a autoria de alguns prólogos de Plauto. Certos autores

42 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOSÉ GUILHERME RODRIGUES DA SILVA

e em alguns ocorre alusão explícita a assentos no teatro,


durante o que parecem ser tentativas, programadas no roteiro
da comédia, de organização do público, provavelmente baseadas
em experiências pregressas.32 Em Anfitrião (65-66), lemos:
“que os pesquisadores andem por cada um dos assentos, pelos
espectadores, em toda cauea”.33 Em O pequeno cartaginês (5-6),
após um pedido de silêncio, lemos: “os que vieram esfaimados
e os que vieram quase satisfeitos, com boa vontade sentem-
se em seus assentos”.34 Mais à frente, encontramos: “e que o
dissignator35 não passeie diante da cara [de alguém] e que não
conduza [alguém] para um assento enquanto o ator estiver em
cena” (Poen., 20).36 Em Os cativos (1-2), algumas pessoas estão
assistindo de pé à peça, e a simples menção desse fato significa
que outras estão sentadas: “Aqueles dois cativos que vocês veem
aqui de pé, estão ambos de pé aqui, e não sentados, porque
lá [aqueles] estão de pé”.37 Na mesma comédia (Captivi, 12),

os percebem como obra de produtores, escritos não muito após a morte de


Plauto (BEARE, 1951, p. 151).
32
Nem todas as comédias de Plauto possuem prólogo: Persa, Estico,
Mostellaria e Epídico não possuem. Em As bacantes o texto está fragmentado e
um fragmento é indicado como parte do prólogo por suposição. Em outras,
como O soldado fanfarrão (Miles gloriosus) e A comédia da cestinha (Cistellaria), o
prólogo está posicionado após alguns diálogos (prólogo postergado).
33
“ut conquistores singula in subsellia / eant per totam caueam spectatoribus”. A
cauea é a área dos assentos.
34
“bonoque ut animo sedeant in subselliis / et qui esurientes et qui saturi uenerint”.
35
Pessoa que arranjava os lugares no teatro. Não existe correlato em
português. O mais próximo seria “lanterninha”, mas esse termo, em desuso
por extinção da função a que era relacionado, significava os funcionários
dos cinemas que auxiliavam as pessoas a encontrar seus lugares. Podemos
traduzir “dessignator” por “designador”, mas esse termo português é
genérico, significando “que ou o que designa, precisa, especifica”, um
“designante”, e não é utilizado especificamente para significar alguém que
designe lugares no teatro.
36
“neu dissignator praeter os obambulet / neu sessum ducat, dum histrio in scaena siet”.
37
“hos quos uidetis stare hic captiuos duos, / illi quia astant, hi stant ambo, non

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 43


IN FESTIVO LOCO

encontramos: “se não existe lugar onde sentar-se, existe [para]


onde andar”.38 Em outra, “agora, mexa-se, sente-se” (Asinaria,
5). Em O soldado fanfarrão, após o primeiro diálogo, o enredo é
apresentado à audiência39 por um personagem que diz: “quem,
por outro lado, não quiser ouvir [o enredo] que se levante e
saia, de forma que exista onde se sentar aquele que quer escutar.
Agora, pela razão de vocês se sentarem nesse local agradável
[...]” (Miles gloriosus, 81-83).40
A evidência dos assentos da cauea não significa que todos
assistissem as comédias sentados. Algumas passagens que
citamos indicam que certas pessoas tinham que ficar de pé,
provavelmente atrás dos últimos assentos, uma possibilidade
relacionada, talvez, à lotação do teatro (Capt., 1-2, 12; Mil., 81-
82). Quanto aos escravos, que, conforme veremos, faziam parte
da audiência, os indícios mostram que não podiam sentar-se. De
fato, na sociedade romana, a possibilidade de o servus disputar
lugar com o cives é nula. Um indício está no prólogo de O pequeno
cartaginês: “que escravos não criem obstáculos, de modo que
exista lugar para o livre, ou que comprem sua liberdade” (Poen.,

sedent”. Plauto, ao dizer “lá [aqueles] estão de pé”, está se referindo a


pessoas na audiência. Ainda sobre assistir a uma comédia de pé, Plauto
faz uma pilhéria no prólogo de O pequeno cartaginês (21-22): “àqueles que
dormiram ociosos em casa, durante o dia, é conveniente agora que com o
mesmo ânimo fiquem de pé, ou que evitem dormir” – “diu qui domi otiosii
dormierunt, decet / animo aequo nunc stent uel dormire temperent”.
38
“si non ubi sedeas locus est, est ubi ambules”, ou seja, se alguém não achar
lugar para se sentar, vá-se embora.
39
O enredo é apresentado entre as linhas 79 e 155.
40
“qui autem auscultare nolet exsurgat foras, / ut sit ubi sedeat ille qui auscultare
uolt. / nunc qua assedistis causa in festiuo loco [...]”.

44 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOSÉ GUILHERME RODRIGUES DA SILVA

23-24)41 – ou seja, escravos não podem sentar-se, apenas as


pessoas livres.42
Os locais onde eram montados os teatros temporários
também são objeto de indagação, dividindo-se os autores entre
as áreas do fórum, dos circos, ou ambas. Por exemplo, pesquisas
arqueológicas mostraram que existem, nas áreas do Fórum
Romano e de fóruns de colônias romanas,43 furos rasos, de
formato circular, com centímetros de diâmetro, cujas datações
abrangem diferentes épocas no período republicano romano.
As idades indicam que cada furo foi escavado mais de uma vez,
em diferentes fases (MOURITSEN, 2004, p. 44-51). Mouritsen
(2004, p. 62 e ss.) argumenta que esses furos podem ter servido
de base para as estruturas de madeira dos teatros temporários
ou de lutas entre gladiadores.44 Coarelli (2005, p. 23 e ss.) –
apoiado pela falta de referências nas fontes – e Sewell (2010, p.
78 e ss.) rejeitam essa teoria, e propõem que, dependendo de
suas dimensões, os furos podem ter sido bases para postes que
marcavam os limites de áreas sagradas ou onde eram atadas as

41
“serui ne opsideant, liberis ut sit locus / uel aes pro capite dent”. O último
verso – “uel aes pro capite dent” – significa, literalmente, “ou deem dinheiro
por cabeça”, ou seja, ao pagar por sua manumissão, entrem no cômputo
dos capite censi, indivíduos abaixo da menor categoria censitária para
o alistamento nas legiões, que eram contados como indivíduos sem
propriedade (BERGER, 1991, p. 380).
42
Conforme nota Richlin (2014, p. 206), parte importante dos enredos
de Plauto concentra-se no tema da libertas: a palliata surgiu “durante um
período na história da escravidão no qual a escravização havia aumentado e
estava ainda aumentando”.
43
As colônias são Cosa, Paesto, Fregelas e Alba Fucens (MOURITSEN,
2004, p. 44-51).
44
Mouritsen (2004) conclui que, provavelmente, os furos tiveram funções
diversas e seu propósito exato não pode ser reconstruído.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 45


IN FESTIVO LOCO

cordas de saepta temporárias,45 embora os dados que possuímos


não permitam uma interpretação mais precisa de sua função.
Pensamos que as fontes podem auxiliar-nos na definição
dos locais onde eram erigidos os teatros. Uma passagem de
Políbio (Hist., VI, 53) sobre funerais de homens ilustres é
utilizada para caracterizar o fórum como o ambiente principal
onde ocorriam os ludi funebres (JORY, 1986, p. 143 e ss.). Na
passagem referida, Políbio relata a cerimônia em que os restos
mortais são carregados até a rostra, a tribuna pública localizada no
fórum, de onde então um filho adulto ou outro parente proferia
um discurso em honra do falecido. Contudo, Políbio não escreve,
nesse caso, sobre qualquer outra cerimônia. Jory (1986, p. 143
e ss.), baseando-se nessa passagem de Políbio, usa um trecho
de Tito Lívio como exemplo de ludi scaenici executados no fórum
romano, por ocasião de ludi funebres. No trecho em questão,
Tito Lívio (XXXI, 50, 2-4) escreve sobre a celebração, em 200
a.C., de ludi Romani, ludi plebeii e ludi funebres, esses últimos por
ocasião do funeral de Marco Valério Levino. Tito Lívio, nesse
trecho, especifica que os ludi funebres foram celebrados no fórum
e que um munus gladiatorium foi oferecido, mas não fala sobre
ludi scaenici. Sabemos que, nesse ano, durante a celebração dos
ludi plebeii, ocorreram ludi scaenici em que a comédia Estico, de
Plauto, foi encenada – a didascália da comédia nos informa.46
Contudo, não existem evidências de que ludi scaenici foram
encenados nos funerais de Marco Valério Levino. Os ludi Romani
e os plebeii eram, inclusive, celebrados em épocas diferentes,
os Romani em setembro e os plebeii em novembro (TAYLOR,
1937, p. 285). Certamente os ludi funebres não seriam celebrados

45
Saepta significa “cercas”. No caso dos locais para as eleições, eram as
cercas que dividiam os grupos de eleitores.
46
Essa é, por sinal, segundo Taylor (1937, p. 288), a única evidência nas fontes
de ludi scaenici encenados durante os ludi plebeii no período da República.

46 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOSÉ GUILHERME RODRIGUES DA SILVA

juntamente com outros ludi. Outro relato sobre ludi funebres é o


comentário de Tito Lívio (XLI, 28, 11) sobre o funeral de Tito
Quíncio Flaminino (174 a.C.), durante o qual houve quatro dias
de ludi scaenici, entre outras celebrações. Essa é a única instância
em que ludi scaenici são atestados em ludi funebres por Tito Lívio
(TAYLOR, 1937, p. 299).47 Note-se, porém, que Tito Lívio não
especifica onde foram realizadas as apresentações teatrais:

Naquele ano foram oferecidas várias lutas de gladiadores,


algumas sem importância; entre as outras, marcante foi a de Tito
Flaminino,48 a qual ofereceu pela morte de seu pai juntamente com
distribuição de carnes, um banquete e ludi scaenici por quatro dias.49

Esses relatos de Políbio e de Tito Lívio não implicam a


realização de ludi scaenici na área do fórum romano. Políbio não
menciona outro tipo de homenagem além do transporte do corpo
do defunto para a rostra, local do discurso em seu louvor, e Tito
Lívio não menciona o fórum romano como área onde ocorreram
ludi scaenici.
Outros indícios das fontes podem ajudar. Segundo Veleio
Patérculo (I, 15, 3), o teatro demolido por ordem do Senado,
sobre o qual nos referimos anteriormente, começou a ser
construído de frente para o Palatino, ou seja, na área próxima
ao Circo Máximo. Esse dado é importante se combinado com
outras informações. Primeiramente, notemos duas passagens de

47
Taylor (1937, p. 299) lista cinco passagens de Tito Lívio que tratam de
ludi funebres (XXIII, 30, 15; XXVIII, 12, 10; XXXI, 50, 4; XXXIX, 46, 2; XLI,
28, 11). A única que menciona ludi scaenici é a que citamos.
48
O filho de Tito Quíncio Flaminino.
49
“Munera gladiatorum eo anno aliquot, parva alia, data; unum ante cetera insigne
fuit T. Flaminini, quod mortis causa patris sui cum visceratione epuloque et ludis
scaenicis quadriduum dedit”.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 47


IN FESTIVO LOCO

Plauto. A primeira encontramos em O soldado fanfarrão, em que


uma personagem, Milfidipa, diz (Miles gloriosus, 991): “o circo,
onde os ludi devem ser executados por mim, já está diante da
casa”.50 Plauto usa aqui uma metáfora, pois quem está diante da
casa é o soldado fanfarrão, Pirgopolinices, contra o qual Milfidipa
está prestes a encenar sua parte em um golpe orquestrado para
retirar dele a amante e a entregar para o jovem a quem ela ama.
Mas Plauto usa a metáfora do circo para significar o local onde
serão encenados os ludi, ou seja, a parte de Milfidipa no golpe. O
circo, na metáfora de Plauto, é onde se praticam os ludi, e Plauto
usa uma imagem no discurso para aludir a algo real. A segunda
passagem está em um fragmento de uma comédia denominada
Cornicula,51 atribuída a Plauto por Varrão (De língua latina, V,
153): “Por que demoramos a fazer os ludi? Eis presente o nosso
circo”.52 Assim como em O soldado fanfarrão, o “circo” ao qual
Plauto se refere é um soldado, o qual permitirá que se façam nele
as zombarias.53
Mais evidências apontam que as áreas próximas aos
circos eram as escolhidas para os teatros republicanos, tanto
os construídos em madeira quanto os que seriam construídos
de forma permanente. Segundo Tito Lívio (VII, 3, 1-2), os
primeiros ludi scaenici, introduzidos em 363 a.C. para expiar

50
“iam est ante aedis circus ubi sunt ludi faciundi mihi”.
51
O título da comédia pode ser Cornicula<ria>, A história do corniculum, ou A
história do elmo com corno – um ornamento conferido por bravura –, conforme
sugere Kent (1951), em sua tradução da obra de Varrão, devido ao tema,
relacionado a um soldado. De Melo (2011) traduz o título por O corvinho.
52
“quid cessamos ludos facere? circus noster ecce adest”.
53
Segundo Varrão, Plauto faz um trocadilho com a palavra “circum”, que
pode significar “em torno” e “circo” – o soldado será cercado e irão fazer
troça dele. Porém, Wolfgang De Melo (2011), em nota para sua tradução
do fragmento, considera essa explicação de Varrão muito elaborada, e
interpreta que o “circo” é o soldado que permitirá o entretenimento para
os que vão zombar dele, ou seja, da mesma forma que nós interpretamos.

48 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOSÉ GUILHERME RODRIGUES DA SILVA

pestilências, “não aliviaram nem os temores religiosos, nem os


corpos doentes”, pois, no mesmo ano de sua introdução, bem
em meio aos ludi, o circus foi tomado por uma inundação do
Tibre, indicando que os ludi scaenici estavam ocorrendo na região
do Circo Máximo. Cerca de cento e cinquenta anos depois, em
212 a.C., celebraram-se pela primeira vez os ludi Apollinares –
dos quais os ludi scaenici parecem ter feito parte desde o início
(TAYLOR, 1937, p. 289) –, os quais foram estabelecidos como
anuais em 208 a.C. para ajudar a aplacar outra epidemia, ludi
que provavelmente sempre aconteceram no Circo Máximo (Liv.,
XXV, 12; XXVII, 23, 5-7; XXX, 28, 10-12). Ainda outra evidência:
a primeira contratação de um teatro permanente, como vimos,
objetivava a área do templo de Apolo,54 que se localizava próximo
ao Circo Flamínio, construído por Caio Flamínio provavelmente
em 220 a.C. (BROUGHTON, 1986, p. 235-236).55 Finalmente, o
teatro de Pompeu, o primeiro teatro permanente em Roma, foi
construído na área próxima ao Circo Flamínio.
Os indícios sugerem, portanto, que os teatros temporários
republicanos eram erguidos nas áreas próximas aos circos
de Roma, e que os contratos, para a construção de teatros
permanentes, objetivaram as mesmas áreas.56 Os ludi scaenici,

54
Conforme comentamos em nota anterior, esse era o único templo de
Apolo existente em Roma antes da época de Augusto (Asconius, in Tota
candida, 90C, 6-14).
55
Caio Flamínio foi cônsul em 223 e 217 a.C., e censor em 220 a.C.
(BROUGHTON, 1986, p. 235). Sabemos, pelo sumário de Tito Lívio
(Periocha, XX), por Cassiodoro e por Festo (79) que o circo foi construído
por Caio Flamínio. O único que posiciona a data de sua construção em 220
a.C. é Cassiodoro. Como 220 a.C. é o ano da censura de Caio Flamínio,
provavelmente a data está correta. A obra de Cassiodoro pode ser encontrada
em nossas referências bibliográficas na tese de doutorado de Klaassen (2010).
56
Eliminando, nesse caso, a possibilidade de que os furos encontrados pela
Arqueologia no fórum romano, os quais comentamos acima, serviram de
base para estruturas de madeira dos teatros temporários.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 49


IN FESTIVO LOCO

como tudo indica, eram encenados próximo aos locais onde


aconteciam outras práticas dos ludi, como as corridas, as lutas
de boxe e as apresentações na corda bamba. Essas últimas,
conforme veremos mais à frente, podiam inclusive desviar a
atenção dos espectadores das comédias ou mesmo atraí-los
para fora do teatro, como aconteceu durante a apresentação de
algumas peças de Terêncio.

A audiência

A composição da audiência das comédias pode ser inferida


a partir das fontes, as quais sugerem que era representada
por diferentes estratos da sociedade romana. Baseamo-nos
em dois grupos de evidências.57 O primeiro é formado pelos
prólogos de algumas comédias, nos quais se distinguem, na
audiência, representantes de diferentes práticas e categorias
sociais. Em O pequeno cartaginês, o orador do prólogo diz “que
nenhum prostituto adulto se sente no proscaenium” (Poen., 17-
18),58 e, em uma passagem que já comentamos, “que escravos
não criem obstáculos, de modo que exista lugar para o livre”
(Poen., 23). Mais à frente, “que as amas-de-leite cuidem dos
pequenos meninos de pouca idade em casa” (Poen., 28-29) –

57
As interpretações sobre a composição da audiência das comédias na
época de Plauto são díspares. Alguns autores, por exemplo, interpretaram
as linhas de Plauto – que usamos aqui como evidência da composição da
audiência – como frases irônicas, que tinham como propósito transmitir o
contrário do que dizem. Outros caracterizam a audiência como aristocrática.
Uma bibliografia extensa pode ser encontrada em Moore (2010).
58
“scortum exoletum ne quis in proscaenio / sedeat”. Por proscaenium Plauto
significa, nesse caso, a borda do palco. Talvez estejamos diante de uma
pilhéria sobre pessoas se exibindo para a audiência, promovendo-se no
comércio do sexo.

50 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOSÉ GUILHERME RODRIGUES DA SILVA

ou seja,59 não tragam crianças para o teatro –, e além, “que


as matronas assistam caladas,60 riam caladas [...], e não sejam
aqui e em casa moléstias para os homens” (Poen., 32).61 No
mesmo prólogo é ordenado aos pedisequi62 que, enquanto os ludi
estão acontecendo, ataquem as estalagens (popinae) em busca
de tortas (scriblitae), o que sugere que seus domini estavam
assistindo à comédia e os estalajadeiros também (Poen., 41-
43). Temos, portanto, indícios de que indivíduos de diferentes
estratos sociais assistiam às comédias.
O segundo grupo de evidências é composto por duas
passagens de Tito Lívio (XXXIV, 44, 54), nas quais o historiador
romano nos informa que no ano de 194 a.C., por ocasião dos
ludi Romani, pela primeira vez foram resguardados assentos
diferenciados para os senadores, de forma a separá-los do restante
do populus.63 Os censores eleitos naquele ano ganharam enorme
gratidão “de sua ordem”64 por prescrever a medida aos edis curuis

59
“nutrices pueros infantis minutulos / domi ut procurent”. As amas-de-leite
referidas podem ser escravas ou mulheres pertencentes aos estratos sociais
mais baixos, e as crianças podem ser nascidas livres, ou nascidas no domus,
de pais escravos, e até mesmo capturadas juntamente com as amas-de-leite.
Temos exemplos, nas comédias de Plauto, de algumas dessas possibilidades:
“não vai enviar qualquer coisa para a ama-de-leite que alimenta os escravos
nascidos em casa” (Miles gloriosus, 698); as escravas cartaginesas, em O
pequeno cartaginês (84-86), foram raptadas juntamente com a ama-de-leite.
60
Ou seja, mulheres casadas, mães de família.
61
“matronae tacitae spectent, tacitae rideant […] ne et hic uiris sint et domi molestiae”.
62
Pajens, serviçais que seguiam a pé os senhores. Por exemplo, em O soldado
fanfarrão (1009), um dos personagens diz “então, siga-me aqui” – “sequere hac
me ergo” –, e recebe a resposta “sou seu pajem” – “pedisequos tibi sum”. Notar
que pedisequos é a forma arcaica de pedisequus, e está no nominativo singular.
63
O evento é registrado também por Valério Máximo (II,4.3). É tentador
imaginar nessa separação a origem da orchestra do teatro romano, de acordo
com a descrição do teatro feita por Vitrúvio (De architectura, V, 6, 1).
64
“eum ordinem”.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 51


IN FESTIVO LOCO

(Liv., XXXIV, 44, 4; XXXIV, 54, 4-8).65 A medida, de acordo com


Tito Lívio (XXXIV, 54), suscitou tensões relacionadas ao perigo
que poderia causar à harmonia e à liberdade romanas, pois desde
a fundação da cidade – assim afirma que se expressavam alguns
à época – os ludi eram assistidos pela comunidade “in promiscuo”
– ou seja, sem distinção, misturadas as diferentes condições
sociais. “Que fato repentinamente existia que não quisessem ser
misturados, nos assentos, os senadores e a plebe? Por que o rico
se envergonhar de sentar-se junto ao pobre”? (Liv., XXXIV, 54,
6-7). Os escravos, claro, não estão incluídos na comunidade à
qual Tito Lívio se refere.
Todos esses dados permitem, portanto, interpretar
que a audiência que assistia as comédias era composta por
pessoas de diferentes estratos sociais, ou seja, por uma amostra
representativa da comunidade da Urbs. A formalização da
separação de assentos sugere fortemente que uma divisão de
fato já era praticada e que havia uma pressão social para sua
normalização.66 Por outro lado, se tal composição díspar em
termos de condições sociais estava presente na audiência, Plauto
procura falar a todos – temos essa evidência em uma instância –
como pertencentes à mesma comunidade cívica.67 No prólogo de
Anfitrião, Plauto faz Mercúrio se dirigir à audiência em nome de
Júpiter: “Agora, todos voltem as atenções já para cá, para o que
direi. Vocês devem querer o que nós queremos: nós merecemos,
eu e o pai,68 de vocês e da res publica”.69 Plauto conhece sua

65
Valério Máximo (II, 4, 3) afirma que a proposta da separação dos assentos
partiu de Cipião, o Africano, então cônsul.
66
As normas são criadas para ratificar um consenso já referendado pelo
grupo que normaliza.
67
Os escravos, também presentes na plateia, estão obviamente excluídos
da comunidade cívica à qual nos referimos, conforme afirmamos no texto.
68
Ou seja, Mercúrio e Júpiter.
69
“nunc iam huc animum omnes quae loquar aduortite. / debetis uelle quae uelimus:

52 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOSÉ GUILHERME RODRIGUES DA SILVA

audiência, e se endereça a ela como grupo – “uobis et re publica” –


e, ao mesmo tempo, de acordo com a condição social.

Considerações finais: transformações no gosto da audiência

Após a época de Plauto, de acordo com as evidências, as


comédias foram substituídas paulatinamente por encenações
burlescas improvisadas, melhor adaptadas à maior parte da
audiência romana, talvez mais afeita a lutas e espetáculos
circenses. Políbio (Hist., XXX, 22, 1-22, 12) nos legou a
descrição de uma encenação realizada no Circo Máximo, em
167 a.C., por ocasião da vitória do pretor Lúcio Anício sobre
os ilírios. Plauto, então, estava morto há dezessete anos e a
primeira comédia de Terêncio, Ândria, seria encenada no ano
seguinte.70 De acordo com Políbio (Hist., XXX,22.12), Lúcio
Anício contratou e levou para Roma, provenientes da Grécia,
“os mais celebrados texnîtai” e mandou construir uma “enorme
skenè71 no Circo”.72 A apresentação foi modificada de improviso,
por ordem do pretor, e enveredou para uma luta campal sobre
o palco – provavelmente simulada – entre auletes e dançarinos,
algo que Políbio classificou como “indescritível”.73
Esse pode, talvez, ser um indício do processo de mudança
da preferência de parte do público romano para outros tipos de
apresentações, em detrimento das comédias. Realmente, Cecílio

meruimus / et ego et pater de uobis et re publica”.


70
Para a data de Ândria, Beare (1951, p. 76).
71
Ou seja, um grande palco.
72
Tito Lívio (XLV, 43, 1) comenta o triunfo, mas não o espetáculo.
73
Políbio comenta que, se fosse descrever os atores trágicos, as pessoas
pensariam que ele as estaria “enganando” (Hist., XXX, 22, 12).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 53


IN FESTIVO LOCO

Estácio,74 entre o final da década de 180 a.C. e 168 a.C., e Terêncio,75


entre 166 e 160 a.C., experimentaram dificuldades para encenar
suas comédias. Segundo o prólogo de A sogra, de Terêncio,
algumas comédias de Cecílio foram interrompidas pela expulsão
do produtor Ambívio Túrpio do palco, outras pela dificuldade
que ele teve de se manter sobre ele (Hecyra, 14-15). Na primeira
tentativa de apresentação da comédia A sogra, de Terêncio, em
165 a.C., o mesmo produtor foi forçado para fora do palco antes
do fim, por causa de conversas sobre boxeadores, da expectativa
de uma apresentação na corda-bamba – que terminou por roubar
a audiência –, de ruídos do público e de gritos femininos (Hec.,
2-5, 33-36). A segunda tentativa de apresentação de A sogra, em
160 a.C., foi igualmente frustrada devido à corrida e aos gritos
da multidão, que lutava por lugares para assistir a uma luta de
gladiadores (Hec., 37-41). Aparentemente, a terceira tentativa,
efetivada no mesmo ano, foi bem-sucedida.76
Não temos evidências de que Plauto conheceu esse tipo de
problemas. Em vários prólogos plautinos encontramos pedidos de
atenção à audiência e de silêncio, feitos com diferentes recursos
discursivos,77 mas nenhum indício de que o público seria afastado
da apresentação da comédia para uma outra atração, muito
menos de qualquer interrupção das encenações. Conforme atenta

74
Possuímos os títulos de quarenta e duas comédias de Cecílio, a maioria
em grego (BEARE, 1951, p. 79). Seu apogeu é situado em 179 e morte em
168 a.C. (WARMINGTON, 1956, p. xxvii-xxix).
75
A ordem das primeiras apresentações das comédias de Terêncio é
controversa, mas existe aceitação de que a primeira foi Ândria, em 166 a.C.,
e que sua atividade dramática terminou em 160 a.C. (BEARE, 1951, p. 86).
76
Sabemos as datas das tentativas de encenação da comédia pelos prólogos
e pela didascália.
77
Amphitruo, 15; Captivi, 11-16, 54; Casina, 3-4; Asinaria, 1, 4; Trinummus,
5-8; Poenulus, 3, 11-14; Truculentus, 1-8; Miles gloriosus, 79-82; Menaechmi,
4-5; Mercator, 14-15.

54 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOSÉ GUILHERME RODRIGUES DA SILVA

Beare (1951, p. 152), parece certo que a atenção da audiência


teve sempre que ser conquistada no início da apresentação, mas,
aparentemente, entre Plauto e Terêncio – entre o final do século
III a.C. e meados no século II a.C. – essa conquista demandou
cada vez mais esforços, nem sempre exitosos.
Ademais, uma nova forma de comédia estava ganhando
forma na época de Terêncio, a togata – comédia com ambiente e
personagens latinos, que tinha como principal tema a vida das
pessoas comuns e a vida no campo das comunidades italianas
(BEARE, 1951, p. 121-126; DUCKWORTH, 1994, p. 10-13,
69-70).78 Ambas, palliata e togata conviveram a partir desse
momento, e a togata, aparentemente, surgiu como alternativa à
palliata (BEARE, 1951, p. 121; DUCKWORTH, 1994, p. 68-69).
Na passagem do século II a.C. para o século I a.C., as
farsas suplantaram o drama nos palcos de Roma. Talvez os temas
das comédias estivessem se esgotando. Ainda em 161 a.C.,
Terêncio, no prólogo de Eunuco (40-41), escreve: “por fim, nada
está dito que não fosse dito antes”.79 As atelanas ganharam força
e, em seguida, os mimos tornaram-se a forma de representação
preferida dos romanos. No final do século I a.C., as comédias
de Plauto e Terêncio, então raramente representadas, tornaram-
se objeto de leitura e estudos (BEARE, 1951, p. 144-146;
DUCKWORTH, 1994, p. 70-72).

78
O termo pode ser utilizado para outros tipos de drama, mas é
normalmente associado à comédia. Um sinônimo para togata é tabernaria,
ou seja, “comédia da casa privada”, com sentido de “comédia nativa”, pois
taberna, em latim arcaico, significa “casa privada”, particularmente uma
casa de indivíduos pobres. Aparentemente, diferentemente da palliata, na
togata os escravos não eram representados como mais espertos, inteligentes
ou hábeis que seus senhores (BEARE, 1951, p. 121-124).
79
“denique / nullumst iam dictum quod non dictum sit prius”.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 55


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60 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


A arquitetura romana entre a Arqueologia
e a obra de Vitrúvio: o exemplo do teatro
romano de Bracara Augusta*

Manuela Martins

Introdução

A
arquitetura romana constitui um dos domínios mais
investigados da Antiguidade Clássica, mergulhando
as suas origens no Renascimento, tendo por base o
reconhecimento das ruínas dos antigos edifícios de Roma,
então ainda parcialmente visíveis, e a redescoberta do tratado
De Architectura de Vitrúvio, que viria a ser reinterpretado e
ilustrado pelos arquitetos que nele se inspiraram para construir
os seus próprios tratados. Ao longo dos séculos seguintes,
os monumentos da Roma antiga foram sendo desenhados e
interpretados, afirmando-se uma tradição de estudos que viria
a ser consolidada, a partir do século XVIII, pela descoberta
das cidades de Herculano e Pompeia e, já no século XX, pela
identificação arqueológica dos edifícios de inúmeras cidades do
Império Romano. Assim, os vestígios arqueológicos e a obra
de Vitrúvio representam os alicerces de uma longa tradição de

*
Este capítulo foi elaborado no âmbito do projeto Usos do Espaço na Cidade
Antiga, financiado por intermédio do Convénio FCT-CAPES, submetido
ao concurso 2019-2020, desenvolvido em cooperação entre a Ufes e a
Universidade do Minho.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 61


A ARQUITETURA ROMANA ENTRE A ARQUEOLOGIA E A OBRA DE VITRÚVIO

estudos, centrada na arquitetura romana, que tem a virtude de


continuar a desafiar-nos com novos conhecimentos e questões.
Muitos dos nossos conhecimentos sobre a profissão de
arquiteto e sobre a tecnologia de construção romana resultam da
leitura do tratado vitruviano, quase milagrosamente preservado,
que tem sido objeto de múltiplos estudos e interpretações, muito
embora permaneça problemática a sua aplicação real à arquitetura
do tempo de Augusto. No entanto, a Arqueologia acrescentou uma
dimensão material incontornável ao conhecimento de edifícios
romanos, que favorece uma análise sobre o modo como se construía
nas diferentes regiões do Império e se difundiram os modelos
construtivos que emanavam de Roma. Por isso, o estudo da
arquitetura romana, enquanto expressão cultural que formatava a
imagem da cidade antiga, tem que assentar nos dados arqueológicos,
não prescindindo, todavia, de uma necessária reflexão crítica sobre
o conteúdo da obra de Vitrúvio, que nos fornece alguns valiosos
conhecimentos sobre a tecnologia helenística e romana e sobre o
modo de elaborar os projetos dos edifícios.
É essa reflexão que nos propomos desenvolver neste
capítulo, assumindo como caso de estudo o teatro romano de
Bracara Augusta, descoberto em 1999, na sequência dos trabalhos
arqueológicos realizados na Colina da Cividade, em Braga, o qual
se encontra parcialmente escavado. Trata-se de um contexto
privilegiado para perceber o contributo das fontes arqueológicas
e das fontes escritas para a compreensão das formas e imagens
dos espaços urbanos romanos.

O estudo da arquitetura romana: velhas e novas temáticas

Quando comparamos a arquitetura romana com a


grega, podemos considerar que ela é mais monumental, mais

62 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MANUELA MARTINS

utilitária e funcionalmente diversificada e, simultaneamente,


mais dinâmica, o que resulta da maior variedade dos
elementos arquitetónicos que incorporava, sendo também
mais ornamentada, pois integrava temas ausentes da gramática
decorativa grega. Mas a característica mais marcante da
arquitetura romana evidencia-se na sua monumentalidade, que
resulta do jogo das massas construídas e da utilização combinada
de vários elementos arquitetónicos, que se articulavam de modo
harmonioso na composição e cobertura dos edifícios (WARD-
PARKINS, 1988). Enquanto o uso do opus caementium permitiu
a construção de grandes edifícios, a utilização combinada dos
arcos e das abóbadas permitia a necessária elevação dos espaços
arquitetónicos, passando a colunata a desempenhar uma função
meramente decorativa. Uma outra característica importante da
arquitetura romana reside no protagonismo assumido pelas
fachadas, resultante do papel que a simetria axial desempenhava
na organização dos edifícios e do ritmo das colunatas que
lhes conferia um amplo sentido cenográfico e uma imagem
compositiva de grande valor cultural e identitário (GROS, 1996).
Na verdade, a arquitetura romana estava ao serviço dos cidadãos,
disponibilizando espaços funcionalmente dedicados a diferentes
atividades cívicas, religiosas, políticas, comerciais, mas também
lúdicas e comemorativas que davam forma ao espaço urbano e
configuravam o cenário das atividades públicas e privadas que nele
decorriam (ANDERSON, 1997). Podemos ainda afirmar que a
arquitetura romana revela um acentuado dinamismo conseguido
por meio da articulação de vários elementos construtivos e da
combinação de soluções técnicas e de materiais diversos. O
uso do opus caemantium, ao resolver o problema do suporte das
grandes massas construídas, permitia aos arquitetos uma grande
liberdade na composição das fachadas, com recurso à colunata

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 63


A ARQUITETURA ROMANA ENTRE A ARQUEOLOGIA E A OBRA DE VITRÚVIO

e aos arcos que se combinaram de modo tão dinâmico, quanto


harmonioso (LANCASTER; ULRICH, 2014).
Durante muito tempo, as obras de arquitetura romana
foram sobretudo valorizadas como obras de arte e de engenharia.
No entanto, esgotada que foi a abordagem estilística e técnica da
arquitetura romana, proliferam hoje os estudos que procuram
valorizar os aspectos políticos, sociais e económicos subjacentes,
quer à sua elaboração, quer ao seu uso. Na verdade, podemos
afirmar que a arquitetura constitui mais um elemento da cultura
material do passado, facultado pela Arqueologia, que nos fala da
economia e do mundo do trabalho, mas sobretudo dos homens,
da sociedade e das sociabilidades presentes no quotidiano das
cidades (YEGÜL; FAVRO, 2019).
A este novo olhar sobre os edifícios da Antiguidade, não
é estranho o grande desenvolvimento da Arqueologia Clássica
do Pós-Guerra, que trouxe à luz do dia numerosos vestígios
de edifícios romanos, descobertos pelas escavações, na maior
parte das vezes apenas reconhecíveis na modéstia das evidências
dos seus muros arruinados, que permitem restituir as formas e
plantas dos edificados, não se dispondo, senão em raros casos,
do aparato ornamental que os caracterizavam enquanto lugares
de utilização. Quando conservada, a decoração arquitetónica
constitui um elemento fundamental para a caracterização
dos edifícios, tendo sido apanágio da abordagem artística e
estilística, que pautou a visão historiográfica tradicional da
arquitetura romana até há poucas décadas. De facto, interpretar
as ruínas de antigos edifícios, descobertas pelas escavações,
por vezes reduzidas a poucas fiadas de pedras, constitui um
interessante exercício, que os arqueólogos valorizam de um
modo necessariamente diferente daquele que caracteriza a
abordagem do historiador de arte, ou do arquiteto, habituados a
lidar com edifícios conservados.

64 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MANUELA MARTINS

As novas perspectivas de investigação que se abriram


no âmbito do estudo da arquitetura romana, tendo por base
o registo arqueológico, centram-se pois em velhas e novas
questões, desde a identificação tipológica e funcional dos
edifícios, às questões tecnológicas relacionadas com os materiais
empregues, sua origem e modo de exploração (ADAM, 1994;
LANCASTER; ULRICH, 2014), ao processo construtivo dos
edifícios (TAYLOR, 2003), ou mesmo aos custos das obras,
especialidades envolvidas, ou ao peso da construção como
setor de atividade económica nas cidades ou territórios por elas
controlados (TAYLOR, 2014; HAWKINS, 2016). Na verdade,
estamos perante um novo questionário, cuja resposta carece de
estudos contextuais dos edifícios, mas que exige, igualmente, uma
reflexão aprofundada sobre o modo como se construía e porquê,
como se projetavam os edifícios e quais as tradições construtivas
que davam expressão à forma e à imagem dos monumentos e
das cidades. É neste contexto que importa valorizar o tratado
de arquitetura de Vitrúvio, que, apesar de não ser um manual,
constitui, pela sua singularidade, um incontornável documento
sobre a construção helenística e romana, certamente inspirador
de outras obras que não chegaram até nós.

A obra de Vitrúvio

O tratado De Architectura, de Vitrúvio, também conhecido


como os Dez livros de Arquitetura, é o único dos vários tratados
de arquitetura da Antiguidade que conhecemos, tendo sido
redescoberto no Renascimento e desde então impresso de forma
continuada até à atualidade. Citado por vários autores romanos
(ROWLAND, 2014), o tratado foi objeto de sucessivas cópias
ao longo da Idade Média, que garantiram a sua transmissão e
permitiram a sua ampla divulgação e reinterpretação a partir da

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 65


A ARQUITETURA ROMANA ENTRE A ARQUEOLOGIA E A OBRA DE VITRÚVIO

sua descoberta, tendo assumido um papel inspirador das bases


da teoria da arquitetura europeia moderna (ETTLINGER, 1977).
Apesar da obra de Vitrúvio ter sido objeto de ampla
utilização por parte de historiadores e arqueólogos e de
numerosos estudos pelos filologistas, sabemos muito pouco
sobre o próprio autor, nem mesmo havendo certezas quanto
ao seu nome. Faventino refere-o como Vitruvio Pollo, e a partir
do século XV foi chamado de Marcus Vitruvius Pollio. Apesar de
referido por alguns autores romanos, em particular Plínio, o
Velho, Frontino, Faventino e Sidónio Apolinário, são sobretudo
as referências biográficas contidas na própria obra que fornecem
alguma luz sobre a sua condição de apparitor, categoria que
integrava os engenheiros militares e os arquitetos (MACIEL,
2006). Na verdade, apesar de ser referido por Frontino como
arquiteto, Vitrúvio terá sido essencialmente um engenheiro
militar, que serviu no exército de César, até à morte do ditador,
em 44 a.C., e, posteriormente, sob comando de Otaviano, como
especialista em artilharia, até aos primeiros dias do Império,
entre 31 e 28 a.C., quando se aposentou (YEGÜL; FAVRO,
2019). A partir de então ter-se-á dedicado à construção de obras
hidráulicas, na qualidade de engenheiro civil, sendo a basílica de
Fano, na Úmbria, a única obra de arquitetura que lhe pode ser
atribuída, segundo a sua própria descrição, feita no Livro V.
De acordo com as indicações do próprio Vitrúvio, relativas
aos monumentos que refere na cidade de Roma, o tratado deverá
ter sido redigido no final da sua vida, entre os anos de 30 e 26
a.C. (YEGÜL; FAVRO, 2019).
O livro inclui uma dedicação a Augusto, título que Otaviano
assumiu em 27 a.C., podendo considerar-se que Vitrúvio esperava
com essa homenagem ganhar o favor do jovem imperador. No
entanto, as opiniões divergem quanto aos verdadeiros motivos
que terão levado Vitrúvio a redigir o seu tratado. Frank Brown

66 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MANUELA MARTINS

(1963) defendeu a ideia de que o autor pretendeu dignificar a


profissão de arquiteto, transformando numa arte liberal aquilo
que era visto tradicionalmente como um trabalho manual, usando
a retórica como modelo, interpretação que foi questionada por
Pierre Gros (1994), que justifica a elaboração da obra como
estratégia de Vitrúvio para ganhar distinção (honores), servindo
os homens que designou por aedificantes, ou seja, os magistrados
tradicionalmente responsáveis pela construção pública, mas
também os patres familiarum, para quem esperava que o seu
Livro VI, dedicado à construção doméstica, fosse de particular
utilidade. Embora Vitrúvio não se refira ao seu passado, admite-
se a sua origem de uma família italiana de classe média, sendo
pouco provável que a sua educação correspondesse à idealizada
educação em artes liberais que propõe para os arquitetos, sendo
por isso de considerar que desejasse elevar a posição social do
arquiteto por intermédio de uma educação abrangente que
equilibrasse o conhecimento prático e profissional com a teoria.
Tanto quanto sabemos, a posição dos arquitetos na sociedade
romana era respeitada, sendo, contudo, humilde e considerada
inadequada para as classes altas, tal como acontecia com a maior
parte dos ofícios e profissões (GROS, 1983). Os praticantes
eram normalmente estrangeiros, principalmente escravos gregos
instruídos ou libertos, muito embora alguns dos profissionais mais
destacados pudessem estar ligados a famílias aristocráticas ricas,
ou desfrutar dos favores imperiais, trabalhando como arquitetos-
chefe em grandes obras públicas (MACDONALD, 1977).
Independentemente das motivações pessoais de Vitrúvio,
parece incontestável que o seu tratado se dirigiu sobretudo a
Augusto, que, a partir de 29 a.C., se tornou o grande construtor
de Roma e do Império. Redigido num período de grande fulgor
construtivo na cidade de Roma, mas também nas províncias,
durante o qual se afirmou a verdadeira identidade da arquitetura

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 67


A ARQUITETURA ROMANA ENTRE A ARQUEOLOGIA E A OBRA DE VITRÚVIO

romana, a obra De architectura sistematiza ideias e regras sobre


a arquitetura de inspiração helenística, da qual os arquitetos
contemporâneos de Vitrúvio se estavam a afastar, ensaiando
novos modelos e soluções arquitetónicas, que acabaram por se
afirmar na arquitetura romana de todo o século I (MAR, 1994). A
obra tem, por isso, um alto valor referencial, dizendo-nos pouco
relativamente à dinâmica construtiva da Roma de Augusto.
No prefácio do Livro I, Vitrúvio define claramente o campo
da arquitetura, considerando-a uma ciência que interage com
todos os restantes saberes, afirmando que a natureza científica
do conhecimento sobre a arquitetura provinha da prática (fabrica)
e da teoria (ratiocinatio). A definição que apresenta para fabrica
demonstra que entendia o exercício experimental como anterior
à reflexão teórica, enquanto o seu entendimento de ratiocinatio
remete para o fundamento epistemológico do conhecimento da
arquitetura (MACIEL, 2007). É também no Livro I que Vitrúvio
enumera o que considerava serem os três princípios norteadores
da arquitetura, a firmitas, a utilitas e a venustas, os quais se
tornaram centrais na teoria vitruviana depois do Renascimento.
Fazendo uma clara distinção entre a construção e o
projeto, Vitrúvio apresenta ainda seis princípios, que bebem
das fontes gregas, consideradas centrais para a elaboração
do projeto arquitetónico, que descreve no capítulo 2 do Livro
I (MACIEL, 2006). São eles: a ordenação (ordinatio), que se
exprime na noção de módulo, ou rata pars (determinada parte);
a disposição (dispositio), referente ao modo como o arquiteto
apresentava graficamente as suas obras aos encomendadores;
a euritmia (eurythmia), ou seja, a correspondência equilibrada
entre altura, largura e comprimento; a comensurabilidade
(symmetria), que visava a perfeita correlação entre o todo e as
partes; a conveniência (decor), que definia os comportamentos a
ter em conta na adequação ou conformação às normas culturais

68 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MANUELA MARTINS

e artísticas; e a distribuição (distributio), que genericamente se


referia à gestão equilibrada dos espaços, tendo, num sentido
restrito, mais a ver com a gestão das obras. Três destes princípios
estão articulados com a estética dos edifícios, assim defendida
pelo tratadista: a eurythmia, a symetria e o decor. Por symetria
pode entender-se proporção, uma vez que Vitrúvio associava o
conceito ao módulo usado no cálculo das partes. Trata-se de uma
relação métrica exata, fundamentada no cânone das proporções
do corpo humano e aplicada por analogia aos edifícios. A
eurythmia associa-se à perceção do espetador relativamente aos
edifícios e designa a beleza que resulta do jogo das proporções.
Já o decor refere-se às relações entre o programa arquitetónico e
a sua resolução formal.
O tratado vitruviano, que sistematiza as normas da
arquitetura antiga, oferece-se como uma fonte de inspiração
para os historiadores de arte, arquitetos e arqueólogos
elaborarem as suas propostas de reconstituição dos edifícios
romanos, sejam eles basílicas, teatros, termas, ou habitações.
No entanto, a Arqueologia tem demonstrado que os edifícios
romanos nem sempre observam as regras defendidas por
Vitrúvio, porque a arquitetura romana sofreu uma evolução
significativa posteriormente à redação do tratado, mas também
porque a construção dos edifícios estava sujeita a uma série
de constrangimentos, que os arquitetos tinham que levar em
conta e que pesavam bastante na execução da obra final. Na
verdade, a projeção tridimensional de qualquer edifício refletia
a visão do arquiteto, condicionada pela natureza do edifício a
contruir e pelas normativas legais vigentes, mas também pelas
áreas de construção, orçamento da obra, materiais a utilizar e
pelos próprios gostos de quem encomendava as obras. Assim,
a obra final resultava da adaptação do projeto arquitetónico aos
constrangimentos construtivos, entre os quais cabe destacar

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 69


A ARQUITETURA ROMANA ENTRE A ARQUEOLOGIA E A OBRA DE VITRÚVIO

aqueles que tinham a ver com as características dos lugares onde


os edifícios eram implantados, designadamente as condições de
natureza topográfica, geológica e hidrológica (TAYLOR, 2003).
Sendo certo que Vitrúvio refere algumas dessas
condicionantes, importa não esquecer que a sua obra não é um
manual de construção, afigurando-se antes como um breviário
sobre as regras de bem projetar, sendo sobretudo uma obra didática
e filosófica sobre a arte de bem construir, numa tradição que estava
a ser questionada por novas ideias e modelos que estavam já em
curso à data da sua redação. Vitrúvio não aborda a organização da
construção, nem faz qualquer referência a ferramentas, andaimes
ou cofragens, que eram muito importantes no desenrolar do
processo construtivo. A omissão dessas informações significa que
o espírito da obra foi outro. Estabelecendo uma clara distinção
entre projeto e construção, Vitrúvio centra-se no primeiro, pois
considera que é o projeto que define a natureza científica da
arquitetura e o verdadeiro trabalho do arquiteto, permitindo-lhe
raciocinar no abstrato, conceber obras originais e estabelecer o
diálogo com os encomendadores.
Conhecer os mecanismos de reflexão dos arquitetos
romanos que nos legaram os edifícios da Antiguidade constitui
um dos exercícios que a Arqueologia procura cumprir a partir da
análise dos vestígios arqueológicos construtivos, que permitem
avaliar a arte de projetar e construir no mundo romano. Por isso,
a imagem que temos hoje da arquitetura romana, fundamental
na reconstrução das cidades do extenso Império Romano, tem
que se alicerçar numa base científica fornecida pelas fontes
arqueológicas, ainda que se possa revisitar a obra de Vitrúvio,
que permite perceber diferentes graus de aplicação dos modelos
reguladores que certamente circulavam na Antiguidade, mas que
não chegaram até nós (PLOMMER, 1973; ROWLAND, 2014). É

70 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MANUELA MARTINS

esse exercício que procuraremos desenvolver em seguida, tendo


por base o teatro romano de Bracara Augusta.

O teatro de Bracara Augusta e a sua restituição arquitetónica

De entre os diferentes tipos de edifícios romanos


conhecidos por meio da prática arqueológica sobre os quais
podemos avaliar a pertinência do tratado de Vitrúvio destacam-
se os teatros, que são abordados no Livro V (GROS, 1994a). A
temática tem suscitado uma ampla discussão, sendo importante
reconhecer que a grande maioria dos teatros conhecidos no
mundo romano foi construída posteriormente à redação da obra
(MAR, 1994). Assim aconteceu com o teatro de Bracara Augusta,
construído nos inícios do século II, provavelmente no reinado de
Trajano (MARTINS et al., 2013). Na verdade, apesar da grande
maioria dos teatros das províncias ocidentais possuir uma
cronologia pré-flávia, associando-se à expansão e consolidação
do culto imperial, conhecem-se vários teatros mais tardios,
datados de época flávia e antonina. Esta variabilidade cronológica
articula-se com a diferencial capacidade económica das cidades
provinciais erguerem os seus edifícios de espetáculo, que
representavam imprescindíveis ornamenta publica. Assim, quando
se constrói o teatro de Bracara Augusta, este tipo de edifício tinha
já sofrido uma evolução considerável, relativamente aos teatros
que Vitrúvio pode ter conhecido.
Os teatros diferenciam-se, do ponto de vista do desenho,
de qualquer outro tipo de edifício romano, admitindo-se que os
seus desenhos seriam elaborados por arquitetos que tinham que
adaptar os projetos às especificações dos clientes e ao orçamento
disponível, mas sobretudo às condicionantes do espaço urbano,
que se tornaram mais relevantes em momentos avançados

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 71


A ARQUITETURA ROMANA ENTRE A ARQUEOLOGIA E A OBRA DE VITRÚVIO

do processo de urbanização, como aconteceu com o teatro de


Bracara Augusta, cuja construção implicou alterações urbanas
significativas, designadamente ao nível da desafetação de
eixos viários e da demolição de edifícios de cronologia anterior
(MARTINS et al., 2013).
As primeiras especificações necessárias para erguer um
teatro deveriam relacionar-se com a sua orientação, localização e
capacidade, que estaria relacionada com o número de espetadores
que poderia vir a albergar.
Vitrúvio prescreveu que o teatro deveria estar orientado
de modo a que o auditorium não estivesse de face para o sol,
constrangimento que foi superado pela tecnologia da vela, ou
toldo que cobria a área onde se encontravam os espetadores,
que se difundiu a partir da época de Augusto. A partir de então,
os arquitetos e construtores passaram a ter maior liberdade
para a implantação dos edifícios, o que justificará certamente
a sua heterogénea orientação, resultante das condicionantes
relacionadas com as áreas disponíveis para construção e respetiva
topografia. Assim parece ter acontecido com o teatro romano
de Braga, orientado a poente, construído no limite poente da
plataforma mais alta da cidade romana, que possuiria uma
pendente adequada para a implantação da cavea do edifício.
A escolha do sítio para a construção dos teatros envolvia
sempre uma decisão sobre se o teatro seria construído exento, ou
numa vertente, pois desde inícios do século I a.C. que os arquitetos
romanos eram capazes de construir uma pendente artificial para
o auditorium, por meio de substruções de opus caementicium. No
entanto, a existência de uma vertente conveniente, no centro
da cidade, como acontecia em Bracara Augusta, poderia reduzir
consideravelmente os custos da obra, tendo-se aproveitado
o remate da Colina da Cividade para assentar a ima e parte da
média cavea, sendo certo que a summa cavea se deveria erguer

72 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MANUELA MARTINS

parcialmente sobre substruções (MARTINS et al., 2013). O


teatro romano de Braga foi assim construído a poente do forum
administrativo, anexo a umas termas públicas construídas em
simultâneo (MARTINS, 2005).
Vitrúvio não discorre sobre a capacidade dos teatros, muito
embora essa fosse uma variável importante, que condicionava os
custos da obra e a especificação do desenho. Presumivelmente,
seria mais a capacidade do que o tamanho que deveria ser
estipulada por quem encomendava a obra. Essa capacidade era
estimada em função do presumível número de espetadores,
traduzido no comprimento das bancadas, uma vez que os teatros
romanos não tinham lugares individuais, mas sim assentos
contínuos, o que significava que a sua capacidade variava de
acordo com o espaço que era atribuído a cada individuo (locus)
(SEAR, 2006).
Uma vez acordada a localização, a orientação e a capacidade
do teatro, o arquiteto deveria iniciar o processo de desenho. Sendo
o teatro um edifício centralizado, o seu desenho era concebido
geometricamente. Por isso, o lugar para esboçar o projeto seria o
seu centro, ou seja, a orchaestra, cuja dimensão variava de acordo
com a grandeza do edifício e que dependia, fundamentalmente,
da capacidade da cavea. Assim, a relação entre a orquestra e o
tamanho do edifício nem sempre era fácil de estabelecer, porque
tinham que ser feitos numerosos ajustamentos. Na verdade, um
teatro consistia numa série de círculos concêntricos, em que o
maior tinha por diâmetro a largura da orquestra, obtida a partir
da linha de assentos da ima cavea. Um círculo intermédio deveria
corresponder ao diâmetro medido a partir do muro do balteus e
um anel menor contemplava apenas a superfície da orquestra
sem os degraus para a bisellia.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 73


A ARQUITETURA ROMANA ENTRE A ARQUEOLOGIA E A OBRA DE VITRÚVIO

Figura 1 – Áreas escavadas do teatro de Bracara Augusta

Fonte: ©UAUM

Vitrúvio não fornece medidas para o comprimento do


palco, nem elabora sobre a relação entre o diâmetro da orquestra
e o diâmetro global do teatro, mas estipula que o diâmetro da
scaena deve duplicar o da orquestra. É uma medida comum em
muitos teatros, mas muitas vezes a scaena possui uma extensão
superior ao diâmetro da orquestra, como acontece no teatro de
Bracara Augusta, cuja scaena possui um comprimento de 48.34m
(163 pés), o que corresponde a 2.5 do valor da orchaestra.

74 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MANUELA MARTINS

O passo seguinte consistia em fixar o número de cunei,


a posição do palco, a posição da scaenae frons e o local das
valvas. Segundo Vitrúvio, todos estes elementos podiam ser
estabelecidos de acordo com um processo geométrico, sendo a
forma do teatro determinada a partir do diâmetro da orquestra,
que fornecia o ponto gerador para desenhar uma circunferência,
cuja materialização oferece variações de teatro para teatro, pois
o diâmetro da mesma pode corresponder aos alinhamentos dos
futuros aditi ou a uma linha que passa pelo seu centro.
Para os teatros gregos, Vitrúvio sugere como referência
o círculo da orchaestra, nele inscrevendo três quadrados, cujos
ângulos tocavam o perímetro da circunferência. O limite do círculo
tocava o muro da scaena e o do quadrado a frente do palco. Oito
ângulos dos 3 quadrados deveriam dividir a cavea em 7 kerkides e
definir a posição das scalaria. Para o desenho do teatro romano,
Vitrúvio propunha também o círculo da orchaestra, no qual
inscrevia quatro triângulos equiláteros, cujos ângulos tocavam o
perímetro. Sete ângulos indicavam a localização das scalaria, que
dividiam a cavea em seis cunei. A base do triângulo central deveria
marcar a linha da scaenae frons, ou a parte traseira do palco, o que
claramente não acontece no teatro de Braga, enquanto a projeção
de três dos vértices indicava as três valvas, algo que pode ser
confirmado pela posição da única valva que conhecemos. Assim,
verificam-se vários desvios a um possível geometrismo rígido
usado no desenho do teatro romano de Braga. Na verdade, os
restos arqueológicos demonstram que a localização da scaena
frons se situa claramente atrás da linha do triângulo, coincidindo
com o limite da circunferência da orchaestra, com um diâmetro
de cerca de 20.75m (70 pés), situação que aliás é comum em
muitos outros teatros romanos conhecidos. No caso concreto do
teatro de Bracara Augusta, verificamos que o círculo que coincide
com os vestígios conservados não só inclui os degraus da poedria

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 75


A ARQUITETURA ROMANA ENTRE A ARQUEOLOGIA E A OBRA DE VITRÚVIO

como também o primeiro precinctio, que separava a orquestra da


cavea, tendo como diâmetro e eixo gerador o alinhamento que
dará origem ao limite nascente do aditus maximus.
Verifica-se, assim, que o esquema de Vitrúvio não está
de acordo com muitas evidências arqueológicas, o que parece
razoável, considerando que Vitrúvio conhecia sobretudo
teatros gregos, onde a geometria do desenho parece de facto
ser controlada pela orchaestra, situação que também ocorre com
alguns teatros projetados no período de redação do tratado, como
é o caso do teatro de Óstia e da scaenae frons do teatro de Alba
Fucens, exemplos mais próximos do esquema vitruviano (SEAR,
2006). Mas, na grande maioria dos teatros romanos conservados,
a linha do diâmetro não assinala a frente do palco, o que significa
que a orquestra excede o semicírculo e que o palco tem quase
o dobro da profundidade que Vitrúvio prescreveu na sua obra.
Várias explicações podem ser apontadas para a diferença
entre o traçado regulador sugerido por Vitrúvio e as evidências
arqueológicas dos numerosos teatros do mundo romano. Desde
logo, haverá que reconhecer que existiam muito poucos teatros
romanos que pudessem ter sido diretamente observados pelo
autor, uma vez que este tipo de arquitetura conhecerá sobretudo
um notável incremento no tempo de Augusto e nas décadas
posteriores, sofrendo também uma profunda evolução, pois os
teatros constituíram-se como espaços simbólicos da propaganda
do Estado romano (GROS, 1987). Ora, a scaena foi a parte dos
teatros romanos que mais alterações sofreu, pois oferecia mais
capacidade para exibir a necessária ostentação propagandística
deste tipo de edifício, tendo sido ensaiadas várias experiências
para aumentar o efeito monumental da scaenae frons, que
implicavam naturalmente uma maior extensão do palco (MAR;
BÉLTRAN CABALLERO, 2010). O próprio Vitrúvio adverte-
nos de que as regras da geometria não podem servir a todas

76 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MANUELA MARTINS

as condições e propósitos de todos os teatros, e que cabia ao


arquiteto estabelecer até que ponto o princípio da simetria
deveria ser aplicado, tendo em conta a natureza do sítio e a escala
do edifício. Assim, compreende-se que o método de desenhar
a scaena proposto por Vitrúvio tenha ficado rapidamente
desatualizado, enquanto o método de desenhar a cavea pode ter
continuado em utilização, permitindo também projetar teatros
menores, apenas com 4 ou 5 cunei, que Vitrúvio não referiu, mas
que foram construídos. Na verdade, não foi tanto o método de
projeção dos teatros que mudou, mas mais o desenho, pois o
palco tornou-se maior, pelo que a scaenae frons teve que recuar,
passando a coincidir com o limite do círculo da orchaestra.
No teatro de Braga, a linha do postcaenium coincide com
a tangente do círculo que desenha o precinctio, que assegurava a
separação entre a ima e a media cavea. Trata-se de um muro robusto,
que separava o palco do porticus post scaenam, um importante
espaço de relaxe e convívio. Esta poderosa parede rematava a
scaena, fechando o teatro no lado poente. Trata-se de uma estrutura
autoportante, cujo equilíbrio estático era garantido por poderosos
contrafortes, cuja evidência chegou até nós por intermédio das
valas de saque dos silhares que os compunham.
Uma vez definido o desenho da orquestra e da scaena,
eram desenvolvidos outros cálculos para estabelecer a altura
da cavea e da scaena frons. Sabemos que a altura da cavea
estava condicionada pelas características das vertentes onde
assentavam as bancadas e pelos valores médios que esta parte
do teatro poderia possuir. Segundo Vitrúvio, os assentos
deveriam ter pelo menos 1 pé e um palmo (0.3675/0.37125m)
e não mais que 1 pé e 6 digitus em altura (0.40425/0.408375m),
ou seja, entre 0.36 e 0.40m, devendo a sua profundidade variar
entre 2 pés (0.588/0.594m) e 2.5 pés (0.735/0.7425m), ou
seja, entre 0.59 e 0.74m (SEAR, 2006).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 77


A ARQUITETURA ROMANA ENTRE A ARQUEOLOGIA E A OBRA DE VITRÚVIO

Figura 2 – Proposta de restituição do teatro de Bracara Augusta

Fonte: ©UAUM

Tendo por base os dados disponíveis, verifica-se que a


cavea do teatro de Braga apresenta uma planta semicircular
ultrapassada, com 64m de diâmetro, com capacidade para
sensivelmente 3000 pessoas,2 tendo em conta a existência de
três bancadas com degraus formados por lajes, com 0.45m de
largura e sensivelmente 0.70m de comprimento, perfazendo

2
Valor obtido pela divisão da superfície total da cavea, sem ter em conta
passagens, muros e escadas, pela área média ocupada por uma pessoa
sentada (0.85*0.60m= 0.51m2) (31.302π= 3077.78/ 3077.78/2=
1538.90/ 1538.90/0.51= 3017) (SEAR, 2006).

78 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MANUELA MARTINS

0.40 metros de altura, valores correspondentes aos degraus


conservados da ima cavea, o que permite afirmar que o teatro de
Braga parece obedecer aos cânones vitruvianos no que se refere
às dimensões dos assentos.
De acordo com Vitrúvio, o teto do porticus in summa cavea
deveria estar ao mesmo nível que o telhado da scaena. No entanto,
é difícil precisar se esta regra foi seguida em todos os teatros,
pois as evidências dessas estruturas são bastante reduzidas,
estando limitadas a poucos teatros onde a scaena e o porticus se
conservaram em toda a sua altura. Entre os exemplares de teatros
melhor conservados cabe destacar o teatro de Aspendo, na atual
Turquia, construído no ano de 155, no reinado de Marco Aurélio,
o qual parece ter seguido à risca as prescrições de Vitrúvio. Já no
teatro de Arausio, o topo da colunata tinha a mesma altura que a
cornija do porticus da cavea, pelo que o telhado sobre o palco era
mais alto (SEAR, 2006).
No caso do teatro de Braga, é difícil estabelecer com
precisão a solução arquitetónica encontrada, considerando o
estado de destruição do edifício. No entanto, é possível elaborar
uma proposta de restituição, tendo por base os elementos
conhecidos, designadamente a altura da cavea, as características
do muro perimetral e a suposição da existência de um porticus
in summa cavea, para além de estimativas que nos são facultadas
pela obra de Vitrúvio.
Sabemos que o teatro de Bracara Augusta tinha 72m de
diâmetro e que a cavea exibia 13.10m de altura, sendo dividida em
três níveis (ima, media e summa cavea), separados por praecinctiones.
Ora, o estabelecimento do equilíbrio do edifício implicava a
articulação do muro perimetral com as estruturas que fechavam
a scaena, na circunstância representadas pelas paredes norte e sul
das basílicas que rematavam o pulpitum.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 79


A ARQUITETURA ROMANA ENTRE A ARQUEOLOGIA E A OBRA DE VITRÚVIO

Embora Vitrúvio não discuta a fachada dos edifícios teatrais


construídos autonomamente da vertente, estes tornam-se uma
realidade frequente no período augustano, tendo a elaboração
das fachadas conhecido igualmente sofisticados ensaios, como
acontece no teatro de Marcelo, revelando-se aquela bem mais
complexa que a do teatro de Iguvium, na Úmbria, construído no
3º quartel do século I a.C., onde foi ensaiada a construção de
uma fachada com dois andares (SEAR, 2006).
No caso do teatro romano de Braga, podemos considerar
que a fachada era constituída por um muro perimetral, com
cerca de 3.70m de largura (13 pés), identificado em diferentes
setores, que possui contrafortes dispostos a intervalos regulares.
Considerando a largura do muro perimetral, identificado
em várias sondagens arqueológicas, julgamos perfeitamente
defensável que existisse um pórtico in summa cavea, para o qual
se estima uma largura de 10 pés (2.96m). O muro seria mais
alto a norte e sul, devido ao forte desnível do terreno, do que na
parte central do edifício, onde as cotas mais elevadas do terreno
permitiam que o mesmo fosse mais baixo e que os contrafortes
tivessem aí um papel mais decorativo do que estrutural, servindo
de embasamento para suportar a colunata que ornamentaria a
fachada externa do edifício. Entre alguns desses contrafortes
devem ter sido rasgadas portas de acesso, que permitiam aceder
ao interior do edifício, as quais deveriam ser encimadas por arcos
que marcariam as abóbadas de acesso.
Elemento importante na restituição da altura do teatro de
Braga é também o cálculo da altura do palco e da frente cénica.
Sabemos que o palco romano era excecionalmente profundo e
fechado em três dos lados por muros com portas que davam
acesso a diferentes compartimentos, sendo a traseira do palco
constituída pelo muro que fechava a scaena, tão alto como o
auditorium, com três portas que conduziam aos compartimentos

80 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MANUELA MARTINS

traseiros (postscaenium), enquanto os muros laterais conduziam


às basílicas. Segundo Vitrúvio, a parte frontal do palco (pulpiti
frons) não deveria elevar-se a mais que 5 pés acima da orchaestra.
Tendo por base os vestígios encontrados, estimamos que o
pulpitum do teatro de Braga teria cerca de 1.40m. Por outro lado,
os conhecimentos disponíveis demonstram que os palcos dos
teatros do tipo ocidental eram muito compridos, correspondendo
a sua largura a cerca de 1/4, ou a 1/6 do comprimento. No caso
do teatro de Braga, verifica-se que a profundidade do palco
corresponde a 1/4 do comprimento.
A scaenae frons com 2 ou 3 andares, sobreposta por um
telhado, era a parte mais decorada do teatro e Vitrúvio dá indicações
claras sobre o modo de elevar uma columnatio de 2 ou 3 andares
em frente do muro da scaenae frons, que exemplificamos com o
alçado do teatro de Braga. Assim, o podium da 1ª ordem deveria
corresponder a 1/12 do diâmetro da orquestra e o entablamento
a 1/5 da altura das colunas, devendo a altura destas possuir 1/4
do diâmetro da orchaestra. O podium da 2ª ordem deveria possuir
metade do valor da 1ª ordem e as colunas a cerca de 3/4 da
altura das anteriores. Assim, tendo por base a altura da cavea do
teatro de Bracara Augusta, estimada em cerca de 13.10m, fizemos
um ensaio de projetar uma columnatio de 2 andares, situação que
está de acordo com a dimensão média do edifício, com cerca de
72.73m (245 pés) de diâmetro máximo. Ora, segundo Vitrúvio,
a altura da columnatio deveria corresponder a 65% do diâmetro
da orquestra para uma scaenae frons com 2 andares, o que equivale
a 13.48m. Somando os valores estimados a partir das proporções
fornecidas por Vitrúvio para as duas ordens da frente cénica,
obtemos uma altura de 13.47m, muito próxima, portanto, dos
valores sugeridos por Vitrúvio para a colunata da frente cénica.
Considerando que a altura do pórtico da suma cavea deveria
ser pelo menos equivalente à profundidade do mesmo, podemos

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 81


A ARQUITETURA ROMANA ENTRE A ARQUEOLOGIA E A OBRA DE VITRÚVIO

estimar que o mesmo deveria ter cerca de 10 pés (2.96m).


Sabemos que o entablamento deveria ser de cerca de 1/5 da altura
da colunata, ou seja, 0.59m (2 pés), e que deveria suportar um
telhado de uma água, com um pendente entre 30 e 45%, o que
equivaleria a cerca de 0.90m (3 pés). Considerando os valores
propostos, chegamos a uma altura total do pórtico da ordem
dos 4.45m (15 pés), à qual haveria ainda que acrescentar um
segmento sobrelevado do muro perimetral, onde se implantavam
os elementos de suporte da estrutura do velum, que deveria possuir
pelo menos 1.5m (5 pés). Assim, a altura total do teatro de Braga,
estimada com base nos dados disponíveis e nas proporções
sugeridas por Vitrúvio para a frente cénica e para o pórtico que
encimava a cavea, seria de cerca de 19m, ou seja, cerca de 64 pés.

Figura 3 – Corte do teatro de Bracara Augusta com a restituição


da altura do edifício

Fonte: ©UAUM

Vitrúvio, quando se refere ao teatro, afirma que o arquiteto


deve agir em conformidade com a unidade da obra, com aquilo
que designa por symetria, ou seja, um sistema de proporções que
estabelecem a dialética entre as partes e o todo. Na verdade, seria
essa a base da aprendizagem e da transmissão do conhecimento
da arquitetura, que, segundo Vitrúvio, era o resultado da fabrica
e da ratiocionatio, decorrendo a primeira da experiência que o

82 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MANUELA MARTINS

arquiteto adquiria com o acto de construir e a segunda do modelo


operatório de análise (SEAR, 1990). A Arqueologia demonstra,
entretanto, que a natureza do local, as dimensões das obras
ou os meios financeiros disponíveis parecem ter fomentado
uma grande variedade de soluções construtivas de teatros, que
parecem ter sido ensaiadas sem que necessariamente se tenham
seguido os princípios vitruvianos à letra.

Entre a forma e a imagem: os saberes e as práticas na


arquitetura romana

Existem autores que consideram que a obra de Vitrúvio


não teve efeitos práticos na arquitetura do Império, uma vez
que a partir da época de Augusto os arquitetos afastaram-se
claramente dos modelos helenísticos em que o autor se inspirou.
No entanto, as referências que lhe são feitas em várias obras
e a sua influência em tratados de arquitetura posteriores não
são negligenciáveis, abonando em favor da sua continuada
influência nos séculos posteriores. Assim, vemo-lo citado por
Frontino, que refere Vitrúvio como especialista, e por Plínio, o
Velho, que faz uso explícito do tratado vitruviano quando discute
as árvores, a pintura e as cores ou a pedra, facto que sugere
que a sua obra seria considerada uma referência várias décadas
depois da sua redação. No século II, Vitrúvio volta a ser citado
por Apolodoro, que o designa como especialista de arquitetura,
o mesmo acontecendo com Sérvio, nos inícios do século V. Na
verdade, Vitrúvio parece ser sobretudo invocado para emprestar
autoridade aos escritos de outros autores, sobretudo quando
discutiam arquitetura ou teoria arquitetónica.
Todavia, entre a corporação dos arquitetos, que eram
essencialmente técnicos, não terá sido o Vitrúvio teórico a ser

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 83


A ARQUITETURA ROMANA ENTRE A ARQUEOLOGIA E A OBRA DE VITRÚVIO

difundido, mas sim o autor que falava por experiência própria, facto
que parece demostrado por Marcus Cetius Faventinus, nascido cerca
de 250, que redigiu e anotou um compêndio abreviado de partes
do tratado vitruviano, onde discute os materiais de construção
e debate as técnicas construtivas do antigo escritor. O tratado
vitruviano serviu também de inspiração a Paládio, na elaboração
do seu próprio tratado sobre agricultura e a organização de uma
típica villa romana tardia. Ambos autores escreveram manuais
práticos inspirados na obra de Vitrúvio, o que demonstra que a
mesma continuava a ser reproduzida e utilizada. No entanto, nem
Faventino nem Paládio estavam particularmente interessados
nas questões culturais ou filosóficas, que tanto parecem ter
preocupado Vitrúvio, as quais são sumariamente abordadas
na introdução do compêndio faventiniano. Interessava-lhes,
sobretudo, as questões eminentemente práticas, como o modo de
explorar a água, a localização de construções domésticas, o melhor
uso a dar aos materiais, ou como construir uma abóbada, o que
permite admitir que haverá partes do tratado vitruviano que terão
sido mais usadas que outras e que as schemata que ilustravam o
texto devem ter servido como elementos gráficos que circulariam
pelo Império. O mesmo terá certamente acontecido com outros
tratados de arquitetura entretanto perdidos, que terão servido
para difundir os modelos arquitetónicos e decorativos ensaiados
em Roma, rapidamente adoptados nas províncias, inspiradores
dos desenhos de projetos arquitetónicos que foram materializados
nas diferentes cidades do Império, sujeitos a reinterpretações e
sempre condicionados por vários fatores de natureza topográfica,
técnica e financeira.
A nossa ignorância é total relativamente aos esquemas
gráficos que circulariam pelo Império, bem como sobre o modo
como se organizavam e difundiam os novos modelos ensaiados
em Roma. Na verdade, os caminhos da constituição de um saber

84 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MANUELA MARTINS

e de um saber fazer no seio de uma corporação eminentemente


técnica, cuja atividade não cessou de se codificar e diversificar
a partir do período tardo republicano, permanecem abertos à
discussão, mau grado os contributos sistematizadores fornecidos
pela obra de Vitrúvio e pelos dados da Arqueologia.
O que poderemos considerar seguro é que as exigências dos
programas construtivos romanos, juntamente com a normalização
crescente dos modelos tipológicos, excluíam o amadorismo e
implicavam uma base doutrinal sólida, ainda que seja provável
que os conhecimentos estritamente técnicos tenham permanecido
empíricos. Se é verdade que a construção de cada edifício constituía
um caso único, ainda que se inscrevesse numa série tipológica bem
definida, também é certo que todos eles parecem cumprir normas
geométricas precisas que foram aplicadas pelos arquitetos de forma
criativa. Com efeito, a complexidade das obras públicas romanas
exigia um conhecimento alargado de vários saberes e a experiência
de várias corporações de artistas. Por Vitrúvio, sabemos que as
obras arquitetónicas tinham na sua base documentos elaborados,
tais como projetos, contratos e outros documentos técnicos,
realizados por especialistas, pois a conceção de um edifício público
requeria um bom conhecimento das tipologias arquitetónicas e
um adequado saber técnico relativo à utilização dos materiais e ao
modo como se comportavam (TAYLOR, 2003; 2014).
A convergência de saberes sobre construção, mas também de
matemática, indispensável para a realização de cálculos, constituía
a base de formação prática dos arquitetos, que, na sociedade
romana, seriam fundamentalmente gestores de obra, competindo-
lhes a projeção do edifício, o acompanhamento da obra e a gestão
dos custos. Certamente que a matemática faria parte da educação
formal, mas a sua aplicação aos projetos construtivos requeria
uma aprendizagem prática, certamente realizada já em sede da
corporação dos arquitetos. Vitrúvio reconhece explicitamente

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 85


A ARQUITETURA ROMANA ENTRE A ARQUEOLOGIA E A OBRA DE VITRÚVIO

a importância da formação escolar aprofundada e completa, tal


como a que recebeu graças aos seus pais (Livro VI, prefácio),
endereçando sérias críticas aos colegas, considerando que muitos
se ocupam da arquitetura sem compreender o que é um projeto,
ou mesmo a execução artesanal. Salienta, ainda: a importância
da geometria, que servia para projetar, mas também para medir
e controlar os ângulos no terreno; da aritmética, que servia para
medir proporções do projeto e para calcular os desvios; ou da ótica,
necessária para projetar, mas também para conduzir a luz e para
corrigir as ilusões de ótica por meio de cálculos apropriados, o que
se traduzia, por vezes, no reforço do diâmetro da coluna, que era
colocada no ângulo do peristilo (Livro I, cap. 1, Livro 3, cap. 3, Livro
IV, cap. 2) (MACIEL, 2006). Vitrúvio refere ainda que o arquiteto
deveria conhecer as ciências naturais, importantes para construir
uma conduta hidráulica, ser versado em música para poder
dominar a acústica dos teatros, ter conhecimentos de medicina,
indispensáveis para construir casas salubres, e conhecimentos
jurídicos que permitissem gerir eficazmente os contratos.
Não sabemos se todos os arquitetos teriam conhecimentos
tão vastos e, como já referimos, o próprio Vitrúvio queixou-se da
ignorância dos colegas, afirmando, no prefácio do Livro I, que a
formação do arquiteto devia ser teórica e prática, muito embora
não explique como deveria ser feita essa aprendizagem prática.
A acumulação de dados arqueológicos facultados pelas
escavações tem contribuído para avaliar a arquitetura romana para
além da forma dos edifícios, da sua utilidade e dos seus programas
decorativos, que forneciam uma imagem cenográfica compatível
com o estatuto dos edifícios e das cidades. Por outro lado, a
Arqueologia procura hoje responder a questões relevantes sobre
as obras públicas e privadas relacionadas com a organização da
construção, com destaque para o estudo dos materiais empregues,
bem como para os custos de obra, linha de investigação que se vem

86 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MANUELA MARTINS

afirmando nas últimas duas décadas, considerada fundamental para


a compreensão do peso da construção na economia e da riqueza que
sustentava os projetos construtivos das cidades (TAYLOR, 2014;
YEGÜL; FAVRO, 2019). Ora, Vitrúvio não nos fala das questões
financeiras associadas à execução dos edifícios, sendo igualmente
raras as inscrições que referem os custos de construção. Por isso,
foram ensaiados cálculos da construção arquitetónica, tendo por
base a análise elementar das quantidades de materiais e os custos
da mão-de-obra, usados pela primeira vez para o cálculo dos custos
de construção das Termas de Caracala (DELAINE, 1997), o qual
tem vindo a ser aplicado a outros contextos construtivos, quer
públicos, designadamente aos custos de construção da frente cénica
do teatro de Bracara Augusta (RIBEIRO; MARTINS, 2018).
Embora a informação textual e material disponível para
compreender os edifícios que compunham as cidades romanas
provinciais não nos permita vislumbrar com clareza os circuitos
de transmissão do saber arquitetónico, estamos certos de que a
Arqueologia oferece grandes potencialidades para se compreender o
modo como se processava a circulação dos modelos arquitetónicos
que emanavam de Roma. Cabe igualmente sublinhar a importância
da obra de Vitrúvio e dos saberes nela contidos, que nos convidam
à reflexão crítica sobre o urbanismo, a arquitetura e a decoração
dos edifícios romanos, não porque os módulos vitruvianos tenham
sido aplicados como regra, mas sobretudo porque realizam o
entendimento subjacente às formas e imagens da arquitetura
romana nos inícios do Império, ainda muito marcada pela tradição
helenística. Embora ultrapassada por novos modelos construtivos,
emergentes no tempo de Augusto e consolidados e desenvolvidos
nas décadas seguintes, a obra De architectura não deixa de nos
transmitir a imagem da linguagem clássica da arquitetura romana,
que se enraiza na Grécia, consolida-se no mundo helenístico,
reinterpreta-se no tempo de Augusto e se expande sob o Império.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 87


A ARQUITETURA ROMANA ENTRE A ARQUEOLOGIA E A OBRA DE VITRÚVIO

Referências

Documentação textual

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90 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


A cidade entre duas arces: topografia e
identidade na Roma augustana*

Thiago de A. L. C. Pires

O
historiador Tácito, no trecho abaixo, discorre sobre
a dominação romana na cidade de Camulodunum, na
Britânia, durante o governo de Nero, ocorrido entre 54
até a sua morte, em 68 d.C.

Pois esses novos colonos da colônia [os veteranos] de Camulodunum


exortaram as pessoas de suas casas, expulsaram-nas de suas
fazendas, chamaram-nas de cativas e escravas, e a iniquidade dos
veteranos foi encorajada pelos soldados, que viviam uma vida
similar e almejavam por semelhante licença. Um templo também
foi erguido para o divino Cláudio e estava sempre diante dos
olhos [dos habitantes de Camulodunum], uma cidadela [arx] que
parecia [um símbolo] de perpétua dominação. Homens escolhidos
como sacerdotes tiveram que desperdiçar toda a sua fortuna sob o
pretexto de um cerimonial religioso (Tac., Ann., 14, 31).1

O autor relata como os romanos dominaram violentamente


a população local e transformaram os provincianos em escravos.
Desejo atentar para o que os dominadores construíram nesse
local: uma arx. O autor não faz uma distinção clara entre templo
e cidadela, e a construção da arx, conforme nos relata Tácito,

*
Agradeço a gentil leitura prévia e observações da profa. Dra. Claudia
Beltrão da Rosa.
1
Com algumas exceções, a tradução do original latino para o português foi
feita por mim, sob a revisão do latinista Braulio Pereira.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 91


A CIDADE ENTRE DUAS ARCES

estabeleceu para os habitantes autóctones um forte discurso


ideológico: não significava proteção ou religiosidade, mas sim
um monumento que os lembrava continuamente da dominação
romana. A construção de arces foi um dos principais elementos
urbanos a serem emulados quando os romanos fundavam novas
colônias, assim como fóruns (CAZANOVE, 2000, p. 75). Assim,
as arces, por serem construídas em locais de grande altitude, se
tornaram pontos de apoio e armamento para os conquistadores,
mas também símbolos de opressão sempre presentes na paisagem
para os dominados, conforme defende Tácito. Não obstante, as
arces fundadas nesses locais emulavam e remetiam às arces originais
de Roma, a arx capitolina e a arx janicular. Se para as populações
dominadas as arces personificavam monumentos de dominação
estrangeira, o que poderiam esses altos complexos fortificados
significar para a população de Roma? Como essas cidadelas
modificaram a paisagem e colaboraram na identidade visual
urbana na capital do poder? Que possíveis conotações e discursos
são possíveis de serem auferidos ao analisarmos a topografia lacial
e os textos verbais que lhes davam sentido? São essas algumas das
perguntas que pretendemos responder ao chegar ao final desse
capítulo e, para tanto, cabe partirmos da distante Bretanha e nos
dirigirmos ao centro da Itália, para Roma.
Situada entre o Fórum Romano e o Campo de Marte,
a colina capitolina é uma das mais famosas “setes colinas de
Roma” e consta como sendo a menor em relação às outras seis
(180 m) (COARELLI, 2008, p. 29). Apesar da baixa altura, essa
colina foi a única das sete a ter seu cume fortificado, formando
uma arx e, como consequência, o monte também era chamado
de Arx Capitolina (Liv., 6, 20, 9; 28, 39, 15; Val. Max., 8, 14, 1;
Tac., Hist., 3, 71). Sobre a origem da palavra “arx” e se referindo à
arx original, a capitolina, Varrão (Ling., 5, 151) relata o seguinte:
“[A palavra] arx [deriva de] arcendo, pois era o local mais

92 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


THIAGO DE A. L. C. PIRES

fortificado da cidade, de onde os inimigos facilmente poderiam


ser repelidos”. Provavelmente, a decisão de fortificar essa colina
ocorreu devido à peculiaridade de suas características geológicas:
encostas íngremes e em forma de penhasco, com fácil acesso ao
topo apenas pelo lado sudoeste, no Fórum. Assim, o Capitólio
se tornou um ponto natural de defesa da cidade, pois suas
encostas acentuadas e seus poucos acessos conferiam àqueles
que estavam no topo um ponto privilegiado para se defender dos
projéteis dos inimigos e arremessar os seus.
A colina, em si, foi dividida em três localidades: o cume,
ao Sul, abrigava importantes santuários (Fortuna Primigenia,
Iuppiter Tonans e Ops) e o templo mais importante para o Estado
romano, o de Iuppiter Optimus Maximus. Já o cume, ao Norte, era
conhecido propriamente como “arx”, e, situados no interior
dessa fortificação, estavam localizados o templo de Juno Moneta
e o auguraculum. Por fim, conectando essas duas regiões, havia
uma “sela” de terra baixa e maciça. Do ponto de vista geográfico,
trata-se da mesma colina; os próprios romanos, na Antiguidade,
não faziam uma distinção definitiva entre as três regiões, mas,
sob uma perspectiva geológica, o Capitólio possuía dois picos:
um ao Sul e outro ao Norte (RICHARDSON, 1992, p. 68). Para
fins analíticos, recortaremos nosso escopo de pesquisa apenas
para a parte norte da colina, aquela denominada arx,2 pois nosso
intento é investigar as possíveis conotações vinculadas à palavra
arx e o que esse tipo de complexo fortificado significou para os
antigos habitantes na paisagem urbana de Roma.

2
No entanto, é salutar ressaltar que todas as três áreas do cume capitolino
eram fortificadas, inclusive a “sela” conectora.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 93


A CIDADE ENTRE DUAS ARCES

Mapa 1 – Mapa da colina capitolina, seus marcos topográficos


e arredores

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Capitoline_hill_map.
png em 24/08/2019

Um dos relatos mais relevantes e antigos sobre a arx


capitolina, em seu papel bélico, está relacionado ao ataque gaulês
à cidade de Roma, um episódio traumático para os habitantes
conforme descrito por Tito Lívio (5, 39, 9-12):

Porque não havia esperança de que a cidade pudesse ser defendida


com um número tão pequeno de tropas restantes no momento, foi
decidido que a juventude apta ao serviço militar, e a parte capaz

94 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


THIAGO DE A. L. C. PIRES

do Senado, com suas esposas e filhos, deveriam se retirar para


a cidadela [arx] capitolina. E, tendo coletado estoques de armas
e cereais, visto que ali era um posto fortificado, eles deveriam
defender as divindades, os habitantes e o nome romano [...] que o
flâmine e as Vestais deveriam afastar os objetos de culto públicos
da carnificina e dos incêndios, e não deixar de prestar-lhes culto
até que não restasse ninguém que os cultuasse. Se apenas a
cidadela [arx] e o Capitólio, a morada dos deuses; se apenas o
Senado, a liderança do conselho público; se apenas os homens em
idade militar sobrevivessem à ruína iminente da cidade, [então]
posteriormente, a multidão de velhos deixados para trás na cidade
poderia ser suportada.

O excerto acima levanta algumas questões. A primeira é a


primazia bélica do Capitólio, o mais importante ponto de refúgio
quando a cidade foi sitiada e quase inteiramente destruída pelos
gauleses. Enquanto quase toda a cidade estava em ruínas, a arx
capitolina se tornou o último refúgio da identidade romana, aqui
representada pelos deuses, os senadores e os jovens soldados. A
segunda é como a localização desse cume murado era estratégica:
na Roma arcaica, o Capitólio estava situado nos limites do
território, ou seja, era o possível primeiro ponto de encontro
com as hostes inimigas. Outro trecho de Tito Lívio (4, 18, 3-6)
corrobora essa última premissa:

Essa hesitação por parte do inimigo deu ao ditador e aos romanos


nova coragem. No próximo dia, [...] com os soldados ameaçando
atacar o acampamento e a cidade se não se fizesse luta, ambos os
exércitos avançaram na planície entres seus respectivos campos.
Os veientes, cujo exército era muito superior em número, enviaram
um destacamento ao redor das colinas para atacar o campo romano
durante a batalha. Os exércitos dos três povos ficaram estacionados
da seguinte maneira: os veientes estavam na ala direita, os faliscos
na esquerda e os fidenos no centro. O ditador liderou sua ala direita
contra os faliscos, Capitolino Quinto dirigiu seu ataque à esquerda
contra os veientes, enquanto o mestre de cavalaria avançou seus

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 95


A CIDADE ENTRE DUAS ARCES

cavaleiros contra o centro inimigo. Por alguns momentos, todos


estavam silenciosos e sem movimento, enquanto os etruscos não
poderiam iniciar a luta a menos que fossem obrigados, o ditador
estava olhando para trás, para a cidadela [arx] de Roma, estava
esperando que o sinal de permissão [de ataque] fosse levantado;
sinal de permissão dos augúrios, assim que as aves tivessem dado
um presságio favorável.

O extrato descreve o assédio de forças etruscas contra a


cidade de Roma. É importante imaginar a composição do cenário
detalhado acima: os inimigos estavam nos limites do território
romano, não haviam entrado na cidade, pois tinham acabado de
atacar os campos. Considerando que o Capitólio é o alvo visual
do ditador e a parte leste a esse monte era o Fórum Romano,
conclui-se que as hostes inimigas estavam ao noroeste da colina,
ou seja, no Campo de Marte, que na época arcaica ainda não fazia
parte da cidade. Como resultado, a arx capitolina, nesse período,
protegia um dos limites urbanos e era um importante ponto
visual que demarcava o fim da cidade para aqueles que entravam
ou saíam da cidade. Os relatos que narram guerras envolvendo
a arx capitolina não são muito numerosos e o último assédio
inimigo em que esta foi efetivamente usada em suas funções
bélicas contra estrangeiros foi o cerco gaulês anteriormente
citado, em 390 AEC. (Liv., 5, 39, 9-12).
As ideias postas acima poderiam levar a crer que a arx
capitolina tinha apenas conotações relacionadas à guerra. No
entanto, guerra e religião não eram aspectos dissociados na
Antiguidade romana, mas estavam intimamente imbricados. O
mito etiológico da única edificação templária situada no interior
da arx, o templo de Juno Moneta, salienta essa relação:

Porém, o ditador, considerando que eles haviam sido os agressores


na guerra e estavam indo a batalha sem hesitar, achou por bem

96 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


THIAGO DE A. L. C. PIRES

convocar até os deuses para ajudá-lo, e, no calor do encontro,


prometeu um templo a Juno Moneta. O resultado tornou o voto
obrigatório, e o ditador retornou a Roma vitorioso e resignou
sua autoridade. O Senado ordenou que dois responsáveis fossem
designados para erigir o templo em um estilo digno da grandeza do
Povo romano. E um local foi designado para ele, na cidadela [arx],
onde uma vez havia ficado a casa de Marco Manlio Capitolino
(Liv., 7, 28, 4-6).

Conforme exposto, a ereção do edifício resultou de um


voto de guerra feito pelo ditador Lúcio Fúrio Camilo durante
a conflito contra os auricínios, em 345 AEC, mas o culto e a
presença da deusa naquele local remetem a épocas mais
recuadas, anteriores à fundação do templo (ZIOLKOWSI, 1993,
p. 26). Outro trecho de Lívio associa o templo à guerra: uma
rebelião na Hispânia ocorreu após cinco anos do término das
guerras púnicas (196 AEC) e os cônsules tiveram que observar
os prodígios antes de partir para conter a revolta. Um desses está
relacionado ao edifício: “Próximo ao templo de Juno Moneta,
duas pontas de lança entraram em combustão” (Liv., 33, 26,
8). Tanto a razão de leitura do prodígio, a revolta na Hispânia,
quanto os objetos que envolveram o acontecimento, as lanças,
armas de Marte, aludem ao combate e ao perigo. O próprio
epíteto de Juno Moneta remete ao assédio gaulês ao Capitólio,
pois, segundo Cícero (Div., 1, 101), a palavra “Moneta” deriva
do verbo monere, que significa advertir ou recordar, uma vez que
os gansos do templo teriam acordado os soldados da arx quando
notaram a proximidade dos inimigos estrangeiros (Dion. Hal.,
Ant. Rom. 13, 7, 3; Liv., 5, 47, 2-4; Plut., Cam., 27, 2).
Outro ponto religioso importante contido na arx, e
também relacionado a aves, era o auguraculum. O espaço aberto,
e provavelmente demarcado por cippi, era o local escolhido no
qual os áugures observavam o voo dos pássaros para a leitura

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 97


A CIDADE ENTRE DUAS ARCES

dos auspícios (RICHARDSON, 1992, p. 45). Podemos observar


como a prática de auspicação era antiga em Roma por meio do
seguinte fragmento:

Sendo convocado por Roma, [Numa] ordenou que, assim como


Rômulo obedeceu aos ditos augurais na construção da sua cidade
ao assumir o poder régio, também no seu caso os deuses deveriam
ser consultados. Consequentemente, um áugure (que depois
disso, como um símbolo de honra, foi nomeado sacerdote do
Estado encarregado permanentemente dessa função) conduziu-o
à cidadela [arx] e fez com que ele se sentasse em uma pedra,
voltado para o Sul. O áugure se sentou à esquerda de Numa com
a cabeça coberta e segurava na mão direita o bastão curvo sem
nódulos, que chamam de lituus. Então, olhando para a cidade e
para o campo, ele orou aos deuses, e marcou os céus por uma
linha de Leste a Oeste, designando como “direita” as regiões ao
Sul, como “esquerda” aquelas para o Norte, fixando em sua mente
um marco oposto a ele tão longe quanto o olho pudesse alcançar.
Em seguida, deslocando o bastão para a mão esquerda e colocando
a mão direita na cabeça de Numa, pronunciou a seguinte oração:
“Pai Júpiter, se é da vontade do Céu que este homem, Numa
Pompílio, cuja cabeça estou tocando, seja rei de Roma, mostre
sinais inconfundíveis dentro dos limites que estabeleci. ” Ele então
especificou os auspícios que desejava que fossem enviados, e após
seus aparecimentos, Numa foi declarado rei, e assim descendeu do
templo augural (Liv., 1, 18, 6-10).

Tito Lívio defende que os auspícios estavam relacionados


à própria fundação da cidade e à sua história, pois os primeiros a
demandar a leitura em busca de legitimação política foram nada
menos que os dois primeiros reis de Roma: Rômulo e Numa
Pompílio. O trecho de Lívio ainda demarca quando o cargo de
áugure se tornou componente essencial para o bom governo
de Roma, após o reinado de Numa, e como a arx foi utilizada
como local específico para essa ação ritual, visto que sua altura
disponibilizava um amplo panorama para observação dos eixos

98 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


THIAGO DE A. L. C. PIRES

de “corte” da cidade e o ager effatus. Desse modo, para os romanos


da República e para a troca de políticos nas magistraturas,
o ritual e o ato de leitura de auspicação que ocorriam na arx
possuíam uma forte conotação política, uma vez que garantiam
a boa ordem do governo e da sociedade. A auspicação era um:

[...] dispositivo jurídico-religioso central, que comprometia a elite


dirigente romana, magistrados e sacerdotes, em um complexo
e hierarquicamente dinâmico arranjo de interações. Cônsules,
pretores e censores dependiam da autoridade religiosa do Senado
e dos áugures, uma vez que somente assumiam seus cargos
e adquiriam a potestas cum ou sine imperio após a tomada dos
auspícios “de investidura”. Os auspícios consistiam em sinais de
não-hostilidade enviados por Júpiter, que constatavam a posição
favorável dos deuses em uma ação pública pretendida (EICHLER,
2019, p. 146).

Conforme exposto pela historiadora Maria Eichler, as


práticas religiosas executadas no espaço do auguraculum ocorriam
com frequência e gozavam de muita importância na sociedade
romana, além de estarem intimamente conectadas às atividades
políticas das magistraturas, ao sucesso em batalhas, e efetivavam
a consonância entre deuses e homens.
As narrativas de memória que envolvem e tingem o
Capitólio e a sua arx são mais numerosas do que as descritas
e apresentadas até o momento. Contudo, minha intenção
não é fazer um exame pormenorizado e exaustivo apenas da
arx capitolina, mas compreender o papel e o imaginário que
envolveram as arces no cenário urbano de Roma. Para tanto,
devo redirecionar a atenção para outra “cidadela” da cidade: a
arx Ianiculensis.
Diferentemente da colina capitolina, o monte Janículo não
fazia parte das “sete colinas” de Roma e não estava situado no

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 99


A CIDADE ENTRE DUAS ARCES

lado oriental do Tibre, mas sim na margem oposta, a ocidental.


Durante muito tempo, o Janículo não fez parte oficialmente
da cidade, era parte do subúrbio e do ager Vaticanus, uma vasta
área de intercessão e de influência entre Roma e os etruscos
(LIVERANI, 1996, p. 14). Somente com as reformas regionais
augustanas o monte será oficialmente integrado à cidade (7
AEC) e se tornará a região transtiberina, ou regio XIV, a última
das quatorze novas regiões.

Mapa 2 – Mapa adaptado da cidade de Roma e as quatorze


regiões administrativas. O ponto 1 indica o local da arx
janicular e o ponto 2 sinaliza o local da arx capitolina

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/14_regions_of_Augustan_Rome#/
media/File:Plan_Rome-_Regiones.png

100 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


THIAGO DE A. L. C. PIRES

A inclusão do Janículo na administração urbana de Roma


por Augusto poderia levar a crer que apenas com esse governante
os romanos intervieram no monte. Mas a intervenção data de
épocas mais recuadas.

Ele [Anco Márcio] também construiu uma muralha em torno da


alta colina chamada Janículo, situada no outro lado do rio Tibre, e
estacionou lá uma guarnição adequada para a segurança daqueles
que navegavam o rio, especialmente contra os tirrenos, mestres
de todo o país do outro lado do rio, pois os mercadores estavam
sendo saqueados por eles. Dizem que ele também construiu a
ponte de madeira sobre o rio Tibre, obrigada a ser construída sem
latão ou ferro, sendo firmada no conjunto apenas por vigas (Dion.
Hal., Ant. Rom., 3, 45).

Dionísio de Halicarnasso e Tito Lívio (1, 33) defendem


que o monte foi utilizado como ponto estratégico de defesa para
Roma contra invasões etruscas (tirrenos) e saqueadores. Para
tanto, o rei Anco Márcio (675-616 AEC) construiu uma área
murada no pico da colina, mas infelizmente nenhum dos dois
historiadores detalha as particularidades e características dessa
obra. No original latino, Lívio nomeia essa área murada de arx e é
interessante notar como tanto a arx capitolina quanto a janicular
foram fundadas na época monárquica e estavam situadas em
pontos altos, nos extremos do território romano. A arx janicular
não estava stricto sensu contida no território romano nessa
temporalidade recuada, mas era uma localização privilegiada na
observação do limite ocidental da malha urbana: o rio Tibre.
De fato, a atitude do rei Anco Márcio mostrou-se sábia,
pois são numerosos os relatos que narram as guerras e batalhas
que envolveram de alguma forma o Janículo e a sua arx.3

3
Devido ao espaço, traremos apenas um recorte das batalhas mais

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 101


A CIDADE ENTRE DUAS ARCES

Os cônsules romanos, sendo informados dessas coisas, em primeiro


lugar, ordenaram que todos os lavradores removessem os seus
trabalhos, gado e escravos dos campos para as montanhas vizinhas,
nos redutos nos quais eles construíram fortes suficientemente
para proteger as pessoas que refugiavam lá. Depois disso, eles
reforçaram com fortificações mais eficazes e guardaram a colina
chamada Janículo, que é um alto monte perto de Roma situada
do outro lado do rio Tibre, tendo esse cuidado acima de todas
as coisas por ser uma posição vantajosa, pois não deveria servir
ao inimigo como um posto avançado contra a cidade. E ali eles
armazenaram os seus fornecimentos de guerra (Dion. Hal., Ant.
Rom., 5, 22).

O primeiro registro da arx janicular sendo utilizada contra


estrangeiros é o episódio acima de invasão de Lars Porsena, em
508 AEC. Dionísio de Halicarnasso registra que essa arx não
foi uma estrutura inalterada durante o tempo, mas que teve
sua arquitetura reforçada, modificada e tornada mais eficiente.
Ainda assim, as mudanças e os aprimoramentos não garantiram
a vitória dos romanos.

Porsena, repelido em sua primeira investida, abandonou o plano


de invadir a cidade e optou por cercá-la, e tendo colocado tropas
no Janículo, montou ele mesmo um acampamento às margens do
Tibre. Ele capturou barcos vindos de toda parte para não deixar
que nenhum grão fosse levado a Roma (Liv., 2, 11).

Tito Lívio relata a importância do Janículo na chegada de


alimentos a Roma. A tomada do monte impediu o fornecimento
de gêneros alimentícios da Etrúria e aqueles que vinham
transportados pelo Tibre: a fome se disseminou na margem

emblemáticas que envolveram a arx janicular. Um aprofundamento pode


ser encontrado em Pires (2019).

102 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


THIAGO DE A. L. C. PIRES

oriental do rio, pois a via Aurélia, a via Campana e o rio estavam


sendo controlados pelo inimigo.
Conforme exposto, a arx janicular e a arx capitolina
defendiam os limites do território romano arcaico e eram
postos de observação contra inimigos. Os dois casos de
guerra citados, a invasão gaulesa e a tomada do Janículo por
Lars Porsena, foram caracterizados como traumáticos nos
registros de memória, pois foram episódios nos quais a cidade
quase caiu na mão do inimigo, houve grande mortandade e o
poderio de Roma esteve ameaçado. As duas arces, assim, eram
“escudos” na malha urbana que impediam a entrada do inimigo
e garantiam a livre circulação de alimentos e do comércio. Esse
aspecto nevrálgico de defesa dos montes foi um componente
essencial nas reuniões das assembleias de cidadãos e no
cotidiano político-urbano de Roma como pode ser observado
na questão do hasteamento de estandartes.

Agora, a questão do estandarte é a seguinte. Em tempos antigos,


muitos inimigos habitavam perto da cidade e os romanos,
temendo que enquanto estavam na assembleia centuriata os
inimigos poderiam ocupar o Janículo e atacar a cidade, decidiram
que nem todos deveriam votar de uma só vez, mas que alguns
homens deveriam continuar em prontidão de armas, por sua vez,
sempre guardando essa posição. Então eles a guardariam enquanto
a assembleia durasse; a assembleia acabada, o estandarte era
recolhido e os guardas partiam: nenhum outro negócio poderia ser
votado quando a guarnição não estava garantida. Esta prática foi
mantida apenas no caso das assembleias centuriatas, pois eles [os
soldados] estavam fora das muralhas e todos os braços armados
eram obrigados a comparecer [na assembleia]. Até hoje é feito
dessa forma (Cass. Dio., 37, 27-28).4

4
Traduzido do inglês pelo autor.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 103


A CIDADE ENTRE DUAS ARCES

O trecho de Dion Cássio é esclarecedor em diversos


aspectos. Primeiro, ele relata que a arx janicular era o foco visual
de diversos habitantes de Roma, não apenas soldados, pois o
hasteamento ou não do estandarte significava perigo ou paz para
Roma. Em seguida, o autor finaliza com a sentença: “Até hoje é
feito dessa forma”. A frase é importante porque demarca o ato de
hasteamento do estandarte como um costume de longa duração:
da idade monárquica, quando a arx foi fundada, passando pela
república e chegando até ao menos a época imperial, quando
Dion Cássio escreveu (155-235 E.C.). Por fim, o trecho adiciona
um ingrediente que até então estava implícito, mas que o
historiador ressalta: a arx não era uma “fortaleza” esquecida e
empoeirada, um monumento de outrora, mas uma construção
ativa e ocupada por soldados romanos. Não há dúvidas quanto
a esse ponto: a cautela em guarnecer a estrutura com vigilantes
evidencia o temor romano de que poderia haver inimigos
estrangeiros chegando à cidade. Assim, as duas arces não eram
edifícios vazios “empoleirados” acima da cidade, mas estruturas
cheias de vida, com soldados, magistrados e outros habitantes
indo e voltando de seu interior.
A questão do estandarte descrita por Dion Cássio não
se restringiu apenas à arx janicular, mas incluía de modo
equivalente a arx capitolina. Quando as duas arces hasteavam
o estandarte vermelho, o povo poderia se reunir nos comitia
centuriata, no Campo de Marte (GIANELLI, 1993, p. 27). Caso
o estandarte caísse ou fosse propositalmente derrubado no
decorrer da assembleia, a reunião era desfeita e os soldados
retomavam as arces. A concomitância de hasteamento, assim,
implicava um diálogo visual contínuo nas práticas políticas
rotineiras de Roma: os soldados e o povo, seja no centro da
cidade ou nas periferias, precisavam olhar os dois montes e as
duas arces para saber se a reunião seria sancionada pelo Estado

104 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


THIAGO DE A. L. C. PIRES

ou não. Eis outra passagem que salienta a relação entre sanção


estatal e o hasteamento dos estandartes:

Até aqui a conjuração não tem forças. Para além disso, conta
com grande incremento no número de homens, que se fazem
mais a cada dia. Seus ancestrais não desejavam que se juntassem
sem motivo, exceto quando o estandarte era exibido na cidadela
[arx] e o exército estava reunido para uma eleição, ou quando os
tribunos haviam anunciado uma reunião dos plebeus, ou quando
algum dos magistrados os tivesse chamado para uma reunião
informal; e onde quer que houvesse uma multidão reunida,
pensavam que deveria haver ali também um líder legítimo da
multidão (Liv., 39, 15, 10-11).

Assim como na passagem de Dion Cássio, o ditador


precisou esperar um sinal do Capitólio para atacar os veientes, o
cidadão comum precisava esperar a ereção dos estandartes para
que a sua ação política fosse legitimada. Não devemos imaginar
que esse costume aconteceu com pouca frequência na história
romana, mas sim que era um hábito no processo político romano,
pois quando não havia esse sinal visual a reunião era declarada
ilegal pelo senado. O cidadão, mesmo que ignorante das regras
políticas mais complexas, era treinado por seus concidadãos a
observar as arces, tanto para saber se a cidade estava em perigo
quanto para julgar se a reunião seria sancionada pelo Senado
ou não. Se considerarmos que o número de vezes que essas
reuniões ocorriam foram muito mais frequentes que o número
de invasões e guerras associadas às arces, podemos concluir que,
ao olhar essas fortificações, os romanos não as enxergavam
apenas como um reduto militar, mas também como um símbolo
de reunião e debate público.
Embora até o momento eu tenha evidenciado como ambas
as arces foram poderosos postos de defesa de Roma, o tempo e

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 105


A CIDADE ENTRE DUAS ARCES

a urbanização de Roma imputarão diferenças às duas. A colina


capitolina estava próxima ao Fórum Romano, no coração de
Roma, e, como resultado, a cidade cresceu ao seu redor, forçando
o limite da cidade para cada vez mais longe. Durante a República
e o Principado, a arx capitolina foi perdendo lentamente a sua
conotação bélica, recebendo de seu cume-irmão, o Capitólio-
sulino, cada vez mais tons de uma religiosidade ancestral. O
Janículo, pelo contrário, permaneceu na história romana como
possível lugar de perigo durante longo tempo, até mesmo
durante a República:

Ápio Cláudio, um tribuno militar, que tinha o comando das defesas


de Roma no monte Janículo, já havia recebido um favor de Mário,
esse último agora o lembrou e como consequência ele o admitiu na
cidade, abrindo um portão por volta do amanhecer. Então Mário
admitiu Cina (App., Bel. Civ., 1, 8, 68).

Apiano, acima, descreve a tomada do Janículo, e


naturalmente de sua arx, durante as guerras civis. Já o trecho
abaixo, relata o período final das guerras e a ascensão de Augusto.

Todos aqueles que eram de idade militar foram chamados para


as armas e também as duas legiões da África, com elas 1000
cavalos, e outra legião que Pansa tinha abandonado para trás, –
todos esses foram designados para lugares apropriados. Alguns
deles guardavam a colina chamada Janículo, onde o dinheiro
estava armazenado, outros asseguraram a ponte sobre o Tibre e
os pretores da cidade foram colocados no comando das divisões
separadas. Outros prepararam pequenos barcos e navios no porto,
juntamente com o dinheiro, no caso de serem vencidos e ter que
escapar pelo mar (App., B Civ., 3, 13, 91).

Esse último fragmento descreve a organização das forças


republicanas para resistir à chegada das tropas de Otávio. O que

106 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


THIAGO DE A. L. C. PIRES

desejo destacar é o papel do Janículo nesses dois últimos relatos:


não há qualquer menção ao Capitólio ou à sua arx, porém o
Janículo é citado como lugar forte tanto para guardar recursos
quanto para defender o Tibre. Os dois últimos trechos analisados
são importantes para estabelecermos diferenças na construção de
memórias relacionadas às arces. Quando confrontamos o número
de extratos que relacionam a guerra às arces, a arx janicular possui
um número maior e esse dado confirma o papel suburbano e
periférico do monte Janículo. Enquanto o Capitólio foi envolvido
pela cidade de Roma e se tornou um arcaico ponto de defesa
da cidade, a região transtiberina permaneceu durante um longo
tempo uma zona urbana limítrofe, uma área de encontro de
Roma com o “outro”, encontros geralmente belicosos. Para os
romanos da época augustana, os relatos de guerra que envolviam
o Capitólio eram elementos do passado, conservavam uma
atmosfera de memória daquilo do que deveria ser lembrado.
Já os do Janículo não possuíam um grau maior de advertência,
que lembravam os habitantes de Roma do Principado de que
o monte poderia ser ocupado a qualquer momento e a cidade
poderia vir a cair.
Até o momento, relacionei o papel das arces com
características bélicas e como referenciais políticos, pois
estavam relacionadas às comitia. No entanto, a religião também
uniu esses dois montes. Diferentemente do Capitólio, o Janículo
não possuía muitos edifícios templários, mas sim diversas áreas
naturais de vegetação e aquíferas consideradas locais veneráveis.
Um dos pontos topográficos sagrados de maior destaque estava
próximo à arx janicular e intimamente associado a ela: o santuário
de Corniscarum divarum. Segue o seguinte relato:

No declive entre São Pedro de Montorio e a igreja de S. Francisco


foram descobertos dois cippi terminais de travertino com a inscrição

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 107


A CIDADE ENTRE DUAS ARCES

“devas cornicas sacrum”, transportado para o Quirinal nos Horti


Carpesini. [...] O cippus vem sendo tratado como sendo o confim de
um lugar sacro, talvez um lucus, a diva Cornica ou um lugar augural
no Janículo (ATTILIA, 2008, p. 14)

Da mesma maneira que pedras angulares (cippi)


demarcavam o local do auguraculum no Capitólio, o Janículo
também possuía um espaço marcado para as leituras dos voos
das aves. Embora a autora exponha que o espaço era atribuído
à “diva Cornica ou um lugar augural”, a sentença não precisa
ser de alternativa, mas sim de complemento, pois Festo (64)
estabelece a seguinte relação: “Corniscarum divarum era o local
na Transtiberina dito ‘das coroas’, porque se julgava estar sob
a tutela de Juno”. Assim, o escritor estabelece que havia um
diálogo intenso, se não uma tutela, entre esse santuário e a figura
de Juno, emulando de maneira bastante semelhante a relação
capitolina entre o templo de Juno Moneta e o auguraculum. De
fato, as tomadas de auspícios não precisavam ser feitas somente
no templum augurale capitolino, mas também em outros lugares
altos. Os especialistas necessitavam optar por regiões de grande
altitude para ter um bom panorama visual e conseguir mirar os
montes albanos e, quando longe do Capitólio, observar também
o auguraculum (COARELLI, 1993, p. 142).
Em razão da presença dos cippi augurais e de Juno,
portanto, a religião infundia e permeava as duas arces. No
entanto, essa aura sagrada e mítica pode ser remetida ainda
mais ao passado. Durante a República tardia e o Principado
augustano, Roma observou florescer o movimento antiquário
que “reconstruía” o passado da cidade e de seu povo. Os
“antiquários” eram historiadores, escritores e poetas que se
debruçaram sobre os assuntos do mos maiorum e redefiniram os
conhecimentos dos “costumes ancestrais” (MOATTI, 2008, p.
148). A definição de antiquário aqui é importante porque serão

108 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


THIAGO DE A. L. C. PIRES

dois poetas antiquários (Virgílio e Ovídio) que unirão em uma


mesma estrutura de memória o monte Capitólio e o Janículo.

[Evandro:] Estas duas fortalezas que vês além, com os muros


destruídos, são monumentos e relíquias de velhos heróis. Esta
cidadela o pai Jano, esta Saturno construiu; esta tem o nome de
Janícula, aquela de Satúrnia (Verg., Aen., 8, 355-358).

O extrato acima pertence à Eneida, de Virgílio, e nele o


rei grego Evandro descreve a Enéias os monumentos e marcos
topográficos arcaicos do Lácio. O rei aponta para o Capitólio e as
suas ruínas e diz que ali existiu o reino de Saturno, a Satúrnia.
Depois o rei aponta para a margem oposta, para o Janículo, e
afirma que ali existiu o reino de Jano: a Janícula. Dessa forma,
Virgílio introduz um mito caro para o estudo da topografia
urbana de Roma: a fuga de Saturno da Grécia e a sua recepção por
Jano, no Lácio. Saturno teria fundado, no Capitólio, a Satúrnia,
enquanto Jano continuou a habitar e a governar a Janícula, no
Janículo. Virgílio, ao inserir essa fala na boca do rei, estabelece
uma linha temporal decrescente: antes mesmo de Enéias ou de
Evandro chegarem ao local da futura Roma, os deuses já tinham
habitado ali e as “provas” desses primeiros assentamentos
eram possíveis de serem vistas nos cumes das duas montanhas.
Defendemos que o poeta, nesses versos, se referia justamente
às duas arces aqui analisadas. No original latino, Virgílio utiliza
as sentenças oppida muris (“muros da cidade”) e logo depois cita
expressamente a palavra arx declinada (arcem). Essa ideia não
é encontrada apenas em Virgílio, mas é reafirmada por Ovídio.

[Ovídio:] Muito ensinaste; mas, por que na moeda vem / de um


lado a dupla fronte, e de outro, um barco? / [Jano:] Reconhecer-
me, diz, podes na dupla imagem, / se a antiguidade não sumiu a

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 109


A CIDADE ENTRE DUAS ARCES

marca. / Razão do barco: o deus falcífero, num barco, / corrido o


mundo, veio ao rio Tusco. / Lembro que nesse chão Saturno se
asilou / quando Jove o expulsou do reino olímpico. / Satúrnia a
gente foi chamada, e Lácio, a terra, / porque nela latente estava
o deus. / Os vindouros na moeda o navio gravaram, / a chegada
do deus testemunhando. / E eu habitei o chão, que na margem
esquerda, / brilham as águas plácidas do Tibre. / Aqui onde é
Roma, verdejava uma mata intonsa, / era, para os poucos bois, um
pasto imenso. / Meu templo era um monte, e por meu apelido, / o
nosso tempo o chama de Janículo (Ov., Fast., 1, 229-242).

Esse segundo poeta também não deixa dúvidas. Na fala


de Jano, “o meu templo era no monte”, no original latino se
encontra a palavra arx. A dualidade mitológica Jano-Saturno e
Janículo-Capitólio não foi algo restrito ao mundo dos poetas e
dos registros verbais, mas circulava imageticamente nas mãos
dos romanos. Existia em Roma uma moeda, o as, cujas imagens
eram o rosto de Jano em uma face e a proa de barco em outra.
Festo relaciona a moeda ao mito descrito acima: “Jano pai: Jano
no Janículo habitava. Por ter vindo exilado num navio, em uma
face de sua moeda está estampada a cabeça de Jano, na outra um
navio” (Serv., Aen., 8, 357).
O que desejo enfatizar, com a exposição sobre a moeda,
é que o mito sobre o Capitólio de Saturno e o Janículo de Jano
não foram mitos confinados ao mundo dos doutos e letrados,
mas que essas narrativas mitológicas circulavam entre os
romanos. Para consolidarmos essa premissa, podemos recorrer
ao conceito de memória cultural de Peter Wiseman (2014).
Para esse classicista, a população de Roma recorria a um leque
de diferentes possibilidades para compreender a sua história
e construir sua identidade: contos infantis, declamações em
vias públicas, defesas de argumentos nos tribunais, as preces
nos sacrifícios, diversas modalidades de representações que
permeavam o cenário urbano e numerosos outros possíveis

110 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


THIAGO DE A. L. C. PIRES

elementos (WISEMAN, 2014, p. 54). Wiseman (2014, p. 62)


entende “memória cultural”, ou popular, como o amálgama do
que o povo romano ouvia e via em suas ricas performances orais
de cultura, de música, estória, prosa e verso, drama e narrativa.
Nesse ponto, podemos incluir sem dúvida a leitura espacial. O
espaço oferecia ao “leitor urbano” uma série de dados, elementos,
índices e “gatilhos de memória” que ensinavam ao transeunte
atento a história “contida” naquele lugar.

[...] o populus Romanus e sua elite política formavam um grande e


coletivo milieu de mémoire: uma vibrante e envolvente comunidade
de memória. Em meio a esta comunidade, havia um complexo
padrão, ou paisagem, de lieux de mémoire: traços concretos e espaços
demarcados de recordações retidas e continuamente reproduzidas.
Dessa maneira, elas eram reforçadas em seus significados e
mensagens ao longo do tempo (HÖLKESKAMP, 2006, p. 491).

Durante a república, Varrão (Ling., 5, 41) já havia


chamado o Capitólio de monte saturnino, mas será no
Principado augustano que o mito da dualidade Saturno-Jano
será sistematizado e incorporado às intervenções urbanas.
Não defendemos de maneira alguma que esses mitos foram
inventados nessa época, mas sim que foram explorados mais a
fundo pelos escritores augustanos. Assim, além das conotações
bélicas, políticas e religiosas, defendemos que as duas arces aqui
analisadas, durante o Principado, tiveram “novas” narrativas
de memórias imputadas a elas, pois o Principado augustano foi
uma época próspera na consolidação de consideráveis “palcos de
paisagens”, entendidos aqui não só como a reconstrução física
de diversos marcos topográficos, mas também como a formação
e valorização de narrativas ressignificadas pelos antiquários
(BELTRÃO, 2014, p. 92).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 111


A CIDADE ENTRE DUAS ARCES

Os mitos romanos foram em essência mitos de lugares. Os


mitos gregos também estavam associados a cidades específicas e
territórios, mas ao mesmo tempo regularmente se ligavam a uma
mitologia grega maior, pan-helênica. Em geral, os mitos romanos
não tinham esse contexto maior. Enfaticamente, os lugares e os
monumentos da cidade de Roma dominaram a mitologia romana
[...]. Esses mitos recontavam a história da área de Roma em si,
dos tempos mais antigos à era augustana [...]. De fato, gatilhos
de história foram incorporados aos cultos de Roma (BEARD;
NORTH; PRICE, 1998, p. 173)

Conforme exposto por Beard, North e Price, pontos


topográficos importantes na Roma antiga receberam diversas
memórias construídas e assim se tornavam veneráveis e
sagrados. Não são poucos ou raros os monumentos, templos e
localidades analisados pelos antiquários romanos que tiveram
suas “origens” explicadas ou até mesmo criadas. Mas, aqui,
desejo defender a relevância visual das duas arces analisadas na
paisagem urbana de Roma. Conforme expus, a marca principal
que tingiu a arx capitolina e a arx janicular foi a visibilidade. Na
questão bélica, as arces vigiavam grandes distâncias e serviam
para alertar contra inimigos. No aspecto político, era um
importante referencial espacial e imagético para aqueles que
desejavam participar politicamente dos comitia. Já no aspecto
religioso, ambas dividiam a importância de terem lugares
consagrados à leitura dos augúrios, pois dispunham de um
campo visual favorável a essa prática. Na época augustana,
ambas as arces ganharão ainda mais destaque e uma aura de
sacralidade, pois ali, segundo os vates, haviam reinado Saturno
e Jano. O Principado foi um período de grande efervescência
cultural: o ambiente construído foi revigorado, a literatura e
os mitos foram debatidos pela população e os declamadores
“desvendaram” as memórias dos monumentos. Mito, memória
e espaço eram discutidos pelos habitantes e eram também

112 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


THIAGO DE A. L. C. PIRES

propagados por eles. Diane Favro (1996, p. 272) defende


que, nessa época, Roma já era uma cidade turística, em que
numerosos viajantes chegaram para conhecer seus espaços e
monumentos. Caso o visitante quisesse ver o diminuto templo
de Jano Quirino, ele deveria se deslocar até o Fórum, desviar
da multidão e observar o monumento. Caso o viajante optasse
por conhecer a Ara Máxima de Hércules, ele deveria ir até o
Fórum Boarium. Já em relação às arces era diferente, eram locais
visíveis e reconhecíveis de diversos pontos da cidade. Não é
difícil imaginar “guias” turísticos, declamadores ou intelectuais
apontando para alguma das duas arces e contando algumas de
suas histórias, sejam de guerra, política ou religiosa-mítica.
Defendemos, portanto, que as arces de Roma eram mais
do que simples fortalezas ou cidadelas, eram símbolos que
marcavam a identidade urbana da cidade e de seus cidadãos.
Enquanto as arces fundadas nas colônias eram símbolos de
opressão e dominação, para os habitantes de Roma, as arces
possuíam um valor afetivo, pois foram imbuídas por diversos
tipos de memórias que iam muito além das bélicas, como poderia
supor a tradução por “fortaleza”. Da mesma maneira que um
habitante da antiga Atenas reconhecia parte de sua identidade
observando a colossal estátua de Atená Promacos na Acrópole,
ou um carioca mirando o Cristo Redentor ou um lisboeta
admirando o Castelo de São Jorge, as arces aqui analisadas
podiam ser vistas de grandes distâncias e, para um viajante,
seu simples vislumbre já indicava que ele estava chegando ao
seu destino final. Assim, esses importantes e sobretudo visíveis
pontos topográficos foram mais do que escudos para a cidade
de Roma, mas componentes essenciais na formação urbana da
cidade e na história e identidade dos habitantes de Roma.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 113


A CIDADE ENTRE DUAS ARCES

Referências

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116 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


Forma, função e uso dos espaços
domésticos na cidade antiga:
as domus da Hispânia romana*

Fernanda Magalhães

Introdução

O
conhecimento que hoje possuímos sobre o modo de vida
romano está intimamente relacionado com o estudo das
cidades, impulsionado pelas importantes contribuições
provenientes da Arqueologia Urbana, que têm permitido renovar
o saber relativo ao universo urbano provincial. Neste sentido, é
importante destacar o desenvolvimento dos estudos relativos à
arquitetura romana, que têm vindo a proporcionar novos dados
sobre a organização urbanística das cidades romanas, mas
também sobre a sua economia, ou sobre os processos e ritmos
de aculturação sofridos pelas diferentes regiões do Império.
Por outro lado, é importante aludir ao desenvolvimento que
se vem registando no estudo da arquitetura doméstica, que
progressivamente vem desfocando da análise estritamente
tipológica das habitações, que dominou o panorama da
investigação relativa à casa romana, para se centrar na análise dos
processos construtivos, na abordagem social do uso diferencial

*
Este capítulo foi elaborado no âmbito do projeto Usos do espaço na cidade
antiga, financiado pelo Convénio FCT-CAPES, submetido ao concurso 2019-
2020, desenvolvido em cooperação entre a Ufes e a Universidade do Minho.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 117


FORMA, FUNÇÃO E USO DOS ESPAÇOS DOMÉSTICOS NA CIDADE ANTIGA

dos espaços e, mais recentemente, nos custos da construção e na


natureza social e económica dos seus proprietários.
Assim, podemos considerar que muito se evoluiu em
termos de investigação desde que as casas das cidades soterradas
pelo Vesúvio começaram a atrair as atenções dos colecionadores
e antiquários, os quais se interessavam sobretudo pelas suas
pinturas e objetos ornamentais, que retratavam a riqueza e o
modo de vida das elites que eram referidas nas fontes escritas.
Para essa mudança, contribuiu o desenvolvimento de novos
paradigmas teóricos e metodologias de abordagem, que afetaram
a Arqueologia Clássica a partir da década de 70 do século passado,
os quais permitiram que se lançasse um novo olhar sobre a
arquitetura romana. Esse novo olhar foi muito promovido pelo
avanço dos conhecimentos sobre a casa pompeiana, que viria
a demonstrar que a casa de átrio, considerada durante longas
décadas como a típica casa romana, mais não era do que o
resultado de uma enorme diversidade compositiva dos espaços
domésticos, muito abertos a adaptações e aos constrangimentos
impostos pelo próprio desenvolvimento urbanístico das cidades
itálicas. Uma vez ultrapassado o mito da existência de uma clássica
domus romana, as investigações diversificaram-se e abriram-se a
novas problemáticas de abordagem, de ordem funcional e social,
evolução a que também não foi alheio o contributo da Arqueologia
Urbana, que permitiu trazer ao debate um maior número de casas
romanas recuperadas pelas escavações realizadas em diversas
cidades das várias províncias do mundo romano.
Neste quadro de renovação da base empírica de trabalho,
pautado pelas novas cidades descobertas pela Arqueologia e
por novos olhares sobre essa realidade, cabe fazer referir o
contributo da análise antropológica e dos estudos sociais no
discurso histórico, que se generalizaram a partir da década de
80 do século XX, os quais conferiram à arquitetura doméstica

118 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FERNANDA MAGALHÃES

romana um contexto privilegiado para exercitar a História


Social. Mas os novos modelos de análise foram sobretudo
ensaiados nas cidades italianas de Pompeia, Herculano e Óstia,
devido à particular conservação das mesmas, fato que tem vindo
a favorecer a diversificação das investigações, nem sempre
facilmente aplicáveis a outros contextos arqueológicos.
Assim, a historiografia recente relativa ao estudo da
casa urbana é muito devedora tanto dos novos estudos sobre
as cidades melhor preservadas da Itália, como do contributo
fornecido pela Arqueologia Urbana, a qual contribuiu de forma
decisiva para a compreensão do processo de difusão e fixação
dos modelos de casa itálica e respetiva evolução nos diferentes
centros urbanos que integravam o Império. Na verdade, se o
conhecimento que possuímos hoje sobre a casa urbana romana
é muito devedor da evolução historiográfica recente e da
sofisticação das técnicas de escavação e registo, é igualmente
digno de nota o alargamento do horizonte espacial e temporal
das cidades romanas, sobretudo na zona mais ocidental do
Império, que permitiu restituir, nas últimas quatro décadas,
um painel significativamente mais diversificado do urbanismo
e das expressões de arquitetura pública e privada nas cidades
provinciais. É esse painel que nos permite compreender como
os modelos itálicos foram assimilados e reinterpretados nos
diferentes territórios que compuseram o Império, expressando
processos de adaptação topográfica, construtiva e identitária.
Desta forma, pretendemos analisar a implantação e o
desenvolvimento da casa romana de elite na Hispânia, entendendo
esse fenómeno como um contexto de representação identitária
dessa nova aristocracia, cuja constituição deu-se no âmbito da
presença e do controlo romano no território peninsular, iniciada
nos finais do século III a.C., e cuja completa e definitiva anexação
ao Império só se veio a realizar no tempo de Augusto.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 119


FORMA, FUNÇÃO E USO DOS ESPAÇOS DOMÉSTICOS NA CIDADE ANTIGA

A integração dos modelos itálicos nos contextos indígenas

A conquista romana da Península Ibérica fomentou


diversas alterações urbanísticas e culturais nas diferentes regiões
que integraram o vasto território hispânico, sujeitas a contactos
diferenciados com o mundo romano ao longo dos últimos séculos
da República. Essas alterações fizeram-se presentes tanto por
meio da implantação de novas cidades ao longo da costa do
Mediterrâneo e dos grandes rios navegáveis da Península Ibérica,
como o Ebro, o Guadiana e o Guadalquivir, que acompanharam
o processo de expansão romana, como por via das alterações
urbanísticas e arquitetónicas que algumas cidades fundadas
anteriormente ao domínio romano vão conhecer, as quais se
afastaram paulatinamente dos gostos e modelos de organização
de origem fenícia, grega e púnica, que deixaram marcas nesses
territórios, anteriormente ao desembarque dos romanos
em Ampúrias, em 218 a.C. Os novos modelos, ou as novas
influências, tiveram como inspiração a rica gramática arquitetónica
desenvolvida nas cidades tardo-republicanas da Itália, as quais,
por sua vez, aplicavam aos espaços arquitetónicos residenciais um
léxico variado, fruto das influências e dos profundos contactos
que Roma teve com diversos povos mediterrânicos desde muito
cedo. Cabe destacar nessa inspiração as cidades da Magna Grécia
e dos reinos helenísticos do Oriente, cujas habitações reservavam
amplos salões à receção de visitantes e à realização de symposia,
os quais eram sumptuosamente decorados e revestidos com
mármores policromáticos e ricos mosaicos com variados temas
(PESANDO, 1987; NEVETT, 1999).
Nas cidades da Península Ibérica, essa linguagem foi
aplicada em crescente escala ao longo do período tardo-
republicano, em contextos habitacionais de cidades como
Ampurias, Baetulo, Tarraco, ou Celsa Sulpicia, sendo os proprietários

120 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FERNANDA MAGALHÃES

das habitações presumíveis cidadãos romanos, ou libertos


destacados para esses locais, como parece acontecer com a “Casa
C”, na Ínsula I, de Celsa, cujo dominus terá sido L. Licinius At(ico),
talvez um liberto de L. Licinius Sura, um magistrado monetário
daquela cidade (BELTRÁN LLORIS, 1991, p. 148-149).
Em Ampurias, como está documentado nas Casas 1 e 2, duas
das maiores habitações conhecidas daquela cidade, foram criados
novos espaços de representação durante os inícios do século I, que
funcionaram como novas estruturas de organização e distribuição
dos compartimentos. Os grandes horti que essas habitações
possuíam, os quais formalizavam verdadeiros logradouros dessas
casas, recebem um corredor ao redor das áreas abertas, criando-se
assim novos peristilos, ao mesmo tempo que são construídas mais
salas de representação, estas cada vez mais sumptuosas, como os
grandes oeci identificados em ambas as habitações (MAR; RUIZ
DE ARBULO, 1993, p. 390-397).
Dentro do território da Hispania Tarraconensis, cabe destacar,
ainda, a colónia Iulia Fauentia Paterna Barcino, fundada por Augusto
nos finais do século I a.C., que rapidamente atingiu uma posição
de destaque, tendo alguns de seus habitantes ascendido à ordem
senatorial, como aconteceu com os Minicii Natales (BELTRÁN DE
HEREDÍA, 2001; GARCÍA-ENTERO, 2005, p. 201). Por exemplo,
a “domus de Sant Iu” apresenta um projeto arquitetónico que
corporiza a implantação de um peristilo de grandes dimensões,
o qual veio a receber um lacus numa reforma posterior. Nessa
casa foi ainda possível identificar parte do programa decorativo,
o qual contemplava o revestimento de diversas superfícies com
mosaicos policromáticos e temas florais, para além de pinturas
sobre os rebocos das paredes e uma possível fonte a meio do
uiridarium do peristilo (CORTÉS VICENTE, 2009, p. 272-279).
Esse processo de difusão da linguagem arquitetónica
itálica foi também observado em outros aglomerados de origem

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 121


FORMA, FUNÇÃO E USO DOS ESPAÇOS DOMÉSTICOS NA CIDADE ANTIGA

diversa, mas que acolheram populações de origem romana, os


quais acabaram por influenciar o modo de vida e os gostos das
comunidades indígenas. Esse foi o caso dos povoados de origem
pré-romana, onde habitavam populações locais, cuja relação
com Roma durante a República nem sempre foi pacífica, quer
na área ibérica da Península, sensivelmente a Sul e Sudeste, quer
na chamada área céltica, a qual recobriria aproximadamente o
centro e as costas cantábrica e atlântica. Trata-se de duas regiões
culturais da Península Ibérica que apresentam identidades
diferenciadas e comportamentos distintos na sua relação com
Roma. Assim, na área ibérica incluem-se alguns povos com um
longo histórico de comunicação com o litoral mediterrânico,
enquanto a zona céltica do interior da Península Ibérica, ou a
área litoral norte atlântica e cantábrica, se caracterizam pela sua
tardia relação com Roma, em grande medida apenas conseguida
após as campanhas de Bruto, em 137 a.C., e em alguns casos
somente após as guerras cantábricas, depois de 19 a.C., eventos
que assinalaram o longo processo de conquista da Hispânia.
Esse fenómeno pode ser observado a nível dos povoados
ibéricos desde os primeiros momentos da conquista romana,
tendo as suas populações tido um papel central no próprio
domínio romano da Hispânia, seja pela sua aceitação inicial,
ou após conflitos bélicos, ou pela associação das suas elites a
Roma, tornando-se aliadas e com claros interesses em conseguir
manter as suas posições de destaque por meio da ocupação
de cargos políticos, administrativos, económicos e religiosos
enquadrados nas novas lógicas sociais que se impunham com
a presença romana (ALFÖLDY, 1966; 1969; 1973; 1977). Este
processo fez-se acompanhar de uma crescente alteração das
habitações, que passaram a adotar os modelos itálicos com a
consequente reprodução do léxico arquitetónico das casas de
elite tardo-republicanas (GROS, 2006).

122 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FERNANDA MAGALHÃES

Assim, concomitantemente ao desenvolvimento das


soluções locais de habitações dos povoados da Idade do Ferro da
Península Ibérica, observam-se mudanças no modo de construir
e organizar as casas, que replicam os modelos produzidos em
Itália, oferecendo paralelos e exemplos nas cidades romanas de
toda a Hispânia (Figura 1).

Figura 1 – 1. Planta da unidade habitacional 2 e 3 do setor 16


na Citânia de Briteiros; 2. Vista geral da casa de pátio 2 e 3 na
Citânia de Briteiros

Fonte: Magalhães (2019)

O NO da Península Ibérica, por sua vez, foi tardiamente


integrado no Império, o que só viria a acontecer a partir de 19
a.C., no fim das guerras cantábricas, situação que claramente
proporcionou diferentes realidades sociais, políticas,
económicas e urbanísticas, associadas às populações que
habitavam a região, agrupadas, grosso modo, na chamada “cultura
castreja” (SILVA, 1986), com as devidas e necessárias ressalvas
à aplicação desse termo, conforme vem sendo sugerido por
vários autores (MARTINS, 1990; GONZÁLEZ RUIBAL, 2006-
2007; CRUZ, 2018).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 123


FORMA, FUNÇÃO E USO DOS ESPAÇOS DOMÉSTICOS NA CIDADE ANTIGA

A assimilação das linhas de força que definem as


habitações de modelo itálico pelas populações indígenas da
Hispania documenta parte das ações desenvolvidas pelas elites
como estratégia para atrair a atenção dos romanos e assinalar
a sua aceitação do seu domínio, criando as condições para
estabelecer relações de clientela e pactos de amicitiae ou
patronatus/hospitalitatis. Nesse sentido, a utilização da linguagem
arquitetónica desenvolvida em Itália no período tardo-
republicano deverá ter constituído um importante modo de
demonstrar o interesse das relações entre indígenas e romanos
e entre dominados e agentes de autoridade, tal como aconteceu
também com o uso do latim, que serviu à negociação identitária
das populações indígenas e à reconfiguração das relações de
poder nos novos contextos que são potenciados pela montagem
da máquina administrativa romana nos novos territórios
conquistados (SASTRE, 2002).
Os modelos culturais, designadamente a ideia de
“casa”, foram trazidos de modo natural pelos emigrantes de
Roma e da Itália, cuja expetativa seria a de conseguirem uma
casa de prestígio na Hispânia romana, como expressão de
reconhecimento de um estatuto social que não conseguiam
alcançar nas suas terras de origem.

A casa romana no contexto das cidades planificadas do


tempo de Augusto

As casas romanas eram distintas umas das outras,


principalmente por conta das escolhas e dos gostos dos
proprietários, existindo também alguns fatores externos, de
natureza urbanística, que condicionavam os projetos, na hora
de conceber os espaços do interior das habitações. Referimo-

124 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FERNANDA MAGALHÃES

nos sobretudo às cidades em que o plano fundacional previa a


implantação de quarteirões com pórticos na sua envolvente, as
quais se encontram bem representadas na Hispania, constituindo
um dos traços mais característicos da implantação romana de
novas cidades. Trata-se de cidades com urbanismo ortogonal, com
ruas porticadas, previstas logo desde a sua origem, como parece
acontecer em Augusta Emerita, Complutum e Bracara Augusta, onde
a presença contínua de pórticos ao longo das ruas condicionou
o perímetro dos quarteirões, a regularidade da distribuição dos
lotes, bem como a forma das casas. Contudo, nas três cidades
referidas, verifica-se que os particulares chegam a apropriar-se
dos pórticos em momentos em que as casas necessitam de mais
área construída, como acontece em Bracara Augusta nos finais do
século III/inícios do IV, quando, devido à promoção da cidade à
capital da nova província da Galaecia, as domus são praticamente
todas remodeladas (MARTINS et al., 2016).
A capital da província da Lusitania, a colónia Augusta Emerita,
foi fundada em 25 a.C., nas margens do rio Anas, hoje chamado
rio Guadiana, tendo sido povoada pelos soldados veteranos das
legiões V Alaudae e X Gemina, ambas combatentes nas guerras
cantábricas, onde lutaram com mais cinco legiões e respetivas
tropas auxiliares, sendo possível que um pequeno contingente de
licenciados da legião XX tenha também participado na fundação
da colónia (FARIA, 1998).
A cidade possuía um traçado ortogonal identificado
a partir do estudo dos vestígios provenientes das sucessivas
décadas de escavações que se realizaram um pouco por toda
a atual Mérida. Trata-se de uma malha com cardines e decumani
retilíneos que conformam quarteirões quadrados e retangulares,
denotando certa hierarquia do corpo cívico da cidade, a qual
teve reflexo nas diferentes dimensões dos lotes das habitações
que neles serão implantados.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 125


FORMA, FUNÇÃO E USO DOS ESPAÇOS DOMÉSTICOS NA CIDADE ANTIGA

A arquitetura residencial emeritense carateriza-se


pela adaptação dos modelos itálicos à forma das parcelas em
que foram implantadas. Assim, acontece com a “Casa 6 da
Mouraria”, localizada na regio III, que apresenta uma planta com
forma quase quadrada, ocupando uma área de cerca de 1000m2,
metade da qual foi reservada a tabernae abertas ao cardo que
corria a nascente da casa. Tendo em conta o espaço reduzido
onde esta habitação foi implantada, parece aceitável admitir que
possuía um segundo piso. Cabe também destacar a adequação
dos espaços internos da casa em relação à forma do lote. Esses
espaços seriam tendencialmente quadrados, como acontece com
o peristilo, que possui três colunas em cada lado do jardim, o
que lhe confere uma regularidade, também reproduzida no
ambulacrum. Nas reformas posteriores, a habitação avançou
sobre o pórtico adjacente ao decumanus, localizado a Norte, o
que permitiu a ampliação do espaço interno e a instalação de
um balneário (CORRALES ÁLVAREZ, 2014, p. 837-840). Esse
fenómeno do avanço das casas sobre os pórticos, resultando na
privatização de um espaço que anteriormente era público, está
patente em diversas casas da colónia, estando sobretudo bem
documentado na área da Mouraria, onde algumas das habitações
avançaram além dos passeios cobertos, tendo ocupado parte das
vias ou mesmo encerrando-as (SÁNCHEZ BARRERO, 2007).
Por sua vez, Complutum foi um municipium romano
implantado na zona de confluência dos rios Henares e
Camarmilla, cuja fundação terá ocorrido em época augustana,
tendo conhecido o primeiro projeto de urbanização ao longo do
período júlio-cláudio.
O plano fundacional complutense evidencia a
estruturação de uma malha urbana ortogonal que conformava
quarteirões regulares, sendo aqueles incluídos nas regiones I
e IV, as mais próximas à confluência dos rios, com formato

126 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FERNANDA MAGALHÃES

retangular, enquanto os demais apresentam forma quadrada,


com 1 actus de lado (RASCÓN MARQUÉS; SÁNCHEZ
MONTES, 2014, p. 309-312). Apesar das ligeiras diferenças
formais e dimensionais entre os quarteirões das regiones das
partes nascente e poente da cidade, é possível reconhecer um
projeto urbanístico que previa a construção de pórticos ao
longo das vias, os quais estariam associados à proteção contra
as intempéries climatéricas do centro peninsular (RASCÓN
MARQUÉS; SÁNCHEZ MONTES, 2017, p. 129), mas que
também serviu para dar uma unidade paisagística à cidade. Os
pórticos terão igualmente influenciado as soluções e as formas
arquitetónicas das habitações.
Em Complutum, a localização das habitações influenciou
a disposição do elemento distribuidor, como se verifica nas
chamadas “Casa de los Grifos” e na “Casa de Baco”, que
ocupavam a totalidade dos quarteirões em que se implantaram
(Figura 2). Trata-se de domus de peristilo centrado, cujos espaços
adjacentes aos pórticos foram utilizados para a instalação de
tabernae, ou para acomodar grandes salas de representação,
aproveitando-se assim os eixos das colunatas dos jardins e as
perspetivas de simetria e axialidade que eles criavam (SÁNCHEZ
MONTES, 2011, p. 174-176). Por outro lado, ao analisarmos a
“Casa del Átrio” e a “Casa de la Lucerna de la Máscara Trágica”,
verificamos que os espaços organizadores das habitações não
são centrados, mas sim traseiros, facto a que não será alheia
a circunstância dessas casas ocuparem, respetivamente, um
quarto e meio quarteirão, o que reduziu significativamente a
área disponível para implantar os seus compartimentos, pelo
que foi necessário recuar o espaço aberto e sacrificar parte
de seu ambulacrum, mas mantendo a sua função ordenadora
(Figura 2) (SÁNCHEZ MONTES, 2011, p. 178).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 127


FORMA, FUNÇÃO E USO DOS ESPAÇOS DOMÉSTICOS NA CIDADE ANTIGA

Figura 2 – Planta da cidade de Complutum com a identificação


das domus de átrio, peristilo e pátio

Fonte: Magalhães (2019)

No conjunto do NO da Hispânia, podemos observar


processos semelhantes aos registados no urbanismo e
arquitetura de Augusta Emerita e Complutum, com destaque para
Bracara Augusta, cidade fundada entre 15/13 a.C., que conheceu
a primeira fase de urbanização entre Augusto e o período júlio-
cláudio. No entanto, as suas primeiras casas de elite parecem
começar a ser construídas a partir de meados do século I,

128 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FERNANDA MAGALHÃES

intensificando-se a sua construção na época flávia. Os dados


disponíveis sobre o seu urbanismo, fruto dos mais de 40 anos
de escavações sistemáticas, assinalam uma cidade cujo plano
fundacional estabelecia uma malha ortogonal, na qual os eixos
viários principais apresentam uma largura de 24 pés (7.24m),
enquanto os demais apresentam metade desse valor. Os
quarteirões, exclusivamente quadrados, possuem cerca de 144
pés (42.76m) de lado e apresentam-se envolvidos por pórticos
com cerca de 12 pés (3.12m) de profundidade, o que conformava
um espaço construído no interior dos quarteirões de cerca de 1
actus (120 pés ou 35.52m) (MARTINS et al., 2017).
O parcelamento dos quarteirões de Bracara Augusta
parece ter dado origem a lotes retangulares que ocupavam
meio quarteirão, que corresponde ao menor valor que podemos
atribuir às unidades domésticas conhecidas. Algumas das
habitações identificadas na cidade ocuparam a totalidade da
área edificável dos quarteirões, ou metade dessa área, o que
permite concluir da diversidade formal e dimensional das
domus. Os quarteirões associados às zonas arqueológicas da
Escola Velha da Sé/rua Frei Caetano Brandão nºs 166-168 e rua
Afonso Henriques nºs 42-56 documentam a existência de duas
domus contíguas, construídas na época flávia. Por outro lado, ao
observarmos outras zonas arqueológicas da cidade, como a das
Carvalheiras, das Cavalariças, ou a do Ex-Albergue Distrital,
verificamos a existência de habitações que ocupavam a totalidade
dos quarteirões, a que correspondiam áreas significativas.
A análise destes exemplos permite perceber uma íntima
relação entre as casas e as cidades com projetos urbanísticos
que previam a implantação de espaços porticados em redor dos
quarteirões, elementos que, apesar de estarem ligados à proteção
das áreas pedonais e que serviam ao comércio e às atividades
que se desenrolavam nas lojas, acabaram por criar uma paisagem

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 129


FORMA, FUNÇÃO E USO DOS ESPAÇOS DOMÉSTICOS NA CIDADE ANTIGA

urbana associada à presença das colunatas que acompanhavam


as ruas, marcando a cidade com um ritmo homogéneo. Desta
forma, criavam-se espaços abrigados, propícios para a circulação
de pessoas e para a realização de atividades económicas que
ocorriam nas tabernae, rasgadas nas fachadas das casas, em
espaços profundamente marcados pelo ritmo das colunas,
sempre omnipresentes.
Uma vez que os proprietários das habitações participavam
na elaboração dos projetos arquitetónicos e decorativos que deram
origem às grandes domus implantadas nas cidades do Império,
podemos associar a incorporação de elementos que compunham
o cenário urbano no interior das habitações, como a projeção
do externo/público e do interno/privado, através da qual os
proprietários procuravam projetar as suas posições de controlo
da vida cívica das cidades, a sua riqueza, oriunda da terra, mas
também do comércio e o seu estatuto que resultaria dos cargos
que ocupariam na administração local, conventual ou provincial.
Na verdade, o continuum causado pela centralidade das entradas
das habitações em relação ao intercolúnio das colunatas dos
pórticos induzem à participação dos proprietários nas atividades
públicas da cidade, sendo o prolongamento do exterior para o
interior (e vice-versa) reiterado pelos uestibula alinhados com os
peristilos ou átrios porticados, espaços que também recorriam
às colunatas e, desta forma, também reproduzem o ritmo das
paisagens urbanas (WALLACE-HADRILL, 2015).

A domus como conjunto de espaços interrelacionados e


identitários

Os exemplares de arquitetura doméstica descobertos por


toda a Hispânia documentam uma forte influência da gramática

130 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FERNANDA MAGALHÃES

arquitetónica produzida e desenvolvida na Itália e uma grande


diversidade de usos desse léxico, aplicado em diferentes soluções
compositivas. Longe de estabelecer tipologias fechadas e
restritivas, os modelos itálicos foram constantemente emulados,
mais do que reproduzidos ou imitados, de acordo com as
especificidades, quer materiais e topográficas das cidades, quer
relativas ao nível social e económico dos seus proprietários
locais (HABINEK; SCHIESARO, 1998; WALLACE-HADRILL,
2008). Essa linguagem passa pelo urbanismo e pela arquitetura,
atingindo os bens consumíveis, desde os alimentos a uma gama
variada de produtos.
Em relação à arquitetura doméstica hispânica, parece-nos
bastante evidente que se trata de um processo lento e constante
de racionalização teórica e instrumental dos modelos produzidos
e desenvolvidos em Itália, ainda que alguns dos seus traços
remontem às tradições helenísticas do Oriente, cuja consequência
foi a sistematização das práticas e das técnicas construtivas,
bem como a emulação do seu léxico, fenómeno observável tanto
nas coloniae e grandes cidades de fundação romana, como nos
aglomerados de matriz indígena, com exemplares observáveis
um pouco por toda a Península Ibérica (AA.VV., 1991).
A sociedade provincial foi-se formando como resultado da
interação entre as velhas elites indígenas e a população itálica
que desde época republicana se foi fixando na Península Ibérica.
Esta interação permitiu o surgimento de uma nova elite hispano-
romana que reelaborou os aspetos essenciais das funções sociais
associadas aos espaços da casa de prestígio. Dispor de grandes
vestíbulos para impressionar a clientela, fossem átrios ou
simples vestíbulos e de jardins porticados, com salões de receção
para convidar os seus iguais (convivium), acabou sendo um traço
distintivo da casa dos personagens principais de uma qualquer
cidade, fossem eles personagens de origem itálica, ou hispânica.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 131


FORMA, FUNÇÃO E USO DOS ESPAÇOS DOMÉSTICOS NA CIDADE ANTIGA

A aplicação do léxico itálico pode ser bem percebida


nos contextos arquitetónicos domésticos de Conimbriga, com
destaque para a “Casa de Cantaber” e a “Casa dos Repuxos”
(Figuras 3 e 4). A cidade está localizada na província da Lusitânia,
na parte central do conventus Scallabitanus, nas proximidades da
margem sul do Baixo Mondego, eixo fluvial navegável, cuja
planície aluvial é bastante fértil, aspetos que certamente tiveram
influência na sua implantação. Por outro lado, os antecedentes
fundacionais de Conimbriga apontam para a existência de um
núcleo pré-romano lusitano, conquistado por Roma nos finais
do século II a.C., no fim das chamadas Guerras Lusitanas
(ALARCÃO, 1988; 1990). Todavia, a cidade adota um urbanismo
romano apenas no período de Augusto, quando foi ocupada por
uma elite pequena, mas bastante abastada, pertencente ao ordo
decurionum, que detinha mais da metade da área construída do
núcleo urbano (CORREIA, 2010, p. 261-262).
O urbanismo de Conimbriga reflete a sua dilatada história
e evolução cultural, em que as suas ruas, de traçado irregular,
se adaptam à topografia para garantir a acessibilidade do espaço
urbano a partir das vias que comunicavam com o território. Por
outro lado, a evolução sociocultural do aglomerado, a partir da
época de Augusto e ao longo dos séculos I e II, determinou a
intensificação das construções com a edificação de equipamentos
públicos que eram exigidos por um centro urbano com as
características de Conimbriga, de que são exemplo as sucessivas
fases do forum e a construção das grandes termas públicas. No
entanto, as velhas ruas do aglomerado urbano determinavam o
sistema de propriedade privada do solo, pelo que tiveram de ser
mantidas, tendo as termas e o foro ficado condicionados pelo
velho sistema viário, tendo-se conservado a estrutura urbana
hierárquica, um claro resultado dos fluxos que geravam as
atividades urbanas e a comunicação com o território.

132 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FERNANDA MAGALHÃES

A elite de Conimbriga teve que se adaptar a esta dinâmica


urbana profunda, tendo conseguido lotes de terreno significativos,
ainda que sempre e inevitavelmente com um perímetro de
parcela irregular, em função das suas possibilidades económicas
e da sua posição social. Assim, o traçado oblíquo das ruas, ou as
formas de terreno triangulares condicionaram a implantação das
grandes casas de Conimbriga, o que, aparentemente, longe de ser
um problema, constituiu um estímulo para encontrar soluções
arquitetónicas inovadoras sem renunciar a composições que se
esperavam da casa de um notável da cidade.

Figura 3 – Reconstituição planimétrica da “Casa de Cantaber”


em Conimbriga

Fonte: Autoria própria

A “Casa de Cantaber” e a “Casa dos Repuxos” são casos


excecionais de unidades domésticas peninsulares, com áreas de
implantação de grandes dimensões, respetivamente com 3260m2
e 2890m2 (Figuras 3 e 4). Uma vez que os limites físicos dos lotes

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 133


FORMA, FUNÇÃO E USO DOS ESPAÇOS DOMÉSTICOS NA CIDADE ANTIGA

onde as casas foram construídas não restringiram as capacidades


de crescimento, elas desenvolvem-se exclusivamente no rés-
de-chão e apresentam uma complexa abundância de espaços
abertos a estruturar as dezenas de compartimentos onde eram
executadas as principais atividades da família, com grande
sumptuosidade e uma riquíssima decoração pictórica e musiva
(PESSOA, 2005; CORREIA, 2010).
A análise da planta da “Casa de Cantaber” e da “Casa dos
Repuxos” torna evidente a sua organização rigorosa com base
num eixo longitudinal que é também visual (Figuras 3 e 4). O
vestíbulo monumental da “Casa de Cantaber”, que poderíamos
denominar átrio testudinado, dá acesso à casa, comunicando
com o peristilo através de uma porta tripla, simétrica (trifora).
O jardim interior segue na sua ordenação esse eixo principal e
remata num grandioso oecus, uma grande sala de representação,
em torno da qual se organizavam os espaços de serviço para
a celebração de grandes banquetes. Estes três elementos,
perfeitamente alinhados, foram sem dúvida o primeiro estandarte
cultural do proprietário que encomendou a casa e que os
construtores tiveram que respeitar apesar das irregularidades da
parcela. Isso é particularmente evidente na “Casa dos Repuxos”,
onde a forma triangular da parcela obrigou a colocar este eixo de
forma oblíqua. Ora, para garantir a monumentalidade do acesso
oblíquo desenhou-se uma êxedra semicircular que se articulava
com o porticado da rua. A casa possui um desenho hábil que se
adaptou às expetativas do dominus e às dificuldades da parcela,
oferecendo a casa um bom impacto urbano expresso através do
eixo longitudinal principal. Naturalmente que a ideia do eixo
longitudinal representa um dos elementos mais recorrentes na
tradição da casa de átrio e peristilo de tradição helenística. Ainda
que desapareça o átrio como conceito espacial, este é substituído
por um monumental vestíbulo, cuja complexidade arquitetónica

134 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FERNANDA MAGALHÃES

manteve os valores que, na tradição republicana, se atribuíam ao


binómio atrium/tablinum. Ainda que o desenho do átrio/vestíbulo
tivesse sido determinado pela sua função representativa inicial,
o dono da casa requeria elementos arquitetónicos secundários,
como portas, grades e cortinas que facilitavam usos diferentes
dos espaços (LAURENCE, 1994).

Figura 4 – Reconstituição da planta da “Casa dos Repuxos” em


Conimbriga

Fonte: Autoria própria

A trifora presente nas duas casas de Conimbriga apresentava


esta conceção ambivalente. Quando as portas estavam abertas
reforçavam a imagem do dominus no centro da porta central,
mais larga que alta, importante na receção aos clientes, quando a
imagem do proprietário era reforçada pela simetria das três portas
e pela imagem do jardim paradisíaco nas suas costas (JASHEMSKI,
1979). Quando o uso do peristilo requeria uma maior intimidade,

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 135


FORMA, FUNÇÃO E USO DOS ESPAÇOS DOMÉSTICOS NA CIDADE ANTIGA

como é o caso de um banquete oferecido a iguais no triclínio,


com nove participantes, a trifora facilitava o encerramento das
portas e a privacidade do peristilo. Em ambas as casas, o vestíbulo
de receção contava com cubículos subsidiários e corredores que
permitiam chegar aos espaços de serviço no fundo da casa, sem
atravessar a trifora ou o jardim e molestar assim os participantes
no banquete íntimo. Os respetivos oeci situados ao fundo do
peristilo são concebidos como o espaço privilegiado da casa com
as suas dependências secundárias para tornar mais ameno o ritual
do convivium entre iguais (DUNBABIN, 1996).
Quando os proprietários das duas casas de Conimbriga
decidiam abrir as suas portas para um banquete massivo com
dezenas de convidados, a solução da trifora facilitava a organização
do evento e o fácil acesso ao peristilo (DUBOULOZ; ROBERT, 2016,
p. 59-84). Nesse caso, o peristilo adquiria um maior protagonismo,
permitindo distribuir numerosos leitos e mesas que acomodavam
os numerosos convidados. O banquete de Trimalquio, na obra
Satyricon, de Petrónio, constitui uma excelente descrição, ainda
que caricatural, do uso extraordinário de numerosos cubicula e de
pórticos para todos os admitidos para o festim (VEYNE, 1991, p. 13-
87). A hierarquia social dos convidados deveria espelhar-se na sua
maior ou menor proximidade com o triclínio em que se dispunha o
dominus e os convidados honoráveis. Significativamente, neste tipo
de banquetes inverte-se a relação visual dos participantes, pois
se num banquete restrito os convidados tinham a possibilidade
de contemplar o exterior desde um triclínio único, no banquete
alargado criava-se uma pirâmide visual para que os convidados de
menor estatuto pudessem visualizar o triclínio principal, onde se
banqueteavam os personagens principais, posicionadas no oecus
principal (BEK, 1986).
Nos exemplares da “Casa de Cantaber” e da “Casa dos
Repuxos” os compartimentos apresentam uma hierarquia, a

136 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FERNANDA MAGALHÃES

qual é estabelecida a partir de duas perspetivas (Figuras 3 e 4).


Em primeiro lugar, a dimensão das salas sugere as funções que
elas haviam tido e permitem interpretar os espaços, sobretudo
quando apenas temos os dados arquitetónicos. As principais
salas são grandes, e isso está relacionado com as funções que
desempenhavam. Por outro lado, a localização dos espaços é
estruturante na definição do papel que assumem, o que era
estabelecido a partir da inter-relação visual que eles apresentam.
Nesse sentido, a implantação de um compartimento no eixo
longitudinal da casa, ou seja, no alinhamento formado pela entrada
e pelo espaço aberto, garantia uma capacidade visual privilegiada
sobre este espaço. Em contrapartida, o eixo transversal e as
esquinas apresentam uma visibilidade parcial.
Na “Casa de Cantaber” é muito evidente o modo como
se criam três subconjuntos de compartimentos em torno de
três peristilos secundários. Dois deles, dispostos à esquerda e à
direita do peristilo principal, são completamente autónomos em
relação ao eixo axial principal. O da esquerda dispõe de uma sala
retangular que conta com o seu jardim privado e as dependências.
O peristilo da direita dispõe ainda de um grande ninfeu/fonte que
domina o jardim porticado. Ambos os conjuntos são acessíveis
mediante corredores que nascem no grande vestíbulo. Estas
unidades arquitetónicas segregadas aparecem com frequência nas
villae tardias da Hispania, tendo sido interpretadas como espaços
associados à vida privada dos proprietários. Trata-se de espaços
que foram tradicionalmente considerados como compartimentos
privados do dominus e/ou da domina, utilizando-se o conceito de
dietae para os referir (MAR; VERDE, 2008).
Os peristilos secundários mostram a flexibilidade que
se exige ao projeto da casa e a necessidade de controlar a
acessibilidade aos distintos espaços que formam o edifício. Trata-
se de áreas extremadamente privadas que serviam para as funções

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 137


FORMA, FUNÇÃO E USO DOS ESPAÇOS DOMÉSTICOS NA CIDADE ANTIGA

que os usuários pretendiam desenvolver na intimidade, desde


dormir até outro tipo de atividades que deviam ser realizadas sem
testemunhas incómodas, como negócios, tratamento de assuntos
delicados ou mesmo um banquete em que se pretendiam tratar
questões importantes (ANGUISSOLA, 2010).

Algumas considerações sobre forma, funcionalidade e usos


do espaço na domus romana

A disposição dos compartimentos de uma habitação devia


ser projetada pelo arquiteto segundo as instruções dadas pelo
proprietário. No primeiro momento, as partes que compõem
a casa, bem como os subconjuntos de salas, seriam pensadas
de acordo com as funções que elas exerceriam tendo-se em
consideração a composição e a natureza das atividades e dos bens
da família, como a instalação de tabernae, com abertura interna
para comercializar os produtos vindos da villa do dominus, ou a
quantidade de cubicula compatíveis com o número de elementos
do agregado familiar.
Todavia, uma coisa é a função dada a determinado
compartimento, outra é o uso que aquele espaço teria de facto.
Assim, é preciso distinguir a função e o uso dos espaços, conceitos
que significam e operacionalizam atividades distintas. Na verdade,
a vida de uma habitação após a sua construção e o modo como
os seus espaços foram utilizados dependia, em grande medida,
do estatuto e da história da família, os quais poderiam sofrer
significativas alterações ao longo dos anos, como o início de uma
nova atividade comercial, a entrada na política ou o nascimento
de filhos. Neste sentido, associar a função que se imagina que
um compartimento poderia possuir ao uso que ele teria tido de
facto, tendo por base aspetos meramente arquitetónicos, pode

138 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FERNANDA MAGALHÃES

conduzir a erros grosseiros de interpretação, sendo importante


dispor de outro tipo de dados materiais para garantir uma melhor
interpretação dos espaços de uma habitação (ALLISON, 1999;
2002; WALLACE-HADRILL, 2015).
A polifuncionalidade dos cubicula constitui um excelente
exemplo da versatilidade que temos que imaginar para realizar
uma adequada interpretação da funcionalidade dos espaços
de uma casa romana (RIGGSBY, 1977). O chamado cubiculum
das casas de elite de Roma e das cidades da baía de Nápoles
constituía um compartimento que enchia os espaços residuais
entre o conjunto peristilo-átrio-oecus e os limites da parcela. Tal
como sublinha Vitrúvio (6, 5, 1), estavam destinados a funções
de distinto tipo e os estranhos à casa só aí podiam aceder como
convidados. Em princípio, este pequeno compartimento estava
destinado ao descanso noturno e às atividades sexuais. Plínio,
o Jovem, quando descreve a sua villa laurentina (Ep., 2, 17, 4),
ao enumerar as funções dos cubicula distinguia os destinados
ao descanso com o designativo de cubiculum noctis et somnis. No
entanto, sabemos que os cubicula também podiam servir para
a receção dos conhecidos, amigos mais ou menos próximos,
parentes e, em particular, para a gestão dos negócios.
Assim, a hierarquia visual dos espaços da casa atua de
modo a estabelecer a hierarquia social dos convidados, estando
as pessoas com maior estatuto no compartimento principal
junto com o anfitrião, visto por todos, enquanto os demais
detinham apenas uma visibilidade parcial (MAR, 2008, p. 25-
31). A parte central da “Casa de Cantaber” permite evidenciar
singularmente esse fenómeno. Aí o grande triclinium centrado
está no meio de uma série de compartimentos distribuídos em
redor dos espaços abertos da habitação, detendo um controlo
visual sobre eles por meio de janelas voltadas aos jardins,
sendo preciso não esquecer que essa casa estava preparada para

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 139


FORMA, FUNÇÃO E USO DOS ESPAÇOS DOMÉSTICOS NA CIDADE ANTIGA

receber mais de uma centena de convidados para uma festa


organizada pelo dominus, pelo que precisaria de integrar os
seus espaços de forma a garantir a visibilidade do anfitrião e o
acesso a ele (CORREIA, 2010, p. 95-99).
Enquanto os banquetes retratavam a vida pública da
família no seu máximo expoente, os cubicula estabeleciam
funções fundamentalmente opostas. De facto, os espaços
destinados a dormitórios apresentam, regra geral, dimensões
bastante reduzidas e geralmente são os espaços mais privados
da casa, aspeto materializado pela existência de portas que os
encerravam, diferentemente das salas destinadas à receção de
pessoas, que possuíam cortinas para sinalizar as entradas.

Referências

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144 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


Urbanismo romano no Norte da África:
considerações a partir da documentação
arqueológica

Maria Cristina Nicolau Kormikiari

U
ma antiga lenda norte-africana conta como um soldado
romano se apaixonou por uma princesa nativa, a qual,
orgulhosa como Dido, não queria saber dele. Ela
somente se casaria com ele, disse a moça, quando as águas do
Zaghouan corressem para Cartago. O aqueduto com 132 km de
extensão, visível ainda hoje na planície do oued (rio) Miliana, foi
construído (Figura 1).1 O romano cobrou a noiva, e esta, como
Dido, preferiu se jogar do alto da construção.
Ainda que não seja possível comprovar a veracidade dessa
história, a memória a ela intrínseca nos diz que, no campo do
desenvolvimento de um urbanismo romano, um diferencial
marcante foi a engenhosidade posta a serviço do bem-estar

1
Este aqueduto transportava água da montanha (djebel, em árabe)
Zaghouan até Cartago. Trata-se de um monumento impressionante, tanto
do ponto de vista técnico como por sua monumentalidade. É dividido em
uma parte aérea formada por altas arcadas que cortam os vales, e em uma
parte subterrânea, que atravessa as colinas. Este aqueduto leva a água
movida pela gravidade, isto é, a partir de uma inclinação suave desde as
fontes no flanco da montanha até os reservatórios (cisternas) das termas
igualmente monumentais de Cartago, à beira mar. Calculou-se que 32.000
m3 de água eram lançados por dia, isto é, 270 litros por segundo. Atribui-se
sua construção ao imperador Adriano (117-138) (SLIM et al., 2003, p. 237).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 145


URBANISMO ROMANO NO NORTE DA ÁFRICA

cotidiano e estendida para todos os cantos do Império.


Secularizaram a monumentalidade.2

Figura 1 – Aqueduto de Zaghoan

Fonte: Michel Royon, Wikimedia Commons

Quando pensamos nas marcas deixadas pela presença


romana nos territórios conquistados e transformados em
províncias, há várias linhas de pensamento.3 Do ponto de vista

2
Por exemplo, em comparação ao mundo grego, que usou a
monumentalização principalmente no campo religioso, ver Hirata (2009)
e Florenzano (2011).
3
Existe um debate secular e intenso sobre a organização e atuação do
Império Romano nos territórios conquistados. Tanto as intenções das
ações romanas quanto as respostas a estas, nas províncias, encontram-
se no centro do debate das últimas décadas. Uma das correntes mais
fortes, formada principalmente por pesquisadores anglo-saxões,
prega o reconhecimento que os processos de interação cultural foram,
necessariamente, multidirecionais. Entre outros, ver Curchin (2004);

146 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MARIA CRISTINA NICOLAU KORMIKIARI

de uma análise arquitetônica acoplada a noções de urbanismo,


pesquisadores como MacDonald (1986) defendem a existência
de uma “homogeneidade da forma e da intenção ao longo de todo
o território do Império”. MacDonald defende a ideia que, para
além de um simples plano urbano, as cidades romanas possuíam
uma armadura. Esta seria formada por três grandes componentes:
espaços abertos, formados por ruas, praças, fora e escadas; espaços
intermediários, como arcos, fontes, exedras e pátios com pórticos;
e, finalmente, prédios públicos chave, como anfiteatros, basílicas,
termas, lojas, teatros, entre outros.
Os componentes dessa armadura se acumulariam com
o tempo, como resposta ao que MacDonald (1986, p. 30)
denominou “a necessidade urbana universal de uma arquitetura
de conexão e de passagem”. A diferença em relação a um plano
urbano seria que o primeiro teria uma base teórica e seria
instalado de uma só vez; ou seja, a armadura, ao contrário,
desenvolveu-se, ao longo do tempo, a partir de “ideias orientais
e ocidentais (que) se combinaram para formar novas morfologias
e para criar o fator tão fortemente reconhecível ecoado pela
evidência pictórica” (MACDONALD, 1986, p. 18).
Nesse ponto, o papel desempenhado pelo exército
romano, atuando como agrimensores e “engenheiros”, teria sido
primordial. A “arte da guerra” necessitava comunicações, isto é,
estradas e portos; e a manutenção da paz, de fortes e campos de
legionários. Estes, por sua vez, necessitavam de um suprimento
adequado de água. Por fim, os territórios conquistados, para
serem vigiados, as taxas serem coletadas, os suprimentos em
grãos guardados e embarcados necessitavam um controle rígido.4

Beard (1998); Hingley (2004); Huskinson (2000); Mattingly (2004; 2007);


Merrywater; Prag (2003); Revell (2009); Whittaker (1997).
4
Para uma sistematização das obras civis e militares realizadas pelo exército
romano no Norte da África, ver Le Bohec (1989).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 147


URBANISMO ROMANO NO NORTE DA ÁFRICA

Em 146 a.C., logo após o sítio a Cartago e, em seguida,


à criação da Provincia Africa, Cipião organiza a circunscrição do
território conquistado. A terra foi dividida em lotes agrícolas
separados por fossas e estradas.5 No entanto, é preciso lembrar
que a conquista romana do Norte da África caracterizou-se por
ter sido uma lenta progressão meridional e ocidental (LASSÈRE,
1977). O trabalho dos agrimensores e dos engenheiros do
exército acompanhou esse ritmo.
As estradas ligavam-se às circunscrições e serviam como
fronteiras entre as terras divididas. Constituíam-se linhas guias para
futuras anexações (GSELL, 1928). No período púnico, no território
cartaginês, havia estradas, mas estas ligavam, principalmente, a
capital a algumas cidades vizinhas. Há vestígios de estradas entre
as principais cidades da costa (RAVEN, 1993, p. 66).
Já a perspectiva romana foi a da concepção de uma rede
de estradas conectando uma província por inteiro. No Norte da
África, temos uma única legião, a IIIª Legião Augusta. Em 14,
a IIIª Legião construiu uma estrada militar de 160 km, entre
Tacapae (litoral oriental tunisiano) e Ammaedara (Haïdra)
(região central da Tunísia atual), sendo esta última sua primeira
base africana identificada (RAVEN, 1993, p. 57, 60).
Trata-se da primeira estrada a ser registrada em uma
inscrição (RAVEN, 1993, p. 66). Três séculos depois, a rede de
estradas romanas no Norte da África alcançou cerca 19 mil km

5
Esta era a opinião de Stéphane Gsell (1928, p. 4-8). No entanto, a
“primeira” medição do terreno de fato documentada teria sido realizada para
a desafortunada colônia dos Graco, em 122 a.C. Já a Lei Agrária de 111 a.C. e
outros textos mostram que centuriações foram feitas para além do território
da colônia dos Graco. Cada centúria possuía c. 5000 m2, e era produzida
a partir da organização do terreno em quadrados ou retângulos regulares,
desenhados tendo como guia travessas que se cortavam no terreno, as decumani
e as cardines, as quais, por sua vez, corriam em paralelo, respectivamente, ao
decumanus maximus (L-O) e ao cardo maximus (N-S) (GSELL, 1928).

148 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MARIA CRISTINA NICOLAU KORMIKIARI

(MORGAN, 2012). Apenas a rota entre Cartago e Ammaedara


(Haïdra) (Tunísia atual), chegando até Theveste (moderna
Tébessa, Argélia ocidental), localizada ao Sul, em direção ao
deserto, foi coberta com lajes.6
Fotos aéreas visualizam algumas das estradas romanas no
Norte da África. Por vezes, são marcadas pelas chamadas pedras
miliárias, estelas com inscrição marcando caminhos, estradas,
distâncias entre as localidades. Até hoje, mais de 2000 pedras
miliárias foram descobertas no Norte da África (SALAMA, 1951).
A qualidade do trabalho realizado na construção destas
estradas pode ser atestada em inscrições como a de Tighanimine
(MORIZOT, 2008). Em meados do século XIX, um general francês
com dificuldades para levar um destacamento de soldados por
uma estreita passagem na garganta de Tighanimine, nos montes
Aurès (ao sul de Lambaesis), na atual Argélia meridional em
direção ao deserto, se deparou com uma inscrição romana dando
conta desta travessia. A inscrição encontra-se visível na lateral
da estrada moderna e registra a construção de uma estrada entre
Lambaesis e Vescera, em 145, pela VI Ferrata, legião romana
(MARIZOT, 2008).
A rede levou mais de 200 anos para ser completada. Mas já
no final do séc. I, Theveste, quartel general da IIIª Augusta desde
os anos 70, era o ponto central de um conjunto de estradas em
direção à costa, a Cartago e à Mauritânia (atuais Argélia ocidental e
Marrocos). Durante o reinado de Trajano, época quando o Império
Romano teve sua maior extensão, uma segunda estrada, mais ao

6
Uma estrada romana era composta por 3-4 camadas de pedras grandes e
menores e pedregulho, algumas ligadas por argamassa, dispostas em uma
trincheira de c. 1 m de profundidade. A superfície era usualmente formada
por terra compactada ou grandes seixos (NINOUH; ROUILI, 2013, p. 248).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 149


URBANISMO ROMANO NO NORTE DA ÁFRICA

Sul e paralela, foi construída ao longo do Saara e das montanhas


do Aurès e de Nemencha (SALAMA, 1951).
Foram igualmente implantadas estradas “vicinais”,
conectando as cidades menores. Normalmente, eram da
responsabilidade das autoridades locais. Em uma estrada
romana procurava-se manter a linha mais reta possível. Seu
uso primeiro era para o deslocamento a pé das legiões. Preferia-
se a proximidade de despenhadeiros, margeando montanhas.
Evitava-se as planícies, nas quais haveria a necessidade de
construção de fortes para proteção e, especificamente em
relação ao Norte da África, sempre havia o perigo real das cheias
repentinas (NINOUH; ROUILI, 2013, p. 246-47).
A IIIª Legião Augusta também emprestava seus
engenheiros para supervisionar a construção de aquedutos
pelas cidades, como o de Zaghouan, mencionado acima. Uma
inscrição (RAVEN, 1993, p. 72) menciona um engenheiro de
Lambaesis que foi chamado para organizar a construção de um
túnel para o aqueduto que levaria água até Saldae (moderna
Bougie). A inscrição descreve como, após ter direcionado o início
da perfuração de cada lado da colina, ele foi chamado às pressas,
novamente, porque, o que raramente acontecia (daí a inscrição),
os dois túneis não se encontraram.
Os acampamentos da legião romana implantavam
uma rígida grade ortogonal.7 A da antiga Theveste pode ser

7
A grade ortogonal foi um desenvolvimento levado a cabo pelas mãos
dos gregos ao longo do século VIII a.C., no Mediterrâneo (há exemplos
anteriores em terras orientais, mesopotâmicas e egípcias), em suas apoikiai
ocidentais, por exemplo, em Mégara Hiblea e na ilha de Ortígia, base da
fundação de Siracusa, ambas cidades siciliotas. No século IV a.C., Aristóteles
apresenta-nos o nome do arquiteto Hipodamos de Mileto como o criador
desta grade, o que sabemos não ser exato. No entanto, é possível, sim, vê-lo
como aquele que normatizou essa grade. Segundo a tradição, Hipodamos
teria sido responsável pela revitalização do porto do Pireu, em Atenas, de

150 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MARIA CRISTINA NICOLAU KORMIKIARI

visualizada, hoje, na moderna Tébessa, mas a grade mais


conhecida é a de Timgad (antiga Tamughadi), a qual foi
construída em c. 100, não como acampamento mas como
colônia de veteranos e de suas famílias. Estes acampamentos
e suas colônias são cidades romanas modelos: ruas em ângulo
reto; quarteirões de habitações; lojas; fora; arcos; templos;
termas; entre outros aparatos.
Em relação ao urbanismo no Norte da África, anterior
às intervenções romanas, as escavações de Kerkouane, nos anos
de 1950, e de Cartago, duas décadas depois, demonstraram a
existência de organizações espaciais ortogonais já no período
púnico. Desse modo:

[...] longe de ter colocado em Cartago, no momento da refundação,


um plano ortogonal [...] em substituição a um urbanismo da
metrópole púnica tido como anárquico e irregular, o cadastramento
romano apenas seguiu e se curvou a uma organização anterior: os
eixos de construção da Cartago romana praticamente coincidem,
de fato, com os eixos subjacentes dos edifícios púnicos da planície
costeira (SLIM et al., 2003, p. 217-218).

Tamughadi pode ser considerada o exemplo clássico


do planejamento citadino romano no formato de uma grade
(Figura 2). No entanto, esta se expandiu para além dessa
ortogonalidade e assumiu as configurações mais livres que
a “armadura” de MacDonald (1986), citada no início deste

Mileto (pois após a expulsão dos persas, entre 480-470 a.C., os milésios, ao
reentrarem em sua cidade, deram continuidade ao estabelecimento da grade
ortogonal, já anteriormente existente), de Rodes e de Túrio. Entretanto, as
datações arqueológicas destas intervenções englobam mais de um século,
tornando inviável que Hipodamos tenha sido, de fato, o artífice em todas
essas revitalizações (agradecemos à Profa. Maria Beatriz Florenzano pela
sistematização dos dados acima apresentados).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 151


URBANISMO ROMANO NO NORTE DA ÁFRICA

capítulo, permitia. De fato, vemos, na extensão não ortogonal


da configuração de Tamughadi, a força das correntes culturais
locais, berberes, que organizavam seu espaço de maneira mais
livre e integrada ao seu meio.

Figura 2 – Tamughadi (Timgad), vista aérea

Fonte: https://www.reddit.com

Ao mesmo tempo, dentro do aparato idealizado pela


presença romana é inegável a percepção do conceito de uma
arquitetura conectiva, formada pelas estradas apresentadas acima,
mas também por ruas, praças e escadarias dentro das próprias
cidades. Ruas conectam os portões da cidade e intersectam com
praças, mormente retangulares, de tamanho considerável. Ou
seja, uma arquitetura de passagem (MACDONALD, 1986, p. 30).
No ninfeu, temos um santuário construído sobre ou ao
redor de uma fonte e consagrado às ninfas (Figura 3). Pode ser

152 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MARIA CRISTINA NICOLAU KORMIKIARI

considerado um local de pausa, de descanso. Na falésia talhada


em semicírculo do mons Zeugitanus (Djebel Zaghouan), a 70
km em voo de pássaro de Cartago, foi construído um ninfeu
espetacular. As exedras são espaços (com assentos) em forma
de semicírculo. E os famosos arcos, marcando as entradas,
em termos urbanísticos, podem ser interpretados tanto
desempenhando um papel de trânsito quanto de transição, pois
serviam como uma entrada ou mesmo como um enquadramento
de uma paisagem (Figura 4).

Figura 3 – Ninfeu em Leptis Magna, Líbia

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Nymphaeum_Leptis_
Magna.JPG

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 153


URBANISMO ROMANO NO NORTE DA ÁFRICA

Figura 4 – Arco em Volubilis, Marrocos

Fonte: https://www.flickr.com/photos/82733598@N00/7122597903

Uma cidade romana possuía um número significativo de


prédios públicos urbanos: basílicas, termas, cisternas, latrinas,
mercados, construções religiosas/templos, as casas senatoriais
(as cúrias), lojas e armazéns, entre outros. Questões importantes
para seu estudo passam pela análise da distribuição geográfica dos
prédios; relação estilo e função; existência de atributos comuns
aos edifícios; elementos distintivos da arquitetura romana; uso
estrutural da coluna e das molduras (frisos e cornijas) como focos

154 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MARIA CRISTINA NICOLAU KORMIKIARI

decorativos; e o desenvolvimento da curva em arcos e abóbodas.


Trata-se de arquitetura popular, acessível a muitos (Figuras 5 e 6).

Figura 5 – Planta da Cartago romana

Fonte: https://fr.wikipedia.org/wiki/Site_arch%C3%A9ologique_de_
Carthage#/media/Fichier:Plan_carthage_romaine.jpg

Na Figura 5, visualiza-se, claramente, a planta ortogonal da


capital norte-africana; e na Figura 6, temos uma reconstituição
artística da Cartago romana, por Claude de Golvin, responsável
por um conjunto expressivo e muito bonito de reconstituições
de sítios norte-africanos.8

8
Sua obra pode ser acessada em: <https://jeanclaudegolvin.com/carthage>.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 155


URBANISMO ROMANO NO NORTE DA ÁFRICA

Figura 6 – Reconstituição criativa de Cartago que sintetiza


diversas fases da história do sítio

Fonte: https://jeanclaudegolvin.com/carthage

Vê-se o promontório sobre o golfo, com o cabo Sidi Bou


Saïd a Nordeste, a zona portuária em Salammbo, a Sudeste, e o
início do cordão que leva a Goulette. A Oeste, vemos os lagos
Sebkha Ariana e Behira que banham o istmo que faz a conexão
do promontório com o continente.
Ao longo da extensão do promontório percebem-se
as marcas de dois cadastros romanos: a centuriação rural
(apresentada na nota 5, acima) e o cadastramento urbano,
no litoral, cujo centro encontra-se na colina de Byrsa, com a
decumanus maximus (L-O) e a cardo maximus (N-S), que garante o
recorte ortogonal.

156 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MARIA CRISTINA NICOLAU KORMIKIARI

Dentro dessa grade rigorosa, percebida pelo recorte das


avenidas e das ruas delimitando os quarteirões, se implantam os
prédios públicos e privados. Entre os mais destacados, temos o
fórum, no topo da colina de Byrsa; a Oeste, o anfiteatro e o circo;
a Sudeste as bacias portuárias; a Leste as termas de Antonino e o
templo de Bordj Djedid; ao Norte, o Odeon, o teatro e a rotunda,
e, por fim, as vilas aristocráticas. Na planície, a Oeste, vemos
o traçado do aqueduto de Zaghouan, que alcança as grandes
cisternas de La Malga (SLIM et al., 2003, p. 217).
Como bem apontam Hédi Slim, Ammar Mahjoubi,
Khaled Belkhoja e Abdelmajid Ennabli, no capítulo intitulado
L’urbanisation intense de la province (2003, p. 215-228), a porção
oriental norte-africana tem sido descrita, desde o século XIX,
seja por historiadores ou por arqueólogos, como altamente
urbanizada durante o período romano. Tanto fontes textuais
latinas quanto descobertas epigráficas, prospecções e escavações
arqueológicas apontam o desenvolvimento urbano que teria
atingido a região entre o início do século II e a metade do século
III. Mas, por outro lado, se olharmos com cuidado o mapa
de distribuição das cidades romano-africanas, verificaremos
áreas mais densas que outras. E estes adensamentos seguem a
organização espacial das implantações fenício-púnicas.
Assim, a urbanização é densa no litoral oriental, entre
Hippo Diarrhytus (Bizerta) e a Tripolitânia, e em toda a região
nordeste norte-africana. Em um retângulo de 175 por 120 km,
temos 150 cidades, ao longo do importante eixo agrícola dos
vales do oueds (rios) Medjerda e Miliane (SLIM et al., p. 215), na
atual Tunísia. Por outro lado, quase não há aglomerações mais
ao Sul, com exceção de instalações militares.
No Norte da África, temos cinco tipos de “cidades”:
as antigas colônias fenícias, costeiras e cosmopolitas; os
assentamentos indígenas (centros berberes interioranos

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 157


URBANISMO ROMANO NO NORTE DA ÁFRICA

maiores); as colônias de veteranos – construídas como tal; as


cidades que cresceram a partir da proximidade com fortes; e as
cidades interioranas de tamanho médio que cresceram a partir
de vilarejos indígenas.
No auge da ocupação romana na região, o século III,
estima-se entre 500 a 600 cidades (RAVEN, 1993, p. 101).
Na província da Africa, temos, como visto acima, mais de 150
cidades nas terras férteis. Em alguns locais a distância média
entre cada cidade não ultrapassava 10 km. No vale do Medjerda,
pode-se ver um “cinturão” de cidades ao longo da principal via
que ligava Tébessa (Theveste) a Cartago.
A população média dessas cidades seria de 5 a 15 mil
habitantes.9 Apenas Cartago e Leptis Magna devem ter alcançado
seis dígitos.10 O termo “cidade” pode ser aplicado a esses
assentamentos menos em razão de seus tamanhos e mais em
razão de suas funções e dos privilégios concedidos por Roma. A
partir da documentação textual e epigráfica, pode-se observar a
existência de uma hierarquia político-jurídica, como se segue:
as coloniae, podendo ser consideradas as “verdadeiras cidades”,
eram localidades cujos habitantes gozavam da cidadania romana;
os municipia eram localidades no modelo da cidade romana, com
conselho nos moldes do Senado, duumviri eleitos e habitantes
com alguns direitos, mas não necessariamente cidadãos romanos,
pois, para tal, haveria a necessidade de ancestralidade romana ou
exercício de magistratura; as civitates eram as cidades indígenas,
sem direito à cidadania romana (GASCOU, 1972).

9
Cirta (Constantina), na atual Argélia, e Volubilis, no atual Marrocos,
seriam exceções em termos de centros indígenas.
10
Pelos cálculos do arqueólogo Philippe Leveau, o aqueduto de Cesaerea
possuía uma capacidade de fornecimento de água para até 40.000 pessoas
(LEVEAU; PAILLET, 1976).

158 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MARIA CRISTINA NICOLAU KORMIKIARI

Temos, igualmente, na região, grandes propriedades,


denominadas saltus (saltae), as quais eram tanto imperiais
quanto privadas. À medida que mais e mais terras passaram a
ser cultivadas, principalmente nas áreas mais meridionais, nas
saltae a produção extra foi acrescentada aos mercados semanais
(nundinae), localizados nas encruzilhadas de seus caminhos. Cada
grupo de saltae organizava um mercado em um dia da semana
(KORMIKIARI, 2000). Nestas localidades, eventualmente,
cidades se originaram. Nomes modernos como Souk El Arba
(mercado de quarta-feira) e Souk El Khemis (mercado de quinta-
feira) guardam, hoje, essa memória.
A pax romana, no século II, elevou os gastos dentro das
próprias cidades. Ricos mercadores e proprietários competindo
localmente investiam no embelezamento das cidades. Tratava-se
de uma competição pelos cargos de magistratura mais elevados
e por prestígio.11
A planta romana ortogonal tradicional nem sempre podia
ser realizada ou mantida, como vimos acima, no exemplo clássico
de Timgad. Cidades que se desenvolveram a partir de antigos
povoamentos, em geral, mantiveram a ordenação original das
ruas. Cidades que cresceram a partir de mercados semanais
usualmente possuem uma configuração mais desordenada. Já as
cidades indígenas costumam se localizar nas encostas de colinas.
Dependendo do grau de inclinação, as ruas principais tinham
que ser abertas a um zigue-zague, ou seja, a armadura romana
teve que se adaptar. Como exemplos deste último caso, temos
Thugga (Dougga, Tunísia centro-setentrional atual) e Cuicul
(moderna Djémila, Argélia) (Figuras 7 e 8).
Thugga foi um importante centro númida-púnico, com
localização estratégica em relação à rota de produção agrícola

11
Sobre evergetismo e patronato, ver Longfellow (2011) e Perissato (2018).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 159


URBANISMO ROMANO NO NORTE DA ÁFRICA

do vale do Medjerda. Inscrições líbico-púnicas dão conta de


questões político-sociais númidas e da influência fenício-púnica
na localidade (CHABOT, 1916); e o sítio de Cuicul, em 1982,
foi elevado pela Unesco à condição de patrimônio mundial.
Como uma de suas características mais significativas, temos a
adequação romana à topografia de vilarejo montanhoso.

Figura 7 – Planta de Thugga, na qual é possível perceber as


adaptações ao terreno pelas curvas de nível

Fonte: https://journals.openedition.org/encyclopedieberbere/docannexe/
image/2210/img-5.png

160 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MARIA CRISTINA NICOLAU KORMIKIARI

Figura 8 – Panorama de Cuicul, com vista para o fórum

Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d6/Vue_
generale_du_site_de_Djémila.jpg

O Norte da África é um dos locais do Império Romano


onde mais encontramos inscrições. A rica epigrafia da região
está na casa dos 60 mil documentos, os quais são tratados em
diversos compêndios acadêmicos (MATTINGLY; HITCHNER,
1995, p. 169).12
Exemplos de inscrições são as que comemoram os
doadores (um cidadão ou o próprio imperador) que financiaram
a construção de um ou mais prédios. Como no caso do fórum
de Leptis Magna, que foi reconstruído em 53 por Gaius, filho

12
Para uma lista das principais publicações e para referências de
sistematizações das importantes escolas de epigrafistas franceses e italianos,
os principais pesquisadores a trabalharem com inscrições romanas do
Norte da África, ver Mattingly & Hitchner (1995, p.166, notas 17 e 18).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 161


URBANISMO ROMANO NO NORTE DA ÁFRICA

de Hanno (RAVEN, 1993, p. 105). E um fórum completamente


novo foi doado pelo imperador Sétimo Severo (nascido na
cidade) entre 202 e 205 (Figura 9) (CORDOVANA, 2012, p. 56).

Figura 9 – Vista aérea do Fórum Severo de Leptis Magna

Fonte: http://photo.sf.co.ua/g/189/22.jpg

Eventualmente, mercados especiais eram construídos em


áreas separadas. Por exemplo, Timgad e Cuicul possuíam mercados
de roupas (tecidos e couros). Em Cuicul o mercado de alimentos
possuía o aparato arquitetônico para a pesagem normatizada dos
produtos, um ponderarium (RAVEN, 1993, p. 106).

Construções para o conforto e o lazer

Duas dúzias de teatros foram escavados no Norte da


África (acredita-se que muitos eram de madeira e por isso não

162 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MARIA CRISTINA NICOLAU KORMIKIARI

há vestígios). Por exemplo, o teatro de Thugga é considerado


um dos mais belos da África romana (Figura 10). Sua cavea,
com 15 m de altura, possuía a capacidade para acomodar 3.500
espectadores, e estava dividida em três andares, ou maeniana, ou
seja, separações que garantiam uma repartição dos espectadores
de acordo com sua hierarquia social e política (SLIM; FOUQUÉ,
2001, p. 174). Se pensarmos que Thugga, em seu apogeu,
abrigaria cerca 5.000 habitantes, temos uma percepção da
importância dada a esse tipo de construção (CAMPS, 1995).
Cirta possuía a sua própria companhia teatral. Foi considerada
uma grande deferência quando o imperador Caracala emprestou
a Leptis Magna seu ator favorito, Agripa (RAVEN, 1993, p. 111).

Figura 10 – Thugga, reconstrução moderna do teatro

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Dougga#/media/File:Roman_
Theatre_Dougga.jpg

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 163


URBANISMO ROMANO NO NORTE DA ÁFRICA

Os anfiteatros eram locais especialmente monumentais,


construídos para os espetáculos de combate de gladiadores e os
jogos do circo. Se tornaram locais de execução de condenados
(por meio da participação nos jogos) e, no século III, de cristãos
(especialmente os donatistas). De maneira análoga aos teatros,
acredita-se que muitos devem ter sido confeccionados em
madeira (RAVEN, 1993, p. 112). Conta-se, a partir de dados
arqueológicos ou epigráficos, mais de cinquenta espalhados pelo
Norte da África (SLIM; FAUQUÉ, 2001, p. 176). Por exemplo,
em Thysdrus (moderna El Djem, Tunísia meridional, às portas
do deserto), temos o terceiro maior anfiteatro conservado do
Império Romano, quase tão grande quanto o próprio Coliseu
(Figura 11).13
Ao mesmo tempo, o anfiteatro de Thysdrus permite que
visualizemos o desenvolvimento deste tipo de construção. Três
edifícios foram encontrados e estudados arqueologicamente. O
primeiro deles, do final do século I a.C., foi cavado no tufo calcário,
era assimétrico e de formato irregular, com uma clara diferença
de altura entre suas diversas partes. Ao mesmo tempo, acredita-
se que sua construção tenha sido possibilitada pela presença de
comerciantes italiotas ligados à agricultura do trigo. No final do
século I, um novo anfiteatro foi construído no mesmo local. Com
o próprio material da demolição do primeiro edifício, preencheu-
se o espaço e foram construídos vários compartimentos de
alvenaria, que receberam bancos de terra batida e tijolos crus
revestidos por placas de proteção de argamassa de gesso (SLIM;
FAUQUÉ, 2001, p. 176). Este edifício sustentava-se em uma

13
O nome Thysdrus já denuncia sua origem berbere, cuja raiz remete ao
termo que designa “passagens estreitas”. Ora, a localização de Thysdrus, na
região central do plateau de El Djem, domina um corredor de depressões
que determina a ligação mais direta do Sul com o Norte e o ponto mais
cômodo de junção do litoral com a hinterlândia (SLIM, 1995).

164 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MARIA CRISTINA NICOLAU KORMIKIARI

colina adjacente, método de construção muito comum no mundo


romano. Por exemplo, apenas na Tunísia, Thignica, Thuburbo
Majus, Lepti Minus, Sufetula, Acholla e Baroras possuíam um
anfiteatro deste tipo (SLIM; FAUQUÉ, 2001, p. 177).

Figura 11 – Anfiteatro de El Djem, antiga Thysdrus

Fonte: https://journals.openedition.org/encyclopedieberbere/docannexe/
image/2182/img-1.png

Já a terceira e última construção de Thsydrus é especial,


pois se trata do único anfiteatro romano construído não em
tijolos e sim em pedras talhadas (com exceção das abóbadas de
sustentação dos bancos e das galerias, feitas com cascalhos). Além
disso, foi erigido em terreno plano (como o próprio Coliseu e os
anfiteatros de Cartago – pouco preservado –, de Arles e de Nîmes;
os dois últimos, na França atual).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 165


URBANISMO ROMANO NO NORTE DA ÁFRICA

Sua cavea possuía a capacidade de receber até 30.000


espectadores. Sua construção, no entanto, foi baseada não na
medida básica romana (o pé de 0,30 m) e sim no cúbito púnico
(0,50 m). Sua distinção local também aparece nos modos de
construção e nas escolhas decorativas, e, principalmente, pelo
fervor religioso que suscitava, testemunhada por inscrições e
mosaicos (SLIM; FAUQUÉ, 2001, p. 179).
Os circos, locais de corridas de carros e de cavalos, eram
também populares. Temos exemplos de cavalos vencedores
que ficaram imortalizados em mosaicos. No entanto, no Norte
da África, apenas seis exemplos foram descobertos (RAVEN,
1993, p. 112).
As termas deveriam ser extremamente numerosas no
Norte da África. Apenas Timgad possuía treze (RAVEN, 1993,
p. 113). A região noroeste da África possuía mais termas do
que qualquer outra parte do Império. Havia termas separadas
por gênero ou, dependendo, uma mesma poderia ser usada
alternadamente por homens e mulheres. O uso, como já
mencionado em relação à vida citadina, era subsidiado por ricos
cidadãos. Essa “generosidade”, por vezes, ocupava todos os dias,
por vezes apenas alguns dias da semana.
Na arquitetura das termas, percebemos parte da
genialidade romana. Os romanos desenvolveram um cimento
do qual o ar foi retirado, o que permitiu as construções
monumentais das abobadas. Os templos eram construídos
para impressionar por fora, as termas, por dentro. Tipos de
instalações existentes nas termas são os vestiários; áreas de
massagem, banho quente, morno, frio, de vapor; áreas de
exercício; latrinas.

166 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MARIA CRISTINA NICOLAU KORMIKIARI

Templos

Plano essencial do Mundo Antigo, a vida religiosa não


se destacava nem era experimentada à parte. Nesse sentido,
templos para diversas divindades, para o culto ao imperador e
para divindades abstratas, como a Concórdia, são numerosos
nas cidades norte-africanas. As cidades mais ricas construíam
capitólios, templos dedicados às três divindades principais do
panteão romano – Júpiter, Juno e Minerva (Iuppiter Optimus
Maximus, Iuno Regina e Minerva Augusta). No artigo Capitolia,
Josephine Quinn e Andrew Wilson (2013) defendem que,
ao contrário do que normalmente se assume, estes templos,
localizados nos fora, não eram “réplicas” esquematizando a
relação existente, em Roma, entre a localização do Capitólio
e o forum romanum abaixo dele. Arqueologicamente de difícil
identificação, os capitólios provinciais não parecem representar
tão claramente assim o status elevado das localidades.
O Norte da África é onde eles são mais atestados
(praticamente todos datados do século II e do início do século
III). Quinn e Wilson (2013) defendem que o arco cronológico
e espacial, assim como a excepcionalidade dos fóruns norte-
africanos, denota uma explicação. Assim, propõem que as elites
norte-africanas, em seu relacionamento com Roma, foram
os motores de adaptação e inclusão destas construções tão
específicas. Ou seja, foram obras locais.
Contam-se 20 capitólios identificados e 17 possíveis,
número que contrasta com os 19 italiotas (Figura 12). No
entanto, é preciso levar em conta a força da manutenção
do substrato púnico-berbere no Norte da África, que talvez
explique a excepcionalidade norte-africana em comparação às
outras províncias. Os templos de deuses protetores das cidades,
cuja identidade comumente resultou de um emaranhamento

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 167


URBANISMO ROMANO NO NORTE DA ÁFRICA

de divindades e/ou forças sagradas berberes, divindades


fenício-púnicas e divindades romanas, possuíam diversas
particularidades: alguns comportavam uma cripta e muitos
possuíam plantas de tradição oriental – um corredor a céu aberto
rodeado por pórticos, ao fim do qual as cellae se organizavam,
muito comumente, em número de três. Este tipo de templo,
como o dedicado a Baal Hammon-Saturno, de Thugga, localizava-
se na periferia das cidades (SLIM et al, 2003, p. 234). É possível
trabalhar uma ligação entre este tipo de templo e os capitólios.

Figura 12 – Capitólio de Thugga

Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/ae/
Capitolio_de_Dougga_2.JPG

***

168 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


MARIA CRISTINA NICOLAU KORMIKIARI

A Arqueologia, com sua análise detalhada da


organização espacial das sociedades, é importante campo para
o aprofundamento do conhecimento. Esperamos, com essas
breves notas, ter conseguido demonstrar a extensão da riqueza
dos detalhes e a força do ser humano diante do imponderável,
da chegada de uma nova ordem, que se impõe, sem dúvida, mas
que também se curva às correntes já existentes.

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172 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


A construção do espaço como estratégia
política: a romanização da paisagem urbana
de Lepcis Magna (sécs. I a.C.-II d.C.)

Belchior Monteiro Lima Neto

Introdução

D
urante boa parte do século XX, o conceito de romanização
foi identificado com uma perspectiva historiográfica
eurocêntrica, vinculada a um grupo de antiquistas
comprometidos, em alguma medida, com o expansionismo
imperialista europeu. Em autores como Haverfield (1906),
Boissier (1901) e Cagnat (1909; 1913), o termo romanização é
compreendido como o processo de aculturação das populações
autóctones, que assumiam os padrões estéticos, a língua e os
valores romanos. Pressupunha-se a existência de um desnível
civilizacional que legava às populações conquistadas pelo
poderio romano uma posição de passividade frente ao que era
considerado culturalmente superior. Romanização, grosso modo,
constituía um processo em que o outro se civilizava na medida
em que se transformava em romano (MENDES, 2007, p. 38-39).
A partir da década de 1970, como consequência dos
movimentos de descolonização, a produção historiográfica tomou
um novo rumo. As pesquisas, destacadamente as de Bénabou
(1978), pautaram-se por temas que valorizavam a resistência dos
povos autóctones ao domínio romano, resgatando e enfatizando
os elementos nativos em contraposição ao precedente conceito

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 173


A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA

de romanização. Contudo, apesar dos avanços advindos com esta


perspectiva, tais estudos não se afastaram de um viés dicotômico,
invertendo, em muitas ocasiões, o enfoque da superioridade
romana pelo da preeminência nativa (MATTINGLY, 2011, p. 59-
60; LIMA NETO, 2016, p. 118).
Nas últimas décadas, influenciados por autores como
Woolf (1998), Huskinson (2000), Revell (2011), Hingley
(2010) e Mattingly (1994; 2011), os investigadores dedicados
à realidade provincial romana começaram a criticar a dicotomia
dos estudos históricos até então em voga, que ora tendiam à
valorização das tradições latinas, ora enfatizavam a resistência
e a beligerância nativa à usurpação estrangeira. Delineou-se,
por conseguinte, uma nova compreensão acerca das relações do
Império Romano com as populações autóctones, atualizando-
se o conceito de romanização como um termo guarda-chuva
que abarca os múltiplos processos de mudança sociocultural,
multifacetados em termos de significados e de mecanismos, que
tiveram início com o relacionamento entre os padrões culturais
greco-romanos e a diversidade provincial (WOOLF, 1998, p. 7).
Tendo em vista as mais recentes orientações historiográficas,
a relação dialógica entre romanos e autóctones foi evidenciada
de inúmeras formas, manifestando-se na adoção do bilinguismo
e do latim como língua franca, na construção de identidades
locais em negociação com a romana e na assimilação de deidades
nativas com divindades greco-romanas. Entretanto, um aspecto
fundamental da vida cotidiana dos indivíduos, raramente lembrado
nas investigações, foi decisivamente influenciado pelo advento
do Império Romano: a cultura material. A reorganização dos
ambientes citadinos, com um novo ordenamento das habitações,
dos edifícios e monumentos públicos, é marca visível nas cidades
provinciais. Elas romanizaram-se e transformaram sua paisagem

174 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO

por meio da construção de novos balizadores urbanos, como


termas, arcos, teatros, anfiteatros, fóruns, cúrias e basílicas.
No tocante ao Norte da África, estas transformações
urbanas, ocorridas em época imperial, são perceptíveis em várias
cidades de origem púnica, númida e líbia, especialmente nas mais
importantes, tais como Cartago, Cirta e Lepcis Magna.1 Nesse
sentido, percebendo a construção do espaço, para além de suas
dimensões físicas e arquitetônicas, como um ato culturalmente
orientado e eivado de significado, que, em alguma medida, oferece
sentido às ações dos indivíduos que nele se movimentam e dele
se apropriam, gostaríamos de evidenciar as modificações urbanas
ocorridas entre os séculos I a.C. e II d.C. no sítio de Lepcis
Magna (BARROS, 2017; NAVARRO, 2007, p. 12-13). Para tanto,
recorreremos às fontes epigráficas e arqueológicas advindas dos
relatórios de escavação realizados na cidade, que nos apresentam
as diferentes etapas do reordenamento de seu espaço urbano,
assim como o aproveitamento político local de sua emergência na
hierarquia cívica imperial (HAYNES, 1956; Inscriptions of Roman
Triopolitania; Iscrizioni Puniche della Tripolitania).2
A documentação arqueológica e epigráfica evidencia-nos
como o processo de romanização da paisagem urbana de Lepcis
Magna foi um fenômeno que esteve intimamente associado
às problemáticas políticas identificadas com a inserção das
aristocracias locais na sociedade romana imperial. Observa-se

1
Utilizaremos o termo Lepcis Magna, sempre que nos referirmos à cidade
à época imperial romana, para a diferenciar de sua homônima localizada
na África Proconsular, na atual Tunísia. A distinção era também feita na
Antiguidade, como atesta a epigrafia local de final do século I, que oferece
a primeira menção ao adjetivo Magna para denominar a cidade (Inscriptions
of Roman Tripolitania, 302, 352).
2
No decorrer do texto, usaremos, como referência aos catálogos de inscrições
epigráficas provenientes da Tripolitânia, as seguintes siglas: para Iscrizioni
Puniche della Tripolitania (IPT), para Inscriptions of Roman Tripolitania (IRT).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 175


A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA

que a transformação espacial e monumental da cidade ocorre


concomitantemente e se alia com a própria ascensão social de
suas mais importantes gentes, que, num intervalo de cerca de dois
séculos, emergem ao ápice das ordens de elite imperiais, tendo,
inclusive, um de seus membros alcançado a posição de princeps.

De emporia a território romano

Lepcis localiza-se na região conhecida na Antiguidade como


Tripolitânia, que compreendia uma ampla extensão territorial,
correspondendo às terras entre a cidade de Tacapae, a leste de
Cartago, e a Cirenaica, a oeste do Egito. Ao Norte, a Tripolitânia
era banhada pelo Mar Mediterrâneo; ao Sul, fazia fronteira com
o deserto do Saara, onde se localizava o limes tripolitanus.3 A
denominação da região advinha da existência de uma tríade de
cidades prósperas, Lepcis, Oea e Sabrata. Tais cidades tinham
sido originalmente colônias fenícias, e sua fundação remonta
ao século VI a.C. Antes de ser agregada ao Império Romano,
no século I a.C., a região era conhecida como Emporia, sendo
um importante entreposto comercial cartaginês com o Egito e o
Oriente (BIRLEY, 1988, p. 1-8).4

3
Tal fronteira não constituía uma linha ininterrupta de separação entre o
mundo romano e o “bárbaro” exterior, mas, ao invés disso, se caracterizava
como uma região de contato entre diferentes culturas. Era formada por uma
linha descontínua de fortes e estradas que dificilmente se poderia interpretar
como um limes de defesa contra as ameaças externas. Correspondia, na
realidade, a uma rede complexa de controle, administração e taxação dos
movimentos dos grupos seminômades que habitavam a região meridional e
que sazonalmente atravessavam a fronteira à procura de pastos que fossem
suficientemente abundantes aos seus rebanhos (CHERRY, 2005, p. 24-74).
4
Cartago foi fundada por colonizadores fenícios vindos da cidade de Tiro
por volta de meados do século IX a.C., tornando-se, entre os séculos VI e II
a.C., a capital de um império marítimo muito poderoso, que criou colônias e

176 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO

A colonização fenícia em Lepcis foi inicialmente uma


resposta à fundação de colônias gregas na Cirenaica, em meados
do século VI a.C.5 Segundo o relato de Heródoto (Historia, 5, 43),
os fenícios, em aliança com tribos líbias locais, genericamente
denominadas de Macae, teriam impedido uma tentativa de
ocupação grega, em 520-517 a.C., no local onde mais tarde se
fundaria a cidade de Lepcis, sendo essa a época provável do
início da ocupação fenícia na Tripolitânia.
Lepcis se desenvolveu como um importante entreposto
comercial, aproveitando-se de sua posição estratégica no
Mediterrâneo ocidental. Por seu porto natural transitavam os
principais produtos comercializados por Cartago com o Egito
e o Oriente. A cidade, ademais, era um importante ponto de
comercialização de toda uma gama de produtos advindos das
caravanas subsaarianas que atravessavam o deserto e aportavam
às margens do Mediterrâneo trazendo marfim, ouro e escravos.
Esses fatores explicariam a prosperidade de Lepcis no período de
domínio cartaginês (HAYNES, 1956, p. 28-30).
Apesar de tal projeção, pouco se sabe acerca da história
da cidade antes da época romana. Não dispomos de dados
seguros sobre a forma como se deu a colonização fenícia nem
tampouco acerca do modo como foi efetuado o contato com as
tribos líbias locais. O que se supõe, a partir do vocábulo líbio
que identifica a cidade – Lepcis advêm do termo Lpqy –, é que a
presença cultural líbia deve ter se mantido forte por todo esse
período,6 contribuindo para a formação de uma cultura híbrida,

entrepostos comerciais na Sicília, na Sardenha, na Espanha e na Tripolitânia


(RAVEN, 1993, p. 17-32).
5
As colônias de Cirene, Apolônia, Tauquira, Hespérides e Balagrae.
6
Ao nos referirmos à cultura líbia, estamos falando da presença de
uma cultura autóctone local, formada por diversas tribos seminômades,
genericamente denominadas de líbias, que habitavam a Tripolitânia.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 177


A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA

denominada pela historiografia, em termos genéricos, como


libiofenícia (BRETT; FENTRESS, 1996; MATTINGLY, 1994, p.
50-51; BIRLEY, 1988, p. 1-8).
O domínio cartaginês em Lepcis começou a arrefecer
com o advento dos conflitos entre Cartago e Roma, a partir
de meados do século III a.C., nos episódios conhecidos como
Guerras Púnicas.7 Como resultado desses conflitos, em 161 a.C.,
a cidade foi anexada como parte do Reino da Numídia, à época
um Estado aliado a Roma, no norte da África. Tal fato aumentou
consideravelmente a prosperidade e a independência das
principais cidades da Tripolitânia, haja vista o fim da submissão
comercial local à metrópole cartaginesa e a distância que separava
a região dos principais centros decisórios do reino númida, tais
como Cirta, Tebessa e Lambessa (MATTINGLY, 1994, p. 50-51).
Pode-se medir o grau de liberdade gozado por Lepcis, no
período de domínio númida, por alguns eventos relacionados à
Guerra de Jugurta (111-109 a.C.),8 conflito que opôs Roma ao Reino
da Numídia. Mesmo submetida aos númidas, Lepcis estabeleceu
um tratado de aliança com Roma. De acordo com Salústio (Bellum

Acerca destes diversos grupos étnicos líbios, ver Brett; Fentress (1996) e
Mattingly (1994, p. 17-50).
7
As Guerras Púnicas consistiram numa série de três guerras que colocaram
Roma em conflito direto com Cartago, cidade-Estado fenícia que dominava
territórios no norte da África, Espanha e Sicília. Entre os anos de 264 a.C.
e 146 a.C., as duas potências se enfrentaram no intuito de conseguirem
para si uma hegemonia duradoura no Mediterrâneo ocidental. Ao fim
das Guerras Púnicas, Cartago capitulou frente às forças romanas e foi
totalmente destruída. Como resultado do conflito, Roma pôde se apoderar
das regiões antes subjugadas pelo poderio cartaginês, o que incluía o norte
da África (RAVEN, 1993, p. 33-48).
8
A Guerra de Jugurta ou Guerra Jugurtina foi um conflito que opôs Roma,
liderada pelo cônsul Quinto Cecílio Metelo, ao Reino da Numídia, governado
por Jugurta. A guerra durou dois anos, iniciando-se em 111 a.C. e se encerrando
com a derrota dos númidas em 109 a.C. (RAVEN, 1993, p. 51-52).

178 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO

Iugurthinum, 77, 1-3), no ano de 111 a.C., uma embaixada composta


por cidadãos de Lepcis negociou secretamente a paz com Roma e
autorizou a instalação de uma guarnição militar na região.
Lepcis foi oficialmente anexada ao Império Romano em
de 46 a.C., como consequência direta do término da guerra civil
(49-46 a.C.) que pôs em lados contrários os partidários de César
e os de Pompeu.9 Nesse conflito, o rei Juba I, soberano do Reino
da Numídia, apoiou militarmente a facção conservadora liderada
por Pompeu, o que proporcionou, após a vitória de César, a
dissolução e a agregação do reino númida e de suas possessões
– entre elas as cidades tripolitanas – ao território diretamente
administrado por Roma. A partir daí, a Africa Proconsularis
ficaria dividida em Africa Vetus – formada pelo antigo território
conquistado aos cartagineses – e Africa Nova – cujas terras
incluíam o antigo Reino da Numídia e a Tripolitânia (RAVEN,
1993, p. 51-52; BIRLEY, 1988, p. 8).
Inicialmente, as principais cidades da Tripolitânia – Lepcis,
Oea e Sabrata – foram integradas ao Império Romano como
civitates libertae, isto é, cidades livres que, mesmo submetidas
ao poder romano, continuavam a ter uma grande margem de
autonomia, com a manutenção de suas leis, suas instituições
e seus costumes locais (Estrabão, Geographia, XVII, 24; FRIJA,
2012, p. 96-103).10 O status de civitas liberta pode ser observado

9
A Guerra Civil Cesariana, também conhecida como Segunda Guerra Civil
da República de Roma, foi um conflito militar ocorrido entre 49 e 46 a.C.
Foi o confronto de Júlio César contra a facção conservadora do Senado,
liderada militarmente por Pompeu. A guerra terminou com a ascensão
definitiva de César como ditador romano (GRIMAL, 1993, p. 27-32).
10
Sobre as civitates libertae no norte da África, afirma Estrabão (Geographia,
XVII, 24): “Algumas cidades são livres, pois estabeleceram aliança de
amizade com Roma, e outras por demonstração de consideração. Há
governantes, tribunos e sacerdotes que vivem em tais cidades [...] de
acordo com seus códigos legais ancestrais”.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 179


A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA

tendo em vista a autorização de emissão de moedas que lhes


foi concedida. A partir do final do século I a.C., cunhou-se um
grande volume de numerário, no qual se exaltava a vinculação das
cidades da Tripolitânia ao Império – com efígies que enalteciam a
figura do imperador e/ou da família imperial –, ao mesmo tempo
que se reforçava a posição independente das civitates frente ao
governo central, enfatizando-se o nome da cidade – escrito
em alfabeto púnico – responsável pela emissão das moedas
(Numismatique de L’Ancienne Afrique, 1-64).
O domínio romano sobre a Tripolitânia, como regra geral
para a maioria das regiões do orbis Romanorum, se baseava em
um bem consolidado relacionamento entre o governo central,
com sede em Roma, e as diversas elites citadinas locais. O pilar
de sustentação do Império Romano era constituído mediante
uma rede de alianças entre um centro acumulador de riqueza e
de poder e uma aristocracia municipal periférica enriquecida,
que se perpetuava em seus privilégios e status por meio das
benesses imperiais.
Roma mantinha com as diversas civitates que integravam
o seu imperium uma relação de poder de tipo patronal, que
se exprimia numa variedade de estatutos político-jurídicos
concedidos às cidades.11 Tal sistema de concessões regulava as
relações entre o centro governante e sua periferia, perpetuando
um forte mecanismo de regulação social por meio de seu teor
altamente promocional, fator determinante para o equilíbrio
social no Império e que compensava, de certa forma, as

11
O Imperium Romanum designava não só o espaço no interior do qual
Roma exercia o seu poder, como este mesmo poder. A palavra imperium
representava a força transcendente, simultaneamente criativa e reguladora,
capaz de agir sobre o mundo, de submetê-lo à sua vontade. A etimologia da
palavra continha a ideia de ordenação, de preparativos feitos em vista de um
fim, concebidos pelo espírito de quem comanda (GRIMAL, 1993, p. 9-12).

180 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO

insuficiências das estruturas administrativas do sistema político


imperial (MENDES, 2007, p. 36-37).
Em suma, o Estado romano mantinha a cooperação e
a lealdade das elites locais por intermédio de concessões de
diferentes status de cidadania às civitates e às suas aristocracias
citadinas. De acordo com a dinâmica política do sistema imperial,
a cidadania foi um instrumento poderoso para contrabalançar e
compensar as obrigações deixadas a cargo das elites municipais,
responsáveis pela manutenção das cidades – por meio do
evergetismo – e pelas prestações dos encargos fiscais devidos ao
governo central.12
As civitates, grosso modo, poderiam ser diferenciadas em
quatro categorias fundamentais, que expressariam os níveis
de hierarquia e de relacionamento da elite local com o poder
central: oppidum stipendiarium, municipium Latinum, municipium
civium Romanorum e colonia.13
Os oppida stipendiaria seriam civitates regidas por suas
próprias leis nativas, por isso também chamadas de cidades

12
O termo evergetismo refere-se às obrigações que os membros das ordens
mais abastadas das cidades tinham em relação às suas civitates. Esses notáveis
é que organizavam os espetáculos e os banquetes coletivos, é que construíam
os prédios públicos, é que contribuíam com recursos próprios para o
abastecimento do erário citadino. Em troca, garantiam para si os benefícios
e as honrarias de serem os patronos da cidade (VEYNE, 1994, p. 114-117).
13
Entre o final do segundo e o início do terceiro século havia na Tripolitânia,
segundo dados retirados de duas fontes valiosas para o conhecimento das
regiões provinciais do Império, o Itinerarium Antonini e a Tabula Peutingeriana,
quatro cidades que ostentavam o status de colônia romana: Tacapae, Lepcis
Magna, Sabrata e Oea. Somavam-se a elas mais seis cidades com o título de
municipium Latinum: Telmine, Gigthis, Zitha, Pisidia, Thubactis e Digdida.
Também podem ser citadas mais uma dezena de pequenas civitates, cujo
status é pouco conhecido, mas que provavelmente se caracterizavam como
oppida stipendiaria, tais como Cidamus, Sugolin, Sutututttu, Mesphe, entre
outras (MATTINGLY, 1994, p. 139).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 181


A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA

peregrinas ou estrangeiras. Nessa categoria ainda poderiam


ser incluídas as civitates libertae, como fora Lepcis no decorrer
do século I. Os habitantes dessas cidades não tinham direito à
cidadania romana, estando, além disso, sujeitos a uma tributação
exercida pelo governo central. Em termos hierárquicos, tais
civitates se localizavam no nível mais baixo de relacionamento
frente ao poder imperial (MENDES, 2007, p. 37).
O municipium civium Romanorum e o municipium Latinum eram
cidades cujos magistrados recebiam, respectivamente, o ius civitatis
Romanae – cidadania romana completa, com direitos políticos – e
o ius Latii – que dava acesso ao ius connubii, direito de constituir
família romana no sentido estrito, e ao ius commercium, direito de
possuir bens. Mesmo com a concessão da cidadania romana a uma
parte da elite citadina local, essas cidades mantinham as suas leis
e os seus costumes tradicionais, com órgãos judiciais próprios e
autonomia perante o governo provincial.
As colônias romanas eram normalmente de dois tipos: havia
as fundações novas, cidades formadas tendo como modelo Roma,
muitas vezes constituídas por uma população de imigrantes e/ou
soldados veteranos oriundos da Península Itálica; havia também
as cidades já existentes antes do domínio romano, às quais era
concedido o status de colônia após galgarem as etapas necessárias
na hierarquia imperial. Os habitantes de tais colônias recebiam a
cidadania romana plena e sua administração reproduzia as bases
da organização institucional de Roma, com um conselho local
(curia), dois magistrados superiores colegiados (duumviri) e os
correspondentes colégios sacerdotais (pontífices e flâmines).
As etapas da hierarquia urbana – de cidade peregrina a
colônia – foram trilhadas por Lepcis Magna entre os séculos I a.C.
e II d.C. Em termos gerais, as transformações de seu sítio urbano,
com a edificação de monumentos típicos das civitates romanas,
foram fundamentais para que a cidade alcançasse status superiores

182 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO

nas honrarias cívicas, aproximando sua aristocracia citadina de


um modus vivendi imperial.14 Este fenômeno, em grande medida,
é tributário do próprio enriquecimento de suas elites, que se
beneficiaram economicamente da abertura de novos mercados
à produção do azeite local, possibilitando-lhes custear a ereção
de edificações fulcrais em sua estratégia política de inserção na
sociedade romana imperial (MATTINGLY, 1994, p. 138-144).

As transformações na paisagem urbana de Lepcis Magna

A primeira inscrição latina encontrada em Lepcis Magna


remonta ao ano 8 a.C. e celebra a remodelação de seu antigo
mercado, transformado em um macellum romano equipado
com dois quiosques centrais (n. 5, do Mapa 1) (IRT, 319).15 O
edifício foi erigido em honra de Otávio Augusto e do procônsul
da África, Crassus Frugi, sendo a dedicatória a importantes
personagens um estratagema comumente utilizado pelas elites
provinciais, conquistando, por meio deste expediente, a simpatia
de patronos essenciais no processo de elevação do status cívico

14
Utilizamos o termo modus vivendi imperial em consonância com a
perspectiva delineada por Janet Huskinson (2000), que observa a existência,
entre os séculos I a.C. e II d.C., de um common ground de elementos culturais
compartilhados pelas diversas elites que compunha o Império Romano,
como o domínio do latim e/ou do grego, a educação nos moldes da paideia
greco-romana, a posse da cidadania romana, a participação nos cargos
e ritos públicos, o gozo das benesses urbanas nos teatros, anfiteatros e
termas. Tais elementos, que comporiam uma espécie de cultura imperial,
em sentido lato, eram diversamente experimentados, assimilados e
apropriados nas diferentes regiões do Império.
15
Poucos são os dados arqueológicos descobertos acerca da Lepcis púnica.
Além do mercado e do fórum, que provavelmente foram remodelados em
época romana, há a existência de um antigo cemitério, remetendo ao século
VI a.C., encontrado sob o teatro citadino (MATTINGLY, 1994, p. 117-119).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 183


A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA

de suas cidades.16 A obra foi custeada por Annobal Tapapius Rufus,


no período em que Muttun, filho de Anno, era sufeta – isto é, a
mais importante magistratura púnica – e Iddibal, filho de Arish, e
Bodmelqart, filho de Annobal, eram flamines.
À época, Lepcis Magna era uma cidade peregrina, gozando
do status de civitas liberta, o que pode ser observado pela presença
de sufetas, pela nomeação púnica de seus mais eminentes
cidadãos – Annobal, Muttun, Anno, Iddibal, Arish, Bodmelqart –,
assim como pela inscrição latina possuir uma versão neopúnica,
demonstrando que o latim era um idioma ainda não dominado
por grande parte da população.17 Percebe-se, contudo, uma
embrionária tentativa da aristocracia local de apropriação de
elementos romanos, verificada na própria construção de um
macellum, mas também na latinização da alcunha gentílica e
do cognome de Annobal, como Tapapius Rufus, e na existência
na cidade de flamines ocupados com o culto imperial, meio
privilegiado de exibir fidelidade ao imperador e ao Estado
romano, com a celebração de ritos em honra do gênio da família
reinante (MENDES; OTERO, 2005, p. 205-206).
Também fora Annobal Tapapius Rufus o responsável pela
construção do teatro citadino, novamente dedicado a Otávio
Augusto em uma inscrição bilíngue (IRT, 321, 322, 323; Iscrizioni

16
O procônsul da África Proconsular era a mais alta autoridade judiciária
da província, sendo o juiz supremo nas ações criminais e civis. Ele se
caracterizava como um funcionário de posição elevada, escolhido entre os
dois mais antigos ex-cônsules de Roma. Ao procônsul eram concedidos
poderes para supervisionar as autoridades municipais, recolher o imposto
devido ao fisco imperial e comandar a III Legião Augusta, destacamento
do exército responsável pela manutenção da ordem pública e da paz nas
regiões fronteiriças da África Proconsular (MAHJOUBI, 1985, p. 506-507).
17
A transcrição neopúnica da epigrafia latina do mercado de Lepcis Magna
é encontrada somente no quiosque ocidental do edifício (QUINN, 2010, p.
53; Iscrizioni Puniche della Tripolitania, 21).

184 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO

Puniche della Tripolitania, 24).18 A ereção do edifício pode ser datada


para o ano 1, no período em que Annobal ocupava a magistratura
de sufeta e de flamine, exibindo, ademais, os epítetos de ornator
patriae e amator concordiae, provavelmente a transcrição latina de
honrarias púnicas tradicionais (BIRLEY, 1988, p. 9).19 Outro
evergeta local de destaque no início do século I é Iddibal Caphada
Aemilius, que, em 11, custeou a construção do calchidicum
– espécie de mercado ornado com colunatas – e das vias que
lhe davam acesso (n. 2, Mapa 1) (IRT, 324). Como Annobal,
Iddibal também fez uso da estratégia política de tradução de seu
cognome familiar, latinizando Himili como Aemilius, fato que
demonstra uma tentativa de aproximação de seu ramo gentílico
a uma identidade romana (QUINN, 2010, p. 56).
Como se pode perceber no Mapa 1 (n. 5, 2), o teatro, o
mercado e o calchidicum caracterizavam-se como um espaço
monumental de comércio e de entretenimento em Lepcis
Magna, erigido em menos de duas décadas às expensas de uma
aristocracia ávida por inserção na sociedade romana, constatação
corroborada pela dedicação de tais prédios públicos a principes
e procônsules, pela latinização dos nomes das mais eminentes
famílias locais e pela prática ritual do culto imperial. Este
centro econômico e de sociabilidade conectava-se, por meio de
um decumanus maximus pavimentado pelo procônsul Rubellius
Blandus, em 35 (IRT, 330, 331), com o fórum, a basílica, a cúria
e os templos na região costeira (respectivamente n. 10, 12,
11, 8, 9, Mapa 1), área que se constituía no principal núcleo

18
Além da construção do teatro de Lepcis Magna em honra de Otávio
Augusto, há também no edifício a dedicatória de uma estátua ao imperador,
feita pelos Fulvii (IRT, 320, 328).
19
Em 36, o teatro ainda recebeu a inclusão de um pequeno santuário no
topo de sua cávea, dedicado a Ceres Augusta por Suphunibal, esposa de
Annobal Ruso, provavelmente com algum grau de parentesco com Annobal
Tapapius Rufus (IRT, 269).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 185


A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA

administrativo, político e religioso de Lepcis Magna até o início


do século III.

Mapa 1 – Principais marcos monumentais de Lepcis Magna

Fonte: Loyola University Chicago Digital Special Collections.


Acessado em: 30 jul. 2019. Disponível em: <http://www.lib.luc.edu/
specialcollections/items/show/757>

Infelizmente, os dados epigráficos e arqueológicos


referentes à região que circunda o antigo fórum possuem lacunas
insolúveis, não sendo de fácil datação. Para Haynes (1956, p.
84-85), a cronologia de fundação destes edifícios pode ser
estipulada para o início do século I, em analogia com o período
em que outras áreas da cidade, a exemplo do mercado, do teatro
e do calchidicum, eram remodeladas ou criadas às expensas da

186 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO

elite local. Sabe-se, entretanto, que, em 53, em honra de Tibério


e do procônsul Marcus Pompeius Silvanus, Gaius, filho de Anno
Macer, mandou prover o fórum de Lepcis Magna de colunas e
pavimento novos (IRT, 338). Neste espaço monumental também
se destacam o templo dedicado a Roma e Augusto (n. 9, Mapa 1),
provavelmente onde os flamines executavam os ritos relacionados
ao culto imperial, e o dedicado ao deus Líber Pater (n. 8, Mapa
1), interpretatio da tradicional divindade púnica protetora de
Lepcis Magna, Shadrapa (IPT, 22; IRT, 275). Como argumenta
Quinn (2010, p. 56-58), a localização de tais templos, no centro
administrativo, político e religioso da cidade e um ao lado do
outro, é significativo e nos sugere que a romanização de Lepcis
Magna tem que ser observada como um processo multifacetado,
em que uma nova identificação romana não obliterava a
tradicional vinculação ancestral.
Corroborando o caráter multifacetado da romanização
de Lepcis Magna, pode-se também elencar os dados funerários
relativos à cidade, nos quais percebe-se a manutenção de
tradicionais cerimônias púnicas em hipogeus que reuniam
centenas de mortos, cremados em vasos fúnebres individuais.
Tal ritual, de acordo com Fontana (2001, p. 169), associava-se
às reminiscências da organização clânica das principais gentes
locais, chegando alguns hipogeus a reunir os restos mortais de
até 136 pessoas. Outra evidência incontestável da importância
da identidade ancestral em Lepcis Magna é a descoberta, em
tumbas de meados do século II, de inscrições epigráficas que
ressaltam agnomes autóctones para designar a filiação de
eminentes cidadãos romanos da cidade, a exemplo de Quintus
Domitius Camillus Nysim (IRT, 692), Quintus Caecilius Ceriallis
Phischon (IRT, 673), Gaius Calpurnius Tracachalus Dosiedes (IRT,
677) e Gaius Marius Boccius Zurgen (IRT, 729).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 187


A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA

A despeito da força da herança púnica em Lepcis Magna,


percebe-se, por intermédio de sua nova organização espacial
e monumental, um processo inequívoco de romanização. As
elites locais, dentro de sua estratégia política de inserção na
sociedade romana, supervisionaram uma série de construções e
remodelaram a feição da paisagem urbana da cidade, dotando-a
de marcadores arquitetônicos que a identificavam com o centro
do poder imperial. A partir do final do século I a.C., a então
civitas liberta foi paulatinamente transformada, com a ereção
do mercado, teatro, calchidicum, decumani, cardi, fórum, cúria,
basílica e templos. Como consequência, em grande medida,
deste reordenamento espacial, em 77, Lepcis Magna ascende
à categoria de município, como comprova a seguinte inscrição
epigráfica que menciona o procônsul da África e seu legado
como patroni municipii:

Ao imperador César Vespasiano Augusto, sumo sacerdote,


detentor do poder tribunício pela [nona vez, aclamado vitorioso]
dezenove vezes, pai da pátria, cônsul oito vezes, (e) Tito César
Vespasiano, filho do Augusto, sacerdote, [vencedor aclamado
? vezes], cônsul [seis vezes]; Caius Paccius Africanus, pontifex,
[consul], procônsul da África, patrono, [mediante] Cnaeus Domitius
Ponticus, pretor, legado com poder propretoriano, patrono do
município, dedicada (IRT, 342).

Como explicitado acima na inscrição epigráfica, há uma


relação direta entre a elevação de Lepcis Magna dentro do
status cívico imperial e a consecução de distintos patronos. Vê-
se, desde o final do século I a.C., a execução de uma estratégia
política de aproximação da cidade e de seus cidadãos de
eminentes personagens da sociedade romana, com destaque para
os governadores da província da África Proconsular, bastante
atuantes como beneméritos de inúmeras obras públicas. Pode-se,

188 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO

neste caso, elencar os exemplos de Rubellius Blandus, procônsul


que proveu, em 35, a pavimentação do decumanus maximus, e de
Servius Cornelius Orfitus, que financiou, em 62, a construção dos
pórticos e da colunata do porto citadino (n. 20, Mapa 1) (IRT,
341, 330, 331). As diversas menções a procônsules e legados
imperiais nas dedicatórias das edificações públicas celebram
a aliança da aristocracia local com importantes indivíduos da
ordem senatorial e equestre, denominados nas inscrições como
patroni de Lepcis Magna, tais como Crassus Frugi, Caninius Gallus,
Rubellius Blandus, Servius Cornelius Orfitus, entre outros (IRT, 273,
329, 269, 321, 330, 341, 330).
A emergência de Lepcis Magna ao status de municipium
– não se sabe se romanorum ou latinum – ocorre, além disso,
concomitantemente a um aprofundamento da latinização dos
nomes próprios da aristocracia local. Em 72, na inscrição que
marca a edificação de um pequeno templo de Magna Mater no
fórum, observa-se a última aparição de nomes púnicos associados
a eminentes indivíduos, como os de Iddibal, filho de Balsillac,
neto de Annobal, bisneto de Asmun, que custeou a construção do
edifício (IRT, 300). Em poucos anos, os Annobals, Iddibals e Himilis
desapareceram da epigrafia, dando lugar aos Claudii, Flavii e Marcii
(BIRLEY, 1988, p. 17). A partir de então, o sistema romano de tria
nomina já estava plenamente estabelecido, indicando a proliferação
da cidadania romana entre os membros da elite citadina. Tal
fato pode ser averiguado, em 92, numa inscrição encontrada na
orchestra do teatro (IRT, 347), que sentencia que “Tiberius Claudius
Sestius, da tribo romana Quirina, flamen [...], sufeta, [...] foi o
primeiro [cidadão] a quem a cúria e o povo deram permissão para
usar uma ampla faixa roxa em todos os momentos, por causa de
seus méritos e de seus antepassados”.
A extensão da concessão da cidadania romana aos
membros da aristocracia local, a consecução de distintos patroni,

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 189


A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA

influentes na corte imperial, e a romanização de sua paisagem


urbana provavelmente habilitaram Lepcis Magna a rapidamente
ascender a status superiores na hierarquia cívica imperial. Esse
projeto político, encabeçado pelas elites citadinas e manifestado
na reorganização espacial e monumental de Lepcis Magna,
é coroado com a sua elevação à categoria de colônia romana,
dignidade que concedia à cidade a honra de ser a extensão
territorial da própria Roma. A mudança de estatuto é celebrada
na construção do Arco do Triunfo dedicado a Trajano, em 110
(n. 3, Mapa 1), onde primeiro se explicita seu novo epíteto de
Colonia Ulpia Traiana Fidelis Lepcis (IRT, 353, 523, 537).
Os arcos do triunfo construídos em diversas partes do
Império, utilizando-se da palavra (por meio de inscrições
epigráficas) e da imagem (como elementos arquitetônicos
monumentais de destaque na paisagem urbana), eram
testemunhos emblemáticos da aliança das civitates com Roma,
localizando-se, na maioria das vezes, na área central das urbes.
No caso de Lepcis Magna, a ereção do Arco do Triunfo em
honra de Trajano se fixava em pleno decumanus maximus, na via
que integrava os principais monumentos públicos da cidade,
sendo construído com o consenso do “populus et ordo [decuriorum]
coloniae” (IRT, 353; GONÇALVES, 2005, p. 61).
Após a concessão do status de colônia romana, a aristocracia
de Lepcis Magna não conteve o ímpeto construtor. No ano de 120,
observa-se a ereção das Termas de Adriano (n. 19, do Mapa 1),
obra que dá início a um novo eixo viário na cidade, ligando a seção
sul do centro monumental de comércio e de entretenimento,
representado pelo teatro, mercado e calchidicum, ao porto
citadino. O edifício foi custeado por Quintus Servilius Candidus,
que na oportunidade também afirma que ordenara a construção
de um aqueduto para suprir as necessidades de abastecimento
de água da cidade (IRT, 361, 357, 358, 359). Candidus, ademais,

190 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO

é um bom exemplo de como o processo de romanização de


Lepcis Magna é plural e multifacetado, expressando formas
locais de apropriação e de inserção na sociedade imperial, que,
na maioria das vezes, não obliteravam uma identidade ancestral.
Vê-se, por conseguinte, que, ao mesmo tempo em que ele se
vangloriava como evergeta das termas e do aqueduto de uma
renomada colônia romana, exibia publicamente epítetos púnicos
tradicionais, como amator patriae, amator civium e amator concordiae,
numa inscrição votiva encontrada no templo de Líber Pater (n. 8,
do Mapa 1), interpretatio de Shadrapa, isto é, a antiga divindade
protetora de Lepcis Magna (IRT, 275).20
A região onde foram erigidas as Termas de Adriano
recebeu, em época severiana, a partir de fins do século II,
uma série de intervenções destinadas à construção de um
novo fórum e basílica, de uma palestra anexa às termas e de
um Nymphaeum, assim como a consecução de uma via das
colunatas que se conectava ao porto (n. 13, 14, 15, 17, 18, Mapa
1; Mapa 2). Foi, em última instância, o programa de ereção
de monumentos públicos patrocinado pela casa imperial que
proporcionou a concessão da dignidade de ius italicum a Lepcis
Magna, o que corrobora diretamente nossas conjecturas acerca
das mudanças de status jurídico da cidade caminharem pari passu
com as estratégias políticas da aristocracia local. Possuir o ius
italicum representava para Lepcis Magna, à época cidade natal
do Princeps, o privilégio de possuir a isenção de qualquer taxa
cobrada sobre os rendimentos da cidade e a igualava às urbes da
Península Itálica (MATTINGLY, 1994, p. 54).

20
No tocante às Termas construídas às expensas de Quintus Servilius Candidus,
também foi descoberta uma inscrição que se utilizava do alfabeto latino
para expressar o idioma púnico. Num determinado azulejo das termas está
escrito a seguinte frase: felioth iadem sy-Rogate ymmanai, traduzido por Levi
Della Vida (1927, p. 108) como “feito nas oficinas de Rogate Ymmannai”.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 191


A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA

Mapa 2 – Fórum, basílica e via das colunatas do período


Severiano

Fonte: Mattingly (1994, p. 121)

A transformação da paisagem urbana de Lepcis


Magna, ocorrida no decorrer dos séculos I a.C. e I e II d.C.,
é tributária da riqueza de sua aristocracia, beneficiada com a
venda do azeite local aos mercados das diferentes regiões do
Império Romano.21 Analisando o corpus epigráfico encontrado
na cidade, Mattingly (1994, p. 120) e Duncan-Jones (1963)
demonstram os elevados gastos patrocinados pela elite citadina
nas construções dos monumentos públicos e nas doações

21
O azeite era produto vital no Mundo Antigo, utilizado na alimentação,
como combustível e base para a fabricação de numerosos medicamentos,
perfumes e cosméticos. Segundo dados apresentados por David Mattingly
(1994, p. 138-140), no interior da Tripolitânia existiam inúmeras
propriedades agrícolas aprovisionadas com todo tipo de equipamentos
imprescindíveis à fabricação do azeite de oliva, sendo tais propriedades as
responsáveis pelo enriquecimento das elites citadinas regionais.

192 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO

oferecidas aos seus concidadãos. Observa-se, por exemplo, que


a edificação do templo de Magna Mater no fórum consumiu
a soma de 200.000 sestércios. A do Arco de Marco Aurélio,
construído em 174, mais 120.000, 272.000 foram despendidos
na ereção de um santuário ao deus Apolo, assim como cerca
de 1 milhão de sestércios foram gastos com a doação de 16
estátuas de deuses e imperadores à cidade.
A fortuna da aristocracia de Lepcis Magna a habilitava,
ademais, a requerer sua ascensão às ordens de elite romanas,22
fenômeno verificado principalmente após a emergência da
cidade à categoria de colônia.23 Em vista dos gastos despendidos
em Lepcis Magna por suas mais distintas gentes, o censo equestre
e o senatorial, respectivamente de 400.000 e 1 milhão de
sestércios, não deveriam ser empecilhos. Contudo, o princeps era
o único apto a admitir novos membros às ordens superiores,
daí a imprescindível consecução do patronato de personagens
importantes da sociedade imperial e com acesso privilegiado à
corte, fato que reforça nossa apreensão da existência de uma
homologia entre a transformação da paisagem urbana de Lepcis
Magna, constituída por uma série de monumentos dedicados a
eminentes patroni, especialmente procônsules, e as estratégias
de ascensão social de sua elite citadina (ALFÖLDY, 1996, p. 152-
153; ÁLVAREZ MELERO, 2013, p. 415).
A promoção social das elites de Lepcis Magna é bem
exemplificada na emergência dos Septimii ao ordo senatorius. Como
estabelece Birley (1988, p. 18), baseando-se em informações

22
Grosso modo, havia três ordens de elite na sociedade romana alto-imperial,
hierarquicamente representada pelo ordo senatorius, equester e decuriorum,
sendo este último destinado aos membros da aristocracia das cidades
provinciais (SALLER, 2008, p. 817-818).
23
Acerca da elevação das elites norte-africanas às ordens equestre e senatorial,
ver Salcedo de Prado (2012; 2013), Corbier (2005) e Birley (1988).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 193


A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA

retiradas de Historia Augusta (Sev., 1, 1), Septímio Severo possuía


laços de parentesco inequívocos com os Macer (Figura 1), família
de origem púnica que esteve deste o final do século I a.C. associada
ao projeto político de transformação da paisagem urbana de
Lepcis Magna, expediente utilizado como estratagema de inserção
das elites locais na sociedade romana imperial. Não por acaso,
Anno (Macer) é mencionado tanto na dedicatória da construção
do macellum, em 8 a.C., quanto na reforma das colunatas e na
pavimentação do fórum, obras levadas a cabo às expensas de seu
filho Gaius (Phelyssam), em 54 (IRT, 338, 319, 615).

Figura 1 – Árvore genealógica dos Septimii em Lepcis Magna

Fonte: Birley (1988, p. 216-217)

Não sabemos, ao certo, como se deu o processo de


mudança da denominação gentílica Macer, latinizando-se como
Septimii (Figura 1).24 As inscrições epigráficas de Lepcis Magna

24
Havia dois principais modos de latinização dos nomes de origem púnica
na região da Tripolitânia: um ao acaso, adotando-se nomes relacionados

194 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO

rememoram a primeira menção a um Septimii em 138, quando


Caius Claudius Septimius Aper ofereceu aos seus concidadãos
uma estátua de Cupido, localizada no calchidicum e dedicada em
hora de Antonino Pio (IRT, 316). Vê-se, aqui, uma estratégia
comum na aristocracia local, a de buscar uma aproximação com
importantes beneméritos. Em outra inscrição, esta mais tardia,
de 202, observa-se que Lucius Septimius Severus, avô homônimo
do princeps, fora sufeta, duumvir, flâmine perpétuo e um dos
primeiros cidadãos romanos da cidade (IRT, 412). É provável
que ele tenha atuado ativamente na própria elevação do status
citadino de Lepcis Magna, uma vez que exerceu, em diferentes
momentos de sua carreira política, a função de sufeta e de duumvir
– principal magistratura cívica de uma colônia romana. Além
disso, como flâmine perpétuo e responsável pelo culto imperial,
Septimius Severus possivelmente estabeleceu redes de aliança com
personagens chave, tais como procônsules e legados imperiais,
representantes do imperador e do Estado romano nas províncias.
Pode-se, por conseguinte, conjecturar que as relações de amicitia
construídas pelos Septimii provavelmente foram fundamentais
na ascensão de membros da gens ao ordo senatorius.25
Sabe-se, por intermédio da Historia Augusta (Sev., 1, 2),
que os Septimii alcançaram o status senatorial em 153, quando P.
Septimius Aper é eleito para o consulado, sendo seguido por seu

aos imperadores reinantes ou de importantes patronos da cidade; o outro a


partir de uma tentativa de tradução dos nomes antigos para similares latinos,
usando-se associações etimológicas ou fonéticas (MATTINGLY, 1994, p. 58).
25
O termo amicus designava, na sociedade romana imperial, a relação de
“amizade” entre indivíduos das ordens superiores, mas nem sempre com
posições sociais equivalentes. A amicitia, em muitas ocasiões, se encaixava
numa relação protegido/patrono, assim como definido por Saller (1989,
p. 61): “um homem sob os cuidados e a proteção de uma pessoa influente
(um patrocinador, instrutor ou patrono), que promoveria a sua carreira”,
isto é, sua ascensão social.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 195


A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA

irmão, C. Septimius Severus, em 160 (Figura 1). O próprio cursus


honorum de Publius Septimius Geta, irmão de Septímio Severo,
demonstra a importância da família na sociedade romana de
fins do século II, uma vez que ele é mencionado numa inscrição
epigráfica encontrada no teatro de Lepcis Magna e datada para
o ano de 195 como tribuno senatorial da II Legião Augusta,
propretor na Lusitânia e procônsul na Sicília (IRT, 541).
A ascensão dos Septimii representa bem a estratégia
política executada pela elite citadina de Lepcis Magna. Na
percepção da inevitável dominação romana sobre a cidade,
a aristocracia local empreendeu, a partir de finais do século I
a.C., um estratagema de admissão na sociedade imperial. Sem
obliterar sua ancestralidade púnica, buscou-se, paulatinamente,
apropriar-se de um modus vivendi romano como forma de
ascender às ordens de elite. Neste processo, no qual se verificou
a emergência do status cívico de Lepcis Magna, de civitas liberta
a colônia, teve importância fulcral sua reordenação segundo
padrões urbanísticos greco-romanos, ou seja, sua paisagem
citadina foi remodelada por novos marcadores arquitetônicos
monumentais identificados com o Império Romano, a exemplo
da edificação, às expensas das mais eminentes gentes da cidade,
do macellum, do teatro, do calchidicum, do fórum, da basílica, da
cúria, dos templos, das termas, do aqueduto, dos arcos e da
via das colunatas conectando o centro monumental de época
severiana ao porto. Tal fenômeno demonstra-nos que não se deve
desvincular o processo de romanização ocorrido em Lepcis Magna
da própria reconstrução de seu espaço urbano como estratégia
política da elite local, evidência que coloca em primeiro plano
os estudos relativos à cultura material como meio privilegiado
de compreender a agência política dos provinciais no intuito
de se inserirem, de acordo com seus interesses e intenções, na
sociedade romana imperial.

196 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO

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200 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


O platô de Dafne na Antiguidade Tardia:
os usos do espaço e a relação com a asty de
Antioquia de Orontes

Érica Cristhyane Morais da Silva

Introdução

D
afne é conhecida como o célebre subúrbio de uma dentre
as mais famosas cidades do Mundo Antigo – Antioquia
de Orontes, metrópole da Síria antiga –, mas foram
raras as vezes em que a história daquele platô foi tratada por sua
própria posição na história das cidades e dos territórios romanos
na Antiguidade Tardia.1 A história de Dafne é sempre relacionada
à asty de Antioquia, dando a esta última mais destaque e
proeminência em termos de importância. Por vezes, esquecemos
que isso não foi sempre assim. Glanville Downey (1951, p.
19) destaca: na “Antiguidade, o subúrbio Dafne era tão famoso

1
Encontramos poucas referências que tratam, particularmente, do subúrbio.
Entre as referências, podemos mencionar o artigo de Pierre Bazantay
(1933), intitulado Um petit pays alaouite: le plateau de Daphne; o capítulo The
Plateau of Daphne, de Donald Wilber (1938), que integra os relatórios de
escavação das campanhas realizadas em Antioquia e suas vizinhanças; o
artigo Daphne of Antioch, de William Francis Ainsworth (1844); um breve
verbete no Oxford Classical Dictionary intitulado Daphne, a park near Antioch,
de Arnold Hugh Martin Jones e Antony Spawforth (1946); outro verbete
intitulado Daphne-by-Antioch, de Anna Collar e Oliver Nicholson (2018),
em The Oxford Dictionary of Late Antiquity. Excetuando essas publicações que
tratam, especificamente de Dafne, as referências ao subúrbio são incluídas
sempre em obras que tratam da cidade de Antioquia de Orontes.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 201


O PLATÔ DE DAFNE NA ANTIGUIDADE TARDIA

quanto Antioquia e a cidade era, por vezes, chamada “Antioquia


de Dafne”. Esta proposta de reflexão deve muito à retomada do
debate iniciado pela realização de um colóquio dedicado à história
de Dafne, intitulado Daphné, faubourg d’Antioche sur l’Oronte,
ocorrido em 2011, na Universidade Jean Moulin, em Lyon, e
organizado pelas especialistas Bernadette Cabouret e Catherine
Saliou. O que este colóquio nos levou a perceber é que ainda
há muito o que compreendermos sobre a história do platô de
Dafne. Logo, neste capítulo, buscaremos refletir sobre a história
deste platô a partir do olhar do território e dos usos do espaço de
Dafne, para, em seguida, compreender a relação construída com
o centro urbano de Antioquia. Recorreremos à documentação
de cultura material e escrita, em particular a borda topográfica
do mosaico de Yakto e os escritos de Libânio, à luz da produção
historiográfica recente e dos relatórios de escavação.

O platô de Dafne entre a História e a Arqueologia

Dafne, em sua “encarnação moderna Harbiye”, é uma


cidade em seu direito, embora, no contexto do Mundo Antigo,
tenha sido legada à condição de subúrbio de Antioquia (DE
GIORGI, 2016, p. 150-162; DOWNEY, 1961, p. 15-17). Dafne
emergiu em sincronia com a asty de Antioquia e se localiza num
platô, em um nível mais elevado que esta última, que permite
àquela uma visão, de cima, do rio Orontes (DOWNEY, 1961,
p. 15; DE GIORGI, 2016, p. 151). Em tempos remotos, Dafne
era tão famosa quanto Antioquia, sendo esta última reconhecida
sob o epíteto “Antioquia de Dafne” (DOWNEY, 1961, p. 15).
Contudo, autores antigos reforçaram a imagem de Dafne como,
reconhecidamente, τὴν πρὸς Ἀντιόχειαν Δάφνην (Josephus, De Bello
Iudaico, I, 12, 5), um προάστειον (Dio Cassius, Historiae Romanae,

202 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA

LI, 7, 6), ou ainda como Antiochiae suburbanum (Ammianus


Marcellinus, Res Gestae, XIX, 12, 19).2
Os vínculos que unem Dafne a Antioquia estão
relacionados ao suprimento de água, à importância religiosa,
um lugar onde havia espetáculos e divertimentos, já que havia
proximidade entre as duas regiões que distam apenas, mais ou
menos, 6 km (DOWNEY, 1961, p. 15-16; DE GIORGI, 2016,
p. 151). Pela riqueza topográfica da área e em razão das férteis
fontes de água de Dafne, Seleuco decide fundar sua cidade
em Antioquia, porque o platô de Dafne era muito pequeno
para abrigar uma cidade, sendo este elevado em forma de um
retângulo com medidas aproximadas de 1,7 km em seu lado
mais largo e 1,3 km no mais curto (DOWNEY, 1961, p. 16; DE
GIORGI, 2016, p. 151). E, assim, embora Antioquia seja mais
reconhecida, relegando Dafne à condição de subúrbio, a história
desta pequena área urbano-rural merece uma atenção própria e
particular por parte de historiadores e arqueólogos.
Na historiografia, a cidade de Dafne é sempre relegada a
um comentário, um apêndice ou uma breve exposição. A história
de Antioquia é central e a história de Dafne sua subsidiária. Os
temas mais explorados se referem ora às fontes de água, ao
suprimento de água para Antioquia (WILBER, 1938, p. 49-56;
DOWNEY, 1951; BENJELLOUN et al., 2015), ora ao teatro e
aos festivais aí realizados (CHOWEN, 1956, p. 275-277). Uma
atenção especial é dada ao templo, ao oráculo e ao culto de Apolo
(CABOURET, 1997). Localizado em Dafne, o famoso santuário
ganha destaque na historiografia, que apresenta temas acerca
dos conflitos entre cristãos e pagãos em Antioquia (STENGER,
2018, p. 193-220; SILVA; SILVA, 2016, p. 193-224; TODT,

2
N.T.: As expressões mencionadas em texto podem ser traduzidas,
respectivamente, por: “Dafne, próxima a Antioquia” (Flávio Josefo);
“subúrbio” (Dio Cássio) e “subúrbio de Antioquia” (Amiano Marcelino).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 203


O PLATÔ DE DAFNE NA ANTIGUIDADE TARDIA

2010, p. 21-39). Assim, embora existam esses estudos, especial


menção deve ser dada à obra de Glanville Downey (1961), que
permanece sendo um clássico, fonte de importantes informações,
seja sobre o platô, seja sobre Antioquia de Orontes, a história
de Dafne ainda precisa de um tratamento mais sistemático e
atualizado, inclusive porque oferece abundantes evidências de
cultura material provenientes das campanhas de escavações.
Nas campanhas de escavação que ocorreram,
sistematicamente, a partir de 1932 sob a direção do Comitee
for the Excavation of Antioch and its vinicity, Dafne recebeu
muita atenção por parte dos arqueólogos, uma vez que várias
estruturas na região do platô foram trazidas à luz (Mapa 1).3
Em Dafne, foram encontrados complexos residenciais – vilas
romanas (LASSUS, 1938, p. 95-147), um hipódromo (PAMIR,
2016, p. 301-307), um teatro (WILBER, 1938, p. 57-94), uma
ecclésia (LASSUS, 1938, p. 5-44). O estudo e a análise sistemática
sobre a abundante cultura material encontrada nas campanhas
de escavação, em Dafne, ainda foram pouco exploradas. O
estudo de residências extramuros de Antioquia, por exemplo,
apresenta alguns problemas. Primeiro, é digno de nota que as
escavações em Antioquia tinham objetivos e direcionamentos,
a priori, por exemplo, os registros mais detalhados e os estudos
e reflexões mais completos são sobre os mosaicos encontrados
nas residências, sem mencionar um outro importante
problema: as pilhagens frequentes (STILLWELL, 1961, p. 47;
LEVI, 1947). Sobre o teatro em Dafne ainda houve problemas
jurídicos causados em razão da propriedade onde se localizava

3
Esta comissão congregava representantes do Musées Nationaux de
France (Louvre), o Baltimore Museum of Art e o Worcester Art Museum,
Princeton University e, nas campanhas de escavações de 1936, se junta
a essa delegação, os representantes do Fogg Art Museum da Harvard
University e sua filiada a Dumbarton Oaks (KONDOLEON, 2000).

204 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA

a estrutura ser de natureza privada, dificultando sua escavação


e levando a extensas negociações com o proprietário. Apesar
dos problemas, a cultura material remanescente e os relatos de
escavações nos oferecem um extenso material a ser explorado.
E Dafne, sem dúvida, é um subúrbio digno de uma história
mais detalhada, considerando suas evidências em conjunto,
desde a cultura material, a documentação arqueológica até os
documentos escritos de autores antigos, que abundantemente
nos fornecem evidências que, embora sejam esparsas, são
absolutamente significativas.

Mapa 1 – Esquema da topografia de Dafne

Fonte: Leblanc e Poccardi (1999, p. 121)

O platô de Dafne é uma região muito mais exuberante


e importante do que pressupõem as concepções modernas do

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 205


O PLATÔ DE DAFNE NA ANTIGUIDADE TARDIA

que vem a ser um subúrbio. Na Antiguidade, os termos latino e


grego correspondentes a subúrbio, surbubium e proasteia, evocam
sentidos muito mais amplos do que a concepção contemporânea,
que compreende, grosso modo, de maneira restrita, o subúrbio
como um espaço periférico, um mundo à margem, com
problemas econômicos, sociais e culturais, e dependente de um
centro, o espaço urbano e cívico, lugar da civilidade e da ordem,
por excelência. Pelo contrário, Dafne é um subúrbio vistoso,
com uma vida pública e privada cheia de vitalidade, que tem
uma relação simbiótica com a asty, o centro urbano, geralmente
identificado como Antioquia.4 Antioquia de Orontes somente
pode ser compreendida, quando evocada aqui, como o conjunto
que reúne asty, chora e proasteia, que ainda envolve o complexo
portuário de Selêucia Piéria (LIEBESCHUETZ, 1972, p. 40-41).
Neste sentido, Dafne é ela própria Antioquia e, como parte da
cidade antioquena, receberá aqui seu tratamento devido, com
suas particularidades independentes da asty antioquena. Assim
posto, a relação entre Dafne e a asty de Antioquia é muito mais
complexa do que propõem suas três imagens, que limitam a
vitalidade do subúrbio antioqueno.
Dafne é definida, geralmente, como um lugar de
entretenimento, como um espaço religioso onde o culto de
Apolo e seu templo são os mais reconhecidos junto com
Dionísio, representado, abundantemente, em mosaicos nas vilas
suburbanas; e, por fim, em imagem mais consistente e presente,
inclusive em iconografia tardia (Figura 1), como a “casa das
águas”, espaço de fontes de recursos hídricos (AINSWORTH,
1844, p. 51; PAMIR; YAMAÇ, 2011, p. 188). Não obstante,
como argumentaremos, a partir de uma reflexão acerca dessas

4
“Há uma ambiguidade no nome de Antioquia”, assim declara Liebeschuetz
(1972, p. 40), ao discorrer sobre o território que pertence à jurisdição
administrativa antioquena.

206 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA

três imagens difundidas, este subúrbio excede os limites dessas


categorizações. A região do platô é palco de significativas trocas
econômicas e culturais, destino de diferentes pessoas advindas
de toda parte do Império Romano, o que torna Dafne um
importante espaço de interações socioculturais da cidade de
Antioquia na constituição das particularidades da identidade e
cultura antioquenas.

Figura 1 – Detalhe da Tabula Peutingeriana com a representação


de Antioquia

Fonte: Wikimedia Commons, domínio público. Como destacado por Hatice


Pamir e Inanç Yamaç (2011, p. 190 apud DEMIR, 1996, p. 48), os aquedutos
para o suprimento de água a Antioquia eram tão importantes que aparecem
representados na Tabula Peutingeriana. Antioquia é representada como uma
deusa acompanhada por um jovem como alegoria do rio Orontes.

Dafne como lugar de entretenimento

Como um “resort favorito dos antioquenos e um tanto


indecoroso” (JONES; SPAWFORTH, 2012, p. 414), Dafne é
descrita, geralmente, como um lugar de entretenimentos e alvo
de um intenso movimento de pessoas que buscam suas atrações.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 207


O PLATÔ DE DAFNE NA ANTIGUIDADE TARDIA

Os festivais e jogos, por exemplo, já ocorriam em Dafne desde a


época de fundação da cidade de Antioquia. Estrabão (Geographia,
XVI, 2, 6) relata que “todos de Antioquia e cidades vizinhas têm
o costume de celebrar festivais comuns”. Dafne é um subúrbio
louvado por sua vegetação e nascentes, fontes de águas, mas
não escapa de ser concebida também como um lugar maléfico.
Os autores cristãos, em particular, descrevem um subúrbio
mais nocivo por causa dessa imagem de Dafne como lugar do
divertimento. Se, por um lado, este subúrbio é louvado por
sua vegetação e nascentes de águas (Eutropius, Breviarium
ab urbe condita, VI, 14); por outro, é o lugar dos sentimentos
desenfreados, lugar da desordem, do impulso, da corrupção da
alma. Vejamos, por exemplo, a descrição de Sozomeno (Historia
Ecclesiastica, V, 19):

Homens de temperamento sério, no entanto, consideravam


vergonhoso se aproximar deste subúrbio; pois a posição e a
natureza do lugar pareciam excitar sentimentos voluptuosos;
e a substância da própria fábula sendo erótica, proporcionava
um impulso mensurável que redobrava as paixões entre jovens
corruptos. Eles, que forneceram esse mito como desculpa, foram
inflamados de maneira intensa e cediam, sem constrangimentos,
a ações desprezíveis, incapazes de serem continentes eles
mesmos, ou de suportar a presença daqueles que eram
continentes. Qualquer um que morasse em Dafne sem uma
amante era considerado insensível e sem graça, e evitado como
algo abominável e repugnante.

E embora aqui Sozomeno fale da vegetação de modo


depreciativo, o autor se refere aos efeitos causados ao homem.
Na mesma passagem, Sozomeno (Hist. Eccl., V, 19) declara que
“[Dafne] torna-se deliciosa e extremamente agradável pela
riqueza e beleza das águas, pela temperatura do ar e pelo sopro
dos ventos amistosos”. No século IV, João Crisóstomo (De sancto

208 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA

hieromatyre Babylas) ainda denuncia, “demonizando” Dafne, a


celebração de festivais no platô (KALLERES, 2015, p. 66):

Coros de homens tomam conta do subúrbio [Dafne] amanhã.


Muitas vezes, a visão de tais refrões obriga a pessoa que quer
ficar sóbria a copiar o mesmo comportamento indecente contra
sua vontade [...]. [O diabo] está presente, convocado pelos
cânticos terrestres, pelas palavras desavergonhadas, pelos
pomposos demoníacos.

João Crisóstomo (Jul., 5) ainda evidencia como Dafne


atraía muitas pessoas, mostrando a vitalidade dos festivais e
celebrações públicas relacionadas à religião tradicional romana,
uma vez que, pelo excerto, podemos observar a necessidade de
“forçar” mulheres e homens para que frequentassem o túmulo
de um mártir cristão:

Amanhã vamos ocupar os portões [de Antioquia] com


antecedência, vamos vigiar as ruas, vamos retirá-los de seus
veículos [enquanto viajam para Dafne], mulheres puxando
mulheres, homens puxando homens. Vamos trazê-los de volta
para cá [para o túmulo do mártir], não vamos nos envergonhar.
Onde há a salvação de um irmão ou irmã em jogo, não há
vergonha. Se eles não têm vergonha de ir para a pompa ilícita,
aí que não devemos ter vergonha quando estamos atuando para
trazê-los de volta a este festival sagrado. Quando um irmão ou
a salvação da irmã está à frente, não vamos recusar nada. Pois,
se Cristo morreu por nós, devemos suportar qualquer coisa por
eles. Mesmo se eles nos desferirem golpes, mesmo que sejam
abusivos, segure e não fique de lado até que você os traga de
volta ao santo mártir.

A reclamação-denúncia de João Crisóstomo se, por um


lado, evidencia a baixa ou não frequência aos espaços cristãos
em Dafne, por outro, deixa pouco evidente o que poderia estar

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 209


O PLATÔ DE DAFNE NA ANTIGUIDADE TARDIA

causando o afastamento dos cristãos ou não-cristãos desses


espaços. A resposta a esse questionamento podemos encontrar
nas evidências arqueológicas e de cultura material. Dafne oferece
diversas possibilidades de espetáculos, principalmente porque
possui, em seu espaço, teatro e espetáculos públicos, além de
um hipódromo onde ocorriam os jogos olímpicos.5

O teatro, as nascentes de águas e os espetáculos

No relatório de escavações, Donald Wilber (1938, p. 60


e ss) fala em espetáculos de naumaquias no teatro de Dafne.
No entanto, os espetáculos conhecidos como naumachiae teriam
dimensões maiores, exigindo espaços que não corresponderiam
ao da orquestra de um teatro, sendo realizados, preferencialmente,
em circos, anfiteatros, e, com menos frequência, em portos
(BRONEER, 1961, p. 412), o que nos leva a indagar sobre quais
tipos de espetáculos poderiam ocorrer em Dafne, especialmente
por conta da presença dessa tecnologia de inundação da orquestra.
Gustavo Traversari (1960, p. 23), que trata especificamente de
teatros que tinham espetáculos aquáticos, fornece um dado
interessante, que o teatro de Dafne é pioneiro nessa tecnologia
de inundação de orquestras. A conexão direta do teatro com
o aqueduto, construído para fornecer suprimento de água a
Antioquia, foi ratificada pela descoberta de eixos subterrâneos
como parte de um sistema de suprimento de água para inundar
a orquestra (WILBER, 1938, p. 64-65). Esta tecnologia para
inundação da orquestra, e que pode ser confirmada pela
documentação arqueológica, documentos de cultura escrita e
pela cultura material (Iohannes Malalas, Chronographia, XI, 14;

5
Há também um hipódromo na cidade nova, na asty, de Antioquia,
localizada na ilha.

210 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA

Borda topográfica de Yakto; Plano do Teatro de Dafne, Figura 2),


é um indicativo de que espetáculos de jogos náuticos ou caças
submarinas, espetáculos denominados de tetimimi (os mimos de
Tétis), poderiam ocorrer neste teatro (TRAVERSARI, 1960, p.
25 e ss.; BRONEER, 1961, p. 412). A inundação da orquestra e
sua relação com as nascentes de águas de Dafne certamente são
uma característica importante do subúrbio.

Figura 2 – O teatro de Dafne

Fonte: Stillwell (1938, p. 221)

“A ‘casa das águas’ (Beit el ma), para os árabes, e Dafne,


para os antigos” (AINSWORTH, 1844, p. 51), assim era
conhecido o subúrbio de Antioquia. As fontes de águas de Dafne
são alvo de constante menção pelos antigos. Conforme Eutrópio
(Breviarium ab urbe condita, VI, 14), Pompeu estaria deslumbrado
por Dafne, as nascentes e a vegetação do subúrbio antioqueno:

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 211


O PLATÔ DE DAFNE NA ANTIGUIDADE TARDIA

“Ao povo de Dafne, ele [Pompeu] deu um território para que


o arvoredo tivesse mais espaço, já que ele ficou encantado
pela beleza do lugar e pela abundância de suas águas”. Em
um detalhe da borda topográfica do mosaico de Yakto (Figura
3), denominado de Mosaico da Megalopsiquia, é possível a
identificação de duas estruturas sendo abastecidas com as águas
das famosas nascentes de Dafne. Segundo Fatih Cimok (2000, p.
274), Castalia (a inscrição grafada na parte superior do detalhe
do mosaico na imagem) é “uma das mais celebradas nascentes
de Dafne”, que no mosaico aparece personificada como uma
mulher com torso desnudo e segurando um vaso de onde jorra
água para duas construções: uma abaixo, de forma semicircular
colonada, na qual se observa a presença de uma embarcação no

Figura 3 – Detalhe da borda topográfica do mosaico da


Megalopsiquia

Fonte: Cimok (2000, p. 274)

212 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA

centro; e, à direita, outro feixe de água, talvez das nascentes de


Pallas (inscrição acima à direita), inundando um reservatório em
que se nota uma pessoa nua, provavelmente a personificação da
nascente que é mostrada nadando. Jean Lassus (1969, p. 141)
descreve, de forma similar, o cenário apresentado no mosaico,
agregando que “o centro do espaço semicircular está inundado
por água no qual flutua uma pequena embarcação”, destacando
ainda que este é um teatro no qual se agrega uma árvore em
representação aos louros característicos de Dafne.
As estruturas representadas no mosaico de Yakto são objetos
de um permanente debate acerca de como definir a natureza de
suas funções, especialmente no que se refere à estrutura inundada
com água e que apresenta uma embarcação e colunatas. A função
dessa construção é ainda uma questão em aberto, dado que,
recentemente, Ayse Erol (2008, p. 39-44) propôs que a estrutura
com a pequena embarcação central seria – e funcionaria como
– um porto comercial em Dafne, o que poderia ser confirmado
por “observações sobre uma doca no Rio Orontes”, retirada
de Αντιοχικός, de Libânio, e pela análise do estilo arquitetural,
que pode ser comparado a outras estruturas representadas em
numismática, por exemplo, uma moeda de Antonino Pio no
contexto da cidade de Pompeiopolis e um mosaico da cidade de
Kelendere. Para Erol (2008, p. 40), esse complexo de edifícios – o
reservatório, com uma personagem nadando, e a estrutura com a
embarcação presentes no mosaico – insere-se em um contexto em
que o sistema de transportes comerciais de mercadorias estava em
ação entre as cidades de Antioquia, Dafne e Seleucia Pieria para
escoamento em direção ao Mediterrâneo, mediante Rio Orontes,
agregando um sistema de canais, uma vez que esta área se situava
numa região importante e fértil. Em primeiro lugar, podemos,
seguramente, confirmar que essa estrutura representada no
mosaico se localiza em Dafne em razão da representação de

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 213


O PLATÔ DE DAFNE NA ANTIGUIDADE TARDIA

nascentes e vegetação típica de Dafne (LASSUS, 1969, p. 141;


DOWNEY, 1961, p. 664). Em segundo, há outras evidências
que nos impelem a identificar e definir a estrutura em questão,
muito mais em termos de uma estrutura teatral (sem excluir seu
funcionamento como um possível reservatório de águas) do que
considerá-la como um porto comercial.
Outras sugestões, acerca da natureza da função dessa
construção ligada às nascentes presentes no mosaico, indicam
que a estrutura pode ser, por um lado, um “reservatório de água”
com a presença de um espaço para a audiência disposta a admirar
os vapores e o movimento das águas ou, por outro, um “teatro”
(CHOWEN, 1956, p. 275-101; LEVI, 1947, p. 326). Em um
excerto de sua Cronografia, João Malalas (XI, 14) disserta sobre
as construções do imperador Adriano em Dafne, tendo em vista
a representação das estruturas ligadas ao aqueduto, presentes
no mosaico de Yakto. Malalas afirma que o imperador Adriano
construiu “o ‘Teatro’ das Nascentes de Daphne” (θέατροντῶν
πηγῶνΔάφνης) e que o imperador também desviou as águas que
fluem de fora para as ravinas conhecidas como Agriai”. Desse
modo, as nascentes de águas de Dafne também poderiam servir
como mais uma forma de espetáculos de natureza divina, dado a
existência da Castalia e Pallas.6

6
A presença de um theatron nem sempre significava, automaticamente,
que o espaço poderia ser destinado à realização de espetáculos como
compreendermos ser as performances teatrais. As escavações em Magnésia
de Meandro, lideradas por Orhan Bingol, revelaram a presença de um espaço
de audiência, mas não foi encontrado nenhum vestígio da existência de
uma skêne (YEGÜL, 2007, p. 581; BINGOL, 2005). De fato, como podemos
compreender do caso do theatron, em Magnésia de Meandro, este não era
um espaço de espetáculos, mas um “lugar onde se podia contemplar a vista”
(YEGÜL, 2007, p. 582; BINGOL, 2005), embora esse não seja o caso em
Dafne que se constituiu de um teatro próprio com performances teatrais.
Acrescentamos apenas que as nascentes de águas de Dafne possam também
constituir-se de um espetáculo adicional no amplo espectro de performances.

214 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA

Dafne, no entanto, não se restringe à imagem de lugar


do entretenimento. A religião e a presença de espaços sagrados
também identificam esse subúrbio como um centro religioso
importante. Em 1990, em Antioch on-the-Orontes as a Religious
Center, Frederick Walter Norris reflete sobre as divindades da
cidade de Antioquia. E Dafne contribuiu com uma importante
quantidade de espaços sagrados para constituir Antioquia como
um centro religioso.

Dafne como um centro religioso

Libânio de Antioquia (Or. XI, 94) oferece uma explicação


sobre a natureza da importância e dignidade do distrito de
Dafne, que teria sido fundado como uma cidade-santuário
dedicada a Apolo, em razão da seguinte narrativa mítica: “Apolo
estava apaixonado por Dafne, mas não conseguiu conquistá-la,
a perseguiu e como ela, mediante orações, se transformou em
árvore, ele transformou seu amor em uma coroa” (SILVA; SILVA,
2016). João Crisóstomo (Bab., 68) confirma esta narrativa em
torno da fundação do distrito, que teria sido colocado sob a
proteção da ninfa homônima e de Apolo (SILVA; SILVA, 2016).
Além do templo de Apolo, Dafne abrigava ainda o templo de
Ártemis, o de Zeus e um templo subterrâneo de Hécate (SILVA;
SILVA, 2016; BOWERSOCK; BROWN; GRABAR, 1999, p. 405).
Vejamos os dois mais importantes espaços sagrados em Dafne:
o templo de Apolo e as águas proféticas da nascente de Castália.

O templo de Apolo

Ausônio (Ordo urbium nobilium, Antiochia et Alexandria IV,


V) considera Antioquia como a “casa do laurel de Apolo”, mas

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 215


O PLATÔ DE DAFNE NA ANTIGUIDADE TARDIA

o templo de Apolo mais famoso estava localizado no subúrbio,


em Dafne. A história da fundação de Dafne narrada por Libânio
(Oratio 11, 94-100) vincula a seu fundador, Seleuco I, a instalação
do templo dedicado à Apolo em razão do mito:

94. Em Dafne, este subúrbio mais celebrado em hinos, Seleuco


concedeu-lhe tal santuário, dedicando o lugar ao deus quando ele
descobriu que o mito realmente aconteceu. Pois Apolo se apaixonou
por Dafne. Ele não podia seduzi-la, mas ele a perseguiu. Quando
ela se transformou, por súplicas, em uma árvore [um louro],
Apolo fez uma coroa em honra à sua amada. 95. Essas coisas são
cantadas, mas um grupo de caçadores revelou a verdade do conto
para Seleuco. Pois ele estava cavalgando até os seus cães em busca
de sua presa. Quando ele chegou à árvore, que anteriormente era
a donzela, seu cavalo parou e bateu no chão com seu casco, com o
que a terra enviou uma ponta de flecha dourada. 96. Foi declarado
pelo proprietário em palavra, pois estava gravado como “Phoebus”.
Eu penso que ele tenha derramado suas flechas em pesar por causa
da metamorfose da donzela, e a ponta quebrada de uma, estava
escondida na terra e mantida lá em segurança para que ele pudesse
dizer a Seleuco que adornasse o local e o auxiliasse naquilo que era
para ser, um santuário de Apolo. 97. Eles chamam de milagre, o
aparecimento da primavera no Helicon, quando Pegasus atingiu a
rocha com o casco. Quão mais miraculoso pode ser isso, na medida
em que alguém esperaria águas saírem das fontes do que pontas de
flechas a saltarem da terra. 98. Tão logo Seleuco pegou a ponta da
flecha, ele viu um dragão disparando em direção a ele, galopante e
assobiando. Mas quando se aproximou, olhou para ele gentilmente
e desapareceu. Quando o dragão foi adicionado ao que já tinha
aparecido da terra, ele estava mais confiante que o deus frequentava
o lugar. Uma vez que o espaço sagrado tenha sido demarcado, foi
dotado de árvores e templos. Logo o bosque começou a florescer e
foi mantido seguro por fortes orações. 99. Dafne tronou-se muito
importante para Seleuco. Pois além das visões que ele tinha visto
pessoalmente, ele também foi inspirado pelo oráculo animador
e encorajador que recebera em Mileto. O oráculo o prometera
uma fortuna que seria dele e o instruíra a assumir o comando de
Síria, para tornar Dafne sagrada. 100. Bem preparado em relação
ao divino dessa maneira, e fazendo um começo digno, Seleuco

216 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA

começou de uma fundação que ofereceu boas expectativas, em


favor aos deuses, quero dizer, em prol de nossa cidade. Ele fez a
melhor parte da terra cheia de cidades e civilizou o deserto. Ele não
descobriu nossa cidade como um ato ocioso de luxo, mas como um
ponto de partida para outras cidades, como resultado as cidades
atuaram como postos de apoio para os viajantes.

Assim, Dafne surge como lugar sagrado mediante um


mito de fundação significativo: o mito de Apolo e Dafne. Digno
de nota são outras duas importantes considerações da narrativa
apresentada por Libânio. Primeiro, o reconhecimento de Dafne
como “um ponto de partida para outras cidades”. E, segundo,
“as cidades atuarem como postos de apoio aos viajantes”. A
escolha de Apolo como a grande divindade relacionada à história
do subúrbio não é arbitrária, uma vez que Apolo, reconhecido
na tradição clássica greco-romana também como um peregrino,
esteja estreitamente relacionado com o movimento migratório
de pessoas. E os viajantes são transeuntes constantes em Dafne,
como veremos mais adiante.
O templo de Apolo ganhou ainda mais importância
durante o governo do imperador Juliano, que ficou em Antioquia
entre 362 e março de 363. O imperador ansiava por mudanças
e tinha planos para sua administração, e começou ordenando
a restauração do santuário de Apolo no subúrbio de Dafne,
confiando ao seu próprio tio essa tarefa (Iulian, Ep. 29; Libanius,
Ep. 694, 6-7). E este santuário se torna uma evidência para
os especialistas que tratam do conflito entre os adeptos do
cristianismo e do paganismo antioquenos, em razão da atenção
dada por autores antigos às tensões marcadas pela disputa
do espaço do templo que era ocupada por Apolo e, em seus
arredores, pelas relíquias de São Bábilas.7 Com a reforma do

7
Libânio (Or. XI) e João Crisóstomo (Hom. In Bab.) produzem orações sobre

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 217


O PLATÔ DE DAFNE NA ANTIGUIDADE TARDIA

templo, o imperador Juliano incita um movimento sistemático


de visitas programadas (BRANDS, 2018, p. 20, nota 34). E
Apolo é a divindade central do mito de fundação de Dafne.

As águas proféticas

Castália e Pallas são as nascentes de águas primárias de


Dafne (Figura 3). Castália, em particular, tem sido considerada
como divindade oracular (AINSWORTH, 1844, p. 52; GREGORY,
1983, p. 355-366). Como um oráculo aquático, ou águas
proféticas, sons eram emitidos pela nascente e interpretados
como profecias. A interpretação acerca da Castália em Dafne
é compreendida em relação com as evidências da Castália de
Delfos.8 E as evidências podem apresentar, de fato, dificuldades
de interpretação e problemas para realizar distinções entre
ambas as Castálias, de Delfos e de Dafne (GREGORY, 1983;
VANDERSPOEL, 2006; MARKOPOULOS, 1985; PARKE, 1978;
VATIN, 1962). Não obstante, uma possível distinção é a de
que, em Delfos, a Castália não seria oracular, mas apenas “parte
dos ritos de purificação” e que apenas a Pítia poderia proferir
oráculos; enquanto, em Dafne, a Castália seria as águas proféticas
e oraculares, embora Timothy Gregory (1983, p. 357 e 358 e ss)
destaque que muitas referências tardo-antigas façam referência
à Castalia de Delfos como águas proféticas. Sozomeno (Hist.
Eccl., V, 19) declara, por exemplo, que “aqueles que atribuem
crédito as fábulas desse tipo acreditam que uma corrente flui

o templo de Apolo, em Dafne. Há ainda passagens significativas em Amiano


Marcelino (Res Gestae, XXI, 13, 1) em relação ao episódio das relíquias de São
Bábilas. Sobre os conflitos que envolvem as relíquias de São Bábilas, vide:
Gilvan Ventura da Silva e Érica Cristhyane da Silva (2016, p. 193-224).
8
Para o debate sobre as confusões entre ambas, vide ainda Hebert Parke
(1978, p. 213-214, notas 35, 38).

218 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA

da fonte Castália, e que esta possui o poder de prever o futuro,


e que é semelhante em seu nome e poderes à fonte de Delfos”.

Dafne como fonte de recursos hídricos

“As nascentes de águas de Dafne asseguravam um refúgio,


um frescor à onda de calor do verão, e forneciam uma fonte para
o suprimento de água” e, além disso, as “autoridades selêucidas
e romanas aproveitaram essa possibilidade construindo dois
aquedutos para transportar água a quase oito quilômetros de Daphne
à Antioquia” (NORRIS, 1990, p. 2323). Os aquedutos que ligam
Dafne a Antioquia dominaram a historiografia acerca do subúrbio.
De fato, as nascentes de água de Dafne são uma característica
distintiva da região. Sozomeno (Hist. Eccl., V, 19) destacaria:

Dafne é um subúrbio de Antioquia cultivada com ciprestes e


outras árvores, abaixo das quais todos os tipos de flores florescem
em sua estação. Os galhos dessas árvores são tão grossos e
entrelaçados que se pode dizer que formam um telhado, além
de proporcionar sombra, e os raios do sol nunca podem penetrar
neles até o solo abaixo. Torna-se delicioso e extremamente
agradável pela riqueza e beleza das águas, pela temperatura do
ar e pelo sopro dos ventos amistosos.

A relação entre Dafne e a asty de Antioquia se inicia com


a história da busca por Seleuco de um espaço onde este basileu
construiria sua cidade na Síria antiga. Dafne seria a escolhida,
não fosse a dimensão de seu território muito diminuto para a
concepção de cidade do selêucida, que pretendia fundar uma
grande cidade como capital de seu reino. A segunda relação
solidamente construída é a construção de aquedutos que ligam
asty e proasteia (Figura 4). Embora, o abastecimento de água não

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 219


O PLATÔ DE DAFNE NA ANTIGUIDADE TARDIA

esteja restrito às fontes de Dafne (PAMIR; YAMAÇ, 2011; Mapa


2), os aquedutos relacionados às nascentes de Castália e Pallas
foram construções monumentais que aproximam asty e proasteia
numa relação simbiótica.

Figura 4 – O aqueduto entre Antioquia e Dafne

Fonte: Dussaud, Deschamps e Seyrig (1931, planche 67)

Como uma área nodal para as sociedades do mediterrâneo


desde épocas remotas (WOOLLEY, 1942; 1946), a Síria antiga
e, particularmente, Antioquia oferecem uma experiência
extraordinária aos que se aventuram a uma viagem em direção à
‘metrópole da Ásia’ (WILL, 1997, p. 100; MATTHEWS, 2006, p.
41-61). E fundamentado nos escritos do sofista Libânio (Oratio
11), John Matthews (2006, p. 77) argumenta que “tendo visto
o adorável subúrbio de Dafne, seus templos, árvores e jardins,

220 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA

Mapa 2 – Mapa dos trechos remanescentes do aqueduto que


liga Antioquia a Dafne

Fonte: Benjelloun et al. (2015, p. 173, Fig. 2)

eles abandonarão seus louvores à Itália”. E, de certo, Dafne tem


muitas atrações para aqueles que desejam visitar o platô. O
público alvo que se dirige ao subúrbio antioqueno é variado e é
atraído por diversas razões: comércio, espetáculos, religião, seja
peregrinações a templos e santuários, seja para celebrações de
festivais e ritos, dado alguns dos espaços anteriormente descritos.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 221


O PLATÔ DE DAFNE NA ANTIGUIDADE TARDIA

Libânio (Or., XLV, 7), ao repreender membros da administração


local, nos fornece algumas pistas daqueles que visitavam Dafne:

Aqueles que são responsáveis pelas prisões vivem uma vida de


luxo. Eles seguem para Dafne, eles viajam para as suas cidades,
visitam outras cidades para comprar terras e visitar o litoral.
Enquanto aqueles que estão presos são esquecidos por aqueles ou
se quer se incomodam com os aprisionados.

Como já mencionado, o território da cidade de Antioquia


ocupa uma localização estratégica, logo os viajantes poderiam
desfrutar de significativas trocas econômicas e culturais.

Considerações finais

Dafne, como subúrbio de Antioquia, teve sua história


sempre relacionada à asty, ao centro urbano, uma parte da
capital da província Síria antiga. O pequeno platô, que, embora
não resguarde status de cidade na Antiguidade Tardia, é palco
de vários dos importantes acontecimentos antioquenos: festivais
oficiais, entretenimento, abrigava as residências suburbanas de
grande parte da elite síria, particularmente, antioquena. Como
um centro religioso, sediava o grande Templo de Apolo, entre
outros, inclusive um de Zeus, abrigando também pelo menos
um Martyrium e Eclésias. Ademais, Dafne se caracterizava
ainda como um lugar de refúgio e origem dos suprimentos
de água e víveres, por ser intersecção de rotas comerciais, e,
assim, os habitantes urbanos conseguiam manter residência
também na asty de Antioquia, que se beneficiava de sua posição
estratégica. Sem dúvida, a história de Dafne está intrincada e
simbioticamente relacionada à asty e à civitas de Antioquia.
Não obstante, o subúrbio apresenta-se como um importante

222 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA

espaço, digno de uma história própria, de modo que possamos


compreender mais particularmente os antioquenos a partir dos
usos dos espaços particulares e localizados em Dafne. Se, por um
lado, a cidade de Antioquia é compreendida, frequentemente,
mediante a importância de seu centro urbano, por outro, esta
grande metrópole também deve muito de sua história e cultura
à sua proasteia, distinta da asty antioquena.

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230 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


Constantinopla além do Império Bizantino:
a formação de uma capital (séc. IV)*

João Carlos Furlani

Introdução

N
uma rápida consulta ao acervo de bibliotecas
acadêmicas nacionais, ao buscarmos verbetes como
“Constantinopla” ou “Bizâncio”, nos deparamos com
resultados numéricos significativos, o que, à primeira vista,
sugere um grande interesse historiográfico sobre essa cidade.
Todavia, a situação muda um pouco ao nos debruçarmos sobre
o material encontrado, pois a maioria das obras que contêm
os termos buscados apresenta títulos compostos por “Império
Bizantino”, “Sociedade Bizantina” ou “Civilização Bizantina”, o
que não é problema algum, exceto pelo fato de que tais obras
praticamente ignoram a criação da cidade grega de Bizâncio e
seus primeiros séculos de existência.
É deveras curioso pensar que as “origens” da cidade são
esquecidas nesses manuais. Seria uma superação do temido “mito
das origens”? Antes fosse. Pois a própria refundação e consolidação
da cidade como Constantinopla, nos séculos IV e V, sofre com a
escassez de estudos a seu respeito. É claro, menções são feitas
à empreitada de Constantino rumo ao Oriente, mas de forma

*
O presente capítulo foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de
Financiamento 001.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 231


CONSTANTINOPLA ALÉM DO IMPÉRIO BIZANTINO

sintética e pouco enriquecedora. É alarmante saber que aquilo


que é chamado de “longo século IV” – período que contempla
finais do século III a início do século V –, momento crítico para
a redefinição de tradições, transformações políticas e militares
e promoção do cristianismo, é relegado a simples resumos, que
nem de longe abrangem a complexidade dos processos ocorridos
na capital oriental durante essa fase do Império.
O mesmo não acontece, por exemplo, com a cidade
de Roma. Os séculos IV e V são exaustivamente explorados,
sobretudo pelo que intitulam “Queda do Império Romano” ou
pelas transformações produzidas pelas tais “invasões bárbaras”.
Curioso e reflexivo é o fato de que boa parte das obras sobre
Constantinopla se inicia com eventos do século VI. E isso não
é mera coincidência, é exatamente neste século que Justiniano
assume o manto imperial, mais precisamente em 527. Ao que tudo
indica, a opção por essa data é uma convenção historiográfica,
assim como incontáveis outras que ora percebemos ora não.
A fama do governo de Justiniano deve-se, sobretudo, à sua
tentativa de renovatio imperii. Ou seja, de reviver a gloria romanorum,
a grandeza do passado e reconquistar o Império Romano ocidental
perdido aos bárbaros (HALDON, 1999, p. 17-19). Nos clássicos
moldes de uma historiografia política, o governo de Justiniano
constituiria uma época distintiva na história do Império Romano
tardio. Daí, portanto, forma-se aquilo que podemos chamar de
“marco histórico”. Marco esse que influencia fortemente a história
de Bizâncio e de Constantinopla.
Apesar de nossas constatações iniciais, não almejamos
desmerecer os trabalhos que optam pelo recorte temporal
mencionado. Antes disso, temos a intenção de invitar os olhares
para a Constantinopla antes de Justiniano, aquela do “longo século
IV” que aludimos. Não para resumir os feitos de Constantino e
diluir a cidade dentro de mais uma das ações do seu governo, mas

232 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOÃO CARLOS FURLANI

para compreendermos um pouco de sua complexidade, tanto em


aspectos sociopolíticos quanto religiosos. Outrossim, julgamos
conveniente apresentar um pouco mais do espaço da cidade, que
foi palco para tantas construções, espetáculos e conflitos. É preciso,
contudo, fazer justiça a autores como Gilbert Dagron, Sarah
Bassett, John Bagnell Bury e tantos outros, que não pouparam
esforços para tratar especificamente do período que abordamos.

Era uma vez nas margens do Bósforo...

Antes de mais nada, é preciso salientar que, em seus


primórdios, Bizâncio foi uma cidade grega que, territorialmente,
ocupava apenas uma parte do que viria a ser Constantinopla e,
após a conquista pelos turcos otomanos, em 1453, Istambul.
Durante a fase imperial, o termo Byzantion era utilizado para
referir-se somente à capital do Império.2 A denominação “Império
Bizantino” foi introduzida apenas em 1555, um século após ser
invadida, e adotada pela historiografia apenas no século XIX.
A população tardo-antiga e medieval também não era chamada
de bizantina, mas, sim, de romana, assim como o Império. Já
o principal idioma permaneceu sendo o grego até a referida
conquista no século XV, marco para uma série de mudanças na
cidade (KAZHDAN; EPSTEIN, 1985, p. 1; GRANT, 1987, p. 10).
Para efetivamente abrir este tópico, selecionamos uma
das mais emblemáticas e representativas descrições de Bizâncio,
realizada por Herodiano, cronista do século III, nascido na
Bitínia. Em suas palavras:

2
Grafado em grego como Βυζάντιον e em latim como Byzantium. A etimologia
do termo não é precisa, a hipótese mais plausível é que o nome da cidade
esteja relacionado com a lenda do rei de Mégara, Bizas, filho de Netuno
(RAYMOND, 1964, p. 10).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 233


CONSTANTINOPLA ALÉM DO IMPÉRIO BIZANTINO

[...] Bizâncio, na Trácia, na época, uma cidade grande e próspera,


rica em homens e dinheiro. Localizada na parte mais estreita do
Golfo Propônico, Bizâncio cresceu economicamente com suas
receitas marítimas, tanto em portagens quanto em peixes; a
cidade também possuía muitas terras férteis e obteve um belo
lucro de todas essas fontes.
Níger desejava ter esta cidade sob seu controle, porque era muito
forte, mas principalmente porque esperava poder impedir qualquer
travessia da Europa e da Ásia por meio do Golfo Propônico.
Bizâncio estava cercada por uma enorme e forte muralha de pedras
cortadas em forma retangular e encaixada com tanta habilidade
que era impossível determinar onde os cursos eram unidos; a
muralha inteira parecia ser um único bloco de pedra.
Mesmo agora, as ruínas sobreviventes dessa muralha são
suficientes para fazer o espectador se maravilhar tanto com a
habilidade técnica dos construtores originais quanto com a força
daqueles que finalmente a destruíram (Herodiano, Ab excessu divi
Marci, III, 1, 5-7).

No período de escrita de Herodiano, Bizâncio estava há um


século de se transformar na Capital oriental do Império Romano,
mas a definição que acabamos de ler não deixa dúvidas sobre
o potencial geográfico, estratégico e econômico que a cidade
exibia, posto que já era considerada grande, rica e praticamente
impenetrável. No entanto, a história dessa pólis se inicia bem
antes dos olhares romanos pairarem sobre suas paisagens.
A fundação e desenvolvimento da clássica Bizâncio foi
descrita e comentada por diversos autores da Antiguidade,
como Heródoto (Historiarum, IV), Estrabão (Geographia, VII, 6,
2), Tácito (Annales, XII), Procópio de Cesareia (De aedificiis, I, 2),
Diodoro Sículo (Bibliotheca historica, IV, 49) e Herodiano (Ab ex.
div. Marc., III, 1, 5-6). A versão mais reproduzida para a criação
da cidade sugere que ela tenha sido originalmente uma colônia
de Mégara, fundada em 658 a.C., dezessete anos após a criação

234 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOÃO CARLOS FURLANI

de Calcedônia, na margem oposta do Bósforo (Tac., An., XII;


Her., Hist., IV).

Figura 1 – Constantinopla e Calcedônia separadas pelo estreito


do Bósforo

Fonte: Adaptado de: <http://fromtone.com/russias-syrian-gamble/>

Há também relatos de que Bizâncio seria uma colônia


dória, uma vez que costumes dórios prevaleceram em sua
cultura por longa data. O nome Lygos para a cidade, que
provavelmente corresponde a um assentamento trácio anterior,
também é mencionado por Plínio, o Velho, em sua Naturalis
Historiae (IV, 11). Contudo, a maioria dos relatos de fundação

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 235


CONSTANTINOPLA ALÉM DO IMPÉRIO BIZANTINO

da cidade se baseia em narrativas mitológicas. Tácito (An.,


XII, 63), por sua vez, declara que, segundo a tradição, Bizas
de Médara, filho de Keroessa com Poseidon,3 teria perguntado
ao oráculo de Apolo, em Delfos, onde deveria construir sua
nova cidade e, como resposta, teria sido orientado a instalá-
la à frente da “terra dos cegos”, uma clara alusão aos colonos
que, anos antes, fundaram Calcedônia e que, para Bizas, teriam
escolhido um local de terra e recursos inferiores se comparados
ao território onde Bizâncio se localizava. A esse respeito,
Heródoto (Hist., IV, CXLIV) afirma que:

Uma simples frase de Megabizo tornou-lhe o nome imortal entre


os habitantes do Helesponto. Encontrando-se, certa vez, em
Bizâncio, soube que os calcedônios tinham construído sua cidade
dezessete anos antes de os bizantinos haverem fundado a deles.
Disse-lhes, então, que deviam ser cegos, pois de outro modo não
teriam escolhido para a cidade um local tão desagradável, quando
se apresentava um outro mais belo.

À parte a rivalidade entre Calcedônia e Bizâncio e as


divergências entre as origens históricas e míticas dessa última,
os cronistas antigos concordam que a cidade era privilegiada do
ponto de vista comercial devido, sobretudo, à sua localização,
próxima ao Mar Negro. Não é à toa que um dos maiores itens de
comércio era o peixe salgado, motivo pelo qual o porto da cidade
era bastante movimentado (Plínio, Naturalis Historia, IX, 15).4

3
Na mitologia grega, Keroessa (Κερόεσσα) era descrita como mãe de Bizas,
filha de Zeus e Io, e irmã de Épafo (Nono, Dionysiaca, XXXII, 70; Procópio,
De aedificiis, I, 5, 1).
4
Plínio (Nat. His., IX, 1), em seu trabalho, relata a abundância de peixes
nas águas que banhavam Bizâncio, especialmente do tipo pelamis. Devido
às riquezas provenientes da pesca, o porto de Bizâncio foi chamado de “O
corno de ouro”.

236 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOÃO CARLOS FURLANI

Bizâncio também estava cercada por uma extensa khóra, que


se estendia de Selimbria (atual Silivri) e Bisante (atual Tekirdağ),
no Oeste, até a foz do Mar Negro, no Leste-Nordeste. A área rural
bizantina compreendia vários assentamentos, majoritariamente
de pescadores e agricultores, além de possuir postos comerciais
de outras cidades gregas. Os recursos da khóra variavam entre
pesca, corte de madeira, agricultura e comércio, o que contribuiu
para garantir a prosperidade da cidade (KAMARA, 2008).
Não demorou muito para os bizantinos atravessarem o
Bósforo e conquistarem Calcedônia, o que ampliou suas rotas
de comércio e fortaleceu sua economia. Apesar disso, Bizâncio
enfrentou várias adversidades que alteraram o cotidiano da
cidade. Por exemplo, ao ser sitiada por forças gregas durante a
Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), foi tomada por Esparta
e depois reconquistada por Atenas (Tucídides, Historia Belli
Peloponnesiaci, 94, I). Todavia, é após se aliar a Pescênio Níger
contra Septímio Severo que a cidade sofre grandes danos, uma
vez que a vitória de Severo implicou o sítio de Bizâncio, em 196.
Em finais do século II, ocorreu uma disputa pelo poder
imperial entre Níger e Severo. Esse último consolidava-se no
poder e, como garantia da derrota de seu adversário, ordenou
a captura dos filhos de Níger (POTTER, 2004, p. 103). Níger,
por outro lado, buscava fortalecer-se, garantindo o apoio dos
governadores das províncias orientais – momento em que
Bizâncio passa a fazer parte de seus aliados (SOUTHERN,
2001, p. 31). Embora o território sob controle de Níger fosse
muito rico – como o centro bizantino –, os recursos militares
à sua disposição não superavam o poderio militar de Severo.
Por conseguinte, Níger tomou a iniciativa de batalha, mas foi
incapaz de vencer a força severiana (POTTER, 2004, p. 103-
104). Quando Bizâncio foi cercada, Níger, enfraquecido, precisou
recuar para Niceia (BOWMAN, 2005, p. 4).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 237


CONSTANTINOPLA ALÉM DO IMPÉRIO BIZANTINO

Após as diversas derrotas e a perda de apoio, Níger


enfrentou Severo na chamada Batalha de Isso, em 194, onde
foi, enfim, derrotado, capturado e decapitado (SOUTHERN,
2001, p. 33; POTTER, 2004, p. 104; BOWMAN, 2005, p. 4). A
cabeça de Níger foi, então, levada a Bizâncio, onde os cidadãos
se recusavam a se render. Severo, como resposta, destruiu boa
parte da cidade, além de punir aqueles que haviam se aliado a
Níger, o que ocasionou a desestruturação da sociedade bizantina
clássica (POTTER, 2004, p. 105-106).
Severo, mais tarde, percebeu em Bizâncio um potencial
estratégico para seu governo e, como imperador, ordenou a
reconstrução da cidade. O responsável pela decisão de suavizar
o castigo e restaurar a antiga pólis, segundo a Historia Augusta (I,
7), foi Caracala, filho de Severo, que teria solicitado ao pai tais
medidas. Por um breve período, o imperador nomeou a cidade de
Augusta Antonina, em homenagem ao seu filho. Este último, por
sua vez, restaurou os direitos da cidade e de seus habitantes. O
novo nome, por outro lado, não teve sucesso e, quando da morte
do imperador, a cidade retomou seu nome original. Durante a
reestruturação de Bizâncio foram construídos monumentos,
edifícios, palácios, termas, pórticos, além das Termas de Zeuxipo,
de uma versão inicial do Hipódromo de Constantinopla e de uma
nova muralha, maior e mais forte que a anterior (DAGRON,
1991, p. 334).
Aos poucos, Bizâncio recuperou sua prosperidade.
Todavia, a confirmação do poder romano na cidade alterou as
formas e os contornos da paisagem urbana bizantina, o sistema
político, a cultura e a religião, calcadas nas tradições gregas. E é
esta Bizâncio que atraiu os olhares de Constantino, que, em 330,
refundou a cidade para ser a residência imperial no Oriente.

238 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOÃO CARLOS FURLANI

A construção de uma cidade imperial

Não há como negar que Constantino foi responsável


por grandes mudanças no Império Romano, de maneira geral,
e na cultura bizantina, de modo específico. Mas duas delas
tornaram-se vitais para a compreensão das transformações de
natureza sociopolítica e cultural em níveis macro e micro. Em
primeiro lugar, a aproximação do imperador com o cristianismo,
independentemente dos motivos para tal, colaborava com o
avanço cada vez mais rápido do credo em Jesus. Em segundo
lugar, a instalação da capital do Império Romano fora da Península
Itálica, na cidade oriental de Bizâncio, alterou de maneira drástica e
irreversível a visibilidade que essa região possuía e as relações com
Roma. Isso pode ser cada vez mais sentido no governo seguinte,
de seu filho Constâncio II, que, por exemplo, elevou o status do
Senado de Constantinopla ao mesmo patamar da instituição
romana (DAGRON, 1974; VENTURA DA SILVA, 2003a; 2015).5
A transformação urbana de Bizâncio, a princípio, foi uma
celebração da vitória e de poder de Constantino. Inclusive, há uma
crença comum, baseada na documentação escrita, que declara que
somente após a morte de Constantino, como uma homenagem
ao falecido imperador, a cidade passou a ser chamada de
Constantinopla, ou seja, “Cidade de Constantino” (GEORGACAS,
1947, p. 358-365). Todavia, a cultura material nos diz outra coisa.
Por meio das moedas comemorativas emitidas no decorrer de 330,
sabemos que a cidade já era referenciada como Constantinopolis,
assim como podemos observar na Figura 2.

5
Para informações detalhadas sobre a política de Constâncio II, consultar
a obra Reis, santos e feiticeiros: Constâncio II e os fundamentos místicos da basileia
(337-361), de autoria de Gilvan Ventura da Silva (2003a).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 239


CONSTANTINOPLA ALÉM DO IMPÉRIO BIZANTINO

Figura 2 – AE follis comemorativa, 16 x 17 mm., 1.9 g., 330-331

Anverso: Inscrição CONSTANTINOPOLIS. Laureado, capacete, busto,


segurando um cetro. Reverso: Deusa Vitória de pé, olhando à esquerda,
com o pé na proa, segurando cetro e repousando a mão sobre o escudo.
Ateliê monetário: Lyon. Fonte: RIC VII Lyons 246

Bizâncio teria sido remodelada para vir a ser Constantinopla


num período de seis anos, sendo inaugurada em 11 de maio
330. Constantino, portanto, transformou a antiga cidade numa
digna residência imperial (MANGO, 1991a, p. 510). Entretanto,
as mudanças foram graduais e até mesmo no sistema político
diferenças com Roma eram evidentes. Como um ordenamento
administrativo romano que não se fazia presente em
Constantinopla, podemos citar a existência de um procônsul até
a instituição do cargo de prefeito urbano (praefectus urbi), em 359
(HEATHER; MONCOUR, 2001, p. 45).
Sob clara inspiração da urbs romana, Constantino teria
reconfigurado e denominado Bizâncio como Nova Roma (Νέα
Ῥώμη) ou Segunda Roma (δευτέραν Ῥώμην) (Soc., Hist. Eccl.,
VIII; XVI).6 A arquitetura de Constantinopla recebeu grande

6
Há uma discussão a respeito do uso do termo “Nova Roma”. Para alguns
autores, Constantino não teria chamado Constantinopla dessa forma, mas,

240 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOÃO CARLOS FURLANI

atenção logo nos primeiros anos de sua reformulação, uma vez


que colunas, mármores, portas e telhas de antigos templos foram
reaproveitadas para a construção de novos monumentos imperiais,
que poderiam ser encontrados e admirados ao longo de toda a
cidade (Soc., Hist. Eccl., XVI). A seguir podemos visualizar um
mapa de Constantinopla que apresenta a organização da cidade
entre os séculos IV e VI, sendo boa parte dessas construções
iniciadas e concretizadas entre os governos de Constantino e
Justiniano. De antemão, chamamos a atenção para a localização e
o número de estruturas que reforçam a identidade de uma cidade
imperial greco-romana.
No mapa da Figura 3 podemos observar uma série de
estruturas que foram construídas ou remodelas por Constantino,
ainda na fase inicial de transformação de Bizâncio, das quais
mencionaremos algumas, além de outras que extrapolam o
sítio da antiga pólis bizantina. De início, somos informados que
Constantino estabeleceu uma nova ágora no centro da antiga
cidade, nomeando-a de Augustaion (Proc., De aed., I, 10, 5-6;
MANGO, 1991b, p. 232).7 A sede do Senado foi alojada em
uma basílica no lado leste num grande edifício conhecido como
Magnaura,8 localizado em frente ao Augustaion, próximo à igreja
que viria a ser a Hagia Sophia e ao lado do Grande Palácio (ROSSER,
2012, p. 303).

de “Segunda Roma” (GEORGACAS, 1947, p. 354). A justificativa para


essa hipótese possui como fonte a Historia Ecclesiastica de Sócrates, escrita
no século V. A maioria das traduções em língua inglesa traz o termo “New
Rome”. Todavia, no manuscrito grego, há a utilização da expressão “δευτέραν
Ῥώμην”, que pode ser traduzida como “Segunda Roma”. Além disso, o
próprio Sócrates (Hist. Eccl., XVIII), na mesma obra, utiliza a expressão “Νέα
Ῥώμη”. Ou seja, temos a utilização dos dois termos pelo autor, mas que são,
geralmente, traduzidos unicamente como “Nova Roma”.
7
Em grego Αὐγουσταῖον e Augustaeum em latim.
8
Em grego Μαγναύρα e Magna Aula em latim.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 241


CONSTANTINOPLA ALÉM DO IMPÉRIO BIZANTINO

Figura 3 – Mapa do centro de Constantinopla, com detalhe


para os edifícios (século IV-VI)

Fonte: Adaptado de Müller-Wiener (1977, p. 212)

242 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOÃO CARLOS FURLANI

No lado sul da ágora foi erguido o chamado Grande


Palácio, onde funcionava boa parte da administração da cidade
(BARDILL, 1999, p. 216-230).9 Essa estrutura, de maneira
curiosa, ostentava o chamado Hipódromo Coberto (σκεπαστός
ἱππόδρομος), na esquina sudeste do complexo, que, na verdade,
era um pátio com um telhado que servia como antecâmara para
o Grande Palácio. Todavia, existe a possibilidade de que esta
construção tenha sido utilizada como o hipódromo particular do
imperador (GUILLAND, 1967, p. 165-210).
Nos arredores da ágora foi edificado o Palácio de Dafne
(Δάφνη), que ganhou esse nome devido a uma estátua da ninfa
Dafne, trazida de Roma. Não muito distante, localizava-se o
famoso Hipódromo de Constantinopla (Figura 4), com capacidade
para mais de 80.000 espectadores, e as Termas de Zeuxipo,
construídas sobre um antigo templo de Júpiter (BASSET, 1991,
p. 492-493; GILLES, 1998, p. 70).10 Outra praça pública notável
foi o denominado Fórum de Constantino (Φόρος Κωνσταντίνου),
erigido ainda em 330, fora dos muros da antiga Bizâncio. O
forum foi atravessado pela Mese, o que o tornou um dos pontos
mais utilizados durante as procissões imperiais. Até mesmo por
isso, sua arquitetura era extremamente pomposa. Projetado em
formato circular, exibia duas grandes portas, arcos de mármore,
colunas de pórfiro e muitas estátuas associadas com a cultura
clássica (THEUWS, 2001, p. 40; MCCORMICK, 1990, p. 215).
Constantino também teria reformado a Mese (Μέση),
a principal via bizantina e trajeto mais frequente para as
procissões imperiais (KAZHDAN, 1991, p. 1346-134; KUBAN,
1996, p. 35-72). No século V, a via desembocaria no Portão

9
Em grego Μέγα Παλάτιον, e em latim Palatium Magnum.
10
As termas foram assim batizadas devido ao fato de terem sido construídas
sobre um antigo templo de Júpiter (Zeus) (GILLES, 1998, p. 70).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 243


CONSTANTINOPLA ALÉM DO IMPÉRIO BIZANTINO

Dourado,11 a principal entrada cerimonial de Constantinopla,


construída durante os governos de Teodósio, Arcádio e Teodósio
II. O célebre portão era utilizado especialmente para ocasiões
como a entrada triunfal do imperador após uma vitória militar
ou para cerimônias de investidura, entre outros eventos solenes
(MANGO, 1991c, p. 858-859; 2000, p. 179).

Figura 4 – Reconstrução virtual do Hipódromo de


Constantinopla

Fonte: Reconstrução feita por Jonathan Bardill, entre 2008 e 2010, para a
exposição “Hippodrome and Atmeydani: a stage for Istanbul’s history”,
em 2010. Imagem pertencente ao acervo byzantium1200.com

A segurança da cidade também foi uma das preocupações


de Constantino, que edificou uma grande muralha. No entanto,
no século V, Constantinopla já havia ultrapassado os limites da
Muralha de Constantino, que foi substituída pela Muralha de

11
Em grego Χρυσεία Πύλη (Chryseia Pylē), e em latim Porta Aurea.

244 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOÃO CARLOS FURLANI

Teodósio, tornando-se mais extensa (Figura 5), assim como o


Portão Dourado, que também foi objeto de acréscimo (BURY,
1958, p. 75; BARDILL, 2004, p. 122).

Figura 5 – Seção restaurada das Muralhas de Teodósio no


Portão da Selimbria, 2006

Fonte: Wikimedia Commons. Bigdaddy1204, 2006

Por fim, não poderíamos esquecer do Milião (Μίλ(λ)ιον),


um monumento utilizado para medição de milhas, localizado
próximo ao Augustaion e aos antigos muros de Bizâncio. Essa
estrutura funcionava como o ponto de partida para as medições de
distâncias das estradas que levavam paras as cidades do Império,
de maneira bem similar ao Miliário Dourado (Milliarium Aureum)
instalado em Roma. Surpreendentemente, o Milião sobreviveu
à conquista de Constantinopla, pelas mãos dos otomanos, em
1453. Todavia, ele desapareceu no começo do século XVI e foi
parcialmente recuperado durante as escavações arqueológicas
realizadas na década de 1960, em Istambul. Infelizmente, apenas
um fragmento sobreviveu.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 245


CONSTANTINOPLA ALÉM DO IMPÉRIO BIZANTINO

Uma metrópole político-religiosa

Como cidade imperial, Constantinopla tornou-se um


centro urbano requisitado, vindo a crescer em grande escala, com
o consequente aumento da população cristã. Convém ressaltar
que o cristianismo, à sua maneira, contribuiu para importantes
mudanças na cidade, tanto na paisagem quanto no cotidiano.
Gregory (1979, p. 16) afirma que os cultos cristãos procuravam
fornecer, nos mais variados aspectos, uma experiência unificadora
que fosse comum para a maioria dos membros da sociedade.
No ambiente citadino, as igrejas, de forma geral, também
desempenhavam um papel importante na vida social e econômica.
A estrutura da igreja, devemos lembrar, não era apenas um
local de culto, mas, igualmente, um grande complexo onde as
pessoas se reuniam por motivos distintos (GREGORY, 1979, p.
17). Como unificadora de experiências, a igreja era palco para
debates sobre a preocupação com os pobres, os doentes e os
idosos, que resultavam na construção de residências, hospitais,
albergues e orfanatos, visando à assistência aos desvalidos
(DANIÉLOU; MARROU, 1984, p. 332-333). Sem dúvida,
essas medidas interferiam na paisagem urbana, uma vez que a
multiplicação de edifícios era corrente. Além disso, os clérigos
despenderam tempo para cuidar de uma situação socioeconômica
precária, levando em consideração o crescimento da população,
juntamente com os problemas inerentes e as tensões de cunho
social que tal crescimento gerava (DAGRON, 1974, p. 367-409).
Importa destacar que Constantinopla, Éfeso, Alexandria
e Antioquia foram as mais importantes cidades do Império
Romano do Oriente, atuando como centros administrativos,
econômicos e eclesiásticos e estendendo sua influência para além
de seus territórios. Até o governo de Teodósio (378-395), Éfeso,
por exemplo, havia se tornado uma cidade predominantemente

246 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOÃO CARLOS FURLANI

cristã. Em Alexandria, a figura episcopal era vista como uma fonte


de unidade urbana, exercendo cada vez mais poder à medida que
o cristianismo se espalhava entre os cidadãos. Todavia, as raízes
clássicas em Alexandria eram fortes e seus apoiadores ofereceram
resistência aos cultos cristãos, apesar de João Crisóstomo, um
dos mais influentes bispos de Constantinopla, ser procedente de
lá (GREGORY, 1979, p. 32-34).
É bom lembrar que, assim como o poder e o prestígio de
Constantinopla como cidade aumentavam, o status daqueles
que faziam parte do círculo de administração econômica, social
e religiosa também ascendia, o que, é claro, incluía o bispo
da capital. Até o final do século IV, o bispo da cidade só teria
menos poder que o bispo de Roma (Soc., Hist. Eccl., XVIII). Tal
constatação, sem dúvida, desagradou boa parte do episcopado
oriental, especialmente os bispos de Alexandria e de Éfeso, que
já usufruíam de notório prestígio (GREGORY, 1979, p. 35).
O status de grande cidade era recente para Constantinopla,
uma vez que os conflitos irrompidos em Bizâncio deixaram
marcas em seu território. Como cidade imperial, herdou a
maior parte das instituições e muitas tradições de Roma. Uma
conclusão valiosa sobre Constantinopla é obtida ao analisarmos
sua população, que pode ser considerada um tanto ou quanto
nova, devido ao remodelamento da cidade. Além disso, muitos
dos residentes da capital eram imigrantes de várias partes do
Império que, até meados do século IV, não apresentavam uma
relação mais estreita com a cidade (GREGORY, 1979, p. 34).
A súbita expansão populacional gerou certa instabilidade bem
como mudanças de cunho social na cidade, cuja população
crescia cada vez mais (MANGO, 1991a, p. 510).
A rápida ascensão de Constantinopla e sua consequente
instabilidade socioeconômica, para alguns autores, como Gregory
(1979, p. 34-35), foi contornada, até certo ponto, pela intensa

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 247


CONSTANTINOPLA ALÉM DO IMPÉRIO BIZANTINO

atividade de construção, responsável por ofertar emprego à


crescente população. Provavelmente, até o início do século V,
Constantinopla já teria ultrapassado outros importantes centros
urbanos imperiais, contando então com cerca de 400.000
habitantes. Para Jacoby (1961), esse número ultrapassava os
700.000 habitantes. Já Mango (1991a, p. 508) declara que as
estimativas variam de 250.000 a 1.000.000 de residentes. Não
obstante o caráter um tanto ou quanto arbitrário dessas cifras,
não resta dúvida de que Constantinopla era uma das cidades mais
populosas do Império Romano na segunda metade do século IV.
Assim como Alexandria, Antioquia e Roma, Constantinopla
tornou-se um centro comercial e polo de manufaturação. Os
produtos fabricados eram, em geral, artigos de luxo, tais como
joias, tecelagem e trabalhos em metal, embora grande parte dos
habitantes estivesse empregada no provimento de necessidades
básicas, produzindo gêneros alimentícios – com destaque para o
pão –, azulejos, cerâmica e ferramentas (GREGORY, 1979, p. 35).
Em razão da maneira como foi criada, não é de se estranhar
que a capital do Oriente e a sua economia fossem dominadas
pela presença da corte imperial. Teodósio, por exemplo, fundou
a Igreja de São João Batista para abrigar o crânio do santo, bem
como um pilar memorial para si mesmo no Fórum de Touro.
Símbolos imperiais não paravam de surgir. Entre diversos
monumentos, Arcádio, para celebrar sua vitória contra o oficial
ostrogodo Gainas, construiu um novo fórum em homenagem
a si mesmo na Mese, próximo das muralhas de Constantino
(NECIPOGLU, 2001, p. 31; GREGORY, 1991, p. 814). Em vários
pontos da urbs, a presença do poder dos imperadores fazia-se
sentir, em particular, por meio de colunas imponentes, estátuas,
igrejas monumentais e procissões imperiais (Soc., Hist. Eccl.,
XVI; GREGORY, 1979, p. 35), como podemos observar na Figura
6, na qual temos o chamado Obelisco de Teodósio.

248 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOÃO CARLOS FURLANI

Figura 6 – Obelisco de Teodósio, Istambul, Turquia, 2010

Fonte: Wikimedia Commons. Jose Mario Pires, 2010

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 249


CONSTANTINOPLA ALÉM DO IMPÉRIO BIZANTINO

O obelisco foi erigido, no século XV a.C., a mando de


Tutemés III (r. 1479-1425 a.C.), a sul do sétimo pilone do grande
Templo de Karnak, no que é hoje a cidade egípcia de Luxor.12 Em
357, Constâncio II decretou que o transportassem, juntamente
com outro obelisco, ao longo do rio Nilo para Alexandria, com
a intenção de comemorar a sua ventennalia.13 O outro obelisco
foi assentado na spina do Circo Máximo,14 em Roma, no outono
do mesmo ano e é atualmente conhecido como Obelisco
Lateranense. O chamado Obelisco de Teodósio permaneceu em
Alexandria até 390, quando Teodósio ordenou que fosse levado
para Constantinopla para ser colocado na spina do hipódromo da
capital imperial, sob supervisão do prefeito Próculo, por ocasião
da vitória do imperador sobre o usurpador Magno Máximo
(HABACHI, 1985, p. 145-151; CUTLER, 1991, p. 1509).15
Com o tempo, todo esse desenvolvimento de Constantinopla
atraiu um grande número de administradores, cortesãos e
burocratas, além de litigantes e peticionários das províncias
orientais, característica de uma metrópole. Mas a maior cifra
provinha de outro lugar. Por um lado, um grande número de
fiéis cristãos se dirigia à cidade, seja em busca de milagres,
auxílio espiritual ou simples peregrinação. Por outro lado, havia
aqueles que buscavam o luxo e o conforto que a capital poderia
proporcionar (MANGO, 1991a, p. 510). Muitos dos residentes,
provavelmente, devem ter se beneficiado da situação, ganhando
a vida por meio do exercício de diversas atividades urbanas,

12
Pilone, no Antigo Egito, era um grande pórtico dos templos, em forma de
pirâmide truncada, que ladeava a entrada.
13
Em português, ventenália, significa literalmente “20 anos no trono”.
14
Os anfiteatros possuíam forma elíptica, com um eixo central, a qual era
chamada de spina.
15
Uma publicação sobre o Obelisco de Teodósio está sendo desenvolvida pelo
autor. Devido ao limite de páginas, restringimo-nos a fazer uma breve menção
ao monumento, mas ressaltamos sua forte relação com o culto imperial.

250 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOÃO CARLOS FURLANI

como aquelas que envolviam alimentação, habitação, lazer ou até


mesmo praticando furtos (GREGORY, 1979, p. 35).
Um fato curioso durante a gestão teodosiana se refere a
Arcádio. Diferentemente dos demais imperadores do Oriente,
Arcádio não é caracterizado como inovador ou como um forte
soberano. Apesar disso, ao menos no que se refere às fronteiras,
é descrito como cauteloso e firme. Porém, talvez isso seja
resultado da situação que acometia a parte ocidental do Império
(NATHAN, 1998).
A imagem soberana de Arcádio, em verdade, foi construída
com base no atributo da piedade, assim como ressalta o anônimo,
em Vita Olympiadis (11), que o chama de o “imperador mais divino
e piedoso”. Além disso, a ausência de Arcádio tornou-se mais uma
de suas características em Constantinopla (MAYER, 2002), o que
possibilitou, de acordo com Nathan (1998), o aumento do poder
dos demais funcionários e também o fortalecimento da imagem
de Eudóxia, a imperatriz, que se distinguia bastante do marido
com relação ao aparecimento em público. Contudo, a separação
entre o público e a natureza do imperador reforçada por Arcádio,
além de estimular a curiosidade dos habitantes sobre o imperador,
parece também ter enfatizado o culto imperial (NATHAN, 1998).
Com a aliança entre Império e Igreja, a quantidade de
relíquias de mártires, monumentos e complexos religiosos só
aumentava, característica marcante da gestão de Arcárdio, que
promoveu diversas reformas, confisco e conversão de templos
em estruturas cristãs, além da multiplicação de martyria.16

16
O martyrium, traduzido como “martírio”, pode ser definido como uma
estrutura construída em um local que professa testemunho da fé cristã,
tanto por referência à vida de Jesus, quanto por abrigar o túmulo de um
mártir (KRAUTHEIMER, 1986, p. 518). Apesar de não terem um padrão
arquitetônico, os martyria foram muito difundidos no século IV, o que gerou
a diversidade de formas e modelos (YASIN, 2012, p. 251). Contudo, ao redor

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 251


CONSTANTINOPLA ALÉM DO IMPÉRIO BIZANTINO

Logo, Constantinopla tornou-se um importante centro de


peregrinação, atraindo milhares de fiéis, que frequentavam os
espaços da cidade, o que inclui as próprias igrejas.
Uma das igrejas mais famosas de Constantinopla é a
chamada Hagia Irene ou Hagia Eirene (Ἁγία Εἰρήνη). Acredita-se que,
originalmente, a estrutura de um templo dedicado a Afrodite tenha
sido convertida na então primeira igreja de Bizâncio, isso no século
IV, antes de Constantino ter a ampliado e a batizado como Εἰρήνη,
quando da conversão da cidade em residência imperial (MANGO,
1991d, p. 1009). Após sua conclusão, serviu como a principal igreja
da sé de Constantinopla até a edificação de uma nova igreja sob o
comando de Constâncio II, em 360, que viria a ser a Hagia Sophia
(ODAHL, 2010, 237-239). Cumpre notar que é exatamente por
esse fato que a Notitia Urbis Constantinopolitanae (II, 231) se refira a
esta construção como Ecclesiam antiquam, em oposição a estrutura
mais recente, a Ecclesiam magnam ou Magna Ecclesia. Apesar disso, foi
na Ecclesiam antiquam que, em 381, o Segundo Concílio Ecumênico
ou o Primeiro Concílio de Constantinopla se reuniu. A igreja de
Constantino continuou firme até ser destruída, em 532, durante
a Revolta de Nika, o que ocasionou a reconstrução do edifício
religioso por Justiniano (DOIG, 2008, p. 65).
A Hagia Sophia (Άγια Σοφία), por sua vez, é o mais
imponente edifício religioso de Constantinopla, da qual muito
ouvimos falar. Entretanto, antes da construção da basílica de
Justiniano, entre 532 e 537, outra igreja com o mesmo nome
já existia em seu lugar, também chamada de Μεγάλη Ἐκκλησία,
Magna Ecclesia ou simplesmente Grande Igreja (Not. Urb. Cons.,
II, 231). Se comparada às demais estruturas da cidade, mesmo a
primeira versão da igreja já possuía dimensões extraordinários,

do monumento, frequentemente havia um piso mais baixo para trazer os


fiéis mais perto das relíquias, além de uma fenestella, uma pequena abertura,
que ia do altar de pedra para o túmulo em si (SYNDICUS, 1962, p. 73-89).

252 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOÃO CARLOS FURLANI

por isso recebeu tal designação (JANIN, 1953, p. 471). Por meio
de Sócrates (Hist. Eccl., II, 16) sabemos que a Magna Ecclesia foi
construída durante o governo Constâncio II, por um período de
quase 15 anos, de 346 até a inauguração em 360, no momento
em que o ariano Eudóxio de Antioquia ocupava o cargo
episcopal. Não obstante a questão da fundação, o edifício foi
arquitetonicamente projetado no estilo de uma basílica romana
colunada, com galerias, teto de madeira e átrio, de modo a ser
exuberante e resistente (JANIN, 1953, p. 472). É nessa igreja
que, inclusive, João Crisóstomo atuou e foi consagrado como um
dos mais notáveis bispos de Constantinopla. Por coincidência, é
justamente devido ao tumulto causado após a proclamação do
Sínodo do Carvalho, a destituição de João do cargo episcopal e
o exílio deste, que a Magna Ecclesia foi quase que inteiramente
consumida pelas chamas (Zósimo, Historia Nova, V, 24).
Aliada à ascensão de Constantinopla e à condição de capital
do Império no Oriente, um elemento fundamental para fortalecer o
status da cidade foi, como vimos, sua promoção à condição de uma
digna capital religiosa, sobretudo cristã. Esse processo, segundo
Ramón Teja (1999, p. 11), foi acelerado quando, em 380, Teodósio
conseguiu resolver o problema da insegurança nas fronteiras e
transferiu-se de Tessalônica para Constantinopla. Segundo alguns
autores, como Rosemary Radford Ruether (1969, p. 45) e o próprio
Teja (1999, p. 11), o imperador buscava impor a ortodoxia nicena,
já fortemente estabelecida no Ocidente e no Egito, mas que ainda
era motivo de disputa no Oriente – como pode ser bem observado
no confronto entre arianos e nicenos –,17 tese questionada por
Helena Amália Papa (2016, p. 14), que enxerga o favorecimento

17
Para mais informações a respeito do conflito entre arianos e nicenos, cf.
Papa (2014). As análises de Ventura da Silva (2003a) sobre o governo de
Constâncio II e os efeitos de política imperial sobre os distintos grupos
cristãos são também fundamentais para compreender este conflito.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 253


CONSTANTINOPLA ALÉM DO IMPÉRIO BIZANTINO

imperial aos nicenos não apenas como uma preocupação em fixar


leis e determinar as crenças religiosas para todo o território do
Império Romano, mas como uma tentativa de manter a dinâmica
e o bom funcionamento do governo. De uma forma ou de outra,
a celebração do Concílio de Constantinopla, em 381, elevou ainda
mais a tensão entre as diferentes sés orientais, uma vez que, na
ocasião, além das discussões de cunho doutrinário e disciplinar,
houve a tentativa de reafirmar Gregório de Nazianzo como o bispo
da nova capital e, na esperança de reconciliar as comunidades
cristãs orientais e ocidentais, Paulino teria sido reconhecido como
patriarca de Antioquia, o que gerou mais polêmicas com os bispos
das províncias romanas do Egito e da Macedônia, que apoiavam
Máximo I para o episcopado de Constantinopla (MCGUCKIN,
2001, p. 358-359).
Após o Concílio de Constantinopla, o hipotético equilíbrio
de poderes entre os episcopados, que havia sido definido no
Concílio de Niceia, ainda em 325, ocasião na qual sancionou-se
a primazia de Roma no Ocidente e a de Alexandria e Antioquia
no Oriente, estava ameaçado. Isso ocorreu, sobretudo, pela
promulgação do terceiro cânone do Concílio de Constantinopla,
que afirma: “O bispo de Constantinopla, no entanto, terá a
prerrogativa de honra (presbeia tēs timēs) depois do bispo de
Roma; porque Constantinopla é a Nova Roma” (Concilium
Constantinopolitanum I, 3). A promoção de Constantinopla como
residência permanente do imperador e como capital religiosa
teria, portanto, questionado a instituição de poderes outrora
estabelecidos pelas sés mais antigas (TEJA, 1999, p. 12).
Entretanto, a prerrogativa de honra de Constantinopla exposta
no Concílio teria gerado ainda mais insatisfação tanto entre as
demais sés orientais, que teriam perdido sua primazia, quanto
no Ocidente, que via a ascensão da nova capital como uma
possível rival diante de Roma. Motivo pelo qual o episcopado

254 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOÃO CARLOS FURLANI

romano não aceitou a validade do terceiro cânone, debatendo-o


e confrontando-o pelos séculos seguintes.
Em face desse fervoroso conflito, Gregório de Nazianzo
buscava justificar a ascensão de Constantinopla, afirmando
que esta foi convocada a desempenhar um papel de extrema
importância na querela protagonizada entre o Oriente e o
Ocidente. Nas palavras do bispo:

Esta cidade é a pérola do universo, que tem o supremo poder sobre


a terra e o mar, que é algo como o elo de união entre os confins do
Oriente e do Ocidente, para a qual, de todos os horizontes, todas
as eminências convergem e onde tudo encontra sua origem como
porto comum de fé (Gregório de Nazianzo, Oration, 42, 10).

Após a sua renúncia à posição de bispo de Constantinopla


e o retorno à terra natal, na Capadócia, Gregório, uma vez
mais, assumiu o episcopado de Nazianzo e começou a compor
Carmina de vita sua, seu poema autobiográfico (RUETHER,
1969, p. 45). Em sua derradeira obra, Gregório retoma suas
considerações sobre Oriente e Ocidente, desta vez fazendo
alusão aos modelos cósmicos para defender a posição de
Constantinopla e a coexistência pacífica entre as duas capitais.
Para o bispo de Nazianzo:

[...] a natureza não nos deu dois sóis, mas duas Romas, que
iluminam todo o universo: uma, poderosa há muito tempo, a
outra, há pouco; diferem apenas no fato de uma brilhar no Oriente
e outra no Ocidente, mas em ambas a beleza compete com a beleza
(Greg. Naz., Carmina de vita sua, 562-567).
Considere agora o belo raciocínio que eles ofereceram: era
necessário, segundo eles, que a situação da Igreja se adaptasse
ao modelo solar e que a autoridade viesse da terra de onde Deus
nos foi apresentado em seu corpo revestido de carne. E então?

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 255


CONSTANTINOPLA ALÉM DO IMPÉRIO BIZANTINO

Aprendemos a não venerar o movimento dos astros e acreditamos


que a carne de Cristo é a primeira de todo o gênero humano.
Ademais, se eles podem responder que Ele nasceu no Oriente é
porque ali existia maior imprudência e Ele poderia encontrar mais
facilmente a morte para depois ressuscitar e assim salvar a nós
(Greg. Naz., De vita sua, 1690-1699).

Independentemente dos esforços de Gregório em tentar


equiparar e apaziguar as disputas entre as duas capitais, o
fato desconcertante para os bispos contrários à ascensão de
Constantinopla remontava, sobretudo, à ampliação dos poderes
que a cidade recebeu em 381. Além da prerrogativa sobre as
sés orientais, a jurisdição do bispo de Constantinopla sobre os
territórios havia sido ampliada, a reunião episcopal concedeu-
lhe o direito de consagrar as dioceses de Ponto, da Ásia e da
Trácia, reduzindo ainda mais a importância das metrópoles do
Oriente, que já usufruíam de notório prestígio (GREGORY,
1979, p. 35). Sessenta anos após o polêmico Concílio, o assunto
ainda era motivo de desacordo, o que levou Leão I (Epistola,
CVI, V), bispo de Roma, a ser enfático em sua carta a Anatólio,
bispo de Constantinopla, ao declarar que o suposto cânone
nunca havia sido submetido a Roma e que sua promulgação se
tratava de uma violação da ordem do Concílio de Niceia. Por
fim, assim como ressalta Teja (1999, p. 14), a transcendência
histórica desse acordo constituía apenas o prelúdio ou início da
grande rivalidade entre as sés episcopais alinhadas a Roma e a
Constantinopla, que perdurou por séculos.

Considerações finais

As cidades, sem dúvida, não seriam tão complexas e


reveladores em suas formas sem as diversificadas apropriações

256 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


JOÃO CARLOS FURLANI

e representações humanas, uma vez que o espaço urbano é


extremamente importante para a compreensão de inúmeros
processos históricos e geográficos. É esse espaço urbano que,
muitas vezes, converte-se em palco para construções, revoltas e
espetáculos. Em Constantinopla isso não poderia ser diferente.
De trajetória única, Bizâncio passou de colônia grega
para uma respeitável cidade portuária, em constante expansão.
Travou confrontos bélicos e sofreu com as guerras, foi destruída
e tornou-se subalterna de Roma. Foi reconstruída, reestruturada,
cobiçada e transformou-se numa digna capital imperial. Cidade
de comércio, expansão militar, espetáculos teatrais, jogos e
apostas. Zona de permanências e rupturas, de tradição e inovação.
Capital do Império e também da proclamação do cristianismo,
detentora de uma jovem sé, mas de autoridade invejável. Essa é
a Constantinopla de sua origem ao “longo século IV”, complexa,
respeitável e em constante ascensão, mesmo antes de ser
caracterizada como a capital do Império Bizantino de Justiniano.
Mesmo que de maneira geral, por meio do que
apresentamos até aqui, foi possível perceber quão rica é a
história de Constantinopla. Outrossim, observações mais
robustas também podem ser realizadas. Um aspecto marcante
que foi notado durante toda a reformulação da capital se refere
ao uso de imagens, às construções públicas e privadas e à própria
ampliação da cidade, no final do século IV e início do século V.
Todas essas medidas contribuíram, além de criar uma verdadeira
capital, para reforçar a própria figura do imperador.
As colunas e a arquitetura utilizadas na construção do
Fórum de Arcádio, por exemplo, não eram aleatórias, com
elas buscava-se uma representação específica de grandeza
para o Império do Oriente e, em especial, para sua capital,
Constantinopla (BASSETT, 2004, p. 96). A Mese, principal via
urbana, foi projetada para cortar quase toda a cidade e abrigar

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 257


CONSTANTINOPLA ALÉM DO IMPÉRIO BIZANTINO

procissões imperiais em datas festivas. Os fóruns de Constantino,


Arcádio e Teodósio, os palácios, as termas, o hipódromo, o teatro,
as praças, as grandes muralhas, todas essas construções exibiam
ares de tradição, da gloria romanorum, e expunham, sempre que
possível, estátuas, obeliscos, mosaicos e outros monumentos
que reforçavam a representação e a imagem de poderio imperial.
Em outras palavras, a prática da monumentalidade
mostrou-se fortemente presente na cultura greco-romana, o que
inclui Constantinopla. A construção, a apropriação e a exibição
de artefatos evidencia perfeitamente isso. A possibilidade de
incorporar monumentos egípcios, gregos e romanos e transmitir
uma mensagem inteligível para a sociedade serviu como aparato
para os governantes de Constantinopla reforçarem aquilo que é
denominado como culto imperial. Essa potência da arquitetura
não ficou restrita à política oficial do Império. Os cristãos,
em constante expansão na cidade, souberam utilizar prédios,
monumentos, martyria e basílicas para fazer frente à tradição
romana e professar o seu credo, não somente por meio do
discurso oral, mas também por discursos visuais, imagéticos
e simbólicos. Ao que parece, a história de Constantinopla tem
muito mais a nos oferecer do que os manuais nos apresentam.

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264 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


A rua e suas funções na cidade pós-
clássica: algumas reflexões sobre o caso de
Antioquia (351-450)

Gilvan Ventura da Silva

Palavras iniciais

J
oão Crisóstomo, um dos mais renomados oradores em
língua grega da Antiguidade, ao se dirigir à audiência que
se reunia, em Antioquia, para ouvi-lo pregar, costumava
dispensar uma atenção especial à maneira como os cristãos
lidavam com os respectivos corpos no recinto da igreja, tida
como escola espiritual e prefiguração da morada celeste,
estabelecendo assim uma polarização entre comportamentos
adequados à igreja e aqueles que tinham como cenário os
ambientes abertos da cidade, suas ruas, avenidas e praças,
o que o leva a censurar os fiéis que aproveitavam o encontro
proporcionado pelos ofícios religiosos para se exibir de modo
impróprio, rindo, gracejando e entabulando uma animada
conversação, como se estivessem circulando livremente pelas
ágoras de Antioquia,1 assunto que tivemos a oportunidade de

1
Antioquia contava com pelo menos duas ágoras. A mais antiga, que
remontava à época de fundação da cidade por Seleuco Nikátor, em 300 a.C.,
ficava às margens do Orontes. A segunda, localizada no bairro denominado
Epifânia, teria sido construída por Antíoco IV Epifânio (175-164 a.C.). Essa
segunda ágora é certamente aquela mencionada pelos autores da época
tardia, dentre os quais Amiano Marcelino, João Crisóstomo, Libânio e João
Malalas. A ágora de Epifânia abrigava o bouleuterion, a sede do conselho

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 265


A RUA E SUAS FUNÇÕES NA CIDADE PÓS-CLÁSSICA

explorar em trabalho recente (SILVA, 2014). Uma preocupação


recorrente de João Crisóstomo ao formular suas diatribes era
evitar que os membros da sua congregação ultrapassassem os
limites entre a igreja e a rua,2 transportando para aquela atitudes
incompatíveis com a dignidade do ambiente, ao mesmo tempo
que desqualificava e censurava tudo aquilo conectado com a rua,
território privado de ordem e de decência ou, melhor dizendo,
saturado de desordem e de indecência, pois nele a população,
reunida de modo casual e descontraído, outras vezes nem tanto,
tenderia sempre ao excesso e à licenciosidade, forjando-se assim
um nexo indissolúvel entre a multidão e a rua, cuja ocupação seria
sempre motivo de desconfiança, quando não de medo. Traços de
um pensamento como esse podem ser igualmente detectados
na opinião de Juliano acerca dos habitantes de Antioquia, que
considera dissolutos e insolentes pelo fato de se apresentarem,
em praça pública, de modo indecoroso, cantando, dançando e
ofendendo as autoridades imperiais com gracejos rudes, o que
dá ensejo à elaboração, em 363, do Misopógon, inventiva por
meio da qual o imperador, enfurecido, manifestava todo o seu
desagrado com a irreverência dos antioquenos, que, no decorrer

municipal; uma basílica denominada Basílica de Rufino, em homenagem


ao prefeito do pretório de Constantino, que supervisionou sua construção;
e um Mouseion, um templo dedicado às musas que, no século IV, foi
convertido no praetorium do comes Orientis (DOWNEY, 1961, p. 624).
2
Neste capítulo, o termo rua, quando empregado no singular e sem
qualificativo, se refere aos recintos de livre acesso na cidade, capazes de
comportar a multidão. Rua, desse modo, inclui não apenas a via de trânsito
propriamente dita, mas as suas margens (calçadas), bem como as adjacências
(praças, jardins) com as quais mantém uma estreita dependência do ponto
de vista urbanístico. No Império Romano, as ruas, denominadas via, platea,
semita, angiportus, vicus e as praças, denominadas forum, campus, area, agora,
eram todas incluídas na categoria de loca publica, em oposição aos loca
privata, encontrando-se assim sob a supervisão das autoridades municipais
e/ou imperiais, que deveriam regular o seu uso, como fazem Graciano e
Teodósio numa lei de 11 de junho de 383 (C. Th. XV, 1, 24).

266 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


GILVAN VENTURA DA SILVA

das festas das Calendas de Janeiro, não hesitavam em tomar de


assalto as ruas da cidade, não apenas para comemorar a chegada
do Ano Novo, mas também para manifestar o seu desagrado
com as autoridades imperiais e municipais (SILVA, 2013).
Subjacente às reflexões de autores, no mínimo, antitéticos
como João Crisóstomo e Juliano acerca da maneira como
a população de Antioquia se comportava nos ambientes a
céu aberto, é possível isolar-se um denominador comum: a
tendência dos habitantes da cidade em se manifestar de modo
espontâneo, descontraído e, não raro, debochado em todas
as ocasiões festivas, fossem elas de natureza pagã, judaica ou
cristã, tendência esta que, em algumas circunstâncias, adquiria
contornos violentos, quando então o mero deboche dava margem
a atos vigorosos de protesto, com a depredação de edifícios e
monumentos acompanhada por escaramuças entre a população
enfurecida e as autoridades públicas. Para além da pletora de
juízos de valor acerca do caráter indômito da multidão formulada
pelos autores antigos,3 subsiste o fato de que Antioquia, nos
séculos IV e V, era uma cidade na qual a população exibia,
no cotidiano, uma notável desenvoltura ao estabelecer uma
relação de profunda intimidade com as ruas e praças. A zona
central da cidade, dispondo de iluminação artificial, era dia e
noite ocupada com atividades de natureza econômica, lúdica ou
mesmo política, acontecimento que, acreditamos, encontrava-
se associado ao plano urbanístico, que ostentava uma avenida
monumental ladeada por colunas, bem como duas ágoras e um
fórum. O complexo da avenida das colunatas, integrado à ilha
formada pelo Orontes, na qual situavam-se o palácio imperial

3
Para maiores informações sobre a tradição literária latina de censura
à multidão, incluindo as camadas inferiores da sociedade e aqueles que
exerciam ofícios declarados infames, como os gladiadores, as atrizes e as
prostituas, consultar Edwards (1993).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 267


A RUA E SUAS FUNÇÕES NA CIDADE PÓS-CLÁSSICA

e o hipódromo, constituía o epicentro, o coração de Antioquia,


cenário privilegiado para todas as manifestações da população,
tanto daquelas que poderíamos qualificar como ordinárias,
a exemplo do comércio e do artesanato, esteios da economia
local, quanto das extraordinárias, caso das revoltas contra a
administração pública e dos festivais pagãos e cristãos. Pois
bem, quando refletimos sobre a situação de Antioquia no século
IV, somos de imediato estimulados a refletir também sobre a
configuração da cidade greco-romana na Antiguidade Tardia,
momento decisivo da história da pólis ou da civitas, quando
verifica-se a emergência do que os autores têm há alguns anos
designado como a cidade pós-clássica (WHARTON, 1995; RAPP;
DRAKE, 2014), uma modalidade particular de organização
cívica que, embora conservando, em muitas localidades, o antigo
contorno da cidade helenística e romana, sofre, a partir do século
IV, transformações importantes do ponto de vista econômico,
administrativo, religioso e arquitetônico que assinalam a chegada
de novos tempos, já na transição para o medievo.

A cidade antiga entre a tradição e a inovação

A despeito do debate suscitado por Liebeschuetz (2001, p.


415) ao aplicar, de modo provocativo, as antigas teses do declínio
e queda do Império Romano à experiência urbana, buscando
demonstrar que as cidades, na Antiguidade Tardia, passaram por
um processo de aguda ruína, um dos principais méritos de sua
obra The decline and fall of the Roman city é nos alertar para o fato
de que as cidades romanas experimentaram, do século III em
diante, alterações substantivas no seu modelo de funcionamento
conforme os rumos da política imperial.4 Como assinala o autor,

4
Certamente sob inspiração dos estudos de Liebeschuetz, Ward-Perkins

268 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


GILVAN VENTURA DA SILVA

entre os séculos IV e V verifica-se, em termos espaço-temporais,


um evidente desequilíbrio na trajetória das cidades situadas
nos territórios ocidentais quando comparadas àquelas do
Oriente, em especial as da Ásia Menor e da Síria-Palestina, pois
enquanto as primeiras manifestam um esgarçamento evidente
das estruturas que sustentam a vida urbana, as segundas
demonstram notável vitalidade que se perpetuará, com variações
locais, até o início da expansão árabe, no século VII. Seja como
for, tanto a Oriente quanto a Ocidente as cidades, geridas por
seus conselhos (curia, boulé), continuam a ser, na Antiguidade
Tardia, as células da administração imperial por meio das quais
procedia-se à arrecadação de impostos, ao exercício da justiça
e ao aprovisionamento do exército, embora com inovações que
não podem ser ignoradas.
A primeira delas diz respeito à própria modalidade de
funcionamento da cúria, que por séculos foi o principal órgão
responsável pela administração do núcleo urbano (ásty) e da zona
rural circundante (khóra), quando os seus membros, integrantes
da elite local, gozavam de notável autonomia no gerenciamento
dos assuntos municipais, respondendo pela maioria dos serviços
de manutenção da vida urbana – restauro e construção de
monumentos e edifícios, aprovisionamento de água e de víveres,
patrocínio de festivais, conservação das estradas e do cursus
publicus – mediante o sistema de liturgia, de subsídio voluntário
às atividades cívicas, o que suscitava uma intensa concorrência
entre os membros da cúria. Com a ampla reforma administrativa

lança, em 2006, The fall of Rome and the end of civilization, obra na qual retoma
o debate acerca da ruína da cidade antiga, mas agora valendo-se de dados
provenientes, em sua maioria, do acervo arqueológico. Assim como no
caso de Liebeschuetz, as conclusões de Ward-Perkins provocaram diversas
reações nos meios acadêmicos, contribuindo para reacender um debate que
se encontrava então um tanto ou quanto esvaziado.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 269


A RUA E SUAS FUNÇÕES NA CIDADE PÓS-CLÁSSICA

levada a cabo por Diocleciano e Constantino, reforma esta


caracterizada, dentre outros fatores, pelo sensível aumento dos
níveis de arrecadação, constatamos o aprofundamento de uma
tendência delineada desde o século II: a redução dos poderes da
cúria, que passa a ser controlada de perto por agentes do governo
encarregados de supervisionar as finanças da cidade e garantir que
os decuriões cumpram com seus deveres, mesmo que para tanto
seja necessário recorrer à coerção.5 Um fator decisivo para a perda
de autonomia das cúrias ao qual não se costuma prestar a devida
atenção foi, sem dúvida, a multiplicação das províncias, com o
consequente aumento do número de governadores (consularis,
correctores e praesides). Controlando unidades territoriais menores,
os governadores passam a supervisionar as cúrias urbanas com
maior eficiência, tornando assim muito mais efetiva a presença
do poder central nos extensos domínios do Império (WARD-
PERKINS, 2008, p. 375).
Outro duro golpe na autonomia municipal foi o confisco
das terras públicas (fundi iuri rei publicae) exploradas pelas cúrias,
na proporção de 2/3, medida tomada por Constâncio II que
mais tarde Juliano tentou, sem sucesso, reverter (JONES, 1979,
p. 149; CARVALHO, 2005, p. 117), o que não representa, no
entanto, um indício inequívoco de que as finanças municipais
tenham subitamente entrado em colapso, pois uma parcela do
montante arrecadado pelos scrinia imperiais era investido nas
próprias cidades (CARRIÉ; ROUSSELLE, 1999, p. 708). Muito
embora, quando se trata de isolar os motivos do esgotamento

5
O controle das finanças públicas por agentes especiais (curatores)
nomeados pela administração central é um acontecimento que remonta ao
governo de Trajano, mas que será institucionalizado pelos juristas da corte
severiana ao legislarem no sentido de colocar as cidades sob tutela jurídica,
prescrevendo, em termos legais, os encargos (munera) dos integrantes das
cúrias urbanas e dos titulares dos honores (ALFOLDY, 1989, p. 184-5).

270 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


GILVAN VENTURA DA SILVA

do sistema curial na Antiguidade Tardia, um dos fatores mais


evocados seja o esvaziamento do ordo decurionis, uma vez que
seus membros, pressionados pelo governo central a cumprir
a todo custo suas obrigações cívicas, teriam logo buscado
refúgio nas fileiras do exército, da administração imperial ou da
Igreja, não devemos concluir, de modo apressado, pela súbita
dissolução das redes de evergetismo local e, por extensão, das
atividades que caracterizavam o modus vivendi urbano. Na cidade
pós-clássica, mesmo diante do severo controle imposto à cúria e
ao ordo decurionis, o que, no limite, comprometia os mecanismos
de financiamento do aparato urbano, a ascensão de notáveis
locais, na figura de generais, governadores de províncias,
vicários, integrantes da elite senatorial e bispos permitiu, em
especial no Oriente, a continuidade da vida urbana com muitas
das características herdadas do período anterior, como vemos em
Antioquia e alhures (BUTCHER, 2003, p. 262; NATALI, 1982).6
Outro traço distintivo da cidade pós-clássica é a presença
ostensiva do cristianismo no recinto urbano, num contexto de
cristianização progressiva do Império Romano,7 quando os cristãos

6
Da segunda metade do século IV em diante, as liturgias, em Antioquia,
deixam pouco a pouco de ser cumpridas pelo conselho local, sendo a tarefa
assumida pelos honorati, personagens de destaque no contexto urbano
que assumem as responsabilidades pela subvenção dos edifícios, pela
manutenção das termas e pelo patrocínio dos festivais, das performances
teatrais e dos ludi, incluindo os Jogos Olímpicos, bastante apreciados na
cidade (NATALI, 1975, p. 52).
7
“Cristianização” é uma palavra de origem inglesa. Surgida em fins do
século XVIII, Christianisation passa formalmente a integrar o léxico quando
da edição do dicionário inglês de 1833. Em 1843, o vocábulo recebe uma
definição francesa, sendo logo depois absorvido pelos alemães, italianos
e espanhóis. O seu sentido é duplo e dá margem a ambiguidades, pois
cristianização designa ao mesmo tempo o “ato de se tornar cristão” e “o
fato de ter se tornado cristão”, ou seja, o processo e o resultado do processo
(INGLEBERT, 2010, p. 9).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 271


A RUA E SUAS FUNÇÕES NA CIDADE PÓS-CLÁSSICA

se empenham em obter o controle do território cívico mediante


a ingerência dos bispos sobre a administração municipal e a
intervenção gradual no calendário e nas atividades urbanas, de
maneira que a cristianização é responsável por alterar, pouco
a pouco, o perfil da cidade antiga, ainda que essa alteração, na
maioria dos casos, não tenha sido tão absoluta como outrora
se supunha.8 Todavia, é forçoso reconhecer que a cidade,
ao menos aquela projetada pelas autoridades eclesiásticas,
comportava peculiaridades que a afastavam do modelo clássico,
a começar pelo protagonismo do culto aos mártires e santos,
cujos santuários se multiplicavam na paisagem, numa notável
inversão da cosmovisão antiga que considerava a cidade um
espaço de congraçamento entre deuses e homens, como nos
dão testemunho as necrópoles, construídas por via de regra na
região extra muros a fim de evitar que a cidade fosse contaminada
pela degeneração primaz contida na matéria morta (MARKUS,
1997, p. 145). Um aspecto proeminente da cristianização da
cidade é a interferência crescente das autoridades eclesiásticas
nas manifestações culturais de gregos, romanos e judeus, o que
resulta num ataque inclemente a todas as atividades lúdicas e
religiosas que têm como cenário os principais edifícios públicos
(teatros, anfiteatros, hipódromos, templos, sinagogas), mas
também as ruas, as avenidas, os pórticos e as praças, lugares
ocupados pela multidão nos dias de festa, para desconsolo e

8
Temos conhecimento de casos nos quais, a contrapelo do discurso
eclesiástico “oficial” que condenava os gastos com as formas de lazer
próprias da cidade, os bispos faziam instalar, nas residências episcopais,
termas cujo uso era compartilhado com os demais integrantes do clero,
ao mesmo tempo que se estabeleciam em moradias amplas não muito
distintas daquelas ocupadas pelos funcionários imperiais e membros da
elite local, o que nos permite constatar a inserção inequívoca da Igreja nas
estruturas urbanas preexistentes (RAPP, 2005, p. 210).

272 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


GILVAN VENTURA DA SILVA

irritação dos pregadores, incluindo João Crisóstomo, que nessas


ocasiões costumavam assistir, impotentes, à debandada dos fiéis.
Por fim, uma terceira e não menos importante transformação
diz respeito aos aspectos arquitetônicos da cidade pós-clássica,
observando-se, por exemplo, a ênfase na construção, ampliação
e reparo das muralhas, elemento defensivo que, embora fizesse
parte do planejamento urbano desde o surgimento da pólis, recebe
a partir de meados do século III, em virtude da crise generalizada
e do aumento expressivo das incursões bárbaras, maior atenção
da parte do governo imperial, acontecimento acompanhado pela
criação de novas capitais nas zonas de fronteira cujo propósito
era constituir uma base de apoio para o imperador e seu comitatus
por ocasião dos sucessivos deslocamentos ao longo do limes
(WARD-PERKINS, 2008, p. 409). Além das muralhas, cuja
construção ou reconstrução encontra-se associada a imperativos
de ordem estratégica, militar, não obstante o simbolismo que
sempre as cercou, vemos se multiplicar toda uma arquitetura
posta a serviço do cristianismo, como dão testemunho as
igrejas, muitas delas monumentais, a exemplo da Igreja de
Ouro, em Antioquia, iniciada por Constantino e inaugurada,
em 341, por Constâncio II,9 mas também os inúmeros martyria
(túmulos de mártires e santos), hospitia (albergues) e nosokomia
(hospitais) que se difundem pelo território urbano, marcadores
da assim denominada Revolução Edilícia desencadeada pelo

9
Infelizmente, os arqueólogos que participaram da temporada de escavações
em Antioquia entre 1932 e 1939 não tiveram sucesso em localizar as
fundações da Domus Aurea de Constantino e Constâncio, também mencionada,
nas fontes, como Igreja Octogonal, Igreja Nova, Igreja da Penitência e Igreja
da Concórdia, mas conhecemos o perfil do edifício pela descrição fornecida
por Eusébio, em sua Vita Constantini. Antigamente, supunha-se que a igreja
estaria localizada próximo ao palácio imperial, na ilha formada pelo Orontes,
o que foi refutado, em 1972, por Friedrich Deichmann. Para mais detalhes
sobre o assunto, consultar Kleinbauer (2006).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 273


A RUA E SUAS FUNÇÕES NA CIDADE PÓS-CLÁSSICA

cristianismo na época tardia, como certa vez definiu Perrin


(1995, p. 586) com singular propriedade. Por último, mas não
menos importante, constatamos, nas cidades do Oriente, o
investimento na ampliação das ruas com colunas, como ocorre
em Cesareia, Citópolis e Jerusalém, cujo centro urbano adquire,
na época tardia, dimensões expressivas. Já nas cidades em que
as ruas ladeadas por colunas se destacavam de longa data, a
exemplo de Palmira, Gerasa e Antioquia, verificamos a instalação
sistemática, nos pórticos formados pelas colunas, de negócios
de toda ordem (oficinas, stands de venda de produtos, tavernas),
ocupação que a administração municipal, incapaz de conter,
buscava explorar mediante arrendamento (WARD-PERKINS,
2008, p. 381-382). Essa apropriação da rua pelos artesãos e
comerciantes parece indicar um contínuo aumento populacional
em cidades cujos locais de trabalho já se encontravam repartidos
entre os profissionais mais antigos. Ao lado das muralhas e das
construções associadas ao cristianismo, as ruas com colunas
se convertem, na Antiguidade Tardia, em autênticos emblemas
cívicos, motivo de orgulho para as coletividades urbanas, que
optam por representá-las em diversos mosaicos do período
(LIEBESCHUETZ, 2001, p. 58; BOWERSOCK, 2006, p. 65 e ss.).
Evidências como essas nos sugerem que a história da cidade
pós-clássica não é sempre e em todos os lugares a história de um
declínio ou de uma ruína, como conclui Liebeschuetz (2001, p.
414), mas a história de como, na Antiguidade Tardia, tradição
e inovação se conjugam para produzir uma nova experiência de
vida urbana que não implica, a princípio, a substituição do ideal
cívico por um ideal universal ou universalista, ao contrário do que
afirmam Rapp e Drake (2014, p. 2), para quem, na Antiguidade
Tardia, a oikoumene sustentada por um credo monoteísta e
abrangente – no caso, o cristianismo – teria se sobreposto à pólis
e a todas as formas anteriores de identidade atreladas ao modus

274 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


GILVAN VENTURA DA SILVA

vivendi urbano. Tanto as representações figurativas quanto os


vestígios arqueológicos e a documentação textual não cessam de
reafirmar, nos séculos IV e V, a centralidade da pólis ou da civitas
para a definição da identidade do homem antigo, de maneira que
a asteia ou a urbanitas, o estilo de vida associado às atividades,
edifícios e monumentos cívicos, continua a ser exaltado, em
especial nas cidades do Oriente (CARRIÉ; ROUSSELLE, 1999,
p. 706). De acordo com Veyne (2005, p. 236-7), para além dos
vínculos de lealdade que uniam os habitantes do Império ao
soberano ou à divindade judaico-cristã, a cidade natal ou de
adoção constituía, mesmo na época tardia, a “pequena pátria”
de cada um, o locus de realização individual por excelência, como
é possível depreender da leitura do Antiochikos, de Libânio, um
panegírico em louvor a Antioquia pronunciado por ocasião dos
Jogos Olímpicos de 356, no qual o autor exprime todo o apreço
que nutre pela sua pólis. Na realidade, a experiência urbana era tão
decisiva para os homens da Antiguidade Tardia que nem mesmo
os autores cristãos, a despeito de toda a campanha que moveram
contra a cidade desde pelo menos os tempos de Tertuliano,
foram capazes de propor uma alternativa a ela, como comprova
o esforço de João Crisóstomo em restituir à pólis sua condição de
artefato divino mediante a supressão dos vícios que a assolavam.
Criada por Deus, a pólis teria sido, com o passar do tempo,
corrompida por Satanás e por suas falanges, cabendo agora aos
cristãos reintegrá-la à história da salvação (SANDWELL, 2004,
p. 46). Nesse sentido, investigar os rumos da cidade pós-clássica
não é, em absoluto, narrar a história de uma decadência ou de
um esgotamento, mas compreender os alcances e limites de uma
mutação que se desdobra em múltiplas frentes, dentre as quais
as modalidades de ocupação das ruas e praças pela população,
bem como as representações acerca da atitude conveniente a ser
adotada nesses lugares, adquirem um evidente protagonismo.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 275


A RUA E SUAS FUNÇÕES NA CIDADE PÓS-CLÁSSICA

Festa, trabalho e conflito pelas ruas de Antioquia

Num estudo recente sobre a rede viária das cidades romanas,


Kaiser (2011) detecta a existência de um flagrante desinteresse
dos pesquisadores pelas ruas e suas extensões imediatas (ágoras
e fóruns), cuja investigação costuma ser preterida em favor da
análise dos edifícios, dos monumentos e das estradas extra-
muros, o que, de certo modo, não deixa de ser surpreendente, na
medida em que a maioria dos espaços destinados ao uso público
nas cidades do Império era constituída exatamente pelas ruas e
praças. Muito desse desinteresse reside certamente no caráter
corriqueiro das ruas, sua presença silenciosa e constante, o que
nos leva a tomá-las como um pressuposto e não como um objeto a
ser analisado e explicado. Em virtude do traçado amiúde retilíneo,
as ruas parecem se confundir em padrões que exprimem certa
monotonia. Ao mesmo tempo, como suportes básicos para o
deslocamentos de pessoas, veículos e, por vezes, animais, as ruas
são cruzadas a todo momento pelos transeuntes que, no decorrer
de inúmeras idas e vindas, criam com elas uma familiaridade
responsável por obscurecê-las, convertendo-as em componentes
de uma paisagem que, aos olhos dos usuários, pode se afigurar
contínua e permanente, cabendo à investigação histórica
demonstrar o quanto a cidade, em especial suas ruas, comporta de
dinâmica e de transformação. Se, na condição de unidades básicas
do urbanismo, as ruas são facilmente assimiladas como algo
dado, sem elas a própria existência da cidade estaria ameaçada,
pois, dentre tantos critérios que poderíamos evocar para definir
uma cidade, o complexo viário é um dos mais – senão o mais –
representativo (BUTCHER, 2003, p. 244).
A rua constitui uma dimensão ímpar da vida urbana, em
especial nas cidades de maior porte, nas quais a diversidade de
etnias, crenças, ideologias, estilos de vida, ofícios e interesses

276 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


GILVAN VENTURA DA SILVA

extravasa do âmbito privado na direção dos logradouros públicos,


que se tornam autênticas vitrines da diversidade cultural
constituinte das sociedades humanas, razão pela qual, segundo
Lynch (2006, p. 23), é impossível compreender a rua na sua
plenitude sem levar em conta as pessoas que por ela transitam
com intentos os mais variados. De acordo com Lefebvre (2004,
p. 29), a rua é o local privilegiado do encontro, um teatro
espontâneo no qual as pessoas são ao mesmo tempo atores e
espectadores. Na rua, processam-se as misturas e combinações
mais improváveis, pois para ela convergem indivíduos das mais
distintas origens e condições sociais, que repartem o espaço
público de modo solidário ou a contragosto, por vezes com
indiferença, mas nunca em completa discrição. Polivalente, a
rua cumpre funções de natureza pedagógica, lúdica, econômica
e política, dentre outras tantas. Essa pluralidade de funções
exercidas pela rua nos revela o quanto esta comporta de fluidez,
de movimento, de dinâmica, motivo pelo qual, em muitos casos,
a rua, em oposição à casa, ao recinto doméstico, é tida como
um lugar perigoso, ameaçador, desprovido de regras e não raro
dominado por entidades e potências malignas (DAMATTA,
1997, p. 52-53). A rua seria, então, o ambiente preferido das
pessoas de índole duvidosa (baderneiros, beberrões, ladrões,
prostitutas, agitadores), em agudo contraste com os “homens
de bem”, as moças e rapazes “de família”, que não poderiam, em
absoluto, ser flagrados errando pelas ruas. Como consequência,
a história da rua é solidária da história das práticas policiais,
dos mecanismos de controle da população acionados por todos
aqueles investidos da autoridade de disciplinar a apropriação do
espaço público, de regular os trânsitos e os comportamentos, de
delimitar as fronteiras entre o exterior e o interior, entre o que
é próprio da rua e o que é próprio da casa, da escola, da igreja
(AGULHON, 1997, p. 8).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 277


A RUA E SUAS FUNÇÕES NA CIDADE PÓS-CLÁSSICA

Tomando como ponto de partida tais reflexões, é possível


afirmar que um aspecto praticamente ignorado nas pesquisas
sobre a cidade pós-clássica são justamente as modalidades
de ocupação da rua e lugares adjacentes (pórticos, ágoras,
fóruns) pela população, que não raro dão ensejo a propostas
de regramento, de controle dessa ocupação pelas autoridades
imperiais e eclesiásticas. Quando nos referimos a Antioquia
no intervalo compreendido entre 351 e 450, momento para
o qual dispomos de um volume expressivo de testemunhos
textuais e visuais, é possível colher informações valiosas sobre
o modus vivendi dos habitantes da cidade e sobre como estes
se relacionavam com o ambiente construído nos momentos de
festa e de protesto político, mas também no dia a dia, ao se
instalarem nos pórticos que ladeavam a avenida das colunatas
e ruas adjacentes, atuando como artesãos e/ou comerciantes.
Nas fontes disponíveis para o estudo de Antioquia na época
tardia, o ano de 351 assinala o aparecimentos de descrições
mais detalhadas acerca do cotidiano da população, coincidindo
com a instalação, na cidade, de Galo, primo de Constâncio II
e por ele nomeado César no contexto da revolta de Magnêncio
(350-353), quando Constâncio é obrigado a deixar Antioquia
para dar combate ao usurpador.10 Logo ao chegar à cidade,
Galo inicia um enfrentamento com a população, determinando
o confisco dos bens pertencentes a alguns notáveis locais
e afrontando os pagãos ao trasladar as relíquias de Bábilas,
bispo martirizado durante a perseguição de Décio (250-251),
do cemitério da Porta do Sul para as imediações do templo
de Apolo, em Dafne, subúrbio distante cerca de 8 km do
perímetro urbano, com o propósito de silenciar a pitonisa. Em

10
Para um relato mais detalhado do episódio da usurpação de Magnêncio
e o status de Galo como César de Constâncio II, consultar Silva (2003). A
respeito da atuação de Galo César em Antioquia, consultar Silva (2019).

278 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


GILVAN VENTURA DA SILVA

face das críticas que começa a receber da parte dos antioquenos


e apreensivo quanto ao seu futuro político, Galo constitui uma
rede de espionagem, passando a patrulhar as ruas à noite com
o propósito de identificar possíveis focos de resistência ao seu
governo (DOWNEY, 1961, p. 363). Em seguida, a situação se
torna mais tensa devido à irrupção de um levante por conta
da crise de abastecimento que fustiga os territórios da Síria, o
que leva a população a se manifestar com violência, tomando
de assalto a avenida das colunatas e imediações e linchando
Teófilo, o consularis Syriae (PETIT, 1955, p. 234). Nesse ínterim,
Libânio decide abandonar Constantinopla, onde por alguns
anos havia ocupado a cadeira de retórica grega, e regressar a sua
cidade natal, quando então as referências à vida cotidiana de
Antioquia se tonam abundantes em sua obra. Ao testemunho
de Libânio, somam-se os de Juliano, Amiano Marcelino e
João Crisóstomo, autores que dedicam uma atenção especial
à maneira como os antioquenos se comportavam nas ruas e
praças da cidade, assunto igualmente atestado no Mosaico da
Megalopsychia, encontrado em uma villa aristocrática de Yakto,
distrito de Dafne, cuja confecção situa-se por volta de 450. A
descoberta ocorreu em 1933, no segundo ano da campanha
de escavações liderada pela Universidade de Princeton, e logo
mereceu um estudo detalhado por Jean Lassus (1934), um dos
membros da expedição.
O Mosaico da Megalopsychia é um amplo opus tessellatum
policromático, atualmente sob a guarda do Museu de Antakya,
na Turquia, que exibe, no painel principal, diversas cenas
de cinegética, simulando uma uenatio. O mosaico deriva seu
nome do medalhão inserido no centro da peça, contendo o
busto de Megalopsychia, a virtude da “grandeza da alma”, tida
como a soma de todos os atributos positivos reunidos na
pessoa dos deuses e heróis representados em atitude de caça

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 279


A RUA E SUAS FUNÇÕES NA CIDADE PÓS-CLÁSSICA

(Tirésias, Narciso, Adônis, Meleagro, Hipólito e Acteón). Nas


bordas do mosaico, o artesão incluiu um conjunto de cenas
referentes à paisagem urbana de Antioquia e Dafne repartido
em aproximadamente dez seções, das quais restaram apenas
seis. A borda parece sugerir um itinerário topográfico acerca
daquilo que o espectador poderia observar ao longo das ruas
da cidade. Os monumentos mais importantes são identificados
por meio de inscrições (o estádio de Zeus Olímpico, as termas
de Ardabúrio e as fontes Castália e Palas, associadas ao culto
de Apolo). O mosaico traz ainda representações de residências,
lojas, pórticos, estátuas e, o que é mais significativo, de
pessoas executando as mais diversas atividades: retalho de
carne, transporte de madeira, comércio de produtos agrícolas,
jogo de dados. As cenas incluem também animais (cavalos,
cães, burros) que transitam pelas ruas lado a lado com os
pedestres, bem como de crianças acompanhadas por adultos.
A bem da verdade, um dos aspectos do mosaico que o tornam
tão especial é exatamente o interesse do artesão em retratar as
diversas atividades que ocorriam nas ruas de Antioquia, com
destaque para aquelas de natureza econômica, como vemos nas
cenas representando os camponeses que vinham comercializar
seus produtos em Yakto (Figura 1), os vendedores ambulantes,
que armavam seus tabuleiros sobre as calçadas (Figura 2) e
os açougueiros (Figura 3). Pertencendo ao domínio dos usos
e costumes e encontrando-se enraizadas no cotidiano, tais
cenas parecem tratar de processos históricos de longa duração,
como reconheceu certa vez Lassus (1935), num estudo em que
comparava as imagens dos ofícios extraídas dos mosaicos com
aquelas que observava na Antioquia de seu tempo, identificando
entre o passado e o presente uma insólita conexão.

280 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


GILVAN VENTURA DA SILVA

Figura 1 – Excerto da borda topográfica do Mosaico de Megalopsychia

Homem carregando na mão direita uma cesta e, na esquerda, um saco.


Segundo Lassus (1935, p. 131), em razão da indumentária, tratar-se-ia de
um camponês que teria vindo à cidade comprar ou vender seus produtos.
Fonte: Cimok (2000, p. 274).

Figura 2 – Excerto da borda topográfica do Mosaico de Megalopsychia

Em primeiro plano, vê-se um vendedor trajado com uma túnica sem


mangas que se posta sobre a calçada. Diante dele, há um tabuleiro no
qual expõe suas mercadorias. Ao seu lado, dois homens, sentados em
cadeiras dobráveis, se entretêm com o jogo de dados. Fonte: Robert Hovart,
Masterclass in Byzantine mosaics. Disponível em: <https://rear-view-mirror.
com/2016/02/28masterclass-in-byzantine-mosaics-part-1>.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 281


A RUA E SUAS FUNÇÕES NA CIDADE PÓS-CLÁSSICA

Figura 3 – Excerto da borda topográfica do Mosaico de Megalopsychia

Na esquerda, um homem segura uma peça de carne sobre uma tábua.


Provavelmente, em sua mão direita, haveria um cutelo ou um martelo de
madeira. O homem da direita porta, nas mãos, um cesto para recolher a
carne cortada ou batida. Fonte: Cimok (2000, p. 268).

Entre 351 e 450, Antioquia se distingue como uma


metrópole multicultural que abriga uma população em contínuo
crescimento devido à migração de indivíduos provenientes
da khora ou mesmo de outras regiões da Síria-Palestina e Ásia
Menor, que se dirigem à cidade em busca de melhores condições
de vida ou com o objetivo de estudar, tendo em vista o prestígio
alcançado à época pelo didaskaleion de Libânio (SALIOU, 2000, p.
809). Antioquia revela-se assim uma cidade vibrante que nutre
um entusiasmo particular pelos festivais, jogos e espetáculos,
com destaque para a festa das Calendas de Janeiro, com duração
de três dias, e para o festival da Maiuma, em louvor a Dioniso e
Afrodite, celebrados a cada três anos por um período de trinta dias
(SOLER, 2006, p. 10). Ao mesmo tempo, a cristianização segue
em curso mediante o esforço de líderes religiosos como Paulo,
Melécio, Flaviano João Crisóstomo, que se esforçam no sentido
de reformar as crenças e costumes da pólis, contando para isso

282 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


GILVAN VENTURA DA SILVA

com a instituição de um extenso calendário de festas em honra


aos mártires e santos, em oposição aos festivais pagãos. Todavia,
pelas homilias de João Crisóstomo pronunciadas por ocasião
dessas festas, percebemos o quanto o ethos festivo se encontrava
arraigado na população, pois o pregador não poupa críticas aos
devotos que, no decorrer da pompé, do cortejo solene em honra
aos mártires, costumavam reproduzir a mesma conduta verificada
durante as festas das Calendas de Janeiro e da Maiuma, agrupando-
se em cortejos dionisíacos e entregando-se à orgia, à bebida, ao
canto e à dança em praça pública (SOLER, 2010, p. 278), motivo
pelo qual um dos lugares mais atacados por João, além do teatro
e da sinagoga, é a ágora, certamente aquela localizada no bairro
de Epifânia, construída ao que tudo leva a crer por Antíoco IV
Epifânio (175-164 a.C.), nas imediações onde mais tarde será
erigida a avenida das colunatas e o Fórum de Valente (DOWNEY,
1961, p. 621). Sabemos que para alcançar uma das igrejas nas
quais oficiava, João era obrigado a cruzar a ágora (MAYER, 2012,
p. 84), entrando assim em contato direto com a população, o que
lhe fornecia combustível suficiente não apenas para condenar os
festivais e demais atividades cívicas, mas também para censurar
os membros da sua congregação por adotarem, à vista de todos,
uma conduta que os equiparava aos pagãos.
Essa exuberância festiva de Antioquia, que se traduzia
numa rede de relações de sociabilidade bastante intensa capaz
de congregar, pelas ruas da cidade, conhecidos e desconhecidos,
estrangeiros e residentes, cristãos, pagãos e judeus derivava de
uma longa tradição segundo a qual a vida, na pólis, costumava
adquirir uma dimensão pública que muitas vezes se sobrepunha
à dimensão privada, realidade que as lideranças episcopais do
período tardio conheciam bastante bem e que tentaram a todo
custo reverter ao investirem num discurso que priorizava o
oikos, o recinto familiar, e a igreja como loca privilegiados de

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 283


A RUA E SUAS FUNÇÕES NA CIDADE PÓS-CLÁSSICA

exercício das virtudes cristãs. A tarefa, no entanto, não era


das mais fáceis, uma vez que Antioquia, mesmo na fase pós-
clássica, conservava a ênfase na dimensão pública, coletiva
da existência que havia animado a vida urbana do Império
Romano no período anterior. De fato, o seu plano urbanístico,
caracterizado por um percurso amplo e monumental (a avenida
das colunatas, repleta de pórticos) e nodos adjacentes (ágoras
e fórum) potencializava, acentuava e favorecia a capacidade de
integração entre os habitantes da cidade, que se reuniam amiúde
para negociar, conversar, divertir-se e manifestar seu desagrado
diante dos rumos da política imperial, o que dava margem a
sedições periódicas.
Como Antioquia era uma cidade na qual o ambiente
construído conferia aos habitantes intensa sinergia,
incentivando-os a manter uns com os outros contatos frequentes,
tal situação nos permite supor um cenário de contínua troca de
experiências e de informações que interferiam na tomada de
atitude da população em face de algum desafio político, ocasião
em que as ruas eram inundadas por críticas de toda ordem
dirigidas contra as autoridades imperiais, como vemos em
362, quando da chegada de Juliano a Antioquia para organizar
a campanha contra os persas. Assim como havia ocorrido sob
Galo, Juliano instala-se na cidade, no decorrer de outra crise
de abastecimento, que havia elevado o preço do trigo a níveis
insuportáveis, fato agora agravado pela presença das tropas
imperiais, o que aumentava a demanda por víveres, acentuando
a escassez (DOWNEY, 1961, p. 383 e ss.). Inábil em estabelecer
com os antioquenos uma comunicação eficiente, como propõem
Van Hoof e Van Nuffelen (2011), Juliano foi fustigado pela
população, que, segundo Amiano Marcelino (Hist., XXII, 14),
costumava compará-lo a um macaco, um anão, um bode barbado
e mesmo um victimarius, um açougueiro, devido à quantidade

284 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


GILVAN VENTURA DA SILVA

de sacrifícios que promoveu. Irritado, Juliano decide, no início


de março de 363, deixar a cidade em caráter definitivo, mas não
sem antes censurar duramente os antioquenos pelo seu mau
comportamento, no que é acompanhado por Libânio que, nas
orationes XV e XVI, admoesta seus concidadãos pelos excessos
cometidos, reprovando-os por seu apego excessivo à tryphé, à
luxúria proporcionada pelas comodidades da vida urbana, que os
afastava da retidão e da temperança (SILVA, 2018).
Em outra oportunidade, os antioquenos se voltam contra o
poder imperial, mas desta vez com maior virulência, no episódio
conhecido como Levante das Estátuas. Segundo a cronologia
proposta por Paverd (1991, p. 27), o levante irrompeu em 25
ou 26 de fevereiro de 387, estendendo-se até finais de abril.
Seu estopim foi um decreto do consularis Syriae anunciando a
imposição de uma nova e exorbitante taxa destinada a financiar
as decennalia de Teodósio, no ano seguinte (KELLY, 1995, p. 73).
O imposto atingiria, ao que tudo indica, todos os estratos sociais
indistintamente, embora não tenhamos condições de precisar a
sua natureza. Reunida no dikasterion para ouvir o anúncio da nova
taxa, a população logo se mobiliza contra a medida. Insuflada
pela claque do teatro, um contingente de espectadores pagos para
aplaudir os atores e dançarinos cuja atuação, em Antioquia, era
amiúde explosiva (BROWNING, 1952, p. 16), a multidão ocupa
a avenida das colunatas, o fórum de Valente e a ágora de Epifânia
na tentativa de reverter a medida. Exasperados, os populares
atacam a residência do governador, acuando seus moradores e
serviçais. Em seguida, voltam-se contra as termas, destruindo as
lamparinas do edifício. Para culminar, avançam sobre as estátuas
e imagens imperiais, depredando os painéis de madeira que
portavam as efígies de Teodósio e de seus familiares e arrastando
pelas ruas da cidade as estátuas de bronze do imperador, de seu
filho, Arcádio, e de sua esposa Flacila, já falecida, numa ação

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 285


A RUA E SUAS FUNÇÕES NA CIDADE PÓS-CLÁSSICA

considerada ao mesmo tempo crime e sacrilégio. No momento


em que a multidão ateava fogo à casa de um iminente cidadão,
arqueiros agindo como policiais conseguem dispersar os
revoltosos e extinguir o incêndio. Contida a revolta, o comes
Orientis assume o caso, detendo alguns sob a acusação de
incêndio criminoso e enviando notícias à corte imperial, em
Constantinopla. Aqueles identificados como ativos no levante
foram sumariamente executados, incluindo crianças. Membros
da boulé, por sua vez, foram encarcerados à espera do andamento
do processo. A cidade, tomada de angústia, aguardava o veredito
imperial (BRÄNDLE, 2003, p. 55 e ss.). Mediante a intervenção
providencial de Flaviano, bispo de Antioquia, Teodósio decide
não punir a cidade, o que provoca intensas comemorações, com
a multidão voltando às ruas, mas desta vez para celebrar com
canto, dança e lanternas. A despeito da gravidade da situação –
ou exatamente por conta dela – os antioquenos são fustigados
com duras críticas por João Crisóstomo que, na sua série de
homilias sobre o Levante das Estátuas, aproveita a oportunidade
para censurar a população por sua indisciplina, exortando-a a
tomar o episódio como lição para que abandone a tryphé das ruas
e se recolha às igrejas em oração.

Considerações finais

No Império Romano, a existência dos homens era vivida, na


maior parte do tempo, fora de casa, nas ruas e demais ambientes
públicos, a exemplo das termas, dos fóruns e pórticos. Uma
das razões desse apego do homem antigo aos espaços coletivos
é, sem dúvida, de natureza material: a escassez, na maioria das
habitações, de aposentos individuais, sendo o quarto particular um
privilégio reservado aos mais ricos, de maneira que os indivíduos
eram amiúde compelidos a se integrar nas redes de socialização

286 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


GILVAN VENTURA DA SILVA

que tinham a rua como suporte, vivendo nos mercados, tavernas


e banheiros públicos uma existência em contato estreito com seus
contemporâneos e com eles compartilhando valores, aspirações,
ideias e sentimento. A outra, sem dúvida, é de natureza simbólica,
pois, segundo a cosmovisão greco-romana, não havia uma distinção
tão estrita entre público e privado como aquela existente nas
sociedades ocidentais até pelo menos o início do terceiro milênio
quando, devido à popularização da internet e das redes sociais,
operou-se uma autêntica revolução nas sensibilidades do homem
moderno, muito mais sujeito à exposição e ao escrutínio público
do que outrora. Seja como for, na Antiguidade, público e privado
eram realidades absolutamente porosas, de maneira que a res
publica, a arena da comunidade cívica, e a domus, a esfera doméstica,
não raro se sobrepunham e interpenetravam. Sob essa perspectiva,
Antioquia, mesmo na fase pós-clássica, conservava a ênfase na
dimensão pública, coletiva, da existência que havia animado a vida
urbana do Império Romano no período anterior, como comprova
a manutenção de toda uma infraestrutura urbana voltada para
comportar a multidão que ocupava a avenida das colunatas e ruas
adjacentes, a ágora de Epifânia, as margens do Orontes e o Fórum
de Valente em contínuo deslocamento, de maneira que mesmo
à noite a cidade não descansava, como nos informa Libânio no
panegírico em louvor a sua cidade natal. Tomada em seu conjunto,
a documentação textual e iconográfica disponível para o estudo
de Antioquia nos séculos IV e V nos permite alcançar, ainda que
de modo fugaz, o fluxo da vida cotidiana nas ruas de uma das
maiores cidades do Império. Decerto, tal constatação deveria
tornar os pesquisadores mais atentos às múltiplas funções que a
rua desempenhava nas cidades antigas, uma vez que ela era o local
por excelência de socialização, de entretenimento e de intercâmbio
de informações, além de constituir o ambiente de trabalho de
um sem-número de pessoas que dela se apropriavam em busca

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 287


A RUA E SUAS FUNÇÕES NA CIDADE PÓS-CLÁSSICA

de sustento. Polifônica e polivalente, a rua, tanto ontem quanto


hoje, é um notável “laboratório” para historiadores, arqueólogos,
antropólogos, sociólogos, urbanistas e outros tantos profissionais
sensíveis à riqueza que ela tem a oferecer.

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A RUA E SUAS FUNÇÕES NA CIDADE PÓS-CLÁSSICA

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292 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


Bracara e a cristianização das cidades
ocidentais na Antiguidade Tardia:
algumas reflexões

Francisco Andrade
Luís Fontes

Introdução

O
conhecimento que dispomos da origem e evolução
da cidade de Braga, antiga Bracara Augusta, tem vindo
a beneficiar dos resultados dos inúmeros trabalhos
efetuados no âmbito do estudo arqueológico da cidade (Antigo
Salvamento de Bracara Augusta) (MARTINS; LEMOS, 1997-
1998; MARTINS; FONTES, 2009; MARTINS; FONTES,
2010; FONTES, 2015; 2017; FONTES et al., 2010; FONTES;
ANDRADE, 2018; MARTINS et al., 2016).
Pese o acréscimo de conhecimento acerca da cidade tardo
antiga em diversas componentes do seu urbanismo, conhecem-
se poucas evidências arqueológicas resultantes de escavações da
cidade tardo antiga que se possam relacionar diretamente com
edifícios de culto, sendo uma notável exceção os dados recolhidos
na escavação da catedral (FONTES; LEMOS; CRUZ, 1997-1998).
Assim sendo, dado que as fontes são qualitativamente
distintas, procurar-se-á dentro do possível harmonizar a análise,
dando maior destaque, em alguns casos, às materialidades,
havendo, em outros, uma necessidade de recorrer mais a fontes
escritas, dependendo dos dados que dispomos para o estudo.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 293


BRACARA E A CRISTIANIZAÇÃO DAS CIDADES OCIDENTAIS NA ANTIGUIDADE TARDIA

Apesar de as evidências de cristianização tardo antigas


conhecidas para Braga e sua área envolvente terem sido tratadas
em mais do que uma ocasião por um dos autores do presente
estudo (FONTES, 2015; 2017; FONTES., 2010), pretende-se
neste estudo o estabelecimento de uma análise comparativa
entre o que conhecemos de Braga até ao momento com algumas
das suas congéneres da zona ocidental do Império, sendo dado
especial relevo aos casos da Península Ibérica. Procuraremos
evidenciar similitudes e dissemelhanças nas formas, nas soluções
adotadas e averiguar a abrangência de determinados fenómenos.
A seleção dos casos de estudo teve como critério, por um lado,
a abrangência das distintas áreas ocidentais, por outro, que
os exemplares analisados propiciassem dados suficientes para
estabelecer a análise comparativa a que nos propomos.

Roma e o culto cristão no Ocidente

O urbanismo tardo antigo e os principais vetores que


o caracterizam continuam ainda hoje a ser um elemento de
controvérsia e de aceso debate entre os investigadores, que
se interrogam até que ponto terá existido uma continuidade
de ocupação ou até que ponto terá havido uma retração e
abandono do espaço urbano. Segundo Whickam (2005, p. 591),
pese a frequentemente distinta valorização e quantificação do
peso relativo de critérios de análise por parte de historiadores
e arqueólogos, estes tendem a ser consensuais na análise da
cidade de um ponto de vista económico e do enquadramento
político/institucional.
Das características definidoras e identitárias de cidade, há
uma que, a partir da Antiguidade Tardia, passa a desempenhar
um papel de suma importância e que deixará uma marca indelével

294 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FRANCISCO ANDRADE E LUÍS FONTES

no urbanismo dos tempos vindouros – a presença da autoridade


episcopal no espaço urbano e a consequente proliferação de
edifícios eclesiásticos, que denotam uma organização eclesiástica
complexa (WHICKAM, 2015, p. 592).
Seguramente que, pese algumas das características
definidoras de cidade terem um valor quase universal,
ressalva-se, para cada urbe, os respetivos particularismos
decorrentes da adaptação ao próprio local de implantação e aos
condicionalismos históricos específicos de cada local e respetivo
contexto para a definição da morfologia e da identidade própria
que cada cidade conheceu.
A cidade por excelência no Ocidente tardo antigo,
apesar de um claro decréscimo de importância administrativa,
económica e demográfica, terá sido, em grande medida, Roma.
A urbe, que terá albergado, no século I, cerca de 1 milhão de
habitantes, tendo sido a primeira a atingir tais valores, poderá
ter baixado para próximo de 20 mil em 650 (HARPER, 2017, p.
10-12). Apesar de aceitarmos uma margem de erro relativamente
grande para estes valores, uma queda tão substancial também
só poderá ser compreendida porque a urbe possuía dimensões
de exceção e uma complexidade urbanística incomparável,
pelo menos no Ocidente, que necessitaria de um complexo e
dispendioso sistema de abastecimento para que fosse possível a
sustentabilidade de uma tão vasta população urbana, ampliando
exponencialmente os efeitos de qualquer condicionante adversa
que pudesse existir.
Apesar de a urbe ter conhecido um decréscimo de
relevância no campo económico-demográfico, a sua importância
simbólica não decresce, altera-se. De facto, assiste-se à paulatina
emergência do poder do bispo de Roma, que, a partir da época
constantiniana, vai assumindo um papel de cada vez maior relevo
na hierarquia eclesiástica ocidental (DUNN, 2015, p. 2-4).

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 295


BRACARA E A CRISTIANIZAÇÃO DAS CIDADES OCIDENTAIS NA ANTIGUIDADE TARDIA

Ao acompanhar a relevância religiosa que a cidade conheceu,


assistiu-se a um grande crescimento de edifícios religiosos, que,
se numa época inicial foram essencialmente construídos fruto da
iniciativa individual (BOWES, 2008, p. 63-71), posteriormente,
essencialmente após a época Constantiniana, passaram a ser, em
parte, fundados por iniciativa episcopal e imperial. Este aumento
de templos revela-se necessário numa urbe que comportava
uma grande comunidade de cristãos, balizada entre 7% e 50%,
caso se considerem as estimativas de MacMullen ou Christie
(THOMPSON, 2015, p. 21), não sendo obviamente de se descartar
a afirmação de poder subjacente a este tipo de fundações.

Figura 1 – Localização dos principais edifícios cristãos de


Roma

Fonte: Thompson (2015)

Para além deste conjunto relativamente denso de edifícios


que se vão fundando um pouco por toda a urbe romana, com
especial destaque para a basílica de S. João de Latrão, na

296 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FRANCISCO ANDRADE E LUÍS FONTES

periferia junto à muralha, é em zonas ocupadas por necrópoles


e associadas ao culto de relíquias que se desenvolvem alguns
dos mais importantes locais de culto na Roma tardo antiga, que
têm como exemplos mais assinaláveis a Basílica de S. Pedro e
de S. Paulo Extramuros, nos locais de sepultamento dos dois
apóstolos patronos.
De facto, são nestas zonas mais periféricas que se
desenvolve um culto também inicialmente marginal e que
gradualmente vai assumindo um lugar de destaque, não só na
capital como nas províncias.
É nas zonas suburbanas de Roma que conhecemos alguns
dos mais antigos testemunhos de culto cristão, numa paisagem
que durante o século III conheceu as maiores mutações na região
de Roma (PERGOLA, 2015, p. 42).

As cidades da diocese viennensis e da Península Ibérica

Da mesma forma que o culto cristão vai congregando


cada vez mais adeptos, também a topografia cristã vai sendo
generalizada, um pouco por todo o Império. No caso em análise, na
sua parte ocidental, na qual se insere Bracara Augusta, que norteia o
nosso estudo comparativo, são já conhecidos, com algum detalhe,
vários exemplos que consideramos relevante analisar, ainda que
de forma muito sucinta. Procurou-se alargar o estudo além da
Península Ibérica, para termos alguns exemplos que, embora
sendo próximos e num determinado momento tiveram um
referente político comum, fossem externos à realidade peninsular,
de modo a poder constatar se esse fator poderia introduzir alguma
alteração significativa nas formas e na organização dos espaços.
Um dos exemplos que é relativamente bem conhecido é o
caso de Arles, sendo possível restituir, em traços gerais, alguns

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 297


BRACARA E A CRISTIANIZAÇÃO DAS CIDADES OCIDENTAIS NA ANTIGUIDADE TARDIA

dos aspetos chave da sua organização funcional e de alguns


dos elementos mais marcantes da topografia cristã antiga e de
como se organizaram no que se conhece da malha urbana. A
primitiva catedral que se conhece estava localizada numa zona
periférica, junto às muralhas e próximo ao local onde também foi
identificado um mosteiro feminino, parecendo posteriormente
haver uma deslocação do local de culto mais importante para uma
área mais próxima do fórum. No interior da área urbana também
há referências a um mosteiro masculino urbano, estando, pelo
menos, duas basílicas funerárias em zona extramuros próximas
ao mais antigo conjunto episcopal (GUYON, 2015, p. 19). O
quadrante sudeste da cidade parece ter sido privilegiado num
primeiro momento da cristianização do local.
Em Marselha, repete-se a mesma solução de o conjunto
episcopal se localizar junto às muralhas e templos funerários,
nas proximidades das principais vias de acesso à cidade,
enquadradas nos principais núcleos funerários tardo antigos
(GUYON, 2015, p. 20). Parece-nos que estamos perante uma
solução que, em termos gerais, conforma a existência de pelo
menos dois dos elementos identificáveis em Arles, o conjunto
episcopal intramuros nas proximidades da muralha, se bem que
aqui na zona oeste, e basílica funerária na zona leste, junto a vias
de comunicação e necrópoles da Antiguidade Tardia.
Continuando na bordadura do mediterrâneo, se
analisarmos Barcelona, a antiga Barcino, vemos que o seu
conjunto episcopal também se localizava nas proximidades da
muralha, ocupando a generalidade do espaço entre a zona da
antiga catedral e a zona da muralha, num vasto complexo que se
sabe, fruto das escavações que já foram efetuadas, contemplar
um batistério construído em casa romana, que contém uma
fonte de planta cruciforme e templo com cerca de 17 metros de
largura e comprimento incerto (BOWES, 2005, p. 195-198).

298 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FRANCISCO ANDRADE E LUÍS FONTES

Figura 2 – Localização dos principais edifícios cristãos de Arles


(esquerda) e Marselha (direita)

Fonte: Guyon (2015)

Neste caso, apesar de estar de junto à muralha, à semelhança


dos dois exemplos anteriormente descritos, fruto das características
particulares da organização da cidade romana, também se pode
constatar que está muito próximo ao fórum, estando localizada
na zona norte, precisamente no local em que o fórum está mais
próximo das muralhas, conferindo-lhe este aspeto distintivo
e peculiar de se localizar numa zona relativamente central e ao
mesmo tempo próxima das muralhas, facto que também poderá
ser explicado pela amplitude do conjunto edificado.
Não muito longe, em Tarragona, antiga capital provincial,
os dados a que pudemos aceder fornecem-nos uma realidade com
algumas especificidades, que nos parece interessante analisar.
Por um lado, é nesta cidade que se identificou um dos mais
importantes conjuntos martiriais da Antiguidade Tardia de que
se tem conhecimento, na periferia imediata a oeste da cidade, o
extraordinário santuário martirial de S. Frutuoso. Este, por sua
vez, encontra-se ele próprio enquadrado num dos conjuntos mais
alargados que se conhece e que também engloba a basílica dita
de Santa Tecla e um conjunto extraordinário de enterramentos,

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 299


BRACARA E A CRISTIANIZAÇÃO DAS CIDADES OCIDENTAIS NA ANTIGUIDADE TARDIA

criptas e mausoléus, que ocupam uma extensíssima área junto


aos eixos viários que se desenvolvem para oeste da cidade. A
sua exepcionalidade levou mesmo alguns autores a ponderar
se não poderia ser neste local que se localizaria o primitivo
conjunto episcopal dos séculos IV-V (LÓPEZ VILAR; PUCHE
FONTANILLES, 2013, p. 151).

Figura 3 – Localização do conjunto episcopal de Barcelona

Fonte: Beltran Herédia (2012)

300 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FRANCISCO ANDRADE E LUÍS FONTES

Na opinião de López Vilar e Puche Fontanilles (2013, p.


151), à luz do que é conhecido até ao momento, os conjuntos
episcopais localizar-se-iam intramuros e o de Tarragona não
deveria ser exceção, pese ainda não ter sido localizado.
Conhece-se o conjunto episcopal que terá surgido no
século VI, que se reveste da particularidade de ter sido construído
no ponto mais alto da acrópole, junto ao concilium provinciae,
substituindo o templo pagão de culto imperial (LÓPEZ VILAR;
PUCHE FONTANILLES, 2013, p. 160).
Não deixa de ser um exemplo notável de afirmação de poder
por parte do episcopado, afirmando-se como uma das entidades que
vão assumir um maior protagonismo nos tempos que se seguirão.

Figura 4 – Principais locais de Tarragona na Antiguidade Tardia


e pormenor de santuário martirial de S. Frutuoso

1. Basílica de Tecla; 2. Grande mausoléu de planta central;3. Criptas da


necrópole; 4. Basílica de S. Frutuoso; 5. Mausoléu da rua Sant Auguri; 6.
Basílica do anfiteatro; 7. Bispado visigótico; 8. Centcelles. Fonte: Lópes
Vilar e Puche Fontanilles (2013)

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 301


BRACARA E A CRISTIANIZAÇÃO DAS CIDADES OCIDENTAIS NA ANTIGUIDADE TARDIA

Já na zona da Bética, Córdova é outro dos exemplos em


que é possível, pelo menos de forma geral, conhecer algumas das
características da topografia cristã antiga. Por meio da análise dos
dados arqueológicos, fruto de um vasto programa de trabalhos
que foi sendo desenvolvido na cidade, é possível estabelecer, com
um elevado nível de detalhe, a mutação que a idade foi sofrendo
(VAQUERIZO; MURILLO, 2010, p. 455-522).
Um aspeto interessante que pode ser constatado, fruto do
detalhe com que o tecido urbano tem sido estudado, é que na
zona mais antiga da cidade, em que se encontravam os principais
referenciais administrativos e religiosos romanos, observa-se o
abandono dos seus eixos e lógica de circulação, ocorrendo uma
desarticulação do tecido urbano nesta zona da cidade, como
é exemplo a ocupação do fórum provincial na transição do
século IV para o V, com habitações que reutilizam elementos
arquitetónicos (VAQUERIZO; MURILLO, 2010, p. 489).
Parece efetivamente haver, de alguma forma, uma
transição gradual do polo de maior atratividade da cidade para a
zona ribeirinha, sendo nessa zona que os dados das intervenções
arqueológicas documentam o complexo episcopal, datado da
transição do século V para o VI, no local onde atualmente se
localiza a catedral-mesquita (VAQUERIZO; MURILLO, 2010,
p. 507).
Para além da área urbana central, também estão disponíveis
dados acerca dos suburbia de Córdova, estando documentados
um número considerável de locais de culto associados a
núcleos de enterramento, à semelhança do que também já foi
identificado nas outras cidades que analisamos, revestindo-se
de especial relevância o suburbium de Cercadilla, que, segundo
Vaquerizo e Murillo (2010, p. 507), teria passado de complexo
episcopal associado ao bispo Osio para se converter num espaço
eminentemente martirial associado ao culto de São Acisclo.

302 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FRANCISCO ANDRADE E LUÍS FONTES

Não se trata de caso único de um grande programa


construtivo que denota um grande dinamismo da periferia cristã,
sendo um dos exemplos mais paradigmáticos o já abordado
complexo de S. Frutuoso, em Tarragona.

Figura 5 – Córdova e a sua periferia na Antiguidade Tardia (à


esquerda). Complexo episcopal (à direita)

Fonte: Vaquerizo e Murillo (2010)

O último caso que abordamos neste capítulo é o da cidade


de Mérida, que, após a reforma administrativa de Diocleciano,
se terá tornado sede da Diocesis Hispaniarum (MATEOS CRUZ,
2018, p. 130).
Os dados arqueológicos disponíveis até ao momento
permitem constatar que as primeiras evidências arqueológicas
são datáveis do séc. IV, na mesma época do martírio de Eulália
de Mérida (MATEOS CRUZ, 2018, p. 135), pese já esteja
documentada uma comunidade cristã na cidade, pelo menos
desde os séculos II-III (SASTRE DE DIEGO, 2010, p. 14).
É associado ao culto a Eulália que efetivamente se vai
desenvolver um importante núcleo cristão na periferia norte da
cidade, de que se destaca a basílica erigida no local do primeiro

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 303


BRACARA E A CRISTIANIZAÇÃO DAS CIDADES OCIDENTAIS NA ANTIGUIDADE TARDIA

edifício de culto martirial e os espaços funerários cristãos que se


desenvolveriam nas proximidades (MATEOS CRUZ, 2018, p.136).

Figura 6 – Mérida e a sua periferia na Anntiguidade Tardia

Fonte: Sastre de Diego (2010)

No espaço intramuros, no século IV, os dados fornecidos


pelas escavações parecem indiciar que haverá, em certa medida,
uma manutenção da preexistência construtiva, assistindo-se ao
surgimento das primeiras manifestações cristãs conhecidas em
conjunto com a manutenção do culto pagão (MATEOS CRUZ,
2018, p. 137).
Do conjunto episcopal, em Mérida, apenas se conhece
a sua possível localização para o século VI. O templo seria
dedicado muito provavelmente a Santa Ierusalem e situar-se-ia
muito provavelmente sob o local em que atualmente se localiza
Santa Maria Maior de Mérida. Para além do conjunto episcopal,
para o mesmo período, também se conhecem referências a

304 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FRANCISCO ANDRADE E LUÍS FONTES

pelo menos mais dois templos no interior do espaço urbano


(MATEOS CRUZ, 2018, p. 137).
O conjunto episcopal, neste caso, encontrava-se numa
zona relativamente central se compararmos com outros casos
já abordados, não ficando muito distante dos dois fóruns de
que a cidade dispunha. Ressalvamos que neste caso o conjunto
episcopal que conhecemos será associável ao século VI, não
sendo possível para já esclarecer se um templo anterior poderia
localizar-se numa zona mais periférica intramuros, como parece
acontecer noutros casos.

Bracara Augusta, capital da Galécia

Com a reforma administrativa de Diocleciano, Bracara


Augusta passou a ser capital da recém-criada província da
Galécia e reforçou o seu papel de grande relevo no quadro do
noroeste hispânico. Este reforço de estatuto político terá sido
acompanhado de um aumento de dinamismo económico, que,
por sua vez, terá potenciado um aumento de intensidade de
atividade edilícia de elementos defensivos ou reformulações de
espaços privados e públicos, mantendo-se, na generalidade, a
traça ortogonal herdada da urbe do Alto império, ocupando-se
uma área de aproximadamente 45 ha (FONTES et al., 2010, p.
255; FONTES, 2017, p. 235; MARTINS et al., 2016, p. 35).
Ao acompanhar o protagonismo político-administrativo
e mesmo económico que Braga vai conhecer desde pelo menos
finais do século III, também se torna sede episcopal (FONTES,
2017, p. 234). O principal referente construtivo relacionado com
o culto cristão no interior do espaço urbano é o edifício datável
do séc. IV-V, na zona nordeste da cidade, próximo à muralha.
O edifício de culto reaproveita e sobrepõe construções dos

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 305


BRACARA E A CRISTIANIZAÇÃO DAS CIDADES OCIDENTAIS NA ANTIGUIDADE TARDIA

séculos precedentes, que se localizavam nesta zona da cidade,


conformando um quarteirão de cerca de 33 por 33 metros, que
sofrerá profundas remodelações na transição do século III para
IV, sendo repavimentado e ampliado, sendo porticado na zona
leste (FONTES, 2017, p. 234; FONTES; LEMOS; CRUZ, 1997-
1998, p. 145).
O edifício de culto cristão possuiria três naves, podendo
ser, do ponto de vista tipológico, integrado no modelo basilical de
tradição itálica, que se poderá ter mantido sem alterações de relevo
até finais do século XI, só sendo rompida a lógica organizativa do
espaço com a edificação do templo românico (FONTES, 2017, p.
236; FONTES; LEMOS; CRUZ, 1997-1998, p. 141).
A sede episcopal bracarense irá desempenhar um papel
de suma importância no tecido urbano, afirmando-se como
um elemento polarizador da malha urbana, condicionando e
ordenando as vivências e até a própria configuração da cidade
(FONTES, 2011, p. 321).
Não se conhecem, contudo, mais edifícios que pudessem
ser claramente associados ao conjunto episcopal, à semelhança
de outros casos já analisados, não sendo possível inferir, pelo
menos até ao momento, quais as suas características e elementos
constituintes e que área abarcaria.
Na restante área urbana, também não foi ainda possível,
com recuso a dados arqueológicos, conhecer outros exemplos de
edifícios que possam claramente ser associados ao culto cristão,
para o período compreendido entre os séculos IV-VII. Os dados
arqueológicos disponíveis consubstanciam-se essencialmente
em elementos arquitetónicos avulsos, eventualmente associáveis
a outros templos, como o caso de capitéis recolhidos na rua de
S. Sebastião e Largo das Carvalheiras. Poderá ainda ser possível
que a capela de S. Sebastião tenha conhecido uma edificação desta
época. Também foi possível exumar, em diversas intervenções

306 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FRANCISCO ANDRADE E LUÍS FONTES

arqueológicas, que se foram realizando um pouco por toda a


cidade, diversos elementos de vidro e uma placa de azeviche com
crísmon, elementos que poderão ser associáveis ao culto privado,
que terá feito parte das vivências quotidianas na sociedade
Bracarense entre os séculos IV-VI (FONTES, 2017, p. 237).

Figura 7 – Sede episcopal de Braga (séc. IV-V)

Fonte: Fontes (2011)

Os espaços monásticos que existiriam na cidade, cuja


existência se intui da leitura da crónica de Idácio, não são até ao
momento identificáveis no registo arqueológico que conhecemos
da cidade de Braga na Antiguidade Tardia.
À semelhança do que foi possível constatar em outras
cidades na Antiguidade Tardia, também em Braga a periferia

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 307


BRACARA E A CRISTIANIZAÇÃO DAS CIDADES OCIDENTAIS NA ANTIGUIDADE TARDIA

bracarense terá estado pontuada por elementos associáveis ao


culto cristão. Dos novos elementos da topografia cristã, que
ordena a paisagem bracarense, destacam-se, na periferia imediata
à urbe intramuros, a sudeste, associada à necrópole da via XVII,
mas próxima à via que seguia para Mérida para sudeste, uma
possível basílica cemiterial, no local da já desaparecida capela
de S. Clemente do Fujacal, e a oeste, na zona da necrópole
associada à via XX, junto ao anfiteatro de Bracara Augusta, a
basílica funerária teria como patrono S. Pedro (FONTES et al.,
2010, p. 258; FONTES, 2017, p. 238).
Na zona a nordeste da cidade, junto à via XVIII, também
poderá ter existido uma basílica cemiterial associada a uma
necrópole, de que se conhece o famoso epitáfio de Remisnuera.
A leste da cidade, mais afastadas e junto à antiga via XVII,
destacam-se os locais de culto associados à Santa Susana e S.
Vítor, mártires bracarenses cuja assinalável devoção despoletou
o episódio que passou a ser conhecido como “pio latrocínio”
pelo arcebispo de Compostela (FONTES, 2017, p. 238).
Para além da periferia imediata da urbe, na região
bracarense mais alargada, mas que possuía uma relação direta
com a cidade de Braga, os principais referentes cristãos foram
identificados na Falperra, Dume e Montélios. No primeiro caso,
identificou-se uma basílica com características construtivas que
denotam influências africana e itálica, datável dos séculos V-VI
e que se encontra inserida num conjunto palatino construído no
topo de um promontório, onde anteriormente estava implantado
um povoado fortificado pré-romano (FONTES, 2015, p. 202;
FONTES; ANDRADE, 2018, p. 64).
Em Dume, localizava-se um mosteiro-diocese, que se
implantou no século VI, reaproveitando uma importante villa a
meio caminho entre a cidade e o rio Cávado, que atingiu um
assinalável dinamismo e importância suprarregional, em grande

308 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FRANCISCO ANDRADE E LUÍS FONTES

medida devido à ação do seu primeiro abade-bispo Martinho


(ANDRADE, 2015; FONTES et al., 2010, p. 258-260; FONTES,
2011, p. 318-320; 2015, p. 203-208).
O terceiro local que atingiu um importante relevo na região
bracarense e muito ligado na sua génese a Dume, foi Montélios,
pequeno promontório (tal como o seu nome indica), localizado
próximo do limite entre o território diocesano monástico de
Dume e o termo de Braga. Foi nesse local que Frutuoso mandou
erigir um mausoléu para albergar os seus restos mortais, tendo-
se instalado aí uma comunidade monástica (ANDRADE, 2015;
FONTES et al., 2010, p. 259; FONTES, 2011, p. 324-326; 2015,
p. 208-210; FONTES; ANDRADE, 2018, p. 57-62).

Figura 8 – Topografia cristã de Braga

Fonte: Fontes (2017)

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 309


BRACARA E A CRISTIANIZAÇÃO DAS CIDADES OCIDENTAIS NA ANTIGUIDADE TARDIA

Considerações finais

A análise da topografia cristã antiga bracarense e a sua


confrontação com os dados de outros centros urbanos e respetivos
territórios permitem-nos, de alguma forma, refletir, ainda que de
forma preliminar, acerca do contexto e âmbito do surgimento das
primeiras manifestações cristãs na topografia bracarense.
A localização da sede episcopal bracarense numa zona
periférica do espaço urbano está de acordo com outros casos de
análise, como, por exemplo, em Marselha e Arles. No caso de
Arles, a catedral primitiva, junto à muralha, é relocalizada no
séc. V para uma zona mais próxima do fórum.
De facto, as sedes episcopais analisadas, que parecem sair
um pouco desta lógica periférica, são já fundações do século VI,
como são os casos de Tarragona e de Mérida, podendo locais de
culto anteriores possuir as mesmas características, como foi o
caso de Arles, como assumem López Vilar e Puche Fontanilles
(2013, p. 151) para o caso de Tarragona.
De facto, uma certa continuidade urbanística, que parece
existir no século IV, conduz que, no processo de afirmação do
cristianismo, a apropriação de espaços estivesse condicionada
e invalidaria que rompessem radicalmente e totalmente com a
lógica urbana existente.
Nos séculos seguintes, assistimos a uma afirmação
substancial do poder da Igreja. Urbanisticamente, as sedes
episcopais passarão a ser um dos locais centrais das vivências
urbanas. Nos casos de Braga e Córdova, as cidades conhecerão
uma alteração mesmo na sua configuração geral, conferindo
uma nova centralidade aos conjuntos episcopais, movendo-se a
primeira para nordeste e aproximando-se do rio a segunda. Se
é certo que, no primeiro caso, a nova centralidade da catedral

310 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


FRANCISCO ANDRADE E LUÍS FONTES

parece ter tido papel primordial, no segundo caso o seu peso


relativo terá sido menor, tendo neste caso desempenhando o rio
e a sua travessia igualmente um papel fundamental.
Ao nível da periferia imediata da cidade, o culto dos
mártires parece ter sido um motor de difusão e consolidação do
cristianismo, variando apenas a dimensão das suas manifestações,
desde a singela basílica cemiterial integrada na necrópole
do subúrbio, que por vezes se transforma em manifestações
sumptuosa e complexas, como no caso do conjunto de S.
Frutuoso, em Tarragona.
Tal como é referido por Silva (2011, p. 8-9), o culto dos
mártires, para além de constituir um vetor primário de sacralização
do ambiente, o contacto com as relíquias conferiria ao espaço
circundante uma sacralidade que perdurava no tempo. Refira-se,
a título de exemplo, que todos os locais na periferia de Bracara
da Antiguidade Tardia continuam ainda nos dias de hoje a ser
referenciais cristãos na região. Por vezes, como no caso de Braga,
foi por intermédio de conjuntos monásticos de grande dinamismo
que o cristianismo se foi propagando para o território.
Braga, apesar das especificidades que apesenta, fruto
das condições topográficas específicas e condicionantes
político-administrativas a que esteve sujeita, parece-nos
estar perfeitamente enquadrada num processo mais amplo de
afirmação de uma topografia cristã, que poderá ter bastantes
afinidades e similitudes no Ocidente, tendo como referente
Roma e demais sedes administrativas e episcopais.

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visión diacrónica (siglos II a.C.-VII d.C.)”. In: VAQUERIZO,
D. (Ed.). Las áreas suburbanas en la ciudad histórica: topografía,
usos y función. Córdoba: Monografías de Arqueología
Cordobesa, 2010, p. 455-522.
WICKHAM, C. Framing the Early Middle Ages: Europe and the
Mediterranean, 400-800. Oxford: Oxford University Press,
2005.

314 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA


Sobre os autores

BELCHIOR MONTEIRO LIMA NETO é professor e atual


coordenador do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Espírito Santo, doutor e mestre em
História pela mesma instituição e pesquisador do Laboratório de
Estudos sobre o Império Romano (Leir).

CLAUDIA BELTRÃO DA ROSA é professora do Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, doutora em História pela Universidade Federal Fluminense,
mestra em História Antiga e Medieval pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Visitor Fellow da School of History, Classics and
Archaeology da Newcastle University, membro associado da UMR
8210 ANHIMA (Anthropologie et Histoire des Mondes Antiques,
Paris) e bolsista da British Academy. Realizou ainda estágio
pós-doutoral junto ao Programa de Pós-Graduação em História
Comparada da UFRJ.

ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA é professora do


Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
do Espírito Santo, mestra em História pela mesma instituição,
doutora em História pela Universidade Estadual Paulista, campus de
Franca, e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre o Império
Romano (Leir).

FERNANDA MAGALHÃES é doutora em Arqueologia pela


Universidade do Minho, bolsista de investigação da Unidade
de Arqueologia da UMinho e investigadora do Laboratório de
Paisagens, Patrimônio e Território (Lab2PT) da mesma instituição.

FRANCISCO ANDRADE é doutorando em Arqueologia pela


Universidade do Minho e investigador do Laboratório de Paisagens,
Patrimônio e Território (Lab2PT) da mesma instituição.

FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA 315


GILVAN VENTURA DA SILVA é professor do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo,
doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo,
mestre em História Antiga e Medieval pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o
Império Romano (Leir) e bolsista produtividade 1-C do CNPq.

JOÃO CARLOS FURLANI é mestre e doutorando em História


pela Universidade Federal do Espírito Santo e pesquisador do
Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir).

JOSÉ GUILHERME RODRIGUES DA SILVA é mestre e


doutorando em História pela Universidade Federal do Espírito
Santo e pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o Império
Romano (Leir).

LUÍS FONTES é doutor em Arqueologia pela Universidade do


Minho, atual diretor da Unidade de Arqueologia e investigador
do Laboratório de Paisagens, Patrimônio e Território (Lab2PT) da
mesma instituição.

MANUELA MARTINS é professora catedrática do Programa


de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade do Minho,
doutora em Arqueologia pela mesma instituição e investigadora do
Laboratório de Paisagens, Patrimônio e Território (Lab2PT).

MARIA CRISTINA NICOLAU KORMIKIARI é professora do


Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade de
São Paulo, doutora e mestra em Arqueologia pela mesma instituição,
pesquisadora e co-coordenadora do Laboratório de Estudos sobre
a Cidade Antiga (Labeca) vinculado ao Museu de Arqueologia e
Etnologia da Usp.

THIAGO DE A. L. C. PIRES é doutor em História pela Universidade


Federal do Estado do Rio de Janeiro e pesquisador do Núcleo de
Estudos e Referências da Antiguidade e do Medievo (NERO) da
mesma instituição.

316 FORMAS E IMAGENS DA CIDADE ANTIGA

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