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Yves Clot

FABREFACTUm , Trabalho e
editora
oder de agir
CONSELHO EDITORIAL

EDITORES
Prof. Rodrigo Ribeiro
Universidade Federal de Minas Gerais
Prof. Francisco de Paula Antunes Lima
Universidade Federal de Minas Gerais

MEMBROS
Prof. Antonio Arellano Hernández Dra. Maria Cristina Guimarães
Universidad Autônoma del Estado de México Fundação Oswaldo Cruz - FIOCRUZ
Prof. David Hess Profa. Maria Elizabeth Antunes Lima
Rensselaer Polytechnic Institute Universidade Federal de Minas Gerais
Prof. Dominique Vinck Profa. Maria Lúcia Álvares Maciel
Université Pierre Mendes France de Grenoble Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Harry Collins Prof. Mário Sérgio Salerno
Cardiff University Universidade de São Paulo
Prof. Henrique Luiz Cukierman Prof. Michel Jean Marie Thiollent
Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Ivan da Costa Marques Prof. Michelangelo Trigueiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade de Brasília
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Universidade de. São Paulo Cardiff University
Dr. José Marçal Jackson Filho Prof. Thales Haddad Novaes de Andrade
Fundacentro - RJ Universidade Federal de São Carlos
Profa. Léa Maria Leme Strini Velho Prof. Wiebe Bijker
Universidade Estadual de Campinas Maastricht University
Profa. Maíra Baumgarten
Universidade Federal do Rio Grande
Prof. Yves Schwartz
Université de Provence
FABREFACTU
editora
© 2008. Presses Universitaires de France (PUF).
© 2009 da tradução brasileira - Fabrefactum Editora Ltda.
Licencenciado por Presses Universitaires de France.
Todos os direitos da tradução e desta edição reservados à Fabrefactum Editora.
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização,
por escrito, da Fabrefactum Editora Ltda.
Primeira edição, 2010.
Título original: Travail et pouvoir d'agir
Prefácio à edição
brasileira
Clot, Yves
C646 Trabalho e poder de agir I Yves Clot;
Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira e
Marlene Machado Zica Vianna. - Belo Horizonte:
Fabrefactum, 2010.

368p. (Série: Trabalho e Sociedade)


Título original: Travail et pouvoir d'agir

ISBN: 978-85-63299-08-6
I. Psicologia do trabalho. 2. Trabalho -Aspectos
psicológicos. L Título.

CDD: 158.7 Após o sucesso de A função psicológica do trabalho, em 2006, a pu-


CDU: 331:159.9
blicação desta segunda obra de Yves Clot representa um passo deci-
Bibliotecária responsável: Maria Aparecida Costa Duarte
sivo para a consolidação do campo da clínica da atividade no Brasil.
CRB/6-1047
No primeiro momento, o autor tratou fundamentalmente das di-
mensões psicológicas envolvidas na relação homem/trabalho, agora
traz elementos para se pensar os rumos que deve tornar a psicologia
Tradução
Guilherme João de Freitas Teixeira do trabalho, de modo a transformar em "um meio poderoso de fa-
Marlene Machado Zica Vianna zer a psicologia geral:' (p. 41) Ou seja, logo de início, ele deixa claro
Revisão Técnica
Maria Elizabeth Antunes Lima/Matilde Agero
que "a especialização no campo qa análise psicológica do trabalho
Batista/Anselmo Lima/Cláudia Osório/ não é, em psicologia, o contrário da generalização:' (p. 41)
Raquel Soares/Fernanda Amador/
Francisco de Paula Antunes Lima Assim, neste segundo momento, Clot pretende, acima de tudo,
Revisão compartilhar suas aquisições teóricas mais recentes e contribuir para
Marlene Machado Zica Vianna
a ampliação do "poder de agir" daqueles que trabalham, ao oferecer
Projeto Gráfico
Juliana Midori Horie/Know-how Editorial aos interessados por esse campo do conhecimento melhores ferra-
Editoração rnentas para sua atuação profissional. Para isso, selecionou urna co-
Cintia da Silva Ferreira/Know-how Editorial
Capa letânea de artigos de sua autoria - sendo alguns de difícil acesso para
FabrefactumEditora Ltda. Daniela Luz o leitor brasileiro -, organ_izando-a em três partes: a primeira voltada
Rua Miranda Ribeiro, 165 Foto da Capa
Belo Horizonte - Minas Gerais Alexandre de Queiroz Lopos
para os fundamentos da disciplina, a segunda para as questões con-
CEP 30380-660 - Brasil Apoio Produção ceituais e a terceira para os problemas metodológicos.
Telefone: O(XX)31 2515-2Ú7 Maria Elisa Lima Pereira
http://www.fabrefactum.com.br Impressão
Para melhor situar o leitor a respeito dos conteúdos da obra,
E-mail: contato@fabrefactum.com.br Prol Editora Gráfica Ltda. ele propõe urna excelente introdução, na qual trata de vários aspectos,
vi i i Trabalho e poder de agir Prefácio à edição brasileira ix

dentre eles, sua concepção a respeito da atividade, abordando desde fundamentai:' (p. 53) Isso significa que, para Wisner, o trabalho não
sua relação com as emoções e as cognições até as possíveis c,ríticas pode ser percebido apenas como um "campo de aplicação de hipó-
que podem ser dirigidas à oposição, por vezes feita, entre atividade teses': nem como um campo de estudos para ilustrar "certos proble-
construtiva e atividade produtiva. Essas críticas lhe permitem apro- mas de psicologia teóricà~ (p. 53) Tampouco se deve concebê-lo
fundar a reflexão em torno do desenvolvimento do "poder de agir': como um espaço no qual os operadores resolvem problemas, mas
conceito que ocupa um lugar cada vez mais central na sua disciplina. sim como um espaço de construção de problemas.
Ao final dessas discussões introdutórias, aborda sucintamente os Clot ressalta nesse tipo de reversão operada pelo grande ergo-
problemas metodológicos, deixando claros os critérios que nortea- nomista francês, um caminho que irá permitir a passagem da psico-
ram a seleção dos artigos que compõem a terceira parte da coletânea: logia cognitiva tradicional à ação situada. Mas ressalta, também, que
o tratamento de queBtões relativas às ações de transformação das suas contribuições para o campo da psicologia não param aí, uma
situações de trabalho e à produção de conhecimentos científicos. vez que, nos seus últimos textos, traz um incentivo à renovação dessa
A primeira parte de Trabalho e poder de agir, na qual Y. Clot disciplina, inclusive pela referência às obras de Vygotsky e Leontiev,
expõe as principais fontes que serviram de base para a construção da quando eram ainda pouco divulgadas na França. Ao se referir à con-
clínica da atividade, é composta por quatro belos ensaios dedicados tribuição dos psicólogos russos para a compreensão do desenvolvi-
a A. Wisner, L. Vygotsky, L. Le Guillant e L Oddone. A ergonomia mento humano, finaliza Clot, Wisner trouxe elementos essenciais
francesa é enfocada no primeiro desses ensaios, sendo associada, para se pensar o desenvolvimento dos trabalhadores, mas seu grande
desde suas origens, ao percurso de A. Wisner, considerado, a justo legado consistiu em trazer, no conjunto de sua obra, uma vacina
título, como o fundador dessa disciplina no seu país. Clot reconhece "contra o dogmatismo' ao cultivar a sabedoria da ação:' (p. 54)
não apenas que a obra do grande ergonomista é o "ponto de partidà' O ensaio consagrado a Vygotsky apresenta ao leitor uma das
para seu próprio percurso, como percebe nela alguns aspectos pou- principais fontes de inspiração da clínica da atividade, sobretudo,
co enfatizados por outros autores: um antídoto ao positivismo, ao pelo fato de o psicólogo russo ser, como bem sinaliza Clot, um dos
propor o exercício ergonômico determinado por questões postas precursores da ação situada, ao se opor "à abordagem mentalista e
pelo campo; uma concepção de saúde bastante próxima daquela desencarnada de uma inteligência, sem raízes corporais e sociais'~
apresentada por Georges Canguilhem, ao colocar saúde e atividade (p. 61) Seu grande interesse por essa perspectiva se deve ao fato de
como sinônimas; uma fuga ao dogmatismo acompanhada do enco- possuir uma base histórica e, ao mesmo tempo, por se preocupar
rajamento constante à discussão, ao permitir a "polifonia da trocà' e com as questões relativas ao desenvolvimento, buscando compre-
alimentar "o plurilinguismo profissional" (p. 51); e, finalmente, uma ender, fundamentalmente, como se dá a passagem entre a atividade
clara consciência dos limites da sua disciplina, ao definir para ela pessoal e o social. Clot lhe oferece um tratamento amplo, abordan-
propósitos mais modestos e por isso mesmo mais factíveis. do desde a forma caricatura! que vem sendo dada ao legado do au-
Clot reconhece em Wisner uma fonte essencial para suas re- tor, visto como uma espécie de "ortopedia cognitivà' (p. 61), até
flexões no campo da clínica da atividade, ressaltando, inclusive, o seus aspectos menos discutidos, como a compreensão de Vygotsky
fato de ter tido um papel importante no interior da própria psicolo- a respeito da doença mental, que ele considera como uma forma de
gia. Segundo ele, a "alta responsabilidade científicà' do ergonomista fracasso no processo de transformação da experiência vivida pelo
francês também nesse campo do conhecimento já se notava ao ocu- sujeito.
par a presidência da Sociedade Francesa de Psicologia, mas ficou Assim, apesar da concisão do ensaio em questão, Clot conse-
·, ainda mais evidenty quando se recusou a aceitar a psicologia do gue trazer alguns dos principais aspectos que o inspiraram nas suas
1

trabalho como ciência aplicada, invertendo essa premissa e propon- próprias reflexões, especialmente, o tratamento dado a questões
· do "o trabalho como um dos lugares de constituição da psicologia como a deficiência, os afetos e os processos de desenvolvimento. Ele
X Trabalho e poder de agir Prefácio à edição brasileira xi

conclui que, para Vygotsky, a psicologia não pode ser vista corno um só pode ser fruto de urna interpretação equivocada do seu trabalho.
método de conhecimento e sim corno um método de ação. qu seja, Para melhor fundamentar esse argumento, lança mão do estudo clí-
se é verdade que é "somente em movimento que um corpo mostra o nico "O caso de Marie r' 3, no qual Le Guillant trata da relação entre
que é" (p. 63), então, será unicamente pela "experiência de transfor- condições específicas de trabalho e o surgimento de sintomas corno
mação que a atividade psicológica poderá revelar seus segredos': (p. 63) o "nervosismo': por exemplo, sem cair na visão simplista de urna
Portanto, o desenvolvimento só poderá "ser objeto da psicologia se causalidade linear entre o social e o psíquico. Ou seja, Clot percebe,
ele é, também, seu método: um método que, para os sujeitos, seja o nas análises propostas pelo psiquiatra francês, que, entre essas duas
meio de descobrir suas capacidades ao se avaliarem diante do que instâncias, sempre existe a atividade "dramática" do indivíduo, cujo
eles fazem. Concebido, não para saber o que são, mas para experi- sentido ultrapassa o "drarnà' politzeriano, já que vem acrescido de
mentar, com eles, o <;JUe poderiam vir a ser". (p. 63) 1 sua "significação ernotivà: (p. 72)
O ensaio consagrado a Louis Le Guillant traz elementos pre- Dessa forma, um dos aspectos centrais do ensaio consiste em
ciosos para a compreensão da importância da obra do grande psi- desfazer certas visões equivocadas a respeito da obra deLe Guillant,
quiatra francês na edificação da clínica da atividade, constituindo- rejeitando qualquer reducionismo ou simplificação grosseira, ao
se em um dos pilares dessa disciplina. Alguns dos aspectos centrais expor seu grande mérito: o de praticar "urna clínica atenta às condi-
de sua produção teórica foram focalizados, mas vale destacar a ên- ções sociais do trabalho a fim de que, nessas circunstâncias, sejam
fase dada por Clot à questão do ressentimento magistralmente ana- detectados conflitos objetivos, cujas manifestações psicopatológicas
lisada por Le Guillant no seu estudo sobre as empregadas domésti- constituem outras tantas expressões dramatizadas:' (p. 74) Trata-se,
cas? Outros pontos importantes são enfatizados, tais corno suas em suma, de urna perspectiva segundo a qual o trabalho é compre-
investigações em torno das "doenças da produtividade'' e as críticas endido levando em conta seus impactos no psiquismo, isto é, corno
pertinentes dirigidas pelo psiquiatra francês contra o "nosologis- "urna relação social que define condições de subordinação a serem
rno" de sua época, ao se recusar a propor um quadro clínico com encontradas, obrigatoriamente, inclusive na intimidade da vivência
diagnóstico específico para cada categoria profissional. subjetivà: (p. 74). Nesse sentido, Clot capta perfeitamente o espírito
No entanto, mesmo reconhecendo a relevância do legado de presente nas reflexões de Le Guillant, ao concluir que, para ele, não
Le Guillant, Clot foge a qualquer visão idealizada a seu respeito, ao é a condição social que é patogênica em si, mas, acima de tudo,
discorrer igualmente sobre algumas de suas insuficiências. Assim, "suas discordâncias, os conflitos que ela contém e impõe ao sujeito:'
manifesta seu acordo em relação às objeções feitas contra a adesão, (p. 74) Mas é no desfecho desse E;nsaio que, no meu entender, ele
aparentemente pouco crítica de Le Guillant à perspectiva pavlovia- traz urna de suas maiores contribuições, ao propor, mesmo sucinta-
na, além de apontar para urna lacuna importante na sua obra: a mente, urna possível relação entre psicopatologia do trabalho e psi-
ausência de urna teorização a respeito da noção de atividade. Por canálise, tornando por base as reflexões de Le Guillant. De início,
outro lado, discorda daqueles que lhe atribuem urna concepção so- constata a superioridade desse autor se comparado a outros, corno
ciogenética da doença mental, argumentando, com razão, que isso C. Dejours, que tentaram estabelecer a mesma relação. Em seguida,
mostra que, no contexto da obra de Le Guillant, existem elementos
essenciais para se pensar essa possibilidade, - não por meio de urna
1
Mais adiante, na terceira parte da obra, ficará mais evidente o modo pelo qual essas transposição acrítica de conceitos de urna disciplina à outra -, mas
extrações da obra vygotskiana irão contribuir para o desenvolvimento das questões
metodológicas na clínica da atividade.
pela "releitura críticà' (p. 80) dos mesmos.
2
Esse e outros estudos realizados pelo autor foram publicados no Brasil, em 2006,
pela Editora Vozes, na coletânea intitulada Escritos de Louis Le Guillant- da Ergotera-
1
pia à Psicopatologia do Trabalho, contando com um prefácio escrito por Yves Clot. Cf. Le Guillant, 2006, Capítulo 6, Parte li.
xii Trabalho e poder de agir Prefácio à edição brasileira xiii

O ensaio dedicado a I. Oddone fecha a primeira parte da obra ca, como a atual, em que ainda prevalecem as práticas dos experts
apresentando mais um dos pilares sobre os quais Clot vem e4ifican- encarregados de combater a nocividade das condições de trabalho.
do a clínica da atividade. De início, ele deixa clara a influência do Essa seria a principal razão para se resgatar a herança de Oddone,
chamado "Movimento Operário Italiano" sobre suas próprias refle- uma vez que, ao propor a ampliação da comunidade científica, ele
xões em torno da prática da psicologia nos contextos laborais. Ma- cria uma "poderosa oportunidade" para o desenvolvimento da ci-
nifesta seu acordo com as objeções feitas por Oddone ao impasse ência, sobretudo por ter como base "a participação direta dos traba-
gerado pela "simples denúncia das condições inaceitáveis de traba- lhadores na análise do seu próprio trabalho': (p. 87) Tal prática só
lho", impondo-se, em seu lugar, a tarefa de apoiar os coletivos de pode resultar, completa ele, na proposição de novos problemas teó-
trabalhadores nos seus esforços "para manter, inicialmente, e, em ricos, em especial, aqueles referentes às questões relativas ao desen-
seguida, ampliar sell. raio de ação': (p. 94) Mas, acima de tudo, con- volvimento e aos seus impedimentos.
corda com a ideia de se propor um novo modo de se praticar a psi- Mas Clot não se esquece também de que Oddone foi o pri-
cologia nos contextos de trabalho, de forma a "ampliar o poder de meiro a levantar o problema da função psicológica do coletivo de
ação dos coletivos de trabalhadores" (p. 94) sobre si mesmos e sobre trabalho, reconhecendo nele a fonte na qual buscou se inspirar para
seu contexto real de trabalho. Mas, para concretizar tal propósito, teorizar a respeito do tema e concluir posteriormente que "a ativi-
Oddone estava consciente da necessidade de se "inventar e reinven- dade individual encontra seus recursos em uma história coletivà'
tar os instrumentos dessa ação': (p. 94) E foi a busca por uma res- (p. 89), cuja perda ou enfraquecimento pode estar na origem da
posta a tal necessidade que o levou a criar dispositivos de diagnós- maior parte das provações sofridas no mundo do trabalho. Em ou-
tico e intervenção nos contextos de trabalho, resultando em uma tras palavras, ele admite que, graças ao autor italiano, é que pode
perspectiva metodológica inovadora na qual Clot irá se apoiar para concluir que a atividade individual encontra seus recursos em uma
desenvolver seus próprios instrumentos no campo da clínica da ati- história coletiva "que detém, capitaliza, valida ou invalida as estra-
vidade. Assim, a chamada "Comunidade Científica Ampliadà' - tégias do comportamento" (p. 89). Consequentemente, "quando um
cuja base se encontrava nos "grupos operários homogêneos" -, foi coletivo profissional já não consegue executar o trabalho de organi-
criada por Oddone com a finalidade de tornar o trabalhador "pro- zação, que é a única maneira de preencher o fosso entre a organiza-
tagonista da pesquisà' e, portanto, "instrumento vivo da avaliação ção oficial do trabalho e a vida, a desregulação da ação individual
dos riscos e da validação das soluções elaboradas" (p. 85). Ao fazê- nunca está muito longe': (p. 89) Ao concluir que a "anemia simbóli-
lo, permitiu o deslocamento do "centro de gravidade da investiga- cà' (p. 89), decorrente dessa falha do coletivo de trabalho, pode
ção psicológicà' (p. 85), ultrapassando o mero diagnóstico e pro- conduzir a problemas psíquicos, Clot explícita uma possível contri-
pondo, ao mesmo tempo, a invenção de um "dispositivo em que buição da proposta de Oddone para o campo da Saúde Mental e
seja possível começar a pensar coletivamente o trabalho para reor- Trabalho (SM&T).
ganizá-lo:' (p. 85) A segunda parte da obra focaliza o que Clot chamou de "pro-
A maior consequência dessa mudança de perspectiva, segun- blemas e conceitos': Ela se inicia com um dos mais importantes en-
do Clot, encontra-se na possibilidade que traz de mudar nosso olhar saios desta publicação: "Clínica da atividade e psicopatologia do
em relaçi'ío à experiência operária. Esta "não deve mais ser apenas trabalho:' Trata-se de uma síntese dos principais temas discutidos
reconhecida, mas transformadà: ou em outros termos, "só pode ser pela clínica da atividade, !lias, dessa vez, considerados nas suas pos-
reconhecida graças à sua transformação': significando que só pode- síveis relações com o campo da Saúde Mental e Trabalho. As refle-
mos vê-la quando muda de estatuto, "ao tornar-se o meio para viver xões do autor são inegavelmente esclarecedoras ao iluminar inúme-
outras experiências". (p. 86) Ele conclui essas reflexões dizendo que ras questões com as quais diversos teóricos pertencentes a esse
tal perspectiva parece mais do que nunca necessária, em uma épo- campo vêm se debatendo ao longo das últimas décadas. Seu ponto
xiv Trabalho e poder de agir Prefácio à edição brasileira XV

de partida são os estudos de L. Le Guillant em torno das "vagabun- Esse é, também, o motivo que o leva a concentrar seus esforços nas
dagens do espírito'' entre os condutores de trem, avançando vouco questões metodológicas, dizendo que "o problema dos métodos é,
a pouco em direção aos conceitos de atividade realizada, real da sem dúvida, um dos que suscitam o maior número de questões teó-
atividade, catacreses objetivas e subjetivas, até chegar ao ponto cen- ricas, justamente em razão do fato de que a técnica - tanto na pes-
tral do ensaio que se encontra, no meu entender, nas discussões em quisa, quanto na intervenção - está sempre bastante exposta às sur-
torno da saúde, defesas e poder de agir. O essencial da contribuição presas dó real': (p. 118) Assim, a clínica da atividade deve ser objeto
de G. Canguilhem para o desenvolvimento do pensamento de Clot de "pesquisas conceituais específicas" (p. 118), levando à busca de
se evidencia nesse momento, deixando clara a centralidade de suas "instrumentos práticos e teóricos" que permitam "alimentar ou res-
reflexões para a edificação da clínica da atividade. tabelecer o poder de agir de um coletivo profissional no seu meio de
Os capítulos sqbsequentes consistem em um aprofundamen- trabalho e de vidà' (p. 118).
to de vários temas anteriormente levantados: o gênero profissional, Ao escolher, para finalizar sua coletânea, temas relativos à
os estilos de ação, o gesto e o indivíduo na sua relação com o coleti- ação e ao conhecimento, envolvendo questões metodológicas, Clot
vo. Eles trazem elementos essenciais para responder a questões que evidencia, mais uma vez, a motivação maior da publicação: a de ex-
possivelmente foram suscitadas pela leitura dos capítulos preceden- plicitar o interesse central de sua disciplina, que consiste em ser, aci-
tes, uma vez que aspectos tratados, até então de forma pontual pelo ma de tudo, um instrumento de transformação dos contextos de
autor, são retomados com o aprofundamento necessário. Além dis- trabalho. Assim, expõe cuidadosamente não apenas os dois princi-
so, no artigo "Gêneros profissionais e estilos de ação': ele avança pais métodos que vêm sendo adotados e desenvolvidos pela sua
alguns pontos importantes relativos aos problemas metodológicos, equipe - a instrução ao sósia e a autoconfrontação cruzada -, mas
antecipando para o leitor o tema da terceira e última parte de sua também as formas pelas quais os materiais produzidos por eles po-
obra. Assim, enfatiza mais uma vez que a finalidade maior da clíni- dem ser utilizados em pesquisas, especialmente, aquelas voltadas
ca da atividade consiste na transformação das situações de trabalho,
!
para o "desenvolvimento do pensamento na controvérsia profissio-
mas adverte que, embora se coloque dentro da tradição ergo_nômica
1
nal:' (p. 259) Os quatro capítulos que compõem esta parte vêm re-
; de língua francesa, percebe que a evolução da ergonom1a, bem cheados de ilustrações, o que, sem dúvida, irá permitir aos que pre-
como da psicologia do trabalho e das ciências do trabalho, em geral, tendem se aprofundar no uso desses instrumentos uma avaliação de
. tem conduzido a uma interrogação sobre quem são os protagonis- sua eficácia, a partir dos resultados que permitem alcançar. Este é
tas das mudanças que se pretende introduzir nesses contextos. Nes- um ponto fundamental, sobretud0, se considerarmos que o propósi-
se ponto, reafirma seu distanciamento do que qualifica como "estra- to maior da clínica da atividade consiste em compreender e provocar
tégias clássicas de intervenção" (p. 117) nos locais de trabalho e que o desenvolvimento no sentido que lhe foi atribuído por Vygotsky.
. i culminam geralmente em preconizações resultantes de uma exper-
Na conclusão de sua obra, Clot retoma uma questão que já
tise externa. A abordagem proposta pela clínica da atividade, diz
1
havia sinalizado na introdução e que consiste em pensar a respeito
ele, sugere que se coloque em prática "um dispositivo metodológico dos possíveis usos que se pode oferecer ao termo "ofício" no âmbito
destinado a tornar-se um instrumento para a ação dos próprios co- da psicologia do trabalho. Ele constata, de início, que, no contexto
letivos de trabalho". (p. H 7) francês, o termo "persiste no vocabulário cotidiano de um grande
Fica evidente, a partir dessas considerações, que Clot admite número de trabalhadores" (p. 279), levando-o a buscar suas raízes
como duradouras somente as transformações que resultam da ação etimológicas. Ao fazê-lo, concluiu que o uso que se faz atualmente
dos próprios trabalhadores. É por essa razão que propõe uma análise do termo, não pode ser remetido ao sentido a ele atribuído pelos ope-
do trabalho voltada' para amparar os coletivos de modo a aumentar rários do período pré-taylorista ou mesmo pelas corporações artesa-
seu poder de agir e ampliar seu raio de ação no meio profissional. nais. Apesar disso, sua permanência em um contexto tão diferente
xvi Trabalho e poder de agir Prefácio à edição brasileira xvii

daquele que o originou não representa para Clot o simples efeito de sobretudo, naquilo que diz respeito à memória coletiva que este
uma espécie de "inércià' da linguagem. Para melhor desel\volver preserva, "a psicopatologia do trabalho nunca está longe'~ (p. 287) E
seus argumentos, ele se apoia nas atividades de serviço que se so- mais do que isso, é pelo fato de não se reconhecerem mais no ofício
brepõem cada vez mais às atividades industriais, dizendo que nelas que realizam que os profissionais "solicitam, de forma tão maciça,
as tentativas de separação entre trabalho e pensamento são bem 'ser reconhecidos": (p. 288) O enfraquecimento do coletivo profis-
mais complicadas, já que ocorre a imposição de "uma responsabili- sional, agora reduzido a "uma reunião de indivíduos expostos ao
dade renovada quanto ao "objeto" e, por isso, a definição das tarefas isolamento'' (p. 288), abre, então, espaço para que os assalariados se
é influenciada, mais do que em outras circunstâncias, por avalia- voltem para o alto, demandando uma "reparação imaginárià' (p. 288),
ções conflitantes'~ (p. 281) Ou seja, na medida em que o "objeto" de exatamente daqueles que frequentemente estão na origem dos maus
trabalho se torna "sujeito': os problemas de consciência se multipli- tratos infligidos ao seu ofício. Dessa forma, o reconhecimento pelo
cam, e as finalidades do trabalho, assim como sua qualidade, pas- outro pode "se tornar uma compensação factícia exatamente no lu-
sam a ocupar o "âmago dos dilemas do justo e do injusto, do verda- gar em que havia desaparecido a possibilidade de se reconhecer em
deiro e do falso e, até mesmo, do bem e do mal". (p. 281) Portanto, algó". (p. 288) A conclusão a qual chega Clot é essencial para aqueles
para ele, todos os elementos que compõem essa atividade, parecem que procuram uma forma mais eficaz de atuar no mundo do traba-
ter feito ressurgir o termo "ofício" "na linguagem dos profissionais lho, uma vez que coloca no seu devido lugar o foco dessa ação: "É,
dos serviços". (p. 281) Mas acrescenta que, se considerarmos "a in- com bastante frequência, quando alguém deixa de se reconhecer no
flação" do seu uso em outros setores, como no da engenharia indus- ofício, tal como esse se exerce, que a demanda de ser reconhecido se
trial e da gestão ou ainda da engenharia de formação, além da am- torna mais insistente:' (p. 288)
pliação das discussões por via eletrônica "entre pessoas de ofício", A leitura deste livro revela que a clínica da atividade é uma
pode-se concluir juntamente com F. Osty, que o termo não é mero disciplina em processo acelerado de construção, sendo considerá-
"resíduo" entre aqueles que se referem ao trabalho. Torna-se, então, veis seus avanços no decorrer dos últimos anos. Isso torna ainda
necessário compreender melhor as razões pelas quais seu sentido mais desafiadora a tarefa de expô-la em um espaço necessariamente
psicológico parece se ampliar, ao passo que seu significado socioló- reduzido, desafio que me foi apresentado por Y. Clot ao me convi-
gico parece se apagar. dar gentilmente a escrever este prefácio. Assim, ao concluir estes
Foi ao tentar encontrar uma resposta a tal interrogação que breves comentários sobre uma reflexão de tamanha importância e
Clot culminou naquela que pode ser vista como sua maior contri- complexidade, pretendo tão somente despertar no leitor o desejo de
buição nesse desfecho de sua obra: a problematização em torno da ir diretamente aos textos e constatar, por si mesmo, a inteligência,
questão do reconhecimento. O tratamento dessa questão conduziu elegância e sensibilidade com a qual seu autor lida com temas que
a um inevitável debate com a psicodinâmica do trabalho, trazendo tocam no cerne dos problemas vividos pelo homem nos contextos
elementos essenciais para se pensar diferentemente o problema, de trabalho. E, se ao final dessa leitura cada um sentir ampliado seu
além de flagrar nosso autor em pleno exercício da controvérsia, poder de agir, então, seu intento maior terá sido alcançado.
posta por ele como motor de desenvolvimento das disciplinas. O
ponto central desse debate concerne, no meu entender, à recusa de
se lançar o foco sobre a ausência de reconhecimento da hierarquia Belo Horizonte, Setembro de 2010
,' ou dos pares, conforme preconiza a psicodinâmica do trabalho.
Maria Elizabeth Antunes Lima
Nosso olhar, diz ek, deveria se voltar para a impossibilidade que
muitos se encontram hoje de se reconhecerem naquilo que fazem.
Em outras palavras, quando o gênero profissional é maltratado,
Sun1ário

Introdução - Questões de ofício ......... ........ ........ .. ... ..... 1


1. Emoções e cognições na atividade............... 3
2. Atividade e afetividade ..... ............................. 6
3. Sentido da atividade e questão social .......... 10
4. O poder de agir: entre sentido e eficiência.. 13
5. Desenvolvimento alternado.......................... 20
6. O traço de união da atividade....................... 22
7. Duas atividades?............................................. 24
8. Sobre antigas questões em psicologia.......... 26
9. O poder de ser afetado: ser sujeito............... 30
10. Poder de agir, gênero e agency...................... 34
11. Metodologia para a ação e métodos de
análises ...................................... ,...................... 36

Primeira parte
UMA HERANÇA EM DISCUSSÃO

Capítulo 1 - Partir da ergonomia: A. Wisner ............... 45


1. A ergonomia como arte ........... ...................... 45
XX Trabalho e poder de agir Sumário XXI

2. A técnica e seus limites.................................. 47 2. As vagabundagens do espírito ...................... 101


3. A ((controvers1a
r •"
como h erança .... ................ , 49 3. Atividade realizada, real da atividade .......... 103
4. Para além do experimentalismo ... .............. .. 52 4. Uma clínica da atividade ............................... 104
5. A tentação da ação situada............................ 55 5. Catacreses objetivas e subjetivas: o medo
6. Antropotecnologia e psicologia.................... 56 deslocado ......................................................... 106
6. Contribuição e limite das defesas para a
Capítulo 2- Voltar às fontes: L. Vygotski..................... 59 saúde ................................................................ 109
1. No social ...................... ..................... ................. 60 1ll
7. Saúde e poder de agir .....................................
2. Para além do social......................................... 61
8. Canguilhem e Vygotski: atitudes e
3. A deficiência.................................................... 62
desenvolvimento ............................................ ll2
4. Os afetos e o inconsciente .......... ...... ......... .... 64
9. A proteção entre defesa e réplica .................. ll6
5. A história......................................................... 65

Capítulo 2 - Gêneros profissionais e estilos da ação .... 117


Capítulo 3 - Compreender o drama: L. Le Guillant..... 67
1. A heterogeneidade como herança................ 69 1. O poder de agir ............................................... ll7
2. Ressentimento e condição social.................. 61 2. Gêneros de linguagem, gêneros técnicos .... ll9
3. DeLe Guillant a Tosquelles: a atividade...... 75 3. O gênero, entre restrição e recurso .............. 123
4. Psicanálise e Kulturarbeit: algo diferente .... 78 4. O estilo: liberar-se para se desenvolver ....... 125
5. A "dupla vida'' do estilo ................................. 127
Capítulo 4 - Instrumentalizar a ação: I. Oddone ......... 83 6. A troca verbal: lugar e espaço do
1. Duas vias.......................................................... 85 desenvolvimento ............................................ 130
2. Apropriar-se do meio..................................... 86 7. A motricidade do diálogo ............................. 133
3. Gêneros de atividades e grupo homogêneo... 88 8. Gênero de discurso científico e diálogos ..... 135
4. Estilos de atividades e desenvolvimento 9. A autoconfrontação: criar um espaço e
psicológico ................... ........................ ........... 91 um momento diferentes ................................ 137
5. A vida do gênero............................................. 93 10. Possibilidades e limites da autoconfrontação:
história de um método .................................. 139
Segunda parte 11. A autoconfrontação cruzada: uma renovação
A ATIVIDADE: PROBLEMAS E CONCEITOS
metodológica .................................................. 142
Capítulo 1 - Clínica da atividade e psicopatologia 12. O desenvolvimento: transformar para
do trabalho'.............................................................. 99 compreender ................................................... 147
1. As investigações de L. Le Guillant................ 99 13. Desvencilhar-se do fardo das dicotomias .... 149
xxii Trabalho e poder de agir xxiii
Sumário

14. Exercício de estilo........................................... 151 4. Os Correios, na França: carteiros veteranos


15. Instabilidade controlada: o retorno das leis e jovens rouleurs [carteiros jovens sem
do diálogo........................................................ 153 posto fixo]....................................................... 195
5. Funcionamento, funcionalidades,
Capítulo 3- O gesto é transmissível?........................... 155 desenvolvimento............................................ 198
1. O gesto, a palavra e os enigmas.................... 155 6. Desenvolvimento e desenvolvimento.......... 200
2. O problema da imitação................................ 158
3. O gesto como arena: entre gênero e estilo... 160 Capítulo 2 - Elaborar a experiência: a instrução ao
4. O desenvolvimento da transmissão: sósia...................................................................... 202
um exemplo.................................................... 161 1. Questões de método....................................... 202
5. O gesto não é uma bola que se passa........... 163 2. As armadilhas do vivido................................ 204
3. Causalidade histórica em psicologia............ 205
Capítulo 4 - O coletivo no indivíduo?.......................... 168 4. O sósia como método indireto ..................... 208
1. O coletivo como instrumento: "interlocutor" 5. A regra do jogo............................................... 209
["repon
' dant"] pro fi sswna . 1 .. .. .. .. ... .. .. ... .. .. .. .... 168 6. A experiência vivida de uma experiência
2. Trabalho coletivo e coletivo de trabalho: os vivida................................................................ 222
atendentes........................................................ 171 7. O vivido como meio d'agir ............................ 223
3. A atividade individual: mediatizada e 8. Para além do mentalismo: a ação................. 224
mediatizante.................................................... 174
4. Indivíduo e coletivo: a migração funcional. 177 Capítulo 3 - Provocar o diálogo: a autoconfrontação
5. O estilo como desenvolvimento do gênero. 180 cruzada ... ..... ..... .. ...... .... ... ... ... ....... ... .... .. .. .. ....... .... 228
6. O duplo destino da repetição........................ 181 1. Diálogo realizado e real do diálogo.............. 228
2. Subdestinatário, destinatário,
so bredestinatário ............................................ 232
Terceira parte
3. Há verdade e verdade ..................................... 234
AÇÃO E CONHECIMENTO: METODOLOGIA E MÉTODOS
4. A autoconfrontação: uma experimentação
Capítulo 1 - O trabalho entre funcionamento e dialógica .......................................................... 238
desenvolvimento .................................................. 187 5. Clínica da atividade dialógica ....................... 242
1. Um estilo de experimentação ....................... 187 6. Um gênero especializado? ............................. 246
2. Atividade mediatizada e atividade 7. O subdestinatário na observação ................. 249
mediatizante.................................................... 189 8. O coletivo no indivíduo: a autoconfrontação
3. Métodos e metodologia em psicologia........ 192 simples............................................................. 253
xxiv Trabalho e poder de agir

9. A autoconfrontação cruzada: devires do sobre-


destinatário ............ ....... ..................... .. ........... 1 256
10. Um diálogo a desenvolver............................. 257

Capítulo 4 - Analisar os diálogos: objetos de debate, Introdução


objetos de discurso............................................... 259
l. A parada de um trem....................................... 259
2. O gesto em movimentos.................................. 264
3. Diálogo e interação........................................... 266
4. Frenagem e frenagem....................................... 268
5. O ofício como objeto de debate ................ ,..... 274

Conclusão - Ofício: da palavra ao conceito.................. 279


1. O despertar da palavra..................................... 280
2. Reconhecimento?............................................. 283 Este livro reúne textos já publicados - mas, dispersos ou difíceis de
3. Reconhecer-se em algo.................................... 285 encontrar - que, por se referirem a questões e temas diversificados,
4. A arquitetura do ofício [métier] ..................... 289 poderão ser considerados desconexos ou redundantes. Às vezes,
5. Ligar, desligar, religar....................................... 291 eles o são porque decidi conservá-los praticamente em sua versão
6. Entrar no métier ............................................... 294 inicial, com as correções usuais que se fazem necessárias em tais
casos. Um só entre eles - o último capítulo - foi objeto de uma nova
7. O ofício [métier] que entra............................. 296
redação, levando em conta as pesquisas em curso. A "Introdução" e
8. Reencontrar-se.................................................. 299
a "Conclusão" foram escritas especialmente para esta publicação a
9. O nó do problema............................................. 301 fim de extrair dessa matéria- pri~a algumas consequências dos re-
sultados obtidos e dos obstáculos encontrados no desenvolvimento
Bibliografia ..................................... ,.............................. 303 de uma clínica da atividade em psicologia do trabalho.
Nesta obra, encontram-se, portanto, reunidos estudos oriun-
dos de três domínios que constituem outros tantos centros de interes-
Índice onomástico......................................................... 335
ses constantes para a clínica da atividade - que me ocupa aqui. Eles
são distintos, mas merecem justamente que seja mais bem evidencia-
do o liame entre si: o interesse pela história de nossa disciplina pare-
ce-me sempre vital. Essa é a razão pela qual a obra tem esse início. A
"Segunda Parte" se concentra na conceitualização da atividade hu-
mana de trabalho, confrontada com as dimensões subjetivas e cole-
tivas. Aliás, trata-se de uma problemática já antiga que, afinal, ganha
2 Trabalho e poder de agir Introdução 3

amplitude na medida em que se exacerbam as provações do trabalho. Contrariamente à crença quase generalizada, a invenção se
Por último, a preocupação com as relações entre nossa ação ~m tais ajusta bem com o inventário (Leplat, 2000). Mesmo assim, a fami-
situações penosas e o conhecimento científico que temos produzido, liaridade regular com o passado fornece, também, informações so-
talvez, nunca tenha sido tão relevante como ocorre atualmente. Esse bre os impasses recorrentes, os obstáculos superados e os desenvol-
é, por conseguinte, o tema da "Terceira Parte': vimentos abortados. No inventário, é impossível limitar-se aos
Nesta "Introdução" - quase uma dezena de anos após a 1" resultados obtidos. Impõe-se incluir nele os problemas ainda sem
edição de A função psicológica do trabalho -, eu gostaria de prolon- solução que podem se tornar a oportunidade de comparação com
gar algumas discussões já encetadas, além de aprofundar determi- aqueles que a realidade nos apresenta hoje. Essa é, na maior parte
nadas questões suscitadas pela prática de nossas disciplinas e de das vezes, uma fonte de reflexão subestimada. De qualquer modo, o
nosso ofício [métier] como analista do trabalho. Na "Conclusão', leitor poderá fazer sua a ideia: na "Primeira Parte': limitei-me a reu-
voltarei a considerar, de forma mais geral, essa palavra "ofício" que nir textos que dialogam à distância com alguns pesquisadores mais
tem resistido na linguagem corrente, enquanto os atributos socioló- antigos, já falecidos ou ainda em atividade, cuja influência se fez
gicos das realidades designadas por ela não cessam de se desagre- sentir consideravelmente na clínica da atividade, tendo balizado
gar. Minha fraqueza chega ao ponto de vislumbrar tal situação como sua evolução 1 .
um interessante problema psicológico contemporâneo que compli-
ca, propositalmente, a oposição em voga entre individual e coletivo
no trabalho humano. • 1. EMOÇÕES E COGNIÇÕES NA ATIVIDADE •
A "Primeira Parte'' é, portanto, de natureza histórica. Desde
Na "Segunda Parte': estão reunidos artigos que suscitam o proble-
sempre, fui apaixonado pela história da análise do trabalho, não
ma dos conceitos e do quadro teórico adotado pela corrente da psi-
como um historiador, mas - de maneira, simultaneamente mais mo-
cologia do trabalho. Tentou-se definir um caminho na clínica do
desta e mais interessada - no sentido de procurar, junto aos "antigos':
trabalho. Nesses textos, o leitor encontrará aquisições que devem
os expedie;ntes que me permitam enfrentar, em melhores condições,
muito ao trabalho coletivo de uma equipe. No entanto, para a pre-
os problemas atuais 1• Nos nossos domínios, a invenção é bastante
sente apresentação, assumo toda a responsabilidade. É possível con-
rara; por isso, uma vez que ela já ocorre, é preferível tirar daí o me-
siderar essa tentativa um tanto hesitante. Há a repetição de certas
lhor partido mesmo que - e, sobretudo, quando - ela tenha sido to-
formulações. Definições se encontram em vias de elaboração. Evitei
talmente assumida por seu inventor. Qual não foi minha surpresa,
dissimular o trabalho em curso nos textos com destinatários sem-
por exemplo, ao ler recentemente, em um texto de S. Pacaud-Korn-
pre diferentes, de acordo com as revistas em que foram publicados.
gold, datado de 1933, a seguinte frase: "O homem não se manifesta
Essa parte concentra, sem dúvida, um grande número de questões
somente pelo que faz, mas, às vezes e em certas circunstâncias, sobre-
abertas. Espera-se que esta nova publicação venha a contribuir para
tudo pelo que deixa de fazer" (Korngold & Lévy, 1933, p. 61). Mesmo
eliminar ambiguidades ou para dissipar os equívocos que ainda sub-
que as consequências científicas de tal formulação estejam longe de
sistem. Talvez seja possível considerar, igualmente, esses textos
ser tiradas pelos autores, sobretudo no artigo considerado, é surpre-
como uma contribuição para os desenvolvimentos recentes de nossa
endente dar-se conta de que algo que se crê ser uma ideia relevante já
tem raízes antigas, nem que seja apenas de forma intuitiva.
1
Nesta coletânea, não há texto dedicado a J. Leplat quando, afinal, seu trabalho tem
sido sempre, para mim, o de um interlocutor privilegiado. Essa ausência se explica uni-
1
Convém se regozijar pela criação, no âmbito do CRTD do CNAM, de um grupo de camente pelas circunstâncias que presidem a publicação de artigos nas revistas desta
história de nossas disciplinas, o GRESHTO. área. Mesmo assim, é possível consultar nosso trabalho comum (Clot & Leplat, 2005).
4 Trabalho e poder de agir Introdução 5

disciplina. Eis o que é, de fato, o mais importante: o trabalho que se relações entre emoções e intelecto não são estáveis. Assim, os ope-
faz é o de uma equipe e só adquire valor estável ao tornar-~e, por radores das centrais telefônicas, abordados pelo mencionado estu-
sua vez, um meio de trabalho para outros. Nesse sentido, a confron- do de Grosjean e Ribert-Van De Weerdt, experimentam emoções
tação e, inclusive, a controvérsia são indispensáveis. É, por assim antagonistas, conforme sua atividade seja dirigida para os clientes -
dizer, um "gesto de ofício" raramente praticado na vida de nossas até mesmo e, sobretudo, os agressivos e vingativos -junto de quem
disciplinas. E, no entanto, é também desse modo que elas progri- eles podem verificar a eficácia das técnicas de seu trabalho relacio-
dem. Para além dos momentos de síntese (por exemplo, Clot & Le- na!, ou para a sua hierarquia. Com esta, pelo contrário, eles fazem a
plat, 2005), pode parecer, portanto, útil alimentar as "disputas pro- experiência negativa de um controle passivo e obsessivo de seus de-
fissionais" relativas a questões de ofício vitais para o devir da análise sempenhos. Orgulho de um lado e, do outro, ressentimento, em re-
do trabalho. Esse é, em parte, o espírito do texto seguinte: procurar lação à mesma atividade: na situação em que, no primeiro caso, o
alimentar os intercâmbios coletivos. intelecto serve de meio ao desenvolvimento da emoção; no segun-
Só nos resta, por exemplo, regozijarmo-nos pelas novas te- do, esta acaba por inibir o intelecto. De um lado, emoção e cognição
máticas que a psicologia ergonômica inclui, agora, em seu progra- estão envolvidas em um círculo psicológico virtuoso, cultivando-se
ma e que sinaliza a preocupação em não descartar, daqui em diante, mutuamente; do outro, elas são puxadas para baixo, conjuntamen-
as questões da subjetividade, nem que seja através da temática das te, por um círculo vicioso. No decorrer da atividade, as relações en-
emoçÕes. "() horilem no trabalho não se limita a ser um simples tre cognição e emoção variam, assim, em função da posição que
sistema de tratamento da informação, tampouco uma simples fer- elas ocupam nessa última. Suas relações interfuncionais dependem
ramenta de trabalho dotada de uma força mecânica mais ou menos delas. Ou, de preferência, o conflito, opondo a atividade desses ope-
sob controle': escrevem Raufaste et al. na obra de síntese dirigida radores a si mesma, segundo os diferentes destinatários, é que mo-
porJ,-M. Hoc e F. Darses (2004, p. 176). E o artigo de Grosjean e difica seu sentido para eles. Portanto, a transformação do sentido da
Ribert-Van De Weerdt sobre o caso das centrais telefônicas (2005) atividade é que leva à mudança das relações entre emoções e cogni-
é, certamente, o exemplo mais elucidativo. Esse movimento recente ções. Nesse aspecto, Grosjean e Ribert-Van De Weerdt obtêm resul-
e, aliás,, heterogêneo (Ribert-Van De Weerdt, 2003; Cahour, 2006) tados semelhantes aos de Zapf (2002): as emoções positivas ou ne-
apresenta, sob um novo aspecto, do próprio interior da psicologia gativas experimentadas dependem do sentido que os operadores
cognitiva - sem dúvida, graças a seu enraizamento ergonômico -, a conferem à pressão emocional que devem assumir ao desempenhar
questão das di?lensõe~~:uhj~tivél~ enquanto forças motrizes da ati- sua tarefa. As emoções vivenciadas não têm, assim, estatuto inde-
vidade, para além dos modelos clássicos do estresse. Eis, em meu pendente da atividade que, à sua maneira, aliás, eles contribuem
entender, o maior mérito desses estudos: mostrar que será insufi- para realizar.
ciente adicionar ao modelo cognitivo do sistema de tratamento da Mas a cognição - assim como a emoção - não é independeu-
informação o modelo de uma vivência emocional passível de novas te da atividade. Ela também não está livre da atividade que executa
tentativas de avaliação (Raufaste et al., 2004, p. 188). (Santos & Lacomblez, 2007). Quando esta fica "envenenadà' pela
Com a preocupação de suscitar o problema a partir da ativi- intensificação dos controles exercidos, os sujeitos podem "perder
dade real, sensível em Grosjean e Ribert-Van De Weerdt (2005), é seus meios" e se tornar incapazes de dispor de seus recursos cogni-
possível justamente es_ç(tpar ao clqalismo nefasto do cognitivo e do tivos sob a dominação do_outro. Ao contrário, a atividade do outro
emotivo. De fato, a relação entre eles não pode ser concebida como pode solicitar tais recursos ou, ainda, o próprio.sujeito pode mobi-
uma dinâmica de fatores psicológicos, paralelos e independentes, lizá -los a serviço de atividades diferentes daquelas que lhe são im-
para explicar a atividade. Pelo contrário, é efetivamente a atividade postas. Assim, é o sentido da atividade, verdadeiro regulador dessa
real que explica as relações entre eles. E, na história da atividade, as última (Clot, 2004b), que afeta as emoções e as cognições, quando
Introdução 7
6 Trabalho e poder de agir

da realização de uma tarefa. Esse lugar não é fixo. Ao referir-se às outras palavras, antes de mais nada, desenvolvimento, ou subdesen-
emoções, Vygotski apreciava dizer que elas são nômades para de- volvimento real das relações com as coisas pela mediação do outro.
signar suas migrações funcionais na história do desenvolvimento A atividade é endereçada, dirigida, simultaneamente, para seu obje-
da atividade psicológica (1994b, 1998, 2003). Isso é verdadeiro tam- to e para as outras atividades que incidem sobre esse objeto, sejam
bém em relação às cognições. elas do outro ou, ainda, de outras atividades do sujeito.
Desse modo, é possível, aliás, se questionar se é verdadeira- Se aceitamos esse modelo triádico da atividade, mobilizado
mente pertinente isolar, na atividade, um "trabalho emocional" es- muitas vezes nos textos seguintes, é possível constatar que ele não
pecífico. Em uma perspectiva sociológica, Hochschild teve intenção coincide com aquele que é ainda utilizado maciçamente na psicolo-
de fazer isso (2002; Soares, 2002); P. Molinier também discutiu a esse gia ergonômica - e, até mesmo, em ergonomia -, a menos que se
respeito (Molinier, l002). A. Jeantet formulou bem a questão. Ela se amplie consideravelmente o campo das regulações da atividade in-
interrogou sobre o estatuto das emoções no trabalho. Objetos, ferra- ventariadas (Falzon, 2004, p. 24). Por outro lado, tampouco é possí-
mentas ou efeitos? Eles não se mantêm verdadeiramente em seu lu- vellimitar-se à proposição de Amalberti e Hoc para os quais a ativi-
gar (Jeantet, 2002, p. 100). É que, precisamente, seu estatuto depende dade e a tarefa efetiva devem ser entendidas como sinônimos. Eles
da atividade dos sujeitos no âmago da qual elas se desenvolvem ou se definem a atividade pelas operações manuais e intelectuais real-
atrofiam, ao trocarem de função. Além disso, é esse nomadismo fun- mente acionadas, em cada instante, pelo operador, a fim de alcançar
cional que as cultiva (Clot, 1999b; Vygotski, 1998). seus objetivos, sob as restrições do contexto. A atividade se torna,
então, a intenção presente do operador protegida contra as outras
intenções competitivas (Amalberti e Hoc, 1998). Mas ainda resta
• 2. ATIVIDADE E AFETIVIDADE .. um problema: essa mesma proteção faz parte da atividade. Já tive-
mos a oportunidade de abordá-lo (Clot, 1999, p. 14).
Como se vê, abordar a questão das emoções - de acordo com o De fato, Leplat foi quem avançou mais longe no sentido da
louvável propósito atual da psicologia ergonômica - não consiste, renovação da psicologia cognitiva ergonômica. Porque o agente, es-
com toda a certeza, em acrescentar um capítulo suplementar à psi- creve ele, "não se limita a realizar a tarefa prescrita, mas visa tam-
cologia cognitiva a fim de torná-la um pouco menos "desencarna- bém, por essa realização, a objetivos de ordem pessoal" (Leplat,
dà: Não basta, observava Vygotski de forma irônica, juntar uma 1997, p. 28). Nesse caso, a tarefa se torna, igualmente, um meio a
"colherada de fel ao tonel de mel da pesquisa científica objetivà' serviço da atividade própria do sujeito. De meu ponto de vista, con-
(2003, p. 82). Efetivamente, o que deve ser considerado é o próprio vém avançar até aproximar atividade e saúde 1: "Sinto-me bem, ob-
objeto da pesquisa. serva Canguilhem, na medidi emque- s~u~apaz de arcar com a
A emoção não é somente "um aspecto intensivo da cognição" responsabilidade de meus atos, de trazer coisas para a existência e
-para retomar a expressão de Raufaste, Daurat, Mélan e Ribert-Van de criar entre elas relações que, sem minha intervenção, não teriam
De Weerdt (2004, p. 175). Ela envolve o sentido de uma atividade existido" (2002, p. 68). Sinto-me ativo, também, pelas mesmas ra-
que é sempre afetada ou desafetada pelo outro ou pelo próprio su- zões. Considerada desse modo, a atividade é, na realização efetiva
jeito. Assim, é a conceltualização da atividade no seu todo que é da tarefa- a seu favor, assim como, às vezes, contra ela-, produção
atingida por esse deslocamento perseguido no âmago da psicologia de um meio de objetos materiais ou simbólicos, de relações huma-
cognitiva ergonômica. De fato, a atividade só é cognitiva ou emoti- nas ou, mais exatamente, recriação de um meio de vida. A atividade
va em segundo p~ano. Em primeiro lugar, através e para além da
realização da tarefa, ela é movimento de apropriação de um meio de 1
Sem que, evidentemente, se possa identificá-las, como veremos mais adiante.
vida pelo sujeito, livre jogo - ou amputação - desse movimento. Em
8 Trabalho e poder de agir Introdução 9

prática de um sujeito não é jamais somente um efeito das condições nesse caso, o círculo dos processos psíquicos se confina em si mes-
externas, tampouco é a resposta a essas condições; por sua vez, a mo, e eles se tornam intransformáveis. Nesse movimento, as emo-
atividade psíquica não é mais também a reprodução interna dessas ções experimentadas - estendendo-se do ressentimento em relação
condições. A atividade - prática e psíquica - é sempre a sede de ao outro até a perda de autoestima - não são mais condutoras e di-
investimentos vitais: ela transforma os objetos do mundo em meio namogênicas. Elas não desenvolvem a energia subjetiva individual
de viver ou fracassa ao fazê-lo. Em vez de ser determinada mecani- e coletiva. Pelo contrário, elas a envolvem e protegem, ao mesmo
camente por seu contexto, a atividade dos sujeitos no trabalho im- tempo em que a esterilizam. A atividade psicológica não passa pelas
plica a metamorfose desse contexto. Ela livra - correndo sempre o emoções. Elas param aí. O desenvolvimento abortado da atividade
risco de fracassar nessa tentativa - o sujeito das dependências da se perde em emoções que degeneram em "paixões tristes': novos
situação concreta e subordina a si o contexto em questão. obstáculos ao desenvolvimento, em defesas psíquicas - até mesmo,
O objeto da atividade do sujeito é, propriamente, essa subor- coletivas-, cuja manutenção pode se tornar uma verdadeira tarefa
dinação. Ou, de preferência, essa domesticação possível ou impos- fictícia (Scheller, 2003).
sível, tão específica à espécie humana, que transforma qualquer coi- Por último, pode-se dizer, acertadamente, que "o operador é
sa não só em um objeto social, mas, simultaneamente, em um o criador recorrente de sua tarefà' (Wisner, 1995, p. 153) sob pena
objeto propriamente psicológico. Ou, dito em outras palavras, a de desenvolver uma doença ou, no mínimo, de correr esse risco.
existência da atividade em um contexto só é possível ao produzir Quando essa criação conserva sua posição; quando a atividade in-
'um contexto para existir. Não se pode ignorar, é óbvio, que, particu- dividual e coletiva desenvolve suas metas, seus meios e suas motiva-
larmente no contexto prático do trabalho abordado neste livro, a ções; quando o raio de ação dos sujeitos pode aumentar - nesse
atividade está submetida à prova prática de objetos ou de relações caso, as emoções e as cognições constituem recursos do desenvolvi-
com o outro que lhe resistem, que a desviam e a afetam de um modo mento. Elas podem, inclusive, ser levadas a se cultivarem no senti-
ou de outro. No decorrer dessa atividade externa é que o círculo dos mento de viver a mesma história\ tão estruturante em um meio
processos psíquicos se abre ao real que faz irrupção nesse momen- profissional. Eis o que me levou à proposição de ampliar - sem as
to. Mas, para aprisionar esse real, é preciso, verdadeiramente, que
eu coloque aí algo de mim mesmo, que eu aí me transforme para 1
Seria conveniente proceder a distinções indispensáveis entre afeto, emoção e senti-
poder fazê-lo meu. mento. De fato, a afetividade nada tem de homogêneo. Sem ter a possibilidade de
analisar, aqui, pesquisas em curso, é possível, no mínimo, considerar que o afeto resul-
Viver no trabalho é, portanto, poder aí desenvolver sua ativi-
ta de um conflito que coloca à prova a atividade do sujeito e sua organização pessoal,
dade, seus objetos, instrumentos e destinatários, afeta,rujo a organiza- ao passo que a emoção se refere, sobretudo, à paleta dos instrumentos corporais atra-
ção do trabalho por sua iniciativa. A atividade dos sujeitos se encon- vés dos quais o sujeito responde a tal situação. A discordância na manifestação de tais
emoções é sempre possível quando, por exemplo, alguém chora de alegria ou, ainda,
tra, pelo contrário, não afetada quando as coisas, na esfera profissional,
"sorri amarelo". As emoções, corporalmente vivenciadas por cada um, não deixam de
começam a estabelecer entre si relações que ocorrem independente- ser socialmente construídas e compartilhadas - às vezes, inclusive, contagiosas. Eis o
mente dessa iniciativa possível. Paradoxalmente, a pessoa age, então, motivo, sem dúvida, pelo qual elas acabam por se cultivar especialmente nos senti-
mentos, ou seja, as representações coletivas e os instrumentos sociais do pensamento
sem se sentir ativa. No entanto, essa desafeição deprecia o sujeito, que veiculam normas, ideais e valores. Portanto, os afetos são mediatizados, corporal
torna-o menos real, não sem efeito quanto à própria eficácia de sua e socialmente, pelas emoções e pelos sentimentos mediante os quais eles se enrique-
ação, para além dos efeitos sobre sua saúde (Clot, 2008) 1• De fato, cem, mas também, e com grandeírequência, se enquistam. Em compensação, eles são
em parte a energia e a vitalidade dessas emoções e sentimentos contra os riscos de que
estes últimos se tornem átonos e convencionais. Uma perspectiva direcionada para o
desenvolvimento expõe-se a ter a obrigação de analisar as passagens de um para o
1
A partir de um ca~po completamente diferente, é possível encontrar reflexões con- outro através das quais se realiza a atividade de trabalho (Fernandez & Malherbe,
vergentes sobre esse ponto em D. W. Winnicott (1975, p. 91-92). 2007; Santiago, 2004; Scheller, 2003; Lhuilier, 2006; Vygotski, 1998).
Trabalho e poder de agir Introdução 11
10

descartar- as noções de regras de ofício (Cru, 1995) ou de referen- diferentes daqueles que devem ser atingidos nas ações que eles rea-
ciais operativos comuns (Giboin, 2004) até a definição, ~e acordo l lizam . .f\ perd(l de sentido da atividade acaba por desvitalizá-la e por
com D. Fa'ita, do conceito de gênero profissional 1 , instrumento co- desafetá-la, tornando psicologicamente artificial o prosseguimento
letivo da ação individual que permite a cada um se "sintonizar" (se da ação. A ação prevista, depois de ter sido realizada, e o desempe-
mettre ''au diapason") em situação de trabalho. nho confirmado podem, inclusive, deixar de ter qualquer função
psicológica para os sujeitos se eles não se reconhecem nessa ação. A
meta do trabalho exigido se torna, então, psicologicamente alheia à
• 3. SENTIDO DA ATIVIDADE E QUESTÃO SOCIAl • atividade dos sujeitos, cujo objeto está em outro lugar. As ações re-
alizadas rivalizam em sua atividade com aquelas que deveriam e,
Que essa perspectiva nem sempre seja compatível com as formas sobretudo, poderiam ter sido executadas. A realidade psicológica
dominantes do trabalho contemporâneo é o que parece mostrar - às desses conflitos no próprio objeto do trabalho é a fonte de podero-
vezes, de maneira trágica - o desenvolvimento da psicopatologia do sos afetos que nem sempre encontram destinos favoráveis. Nesse
trabalho comum (Clot, 2001a, 200lb; Lhuilier, 2006; Yvon, 2003). conflito de objetivos, as metas realizadas, desinvestidas, perdem seu
Mas, então, tal psicopatologia denuncia, antes de mais nada, a ampu- sentido, enquanto aquelas não realizadas, ao perderem sua signifi-
tação do poder de agir e o sentimento de impotência que a envolve. cação social, não se realizam (Prot, 2006a; Litirn & Kostulski, 2006).
A perda de sentido da atividade, já evocada, faz parte dessa proble- Um grande número de dramas humanos no trabalho encontram aí
mática; agora, gostaríamos de definir ainda melhor o que se entende sua origem ou sua matéria. Excesso de atividade e sentimento de
por essa expressão (Clot, 2004b )2. Pode-se dizer que é urna espécie insignificância formam, nesse caso, urna mistura explosiva. De
de desligação que se manifesta na atividade, urna desligação e~tr~ as qualquer modo, o mínimo que se pode dizer é que a atividade se
preocupações reais dos trabalhadores - por exemplo, certa 1de1a a encontra atingida, então, em seu desenvolvimento possível.
respeito do trabalho e deles mesmos - e as ocupações imediatas que É que ela é estruturalmente o teatro de um drama, no sentido
lhes dão as costas. O próprio sentido da atividade realizada, da ação cênico do termo: a atividade é que vincula ou desvinculao indivi-
em curso, perde-se na maior parte das vezes quando desaparece, no dual e o social, o sujeito e a organização do trabalho, os sujeitos
trabalho do sujeito ou dos sujeitos, a relação entre os objetivos que entre si e esses sujeitos com os objetos que os mobilizam. Ela é a
lhes são impostos, os resultados a obter obrigatoriamente e o que é arena e a sede em que eles passam de um para o outro, a menor
verdadeiramente importante para eles. O sentido da atividade reali- unidade do intercâmbio social. O próprio sentido de urna clínica da
zada é a relação de valor que o sujeito instaura entre essa ação e as atividade consiste em confrontar-se com esses processos sociais de
outras ações possíveis para ele. Os conflitos de critérios entre rapidez ligação/desligação para conferir-lhes um destino que não corres-
e qualidade, entre rapidez e segurança, entre produção e manuten- ponde ao dos círculos viciosos que, atualmente, ainda são demasia-
ção ou, ainda, as antinomias entre rentabilidade a curto prazo e efi- do predominantes. Eis o motivo pelo qual se deve esperar que as
cácia do trabalho minam, atualmente, um grande número de ativi- páginas seguintes tratem de evitar a incompreensão que possa ain-
dades profissionais (Clot, 1990; Flageul-Caroly, 2001). da existir. A clínica da atividade, que se procura definir, não pode
O que é verdadeiramente importante - e, às vezes, de rnanei- ser posta precipitadamente ao lado de urna clínica do vivido indivi-
ra vital para aqueles que trabalham - delineia objetivos possíveis dual. Há muito tempo que _me apropriei da advertência de Moscovi-
ci a propósito da denegação do social na psicologia contemporânea: ,
"Em numerosos aspectos, explora-se o pensamento, a percepção e a
1 Conceito utilizado, atualmente, em outras perspectivas por outros pesquisadores;
linguagem unicamente através da oposição de um sujeito confinado
por exemplo, Boutet (2008).
2 Ver, também, ein perspectivas diferentes, Karnas (2002) e Barus-Michel (2004). em si mesmo a um objeto que lhe oferece resistência ou o supera em
12 Trabalho e poder de agir Introdução 13

todos os planos. Pouco importa que uma teoria enfatize o sujeito e Mas o "social" não é apenas a opressão ou a subordinação._O
uma outra, o objeto", o princípio continua sendo egocênt;ico (Mos- "social" não é somente o que se encontra no exterior dos indivíduos i
covici, 1994, p. 6). ou, até mesmo, entre eles. É óbvio que ele está presente aí, mas sem i

Eis precisamente a razão pela qual também 11ª0 acredito na ser, de modo algum, sedentário; além disso, o "social" pode ser des-
existência possível de uma psicologia clínica do trabalho como, se- coberto, também, no próprio indivíduo que tem de se haver com ele
gundo parece, ela havia sido pensada em certas ocasiões (De Keyser ('Jaire avec lui") em todos os sentidos do termo. É, mesmo, a inde-
& Nyssen, 2006, p. 13). Escolhendo, de maneira deliberada, falar de terminação dos futuros em conflito na vida social, sempre plena de
clínica do trabalho e não de psicologia clínica do trabalho, optando, possibilidades não realizadas, que atravessa e circula na atividade,
portanto, pelo substantivo contra o adjetivo (Clot & Leplat, 2005), impelindo-a a se determinar. Portanto, em razão precisamente do
persegui sempre_dois objetivos. O primeiro consiste em atribuir um fato de que ele nem sempre está na mesma posição, em decorrência
privilégio à ação- a clínica- a fim de transformá-la na mola pro- mesmo de seu irremediável inacabamento, é que os limites do "so-
pulsora de uma psicologia tout court, remontando aquém das opo- cial" e até os da subordinação podem recuar. Uma clínica da ativi-
sições fixadas entre o social, o cognitivo e o afetivo que negligen- dade vai interessar-se, em primeiro lugar, pela organização desses
ciam justamente a atividade real. O segundo objetivo é o de deslocamentos na ação individual e coletiva realizada em situação
contribuir, a partir de uma renovação do conceito de atividade, para de trabalho, além dessas realizações, para outras realizações. Em
aproximar a subjetividade ªo trabalho, mas de um modo diferente poucas palavras, pela história e pelo desenvolvimento da sociedade
daquele tradicionalmente adotado pela psicanálise até agora e mes- em cada sujeito. Com e contra a sociedade, para além dela, na e pela
mo no campo do trabalho (Dejours, 2000). atividade. Recentemente, D. Lhuilier sublinhou a importância, a
Por último, a prática de uma clínica da atividade foi o único partir da clínica da atividade, de formular a questão do sistema or-
meio que encontrei para fazer a psicologia do trabalho, evitando a ganizacional em que a atividade se inscreve ou já não consegue
situação de "Yalta''* demasiado cômoda entre psicologia ergonômi- inscrever-se (2006, p. 57); e, ademais, o problema da instituição. Eis
ca e psicologia das organizações: reconhecer a primeira como "uma aí um tema sério que a conclusão desta obra procura abordar ao
ciê.ncia unificada dos sistemas homens-máquinas" (Hoc & Darses, propor uma reformulação do conceito de ofício suscetível, justa-
2004, p. 260) e a segunda como uma psicologia social sem trabalho mente, de reatar com "a questão social do trabalho':
real (Louche, 2001). No entanto, persiste a dificuldade diante da De qualquer modo, é possível, sem dúvida, dizer que uma
dicotomia entre a técnica e o social no trabalho humano. Uma sín- clínica da atividade é "crítica da evolução atual da sociedade': de
tese recente dá testemunho disso (Karnas, 2002). A psicologia do acordo com a expressão proposta por De Keyser e Nyssen (2006, p.
trabalho pode, no entanto, seguir uma terceira via: a de uma psico- 12). Mas a partir de um diagnóstico bastante afastado de como ha-
logia do desenvolvimento dos sujeitos no trabalho, incluindo ferra- bitualmente se trata essa questão (Beauvois, 2005; Clot, a publicar).
mentas, coletivos e organizações. Assim é que me aproprio do dese- 1
Eis o que pode ser formulado com as próprias palavras de Deleuze:
jo manifestado por De Keyser e Nyssen relativamente a um retorno "Se as opressões são assim tão terríveis é porque impedem qualquer
às fontes da especificidade francesa. Elas veem essa especificidade movimento e não por ofender o eterno" (1990, p. 166).
na "a questão social do trabalho" (2006, p. 12), e estou plenamente
de acordo com isso.
.. 4. O PODER DE AGIR: ENTRE SENTIDO E EFICIÊNCIA •
* Referência à cidade em que se realizou o encontro dos líderes dos países aliados, no
final da Segunda Guerra Mundial, cuja negociação diplomática acabou por reconhecer
Restaurar esse movimento exatamente onde ele se encontra bloquea-
as linhas de partilha já existentes. (N.T.) do, incentivá-lo ao promovê-lo e, até mesmo, ao organizá-lo pela
14 Trabalho e poder de agir Introdução 15

multiplicação dos contextos em que ele possa produzir-se, tal é, por diversidade é de grande interesse. Uma vez reconhecida, ela convi-
consequência, o fio condutor que percorre as páginas/ seguintes. da a uma discussão acirrada, tornada possível atualmente. Esse de-
Esse intuito pode ser afirmado de outro modo ao indicar que se bate é também necessário por evitar, sem dúvida, que a expressão se
trata simplesmente do desenvolvimento do poder de agir dos sujei- torne somente um acesso fácil à ação. Tanto mais que, nesse ponto,
tos em situação de trabalho. E, desse ponto de vista, resta-nos rego- formulam-se belas questões propriamente cientificas, desde que se
zijarmo-nos com a estruturação em curso de uma perspectiva dire- vise o desenvolvimento do poder de agir em situação de trabalho.
cionada para o desenvolvimento no campo da análise do trabalho. O problema merece, portanto, nossa atenção. Nos textos reu-
Mesmo que essa preocupação explícita já esteja presente em A. nidos para este livro, o conceito de poder de agir diz respeito à ati-
Wisner - como pretendi demonstrar na Primeira Parte deste livro vidade. A tarefa, por si só, não é suficiente. Até mesmo sob coação
- ela assumiu, nos últimos anos, um caráter premente que é teste- externa, o poder de agir se desenvolve ou se atrofia na "caixa preta''
munhado por várias iniciativas e publicações recentes, no plano na- da atividade de trabalho. Ele avalia o raio de ação efetivo do sujeito
cional e internacionaP (Béguin, 2005a, 2007; Béguin & Clot 2004; ou dos sujeitos em sua esfera profissional habitual, o que se pode
Clot, 1999a; Rabardel & Pastré, 2005; Engestrom & Blackler, 2005; também designar por irradiação da atividade, seu poder de recria-
Engestrom, 1999, 2006; Kostulski & Clot, 2007; Savoyant, 2005; Vi- ção1. Este se manifesta segundo duas direções diferentes, que são
rkkunen, 2005). duas regulações da atividade em curso de ação. Descritas em 1995
Desse modo, desencadeia-se um debate em que as discussões (Clot, 1995, p. 133-145), tais regulações se tornaram em 1997- no
voltam a abordar os desafios tradicionais da psicologia do des~!lvol­ meu próprio trabalho - os "poderes da ação" (1997, p. 81) e, em
vimento. Essa é, aliás~ ~ ~xplicação para a redescoberta da psicolo- seguida, o poder de agir (Clot, 1999; Clot & Falta, 2000; Clot, 2001 c).
gia chamada "histórico-cultural': que seria incapaz de avançar sem O plural que presidia, inicialmente, a essa conceitualização designa
multiplicar as interpretações dessas obras (Clot, 1999c; Rubinstein, : um grande número de facetas. O poder de agir é heterogê!le(). Po- ,
2007). Era impossível, também, imaginar que determinadas ques- ' de-se dizer que ele aumenta ou diminui em função da alternância '
tões latentes, entre essa corrente da psicologia e outras perspectivas funcional entre o sentido e a eficiência da ação em que se opera o
direcionadas para o desenvolvimento - por exemplo, a de Piaget -, dinamismo da atividade, ou seja, sua eficácia. Esta, por sua vez, não
não retornem ao primeiro plano. Esse é, evidentemente, o nosso é somente o alvo dos objetivos perseguidos, mas também a desco-
caso no campo da análise ergonômica e psicológica do trabalho. berta de novas metas. Assim, é, também, a criª!ividade (Clot, 1995;
Vamos apresentar um exemplo: desde que as noções de potên- Clot, 2007b; Bandura & Locke, 2003; Almudever, 2007; Rubinstein,
cia de ação, poder de agir ou poderes da ação foram introduzidas no 2007, p. 158-174). Por último, é o que, na linguagem cotidiana, cha-
domínio da psicologia do trabalho, a partir da retomada de Spinoza ma -se cuidado [souci] e _r~a.lizaçã_o_do ((tra})aJh()__~~-tp_f~!o': aquele
e Ricreur (Clot, 1997c, p. 80; 1999, p. 185), elas se tornaram objeto em que é possível reconhecer-se individual e coletivamente, sintoni-
de múltiplos usos (Clot & Fa1ta, 2000; Clot, 2001c, 2002a, 2003,2004, zado com uma história profissional que se persegue e pela qual cada
2006b; Rabardel, 1998, 2005; Davezies, 2006; Coutarel, Daniellou, & um se sente responsável. Na conclusão deste livro, voltaremos a
Dugué, 2003; Moli:rüer, 2001; Lhuilier, 2006; Chassaing, 2006). Essa abordar a função dessa história que confere consistência à ativida-
de; com ela, o poder de agir confirma a eficácia dinâmica da ativi-
dade, suas metamorfoses entre sentido e eficiência.
1 Podemos citar, em relação à França, duas publicações oriundas do trabalho da rede
Modeles du sujet pour la conception [Modelos do sujeito para a criação], reunida entre
1998 e 2002, com' o apoio de "ACI travail" (Actions Concertées Incitatives) [Ações
1
Negociadas Incitativas] do Ministério da Pesquisa francês: Rabardel e Pastré (2005), O que o afasta estruturalmente do poder de coagir, ou seja, o aspecto a que é redu-
além de Clot e Kostulsld (2007). zido, tão frequentemente, o poder.
16 Trabalho e poder de agir Introdução 17

Comecemos pelo sentido. Como vimos, esvaziada de seu um nível mais elevado de atividade. Por ocasião de intensas emo-
sentido, a atividade do su)~ú:o se vê amputada de seu po,der de agir ções, verifica-se a fusão entre a excitação e o sentimento de força,
quando os objetivos da ação em vias de se fazer estão desvinculados liberando por isso mesmo uma energia elaborada em reserva e, até
do que é realmente importante para ele e quando outros objetivos então, ignorada, e levando a tomar consciênciél de sensações ines-
válidos, reduzidos ao silêncio, são deixados em suspenso. Essa des- quecíveis de êxito possível" (1998, p. 104).
vitalização da atividade é uma modalidade habitual da atrofia do Evidentemente, o que Vygotski considera, aqui, como uma
poder de agir. P. Rabardel a evocou ao tomar de empréstimo um "mudança geral da vitalidade" não visa à atividade de trabalho pro-
exemplo à literatura do testemunho social (Linhart, 1978; Rabardel, priamente dita. Inclusive, nas páginas seguintes, vamos encontrar
2005; Molinier, 2006), mas também confirmada pelos resultados de elementos para compreender o que a obra do próprio Vygotski de-
numerosos trahalhos propriamente de pesquisa (Clot, 1995; Yvon via à sua tese dedicada à psicologia da arte (2003). Mas pode-se
& Fernandez, 2002; Litim & Kostulsld, 2006; Prot, 2006a; Clot & pensar que a atividade profissional, justamente por convocar sem
Litim, a publicar). Aliás, convém abster-se de uma abordagem de- cerimônia a eficácia da ação, além de questionar publicamente seus
masiado pessimista do problema: o poder de agir pode, pelo con- limites, expõe-se, em particular, para o melhor e para o pior, a esse
trário, desenvolver-se se, inversamente, a ação- por superar os re- gênero de intensificação vital da atividade. Trata-se de momentos fu-
sultados pretendidos pelo sujeito através mesmo dos objetivos gitivos de intensa interfuncionalidade da consciência, cuja compre-
alcançados - redunda em uma situação inesperada: a descoberta de ensão é indispensável para explicar a inovação e a criatividade. Eis o
um novo objetivo possível, até então, ignorado; o reconhecimento que é verdadeiro não só para o trabalho de criação (Béguin, 2007;
de outra coisa que seria realizável através e para além do que acaba Bonnardel, 2006), mas também em outros (Rubinstein, 2007, p. 167).
de se realizar; ou a identificação de possibilidades insuspeitas no E trata-se de algo mais disseminado do que se possa crer: o intelecto ,
real, cuja apreensão pode ser feita pela atividade (Rubinstein, 2007, e o afeto se sobrepõem e migram brutalmente de um a outro em pro-
p. 151). Nesse caso, assiste-se efetivamente à renovação do sentido veito, até mesmo diferido, do desenvolvimento do poder de agir do
da ação, e, eventualmente, ao ressurgimento da atividade pela emer- sujeito na situação concreta e sobre si mesmo. Percebe-se até que
gência de novas preocupações do sujeito, graças ao recuo de seu ponto certa intensificação desnecessária do trabalho, quando ela
horizonte subjetivo sob o efeito de uma re-mobilização. impede tais momentos, volta-se contra a intensidade real da ativi-
O sentido da atividade se transforma, então, arrastando em dade em detrimento da saúde dos trabalhadores (Clot, 2006c).
sua companhia um prolongamento possível do raio de ação na esfe- De qualquer modo, pode-se defender que a transformação
ra profissional que não deixa de estar comprometido - em primeiro aumenta o sentido da irradiação possível da atividade e a vitalidade
lugar,' pela imaginação - com novas ocupações. Eis um processo do sujeito. Mesmo que o estudo direto das dimensões propriamente
clássico de estabelecimento de novas ligações na e pela atividade, emocionais dessas metamorfoses do sentido esteja longe de ser fá-
origem de afetos ativos e de ambições profissionais e colorido com cil, o de seus efeitos variáveis sobre a atividade já está documentado
emoções. Essas discordâncias criadoras que transfiguram o dado (Fernandez, 2004; Bournel-Bosson, 2005; Scheller, 2003). O sentido
em criado desorganizam, certamente, o funcionamento familiar da atividade diz respeito, portanto, diretamente ao poder de agir.
dos sujeitos, sem deixarem de ser fontes de energia que "liberam'' Entretanto, vê-se imediatamente que não poderia ser suficiente de-
certa disponibilidade psicológica. Em maior ou menor grau, a emo- finir o aumento da potênçia de ação como elevação do sujeito a um
ção marca sua presença. Pensa-se, então, em Vygotsld, mesmo que nível mais elevado de atividade e como desenvolvimento de sua vi-
a prudência se imponha diante de qualquer transposição: "Em um talidade subjetiva. Em primeiro lugar, pelo fato de que, no caso em
período de intensa excitação, sente-se frequentemente uma potência que a ação transborda os resultados pretendidos, essa diferença se
colossal. Esse sentimento aparece bruscamente e ergue o indivíduo a produz frequentemente graças a operações de realização e à im-
18 Trabalho e poder de agir Introdução 19

plantação de técnicas mediante as quais, até mesmo de forma invo- de unidades previamente adquiridas em uma unidade mais ampla
luntária, ela se tornou possível. Eis o que ocorre, portapto, muitas que haveria de tornar-se, ulteriormente, a unidade elementar de
vezes, após a transposição de patamares de eficiência operatória. uma unidade superior': Como observa Bruner: "Uma ação mais
Mas, de forma mais ampla, convém sublinhar que a energia e ampla, com um objetivo mais longínquo, assume o controle dos
a vitalidade adquiridas podem perder-se. A dissipação as espreita se atos que constituem o novo módulo" (Leplat, 1988, p. 155). A auto-
as realizações da ação não lhe oferecem resistência. Os desempe- matização da própria ação por quem trabalha, escreve Leplat, redu-
nhos realizados concretamente, a operacionalidade experimentada zindo a carga de trabalho - ou, se preferirmos, seu custo -, libera as
na implementação da ação são indispensáveis para perenizar, man- capacidades de tratamento e pode facilitar a aquisição de experiên-
ter e, até mesmo, renovar a vitalidade conquistada, mediante a uti- cia em outros setores da atividade. No caso concreto, ao utilizar a
lização dessa energia a serviço do desenvolvimento da eficácia rea- distinção proposta por A. Leontiev entre a ação propriamente dita
lizada. Ao proceder desse modo, tais desempenhos tornam, de "submetida a um objetivo consciente" e as operações que são "os
novo, possíveis - para não dizer, verdadeiras - as surpresas da ação meios de execução da ação", J. Leplat observa que o "processo de
em que o sentido se produz. O desenvolvimento do poder de agir transformação da ação em operação fornece um bom esclarecimen-
efetivo implica, portanto, os valores da eficiência e não somente os to sobre a elaboração da habilidade" (ibid., p. 155). Efetivamente
do sentido, em um jogo de alternâncias não preditivo, mas explicá- dessa forma é que progride a eficiência da ação.
vel. Isso até na criação artística (Clot, 2003c, p. 21-24; Rubinstein, Vamos situar-nos, agora, do ponto de vista do sujeito: ele é o
2007, p. 171). centro da alternância funcional que opõe o poder de agir a ele mes-
Em tensão com o sentido, a economia dos meios permitida mo, "incorporà' e integra- no duplo sentido do termo- sua ativi-
pela renovação das técnicas é, dessa maneira, a segunda força mo- dade, não sem resíduos, que são outras tantas possibilidades não
triz da disponibilidade da ação ou, dito por outras palavras, do de- realizadas (Clot, 2003a). Ele transforma seu organismo fisiológico,
senvolvimento do poder de agir. É ela que torna outros objetivos quase sempre, à sua revelia, em um corpo próprio vivido, verdadei-
efetivamente realizáveis, e por um custo menor, confirmando que a ro órgão funcional de sua atividade. Dotado dessa sensibilidade, ele
eficácia dinâmica do trabalho bemfr_ito não consiste em realizar a ilu- forma um só com a matéria (il fait ''corps avec la matiere"), que se
sória adequação entre o fim e os meios; nem sequer em conseguir torna não só o objeto de sua atividade, mas seu meio, constituindo
apenas o que havia sido previsto. Ela consiste também em ser capaz assim o instrumento de sua vitalidade. Esses processos de instru-
de imaginar outra coisa com os meios que se tornaram disponíveis. É mentação e de instrumentalização têm sido bem descritos: o sujeito
esse o motivo pelo qual o fato de poupar-se, para o trabalhador, forma um todo [fait corps] com seus instrumentos (Davezies, 2006;
pode aparecer como uma condição da irradiação de sua atividade 1 . Rabardel, 2005, p. 12; Tomàs, 2005; Tomàs et al., 2007). Em outro
Tal economia do ato foi bem analisada por Leplat ao exami- contexto, essa já era a ideia de Mauss (1950). Por sua vez, em uma
nar as relações entre as habilidades e a eficiência da ação. Apoian- perspectiva crítica relativamente à psicologia cognitiva, Bõehle e
do-se nos trabalhos de Bruner relativamente às habilidades sensori- Milkau insistiram sobre a experiência sensível dos operários quali-
motoras, ele amplia a constatação dos caracteres "modular" e ficados (Bõehle & Milkau, 1998, p. 24-25; Molinier, 2006, p. 104).
"hierárquico" da habilidade. Esta última se elabora por "incorporação Mas ela não se pode explicar por si mesma, a partir de dentro, como
uma qualidade autônoma. Sua história depende também da não
coincidência do sentido e da eficiência no desenvolvimento por alter-
1
Mesmo que se saiba que preservar o sentido da própria atividade e de sua irradia- nância do poder de agir. Foi possível mostrar justamente que as reor-
ção pode levar alguns trabalhadores, em determinados contextos, a esforços desmedi-
dos, passando de uma lógica de parcimônia para uma lógica do excesso (De Keyser, ganizações funcionais que permitem essa alternância são contraria-
1983, p. 245). das nas situações de trabalho. Deste modo, o devir do corpo, longe de
20 Trabalho e poder de agir Introdução 21

ser um enriquecimento do organismo reduz-se, com demasiada feito, isto é, a irradiação da atividade que, nesse caso, é designada
frequência, à degradação deste último. Isso fica demon$trado pela como desenvolvimento do poder de agir 1 •
epidemia de distúrbios musculoesqueléticos (Fernandez, 2004; Clot Em resumo, pode-se, portanto, dizer que o desenvolvimento
& Fernandez, 2005). em questão é um desenvolvimento alternado dos poderes da ação, a
Em resumo, a compreensão do desenvolvimento do poder de qual tem, efetivamente, uma dupla vida (Clot, 1997c, 1999a). Por
agir sobre o mundo e sobre si mesmo supõe talvez ter em conta, um lado, ela vive na atividade, re-mobiliza-se aí pela regeneração
para retomar a formulação de Leontiev, que "as ações e as operações das trocas com a atividade dos outros e com as outras atividades do
tenham uma origem diferente, assim como uma dinâmica e um sujeito; evidentemente, ao desmobilizar-se, ela pode também extin-
destino diferentes. A ação surge do intercâmbio de atividades, ao guir-se. Mas, ao assumir uma posição em novas atividades, além de
passo que todas· as operações resultam de uma transformação da renovar seu sentido, ela esbarra, em seguida, em um obstáculo: a
ação, procedente de sua incorporação em outra ação e de sua tecni- procura de outros meios para se realizar. O desenvolvimento de sua
cização consecutivà' (1984, p. 119). dinâmica deverá, então, fazer-se pela mudança de base, em função
de sua eficiência vindoura. Em sua segunda vida, a ação prospera -
quando esse é o caso - graças às técnicas; ela se poupa aí pela sua
• 5. DESENVOLVIMENTO AlTERNADO •
re-instrumentalização e avança mais depressa, e de forma mais só-
Na "caixa pretà' da atividade, e por seu intermédio, o aumento do bria até o objetivo. De seus atalhos, emerge uma possibilidade sub-
poder de agir do sujeito não ocorre, portanto, em linha reta. Sua jetiva para outras preocupações possíveis. E, então, para outros des-
origem e direção são duplas, e ela se faz ao alternar essas duas ten- tinatários, de novo, ele irá manter seu elã com a condição de trocar
dências que são o sentido e a eficiência. A primeira, fruto da troca, ainda a mola propulsora, em função do sentido que venha a encon-
é fonte de energia, enquanto a segunda, oriunda da técnica ou for- trar ou não.
necidapor ela\ é fonte de economia. Pode-se, sem dúvida, falar de Esse processo de reorganização funcional da eficácia assinala
alternância funcional já que o desenvolvimento do sentido faz apelo a criação, sem garantias prévias, de outras possibilidades de vida. O
ao da eficiência e inversamente. No entanto, não há coincidência desenvolvimento do poder de agir modifica, portanto, sua base no
possível (Diallo & Clot, 2003). De fato, o "apelo" de um pelo outro decorrer do tempo. Entre sentido e eficiência, sua história é instável:
pode permanecer sem eco. Os objetivos latentes podem envenenar trata-se de uma alternância funcional sem certezas a priori. Eis, sem
a vida dos trabalhadores, assim como os automatismos podem con- dúvida, o motivo pelo qual ele está bastante exposto ao real no tra-
finar-se em si mesmos. A ameaça atual é exatamente, o acúmulo balho contemporâneo. No plano conceitual, porém, o mais impor-
dos dois. Nesse acúmulo, enraízam-se a amputação do poder de tante, talvez, seja o fato de que a atividade é atravessada por essa
agir, ou seja, essa queda de vitalidade e esse desinteresse pela ativi- alternância possível ou impossível porque ela é triádica: "O homem
dade tão perigosas para a saúde. À atividade desiludida que, muitas nunca está sozinho diante do mundo de objetos que o rodeiam.
vezes, resulta daí, vai se opor a eficácia dinâmica do trabalho bem Para se relacionar com as coisas, o traço de união são as relações
com os homens" (Leontiev, 1958).

1
A atividade pode se beneficiar de um entorno técnico mais ou menos favorável à
1
apropriação efetiva dos sujeitos. P. Falzon define, assim os "entornos capacitantes" Seria útil- mas, neste livro, impossível- vislumbrar as relações entre essa aborda-
(2007). Por sua vez, P. Béguin considera a plasticidade das técnicas como a condição gem da eficácia e a percepção de uma auto-eficácia, cujo efeito protetor sobre a saúde
de uma criação continuada (2005b, p. 57). já é conhecido (Bandura, 1997).
22 Trabalho e poder de agir Introdução 23

E 6. o TRAÇO DE UNIÃO DA ATIVIDADE g o objeto de uma ação no real que supera essas relações, que as justi-
I
fica ou invalida e, de qualquer modo, as transforma. No fazer, o
Esse é o meu ponto de partida, a unidade de base para compreender sujeito age, portanto, também sobre as relações com os outros e
a origem do desenvolvimento. Porém, segundo parece, nem todas as consigo mesmo, graças às relações com os outros; mas, sem se limi-
abordagens desenvolvimentistas do trabalho, a partir da atividade, tar a esse aspecto e para fazer algo.
manifestam a mesma compreensão. O debate está aberto (Bedny & A proposição de substituir o dualismo do fazer e do agir pela
Karwowski, 2004a, 2004b; Bedny & Meister, 1997; Bedny, Seglin, & tríade viva da atividade, como unidade de análise, retoma, de fato, a
Meister, 2000; Brushlinsky, 1991; Norros, 2004; Stech, 2007). Re- tradição grega relida por H. Arendt. Ela reduz a atividade ao fazer,
centemente, Rabardel - a quem se deve a análise das gêneses ínstru- subordinando-a ao agir. Mas pode-se pensar que é sem proveito
mentais - propô~, por exemplo, partir de outro ponto e de um modo relevante para a análise do trabalho porque ela compromete a pos-
diferente. Em seu entender, haveria o fazer que se refere aos objetos sibilidade de identificar, na atividade comum - no sentido definido
da atividade e o agir que o excede. O agir compreende o fazer, sem mais acima -, o centro do desenvolvimento do poder de agir. Nesse
se limitar a esse aspecto. Sem dizer respeito às transformações rela- aspecto é que os trabalhadores podem promover, ou não, em sua
tivas ao objeto da atividade, seu perímetro é o das relações consigo esfera habitual, novas relações com os objetos, com os outros ou
mesmo, com os outros e com a sociedade (Rabardel, 2005, p. 18). com eles próprios; é que se produzem, ou não, outros objetivos, ou-
Tal abordagem subordina o fazer ao agir. Um vai além do outro. tros destinatários e outras maneiras de ser eles mesmos em uma
Compreende-se perfeitamente, aliás, o interesse em sair de uma re- esfera profissional transformável e inacabada.
dução operatória da ação para encontrar, de novo, o cuidado da A atividade mediatizada permanece assim mediatizante, fon-
relação consigo mesmo. Mas, ao apagar o traço de união da ativida- te de ligações renováveis. O sujeito constrói aí seus instrumentos,
de, ela se depara imediatamente com um problema. além de se reconstruir não por viver simplesmente em seu mundo,
Se é perfeitamente compreensível a razão pela qual o agir ex- mas por produzir um mundo para viver. Uma atividade produtiva .
cede o fazer, é mais difícil compreender o motivo pelo qual a recí- comum que se fecha para esse trabalho de re-criação não é normal
proca não é verdadeira. O fazer, relativo aos objetos da atividade, mesmo que, atualmente, ela seja frequente. E isso ocorre por uma
segundo parece, excede também o agir desde que a transformação razão precisa: ela impede que os sujeitos individuais e coletivos se
desses objetos implique a relação com os outros e consigo; e como é construam pela transformação do dado em criado, além de conti-
óbvio, sem que igualmente se limite a esse aspecto. O objeto a trans- nuarem sendo os protagonistas que vivem novas ligações possíveis
formar na atividade do sujeito não lhe pertence; ele está preocupa- entre os homens e seus objetos. Ao produzir seu meio para viver
do coni a atividade de outrem e é insuficiente dizer que essa postura com, ou contra, os outros, ao dirigir-se a eles ou ao dar-lhes ascos-
é particularmente verdadeira em situação de trabalho. O outro está tas, mas sempre em comparação com eles e em contato com o real,
no objeto. Na prática, o objeto da atividade do ou dos sujeitos é o é que o sujeito se constrói: ao fazer o que deve ser feito ou refeito
lugar de uma colisão entre atividades ou, no mínimo, de uma troca. com outros, pares ou superiores hierárquicos. Seu poder de agir é
Eis o que é, evidentemente, e de forma bastante particular, verda- conquistado junto aos outros e aos objetos que os reúnem ou os
deiro quando o objeto do trabalho é o próprio humano (Flageul- 1.. dividem no trabalho comum; el~_se__4esenyolve na epela ativid~de

Caroly, 2001; Molinier, 2002; Forseth & Jorgensen, 2002, p. 93; mediatizante.
Lhuilier, 2006, p. 56; Clot, 2006a, p. 10). Mas, de qualquer maneira, Na perspectiva vygotskiana adotada por nós, o sujeito se
o objeto é um traço de união, de saída, controverso entre os homens constrói apenas quando começa a empregar, a seu respeito e à sua
que trabalham. Incumbirá, inclusive, ao sujeito mostrar, para ser efi- maneira, as formas de condutas que os outros haviam utilizado,
caz, que esse objeto é também, para além dessas relações, outra coisa: previamente, em relação a ele para agir sobre o objeto. Ele se torna
24 Trabalho e poder de agir Introdução 25

assim único em seu gênero, sem que nunca o tivesse sido anterior- sua fonte em outro lugar, na atividade construtiva do sujeito, a qual,
mente. As construções subjetivas nunca são nada além 1ere-cria- de acordo com as palavras de Pastré na mesma obra, deve finalmen-
ções, às vezes irreconhecíveis, dos conflitos que atravessam e circu- te ser considerada como transcendente (2005a, p. 259). "Idealmen-
lam na atividade coletiva e individual. Sua origem se encontra, aliás, te': segundo Rabardel, é inclusive uma espécie de "perpétua adoles-
não propriamente no "social" como tal, mas no que permanece ina- cência da capacidade de agir" que deve "acomodar-se às situações e
cabado nele e, portanto, deve ser produzido. De qualquer modo, o circunstâncias que são passíveis de diminuir o poder de agir" (Ra-
desenvolvimento da atividade mediatizante nos três polos da tríade bardel, 2005, p. 20-21). Entretanto, o poder de agir do sujeito não
da atividade - ou, dito por outras palavras, a possibilidade de i'<izér poderia ser, também, aumentado pelas situações e circunstâncias?
de outro modo o que já foi feito com os outros - é que me parece ser Pergunta-se isso quando Rabardel escreve que a atividade constru-
o horizonte da psicologia do trabalho. A transformação coletiva do tiva tem efetivamente "pés e mãos" na atividade produtiva, mas, de
trabalho real dos sujeitos me dá a impressão de ser o que há de mais qualquer maneira, tem sua "cabeça em outro lugar", no sujeito capaz
produtivo para as construções subjetivas. (ibid., p. 20).
Nessa abordagem do desenvolvimento, existe, em certo senti-
do, uma indiscutível coerência: a definição de uma atividade sem
• 7. DUAS ATIVIDADES? • traço de união, pela oposição entre o fazer e o agir, redunda na de-
finição de duas atividades - a produtiva e a construtiva - sendo que
Eis por que acho discutível a rigidez da oposição entre atividade a segunda é designada como a fonte do desenvolvimento do sujeito.
construtiva e atividade produtiva preconizada na obra coordenada Mas separar assim o fazer e o agir pela subordinação do primeiro ao
por P. Rabardel e P. Pastré (2005). O desenvolvimento do poder de segundo é correr o risco de privar a atividade propriamente dita de
agir se reduz, no texto de Rabardel, ao desenvolvimento de um "su- suas funções direcionadas para o desenvolvimento. Ao amputar a
jeito capaz", construção subje_tiya de capacidades. Isso de tal modo atividade comum dos conflitos que devem ser superados entre sujei-
que o poder de agir não é mais que a implantação circunstancial e tos, ou das trocas que devem ser estabelecidas com eles para a apre-
localizada das capacidades do sujeito, ou seja, uma atualização ou ensão do objeto- de modo que haja uma possibilidade de conseguir
uma manifestação de capacidades (Rabardel, 2005, p. 18-23). Desse fazer o que deve ser feito-, corre-se o risco de ter de procurar em
modo, o problema incide sobre as relações do sujeito com as pró- outro lugar, na "ca[:)~~a'' de um sujeito capaz, a origem do desenvol-
prias capacidades e podemos nos questionar se o que permanece do vimento. O que se passa, nesse caso, com o papel possível da ativi-
poder de agir não é somente a latitude que a tarefa deixa a essas dade habitual no desenvolvimento do sujeito?
capacidades. Os aspectos que haviam sido considerados, até aqui, Pode-se pensar, pelo contrário, que é por intermédio da ativi-
como as variações da atividade mediatizante, criadora de objetos, dade dos outros - apoiando-se, assim como desligando-se desta, por
instrumentos e destinatários, são observados por Rabardel, segun- comparação - que o sujeito se apropria do objeto de sua atividade,
do parece, como o campo das "singularidades versáteis" com as que é daí que ele retira sua mobilização psicológica. A atividade me-
quais o sujeito deve "acomodar-se': mas das quais deve desembara- diatizante comum, quando não é impedida, produz capacidades que,
çar-se para ter acesso à esfera construtiva das capacidades, do pen- aliás, se constroem por seu intermédio. Pelo fato de que o objeto não
samento com seus invariantes. Em vez de limitar-se à atividade em é amorfo nem acabado, J:Das continuamente percorrido pelas ativi-
si mesma- seus objetos, meios e destinatários-, o desenvolvimento dades que, em seu bojo, se trocam entre si, é que o sujeito não fica
diz respeito ao sujeito capaz e a seus instrumentos. inerte; de fato, ele deve abrir sua própria via contra ou com os outros
A atividade produtiva mobiliza invariantes; porém, segundo pa- para poder entrar na história, desde sempre coletiva, do objeto. Essa
rece, não chega a construí-los (ibid., p. 20). A regularidade encontra é a própria força motriz do desenvolvimento das capacidades e dos
26 Trabalho e poder de agir Introdução 27

afetos. Em sua apropriação do objeto, o sujeito não segue a linha reta construção. Dessa vez, no entanto, "o ponto de vista do sujeito e do
de um "fazer" sem "agir". Ele deve agir para fazer. Porque até esse conjunto teria a prioridade em relação ao dos elementos constituti-
momento, o objeto não está em um mundo neutro e impessoal. Ele vos, o que é contrário ao sistema de explicação proposto. O princí-
não se encontra imobilizado em meio a um catálogo de objetos, pio, que havia sido eliminado nas premissas, reintroduz-se no de-
mas já está em movimento em atividades familiares ou adversas- correr da explicação" (p. 36). E, de fato, se "os esquemas motores
às vezes, as do próprio sujeito - em circulação nos gestos ou nas são dotados de atividade autônoma e vencedorà', como é possível
palavras do outro, em "ação" nos contextos alheios a serviço de in- "apreender o instante em que o sujeito irá, finalmente, surgir dos
tenções estrangeiras; ora, é precisamente nessas circunstâncias que esquemas"? Não o teria, "enfim, descoberto pelo fato de ter pressu-
ele deve ser procurado em sua corrida, de modo a se apropriar e se posto sua existêncià'? (p. 28-30) 1•
apoderar dele. A relação com o objeto nunca é um monólogo por- Assim, o sujeito, para P. Pastré, deveria escapar a seus inva-
que o próprio objeto é transbordante da vitalidade dialógica do so- riantes produtivos para se construir. Todavia, quem é esse sujeito,
cial, incluindo os antagonismos de interesses. O objeto é um "obje- cujo desenvolvimento construtivo deve se liberar do funcionamen-
to-vínculo': desde sempre ligado ou desligado. O objeto da atividade to produtivo? Para Pastré, que insistiu demais sobre a hibridação da
não está somente na sociedade em que ele pode desenvolver-se. A psicologia cognitiva com a hermenêutica, ele é "transcendente" a
sociedade está também no objeto da atividade, graças a que ela tem seus organizadores. No entanto, pode-se formular a questão de ou-
uma história possível. tro modo: se o sujeito tem a "cabeça em outro lugar': não é em uma
pressuposta atividade construtiva, mas entre duas ou várias ativida-
des produtivas; de fato, o pensamento desenvolve-se entre duas ma-
• 8. SOBRE ANTIGAS QUESTÕES EM PSICOLOGIA • neiras diferentes de fazer a mesma coisa. Pode-se adotar, como ver-
dadeira, a proposição de Volochinov: "Compreender é pensar em
Mas essa abordagem transformista e histórica do desenvolvimento
um novo contexto" (1977). Mas, em um sentido preciso: na origem
do poder de agir - tomada de empréstimo, no essencial, a Bakhtin
do pensamento, encontra-se a multiplicação dos contextos e não a
e aVygotski- não é, de modo algum, compatível com uma aborda-
subtração ao contexto. Nas variações da atividade produtiva é que a
gem genética do desenvolvimento. E, segundo parece, no campo da
atividade se torna construtiva; a variação produtiva é construtiva.
análise do trabalho, uma parte da discussão que, outrora, tinha
Ela é a origem do invariante e não apenas seu campo de aplicação.
oposto Vygotski a Piaget, continua sendo atual. É conhecido o inte-
resse, tão frequentemente manifestado, de Pastré e Rabardel por Evidentemente, qualquer ação supõe a presença de organiza-
Vygotski; aliás, compartilhado por mim. Porém, tem-se a impres- dores invariantes incorporados (Merri, 2007; Mayen, 2007). Mas o
são de que a epistemologia piagetiana permanece o pano de fundo desenvolvimento de uma atividade não se reduz, de modo algum, à
e a força motriz de seu trabalho. Wallon já havia discutido com Pia-
get a respeito da hesitação que ele via em sua obra: "A despeito do 1
Esse debate não se refere, evidentemente, apenas à obra de Piaget. A publicação
rigor que Piaget se impôs, sua concepção permanece bastante eclé- recente de traduções de alguns textos de S. L. Rubinstein por V. Nosulenko e P. Rabar-
tica. Depois de ter estabelecido os esquemas motores como o essen- del mostra até que ponto a questão assombra toda a história da psicologia e da própria
psicologia da atividade que se desenvolveu na Rússia Soviética (Rubinstein, 2007).
cial e suas atividades individuais, operando sob o controle da expe- Para aprofundar a questão, podemos citar as análises tanto de Rubinstein (2003, p.
riência, como os únicos fatores da evolução psíquica em seus 137), quanto de Léontiev (1984, p. 102; 2005); e, mais amplamente, a confrontação
primórdios, não lhe resta senão, em seguida, acrescentar uma ação com as teorias da ação situada (Béguin & Clot, 2004). Ainda, nesse aspecto, descobri-
mos que a história da psicologia não corresponde à dos pesquisadores, mas é, sobretu-
de conjunto" (Wallon, 1970, p. 35). Tal ação é o desenvolvimento, do, a história dos objetos e dos problemas teóricos: eles resistem às conjunturas histó-
compreendido como o jogo de uma tendência vital e endógena à ricas e atravessam as escolas constituídas, insuflando-lhes vida.
28 Trabalho e poder de agir Introdução 29

construção de invariantes pelo sujeito e, por um motivo ainda mais Escrever, como ocorre neste texto, que o desenvolvimento do
válido, não é seu resultado. De preferência, é o contrárip: os inva- sujeito não é uma "rupturà' com a totalidade de seus funcionamen-
riantes são construídos pela experiência de ações repetidas em situ- tos anteriores e, inclusive, que o desenvolvimento se manifesta
ações, felizmente, nunca idênticas. Vygotski, ao adotar os resultados quando um funcionamento psicológico se torna o meio de outro
obtidos por Piaget, mas reinterpretando-os, havia indicado que este funcionamento tem uma consequência: questionar a oposição arti-
utilizou paradoxalmente os efeitos construtivos das variações em ficial entre um funcionamento considerado como uma rotina co-
que se engendra a vitalidade dialógica do social. Ele mostrou "como mum e um desenvolvimento visto como sua negação criadora. No
a reflexão ocorre após a aparição da verdadeira discussão no âmago e.lCercício profissional, um funcionamento nunca é idêntico, até
de uma coletividade de crianças, como é apenas na discussão que mesmo em situação estabilizada. Urna repetição é sempre única, e o
emergem os eleJJ:lentos funcionais que desencadeiam o desenvolvi- mesmo funcionamento acolhe, na atividade real, diferentes funcio-
mento da reflexão" (1997, p. 105). Piaget, porém, não chegou a tirar nalidades; ele pode, até mesmo, realizar atividades opostas. O de-
todas as consequências disso. Para Vygotski, o indivíduo se torna senvolvimento tem sua origem precisamente na dinâmica entre di-
sujeito do ponto de vista psicológico quando faz, sozinho e de outro ferentes funcionalidades do mesmo funcionamento em atividades
modo, o que já havia experimentado com os outros, ao encontrar- diversificadas e repetidas. Todo o mundo se lembra, sem dúvida, do
se com eles "uma cabeça acima dele mesmo" em uma zona de de- exemplo referente aos gestos do tênis, mencionado por Bartlett: ''Ao
senvolvimento potencial. Ele reconstrói, então, para si de outro dar urna raquetada, na realidade, nunca produzo algo de absoluta-
modo, o que havia produzido e o que se produziu com os outros. A mente novo e nunca repito integralmente um golpe já produzido no
replicação da atividade produtiva, a transformação da atividade passado ... Posso dizer, e acreditar, que reproduzo as mesmas se-
produtiva mediatizada em atividade produtiva mediatizante: eis a quências de movimentos, mas pode-se demonstrar que não é bem
sede das construções do pensamento. Nesse ponto, é que o sujeito assim; do mesmo modo que, em outras circunstâncias, posso dizer
apreende as regularidades da ação: em vez de negar a variação, ele e acreditar que reproduzo identicamente determinado acontecirnen-
empreende a via de seu desenvolvimento. "Funcionando é que o to do qual pretendo me lembrar, mas pode-se demonstrar que isso é
organi~mo se formà', observa Rubinstein (2007, p. 139). E é funcio-
igualmente impossível" (1932, p. 202). A lição dessa análise, tornada
nando com os outros que o homem se transforma, correndo até o
de empréstimo ao esporte, mas transponível ao trabalho, é, sem
risco, como se sabe, de se deformar.
qualquer dúvida, que o gesto repetitivo é sempre, também, único.
Os quadros de análises diferidas que nós propomos aos tra-
Se hesitamos em levar em consideração o fato de que a ativi-
balhadores, por exemplo - e aos quais nós voltaremos a seguir - se-
dade comum, por ser sempre endereçada e re-endereçada, é urna
jam eles dispositivos de autoconfrontação ou de simulação não são
repetição sem repetição, somos incapazes de ver até que ponto ela
para nossos interlocutores senão novos contextos introduzindo uma
variação da atividade ordinária. A variação pode ser mais ou menos nunca é um puro automatismo ou, ainda, o uso de um invariante.
intensa; entretanto, na interferência desses contextos diversificados Ela comporta sempre um devir possível, incluindo um eventual
é que essa atividade encontra os meios eventuais para produzir no- agravamento. Tal inacabarnento estrutural é a origem do desenvol-
vos objetos, destinatários e instrumentos. Além das capacidades vimento da atividade; caso contrário, ela terá de ser encontrada em
potenciais, desenvolvem-se aí atividades potenciais. E isso justa- outro lugar. P. Pastré não hesita em evocar urna espécie de ética do
mente porque esses quadros permitem a comparação entre diferen- não, um "poder de dizer não" (2005a, p. 258) que o sujeito teria
tes funcionamentos e uma espécie de conjugação da ação em todos oposto aos próprios hábitos; compreende-se perfeitamente sua in-
os tempos, no sentido quase gramatical do termo; variações solici- quietação. Mas essa postura não é urna espécie de "criacionisrno"
tadas pelas mudanças de instruções dirigidas ao outro, pressupostas que, para compensar a autossuficiência dos invariantes, corre o ris-
por esses quadros. co simultaneamente de justificá-la? P. Pastré, parece, mostra-se hesi-
30 Trabalho e poder de agir Introdução 31

tante. Por um lado, no funcionamento habitual, o sujeito delega a 1967; Scheller, 2003), na qual o trabalho tem lugar e, até mesmo no
ação aos esquemas. A ação é operação. Por outro lado, no1 desenvol- trabalho, a subjetividade não é a projeção mecânica da atividade.~
vimento, o próprio sujeito se transforma para criar recursos (p. 233). diferença -e~tre os dois é essencial para a análise do problema do
Aqui, gênero e estilo deixam de se misturar. A fidelidade criadora desenvolvimento. Vygotski insiste sobre o fato de que o desenvolvi-
das gêneses identitárias retira o sujeito das comodidades do gênero mento, propriamente dito, do sujeito não é uma simples progres-
que, por sua vez, cede o lugar às rupturas da ação e à fala "proféticà' são, mas uma metamorfose das funções psicológicas; e, com razão,
(p. 257). P. Pastré vê perfeitamente que alguém, ao empreender essa Pastré defende a mesma postura. Cada sujeito desata e volta a atar,
via, expõe-se aos perigos da antinomia entre pensamentos muito de maneira única, os vínculos estabelecidos entre todas as atividades
engraçados e atos sem graça, para retomar a auspiciosa fórmula de que ele tentou tornar compatíveis fora dele e em sua história. Sabe-se
Bender (Bender, 1998, p. 184). Ele deseja escapar a essa cisão, ob- que o desenvolvimento do poder de agir real pode, inclusive, desen-
servando o seguinte: não há, por um lado, "um sujeito que se agita
cadear uma crise em equilíbrios laboriosamente adquiridos e que o
na ação e, por outro, um sujeito que reflete sobre a metacognição"
desenvolvimento do sujeito não segue mecanicamente o desenvolvi-
(p. 255). Apesar disso, em sua conclusão, ele escreve: "Temos de
mento de seu poder de agir profissional. Para que isso seja possível,
aceitar que não haveria sujeito sem transcendência em relação aos 1
é imprescindível que ele disponha da plasticidade subjetiva que, por
organizadores de sua atividade" (p. 259).
sua história própria, tenha conseguido, ou não, conquistar.
Vamos, por último, perguntar se esse paralelismo entre um po-
der de agir indexado à tarefa, de um lado, e um sujeito capaz de dizer O sujeito não está integralmente em sua atividade precisa-
não, do outro, não resulta efetivamente da concepção monológica da mente porque ele é, antes de mais nada, heterogêneo, sujeito de vá-
atividade evocada mais acima. Porque o que transcende os organiza- rias atividades psíquicas ou práticas que convergem nele, mais ou
dores da atividade é precisamente a própria atividade. Com a condi- menos vinculadas ou desvinculadas, mais ou menos disponíveis às
ção, evidentemente, de considerá-la como um conflito em que outros reorganizações funcionais que supõem seu desenvolvimento. Eis a
sujeitos agem sobre seu objeto, simultaneamente fonte de obstáculos razão pela qual Spinoza havia observado acertadamente: "O esforço
e de recursos para superá-los; com a condição, igualmente, de levar para desenvolver o poder de agir é inseparável de um esforço para
em consideração os outros sujeitos que cada um carrega em si mesmo elevar, ao grau mais elevado, o poder de ser afetado" (1965, v. 39). A
como objeto e meio dessa atividade própria 1. Ou, noutros termos, subjetividade é, sem d{Ly:ida, não propriamente uma disposição
com a condição de adotar uma concepção dialógica a respeito tanto constitutiva do sujeito, mas o poder de ser afetado que, em maior ou
da atividade, quanto do sujeito. Nesse caso, porém, temos de levar menor grau, está à disposição de cada um em função de sua história
completamente a sério a proposição vygotskiana e bakhtiniana de singl1lar. Sua incompletude é que torna o sujeito disponível ao de-
uma função psíquica interna do coletivo e do diálogo. senvolvimento da atividade e não um poder de agir autóctone
(Vygotski, 1994b; Clot, 1999c, p. 20). Sua vitalidade dialógica inter-
• 9. O PODER DE SER AFETADO: SER SUJEITO • na é que o prepara para suportar ou apreender os imprevisíveis do
real diante dos quais ele deve se determinar.
Nas páginas precedentes, não se procura, portanto, reduzir o sujeito "O homem está repleto, a cada minuto, de possibilidades não
à atividade de trabalho. Ele tem sua atividade própria (Tosquelles, realizadas': observa Vygotski (2003, p. 76). Tais possibilidades não
realizadas estão mais ou menos fossilizadas, mais ou menos dispo-
níveis e mais ou menos ligadas ou desligadas. Eis um campo de for-
1 A análise proposta por Pastré a respeito da trajetória de Bernanos poderia, aliás, ser
reinterpretada deste modo (2005, p. 256-257). Em vez de serem qualificados pela ausência ças, cujo teclado pode ser utilizado pelo sujeito com um maior ou
de traços genéricos, os grandes estilos se distinguem por sua extrema multiplicidade. menor grau de liberdade: quanto maior for a intensidade desse
32 Trabalho e poder de agir Introdução 33

campo de força, mais extensa será a latitude subjetiva e maior será flutuação, nem que fosse entre o ego e o não ego, entre o Eu e o Ou-
o poder de ser afetado. Com maior facilidade o sujeito pqderá abrir tro, para falar como Wallon (1971). As "coisas" psíquicas começam a
o círculo de seus processos psíquicos internos às bifurcações que estabelecer entre si relações sem fronteiras na vida do sujeito, sem
lhe são propostas pelo desenvolvimento do poder de agir de sua delimitação. Ele fica, então, despossuído dos benefícios de suas dis-
atividade. Com maior facilidade, também, ele poderá resistir, quan- cordâncias, estando privado da tonicidade das alternâncias funcio-
do for o caso, à amputação desse poder de agir, desvencilhando-se nais a qual, por sua vez, seria capaz de protegê-lo da desrealização
dos riscos que ele corre por intermédio dos desligamentos e religa- em que sua energia se dissipa (Vygotski, 1994b). O que equivale a
ções que hão de proteger sua saúde. Paradoxalmente, portanto, o --~izer até que ponto a alteridade é constitutiva da subjetividade.
sujeito mais bem preparado para o desenvolvimento ou para a atro- Assim, portanto, à atividade dialógica corresponde o sujeito /
fia do poder de agir de sua atividade é um sujeito encarnado, simul- dialógico: tal poderia ser, em resumo, a contribuição de uma clínica
taneamente, delimitado e inacabado; um sujeito cuja vida psíquica da atividade para uma psicologia do trabalho que fosse, também,
mantém a tensão entre várias vidas possíveis. E essa tensão se ava- uma psicologia tout court. Uma psicologia do desenvolvimento em r)
lia, sem dúvida, pela quantidade de obstáculos que esse sujeito pode situação de trabalho. Eis por que ela se encontra bastante longe da ~
enfrentar (Béguin & Clot, 2004). ideia que, segundo parece, C. Dejours tem a seu respeito ao escrever
Portanto, nossa tentativa consiste em definir o que é um sujei- que a subjetividade seria apenas, aqui, o "produto" da atividade
to capaz de ser afetado. Mas se existe essa possibilidade é graças ao (Dejours, 1999, p. 206). As páginas precedentes e as seguintes per-
desenvolvimento de sua mobilidade interfuncional; à sua capacida- mitirão, talvez, esclarecer melhor o assunto. O sujeito é, de prefe-
de de colocar uma função a serviço de outra - por exemplo, suas rência, uma espécie de escultura na história das atividades próprias
emoções a serviço de seu pensamento e inversamente. Essas migra- de cada um, história no decorrer da qual a forma se revela por sub-
ções interfuncionais são, no psiquismo, um instrumento decisivo tração e não por adição. Mas essas páginas tiram também as conse-
para conferir um destino dinâmico ao afeto. Este "desfaz" o sujeito quências dos resultados obtidos: em matéria de desenvolvimento, a
e o desconstrói, se ele permanece intransformável e sedentário, se amplitude da heteroglossia social é que regula o nível de conflituo-
não se metamorfoseia. E ele só consegue essa transformação ao re- sidade interna à história do indivíduo. Seu funcionamento psíquico
alizar-se em um jogo aberto entre expressão das emoções e repre- encolhe e pode mesmo extinguir-se quando a sociedade deixa de
sentações mentais, entre intelecto e sentimento. Esse movimento oferecer-lhe conflituosidade externa, quando ela se torna unívoca,
avalia a plasticidade funcional do sujeito. inerte e, em suma, monológica.
Para Vygotski, o fracasso desse movimento é indicado pela A heterogeneidade interna do sujeito, base de sua dinâmica
doença psíquica sob suas variadas formas; na doença, a experiência psíquica, nunca é instalada de uma só vez. Suas fontes se deslocam.
vivida deixa de ser o meio de viver outras experiências. Encarcerada, A abertura do diálogo interior não pode manter-se sem relé social
sedentária e desligada, a atividade imposta se torna intransformável. que o alimenta em energia conflitante; aliás, esse relé é curto-circui-
De acordo com as palavras do pesquisador. "Não é o delírio que es- tado por uma estrutura de trabalho que se tornou indiscutível, dei-
tabelece a distinção entre um alienado e nós, mas o fato de que, dife- xando de respirar entre várias possibilidades técnicas e organizacio-
rentemente de nós, ele acredita em seu delírio, ao qual se submete" nais, além de circunscrever o sujeito em uma única história social
(2004, p. 250). Ele não dispõe mais de sua atividade psíquica e práti- possível. Em certo sentido, a clínica da atividade profissional prati-
ca. Ele está à sua disposição. Paradoxalmente, essa atividade se en- cada por nós se interessa- ao preocupa.r~secom o coletivo em situ-
contra sobre-afetada por estar afetada em um lugar único, com resi- ação de trabalho - por esse transformador de energia psíquica que,
dência fixa. O sujeito já não consegue deslocar-se em sua vida interior demasiadas vezes, é deixado de lado. Ela procura manter ou restau-
em razão de uma indiferenciação funcional que impede qualquer rar a vitalidade dialógica do social, graças à análise do trabalho ao
34 Trabalho e poder de agir Introdução 35

experimentar a função psicológica do coletivo em situação de traba- "caixa preta'' da atividade. O~gêrrer_o profissional é o instrumento ·
lho1; afinal, seu objetivo consiste em ser capaz de propor~ subjetivi- coletivo da atividade, permitindo colocar os recursos da história
dade se reencontrar em uma zona de desenvolvimento potencial. acumulada a serviço da ação presente de uns e dos outros. Esse
acoplamento da atividade em curso e de seus instrumentos genéri-
cos explica o desenvolvimento do poder de agir. Aliás, sua separa-
" 10. PODER DE AGIR, GÊNERO E AGENCY B ção é também uma das explicações de sua atrofia. A possibilidade
de instaurar, ou de reinstaurar, ligações entre a atividade - enalteci-
E, neste momento, impõe-se uma precisão a fim de concluir - pelo da nas páginas precedentes - e seus recursos genéricos garante a
menos transitoriamente - esta discussão sobre o poder de agir. De probabilidade de engendrar a história profissional. O que a ativida-
fato, é necessário estabelecer a distinção entre trabalho coletivo que de é capaz de executar, sua potência de ação e sua irradiação, toma
mantém a atividade conjunta sobre o e em torno do objeto traba- de empréstimo os meios de uma história coletiva entendida como
lhado, por um lado, e, por outro, o próprio coletivo em situação de
história social a prosseguir. Nesta obra, vamos insistir muito sobre
trabalho (Clot & Caroly, 2004). Este último detém a história do tra-
o seguinte aspecto: o gênero profissional é um instrumento decisivo
balho coletivo. Ele é sua memória. Obviamente, como veremos em
do poder de agir.
várias opo~tunidades nas páginas seguintes e, sobretudo na "Con-
dusão':'~lêJ ~xlste apenas nas atualizações históricas mutáveis do Certamente, ele não flutua acima das atividades individual e
trabalho coletivo. De qualquer modo, não deixa de ser irredutível a coletiva. Nem é ele quem as engendra; pelo contrário, são elas que o
elas. Ele só é vivo por ocasião do trabalho coletivo, mas acaba por conservam vivo. No entanto, desprovidas dos meios que ele lhes
. superá-lo já que detém sua história e prepara sua ação. O coletivo oferece para se realizarem e devolverem, em retorno, o que foi en-
:. do trabalho é o instrumento do trabalho coletivo; ele é seu arcabou- contrado no decorrer do trabalho, as possibilidades de produzir a
ço, sua morfologia. Através de esquemas genéricos, ele conserva o história profissional na atividade são bem precárias. A atividade,
que faz jurisprudência para o trabalho coletivo, fixando os prece- quando é mediatizante, nem por isso deixa de ser mediatizada pelo
dentes que servem de referência para os casos semelhantes que ve- gênero profissional que se desenvolve nela. Por definição, o poder
nham a manifestar-se na atividade coletiva em curso. Ele condensa de agir da atividade sobre o contexto de trabalho é, portanto, intrin-
os resumos coletivos que formam outros tantos esquemas sociais secamente social quanto a seus recursos de inovação. Ele assume,
"pré-trabalhados': destinados a ser ativados ou desativados em cada quando pode desenvolver-se, uma responsabilidade coletiva e téc-
ação singular2 • nicas de ação que garantem uma capacidade real de escolha para os
Esta precisão é importante. Com efeito, não só o poder de sujeitos e para os coletivos. Isso é o que, sem dúvida, aproxima o
agir diz respeito à atividade individual e coletiva em sua "caixa pre- poder de agir, tal como é definido neste livro, daquilo que a literatu-
ta': mas também - como veremos, profusamente, mais abaixo - é ra designa, frequentemente, por agência [agency] (Bandura, 2001;
impossível criar a separação entre os imprevisíveis dessa atividade Engestrõm, 2005; Nemeth, 2007) 1. A polissemia dessa palavra deve
e seus previsíveis genéricos. Eles se encontram, igualmente, na nos tornar muito prudentes (Balibar & Laugier, 2004), de modo a
preferirmos substituí-la pelo conceito, mais preciso, de poder de agir.
Mas seria possível, sem dúvida, transformar a potência de ação desig-
1
Neste aspecto, os textos das páginas seguintes identificam-se, paradoxalmente, com
as preocupações de alguns psicanalistas; aliás, já tive oportunidade de sublinhar tal
nada por este último em uma espécie de campo de "capabilidades" a
constatação (Clot, 2002a, 2006a, 2006b).
2
A propósito da memória coletiva, o sociólogo M. Halbwachs escrevia que não é
surpreendente que nem todos retirem o mesmo proveito desse "instrumento coletivo" 1
Nesse aspecto, reencontro a perspectiva de J. Butler em torno da noção de capaci-
(1997, p. 94-95). dade de agir (Butler, 2006, p. 15 ss.).
36 Trabalho e poder de agir Introdução 37

partir do modelo apresentado por P. Falzon (2007), que tem como a demanda de uma mudança. A observação e a interpretação da
referência os trabalhos de Sen (1999) 1• Porque, o desenvolvimento situação de trabalho devem ter a possibilidade de migrar para se
do poder de agir tem necessidade de mobilizar as divers~s agências desenvolverem. No coletivo profissional associado à intervenção,
[agencies] do ofício para preservar as possibilidades presentes e fu- elas devem conseguir encontrar, sem garantia prévia possível, um
turas da atividade; mas tal postura seria já uma antecipação da con- novo protagonista. A metodologia está em ação quando os profis-
clusão desta obra. sionais em questão estão envolvidos pessoalmente em atividades de
observação e de interpretação da própria situação. Nesse caso, o ob-
Em resumo, nestas páginas e nas seguintes, tentamos dar vida
jetivo é que eles se liberem, tanto quanto possível, de suas maneiras
a uma psicologia do trabalho, direcionada para o desenvolvimento,
habituais de pensar e dizer suas atividades. Utilizando outro voca-
ao circunscrever alguns objetos de debate. Certamente, ainda res-
bulário, o profissional deve ter a oportunidade de poder liberar-se
tam outros tema_s e, aliás, está por se fazer o inventário em um setor
de suas reflexões usuais para agir. Para nós, ele não é o profissional
em que as diferenças existentes podem ser forças motrizes para as
que se tornou reflexivo, elogiado com tanta frequência (Schon,
novas pesquisas a empreender.
1994), mas, de preferência, aquele que já não reflete, de modo al-
gum, como antes; o que leva a supor que ele não era, anteriormente,
um "operador ingênuo", para retomar a expressão de Fai:ta (Fa1ta,
• 11. METODOLOGIA PARA A AÇÃO E MÉTODOS
2007, p. 92; Clot, 2007a).
DE ANÁLISES. Ao empreenderem esse trabalho, os operadores envolvidos
podem, então, encontrar, nos intervenientes, os elementos suscetí-
Para concluir, eu gostaria de insistir, nesta "Introdução': sobre os pro-
veis de consolidar os esforços implicados por essa mudança da qual
blemas metodológicos importantes que tentamos recensear na "Ter-
eles se tornaram os sujeitos; esse é o motivo pelo qual o intervenien-
ceira Parte" desta obra. Eles pertencem a duas ordens já que conju-
te na clínica da atividade privilegia a retomada do trabalho coletivo.
gam a questão da ação de transformação das situações de trabalho e
Mas trata-se sempre de um trabalho coletivo que incide sobre o de-
a questão dos conhecimentos científicos que uma clínica da ativida-
senvolvimento da atividade comum; ou dito de outra maneira, so-
de é suscetível de produzir na psicologia do trabalho. A conjugação
bre a atividade mediatizante de cada sujeito com os outros- às ve-
da ação com o conhecimento continua sendo um problema em nos-
zes, contra os outros-, mas sempre para além dos outros em direção
sas disciplinas (Pansu & Louche, 2004; Guilbert & Lancry, 2007).
do real. Em busca de "provocar" o desenvolvimento da atividade
Relativamente à primeira, teremos oportunidade de avaliar mediatizante do coletivo sobre si mesmo e sobre a situação, essa
até qu~ ponto é preciosa a distinção entre metodologia e método. ação visa à transformação das tarefas, dos artefatos e da organiza-
As técnicas de instrução ao sósia, assim como de autoconfrontação · ção do trabalho. As instruções ao sósia e as autoconfrontações cru-
simples e cruzada, são apresentadas nas páginas seguintes. Atual- zadas se limitam a ser métodos perfectíveis, discutíveis e discutidos
mente, elas são utilizadas com tanta frequência que, talvez, eu tenha (Falta, 2007; Fa'ita & Maggi, 2007), a serviço desse objetivo. Como
necessidade de insistir ainda sobre o fato de que se trata de técnicas será demonstrado nos capítulos seguintes, eles são portanto, antes
que encontram sua justificativa no exterior de si mesmas. A meto- de mais nada, métodos de ação destinados a restaurar o poder de
dologia está, em primeiro lugar, na intervenção concreta que ocorre agir dos profissionais em situação real.
na clínica da atividade, na construção acompanhada por quem fez Mas, precisamente por permitirem provocar o desenvolvi-
mento, as instruções admitem, também, retirar o véu dos obstácu-
los e das possibilidades insuspeitas na situação de trabalho. Por
~ara alé~ de possibilidades formais, trata-se das possibilidades de ação efetivas das
1

quais os SUJeitos podem dispor socialmente (Corteel et Zimmermann, 2007). meio desses métodos, a retomada da ação, a transformação tornam-se
38 Trabalho e poder de agir Introdução 39

um instrumento de conhecimento da situação real e da atividade da atividade mediatizante. Pode-se circunscrever esse trabalho co-
comum. Nesse contexto, a ação coletiva dos profissionais é observa- letivo - do qual esta obra entende participar - em torno de três .
da como um meio de conhecer melhor a situação a transformar. grandes eixos.
Essa é a razão de se insistir tanto sobre o fato de que é n~çesscíxio O primeiro, que há muito tempo tem sido objeto de nossa
transformar para compreender e não apenas compreender para atenção, concerne ao desenvolvimento do pensamento nos diálogos
transformar. profissionais; ele se refere, portanto, à atividade de linguagem na
Se a ação empreendida dessa maneira permite compreender atividade de trabalho e nos diálogos diferidos que provocamos so-
melhor a situação, ela autoriza também ao pesquisador - que, nesse bre essa atividade. Aliás, os trabalhos que temos realizado nesse
caso, deixa de ser apenas alguém que realiza uma intervenção - âmbito se diversificaram, consideravelmente, na sequência de uma
compreender como se produz, ou não, o desenvolvimento. O traba- colaboração antiga e persistente com D. Fai:ta, linguista bakhtiniano
lho de pesquisa -científica propriamente dito começa aí, quando o sem o qual a autoconfrontação cruzada, talvez, não tivesse existido
desenvolvimento "provocado" no trabalho coletivo se torna maté- (Fai"ta, 2007; Falta & Maggi, 2007). Nessa matéria, também, a última
ria-prima da investigação; quando a ação conjunta do responsável palavra nunca é dita (Clot, Fernandez & Carles, 2002). Nessa mes-
pela intervenção e dos profissionais, de meio de transformar uma ma obra, vamos encontrar um estudo sobre essas questões; ele tira
situação real, torna-se, de início, objeto da análise e, depois meio de partido de trabalhos oriundos de outro horizonte. Atualmente, a
produzir conhecimentos sobre o desenvolvimento psicológico na partir da tradição pragmática e, talvez, para além dessa tradição, K.
ação. Obviamente, o interveniente pode encontrar nessa ação a Kostulski abriu, nesse campo, novas perspectivas que permitem en-
oportunidade privilegiada de desenvolver seu poder de agir e seu frentar o delicado problema das relações entre linguagem, diálogo e
ofício próprio (Daniellou, 1999, 2006; Petit et al., 2007). No entanto, interação, do ponto de vista do desenvolvimento do pensamento
o ofício do pesquisador na clínica da atividade é a extensão do domí- sobre a atividade (Kostulski, 2005; Tomàs, 2005; Clot & Kostulski,
nio dos conhecimentos ao que pode ser designado como as "regula- 2007). Essa temática tem sido abordada, igualmente, por outros au-
ridades" do desenvolvimento ou, ainda, os "invariantes" do desenvol- tores que partem, ainda, de Bakhtin, mas avançam para além do
vimento. O novo que ocorre na atividade, por ser frequentemente linguista russo (Bournel-Bosson, 2005; Henry, 2007).
imprevisível, não se produz por acaso. Como se afirma várias vezes Em vez de referir-se à linguagem, o segundo eixo diz respeito
nas páginas seguintes, o desenvolvimento também dispõe de seus ao gesto de ofíciQ, problema que se tornou decisivo no momento
funcionamentos, passíveis de formalização ou modelização. Desse enÍ que a "epidemia'' de LER/DORT atinge a amplitude que se co-
ponto de vista, uma clínica da atividade, em sua vertente científica, nhece. Nessa questão, a partir dos trabalhos de G. Fernandez (Fer-
é uma contribuição da psicologia do trabalho para uma psicologia nandez, 2004), a distinção entre movimento, gesto e automatismo
do desenvolvimento normal e patológico "ao longo de toda a vida': permite-nos, atualmente, interrogar a formação e a deformação do
Em outras palavras, uma psicologia do adulto que trabalha - este gesto profissional do qual, aliás, é possível ter uma ideia bastante
adulto que, durante tanto tempo, foi percebido pela psicologia como ampla (Roger, 2007). Ao mobilizar a obra de Bernstein (1996), as-
uma simples projeção da criança. sim como outras fontes, procura-se- nesse caso, também, ao apro-
A contribuição em questão supõe um trabalho de equipe; fundar as diferenças entre pontos de vista - apreender melhor o
considerando que ele está presente em cada uma das páginas seguin- lugar do corpo vivido, vivendo na atividade individual, social e co-
tes, vou concluir com um comentário a seu respeito. Trata-se de um letiva (Jouanneaux, 2005; Clot & Fernandez, 2005; Clot, Fernandez
programa de pesquisa que, implica trabalho coletivo e especializa- & Scheller, 2007; Tomàs, Méritan & Kostulski, 2007).
ção. Ele se revela difícil por referir-se a domínios diferentes ainda O terceiro eixo, talvez, seja o aspecto menos avançado de
que se concentre em todos estes domínios sobre o desenvolvimento nosso trabalho. Como terá sido, sem dúvida, observado mais acima
40 Trabalho e poder de agir Introdução 41

e como veremos nas páginas seguintes, aquestão da atividade é in- do trabalho ao se tornar um meio poderoso de fazer a psicologia
separável da afetividade. Isso por se referir ao arco dos problemas geral. Ela faz dela, também, um instrumento de renovação das pers-
que vão da energia subjetiva envolvida ou liberada no r~al do traba- pectivas em formação tanto profissional, quanto dos adultos. Os
lho até os sentimentos experimentados, ou não, de viver a mesma métodos de ação utilizados por nós tornaram-se, frequentemente,
história entre profissionais, passando pelo que é testemunhado métodos de formação pela análise do trabalho. Em compensação,
através do corpo na relação com o outro. Afetos, emoções e senti- formulam-se questões que, muitas vezes, constituem excelentes
mentos são, talvez, esses momentos discordantes por onde passa a problemas de pesquisa, a tal ponto que acabamos por transformar
afetividade nas relações profissionais em situação real, tão impor- esse material em um quarto eixo de nosso trabalho coletivo (Olry &
tante quando se aborda, como ocorre atualmente, o problema do Cuvillier, 2007; Jobert, 2007; Bertone et al., 2006; Prot, 2006b; Vé-
sentido do trabalho (Clot, 1999b, 2003a, 2006c; Vygotski, 2003; rillon & Ouvrier-Bonnaz, 2007; Remermier et al., 2007).
Lhuilier, 2006;-Fernandez & Malherbe, 2007). Afinal de contas, espero que o leitor seja sensível a este para-
Em todos esses domínios em que importantes estudos têm doxo: a especialização no campo da análise psicológica do trabalho
sido empreendidos fora de nossa equipe (Bres et al., 2005; Fillietaz não é, em psicologia, o contrário da generalização. Tentando insta-
& Bronckart, 2005; Grossen, 2007; Bril, 2002; Chassaing, 2006; lar uma psicologia fundamental no campo do trabalho, estamos fa-
Grosjean & Ribert-Van De Weerdt, 2005; Hostchild, 2002), convém zendo psicologia geral, o que não é algo assim tão frequente, mas
encontrar os vestígios do desenvolvimento, além de explicar suas um meio eficaz de agir. Este livro pretende cultivar, em todos os
figuras e seus impasses; levar em consideração a metamorfose dos sentidos do termo, tal paradoxo, ao fazer a tentativa de abordar al-
objetos, artefatos e destinatários que deixa na sua retaguarda o de- gumas "questões de ofícios" - simultaneamente, práticas e teóricas -
senvolvimento da atividade mediatizante, quando ela existe. Eis o na perspectiva, direcionada deliberadamente para o desenvolvi-
que é decisivo para a pesquisa e para ação (Engestrõm, 2006), assim mento, que está em via de construção. Sem as contornar e a fim de
como é decisivo o trabalho científico de modelização que deve per- torná-las ainda mais coletivas: eis seu objetivo principal.
mitir orientar a pesquisa desses "vestígios" e atribuir-lhes um esta-
tuto para experimentar, em retorno, a formalização indispensável.
Paradoxalmente, como já foi dito, existem efetivamente invariantes
do desenvolvimento, se concebemos tal desenvolvimento como
uma reorganização funcional da atividade dos sujeitos por onde
passa seu poder de agir e seu poder de ser afetado. A formação de
novos objetos, de novos destinatários ou, ainda, de novos instru-
mentos no decorrer da atividade não se faz por pura coincidência.
A pesquisa na área da psicologia do trabalho pode encontrar, nesse
aspecto, seu objeto central. Estudar o nomadismo funcional - por
intermédio do qual se operam essas formações - torna-se, então,
um verdadeiro desafio. Pode-se fazer isso na interlocução provoca-
da ein autoconfrontação cruzada, de acordo com a tentativa anali-
sacia em um dos capítulos deste livro, ou no sósia, nos gestos ou nas
emoções desenvolvidas no curso real da atividade mediatizante.
Pode-se fazê-lo, igualmente, quando essa mesma atividade se torna
impossível. Essa temática científica pode transformar a psicologia
, Pritneira Parte
UMA HERANÇA EM
,.,
DISCUSSAO
sner

Este capítulo 1 procura, em primeiro lugar, relacionar textos de A.


Wisner com o objetivo de mostrar como esta obra permite um de-
senvolvimento em várias direções possíveis; essa, talvez, seja uma
de suas qualidades. Ela ainda não está finalizada .

• 1. A ERGONOMIA COMO ARTE •

Em 1972, no Congresso da Ergonomics Research Society, A. Wisner


não hesitava em concluir sua conferência, questionando-se sobre o
fato de saber se o encanto do exercício ergonômico não consistiria
em ter permanecido uma arte, como a do médico ou do engenhei-
ro? (1995, p. 99).
De sua obra, tem sido bastante mencionada essa referência à arte
como um antídoto em relação ao positivismo: "Não creio que, na his-
tória das ciências, a teoria seja o começo, seguida pela metodologia.

1
Essa é uma versão, ligeiramente modificada, de um artigo já publicado, em 2006,
no n. 15 de Travailler; aliás, os artigos dessa revista, publicados neste livro, foram re-
produzidos com a amável autorização de seu editor.
46 Primeira Parte- Uma herança em discussão Partir da ergonomia 47

Alguns estudos recentes sobre a prática científica mostram que a .. 2. A TÉCNICA E SEUS LIMITES •
improvisação precede, na maior parte das vezes, a forn;talização", eis
No entanto, a arte reivindicada por A. Wisner relativa ao "exercício"
sua resposta a B. Pavard, em 1995 (1995, p. 4). E ele precisava que
ergonômico - que, dessa vez, pode ser aproximada do "exercício"
não sabia, de antemão, o que iria encontrar no campo: tratava-se de
médico - está também associada, por ele, à do engenheiro. Para o
um problema antropométrico, fisiológico ou, até mesmo, psicológi-
clínico do trabalho, a aproximação não é imediatamente evidente
co. Esse é o motivo pelo qual, em seu entender, o exercício ergonô-
entre o engenheiro e o médico. De fato, no nosso autor, existe uma
mico era determinado pela questão formulada pelo campo, como
elevada ideia a respeito do engenheiro: não a que, evidentemente, o
havia sido sublinhado por J. Duraffourg (2004, p. 17). assimila a um herói da ciência aplicada, mas, ao contrário, a que o
Em certo sentido, essa é uma crítica à sequência positivista de considera como o sujeito de uma ação que submete a ciência à pro-
A. Comte: "Ciência logo previsão, previsão logo ação" (Comte, va do real, ou seja, uma técnica no sentido de Mauss. Certamente, a
1968). Ou, dito por outras palavras: Saber para prever e prever para engenhosidade do engenheiro pode perder-se nas ilusões tecnocên-
agir. A. Wisner poderia ter invertido tal sequência ao escrever: "Agir tricas dos protocolos de gestão. Mas esse é também o caso da medi-
sem ser capaz de prever tudo, a fim de saber", formulação que não cina continuamente exposta - atualmente, talvez, mais do que nun-
trai, creio eu, a natureza de seus compromissos 1 • Talvez, aliás, essa ca - às "recaídas" positivistas. Não é, portanto, erroneamente que J.
posição no campo do conhecimento seja inseparável da ideia de Theureau fez a proposta, apoiado em Wisner, de definir a ergono-
nosso autor a respeito do trabalhador em geral: "Considerar o ope- mia como uma tecnologia. Haudricourt transformava, inclusive, a
rador como o criador repetidor de sua tarefa- posição que, à pri- tecnologia em uma ciência humana de pleno direito 1 . Assim, não
meira vista, pode parecer audaciosa - torna-se uma necessidade chega a surpreender a observação de Jean Buet, sindicalista forma-
porque ele não pode ser o executante de um programa que não cor- do em ergonomia: "Estrategicamente, Alain Wisner dava sempre a
responda à realidade técnica que lhe é transmitida em uma língua- prioridade à ação de transformação e à intervenção em concepção
gem obscura inadaptada'' (1995, p. 153). Essa frase escrita a propó- sobre o tratamento das consequências relativamente às condições
precárias de trabalho. Sempre ouvi dizer que os ergonomistas, em
sito dos países em via de desenvolvimento é válida, sem dúvida, em
vez de serem colocados nos serviços de gestão dos recursos h uma-
outras circunstâncias e confirma até que ponto a atividade real, tan-
nos, deveriam ocupar-se dos serviços técnicos da empresa, exata-
to para o trabalhador industrial quanto para o cientista, servia sem-
mente nos setores que concebiarp concretamente as situações de
pre de lastro para o pensamento de A. Wisner. Nunca deixei de pen-
trabalho" (2004, p. 103). ·
sar que para ele, médico, saúde e atividade eram sinônimos, se
Essa é, talvez, a origem da lucidez de Wisner em relação aos
aceitarmos considerar a saúde não só como a aptidão de sobreviver
limites da ergonomia, considerada por ele nestes termos: "A prática
em um ambiente de trabalho, suportando suas coerções, mas tam-
da ergonomia conduz rapidamente a sentir seus limites, nem que
bém como a capacidade de criar um meio para viver. Creio que essa seja pela rejeição dos dirigentes da empresa a soluções excelentes do
é uma das vias que pode ser seguida a partir dele, além de aproxi- ponto de vista de uma análise limitada ao sistema homem-máqui-
má-lo bastante- sem que seja possível encontrar, em seus textos, a na. Nessas condições, compreende-se a atitude de eminentes ergo-
confirmação formal- da concepção da saúde preconizada por G. nomistas que pretendem ampliar seu domínio de atividade para se
Canguilhem evocada na "Introdução" deste livro.

1
J. P. Séris faz esta reflexão bastante apropriada: ''A ciência, no sentido que atribuí-
1 Sobre este ponto preciso, ver Lecourt (2008), em particular, p. 71 e seguintes. Encon- mos a essa palavra, é relativamente recente, ao passo que é impossível imaginar uma
tra-se aí uma boa síntese da crítica elaborada por G. Canguilhem contra o positivismo. existência humana sem técnica" (1994, p. 21).
48 Primeira Parte- Uma herança em discussão Partir da ergonomia 49

tornarem mais eficazes na superação de uma problemática dema- autosatisfação, mas como uma determinação profissional para ex-
siadamente restrità' (1995, p. 90). Ele compreendia.l\1as a tentação perimentar os limites da ação a fim de rechaçá-los o máximo possí-
de agir sobre as estruturas técnicas, econômicas e sociais que "cir- vel. Mas isso, sem deixar de assumir as controvérsias necessárias
cunscrevem a atividade ergonômicà' (ibid. p. 91) parecia-lhe tam- entre "experts".
bém perigosa: "Somos ameaçados pelo desespero que atinge alguns
ergonomistas profissionais diante da inutilidade de seus esforços no
sentido de superar obstáculos, cujas dimensões e solidez não foram E 3. A "CONTROVÉRSIA" COMO HERANÇA E

suficientemente avaliadas por eles" (p. 91). Em seu entender, é pre-


ferível que, de forma mais modesta, embora mais segura, o ergono- Desse ponto de vista- ao assistir à jornada organizada em sua ho-
mista se sinta_como o principal responsável pelas "condições mate- menagem, em Aix-en-Provence, por F. Daniellou e Y. Schwartz, -,A.
riais do trabalho'' (p. 91) e situe sua ação "no patamar das estruturas Wisner teria ficado satisfeito: a última palavra sobre o ofício de ergo-
técnicas, econômicas e sociais que ele tenha identificado e estuda- nomista, com toda a evidência, ainda não foi dita. A esse respeito, eu
do, mas sobre as quais evitará de agir diretamente a fim de conferir gostaria de apresentar um único exemplo. Na obra que conservou os
a plena eficácia à sua ação próprià' (p. 91). Tal ação pode situar-se, traços dos debates dessa jornada, pode-se encontrar uma discussão
aliás, em "uma zona suficientemente crítica de modo que venha a entre J. Duraffourg e F. Daniellou, dois ergonomistas bastante repre-
modificar os sistemas de ordem superior" (p. 92). sentativos da segunda geração da ergonomia francófona. Trata- se
F. Daniellou analisou longamente os textos sutis em que a de um momento de um "debate de escolà' que ainda há de levar,
arte do ergonomista se refere às relações sociais (2004, p. 97). Ele certamente, muito tempo para ser esquecido no campo da análise do
considera que os ergonomistas estão, agora, "imersos no cotidiano" trabalho, considerada globalmente- incluindo a psicologia do tra-
desses sistemas de ordem superior e, "às vezes, conseguiram, aqui balho - justamente sobre o difícil problema referente ao lugar da
ou ali, fazer evoluir localmente a organização do trabalho para faci- ergonomia nas relações sociais. Vamos resumi-lo o máximo possí-
litar a saúde dos trabalhadores ou da empresà' (p. 98). Ainda nesse vel: J. Duraffourg relata que, em uma de suas intervenções, foi levado
aspecto, a herança wisneriana continua atuante, deixando um lugar a analisar a atividade de metalúrgicos expostos diretamente- con-
bem limitado ao dogmatismo. Ela se presta - no sentido pleno e trariando a legislação - ao calor irradiante de fornos que produzem
generoso do termo - à discussão. Melhor ainda, ela incentiva a dis- um carbureto de cálcio que sai acima de 200°. São evidentes os riscos
cussão justamente por não autorizar nenhum profetismo. Ao inte- para a saúde desses trabalhadores. A direção da empresa não admite
ressar-se, prioritáriamente, pelos limites da ação, A. Wisner parece tal risco por ter investido em máquinas que lhes permitem manter-
ter sempre como horizonte fazer recuar os limites do ofício de ergo- se à distância do calor. De acordo com ela, os trabalhadores não de-
nomista, aumentando concretamente o raio de ação dos profissio- vem ficar "na boca dos fornos': Apesar disso, eles estão aí. E eles estão
nais da ergonomia. De fato, ele é talvez, antes de tudo, um profissio- aí, não por masoquismo, afirma Duraffourg, mas para salvaguardar a
nal [homme de métier] (Schwartz, 2004). Eis o motivo pelo qual, em qualidade dos lingotes prejudicada pela utilização de um coque de
seu trabalho, as questões práticas nunca estão deslocadas, nem re- petróleo que, embora seja mais barato que o coque metalúrgico, dei-
solvidas no plano teórico. Elas conservam sempre esse cunho práti- xa os fornos mais sujos. Para que a corrente de lava se faça em con-
co, fazendo apelo a respostas práticas - por natureza, suscetíveis de formidade com as regras _do ofício, eles ficam na "boca do forno"
serem discutidas - à semelhança do que ocorre com todos os gestos com barras de ferro para limpá-lo corretamente das escórias, expon-
de ofícios. Nessa herança, existe algo que diz respeito a todos nós e do-se, nesse momento, ao fluxo do calor irradiante.
que se apoia no exercício de uma sabedoria prática. Sob a condição O diretor recusa-se terminantemente a levar em considera-
de considerar essa "sabedorià' em seu sentido pleno: não como uma ção o diagnóstico ergonômico que incide sobre os efeitos do tipo de
50 Primeira Parte- Uma herança em discussão Partir da ergonomia 51

coque utilizado na atividade dos operários. E isso em razão do fato rer de uma controvérsia referente ao ofício. Nessa matéria, o proble-
de que a decisão de usar coque de má qualidade nos fornos, não lhe ma abordado, como é perfeitamente perceptível, diz respeito a to-
diz respeito e está acima de seu nível de intervenção. Para ele, o dos aqueles que têm a profissão de analista do trabalho. E seria bem
comportamento dos operadores é que deve ser questionado. J. Du- esperto aquele que tivesse a pretensão de dizer a última palavra nes-
raffourg acaba por interpelá-lo: "Se não é o senhor que vai levar essa te diálogo profissional que é vital tanto para nossos ofícios, quanto
situação não só ao setor comercial encarregado de procurar os pre- para suscitar o interesse das gerações mais jovens. A essas vozes
ços mais baixos no mercado, mas também à diretoria do Grupo, conservadas no texto, seria possível acrescentar outras vozes e ou-
interessada nos resultados da contabilidade, quem irá assumir esse tras escolhas que viriam ampliar a polifonia da interlocução, além
papel?" (2004, p. 86). O trabalho do ergonomista deve esclarecer o de alimentar o plurilinguismo profissional do qual necessitamos
ponto de vista do trabalho real para consolidar uma capacidade de para mantermos o contato com o real.
interpelação dos dirigentes, evitando de "ficar zanzando, a contra- Poderíamos enfatizar, por exemplo, o argumento da ação
gosto;' (p. 87) entre a organização, a gestão ou o gerenciamento. Eis com e sobre o coletivo dos trabalhadores como meio de agir nessa
o que ele designa como a batalha do trabalho real, reivindicando situação ao evocar também, apoiando-nos no testemunho de J. Buet
para si a herança de A. Wisner. (2004, p. 100-103), que A. Wisner havia conseguido, tal como Ivar
Esse relato de J. Duraffourg suscita uma resposta de F. Da- Odonne, ir ao seu encontro para ampliar a comunidade científica.
niellou em nome da mesma herança. Em sua opinião, o conheci- Poderíamos, até mesmo, citar a homenagem que ele presta às orga-
mento da atividade é insuficiente: "Essa posição nunca foi assumida nizações sindicais por sua contribuição a essa ampliação (1995, p.
por Alain Wisner para quem, em hipótese alguma, a verdade das 11) ou, ainda, a resposta bastante firme dirigida a G. de Terssac que
análises seria suscetível de transformar a situação" (p. 89). E F. Da-
o havia criticado por ter "desertado o campo de batalha da organi-
niellou acrescenta: ''Atingimos o limite de nossas capacidades de
zação do trabalho" para "refugiar-se na concepção tecnológica''
intervenção sobre as situações de trabalho se acreditamos que basta
(1995, p. 8). Ele lhe evocava a contribuição ergonômica à crítica so-
fazer uma descrição adequada da atividade dos operadores do ateliê
cial do trabalho organizado um relatório - que se tornou clássico -
e dos operários e transmiti-la, como se fosse um pacote de presente
por encomenda do governo francês da época. Mas, ao multiplicar as
à diretoria'' (p. 88). Aprendemos com a antropotecnologia, prosse-
vozes, limitar-nos-íamos, então, a criar outros problemas sobre a
gue ele, que se deve "analisar o trabalho dos dirigentes, dos organi-
zadores e dos agentes de prevenção. Desse modo, diante desses en- concepção da ação, sem solução previsível e, até mesmo, ainda mais
carregados de estabelecer prescrições, somos levados a desenvolver complicados na situação atual do que outrora. Eles são vitais, obvia-
uma forma de benevolência - no mínimo, de neutralidade benevo- mente, para nossas disciplinas, além de que muitos já não podem
lente - para tentarmos compreender o motivo pelo qual eles são esperar muito para encontrar novas soluções. Mas, aqui, esse aspec-
assim tão bitolados. Parece-me que esse movimento é determinan- to tem pouca importância. Não é essa a questão no âmbito deste
te. Essa foi sempre a posição de Alain Wisner durante o período em capítulo. O essencial consiste em avaliar o quanto as lições de A.
que esteve no setor de estudos da empresa Renault" (p. 88). Wisner podem servir de recursos em perspectivas diferentes e au-
A obra não nos oferece a sequência dessa "discussão profis- torizar o desenvolvimento potencial do ofício de ergonomista. O
sional" entre nossos dois colegas ergonomistas. Vamos supor que patrimônio deixado por ele a todos aqueles que fazem análise do
houve continuidade - esse é, sobretudo, o nosso desejo -, agrade- trabalho, sejam eles ergorÍomistas ou psicológos, é um repertório de
cendo aos eqitores por nos terem dado acesso a esses momentos de ações possíveis, um teclado suscetível de ser tocado com a condição
diálogo. É bem raro que a leitura de um livro de homenagem nos de levar em consideração o fato de que temos de estendê-lo, desbas-
ofereça a oportunidade de ver uma herança reivindicada no decor- tá -lo e, até mesmo, voltar a concebê-lo, se necessário.
52 Primeira Parte- Uma herança em discussão Partir da ergonomia 53

Fixemos, talvez, essa meia confidência do ex-médico que se um dos raros textos em que ele próprio se situa no interior desse
tornou ergonomista: "Perdi a capacidade de curar D}eu próximo, domínio. Nossa disciplina e nossa Sociedade (a SFP), escreve ele,
tendo guardado um gosto bastante acentuado para mudar as coisas encontram-se no centro de uma grave contradição: "Não há, prova-
que atentam contra o bem-estar e a saúde. É assim que alguém se velmente, outro setor do conhecimento em que a mesma palavra
torna ergonomista, sobretudo se a análise social leva a considerar seja utilizada para designar, simultaneamente, uma arte e uma ciên-
que são, sobretudo, os trabalhadores, aqueles que são atingidos pe- cià' (1995, p. 104). Daí, sua recusa categórica em considerar a psi-
las medidas decididas por outros" (1995, p. 103). cologia do trabalho como ciência aplicada. O oposto é que deve ser
promovido: "O trabalho é um dos lugares de constituição da psico-
logia fundamental" (ibid., p. 105). Ele não pode ser um simples
~ 4. PARA AlÉM EXPERIMENTAUSMO • campo de aplicação ou de verificação de hipóteses, nem sequer, por
exemplo, um terreno de estudo para "revestir" alguns problemas de
Depois de ter sublinhado a vitalidade dessa herança para a ação, eu psicologia teórica. No trabalho, os operadores não fazem o que os
gostaria de fazer, agora, algumas observações sobre o que nos resta psicólogos designam como a "resolução de problemas" e com toda
dos ensinamentos de A. Wisner no plano científico; e, de saída, no- a razão: na realidade cotidiana, "em vez de se limitarem a resolver o
tando o fato de que, também nesse domínio, a "discussão" seria, problema, eles ainda têm previamente de construí-lo" (1995, p. 134).
sem dúvida, possível já que, em sua própria obra, se cruzam, se aju- Melhor ainda, "um número muito mais importante de erros e de
dam e se confrontam várias possibilidades de desenvolvimento. acidentes são mais bem explicados pelo conhecimento da maneira
Mas comecemos por insistir sobre o profissionalismo acadêmico de como os operadores constituem o problema do que pelas modali-
A. Wisner. Ainda como resposta a Terssac, depois de ter chamado a dades da própria resolução dos problemas" (ibid., p. 138).
atenção para o envolvimento social da ergonomia, ele sublinha Será possível reconhecer facilmente, aqui, a reviravolta que
como é importante que os ergonomistas não se tornem "propagan- conduzirá da psicologia cognitiva tradicional à ação situada 1 . Tal
distas dos sindicatos" (1995, p. 9). Melhor ainda, ele assinala até que mudança deixou, aliás, vestígios institucionais no Laboratoire de
ponto suas preocupações científicas são consistentes. Ele observa; physiologie du travail (Laboratório de Fisiologia do Trabalho) do
"O que escrevemos deve ter a possibilidade de ser lido, criticado e, CNAM -CNRS [Conservatoire National des Arts et Métiers I Conser-
de modo geral, aceito pela comunidade científica da qual fazemos vatório Nacional de Artes e Ofícios - Centre national de la recherche
parte, mesmo que, em determinados momentos, tivéssemos a im- scientifique I Centro Nacional da Pesquisa Científica], dirigido par
pressão de termos sido injustamente cerceados. Tal impressão se Scherrer, do qual ele fez parte até 1966, tendo chegado, inclusive, a
manifestou com frequência, mas, após algum tempo, acabei por ser seu codiretor: ''A separação entre cognição computacional e
pensar que essa comunidade não estava assim tão equivocada. Ir cognição situada, representada pela Analyse ergonomique du travail
mais longe, ser mais demonstrativo, apresentar provas mais convin- (Análise ergonômica do trabalho), provoca a divisão do Laboratoire
centes: eis o nosso ofício" (1995, p. 9). Assumindo o risco, acrescen- entre um laboratório CNRS de neurociências, dirigido por A. Ber-
tava ele, de inventar, "eventualmente, outros modos de administra- thoze e o Laboratoire d'ergonomie (Laboratório de ergonomia) do
ção da prova" (ibid., p. 9). CNAM, que não poderá constituir uma equipe CNRS porque este
último está longe demais, do ponto de vista epistemológico, das po-
No mínimo, é possível dizer que aquele que foi eleito presi-
sições centrais da comissão, na década de 1970-1980" (1999, p. 149).
dente da Société française de psychologie [Sociedade Francesa de
Psicologia] (SFP), em 16 de maio de 1981, tinha uma elevada con-
sideração por sua responsabilidade científica. Deve-se a ele uma 1 A tal ponto, aliás, que é difícil, às vezes, aceitar a ignorância das correntes moder-
visão esclarecida a respeito das tensões na psicologia, exposta em nas da ação situada a propósito da ergonomia francófona.
54 Primeira Parte- Uma herança em discussão 55
Partir da ergonomia

De fato, tendo-se apoiado em Bartlett (1995, p. 129), A. Wisner a respeito do que se passa na situação concretà' (ibid., p. 3). E acres-
nunca deixou de criticar a psicologia experimental: "E~ um grande centa: "Não se pode rejeitar nenhuma dessas abordagens. Vou pro-
número de casos, a experiência de laboratório tem sido concebida a por uma imagem: a realidade é tão multiforme que é impossível
partir de uma análise do trabalho bastante elementar e propõe uma segurá -la com um dedo; para isso, será necessário, no mínimo, uti-
atividade que é um modelo simplificado ou, até mesmo, arbitrário lizar dois e, provavelmente, três ou quatro. Somos levados, cada vez
da situação estudada" (1995, p. 81). E, ao descrever a atividade de mais, fatalmente a uma abordagem múltipla, mas essa questão é crí-
seu próprio laboratório no CNAM, ele tira as seguintes consequên- ticà' (ibid., p. 4).
cias: "Recusamos a experimentação em fisiologia e psicologia do
É que, ainda nesse aspecto, manifesta-se a lucidez de A. Wis-
trabalho se ela não é precedida por um estudo aprofundado das
ner: "Uma das razões das dificuldades atuais da ergonomia reside
atividades de trabalho" (1999, p. 147; 1995, p. 114-115).
na modéstia de reflexão teórica e epistemológica sobre nossa disci-
De fato, nosso autor poderia ter, sem dúvida, retomado por plinà' (1995, p. 141). E nosso autor sabia perfeitamento do que es-
sua conta a formulação de Canguilhem a propósito da fisiologia ex- tava falando. Com efeito, ele foi, sem dúvida, um dos primeiros e
perimental. Em situação de laboratório, são fixadas legitimamente
dos mais refinados experts dos estudos anglo-saxões que haviam
normas "anormais" para o ser vivo com o objetivo de estudá-lo. O
desencadeado a crise da psicologia cognitiva tradicional. Ele cons-
aspecto ilegítimo é que, em seguida, esquece-se a operação de anor-
tata acertadamente, com satisfação, que, na antropologia cognitiva
malidade que acaba de ser executada: ''As condições de exame no
situada de forma apropriada, "o operador já não aparece como o
laboratório colocam o ser vivo em uma situação patológica da qual
executante, mais ou menos falível, do trabalho prescrito, mas como
pretende-se, paradoxalmente, tirar conclusões que possam ser con-
o criador permanente da própria atividade que depende daquilo
sideradas como a norma(. .. ). O que é designado por fisiologia ex-
que o operador compreende da própria situação real de trabalho"
perimental nada é, evidentemente, além de uma verdadeira patolo-
(1995, p. 147). Desse modo, escreve ele: "pode parecer tentador,
gia artificial" (1984, p. 93).
nessas condições, atribuir o quadro teórico da antropologia cogni-
Portanto, ao ler Wisner, seria possível ter a expectativa de en-
tiva à análise ergonômica do trabalho" (ibid., p. 147). E, ainda, vai
contrar uma opção categórica em favor de um construtivismo radi-
mais além: "Consegui passar de um paradigma científico que tinha
cal. No entanto, com toda a evidência, à semelhança do que ocorre
deixado de me convir para outro paradigma, o da cognição situada:
no campo da ação, ele não tem medo das contradições, inclusive, no
seu valor, talvez, seja limitado, mas tem certa coerência e certa legi-
domínio propriamente científico. Trata-se de um verdadeiro pes-
timidade em razão de seu parentesco com a etnologia. Isso me deu
quisador. Ele não tem receio diante da hesitação e do paradoxo, em-
uma verdadeira satisfação porque eu não tinha a certeza de ser
penhado em promover tentativas em diferentes quadros teóricos,
bem-sucedido; ora, detesto criticar sem fazer uma nova propostà'
sempre com a segunda intenção da ação. Em seu diálogo, por exem-
(1995, p. 16).
plo, com B. Pavard, que lhe propõe romper com "o paradigma redu-
cionistà' para "empreender uma via mais etna-metodológica na
sequência dos estudos antropológicos" (1995, p. 4), A. Wisner indi- • 5. A TENTAÇÃO DA AÇÃO SITUADA •
ca com precisão, a propósito de sua Conferência de 1972, por oca-
siãodo congresso da Ergonomics Research Society(Sociedade de Pes- No entanto, não deixa de_ser impressionante constatar que, um pou-
quisa Ergonomica): "Em vez de rejeitar o método experimental, eu co à maneira como ele descrevia as tentações arriscadas de ampliar o
sempre afirmei a necessidade de uma relação dialética entre o estu- domínio prático da ergonomia, ele fala também da antropologia cog-
do de campo e a experimentação, mas no sentido de que o método nitiva como de uma tentação teórica discutível. Com toda a evidên-
experimental não podia partir da ideia imprecisa de um pesquisador cia, nosso autor sabe resistir às tentações e, por exemplo, aos estudos
56 Primeira Parte- Uma herança em discussão Partir da ergonomia 57

bastante influentes de Suchman, na década de 1990: se uma observa- p. 116-117). Da mesma maneira que um grande número de ergono-
ção pode ser feita, em seu entender, a propósito da pesquisa sobre os mistas, ele desconfiava, portanto, da psicologia e, muitas vezes com
fotocopiadores que haviam conferido a celebridade a essa pesquisa- toda a razão, quando a psicologia aborda o trabalho como um suporte
dora, é porque sua deliberação "em favor da etnometodologia de para a aplicação, sem considerá-lo como um obstáculo por si mesmo.
Garfinkel, levou-a a privilegiar o diálogo entre utilizadores em difi- No entanto, esses últimos textos ressoam como um apelo à
culdade, em vez de explorar, de maneira minuciosa, o comportamen- psicologia para apoiar o projeto antropotecnológico, ainda em seus
to de uma operadora e de confrontá -la com esse comportamento" primórdios. Ao inventário da antropotecnologia, "faz falta, em par-
(1995, p. 148). Nesse caso, trata-se, segundo suas próprias palavras, ticular, um programa de psicologia que permita compreender, por
"de uma negação da psicologia cognitiva em situação' (ibid., p. 130). um lado, como se faz a arbitragem individual dos conflitos, das res-
Afinal de contas, se a análise ergonômica do trabalho coincide trições e do saber; e, por outro, como essa arbitragem se transforma
com as preocupações da "ação situada'' no estudo dos mecanismos no decorrer do tempo" (1999, p. 151). Mas Wisner pensa em urna
cognitivos de constituição de problemas pelos operadores, ela se dis- certa psicologia ou, melhor ainda, em uma renovação da própria
tingue dessas preocupações em um ponto preciso: quando se trata de psicologia. Bem cedo, ele havia compreendido o que poderia tirar,
"identificar os obstáculos pragmáticos, os elementos da situação que como vantagem científica, da familiaridade com a obra de Vygotski
impedem a constituição e a resolução mais fácil do problema'' (ibid., lida, inicialmente, em inglês (1995, p. 152). Mas, foi em 1997, no
p. 148). Ou, dizendo com outras palavras: desde que se trate de com- artigo publicado na revista Travail humain (Trabalho humano) -
preender como desenvolver o poder de agir real dos trabalhadores intitulado "Aspects psychologiques de l'anthropotechnologie" (As-
sobre seu meio e sobre eles mesmos; desde que se trate de compreen- pectos psicológicos da antropotecnologia) - que ele abordou dire-
der o real como uma experiência penosa e não por um modelo. tamente esse problema. Depois de ter evocado a importância da
questão da "constituição dos problemas pelos operadores': ele ob-
serva: "Essas questões foram pouco tratadas na literatura psicológi-
• 6. ANTROPOTECNOlOGIA E PSICOLOGIA • ca, com exceção notória da obra de Vygotski" (1997, p. 233) .
Ao interessar-se, particularmente, pela linguagem na obra do
É nesse aspecto, creio eu, que é possível enraizar o interesse perma- psicólogo russo, ele faz, de passagem, comentários bastante estimu-
nente de A. Wisner pela psicopatologia do trabalho e, mais tarde, seu lantes sobre a linguagem do serniólogo M. Bakhtine, do ponto de
compromisso, nunca desmentido, com a psicodinâmica do trabalho, vista do trabalho. Mas, como bom ergonomista, ele sabe também
promovida por C. Dejours; apesar de ter considerado que "a metodo- que a ação é, às vezes, mais expressiva que as palavras; aliás, esse é o
logia utilizada para abordar o sofrimento em situação de trabalho é motivo pelo qual ele se interessa, então, de muito perto, pela abor-
distinta - inclusive, antagonista - da metodologia da análise ergonô- dagem da atividade proposta por Leontiev. Em seu entender, "ela
mica'' (1995, p. 125). Certamente, seus contatos com Le Guillant não permite avançar mais longe na compreensão das dificuldades en-
lhe permitiram chegar à cooperação, como teria sido seu desejo (1999, contradas pelos operadores em seu trabalho; se a situação é degra-
p. 148-149), mas as relações entre ergonomia e psicopatologia do tra- dada'' (ibid., p. 246). E isso por uma razão que o interessa muito e
balho lhe pareceram sempre indispensáveis para avaliar o trabalho que se refere ao árduo problema do desenvolvimento. Porque, em
real tal como ele é. Em relação a esse ponto, ele citava inclusive a anti- relação aos resultados em antropotecnologia, "esse desenvolvimen-
ga contribuição de S. Pacaud (1995, p. 5-6), além de desconfiar de to não é linear, nem direto, mas irregular e descontínuo, ou seja,
uma psicologia cognitiva desencarnada, displicente em relação ao cada uma das atividades dispõe também de uma história própria.
corpo, até mesmo quando ela era desenvolvida por pesquisadores Restos das antigas fases das atividades permanecem incluídos nas
que mereciam seu respeito, tais como Ombredane e Faverge (1995, novas fases que se desenvolvem; além disso, a análise histórica do
58 Primeira Parte- Uma herança em discussão

desenvolvimento é, muitas vezes, indispensável para ser capaz de


compreender a situação recente" (ibid., p. 247).
É essa mobilidade ou essa imobilização que atrai sua atenção
porque, escreve ele, "a ampliação do campo das ações é uma carac-
terística típica e fundamental do desenvolvimento humano" (ibid.,
p. 250). E, dessa feita, ele acrescenta: "Compreende-se que a compe-
Voltar às s
tência dos trabalhadores esteja bastante vinculada à sua capacidade L.
de trocar de registro, segundo as circunstâncias. Quanto mais vari-
áveis são essas circunstâncias, menos previsíveis são suas mudan-
ças, maior deve ser a capacidade dos trabalhadores( ... ), para que se
obtenha o resultado pretendido, de passar de uma operação prescri-
ta para uma ação situada diferentemente; e, até mesmo, aptos a re-
definir a atividade, reconstituindo a situação anterior por uma re-
paração, utilizando recursos desconhecidos do meio ambiente
(competências de outros trabalhadores, utilização ou empréstimo
de um material negligenciado (Langa, 1994), seja pela tentativa de
obter o resultado desejado criando uma nova atividade ou seja uti-
lizando eventualmente um antigo modo de ação" (ibid., p. 250-251). A propósito de Vygotski, é útil proceder, ainda atualmente, a algu-
Avalia-se perfeitamente o uso feito, aqui, por A. Wisner, dos proces- mas observações prévias 1 • Tendo-se tornado um alvo para o regime
sos de ligação-desligamento que são o centro de gravidade dessa stalinista, a psicologia de Vygotski foi, inicialmente, vítima na URSS
abordagem da atividade. do predomínio, sem partilha, do naturalismo pavloviano que redu-
Evidentemente, considero preciosos tais comentários sobre a zia toda a vida psicológica a um reflexo condicionado. A partir da
descendência possível dos estudos de Vygotski e Leontiev, em ma- década de 1960, a obra sai do recalcamento científico e social, mas
téria de análise ergonômica do trabalho; tanto mais que eles colo- continua sendo maltratada.
cam no centro a questão do desenvolvimento humano dos traba- Em 1962, MIT Press publica, em inglês, um resumo de Pen-
lhadores. Desse ponto de vista, não tenho a certeza de que a análise sée et langage (Pensamento e Linguagem). Do milhão de caracteres
proposta nesse artigo de 1997 seja, totalmente, compatível com o de sua edição original, a obra - Mind in society -passa a 350.000.
paradigma da ação situada (Béguin & Clot, 2004). Aliás, não estou Será necessário algum tempo para avaliar as graves falhas dessa edi-
certo, também, de que ela implique uma modificação mais substan- ção que, no entanto, não deixou de ser benfazeja. A primeira edição
cial dos métodos de análise do trabalho, à semelhança daquela que francesa, traduzida por F. Sêve e que se tornou uma referência, foi
ocorre com a autoconfrontação, apresentada por A. Wisner unica- publicada em 1985, posteriormente a um grande número de edi-
mente do ponto de vista de um melhor conhecimento possível do ções europeias. A Psychologie de l'art [Psicologia da arte], tese de
inconsciente cognitivo (1995, p. 145). Vygotski e, igualmente, obra importante, só foi publicada- também
graças a Éditions La Dispute - em 2005.
Mas, aqui, uma vez mais, isto pouco importa. Ficamos sur-
preendidos pela liberdade que Alain Wisner foi capaz de assumir
em relação à teoria pois que se tratava de fazer recuar os limites da 1
Este capítulo é uma versão ligeiramente modificada de um artigo publicado, em
ação possível. Ele nos vacinou contra o dogmatismo ao cultivar a 2006, no n. 170 da revista Sciences humaines; agradecemos a autorização para reprodu-
sabedoria da ação. zi -lo neste livro.
60 Primeira Parte- Uma herança em discussão Voltar às fontes 61

Maltratada, o reconhecimento dessa obra poderia efetiva- e desencarnada de uma inteligência, sem raízes corporais e sociais.
mente revelar-se cada vez mais útil no futuro (Schneuwly1
& Bron- Mas, de saída, Vygotski observa, igualmente, para além da situação.
ckart, 1985; Clot, 1999c; Vergnaud, 2000). No momento em que a Antes de mais nada, fonte da atividade individual, a situação social
psicologia se tornou uma verdadeira "potêncià' social, sem ter a torna-se recurso para essa atividade. Nesse movimento das fontes e
possibilidade de escapar a todos os "defeitos de fabricação" que dos recursos, a atividade individual se desenvolve na atividade so-
acompanharam seu surgimento, a inspiração vygotskiana constitui cial. Ela há de liberar-se das formas sociais da conduta, não as ne-
muito mais que uma força de advertência. De forma bastante curio-
gando, mas pela via de seu desenvolvimento. Com essa condição é
sa, sua difusão foi desordenada. Obviamente, ela é encontrada no
que a criança poderá empreender sua atividade própria em uma
campo da infância no qual é utilizada por numerosas equipes de
história diferente da sua, "dar sua contribuição" e vir a ser única em
pesquisas. Mas ela é, também, hoje em dia, atuante em psicologia
do trabalho ou em ergonomia. Do mesmo modo, o desenvolvimen- seu gênero. Do ponto de vista psicológico, o indivíduo se torna su-
to atual das neurociências tem fornecido respaldo aos resultados jeito quando começa a utilizar, a seu próprio respeito e à sua manei-
obtidos em neuropsicologia por A. Luria (1985, 1995), após a mor- ra, as formas de conduta que os outros haviam utilizado, anterior-
te de Vygotski: apesar de se revelar, cada vez mais, como um recur- mente, para com ele. Sozinho e de outro modo, ele faz o que havia
so insuspeito para o pensamento, o cérebro não é sua origem. Esta experimentado, em primeiro lugar, com os outros ao encontrar-se
se encontra no intercâmbio dos homens entre si. com eles "uma cabeça acima de si mesmo" em uma zona de desen-
Vygotski não teria ficado assustado diante da dispersão das volvimento potencial.
implicações empíricas de seu trabalho. Ele não estava minimamen-
te interessado em "criar uma escola ao lado das outras" (1999, p.
310). Sua única pretensão consistia em fazer psicologia tout court. .. 2. PARA ALÉM DO SOCIAL ..
Para ele, da criança ao adulto, a subjetividade, a sociedade e a cog-
nição estão ligadas ou desligadas na ação. Esta perspectiva histórico-desenvolvimentista - que se interessa,
antes de mais nada, pelas passagens entre atividade pessoal e ativi-
dade social, pela maneira como uma dessas atividades se converte
.. 1. NO SOCIAL. na outra - tem sido, muitas vezes, caricaturada. É ainda frequente,
por exemplo, encontrar apresentações do conceito de zona de de-
Sem dúvida, esse é o motivo pelo qual sua obra é, quase sempre, senvolvimento em que este se torna uma simples "implantação" na
considerada como uma reabilitação do papel do "social" no desen-
criança da experiência social, o exercício de uma tutela, transfor-
volvimento da criança. E de fato, diferentemente de Piaget - para
mando a obra de Vygotski em uma espécie de ortopedia cognitiva.
quem a criança aprende ao encontrar em si mesma os recursos para
Ao passo que para ele, a interiorização não se faz, justamente, do
agir sobre o mundo físico dos objetos materiais-, Vygotski consi-
dera que tais recursos lhe são fornecidos por suas relações com os exterior para o interior. Trata-se, também de uma recriação do ex-
outros; na interação atual com eles e na história longínqua que eles terior pelo interior. Como a emoção experimentada não é conteúdo
lhe transmitem graças às ferramentas de que se serve e à linguagem. em potência na técnica do artista, há também um devir imprevisí-
Em seu entender, não há pensamento sem destinatário e, na ação vel dos conceitos aprendidos no desenvolvimento subjetivo da
conjunta dos sujeitos sobre o mundo, esse pensamento é sempre criança. Da mesma maneira, quem trabalha não cessa, quando não
mediatizado pela linguagem e pela cultura. é impedido de agir, de reinventar as funções da ferramenta.
Nesse domínio, ele terá sido um precursor do que se designa, Portanto, para Vygotski, o social não explica a atividade pes-
atualmente, como a ação situada que se opõe à abordagem mentalista soal: esta se explica, certamente, com ele, mas nos dois sentidos do
62 Primeira Parte- Uma herança em discussão Voltar às fontes 63

termo. A indeterminação dos futuros em conflitos na vida social que a situação se apresenta sempre dessa forma? De fato, a super-
atravessa e circula na atividade pessoal, impelindo-a f se determi- compensação é apenas um dos dois desfechos possíveis desse pro-
nar. Dessa vez, ela não é apenas mediatizada pelos instrumentos cesso, um dos dois polos do desenvolvimento hipotecado pelo de-
sociais da linguagem, da ferramenta, da arte ou, ainda, pela ativida- feito" (p. 98). O polo oposto é a compensação fracassada que "se
de de outrem. Ela é mediatizante, operador vivo de re-criação. Em transforma, com a ajuda da doença, em defesa, em meta fictícia que
poucas palavras, história e desenvolvimento da sociedade em cada orienta toda a trajetória de vida no sentido do caminho equivoca-
sujeito. Com a sociedade, contra ela, para além dela. do': Factícia, ela é o resultado de um conflito no fim do qual o sujei-
Para Vygotski- e esse, talvez, seja o aspecto mais desconhe- to vencido se protege pela sua "fraquezà' (p. 250). A deficiência se
cido de sua obra -, o fracasso desse movimento é indicado pela torna, então, um handicap que o mantém prisioneiro. De fato, a
doença psíquica sob suas diversas formas. Na doença, a experiência "fraquezà' do sujeito não é fonte de "forçà' senão com esta condi-
vivida deixa de ser o meio de viver outras experiências. Encarcera- ção: se outra energia, diferente da sua, vier ao seu encontro; se, tam-
da, sedentária e desligada, a atividade imposta se torna intransfor- bém, junto aos outros, ele encontra "compensações" oferecidas pelo
mável. O sujeito já não dispõe de sua atividade, mas está à sua dis- mundo no qual se encontra envolvido. Tais recursos "auxiliares"
posição. A psicologia de Vygotski se dirige ao encontro dessa podem ser fonte de criação se os sujeitos "diminuídos" podem con-
ampt.Ltaçªo do poder de agir ou, mais precisamente, ao encontro viver com outros, mantendo "uma cabeça acima de si mesmos" para
das possibilidades insuspeitas pelos próprios sujeitos. construir possibilidades inexploradas.
A obra de Vygotski, intitulada Défectologie et déficience men-
tale ( 1994b) (Defeitologia e deficiência mental) é habitada pela pre-
• 3. A DEFICIÊNCIA ..
ocupação de evitar concretamente a metamorfose da deficiência em
Esse otimismo lúcido é o ponto de partida de seu trabalho junto às handicap. Na experimentação clínica e social a que ela se refere,
crianças deficientes, vivendo na miséria e no meio do turbilhão so- trata-se de enfrentar os riscos de ver as crianças deficientes perde-
cial da década de 1920, na Rússia. De início, uma observação clíni- rem o contato com as forças vivas da alteridade, subtraindo-se eles
ca: a deficiência ou o retardo mental não está destinada a se tornar mesmos à energia relaciona! do mundo social. Para enfrentar esse
um handicap. "É impossível, escreve ele em 1928, contestar a exis- risco, a psicologia não poderia limitar-se a ser um método de c;Q-
tência de processos de criação nas crianças com retardo mental. Es- nhecimento, mas devesei' um rriétodo de ação. E isso, para ela, é
ses processos são - nem tanto por seu resultado, mas no mínimo t.úna questão de vida ou de morte.
por seu desenvolvimento-, quase sempre, mais relevantes nas crian- Inclusive, é somente assim que ela pode ser, igualmente, um
ças com retardo que nas crianças normais" (1994, p. 74). É que o método de conhecimento. Se "é somente em movimen19 que um
homem é a sede de um potencial de energia e de forças ocultas, corpo mostra o que é" (Vygotski, 1978, p. 64-65), é apenas através
cujas reservas ficam à sua disposição contra o prejuízo sofrido, mui- de uma experiência de transformação que a atividade psicológica
to para além desse prejuízo. A "supercompensação'' é que dá à crian- pode revelar seus segredos. Ora, a única possibilidade de atingir tal
ça um destino diferente de uma intoxicação por sua deficiência. objetivo é pelos meios deslocados de um desenvolvimento "provo-
Vygotski, porém, não é ingênuo: a experiência histórica e so- cado". Portanto, o desenvcüvimento só pode ser objeto da psicologia
cial em que está envolvido não lhe permite tal veleidade. Seria errô- se ele é, também, seu método: um método que, para os sujeitos, seja
neo pensar que a luta do sujeito contra a doença seja sempre bem- o meio de descobrir suas capacidades ao se avaliarem diante do que
sucedida: "Se, com o defeito, fossem fornecidas também as forças eles fazem. Concebido, não para saber o que são, mas para experi-
que permitem superá-lo, qualquer defeito seria uma vantagem. Será mentar, com eles, o que poderiam vir a ser. Em vez de procurar a
64 Primeira Parte Uma herança em discussão Voltar às fontes 65

explicação do que é eterno, a psicologia de Vygotski tenta encontrar estender a superfície do contato social consigo mesmo, a arte pode,
as condições gerais mediante as quais se produz algo d~ novo. portanto, ser considerada, sem paradoxo, como o núcleo de um de-
senvolvimento potencial do inconsciente de cada um. Face a face com
irrealizado em cada um de nós, e servindo-se do não acabado fora de
• 4. OS AFETOS E O INCONSCIENTE • nós, a arte organiza um devir do inconsciente. Ela não deriva de um
inconsciente já dado. Ele produz recriando-o. A arte só é um recurso
Não será surpreendente, portanto, que nosso autor tenha "ingressa- para o inconsciente ao tornar-se sua fonte. Os conflitos inconscientes
do na psicologia" pela arte, ou seja, o próprio campo da criação. Sua podem, portanto, ter outras origens além dos conflitos da infância.
tese de 1925, Psicologia da arte, é uma espécie de banco de ensaio Assim, compreende-se melhor as razões da atitude contrastada de
para suas hipóteses gerais. Para ele, a forma artística encobre um Vygotski relativamente a Freud, ou seja, dividido entre uma admira-
princípio social ativo; ela contém procedimentos que, à sua revelia, ção nunca desmentida e um profundo desacordo.
agem sobre o sujeito. Mais do que representar algo, ela faz. Ela nos
Na primeira fila das convergências entre eles, encontra-se a
"leva em frente" já que, nesse momento, somos orientados por lógi-
ideia de que a arte mobiliza as energias inconscientes do homem. Em
cas artísticas que, para nós, permanecem inacessíveis diretamente.
relação a divergências, o primeiro lugar é ocupado por aquela segun-
Vygotski empenha-se em identificar os estratagemas psicológicos
do a qual tais energias seriam exclusivamente as da infância. Para
habilmente dissimulados na própria organização do material e des-
Vygotski, a energia inconsciente não tem origem fixa. Ela é policêntri-
tinados a provocar um verdadeiro trabalho do sentimento, uma
ca. Diferentemente de Freud, que transforma a arte em uma tela em
modificação estética do afeto. A arte é um transformador das ener-
que se projetam os conflitos infantis e uma sublimação pacificadora
gias inconscientes porque o trabalho artístico aprendeu a servir-se
desses conflitos, Vygotski não considera a arte como um produto de-
dos afetos no próprio material onde está sempre depositado o "ve-
rivado do inconsciente em que este viesse a descarregar-se. Ele o vê, ao
neno sutil" de sentimentos dissociados. Ela não permite somente a
contrário, como o produtor de outros conflitos inconscientes que de-
expressão dos afetos. Ela não é seu exutório. As obras literárias ana-
senvolvem os primeiros. Para ele, a arte não libera a energia psíquica
lisadas por Vygotski formam outros tantos instrumentos psicológi-
inconsciente para o alto em direção aos valores superiores da cultura,
cos para metamorfosear as emoções do leitor. Longe de limitar-se a
mas a encaminha para baixo no trabalho real dos afetos. Ele descreve
simular, para o sujeito, o campo de batalha em que podem reprodu-
a função psicológica da arte como uma técnica social de controvérsia
zir-se as antigas guerras de seu passado, o conflito dos sentimentos
entre os afetos. Desse modo, "social em nós" (2005, p. 346), a arte é um
na experiência artística nos permite imaginar outro destino para
exercício para nossas emoções. Graças à "disputà' dos sentimentos,
nossos afetos e nossas paixões. Tem-se a transformação de nossos
orquestrada por ela para aproximar-se- e não para se afastar- do real
afetos em um meio de viver outros afetos. A arte confere, então,
dos afetos, ela procura refundi-los. Trata-se de uma técnica social para
forma ao inacabado. Eis o que explica a poderosa atração que ela
estimular os afetos. Essa é a razão por que Vygotski poderia ter escrito,
exerce sobre nós, inclusive, correndo o risco de nos fazer existir por
parafraseando Spinoza, que é somente em movimento que o incons-
procuração, vivendo acima de nossos meios, do ponto de vista psi-
ciente mostra o que ele é (Clot, 2003a; 2006b).
cológico, a crédito.
Desse modo, as obras de arte se apoderam do inconsciente do
sujeito com a ajuda de procedimentos que, por sua vez, são incons- m 5. A HISTÓRIA m

cientes, embora de natureza social. Elas acabam acarretando outros


conflitos, independentes dos avatares da história pessoal de cada um. Finalmente, a história é a palavra-mestre da obra de Vygotski. Ao
A história da arte é a de um instrumento cultural de ação sobre si. Ao falar dos pontos cegos de seu ofício, F. Braudel observava que, na
66 Primeira Parte- Uma herança em discussão

primeira abordagem, o historiador apercebe-se do acervo dos acon-


tecimentos vencedores na rivalidade da vida; no entanto, tais esco-
'
lhas acabam por nos privar das outras possibilidades (1969, p. 125).
Qual não teria sido sua surpresa ler no texto de um psicólogo, como
Vygotski, que "o homem está repleto, em cada instante, de possibi-
lidades não realizadas" e que o comportamento observado se limita ompreender o
sempre ao "sistema das reações vencedoras" (2003, p. 74-76). A pri-
L. il
meira abordagem do psicólogo é também um erro. No entanto, tan-
to para o historiador, quanto para o psicólogo, o que é afastado,
nem por isso ~ abolido e continua agindo na história presente e por
vir. Eis por que, para Vygotski, a história não é o passado. É, sim, a
transformação do passado em devir ou o fracasso dessa transfor-
mação. Aliás, ele apreciava citar Spinoza: ''Até aqui, de fato, nin-
guém conseguiu determinar a capacidade do corpo" (2005). Esse é,
talvez, o centro de gravidade da obra de Vygotski.

É totalmente impossível pensar em uma clínica do trabalho sem a


contribuição de uma psicopatologia do trabalho 1• Na França, após
uma primeira criação dessa corrente disciplinar, muitíssimo bem
estudada por Isabelle Billiard (2000, 2001) e que se beneficiou do
importante contributo de Le Guillant - entre outros especialistas e
em controvérsia com eles (Sivadon, 1952; Tosquelles, 1967; Veil,
1999) -a obra de C. Dejours culminou na proposição de designar
esse campo de análise pelo nome de psicodinâmica do trabalho. A
contribuição de Le Guillant tem sido frequentemente mobilizada
no âmbito dessa última perspectiva (Dejours, 2000; Molinier, 2005,
2006). Mas a psicodinâmica do trabalho se distancia bastante dessa
herança da década de 1950 (Molinier, 2006). Ao transformar a psi-
canálise em sua principal referência em psicopatologia do trabalho,
a concepção - agora, clássica - de C. Dejours empreende uma
orientação diferente da abordagem preconizada por Le Guillant.

1
Esse texto extrai sua matéria-prima do "Prefácio'; redigido em 2006, para a nova
edição dos textos de L. Le Guillant, publicada na coleção Clinique du travail, Editora
Éres, com o título Le drame humain du travail [O drama humano do trabalho]. Agra-
deço ao editor por sua amável autorização no sentido de retomar, aqui, uma parte
desse "Prefácio".
68 Primeira Parte- Uma herança em discussão Compreender o drama 69

Aliás, sem grande dificuldade, pode-se compreender o itine- nunca tenha formulado sua reflexão dessa maneira, em seu enten-
rário que vai da psicopatologia do trabalho à psicodinâmica do tra- der, é o cuidado dispensado a essa transformação real do trabalho
I
balho. Ele tem seus títulos de nobreza. Pode-se também discuti-lo que constitui a melhor garantia para a saúde mental dos trabalhado-
(Le Blanc, 2004). Já o fizemos em várias oportunidades (Clot, 1995, res. Pelo que parece, ele nunca chegou a esquecer uma experiência
1999a, 2001b), na perspectiva de outro horizonte possível em clíni- que havia feito em psiquiatria: na situação transformada pela guerra,
ca do trabalho, a saber: o de uma clínica da atividade na tradição ele havia acompanhado um grande número de doentes mentais do
vygotskiana. Hospital de La Charité-sur-Loire (região da Borgonha); com efeito,
Ao inscrever seu trabalho no campo da análise psicológica do ele estava encarregado de retirá -los deste estabelecimento a fim de
que eles viessem a escapar aos bombardeios. Assim, fora do hospital,
trabalho, como é o meu caso, as indicações de Le Guillant são pre-
ele pôde verificar que, nas experiências penosas coletivas da vida
ciosas. Ele nos adverte contra uma psicologia do trabalho positivis-
cotidiana, eles demonstravam uma "surpreendente adaptação so-
ta, demasiado disseminada na tradição anglo-saxã de psicologia
cial': Em seguida, a internação deixou de ser justificada para um
industrial. Para ele, essa psicologia não deve ser paralisada por um bom número desses pacientes. Dessa constatação, ele tirou uma li-
objetivismo hábil e prudente, nem perder-se nas areias movediças ção que compartilhou com Tosquelles: convém cuidar da instituição
da erudição (1952, p. 89-92). Ao redigir o "Prefácio" para apresen- para cuidar melhor dos pacientes. Essa é, sem dúvida, a razão pela
tar a tese de J. Begoin, em 1958, ele insiste sobre a ação. De acordo qual, nas discussões sobre a ergoterapia, ele defenderá sempre o tra-
com ele, essa última deve inclusive deixar de ser o apanágio do psi- balho "real': privilegiando as experiências de oficinas no exterior do
quiatra ou do psicossociólogo: de fato, o essencial é a elucidação das hospital, relativamente às abordagens focalizadas na internação que
situações pelos próprios trabalhadores. E, desse modo, a fim de su- correm o risco, em sua opinião, de impor aos pacientes uma espécie
blinhar o melhor possível seu cuidado com a transformação do tra- de ortopedia institucional. Suas escolhas são orientadas sempre pela
balho, ele escreve a expressão "psicologia-do-trabalho" com traços "reabilitação social do trabalhador" (Billiard, 2001, p. 126-129; San-
de união, os quais exprimem, perfeitamente, a escolha de Le tiago-Delefosse, 1998; Torrente, 2005).
Guillant: antes das pessoas, é precisamente do trabalho que se deve Desse modo, na psicopatologia do trabalho, trata-se de, em vez
"cuidar': em todos os sentidos do termo (Le Guillant, 1998; Trad. de elaborar o quadro clínico ou de estabelecer a nosologia dos respec-
Bras .. Le Guillant, 2006, "O trabalho e a fadigà: p.218-241). tivos distúrbios seja dos radiotelegrafistas, das empregadas domésti-
Com efeito, para ele, está fora de questão confundir a nocivi- cas, das telefonistas, dos mecanografistas ou, ainda, dos condutores
dade do trabalho com uma "doença profissional" específica a deter- de trem, promover uma nova clínica respaldada em cada situação
minado ofício e que, além disso, tivesse de ser "reconhecidà' em concreta a ser transformada. Essa posição é bastante original e afas-
uma nosografia. A "síndrome subjetiva comum da fadiga nervosà' ta-o consideravelmente das preocupações relativas à profilaxia social
designa todas "as doenças da produtividade': cuja fonte é a intensifi- que têm levado outros psiquiatras- tais como P. Sivadon e C. Veil- a
cação do trabalho. Em companhia de Bégoin, por exemplo, ele de- reunir-se em torno de Ligue d'hygiêne mentale (Liga de Higiene Men-
tal) (Torrente, 2005). De preferência, ela o aproxima da tradição ergo-
fende a ideia de que o "nervosismo" das telefonistas é, paradoxal-
nômica francófona, desenvolvida por A. Wisner, embora esse encon-
mente, uma doença necessária para a realização de suas tarefas
tro, na realidade, nunca tenha ocorrido (Wisner, 1999, p. 149).
profissionais. Esse nervosismo pessoal permite que elas estejam "ap-
tas" a acompanhar a intensificação do trabalho anormal; portanto, a
preocupação predominante deLe Guillant é a transformação do tra- • 1. A HETEROGENEIDADE COMO HERANÇA •
balho taylorizado, em plena expansão na época. Compreende-se,
então, o motivo pelo qual nosso autor inscreve a psicopatologia do Convém não dissimular que tal postura clínica, alimentada por
trabalho em uma psicopatologia social mais ampla. Mesmo que uma duradoura suspeição relativamente à psicanálise - apesar de
Compreender o drama 71
70 Primeira Parte- Uma herança em discussão

um interesse nunca desmentido - pode ser considerada como uma condições de trabalho mais intoleráveis, e as cadências mais infer-
concepção "sociogenéticà' da doença mental (Billiard? 2001, p. 125). nais" (2006, p. 118). Esse último comentário, válido para o caso de
Ou melhor, ela pode levar a crer que, na abordagem de Le Guillant, Marie L., encontra-se no artigo sobre as telefonistas* publicado no
se verifique a atenuação da dimensão da alienação propriamente mesmo período; aliás, teria sido possível classificá -lo na categoria
dos textos "sociogenéticos" de Le Guillant. Em seu entender, na me-
subjetiva, assim como a dissolução da dimensão pessoal na moldu-
dida em que as condições de um trabalho "degradado" se inserem
ra social (Doray, 1999, p. 168). E é verdade que sua insistência sobre
em um conflito mais amplo, agravando-o e levando-o a um ponto
a alienação social, associada a seu compromisso, bastante arriscado,
intolerável, é que elas dispõem, ou não, do poder de engendrar dis-
em relação à "cruzadà' pavloviana do período stalinista, sinaliza o
túrbios mentais.
caráter heterogêneo de sua obra.
No entanto, estou convencido de que convém evitar as sim-
plificações na interpretação de seu trabalho quando, afinal, ele nos ,. 2. RESSENTIMENTO E CONDIÇÃO SOCIAl ..
impele a ceder a essa tentação. Vejamos dois exemplos. Em 1957, ele
publica Histoire de Mme L*. história de caso que dá testemunho de É que, de fato, uma hipótese serve de suporte - sem dúvida, de for-
uma rara atenção à subjetividade. Esse texto é redigido na mesma ma bastante subterrânea - ao edifício da psicopatologia do trabalho
época do "Prefácio" da tese de Bégoin. Em certo sentido, ele descre- de nosso autor: trata-se da hipótese do ressentimento. Penso que
ve a "síndrome subjetiva comum da fadiga nervosà' a partir do "in- essa formulação deve ser levada bem a sério, ou seja, como um con-
terior", do ponto de vista de uma história irredutivelmente singular. ceito central que estabelece a ligação entre as diferentes peças do
"O caso de Marie C' constitui um excelente exemplo de que, sob a quebra-cabeça desta obra. Ao pensar em Nietzsche, embora citando
imposição de determinadas condições de trabalho, uma pessoa aca- É. Littré** Le Guillant define o ressentimento desta forma: "No de-
ba ficando "nervosà' para conseguir realizar sua tarefa. E, no entan- correr da história, seu sentido se deslocou, lentamente, de tudo o
to, raramente como nesse texto, Le Guillant terá dado provas de que era ação de ressentir para limitar-se a designar a lembrança dos
tamanha sensibilidade clínica, aliás, uma das características que ele ultrajes e não a dos favores" (2006, p. 51). Essa "contabilidade do
desenvolve, de forma especial, na esteira da grande tradição france- dado e do recebido" inscreve-se na dramaturgia subjetiva de uma
sa na área da medicina. Com uma impressionante precisão, ele incapacidade para agir. O ressentimento corresponde a sentimen-
mostra como Marie L. "complica sua vidà' ao envolver-se de forma tos desiludidos, a expectativas malogradas sem reparação imaginá-
desmesurada em sua tarefa. Ele descreve o quadro do "frenesi quase vel. A propósito das empregadas domésticas, Le Guillant escreve
maníaco" (Doray, 1999, p. 173) com que ela defende sua "concepção que "do grau de distância e de contradição entre suas condutas de
do mundo': no decorrer de toda a sua decepcionante vida. Nesse as- vida no passado e no presente - da forma correlativa dos conflitos
pecto, não existe nenhuma causalidade linear para garantir o encade- daí resultantes- é que o distúrbio vai surgir" (2006, p. 72). E, para
amento entre o psíquico e o social. Pelo contrário. "Estabelece-se uma além disso, da diferença entre a vida projetada - aquela que é pro-
relação dialética entre fatores psicológicos e fadiga nervosa. Essa dra- metida ou que alguém almeja- e os desmentidos do real. Para con-
matiza as contradições e os conflitos, as dificuldades, os temores e os cluir sua apresentação sobre as empregadas domésticas, nosso autor
descontentamentos, no plano tanto da vida pessoal, quanto da vida apropria-se do conceito de drama preconizado por G. Politzer, para
de trabalho. Em compensação, todos esses ingredientes tornam as
* Cf. Le Guillant. op. cit., 2006, "A neurose das telefonistas", p. 175-188. (N.T.)
** É. Littré, lexicógrafo francês (1801-1881), conhecido sobretudo por seu monu-
* Cf. Le Guillant. Escritos. (organizado por Maria Elizabeth Antunes Lima). Petropó-
mental Dicionário da língua francesa (4 vols. e 1 supl.). (N.T.)
c:
lis, Vozes, 2006, "O caso de Marie p. 331-348. (N.T.)
72 Primeira Parte- Uma herança em discussão Compreender o drama 73

quem, a significação do termo é cênica sem ressonâncias "dramáti- tribuição. Compreende-se, então, que Le Guillant não deixe de su-
cas" particulares. Assim, da dramaturgia teatral, ela adota o que se blinhar até que ponto a causalidade psíquica é desconcertante: "O
I
refere à ação (Politzer, 1968, p. 250). Mas, Le Guillant vai propor problema mais central e mais difícil de nossa disciplina é a passa-
que seja restituída à palavra sua "significação emotiva'' para a psico- gem de uma situação vivida, seja ela qual for, para um distúrbio
patologia do trabalho, com os seguintes termos: "O distúrbio men- mental" (2006, p. 70).
tal afigura-se-me, pessoalmente, como a própria expressão do dra- No· estudo do ofício das empregadas domésticas, justamente,
ma humano, considerado em sua acepção familiar. E a condição de a submissão - relacionada com a ofensa e a humilhação - é conside-
minhas empregadas domésticas é apenas um rosto desse drama, rada não como a aceitação da situação, mas como a forma invertida
rosto que nos pareceu particularmente expressivo e que, talvez, te- de uma incapacidade para agir. Estamos em 1963 e, na passividade
nha sido percebido pelos senhores, através deste nosso estudo" de uma conduta, Le Guillant identifica um ato psíquico defensivo.
(2006, p. 89). Assim, ele se distancia da obsoleta noção de uma patologia conside-
O ressentimento é um drama da diferença, uma dissociação. rada como agressão que, desferida do exterior, atinge um sujeito de-
É a experiência penosa vivida por todos os "deslocados" e "trans- sarmado e inocente. Na patologia, existe, efetivamente, uma criação
plantados" da existência. É a experiência sofrida em silêncio, tecida subjetiva da qual o ódio faz parte. Mas, trata-se de uma criação mór-
com sentimentos contrariados, encarcerados na existência atual: o bida que confina o sujeito na labuta sem fim das tarefas fictícias.
drama humano do trabalho lhe confere toda a sua amplitude. Com Assim, inspirando-se em S. Weil, ele chega a escrever que, no traba-
efeito, o ressentimento é, afinal de contas, uma espécie de rumina- lho, a tentação de "deixar de pensar" pode tornar-se invencível "por
ção dos sentimentos latentes, exacerbados pelas humilhações e pela ser esse o único meio de evitar o sofrimento" (2006, p. 166). E, inclu-
injustiça da situação presente. Ele poderia ser definido como uma sive, ele avança mais longe já que, ao evocar a "dialética da ofensa e
retomada dos sentimentos, como um sentimento sobre sentimen- da humilhação" nesse estudo sobre as empregadas domésticas, toma
tos, ao mesmo tempo, ativados e intransformáveis. E, quando o afe- de empréstimo a Diderot, pela mediação de Hegel, algumas refle-
to só pode realizar-se em sentimentos opostos!, os sujeitos são, nes- xões sobre a servidão - aparentemente, voluntária - constatada no
se caso, amputados de seu poder de agir sobre seu meio profissional mundo do trabalho: o sobrinho de Rameau* "humilha-se e dissimu-
por intermédio de sua própria história. Não tendo conseguido rea- la a baixa condição, mas em tal depravação encontra uma oportuni-
lizar-se, esta, desligada de sua atividade psíquica presente, só pode dade de afirmar sua dignidade". Acontece que, acrescenta ele, "mal se
entrar por efração. Um mundo subjetivo, individual e coletivo pe- manifesta, essa dignidade revela-se irrisória a si mesma'' (p. 81). Di-
trificado interpõe-se, portanto, entre os sujeitos e seus contextos de ficilmente, seria possível explicitar melhor a contribuição assumida
existência atuais. A impossibilidade de transformar sua experiência pelos sujeitos nos dramas da própria história.
vivida em meio de viver outra experiência revela-se, então, fre-
Vejamos um segundo exemplo que, igualmente, impede de
quentemente, como desrealizante. Assim, descobrem-se prisionei-
simplificar a obra de Le Guillant. Ele põe em prática, efetivamente,
ros de uma existência vivida, mas "supérflua'' para viver na situação
uma clínica atenta às condições sociais do trabalho a fim de que,
presente, situação para a qual devem, apesar de tudo, dar sua con-

* No original, Le Neveu de Rameau, romance satírico de Diderot (1713-1784)- um
1
Sobre esses movimentos psíquicos, podemos consultar, com muito proveito, o livro dos mais ardentes defensores das ideias filosóficas do século XVIII- publicado postu-
publicado rece~temente, em francês, de L. Vygotski (2005). O autor mostra como a mamente, em 1821. Trata-se de um diálogo entre "Eu", filósofo racionalista e sensato, e
arte é precisamente o campo de trabalho desse gênero de oposições às quais ela pode "Ele': parasita boêmio e cínico, sobrinho de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), com-
fornecer um destino diferente. positor e um dos maiores representantes da música clássica, na França. (N.T.)
74 Primeira Parte- Uma herança em discussão Compreender o drama 75

nessas circunstâncias, sejam detectados conflitos objetivos, cujas frustração, de modo que a impossibilidade de identificação engen-
manifestações psicopatológicas constituem outras ta~tas expressões dra o ódio, assim corno a angústia do ódio" (2006, p. 67) 1•
dramatizadas. Desse ponto de vista, o trabalho é urna relação social
que define condições de subordinação a serem encontradas, obriga-
toriamente, inclusive na intimidade da vivência subjetiva. Urna ideia m 3. DELE GUillANT A TOSQUELLES: A ATIVIDADE a

importante é, então, proposta: a do trabalho corno condição, corno


Será que, então, se deve concluir que, na herança de Le Guillant,
Gestalt. Ainda, nesse aspecto, é possível cometer exageros. Com efei-
não há nada suscetível de ser criticado? Não creio. E, justamente,
to, sua concepção não é estritamente determinista. Com efeito, não é
para encerrar esta apresentação, eu gostaria de formular duas ques-
a condição social que é a patogênica em si, mesmo que ela possa tor-
tões que, em meu entender, são bastante decisivas para alimentar
nar-se isso por si. São, sobretudo, suas discordâncias, os conflitos que
nossa ação e nossa conceitualização. A primeira já foi objeto das
ela contém e impõe ao sujeito. Ela não é um contexto amorfo. De
reflexões de Isabelle Billiard: à semelhança dos outros psiquiatras
fato, ela submete os sujeitos a dissociações sociais ou a rupturas que
da tradição da psicopatologia do trabalho - embora, talvez, ainda
são outras tantas experiências penosas no decorrer das quais a rea-
mais do que outros especialistas-, nosso autor se deparou, sem dú-
lização de si é, simultaneamente, oferecida e recusada. vida, com as difíceis questões de urna conceitualização da atividade
Assim, a propósito dos jovens e da delinquência, ele escreve, as quais não haviam sido, de modo algum, resolvidas no âmbito da
em 1961, o que é certamente um de seus textos mais importantes tradição ergonôrnica em que, aliás, a noção de atividade é, no en-
para compreender seu projeto de psicopatologia social. Nesse estu- tanto, amplamente utilizada. Nesse aspecto, e mais do que em Le
do, descobre-se urna abordagem, bastante particular, da "condição Guillant, será possível encontrar em Daurnézon e Tosquelles as in-
social" segundo a qual o social, em vez de urna coerção diretamente dicações estratégicas que poderiam ter conduzido a urna evolução
deletéria, é considerado corno urna fonte de conflitos: "Verificou-se bastante diferente da psicopatologia do trabalho. Em um texto de
a fragmentação dos universos - outrora, bastante limitados, confi- 1948, por ocasião de debates sobre a prática psiquiátrica e o traba-
nados e coerentes - em que vivia a maior parte dos jovens. Eles se lho, G. Daurnézon havia proposto a substituição da pesquisa clínica
abriram para um mundo de controvérsias e conflitos, de questões tradicional dos sinais de alienação por urna "clínica das atividades"
sem respostas, de tentações insatisfeitas e de promessas não cum- a fim de abordar - "de maneira dinâmica, no decorrer de condutas
pridas" (2006, p. 213). No mínimo, podemos dizer que, tendo sido que, por si mesmas, dispõem de um dinamismo curador" - o com-
escritas há mais de quarenta anos, essas linhas não se tornaram ob- portamento dos sujeitos confiados a seus cuidados (Daurnézon,
sol~tas e continuam sendo válidas, muito para além do mundo da 1948, p. 241). Confesso que a descoberta deste texto, graças a L
juventude, para o mundo do trabalho em todos os seus aspectos. Billiard, foi para mim um verdadeiro acontecimento. Aqui, a ativi-
Considerada dessa forma, a condição é irredutível a um molde so- dade de trabalho era considerada, não só corno um objeto de análi-
cial. Apesar de ser efetivamente um obstáculo, ela é também algo de se, mas corno um meio de ação.
inacabado, aberta à dinâmica das paixões e da ação, além de fonte Essa orientação, desvencilhada de urna preocupação ergote-
de contradições psíquicas, cujo destino é imprevisível. Para as pró- rapêutica, por demais restrita, e renovada em contato com a tradi-
prias empregadas domésticas, "a dialética do senhor e do escravo es- ção vygotskiana na área da psicologia, abre reais perspectivas. Ela já
tabelece um drama pessoal, mais obscuro e mais profundo, urna con-
tradição geral. Não só o ressentimento é urna resposta à humilhação 1
Ao sublinhar a diferença de análise entre Lacan et Le Guillant, relativamente ao
e à injustiça, mas também a admiração e a atração fazem apelo à in- caso das irmãs Papin, P. Molinier detectou perfeitamente o lugar de A. Memmi (1985)
veja e ao ciúme; aos sentimentos naturais desiludidos, segue-se a na elaboração deLe Guillant sobre o problema da condição social (Molinier, 2005).
76 Primeira Parte- Uma herança em discussão Compreender o drama 77

havia permitido inscrever, em uma história anterior, o que, desde quelles, nessa Ergologia 1 que, em seu entender, seria capaz de
1997 e sem ter conhecimento desse texto de Daumézon I
de 1948, eu superar a "verdadeira insuficiência da elaboração dos conceitos
designava pela expressão "clínica da atividade" na psicologia do tra- fundamentais da ergoterapia'' (1967, p. 42). Falando do trabalho
balho. Mas, além disso, o problema da atividade já havia sido abor- como um processo de humanização do homem que se articula na
dado em profundidade por F. Tosquelles. Este procurou conferir os atividade humana e se manifesta como fracasso na doença mental,
títulos de nobreza à ergoterapia, justamente, ao criticar uma con- ele fornecia as seguintes precisões: "O trabalho comporta, por um
cepção fetichista da atividade. Permitam-me que faça citações um lado, tipos particulares de corte, divisão, partilha e distribuição de
pouco mais longas. Há um risco, escreve ele, "de que venha a intro- tarefas, entre parceiros presentes e ausentes. Por outro, o trabalho
duzir-se sorrateiramente por trás da simpática palavra 'atividade: faz surgir conflitos, fornece-lhes a oportunidade de uma manifesta-
uma distorção e um contrassenso bastante grave (... ). Com efeito, ção socializada e passível de se exprimir, além de constituir por si
deve-se evitar a confusão entre o conceito de atividade e a simples mesmo um terceiro mediador indispensável à evolução, à supera-
utilização de movimentos, até mesmo, de esforços consentidos de ção e às mudanças de planos em que tais conflitos podem enraizar-
aplicação e de persistência, por submissão ao desejo do mestre-es- se e manifestar-se" (p. 46). Assim - e, talvez, este seja o principal
cola ou do contramestre (... ). 'Atividade' significa atividade própria, contributo de Tosquelles se o comparamos ao de Le Guillant - a
cuja origem e enraizamento se encontram no sujeito ativo para de- atividade, em vez de limitar-se a ser um objeto de estudo, torna-se
um instrumento clínico decisivo: "Não se trata de fazer trabalhar os
sabrochar, no momento oportuno, em um contexto social" (Tos-
pacientes para que seja atenuado este ou aquele sintoma. Trata-se
quelles, 1967, p. 16). Ao tirar a conclusão de que a "simples azáfa-
de dar trabalho aos pacientes e ao pessoal encarregado dos trata-
ma'' aparente não é, forçosamente, sinônimo de atividade
mentos, para cuidar da instituição: para que esta e o pessoal encar-
psicológica, Tosquelles adverte-nos, de forma bastante elucidativa,
regado dos tratamentos captem, da forma mais natural possível,
contra as "concepções míopes do trabalho enquanto exercício mus-
que os pacientes são seres humanos e continuam sendo responsá-
cular ou, até mesmo, enquanto produção de objetos" (1967, p. 41).
veis pelo que fazem, o que só pode ser colocado em evidência com
E pensamos também em C. Veil que não hesitava, "para anular de
a condição de fazer algo" (p. 41). Aqui, a clínica é ação e não apenas
forma mais fundamentada certas concepções demasiado simplis- quadro. De bom grado, eu diria, para parafrasear Tosquelles, que se
tas': em fazer apelo a Marx: ''A relação do homem com ele próprio trata também, na clínica do trabalho, de dar trabalho aos nossos
só se torna objetiva e real por meio de suas relações com os outros interlocutores para "cuidar" do trabalho a fim de que a organização
homens" (Veil, 1999, p. 18). Compreende-se melhor, nesse caso, o venha a apreender, da forma mais natural possível, que eles são se-
motivo pelo qual a atividade realizada nos objetos não tem o mono- res humanos continuamente responsáveis pelo que fazem, o que só
pólio do real da atividade: ela é sempre endereçada, incluindo o pode ser colocado em evidência com a condição de fazer com eles
possível e o impossível, no plano tanto social quanto subjetivo. As- algo diferente do que fazem habitualmente, com a condição de tor-
sim, a atividade impedida, assim como a atividade sonhada, não nar transformável o que fazem habitualmente. Por meio de uma ati-
podem ser descartadas do campo da atividade real (Clot, 2003a). vidade dialógica sobre o trabalho (Scheller, 2003; Clot, 2005; Kos-
Em companhia de Bakhtine (1984) e Vygotski (2003), cujas tulski, 2005), como já havíamos sublinhado mais acima.
contribuições foram tão importantes para a renovação das teorias
"dialógicas" da atividade, a psicopatologia do trabalho pode, por- 1
É impossível discutir, aqui- apesar de tal debate ser bastante útil- a diferença entre
tanto, explorar outros caminhos (Clot, 200lb; 2002) e, eventual- essas reflexões de Tosquelles e a perspectiva filosófica descrita por Y. Schwartz com o
mente, deparar-se com as perspectivas, apenas esboçadas por Tos- mesmo vocabulário (Schwartz, 2000).
78 Primeira Parte- Uma herança em discussão Compreender o drama 79

A atenção clínica prestada por Tosquelles à atividade aparece como uma identificação ao ser pessoal, mas também ao que ele de-
claramente, por exemplo, nas observações detalhad~s a respeito de signa como o "ser social" do adulto. Ele insiste sobre o papel da
situações de trabalho no hospital em que a "recuperação e a trans- dignidade do ofício no estabelecimento de relações autênticas com
formação de qualquer coisa em algo de útil" - em seu entender, o real (2006, p. 256-258). Nesse caso, já não é a identificação imagi-
critério de restauração da saúde (p. 64) -poderia ser equiparado a nária a alguém diferente que é pdvilegiada - embora esta nunca
funções de criação instrumental reconhecida como catacreses na seja descartada da análise -, mad a identificação simbólica a algo
clínica do trabalho (Clot & Gori, 2003). Aliás, tal atenção aproxima diferente. Se levarmos a sério e~b hipótese, não só para a análise
Tosquelles, sobretudo, de Sivadon e não tanto de Le Guillant. É co- tanto das relações entre jovens Jadultos, quanto dos vínculos entre
nhecido o interesse de Sivadon pelas situações de trabalho terapêu- os próprios trabalhador~~, pare te-me que ter~mos dado, então, um
ticas em que o sujeito pode fazer a experiência do real em seus as- importante passo na anahse doltrabalho em si mesmo.
pectos ainda desconhecidos e imprevisíveis (Sivadon, 1952; Com efeito, tem sido demonstrado que, sem a manutenção
Torrente, 2005). E é também sobre esse ponto preciso da atividade de uma história comum, sem o interlocutor [répondant] coletivo de
de trabalho, considerada como meio de restauração da saúde, que uma "transcendência profissional': a ação individual se desregula
Le Guillant está mais afastado daquilo que é designado, aqui, por no trabalho (Clot, 2002, 2006b). Para falar como Bakhtine, pode-se
clínica do trabalho. dizer que o trabalho coletivo não reclama somente que cada um
seja destinatário do trabalho do outro. Ele reivindica uma história
comum independente de cada um, um sobredestinatário a quem
.. 4. PSICANÁLISE E KULTURAR.BEIT: AlGO DIFERENTE " sejam endereçados os esforços despendidos. O trabalho coletivo
tem necessidade de um coletivo de trabalho, cuja história permeia
A segunda questão pode ser formulada desta forma: O que se deve
cada um e da qual cada um possa sentir-se responsável: algo dife-
pensar a respeito das relações entre psicopatologia do trabalho e
rente que merece ser defendido a fim de que a vida no trabalho, em
psicanálise? É sobejamente conhecida a resposta fornecida por C. cada dia, permaneça defensável para cada um. Algo que se equipara
Dejours ao desenvolver a psicodinâmica do trabalho (Dejours, singularmente ao que, ainda na tradição da psicoterapia institucio-
2005). Não estou seguro de que essa seja a única possível, mesmo nal, J. Oury designou também como um "coletivo" ao insistir sobre
que compartilhe com ele a ideia de que a psicanálise pode ser afeta- a função diacrítica desse último. É o que D. Cru já havia observado
da, em compensação, por nossas pesquisas no campo do trabalho. bastante cedo (Oury, 1986; Cru, 1995; Brétécher & Hersent, 2005).
Co;m efeito, creio que, também nesse aspecto, Le Guillant pode con- Com toda a certeza, Le Guillant não escolheu essa formula-
tinuar a ser, para nós, bastante útil. Ele havia debatido de forma ção sobre "ser social" da identificação para abordar o problema que
bastante elegante, por exemplo, o contributo da psicanálise sobre a estou formulando aqui. De preferência, ocorre o inverso: os estudos
questão da delinquência juvenil em seu texto de 1961. O conceito que, em psicologia do trabalho, têm sido empreendidos a partir de
psicanalítico de identificação lhe pareceu como uma "noção nova e Bakhtine e de Vygotski permitem redescobrir todas as potenciali-
enriquecedora'' para compreender as relações que os jovens estabe- dades clínicas e teóricas não realizadas na obra deLe Guillant. Va-
lecem entre vida social e vida subjetiva (2006, p. 257). Poderemos mos concluir, portanto, referindo-nos a uma delas que, sem dúvida
observar que esse é também o caso no estudo sobre as empregadas alguma, o teria deixado bastante surpreendido. Alguns psicanalis-
domésticas. No entanto, ele mostra que convém reconsiderar os tas procuram conservar o elã de sua disciplina ao seguirem, sem
mecanismos de identificação a fim de abordá-los sob um duplo as- forçosamente terem conhecimento disso, uma via bastante próxi-
pecto: em seu entender, a identificação não deve mais ser vista apenas ma daquela adotada por nosso autor. Como Nathalie Zaltzman,
80 Primeira Parte- Uma herança em discussão Compreender o drama 81

eles acabam por considerar que o trabalho da cultura (Kulturar- e de criatividade. Dito de outra maneiram, um trabalho de civiliza-
beit) é a garantia, para cada sujeito, de uma filiação trans-histórica ção do real pela "comunidade social'~ Sabe-se que esse é, de forma
independente dos avatares edipianos de cada história individual demasiado frequente, o caso quando essa comunidade se torna
(Zaltzman, 1998, p. 102) 1 . De acordo com a observação dessa psica- inerte e unívoca. Mas, de qualquer modo, se a função psicológica
nalista, existe "uma matéria psíquica, simultaneamente, singular e do trabalho consiste em encarnar - sob certas condições - essa pos-
coletiva com uma função de identificação originária ante-objetar: sibilidade de desprendimento (déprise) na história do sujeito graças
um "ser psíquico coletivo" que é uma "entidade interlocutória con- à retomada (reprise), no duplo sentido do termo, de uma história
tinuamente ativa no devir psicológico individual" (1998, p. 14, 41 e coletiva, a obra deLe Guillant poderia levar-nos ainda mais longe
185). Compreende-se que N. Zaltzman, a partir de uma releitura do que tem sido pressuposto até aqui.
crítica de Freud, possa considerar o sujeito, não tanto como uma
pessoa, mas como sujeito da condição humana, como sujeito de
uma humanização coletiva sem garantia (Zaltzman, 2004, p. 31;
Zaltzman, 2007). Poderíamos encontrar, também, elementos para
alimentar uma reflexão desse tipo nos trabalhos de G. Lavai (2002,
p. 182). Eis o que, de qualquer modo, implica- se adotamos o pon-
to de vista de B. Doray, na esteira de Canguilhem (1984) e de Win-
nicott (1975) - que a saúde mental do sujeito encontra sua mola
propulsora na passagem de uma humanidade recebida para uma
humanidade recriada (2002, p. 73); o encontrado já não se limita a
ser o precário substituto do perdido, como é defendido por certa
psicanálise, mas uma verdadeira fonte de energia (Clot, 2006b).
Somos levados, então, a pensar em determinados aspectos da
obra de Freud: "O indivíduo, escrevia ele, deve dedicar-se à relevan-
te tarefa de desprender-se dos pais. Aliás, é unicamente a resolução
dessa tarefa que lhe permite deixar de ser uma criança submetida a
transferências, em relação aos adultos, para tornar-se um membro
da comunidade social" (1999, p. 427-428). A função psicológica do
trabalho poderia consistir, então, em apoiar o indivíduo na realiza-
ção dessa tarefa de separação, implicando-o em uma história que,
por não se restringir à sua, lhe fornece a possibilidade de fazer "algo"
de sua vida. O trabalho perde, obviamente, essa função psíquica
quando deixa de ser, para as mulheres e para os homens, enquanto
atividade concreta, uma fonte de alteridade, um núcleo de iniciativa

1
Procurei debater esta questão em La conscience comme liaison [A consciência como
ligação], texto que apresenta uma coletânea de textos de Vygotski (2003). Podemos ler,
também, o livro bastante sugestivo de M. David-Menard (2005).
Neste capítulo\ vamos abordar o que aprendemos com I. Oddone e
o que fizemos desse aprendizado. Com efeito, as duas dimensões
são inseparáveis pelo fato de que, neste autor, a ação prevalece em
relação ao resto.
O que aprendemos, refere-se, antes de mais nada, a um esta-
do de espírito. Em Odonne, existe algo de Spinoza. À semelhança
do filósofo de A Ética, ele não concorda, de modo algum, com aque-
les que procuram "a causa da incaJ?acidade e da inconstância huma-
nas, não no poder comum da Natureza, mas em um vício qualquer
da natureza humana e, por essa razão, acabam por deplorá-la, zom-
bar dela, menosprezá-la ou, quase sempre, detestá-la: quem sabe
censurar de forma mais eloquente ou sutil a incapacidade da alma
humana é considerado como divino" (Spinoza, 1677/1965, p. 133).
Ora, I. Oddone não procura ser divino. Ao extrair as lições dos se-
minários em que haviam sido utilizadas, pela primeira vez, as "ins-
truções ao sósià' com op~rários da FIAT, ele entrega ao leitor uma

1
Uma versão diferente deste texto foi publicada, em 1999, no n. 3 da revista Terrítoí-
res du travail [Territórios do trabalho], cujo editor deu sua amável autorização para
esta reprodução.
84 Primeira Parte- Uma herança em discussão Instrumentalizar a ação 85

impressão que, de acordo com seu texto, corre o sério risco de estar De fato, no mundo sindical em que se desenrolou a experiên-
em contradição com a psicologia tradicional: "FicaJllOS impressio- cia dirigida por Oddone, procurava-se, então, sair da monetariza-
nados pelo fato de que todos os delegados - até mesmo, trabalhan- ção dos riscos: "A saúde não está à venda': Mas, diante da dificulda-
do na fabricação em série ou nas prensas - falavam de seu trabalho de para atualizá-la por meio de proposições concretas, esse slogan
como se tratasse de algo que os incentiva, que desperta sua inteli- permanecia vazio de sentido e, ainda pior, qualquer denúncia das
gência, sua habilidade psicomotora e sua capacidade de criação (o nocividades era acompanhada, inevitavelmente, de uma demanda
que deve ser atribuído, não ao trabalho em si, mas às perspectivas salarial compensatória; a denúncia sem a ação acabava agravando a
que os trabalhadores conseguem criar par si mesmos). Assim é que situação.
a predeterminação dos tempos e dos gestos, que é, um fator de múl-
tiplas restriçf>es, em vez de levá-los a deplorar seu destino e o da
humanidade, acaba por impulsioná-los a tirar o melhor deles pró- B 1, DUAS VIAS"
prios e dos outros para obterem mudanças. Trata-se de uma luta
Existia, escreve Oddone, uma contradição entre as duas vias que,
árdua, contínua, que é vivenciada como um jogo em que se peleja
então, podiam ser escolhidas para sair desse dilema e reduzir as no-
sempre para ganhar e não para perder" (1981, p. 212).
cividades circundantes. A primeira passava pela modificação do
Evitemos qualquer mal-entendido. Oddone não ignora os
papel do médico e do psicólogo da empresa: vislumbrava-se a subs-
obstáculos e, até mesmo, os dramas vividos por quem trabalha nas
tituição do médico ou psicólogo ruim por um bom especialista,
piores condições. Ele não hesita em falar da "pesada derrota'' sofri-
considerado como tal, desde que estivesse disposto a reconhecer a
da pelos operários na organização do trabalho na FIAT, antes de
validade do protesto dos trabalhadores. Essa é a via do especialista
1969. Ele procura até mesmo compreendê-la. Mas, justamente, em
substituto. A segunda implicava "que fossem procurados novos cri-
companhia de outros especialistas, ele se deu conta do impasse em
térios para permitir a definição dos índices de nocividade, assim
relação à simples denúncia das condições de trabalho inaceitáveis.
como novas formas de participação dos operários. Foi nessa que ele
Assim procura os meios de apoiar os coletivos de trabalho em sua
se engajou" (1981, p. 35). E aí é que se encontra a origem do que se
tentativa para manter, inicialmente, e, em seguida, ampliar seu raio
de ação. A psicologia do trabalho praticada por ele não se empenha designou por comunidades científicas ampliadas. Aí é que, também,
em adotar boas ideias, em vez de ideias menos boas. Sua preocupa- adquire seu sentido a constituição, como protagonista da própria
ção não é a de substituir os médicos e psicólogos tradicionais por pesquisa, do "grupo operário homogêneo': instrumento vivo da
outros que agissem em nome de outra psicologia ou medicina do avaliação dos riscos e de validação das soluções elaboradas.
trabalho. "Em vez de uma nova psicologia do trabalho, pretende- A psicologia dedica-se, então, a discernir as condições in-
mos propor um novo modo de desenvolvimento para essa psicolo- dispensáveis para favorecer a formalização e a transmissão da ex-
gia, convencidos de que, a partir dessa nova maneira de fazer da periência profissional. Passados trinta anos, avalia-se o impacto
ciência, surgirá uma psicologia do trabalho diferente" (1981, p. dessa mudança de perspectiva: o centro de gravidade da investiga-
217). Trata-se, então, de fazer de outra maneira a psicologia do tra- ção psicológica se desloca, passando do diagnóstico à invenção de
balho, consagrando todos os esforços na perseguição deste único um quadro e de um dispositivo em que seja possível começar a
objetivo: ampliar o poder de ação dos coletivos de trabalhadores no pensar coletivamente o tr:abalho para reorganizá-lo. Ela se torna o
meio de trabalho real e sobre eles mesmos. A tarefa consiste, então, instrumento psicológico da mobilização subjetiva, voltada para a
em inventar ou em reinventar os instrumentos dessa ação: em vez supressão do risco profissional: um meio vital para apoiar uma
de começar por protestar contra as restrições ou por "barganhá-las': experiência coletiva de retomada em mãos do trabalho por aque-
trata-se de empreender a via de sua superação concreta. les que o fazem.
86 Primeira Parte- Uma herança em discussão Instrumentalizar a ação 87

• 2. APROPRIAR-SE DO MEIO • trabalho, a história acaba ocupando uma posição central. Como
I
observa Oddone, "o grupo homogêneo': que se torna protagonista
Mas, aqui, impõe-se uma precisão: se, neste quadro, os conceitos da da análise do meio e garante a validação coletiva dos resultados ob-
psicologia do trabalho devem "germinar para baixo por intermédio tidos em cooperação com os especialistas, não é apenas um grupo
dos conceitos cotidianos" elaborados pelos trabalhadores, ao con- social passageiro: ''Além da experiência bruta de seus membros, o
trário, o exercício é de grande exigência para eles. De fato, existe grupo é portador da experiência daqueles que o deixaram e, em
uma parcela substancial da própria experiência que lhes escapa. particular, dos juízos de valor que eles haviam estabelecido'' (1981,
Portanto, é necessário, também, que os conceitos espontâneos "ger- p. 49). De fato, a experiência se formou no decorrer de uma história
minem para cima por intermédio dos conceitos científicos" a fim de que havia sido, mais ou menos, bem transmitida: "A validação cole-
que novos conhecimentos emanem desse processo (Vygotski, 1997). tiva é um processo que tem uma continuidade históricà' (p. 49).
Esse é o preço a pagar para o sucesso da ação. A experiência dos Ou, por outras palavras, o meio profissional nunca é somente um
operários, além de ser reconhecida, deve ser transformada. Melhor meio social, mas sempre, de alguma forma, um meio histórico.
ainda, ela só pode ser reconhecida graças à sua transformação. Ali- Compreende-se, evidentemente, como essa abordagem pela
ás, ela só pode ser observada quando muda de estatuto: ao tornar-se ação e pela história é tributária do período em que foi possível cons-
o meio para viver outras experiências. No nosso vocabulário, pode- tituir, na Itália, essas comunidades científicas ampliadas. A conjun-
se dizer que a transmissão da experiência, ao realizar-se efetiva- tura atual não oferece, certamente, as mesmas possibilidades. Na
mente, equivale sempre a um desenvolvimento dessa experiência. França, o mundo do trabalho sofreu, sem dúvida, uma perda consi-
Reconhecê-la é implicá-la em uma história que a modifica. É torná- derável das capacidades de iniciativa que são necessárias para o su-
la disponível para uma história diferente daquela de que ela é oriun- cesso desse gênero de experiências sociais e científicas. Apesar dis-
da. Essa é a lição que se pode tirar de todos os trabalhos que, nos so, o patrimônio oriundo desse período não perdeu sua força. Os
últimos vinte anos, inscrevem-se, na França, nessa perspectiva: agir problemas que essa construção social procurava enfrentar não de-
e, sobretudo, ampliar seu poder de ação é conseguir servir-se de sua sapareceram. Pelo contrário, parece inclusive que a análise psicoló-
experiência para fazer outras experiências. gica do trabalho ou, ainda, a ergonomia, tenham de enfrentar, de
Segundo parece, esse é o próprio espírito do trabalho de forma mais contundente do que nunca, a questão do lugar dos tra-
Oddone, mesmo que as reflexões precedentes se inspirem, mais di- balhadores na produção dos conhecimentos sobre seu trabalho. O
retamente que ele, na perspectiva de psicologia histórico-cultural problema da expertise no meio profissional está bem longe de ter
aberta par Vygotski. A confirmação disso se encontra neste trecho encontrado uma solução, e o obstáculo identificado por Oddone
que descreve o desenvolvimento da experiência no "grupo homogê- ainda não foi removido: a delegação aos "bons" experts da ação con-
neo': "Ele se reapropria gradualmente, à medida que a solução dos tra a nocividade das condições de trabalho.
problemas aumenta em complexidade - indo da relação do homem Entre os próprios especialistas, a ampliação da comunidade
à sua tarefa particular até suscitar o interesse da empresa inteira -, científica não foi compreendida naquilo que ela pode ser: uma
de todos os modelos teóricos que dão forma à organização do tra- oportunidade ímpar para o desenvolvimento científico. Na maior
balho. Esse processo de reapropriação dos modelos teóricos - pela parte das vezes, essa ampliação é entendida como uma renúncia
formação de modelos práticos extraídos da experiência e traduzi- inaceitável às responsabilidades científicas. Na realidade, o inverso
dos em planos de comportamento- conduz os executantes à tenta- é que é verdadeiro: a participação direta dos trabalhadores na aná-
tiva contínua de se reapropriarem de todos os modelos dos ideali- lise do próprio trabalho, até as formas de co análise que temos pro cu-
zadores até o modelo central, o modelo taylorista, que eles tentam rado promover -precisamente por culminarem em um desenvolvi-
modificar" (1981, p. 188). Assim, nessa abordagem da psicologia do mento dos sujeitos no decorrer da experiência - suscitam problemas
88 Primeira Parte- Uma herança em discussão Instrumentalizar a ação 89

teóricos bastante novos: as questões do desenvolvimento e de seus sabe-se que a atividade individual encontra seus recursos em uma
impedimentos, tradicionalmente reservados à psicologia
I
da crian- história coletiva que detém, capitaliza, valida ou invalida as estraté-
ça, poderiam encontrar matéria para se renovarem no domínio de gias do comportamento. Compreende-se melhor, também, que tais
uma psicologia do trabalho que seja, também, uma "psicologia do estratégias dizem respeito às relações com a tarefa, às relações com
trabalhador" (Clot, 1999a). Uma psicologia do trabalho que se inte- os colegas de trabalho, com a hierarquia ou, ainda, com as organiza-
resse, para retomar uma formulação de Odonne, "pelas relações do ções do mundo do trabalho. Se esses recursos se esgotam - como é
pensável com o possível, além de se desdobrar no quadro das hipó- o caso, de forma demasiado frequente, atualmente -, então, a vida
teses e soluções que os homens escolhem, desejam e sabem realizar" psicológica de trabalho se encontra gravemente "reduzidà'. Quando
(1981, p. 214). um coletivo profissional já não consegue executar o trabalho de or-
ganização, que é a única maneira de preencher o fosso entre a orga-
nização oficial do trabalho e a vida, a desregulação da ação individu-
• 3. GÊNEROS DE ATIVIDADES E GRUPO HOMOGÊNEO • al nunca está muito longe; além disso, os contragolpes psicológicos
dessa anemia simbólica, raramente, se fazem esperar.
Para nos orientar nessa problemática, o trabalho de I. Oddone é Por nossa parte, dizemos que se trata de uma falência do gê-
bastante útil. Em certo sentido, ele foi um dos primeiros especialis- nero profissional do coletivo de trabalho. Designa-se por gênero,
tas a suscitar um problema decisivo. Trata-se da função psicológica justamente, o "não sei quê" que orienta a ação e que, por permane-
do coletivo de trabalho. Na tentativa empreendida para conhecer a cer frequentemente implícito, oferece a cada um a possibilidade de
maneira como os operários desenvolvem uma experiência e estru- "se segurar': em todos os sentidos da expressão. Esse conceito de
turam seu comportamento, escreve Oddone, sentíamos dificulda- gênero procura extrair algumas consequências da experiência dos
des para compreender, para além das experiências vivenciadas, "seu "grupos homogêneos': Convém aprofundar um pouco mais sua de-
modo de desenvolvimento". Algo nos escapava, acrescenta ele: "Era finição. Para determinado coletivo, trata-se das maneiras de fazer,
como se, por trás desses comportamentos, houvesse um 'não sei dizer ou sentir, estabilizadas, no mínimo, durante algum tempo,
quê' feito de regras de conduta e de estratégias individuais que, em nesse meio profissional; e que dizem respeito, por exemplo, tanto às
parte, unificavam esses trabalhadores e, em parte, os diferenciavam. relações com a tarefa e com os colegas, tanto à hierarquia e aos sin-
Enquanto sujeitos, eles não estavam plenamente conscientes dessa dicatos. Ainda chegamos a acreditar na possibilidade de defender
situação e nós, psicólogos, não estávamos em condições de captar que existem gêneros sociais de atividades (Clot, 1999a, 1999c) que
isso" (1981, p. 55). De fato, longe de poder ser considerados como contêm não só gêneros de discursos, como havia sido proposto por
uma reunião de indivíduos separados, os operários "formam um M. Bakhtine em um contexto completamente diferente (1984), mas
conjunto" que, de qualquer jeito, elabora planos para resolver os também gêneros de técnicas: estes estabelecem a ponte entre a ope-
problemas levantados pela organização do trabalho: "Existe uma racionalidade formal e prescrita dos equipamentos materiais, as
estruturação do comportamento em planos individuais orgânicos, maneiras de agir e de pensar de um meio. Além da presença de
organicamente reunidos na consciência coletivà' (1981, p. 212). enunciados deslocados ou, pelo contrário, convencionais, em um
Em nosso entender, esse ponto é capital porque podemos meio profissional, constata-se a presença de gestos, assim como de
pensar que a ausência, a falência ou, ainda, a perda dessa postura atos materiais e corporais bem-vindos ou não. De maneira geral,
simbólica e coletiva da ação individual estão na origem da maioria encontra-se aí uma gama de atividades obrigatórias, possíveis ou,
das experiências penosas suportadas, atualmente, no mundo do tra- ainda, proibidas. Os previsíveis sociais de um gênero - na maior
balho. Graças ao trabalho das comunidades científicas ampliadas, no parte das vezes, subentendidos- referem-se tanto às atividades téc-
âmbito das quais Oddone conseguiu desenvolver sua experiência, nicas e corporais, quanto às atividades de linguagem. O gênero de
90 Primeira Parte- Uma herança em discussão Instrumentalizar a ação 91

atividades, vinculado a uma situação e a um meio, estabiliza e fixa no mundo. Os gêneros são, portanto, coerções e, ao mesmo tempo,
-nunca de modo definitivo- as maneiras comuns de levar em con- meios de agir; recursos de que se pode dispor, assim como obriga-
'
sideração as coisas e os homens. São atividades pré-organizadas que ções a cumprir para fazer valer nossas intenções no intercâmbio
se impõem como autoridade e indicam o tom para agir nesse meio. com os outros e no uso dos objetos. Nesse aspecto, em vez de serem
Entre elas, o alcance normativo de um gênero técnico não é menor a propriedade de alguém, em particular, eles são o instrumento de
que o de um gênero de linguagem. Mas os recursos que ele fornece seleção das formas pelas quais é possível ver e conceitualizar a rea-
aos sujeitos para controlarem seus atos em direção a objetos nada lidade, um sistema transpessoal de métodos que garantem ao sujei-
têm a invejar, igualmente, aos que são conservados por um gênero to o controle e a avaliação das finalidades de sua ação singular, mes-
de discurso. Protossignificações e proto-operações estão, aliás, qua- mo que nem todas as suas molas propulsoras e ramificações sejam
se sempre, el!trelaçadas, formando a textura do gênero e de suas conhecidas por ele. Trata-se de uma ferramenta que, em vez de se
variantes. limitar a fazer existir as atividades em sua realização, aqui e agora,
Finalmente, por intermédio de seus "falares" e "tocares" co- vai prepará-las, apoiá-las e orientá-las. Pode-se acrescentar que ele
muns, graças também às regras implícitas que constituem sua tra- opera a partir de uma lógica interna e de encadeamentos, cuja exe-
ma, um gênero profissional coletivo retém a memória transpessoal cução vai poupar inúmeros esforços a quem os põe em prática para
de um meio. Ele conserva e transmite a história social. Nesse senti- "ingressar" no real.
do, ele é o instrumento, simultaneamente, técnico e psicológico do As leis do gênero tomam a dianteira ao comportamento deli-
meio de trabalho e de vida. Pelo domínio do gênero vinculado a mitando - nunca de maneira definitiva - o campo das atividades
uma situação, cada sujeito pode predizer- pelo menos, parcialmen- possíveis e impossíveis, sua conexão e sucessão. Desse modo, elas
te - os resultados da própria ação que ele antecipa por seu intermé- liberam o sujeito dos passos em falso da ação, de um trabalho re-
dio. O gênero torna hábil. Ele pode também tornar desastrado se ele dundante, impedindo-o de extraviar-se na situação. Certamente,
está desajustado, acabando por perder, em parte, sua eficácia. Se- um gênero anêmico pode tornar-se um peso morto para o sujeito.
guem-se mal-entendidos no intercâmbio e fracasso na ação. Chega, O coletivo perde sua função psicológica de libertação e proteção.
então, o tempo dos retoques para o qual cada um é convocado já Pelo contrário, alimentado por experiências, deliberações, contro-
que, por estar disponível, o gênero esteve sempre à disposição de vérsias, o gênero permanece um lastro, uma força viva, já que, em
cada sujeito na ação. suas formas, conserva-se e transmite-se o elã de um grupo. O gêne-
Uma característica desses gêneros merece ser, no entanto, su- ro e suas variantes contêm também a integralidade dos equívocos
blinhada. O gênero de um meio conserva uma função psicológica que a história de um coletivo deixou persistir aí. A vida os desloca,
para cada trabalhador na medida em que ele serve para agir, defen- supera e recria. Eis por que continua sendo necessário acrescentar
der-se ou tirar o melhor partido da situação de trabalho. O gênero algo de si para ser capaz de segurar o gênero e servir-se dele. À sua
é um meio de ação que exige manutenção. Sua vitalidade depende maneira, I. Oddone mostrou que é o gênero comum que planeja a
das criações estilísticas de cada um em contato com um meio a res- ação individual.
peito do qual se tenta sempre "não perder o pé': mesmo que seja
impossível controlá-lo completamente: portanto, o gênero é tam-
bém um meio. E, como sublinha Bakhtine, "para usá-lo livremente, .. 4. ESTilOS DE ATIVIDADES E DESENVOLVIMENTO
é necessário um bom domínio dos gêneros" (1984, p. 286). Aliás, PSICOLÓGICO ..
esse é o preço a pagar para que os sujeitos possam, então, desvenci-
lhar-se deles, não pela sua negação, mas pela via de sua metamorfo- Mas sua contribuição não se limita a esse aspecto; aliás, neste capítu-
se, conservando assim a vitalidade dos gêneros, ou seja, sua eficácia lo, desejamos insistir sobre a origem do segundo aporte de Oddone.
92 Primeira Parte- Uma herança em discussão Instrumentalizar a ação 93

Nosso autor nunca se limita a elogiar o coletivo por si só, mas pro- um meio de fazer outras experiências. É um procedimento suscetí-
cura compreender como esse coletivo vive, transform,a-se e conser- vel de tornar a experiência já feita, disponível para experiências a
va sua função psicológica. Ele tenta explicar como ocorre a colabo- fazer. É preciso- Oddone insiste (1981, p. 58) -enriquecer e rees-
ração de cada um, como cada um assume a responsabilidade pelo truturar a experiência. Essa perspectiva direcionada para o desen-
desenvolvimento do gênero. No nosso vocabulário, poderíamos di- volvimento se baseia em uma experimentação dialógica. Em um
zer que Odonne está preocupado com a maneira como cada um exercício desse tipo, a última palavra nunca é dita: "Essa técnica
retoca, incessantemente, o gênero. Ele manifesta interesse pelo "gê- nunca fornece um resultado definitivo. Aliás, nem seria possível ser
nio': graças ao qual cada trabalhador permite ao gênero retomar diferente, considerando que se trata de uma relação entre dois sujei-
vida e expressão no real. De fato, o acabamento do gênero se opera tos ou dois grupos - aquele que dá as instruções e aquele que as
nos estilos d~ cada um: todas as criações estilísticas repertoriadas recebe - e que, dessa interação, emerge uma tomada de consciência
em Redécouvrir l'expérience ouvriere (Redescobrir a experiência simultânea'' (1981, p. 57). Afinal de contas, o processo psicológico
operária) procedem à "revisão" e depuração das leis do gênero pro- de desenvolvimento, criado desse modo, é interminável: "O psicó-
fissional. Odonne procura, finalmente, compreender como o gêne- logo nunca conseguirá terminar essa coleta'' (p. 58). Ao adotar essa
ro coletivo é constitutivo da atividade individual que, por retroação, metodologia, consuma-se a ruptura com uma psicologia monológi-
ao colocar esse gênero em situação de trabalho, vai conservá -lo ca para penetrar no domínio de uma psicologia dialógica, para nos
vivo. Ele procura explicar a formação e a transformação dos gêne- exprimirmos à maneira de Bakhtine.
ros pela estilização de que, permanentemente, eles são objeto na Em livros anteriores (Clot, 1995, 1999), já tínhamos procedi-
atividade dos sujeitos. Pode-se pensar que é a função técnica das do à análise do uso dessa técnica ao nos questionarmos sobre o qua-
"instruções ao sósia'': colocar em circulação essas estilizações pes- dro e o dispositivo de enunciação, pressupostos por ela (Clot, 1999a,
soais que têm por objeto o gênero comum, estilizações múltiplas p. 155-159; Clot & Soubiran, 1999; Scheller, 2003). Mais adiante,
que lhe conservam sua plasticidade. apoiando-nos em um exemplo, voltaremos a abordar os problemas
O grupo só consegue ser "homogêneo" ao cultivar sua hete- teóricos que ela suscita. Neste momento, gostaríamos de responder
rogeneidade. A preocupação de Odonne tem a ver com a homoge- a esta questão: qual é, portanto, a finalidade deste exercício?
neidade em desenvolvimento, com a história do gênero como pos-
sibilidade de ações futuras: a experiência formalizada, elaborada,
transmissível e renovável. Eis o motivo pelo qual ele recorre à ino- • 5. A VIDA DO GÊNERO •
vação técnica da "instrução ao sósia'' que, de acordo com suas pala-
vras, deve constar no balanço do que parece ser ainda essencial- Constata-se que cada um dos textos das instruções publicadas por
mente válido na experiência sob sua orientação ( 1981, p. 220). Uma Odonne et al. (1981) e cada um dos nossos textos posteriores dão
das razões fornecidas por ele para posicionar tal técnica no centro acesso a um estilo de ação singular. Cada sujeito interpõe, entre ele e
de seu balanço é que ela implica "considerar que os sujeitos aborda- o gênero coletivo a que pertence, os próprios retoques do gênero. Ele
dos pelas ciências sociais não são forçosamente aqueles que repre- o repete, sem o repetir. O estilo pode, portanto, ser definido como
sentam a norma, mas aqueles que a pesquisa tradicional em psico- uma metamorfose do gênero em curso de ação, uma repetição que
logia considera como transgressores e que o são na medida em que vai além da repetição. Cqnsequentemente, a instrução ao sósia con-
tendem a antecipar uma organização do trabalho menos alienada'' fere visibilidade ao gênero e o torna suscetível de ser discutido. Ela o
(1981, p. 221). Tal postura não significa, de modo algum, um sim- leva a aparecer, ao submetê-lo à prova na ação transmitida. Cada
ples apego à experiência já vivenciada. Pelo contrário, trata-se de instrução ao sósia faz reviver o gênero de um modo pessoal, ofere-
conseguir desligar-se de sua experiência a fim de que esta se torne cendo assim ao coletivo a oportunidade de um aperfeiçoamento do
94 Primeira Parte- Uma herança em discussão Instrumentalizar a ação 95

gênero ou, de qualquer maneira, a de um questionamento que pode sujeito mantém com essas variantes, tanto mais fecundo e flexível
culminar na validação coletiva de novas variantes. 0 1gênero pode, será seu manuseio do gênero. Se ele é submetido à prova com regu-
desse modo, permanecer vivo, ou seja, conservar as qualidades de laridade, o gênero vive no presente, lembra-se de seu passado e for-
um instrumento da ação, ao se transformarem as condições desta. ma uma memória para predizer. Se ele assume essa dinâmica gené-
Com referência ao vocabulário de Oddone, poderíamos dizer que a rica, o grupo homogêneo está, então, em condições de garantir aos
homogeneidade do grupo só é possível se ele continua a tornar-se sujeitos a postura de uma permanência através das evoluções do
homogêneo; a história de tal grupo homogêneo continua se e, sem trabalho que, nesse caso, ele permite "digerir" ou antecipar.
qualquer exceção, ela é alimentada pelas contribuições estilísticas A psicologia do trabalho poderia efetivamente ter a tarefa de
pessoais que se tornaram patrimônio no decorrer de uma percola- assessorar os coletivos profissionais nesta obra de re-criação dos
ção que, incessantemente, deve ser recomeçada. meios. Assim, I. Oddone teria fornecido a essa disciplina alguns dos
Para I. Oddone, as instruções ao sósia são um meio de abor- meios indispensáveis para garantir-lhe sucesso.
dar os planos implícitos e subentendidos que organizam a atividade
em um grupo homogêneo de trabalhadores. Nós designamos isso
por gênero do meio considerado. Para realizar essa operação, nosso
autor não hesita em interessar-se de perto pelo estilo pessoal da
ação. Em um meio de trabalho, o coletivo utiliza efetivamente meios
comuns para "tomar" os objetos e as pessoas que ele coloca, de al-
guma forma, à disposição de cada um. Verifica-se, porém, uma re-
disposição, por cada sujeito, das relações com a tarefa, com os cole-
gas, com a hierarquia ou com os sindicatos. As "instruções"
transmitidas ao sósia são as de alguém, e unicamente dele, a propó-
sito dos meios utilizados por todos; elas são suscetíveis de enrique-
cer, ao mesmo tempo, o sujeito e o grupo. Por sua vez, o grupo só
conserva uma função para o sujeito se lhe permite enfrentar a situ-
ação ao desenvolver seu poder de agir; inversamente, o sujeito exer-
ce uma função no grupo ao permitir-lhe ampliar seu raio de ação 1 •
À maneira de Bakhtine, pode-se dizer que o estilo se libera do gêne-
ro n'ão pela sua negação, mas pela via de sua renovação. Nossa ex-
periência nos leva a pensar que o exercício de instruções ao sósia,
ao revelar o estilo, expõe o gênero e inversamente.
Afinal de contas, parece que esse exercício individual cultiva
oportunamente as discordâncias estilísticas. O gênero de um meio
de trabalho não se mantém por si só. Ele não realiza e não se revela
senão nas diversas variantes que se formam no decorrer de sua evo-
lução. Quanto maior for o número de pontos de contato que um

1
Este duplo movimento transforma um grupo em coletivo.
, Segunda
A ATIVIDADE: PROBLEMAS
E CONCEITOS
da atividade
e psicopatologia
do trabalho

Se pretendemos compreender as relações entre psicopatologia do


trabalho e clínica da atividade, somos obrigados a reconhecer, ain-
da, o lugar de Louis Le Guillant 1• Na década de 1950-1960, foi ele
quem, no âmbito de um movimento mais amplo (Billiard, 2001),
conferiu seu título de nobreza à psicopatologia do trabalho. E isso,
em razão do fato - ainda pouco reconhecido - que ele rompe pro-
gressivamente com uma abordagem linear dos distúrbios. Entre a
causa e o efeito, há sempre a atividade "dramatizada'' de um sujeito
(Le Guillant, 2006) .

• 1. AS INVESTIGAÇÕES DE L lE GUillANT •

Assim, inspirando-se em S. Weil, ele chega a escrever que a tentação


de deixar de pensar pode tornar-se irresistível - para os condutores
da SNCF (Société nationale des chemins de fer français I Empresa
Pública das Estradas de Ferro Francesas) com os quais ele havia

1
Este capítulo retoma, com ligeiras modificações e a amável autorização do respec-
tivo editor, um artigo publicado na revista Éducation permanente [Educação Perma-
nente] , n. 146, em 2001.
100 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Clínica da atividade e psicopatologia do trabalho 101

trabalhado na década de 1960- por ser esse o único meio de evita- crítica de toda a psicopatologia do trabalho em relação a uma psi-
rem o sofrimento (2006, p. 166). E, inclusive, ele vai mais longe já cologia do trabalho demasiado "positiva''.
I
que, ao evocar a "dialética da ofensa e da humilhação" em seu estu- As anotações clínicas de L. Le Guillant, a propósito dos con-
do sobre as empregadas domésticas, toma de empréstimo a Dide- dutores de trem, introduzem as energias do negativo na análise do
rot, pela mediação de Hegel, algumas reflexões sobre a servidão, trabalho. A atividade realizada pelo sujeito nos modos operatórios
aparentemente voluntária, constatada no mundo do trabalho. O so- observáveis não leva em consideração o real da atividade. Na situa-
brinho de Rameau "humilha-se e dissimula a baixa condição; entre- ção descrita por Le Guillant, o mais difícil não é o que o condutor
tanto, nessa depravação, ele encontra uma oportunidade para afir- deve fazer, nem sequer o que ele faz, mas o fato de estar lá, sem estar
mar sua dignidade'~ Todavia, acrescenta ele, citando Hyppolite, lá. Contra qualquer tipo de fetichismo da atividade, dir-se-á que o
"esta dignidade, tão logo ela se manifesta, aparece a si mesma como aspecto que escapa ao sujeito é parte integrante da atividade, com-
irrisória'' (2006, p. 81). ponente de seus conflitos; aliás, ao ponto de ser, às vezes, a origem
No estudo sobre o ofício das empregadas domésticas, a sub- da mais monopolizadora das fadigas. Na cabine, o maquinista está
missão, relacionada com a ofensa e a humilhação, é considerada lá e noutro lugar, dissociado por uma atividade desunida.
não como a aceitação da situação, mas como a forma invertida de
uma incapacidade para agir. Estamos em 1963, e, na passividade de
• 2. AS VAGABUNDAGENS DA MENTE ..
uma conduta, Le Guillant identifica um ato psíquico defensivo; as-
sim, ele se distancia da obsoleta noção de uma patologia considera- Essas observações de 1966 se arvoram contra a neutralização das
da como agressão que, desferida do exterior, atinge um sujeito de- dimensões subjetivas da ação em psicologia. O sujeito da atividade
sarmado e inocente. Na patologia, existe, de fato, uma criação não é um sistema de tratamento de informações, mas o núcleo de
subjetiva. Mais tarde, C. Dejours, a partir dessa perspectiva, mas contradições vitais às quais ele procura dar uma significação. Nós
deslocando-a para o ponto de vista da psicanálise, falará de estraté- próprios havíamos encontrado esse fenômeno de ausência no de-
gia coletiva de defesa (2000). correr do nosso trabalho com os condutores de trem do subúrbio de
Quando voltamos a ler, atualmente - tendo decorrido mais Paris (Clot, 1997b). Esse fenômeno não decorre assim tão simples-
de trinta anos -, o trabalho de L. Le Guillant sobre os condutores da mente da hipovigilância, invocada, com frequência, para explicar es-
SNCF, à luz de estudos contemporâneos (Clot, 1999a; Cru, 1997; ses períodos de suspensão mental. De fato, falar de hipovigilância
Falta, 1997), a atenção é atraída pela descrição de um sintoma, par- confunde demais processos distintos, embora frequentemente asso-
ticularmente frequente, nesse exercício profissional. Le Guillant ciados, tais como, por exemplo, o entorpecimento provocado pelo
avalia todo o peso da solidão ou, melhor ainda, do isolamento. Ele sono, por um lado, e, por outro, as "derivas do espírito'~ Nada indica
cita o testemunho de um maquinista sobre seu trabalho na cabine: que a amálgama desses dois aspectos seja suscetível de dar conta da
de acordo com suas palavras, mantém os olhos abertos, mas está situação, dolorosamente vivida, por esses condutores. É preferível
pensando "em uma porção de coisas .. :~ "Na verdade, não estou lá. vincular a análise das "distrações" às particularidades da condução.
Não estou no trabalho. Os reflexos e o hábito estão em ação, mas Trata-se de uma atividade específica que, em si mesma, comporta as
estou noutro lugar" (2006, p. 170). Essa situação vivida e re-vivida, condições das "derivas" vividas e constatadas, mesmo que estas se-
decorridos trinta anos, voltamos a encontrá-la. Vamos apresentá-la jam agravadas pela falta de sono, cujo impacto, de resto, nós nos
em um quadro mais adiante. No entanto, antes de mais nada, con- abstemos de subestimar.
vém sublinhar sua importância para a questão que estamos abor- Como o atraso no horário dos trens de subúrbio se tornou a
dando; de fato, nesse ponto, é que se cristaliza, sem dúvida, a carga regra, em decorrência da saturação do tráfego, os condutores passam
102 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Clínica da atividade e psicopatologia do trabalho 103

o tempo a perdê-lo e a tentar recuperá -lo na solidão e no anonima- de uma luta contínua contra as ausências. Ao conjugarem seus efei-
to. A sintomatologia das "ausências" pode estar relfcionada com tos com o sono acumulado, elas podem resultar em torpor. Um ma-
essa atividade de recuperação temporal contrariada. Realmente, quinista - autor de uma monografia em ergonomia que procede à
para retomar a metáfora utilizada por um condutor, "no subúrbio, analise da atividade de um colega - indica, por exemplo:
on range son frein"*. A proximidade das composições impõe ao re-
"Cada saída do torpor se transforma em angústia. O ma-
gulador, situado em um posto central, uma gestão "apertadà' da
quinista se interroga: durante quanto tempo ele esteve
rede. Três minutos apenas é o tempo que pode separar dois trens, o
ausente, terá parado de acordo com o roteiro de viagem
que implica a gestão de múltiplos conflitos de critérios entre segu-
nessa ou naquela estação, qual é sua posição na linha,
rança e cumprimento dos horários. Nessas condições, a segurança
qual era a indicação do sinal precedente? Bernard explica
pode opor-se à regularidade, isto é, ao respeito das velocidades au-
que seu trabalho, em tais condições, é difícil de suportar,
torizadas aos maquinistas; pela sinalização, o regulador tem de im-
mas pensa que, levando em consideração o tempo em que
por-lhes frequentes reduções de velocidade. A abertura "verde" dos
os trens já circulam dessa maneira, as ausências mentais
sinais é muito rara nas horas de pico em que se circula com sinal
devem ser muito fugazes; caso contrário, os acidentes te-
"amarelo"; a "via livre" é uma exceção.
riam sido mais numerosos" (Macé, 1993).
Ao deparar-se com uma vintena de sinais fechados em algu-
mas dezenas de quilômetros, um maquinista vai comportar-se de
maneira diferente em um percurso de 500 km: sem qualquer sina-
lização, ele não será impedido de respeitar sua velocidade, de "fa- • 3. ATIVIDADE REALIZADA, REAL DA ATIVIDADE ..
zer seu trem''; é preferível percorrer 250 km em 5 horas do que 80
Quem deseja compreender as exigências da atividade, deve con-
km em 7 horas, como ocorre frequentemente com um condutor de
frontar-se com esses conflitos. É possível avaliar até que ponto uma
subúrbio.
abordagem psicopatológica do trabalho questiona, aqui, determi-
Ou seja: esse tipo de condução "no amarelo", preparando a
nada psicologia do trabalho. Sabe-se que a ergonomia e a psicologia
parada no sinal vermelho seguinte, é, antes de tudo, uma atividade
do trabalho têm insistido sobre a distinção entre tarefa prescrita e
impedida que retira do condutor o domínio do esforço de tração, a atividade real: a tarefa é aquilo que deve ser feito, enquanto a ativi-
gestão de sua velocidade; mais precisamente, uma atividade de re- dade é o que se faz (Leplat & Hoc, 1983). Mas, de fato, tivemos de
cuperação do atraso, ao mesmo tempo, imposta e impedida, útil e dar um passo além: não há convergência entre atividade realizada e
inútil, essencial e invisível. Uma posição em que, para recuperar atividade real. Isso, em geral, corresponde à verdade. À sua manei-
uma situação temporal degradada, os esforços do condutor são, de ra, Vygotski já dizia: "O homem está pleno, em cada minuto, de
forma permanente, exigidos e, simultaneamente, anulados. Essa es- possibilidades não realizadas:' Desse modo, o comportamento é
pécie de passividade imposta é uma tensão contínua pelo fato de sempre o "sistema de reações vencedoras" (Vygotski, 2003, p. 74).
não ser, de modo algum, uma ausência de atividade. Trata-se de Por sua vez, as outras, recalcadas, formam resíduos incontrolados
uma atividade "enrustidà: de um tremendo esforço para inibir a que acabam adquirindo ainda mais energia para exercer, na ativida-
ação que inverte a hipervigilância em hipovigilância. No final das de do indivíduo, uma influência contra a qual ele pode ficar sem
contas, existem as "ausências" e nem sempre é possível ser vencedor defesa. Eis o que é, de fonna bem particular, verdadeiro em psicolo-
gia do trabalho.
* Literalmente: no subúrbio a gente morde no freio, à semelhança de um cavalo im- Nisso também, o real da atividade é, igualmente, o que não se
paciente. (N.T.) faz, o que se tenta fazer sem ser bem-sucedido- o drama dos fra-
104 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Clínica da atividade e psicopatologia do trabalho 105

cassos- o que se desejaria ou poderia ter feito e o que se pensa ser o que o rodeia, servindo-se das coerções do meio, a fim de evitar de
capaz de fazer noutro lugar. E convém acrescentar -,paradoxo fre- submeter-se a elas.
quente - o que se faz para evitar fazer o que deve ser feito; o que Vamos analisar este diálogo profissional:
deve ser refeito, assim como o que se tinha feito a contragosto. A
A. .. - "No subúrbio, diz um dos interlocutores, é fácil de-
atividade possui, portanto, um conteúdo cuja abordagem demasia-
mais adquirir automatismos; portanto, temos de trabalhar
do cognitiva da consciência, como representação da ação, priva de
de forma ainda mais inteligente do que em outros lugares.
seus conflitos vitais. Ora, a existência dos sujeitos é tecida nesses
A tração cortada, avançando com a aceleração adquirida,
conflitos vitais, que eles procuram reverter em intenções mentais,
esse é o jeito mais econômico; aliás, eu me libero ao acionar
para deles se desprenderem. A atividade é uma provação subjetiva o disjuntor. Desembaraço-me de um montão de coisas
mediante a qual o indivíduo se avalia a si próprio e aos outros para para estar disponível. Sinto um prazer danado em acertar
ter a oportunidade de vir a realizar o que deve ser feito. As ativida- bem o arranque; depois deixo deslizar, sem uma única fre-
des suspensas, contrariadas ou impedidas - até mesmo, as contra- ada; é assim que gosto de fazer. Quando não faço dessa ma-
atividades- devem ser incluídas na análise (Clot, 1997a). neira, é porque estou cansado e um pouco aborrecido.
Por que negar a qualidade de atividade real à atividade não Contra a rotina e o automatismo que nos vão destruindo
realizada? A atividade subtraída, ocultada ou recuada nem por isso lentamente, é necessário ter um objetivo. No subúrbio, te-
está ausente, mas influi, com todo o seu peso, na atividade presente. mos de conduzir com automatismos sem automatismo:'
Pretender dispensá-la na análise do trabalho equivale a retirar, de B. .. - "O espírito voa. Para ficar aqui, procuro frear no
maneira artificial, os que trabalham os conflitos vitais de que eles último instante, prestando a máxima atenção nos meus
tentam liberar-se no real. O realizado não tem o monopólio do real. pontos de referência. Dessa maneira, posso ficar no trem.
Em resumo, o que a psicopatologia do trabalho propõe à psicologia Eu me faço medo para manter-me no trabalho. Às vezes,
do trabalho é a crítica do conceito de atividade; privada do sentido temos de nos torturar um pouco para não cairmos na
e não sentido que lhe atribuem seus conflitos, ela é demasiado modorra; isso desperta você e você recomeça:'
amorfa. A psicopatologia oferece a possibilidade de desneutralizar
A. .. - "Por minha parte, deixei de me fazer medo. Com a
a ação psicológica. Desse ponto de vista, é possível compartilhar o
idade, faço economias em tudo: gestos, medo, estresse.
diagnóstico de M. Foucault: a psicologia esqueceu a negatividade
Sinto-me descontraído. Com a prática do ofício, em vez
no homem. Sua "única salvação será o retorno aos infernos" ( 1994,
de um assento, você passa a estar sentado em uma poltro-
p. 158). Daí, em nossa opinião, o imperativo de olhar de frente os
na. Já não tenho necessidade do medo. Simplifiquei ao
dilemas da atividade. máximo. Essa é a prática do ofício. Não mexo em nada.
Dou a partida a 60 km/h, em vez de circular a 70 km/h,
velocidade autorizada; sirvo-me do traçado da linha, em
.. 4. UMA CLÍNICA DA ATIVIDADE • vez de circular em safona. Se a "velocidade automáticà'
(dita VI = velocidade imposta) não foi acionada uma só
Até pelo conflito no qual sua atividade o coloca, o sujeito não per- vez, é que fiz um bom trabalho. Essa é a qualidade de meu
manece "passivo". A mobilização psíquica não se encontra interdi- trem. Sirvo-me do traçado da linha, faço disso um espor-
tada. Melhor, é possível sustentar que seu "ofício" se revela na sua te. Se não se gosta disso, fica impossível. A frenagem é a
capacidade de lutar contra a adversidade, na tentativa de escapar ao única coisa que se controla; é o único prazer que nos res-
que o deixa confinado. Verifica-se a afirmação de sua competência e, ta. É, por isso, que ainda estamos aqui. No dia em que isso
ao mesmo tempo, de sua dignidade - quando ela se afirma - contra deixa de existir, creio eu, será o momento de parar:'
106 Segunda Parte -A atividade: problemas e conceitos Clínica da atividade e psicopatologia do trabalho 107

A motricidade do diálogo faz surgir um tema que gira em a serviço da atividade presente do sujeito. A Escola Russa de psico-
torno da utilização do freio: encurtar, voluntariamente, as distân- logia histórico-cultural propôs o conceito de apropriação para de-
das para se mobilizar ou mobilizar-se evitando frear.' Ou, dito por signar essa "dupla vidà' das significações (Leontiev, 1984, p. 163).
outras palavras, e esquematizando: frear para se mobilizar ou mobi- Tal abordagem transforma a atividade, aparentemente, passiva e
lizar-se para não frear? Nesse último caso, a velocidade automática submissa, em atividade inventiva e criativa. A esse propósito, pode-
(VI) é utilizada como contraponto da atividade: antecipar-se a ela se falar das retóricas da ação: elas deslocam os objetos da sua função
aparece como um desafio profissional, uma espécie de competição oficial ou, de preferência, desenvolvem essas funções para realizar,
tônica. Ela não deve funcionar "uma única vez" para conseguir a apesar de tudo, a atividade inobservável do sujeito. Ao procurar
qualidade do trem: "Faço disso um esporte': diz muito claramente, compreender as práticas de leitura de um texto, M. de Certeau con-
mais acima, um de nossos interlocutores. seguiu mostrar, por exemplo, que a atividade de ler apresenta todos
os traços de uma produção silenciosa: "O leitor insinua as astúcias
do prazer e de uma reapropriação no texto do outro: vira caçador
E 5. CATACRESES OBJETIVAS E SUBJETIVAS: furtivo" (1990, p. xux; cf. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer,
O MEDO DESLOCADO .. 16• ed., Petrópolis, Editora Vozes, 2009, p. 48). Essa caçada furtiva
[braconnage] não nos afasta da apropriação subjetiva das técnicas
Chama-se a atenção, aqui, para a vitalidade indispensável ao exercí- que só se tornam verdadeiros instrumentos ao realizarem as ações
cio duradouro do ofício. Na tentativa de anular os obstáculos que presentes do sujeito. A ferramenta não é, em si, um instrumento da
opõem a atividade a si mesma, esse envolvimento leva os maquinis- ação, mas torna-se esse instrumento em uma situação que o faz des-
tas a duplicar o meio exterior de trabalho por um meio interior que pertar (Rabardel, 1995; Béguin, 1994). Assim, pode-se pensar que
responde aos dilemas do precedente. A função dos instrumentos é ela inscreve, nas leis materiais de um suporte, o estilo de trabalho de
afetada por uma atividade de reconcepção ou re-criação das técni- um sujeito, ou seja, a distância que este interpõe entre ele e o gênero
cas, cujo uso é deslocado ou subvertido. Aqui, o dispositivo da "ve- profissional de que faz parte (Clot, 1997a; 1999a).
locidade automáticà: além de regular a velocidade do trem, serve Mas, já vimos, não são apenas os objetos materiais que se ofe-
para "fixar o espírito" do condutor na cabine, a fim de prevenir recem às catacreses: as retóricas da ação, ao tirarem o sujeito dos
qualquer "vagabundagem': Ao fazer disso um esporte, o condutor dilemas do seu curso de atividade, "caçam furtivamente" também
realiza um objetivo surgido dos conflitos vitais da atividade, aos no próprio sujeito. Para designar essa dupla orientação das catacre-
quais ele deseja escapar: em psicologia do trabalho, essa atribuição ses - dirigida em primeiro grau para o mundo ou para o próprio
de novas funções às ferramentas, o uso deslocado e inventiva de um sujeito-, pode-se falar de catacreses centrífugas e de catacreses cen-
dispositivo, é designado por catacrese (Clot, 1997a). A etimologia trípetas (Clot, 1997a). Damos um exemplo tirado da mesma pes-
grega indica que a catacrese consiste, de algum modo, em "puxar a quisa com os agentes de condução. D. Cru propôs uma abordagem
brasa para sua sardinhà'. psicopatológica do problema do medo nos condutores (Cru, 1997).
Esta re-criação do meio técnico sedimentado que lhe confere Vamos retomar, com ele, a formulação de um dos entrevistados:
uma espécie de polifonia funcional, sob o impacto da atividade pre- "Eu me faço medo para manter-me no trabalho:' Pode-se, aliás,
sente do condutor, não é uma curiosidade psicotécnica. Aqui, va- equipará-la às observações feitas por Y. Schwartz que relata o de-
mos defender que essa subversão de formas é uma característica poimento de um condutor: "Penso que é o medo de errar ou, antes,
geral do desenvolvimento psicológico real. Este não se efetua pela de não tomar a decisão adequada, de fazer uma escolha equivocada
interiorização dos funcionamentos exteriores ou das significações no dia em que ... que me impele a criar, desse modo, situações fictí-
existentes, mas recriando-os para lhes conferir uma "segunda vidà' cias de incidentes" (1987, p. 185).
108 Segunda Parte -A atividade: problemas e conceitos Clínica da atividade e psicopatologia do trabalho 109

Em uma perspectiva de psicologia do trabalho, não seria pos- na ação, instrumento da ação (Cru, 1997). Frágil preservação de um
sível levantar, aqui, a hipótese de que os medos passados são rein- equilíbrio no primeiro caso, vivido sem brechas, busca ativa do
I
vestidos para "fixar" a situação presente, mesmo sem o conheci- equilíbrio no outro caso, transformação de uma experiência vivida
mento do sujeito? Os medos vividos não são camadas inertes da sua em meio de viver outras experiências. Na clínica do trabalho, com
experiência; melhor ainda, pode-se pensar que eles se tornam obje- toda a evidência, existem diferentes tipos de defesa. Nem todas as
tos da sua relação com o mundo. Os medos sedimentados podem proteções têm o mesmo valor. Voltemos, portanto, a esse problema
ser habitados de novo e, para além disso, transformarem-se em clínico e epistemológico, fazendo referência à tradição mobilizada
modo de ação sobre o real: traduzindo-os na nova língua da ação, o até aqui e, também, servindo-nos dos trabalhos de G. Canguilhem.
sujeito se desfaz desse fardo. O passado serve, sob esta perspectiva,
para exorcizar os riscos do presente. O sujeito previne-se fazendo
apelo a proteções instauradas outrora, no decorrer de situações .. 6. CONTRIBUIÇÃO E LIMITE DAS DEFESAS
análogas. O indivíduo defende-se contra o medo, ao defender-se PARA A SAÚDE E

com o medo. Nesse caso, os sujeitos se protegem paradoxalmente


do "medo de errar", ao "ficarem amedrontados". Esse procedimento Canguilhem escreve que, no organismo, é necessário reconhecer "a
psicológico de reconversão dos medos suscita um interessante pro- existência de um sistema de réplicas de autodefesà' que preserva
blema dínico 1 . sua saúde e autoriza a "inversão da proteção em ataque" (1983, p.
Essa catacrese subjetiva se torna inteligível se compreender- 404). Ou, dito de outro modo, a doença é uma expressão da vida,
mos que o sujeito só reproduz sua história com o objetivo deres- ou, como observa C. Debru, uma modificação da vida que permite
ponder a uma situação atual, como uma repetição sem repetição. a procura dela - talvez, diminuída -, mas presente inclusive nas
Ele se toma como objeto, mesmo sem o saber, para conseguir livrar- manifestações mais estranhas e, aparentemente, aberrantes, da pa-
se dos conflitos de sua atividade presente. Certamente, ele corre o tologia: "A patologia é uma exploração de diferentes ordens fisioló-
risco de promover mecanismos que, paradoxalmente, ameaçam, de gicas possíveis" (1998, p. 48).
maneira permanente, restabelecer tais conflitos. Melhor ainda, essa Em 1954, M. Foucault já tinha chamado a atenção para a im-
circularidade pode confinar-se em si mesma, se a atividade do su- portância dessa noção de defesa que, ao discutir a contribuição da
jeito com outros sujeitos não lhe fornecer a oportunidade de deslo- psicanálise, ele definia assim: "É uma maneira de dominar um con-
car seus investimentos. flito. O mecanismo patológico é \liDa proteção contra um conflito
. De qualquer modo, a clínica da atividade se encontra, aqui, face à contradição que ele suscità' (1995, p. 41). Portanto, parado-
perante uma distinção necessária: será que, na elaboração das res- xalmente, a saúde do sujeito se comprova pelos meios deslocados
postas psicológicas em situação de trabalho, todas elas dependem da patologia. Como observa Canguilhem, "é a indiferença de um
de mecanismos defensivos? D. Cru ficou surpreso pelo fato de que ser vivo pelas suas condições de vida e à qualidade de seu intercâm-
o medo, tabu nos canteiros de construção civil, se tenha tornado bio com o meio que é profundamente anormal" (1984, p. 57). Usan-
objeto de reflexão e de fala para os condutores de trem, mobilizado do de outras palavras: "o estado de saúde é ser capaz de ficar doente
e restabelecer-se, ou seja, um luxo biológico" (p. 132); de fato, "a
morbidez é sempre certa maneira de viver" (p. 155).
1
É uma domesticação do medo pela qual se enriquece a experiência, aliás, um dos Será, então, necessário pensar que a introdução do conceito
expedientes que modela os instrumentos da consciência comum que congrega, secre-
de defesa permite abrir uma problemática da saúde? Em certo sen-
tamente e de forma bastante sólida, os praticantes do mesmo ofício, sejam eles ou não
da mesma geração. A essa consciência comum atribuímos o qualificativo de "gênero" tido, essa é a tendência de toda a obra de Canguilhem e uma corren-
do ofício. te da tradição de psicopatologia do trabalho visa a esse objetivo
11 o Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Clínica da atividade e psicopatologia do trabalho 111

(Dejours, 2000). No entanto, a reflexão de Canguilhem nos alerta Na esteira de Foucault, poderíamos escrever que, ali, onde
sobre obstáculos contra os quais a nossa clínica das 1 atividades de uma pessoa que se sente com saúde faz a experiência da contradi-
trabalho costuma, também, esbarrar com frequência: "Por excesso ção, o paciente faz uma experiência contraditória; "a experiência de
de suas reações de defesa, o organismo pode comportar-se como um se abre para a contradição, enquanto a do outro se confina nela''
cooperante de seu agressor" (1983, p. 404). De fato, o paciente, para (1995, p. 48). Deve-se, portanto, proceder cuidadosamente à distin-
manter uma espécie de constância vital, pode instalar-se em um ção entre saúde e defesas. A primeira pode, inclusive, acabar por ser
meio empobrecido; então, a doença é "a instauração de novas nor- arruinada pelas segundas. O que define a saúde é, de determinado
mas de vida por uma redução do nível de atividade em relação com ponto de vista, a possibilidade de viver sem defesas, ao superá-las
um meio novo, mas estreitado" (1984, p. 121). Eis por que é conve- no momento em que elas se tornam normas de vida restritivas. Vi-
niente servir-<Se, aqui, da máxima prudência epistemológica. Para ver, "além de vegetar e conservar-se, é enfrentar riscos e vencê-los"
retomar uma expressão de H. Ey, "limitar-se a ver, na doença, apenas (1985, p. 167). Ser normal, não é ser adaptado, mas ser mais que
seu sentido é suprimir o contrassenso que a constitui" (Ey, 1946, p. normal, criativo. A resposta - ou, ainda, a réplica criativa - faz cres-
223) 1• E, para Canguilhem, o doente está doente por "aceitar apenas cer o sujeito que a defesa apenas protege. Eis o motivo pelo qual, na
uma única norma'' (1984, p. 122), por ter deixado de ser normativo. saúde, há mais que um ideal ou uma ficção, para retomar o vocabu-
Ou, por outras palavras, se a defesa é efetivamente "uma nova di- lário de Dejours (1995, p. 7). Existe um poder de agir que a doença
mensão da vida'' (p. 122), ela é também uma diminuição da vida. corrói e que o sujeito defende, sem se confundir com as defesas; há
Porque, se viver é preferir e excluir - o que complica seriamente a um poder de indeterminação, uma atividade de resistência que a
doença ao reduzir as margens de manobra do doente -, a patologia doença põe à prova e contraria.
é, por sua vez, "um sentimento de vida contrariado" (p. 85).
Voltemos, então, à psicopatologia e à psicologia do trabalho
• 7. SAÚDE E PODER DE AGIR ..
contemporânea (Clot, 1995, 1999b; Dejours, 1995, 1997). Gostaría-
mos de colocar a saúde no centro de nossas preocupações. Ora, as Essa resistência não é, certamente, um atributo pessoal confinado
defesas e, singularmente, as "estratégias coletivas de defesa'', bem em si mesmo ou formado à margem das relações dos indivíduos
estudadas por Dejours em ambiente de trabalho, apesar de serem entre si. Dejours tem razão em torná-la tributária de uma dinâmica
capazes efetivamente de apresentar a normalidade preservada (De- intersubjetiva (1995, p. 6). Longe de ser um dado natural, a saúde é
jours, 1995), de um estado de equilíbrio, não permitem, de modo um poder de ação sobre si e sobre o mundo, adquirido junto dos
algum, ter acesso à saúde, enquanto tal. Sem dúvida, a normalidade outros. Ela está ligada à atividade vital de um sujeito, àquilo que ele
é a aceitação de uma norma, a adaptação a um meio e às suas exi- consegue, ou não, mobilizar de sua atividade pessoal no universo
gências, ao passo que sentir-se com saúde - que é a saúde, insiste das atividades do outro; e, inversamente, àquilo que ele chega, ou
Canguilhem- é "sentir-se acima do normal", "capaz de seguir novas não, a utilizar das atividades do outro em seu próprio mundo. Por-
normas de vida'' (1984, p. 133), instigador de normas, sujeito vivo tanto, se a saúde encontra sua origem na preservação do que o su-
de uma normatividade. jeito se tornou, ela descobre seus recursos naquilo que ele poderia
ter sido. "Em cada instante, o número de possibilidades existente
em nós é muito maior do que aquele afirmado pela fisiologia'' ( 1984,
1
Para um histórico detalhado dos debates mantidos pelos iniciadores da psicopato- p. 59), escreve Canguilhem que conclui sua reflexão desta maneira:
logia do trabalho, na França, remetemos ao trabalho de I. Billiard (1998). Ela dedicou
penetrantes análises ao Colóquio de Bonneval de 1946, durante o qual H. Ey pronun- ''A vida está habitualmente aquém das suas possibilidades; mas,
ciou a frase citada. quando necessário, ela se mostra superior à sua capacidade esperada''
112 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Clínica da atividade e psicopatologia do trabalho 113

(p. 131). Em seu entender, como se sabe, a vida é uma atividade em No fundo, Canguilhem nos ajuda a sair de um dilema episte-
que se põe à prova, continuamente, uma subjetividade1 que, antes de mológico recorrente com sérias consequências práticas na clínica
mais nada, é uma insatisfação (1983, p. 364). O mesmo ocorre com do trabalho: ou a saúde e a doença nada têm em comum, de modo
a saúde. E é essa razão - a motricidade da insatisfação - que nos que o normal e o patológico são totalmente excludentes (psicologia
leva a privilegiar a saúde em relação à normalidade. do trabalho e psicopatologia do trabalho nada têm a compartilhar);
"Preferimos interessar-nos pela normalidade mais modesta, ou, pelo contrário, elas se identificam e, pela mediação das defesas,
mais acessível e menos brilhante, embora mais apropriada às di- a saúde é, então, apenas uma das variedades da doença (a psicologia
mensões do homem e da mulher comuns': escreve, pelo contrário, do trabalho se torna, nesse caso, sinônimo de psicopatologia do tra-
Dejours (1995, p. 7). Mas será viável tal postura sem privar a nor- balho). Como havia sido observado, em seu tempo, por Vygotski
malidade da sua história possível, de seus horizontes? Vamos prefe- (1999, p. 77), se a chave da psicologia geral se encontra na patologia,
rir acompanhar Canguilhem: "O que caracteriza a saúde é a possi- a psicologia do homem "normal" - no sentido normativo - deve
bilidade de superar a norma que define o normal momentâneo, a tornar-se uma variante da psicopatologia, eleita, dessa vez, discipli-
possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir na-mestra. Ora, para Canguilhem, se a defesa é efetivamente uma
novas normas em situações novas" (1984, p. 130). A clínica das ati- criação, trata-se de uma criação atravancada, um impasse no devir,
vidades profissionais nos conduz sempre a este ponto: a estrita con- um passo em falso ou, ainda, uma estreiteza na história do sujeito.
servação de si se opõe à saúde. Ao permitirem que numerosos tra- Apesar de sua participação na saúde, a doença não é a saúde. Um
balhadores permaneçam "normais': as construções defensivas tanto como o conhecimento tem sempre sua origem na reflexão so-
acabam, simultaneamente, por diminuí-los nas situações em que as bre um fracasso da vida ( 1984, p. 150 ), a saúde se origina na experi-
réplicas construídas são suscetíveis de fazê-los crescer. ência amadurecida do perigo esconjurado. A saúde não se opõe à
doença, do mesmo modo que não se identifica com ela, mas pro cu-
ra apropriar-se dela. Sua tentativa consiste em alterar o estatuto da
R 8. CANGUILHEM E VYGOTSKI: doença. A saúde, diferentemente da normalidade defensiva, é a
ATITUDES E DESENVOLVIMENTO • transformação da doença em novo meio de existir, a metamorfose
de uma experiência vivida em um meio de viver outras experiências
De fato, a psicologia do trabalho pode, sem dúvida, tirar proveito e, finalmente, a transfiguração de um paradoxo experimentado 1 em
das reflexões de Canguilhem sobre as duas "atitudes" ["allures"] da história possível, de uma vivência 'em um meio de agir.
vida que estabelecem a diferença entre criações e defesas: "Entre as "Quem passou pela experiência patológica instaurou em si
atitudes inéditas da vida, há dois tipos. Existem as que se estabili- outra maneira de existir; ele conserva vestígios da tempestade. Ao
zam em novas constantes, mas cuja estabilidade não criará obstácu- superá-la, ele está, ao mesmo tempo, aguerrido e fragilizado", ob-
lo à sua nova superação eventual. Trata-se de constantes normais serva Dagognet (1997, p. 45). A doença, nesse caso, já não é o que
com valor propulsivo; elas são verdadeiramente normais por nor- havia sido, mas aquilo em que se tornou e há de tornar-se para
matividade. Por outro lado, existem as que hão de estabilizar-se sob
quem a superou A saúde não é o esquecimento da doença, mas o
a forma de constantes que o esforço ansioso do ser vivo tenderá a
acesso dessa a outra função na vida do sujeito, ou seja, um novo uso
preservá -las de qualquer perturbação eventual. São efetivamente
da doença. Se tivéssemos a certeza de sermos bem compreendidos,
constantes normais, embora com valor repulsivo, o que exprime
sua carência de normatividade; nesse aspecto, elas são patológicas,
embora normais enquanto o ser vivo consegue viver por seu inter- 1
Sobre este ponto, podemos dar como referência, também, a leitura dos trabalhos de
médio" (1984, p. 137). D. W. Winnicott proposta por R. Roussillon (1980).
114 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Clínica da atividade e psicopatologia do trabalho 115

poderíamos falar da saúde como desenvolvimento da doença na compensação" (Vygotski, 1994b, p. 129). Toda ingenuidade é des-
história do sujeito: inicialmente, fonte de preocupação vital para cartada por Vygotski: "Seria errôneo pensar que a luta do organis-
ele, a doença pode oferecer-lhe, uma vez superada a provação, pelo mo contra a doença tem sempre um desfecho favorável, que todo o
aprimoramento conjunto da experiência e da consciência, uma organismo é vencedor em todas as condições" (p. 138). A partir de
nova disponibilidade do intelecto e do corpo; inversamente, ela numerosas pesquisas empreendidas sobre a deficiência mental, ele
pode também- destino frequente- desenvolver-se como um entra- observa: "Se, com o defeito, fossem fornecidas também as forças
ve recorrente. É porque existe, sem dúvida, desenvolvimento e de- que permitissem superá -lo, todo o defeito seria um benefício. Será
senvolvimento: desenvolvimento da doença na história do sujeito que é sempre assim? De fato, a supercompensação é apenas uma das
ou, então, desenvolvimento da história do sujeito na doença. Nada duas saídas finais possíveis deste processo, um dos dois polos do
está escrito de antemão. Eis o motivo pelo qual - de acordo com a desenvolvimento hipotecado pela falha. O polo oposto é a compen-
observação de Vygotski por meio de uma formulação que, certa- sação malograda, a rejeição da doença, a neurose, a associabilidade
mente, não teria sido desaprovada por Canguilhem - "não basta psicológica total. Com a ajuda da doença, a compensação malogra-
conhecer a doença que atinge determinado homem, mas convém da se transforma em defesa, em objetivo fictício que orienta toda a
saber como se comporta o doente" (1994b, p. 123); saber como, de trajetória de vida pelo mau caminho. Entre esses dois polos extre-
algum modo, o doente desenvolve sua doença. mos, escalonam-se todos os graus possíveis de compensação, da
Assim, ficamos sonhando com um diálogo entre Vygotski e compensação mínima à compensação máximà' (p. 98). A compen-
Canguilhem. De fato, com Vygotski (Clot, 1999c), a psicologia conse- sação malograda - factícia - é o resultado de um conflito no desfe-
guiu encontrar o caminho de uma reformulação crítica do problema cho do qual o sujeito vencido se protege por meio de sua "fraquezà'
do desenvolvimento que se harmoniza bastante bem com as reflexões (p. 250).
de Canguilhem sobre a questão (Canguilhem, Lapassade, Piquemal, A "fraquezà' em que a experiência penosa precipita o sujeito
& Ulmann, 1985). A partir de um modelo da supercompensação que é fonte de "forçà' apenas se ele encontra também à sua volta, com os
transforma a intoxicação em imunidade, o psicólogo russo propõe outros - seus pares - recursos de compensação na vida sociocoleti-
observar o organismo do sujeito como a sede de um potencial de va e na pluralidade social dos círculos onde está inserido. No início,
energia e de força oculta. Nos momentos de provação, escreve ele, o simples meios deslocados para atingir o objetivo, esses recursos ex-
organismo "mobiliza as reservas ocultas de força acumulada, concen- teriores se transformam, potencialmente, em fontes: esse compor-
tra-as no local do perigo e, depois, sem economizá-las, libera doses tamento coletivo ativa e suscita funções psíquicas próprias, "ele é
de antídoto bem maiores que a dose de veneno que o ameaça. Dessa igualmente fonte de criação de formas de comportamento total-
maneira, além de compensar o dano que lhe foi infligido, o organis- mente novas" (p. 133). Por retroação e como resposta a essa migra-
mo cria regularmente um excedente, um contrapeso ao perigo e, as- ção de fontes do desenvolvimento, o sujeito deve servir-se de seus
sim, obtém um maior grau de proteção relativamente ao que dispu- próprios recursos e, às vezes, chega a descobrir alguns de cuja exis-
nha antes de ter surgido o perigo' (Vygotski, 1994b, p. 86). Existe, tência ele nem suspeitava.
portanto, um duplo destino para as atividades "enrustidas" na experi- Ocorre que "os objetivos fictícios" das defesas, enquanto
ência penosa: defesa ou réplica por supercompensação. É verdade criações mórbidas, não abrangem, portanto, a totalidade das mo-
que, em relação às provações do trabalho, a réplica possível supõe dalidades psíquicas da elªboração da experiência penosa que defi-
sempre a elaboração do perigo vivido, no seio de um coletivo que ne o real da atividade. Elas constituem, também, um fracasso de tal
pode, nesse caso, conferir-lhe um sentido em uma história. elaboração, um "passo em falso", o que poderia ser designado como
Com efeito, a supercompensação pode, obviamente, seguir uma supercompensação exclusivamente formal. Por sua vez, esta
um caminho defensivo e imobilizar-se em "sintomas fictícios de última pode ser oposta, no plano clínico, à supercompensação real
116 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos

que culmina em um desenvolvimento do poder de agir; essa é,


aliás, a via da promoção da saúde e não apenas a da p~eservação da
normalidade.

a 9. A PROTEÇÃO ENTRE DEFESA E RÉPLICA ~

Então, a atividade "enrustidà: em suspenso* inverte-se em desen-


volvimento subjetivo, entendido como ampliação do raio de ação
estilos da
do sujeito em si e fora de si; mas, como já vimos, esse desenvolvi-
mento pode ser interditado e a atividade intoxicada, imobilizada
pela repetição de procedimentos defensivos. Com efeito, pode-se
pensar, com Ricoeur, que o sofrimento não é unicamente definido
pela dor física ou mental, mas "pela diminuição - e, até mesmo,
destruição - da capacidade de agir, do ser-capaz-de-fazer, experi-
mentadas como ataque à integridade de si" (Ricreur, 1990, p. 223).
O sofrimento é, para ele, uma incapacidade para se exprimir, fazer,
relatar e se avaliar; é um impedimento. Ali onde a defesa é uma
proteção passiva que protege o sujeito do sofrimento sem lhe per- • 1. O PODER DE AGIR.
mitir, apesar disso, que se libere dele, reduzindo seu raio de ação
Neste capítulo\ pretende-se justamente tentar mostrar como e por que
com risco de anestesiá -lo, a réplica é uma proteção ativa. Ali onde o
acontece essa transformação. Na perspectiva da clínica da atividade
sofrimento é um sentimento de vida contrariado, a saúde é esse sen-
que adotamos, o objetivo da transformação das situações de trabalho
timento de vida reencontrado. Na nossa tentativa de fazer "falar o está no centro das questões suscitadas. Nesse sentido, retomamos, por
ofício': graças à restauração dos "debates entre escolas': das contro- conta própria, a tradição ergonômica da língua francesa. Mas a evolu-
vérsias e dos diálogos entre profissionais, temos conseguido, às ve- ção tanto da ergonomia, quanto da psicologia do trabalho e, de modo
zes, transformar a experiência mal vivida em meio de viver outras mais geral, das ciências do trabalho, leva-nos a esta interrogação: quais
experiências. são os protagonistas da mudança pretendida? Em nossa leitura, uma
abordagem clínica da transformação das situações do trabalho se dis-
tingue das estratégias clássicas de intervenção que redundam em reco-
mendações. Mudar uma situação não pode constituir o objeto da inter-
venção de uma expertise "externà: A abordagem mencionada aqui
propõe a implementação de um dispositivo metodológico destinado a
tornar-se um instrumento para a ação dos próprios coletivos de traba-
lho. Ela propõe um enquadramento para que o trabalho possa ser ou

1
Este capítulo retoma, com algumas mudanças insignificantes, um artigo escrito
com D. Fai:ta e publicado, em 2001, no n. 4 de Travaíller [Trabalhar]; ele é reproduzido
* No original, míse en souffrance literalmente, em situação de sofrimento. (N. T.) com a amável autorização do editor dessa revista.
118 Segunda Parte -A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 119

voltar a ser um objeto de pensamento para os interessados que formu- so entender, não existe, de um lado, a prescrição social e, do outro, a
lam tal demanda. Portanto, a contribuição de uma clínica1 da atividade é, atividade real; de um lado, a tarefa e, do outro, a atividade; ou ainda, de
em primeiro lugar, metodológica. De fato, pode-se considerar, atualmen- um lado, a organização do trabalho e, do outro, a atividade do sujeito.
te, que as transformações só conseguirão manter-se, de forma duradou- Existe, entre a organização do trabalho e o próprio sujeito, um trabalho
ra, pela ação dos próprios coletivos de trabalho. Eis o motivo pelo qual de reorganização da tarefa pelos coletivos profissionais, uma recriação
nos parece que a análise do trabalho visa, antes de mais nada, apoiar esses da organização do trabalho pelo trabalho de organização do coletivo 1•
coletivos nos seus esforços de reduplicar seu poder de agir no seu meio. O objeto teórico e prático que nos esforçamos em circunscrever é pre-
Dito de outra maneira, para ampliar seu raio de ação. A ação transforma- cisamente esse trabalho de organização do coletivo em seu meio, ou, de
dora duradoura não poderá, portanto, ser delegada a um especialista preferência, seus avatares, seus equívocos, seus sucessos e insucessos; ou,
da transformação, a qual não se pode tornar, sem graves decepções dito de outra maneira, sua história possível e impossível. Portanto, entre
para os agentes da demanda, um simples objeto de expertise. o prescrito e o real, há um terceiro termo decisivo que designamos como
Mas, dessa feita, a análise do trabalho teria deixado de ser um o gênero social do ofício, o gênero profissional, isto é, as "obrigações''
"ofício"? Neste capítulo, gostaríamos de mostrar que, pelo contrá- compartilhadas pelos que trabalham para conseguir trabalhar, frequen-
rio, ela merece consolidar, cada vez mais, tal função. Para isso, cre- temente, apesar de todos os obstáculos e, às vezes, apesar da organização
mos ser necessário empreender um esforço coletivo que, por sua prescrita do trabalho. Sem o recurso dessas formas comuns da vida pro-
vez, deve concentrar-se nas metodologias. Mas o problema dos mé- fissional, assiste-se a um desregramento da ação individual, a uma
todos é, sem dúvida, um dos que suscitam um maior número de "quedà' do poder de ação, assim como da tensão vital do coletivo, a
questões teóricas, justamente em razão do fato de que a técnica - uma perda de eficácia do trabalho e da própria organização.
tanto na pesquisa, quanto na intervenção - está sempre bastante
exposta às surpresas do real. A clínica da atividade que nos serve de
referência deve, portanto, ser o objeto de pesquisas conceptuais es- • 2. GÊNEROS DE LINGUAGEM, GÊNEROS TÉCNICOS •
pecíficas. Na sequência, será proposto, pois, definir os conceitos
que nos servem de balizas para responder à questão formulada mais Mas, por que o uso dessa noção de "gênero'' 2 ? Ela é tomada de em-
acima: em que condições e com que instrumentos práticos e teóri- préstimo a M. Bakhtine que a havia proposto em outro contexto
cos será possível alimentar ou restabelecer o poder de agir 1 de um
coletivo profissional no seu meio de trabalho e de vida? 1
Em certo sentido, o trabalho de organização do coletivo profissional já tem sido
Três noções são colocadas, aqui, em perspectiva: a do gênero, objeto de diferentes conceitualizações (Cru, 1995; Dejours, 1995; Leplat, 1997; Maggi,
a do estilo e a do desenvolvimento. Tentaremos, igualmente, sub- 1996; de Terssac & Maggi, 1996). Mas, ao associar gêneros e estilos profissionais, como
meter essa série de noções à prova de uma apresentação metodoló- fazemos, o centro da análise é ocupado pela história do desenvolvimento dos meios de
trabalho e dos próprios sujeitos.
gica da autoconfrontação cruzada. 2
Não nos é possível abrir, aqui, uma discussão sobre o uso deste conceito nos estudos
De fato, procuramos contribuir para a renovação da tradição feministas. Nesse campo, estabelece-se a distinção entre o sexo como o aspecto que
francófona da análise da atividade. Sabe-se que esta nos transmitiu a concerne ao biológico- e o gênero como a dimensão social. O conhecimento dos textos
identificação clássica da distância entre o prescrito e o real. Ora, parece- de C. Delphy (1991) ou, ainda, de N. C. Mathieu (1998) completa utilmente as referên-
cias - para nós, mais clássicas - aos trabalhos sobre as relações sociais de sexo de H.
nos necessário ir além dessa descrição tradicional do trabalho. Em nos- Hirata e de D. Kergoat (1998) ou, ainda, aos de P. Molinier que abordam a construção
da identidade sexual na psicodinãmica do trabalho (1996, 2006). Ocorre que, se o gêne-
ro, no sentido em que o entendemos, tenta circunscrever os componentes transpessoais
1
Essa noção, utilizada pela primeira vez em 1997, inscreve-se em uma perspectiva já da atividade subjetiva, é efetivamente por intermédio do gênero que essa atividade se
percorrida por Spinoza e Ricceur (Clot, 1999b). Na "Introdução" deste livro, mostra- realiza. É, inclusive, nas discordâncias criadoras ou destrutivas entre gênero social e
mos que ela unifica, sem os eliminar, os três conceitos que nos ajudaram a refletir so- corpo subjetivo, mas também em cada um deles, que poderiam ser encontradas as mo-
bre os desenvolvimentos possíveis ou impossíveis da ação: a eficácia relacionada com las propulsoras de uma história possível do sujeito e do social. Segundo parece, essa é
a eficiência e com o sentido (Clot, 1995). também a hipótese que se pode aventar após a leitura dos textos de J. Butler (2006).
120 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 121

para refletir sobre a atividade linguageira 1 • Segundo ele, as relações distinguem profundamente das formas estáveis da língua: as formas
entre o sujeito, a língua e o mundo não são diretas. Ela~ se manifes- sociais do gênero do enunciado em que a fala se ordena em enun-
tam em gêneros de discursos disponíveis, aos quais o sujeito deve ciações tipos. A livre-expressão de um sujeito realiza-se - mais ou
chegar a dispor para entrar no intercâmbio. "Se tivêssemos necessi- menos bem- na escolha de um gênero. Falamos em gêneros varia-
dade de criar, pela primeira vez na troca, cada um dos nossos enun- dos, sem suspeitarmos da sua existência. Moldamos nossa fala em
ciados, essa troca seria impossível" (Bakhtine, 1984, p. 285). Esses formas precisas de gêneros padronizados, estereotipados, mais ou
gêneros fixam, em determinado meio, o regime social de funciona- menos flexíveis, plásticos ou criativos.
mento da língua. Trata-se de um estoque de enunciados previsíveis, Esses gêneros, que são os falares sociais em uso em determi-
protótipos das maneiras de dizer ou de não dizer, em um espaço nada situação, nos são praticamente dados, assim como nos é dada
tempo sociodiscursivo. Pode-se falar, com François, de protossigni- a língua materna. Tanto quanto as formas gramaticais, os gêneros
ficações genéricas que estabelecem a relação entre a língua e o além- organizam nossa fala. Na melhor das hipóteses, o sujeito chega a
da-língua (1998, p. 9). Esses enunciados conservam a memória recriá-los, mas não os cria. Mais do que dados, eles lhe são empres-
transpessoaP de um meio social em que impõem sua autoridade, tados para que ele seja capaz de falar e de ser entendido pelos ou-
dão o tom. Eles denunciam os subentendidos que regulam as rela- tros. É impossível utilizar um enunciado que não se refira a outro
ções com os objetos e entre as pessoas, tradições adquiridas que se enunciado do mesmo gênero. A fala não é, portanto, um ato pura-
exprimem e se preservam sob o invólucro das palavras. Eles res- mente individual oposto à língua como fenômeno social. Existe ou-
guardam o sujeito contra um uso impróprio dos signos em deter- tro regime social da linguagem organizado segundo as formas so-
minada situação. Um gênero está sempre vinculado a uma situação ciais catalogadas da fala em um domínio de atividades. Bakhtine
no mundo social. fala do "diapasão lexícal" próprio de um meio e de uma época
(1970a, p. 279). Mesmo sem o saber, "o falante recebe, portanto -
Com essa noção, Bakhtine critica a linguística de Saussure,
além das formas prescritivas da língua comum (gramática) -, as
segundo o qual, como se sabe, a língua se opõe à fala como o social
formas não menos prescritivas dos gêneros. Para uma compreensão
ao individual. De um lado, a língua prescrita, o signo arbitrário; do
recíproca entre falantes, estas últimas formas são tão indispensáveis
outro, a iniciativa real do falante em situação. Bakhtine empenha-se
quanto as formas da língua" (1984, p. 287). E Bakhtine acrescenta:
em refutar tal bipolarização da vida da linguagem entre o sistema da
"Para utilizá -las livremente, é necessário um bom domínio dos gê-
língua, de um lado, e, do outro, o indivíduo (Bakhtine, 1978, p. 94;
neros" (1984, p. 286).
François, 1998, p. 120; Peytard, 1995, p. 34-36; Verret, 1997, p. 26).
Pode-se considerar que a crítica da dicotomia língua prescri-
Entre o fluxo perpétuo da fala real em situação e as formas de línguas
ta/fala real que Bakhtine dirige contra as ciências da linguagem é
normalizadas de Saussure, ele descobre outras formas estáveis que se
heurística para as ciências do trabalho. Com efeito, a oposição entre
tarefa prescrita e atividade real deve, em nosso entender, ser igual-
1
Manifestemos, de saída, nosso ceticismo em relação a qualquer abordagem "socio- mente aplicada ao trabalho. Porque as formas prescritivas que os
logizante" da obra de M. Bakhtin. Em seu entender, o diálogo é uma relação, na inter- trabalhadores se impõem para poder agir são, ao mesmo tempo,
locução viva, entre previsíveis e imprevisíveis, entre o reiterável e o acontecimento; restrições e recursos. Se fosse necessário criar, a cada vez na ação,
sobre este ponto, ver Fa"ita (1998). Essa concepção direcionada para o desenvolvimen-
to dos gêneros está, também, em ação no domínio da própria análise textual e literária cada uma das nossas atividades, o trabalho seria impossível. O gê-
(para uma síntese, ver Clot, 2002a). nero da atividade assenta, portanto, em um princípio de economia
2
Na primeira versão deste texto, usava-se ainda a palavra "impessoal" para designar da ação.
o gênero profissional. A conceitualização do ofício na clínica da atividade permite,
agora, estabelecer a distinção entre o impessoal e o transpessoal. Eis um ponto que O gênero é, de algum modo, a parte subentendida da atividade,
será examinado na "Conclusão" deste livro. o que os trabalhadores de determinado meio conhecem e observam,
122 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 123

esperam e reconhecem, apreciam ou temem; o que lhes é comum, trabalho. Eis algumas maneiras pessoais de utilizar um gênero so-
reunindo-os sob condições reais de vida; o que sabeiJt que devem cial transpessoal - levado a seu termo, à maneira de cada um, em
fazer, graças a um comunidade de avaliações pressupostas, sem que função dos objetivos perseguidos em tal ação - que correspondem
seja necessário re-especificar a tarefa a cada vez que ela se apresen- a algumas maneiras de se introduzir em algo de pré-estabelecido
ta. É como que uma "senha'' conhecida apenas por aqueles que per- disponível para colocá-lo à sua disposição.
tencem ao mesmo horizonte social e profissional. Essas avaliações Os gêneros de técnicas fazem a ponte entre a operacionalidade
comuns subentendidas adquirem, nas situações incidentais, uma formal e prescrita dos equipamentos materiais e as maneiras de agir e
significação particularmente importante. De fato, para serem efica- pensar de determinado meio. Não se constata a presença tanto de
zes, elas são parcimoniosas e, na maior parte das vezes, nem sequer enunciados deslocados ou, pelo contrário, aceitos em determinado
são enunciadas. Elas estão entranhadas na carne dos profissionais, meio social, quanto de gestos e atos materiais e corporais mal ou bem-
vindos. O alcance normativo de um gênero técnico 1 não é menor do
pré-organizam suas operações e sua conduta; de algum modo, estão
que o de um gênero de linguagem. Mas os recursos fornecidos por ele
grudadas às coisas e aos fenômenos que lhes correspondem. Por isso
aos sujeitos para controlarem seus atos visando os objetos, nada têm a
não exigem, forçosamente, formulações verbais particulares. O gêne-
invejar aos que conserva um gênero de discurso. De maneira geral, o
ro, como intermediário social, é um conjunto de avaliações compar-
que existe é uma gama de atividades impostas, possíveis ou proibidas.
tilhadas!, que, de maneira tácita, organizam a atividade pessoal. Aliás, pratos-significações e proto-operações estão, quase sempre, en-
No estudo da linguagem, M. Bakhtine (Bakhtine, 1984; Clot, trelaçadas, formando a textura do gênero e de suas variantes. Seria pos-
1999c) considera a palavra como um nó de significações. Ele en- sível dizer que os gêneros de discurso e os gêneros de técnicas formam,
contra, no mínimo, três palavras em uma só, três palavras em dis- conjuntamente, o que se pode designar por gêneros de atividades.
cordância, mais ou menos criadora, na mesma palavra: a própria Eles são os antecedentes ou os pressupostos sociais da atividade
palavra, a palavra do outro e a palavra do dicionário. Apesar de ser, em curso, uma memória transpessoal e coletiva que confere seu conte-
evidentemente, pessoal, a primeira não é rigorosamente privada: é údo à atividade pessoal em situação: maneiras de comportar-se, de diri-
necessário, antes de tudo, entendê-la - o que fazemos na troca do gir a palavra, de encetar uma atividade e de levá-la a termo, de conduzi-
linguajar comum- como uma acentuação pessoal, uma personali- la eficazmente a seu objeto. Essas maneiras de considerar as coisas e as
zação do "falar social" dos grupos a que pertence o locutor, os quais pessoas em determinado meio de trabalho formam um repertório dos
fazem determinado uso da língua em seus meios. É necessário en- atos convencionados ou deslocados. que haviam sido adotados pela his-
tender a palavra no enunciado que o vincula a um gênero de discur- tória desse meio. Tal história fixa os previsíveis do gênero que permitem
so. Propusemos (Clot, 1999a) considerar, igualmente, como um suportar - em todos os sentidos do termo - os imprevisíveis do real.
"gênero de técnicas" o regime de utilização das técnicas num dado Mobilizar o gênero do ofício é, também, adotar o "diapasão profissio-
meio profissional. Rigorosamente, o gesto profissional de um sujei- nal"; é ser capaz de manter-se firme, em todos os sentidos da expressão.
to é uma arena de significações, além de ser a individuação e a esti-
lização das técnicas corporais e mentais, eventualmente diferentes, • 3. O GÊNERO, ENTRE RESTRIÇÃO E RECURSO ..
em circulação no ofício e que constituem o "toque social" desse ofí-
cio. Tal gesto é apenas a integral das discordâncias e da sustentação O gênero profissional pode ser apresentado como uma espécie de
entre o gesto prescrito, meu próprio gesto e o gesto dos colegas de pré-fabricado, estoque de "disponibilização de atos", de "registros

1
A partir daí, é que também pode ser retomada a questão geral sobre a avaliação 1 Esse conceito abrange, igualmente, as técnicas do corpo, cuja importância havia
social do trabalho (Clot, 2006d). sido bem assinalada por M. Mauss (1950-1985).
Segunda Parte -A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 125
124

em palavra", mas também de conceituações pragmáticas (Samurçay precede, prefigura-a e, desse modo, a significa. Eles designam as
& Pastré, 1995), prontas para serem utilizados. É, t<,tmbém, uma factibilidades urdidas em maneiras de ver e de agir sobre o mundo,
memória para pré-dizer. Um pré-elaborado social. Essa memória consideradas, em determinado momento, como adequadas no gru-
pode ser definida como um gênero que instala as condições iniciais po dos pares. Trata-se de um sistema flexível de variantes normati-
da atividade em curso, prévias à ação. Pré-atividade. Resumo proto- vas e de descrições, comportando diversos cenários e um jogo de
psicológico disponível para a atividade em curso. Dado a recriar na indeterminação que nos diz como funcionam aqueles com quem
ação, essas convenções de ação para agir são, ao mesmo tempo, res- trabalhamos, como agir ou abster-se de agir em situações precisas;
trições e recursos. Elas têm o caráter de um premeditado social em e como conduzir a bom termo as transações interpessoais exigidas
movimento que, apesar de não depender da prescrição oficial, a tra- pela vida em comum, organizada em torno dos objetivos de ações.
duz, a "revitaUza'' e, se necessário, a contorna. Existem tipos relati- Em um meio profissional, nunca se abandona, sem consequ-
vamente estáveis de atividades socialmente organizadas por um ências deletérias, a ideia de compartilhar formas de vida em co-
meio profissional, mediante as quais o mundo da atividade pessoal mum, reguladas, além de reforçadas pelo uso e pelas circunstâncias.
se realiza, exprime-se com precisão, em formas sociais que não são As tensões entre variantes que se enfrentam são, aliás, muitas vezes,
fortuitas, nem um único instante, que têm uma razão de ser e certa o melhor sinal de que se busca estabilizar um gênero. A renúncia ao
perenidade. A palavra "existem" é um tanto exagerada. Porque, em gênero, por qualquer razão que se possa imaginar, é sempre o início
certo sentido, o verdadeiro problema está aí. De fato, a existência de uma desordem da ação individual. Ele desempenha, portanto,
desses gêneros, que definem não só a maneira como os membros do uma função psicológica insubstituível. Vamos defender, então, esta
coletivo devem comportar-se nas relações sociais, mas também as tese: é em seu aspecto essencialmente transpessoal que o gênero
maneiras de trabalhar aceitáveis, é extremamente maltratada nas profissional exerce uma função psicológica na atividade de cada
organizações contemporâneas. O trabalho de organização dos pró- um. Porque ele organiza as atribuições e as obrigações ao definir
prios coletivos, nem que fosse pelo tempo que lhe é concedido, está essas atividades independentemente das características subjetivas
longe de ser estimulado como devia, se forem levadas em conside- dos indivíduos que as executam em tal momento particular. Ele
ração as exigências das tarefas. Mais ainda, não é raro que ele seja ajusta, não as relações intersubjetivas, mas as relações interprofis-
desestimulado na organização oficial do trabalho sob o efeito das sionais, ao fixar o espírito dos lugares como instrumento de ação.
diversas tiranias do curto prazo (Clot, 2000; Clot & Fernandez, Por seu intermédio, é que os trabalhadores se avaliam e se julgam
2000). O exercício dos ofícios se encontra consideravelmente com- mutuamente, além de que cada um deles avalia sua própria ação.
plicado pela impossibilidade de se chegar tanto a um acordo sobre
as obrigações compartilhadas para trabalhar, quanto a um "entendi-
mento", na medida em que o único recurso é, com grande frequên- E 4. o ESTilO: liBERAR-SE PARA SE DESENVOlVER E

cia, o uso patogênico e necrosado das ideologias defensivas de ofí-


cios, bem descritas por Dejours (1993). Mas eis que o gênero não é amorfo: porque ele é o meio para agir
Este ponto é, indubitavelmente, decisivo para a mobilização com eficácia, sua estabilidade é sempre transitória. Se se tratasse de
psicológica na situação de trabalho. Porque os gêneros, estabiliza- uma norma ou de um simples sistema de filiação, ele seria, em sua
dos momentaneamente, são um meio de saber reencontrar-se no natureza de ser, intangív~l; mas, em vez de ser apenas organização,
mundo e de saber como agir, aliás, recurso para evitar cair em erros, ele é igualmente instrumento, no sentido atribuído a este termo por
completamente só, diante do sem-número de tolices possíveis (Dar- Rabardel (1995, 1999), constantemente submetido à prova do real;
ré, 1994). Eles definem a filiação a um grupo e orientam a ação nele, não somente obrigação a respeitar, mas também recurso a renovar
oferecendo, fora dessa ação, uma forma social que a re-presenta e a e método a ajustar. Aquele ou aqueles que trabalham, agem por
126 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 127

meio dos gêneros, enquanto satisfazem às exigências da ação. As- Cada sujeito interpõe, entre si e o gênero coletivo que ele mo-
sim, quando é necessário, eles ajustam e aperfeiçoall} os gêneros, biliza, seus próprios retoques do gênero. O estilo pode ser definido,
posicionando-se igualmente fora deles por um movimento, por portanto, como uma metamorfose do gênero em curso de ação.
uma oscilação, às vezes, rítmica que consiste em se afastar, em se so- Desse modo, o diálogo entre profissionais, ao qual recorremos na
lidarizar e em se confundir, de acordo com as contínuas modificações autoconfrontação cruzada - voltaremos ao assunto - torna o gêne-
de distanciamento que podem ser consideradas criações estilísticas. ro visível e discutível, desvelando-o ao submetê-lo à prova na con-
Aliás, este trabalho de estilo é que produz uma estilização dos gêne- frontação com sua própria atividade e com a do outro. Cada auto-
ros, suscetível de "mantê-los em estado de funcionamento': isto é, de confrontação faz reviver o gênero de uma maneira pessoal,
transformá-los desenvolvendo-os. Os estilos não cessam de meta- oferecendo ao coletivo a possibilidade de um aperfeiçoamento do
morfosear os gêneros profissionais que eles adotam como objeto de gênero ou, em todo o caso, a possibilidade de um questionamento
trabalho logo que estes ficam "fatigados" como meio de ação. Há, capaz de levar à validação coletiva de novas variantes. O gênero
portanto, uma interioridade recíproca entre estilos e gêneros profis- pode, assim, permanecer vivo, isto é, conservar as qualidades de um
sionais que impede de transformar o estilo em um simples atributo instrumento de ação, quando as condições da ação se transformam.
psicológico do sujeito, como ainda ocorre de forma bastante siste- A história de um meio de trabalho continua se - e somente se- ela
mática na psicologia (Amalberti, 1996; Huteau, 1987). é aprovisionada pelas contribuições estilísticas, acrescidas ao patri-
mônio no decorrer de uma percolação a recomeçar constantemente
O estilo participa do gênero ao qual ele fornece o seu modo
na amálgama das gerações. O gênero de um meio de trabalho se
de ser. Os estilos são o retrabalho dos gêneros em situação, enquan-
mantém, realizando-se e revelando-se apenas nas diversas variantes
to os gêneros, de fato, são o contrário de estados fixos. Melhor ain-
que se formam ao longo da sua evolução. Quanto mais pontos de
da, eles estão sempre inacabados. Apesar de ser reiterável em cada
contato tiver o sujeito com essas variantes, tanto mais fecundo e
situação de trabalho, o gênero só adquire sua forma acabada me-
flexível será seu manejo do gênero. Se ele é submetido regularmen-
diante os traços particulares, contingentes, únicos e não reiteráveis
te à prova, o gênero vive no presente, lembra-se do seu passado e
que definem cada situação vivida. No decorrer da atividade que se
elabora uma memória para predizer. Se ele assume essa dinâmica
inicia, o pleno desenvolvimento do gênero se divide em dois mo-
genérica, o coletivo está, então, em condições de assegurar aos su-
mentos: a atividade do sujeito que se engaja no pressuposto da ati-
jeitos uma postura e uma perm~nência através das evoluções do
vidade de outro, o qual se engaja, então, usando o gênero adaptado
trabalho que, nesse caso, ele permite "digerir" ou antecipar.
à situação. O estilo individual é, antes de mais nada, a transforma-
ção dos gêneros na história real das atividades no momento de agir
em função das circunstâncias. Mas, desse modo, aqueles que agem '" 5. A "DUPlA VIDA" DO ESTilO •
devem ser capaz de servir-se do gênero ou, mais rigorosamente,
manipular com destreza as diferentes variantes que animam a vida Acabamos de referir o estilo ao gênero, privilegiando assim a fun-
do gênero. É esse processo de metamorfose dos gêneros, promovi- ção da memória social transpessoal da atividade. O gênero social é
dos à categoria de objeto da atividade e recebendo novas atribuições constitutivo do estilo, o que exclui a possibilidade de transformar
e funções para agir que conserva a vitalidade e a plasticidade do esse último em um simples atributo psicológico privado. É por isso
gênero. Os gêneros continuam vivos, graças às recriações estilistas. que falaremos, de bom grado, do estilo da ação pensando no fato de
Mas, inversamente, o não domínio do gênero e de suas variantes que a ação é sempre endereçada. No entanto, ao insistir sobre a im-
impede a elaboração do estilo. Servir-se com certa liberdade dos portância de cultivar o gênero em suas variantes e heterogeneidade
gêneros implica sua refinada apropriação. para que ele permaneça vivo, sublinhamos a função criadora dos
128 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 129

estilos individuais da ação. Com efeito, a distância tornada em rela- De qualquer modo, eles se percutem, fazendo sempre renascer nele
ção aos gêneros sociais é insuficiente para definir os e,stilos da ação possibilidades e impossibilidades que o dividem e que ele busca
pessoal. Agora, convém abordá-la deliberadamente. Para cada pro- capturar ou superar. Finalmente, o estilo - terceiro termo entre gê-
fissional, o estilo não consiste somente em libertar-se do gênero so- nero interior e exterior - vive nos confins dos conflitos que agitam
cial, desenvolvendo-o. Longe de nós a ideia de subestimar o proces- as duas memórias da atividade. O estilo é um "misto" que confirma
so de estilização que acabamos de descrever. Contudo, a libertação a libertação possível da pessoa em relação à sua memória singular
do sujeito para agir não está unicamente voltada para o coletivo e da qual ela, entretanto, continua sendo o sujeito e de sua memória
suas obrigações. Ele também está voltado para si mesmo. O estilo é, transpessoal e social da qual permanece forçosamente o agente.
igualmente, a distância que um profissional interpõe entre sua ação Existiria, então, urna unidade dinâmica do estilo na interseção de
e sua própria ~istória, quando ele a adapta e retoca, colocando-se à duas linhas de sentido oposto: na primeira, ele desembaraça ou li-
margem dela por um movimento, urna oscilação, aí, às vezes, tam- berta o profissional do gênero profissional, não negando esse últi-
bém rítmica - consistindo em se afastar dela, em solidarizar-se e mo, mas pela via de seu desenvolvimento, forçando-o a se renovar.
confundir-se com ela, assim corno em desembaraçar-se dela, de Na segunda, ele emancipa a pessoa de seus invariantes subjetivos e
acordo com as contínuas modificações de perspectivas que podem operatórios incorporados\ não - nesse caso também - por sua re-
ser consideradas, igualmente, corno criações estilísticas. Após a jeição, mas igualmente pela via do seu devir possível, inscrevendo-
"política exterior" do estilo no âmago do gênero, eis-nos chegados os em urna história que os reconverte. Nessa intersecção, o desen-
às fronteiras de sua "política interior': na história pessoal do desen- volvimento é conflito. Os impasses fazem parte dos possíveis que aí
volvirnento psicológico. Vygotski foi quem nos permitiu urna me- se enfrentam.
lhor compreensão desses problemas (Clot, 1999a). Propomos, portanto, considerar a atividade real corno urna ati-
Em seu entender, a atividade conjunta do sujeito com os ou- vidade que se realiza entre duas memórias: urna, pessoal; e a outra,
tros é a mola propulsora de sua história. Mas a história pessoal do transpessoal. Seria possível dizer, para voltar ao ofício, que - além do
desenvolvimento não cessa, justamente, de propor ao sujeito outros ofício "neutro" da prescrição - ele existe simultaneamente corno meu
destinos para seus conflitos intrapsicológicos, outras saídas para os ofício e corno o ofício dos outros. O vocabulário corrente exprime
dilemas que retêm sua história ou, ainda, novas oportunidades para perfeitamente tal aspecto: temos [on a] um ofício e somos [on est] do
possibilidades não realizadas. Ternos de lidar, aqui, com a segunda
ofício. Indissociáveis, essas duas formulações exprimem bem até que
base da recriação estilística. A memória pessoal do sujeito compor-
ponto a expertise é engendrada, inquestionavelrnente, no ponto de
ta o jogo social. Ela inscreve sua atividade em um campo de varian-
colisão entre as duas histórias do ofício: a própria e a de todos. O
tes diferente daquele das variantes que interferem no âmago do gê-
ofício teria, portanto, para cada profissional, uma "dupla vidà: cada
nero profissional.
urna assumindo sua expressão na ação por intermédio da outra, sub-
O sujeito é também incessantemente "premeditado" pelos
metida à prova da outra.
próprios scripts: esquemas operatórios, perceptivos, corporais,
Se nos fizemos entender, até aqui, a atividade seria, então, o
emocionais ou, ainda, relacionais e subjetivos sedimentados no de-
teatro permanente de um movimento com sentidos opostos: estili-
correr de sua vida, que podem ser vistos, também, corno um esto-
zação dos gêneros e variação de si. É isso que permitiria que o dado
que de prontos para agir em função da avaliação da situação, espé-
seja eventualmente recriado. Nessa perspectiva, o estilo é o que, no
cie de gênero interior que constrange, facilita e, eventualmente,
distorce sua ação. É essa a sua experiência. Ele procura colocá-la à
sua disposição. Em contato com o real, os esquemas de tal experi- 1 Outras tantas maneiras pessoais de "assumir" as coisas e os outros que definem o
ência interferem entre si, convocando o novo ou repetindo o antigo. poder de ser afetado à disposição de cada um.
130 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 131

interior da própria atividade, permite superá-la. O estilo é essa libe- de linguagem, esses estudos têm evoluído consideravelmente. A fra-
ração dos pressupostos genéricos da ação pela qual ~e realiza um se como unidade de análise cedeu o lugar ao discurso, à conversação
duplo enriquecimento desses mesmos pressupostos: o enriqueci- e à interação; nem por isso, é certo que tenham sido plenamente
mento dos contatos sociais consigo mesmo e o das relações pessoais avaliadas todas as dimensões compreendidas na "troca verbal': De
estabelecidas com os outros - contatos e relações pelos quais pode- fato, mesmo que a ideia de uma dinâmica de linguagem tenha con-
ríamos, em uma perspectiva vygotskiana, definir a consciência quistado terreno, alimentada pelas teorias resultantes da etnometo-
(Vygotski, 2003, p. 91). Portanto, seria impossível esquecer, sem ris- dologia (Grosjean & Lacoste, 1999), ela tem-se aplicado, principal-
co, a importância dessa dimensão psicológica na vida do ofício. A mente, ao "espaço" circunscrito pelos atos dos interlocutores.
existência de um estilo na ação confirma os respectivos desenvolvi- Ora, estes não são menos ricos, em diversos níveis, de poten-
mentos, em c_urso, do homem pensante e do ser vivo; ou, dito de ciais subjetivos que transgridem, em todos os sentidos, os limites
outro modo, da consciência e da experiência. das condutas imediatamente observáveis ou relatáveis pelos sujeitos
Pode-se considerar que é o emperramento da dinâmica das (Theureau, 2000). A análise desses transbordamentos não pode en-
relações entre estilos e gêneros que está na origem das situações contrar lugar em problemáticas compartimentadas em que o proje-
patogênicas de trabalho. Porque, então, o desenvolvimento dos su- to se limita a conceber um modelo de análise da ação, selecionando,
jeitos é que se encontra "em suspenso" ["mis en souffrance"] por em situação, as produções de sujeitos anônimos aparentemente in-
amputação do poder de agir. A análise do trabalho, ao tentar - tercambiáveis: eis uma posição oposta à perspectiva traçada por
quando lhe é apresentada tal solicitação - repor "em marchà' os Bakhtine. São as formas da língua que são ainda amplamente privi-
legiadas, enquanto compartilhadas por falantes múltiplos e indife-
gêneros com a ajuda de uma análise dos estilos da ação e graças a
rentes, ao passo que nos preocupamos com transformações perpé-
métodos que buscam alimentar os diálogos profissionais no âmago
tuas imprimidas aos signos, continuamente variáveis e flexíveis
dos coletivos (Clot, 1999a; Clot & Fernandez, 2000; Falta, 1997) po-
(Bakhtine, 1984, p. 95) na atividade do linguajar próprio dos sujei-
deria, ela mesma, encontrar novo fôlego: empenhar-se no desenvol-
tos. Vamos sublinhar, ainda de Bakhtine, estas observações: "É im-
vimento do raio de ação dos coletivos profissionais. Simultanea-
possível captar o homem tanto a partir do interior, vê-lo e compre-
mente, em seu meio de trabalho e em relação a eles póprios. No
endê-lo, ao transformá-lo em objeto de uma análise imparcial,
entanto, ela só pode empreender tal iniciativa com a condição ex-
neutra, quanto por uma fusão com ele, sentindo-o. Podemos apro-
pressa de se interessar pelos diálogos profissionais, não só como
ximar-nos dele e descobri-lo ou, mais exatamente, forçá-lo a desco-
objeto, mas também como método. Consideramos, inclusive, a or-
brir-se unicamente mediante uma troca dialógica. Do mesmo
ganização de diálogos como a mola propulsora principal de nossa
modo, só é possível descrever o homem interior( ... ) pela represen-
abordagem metodológica; eis por que vamos aprofundar, agora, a
tação de suas comunicações com os outros. É somente na interação
contribuição dos estudos linguísticos nessa matéria 1• dos homens que se desvela 'o homem no homem', tanto para os ou-
tros como para ele mesmo( ... ). Em vez de ser a antecâmara da ação,
o diálogo é, para ele, a própria ação. Não se trata, também, de um
• 6. A TROCA VERBAl: lUGAR E ESPAÇO
procedimento para descobrir, desnudar um caráter humano finito;
DO DESENVOLVIMENTO .,
no diálogo, o homem não se manifesta somente ao exterior, mas
Saindo do quadro exclusivo traçado pela análise dos fatos e estados torna-se, pela primeira v~z, o que é verdadeiramente e não unica-
de língua para se interessarem pelos processos e "funcionamentos" mente aos olhos dos outros e sim, vamos repeti-lo, igualmente
aos seus próprios olhos. Ser é comunicar dialogicamente" ( 1970a,
p. 343-344). Para Bakhtine, ninguém fala jamais de si e dos ou-
1
Neste aspecto, a contribuição de D. Fai:ta é decisiva. tros, senão falando consigo e com os outros (p. 331).
132 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 133

Em seu entender, a troca verbal, cujo enunciado constitui a É mais que provável que o enunciado dito libere, na ordem
unidade de base, atribui, pelo contrário, todo o seu h;gar, um lugar sequencial, sob a influência de diversas inferências e de múltiplas
desmesurado, ao sentido etimológico, escapando, portanto, às capa- dependências condicionais, mensagens construídas ao longo de um
cidades de avaliação oferecidas pelos métodos em linguística, às desenrolar linear do discurso - contendo hesitações, rupturas e re-
potencialidades subjetivas. Para ele, da interjeição ao romance, pas- tornos sobre si - mas que, simultaneamente, ele venha a abrir por-
sando pelo discurso científico, cada ato torna-se, em sua qualidade tas pelas quais se manifestem ou emerjam os vestígios dos "alhures"
de enunciado, suscetível de manifestar, com toda a equidade, a "po- e das "outras coisas" coexistentes.
sição" daquele que o produz.
Convém, então, optar entre decodificar, ler a informação lite-
• 7. A MOTRICIDADE DO DIÁLOGO ..
ral do texto, DU interpretar o que o enunciado dá a entender - às
vezes, os dois- procedendo ao reconhecimento dos acontecimen- Não é somente na conversação e na interação, dotadas no primeiro
tos resultantes das escolhas que o falante poderia ter deixado de plano de sua dinâmica própria, mas necessariamente restrita, que é
fazer: preciso buscar o espaço onde se articulam essas dimensões parale-
Ao dirigir um trem - responde um agente da SNCF a uma las. O diálogo e a ordem dialógica é que oferecem o cenário em que
questão puramente técnica, formulada por um colega -, comporto- os sujeitos encontram a si mesmos e os outros, assim como se de-
me como se minha mulher e meus filhos estivessem na primeira car- frontam com suas histórias, contextos ambientais e circunstâncias.
ruagem (Fai:ta, 1999, p. 129). Na mesma ordem de ideias, um pro- Sabe-se que, para Bakhtine, qualquer diálogo inclui uma dramatici-
fessor de liceu, prestando-se ao procedimento das "instruções ao dade intrínseca, desenrola-se em um teatro em que se confronta
sósià' (Clot & Soubiran, 1999) justifica assim seu compromisso, si- uma pluralidade de vozes, bem além daqueles dos atores.
multaneamente, profissional e sindical: É menos fácil de admitir, por ser mais difícil problematizar,
Não me limito a dar um curso no liceu, mas faço também o li- que tal plurivocalidade 1 do diálogo não se limita à única ideia de
ceu em que venho dar cursos... Eu o construo. uma coloração do discurso sob o efeito do uso que, antes de mim,
Mudança de cenário 1 - espontânea, em um caso; elaborada outros haviam feito das categorias que utilizo. O tema profundo da
segundo um procedimento, no outro -, o interlocutor efetua esco- dramaticidade implica efetivamente o enfrentamento, a confronta-
lhas cujos critérios são por si mesmos enigmáticos, fora das ativida- ção, ingênua ou penosamente vividos, tacitamente aceitos, ou cons-
des reciprocamente orientadas, das quais o diálogo é o quadro, além cientemente assumidos, ou desagradavelmente sentidos, etc., entre
de estabelecerem a diferença entre o enunciado vivo e a proposição o outro e eu: um outro explícito, mas também um outro que faz eco
inerte. em mim, cuja parcela não é para mim claramente perceptível e, aci-
Se a dimensão sequencial dos fenômenos não suscita nenhu- ma de tudo, não em sua integralidade (François, 1998, p. 108).
ma dúvida relativamente à comunicação verbal ou à produção de Longe do contraponto secundário que orna o desenrolar li-
textos, a carga singular reservada por qualquer sujeito ao enunciado near do funcionamento discursivo, essas dimensões paralelas do
produzido não poderia reduzir-se ao que permite ler aí o encadea- diálogo não podem ser mostradas, mas apenas reveladas. Tornadas
mento mecânico dos atos, acompanhado ou não de marcas de ava- perceptíveis por sua incongruidade, por exemplo, elas vão criar o
liação de tais atos e da respectiva adequação ao objetivo perseguido.

1 O termo "plurivocalidade'' será preferido ao de polifonia; de fato, alguns usos deste


1
A expressão é utilizada no sentido que lhe é atribuído por F. François (1989). termo não se distinguem da simples referência à polissemia social das palavras.
134 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 135

acontecimento: esse será o caso do contramestre que, em um can- combinações estáveis de palavras, repertoriadas e recorrentes na
teiro de obras, põe-se a contar histórias cabeludas durante a visita língua, este produz - por intermédio dos arranjos e dos acúmulos
- julgada, sem dúvida, inoportuna - do especialista ~m prevenção de signos e de relações entre esses signos, entre esses signos e refe-
de acidentes (Cru, 1994). Seu objetivo não é provocar o riso ou a rências mais ou menos identificáveis - determinadas figuras e con-
conivência licenciosa, mas o mal-estar do interlocutor. Pelo contrá- figurações portadoras de sentido que fazem viver a significação.
rio, uma conduta neutra, uma atitude impávida manifestadas por O movimento dialógico cria: relações renovadas, de situação
um discurso convencional, referindo-se estritamente aos compo- em situação, entre o falante sujeito e os outros, assim como entre
nentes da situação, contrasta com a urgência de situações grande- esse mesmo falante e aquele que ele havia sido na situação prece-
mente degradadas e, portanto, demonstra que o ator é incapaz de dente, além do modo como ele o havia sido. Procedendo assim, ele
assumir o controle do problema. transforma, manifesta e revela, no sentido fotográfico do termo, as
O ruído na relação do discurso com a realidade e com suas posições dos interlocutores que se elaboram no decorrer do movi-
referências é que assinala esse tipo de funcionalidades particulares; mento, até mesmo se desestruturam sob o efeito de contradições
além disso, na continuidade do trabalho com os sujeitos, na suces- engendradas por esse mesmo movimento dialógico. Falar-se-á, en-
são das situações vividas em conjunto, é que a diferença pode esta- tão, de uma motricidade própria ao diálogo.
belecer-se entre o que, de um lado refere-se aos estereótipos das Um grande número de situações mostra, de fato, como esse
condutas, ao discurso do não acontecimento, e o que, do outro, se trabalho do sujeito sobre ele mesmo privilegia, durante um mo-
revela na divergência, na ruptura, no contratempo ou no contras- mento, aquela de suas atividades que, habitualmente, consiste em
senso. reformular e avaliar - quase sempre, nele e para ele - a própria ação.
Para isso, convém observar operadores em ação e comentar Daí, ser possível que resultem questionamentos, reinterrogações
sua ação, ou seja, participar pessoalmente, acompanhar a estrutura- acerca de seus critérios, até mesmo, mal-estares.
ção e a formulação do discurso, por esses mesmos operadores, rela- Nossa hipótese metodológica da "revelação'' pela ação inclui,
tivamente à fração de experiência construída em comum. As diver- portanto, o funcionamento das trocas como parte de um conjunto,
gências constatadas, as contradições, convocam, então, em cada como fase atual e observável de um processo, cuja elucidação só é
circunstância, uma resposta clínica ajustada. Encontramos aí uma permitida pelo próprio desenvolvimento. Esse processo, transfor-
dupla confirmação: em primeiro lugar, não se trata de procurar as mador por natureza, assim como iniciado pela prática da autocon-
correspondências ou correlações entre acervos de conhecimentos frontação cruzada que vamos desÇrever, implica uma fase de cria-
ou opiniões pré-estruturados e as formas de expressão que lhes ção das condições adequadas a esse desenvolvimento.
viessem a conferir, em contrapartida, uma existência reconhecida.
Em seguida, seria impossível limitar à situação atual a gênese das
posições dos sujeitos e suas manifestações. • 8. GÊNERO DE DISCURSO CIENTÍFICO E DIÁlOGOS •
Não é, ou não verdadeiramente, o fato para o discurso, para a
interação, de serem situados, ou ainda de funcionarem em situação Diálogos no plural porque instauramos na cena uma dupla relação
que esclarece as supostas relações entre o fazer e o dizer, o dizer e dialógica: entre o sujeito e o outro, ou entre o sujeito e ele mesmo\
como ele é dito, por meio de quais procedimentos, ao convocar quais assim como, inicialmente, entre ele e nós, coator na situação criada.
recursos. Em compensação, os sucessivos movimentos dos atos en-
trecruzados nas atividades, desenham o sentido das progressões 1 Relação que embasa as reservas manifestadas frequentemente por F. François a res-
que, por seu turno, se materializam pela expressão que assumem as peito da utilização dessa palavra e sua preferência por figuras do sujeito que descarta a
trocas, no movimento dialógico. Por falta de se deixar analisar em ideia de um conceito unívoco (1989, p. 83).
136 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 137

Convém, evidentemente, permanecer vigilante de modo que a rela- portanto, revelada. No entanto, desse diálogo, apesar de ser orienta-
ção instituída não seja, em primeiro lugar, desigual, e duplamente do para o conhecimento da atividade, as contradições, os impasses,
I

desigual: somos aquele que nada - ou quase nada - sabe acerca do os conflitos, as digressões e os encadeamentos sobre si não são pros-
trabalho, de qualquer modo, do trabalho desse operador, aquele critos por nenhuma regra de produção; muito pelo contrário. Os
que também nada conhece da linguagem: "linguagem dos ferroviá- processos de interação dirigidos para a resolução dos problemas fa-
rios", "linguagem da cimenteira': "linguagem da agência de cor- zem parte dele, mas somente em parte, sem prejuízo para tudo o
reios': .. E, no entanto, a maneira como nosso discurso alisa as aspe- que os sujeitos introduzem nele como modalizações, atos singula-
ridades do real vivido por nosso interlocutor pode indispô-lo, inibir res de gestão de suas temporalidades singulares, regulação e avalia-
de forma duradoura suas tentativas. Para tentar com ele, e não para ção das próprias condutas. Finalmente, trata-se de um diálogo cujos
ele, encontrar_ as palavras- um universo cujas dimensões nos esca- interlocutores - o pesquisador e seus parceiros - estão convencidos
pam à primeira vista, assim como a história - convém representar o de que ele participa de um trabalho sobre eles mesmos, de uma
papel daquele a quem o trabalho do outro deve ser ensinado, recal- transformação contínua de suas posturas como atores.
car nossa tendência para cobrir, com conceitos estabilizados demais As posições argumentadas mais acima não significam ne-
por e para nós mesmos (Schwartz, 1997, p. 20), histórias e uma tem- nhuma vontade iconoclasta e demagógica em fazer tábula rasa dos
poralidade laboriosa extremamente versátil (ibid.). métodos anteriores em proveito de uma verdade supostamente na-
tural e espontânea, surgindo graças a uma qualquer "liberação da
Para isso, é necessário abster-se de impor, apesar de tudo, um
fala'' dos atores. A hipótese fundamental que partilhamos com Dar-
modo de arranjo das formas verbais, de privilegiar tacitamente um
ré (1996, p. 109)- ele próprio leitor de Bakhtine -,é que o diálogo,
regime social de funcionamento da língua, como escrevemos mais
como instância do desenvolvimento, alimenta-se de outros diálo-
acima, e sobretudo de transformar em dominação - ainda que fosse
gos anteriores e paralelos existentes no grupo profissional, do qual
inconsciente - algumas relações pré-construídas e disponíveis no
ele retoma e reelabora os temas, em torno dos quais se articulam
discurso científico entre língua e fora-da-língua 1 • Tratar-se-ia da múltiplos encadeamentos. Acrescentamos, por nossa parte, que as
imposição de um duplo gênero: um gênero do discurso e, também, escolhas discursivas efetuadas pelos participantes desempenham
o gênero técnico próprio à nossa esfera de pesquisa. Por sua vez, o um papel importante no processo de desenvolvimento, assim como
segundo propõe os esquemas discriminantes pelos quais elementos outros elementos desse potencial que foi abordado mais acima. Mas,
e relações serão distinguidos e valorizados ou, pelo contrário, recal- de qualquer maneira, o essencial reside no fato de que, por sua in-
cados, minimizados 2 • tervenção no diálogo hic et nunc com os operadores, o pesquisador
, Nesse estágio, a reflexão e as práticas metodológicas que te- corre o risco de impor uma ordem por suas questões e suas interven-
mos o desígnio de promover em favor de uma "profissionalidade" ções (Darré, ibid.). Ele arrisca, portanto, impor outras bases- dessa
afinada na análise do trabalho impõem escolhas. A relação dialógi- feita, conjunturais - ao desenvolvimento, entravando as retomadas
ca, já repetimos, é que oferece as condições favoráveis ao desenvol- e novas circulações dos temas, graças às quais os sujeitos podem
vimento discursivo pelo qual a atividade pode ser retrabalhada e, envolver-se na reelaboração de suas posições anteriores.

1
A este respeito, J. Boutet formulou, em várias ocasiões (1995), hipóteses sobre a • 9. A AUTOCONFRDNTAÇÃO: CRIAR UM ESPAÇO
ausência de uma "formação do linguajar específico do trabalho'; entravada pelas rela- E UM MOMENTO DIFERENTES •
ções sociais não igualitárias, e que deixa o campo livre para a hegemonia discursiva do
prescrito.
2
Ver a este propósito, a confrontação entre pesquisador e operador em torno de uma
Na nossa perspectiva, em vez de criar artificialmente situações ex-
noção: sobrecarga de trabalho (Fai:ta, 1995). perimentais com o objetivo de neutralizar o máximo de variáveis
138 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 139

indesejáveis- à maneira do que se faz, às vezes, na área das ciências Mesmo que seja feita uma leitura sumária dos gestos executa-
cognitivas -, trata-se de abrir a porta à emergência dos possíveis, dos sucessivamente - na tentativa de estabelecer uma correspondên-
I
em geral, frustrados pelas contingências da expressão. da, termo a termo, entre fatos e signos, condutas e sequências de
O objetivo consiste em criar um espaço-tempo diferente, em signos-, chega-se infalivelmente à constatação de que não é forçosa-
que as condições do desenvolvimento, do movimento dialógico não mente visível o que deve se dizer: tudo o que foi necessário fazer ou
se confundam - ou, pelo menos, não tenham a possibilidade de se escolher para atingir tal objetivo, e que é a justificativa para as apa-
confundir- com os outros quadros, ou seja, aqueles em que se apli- rências. Descobre-se que alguns dos atos principais têm causas e se
cam habitualmente as regras que discriminam o verdadeiro do não inscrevem em histórias apenas no momento em que se deve recla-
verdadeiro, o congruente do incongruente, o correto do incorreto; mar o tempo para dizê-lo: interromper o fluxo do comentário para o
quadros, também, em que se manifestam as coerções sociais ime- outro a fim de se justificar ou, simplesmente, indicar que a atividade
diatas, os efeitos dos status sociais dos atores, as relações hierárqui- não se inscreve no esquema temporal sumário da execução.
cas e as inibições vinculadas à situação. Diferentemente dos méto- O aspecto mais importante reside, sem dúvida, no que o su-
dos de simulação aplicados com maior frequência, nós não jeito descobre a respeito de sua atividade, sobretudo quando ele não
procuramos "simular" a situação comum de trabalho, mas confron- consegue expressá-lo. Nesse caso, ele se encontra em situação de
tá-la com outra situação, desta feita, uma situação de reconcepção colocar à força determinadas coisas à distância de si mesmo, de se
(Béguin & Weill-Fassina, 1997). considerar como o ator - em parte, estrangeiro - à própria ação.
Pode-se, então, esperar certa liberação desses potenciais sub- Esse é o momento crucial em que as referências imediatas fazem
jetivos ou, mais concretamente, das produções discursivas pelas falta e em que a justificativa dos atos e de seu encadeamento deixa
quais o locutor, confrontado consigo mesmo, supera os limites que de se impor por si mesma. Abandona-se, então, o processo exclusi-
lhe impõe habitualmente o controle social sob suas diferentes for- vo de colocação em palavras - acompanhado pelas dificuldades e
mas, incluindo aquele que ele se impõe por sua própria iniciativa: a impossibilidades já mencionadas - para empreender o processo da
auto avaliação da conformidade de seus atos em relação à expectati- descoberta de si. O fato de ver o que foi feito em seu trabalho - sem
va do outro ou, no mínimo, daquilo que a representa em si próprio ter condições de explicá-lo ao outro, unicamente, pela verbalização
- em poucas palavras, em relação às normas sociais, aos gêneros e à desse mesmo trabalho- induz, à primeira vista, uma atividade fun-
maneira como esses gêneros autorizam também o uso ou a trans- damentalmente nova, cujo objeto é o próprio sujeito. Depois de se
gressão das normas com perfeito conhecimento de causa. ter descoberto e se ter reencontrado em harmonia com a imagem
de si, depois de ter avaliado as disjunções de todas as ordens, em
A situação de autoconfrontação é aquela em que os operado-
particular, temporais, que se opõem ao paralelismo dos atos grava-
res, expostos à imagem do próprio trabalho, começam por colocar
dos em vídeo e da colocação em palavras, descobre-se, também, a
em palavras, para serem utilizadas pelo parceiro-espectador, o que
necessidade de tomar posição em relação a escolhas efetivas, cujas
eles julgam ser suas constantes. Assim, eles dialogam com o outro e
razões deixam de aparecer, a posteriori, assim tão evidentes.
com eles mesmos, ao se descobrirem na tela e ao verbalizarem as
condutas que eles observam, além de descobrirem, simultaneamen-
te, a primeira armadilha dessa atividade de um novo tipo: mesmo • 10. POSSIBILIDADES E liMITES DA
que o discurso produzido se esforce em acompanhar, paralelamen-
AUTOCONFRONTAÇÃO: HISTÓRIA DE UM MÉTODO.
te, o desenrolar e a sucessão das ações, em se referir estreitamente
às componentes físicas da situação, o essencial, finalmente, é invisí- Os agentes de condução do TGV [Train de grande vitesse = trem
vel, não consegue ser verbalizado na ordem do linear. de alta velocidade] dão testemunho, cada um à sua maneira, dessa
140 Segunda Parte -A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 141

situação. Um deles, provocado por um pesquisador, lembra-se de o fio e realizar exatamente a mesma máquina que a gente [on] havia
que repete para si mesmo, em voz alta, as instruções de I
partida por encontrado anteriormente. E somente mais tarde, na conversa com
desencargo de consciência: é para - diz ele, na sequência - me criar o observador, é que se produz a ruptura discursiva que faz sair a
um espaço na cabine ... Outro confessa - não sem uma inquietude colocação em palavras para fora do gênero convencional:
retrospectiva - não compreender a escolha da conduta operada por
ele, aliás, testemunhada pela imagem: é estranho... normalmente, eu - Há pouco, você dizia que tinha sua própria maneira de
deveria ter ... O desenvolvimento é, então, manifesto: é nesse mo- proceder?
mento que se opera, quase sempre, a disjunção entre duas fases, o - (... ) no meu caso, ao trabalhar como eu trabalho, sei que
que qualificaremos como construção do ''eu": em um primeiro mo- não me aborreço ao dar essa forma a meu isolante... mas,
mento da autoconfrontação, o operador descobre seu trabalho e, ao outra pessoa que vier a bobinar não é obrigada a dar a
mesmo tempo, sua qualidade de sujeito de sua própria atividade. O mesma forma à bobina.
"eu" do discurso coincide com o "eu" da imagem, sem que por isso
venha a distinguir-se totalmente da variante "a gente" [on], ou seja, A passagem do "a gente" para "no meu caso ... eu ... me aborre-
sujeito do "que deve ser feito" e do modo como deve ser feito. ço" manifesta, de várias maneiras, corno o mesmo sujeito pode per-
Pode, aliás, produzir-se perfeitamente, no decorrer dessa fase, manecer, em um primeiro momento, sob a proteção, o guarda-chu-
que o "eu" conectivo só apareça após prolongados minutos de pre- va do gênero. Em urna tentativa, inicialmente caracterizada pela
dominância do "a gente" concernente ao discurso genérico. Ostra- homogeneidade completa entre o gênero técnico evocado e o gêne-
balhos de uma equipe de estudantes dão testemunho de semelhante ro discursivo utilizado, impregnado de urna espécie de retórica téc-
situação 1: tendo realizado urna autoconfrontação gravada em vídeo nica, ele empreende, em seguida, romper com ambos, produz um
numa empresa de manutenção eletrotécnica, eles citam longamente novo enunciado pela escolha de seus constituintes (é pouco prová-
o discurso de um operador que comentava seu trabalho de bobina- vel que a fórmula - sei que não me aborreço - venha a aparecer ao
gern: "nós': "a gente" e "deve-se" constituem quase a totalidade dos lado do enunciado: deste modo, pode-se [on peut] contar o número
embreantes 2 (ou, de preferência, substitutos destes) por trás dos de espiras ... ) e se recoloca em um universo de atividade completa-
quais se dissimula um "eu': que só aparece após as incitações perso- mente diferente em que "a gente" deixa de existir, cedendo o lugar a
nalizadas dos observadores, justificando, assim, a menção, formula- um "eu': parte integrante de um coletivo homogêneo e diversificado
da mais acima, de um duplo diálogo. do qual nenhum dos membros, executantes da mesma tarefa, não é
Esse discurso que se serve de "a gente", ou discurso do gené- obrigado a dar a mesma forma à bobina.
rico, coincide mais ou menos estreitamente com o que, mais acima, A ruptura, que demora a esboçar-se, constitui o acontecimento
recebeu o qualificativo de gênero como instrumento coletivo da que faz sentido pelo simples fato da singularidade que se opõe ao
ação. O operador reconstitui seu trabalho, ponto por ponto, sequên- genérico. Ao envolver-se com novas formas de explicitação, provoca-
cia por sequência. A imagem reduz-se, então, a urna simples ilustração. das em determinado estágio da autoconfrontação, o bobinador tro-
Com a máquina que passou por nosso forno de pós-combustão foi cou, simultaneamente, do modo de colocação em palavras e reelabo-
possível [on a pu] desmontar a bobinagem, desmontando as partes. rou, em parte, algumas das relações constitutivas de sua atividade.
(. .. ) Desse modo, pode-se [on peut] contar o número de espiras, medir Um exemplo desse tipo tem o mérito de sublinhar - mais que
o fazem as lacunas da formulação em discurso, diante das dobras e
1
S. Barone et al. (1997). Ver, também, o artigo de Duraffourg (1999).
penumbras do trabalho filmado - corno é que, submetido à prova,
2
Termo utilizado em linguística para designar palavras que têm necessidade da refe- um operador pode servir-se dos recursos oferecidos pelos gêneros
rência aos atores efetivos e às circunstâncias da ação. disponíveis, acomodar-se a essa situação ou, pelo contrário, romper
142 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 143

com eles. Foi possível observar, com efeito, como a autoconfronta- oferece uma garantia total. Trata-se de uma situação dual, de face a
ção deixava entrever, pelas falhas da temporalidade d~scursiva e da face entre o prescrito, o normalizado e o subjetivo, que é, de novo,
linearidade da fala, a "espessurà' e a densidade da atividade. Daí em encenada. Na estilização do gênero à qual ele procede, como nas
diante, a maneira como os atores podem entrar no jogo do genéri- tomadas de distância e de suas rupturas manifestas, o sujeito pode
co, do pré-construído - ou, pelo contrário, liberar-se dele - é que perfeitamente instalar-se em uma continuidade entre o que se vê
prevalece quando eles manipulam, com destreza, os gêneros. que ele faz e, por outro lado, o que ele dá a entender que faz real-
Uma primeira concepção do estilo do ator (colocação à dis- mente, suprimindo as contradições de uma forma, em resumo, aná-
tância e reapropriação ), desenvolvida anteriormente, encontra sua loga ao que ele faria em uma narrativa. O domínio estilístico ia se
confirmação na expressão - "é estranho" - do agente da conduta, opor, então, aos acidentes do desenvolvimento. Sozinho, em nossa
representativa de todas as manifestações de surpresa ou de confu- opinião, o olhar do par é suscetível de permitir a retomada do mo-
são nesse estágio da autoconfrontação. Do ponto de vista do méto- vimento dialógico no sentido da criatividade.
do, a proximidade dos gêneros (social, técnico, por um lado, e, pelo A metáfora de uma política exterior do estilo parece funcio-
outro, discursivo) afirma-se e deixa sua marca no decorrer domes- nar. O operador, acompanhado por nós em direção ao conhecimen-
mo processo: o eu do discurso abre o caminho para o eu da ação e, to de suas atividades, oferece-nos, em determinados momentos, as
por contraste, aos outros atores possíveis, às outras maneiras de fa- ações e reações que premedita para ele o estoque de prontos para agir
zer e ao que poderia ter sido feito. que ele encontra: nenhuma razão o impele, a priori, a privilegiar a
renovação de suas posições na troca em detrimento da reprodução
das aquisições. Para superar o obstáculo é que promovemos situa-
• 11. A AUTOCONFRONTAÇÃO CRUZADA: ções de "autoconfrontações cruzadas': no decorrer das quais o olhar
UMA RENOVAÇÃO METODOLÓGICA • do par sobre sua atividade conduz cada sujeito a se extrair da rela-
ção dicotômica do tipo "eu" e/ou contra "os outros". Nessas novas
Nesse estágio justamente é que, segundo nos parece, a autoconfron- circunstâncias, ele é levado a retornar sobre ele mesmo a atividade
tação qualificada por nós como inicial encontra seus limites. A con- de redescoberta, até então, limitada por ele para distinguir o que o
quista do eu, da qualidade de sujeito - e, portanto, da singularidade - aproxima e o diferencia de outro.
confirma as virtudes da situação, mas também o fato de que ela No caso concreto, procuramos materializar essa ideia de
recria uma nova forma de equilíbrio. Esse sujeito, recente para ele Bakhtine, segundo a qual o diálogo associa sempre a terceira voz, a
enquanto tal, pode encontrar- depois de ter passado por suas inter- dos outros, contida nas palavras que utilizamos. Essa voz está em
rogações e redescobertas - as melhores razões para agir como ele nós mesmos, portanto, é a nossa porque é efetivamente por nossos
está agindo nesse momento ou para continuar evoluindo no mes- atos singulares de enunciação que ela se manifesta, e, também, a do
mo sentido, elaborando e formulando os melhores argumentos para outro já que, em parte, retomamos as manifestações exteriores de
justificar suas condutas. uma alteridade difusa ou identificada. É isso que uma posição des-
Com certeza, ele tem o maior interesse em verificar que a fala proporcionada, compacta, concedida ao face a face entre as prescri-
não mediatiza um pensamento previamente elaborado, tampouco ções da sociedade, por um lado, e, por outro, as atividades e produ-
oferece contrapartida servil a um real pré-organizado, mas é claro ções do sujeito, ameaça levar-nos a ignorar.
que a produção verbal participa progressivamente de um tipo de tro- Nesse quadro metodológico, a tarefa apresentada aos sujeitos
ca que, de novo, tende a retirar o guarda-chuva do gênero. A progres- consiste em elucidar para o outro e para si mesmo as questões que
são não é imutável, e a mudança pode assumir a forma de um retor- surgem no desenrolar de sequências de atividades mostradas em
no contra o qual a atividade dos pesquisadores-acompanhadores não documentos de vídeo. Tais imagens são o resultado de um primeiro
144 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 145

trabalho. Foi necessário escolher as situações que são o objeto da outro não são estritamente cronológicas. Dir-se-á, de preferência,
análise. Por sua vez, essas decisões haviam sido objet9 de uma ela- que a atividade, nesses momentos, pertence a vários gêneros ao
boração inicial com um coletivo de profissionais representativo da mesmo tempo. Eles interferem. Portanto, no momento da análise, a
situação, selecionados em função de critérios estabelecidos com os atividade é plurigenérica. Por refrações sucessivas, ela "se decanta''
demandantes da investigação. Esse coletivo, que forma um "meio e "se sedimenta'', contribuindo para reavaliar os gêneros que atra-
associado" à pesquisa, permanece como interlocutor privilegiado e vessa. Procedendo assim, ela "desliga-se" do gênero em que, usual-
duradouro da equipe. É com ele que foram, ao final, retomados e mente, se realiza e o torna visível. À maneira de Bakhtine, pode-se
retrabalhados os materiais filmados em autoconfrontação cruzada. pensar que nenhum dos gêneros substitui ou suprime os outros.
A análise da atividade segue, então, três fases: em primeiro lugar, Cada um retroage sobre os outros: ele os torna mais conscientes,
um longo trabalho de "concepção compartilhada'' das situações a obriga-os a examinar suas respectivas possibilidades e seus limites,
adotar para a análise. Essa é, também, aquela em que são efetuadas a superar, por assim dizer, a respectiva "ingenuidade" (1970, p. 365).
as observações de situações pelos próprios pesquisadores a fim de Se o estilo é uma reavaliação, uma acentuação e um retoque dos
alimentarem a coconcepção evocada. A segunda fase acumula a gêneros na ação e para agir, a análise do trabalho favorece, então, a
produção de documentos de vídeo em autoconfrontação simples elaboração estilística para revitalizar o gênero. Esse é o ensinamen-
to que extraímos de nossas experimentações.
(sujeito/pesquisador/imagens) e de documentos em autoconfron-
tação cruzada (dois sujeitos/pesquisador/imagens). Esse é o início Fomos levados a considerar que a análise do trabalho exige
de um diálogo profissional entre dois profissionais confrontados na um quadro que constitui uma nova atividade dirigida sobrepondo-
se àquelas cuja compreensão é objeto de nossa tentativa. Esse qua-
mesma situação. A terceira fase é um retorno ao "meio associado"
dro é que designamos (Falta, 1997) como uma experimentação de
que começa, então, o trabalho de análise e de coanálise. Nessa últi-
campo em situação de autoconfrontação cruzada. Ele é oriundo des-
ma fase, produz-se o que se pode chamar uma percolação da expe-
ta constatação: o comentário dos dados do vídeo do operador em
riência profissional, posta em discussão a propósito de situações
autoconfrontação com seu trabalho é dirigido, de fato, a alguém
rigor~samente delimitadas. Um ciclo se estabelece entre o que os
diferente dele. A autoconfrontação clássica é, com efeito, orientada
trabalhadores fazem, o que dizem acerca do que fazem e, para ter-
por um pesquisador. Ora, eis uma atividade em si na qual o traba-
minar, o que fazem do que dizem. Nesse processo de análise, a ati- lhador descreve e repensa sua situação de trabalho para o pesquisa-
vidade dirigida1 "em si" torna-se uma atividade dirigida "para si': dor e para si mesmo. A prova é feita do poder de tal fenômeno
Os horizontes da atividade se deslocam com os sujeitos ao trocarem quando é posta em prática justamente uma autoconfrontação cru-
de gênero. A atividade "pula'' de um gênero para outro: do primeiro zada, ou seja, quando se retoma a análise em comum da mesma
gênero da atividade comum para o segundo gênero da experimen- gravação de vídeo em companhia de outro expert do domínio, por
tação cruzada, passando pelo gênero científico que os pesquisadores exemplo, um colega de trabalho do mesmo nível de expertise. A
o fazem "atravessar': Essas passagens da atividade de um gênero para mudança de destinatário da análise modifica a análise. A atividade
de comentário ou de verbalização diferida dos dados coletados, de-
1
pendendo de ter sido executada pelo pesquisado ou pelos pares, for-
A atividade dirigida é a unidade de base da análise (Clot, 1999b). Qualquer traba-
lho é uma atividade dirigida, ao mesmo tempo, pelo sujeito, pela tarefa e para os ou- nece um acesso diferenteao real da atividade do sujeito; em cada
tros. A atividade de um sujeito em situação de trabalho - até mesmo, sozinho está caso, ela é reendereçada. A razão é que a fala do sujeito está voltada
voltada, simultaneamente, para seu objeto e para a atividade dos outros que incide não só para seu objeto (a situação visível), mas também para a ati-
sobre esse objeto.' A autoconfrontação cruzada organiza a passagem entre as atividades
dirigidas da situação observada e as "réplicas" que lhes dão o ou os sujeito(s) quando vidade daquele que procede à sua coleta. Trata-se de uma atividade
eles as comentam e as reavaliam entre si. dirigida - no sentido em que a definimos - na qual a linguagem,
146 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 147

longe de ser, para o sujeito, um meio de explicar o que ele faz ou o ., 12. O IJESENVOl VIMENTO: TRANSFORMAR
que se observa, torna-se um meio de levar outro a p1ensar, sentir e PARA COMPREENDER •
agir segundo a sua própria perspectiva (Paulhan, 1929).
A verbalização na análise do trabalho é um instrumento de Nas circunstâncias em que os métodos clássicos estabelecem a con-
ação interpsicológica e social. Trata-se, evidentemente, para quem frontação de um grande número de sujeitos a uma situação, propo-
se submete a tal exercício, de fazer participar o pesquisador, ou o mos a confrontação de um sujeito a várias situações encadeadas. De
par, de seus atos e de seus pensamentos, assim como de sintonizar a fato, para nós, a pesquisa incide sobre o desenvolvimento da ativi-
atividade deles à sua, de direcioná-lo para ela. As verbalizações ser- dade e não apenas sobre seu funcionamento. Desse ponto de vista,
vem, sem dúvida alguma, para atualizar as realidades do trabalho deve-se não só compreender para transformar, mas também trans-
(Caverni, 1988). Mas é sempre dispondo, desta ou daquela maneira, formar para compreender. Compreender e explicar os mecanismos
da mente daquele a quem elas são dirigidas. A verbalização é uma do desenvolvimento passa, então, por uma adequada apreciação da
atividade do sujeito em si mesma e não apenas um meio de acessar importância dos diálogos nesse desenvolvimento.
uma outra atividade. Essa é a razão pela qual se pode falar de coa- Na nossa prática, eles constituem a própria mola propulsora
nálise do trabalho. O pesquisador ou o par, por exemplo, nas ses- do desenvolvimento da atividade, de sua história 1 . Nosso objeto é,
sões de autoconfrontação cruzada, não têm as mesmas dúvidas, não aliás, não tanto a atividade enquanto tal, mas o desenvolvimento
transmitem ao sujeito em questão, nem sequer por seus silêncios, as dessa atividade e seus impedimentos2 • A experiência profissional
mesmas impaciências, surpresas ou excitações a propósito da ativi- não deve apenas ser reconhecida, mas deve ser transformada. Me-
dade observada e comentada. Ora, longe de abordar tais fenômenos lhor ainda, ela só pode ser reconhecida, graças à sua transformação.
como um obstáculo, propomos fazer deles um trunfo metodológi- Ela se torna visível apenas quando troca de status: quando se torna
co. O sujeito procura no pesquisador e no "par-expert" algo que lhe o meio para viver outras experiências. No nosso vocabulário, pode-
permita agir sobre eles. Ele não procura, de início, em si mesmo, se dizer que a transmissão da experiência, quando ela se realiza efe-
mas no outro. De uma maneira ou de outra, ele luta contra uma tivamente, confere uma história possível a essa experiência. Reco-
compreensão incompleta de sua atividade por seus interlocutores, nhecê-la é implicá-la em uma história que a modifica; é torná-la
ele suspeita neles essa incompreensão insuficiente, ele pretende pre- disponível para uma história diferente daquela de que ela é oriunda.
veni-la. Ele visa apropriar-se, para modificá-las, de suas respectivas De fato, agir e, sobretudo, ampli~r seu poder de ação, é conseguir
mobilizações a propósito de seu trabalho e, desse modo, ele vê sua servir-se de sua experiência para fazer outras experiências.
própria atividade "com os olhos" de outra atividade. Ele experimen-
ta, decifra e, às vezes, desenvolve suas emoções por intermédio das
emoções de outro. Assim, ele encontra, sem forçosamente procurar,
1 Para uma crítica da concepção clássica, genética, do desenvolvimento e para uma
abordagem "históricà', ver Y. Clot (sob a direção de) (1999c).
algo de novo em si mesmo. Mas, deste modo, as diferenças entre os 2
Os impedimentos da ação se encontram, na maior parte das vezes, na origem das
dois destinatários tornam-se importantes. À mobilização e ao ques- demandas que nos são dirigidas, seja relacionadas com disfunções organizacionais e
tionamento - sejam eles formulados ou presumidos- que, distinta- com contragolpes psicológicos que lhes estejam associados ou, ainda, com o mal-estar
vivido por um coletivo profissional, cuja vida de trabalho é tumultuada por uma trans-
mente, lhe são fornecidos pelo pesquisador e pelo par, o sujeito não formação de natureza técnica ou social. Com nossos próprios recursos, empenhamo-
responde de uma maneira única. Ele observa a própria atividade nos em apoiar os coletivos em seus esforços para retomarem um desenvolvimento
contrariado, "em suspenso" [mis en souffrance]. Nosso trabalho consiste, portanto, em
"com os olhos" de outras duas atividades, aliás, discordantes. Nos-
transformar esse sofrimento [souffrance] em um meio de agir, reencontrando então, de
sas pesquisas metodológicas pretenderam utilizar plenamente os maneira específica, a tradição da psicopatologia do trabalho (Clot, 1999a; Billiard,
recursos dessa dissonância. 2001; Dejours, 2000; Le Guillant, 2006).
148 Segunda Parte -A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 149

Nossa abordagem não poderia, portanto, definir-se como (2003, p. 78). Ou, ainda: "Generalizando um processo próprio de
uma simples vinculação ou um privilégio atribuído ~ experiência minha atividade, adquiro a possibilidade de outra relação com ele
vivida; pelo contrário, trata-se de conseguir desligar-se de sua expe- (... ). Assim, a tomada de consciência repousa em uma generalização
riência a fim de que esta se torne um meio de fazer outras experiên- dos processos psíquicos" (1997, p. 317).
cias. Eis um procedimento que pode tornar a experiência, já reali- Por isso, nos diálogos profissionais organizados por nós, a úl-
zada, disponível para experiências a fazer. Vygotski definia a tima palavra nunca é dita, o último ato nunca chega a ser executa-
consciência como um eco: a experiência vivida de experiências vi- do. Isso porque temos necessidade de uma nova conceitualização
vidas (2003). A tomada de consciência não é, portanto, a descober- da atividade, de uma outra gramática para conjugar suas tempora-
ta de um objeto mental inacessível anteriormente, mas a redesco- lidades rivais: a atividade deixou de estar limitada ao que se faz. O
berta- a re-criação- desse objeto psíquico em um novo contexto que não está feito, o que se pretenderia fazer, o que deveria ser feito,
que o "faz ver de outra maneira': Compreender é pensar em um o que teria sido possível fazer, o que deve ser refeito e mesmo o que
contexto novo. Como diante de um tabuleiro de xadrez, escreve se faz sem querer fazer, é acolhido na análise da atividade esclare-
Vygotski: "Vejo de outro modo, pratico meu jogo de outro modo'' cendo seus conflitos. O realizado deixou de ter o monopólio do real.
(1997, p. 317). Assim, a tomada de consciência apoiar-se-ia em uma O possível e o impossível fazem parte do real. As atividades impe-
transformação da experiência psíquica. Ela não é a apreensão de didas, suspensas, diferidas, antecipadas ou, ainda, inibidas formam
um objeto mental completo, mas seu desenvolvimento: uma recon- com as atividades realizadas uma unidade desarmônica. Ela sozi-
versão que o inscreve em uma história inacabada. Em vez de reen- nha pode considerar capaz de analisar o curso imprevisível de um
contro com o passado, a tomada de consciência é metamorfose do desenvolvimento, assim como de seus impasses, eventualmente,
passado. De objeto vivido no passado, ele é promovido à posição de suspensões [mises en souffrance]. Avalia-se, então, até que ponto os
meio para viver a situação presente ou futura. Nesse trânsito entre diálogos profissionais são exercícios estilísticos que permitem to-
duas situações, nesse deslocamento do vivido que, de objeto, torna- mar consciência do que se faz no exato momento em que se desfaz
se meio, é que esse mesmo vivido se libera da atividade, torna-se do que está em via de se fazer para, eventualmente, "refazê-lo".
disponível para a consciência e se enriquece com propriedades do Esse trabalho estilístico tem efeitos sobre a vida dos gêneros?
novo contexto. Portanto, tomar consciência não consiste em reen- É justamente porque as análises empreendidas são aquelas de al-
contrar um passado intacto pelo pensamento, mas, de preferência, guém, e unicamente dele, a propósito dos meios utilizados por todos é
em o re-viver e em fazê-lo reviver na ação presente, para a ação que elas podem enriquecer, simultaneamente, o sujeito e o coletivo.
presente. É redescobrir o que ele havia sido como uma possibilida- Este só conserva uma função para o sujeito se lhe permite enfrentar
de, finalmente realizada entre outras possibilidades não realizadas, a situação ao desenvolver seu poder de agir pessoal. Inversamente,
mas que nem por isso deixaram de agir. Eis o que ocorre, por oca- o sujeito exerce uma função no coletivo quando lhe permite am-
pliar seu próprio raio de ação. Existiria, então, uma função psicoló-
sião de outras realizações possíveis; ou, dito de outro modo, por
gica dos gêneros sociais, como existiria, inversamente, uma função
ocasião de um movimento psicológico no decorrer do qual a ação
social dos estilos individuais. A criatividade, a saúde e a eficácia do
vivida se metamorfoseia em operação que permite viver outra ação.
trabalho teriam, então, molas propulsoras comuns.
Aparecendo-me sob um aspecto diferente, destacando-se no fundo
de minha atividade, a ação vivida se desvincula dela e se re-apresen-
ta, então, à consciência no exato momento em que ela desempenha • 13. DESVENCILHAR-SE DO FARDO DAS DICOTOMIAS •
novas funções. Nesse sentido preciso é que Vygotski pode escrever:
"Ter consciência de suas experiências vividas nada é além de tê-las Seria necessário um enorme trabalho para avaliar o peso que teve
à sua disposição como objeto para outras experiências vividas" e que ainda tem sobre o desenvolvimento das ciências humanas a
150 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 151

cultura dicotômica. Que se trate da língua contra a fala, do homo- As autoconfrontações cruzadas realizadas com os parceiros
gêneo contra o heterogêneo, do normatizado contra 1 o usual, do associados às nossas atividades de análise do trabalho encenam
prescrito contra o real, tais distinções - fecundas, durante um mo- acontecimentos do mesmo tipo. Julgamos ter conseguido torná-los
mento- contribuem daqui em diante para dissimular outros desa- mais sistematicamente legíveis, mediante cooperações particular-
fios teóricos e metodológicos. Ocorre que, para nós, na óptica me- mente criativas e de longa duração. A autoconfrontação "inicial",
todológica adotada, a capacidade dos operadores de colocar à estágio indispensável, permite que cada um dos sujeitos coloque em
distância os gêneros materializados por modelos operatórios socia- dialeto sua atividade e justifique esse ato ao fazer para o outro a
lizados, de adaptar suas condutas às condições reais (e, subjetiva- tradução que se impõe.
mente, reais) de suas práticas, não devem dissimular o interesse de No estágio da autoconfrontação cruzada, a reinterrogação
uma segunda dimensão tão determinante: aquela em que cada um pelo par reanima ou revela as ressonâncias, correlações e contradi-
pode ainda questionar-se, sob a pressão do outro, sobre o sentido de ções de que o diálogo é portador.
suas próprias escolhas.
Essa problemática já tem sido analisada de forma minuciosa,
• 14. EXERCÍCIO DE ESTil01 •
há vários anos, por trabalhos dedicados ao acompanhamento dos
candidatos à validação de sua experiência profissional (Clot, Ballou- Afirmamos, mais acima, que a atividade não está limitada ao que se
ard, & Werthe, 1998) 1• Neles, é possível encontrar exemplos elo- jaz ou, ainda, que o realizado não tem o monopólio do real. À seme-
quentes: uma auxiliar de laboratório, depois de ter constituído seu lhança da auxiliar de laboratório descobrindo o real de seu traba-
dossiê e, portanto, descrito e comentado sua atividade profissional lho, naquilo em que é diferente do realizado, os Agentes de condu-
(o que faço é estúpido), relê, posteriormente, a própria produção e ção (AdC) do TGV, com quem havíamos trabalhado na encenação
declara à acompanhante: na releitura, dei-me conta de que eu havia evocada, aceitaram participar, em dois momentos, da construção e
escolhido um ponto de vista clínico para descrever meu trabalho ... (.. .) desconstrução sucessivas de seus referenciais.
o que me importa é a utilidade de meu trabalho para os doentes e No momento do diálogo inicial com sua imagem, cada um se
para os médicos... (Magnier & Werthe, 1996). Em um segundo mo- observou, ficou surpreso de si mesmo e de não ser capaz de enqua-
mento, ela descobre, então, pelo fato das próprias escolhas enuncia- drar o espetáculo de sua ação com a relação de sua atividade. Mas é
tivas, as características de sua atividade. Nesse caso, o outro não também, na continuidade, o mot:nento em que ambos colocaram
está física nem materialmente presente, mas é o texto que se tornou em discurso suas respectivas especificidades:
algo diferente, que vive sua vida e impõe à autora um novo olhar
sobre si mesma. Eis uma ideia fundamental que está presente em 1. ... não utilizo a VF porque acho esta sucessão de regula-
Bakhtine: para ele, no texto, o discurso do autor2 , ou dialeto indivi- gens ... enfadonha ...
dual, autoriza apenas o reconhecimento da individualidade do fa- 2 ... .procedo, imediatamente, à regulagem da VI para ficar
lante. Em compensação, o texto é fecundo das múltiplas ressonân- liberado de todas as complicações... aprecio estar liberado...
cias das vozes sociais, de suas ligações e correlações sempre mais ou
menos dialogizadas. 1
Conduite du TGV: exercices de Style [Conduzir o TGV: exercícios de Estilo], filme
realizado sob a direção de D. Fa'ita, imagens de G. Lambert, montagem de G. Lambert
e de L. Ritzenthaler, produção CORELER-APST, 1996. Ver, sobre este assunto, os artigos
1
Posteriormente à primeira publicação deste texto, verificou-se a multiplicação de publicados in Champs visuels, n. 6, setembro de 1997.
estudos neste campo (Prot, 2003, 2006b). 2
A VI - ou, por extenso, "Velocidade Impostà' - é um dispositivo automático de
2
M. Bakhtine, Esthétique et théorie du roman [Estética e teoria do romance], Paris, ajuda para a condução do trem, cujo efeito consiste em cortar a tração dos motores
Gallimard, 1993, p. 89. quando a locomotiva atinge a velocidade, previamente fixada, pelo condutor.
152 Segunda Parte -A atividade: problemas e conceitos Gêneros profissionais e estilos da ação 153

Trata-se, efetivamente, de uma situação criada por nós, mas O desenvolvimento discursivo nos oferece, assim, a progres-
cada um dos coatores pode, nessa operação, encontrar pqntos de refe- são de condutas que fazem alternar discurso genérico (busca de no-
rência na relação triangular entre ele mesmo, sua imagem e o acompa- vos referenciais) e discursos nitidamente polêmicos em que se torna
nhante, papel desempenhado por nós. Ele procede precisamente a explícita a crítica das posições exibidas pelo outro. Determinadas
urna estilização de um gênero disponível ou da escolha de urna manei- enunciações tipos tendem a construir-se e reiterar-se por si mesmas
ra particular de se desvincular dessa memória ou cultura coletiva do em ambos os interlocutores, mas elas são rapidamente compensa-
meio de trabalho. Mas, e é o aspecto mais importante, esse desprendi- das por rupturas e mudanças de temas que restauram as condições
mento continua sendo relativo, ele opera sem deixar de permanecer de instabilidade propícias ao desenvolvimento:
em suposta harmonia com os valores cardeais do ofício, com os prin-
cípios compartilhados e com os critérios de legitimidade. 1. ... no meu caso (continuação de "sou daqueles que"... ),
O olhar do alter ego é que vai obrigar o mesmo operador a se aprecio bastante trabalhar atingindo o máximo de minhas
ressituar em um espaço mediano, em que seu "potencial" vai se con- possibilidades... (. ..) chegar adiantado não me incomoda
frontar com o do outro, ao renovar, se necessário, suas referências. Na nem um pouco...
autoconfrontação cruzada, cada um está "urna cabeça acima de si 2 . ... quanto a mim, prefiro zelar o material...
mesmo': para retornar a fórmula utilizada por Vygotski para esclare- 1. ... não tenho intenção de maltratar o material mais do
cer a noção de zona de desenvolvimento, a propósito das brincadeiras que qualquer colega ...
infantis (Vygotski, 1978). O diálogo entre pares, iniciado a partir das
visões recíprocas oferecidas a um interlocutor sobre o trabalho do Nós nos encontramos bem nessa situação de defasagem geral
outro, faz balançar, de fato, os referenciais fixos e as estratégias de em que o olhar do outro sobre si, através de sua atividade, leva a se
configuração. Cada um dos sujeitos deve efetivamente encontrar as reinterrogar sobre o que está verdadeiramente presente nesse si
palavras que soem afinadas no ouvido, já não somente do pesquisa- mesmo.
dor, mas também de seu homólogo. Encontra-se aí a ideia do diapa-
são bakhtiniano com a seguinte particularidade: o recurso ao gênero
líCito, adaptado às circunstâncias, se dissimula. • 15. INSTABiliDADE CONTROLADA:
A autoconfrontação cruzada organizada entre nossos parcei- O RETORNO DAS LEIS DO DIÁLOGO •
ros oferece, desse ponto de vista, urna notável progressão na reela-
É evidente que a progressão do diálogo induz o risco de urna sub-
boração de um estilo, voltado para o interior, de urna política inte-
missão, mais ou menos precoce, a tendências espontâneas: "Do
rior do estilo, aparentemente presente de maneira transversal na
mesmo modo que não se pode deixar de categorizar o que se diz,
maioria de nossas experiências.
assim também não se pode deixar de ter urna posição discursiva em
Dado que seu lugar deixa de ser defensável com referência
relação ao outro e ao que se disse" (François, 1990, p. 47). Nem a
unicamente aos critérios que regularizam o face a face "eu"I corpo
homologia do status dos coatores, nem a densidade dos respectivos
social, cada um experimenta, efetivamente, a necessidade de se vin-
cular, pelo discurso, a urna suposta comunidade: potenciais chegam a anular o processo interacional e sua dinâmica
intrínseca. O lugar se conquista e se estrutura para e contra o outro,
1. ... quanto a mim,faço parte de uma minoria que ... em urna tipificação das condutas, da qual faz parte a radicalização
2 . ... no meu caso, sou daqueles que... (AdC-TGV). das diferenças.
... Faço meu trabalho no capricho, enquanto ele é mais lar- Para além dessa primeira dimensão, fora da relação interati-
gado (Carteiros titulares, agência de Correios do subúr- va, as opiniões e os pontos de vista descobertos no decorrer da au-
bio parisiense). toconfrontação podem se estruturar e se imobilizar completamente
154 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos

na base heterogênea de referências compartilhadas e de particulari-


dades assumidas. Corre-se o risco, então, de assistir - ~vitemos ser
ingênuos - a uma suspensão ["mise en souffrance"] da criatividade
dialógica, no vazio de antolhos estilísticos, cada um fixando-se com
obstinação em posições eventualmente defendidas pela polêmica.
A motricidade do diálogo, evocada mais acima, transforma-
gesto transmiss
se, pois, em algo escorregadio; neste caso, cabe aos pesquisadores
manter incólume a instabilidade criadora do espaço-tempo criado
para a circunstância ou saber colocar um termo ao processo. Mas,
eles não são os únicos a serem capazes de "fazer viver" o diálogo:
eles devem contar com o compromisso construído do meio profis-
sional sem o qual nada é possível alcançar do que tentamos promo-
ver neste livro. A vida do gesto de ofício custa tal preço. Eis o que
vai ser demonstrado mais abaixo.

A transmissão do gesto profissional é, com frequência, considerada


como essencial para o desenvolvimento da experiência em grande
número de ofícios. No entanto, neste texto, gostaríamos de nos
questionar 1 sobre a própria ideia de "transmissão" que evoca outros
sinônimos: difusão, propagação e transferência. No fundo, se há
transmissão, quais são os procedimentos suscetíveis de torná-la
manifesta?

E 1. o GESTO, A PALAVRA E os ENIGMAS.


Para fazer compreender a dificuldade perante a qual nos encontra-
mos, vamos retomar um exemplo apresentado por J. Bruner, toma-
do de empréstimo de um domínio não profissional, mas totalmente
significativo para aquilo que enfrentamos, igualmente, na análise

1
Este capítulo é extraído de um artigo escrito, em 1999, por ocasião de 10" entretiens
de la Villette [10°' Debates de la Villette] e disponibilizado na internet por "Cité des
sciences'; em Paris. Para a compreensão do presente texto, será possível encontrar um
complemento útil em um artigo recente que desenvolve e aprofunda os resultados que
serviram de base para sua elaboração (Clot, Fernandez & Scheller, 2007).
156 Segunda Parte -A atividade: problemas e conceitos O gesto é transmissível? 157

do trabalho. Certo dia, ele passeava com uma amiga italiana em e, com frequência, maquinal. Incorporado por quem o realiza, ele
uma aldeia dos Alpes onde ela havia passado as férias sJe verão des- deixou a consciência para juntar-se aos subentendidos, individuais
de a infância: "Observei, então, escreve ele, que, ao cruzarmos com e coletivos, que organizam a ação, sem o conhecimento do sujeito.
outros caminhantes na vereda que percorria essas colinas, ela os Seu sentido não é, de modo algum, transparente. A segunda coisa é
saudava com um pequeno gesto de mão e uma inclinação da cabe- que a imitação formal do gesto não é uma garantia contra seu uso
ça. Essa era sua saudação para todo o mundo, inclusive homens e descabido. Ajustado a um contexto, ele se encontra deslocado em
desconhecidos. Por minha parte, obviamente, decidi imitá-la. outro, porquanto permanece o gesto estrangeiro do outro que eu
Quando retornávamos e nos encontrávamos, de novo, perto da al- reproduzo.
deia, continuei a fazer os mesmos gestos. ''Agora, não- disse-me ela De fato, o gesto se apresenta na atividade profissional um pou-
-porque já estamos perto da nossa casà: Ao lhe perguntar o motivo co como a palavra na atividade de linguagem. É possível afirmá-lo à
dessa atitude, ela teve a maior dificuldade para se explicar. Final- maneira de Bakhtine: ''A palavra da linguagem, escreve ele, é uma
mente, como se tivesse sido iluminada por uma revelação, ela disse- palavra semiestranha. Ela não o será mais quando o locutor vier a
me: "Veja, isso deve ser porque, na montanha, enfrentar um desco- incluir nela sua intenção e seu sotaque, além de tomar posse dela e
nhecido tem uma significação diferente da que tem na aldeia: como iniciá-la em sua aspiração semântica e expressiva. Até o momento
se ele estivesse disposto a atacá-lo e, de antemão, você quisesse ter a em que alguém se apropria do discurso, este não se encontra em
certeza de que lhe tinha manifestado sua boa vontade" (Bruner, uma linguagem neutra e impessoal (com efeito, o locutor não o tira
1996, p. 190). de um dicionário!); ele está em lábios e em contextos alheios, a ser-
Ela nunca havia pensado nisso, comenta Bruner. Mas, enfim, viço de intenções alheias, e é aí que alguém deve tomá-lo e fazê-lo
não basta cumprimentar as pessoas que encontramos; quando mui- 'seu: Nem todos os discursos se prestam, com a mesma facilidade, a
to, temos de respeitar uma série de condições comuns e comple- essa usurpação e a essa apropriação. Muitos oferecem uma vigorosa
mentares. Essas últimas dizem, sem o dizer, sem declaração explíci- resistência; outros permanecem 'alheios' e soam, de forma estranha,
ta, o que convém fazer em determinada situação. O que é adequado na boca do falante que tomou posse dela; eles não conseguem assi-
ou não. De forma mais ampla, sob o disfarce de um gesto aparente- milar-se a seu contexto, eles são excluídos dele. É como se, indepen-
mente simples, existem maneiras sociais de exercer o pensamento. dentemente da vontade do locutor, eles se colocassem 'entre aspas: A
Um simples ritual de saudação contém uma distinção eminente- linguagem não é um meio neutro . Ela não se torna, de modo fácil e
mente cultural: "Sinto-me em segurança quando estou em casa, livre, propriedade do locutor. Ela está ocupada e repleta de intenções
mas em perigo quando me afasto do meu domicílio". Quando ade- estranhas. Dominá-las e submetê-las a suas intenções e sotaques é
rimos a uma comunidade social reunida em torno de atividades um processo árduo e complexo!" (Bakhtine, 1978, p. 15).
comuns, não somente nos inserimos em um conjunto de conven- A cada um, igualmente, compete "expurgar" os gestos do tra-
ções compartilhadas, mas "essa partilha nos inclui em um mundo balho saturados pelas intenções de outro, a fim de conseguir fazê-los
de práticas que vão além do indivíduo; e cada operação dessas prá- seus. Sempre, com Bakhtine, pode-se compreender, então, que agir é
ticas depende do fato de que ela é comumente distribuída. Conside- opor uma contra-atividade à atividade do outro. Na verdade, é algo
ro essas práticas como um conjunto de enigmas, ligados uns aos particularmente verdadei~o tratando-se do gesto. Aprender um ges-
outros", eis a conclusão de Bruner (p. 192). to é retocá-lo continuamente em função dos contextos heterogêneos
Esse exemplo mostra, com bastante clareza, duas coisas. A pri- que ele atravessa e no âmago dos quais ele se refrata; e do qual, ele sai
meira é que a experiência de um gesto não é opaca apenas para quem enriquecido, mas também eventualmente amputado. Eis precisa-
a observa de fora. O gesto bem-sucedido, eficaz ou concluído, é firme mente o que aconteceu com o gesto imitado de J. Bruner.
158 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos O gesto é transmissível? 159

.. 2. O PROBlEMA DA IMil AÇÃO .. Como já havia sido sublinhado por Leroi-Gourhan, toma-se de em-
préstimo o que se está a ponto de inventar (Leroi-Gourhan, 1964);
Afinal de contas, a transmissão só pode ser considerad~ como uma no interior de uma zona de desenvolvimento potencial de sua pró-
imitação em um sentido que deve ser definido com grande preci- pria atividade, teria dito Vygotski (1997) de outro modo. A imita-
são. Em todo o caso, certamente não como uma simples interioriza- ção é, portanto, o movimento de apropriação que transpõe o gesto
ção dos gestos do imitado pelo imitador. A aprendizagem do gesto do outro na atividade do sujeito: fonte externa da minha aprendiza-
e de seus acasos estão ali para nos lembrar um maior grau de discer- gem, ele deve converter-se em recurso interno do meu próprio de-
nimento. É necessária uma engenhosa paciência do instrutor e pe- senvolvimento. Essa transformação do gesto obriga a considerar a
nosas tentativas do aprendiz, a fim de que o gesto ensinado seja não transmissão como um processo que se desenrola não simplesmente
só compreendido, mas bem-sucedido. Em geral, costuma-se fazer de fora para dentro, mas também de dentro para fora (Clot, 1999a;
referência à formação do gesto à maneira como M. Mauss o inscre- Brushlinsky, 1991; Meyerson, 2000, p. 338).
via em uma tradição. Chamo técnica a um ato tradicional eficaz, Existem vários tempos. A imitação é, em primeiro lugar, uma
escrevia ele: "Não há técnica, nem transmissão, se não existe tradi- ação do sujeito sobre si mesmo. Ele se faz instrumento do que ele vê
ção. Eis o aspecto em que, antes de mais nada, o homem se distin- realizar-se perto dele e parece eclipsar-se diante do modelo que age
gue dos animais: pela transmissão de suas técnicas e, muito prova- nele. Mas, longe de somente aplicar esse modelo, ele o coloca, em
velmente, pela transmissão oral das mesmas" (Mauss, 1950, p. 371). seguida, a serviço da sua própria ação que já não está dirigida para
Em seu entender, "além da criança, o adulto imita atos bem-sucedi- si, mas para o mundo. E assim, a imitação incorporada a essa ação
dos e que, à sua frente, haviam obtido sucesso com pessoas em altera seu estatuto. Tendo começado por ser objeto da ação do sujei-
quem deposita confiança e têm autoridade sobre ele. O ato, ainda to sobre si mesmo, eis que o modelo se converte em meio de sua
que exclusivamente biológico, concernente a seu corpo, impõe-se ação sobre o mundo. O gesto, modelo imitado, separa-se, então, da
de fora e de cima. O indivíduo toma de empréstimo a série de mo- pessoa imitada. Ele se torna o gesto do imitador que, por retroação
vimentos de que se compõe o ato executado à sua frente, ou com -como observa, de forma mais geral, Wallon -,toma assim consci-
ele, pelos outros. Na noção de prestígio da pessoa que executa o ato ência de si próprio através de outro: ''Ao pretender assemelhar-se ao
ordenado, autorizado e comprovado, em relação ao indivíduo imi- modelo é que ele se opõe à pessoa e deve efetivamente acabar por se
tador, é que se encontra precisamente o verdadeiro elemento social" distinguir, também, do modelo'' (1970, p. 157). Esse é o terceiro
(p. 369). tempo da imitação que se apresenta, finalmente, como um desen-
Em certo sentido, nada há a criticar nessa teoria do emprésti- volvimento possível do gesto modelo, se tiver a autorização da pes-
mo, compartilhada também por Meyerson (2000, p. 312). Mas, sem soa imitada, ou seja, como um movimento que vai, nesta eventuali-
dúvida, convém protegê-la do sociologismo que a espreita. Porque, dade, de dentro para fora. Aliás, se esse desenvolvimento da imitação
em primeiro lugar, toma-se de empréstimo um gesto alheio que é esbarra no imobilismo do imitado, ele pode ficar "em suspenso'~
necessário fazer seu e não se pode alcançar tal objetivo sem o sub- Nesse caso, "uma fidelidade absoluta corre o risco de se converter
meter às próprias intenções realizadas na ação. É um erro acreditar em desejo de supressão" (p. 157).
em uma dependência e subordinação naturais do gesto em relação Como se vê, a transmissão do gesto não se assemelha a uma
ao raciocínio e ao modelo que se apresentam à visão, à audição e à linha reta que conduz o sujeito para o objeto. Longe de ser um dado
intuição intelectual. Mauss tem razão em sublinhar a função afetiva inicial, ela exige a redução recíproca de várias mobilizações subjeti-
do prestígio da pessoa na imitação do modelo. Mas, para que eu me vas de sentido oposto e, na sequência, uma ação que, ao mesmo
aproprie efetivamente dele - operação que exige tempo e implica tempo, ultrapasse todas elas a fim de tirar daí o melhor proveito no
fracassos -, é necessário que ele se torne apropriado para mim. decorrer da atividade. À maneira de Wallon, poderíamos dizer que
160 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos O gesto é transmissível? 161

a imitação do gesto se inscreve entre dois termos contrários: fusão, com este fato: um gesto se libera do gesto dos outros, não por sua
alienação de si na coisa ou participação no gesto de m,ltro e desdo- negação, mas pela via de seu aperfeiçoamento. É como se, no decor-
bramento do ato a executar a partir do modelo (p. 144). O gesto rer do tempo, o novato vencesse o gesto transmitido graças às ar-
verdadeiramente transmitido, isto é, aquele do qual alguém se apro- mas deste e, ao aperfeiçoá-lo eventualmente, o forçasse a superar-
pria, já não é absolutamente o mesmo gesto. Aí, reencontramos a se. Desse modo, o gesto, ao tornar-se meu, adquire seu estilo apenas
tese central que Wallon opõe a Piaget. Falando do sujeito psicológi- se é avaliado como uma contribuição para o desenvolvimento do
co, ele escreve: "O que lhe é necessário não é um progresso, ele tem gesto dos outros, estabilizado na história de um coletivo. É talvez
necessidade de uma redução de sociabilidade. Ele deve ser capaz de por esse aspecto que se reconhece um expert: sua capacidade para
se recompor diante dos outros. Longe de conduzir a evolução, esta enriquecer e renovar essa história.
delimitação só pode ser seu efeito" (p. 92). Essa história, vamos designá -la como o gênero profissional
do meio de trabalho, gênero define, por gestos, palavras e subenten-
didos, uma espécie de diapasão profissional comum. Esse gênero
• 3. O GESTO COMO ARENA: ENTRE GÊNERO E ESTILO •
conserva, graças aos enigmas evocados por Bruner, as maneiras de
Acrescentemos que, ao produzir-se, essa evolução - que, efetiva- considerar as coisas e as pessoas em determinado meio, além de
mente, pode ser compreendida como um afastamento ou uma se- assimilar e, por fim, digerir as novas contribuições que mantêm, em
paração do gesto alheio - não é um trabalho solitário. Na maior vigília, essa história (Clot, 1999b).
parte das vezes, ao se misturar às diferentes maneiras de fazer o
mesmo gesto em determinado meio profissional, é que, pelo jogo de
contrastes e comparações entre pessoas, o gesto se decanta. Desfa- • 4. O DESENVOLVIMENTO DA TRANSMISSÃO:
ço-me do outro, passando de um para o outro, confrontando os UM EXEMPLO.
outros entre si. Assim, progressivamente, mas, às vezes, bruscamen-
te, o gesto comum e suas variantes, ao manipulá-las com destreza, Mas vamos aqui um pouco mais longe porque foi possível avaliar
tornam-se meus. Não há apropriação rigorosa e definitiva entre o até que ponto, às vezes, a transmissão pode oferecer àquele ou àque-
gesto e o gênero da atividade pessoal em que ele toma lugar. Várias les que transmitem a oportunidade de reencontrar a história esque-
maneiras pessoais de fazer podem, portanto, convergir no âmago cida de um gesto abandonado. De fato, a história de um gênero pro-
do mesmo gesto de ofício e, até mesmo, entrar em conflito. É isso o fissional não é só o que o meio compartilha, presentemente, como
que mantém o gesto com vida e lhe confere um porvir possível. O maneira de fazer. São, também, os gestos que foram feitos e depois
gesto é, pois, também uma arena social em que se avaliam as manei- rejeitados, abandonados na história desse meio por diversas razões,
ras de ver, sentir e fazer. E, nessa confrontação à qual o aprendiz nem sempre passíveis de explicação. Contudo, igualmente neste as-
submete, mesmo sem o conhecimento deles, os que o rodeiam por pecto, o que foi abandonado nem por isso é abolido e pode encon-
contraste, o gesto se desliga de cada um e, por fim, deixa de perten- trar uma segunda vida, no momento da transmissão. Gostaríamos
cer a alguém em particular. Sem proprietário exclusivo, ei-lo dispo- de concluir nossa reflexão com um exemplo desse tipo.
nível. Posso, então, dispor dele, apropriar-me e tomar posse dele. Em um trabalho com carteiros dos Correios, na França - e
Afinal de contas, é aprendendo a distinguir os outros entre si que em um quadro metodológico preciso, descrito mais acima (Clot &
venho a distinguir-me deles, utilizando os meios da comparação Falta, 2000; Clot, Fai:ta, Fernandez & Scheller, 2000) -, utilizamos
para meu próprio desenvolvimento. algumas autoconfrontações cruzadas que consistem em solicitar a
Mas um ponto merece, então, ser sublinhado. Nossa experiên- profissionais um comentário acerca de imagens de vídeo sobre a
cia na clínica da atividade profissional (Clot, 1999b) familiarizou-nos atividade de um colega, antes do comentário desse mesmo agente.
162 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos O gesto é transmissível? 163

Tais confrontações cruzadas são uma preparação para seu compro- ção: ao cair no chão a ripa fixada no escaninho, na qual estavam
misso recíproco em diálogos profissionais sobre os gest9s de ofícios, pregadas as etiquetas com a classificação dos distritos, veio-lhe a
diálogos que não são jamais totalmente isentos de controvérsias ideia, e a outro colega, de dispor de maneira diferente, do outro
Acontece que esses diálogos estabelecem o confronto de um lado da ripa, novas etiquetas ordenadas em função do trabalho do
profissional, bastante experiente, com um aprendiz ou quase-apren- "coringà: Assim, a ripa de duas faces, virada, podia mostrar alterna-
diz quando é, como no exemplo mais abaixo, um "coringa", ou seja, tivamente, em caso de necessidade, o turno do titular - repleto de
um não titular que substitui o titular em seu percurso. Em uma des- astúcias - e o turno do "coringà' - desvencilhada da opacidade de
sas situações, na época, muito próxima de uma situação de aprendi- critérios ainda amplamente alheios à sua experiência.
zagem profissional, o perito, com vinte e cinco anos de profissão, é No entanto, essa virada possível da ripa havia sido abandona-
confrontado cgm um jovem "coringa" inexperiente (Clot, Scheller, da na agência, não sendo finalmente imposta - por razões, dessa
Caroly, Millenvoye & Volkoff, 2000). As imagens o apresentam em vez, compreensíveis 1 - como um atributo do gênero profissional
uma posição de separação da correspondência em que são mobili- desse meio. No momento desse confronto dialógico, tal gesto é
zadas as técnicas de triagem diante dos escaninhos da correspon- transferido para as possibilidades do ofício: por um lado, enrique-
dência. O gesto do principiante, que desconhece a organização dos cendo, potencialmente, o repertório genérico da agência; mas, por
escaninhos, preparada pelo titular ausente em função de seus hábi- outro, fornecendo novos recursos mobilizáveis para o jovem colega.
tos de distribuição no distrito, demonstra uma penosa hesitação. Aqui, a transmissão do gesto segue, portanto, um curioso percurso.
Segurando a carta na mão, ele percorre todos os escaninhos como O que é transmitido é um gesto despertado do sono genérico pela
se estivesse marcando compasso, privado de qualquer referência. atividade contrariada de um jovem aprendiz. Nesse caso, a trans-
Consternado por observar o colega perder, assim, um tempo pre- missão é um desenvolvimento do gesto.
cioso que teria de compensar com uma prolongação excessiva da
jornada de trabalho, além de avaliar sua solidão desesperante e o
abandono em que se encontra - abandono, aliás, que ele acompa- .. 5. O GESTO NÃO É UMA BOlA QUE SE PASSA •
nha cotidianamente sem vê-lo - o profissional experiente é tentado,
Para concluir, diremos, ainda à maneira de Volochinov (1977, p.
inicialmente, por uma atitude defensiva. Ele explica, então, ao jo-
117), que não se pode pensar a transmissão do gesto como o lança-
vem colega que a aprendizagem foi sempre difícil para todos, que é
mento de uma bola que viesse a saltar de geração em geração. De
uma experiência penosa inevitável a ser enfrentada para sentir-se
fato, a experiência coletiva não se transmite; mas ela resiste e perdu-
fortalecido do ponto de vista profissional. Mas o diálogo reserva ou-
ra sob a forma de uma evolução ininterrupta. Ela pode também
tro destino a esse diagnóstico. Com efeito, o "coringà' explica, en-
perder-se. Mas seja como for, ninguém recebe, como partilha, uma
tão, que não tem tempo para se dedicar a tal experiência porque,
experiência pronta a ser usada; de preferência, cada um toma lugar
além disso, ele "girà' regularmente no rodízio de substituições, sem
na corrente das atividades e dos gestos. Mais exqtamente, o gesto
ter a possibilidade de tirar proveito de automatismos que, em cada
pessoal constrói-se apenas dentro e contra essa corrente, aproprian-
situação, teria de reconstruir. Essa organização do trabalho não per-
do-se dos enigmas do gênero. Mas esse último, longe de ser um sis-
mite. o tipo de aprendizagem que o mais antigo havia conseguido
tema abstrato de normas, sempre igual a si mesmo, está submerso
realizar. A estabilidade é insuficiente. Sob o efeito dessa resistência
na ação compartilhada e dilacerado pelas contradições vivas do
do real no diálogo, o carteiro experiente, titular de seu turno, sente-
se impelido a repensar o problema. Diante desse obstáculo, do qual
só agora ele percebe a sua exata medida, lembra-se de um gesto, 1 Sobre este ponto particular da análise é que o artigo já citado (Clot, Fernandez &
outrora em uso na agência, e põe-se a relatar sua surpreendente inven- Scheller, 2007) fornece precisões relevantes.
164 Segunda Parte -A atividade: problemas e conceitos

meio de trabalho para reaparecer enfim, eventualmente, saturado


de variantes e sobrecarregado de matizes, com uma 1estabilidade
invariavelmente provisória. Esses gêneros constituem, finalmente,
a integralidade dos equívocos que persistem em decorrência de
sua própria história. O exemplo dos carteiros mostra bem isso. A
análise do trabalho vai deslocá-los favorecendo as criações estilís-
ticas que os despertam. Mas é também o que nos ensina, ao exage-
rar os detalhes, a historieta de J. Bruner. Coletivo e indivíduo são
inseparáveis.

Em matéria de análise do trabalho, pode-se considerar, no entanto,


a questão das relações entre o individual e o coletivo na atividade
como uma das mais difíceis a resolver 1: Leplat insistiu sobre a di-
mensão coletiva da atividade individual (2000). Benchekroun e
Weill-Fassina enfatizam o trabalho coletivo (2000). Enquanto Cru
(1995) ou Dejours (1995) sublinham o coletivo de trabalho. Para
Hoc, na perspectiva cognitiva clássica, o modelo explicativo vai do
individual ao coletivo (1996, p. 165) e o coletivo tende a tornar-se
uma reunião de indivíduos. Pelo contrário, ao adotar um ponto de
vista ecológico, Hutchins o faz pelo caminho oposto: a atividade
individual já não é considerada por ele como a unidade significati-
va, mas como a simples componente de um sistema funcional, dis-
tribuído entre os homens e os artefatos (1995). Desse modo, o siste-
ma é que se torna sujeito. Mais prudente, Theureau adota apenas
parcialmente a intersubjetividade e a interobjetividade, postuladas
por esse ecologismo radical (2000, p. 116).

1
Este capítulo é uma versão bastante retocada de dois textos: o primeiro é oriundo
de Actes du Congres de la SELF [Société d'Ergonomie de langue française I Sociedade de
Ergonomia de Língua Francesa], em 2003; enquanto o outro havia sido publicado no
livro coordenado por G. Valléry e R. Amalberti, ranalyse du travail en perspectives,
Octares, 2006.
O coletivo no indivíduo? 167
166 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos

No texto mais abaixo, e com base em estudos já apresentados coletiva, é central. "No trabalho coletivo, esse polo instrumental da
em outras publicações (Clot, 1999c; Béguin & Clot, 20014; Caroly & negociação é que suscita nosso interesse", escrevem elas (p. 229).
Clot, 2004), gostaríamos de mostrar que uma perspectiva desenvol- Ora, no nosso vocabulário, esse instrumento do trabalho coletivo,
vimentista na psicologia do trabalho pode permitir afrouxar o nó elaborado pelo coletivo de trabalho diante do real, é simplesmente
epistemológico que essas antinomias constituem para a análise da o gênero profissional. No trabalho coletivo, o coletivo de trabalho
atividade. Essa perspectiva é bastante tributária de Vygotski. Para mobiliza instrumentos genéricos. Caso contrário, crescem os riscos
ele, como se sabe, a atividade coletiva aparece duas vezes no desen- de desregulação da atividade individual, relativamente tanto à segu-
volvimento da atividade individual. Inicialmente, fonte da atividade rança das instalações, quanto à saúde dos trabalhadores.
individual, a vida coletiva se torna recurso para essa atividade indi- Todo trabalho coletivo nem sempre implica um coletivo de
vidual (Vygotski, 1994b, p. 110-111; Clot, 1999c, p. 20-21). Ela obe- trabalho, observam criteriosamente Benchekroun e Weill-Fassina
dece a uma migração funcional (Vygotski, 2003). Nesse movimen- (2000, p. 6). Isso será demonstrado, de novo, pelo exemplo apresen-
to, entre fontes e recursos, a própria atividade individual surge duas tado mais abaixo. Esses autores se referem, aliás com toda a razão, à
vezes: a primeira, no plano social; em seguida, no nível psicológico. definição do coletivo forjada por D. Cru: tem de haver, "simultane-
Em primeiro lugar, enquanto categoria interpsicológica; em segui- amente, vários trabalhadores, uma obra e linguagem comuns, de-
da, como categoria intrapsicológica. O indivíduo se torna sujeito terminadas regras de ofício, além do respeito duradouro dessas re-
psicológico quando ele "começa a utilizar, em relação a si próprio, gras por cada um, o que impõe uma evolução individual que vai do
as mesmas formas de conduta que os outros haviam empregado, em conhecimento das regras à sua interiorização" (Cru, 1995). Tem de
primeiro lugar, para com ele" (Vygotski, 1978, p. 141; Tomasello, haver, uma vez mais no nosso vocabulário, o exercício de um traba-
2004). Em seguida, será obrigado a liberar-se delas. Com efeito, so- lho sobre o trabalho, de um "ofício ao quadrado" coletivamente or-
mente com essa condição é que o sujeito poderá empreender a pró- ganizado (Caroly & Clot, 2004). É, também, o que havia sido iden-
pria atividade na vida social para, finalmente, "dar sua contribui- tificado por De Terssac e Lalande no trabalho de organização do
ção': Essa perspectiva, ao mesmo tempo, histórica e direcionada coletivo a propósito da análise de um caso singular na SNCF (2002).
para o desenvolvimento - que se interessa, de início, pela organiza- No fundo, como vamos tentar demonstrá-lo, tem de haver uma his-
ção das passagens entre atividade individual e atividade coletiva - é tória comum de reorganização do trabalho coletivo por um coletivo
evidentemente identificável em outros contextos teóricos bem des- de trabalho: a história aberta de uma estilização genérica indispen-
critos por Maggi (2003). De qualquer modo, esse movimento de sável para conservar, diante do real, uma capacidade de agir con-
passagem é que se encontra na relação entre atividade pessoal e ati- juntamente.
vidade coletiva em meio profissional que é objeto de nossa aborda- Pode-se, aliás, pelo menos, em um primeiro momento, apro-
gem, neste livro. Vamos apresentar, mais abaixo, um exemplo. ximar essa perspectiva dos trabalhos de K. E. Weick na sociopsico-
Mas, em primeiro lugar, gostaríamos de esclarecer um aspec- logia da organização (Weick, 1995; Vidaillet, 2003). A partir de seu
to de vocabulário. De la Garza e Weill-Fassina têm razão em men- célebre artigo sobre o esfacelamento do sentido nas organizações,
cionar a multidimensionalidade do trabalho coletivo como formas dedicado ao acidente de Mann Gulch (2003), Weick distingue dois
de interações sociais (2000, p. 226 ss.). Essas pesquisadoras insistem registros de construção do sentido da atividade coletiva. A inter-
sobre o fato de que as diferentes formas de trabalho coletivo como subjetividade dos intercâmbios associa os sujeitos entre si na situa-
a co-atividade, a co-ação, a cooperação, a colaboração ou, ainda, a ção atual; mas, eles estão,-igualmente, religados entre eles por uma
ajuda mútua têm como condição a chegada a um acordo e a nego- coisa diferente que organiza seus intercâmbios de acordo com es-
ciação para superar os conflitos do real (p. 227-229). Aqui, a função quemas em vigor. Trata-se de uma construção genérica que remete
do referencial comum (Terssac & Chabaud, 1990), na elaboração ao repertório de ações e regras desenvolvidas em uma história e
168 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos O coletivo no indivíduo? 169

transferíveis de um membro para outro. Esses dois registros são in- um verdadeiro entimema social 1 para agir: parte subentendida da
separáveis e estão sempre expostos ao desligamento: "Graças somen- atividade que os trabalhadores de determinado meio conhecem e
te a uma comunicação contínua é que se mantêm e se desenvolvem os veem, esperam e reconhecem, apreciam ou temem; o que lhes é co-
intercâmbios e as interpretações dependentes da intersubjetívidade, mum e os reúne sob condições reais de vida; o que eles sabem que
assim como as compreensões compartilhadas que têm a ver com uma devem fazer graças a um conjunto de avaliações pressupostas, sem
subjetividade genéricà' (Weick, 1995, p. 75). Nesse caso, o desenvol- que seja necessário re-especificar a tarefa sempre que ela se apresen-
vimento está sempre ameaçado pela necrose dos recursos genéricos ta. É como "uma senha" conhecida apenas por aqueles que perten-
no âmago de intercâmbios anemizados no trabalho coletivo diante cem ao mesmo horizonte social e profissional.
do real. Nas situações incidentais, essas avaliações comuns subenten-
Vamos propor, portanto, considerar a cooperação possível, didas desempenham um papel particularmente importante. De
ou impossível, em um colectivo de trabalho como a re-criação na fato, para serem eficazes, elas devem ser parcimoniosas e, na maior
ação e para a ação de uma história que, por não pertencer a alguém parte das vezes, nem sequer são enunciadas. Quando isso ocorre,
em particular, apresenta-se (ou não) como um instrumento pessoal "tomadas ao pé da palavrà: elas a transformam já não em um signo,
para cada profissional. Essa história do meio de trabalho - que será mas em um nó de significações e, até mesmo, de entonações. Elas
qualificada, também, como memória genérica ou transpessoal des- estão entranhadas na carne dos profissionais, pré-organizam suas
se meio - está, para nós, baseada em formas sociais revistas e corri- operações e sua conduta; elas estão, de alguma forma, "grudadas" às
gidas na atividade de cada sujeito. A história de um meio profissio- coisas e aos fenômenos correspondentes. Eis a razão pela qual elas
nal tem continuidade se - e sem qualquer exceção - os homens que não exigem forçosamente formulações verbais particulares ou, de
vivem aí conseguem transformar sua experiência vivida e sedimen- preferência, elas "superpovoam" e "contaminam" todas as palavras e
tada em instrumento para viver novas experiências. Esse é que é o todos os gestos em uso no meio, palavras e gestos inseparáveis das
verdadeiro desafio de uma abordagem desenvolvimentista. vozes do ofício, longínquas ou próximas, que ressoam neles. Esse
intermediário sociosimbólico, esse corpo de avaliações comuns,
que intercede na atividade pessoal e opera de maneira tácita, é que
• 1. O COlETIVO COMO INSTRUMENTO: foi designado pelo conceito de gênero profissional. Trata-se de uma
"INTERlOCUTOR" PROFISSIONAl .. catacrese do conceito de gênero de discurso em Bakhtine (1984). O
gênero profissional transporta, corh seus esquemas, a integralidade
Começaremos pelo instrumento. Partimos de uma constatação que dos equívocos que sua história havia deixado persistir aí e que ela
se pode descrever com a ajuda de uma metáfora pedida de emprés- não cessa de renovar; ou, ainda, tudo em que haviam esbarrado as
timo a J. Bruner. Ao chegarmos em um lugar de trabalho "é como se sucessivas gerações de profissionais, obrigando cada um, nessa obra
penetrássemos em um palco em que a representação já tivesse co- de interpretação coletiva e singular, a dar sua contribuição.
meçado: a intriga já está tramada; ela determina o papel que pode- Entende-se por "gênero", o interlocutor [répondant] profissio-
mos representar na peça e o desfecho em direção ao qual podemos nal que, atravessando a atividade de cada um, coloca, justamente, cada
nos dirigir. Aqueles que já estavam no palco têm uma ideia da peça um na interseção do passado e do presente. Ou, dito de outra maneira:
que está sendo representada, uma ideia suficiente para tornar pos- o interlocutor [répondant] genérico do ofício. Quando existe - e, aqui,
sível a negociação com o recém-chegado" (Bruner, 1991, p. 48). Foi
possível, portanto, propor (Clot, 1999; Clot & Falta, 2000) - com 1
Na lógica, o qualificativo de entimema é aplicado a um silogismo do qual uma das
base nas reflexões de Bakhtine em outro domínio (1981, p. 191) - premissas não chega a ser expressa, mas é subentendida. Por exemplo: Sócrates é um
considerar a atividade comum de trabalho, como a mobilização de homem, logo é mortal. Subentende-se: todos os homens são mortais.
170 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos O coletivo no indivíduo? 1 71

gostaríamos de definir suas condições de existência - ele incorpora, em suspenso [mise en souffrance]. Cada um, individualmente, é
na qualidade de instrumento da ação (Rabardel, 19?5), não só a confrontado, então, com surpresas ruins de uma organização do
heterogeneidade contemporânea das variantes profissionais, mas trabalho que o deixa "sem voz" diante do real. Sem interlocutor [ré-
também a totalidade aberta das vozes que continuam, oriundas do pondant]. Bakhtine teria escrito sem "sobredestinatário" ou, melhor
passado, falando no presente, inclusive de maneira anônima, para ainda, sem "destinatário de emergêncià' (1984). Assim, quando o
dizer o que é adequado, "deslocado" ou inacabado no ofício. É "o "ofício deixa de falar", não é raro que as pessoas "fiquem doentes".
ofício que fala", se nos é permitido utilizar essa expressão. Ele pro- Mas então, fundamentalmente, é do ofício que se deve cuidar [soig-
cede por contaminação das linguagens, técnicas do corpo e do espí- ner], em todos os sentidos do termo, porque faz falta a manutenção
rito, palavras e coisas. Na interseção das séries, ele une o passado ao do instrumento genérico do trabalho coletivo. O trabalho do coleti-
presente, o mundo dos predecessores ao dos contemporâneos em vo é desmediatizado.
um diálogo, às vezes, inaudível, quase sempre interrompido, sem-
pre a retomar entre o passado superado e o futuro a viver. O gênero
conserva seu passado quando um círculo profissional consegue - a 2. TRABAlHO COlETIVO E COlETIVO DE TRABALHO:
quase sempre, apesar de tudo - transformar esse passado em meio OS A TENDENTES •
de viver o presente, ou seja, paradoxalmente, em lembranças do fu-
turo. O interlocutor [répondant] -que faz jus a seu nome- é atingi- Para esclarecer esse problema, vamos examinar um exemplo - a
do por uma plurivocalidade estrutural, por uma heteroglossia irre- partir dos diferentes ofícios no âmbito da empresa francesa dos
dutível, quando ele é essa "memória para predizer", de acordo com Correios. Ele é oriundo de um excelente trabalho de tese em ergo-
a formulação de A. Berthoz (1997, p. 125). Desse modo, à maneira nomia (Flageul-Caroly, 2001). Sandrine Flageul-Caroly comparou o
de Bakhtine, pode-se pensar o seguinte: quanto maior número de trabalho dos atendentes em duas agências dos Correios: uma, situa-
pontos de contato tiverem os que trabalham com essas variantes, da na região parisiense e classificada em Zone urbaine sensible (ZUS
mais fecundo e mais flexível será seu manejo das técnicas e lingua- I Zona Urbana Sensível), e a outra e no interior. No momento da
gens do gênero, e menos "ingênuos " serão no ofício. Ou seja: mais intervenção, durante um ano, na primeira agência, sete agentes em
bem preparados estarão não somente para suportar o choque do quinze haviam deixado a equipe. Salvo a contabilista que havia saído
real sem "esfacelamento do sentido", para falar como Weick (2003). por motivo de uma licença-maternidade, dois atendentes, depois de
Mas ainda, para transformar o desprazer que há sempre ao se sentir um diagnóstico oficioso de inaptidão relaciona! com os clientes, fo-
flagrado em falta- no prazer da descoberta. ram transferidos a seu pedido para um centro noturno de triagem;
Inversamente, na ausência de previsíveis genéricos disponí- outro faleceu na sequência de enfarte, durante a execução de sua
veis, pode-se mostrar que a saúde se degrada no ambiente de traba- tarefa; um terceiro, vítima de agressão, foi obrigado a abandonar
lho. De fato, o coletivo profissional reduz-se, então, a uma reunião definitivamente sua posição de atendente; e o contrato de outros
de indivíduos expostos ao isolamento: o trabalho coletivo é, então, dois agentes não chegou a ser renovado. Além disso, o chefe de equi-
privado de coletivo de trabalho. Esse é o caso, quando não se exerce, pe "passou por uma depressão" (Flageul-Caroly, 2001, p. 140). Na
por razões a procurar em cada circunstância, a ação de "civilização" agência do interior, pelo contrário, a estabilidade do pessoal foi
do real à qual deve proceder um coletivo profissional sempre que o mantida, e o público é m~is heterogêneo, embora uma parcela da
trabalho, por seus imprevíveis, o leva a descobrir. Ou, dito ainda população viva, também, na precariedade, em decorrência do fecha-
por outras palavras, quando a história do gênero profissional "dege- mento de fábricas que tem levado ao crescimento do desemprego.
nerà' no trabalho coletivo; quando, para afirmá-lo ainda de outro Nessa última agência, entre as prescrições e procedimen-
modo, a produção coletiva dos previsíveis genéricos do ofício está tos oficiais, por um lado, e, por outro, a atividade de cada agente,
172 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos O coletivo no indivíduo? 173

tomou lugar e permanece atuante o intermediário social definido de seus colegas da agência do interior, os atendentes não resolvem
mais acima. Usando outras palavras: existe, por iniciativa dos aten- os problemas de cartões e cheques com o próprio cliente, mesmo
dentes e carteiros, um trabalho coletivo de organização' do trabalho que não haja fila de espera, mas orientam o cliente a dirigir-se ao
que garante a transfiguração da organização oficial a fim de "mantê- centro de cheques postais.
là' como instrumento diante do real. Para demonstrá-lo, vamos A regra oficial prevê que, tendo sido realizada a operação de
propor mais abaixo uma descrição do repertório das ações que or- carta registrada no computador, tal aviso de registro seja imediata-
ganiza a "subjetividade genéricà: para falar como Weick, ou, para mente colocado no recipiente, ou seja, dois deslocamentos para os
afirmá-lo à maneira de Reed e Brill (1996, p. 438): "o espaço das atendentes nessa situação repetitiva que reduz a disponibilidade pe-
ações incentivadas" por esses profissionais para cada um deles. A rante os clientes. Na mencionada agência do subúrbio, cada um en-
seguir, vamos sublinhar uma parte do inventário das propriedades frenta sozinho tal obrigação. No interior, os atendentes procuraram
desse instrumento genérico que foi minuciosamente estabelecido em conjunto e, depois de tentarem várias soluções, acabaram usan-
por S. Flageul-Caroly (2001, p. 182; Caroly & Clot, 2004). do uma estratégia comum: uma vez que o registro da primeira pá-
A diretoria da empresa francesa dos Correios separou a fun- gina no monitor permite contabilizar uma pilha- aliás, correspon-
ção de atendente e a de agente de cabine - a cabine é o lugar para dente ao objetivo de produção -, eles deixam de lado o aviso de
depositar cartas registradas e encomendas contrarreembolso. Ora, distribuição do objeto registrado para registrá-lo, no final do expe-
segundo os atendentes da agência do interior, "ficar na cabine" per- diente, na cabine com a caneta laser. Assim, ficam menos cansados
mite preparar a resposta à demanda do cliente. A manutenção, de- e ganham tempo, permanecendo disponíveis para o cliente. Essa
cidida coletivamente, dessa polivalência guichê-cabine-contabili- ação, reelaboração comum em determinada agência, torna-se uma
dade, apesar da evocação do regulamento pela gerência depois de transgressão para a hierarquia e, até mesmo, para os colegas, quan-
um roubo, permite deixar o guichê para avançar o trabalho na cabi- do é realizada em outra agência. No interior, para se poupar, evitan-
ne, que permanece aberta durante todo o expediente. No momento do deslocar-se, o atendente acaba por "quebrar o galho" com o cole-
em que há menos pessoas na fila de espera, a circulação entre as ga do guichê contíguo quando tem falta de selos ou de troco em seu
funções é possível e autoriza uma preparação - tendo em vista as caixa. A interrupção do trabalho do outro é considerada um modo
reclamações - das cartas registradas em um recipiente perto dos de gestão coletiva da agência; além disso, compartilham dos conhe-
guichês. Na agência do subúrbio, uma pessoa ficou vinculada "à ca- cimentos adquiridos sobre os usuários para compartilhar os diag-
bine". Do mesmo modo, no subúrbio, os atendentes não podem en- nósticos, no calor da ação, diante de uma fila. Tal iniciativa é impos-
trar no caixa em back o.ffice e aguardam que o encarregado dessa sível, ou mais difícil de tomar, na agência do subúrbio.
funç'ão esteja disponível, em caso de necessidade, para utilizar a Do mesmo modo, no subúrbio, não se encontra o que existe,
portinhola envidraçada a fim de procederem à troca de dinheiro ou na primeira agência, ou seja, um caderno preenchido em comum
de outros produtos. Na agência do interior, os atendentes entram no no qual estão inscritos os nomes dos clientes e respectivos números
caixa a fim de regularizar as situações críticas que ocorrem no gui- de conta a fim de evitar o vaivém entre o computador e o arquivo.
chê. Na empresa francesa dos Correios, verifica-se, atualmente, a Observa-se também que o faturamento realizado pelas vendas no
tendência a estabelecer uma separação entre a função de carteiro e guichê é coletivo e não individualizado. Enfim, no subúrbio, preva-
a de atendente. No subúrbio, a porta blindada- que separa os espa- lece a proibição segundo a qual a gerência não deve "fundir-se" com
ços de trabalho, impedindo as relações intertarefas - fica fechada os atendentes; por sua vez, na agência do interior, o chefe direto se
correndo o risco de reduzir a visão de conjunto que permite res- sente na obrigação de ser um "paliativo" em caso de dificuldades
ponder a uma reclamação dos clientes; por sua vez, na agência do surgidas no guichê. Se, a esse inventário, acrescentarmos que a
interior, esse espaço não está fechado. No subúrbio, diferentemente equipe da agência do interior se reúne, de quinze em quinze dias,
174 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos O coletivo no indivíduo? 175

para tomar uma refeição em conjunto - aliás, momento que é, entre dentes da agência do subúrbio à mercê das "astúcias" mal-intenciona-
outros aspectos, um tempo de confrontação sobre o tpbalho -, te- das de uma parte da clientela (Flageul-Caroly, 2001, p. 196).
remos desenhado os contornos de uma configuração genérica bas- A segunda tendência continua alimentando o paradoxo da
tante diferente em relação à outra agência. transgressão. É possível identificar seus efeitos no momento da
Em um caso, o instrumento genérico é objeto de uma manu- transmissão do ofício aos recém-chegados. De fato, na agência do
tenção particular no decorrer das trocas no âmago do coletivo de subúrbio, a transmissão incide sobre instruções oficiais; elas são tan-
trabalho. Elas lhe garantem sua plasticidade do trabalho coletivo. to mais canonizadas na medida em que sua transgressão, por cada
Ele é mantido e, assim, pode continuar mediatizando o trabalho co- um, ocorre na sombra e na inquietação. Já na agência do interior,
letivo em que se verifica o casamento entre cooperação e ajuda mú- transmite-se não o procedimento prescrito, mas o "ofício ao quadra-
tua. No outro~ caso, o trabalho na agência já não é mediatizado por do': o entimema genérico (p. 190-191). No primeiro caso, a petrifica-
nenhum referencial comum; o instrumento não é "cuidado" ["soig- ção do regulamento e sua esclerose formalista se conformam - não
né"] por nenhum coletivo. Uma simples reunião de operadores dei- sem perigo- às transgressões que, afinal de contas, limitam-se a ser
xa cada um diante dos artefatos da organização formal, privando os o avesso da prescrição e se voltam contra a própria transmissão do
profissionais das construções operativas comuns indispensáveis ofício. Existe aí uma estranha coincidência entre sacralização do re-
para trabalhar com menor desgaste. Em compensação, os artefatos gulamento e transgressão. É o círculo vicioso do subdesenvolvimen-
em questão estão privados de qualquer desenvolvimento possível. A to profissional: sem meio coletivo para enfrentar o real, a atividade
organização oficial do trabalho não consegue encontrar recursos a individual procura abrigar-se, sem sucesso, por trás da tarefa pres-
partir do trabalho de organização do coletivo. A degenerescência do crita. A coincidência que estabelece um vínculo entre o conformis-
"ofício ao quadrado" desvitaliza a organização oficial, tornando-a mo dos procedimentos e a transgressão do procedimento apoia-se
no que esses dois aspectos têm em comum: seu desconforto diante
cada vez mais formal em detrimento da eficácia e da saúde.
dos imprevisíveis do real. Cada um à sua maneira, conformismo e
transgressão lhe dão as costas quando, no entanto, este exige a cons-
trução paciente de um instrumento genérico evolutivo .
• 3. A ATIVIDADE INDIVIDUAL: MEDIATIZADA
Em compensação, no segundo caso, inexiste transgressão ou
E MEDIATIZANTE • formalismo. O novato é intimado a tomar parte em uma história e
em um trabalho de transformação das regras já encetado por outros
De fato, a análise comparativa mostra igualmente que, na ausência de
e que deve ser continuado (p.m 19 i). Ele é confrontado com as ne-
produção paciente e coletiva de obrigações compartilhadas entre
cessidades de se apropriar da subjetividade genérica do coletivo,
profissionais capazes de enfrentarem as provações do real, duas ten-
com o imperativo de ingeri -lo para digeri -lo, se é que se pode utili-
dências se consolidam no trabalho: a primeira- sendo que S. Flageul- zar tal metáfora. Trata-se da apropriação genérica do real. E encon-
Caroly fornece um bom exemplo a propósito da troca de dinheiro no tramos aqui resultados clássicos na. clínica do trabalho (Clot, 1999):
guichê - é o contorno transgressivo do regulamento que conduz os o recém-chegado não é o jogador a quem se passa a bola do ofício,
atendentes a serem vítimas das malevolências dos usuários. Cada um que ressurgiria de geração em geração. Porque a experiência gené-
é, então, levado a "errar sozinho diante da amplitude das tolices pos- rica, estritamente falando, é intransmissível. Ela resiste e perdura
síveis" (Darré, 1994, p. 22) e isso ao preço de riscos custosos, em to- sob a forma de uma evolução ininterrupta que prossegue ou se ex-
dos os sentidos do termo. Perante a ineficácia do formalismo diante tingue ao atravessar cada um. Cada um não recebe, em partilha,
do real e, além disso, privada do recurso dos atalhos genéricos inen- uma experiência pronta para ser usada. De preferência, ele procura
contráveis, a posição individual acaba por transigir. A transgressão tomar lugar na corrente das atividades às quais é induzido. Mais exa-
do procedimento oficial na atividade individual deixa, então, os aten- tamente, a atividade pessoal não se constrói senão dentro e contra
176 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos O coletivo no indivíduo? 177

essa corrente ao apropriar-se do gênero profissional, graças aos in- fazer viver o coletivo no indivíduo e entre os indivíduos. De fato, essa
tercâmbios coletivos em situação de trabalho. Além qe ser mediati- repetição, para além da repetição, é a força de evocação que mantém a
zada por este último, a atividade individual é propriamente media- prescrição oficial diante do real e torna supérflua a transgressão indivi-
tizante. É ela que, em cada circunstância de maneira singular, liga e dual. Se essa mola propulsora vier a quebrar-se, o trabalho individual
religa os objetos do mundo, os outros e o próprio sujeito por inter- irá permanecer sem interlocutor [répondant]. Por contar apenas com
médio dos instrumentos técnicos e simbólicos, reunidos no gênero. os próprios recursos psíquicos, cada um é reenviado, então, a si mesmo,
Ela o repete, sem repeti-lo. Como já sublinhamos (Béguin & Clot, à fragilidade de seus equilíbrios privados, aos riscos de desordens
2004), não é o gênero que explica a atividade, mas ela é que se expli- graves e simultâneas do corpo e do espírito. A ocorrência de tais ris-
ca com ele, em todos os sentidos do termo. Além de não ser, espon- cos não é alheia ao sofrimento vivido nos guichês da agência de Cor-
taneamente, uma ligação, essa "explicação" que ela tem com ele reios do subúrbio parisiense que acabamos de analisar.
pode provocar um desligamento. Por isso uma teoria da atividade
Na outra agência, não deixam de existir as antinomias de ofí-
não pode tornar-se exclusivamente coletiva. Diferentemente de ou-
cios, os conflitos de objetivos e de critérios que trabalham a consci-
tras leituras da tradição teórica em "teoria da atividade" (Enges-
trom, 1999), nossa perspectiva é deliberadamente psicológica. Ape- ência profissional. E se as condições de vida dos usuários conser-
sar de ser certamente uma importante fonte da atividade individual, vam uma maior heterogeneidade que confere maior flexibilidade
o coletivo de trabalho não é sedentário, para falar como Vygotski àqueles que trabalham, os "problemas de consciêncià' continuam
(2003). Sua função migra para cada sujeito. Em primeiro lugar, fon- também presentes. Se são menos devastadores para a saúde é que
te, ele é metamorfoseado, por sua vez, em simples recurso singular cada um conseguiu familiarizar-se melhor com eles, ou seja, é por-
da atividade individual sem a qual, em retorno, ele não conseguiria, que cada um, paradoxalmente, conseguiu torná-los seus em com-
por si só, tornar-se possível. No início, objeto de apropriação para a panhia dos outros. Mas impõe-se uma precisão: o coletivo, aqui,
atividade individual, o coletivo de trabalho deve tornar-se meio não é um "molde" exterior. A fala do interlocutor [répondant] não
para o desenvolvimento da ação de cada um. De fato, ela é que o está limitada a uma só voz; o comum genérico não é uma categoria
conserva atuante no trabalho coletivo. A função do coletivo se alte- causal que engendra a existência e explica as propriedades da ativi-
ra, portanto, no desenvolvimento da atividade individual. Essa dade de cada um. Se existe uma "qualidade" genérica, ela corres-
mesma migração funcional do coletivo é que, ao transformá-lo de ponde à dos profissionais no desenrolar da atividade, à de cada um
passagem, torna possível o desenvolvimento da atividade pessoal. no decorrer da ação, e não à de um coletivo supraindividual. Cada
Eis o motivo pelo qual o gênero profissional, longe de ser um um dispõe, à sua maneira, do gênero profissional disponível para
sistema abstrato de normas, sempre igual a si mesmo, consegue per- ele, segundo as circunstâncias sempre únicas de sua ação no real.
manecer somente apenas submerso no calor da ação individual e co-
letiva, no ciclo dos intercâmbios intersubjetivos, dilacerado pelas
contradições vivazes do trabalho para voltar enfim, eventualmente, • 4. INDIVÍDUO E COLETIVO: A MIGRAÇÃO FUNCIONAL •
saturado de variantes e sobrecarregado de matizes, com uma estabili-
dade invariavelmente provisória. Com a condição de que todos e No fundo, pode-se defender que, considerado assim, o coletivo está
cada um assumam o encargo de manter essa elasticidade genérica 1: simultaneamente no interior do indivíduo, como instrumento, e se
desenvolve aí em função das trocas exteriores no trabalho coletivo.
De la Garza e Weill-Fassina insistem sobre sua multidimensionali-
1
Essa elasticidade do gênero profissional é garantida pela atividade. Foi por isso que dade (2000, p. 226). Vamos sublinhar, sobretudo, sua multifuncio-
pudemos escrever que uma atividade coletiva e individual é, mais ou menos, produtiva
de gênero profissional: ela possui um grau maior ou menor de genericidade (Clot & nalidade. Porque sua função não é sedentária. Para o recém-chega-
Roger, 2005; Roger et al., 2007). do, o coletivo não é, de saída, o recurso que virá a ser quando o
178 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos O coletivo no indivíduo? 179

agente o tiver tornado seu. No início, ele se apresenta, de preferên- não dependem de um trabalho solitário. Na maior parte das vezes,
cia, como uma restrição e, mesmo, como a fonte de ocppações pré- ao misturar-se com as diferentes maneiras de fazer a mesma coisa
definidas e de preocupações insuspeitas. Em primeiro lugar, trata- em determinado meio profissional, é que se decanta, pela dinâmica
se de um enigma que demanda a ser esclarecido (Bruner, 1996). dos contrastes, distinções e equiparações entre profissionais, a ativi-
Para conseguir enfrentar os problemas de trabalho e de consciência dade própria. Dessa feita, essa é a função do trabalho coletivo: per-
que acabamos de descrever, a atividade individual do recém-chega- mitir o acesso ao instrumento genérico no decorrer da atividade.
do deve percorrer um caminho bem longo. E não é direto aquele Desfaço-me do trabalho do outro, passando de um para outro,
que conduz cada um, por exemplo, a arbitrar à sua própria maneira, opondo e equiparando os outros entre si. Nessa confrontação à qual
entre faturamento e interesse do usuário. De fato, esse objeto de o novato submete, ainda que à sua revelia, a atividade daqueles que
trabalho controverso não é, de saída, um objeto pessoal. Ele vem a estão à sua volta, a ação realizada desprende-se, por contraste, de
sê-lo apenas quando se vive, no decorrer do tempo, sua experiência cada um e, finalmente, deixa de pertencer a alguém em particular.
nessa agência. No começo, trata-se de um objeto de trabalho "so- Sem proprietário exclusivo, ela se torna disponível. Posso, então,
brepovoado': para afirmá-lo à maneira de Bakhtine que utilizava colocá-la à minha disposição, apropriar-me e tomar posse dela. Afi-
esse vocabulário para caracterizar o enunciado na troca verbal. Se-
nal de contas, aprendendo a distinguir os outros entre si é que con-
ria possível, mesmo, escrever que se trata de um objeto saturado e
sigo distinguir-me deles. O novato acaba por incorporá-los no de-
"preocupado" com a atividade do outro. Ele não será "seu"- e nun-
correr da própria história profissional, como se fossem recursos de
ca totalmente - senão depois que tiver conseguido habitá-lo e como
seu desenvolvimento próprio.
que "descascá-lo' das atividades de outro ao observá-lo circular
através de todas as atividades pessoais em que ele se refrata, ven- Um segundo ponto merece, então, ser sublinhado. Nossa ex-
do-o sempre em uma atividade com os olhos de outra atividade. periência na clínica da atividade nos familiarizou com esse fato já
Somente então, graças a essa "repetição sem repetição" mencionado par Vygotski: uma ação se libera da ação dos outros ao
(Bernstein, 1996) e por essa espécie de percolação em que se repre- re-fazê-la. É como se o recém-chegado, com o decorrer do tempo,
senta e volta a representar-se a travessia dos diferentes contextos do viesse a vencer a opacidade da atividade compartilhada pelos ou-
trabalho, ele poderá dispor para si mesmo dos recursos genéricos tros graças aos instrumentos desta e, ao retocá-los, a obrigasse a
do coletivo. Paradoxalmente, sem o controle desse "dado" disponí- superar-se a si mesma. Assiste-se, então, a uma estilização dessa ati-
vel que ele deve ser capaz de colocar à sua disposição, sua atividade vidade. De objeto de preocupação, ela se converteu em meio de agir,
individual nunca seria verdadeiramente "sua': Ela permaneceria aliás, não só sobre o objeto do trabalho, mas sobre o próprio coleti-
emaranhada nas redes da prescrição oficial da qual ele não conse- vo: meio de exercer o "ofício ao quadrado': Sua atividade assume
guiria realmente se desprender. Ela será uma atividade própria ape- um estilo identificável somente quando ela é avaliada pelos outros
nas retirando-se das atividades com outro em que, necessariamen- como uma contribuição para a história genérica do interlocutor [ré-
te, estava envolvida. Possuir habilidade técnica [avo ir du métier] pondant]. Eis, talvez, o aspecto que leva ao reconhecimento de um
supõe liberar-se do trabalho dos outros, de se recompor diante de expert: sua capacidade para transformar uma história coletiva ao
outro. Mas é "repetindo" suas relações com eles, tantas vezes quanto desenvolver a subjetividade genérica do referencial comum.
isso·for necessário para encontrar "o outro no mesmo", é que o su- Resta-nos observar que, sem as trocas repetidas com o traba-
jeito consegue tornar-se- depois de ter tentado durante muito tem- lho dos outros, sem o trabalho coletivo em que se negocia a entrada
po - um profissional a título pessoal. no coletivo de trabalho, existem fortes possibilidades de que se per-
No entanto, um primeiro ponto deve ser sublinhado. A retira- maneça prisioneiro, como se viu mais acima, da alternativa especio-
da ou a separação da atividade de outros, quando eles se produzem, sa entre prescrição oficial e transgressão individual.
180 Segunda Parte -A atividade: problemas e conceitos O coletivo no indivíduo? 181

• 5. O ESTilO COMO DESENVOlVIMENTO DO GÊNERO. muitas vezes, confiscados pelas retrações mórbidas da incapacida-
I
de. Então, observa-se frequentemente a tarefa fictícia da ruminação
Como deveria ter ficado esclarecido, não existe, em nosso entender, dos fracassos. Nesses casos, o dado genérico necrosado se opõe à
sobreposição entre a transgressão e o estilo. Naquilo em que a pri- criação coletiva e individual. O subdesenvolvimento da repetição
meira confirma a falência do gênero profissional por trás do forma- do primeiro tipo desenvolve, portanto, a repetição do segundo tipo.
lismo da prescrição, o segundo é uma das testemunhas da vitalida- A situação dos atendentes da agência do subúrbio parisiense - por
de genérica. Naquilo em que a primeira se limita a instalar um razões que estão bem longe de lhes serem imputáveis em sua totali-
distanciamento à regra oficial, o segundo faz do gênero profissional dade - talvez não seja caracterizada, em primeiro lugar, por uma
a fonte da transformação potencial dessa regra. A transgressão en- repetição demasiado importante das doenças, mas, essencialmente,
frenta e alimenta o conformismo dos procedimentos. O estilo res- por uma repetição demasiado frágil do trabalho de organização,
taura os pressupostos genéricos da atividade real. A estilização do suscetível de ser vislumbrada entre eles: um defeito se metamorfo-
gênero pela experimentação sobre suas variantes, por iniciativa de seia em repetição do defeito. E é o desenvolvimento da atividade
cada um e de todos no decorrer da atividade, confirma o poder de que está em suspenso [mis en souffrance].
agir de um coletivo sobre a organização oficial do trabalho. Esse
trabalho de organização se apoia em uma "repetição sem repetição",
que serve de suporte à afirmação de um coletivo e o opõe, como tal, • 6. O DUPlO DESTINO DA REPETIÇÃO •
a cada uma das experiências particulares e sucessivas, onde o real o
mistura e o arrasta. Paradoxalmente, essa distância estilística se Em um estudo já mencionado no capítulo precedente, realizado
apresenta como um ganho de funcionalidade genérica da qual cada com carteiros da empresa francesa dos Correios (Clot, 2000; Schel-
situação nova pode se beneficiar. O estilo, longe de ser um distan- ler, 2001; Clot, Fernandez & Scheller, 2007) - pesquisa que, aliás,
ciamento da norma, é uma retomada e um novo impulso da repeti- ainda será retomada no próximo capítulo -, a análise reconheceu a
ção coletiva para além da repetição. Ele é identificável quando a existência de "automatismos comuns", para retomar o vocabulário
ação é repetida sem ser repetitiva. Ele descongestiona o gênero ao dos próprios carteiros. Observa-se aí perfeitamente até que ponto
iniciar variantes suscetíveis de conservar sua vitalidade. Ele trans- os destinos possíveis do interlocutor [répondant] são múltiplos. A
forma os previsíveis genéricos da atividade em instrumento para se análise do trabalho de distribuição em percursos, como a prepara-
comparar com os imprevisíveis do real. ção desse turno na triagem da agência, faz aparecer, nos carteiros
De fato, há repetição e repetição: contra a tendência do gêne- em questão, as mesmas tendências opostas já identificadas mais aci-
ro pa'ra encravar-se e desligar-se da atividade, ao confinar-se em si ma entre os atendentes. Incontestavelmente, os automatismos co-
mesmo, quando o desenvolvimento é entravado, portanto, contra o muns evocados para justificar o "trabalho bem feito" são o registro
risco de encerramento que o espreita e pode precipitá-lo na repeti- de um gênero profissional atuante. No que se refere a seu aspecto
ção de uma rotina, o estilo conserva a flexibilidade das formas já atuante, o gênero profissional dos carteiros se afasta de um funcio-
fixadas. Ele é a figura de uma repetição sem repetição. Mas existe namento "fixo" dos automatismos comuns. Os gestos profissionais
uma segunda forma de repetição, aquela que encarcera a atividade em percurso ou na agência, as maneiras de dizer ou de fazer, reve-
e a mantém prisioneira. Ela resulta paradoxalmente de um subde- lam uma primeira versão _desses automatismos que mostra uma pa-
senvolvimento da primeira: ela é sua amputação. Ela a torna rígida leta extensa e variada de um repertório, cuja elasticidade é patente.
até ao ponto de retornar a atividade em passividade; deste modo, À maneira de H. Wallon em cuja obra se encontra uma das mais
leva cada um a ser separado das forças vivas do trabalho coletivo. Por convincentes críticas contra as concepções amorfas do automatis-
conseguinte, a energia psíquica e o prazer de trabalhar se encontram, mo gestual (Wallon, 1971, 1982), seria possível dizer que, nesse
182 Segunda Parte- A atividade: problemas e conceitos O coletivo no indivíduo? 183

caso, o coroamento do automatismo consiste, não em ter fixado no trabalho já não seja criativa, as personagens da peça previstas no
coletivo certo encadeamento de ações obrigatórias, ma~, ao contrá- programa fiquem esvaziadas da energia que haviam pedido de em-
rio, a liberdade crescente de que cada um pode se beneficiar na es- préstimo, normalmente, à ação. Eles permanecem sem interlocutor
colha das ações a encadear. O gênero possui a mola propulsora e a [répondant]. Observemos que, no teatro, fala-se dos ensaios [répéti-
postura suscetíveis de permitir que cada um venha a tomar de em- tions] para significar que, nesses momentos de trabalho, procuram-
préstimo às cadeias operatórias e simbólicas, já constituídas, aque- se, todas as possibilidades no desempenho de um papel. De modo
les de seus elementos que devem servir para constituir uma nova que a vida, cuja fixação é tentada nos mínimos detalhes, não se eva-
forma de ação diante dos imprevisíveis do real. Ele tem a elasticida- pore no momento da representação pública da peça. Mal ensaiada
de que autoriza cada um, ao suscitar tais operações "pré-trabalha- [répétée] ou ensaiada de maneira desleixada pelo ator, a fixação ne-
das': a suprimit o que é impróprio ao efeito pretendido no contexto cessária da personagem é incapaz de tirar partido da pluralidade
em que ele está em ação. A dinâmica das variantes deixa passar a dos contextos em que ela deveria ter procedido a suas tentativas e,
repetição da atividade pessoal para além da repetição. Cada carteiro afinal de contas, a que ela teria tido a ocasião de se submeter. Ela se
em atividade possui seus próprios "automatismos comuns". O gêne- petrifica, pois, em uma exatidão amorfa que se converte no que se
ro constitui, inclusive, um bom meio de locomoção da repetição designa por um clichê. E é ele que, pelo contrário, subjuga o ator e o
que, a partir daí, nada tem de automático, além das aparências. Por- mantém prisioneiro ao encarcerar sua atividade. O equilíbrio leve
que ela dissolve os blocos de ações preexistentes para utilizar ape- indispensável é substituído pela lentidão de um funcionamento
nas as combinações exigidas pela atividade em curso de realização. "fixo" em que deixou de existir vida (Clot, 2002).
E, desse modo, novas ações mais adaptadas se tornam possíveis por Um dos destinos do gênero profissional é precisamente o de
uma maior eletividade conquistada na polifonia dos contextos. A tornar-se um clichê se a história coletiva não é "ensaiadà' ["répétée"]
genericidade da atividade está, portanto, diretamente relacionada a fim de ser retocada pelo trabalho coletivo. Mas essa degenerescên-
com uma sobriedade oriunda do poder de extirpar as operações ou cia repetitiva pode ser evitada quando o desenvolvimento do traba-
os gestos parasitas. Esse trabalho de afinação genérica condiciona, lho coletivo alimenta a história do coletivo de trabalho. Eis aí um
ern compensação, a plasticidade corporal e subjetiva das ações nas recurso decisivo para que a atividade individual, por um lado, e, por
circunstâncias, perpetuamente variáveis, do real. outro, a tarefa, conservem um devir. Para que o círculo virtuoso do
Mas a morte pode insinuar-se sempre na vida, como é de- desenvolvimento não se transforme em círculo vicioso; o do subde-
monstrado também pela análise da atividade dos carteiros. Isso será senvolvimento profissional, individual e coletivo.
abordado no próximo capítulo. Transfigurando, então, o que é cria-
do em algo de imobilizado, ela exprime finalmente os limites da
função histórica da atividade. Apanhada na armadilha do passado,
a história manifesta-se, então, invertida na repetição de uma versão
única. Impedida, essa história "colà' a atividade individual a seu
funcionamento coletivo fixo e a mantém prisioneira de uma organi-
zação indiferenciada, sem qualquer mudança, em preto e branco. E,
finalmente, frágil e "maçante" ['cassante"], em todos os sentidos do
termo. Pode ocorrer que os carteiros deixem de trabalhar com au-
tomatismos. É o trabalho que se torna automático, colocando em
perigo sua saúde. Pode ocorrer que - para retomar a metáfora tea-
tral de Bruner utilizada mais acima - a representação no palco do
, Terceira Parte
AÇÃO E CONHECIMENTO:
,
METODOLOGIA E METODOS
funcionamento
des

Este capítulo tem o objetivo de compreender as relações entre fun-


cionamento e desenvolvimento da atividade psicológica na análise
do trabalho 1. Mas ele nos permitirá, também, explicitar a diferença
que estabelecemos entre método e metodologia. Será proposta,
portanto, uma situação de trabalho já utilizada anteriormente - a
dos carteiros da empresa francesa dos correios como instrumento
de compreensão desse duplo problema. Antes disso, gostaríamos
apenas de mostrar como Vygotski abordava essas questões toman-
do como objeto de reflexão uma experimentação com crianças que
havia sido elaborada por ele. Esse será um meio de esclarecer a di-
ferença entre metodologia e método .

• 1. UM ESTILO DE EXPERIMENTAÇÃO.

Para começar, observemos que, ao ler Vygotski, podemos constatar


que ele não se deixa, de -modo algum, confinar-se em oposições

1
Com a amável autorização do editor da revista, retoma-se aqui- com alterações- o
artigo publicado em 2004, no Bulletín de psychologíe [Boletim de Psicologia].
188 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos O trabalho entre funcionamento e desenvolvimento 189

metodológicas que, atualmente, para nós, se tornaram rígidas, para qualquer consequência inibidora sobre sua ação, todo tipo de mate-
não dizer estéreis. Ele não dá importância, por exemploP ao antago- rial que pudesse tornar a situação atraente. E isso chegando mesmo
nismo, tornado clássico, entre abordagem experimental e abordagem ao ponto de deixá-la apenas com uma mísera ponta de "lápis': O
clínica (Vygotski, 1978, 1994a). Assim, podemos nos questionar: ao resultado é significativo: "O sentido da situação determinava total-
ler esses textos da década de 1930, estamos diante de um subdesen- mente para a criança a força da necessidade afetiva independente-
volvimento científico ou, pelo contrário, na presença de outra corren- mente do fato de que essa situação ia perdendo, progressivamente,
te em psicologia? Não esconderemos o fato de que este capítulo foi todas as propriedades atrativas oriundas do material e de sua mani-
concebido também para responder à segunda parte da questão. pulação diretà' (p. 231-232). Assim, conclui o autor, conseguimos
O estilo de experimentação, abordado aqui, já foi objeto de influenciar "de cima, pela afetividade", o desenvolvimento da crian-
nossos comentários em outro texto (Clot, 1999). No entanto, gosta- ça, o que não foi o caso com a criança deficiente.
ríamos de voltar ao assunto sob outra perspectiva, mesmo correndo
o risco de acabar corrigindo a interpretação já feita dessa experiên-
cia. Na verdade, trata-se da repetição e da remodelação das experi- • 2. ATIVIDADE MEDIATIZADA E ATIVIDADE
ências realizadas por K. Lewin (1965, 1967; Kaufmann, 1968) sobre MEDIATIZANTE •
a saturação no decorrer da atividade. Vygotski começa no ponto em
Gostaríamos de tirar duas lições dessa experiência. A primeira é
que Lewin havia interrompido seu estudo. Podemos considerar essa
que, nesse caso, a mudança de endereçamento e de destinatário da
pequena experimentação como uma experiência princeps. Com
atividade constitui a mola propulsora central e, até mesmo, a ener-
efeito, para retomar em novo contexto uma metáfora muito apre-
gia motriz do novo impulso ou da retomada da atividade que se
ciada por Vygotski, trata-se de uma gota de água em sua obra, mas
desenvolve 1 no interior de um conflito que ela mediatiza. Essa ativi-
contém, talvez, o oceano de seu trabalho.
dade está dirigida, simultaneamente, para seu objeto e para a ativi-
Propõe-se a uma criança a tarefa de desenhar. Quando ela dade dos outros que incide sobre esse mesmo objeto. Trata-se de
interrompe a atividade e manifesta, abertamente, sinais de satura- desenhar, em primeiro lugar, para o experimentador e, também,
ção e reações afetivas negativas para com seu trabalho, explica
para si (já que se pode interromper a atividade quando se quiser); e,
Vygotski (1994b), "tentamos obrigá-la a levar adiante sua atividade
em seguida, de desenhar para mostrar o modo de proceder a outra
com o objetivo de saber por que meios seria possível conseguir isso
criança, sem que tenha desaparecido, de modo algum, o experi-
dela" (p. 231). Teria sido possível, à semelhança do que ocorre com
mentador. Portanto, essa atividade é triplamente dirigida: para o
essas mesmas experiências empreendidas com crianças deficientes,
objeto imediato da ação, o desenho, e para outro, assim como para
limitar-se à perspectiva de "revitalizar a situação" por meio da troca
o próprio sujeito. Cada uma dessas direções da atividade pressupõe
alternada de lápis por pincéis, de papel por um quadro, de giz de
irrecusavelmente as duas outras. A criança não pode ter a expecta-
cera preto por giz colorido. Tudo isso para tornar mais atraente a
tiva de eliminar tais discordâncias. Sua atividade consegue não ape-
situação e prolongar a atividade. Mas, para a criança "normal': ex-
nas senão mediatizá -las para, eventualmente, superá -las. Esse o
plica Vygotski, essa não foi a única via possível. Foi suficiente, inclu-
sive, modificar o sentido da situação, sem qualquer alteração: bas-
tou solicitar à criança - que havia interrompido o trabalho - para 1
Neste ponto, impõe-se uma-observação: isso não implica automaticamente o de-
mostrar a um colega como deveria proceder. Ao tornar-se, por sua senvolvimento do próprio sujeito. O desenvolvimento de uma atividade do sujeito
pode, efetivamente, às vezes, interromper - pelo menos, durante algum tempo - seu
vez, experimentadora e instrutora, ela continuou o trabalho prece- desenvolvimento como sujeito. O impasse psicopatológico é dessa natureza. Tal não é,
dente, mas a situação havia adquirido, para ela, um sentido comple- necessariamente, o caso. Este comentário visa tão somente estabelecer uma distinção
tamente novo. Foi possível, até mesmo, retirar de suas mãos, sem entre desenvolvimento da atividade e desenvolvimento do sujeito.
190 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos O trabalho entre funcionamento e desenvolvimento 191

motivo pelo qual - se é apropriado sublinhar que a atividade é sem- Mas não só: sem que Vygotski tenha mencionado tal aspecto, pode-
pre mediatizada, como foi observado, com particular p~rspicácia, se pensar que, além de se dotar de novos instrumentos técnicos, a
por Rabardel a propósito dos instrumentos do trabalho (Rabardel, ação passa a ser realizada agora também pela linguagem, instru-
1995) -deve-se acrescentar que ela é também mediatizante. Nesse mento psicológico que reveza e garante a sustentação de tais instru-
exato sentido é que propusemos considerar a atividade dirigida, de- mentos: mostrar é fazer e dizer, desenhar e comentar. É, também,
finida mais a cima, como a unidade de base da análise psicológica: responder a eventuais questões formuladas pelo outro. A estrutura
uma atividade voltada, simultaneamente, para seu objeto e para a instrumental da ação é, portanto, variável e, além disso, verifica-se
atividade dos outros que incide sobre esse objeto, uma atividade a proliferação das "gêneses instrumentais': para continuar utilizan-
que intervém, igualmente, nas relações entre eles e, que pode, aliás, do o vocabulário de Rabardel (1995). Os gestos para realizar ostra-
ser capaz de desenvolvê-las. A atividade é endereçada. Tendo-se çados podem, inclusive, seguir as descrições verbais. A organização
tornado instrutora, a criança se encontra em uma posição subjetiva do sistema instrumental da atividade mediatizada é afetada pela ati-
diferente que altera o sentido da situação ao ponto de afetar em vidade mediatizante em sua própria composição, as hierarquias po-
cascata, por retroação, a organização de sua ação de desenhar e essa dem ser alteradas. O funcionamento do gesto é suscetível de ser
mesma ação. deformado e reordenado; e os automatismos que evidentemente
Aprofundemos nossa análise. Envolvida nesse intercâmbio eles conservam, invariantes operatórios da ação, assumem novas
com o outro, a criança se torna o instrumento de uma ação que não funcionalidades engendradas pelas finalidades renovadas da ação.
é mais a de desenhar, mas a de mostrar. Desenhar converte-se, in- Ampliemos um pouco o ponto de vista. O funcionamento,
clusive, em um meio de mostrar como se faz. Ora, mostrar - e, até realizado anteriormente vê selecionados alguns de seus instrumen-
mesmo, mostrar que se sabe- produz efeitos: tal procedimento su- tos, enquanto outros são suprimidos. Longe de ser simplesmente
põe e, também, permite, o interesse pelo desenho enquanto tal, e repetido ou replicado, o funcionamento é aqui recategorizado: é o
não pelos artefatos atraentes que haviam sido introduzidos para re- que Bernstein designou como uma repetição sem repetição (Berns-
novar uma atividade exaurida e que, até então, tinham inclusive tein, 1996; Fernandez, 2004), que viabiliza o desenvolvimento ou,
protegido essa atividade contra sua interrupção. Essas atraentes melhor, que vem a ser seu próprio meio de transporte. Existe aí de-
próteses, essas muletas da mobilização subjetiva são psicologica- senvolvimento do funcionamento graças à organização de uma re-
mente abandonadas antes mesmo de serem materialmente retira- petição sem repetição no âmago de uma nova atividade dirigida.
das do sujeito. Funcionais para sustentar, artificialmente, uma ativi- Em outras palavras, existe uma história do funcionamento no fun-
dade desinvestida, elas deixam de exercer esse papel para dar conta cionamento. Pode-se pensar que essa migração das funções é que
de uma atividade desencadeada por outro e sua função psicológica desperta ou entorpece determinados componentes do repertório
se extingue. Elas já não conseguem ser os instrumentos da nova funcional, segundo as circunstâncias da ação, que serve de suporte
ação do sujeito, o qual deve- para que essa nova ação não perma- ao desenvolvimento e que, até mesmo, o realiza. Diferentemente de
neça como abstração-, encontrar outras. Procedendo assim, os an- Piaget, o interesse de Vygotski é menos a organização subjacente e
tigos instrumentos nada têm de "renovadores" e voltam à condição reiterável da ação, do que a organização de sua transformação nas
de artefato, para retomar aqui as distinções fundamentais propostas trocas da atividade dirigida e endereçada.
por Rabardel (1995). Não há invariante "sem histórias': É precisamente a história
O próprio desenho se torna instrumento. Graças às suas técni- das repetições solicitadas pela travessia dos contextos da atividade
cas gráficas, evidentemente, para conseguir "mostrar" e que, agora, que desenvolve e enriquece o repertório das funcionalidades do in-
devem servir de suporte à ação (como começar, como terminar, o que variante, sua gama funcional. Dito com outras palavras, é o desen-
fazer e o que evitar fazer, etc.) organizá-la, realizá-la e controlá-la. volvimento das repetições para além da repetição que alimenta o
192 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos O trabalho entre funcionamento e desenvolvimento 193

funcionamento e atribui ao sujeito o poder de extirpar as operações o que é" (Vygotski, 1978, p. 71). Portanto, somente através de uma
parasitas no arco das operações pré-trabalhadas disponí;reis. Inver- experiência de transformação é que a atividade psicológica pode
samente, o subdesenvolvimento da repetição da ação nos contextos revelar seus segredos. Por conseguinte, o desenvolvimento não é
diferentes da relação com outro e consigo mesmo esvazia e empo- apenas o objeto legítimo de uma psicologia particular- a da criança
brece o funcionamento dos invariantes até privá -los de história pos- -,mas o método possível e necessário de uma pscologia geral. Ali-
sível. Assim, o sujeito pode tornar-se incapaz de dissolver os blocos ás, em vez de método, deveríamos escrever aqui metodologia. De
de ação preexistentes, dissolução que lhe permitiria utilizar tão so- fato, como é demonstrado em toda a obra de Vygotski, o método
mente as combinações singulares exigidas pela situação. Privado como técnica de ação pode ser clínico ou experimental; o essencial
dessa plasticidade, ele age como um "bloco rígido': para falar como é que a metodologia seja histórico-desenvolvimentista 1• A essa últi-
H. Wallon, cuja_ obra (Wallon, 1971) serviu de inspiração para a ma metodologia, aliás, ele confiava o papel de avançar para a cons-
análise aqui apresentada. Agora, gostaríamos de analisar, precisa- tituição de uma psicologia geral. Sob essa perspectiva, vê-se melhor
mente, um exemplo desse tipo em situação de trabalho. Nesse caso, como as atuais divisões da psicologia podem parecer artificiais e,
não há nenhuma garantia de desenvolvimento. E, a experiência talvez, dissimular uma fragilidade metodológica subestimada.
mostra que os trabalhadores podem também permanecer prisio- Mas como caracterizar essa metodologia que é histórico-de-
neiros de funcionamentos "congelados" (Clot, 2002). senvolvimentista? Em primeiro lugar, é uma crítica do "dogma da
experiência imediata" (Vygotski, 1999). Em 1925, ele já havia defi-
nido o comportamento ao estabelecer a distinção entre funciona-
• 3. MÉTODOS E METODOlOGIA EM PSICOLOGIA., mento realizado e desenvolvimento possível. O comportamento é
um sistema de reações vencedoras. Tal como ele se realizou, não
Mas, em primeiro lugar, convém apresentar a segunda observação
passa de uma ínfima parcela do que é possível. O homem está reple-
anunciada. Ele diz respeito à metodologia, na concepção da experi-
to, a cada minuto, de possibilidades não realizadas (2003, p. 76).
mentação de Vygotski. Ela é significativa de uma ideia experimental
Ora, essas possibilidades descartadas que não são acessíveis direta-
preconcebida bem particular: é necessário "provocar" o desenvolvi-
mente- nem para o sujeito, nem para seu interlocutor- continu-
mento para ser possível estudá -lo. De fato, não sendo acessível por
am, apesar disso, a agir. Sua importância psicológica não suscita
métodos diretos de observação, ele obriga ao emprego de "métodos
nenhuma dúvida, mas somente por meios deslocados é que se pode
indiretos" (Vygotski, 1999, 2003). Ele nos impõe a organização das
dar conta delas. Para proceder à' sua análise, a única metodologia
"repetições sem repetição", apreciadas por Bernstein (1996), para
possível é a indireta: ela consiste em organizar a "replicação" da ex-
ter uma possibilidade de "apreendê-lo': No campo do trabalho, o
periência vivida. O problema metodológico consiste, então, em in-
interesse da tradição ergonômica francófona (Béguin & Weil-Fassi-
ventar dispositivos técnicos que permitam aos sujeitos transformar
na, 1997) consiste em ter insistido sobre o fato de que compreender
sua experiência vivida de um objeto em objeto de uma nova experi-
está destinado a transformar. O que descobrimos é, talvez, a pro-
ência vivida ( 1994b) .Isso com a finalidade de estudar a transforma-
fundidade do problema assim levantado. Com efeito, para compre-
ção de uma atividade em outra. É esse, então, o fundamento teórico
ender o que procuramos compreender, é necessário transformar.
Neste aspecto, opera-se, sem dúvida o encontro de duas tradições.
Mais adiante, retomaremos essa questão. 1 É bastante significativo que Vygotski, em sua crítica ao experimentalismo, recorra
Tentemos primeiramente compreender bem as experiências à psicanálise. E isso não para se fundamentar em sua teoria - que nunca deixou de
criticar -, mas para fornecer um exemplo dessa metodologia indireta de transforma-
de desenvolvimento que Vygotski tem intenção de construir. A fór- ção, suscetível de ser também a mola propulsora de um procedimento experimental
mula de 1931 é conhecida: "Em movimento é que um corpo mostra revisitado (2003).
194 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos O trabalho entre funcionamento e desenvolvimento 195

de urna metodologia, ao mesmo tempo, histórica e histórico-desen- atividades humanas, não é buscando-o de antemão e no nível de
volvirnentista: permitir ao sujeito transformar os funcio,narnentos uma generalidade ilimitada que teremos a menor chance de efetiva-
realizados em objeto de um novo funcionamento a fim de estudar o mente encontrá -lo.
desenvolvimento real - possível e impossível - e seus princípios. Desçamos aos detalhes. Ao escolher um exemplo particular
Essa metodologia procura compreender e explicar 1 o modo como de funcionamento "congelado" ou, ainda "fixo: damos conta, aqui,
se organiza a transformação da ação organizando, por sua vez, uma de uma particularidade da psicologia do trabalho francesa. Trata-se
transformação regulada da ação. Como é demonstrado pela reto- de uma tradição viva de psicopatologia do trabalho que nos permite
rnada da experiência de Lewin, Vygotski se focaliza na análise da observar o desenvolvimento também em seus impasses. Vamos pri-
relação entre determinado funcionamento psicológico e sua re- vilegiar um procedimento de clínica da atividade (Clot, Prot, & Wer-
criação em contexto de desenvolvimento. the, 2001; Diallo & Clot, 2003), que procura lidar com a "retornada"
Compreende-se, então, melhor o motivo pelo qual seu hori- desse funcionamento por intermédio da organização de urna nova
zonte científico não consistiu em acrescentar uma psicologia a ou- atividade em um quadro dialógico que, dizendo com outras pala-
tra psicologia. Do mesmo modo, para nós, atualmente, não se trata vras, procura provocar o "reaquecimento" desse funcionamento.
de acrescentar uma psicologia histórico-cultural à psicologia social, No exemplo escolhido, um carteiro titular veterano está dian-
clínica ou, ainda, cognitiva. Pois a questão da relação entre dado e te de uma sequência de vídeo que apresenta os registros de um fun-
criado com suas transformações- relação queM. Bakhtine (1984) cionamento habitual do trabalho comum: a solidão de um jovem
colocou no centro de sua elaboração semiológica - não pertence a "coringa" entregue às provações da aprendizagem do ofício, tanto
esta ou àquela corrente psicológica. Esse é um problema comum na triagem quanto na distribuição. O método de autoconfrontação
que se refere tanto aos conhecimentos quanto às emoções, tanto aos cruzada, utilizado aqui, e o método do sósia, já evocado serão des-
conceitos quanto aos afetos, tanto ao corpo quanto ao espírito, tan- critos nos próximos capítulos. Eles nada mais são que técnicas de
to ao sujeito quanto ao coletivo de trabalho, tanto ao adulto quanto "provocação" do desenvolvimento a serviço de uma metodologia da
à criança, tanto ao doente quanto à pessoa saudável. Finalmente, a ação e destinam-se, mediante a demanda de nossos interlocutores,
metodologia histórico-desenvolvimentista, toma, como objeto, as a transformar o curso da atividade (Clot & Yvon, 2003). É o movi-
relações entre funcionamento e desenvolvimento psicológico como mento dessas transformações que, em seguida, vamos estudar à luz
unidade de base de uma psicologia geral, assumindo plenamente a dos registros que delas conservamos.
especialização dos campos em que existe tal relação. Efetivamente,
a partir dessa base, em vez de ser um mal necessário, a especializa-
ção é indispensável; e, até mesmo, poderíamos dizer, insuficiente. E • 4. OS CORREIOS, NA FRANÇA: CARTEIROS VETERANOS
isso porque, para nós, o desenvolvimento de uma especialização em E JOVENS ROUlEURS(CARTEIROS SEM POSTO FIXO) ,.
psicologia do trabalho não nos afasta verdadeiramente de uma psi-
cologia geral, assim compreendida. Ela acaba por nos aproximar Voltemos, portanto, aos funcionamentos "congelados': menciona-
dela. Com uma condição: levar a sério a especificidade irredutível dos anteriormente. Tal era a relação, na agência em que empreende-
da atividade de trabalho. Se essa última tem um vínculo com outras mos nosso trabalho, entre os carteiros titulares de seu turno e os
"coringas': em sua maioria, jovens entregues a si mesmos no enfren-
tamento das provações da apropriação do ofício. Uma "veteranà'
1
Pode-se mencionar, a este propósito, a seguinte observação de A. Luria: ''A impor- veio, assim, a dar - não sem enternecimento, é claro, no quadro re-
tância que Vygotski 'atribuía à possibilidade de superar esse conflito foi uma das prin-
gulado das autoconfrontações cruzadas - esta versão "autorizadà'
cipais razões pelas quais me senti atraído por ele; em seu entender, essa era a tarefa
principal da psicologia contemporânea" (1985, p. 232). sobre as relações entre novatos e experts para justificar o abandono
196 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos O trabalho entre funcionamento e desenvolvimento 197

visível em que são deixados os primeiros: "Com certeza, é uma situ- oferecendo a nossos interlocutores meios deslocados para reciclar a
ação que faz doer o coração, mas (... ) certas pessoas, quan~o mais as energia perdida nesse impasse, transformando-a em desenvolvi-
ajudamos, menos facilmente elas conseguirão superar suas dificul- mento da experiência coletiva (Clot, 2002).
dades:' A expressão "certas pessoas" aparece como uma "verdade Essa é uma tarefa bastante difícil cujo trunfo principal é um
históricà' do meio profissional que "falà', dessa forma, a si mesmo, quadro clínico dialógico que pode "suportar" controvérsias entre
através dessa descrição dos fatos, de acontecimentos ocorridos, . profissionais na base de comentários cruzados sobre imagens pro-
além de fracassos sofridos no trabalho coletivo e dos quais essas duzidas coletivamente. Não tendo a possibilidade de apresentar
palavras conservam a marca. O infortúnio em consequência do aqui essas imagens, observaremos apenas um segmento da interlo-
qual se interrompeu o funcionamento exprime-se da seguinte ma- cução construída sobre um objeto preciso: um "episódid' represen-
neira: "L. .. , ao ch~gar, recebeu nossa ajuda, durante vários meses; ao tativo dos dissabores profissionais suportados por um jovem "co-
ser ajudado, ele ficava ainda mais perdido" (Scheller, 2001, p. 81). ringà' que, atrasado, ficou sozinho na triagem após a saída dos
Resulta desse infortúnio coletivo, que pode ser captado na materia- colegas para o respectivo turno. É este último (designado, a seguir,
por M ... ) que está envolvido na autoconfrontação cruzada com uma
lidade das palavras - "certas pessoas" - um molde interpretativo
carteira experiente (designada, também a seguir, por Mme J... ). Va-
que afastou outras interpretações possíveis do mesmo aconteci-
mos reproduzir a sequência:
mento. Esse funcionamento repetitivo, forma necrosada dos "auto-
matismos comuns" mencionados no capítulo precedente, deixa de
tentar atravessar vários contextos. Isso porque os carteiros se res- 1. Pesquisador (designando a imagem-suporte).- Qual é a sensação de deixar o "coringa"
para trás? Não se pode fazer nada?
tringiram a uma interpretação exclusiva a propósito de uma ativi-
dade malograda, que passou a servir de equivalente geral, congela- 2. Mme J... - Bom, de algum modo, com certeza, é uma situação que faz doer o coração,
do em um script insistente, para todas as situações semelhantes. mas, de algum modo, há o pró e o contra, porque, enfim, de minha parte, é assim que vejo
isso, agora, existem certas pessoas, quanto mais as ajudamos, menos facilmente elas
Com certeza, essa marca tem o poder de atrair para ela as si-
conseguirão superar suas dificuldades, porque todos nós passamos por isso até o dia,
tuações atuais e por vir. Trata-se de um funcionamento ou- melhor
finalmente, em que há uma tomada de consciência e a gente diz: basta, vou me acalmar,
ainda- de um esquema vencedor. Mas esse poder de atração redu- não me enervo mais, serei talvez a última a sair, mas um dia a situação vai melhorar. Com
tor é a forma invertida de uma fragilidade. Ele se edifica sobre um certeza, para nós, isso não é legal, mas todos nós passamos por isso. Com algumas pes-
deficit de repetição possível dessa mesma relação profissional em soas, quanto maior for nossa ajuda, menos facilmente elas vão sair de suas dificuldades.
contextos diferentes, suficientemente opostos e heterogêneos. A Então, com certeza, no início, os jovenzinhos quando chegam etudo, écomo uma espécie
partir desse funcionamento que "carece de exercício", estabeleceu- de teste. Alguns vão entrar em pânico, desde o início, éassim mesmo. A gente vai dar-lhes
se um poder de agir factício, por falta de interferências e de discor- uma ajuda. Há quem nunca chegue a sair do problema. L..., ao chegar, mas L... , foi ajudado
dâncias criadoras entre as experiências vividas do coletivo dos car- durante vários meses. E, bom, quanto maior era nossa ajuda, tanto mais perdido ele ficava.
É um pequeno tipo de teste, quando alguém entra realmente em pânico, é triste dizer, mas
teiros. Desse modo, todas as situações novas são esculpidas a partir
aí a gente vai dar-lhe uma ajuda, classificar para ele uma ou duas ruas, mas não convém
do gabarito da versão construída dos acontecimentos passados, que isso se torne sistemático porque depois ... existem algumas pessoas que rapidamente
equivalente geral para todas as situações que venham a apresentar- tomam gosto nisso, que se acostumam depressa e que vão ... bom e depois, o trabalho é
se. O funcionamento cai na armadilha dos entraves que haviam em- individual, não é mesmo?
pobrecido o desenvolvimento. Ele se torna automatismo amorfo
3. M... - Bom, com certeza.
por falha de repetição da atividade e assume a forma rígida de um
lugar-comum. Trata-se de um fragmento de discurso automático, 4. Mme J... - Portanto, depois toma-se rapidamente gosto nisso. Com algumas pessoas,
há abuso, mas é... Todos nós passamos por isso. Lembro-me, há vinte anos, eu entrava
insistente naquele meio. E podemos considerar que o trabalho na
realmente em pânico, era horrível.
clínica da atividade tem a função de fazer "descarrilar" esse discurso
198 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos O trabalho entre funcionamento e desenvolvimento 199

5. Pesquisador (dirigindo-se a M... ).- Essa é, também, sua opinião? do jovem "coringà'. Sua resistência argumentativa oferece vários
contextos imprevisíveis ao funcionamento "congelado" de sua cole-
6. M... (dirigindo-se a Mme L). - Corresponde, em parte, à verdade efetivàmente o que
ga mais experiente. Desse modo, a atividade de pensamento da car-
você diz, mas existe o outro lado ... você dizia que se tratava de uma espada de dois gumes.
Entendi um lado, mas ...
teira experiente troca de destinatário e de direção. No início da se-
quência (fala 2), ela está voltada para o "coringà'; no final, ela está
7. Mme L- Ooutro lado é que se você cansou de ser desse jeito, de ser o último, e depois voltada para o coletivo (fala 13). Em vez da ação do "coringà: é a do
entra em pânico, porque é algo interior. Você não pode entrar em pânico diante de todo o
coletivo que se torna objeto de pensamento. Isso porque, aqui, de-
mundo, nem um pouco. Em determinado momento, você pensa que, ah tudo bem, vou ser
o último a sair, mas vou me esforçar e, amanhã, será melhor, e depois de amanhã, eu ...
sencadeia-se um conflito entre funcionalidades rivais do mesmo
funcionamento. Com efeito, este pertence, então, simultaneamente
8. M... - Bom, digamos que, se você faz o mesmo turno durante algum tempo, OK, mas
a duas atividades diferentes já que ele é, ao mesmo tempo, um meio
quando você troca dia sim, dia não, como é que isso é possível?
para o trabalho habitual e um meio de argumentar na autoconfron-
9. Mme L- Ah, nesse caso ... No meu tempo, eu também não chegava atrocar dia sim, dia tação. Aliás, ele não tem, com toda a evidência, a mesma eficácia
não. Não era a mesma maneira ... nos dois casos. Essa discordância funcional impele a atividade da
10. M... - Não sei, mas isso aconteceu há quanto tempo ... há vinte edois anos? Não sei se, há carteira experiente, nesse exato quadro, a trocar de patamar ao des-
vinte e dois anos, havia assim tanta correspondência .. . locar-se para o "andar do coletivo': objeto de preocupação desperta-
11. Mme L- Os turnos eram mais longos. do nesse momento. Aqui, o desenvolvimento da atividade faz-se
pela migração funcional do "coringà' no pensamento da carteira
12. M... - Os turnos eram, talvez, mais longos ... Mas, ignoro completamente como era a situ-
ação há vinte e dois anos; éverdade porém que, agora, há maior quantidade .. Oquanto há
experiente: ele era o objeto direto da atividade de linguagem da car-
de publicidade! Antes, não existia tanta quantidade. teira no início da sequência; no entanto, deixa de ser fim para se
tornar meio quando a carteira o leva a "funcionar" para pensar o
13. Mme L (dirigindo-se, simultaneamente, a M... eao pesquisador).- E, no fim das contas,
trabalho de organização do coletivo para além da competição entre
havia uma solidariedade que não existe agora Agora, inclusive entre nós, somos obriga-
dos de qualquer maneira a cruzar os braços porque, haja o que houver, sobra sempre para
os carteiros. O status psicológico do "coringà' não é, portanto, se-
nós. Há quem entre para o serviço ao meio-dia e aqueles que chegam mais tarde evamos dentário no desenrolar dos pensamentos da carteira. E esse tipo de
dar uma ajuda, tudo bem, vamos dar-lhe uma ajuda, mas bom, temos mais trabalho e é deslocamento é, sem dúvida, um critério central para identificar
verdade que terminamos mais tarde, acabamos depois dos outros, mas não é normal que um desenvolvimento potencial (Clot & Kostulski, 2002). Ele é, de
sejam sempre os mesmos que se dispõem a ajudar. Há alguns anos, todo o mundo dava fato, o vestígio identificável de um desenvolvimento de novas fun-
uma ajuda, todo o mundo pegava, pelo menos, um escaninho, ou dois, isso nos custava ... cionalidades para o funcionamento inicial.
vejqmos, cinco minutos, o trabalho avançava, evitávamos os atrasos, enquanto agora, isso
Portanto, em um quadro histórico-clínico como este, pode-se
já não se faz, é a competição.
chegar a proporcionar uma nova história às atividades "fixas" por
Para concluir, Mme L ainda afirmou o seguinte: "Não consigo entender. Nesta agência, meio do desmantelamento do molde em que elas se haviam confi-
assiste-se a uma corrida. Alguns querem acabar o trabalho, antes de ter começado ... " nado. E isso através de uma dinâmica de discordâncias entre os
contextos propostos permitindo que cada um observe sua própria
.. 5. FUNCIONAMENTO, FUNCIONALIDADES, atividade com os olhos da atividade de outro. Dessa forma, aconte-
DESENVOlVIMENTO ., ce, às vezes, de se conseguir, "mantendo-se firme" nesse quadro dia-
lógico, dar novo impulso- à repetição de um funcionamento para
Podemos avaliar, aqui, no mínimo em dois momentos (falas 8 e 12), além de sua repetição, a fim de que a atividade de cada um e do
o desenvolvimento da atividade de pensamento desencadeado no de- conjunto retome seu curso. Inclusive no próprio trabalho real. Então,
correr da troca verbal pela reviravolta provocada diante da atividade paradoxalmente, ao generalizar a repetição desse funcionamento
200 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos

particulariza-se sua fixação prejudiciaF: o equivalente geral que,


nesse caso, servia para explicar tudo por "certas pessoas" pode,
eventualmente, re-singularizar-se, ou seja, tornar-se de novo o efei-
to de um acontecimento singular "mal vivido': e não a causa de
qualquer acontecimento a viver, liberando o espaço para desloca-
mentos nas maneiras de fazer e de dizer seu trabalho para cada su- Elaborar a experiência
jeito no coletivo. Novos "automatismos comuns" podem emergir-
ocorrência verificada nesse caso concreto (Scheller, 2001) - que a instrução ao sósia
cultivam, assim, o ofício em sua função de "destinatário de emer-
gêncià' (Bakthine, 1984), em particular, para os novatos .

• 6. DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO •

Em resumo, a perspectiva histórico-desenvolvimentista, adotada


aqui, interessa-se pelo desenvolvimento dos "invariantes" da ação.
Mas, se levarmos a sério a história dos invariantes nos invariantes, é
necessário procurar suas molas propulsoras nos conflitos da ativida-
de dirigida e endereçada em que, com efeito, o desenvolvimento tem Este capítulo prossegue, portanto, a reflexão sobre os rnétodos 1• Va-
sua origem. Em psicologia, não é raro que invariantes sem história, mos propor, agora, um protocolo de análise já utilizado, em outras
desvinculados das contingências da situação, entendam-se bem com publicações, sob uma perspectiva completamente diferente (Clot &
as diversas fórmulas do que poderia ser designado como um "criacio- Soubiran, 1999; Clot, 1999a), para fornecer aqui uma base empírica
nismo desenvolvimentistà: H. Wallon descreveu bem os efeitos per- a algumas observações sobre o desenvolvimento do vivido no âma-
versos dessa disjunção que acumula fetichismo vencedor de estrutu- go da ação. Vygotski observava que "a ação passada pelo crivo do pen-
ras e desenvolvimento pressuposto. Como é sublinhado por Wallon, samento se transforma em outra ação que é refletidà' (1994b, p. 226).
interrompido, o tempo acaba sempre por desforrar-se: "Tendo as coi- Todos nossos esforços estão totalrn~nte focalizados neste ponto: em
sas em devir sido separadas de seu devir, o devir é substituído pela que condições é possível passar a ação pelo crivo do pensamento,
simples sucessão. Mas, em compensação, o devir apareceu como exis- não só do pesquisador, mas do próprio sujeito. O problema é o se-
tente em si e como que dotado do poder de se criar a si mesmo, ou guinte: para o sujeito, passar a ação pelo crivo de seu pensamento é
seja, de definitivamente criar as coisas" (1983, p. 9; 1970, p. 28-35).
urna ação propriamente dita; urna ação sobre si que não deixa a
Nossos resultados mostram, efetivamente, que o desenvolvimento
primeira ação, tornada objeto de pensamento, tal e qual. No entanto,
humano merece algo melhor do que sua convocação no absoluto. Ele
nenhuma reflexão direta sobre a ação é possível de si para si; eis, em
deve ser explicado para ser compreendido. Finalmente, o paradoxo
nossa opinião, um dos ensinamentos mais claros da análise do traba-
talvez seja o fato de que também o próprio desenvolvimento possui
lho. Ele prolonga os resultados obtidos por Vygotski no domínio da
um funcionamento do qual é necessário dar conta. Por meio de sua
provocação, como o capítulo seguinte procura demonstrar.
1
Trata-se de uma versão bastante remanejada de um capítulo da obra de J. M. Bau-
douin e de J. Friedrich, Théories de l'action et éducation [Teorias da ação e da educa-
1
Esse processo de generalização/particularização era considerado por Vygotski ção], Bruxelas, De Boeck Université, 2001. Agradeço ao editor por ter permitido esta
como o sinal da "tomada de consciência" (Vygotski, 1997, p. 317). reprodução.
202 Terceira Parte Ação e conhecimento: metodologia e métodos
Elaborar a experiência 203

educação da infância: a consciência é "um contato social consigo aos métodos experimentais, desde 1925, é interessante porque ele
mesmo" (Vygotski, 2003, p. 91). J.-P. Bronckart esclareceu perfeita- desnaturaliza a ação. Em sua opinião, justamente, tais métodos "ob-
mente essa perspectiva vygotskiana ao sublinhar que ' os estudos jetivos" se restringem demasiadamente aos dados imediatos da ex-
teóricos e empíricos do psicólogo russo terão tido "o objetivo ini- periência, não levando em consideração a consciência ou o pensa-
cial de demonstrar o caráter primordial das dimensões interpsico- mento que o experimentador solicita, ao mesmo tempo em que os
lógicas; o funcionamento humano é, antes de mais nada, coletivo" descarta paradoxalmente da experiência: "Organiza-se, previamen-
(Bronckart, 1999, p. 31). Na companhia de outros autores (Gui- te, o comportamento da pessoa submetida à experiência, suscitando
chard, 2004), vamos partir da seguinte constatação: "Conheço-me determinados movimentos internos com a ajuda de instruções, ex-
apenas na medida em que eu próprio sou um outro para mim'' plicações etc. E se, de repente, no decorrer da experiência, houver
(Vygotski, 2003â. 90). uma modificação de tais movimentos, todo o quadro do comporta-
mento é, por isso mesmo, bruscamente modificado. Assim, utilizam-
se sempre as reações inibidas ... Mas, estamos desprovidos de qual-
.. 1. QUESTÕES DE MÉTODO •
quer recurso para estudar essas reações internas" (2003, p. 63). Eis
A experiência vivida não é diretamente acessível pelo fato de que a por que, em seu entender, a experiência realizada deve continuar e
ação que se exerce sobre ela para alcançá-la acaba por afetá-la de não ser interrompida diante dos resultados obtidos. A enunciação
volta. Não só por considerar a experiência vivida a partir daquela do sujeito da experiência deveria ser solicitada, pedindo-lhe "um re-
que se vive. Mas também porque o vivido foi vivido depois de uma latório verbal" sobre seus movimentos inibidos, que nem por isso
luta, um conflito, até a colisão entre várias atividades rivais. "O deixam de ser reais. A investigação dos movimentos internos não
comportamento, observava Vygotski, é um sistema de reações ven- realizados é uma parte necessária da experimentação.
cedoras:' Tal como ele se realizou, em uma incessante colisão, "ele é Assim, para Vygotski, como o viu bem Veresov ( 1999, p. 213),
uma ínfima parcela do que é possível. Em cada minuto, o homem a observação experimental clássica não é sinônimo de objetividade;
está pl~no de possibilidades não realizadas" (2003, p. 76). Tais pos- e impõe-se uma reformulação radical dos métodos de experimen-
sibilidades descartadas - não vividas - tão importantes para com- tação para estudar as atividades inibidas que agem à revelia tanto do
preender aquelas que venceram e viveram, não são acessíveis dire- experimentador, quanto do sujeito. A metodologia só pode ser in-
tamente. Mas, são despertadas pela reflexão sobre a ação que, por direta, ou seja, "reduplicadà' ou, ainda, histórica. Ou, dizendo de
isso, deixa de ser a mesma ação. Essa é a razão por que Vygotski in- outra maneira, a "psicologia sem consciêncià' dos experimentalis-
sistiu tanto sobre o que ele designava como um "método indireto" tas não é demasiadamente objetiva, mas insuficientemente objetiva.
(1999, 2003), consistindo em organizar a "replicação" da experiên- Ela se limita ao que se apresenta na experiência imediata ao petrifi-
cia vivida. O problema metodológico que, então, se apresentava a car a objetividade do real que é reduzido artificialmente à atividade
ele era o de inventar um dispositivo que permitisse aos sujeitos realizada e está privado dos conflitos vitais que tornam seu desen-
transformar a experiência vivida de um objeto em objeto de uma volvimento possível ou impossível 1. À maneira de Volochinov desta
nova experiência vivida a fim de estudar a transferência de uma
atividade para outra (2003, p. 78); a fim de estudar o modo como 1
Em outras publicações (Clot, 1999a, 2001a), já propusemos a distinção, na ativida-
essa transferência desenvolve a atividade. de real, entre a atividade realizada e o real da atividade a fim de transferir para aí as ati-
É precisamente sobre esse ponto, de acordo com Oddone, que vidades suspensas, contrariadas ou impedidas, as contra-atividades que, eventualmente,
nós também trabalhamos. Por isso, vamos retardar o estudo desse a envenenam ou intoxicam, mas que fazem parte dela. A atividade dissimulada ou a ati-
vidade fantasiada, ambas não realizadas, nem por isso deixam de estar presentes na vida
problema teórico dos métodos. O estilo de crítica que Vygotski fazia do sujeito, inclusive conferindo-lhe sentido ou levando-a a perdê-lo (Vygotski, 2003).
204 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Elaborar a experiência 205

vez, poderíamos dizer que a objetividade só é possível enquanto por retroação, qualquer esperança de contato direto com ele
história do desenvolvimento da objetividade (Volochi:q.ov, 1977, p. (Vygotski, 2003). Da mesma maneira que o olho para o físico, a in-
218). Na prática, de fato, os experimentadores deveriam avaliar até trospecção é, portanto, um instrumento como outros instrumentos.
que ponto uma experiência séria nunca chegou a dizer sua última Nem mais, nem menos. Aliás, é interessante observar a proximida-
palavra. ''Assim, para a psicologia, a interpretação, além de uma de- pelo menos, neste ponto- entre Vygotski e Merleau-Pontyl.
amarga necessidade, é um procedimento de conhecimento liberta- Para este último: ''A própria introspecção é um procedimento de
dor, fundamentalmente fecundo, um salto vitale que se torna um conhecimento homogêneo à observação exterior. De fato, o que ela
salto mortale para os acrobatas ruins" (Vygotski, 1999, p. 170). nos dá, ao comunicar-se, não é a própria experiência vivida, mas
um relatório em que a linguagem desempenha o papel de um ades-
tramento geral, adquirido de uma só vez, e que não difere dos ades-
m 2. AS ARMADILHAS DO VIVIDO m tramentos de circunstância utilizados pelo método objetivo" (1942,
p. 198). Ou ainda, como que para marcar a diferença entre real e
Simplesmente, para Vygotski, os acrobatas ruins não se encontram realizado: ''A explicitação não nos dá a ideia mesma, ela não é senão
unicamente no campo das psicologias "explicativas" e "objetivas". É uma versão dela, um derivado mais manejáveld" (1964, p. 197).
claro que, nesse campo, há quem se contente, de forma bastante Mesmo que se considere o vivido como objeto e não somente
superficial, a atribuir o monopólio do real ao realizado. O compor- o comportamento observável, o dogma da experiência imediata
tamento é tomado ao pé da letra sem ultrapassar os limites da expe- permanece um preconceito sensualista (van der Veer & Valsiner,
riência imediata. Mas tal postura verifica-se em outros domínios. 1991, p. 148). Confundindo, também, o real com o realizado, o ina-
No campo das psicologias "compreensivas" e subjetivas, acredita-se cabado ao acabado em nome do respeito pelo vivido, os métodos
com demasiada facilidade, também, em uma percepção imediata subjetivos diretos não estão, portanto, exageradamente atentos à
do psiquismo como se o pensamento realizado fosse todo o pensa- subjetividade. Eles não o são suficientemente. Pois a única subjeti-
mento, como se a experiência vivida não fosse uma parcela - e so- vidade real é a história real da subjetividade entre atividades reali-
mente uma parcela - da experiência viva. zadas. Sabe-se que Vygotski avançava bastante longe nesse aspecto
De fato, tanto na abordagem "objetiva", quanto "subjetiva: e considerava o subjetivo como "uma relação entre duas coisas re-
não se pode esperar estar em contato imediato com a experiência ais" que inexistem no sentido primeiro do termo, embora "real de
do sujeito. Não se pode contar com um sujeito em contato direto outra maneira'' (1999, p. 278-279).
com ele próprio. O que o olho normal é incapaz de sondar, o olhar
interior também não consegue ver, observa resumidamente Vygotski
(1999, p. 162). Também nesse aspecto, o real só é acessível através • 3. CAUSALIDADE HISTÓRICA EM PSICOLOGIA m

do realizado. Contrariamente às teses fenomenológicas de Husserl,


na consciência, igualmente, o ser não coincide com o fenômeno (ou Como se vê, é difícil se basear na oposição entre abordagem objeti-
seja, o real não coincide com o realizado) e, até mesmo, a introspec- va e abordagem subjetiva (Bronckart & Friedrich, 1999). De fato, o
ção não elimina essa diferença. Porque a mente não é aí apenas sujei- mais importante é o que falta, simultaneamente, às duas: a história
to. Ela se divide em objeto e em sujeito: minha alegria e minha com- do desenvolvimento real do sujeito. E isso porque elas se apoiam no
preensão introspectiva dessa alegria são aspectos diferentes (Vygotski,
1999, p. 273-274). Desse modo, deve-se distinguir entre o pensa- 1
É impossível, evídentemente, subestimar as diferenças entre eles. Em Merleau-Pon-
mento enquanto tal e o próprio ato de pensamento. Mas este último ty, pode-se criticar que a presença perceptiva ao mundo tome o lugar de uma atividade
só é observável através do primeiro que ele modifica; retirando-nos, vítal no âmago do meio (Le Blanc, 1999; Friedrich, 1999).
206 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Elaborar a experiência 207

dogma da experiência imediata e instantânea que é sua raiz comum. ao transfigurá-las (Vygotski, 1978, 1998; Clot, 1999c). Por isso, po-
Vygotski não hesitava em escrever que a explicação objetiva e a de-se escrever sem qualquer risco que, entre o real e o realizado,
compreensão subjetiva definiam posições metodológicas não tanto existe uma contradição, mais que uma concordância. Mas tal con-
inimigas, mas gêmeas: "No primeiro caso, para sermos capazes de tradição oferece uma possibilidade, uma vez que eles não são talha-
preservar a vida contra o sentimento, devemos recusar seu sentido. No dos a partir do mesmo molde. No entanto, justamente, ao se reali-
segundo caso, para sermos capazes de preservar o vivido e seu sentido, zar, o real pode reorganizar-se e modificar-se. Eles estão unidos
devemos igualmente recusar a vidà' (Vygotski, 1998, p. 361). pelo desenvolvimento de suas relações na atividade do sujeito. Há,
O método histórico indireto era o único que lhe parecia sus- portanto, um devir, em parte imprevisível, do real da atividade na
cetível de superar o que, atualmente, designaríamos de bom grado atividade realizada, e inversamente. Evite-se, portanto, erigir em
como um "Yalta científico": aquele que se baseia no dogma do "rea- antinomia substancial o que não passa de uma defasagem histórica
lizado'' ou do "acabado'~ Essa metodologia adota deliberadamente, e funcional em que, justamente, o sujeito se produz 1.
como objeto, a história do desenvolvimento. A experiência e a cons- Eis por que, do ponto de vista dos métodos, convém permitir
ciência não são observáveis senão em seus desenvolvimentos, não aos sujeitos uma retomada sem repetição da atividade, uma réplica
enquanto produtos, estados ou estruturas invariantes, mas através da atividade à atividade, uma refração reiterada que, finalmente,
de processos que fazem e desfazem essas formas sedimentadas. Por preveem uma suspensão para os conflitos do real. O método indire-
isso, uma causalidade histórica toma o lugar das formas de causali- to organiza tais "ecos" ao transformar o handicap de sua parcialida-
dades "objetivas" e "subjetivas" dominantes em psicologia. E isso, de em trunfo para a interpretação do próprio sujeito. ''A objeção
paradoxalmente, na perspectiva de análises, ao mesmo tempo, mais segundo a qual o método indireto seria inferior ao método direto é,
objetivas e mais subjetivas (Vygotski, 1978, p. 65; 1994a; Veresov, de um ponto de vista científico, totalmente errônea. É precisamente
1999, p. 214-215). pelo fato de clarificar, não a inteireza das sensações vividas, mas
No entanto, convém tirar outra consequência dessa escolha. somente um de seus aspectos, que ele executa um trabalho científi-
Essa terceira via, que procura estabelecer as causalidades históricas co: ele isola, analisa, separa, abstrai uma única propriedade" (1999,
da ação (Clot, 1999a), privilegiar o que Vygotski designava por "ex- p. 166). Com efeito, "um olho que fosse capaz de ver tudo, por essa
plicações históricas" (1998, p. 242-243), impõe suas restrições. razão precisamente, não conseguiria ver nadà' (p. 167). Ainda, nes-
Aceitando reconhecer a fragilidade intrínseca de qualquer tentativa te aspecto, vamos propor um paralelismo com algumas observações
de abordar diretamente o real da atividade deve-se, pois, prestar de Merleau-Ponty que citava Guillaume: "O estado de consciência é
uma atenção minuciosa à maneira de alcançar tal objetivo por sempre a consciência de um estado. A consciência é sempre a cons-
"mei~s deslocados". Assim, não só as atividades realizadas não po- ciência de algo( ... ). O que designamos por psiquismo continua sen-
dem ser desdenhadas pelo método indireto, mas, ao contrário, a do um objeto diante da consciêncià' (1942, p. 198-199).
escolha das diferentes "realizações" - nas quais se poderá duplicar o Levamos a sério mais abaixo, ao apresentar nosso protocolo,
real da atividade- torna-se decisiva. Porque, recrutando e alistando essa "realização" necessária da consciência como recurso para seu
as "realizações" umas com as outras, transformando cada "realiza- desenvolvimento. Para passar a ação pelo crivo do pensamento, o
ção" em recurso para uma nova "realização': é que o real da ativida- sujeito deve "realizar" - nos dois sentidos do termo - o que faz.
de se manifesta em seus desenvolvimentos. Então, nos dois sentidos
do termo, as realizações traem o real: à semelhança da linguagem
1
que "realizà' o pensamento no sentido em que ele o revela e, ao Essa maneira de apresentar o problema reúne, na atividade, uma psicologia objeti-
va do "realizado" e uma psicologia "subjetivà' do real; contra qualquer tipo de dualis-
mesmo tempo, o reorganiza (Vygotski, 1997); à semelhança do pró- mo, mas também oposta a um monismo amorfo, ela pode ser definida como um mo-
prio corpo ou, ainda, das obras de arte, que "realizam" as emoções, nismo histórico.
208 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Elaborar a experiência 209

Mas, para que possa "realizar" sua ação, é preciso fornecer-lhe no- série. Ela não serve de expressão para atividades "já realizadas': Ao
vos meios. Eis a utilidade do sósia que é um "meio desJocado': um transformar-se em linguagem, as atividades se reorganizam e se mo-
"contato social" artificial consigo mesmo. Ele autoriza urna "reen- dificam. A linguagem, graças à qual o sujeito se dirige ao interlocutor
trada" na ação, urna repetição sem repetição, o recomeço da ação na troca que constitui o comentário sobre sua atividade, retoma para
em outra atividade com o sósia em que ela serve, agora, de recurso. o objeto analisado os efeitos dessa troca. Desde então, as atividades
A consciência é o desdobramento do vivido, revivido para viver ou- não se exprimem por palavras que lhes viessem a servir somente de
tra coisa. "A representação de um sósia é a representação da consci- veículos amorfos para falarem a seu respeito. Graças à linguagem di-
ênciae mais próxima da realidade': observava Vygotski, em 1925 rígida ao outro, o sujeito realiza, no sentido pleno do termo, suas
(2003, p. 91). Nossa experiência na clínica do trabalho não invalida atividades. Assim, sua "realização" é determinada pelo contexto em
esse comentário. que elas são mobilizadas. O número de contextos será a condição de
outras tantas "realizações" possíveis, fontes potenciais de novos de-
senvolvimentos ou de impedimentos imprevistos.
"4. O SÓSIA COMO MÉTODO INDIRETO.

Tendo sido apresentado esse quadro da análise, gostaríamos agora " 5. A REGRA DO JOGO "
de propor urna releitura dos métodos de instrução ao sósia, já ex-
posta em outras publicações (Oddone, 1981; Clot, 1995, 1999; O protocolo, apresentado mais abaixo, retoma a decodificação das
Scheller, 2003) e ainda em um capítulo precedente, à luz das consi- "instruções a um sósia'' fornecidas por um profissional a um pesqui-
derações metodológicas que acabam de ser recenseadas. Para nós, sador diante de um grupo de pares. Na sequência, figuram os co-
tais técnicas completam a autoconfrontação cruzada em situação de mentários escritos por esse mesmo profissional. Esse protocolo ser-
trabalho. Elas obedecem aos mesmos objetivos de conhecimento e virá de matéria-prima e será a fonte de novos problemas que serão
de ação já que, nos dois casos, trata-se de assistir, a seu pedido dire- suscitados no final deste capítulo. A escolha desse protocolo (Clot &
to, profissionais que procuram ampliar seu raio de ação, seu poder Soubiran, 1999), entre outros possíveis, explica-se pelo papel que ele
de agir sobre o próprio meio e sobre eles mesmos. Mas nunca se li- desempenhou na história da elaboração da clínica da atividade que
mita a um projeto de conhecimento ou de pesquisa. A investigação praticamos. Oferecemos, mais abaixo, ao leitor a possibilidade de
é concebida, aqui, corno um instrumento (Rabardel, 1995) à dispo- seguir, passo a passo, integralmente a instrução transmitida por um
sição dos profissionais. Os exer cícios de instrução a um sósia vi- professor de filosofia ao pesquisador que encarna o sósia.
sam, corno já demonstramos, a urna transformação indireta do tra-
balho'dos sujeitos graças a um deslocamento de suas atividades em Y. C. [Yves Clot] - Eis a regra: você vai supor que eu seja seu sósia e que, amanhã, eu me
um novo contexto, do qual elas hão de sair, eventualmente, com encontre em uma situação de ter de substituí-lo em seu trabalho. Vou interrogá-lo para saber
"urna cabeça acima deles mesmos", para retornar a expressão de como devo proceder. Insisto sobre os detalhes.
Vygotski, a propósito da brincadeira infantil (Vygotski, 1978). M. S.- Vou fazer minha apresentação: Michel Soubiran, professor de filosofia no liceu Marcei-
Essas atividades de trabalho, objeto de análise, não estão "já Pagnol. Éum estabelecimento de ensino secundário que conta com 1.200 alunos eestá situado
prontas" na expectativa de urna explicitação e nossa própria atividade no subúrbio sudeste de Paris. Uma população mista, cujas dificuldades sociais têm aumentado
não consiste em considerá -las corno invariantes suscetíveis de serem no decorrer dos anos.
apenas validados pela análise. Sabemos que essa análise não as deixa Y. C.- É preciso representar bem a situação. Amanhã, vou visitar o liceu. Você deve fornecer-
incólumes, que ela as desenvolve, no sentido pleno do termo. De fato, me umas dicas, os macetes do ofício. Terei de me virar, de modo que eu possa me safar das
para afirmá-lo ainda à maneira de Vygotski, o diálogo na "instrução situações correntes com que vou me deparar. Vou imaginar certas situações e servir-me de sua
ao sósià' não pode revestir a atividade corno urna roupa fabricada em experiência para enfrentá-las. Qual sequência devo tomar?
210 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Elaborar a experiência 211

M. S. - Um curso com uma turma do último ano do 2° ciclo sobre a noção de história. [.. l Y. C.- Sirvo-me do toque da campainha para definir a relação em que me encontro?Então, a
Mas, previamente, nos corredores da Administração, à volta da fotocopiadora, de$encadeiam-se campainha toca. Há várias possibilidades. Em que momento, depois do toque da campainha,
discussões, trocam-se informações. devo sentir que, de qualquer maneira, é impossível prolongar tal situação?

Y. C.- Então, como devo reagir neste caso? Integro-me nessa movimentação, deixo de partici- M. S.- 5 minutos ... Porque há alunos que estão lá em cima ...
par, vou acalmar o jogo?
Y. C.- Eles estão em que andar?
M. S.- Não, nada disso. Convém sobretudo ficar a escutar, solicitar todos os detalhes que têm
M. S.- Meu liceu está em uma encosta; há um bom número de degraus ... acima de uma cen-
sua importância, pedir àquele ou àquela que lhe fornece a informação, qual é a opinião deles a
tena. Você tem de subir para a sala dos professores, voltar a descer para o prédio das salas de
esse respeito, o que eles pensam que deveria ser feito. Pedir também a opinião das pessoas que
aula, voltar a subir um ou dois andares. De manhã, é necessário estar em forma; evite deitar-se
se encontram perto. Trata-se de um trabalho de escuta e de intermediação, de estabelecimento
tarde demais.
de relações entre as pessoas que estiverem presentes de maneira a começar a sentir atempera-
tura, a saber como elas reagem. Y. C. Então, trata-se de um trabalho físico?
Y. C.- Tento sentir a temperatura? M. S.- Exatamente, exige um grande esforço físico.
M. S. - Isso mesmo. Trata-se também de saber como é possível transformar o que se passa: Y. C. -E, no caso concreto, como é que faço esse percurso? Em corrida? Se estou atrasado 5
mera observação de solidariedade ou, então, será necessário organizar uma ação, pensar em minutos, devo correr ou andar?
uma delegação junto do Reitor para solicitar-lhe providências. Você deve posicionar-se na pers-
pectiva de uma ação possível e começar a experimentar as premissas dessa iniciativa. M. S. - De modo algum, nunca se deve correr quando se está atrasado. Pelo contrário, você
toma seu tempo, nem que seja para recuperar a calma necessária a fim de passar da lógica
Y. C.- E, portanto, convém que eu me sinta em situação de responsabilidade relativamente a sindical para a lógica da aula. É necessário um tempo que permite acalmar de tudo isso e
essa eventual ação, com essas pessoas, sejam elas funcionários ou colegas? "recentrar".
M. S.- Exatamente, é isso. Essa é a posição.[ ... ] Y. C.- Portanto, vou subir a escadaria com tranquilidade?
Y. C.- Como devo proceder para que eles vejam que o assunto não vai cair no esquecimento? M. S. - Exatamente, é isso, sem que você se precipite. Convém que você fique focalizado na
M. S. -Você diz que vai apresentá-lo a outras pessoas, que eventualmente isso será um dos aula e nos alunos; ora, para isso, é necessário tempo.
objetos da ordem do dia em uma próxima reunião, que você pode falar disso ao Reitor, eventu-
Y. C. -Isso significa que devo servir-me do trajeto para esquecer, no bom sentido do termo, para
almente. Você mostra que o tema mencionado por eles pode ser convertido em uma ação. Pelo
arquivar a conversação anterior e criar o vácuo?
menos, convém que se torne visível a possibilidade de promover essa ação.
M. S.- Não, não se trata de criar o vácuo, mas de se preparar. Não éa mesma coisa. Em vez de
Y. C.- Énecessário que eu dê um jeito para mostrar que posso fazer algo com isso?
criar o vácuo em relação ao que foi dito, ou de pensar precisamente ao que se vai fazer, trata-se
M. S.- Não propriamente o que você vai fazer, mas que algo pode ser feito e organizado Mes- de se preparar para algo; é uma atividade diferente. Estou na dúvida. Mas é, com certeza, uma
mo que )JOCê não o faça pessoalmente, há uma pessoa a quem você vai fornecer os elementos das coisas mais difíceis em um dia de trabalho. A passagem que se faz de um tipo de comuni-
para que ela faça algo. E, aliás, você é que, na verdade, acaba por fazer isso! [... ] cação a outro, de um modelo de problemas a outro. Talvez, seja também uma das coisas mais
Y. C. - Essa discussão vai durar algum tempo. Isso pode ir além das 8h30? Mesmo que a cansativas.
campainha toque, se estou envolvido nisso, posso continuar? Y. C.- Passar de uma coisa para outra? Preparar-se?
M. S.- Com certeza, o assunto pode ser suficientemente importante para merecer que se passe M. S. -Isso mesmo, se preparar para algo.
além do horário. Aliás, passar além do horário é um primeiro passo da ação. Isso pode, então,
significar que se passou algo de suficientemente importante para que o processo normal do Y. C. -Isso éalguma coisa de corporal?
trabalho comece a emperrar um pouquinho. M. S. -Com certeza, é o que estoúem via de dizer para mim próprio: é determinada maneira
Y. C.- Este éum sinal que posso dar: não reagir ao toque da campainha? de se colocar dentro de uma roupa, creio eu, da roupa para dar a aula. Porque você tem uma
roupa para dar a aula.
M. S. -Isso mesmo, poderíamos dizer que está começando um processo infinitesimal de greve
que pode redundar em outras ações. [... ] Y. C.- Oque isso significa?
Elaborar a experiência 213
212 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos

M. S. - De manhã, você se preparou; você prestou muita atenção à sua roupa. Você põe uma Y. C.- Estão à minha espera, fora do prédio. Asala está fechada à chave?
gravata; evita as manchas etudo o que seja suscetível de distrair os alunos. Você presta muita atenção M. S.- Exatamente, evocê é que tem as chaves. Você tem a chave, entre, quatro chaves; evocê
atudo isso. Trata-se de um trabalho um tanto enfadonho, mas que leva a ganhar bastante tempo. nunca acerta com a chave da sala.
Y. C. Um trabalho de preparação, de natureza física e que se refere ao vestuário? Y. C.- A chave da minha sala; por que tenho minha sala?
M. S.- Exatamente. Que lhe vai evitar aperda de tempo disciplinar, não ter de colocar ordem na M. S.- Não; isso muda.
sala de aula; tal ordem vai ocorrer através dessa apresentação.
y c.- Portanto, tenho um molho de chaves para essas salas. Trata-se de chaves do estabeleci-
Y. C.- Dessa postura? mento? Elas não estão misturadas com meu chaveiro pessoal?
M. S.- Sim, é isso. M. S.- Não, não; nesse caso, as coisas seriam ainda mais complicadas ... existem quatro salas
Y. C. -A posição corf)oral e da indumentária que vou adotar. Portanto, ao subir essa escadaria, e quatro chaves.
vou entrar na roupa? Y. C.- Ecomo vou identificar essas chaves?
M. S.- Exatamente, mas o gesto que você acaba de fazer não éo adequado. Você acaba de fazer M. S.- Você vai tentando ... No meu caso, já tenho tentado vários macetes, mas nunca consigo
um gesto em que se enche os pulmões e se dá uma base mais sólida aos braços, à semelhança acertar na primeira tentativa. Elas são muito parecidas; portanto, você experimenta uma atrás
do que ocorre no boxe. Essa não é a atitude adequada: o gesto apropriado é uma expressão de da outra. Se você está bem humorado, pode propor uma brincade'1ra com os alunos: pedir aum
relaxamento ede elevação. Você está, ao mesmo tempo, de pé edescontraído, ao mesmo tempo, deles para escolher uma chave; se acertar da primeira vez, ele ganha a aposta ...
organizando eacalmando. São esses dois aspectos que devem se exprimir.
Y. C.- Consigo entrar. A porta está aberta, sou o primeiro a entrar?
Y. C.- Uma espécie de quê ... de tranquilidade?
M. S.- Exatamente.
M. S.- Exatamente, é isso, de força tranquila ... (risos)[ ... ]*
Y. C.- Nessa sala, existe uma carteira para o professor?
Y. C.- Então ... estou atrasado 5 minutos, eu encontro o Reitor. Oque devo fazer?
M. S.- Claro, uma mesa, mas sem estrado.
M. S.- Você para, vai cumprimentá-lo, aperta-lhe a mão. Você está em pé de igualdade com
ele. Y. C. - Levo uma pasta, é isso?

Y. C.- Tudo bem. Portanto, posso interromper meu trabalho. Os 5 minutos não têm importância; M. S.- Exatamente, você tem seu identificador profissional indispensável.
o importante é que eu interrompa meu trabalho para dar testemunho de que estou em pé de
Y. C.- Coloco o chaveiro no bolso?
igualdade com ele?
M. S.- Não, você o coloca em cima da mesa.
M. S.- Éisso. [... ]
Y. C.- Ao lado da sacola?
Y. C.- E'ortanto, nesse momento, estou perto de minha sala de aula ...
M. S. -Isso mesmo, mas você acende, em primeiro lugar, a luz do quadro.
M. S.- Vamos partir da hipótese segundo a qual você está um pouco atrasado? Vamos basear-
nos nessa hipótese de trabalho? Y. C.- Enão a da sala? Somente a do quadro?

Y. C. -Tudo bem. Demorei-me um pouco mais na fotocopiadora e, ainda, acrescentei uma pe- M. S. -Cabe aos alunos acender a luz da sala. Eles a acendem, ou não. Trata-se de um sinal
quena dose no encontro com o Reitor. São 7 minutos de atraso. Asala está fechada? Os alunos interessante a respeito de sua disponibilidade, de sua disposição de espírito.
estão dentro da sala?
Y. C.- Oque significa isso?
M. S.- Não, eles não voltaram para a sala. M. S.- Eles podem perfeitamente -deixar a luz apagada e, durante algum tempo, permanecer
em uma semiobscuridade; pode acontecer que você tenha necessidade de pedir-lhes para que
a acendam.
* A expressão "force tranquille" associa-se, para o eleitor francês, à vitória do candi-
Y. C.- Eeles podem ficar ass'1m na obscuridade?
dato socialista, Frânçois Mitterrand, na eleição presidencial francesa, em 1981. (N.T.)
214 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos
Elaborar a experiência 215

M. S.- Com certeza, eles podem divertir-se com essa situação. Pode acontecer que ninguém te- M. S.- Alguém que tem notícias, que vai levar as matérias da aula e os deveres.
nha a ide ia de ir acender a luz. Aliás, eles fazem questão desse breve momento. É,uma indicação
preciosa sobre amaneira como você vai orientar sua aula, como vai começá-la, imprimir-lhe um Y. C.- Ese ninguém tiver essa informação?
ritmo; como você vai dirigir-se aos alunos, suscitar o interesse deles para sua aula. [... ] M. S. -Isso pode acontecer também. Mas émenos frequente. Alguém diz: Ele está doente, vou
Y. C.- Vai haver algum rumor no momento da entrada, não é mesmo? levar-lhe a matéria da aula. Se ninguém responder, você diz: Ninguém está em contato com ele
ou ela? Você. lembra que eles estão no último ano do 2° ciclo e que não se deve ficar sozinho( a).
M. S.- Nem por isso, não de forma exagerada.
Tudo isso acontece com grande rapidez, mas não se deve perder esse gênero de coisas.
Y. C. Não serei levado afazer alguma observação?
Y. C.- Deve-se proceder com rapidez, sem queimar as etapas?
M. S.- Não, isso não vai valer a pena. Obarulho vai diminuir, normalmente, até o momento em
M. S.- Exatamente, é isso, você toma seu tempo.
que você fará a chamada. Você vai fazer a chamada quando for restabelecido o silêncio; mas o
silêncio virá bem depressa. Y. C. - Mesmo que eu esteja atrasado?
Y. C. - Até esse momento, não terei pronunciado uma só palavra, apenas fixado o olhar em M. S.- Com certeza, isso não é importante; o ritmo pode, em seguida, ser acelerado. De qual-
alguns alunos? quer maneira, o momento do início é bastante importante. Você vai ver, o mais difícil écomeçar
eterminar, eis o que é o mais difícil e isso deve ser feito com aduração indispensável, a rituali-
M. S.- Exatamente. Você não terá pronunciado sequer uma palavra. Pode acontecer que um aluno
zação necessária, mesmo quando há 5 minutos de atraso ... [... ]
venha apresentar-lhe sua caderneta para justificar sua ausência na aula anterior. Nesse caso, éim-
portante não prestar demasiada atenção às anotações da caderneta, limitar-se adar uma conferida, Y. C.- Portanto, acabei de chamar o último nome da lista. Como devo terminar essa chamada?
mas perguntar ao aluno se está melhor, se está encontrando a solução. Isso é importante: o olhar
M. S. - Você fecha o caderno, avança para a frente da mesa e vai permanecer de pé durante
para a caderneta diz: eu confio em você. Dependendo do que lhe pergunta, você mostra que se
toda a aula.
interessa por ele. "Você esteve doente? Já se sente realmente melhor agora?"
Y. C.- Eentão, como devo começar?
Y. C.- Devo tratá-los sem familiaridade?
M. S.- Na nossa hipótese, começa a apresentação de um tema; o curso é sobre história.
M. S.- Com certeza. [... ]
Y. C.- Ao chegar ao liceu, de manhã, isso éalgo que eu já tinha na cabeça, ou não?
M. S.- Você deve começar a chamada por: "Senhoritas e Senhores".
M. S.- Não na cabeça, mas à disposição; você tinha várias possibilidades de cursos sobre a
Y. C.- Por ordem alfabética, e desde o começo?
história.
M. S.- Exatamente.
Y. C.- Eu tinha na cabeça várias possibilidades.de curso?
Y. C.- Ao proceder assim, há silêncio na sala, um silêncio consistente?
M. S.- Não épropriamente na cabeça ...
M. S.- Com certeza, um bom silêncio, um verdadeiro silêncio.[ ... ]
Y. C. -Isso está à disposição, mas onde?
Y. C.- Mesmo assim, em cada chamada, devo estabelecer arelação entre um nome eapresença
dessa pessoa. [Não é demorado demais?] ... M. S.- Está à disposição como certo número de gestos possíveis, como certo número de ten-
tativas, de passos possíveis; cada um com sua lógica, seu conteúdo próprios; mas, na cabeça,
M. S.- É, mas esse tempo é necessário. E, se houver alguém ausente, é importante que, nesse nada de particular. Não é aí que isso se faz.
momento, você faça uma pausa para interrogar a turma com o olhar, para que ela lhe forneça
uma informação. Em geral, essa informação éfornecida. Y. C.- Quando você diz "certo número de gestos, de passos possíveis", como é que isso deve
ser entendido: no sentido físico do termo?
Y. C.- Pelo simples fato de que eu tenha feito a pausa e interrogado com o olhar?
M. S. -Não somente no sentido físico, mas simultaneamente no sentido físico e intelectual.
M. S. -Isso mesmo. Sobretudo se é uma ausência repetida há várias aulas. Aí você formula a Você tem, se prefere, roteiros possíveis de cursos e, entre esses roteiros, você vai fazer uma
questão: alguém está em contato com ele ou ela? escolha ... em particular, ao escolher um ponto de partida.
Y. C.- Oque significa isso? Y. C.- Mas, neste caso, como faço a escolha?
216 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Elaborar a experiência 217

M. S.- Em função da turma, da atitude dos alunos, de sua maior ou menor disponibilidade ... M. S.- Não étanto seu olhar, mas o dos alunos que é importante a partir desse momento. Será
necessário ficar à espreita para observar se eles estão, ou não, compreendendo, se você vai
Y. C.- Ou seja, todas as referências que observei quando eles entraram na sala?'
demasiado ou não suficientemente, rápido; se o assunto desperta, ou não, o interesse deles; se
M. S. -Exatamente, é isso. Eexiste algo de importante: em função de sua própria disposição há, ou não, manifestação de regozijo. Trata-se de uma troca permanente.
de espírito. Há dias em que, desde o início, você pode ter necessidade de um curso atraente, de
um bom estímulo; e há dias em que você tem necessidade de algo mais tranquilo, de uma pro- Y. C.- Oque devo dizer de uma forma precisa?
gressão mais lenta e serena. Isso é imprevisível. Quando você está cansado, tem necessidade M. S. - Vamos abordar a história. É uma nova noção. Vocês devem deixar uma página em
de algo estimulante no início. Nesse caso, convém enfrentar o começo da aula com entusiasmo; branco para voltarmos, eventualmente, à aula precedente. Deixem um espaço para a ilustração.
muitas vezes, a escolha do roteiro ocorre nesse momento. Evamos começar a aula. Em sua aula, você terá a preocupação de permitir que, em todos os
Y. C.- Quantos são os roteiros à minha disposição? Três ou quatro? momentos, os alunos possam situar-se, saber onde é que estão relativamente à apresentação
do tema. Mesmo que isso se faça por meio de artifícios - por exemplo, você dirá: Isso é um
M. S.- Mais do que isso. Os elementos, os ingredientes são, quase sempre, os mesmos; sim- prelúdio; e isso é um epílogo. Convém que as partes fiquem nitidamente marcadas no caderno.
plesmente, você vai deixar de lado alguns e vai insistir sobre outros. Oque fará a diferença de O que permite tal flexibilidade é que os alunos possam situar-se em relação ao assunto. É
roteiro é a maneira como você vai começar e amaneira como vai terminar. Mas, em geral, você
possível incluir nota bene, inclusive, várias; mas, é importante que isso fique sempre marcado
tem sete ou oito possibilidades de curso.
com nitidez.
Y. C.- A escolha faz-se, praticamente, de maneira instantânea? Quando estou lá com eles à
Y. C.- Que as rupturas sejam claramente simbolizadas, eventualmente designadas?
minha frente, eles são 35. Há um momento de pausa, não?
M. S. Com certeza, eainda este aspecto: convém ajudar os alunos afazer isso.
M. S. Com certeza, e que pode ser longo. É importante que os alunos sintam que você está
prestes aelaborar algo, que você está em vias de fazer uma escolha. Não éincômodo esse breve Y. C.- Não pode ocorrer uma situação em que um aluno venha a dizer: mas, o que é um pre-
momento de calma, de silêncio, em que as coisas estão em preparação. lúdio?
Y. C.- Éaí que isso se decide, após a preparação na escadaria, o ritual? Esse é o momento de M. S.- Exatamente, é possível que venham a ocorrer situações semelhantes. Nesse momento,
decisão. Há alguns segundos? você explica o que éum prelúdio, o que se executa antes do tema principal, por exemplo, na mú-
M. S. - Com certeza, é aí. Você se apropria da turma nesse momento. Você se apropria dela. sica. De qualquer maneira, as perguntas, sejam elas quais forem, devem ser sempre atendidas.
Você se apropria dela e se prepara com os alunos; algo vai, então, começar. Y. C. -Isso significa que posso derivar, no bom sentido do termo, mas não distorcer.
Y. C.- Aproprio-me da turma. Como devo proceder para apropriar-me da turma? M. S.- Nada disso, mas convém que você dê seu curso; você já perdeu 7minutos com os cole-
M. S. - Isso depende. Pode ocorrer um gesto de abertura dos braços. Você vai se apoiar nas gas [risos]. Você tem um curso que dispõe de pontos de passagem obrigatórios. Sua resposta,
mesas à sua frente. Se estiver na sala do anfiteatro, tal gesto éainda mais fácil porque aposição portanto, deve ser bem rápida. [... ]
das mesas é mais elevada. Você pode também recuar ao se concentrar; esse gesto é capaz, Y. C. Tudo bem! Vários roteiros, vários planos. Como devo fazer a escolha?
também, de chamar a atenção da turma.
M. S.- Deve-se fazer o que irá permitir que o curso encontre sua coerência, seu desenvolvi-
Y. C.- Será que posso também, por exemplo, andar lateralmente com as mãos nos bolsos? mento.
M. S. -De modo algum, trata-se de uma atitude demasiado banal, ela é convencional demais. Y. C.- Mas isso é possível em todos os meus planos.
Pretende-se uma ritualização para suscitar a calma. Assim, é necessário assumir uma postura
de enfrentamento, sem qualquer sinal de retraimento. Oprocesso, na sala de aula, não se passa M. S.- De modo algum. Por exemplo, existem planos de construção; e, depois, existem planos
lateralmente, mas entre você e a turma; há um espaço a criar, um campo de tensão entre você de ataque. Trata-se de guerras diferentes: a trincheira ou a 8/itzkrieg. Por exemplo, sobre a
e sua turma. história, você pode começar por expor os cinco ou seis sentidos da palavra história e mostrar
como dispomos, para cada um desses sentidos, de um núcleo de problemas. Seu plano de
Y. C.- Um feixe?
ataque é dirigido, de forma mais particular, para a preparação do vestibular. Este trabalho visa
M. S. Exatamente, é isso, um feixe. à dissertação.
Y. C.- Nesse momento, como devo olhar? Y. C.- Éum plano de construção; é o quê?
218 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Elaborar a experiência 219

M. S.- Y. C.- Éuma questão, um plano de ataque? M. S. De modo algum, mas que você escreve diante deles que as escrevem; são linhas tão
densas, tão abertas e criativas, quanto possível.
M. S. -Exatamente.
Y. C. - Efarei a tentativa de terminar, exatamente no momento do toque, essas frases que eles
Y. C.- Devo escrever essa questão no quadro?
vão anotar? Éessa a ideia?
M. S. -Não forçosamente. Em compensação, você pode propô-la aos alunos, dando-lhes, no
M. S.- Com certeza, mas, sobretudo, linhas que vão permitir elementos de modo que os alunos
mínimo, 10 minutos para aprofundá-la sozinhos ou em grupos, de acordo com apreferência deles.
um pouco desconcentrados tenham a possibilidade de recuperar a matéria apresentada; tais
Você pode também começar por contar-lhes uma história: trata-se de algo bastante atraente.
frases são também importantes por isso.
Y. C. -Isso éainda um plano de ataque? Que não começa por uma questão?
Y. C.- Eles acabam ficando com alguma coisa?
M. S.- Exatamente. Você pode relatar a história do Chapeuzinho Vermelho ou de Joana d'Arc, M. S.- Exatamente, eles acabam ficando com alguma coisa.
à maneira dos contadores de histórias. Você pergunta se é a história ou uma estória. Você vai
propor-lhes que procurem em conjunto como é a estrutura de um conto e de uma narrativa Y. C.- A respeito dessas frases, devo elaborá-las quando ... a partir de que momento?
histórica. M. S. -É um trabalho de escrita que você fará no desenrolar da aula. Você escreve com a mão
Y. C.- Tudo bem. Eles terminaram o trabalho. Como devo proceder para retomar o fio? dos alunos. Você fica em sintonia com eles, de modo que o movimento de escrita deles e o
pensamento de você acabem formando uma só coisa; é como se você próprio tivesse escrito.
M. S. - Com as boas velhas técnicas. Você avança para o quadro e escreve o que os alunos Trata-se de um texto escrito e não da transcrição de algo oral. Você escreve realmente nesse
falam para você. Ou então, em determinados casos, se você sente que a turma está disposta exato momento. Trata-se de um texto escrito por você; convém que ele seja bem escrito.
a essa atividade, você pode pedir aos alunos que eles próprios venham escrever no quadro.
Você fixa uma regra então. Em silêncio, vocês vêm escrever no quadro o que é importante. Eis Y. C.- A última palavra no momento do toque de campainha?
uma operação bastante interessante por conferir um ritual de escrita silenciosa que exerce sua M. S.- Com certeza, é isso mesmo! Não se deve passar além ... sua aula tem de parar nesse
influência sobre aturma. instante. Eis o que permite aos alunos, por si mesmos, passarem além da aula. Você se calou ao
terminar sua hora, enquanto eles, no corredor, vão continuar falando sobre o curso; justamente
Uma aula pode começar, assim, por um momento de surpresa, de admiração.
porque ele terminou na hora marcada.
Y. C. - Como é que posso ter a garantia de que as coisas seguem seu curso, normalmente? E
Y. C.- Se tivéssemos continuado esta conversação, o que você me teria dito?
em que momento é que posso pensar que está funcionando, ou não?
M. S.- Eu teria dito que você enfrentaria problemas de passagem ... porque a atmosfera criada
M. S. - Isso se constata, em geral, pela intensidade dos debates entre os alunos: quando o
na sala de aula que você acaba de ter não será a mesma a criar depois. Você vai passar de uma
ritmo se estabelece, eles discutem um pouquinho; o tom aumenta de volume; há controvérsia.
turma do último ano do 2° ciclo que é uma boa turma, bastante unida, em que éfácil criar algo,
Esse é um bom sinal.
para uma turma que émuito mais difícil.
Y. C.- Quero saber como vou terminar. Passo por cima do intervalo. Como é que me preparo
Y. C.- Essa passagem é, então, difícil?
para as 1Oh30. Será que devo me importar em ser surpreendido pelo toque da campainha?
M. S. - Exatamente, mas você está habituado a enfrentar esse gênero de coisas. Eu estava
M. S -Com certeza, você tem de parar com o toque da campainha, isso é muito importante.
pensando em diferentes tipos de passagem: de uma turma para outra; dos dias do início do ano,
Y. C.- Parar bruscamente com o toque da campainha? em que ainda não há notas, para os dias em que são apresentadas as primeiras dissertações.
Essa éuma passagem bastante complicada. Existe também apassagem do horário matinal para
M. S. - Isso mesmo, nem mais um segundo, e, se possível, a última palavra precisamente no
o horário da tarde. Por exemplo, tenho uma turma, bem cedo de manhã, evolto aencontrá-la no
momento do toque: é um sinal de controle bastante significativo para os alunos. Convém dar
início da tarde: já não éamesma; tem de ser adotado um procedimento diferente. Existe, ainda, a
esse gênero de sinais. Portanto, um pouco antes, existem duas coisas importantes: pensar em
passagem para aurgência: há um fT1omento do ano em que você terá falta de tempo, em situação
um trabalho que os alunos podem fazer para a aula seguinte, um texto para comentar, uma dis-
de apuro no tempo [Zeít-Noa. Seu programa ainda não chegou ao fim. Você deve acumular a
cussão, uma pesquisa. Mas, de qualquer maneira, fornecer-lhes, no final da aula, duas ou três
matéria. Passa-se, então, do tempo necessário a fim de concluir o programa para o tempo que
linhas que estabelecem a ligação, em resumo, do que você fez e do que eles fizeram.
resta. É algo de complicado. Deve-se, sobretudo, acompanhar os alunos nas melhores condi-
Y. C.- Devo ter pensado nessas duas ou três linhas? São linhas já escritas na minha cabeça? ções possíveis; caso contrário, perde-se o contato com eles etal situação os deixa inquietos.
220 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Elaborar a experiência 221

Y. C.- Oque você é capaz de dizer a respeito da maneira como vivenciou as situações nessa Parecia-me importante, sobretudo, dizer aos alunos que meu ponto de vista sobre aturma tinha
conversação? ficado enriquecido, mediante essa experiência, com uma nova dimensão. Em relação a esse
M. S. - É ao mesmo tempo muito satisfatório porque me permitiu situar as coisas no devido enriquecimento, eu gostaria de dizer, aqui, duas ou três palavras.
lugar e trocar impressões sobre isso quando, afinal, nunca tenho a oportunidade de exprimir A primeira observação diz respeito aos vínculos entre meu trabalho como responsável sindical
realmente tudo o que invisto em uma aula; é bastante gratificante. Além disso, essa atividade e meu trabalho como professor. Não é evidente a articulação entre essas duas atividades. No
tem um aspecto um tanto inquietador, um pouco vertiginoso: uma vez que isso foi dito e com-
entanto, através do sósia, tomei consciência de que uma boa parte de minha legitimidade de
partilhado na conversação, vemos perfeitamente o que poderia ser feito de outro modo. No
professor estava apoiada em meu compromisso sindical: além de vir ao liceu para dar aulas,
momento em que isso é enunciado, vemos que outras coisas seriam possíveis. Mas, como
experiência, é sobretudo, gratificante. "faço" o liceu em que venho dar aulas. Eu o construo, protejo, fico preocupado com ele e sinto-
me responsável por ele. Ao estabelecer vínculos com os colegas étambém o liceu que eu "faço":
Y. C. - No momento em que isso é enunciado, vemos que outras coisas aparecem como assumo meu lugar nas equipes, tornando-me um traço de união entre seus integrantes. Enfim,
possíveis?
o artifício de encenação utilizado- que me coloca em atraso e me leva a encontrar o Reitor no
M. S. -Isso mesmo, há outra coisa. No momento em que isso éenunciado, vejo até que ponto é corredor- permitiu-me compreender que essa preocupação com o lugar de trabalho e com os
importante que isso seja algo de mim; meu e não de você. É, em parte, os limites do que posso homens que colaboram em suas atividades coloca-me em pé de iguadade com os superiores
transmitir avocê. Por exemplo, quando digo que, subindo aescadaria, você irá preparar-se para hierárquicos: "Você não tem de pedir desculpas. Você está em pé de igualdade com ele."
algo, isso supõe que évocê, com toda asua história, com todas as aulas que você já deu, bem-
sucedidas ou fracassadas; tudo está aí, você percebe, e está em via de se colocar em ordem. A segunda observação incide sobre o que eu poderia designar (na esteira de Simondon) como
a metaestabilidade das situações de ensino. Com certeza, énecessário "apropriar-se" da turma,
Y. C.- Ediante da fotocopiadora, éparecido?
mas é necessário também que algo adquira consistência, como é costume dizer a respeito do
M. S.- Com certeza, é parecido porque sou eu. Isso também, para mim, é gratificante. gelo que cristaliza. Para constituir um campo capaz de organizar as múltiplas potencialidades
Y. C.- Vê-se o que se faz que, afinal, depende apenas de si mesmo. da turma, convém apreciar com ponderação o estado da turma em determinado momento; é
necessário encontrar a "tensão" adequada. Os ritmos de falas e as trocas de olhares são par-
M. S.- Sim. E, também, tomo consciência de todo o meu investimento sobre o que faço. Mas,
ticularmente importantes. Na minha especialidade, é importante que o pensamento venha a
aqui, a gente é suficientemente numerosa a ter essa experiência. Aqueles que estão, aqui, po-
deriam dizer que ésurpreendente tudo o que se investe no curto período de duas horas de aula. produzir-se de maneira original em um lugar preciso com estas pessoas e nesse exato momen-
Entre 8h30 e 1Oh30, há realmente um grande número de coisas. to. Aliás, o momento filosófico se cria mediante a confrontação do Programa, exigências do
exame e preocupações dos alunos com o pensamento (importância da história).
Y. C.- Há um mundo?
A terceira observação diz respeito ao lugar em que se prepara a aula. A regra do jogo do sósia
M. S.- Exatamente, um mundo; deve ser isso, um mundo.
leva-o a perguntar-me: "Mas onde está a aula que vou dar? Na minha sacola? Ou na minha
Observações escritas, posteriormente, pelo professor cabeça?" Essa questão me deixou confuso. Na verdade, a aula não está em determinado lugar.
Ao encontrar, de novo, os alunos, disse-lhes que eu tinha um sósia. Para partilhar com eles um Tampouco vai cair do céu. Ela está, de preferência, em uma espécie de espaço-tempo; está "à
pouco do prazer dessa iniciativa, propus a uma de minhas alunas para ocupar, no liceu, no dia disposição". Ela é premeditada. Tomará feição quando começar a cristalização da turma. Nesse
seguinte, o lugar dele e pedi que ela me dissesse, diante da turma, tudo o que eu deveria dizer momento, a partir de meus gestos e do feixe dos vínculos com os alunos, eu próprio aprenderei
efazer para dissimular a substituição. o que devo fazer. Por outro lado, convém que eu disponha não de elementos (por exemplo,
Evidentemente a oportunidade era propícia para rir um pouco em conjunto: por exemplo, ao ser simples definições que não terei tempo para estruturar), mas de sequências relativamente au-
mencionada minha indumentária, penteado e maquiagem. Mas acabei aprendendo coisas inte- tônomas e completas que sou capaz de extrair de cursos já feitos (por exemplo: para um curso
ressantes: em relação aos códigos de cortesia entre os alunos, por exemplo, é indelicado não sobre a história, violência, moral e política).
responder a um colega que se dirige a você, durante aaula, mesmo que esta seja importante ou
Para terminar, direi que não éum acaso se nunca sou capaz de encontrar achave adequada para
interessante e que essa conversação possa perturbar. Ou que, para eles, também, os rituais, os
ritmos e as passagens (de uma atividade para outra) tinham uma grande importância. Que eles entrar na sala de aula e que devo- às vezes, até o final do ano- consultar meu plano de serviço
deveriam, igualmente, adaptar-se e modificar, às vezes, radicalmente sua atitude ao passarem para saber em que sala vou dar aula. Alguém já me disse que essa atitude constituía, "em parte,
de um professor para outro. um sintoma". Mas, não se trata de um ato falho, nem de uma distração.
222 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos
Elaborar a experiência 223

• 6. A EXPERIÊNCIA VIVIDA DE UMA EXPERIÊNCIA VIVIDA • Por isso, na travessia dos gêneros dialógicos, organizada por
A fim de focalizar nossa argumentação no estatuto do vivido relati- nós, a última palavra nunca é dita, o último ato nunca chega a ser
vamente à ação do sujeito, vamos chamar a atenção para este co- executado. Eis a razão pela qual tivemos necessidade de outra gramá-
mentário do professor: "É bastante gratificante. Ao mesmo tempo, tica da atividade para conjugar suas temporalidades rivais. Fazer não
esta atividade tem um aspecto um tanto inquietador, um pouco se diz senão em relação ao presente. E o inacabado continua agindo.
vertiginoso: uma vez que isso foi dito e compartilhado. Vemos per- Assim, torna -se possível analisar o desenrolar imprevisível de um de-
feitamente o que poderia ser feito de outro modo. No momento em senvolvimento, além de seus impasses e, eventualmente, suspensões.
Com o sósia, o sujeito introduz-se em diálogos exteriores e interio-
que isso é enunciado, vemos que outras coisas seriam possíveis:'
res. Eles podem ser considerados como exercícios estilísticos que lhe
Para nós, esse ponto é fundamental. De fato, nossa aborda-
permitem tomar consciência do que faz nesse exato momento ou do
gem não poderiã definir-se como um simples apego ou um privilé-
que se desfaz para, eventualmente, "voltar a fazê-lo':
gio atribuído à experiência vivida. Pelo contrário, trata-se de conse-
guir desprender-se de sua experiência a fim de que esta se torne um
meio de fazer outras experiências. Esse é um procedimento que • 7. O VIVIDO COMO MEIO DE AGIR ..
pode tornar a experiência já realizada, disponível para experiências
a realizar. Como vimos, Vygotski definia a consciência como a ex- A análise do trabalho se revela como um instrumento de desenvol-
periência vivida de uma experiência vivida. Ora, aqui, assistimos vimento da consciência do sujeito quando lhe é oferecida a possibi-
efetivamente a um desligamento e a uma religação da experiência. lidade de alterar o estatuto do vivido: de objeto de análise, o vivido
A tomada de consciência não é, portanto, a descoberta de um obje- pode tornar-se meio para viver outras vidas. Bakhtine chamou nos-
to mental inacessível anteriormente, mas a redescoberta- a re-cria- sa atenção, em particular, para esse ponto. Para ele, o vivido não é,
ção - desse objeto psíquico em um novo contexto que o "leva a ver paradoxalmente, vivido por aquele que o vive, mas é orientado para
o objeto e o sentido de sua atividade presente e não para si mesmo.
de um modo diferente': Assim, a tomada de consciência apoiar-se-
Desse modo, "para viver minha sensação, devo transformá-la no
ia em uma transformação da experiência psíquica. Ela não é a apre-
objeto especial de minha atividade" (1984, p. 123). Para viver meu
ensão de um objeto mental finito, mas seu desenvolvimento: uma
trabalho a partir do interior, devo cessar de trabalhar. Devo separar
reconversão que o inscreve em uma história inacabada. Em vez de
meu trabalho de seu contexto habitual. Mas, aqui, um ponto é deci-
reencontro com o passado, a tomada de consciência é metamorfose
sivo: para mim, é impossível estar fora de qualquer contexto, em
do passado. De objeto vivido outrora, ele é promovido à posição de
contato direto com minha vivência, face a face com ela. Ter acesso a
meio para viver a situação presente ou futura. Nesse trânsito entre
essa vivência faz-se sempre em um momento de minha vida que
duas situações, nesse deslocamento do vivido - que, tendo sido ob-
não me pertence exclusivamente, em um novo contexto que deter-
jeto, torna-se meio- é que esse mesmo vivido desprende-se da ati- mina minha relação com ela e reconfigura sua significação. De
vidade, torna-se disponível para a consciência, além de enriquecer- qualquer maneira, tenho de sair de mim para ter acesso à minha
se com propriedades do novo contexto. Tomar consciência não vivência: "Não é no contexto dos valores de minha própria vida que
consiste, portanto, em reencontrar um passado intato pelo pensa- minha vivência pode adq_uirir a própria significação enquanto de-
mento, mas, sobretudo, em revivê-lo e fazê-lo reviver na ação pre- terminação interior. Na minha vida, esse contexto inexiste para
sente, para a ação presente. É redescobrir o que ele havia sido como mim. Tenho necessidade de um ponto de fixação do sentido que
uma possibilidade realizada entre outras possibilidades não realiza- esteja situado fora do contexto de minha vida, que seja vivo e cria-
das que nem por isso deixaram de agir. dor - e, por isso mesmo, baseado no direito - para ser capaz de ex-
224 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Elaborar a experiência 225

trair minha vivência do acontecimento isolado e único que é minha conteúdo, mas ao passar de um conteúdo de atividade para outro.
vida'' (p. 123). Assim, o vivido tem a possibilidade de permanecer vivo.
Essa "exotopia'' desenvolve, então, o vivido conservando-o Caso contrário, é um novo mentalismo que nos é proposto e
vivo. O verdadeiro paradoxo do vivido resume-se, talvez, nestas pa- que, transformando o vivido em objeto, deriva para o que poderia
lavras: "Na medida em que estou vivo nele, ele ainda não existe por ser designado como um cognitivismo "do interior': Com efeito, a
inteiro" (p. 126). Na análise do trabalho, pudemos confirmar as se- ação sobre si torna-se, então, um monólogo com o próprio vivido
guintes observações: a experiência vivida só é acessível aos sujeitos -com um objeto psíquico- que faz lembrar bastante o face-a-face
quando é renovada pela travessia do contexto em que ela é revivida. com o objeto físico, cuja defesa tem sido assumida pela psicologia
É a ilusão de que tal operação poderia ser realizada de modo dife- cognitiva. Em nosso entender, pelo contrário, a atividade é sempre
rente, de que existisse, portanto, um vivido em si sem relação com a dirigida. Endereçada a um destinatário, ela faz do outro, não um
atividade viva que o transforma em meio- ou, dito por outras pala- contexto, mas o subtexto da ação. À maneira de Bakhtine, pode-se
vras, um vivido sem história - que pode reunir um certo positivis- definir a unidade de base da análise como triádica: a atividade é
mo com uma certa fenomenologia. dirigida, ao mesmo tempo, para seu objeto e para a atividade de
outro que incide sobre esse objeto. A atividade do outro "pré-ocu-
pa'' o objeto da atividade do sujeito. Para os estudantes citados mais
• 8. PARA ALÉM DO MENTALISMO: A AÇÃO • acima, deixar de olhar para a bola é observar o jogo através da ati-
vidade do seu professor, como resposta a essa atividade. Trata-se de
Esse, talvez, seja o caso do trabalho de P. Vermersch, o qual toma ao uma atividade endereçada como o é a atividade do professor de fi-
pé da letra a concepção husserliana da redução por imaginar que losofia no protocolo proposto. Nesse caso, a atividade do sósia for-
seja possível a suspensão do interesse pelo conteúdo de um ato a necendo esse outro "contato social consigo mesmo", mencionado
fim de focalizar-se no ato em si mesmo. Birdwhistell, escreve ele, por Vygotski. A mesma ação, que se integra a uma atividade dife-
ensinava os estudantes de antropologia a assistir a uma partida de rente, acaba por mudar de sentido. Tanto na atividade interior como
basquetebol sem focalizar a bola (Vermersch, 1999, p. 15). Mas, na atividade exterior.
como evitar observar que a atividade é, aqui, bem pouco "suspen- De fato, uma fenomenologia do vivido psíquico corre o risco
sa''? De fato, nesse caso, os estudantes são estudantes. A única ativi- de limitar-se a transferir o cognitivismo do exterior para o interior.
dade suspensa é a de espectador ou de torcedores. Eles estão des- O objeto físico se torna psíquico, mas o sujeito permanece sozinho
centrados do jogo unicamente pelo fato de que estão focalizados em consigo mesmo na ilusão de uma possível relação direta. Com efei-
outros ·objetivos que conferem outro sentido à atividade deles: to, nessa transferência, algo é profundamente adequado: a comuni-
aprender. Pela multiplicação e não pela "redução" dos contextos, dade estrutural entre a atividade exterior e a atividade interior do
pela recontextualização e não pela "suspensão" da atividade dos es- sujeito. Mas justamente essa estrutura não é binária e nunca deixa o
tudantes é que estes vão conseguir descontextualizar o ato do jogo. sujeito sozinho com seus objetos. Ele só tem acesso a ela por inter-
Este, adquirindo um novo sentido, desenvolve sua significação. En- médio de suas relações com os outros. Como é destacado por Leon-
tão, em vez de menos, ele tem mais conteúdo. De objeto de distra- tiev: "O homem nunca está sozinho diante do mundo dos objetos
ção, ele se tornou meio de formação; ele se desenvolveu. Em vez de que está à sua volta. O traço de união de suas relações com as coisas
"suspensa': a ação dos estudantes se transformou ao passar para ou- são as relações com os homens" (Leontiev, 1956). Eis o que é verda-
tra atividade. Esta enriqueceu a sua experiência do jogo pela aber- deiro também para as "coisas psíquicas". Como se vê perfeitamente
tura da história· dessa experiência vivida a novos conteúdos possí- no exercício do sósia, a atividade dirigida "exterior" transforma a
veis. O ato se percebe como tal, não ao separar-se de qualquer atividade dirigida "interior" que, por retroação, leva a primeira a
226 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos

entrar em uma zona de desenvolvimento potencial. A consciência é


essa variação da experiência, essa diferenciação, essa rytomada de
uma pela outra. Assim, ela é menos um vivido ou uma representa-
ção, que uma diferença entre vividos e representações; uma distân-
cia que desenvolve a experiência e seus objetos (Friedrich, 2001), o
poder de ser afetado. rovocar go
Eis o que se passa com o liceu de nosso professor: ele não vai
lá, ele o faz. No decorrer das "instruções", ele acaba ficando em pé a
de igualdade com o Reitor. Sem exagerar nas palavras, será possível
legitimamente defender, em conclusão, que a atividade desse pro-
fessor é, então, dirigida de modo diferente: a ação sobre si - mas,
sobre si como um outro - enriquece a ação no mundo.

Ainda a propósito de métodos, vamos procurar, agora, compreen-


der melhor a autoconfrontação cruzada. Para isso, confronta-se
aqui 1 a perspectiva bakhtiniana com os problemas da análise do tra-
balho. Esta última está, ao mesmo tempo, muito longe das preocu-
pações dialógicas de Bakhtine e, como veremos, finalmente muito
próxima. Ela repousa em dois pressupostos que gostaríamos de
apresentar logo de saída. O primeiro é de natureza clínica. No meio
profissional, procedemos a análises da atividade concreta destina-
das a modificar, a pedido de nossos interlo cutores, situações reais
de trabalho degradadas. Com esse objetivo, aperfeicoamos méto-
dos dialógicos destinados a desenvolver o poder de agir desses mes-
mos interlocutores sobre o próprio meio e sobre eles mesmos. Tais
métodos obedecem a um princípio formulado, bastante acertada-
mente, por M. Foucault: "O que conta nas coisas ditas pelos ho-
mens, não é tanto o que teriam pensado aquém ou além delas, mas
o que, desde o começo, vai sistematizá-las, tornando-as para sem-

1
Este texto se baseia, no essencial, em um capítulo da obra coordenada por L. Filliet-
taz e J.- P. Bronckart, em 2005, I:analyse des actions et des discours en situation de travail
[Análise das ações e dos discursos em situações de trabalho], Louvain -la-N euve, Pee-
ters. Agradeço ao editor por sua amável autorização.
228 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos 229
Provocar o diálogo

pre, indefinidamente acessíveis a novos discursos e abertas à tarefa mais preciso. Em seu entender, o diálogo não é a antessala da ação 1 .
de transformá-las" (1988, p. XV). Não se trata de "um procedimento para descobrir, desnudar um
Nosso segundo pressuposto é uma certa concepção das rela- caráter humano finito; no diálogo, o homem não se manifesta so-
ções entre o sujeito individual e o coletivo. Em nosso entender, o mente do exterior, mas torna-se, pela primeira vez, o que é verda-
estado da conflituosidade social é que estabelece o nível de conflitu- deiramente e não unicamente aos olhos dos outros e sim, vamos
osidade interna no indivíduo: seu funcionamento psíquico se enco- repetir, aos seus próprios olhos. Ser é comunicar dialogicamente.
lhe e pode, inclusive, extinguir-se quando a sociedade deixa de Ao interromper-se o diálogo, tudo se interrompe" (ibid., p. 344). De
oferecer-lhe conflituosidade externa, quando ela se torna unívoca, fato, para ele, o diálogo nunca pode cessar.
inerte e, para resumir, monológica. A conflituosidade interna do Com Vygotski que escreveu que o "comportamento não é, em
sujeito, base de sua dinâmica psíquica, não se instala de uma só vez. momento algum, uma luta apaziguante" (2003, p. 6), ele teria, sem
A abertura do diálogo interior não consegue manter-se sem um dúvida alguma, subscrito a excelente fórmula de Tosquelles: "Somen-
"relê" social que o alimenta em energia conflitante. Em certo senti- te nossa morte é que reúne, em uma totalidade, a polimorfia de nos-
do, a clínica da atividade profissional que praticamos se interessa sos acontecimentos vividos" (2003, p. 87). Para Bakhtine, o nó da
por esse "relê': Ela procura conservar ou restaurar a vitalidade dia- abordagem dialógica é constituído pelas relações entre o diálogo in-
lógica do social graças à análise do trabalho ao experimentar a fun- terior e exterior: "No diálogo, as réplicas de um sobrepõem-se às ré-
ção psicológica do coletivo de trabalho. plicas do diálogo interior do outro' (1970a, p. 347). Nos diálogos
Vamos começar por um comentário, um tanto substancial, de apresentados por ele como exemplo, "chocam-se e discutem não duas
alguns textos de Bakhtine, ao propor determinado "modelo" do vozes inteiras e monológicas, mas duas vozes dilaceradas" e "as répli-
dialogismo em três instâncias. Em seguida, vamos expor os méto- cas abertas de uma respondem às réplicas ocultas da outrà' (p. 350).
dos de autoconfrontações com a ajuda dos quais tentamos imple- Qualquer discórdia entre os sujeitos ou as dissonâncias entre suas
mentar a perspectiva clínica apresentada mais acima. Ao proceder vozes são também, simultaneamente, "interferência de duas vozes no
assim, vamos procurar exprimir o que é, talvez, o essencial para interior de uma sô' (p. 355). Com certeza, para Bakhtine, tais disso-
nós: o que nos interessa no diálogo é seu desenvolvimento ou seus nâncias são, quase sempre, sutis. Elas não deixam senão vestígios fu-
impedimentos. gitivos no enunciado; além disso, são identificáveis em um sujeito,
"não propriamente nas palavras, mas nos silêncios que não se justifi-
cam pelo sentido de seu discurso, nas mudanças de tom inexplicáveis
a 1. DIÁLOGO REALIZADO E REAl DO DIÁLOGO a em relação à sua primeira voz, em um riso deslocado, etc:' (p. 354) 2 •
De qualquer modo, aquele que fala ao outro pressupõe que
Para Bakhtine, leitor bastante atento de Dostoievski, a interioridade
sua voz não tem à sua frente a palavra monológica do interlocutor,
psíquica é uma questão demasiado séria para ser abandonada às
psicologias mentalistas. Até mesmo quando adota sua conduta
como objeto de reflexão, o homem não fala de si próprio e dos ou- 1
Eis por que a linguagem é uma atividade propriamente dita e não apenas um ins-
tros, mas consigo mesmo e com os outros: "É impossível apreender trumento da atividade. Nesse ponto, somos levados a compartilhar as observações de
J. Boutet (2008). Mas o verdadeiro interesse da linguagem é justamente o fato de ser
o homem a partir do interior, de vê-lo e compreendê-lo, transfor- nômade e, de acordo com as circunstâncias, atividade propriamente dita, objeto de
mando-o em objeto de uma análise imparcial, neutra, a não ser que outra atividade ou, ainda, instrumento da atividade. Vamos voltar ao assunto no pró-
por uma fusão com ele, "sentindo-o': É possível abordá-lo e desco- ximo capítulo.
2
Em um texto fundador de 1923, L. Jakubinski já havia insistido bastante sobre o
bri-lo, mais exatamente, forçá-lo a descobrir-se, somente por uma tro-
papel da mímica e da entonação no processo de produção do enunciado e na definição
ca dialógicà' (1970a, p. 344). Mas, imediatamente, Bakhtine torna-se da intensidade do discurso (Jakubinski, 2000).
230 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Provocar o diálogo 231

mas que ela "penetra em seu diálogo interior em que a posição pre- Mas, em geral, é bem menos visível que as fronteiras dialógicas flu-
cisa do outro é, de alguma maneira, preparada de antem~o" (p. 360). tuam também no interior das próprias palavras pessoais, cujo em-
Em Dostoievski, Bakhtine encontra o princípio estrutural do dialo- prego é também idêntico ou decalcado, retrabalhado ou distorcido
gismo tal como ele o entende. Por toda a parte, há a interferência segundo os momentos e as situações. Esse diálogo interior que faz
consonante ou dissonante das réplicas do diálogo "aparente" com da palavra pessoal uma história da palavra na palavra é designado
réplicas do diálogo interior. Por toda a parte, um conjunto determi- por Bakhtine como "microdiálogo" (1970a, p. 362). Esse aspecto do
nado de ideias, reflexões e palavras é distribuído entre várias vozes dialogismo, precariamente reconhecido, merece, no entanto, muita
distintas com uma tonalidade diferente em cada uma delas. O plu- atenção (Friedrich, 2001).
rivocalismo e o heterovocalismo fazem se ajudar mutuamente o di- Mas isso não é tudo. Percebe-se menos, em geral, que Bakhti-
álogo exterior e_ o diálogo interior. E isso pelo fato de que "a busca ne inscreve esses dois diálogos misturados ao interior de um tercei-
da palavra pessoal é, efetivamente, uma busca da palavra não pesso- ro do qual se limitam a ser partes: o "grande diálogo" que ultrapassa
al, da palavra que é superior a si, uma aspiração a fugir das próprias completamente o perímetro da troca atual entre os dois interlocu-
palavras com a ajuda das quais nada se sabe dizer de substancial" tores, mas do qual eles participam, mesmo à sua revelia. Essa é a
(1984, p. 370). "terceira frente de combate", se é que podemos nos exprimir assim:
Avalia-se, então, até que ponto o diálogo possui um volume o "grande diálogo" (1970a, p. 362) ou, ainda, a "grande temporalida-
que sua superfície não seria capaz de envolver totalmente. Aliás, é de" (1984, p. 346) do diálogo. Ora, como o precedente, esse ponto é
isso que fornece uma história possível ao diálogo que está sempre decisivo para delimitar bem a originadade da postura dialógica de
repleto de possibilidades não realizadas. Heterovocalismo é o nome Bakhtine. "Compreender, escreve ele, é necessariamente tornar-se o
que Bakhtine atribui a esse volume. De acordo com ele, mas com terceiro em um diálogo" (1984, p. 336). Não se trata, evidentemente,
outro vocabulário, propomos considerar que o diálogo realizado do terceiro no sentido literal já que o número de participantes de
(Bakhtine fala de diálogo aparente) não tem o monopólio do real do um diálogo pode ser ilimitado. Mas trata-se de uma posição dialó-
diálogo. Ele trai - no duplo sentido de revelar e de transformar - o gica particular. O destinatário do diálogo realizado é concreto, e o
real do diálogo. Desse ponto de vista, se a própria palavra é, como
autor da produção verbal espera dele uma resposta na troca em cur-
ele escreve, "bivocal'' ou "equipolente" (1970a, p. 363), é pelo fato de
so. Esse destinatário é o segundo destinatário. Porém, além desse
ser sempre o teatro de uma luta pela significação. E, "nas fronteiras
destinatário, "o autor de um enunciado, de maneira mais ou menos
é que se trava o duro combate dialógico" (Bakhtine, 1984, p. 364).
consciente, pressupõe um sobredestinatário" (1984, p. 336). Situa-
Habitualmente, vê-se com bastante clareza que, para Bakhti-
do, segundo as épocas, em "um metafísico longínquo" ou em um
ne, tais fronteiras flutuantes passam entre minhas palavras e as do
recuado tempo histórico, esse "destinatário de emergêncià' é variá-
outro. A experiência verbal do homem é um processo de assimila-
vel graças às percepções do mundo e do meio: "Esse sobredestina-
ção, mais ou menos criativo, das palavras do outro e não das pró-
tário, com sua compreensão responsiva, idealmente correta, assume
prias palavras da língua. Nossa fala está repleta das palavras do ou-
uma identidade ideológica concreta variável (Deus, a verdade abso-
tro e nossos enunciados são caracterizados, em graus variáveis, pela
alteridade ou pela assimilação, por um uso idêntico ou decalcado, luta, o julgamento da consciência humana imparcial, o povo, o jul-
retrabalhado ou distorcido das palavras do outro (1984, p. 296). Para gamento da história, a ciência, etc.)" (p. 33 7). Evidentemente, acres-
agir no mundo, vivemos no universo das palavras de outro e nossa centaríamos, de bom grado, no que nos concerne, o ofício, na
vida inteira consiste em se dirigir nesse universo, em se entregar jus- análise psicológica do trabalho. Mas, de qualquer maneira, o autor
tamente a esse duro combate dialógico nas fronteiras flutuantes en- do enunciado espera também, até mesmo contra sua vontade, com-
tre as palavras do outro e as palavras pessoais (1984, p. 363-364). preensão e resposta.
232 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Provocar o diálogo 233

E 2. SUBDESTINATÁRIO, DESTINATÁRIO, para se concentrar em seu objeto, não estão de modo algum enfra-
SOBREDESTINATÁRIO E
quecidas" (ibid., p. 337). Pode-se, até mesmo, pensar que elas de-
senvolvem ainda melhor na medida em que o enfrentarnento dialó-
O autor de um enunciado "nunca pode se entregar inteiramente a gico para a significação do objeto se desenrola nas três frentes do
ele, nem entregar toda a sua produção verbal unicamente à vontade diálogo. Inclusive, a luta pelo objeto é que explica a instabilidade
absoluta e definitiva de destinatários atuais ou próximos" (1984, p. dessas frentes e mesmo que haja três diálogos em um. Ocorre que,
337). Qualquer diálogo, acrescenta Bakhtine, desenrola-se na pre- nas réplicas do diálogo com o destinatário imediato, outros dois
sença de um terceiro participante invisível "que se situa acima de diálogos fazem ouvir suas vozes: o "grande diálogo" com o terceiro
todos os participantes do diálogo" (ibid., p. 337). Assim, a totalida- participante invisível e o "pequeno diálogo" consigo mesmo. Dizen-
de das vozes do passado continua falando no presente. Entretanto, do com outras palavras: endereçadas aos destinatários imediatos, as
esse sobredestinatário nada tem que seja obrigatoriamente místico, réplicas são, simultaneamente, questões e respostas para o sobre-
mesmo que ele fosse suscetível de vir a sê-lo em determinadas per- destinatário e para o subdestinatário, conceito que será utilizado,
cepções do mundo. O que é seguro é que o outro não se limita a ser, aqui, para designar as vozes do diálogo interior.
portanto, o segundo no diálogo, o outro corno pessoa, o outro sin- Destinatário, sobredestinatário e subdestinatário: compreen-
guiar da intersubjetividade. Ele não é somente um outro, mas uma de-se, então, o motivo pelo qual é necessário conservar o caráter
coisa diferente: urna história coletiva de civilização do real. Na reali- decisivo da teoria do diálogo em Bakhtine, sobretudo, evitar reduzi-
dade, esse outro é trans-histórico e não supra-histórico. Ele é de la a um dialogisrno de fachada. Desse ponto de vista, M. Bakhtine é
maneira bastante precisa transpessoal (Clot, 2006b). De fato, ele não inseparável de L. Jakubinski e de toda a tradição dos estudos do
é externo à entidade dialógica situada, ele existe no interior das tro- diálogo, na Rússia. No texto acima mencionado, L. Jakubinski cita,
cas singulares dessa entidade, mesmo que permaneça irredutível a por exemplo, as análises publicadas, em 1915, por K. V Scerba, se-
elas. Ocorre que, para Bakhtine, "ele é momento constitutivo da to- gundo as quais "o monólogo é, em certa medida, urna forma lin-
talidade do enunciado e, na análise mais aprofundida, ele pode ser guística artificial e que, no diálogo, é que se revela a verdadeira es-
revelado aí" (1984, p. 337). O diálogo pressupõe sempre urna ins- sência da línguà' (2000, p. 112). Mais recentemente, A. Ponzio
tância de "justificação" que protege o locutor da avaliação imediata (1998) chamou a atenção para o risco de implicar Bakhtine em urna
do segundo destinatário. Eis o que é verdadeiro, inclusive, para a espécie de moral da comunicação que lhe é completamente estra-
mentira, observa Bakhtine, nem que fosse sob a seguinte forma: nha. Ao criticar a interpretação da obra proposta por Clark e Hol-
"Qualquer pessoa, no meu lugar, teria mentido" (ibid., p. 337). É que quist (1984), ele mostra que o diálogo, para Bakhtine, não é absolu-
a palavra avança sempre mais longe e passa através de seu destinatá- tamente um ideal a atingir. Envolver-se no diálogo com os outros
rio imediato à procura de um auditório, em todos os sentidos do para tornar-se o que se é, através da interação, não é um dever, corno
termo, cuja ausência é o que há de mais terrível para o homem. Des- é sugerido por esses autores, porque não se pode escolher entrar em
se ponto de vista, a palavra está destituída de fundo porque seu sen- diálogo. "O diálogo, para Bakhtine, não se entabula voluntariamen-
tido não tem fim mesmo que sua produção possa ser fisicamente te, mas suporta-se", escreve Ponzio de maneira categórica (1998, p.
interrompida por este ou por aquele participante direto do diálogo. 112). Eis a razão pela qual essa teoria do diálogo é a-simétrica e a-
Para Bakhtine, esse inacabarnento estrutural que multiplica recíproca, contrariamente ao formalismo da relação "Eu-Tu", pro-
os ângulos dialógicos não é um subjetivismo, tampouco urna espécie posto por M. Buber (1959).
de "panglossià' que viesse a conter o psiquismo na linguagem. Ao Ela também não é suscetível de ser sobreposta à "polifonia de
contrário, ele fornece urna história à objetividade porque as "finalida- reconciliação': proposta por F. Jacques- aliás, aspecto sublinhado por
des puramente materiais e operatórias da palavra, sua capacidade esse mesmo autor (2000). De fato, corno escreve Ponzio, o diálogo,
234 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos
Provocar o diálogo 235

não é o resultado de um ato deliberado e intencional de abertura ao ainda não realizada. À procura do homem exposto à descoberta. À
outro> resulta > muito pelo contrário, da impossibilidade do
I
sujeito se procura do "homem no homem'' (1970a, p. 134).
fechar para a alteridade (Ponzio, 1998, p. 113); a menos que fique
De fato, para Bakhtine, se a última palavra nunca é dita, é
exposto aos riscos da doença mental. A abertura à alteridade dialó-
precisamente porque nem tudo está nas palavras. Para ele, aliás, nós
gica não é uma escolha. Ela nos afeta antes mesmo de vivermos e
não pronunciamos ou escutamos palavras, mas verdades ou menti-
agirmos no mundo. Ela é insuprimível. Na melhor das hipóteses,
ras, coisas importantes ou triviais, agradáveis ou não, grandiloquen-
pode-se transformar a passividade em atividade, em fazer algo para
tes ou superficiais. De maneira mais geral, como acontece com
si ao desenvolvê-la. Caso contrário, é ela que nos envolve, levando-
Jakubinski (2000, p. 103), em Bakhtine, a funcionalidade da fala é
nos a correr o risco de uma desrealização. Vamos alcançar tal objeti- seu próprio princípio: "O desprendimento da fala em relação à rea-
vo ao conseguir reverter o estatuto do outro por uma subversão do
lidade é destrutivo para ela mesma; ela se enfraquece, perdendo sua
outro em si mesmo para si mesmo, por apropriação. Essa é uma ati- profundidade semântica e sua mobilidade, sua capacidade de am-
vidade de reconversão e afetação do outro que autoriza sua migração pliar e renovar seu sentido em contextos novos e vivos; em resumo:
da função de origem de minha atividade para a função de recurso ela morre enquanto fala porque a fala significante vive fora de si
que visa ao seu desenvolvimento próprio. Essas migrações funcio- mesma, vive de sua orientação para o exterior" (1978, p. 171).
nais, estudadas atentamente por Vygotski (Vygotski, 2003; Clot,
Trata-se de um trabalho de produção de significação que
1999c), mostram a heteroglossia que Bakhtine havia descrito nos
pode ser descrito como uma interminável luta na fala entre um pro-
termos de uma heterotemporalidade.
cesso centrípeto e um processo centrífugo (Sandywell, 1998). Um
conflito motriz na atividade de significação entre o processo centrí-
peto do "já dito" com vocação monológica e o processo centrífugo
.. 3. HÁ VERDADE E VERDADE "
do "ainda não dito'' com vocação dialógica. Desse ponto de vista, o
Ocorre que essa heterogeneidade plurivocal conserva, em Bakhti- dispositivo de autoconfrontação cruzada, analisado mais adiante,
ne, uma ineliminável discordância entre o diálogo realizado e o real poderia ser qualificado como "centrífuga dialógicà: E isso em refe-
do diálogo. E é essa mesma discordância que pode se revelar cria- rência a Bakhtine para quem o exterior não é o fora, o referente ex-
terno da proposição, mas o além, os limites a rechaçar, o horizonte
dora. De fato, para ele - como foi muito bem observado por Bender
que recua com o andarilho, o desenvolvimento possível que separa
-, não só o diálogo é possível quando os interlocutores não compar-
aquele que fala ou age de seus funcionamentos habituais. A motrici-
tilham as mesmas significações, mas essa é, inclusive, a condição de
dade do inacabado é que envolve os previsíveis da fala no que ainda
seu desenvolvimento: "Na vida, tudo é diálogo, ou seja, oposição
lhe escapa, levando o sujeito a correr o risco de se encontrar comple-
dialógicà' (Bakhtine, 1970a, p. 84). O que compartilhamos não é
tamente exposto. Para retomar as palavras de F. François: "Aí, em vez
tão interessante quanto o que não compartilhamos (Bender, 1998,
de um manifesto e um oculto, de um significante e de um significado,
p. 193). O que suscita o interesse de Bakhtine, como o de Dostoi:e-
existe, de preferência, algo difícil de dizer" (1998, p. 26).
vski, não é tanto mostrar o homem em acordo com o outro, mas
É uma questão de vida ou de morte: desprendida dessa pers-
esse mesmo homem dialogando a despeito do outro, dele mesmo e
pectiva que lhe é apresentada pelo real, a palavra morre, escreve
de suas próprias intenções, refratário à síntese, e isso em nome da
Bakhtine. Sua veracidade-se deve a essa tensão que é a origem do
busca no real do que é verdadeiro ou falso, justo ou injusto, bom ou
diálogo. Eis o que, talvez, levou Todorov a escrever: "Para a crítica
ruim, eficaz ou não. À procura de outra coisa para viver e fazer al-
dialógica, a verdade existe, mas não se tem sua posse" (1984, p. 21).
guma coisa de sua vida: o outro gesto possível, o outro objeto, a
De qualquer modo, Bakhtine teve a precaução de utilizar duas pa-
outra palavra, a outra ideia, a outra atividade, a outra possibilidade
lavras diferentes em russo para distinguir essa verdade primeira -
236 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Provocar o diálogo 237

que nunca será esgotada por nenhum conhecimento - da verdade zação da reciprocidade, da comunidade ou do coletivo, em Bakhtine,
teórica e do saber. Ele se serviu de istina para a verdade, teórica e de mas, sobretudo, a preocupação com o acontecimento que é capaz
pravda para a verdade do ato comprometido no acontecimento, ou de conferir-lhes um devir ao obrigar a comunidade e o coletivo a se
seja, na recriação do "dado" (Bakhtine, 2003, p. 13). Na sua esteira, superarem a si mesmos. Dito em outros termos, na tentativa de re-
pode-se propor olhar a verdade de uma atividade dialógica dife- chaçar os limites da objetividade, são também os limites da subjeti-
rentemente da conformidade com um objeto externo de referên- vidade que recuam. Maior objetividade por uma maior subjetivida-
cia. A verdade seria, de preferência, o desenvolvimento de novas de e inversamente, tal parece ser o compromisso bakhtiniano. Seria
possibilidades de pensamento, a produção de algo novo, a inven- possível exprimi-lo de outro modo: um pouco de objetividade nos
ção de uma possibilidade de fazer ou dizer de outro modo. Ela se afasta da subjetividade, muita objetividade nos aproxima dela. "No
assinala por uma diferente intensidade do diálogo. Essa atividade mundo, ainda não se produziu algo de definitivo", escreve Bakhtine
verdadeira, ou ainda, autêntica, na qual a última palavra nunca é (1970a, p. 343). Não renunciar a apoderar-se da objetividade do
dita (Scheller, 2003; Prot, 2003; Bournel-Bosson, 2005) marca ave- mundo à procura do que excede a verdade do momento, à procura
racidade do diálogo, a liberdade diante das aparências da doxa do que ainda é impossível fazer ou dizer - tal é, talvez, a significação
(Amossy, 2005; Litim, 2006; Moirand, 2007). Por isso, de duas coi- essencial do dialogismo bakhtiniano, muito próximo, aliás, nesse
sas uma se impõe: ou bem renunciar, simultaneamente, à verdade aspecto, do transformismo vygostkiano: "É somente em movimen-
e ao próprio diálogo; ou então, sem renunciar nem a uma, nem ao to que um corpo mostra o que é" (Vygotski, 1978, p. 65).
outro, assumir "o duro combate dialógico com fronteiras flutuan-
Responder às convocações do real continua sendo, sem dúvi-
tes" entre as vozes, não para comemorar o concerto das vozes en-
da, o que há de mais humano no homem. Isso é particularmente
quanto tal, mas para fornecer uma história à objetividade 1. Eterna-
verdadeiro para uma comunidade porque constitui o que a obriga a
mente, inacabada.
levar em conta suas possibilidades e os limites das mesmas, a supe-
Esse inacabamento concebido por Bakhtine como uma pos- rar, por assim dizer, sua ingenuidade e suas ilusões. Mas a resposta
sibilidade oferecida ao surgimento inesperado e imprevisto da ver-
a essa convocação, justamente por ser séria, não pode - salvo cor-
dade está na origem da teoria dialógica examinada aqui. Sem o ho-
rendo os maiores riscos - "levar-se a sério" nas redes do espírito
rizonte da verdade que se deve procurar e, ao mesmo tempo, com a
categórico. V. Bibikhine percebeu, sem dúvida, o essencial: "O atra-
certeza de nunca ser capaz de "segurá-la': o diálogo é desestabiliza-
tivo de Bakhtine consiste no fato de ele não ter abandonado o pata-
do. Soa "falso". O diálogo, ao soar "afinado", não visa à expressão de
mar da verdade que seria incapaz· de se fixar e por se ter esforçado
uma subjetividade que confessa seus limites fazendo apelo para isso
em levar os outros a compreender que há um espaço e um entusias-
ao outro, como ocorre em Jacques, mas sustenta e organiza a paixão
mo diferentes daqueles que os homens se tinham resignado a com-
de apoderar-se da objetividade do mundo. Não há nenhuma ideali-
preender. O riso é a denominação convencional desse entusiasmo
inexpugnável" (2003, p. 149-150). A verdade está no riso de Rabe-
1
Aliás, Bakhtin considera que relativismo e dogmatismo são mais gêmeos que inimi- lais que purifica da esclerose e desentulha a via (Bakhtine, 1970b;
gos. Ambos excluem qualquer diálogo autêntico, tornando-o inútil, já que não há verda- Werthe, 2001). Mais prec!samente, o riso assinala a veracidade da
de a procurar (relativismo), ou impossível por já ter sido encontrada (dogmatismo). Este
é, certamente, um monólogo; por sua vez, o relativismo limita-se sempre a multiplicar atividade, se quisermos, como é proposto por Bakhtine ao utilizar
indefinidamente os monólogos até que estes se degradem em solilóquios. Volochinov istina e pravda (Vasylchenko, 2004, p. 623) para distinguir verdade
resumiu muitíssimo bem a tese do círculo bakhtiniano: "A verdade só é eterna enquanto
evolução eterna da verdade" (1977, p. 218). Sobre este ponto, ver também as análises de teórica e verdade na relação com o real. Diante das intimidantes
J.-P. Darré (2001), de V Bibikhine (2003) ou, ainda, de L. Filliettaz (2001, p. 321). verdades autorizadas e convencionais, vamos deixar livre a estrada:
238 Provocar o diálogo 239
Terceira Parte Ação e conhecimento: metodologia e métodos

"Todos os trajes existentes são demasiadamente apertados para o sobre um gesto de ofício. Pode-se, então, considerar que, nessee
homem e, portanto, cômicos" (1978, p. 470) 1. quadro, as "paixões" do ofício, mantidas pelo pesquisador, servem
de suporte à transferência dos recursos profissionais de um sujeito
Para nós, de qualquer maneira, a relação se estabelece assim:
para outro (Yvon, 2003). Aqui, especialmente- como bem obser-
não é a verdade teórica que pode explicar a atividade real. É o real
vou Spinoza de maneira geral (1965) -,ninguém conhece, de ante-
da atividade dialógica, na sua veracidade e autenticidade, que deve
mão, os afetos e os conceitos de que é capaz. Trata-se de uma ques-
explicar-se - no duplo sentido do termo - com a verdade teórica.
tão de experimentação bem longa 1• Eis por que o dispositivo
Esse é precisamente o sentido do gênero de análise do trabalho que
metodológico, apresentado mais adiante, poderia ser qualificado
desenvolvemos na clínica da atividade, seu espírito mesmo: quando
como clínico-desenvolvimentista (Clot, Fa1ta, Fernandez & Schel-
não se "trapaceià' o real, as "verdades" estabelecidas são submetidas
ler, 2001; Clot, 1999c; Fa"ita, 1997). A partir de apresentações ante-
à prova. Utilizando o dispositivo técnico das autoconfrontações
riores, ligeiramente retocadas (Yvon & Clot, 2003), pode-se descre-
cruzadas, descritas mais adiante, delimitamos artificialmente um
vê-lo em várias fases, por sua vez, decompostas em várias etapas.
perímetro interlocutório em que essa experiência se possa tornar
possível. Ele é destinado a produzir e mobilizar novos recursos dia- A primeira fase compreende:
lógicos para a transformação das situações de trabalho comuns. Ve- - a constituição de um coletivo de profissionais voluntários.
remos, mais abaixo, como conceituamos as relações entre esse arte- Com os pesquisadores, eles compõem o que chegou a ser
fato metodológico e a atividade de trabalho habitual. J. Boutet, B. designado como "uma comunidade científica ampliadà'
Gardine M. Lacoste mostraram que, entre os obstáculos encontra- (Oddone et al., 1981);
dos no estudo da fala no trabalho, "um dos mais importantes refere- - a observação das situações de trabalho, aspecto que será
se à pluralidade dos contextos em que se desenrola a atividade" retomado mais abaixo;
(1995, p. 38). De fato, procuramos aqui transformar esse obstáculo - a determinação da sequência de atividade comum para a
em recurso; mas, para começar, vamos descrever o dispositivo téc- gravação em vídeo.
nico da autoconfrontação cruzada.
Nessa primeira fase, a atividade é objeto de uma minuciosa
observação com consequências psicológicas indiretas, em geral, in-
• 4. A AUTOCONFRONT AÇÃO: suspeitadas. Voltaremos ao assunto. As análises são transportadas
UMA EXPERIMENTAÇÃO DIAlÓGICA. ao nível do coletivo para serem objeto de uma elaboração. Por isso
mesmo, procuramos "desnaturalizar" a atividade. Em cada circuns-
A realização das autoconfrontações tem dois pré-requisitos: a insta- tância, redescobrimos que o sujeito no trabalho traz e transporta
lação de um "plurilinguismo" profissional no ambiente de trabalho uma história e uma experiência que a observação exterior confun-
que se refere às maneiras de fazer e dizer e a definição de uma espécie de, de forma demasiado rápida, com um conjunto de automatismos
de jogo do "passa-anel* dialógico: "objeto-de-ligação" em torno do e rotinas. Na realidade, estes se apoiam em escolhas e em um com-
qual se pode enrolar e se desenrolar a confrontação entre "experts" promisso subjetivo. A primeira fase, portanto, procura instruir, do
ponto de vista individual e coletivo, essa redescoberta da experiência,
1
M. Aucouturier havia observado acertadamente: o riso de Bakhtin, "em vez de pes-
soas ou instituições particulares, atinge a existência inteira, incluindo o escarnecedor"
(1978, p. 15).
1
Para Spinoza, o esforço para aumentar o poder de agir é inseparável de um esforço
para fornecer o maior suporte ao poder de ser afetado (1965, V, 39). Na "Introdução':
* No original, "furet': ou seja, furão; no caso concreto, esse termo designa o objeto
mais acima, já vimos a importância desse ponto.
utilizado no jogo do passa-anel. (N.T.)
240 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Provocar o diálogo 241

de sua riqueza, assim como de seus limites e dilemas. E isso à pro- em seguida, interpessoal (Scheller, 2003), quando cada sujeito co-
cura do objeto-de-ligação "difícil de explicar': menta a atividade de seu colega de trabalho. Nessas circunstâncias,
A segunda fase se desenrola em três etapas: cada um observa, na atividade do outro, a própria atividade, reen-
- gravação em vídeo de alguns minutos de uma sequência contrando-a sem a possibilidade de reconhecê-la completamente.
da atividade. São apresentados, assim, determinados re- É, ao mesmo tempo, a mesma e não é a mesma, o que a torna inde-
gistros da atividade que serão objeto de repetidas análi- pendente de cada um dos protagonistas do diálogo. O comentário
ses; cruzado orienta os diálogos para a confrontação das "maneiras de
- confrontação do profissional com a gravação em vídeo de fazer" diferentes a fim de atingir os mesmos objetivos ou fixar-se
sua atividade na presença do pesquisador (autoconfronta- em outros. Os trabalhadores em questão fazem, então, a experiên-
ção simples); cia do plurilinguismo profissional. O pesquisador procura acompa-
- confrontação do mesmo profissional com a mesma grava- nhar essa exploração dos conflitos e das dissonâncias da atividade.
ção, dessa vez, na presença do pesquisador e de um colega Outros gestos possíveis, tendo permanecido insuspeitos, podem ser
que já se confrontou, também, com sequências de sua pró- imaginados e até mesmo "repetidos" nessa confrontação consigo e
pria atividade (autoconfrontação cruzada). com o outro. Eles podem ser "tomados ao outro". Assiste-se, quando
se consegue "segurar" esse quadro dialógico, à abertura de zonas de
Por conseguinte, a segunda fase é destinada a coletar dois ti- desenvolvimento potencial da atividade.
pos de registros em vídeo: os da atividade e os da confrontação dos A terceira fase permite deslocar a confrontação e fazê-la "su-
pares com os registros da atividade. O pesquisador não procura bir" ou "descer" para outros estágios da ação engajada:
compreender por que se fez o que é feito. Essa "verdade" não é dire- - o coletivo profissional de partida;
tamente acessível. Ele procura, de preferência, levar os trabalhado- - o comitê de monitoramento da intervenção;
res a se interrogarem sobre o que eles observam da própria ativida-
- o coletivo profissional ampliado ou, seja, o conjunto dos
de. Em outras palavras, ele os convida a descrever o mais
pares que se submetem às mesmas provas profissionais.
precisamente possível os gestos e as operações observáveis na gra-
vação em vídeo até que se manifestem os limites dessa descrição, até
que a verdade estabelecida seja flagrada na veracidade do diálogo, Esse é o momento da restituição das análises ao coletivo com
pela autenticidade dialógica. A decomposição dos gestos pelo pro- a ajuda dos documentos de vídeo de trabalho. A confrontação entre
fissional adquire, assim, um estatuto completamente diferente. Em os diferentes meios abordados pela pesquisa (incluindo, os próprios
vez de isolar elementos da atividade, cuja lógica deveria ser recom- pesquisadores) é despertada, também, pelos limites do trabalho de
posta pelo pesquisador, o sujeito desfaz e refaz os vínculos entre o interpretação da atividade concreta que mantém todos os protago-
que ele vê fazer, o que há a fazer, o que gostaria de fazer, o que po- nistas completamente expostos. Ou, de preferência, que os expõe
deria ter feito ou, ainda, o que seria a refazer. Ou seja, o resultado da aos eventuais prazeres da descoberta. Esse movimento de confron-
análise não leva, em primeiro lugar, aos conhecimentos da atividade, tação dialógica sobre a atividade de trabalho é, a priori, ilimitado. A
mas, quase sempre, aos espantos em torno de acontecimentos difíceis última palavra não pode ser dita. Mas a experiência mostra que esse
de interpretar de acordo com os cânones do discurso convencional. A movimento interpretativo deve enfrentar numerosos obstáculos,
atualização desses "anéis dialógicos" permite que os sujeitos voltem em particular, ao encontrarem seu lugar na história do meio e do
seus comentários, também, para eles. Tal comentário se torna, então, coletivo profissionais. Às vezes, contra os previsíveis genéricos ha-
o instrumento de uma elaboração psíquica, inicialmente, pessoal e, bitualmente mobilizados.
242 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Provocar o diálogo 243

• 5. CLÍNICA DA ATIVIDADE DIALÓGICA • Uma questão vem então, legitimamente à mente. Se o diálogo
I
é instável, por que essa vontade de tentar colocá-lo entre parênteses
Três fases da ação acabam de ser descritas. Vamos concen- na autoconfrontação cruzada? Não se corre o risco de desrealizá-lo,
trar-nos na fase que organiza explicitamente o diálogo 1• Ao criar o justamente impondo-lhe formas convencionais de realização? Aqui,
artefato dessa segunda fase, descrita mais acima, procuramos ser o em segundo lugar, gostaríamos de responder a essa questão. De
menos ingênuo possível. Vamos partir- no duplo sentido do termo fato, para nós, a polifonia não é um fim em si mesma. O que conta,
-da distinção entre diálogo realizado e real do diálogo. Na luta con- sobretudo, através do plurilinguismo profissional que procuramos
tra uma compreensão estreita do dialogismo concebido como dis- organizar na clínica da atividade, é que o coletivo de trabalho não se
cussão ou conversação localizadas, para nós o enunciado não é a resigna às verdades do momento. O que conta é o que ainda não se
reação mecânis;a, tampouco o diálogo é a reação em cadeia, aliás, consegue dizer acerca do real da atividade: esse "difícil de dizer"
criticada por Bakhtine na linguística descritiva dos behavioristas com o qual, talvez, fosse possível fazer algo de diferente daquilo que
(Bakhtine, 1984, p. 333). O real dialógico não coincide com a rela- se faz. Assim, organizamos o diálogo entre os trabalhadores e esse
ção que existe entre as réplicas no encadeamento do diálogo reali- obstáculo, mas também entre eles sobre esse obstáculo. Esse é o mo-
zado. Porque dois enunciados - separados, um do outro, no espaço tivo pelo qual esse diálogo não é, em momento algum, uma luta que
e no tempo, sem nada saberem um do outro - podem revelar-se na se apazigua. No gênero de análise do trabalho, abordado aqui, o
relação dialógica real (Bakhtine, 1984, p. 334; Fai'ta, 1999). Dito por "difícil de explicar" é, por assim dizer, o anel do jogo dialógico. Se o
outras palavras, a ingenuidade é um dos piores inimigos da análise pesquisador mantiver com firmeza as regras do gênero, esse "difícil
dialógica. O diálogo é nômade. Ele não se mantém estável. De acor- de representar" torna-se, então, um "objeto-de-ligação" (Tosquelles,
do com as palavras de F. François, até mesmo, "o foro íntimo daque- 2003, p. lll), que se desloca no diálogo entre as réplicas, de uma
le que age está, ao mesmo tempo, em outro lugar. O problema não é réplica a outra. Ele participa do diálogo já que é seu próprio limite.
estabelecer mundos separados e descrever cada um deles, mas de se Aqueles que dialogam só conseguem fazer recuar esse limite ao de-
interrogar sobre suas relações" (1998, p. 22). D. Falta esclareceu, senvolverem sua curiosidade. A veracidade do diálogo se coloca
também, perfeitamente esse fato (1999, 2001). Mais abaixo, vamos nessa fronteira: fala-se e, ao mesmo tempo, sente-se, procura-se ver,
retomar esse problema do nomadismo dialógico. Mas, desde já, fazer ver ou fazer sentir. Essa fronteira flutuante mantém o diálogo
lembremos que Bakhtine citava, de bom grado, Dostoi'evski: "O tenso 1• Trata-se de um limite da linguagem no interior da lingua-
presente não esgota toda a realidade porque a maior parte dessa gem, no próprio diálogo realizado. Mas esse limite não está espe-
realidade existe sob a forma da palavra futuro secreto ainda não pro- cialmente fora da linguagem, nem fora do encadeamento das répli-
nunciadà' (1970a, p. 140). Não se pode senão acompanhá-la. De cas. Ele é, de preferência, seu exterior, um exterior da linguagem que
fato, na autoconfrontação, jaz um paradoxo: para analisar a ativida- não está fora dela2 • Esse exterior está, entre duas réplicas, no diálogo
de, tem de se olhar para trás; mas, re-vivida nesse momento, isso só realizado o momento de deslocamento que nos faz passar de uma
é possível ao olhar para diante.
para outra. Uma na outra, uma para além da outra, as réplicas se

1
É, evidentemente, algo de mutilante. A intervenção na clínica da atividade, como 1
veremos na "Conclusão", está inscrita em uma temporalidade completamente diferen- No final de Pensamento e linguagem, Vygotski observa, criteriosamente, que as
relações entre "consciência pen~ante" e "consciência que sente" são, na vida psíquica, a
te da temporalidade da autoconfrontação enquanto tal. Essa última limita-se a ser,
inclusive, seu instrumento. O esquecimento desse aspecto é cair no fetichismo das origem do movimento das palavras (1994, p. 499).
2
técnicas, tão disseminado atualmente; apesar disso, continua sendo indispensável As observações, mais abaixo, são inspiradas na leitura de um texto de G. Deleuze
compreender o instrumento utilizado na intervenção. Eis o que o capítulo precedente sobre os principais conceitos de Michel Foucault (Deleuze, 2003, p. 226-242). Domes-
mostrou, também, a propósito da instrução ao sósia. mo autor, ver também, Crítica e clínica (1993).
244 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos 245
Provocar o diálogo

produzem sob o impacto de um exterior que aprofundao intervalo do diálogo se decide na relação da linguagem com seu exterior, com
entre elas. Esse desenvolvimento se realiza nas réplicas que, sem ele, o que há, pelo menos durante algum tempo, de impossível na lin-
nada teriam para encarnar ou executar. Mas, inversamente, sem es- guagem ou, pelo contrário, do que por seu intermédio se torna su-
sas realizações, tal desenvolvimento teria permanecido transitivo, bitamente pensável ou visível.
instável, volátil, exposto à extinção. Assim, o diálogo realizado se É possível, talvez, avaliar melhor o motivo pelo qual, mais
refere efetivamente a "outra coisà' que não se reduz ao sentido dos acima, havíamos escrito que se deve partir, no duplo sentido do
enunciados, nem ao referente das proposições. Essa "outra coisà' termo, da distinção indispensável entre real dialógico e diálogo re-
não diz respeito à verdade dos enunciados, mas à veracidade do alizado. Se não se opera essa distinção, confundindo-os, reduz-se
diálogo. É isso que designamos como o real do diálogo a respeito do ao silêncio a polifonia das vozes na interlocução observável. Corre-
qual gostaríamos de sublinhar que ele não está fora do diálogo rea- se o risco de perder, assim, o trabalho psíquico diante do real. Mas
lizado, mas é seu exterior. Portanto, não há nenhuma possibilidade o risco não é menor se essa distinção for tomada ao pé da letra, ao
de ter acesso a ele se não se focaliza seriamente a realização das fetichizá-la, se for degradada em oposição metafísica (Bakhtine,
trocas em torno do que não se consegue dizer, em torno do que 2003, p. 86; Bender, 1998, p. 184). Amputa-se, então, de toda a pro-
parece, inicialmente, impossível de dizer. fundidade, de toda a grandeza o diálogo realizado. Ele se torna uma
Nas autoconfrontações cruzadas, a montagem das imagens rotina. Fica desprovido das dúvidas que ele faz nascer e supera; por-
de vídeo relativas à atividade é um procedimento concebido para tanto, é privado de qualquer criatividade e, finalmente de sua histó-
superar tal dificuldade. O trabalho do pesquisador consiste, tam- ria, ou seja, de sua veracidade. Nada o impõe (Kostulski, 2001; Kos-
bém, em "provocar" sua análise. E isso a fim de preservar todas as tulski & Prot, 2004). O trabalho de ligação/desligamento psíquico
possibilidades de desenvolvimento para o real do diálogo no inte- (Scheller, 2003) pode perder-se, de novo, nessa segunda operação.
rior do diálogo realizado. Assim, realizando-se, o real do diálogo se Assim, deve-se considerar essa diferença entre real e realizado não
desenvolve. O diálogo realizado, ao enfrentar o real que lhe escapa, como uma antinomia da razão dialógica, mas como uma defasagem
pode também projetar-se para além de si mesmo. Ou usando outros histórica na temporalidade do diálogo. Caso contrário, só nos resta
te~mos, até mesmo no parêntese artificial que constitui a autocon- aceitar o vaivém, sem surpresas, entre um real dialógico saturado de
frontação cruzada, o diálogo é nômade. Ainda que nessa situação, vozes, mas inaudível, e um diálogo realizado barulhento, mas mo-
ele não consiga manter-se estável. No decorrer da interação, odiá- nocórdio. Muito pelo contrário, pode-se pensar que essa defasagem
logo realizado nem sempre desempenha a mesma função: de recur- e essas migrações funcionais (Vygotski, 2003, p. 143, 145, 152) -
so para enfrentar e superar o que não se consegue dizer, ele pode que, na troca, veem como a atividade psíquica muda sistematica-
tornar'-se origem de um novo "difícil de dizer", aprofundado no de- mente de lugar - indicam perfeitamente a "motricidade do diálogo"
correr da atividade, na linguagem e que, uma vez mais, impele o (Clot & Falta, 2000).
diálogo até seu ponto de suspensão. O que, de novo, apresenta-se Vygotski mostrava que há um devir, em parte, imprevisível,
como difícil de dizer e compreender é um acontecimento que afeta do pensamento na palavra, e vice- versa (Vygotski, 1997, 2005). No
o desenrolar dialógico e lhe pertence tanto mais estreitamente que diálogo em torno do que ainda não se consegue compreender, nem
o dobra, despertando nele vozes que haviam ficado em silêncio. A dizer acerca do trabalho, há também um futuro do real no realiza-
heteroglossia recebe novo impulso por esses desvios de linguagem. do, e inversamente. Esse_ é o próprio campo do desenvolvimento
O "duro combate dialógico" trava-se nas três frentes definidas mais psíquico de novas ligações (Clot, 2003). E é esse campo que baliza o
acima. Assim, o devir da atividade psíquica se faz ou não se faz, é dispositivo técnico que serve à metodologia descrita até aqui. O pen-
visível ou se oculta através do movimento das palavras que o expri- sarnento ou, melhor ainda, a nova ideia caminha com as palavras,
mem ou, pelo contrário, o oprimem. De qualquer modo, o futuro por meio das palavras, entre as palavras, para além das palavras e, às
246 Terceira Parte Ação e conhecimento: metodologia e métodos
Provocar o diálogo 247

vezes, contra as palavras. Voltamos a encontrar Bakhtine: a ideia nizada na perspectiva de impelir a repetição para além da repetição.
"não é uma formação subjetiva individual, com uma 'residência O dispositivo repousa em uma instrumentação da ação conjunta en-
fixa' na cabeça do homem; ela é interindividual e interdubjetiva; ela tre os operadores e nós, por um lado, e, por outro, entre os próprios
"está'' não na consciência individual, mas na comunicação dialógica operadores. Pode-se dizer que, no quadro metodológico que propo-
entre as consciências. A ideia é um acontecimento vivo que se de- mos aos trabalhadores em questão para responder à sua demanda,
senrola no ponto de encontro dialógico entre duas ou várias cons- esses trabalhadores são obrigados, em primeiro lugar, a incorporar e,
ciências" (1970a, p. 137). Assim, a ideia que se produz no diálogo em seguida, a mobilizar um gênero de atividade que os coloca, para
realizado é um acontecimento vivo que desenvolve o real do pensa- retomar a expressão de Vygotski (1978), "uma cabeça acima deles
mento, um novo meio para pensar. mesmos"; o que lhes é interdito pelo trabalho comum ou, até mes-
mo, que eles se interdizem com demasiada frequência.
Esse quadro metodológico é, em primeiro lugar, o instru-
m 6. UM GÊNERO ESPECIALIZADO? •
mento de um gênero de atividades científicas que pode se tornar,
Logo, nesse quadro, a clínica da atividade é um instrumento de de- por seu turno, instrumento da sua própria ação, quando elas conse-
senvolvimento do pensamento, origem potencial de um desenvol- guem, por seu intermédio, operar uma reviravolta essencial: aquele
vimento da experiência. Mas ela necessita de uma aprendizagem: a que troca os protagonistas da observação e da interpretação. O que
conta é que o sujeito ou os sujeitos, "observados" em seu trabalho
apropriação de um gênero de atividades (Bernié, 2001; Clot, 1999c)
pelo pesquisador, venham a se tornar, finalmente, os observadores
que é como um "processo de interação formativa'' (Bronckart, 2001,
da própria atividade. Porque é por essa transformação, e somente
p. 150). Trata-se de uma apropriação das obrigações dialógicas, fi-
no decorrer dessa transformação, que a experiência vivida pode vir
xadas pelo dispositivo, através da aparelhagem técnica e discursiva
a ser um meio de viver outras experiências. É assim, e somente as-
que permite acioná-lo.
sim, que se revela um desenvolvimento subjetivo da experiência
Então, aqui, a função do pesquisador é essencial porque, em
vivida, ou seja, um desenvolvimento paradoxal e simultâneo da
sua atividade própria, ele encarna as restrições e as regras do dispo-
consciência e do inconsciente, como já pudemos mostrar em outros
sitivo dialógico. Nesse sentido, ele é, para os sujeitos, um meio de livros (Clot, 2003a, 2006).
domar o diálogo e seu objeto. A apropriação faz-se, assim, por "imi-
De fato, uma das principais molas propulsoras do dispositivo
tação" aqui entendida à maneira de Vygotski: como preparação para
da autoconfrontação cruzada é criticar a ilusão de uma relação di-
continuar sem pesquisador o que os sujeitos começam a realizar
reta e transparente com a atividade comum de trabalho. A imagem
com e em colaboração com o pesquisador. Essa "imitação" não
já não permite tal postura. Ela é destinada a ser retificada, graças à
ocorre, aliás, em mão única já que o diálogo, em situação de auto-
apropriação pelos sujeitos de um gênero de atividade dialógica que
confrontação cruzada, procura "reencontrar" e, quase sempre, deve
organiza a controvérsia sobre os dilemas da atividade comum. Atra-
restaurar a função psicológica do coletivo comum de trabalho no
vés da imagem. Com F. François, pensamos que não se pode "nunca
que há de essencialmente dialógico.
colocar diretamente em relação a língua com a extra -língua'' e que
O dispositivo pode, então, operar como um quadro fundado "tal relação só se manifesta em gêneros de discursos particulares"
na repetição das atividades habituais no interior de um novo contex- (François, 1998, p. 9). A_autoconfrontação cruzada tem a ver com
to, endereçadas a novos destinatários (pesquisadores e pares). Essa um gênero particular de atividades - nduindo gênero de discursos
descontextualização/recontextualização das atividades realizadas é - que aos previsíveis genéricos comuns sobrepõe uma espécie de
um processo que se pode qualificar, à maneira de Bernstein, como plurilinguismo profissional orquestrado contra qualquer canoniza-
"repetição sem repetição" (Bernstein, 1996). Realmente, ela é orga- ção dessa atividade comum, a fim de provocar sua reacentuação
248 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos 249
Provocar o diálogo

psíquica na interlocução. Assim, esse gênero de análise do trabalho linguagem por intermédio de 'gêneros' especializados para esse
não está orientado para a atividade observável unicam1ente para e efeito" (1994, p. 165). A autoconfrontação pode ser, no mesmo pla-
pelo conhecimento, mas em cima da atividade provocada quando no, considerada como um gênero especializado.
os interessados dirigem suas análises para essa atividade observada. A apropriação desse gênero especializado, inicialmente fonte
O conteúdo da atividade de análise dirigida para a atividade co- de preocupações para os sujeitos, pode tornar-se um recurso para o
mum é que se torna o objeto desse gênero de análise do trabalho. desenvolvimento da respectiva atividade. Mas temos de voltar um
Nesse caso, tem-se a obrigação de se referir à atividade não como a pouco atrás se desejarmos compreender o motivo pelo qual mobili-
uma coisa, mas para agir com ela e sobre ela. zamos esse "gênero especializado': Pois ele não tem sua razão em si
Um ponto é, no entanto, essencial para completar a caracteri- mesmo. Ele não é senão a resposta que encontramos para o que se
zação desse gênero de atividade dialógica que deve ser apropriado poderia designar como o paradoxo da observação. Voltemos, por-
por nossos interlocutores. Ele está orientado, simultaneamente, tanto, à primeira fase.
para o real do trabalho- o que cria problema e continua sendo di-
fícil de explicar- e para o próprio movimento dialógico. A motrici-
dade do diálogo pede de empréstimo a essa tensão sua energia e, no E 7. o SUBDESTINATÁRIO NA OBSERVAÇÃO E

melhor dos casos, vai desenvolvê-la. Os sujeitos em questão se apro-


priam desse gênero, aprendendo a se servir dele, com a ajuda do O aspecto mais importante na observação inicial da atividade, por
pesquisador que, em sua companhia, transforma o trabalho realiza- ocasião da primeira fase descrita mais acima, é não tanto a observa-
do e observado em instrumento de troca entre os sujeitos para que ção, mas a diferença entre as observações, não é tanto a primeira
esses diálogos profissionais venham a tornar-se, por seu turno, no observação, mas a segunda que toma a primeira como objeto. Va-
vos instrumentos psicológicos do trabalho efetivo, para além do pe- lendo de outras palavras, o objetivo consiste em desenvolver nos
rímetro interlocutório. Aí, nada de espontâneo. O quadro metodo- trabalhadores a observação de sua própria atividade. O mesmo para
lógico no qual se pode apoiar fixa obrigações. Essas restrições se a interpretação: a meta não é a interpretação da situação pelo pes-
tornam recursos somente quando o invólucro genérico desse qua- quisador, é o desenvolvimento da interpretação da situação pelos
dro é apropriado pelos sujeitos. Definindo, assim, o objeto da apro- próprios sujeitos. Então, a análise da atividade, iniciada pelo inter-
priação que organizamos com nossos interlocutores, pode-se falar veniente-observador, não é mais a origem da ação, mas um recurso
de uma aprendizagem genérica, fonte potencial de desenvolvimen- para apoiar a experiência de modificação do trabalho por aqueles
to. Seria possível, inclusive, dizer que esse quadro metodológico se que o fazem. Evidentemente, para proceder assim, a observação
encontra, relativamente à atividade cotidiana analisada, em uma re- deve ser precisa e construída com todo o rigor. O detalhe torna-se
lação precisa: a de um "gênero secundário" diante de um "gênero decisivo. M. Bakhtine percebeu perfeitamente o problema: "Uma
primeiro': para falar como Bakhtine (1984). Seria possível dizer, observação viva, competente, imparcial, a partir de um ponto de
também, que a análise da atividade contribui, então, para reavaliar vista qualquer, conserva sempre seu valor e sua significação. A par-
os gêneros que ela atravessa e, até mesmo, para retocá-los, incluin- cialidade e as limitações de um ponto de vista (de um observador),
do os gestos profissionais (Fernandez, 2001). Ela envolve o desen- eis algo que pode sempre ser retificado, completado, transformado
volvimento. De qualquer modo, voltamos a encontrar, aqui, os pro- (inventoriado) com a ajucia dessa mesma observação a partir de um
cessos descritos por B. Schneuwly em um contexto completamente ponto de vista diferente" (Bakhtine, 1984, p. 334). Inversamente, "o
diferente, ou seja, o da aprendizagem da língua pela criança: o escri- ponto de vista neutralizado (sem observação nova, viva) é estéril"
to age sobre o· oral dandoàs crianças "uma capacidade vigorosa- (ibid., p. 334). Mas temos de fazer a tentativa de modo a tirar todas
mente crescente de controlar o próprio processo de produção da as consequências dessa crítica do fetichismo da observação.
Provocar o diálogo 251
250 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos

outro pode, nesse caso, tornar-se o instrumento psicológico de uma


Em certo sentido, tudo tem início neste aspecto: qualquer ob-
observação de si por si mesmo, cujo meio essencial é o diálogo in-
servação do trabalho de outro é uma ação sobre o outro. E, nessa
terior. Por esse simples fenômeno, a observação ganha uma dimen-
qu~lidade, ela possui dois destinos, está na origem de um duplo
são subjetiva que, em geral, é subestimada muito frequentemente:
e~elto. A observação do trabalho produz resultados para o interve-
sem deixar de ser exterior, o observador se torna, igualmente, inte-
mente do ponto de vista de conhecimentos, mas ela não produz
rior. Ele é dublado pelo próprio sujeito, cuja atividade, paradoxal-
apenas conhecimentos. Ela produz, também, atividade no observa-
mente, desdobra-se em atividade psíquica, ao mesmo tempo, na e
do. Aqui, a análise de H. Wallon, em outro contexto, é preciosa: ''A
sobre a atividade prática. A observação se encontra potencialmente
atenção ,q~e o sujeito sente estar fixada nele parece, por uma espécie
desenvolvida, retomada sob outra perspectiva: ela é retocada por
de contagiO bastante elementar, obrigá-lo a observar-se. Se está em
intermédio da experiência do sujeito observado. Para parafrasear
via de agir, o objeto de sua ação e a própria ação são bruscamente
Vygotski, poderíamos dizer que ela aparece duas vezes: em primei-
suplantados pela intuição puramente subjetiva que ele toma do seu
ro lugar, entre o observador e o observado; e, em seguida, no pró-
próprio personagem. É como que uma inquietação, uma obsessão
prio observado (Vygotski, 1985, p. 111). Em primeiro lugar, no ní-
da atitude a adotar. Trata-se de uma necessidade de se adaptar à
vel social; em seguida, no nível psicológico. Em primeiro lugar,
presença do outro que se sobrepõe ao ato da execução" (1983, p.
enquanto categoria interpsicológica; em seguida, como categoria in-
287). Esse fenômeno de sobreposição merece ser aprofundado do
trapsicológica. Porque o trabalhador observado "começa a utilizar, a
ponto de vista da análise do trabalho.
seu respeito, as próprias formas de conduta que os outros haviam
De fato, também no trabalho, a observação do agente de in- utilizado, em primeiro lugar, para com ele" (Vygotski, 1983, p. 141) 1•
tervenção, visando ao conhecimento, deixa um resíduo, um resto: 0 Ele mobiliza, então, toda a experiência vivida da qual consegue dis-
desenvolvimento da observação no observado. Um dos efeitos mais por como instrumento dessa nova experiência seja boa ou ruim.
descon~e~idos da observação é precisamente aquele que ela provo- Voltando à atividade prática auto-observada, ele pode avançar,
ca na atividade do sujeito observado. Observado em seu trabalho eventualmente, para além dela no decorrer dessa observação para si
ele se observa trabalhando. O desenvolvimento dessa nova ativida~ que é uma forma de colaboração interna consigo mesmo. Aqui, en-
de de observação no observado supera a situação de observação contramos o subdestinatário que a análise bakhtiniana do diálogo
inicial ao sobrepor a esta um novo contexto. Desse modo, a obser- nos havia permitido identificar. Mas vamos deter-nos durante um
vaçã~ do ~sujeito ~m situação tira o sujeito da situação. Contra qual- instante sobre este ponto: a observação para si, no decorrer da qual
quer Ilusao estreitamente ecológica, eis certamente sua ação "situa- o sujeito "falà' a si mesmo como subdestinatário, faz-se convocando
dà', embora de outro modo: simultaneamente, em vários contextos. a voz do observador externo. Dessa maneira, o papel do intervenien-
Não só aqui e agora, mas também depois e em outro lugar. Desse te como destinatário da atividade do "observado" merece ser esclare-
~ont~ de vista, observar a atividade de outro para compreendê-la é, cido. De fato, ele se mistura menos com o diálogo interior deste últi-
1med1~atamente, transformá-la ao incentivar o ou os sujeitos em mo, ele vai, sobretudo, restaurá-lo em torno de novos objetos. Nessa
questao a uma atividade interior específica no próprio momento da matéria, a função do interveniente é, pois, central para re-mobilizar o
atividade exterior. Correndo o risco, como observa também Wallon diálogo do sujeito consigo mesmo, para solicitar os subdestinatários
de ~í provocar antagonismos, além de fornecer a esses sujeitos opor~ e para fazer "falar" as vozes interiores (Prot, 2006). Ele é o organiza-
tumdades eventuais de desenvolvimento. Isso é particularmente dor de uma "retomadà' dialógica (Sitri, 2003): retomada do diálogo
verdadeiro para os profissionais experientes, cuja experiência in-
corporada se encontra, então, "desnaturalizadà' pela observação.
Ocorre que toda observação equivale a interpor à atividade 1 Adotamos a tradução direta do russo para o francês, proposta por L. Seve
(2002, p. 254).
do outro entre o sujeito e sua atividade própria (Scheller, 2003). 0
252 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos 253
Provocar o diálogo

do sujeito com seu "já dito': retomada das palavras de outro e, final- mudar de situação a fim de prosseguir a ação no quadro do que
mente, retomada das réplicas do sobredestinatário coletivo no e designávamos, mais acima, como a experimentação clínica.
I
pelo discurso pessoal. Ou, dito por outras palavras, a mola propul- Qualquer interrupção do desenvolvimento de um diálogo in-
sora do diálogo é estruturalmente exotópica. terior nos sujeitos observados acarretaria forçosamente algum dano
Eis a fórmula perfeita quando, nessas circunstâncias, a cons- para a análise. A compreensão encetada na observação deve, por-
ciência, longe de ser um simples estado mental, é, na ação, como tanto, ter a possibilidade de se beneficiar de novos contextos para se
insiste Vygotski (2003), um eco. Para além de si mesma. Mas um desenvolver. A "motricidade do diálogo" (Clot & Falta, 2000) deve
ponto merece, nesse caso, uma atenção particular. A observação in- ser conservada. Cabe à função do dispositivo da dupla autocon-
terior instilada na análise pelo observador exterior - quase sempre, frontação organizar esse deslocamento dos contextos dialógicos. A
à revelia desse tiltimo, que acredita ser capaz de neutralizar a situa- interferência desses contextos está na origem do desenvolvimento
ção - envolve o observado, igualmente observado por ele mesmo, da reflexão sobre o trabalho para rechaçar seus limites. Nesse caso,
em uma experiência psicológica, até mesmo contra sua vontade. a experiência vivida não é somente desvelada, mas pode eventual-
Uma análise externa que ignore tais efeitos corre o risco, então, de mente mudar de status: tornar-se, na veracidade do diálogo, um
esquecer que a observação produziu não só conhecimentos sobre a meio de viver outra experiência, um meio de desenvolver o "passa-
atividade de outro, mas também, nos sujeitos observados, atividade anel dialógico" no parêntese da autoconfrontação cruzada e, em se-
sobre a atividade. Ao preço de ficar obcecado em relação ao fato de guida, para além desse dispositivo.
que esse movimento indissociavelmente subjetivo e objetivo - ao
qual eles haviam sido convidados - não pode ser interrompido sem
consequências, tanto para esse sujeito quanto para os conhecimentos • 8. O COLETIVO NO INDIVÍDUO:
produzidos. O verdadeiro problema consiste, então, em determinar o A AUTOCONFRONTAÇÃO SIMPLES •
status que o analista do trabalho está disposto a conferir a esse traba-
lho psicológico do observado que se tornou observador-intérprete de A atividade psíquica de auto-observação era uma observação para
sua atividade. Será necessário interrompê-lo correndo o risco de dei- si, um diálogo no sujeito entre todas as suas vozes. A autoconfronta-
xar o observado prisioneiro de um trabalho "encetado': em todos os ção simples propõe um novo contexto em que o sujeito se torna, por
sentidos do termo*. É necessário fazer calar o adversário? sua vez, um observador exterior de sua atividade na presença de um
Quando a observação foi bem feita com base em uma de- terceiro. O comentário das gravações de vídeo relativas ao trabalho
mand~ real dos trabalhadores em questão, um diálogo interior sur- realizado se faz, certamente, por meio das interpretações e das ques-
ge neles a partir do diálogo exterior com o observador. A clínica da tões já formuladas pela auto-observação. Mas essencialmente in-
atividade é, em primeiro lugar, a escolha de transformar esse diálo- trapsicológica, a atividade volta a ser interpsicológica. O vivido, re-
go em ponto de partida da ação, em vez de um ponto cego da inter- vivido em uma situação transformada, troca de lugar na atividade
venção. Essa é a ideia preconcebida de oferecer um novo destinatá- do sujeito. De objeto, ele se converte em meio. Nesse deslocamento,
rio a esse diálogo interior, a essa atividade endógena de observação não se reencontra o vivido anterior. Descobre-se que ele continua
e de interpretação a fim de que eles não se degradem em solilóquio vivo, que não é somente o que havia acontecido ou o que se havia
ou em atividade "reprimidà~ Para atingir tal objetivo, é necessário feito, mas o que não chegsm a acontecer ou o que não se fez e que,
eventualmente, poderia ter sido feito. Nessas conjunturas, uma clíni-
ca da atividade se empenha em organizar as migrações do vivido na
* No original, trata-se de "entamé". Entre os sentidos apontados pelo autor, vale refe- atividade do sujeito para que ele possa fazer a experiência do que ele
rir "fazer incisão em'' e "ferir a reputação de alguém''. (N.T.) é capaz; o que é o único meio de alguém se conhecer melhor.
254 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos
Provocar o diálogo 255

Mas essa nova exterioridade tem efeitos sobre o sujeito. Em conjunto de enigmas religados entre eles (Bruner, 1996, p. 192) que os
posição exotópica em relação a seu trabalho e diante d~ escolhas ~u novatos se esforçam por resolver e que estão à disposição dos experts.
dilemas que ele redescobre em sua atividade, o que era operaçao
Eis o que, aliás, é abordado na experimentação clínica, des-
incorporada e resposta automática volta a ser questão. No diálogo
crita por nós. No momento em que se deve justificar junto do pes-
que ele deve assumir com o pesquisador e para apoiar essa interlo-
quisador determinada maneira de fazer, quer isso seja para ajudá-lo
cução que incide sobre os mistérios de sua atividade, em geral, o
a compreender o "difícil de dizer" ou para se proteger a si mesmo de
sujeito procura "não ficar sozinho': Para dizer isso em um vocabu-
um conflito surgido no momento em que ele faz tal tentativa, o su-
lário comum, ele procura apoio e, na conversação, convoca uma voz
jeito dispõe dessa história coletiva com a qual, então, ele dialoga e
inicialmente estrangeira a esta. Essa voz que se entende, então, nas
que lhe fornece assistência para procurar proceder à análise do que
variações discursivas do "eu" e nas modulações diferenciadas do "a
ele se vê fazendo na tela. Em certo sentido, uma clínica da atividade
gente", mistura-:.se ao diálogo com o destinatário direto que é o pes-
já atingiu, aqui, sua primeira meta. Graças à autoconfrontação sim-
quisador. Essa voz que diz "a gente" no discurso do "eu", fala pelas
ples, foi possível coletar resultados sobre o que um coletivo faz, ou
maneiras de fazer comum no coletivo e com elas. É mesmo, para
não faz, da tarefa prescrita; foi possível ter acesso à sua função de
dizê-lo à maneira de Bakhtine, o "destinatário de emergência"
recurso psicológico na atividade pessoal.
(1984), que havíamos identificado na "Primeira Parte': O sujeito se
Mas, de novo, essa experimentação não tem apenas um resul-
dirige a ele em situação de autoconfrontação simples para respon-
tado. Ela tem, igualmente, um produto do lado do sujeito. Com seu
der às questões que a análise formula a respeito de sua atividade
quinhão de possível e de impossível, o real sai desenvolvido das re-
com o psicólogo. Pode-se adiantar que a convocação desse "sobre-
alizações dialógicas precedentes. Porque nessa situação artificial -
destinatário" na troca significa a entrada na arena de um terceiro
artefato que se torna instrumento psicológico -, o sujeito se obser-
participante vivo do diálogo. Em certo sentido, aí é "o ofício que
vou não só com os próprios olhos - observação interior -, mas com
falà: se entendemos por ofício não só as competências técnicas do
os olhos de um observador exterior que, além de ser o psicólogo, é
sujeito, mas o "interlocutor" ["répondant"] coletivo, garantia da ati-
o "ofício" ou, ainda, o coletivo. E, se esse último lhe deu, sem dúvida
vidade individual. Aliás, o conceito de gênero profissional visa ana-
alguma, um "interlocutor" ["répondant"] no diálogo com o psicólo-
lisar este aspecto: as maneiras de focalizar as coisas e as pessoas es-
go, ele deve agora responder-lhe, até mesmo, responder a esse res-
tabilizadas, pelo menos, temporariamente, em determinado meio
peito. E, nesse ponto, impõe-se uma precisão: o "ofício" em segundo
de trabalho.
plano, essa história, momentaneamente interrompida das maneiras
Voltemos, de forma sucinta, à definição que atribuímos ao so- de fazer, esse invariante de emergência no diálogo aberto no sujeito,
bredestinatário nas nossas análises. Trata-se de um entimema social pode perfeitamente voltar-se contra o efeito perseguido pelo clíni-
construído em uma história coletiva: a parte subentendida da ativi- co. O "destinatário de emergêncià' pode encerrar o diálogo interior
dade que os trabalhadores de determinado meio conhecem e obser- ao sujeito. Nesse estágio, os previsíveis do ofício podem vir colma-
vam, esperam e reconhecem, apreciam ou temem; o que lhes é co-
tar os imprevisíveis do diálogo interior aberto pela auto-observação
mum e os reúne sob condições reais de vida; o que eles sabem que é
e pela autoconfrontação simples. Ocorre que, ainda nesse ponto,
seu dever fazer, graças a uma comunidade de avaliações pressupos-
após a autoconfrontação simples, existem resíduos dialógicos
tas, sem que seja necessário re-especificar a tarefa sempre que ela se
(Scheller, 2001). Na melhor das hipóteses, o trabalho psicológico do
apresenta. É como "uma senhà' conhecida apenas por aqueles que
sujeito continua com esse novo observador exterior que ele carrega
pertencem ao mesmo horizonte social e profissional. Essas avalia-
e cresceu em si. Prossegue a heteroconfrontação (Astier, 2000). Ele se
ções comuns subentendidas adquirem, nas situações incidentais,
observa em sua atividade com os olhos do "ofício" e observa o ofício
uma significação particularmente importante e fazem do ofício esse
com outros olhos. Na pior das hipóteses, o "agente" se tornou um
256 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Provocar o diálogo 257

obstáculo para o desenvolvimento da atividade interior. E é esse quentemente, meio de se tranquilizar. Aqui ele se torna objeto da
exatamente o aspecto abordado e, também, enfrentado pela auto- própria atividade dialógica, novo objetivo que afeta o intercâmbio
confrontação cruzada. entre profissionais. Encontra-se, então, este fato: o objeto do diálo-
go não é, de modo algum, sedentário nessa experimentação clínica.
Em cada etapa, ele realiza funções diferentes que se desenvolvem
• 9. A AUTOCONFRONTAÇÃO CRUZADA: por seu intermédio. Seria esse, talvez, seu interesse. Porque essa ati-
DEVIRES DO SOBREDESTINATÁRIO • vidade migratória é de natureza a restaurar a vitalidade do que po-
demos designar como o segundo ofício ou "ofício ao quadrado": o
Lembremos que se trata de solicitar a um binômio de pares, colegas interlocutor [répondant], garantia da atividade individual, cuja fun-
do mesmo nível de expertise, que comentem sobre as gravações da ção psicológica é assim reencontrada. Capaz de dar novo impulso,
atividade do outro na mesma situação de trabalho. Aqui, frequente- no decorrer da terceira fase, descrita mais acima, ao trabalho gené-
mente, surgem controvérsias com as quais se deve saber lidar. Ao rico sempre potencialmente morto e, portanto, de fazer recuar as
comparar suas maneiras de fazer ou dizer na situação observada, os fronteiras dos subentendidos compartilhados; não por sua negação,
profissionais encontram bem depressa diferenças, às vezes, impor- mas pela via de seu desenvolvimento. Capaz portanto, de rechaçar
tantes para eles. Para além das atividades que já se tornaram ques- os limites do coletivo na e graças à atividade individual. A fim de
tões para cada um, determinadas atividades que, inclusive, não ha- que o interlocutor [répondant] profissional não fale com uma só voz
viam sido objeto de nenhum diálogo com o psicólogo na e, portanto, possa participar do diálogo interior que autoriza cada
autoconfrontação simples, podem converter-se em objeto de con- trabalhador, no plano pessoal, a sentir-se parte integrante e respon-
trovérsias. Elas se tornam, então, passíveis de serem discutidas, e o sável de um "devir-diferente" do ofício. Ao parafrasear Bakhtine,
grão de análise se afina à proporção das diferenças que surgem na poderíamos escrever que, assim, vimos aparecer e se destacar cada
busca do "objeto-de-ligação': na maneira de tentar a explicação do trabalhador no e através do ofício, enquanto simultaneamente o
que é difícil de explicar. Do ponto de vista em que nos situamos, ou ofício se "destacá' em cada um deles, entre eles e através deles. Eles
seja, o do desenvolvimento psíquico nessa fase da experimentação se destacam dele. Ele se destaca deles. Esse trabalho de separação
clínica, o que os profissionais compartilham, então, é menos inte- entre trabalhador e ofício faz surgir outro paradoxo: após essa expe-
ressante que o que eles deixam de compartilhar. A busca da contro- riência, o diálogo interior é ainda mais interior. Em vez de menos, é
vérsia está, portanto, na origem da autoconfrontação cruzada, cuja mais pessoal; e, justamente, porque o compromisso do sujeito no
primeira vítima, se é que podemos nos exprimir assim, é a atraente devir-diferente do ofício é, ainda mais, "desinteressado" (1970a, p.
unidade do "a gente" ['on"]. De fato, nesse momento, o interlocutor 136). O conteúdo mais pessoal no diálogo acabou por se ampliar
[répondant] coletivo deixa de responder, na maior parte das vezes, pela conflituosidade dialógica do social.
às exigências do diálogo inesperado entre os operadores. Nesse plu-
rilinguismo profissional, essa polifonia, em que se desencadeiam
debates de escola, o "a gente" [on] coletivo se torna objeto de traba- .. 1 O. UM DIÁlOGO A DESENVOlVER •
lho e .de questionamentos. E, nessa estilização do gênero profissio-
nal em que se projetam variantes potenciais, as variações sobre os O sobredestinatário ou çlestinatário de emergência nada perde aí.
temas do ofício fazem recuar seus limites. O "objeto-de-ligação" em Ainda melhor, ele pode também sair engrandecido desse processo
desenvolvimento entre os sujeitos está apertado no traje do ofício. dialógico. Poderíamos escrever: ainda mais "falante': O coletivo de
O "a gente" [on] era meio interior de sustentar a interlocução trabalho pode sentir-se um pouco menos prisioneiro das verdades
com o psicólogo na autoconfrontação simples e, até mesmo, fre- do momento, menos inclinado a "abrir o guarda-chuva do gênero"
258 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos

(Clot & Falta, 2000). Finalmente, ainda mais disposto a escutar a


voz de Bakhtine, mencionada por Bibikhine: há um entusiasmo
I
completamente diferente para além do que os homens se tinham
resignado a compreender (2003, p. 150). Nesse sentido, para con-
cluir, poderíamos quase corrigir nossas próprias observações. A au-
toconfrontação, de acordo com o que havíamos escrito, é um gêne-
ro especializado de atividades. Mas, na realidade, ela talvez seja
s s
também - para não dizer, ainda mais - um antigênero. Porque ela d rso
organiza a recusa de qualquer discurso acabado. Eis o motivo pelo
qual, seria po~sível pensar, à maneira de Bakhtine, que o gênero
dialógico da autoconfrontação cruzada visa, sobretudo, contaminar
a atividade comum, não para submetê-la a cânones que não são os
seus, mas para liberá -la de tudo o que é convencional, necrosado,
amaneirado, amorfo, de tudo o que freia sua própria evolução. De
fato, "sobra sempre um excedente de humanidade não realizado':
escreve Bakhtine (1978, p. 470). Um diálogo a desenvolver.

No capítulo precedente, expôs-se o quadro metodológico que permi-


te a realização da autoconfrontação cruzada. Esses diálogos provoca-
dos serão, agora, utilizados como matéria-prima para a pesquisa,
para o estudo do desenvolvimento do pensamento na controvérsia
profissional.

• 1. A PARADA DE UM TREM •

O extrato de protocolo, abaixo (Fernandez, 1999) diz respeito a ma-


quinistas em uma ação particular de frenagem de um trem do subúr-
bio parisiense. Uma situação semelhante de frenagem na entrada de
estação ferroviária contra um parachoque já foi objeto de uma análi-
se, cuja consulta poderá ser bastante útil (Fernandez, 2003). Neste
texto, chama a nossa atenção um diálogo provocado, após a operação,
entre dois sujeitos autoconfrontados a propósito dessa frenagem 1.
Propõe-se, portanto, a transcrição completa de três minutos
de trocas verbais extraídas de um diálogo em autoconfrontação

1
Esse diálogo é objeto, também, de um trabalho em curso elaborado por A. R. Ma-
chado do LAEL da PUC de São Paulo.
260 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Analisar os diálogos 261

cruzada que coloca juntos um antigo e experiente condutor de trem


5. G- Não. Não, não, já que a tração está desligada.
(G) e um condutor mais jovem (J) diante das imagens que mostram
6. J- Mesmo assim.
G na operação de frenagem. No entanto, uma breve "contextualiza-
ção" do problema é indispensável para a compreensão, consideran- 7. G Não!
do que o texto seguinte, sem as imagens, não permite "ver" como o 8. J Você vai ver. Apesar de que, agora, você já não pode tentar, mas ...
diálogo se desenrola entre os maquinistas.
9 G- Mas não, veja bem.
A interlocução entre os participantes se refere, na sequência
1O. J- Quando você coloca sua VI em uma velocidade inferior. ..
escolhida, ao uso da velocidade automática (VI) que, depois de ter
um valor fixado pelo condutor, encarrega-se automaticamente da fre- Com aajuda do controle remoto, o médico do trabalho "congela a imagem".
o
nagem quando trem atinge essa velocidade. Trata-se de um recurso 11. G- Não é bem assim, você não entendeu direito, não entendeu direito.
técnico para a própria frenagem, um "travão': G serve-se dessa ferra-
12. J- Édesse jeito.
menta. J, pelo contrário, conduz "manualmente': não fazendo senão
13. G- Não, você não entendeu direito. Eu ... circulava a120, estamos de acordo?
uso do freio de ar. A confrontação incide sobre a brutalidade eventu-
al da diminuição da velocidade, no primeiro caso, quando se deve 14. J- Sim. Você marcou 100 em sua VI.
combinar os dois tipos de frenagem. A preocupação tem a ver com o 15. G- Desligo minha tração (G refaz, pela segunda vez "no ar" seu gesto habitual de frenagem,
conforto dos passageiros que, na opinião de J, é mais bem garantida voltado para o colega).
quando não se utiliza a VI, como ele, nessas circunstâncias. 16. J Éclaro.
A autoconfrontação cruzada é orientada pelo médico do tra-
17. G- Concorda? Indico 100 na minha VI.
balho. As imagens da frenagem desfilam na tela. O comentário de
um dos maquinistas se alterna com o do outro: 18 J Sim.
19. G Edepois utilizo afrenagem tranquilamente.
1. G- Como vê, estou a 120, indico já 100. 20. J- Tudo bem, mas posso garantir-lhe que, tratando-se de uma frenagem linear, você vai ter
2. J- Sim, estou vendo. solavancos nesse momento.

3. G- Faço meu ... minha desaceleração (simultaneamente, neste instante, Grefaz fisicamente, 21. G- Não.
pela primeira vez, seu gesto "no ar'1 voltado, ao mesmo tempo, para a tela epara o colega) em ...
22. J- Aí, talvez, você tivesse apenas uma diferença de 20 km/h, mas se você tivesse marcado
no freio e, depois, solto o disjuntor.
60.
4. J- Sim, sim, é isso. Estou vendo perfeitamente, mas ... afrenagem ela não ... 7 (nesse instan-
23. G- Não.
te, J imita um gesto acentuado de oscilação do corpo, efeito presumido da frenagem demasiado
brutal para os passageiros). Pelo fato de que você freia com a VI, veja só, a VI é inferior à sua 24. J- Você teria parado desse jeito.
velocidade, muitas vezes há uma frenagem ...
25. G- Não.

26. J- Ah! Com certeza, sem nenhuma exceção. Essa agora ...
1
Fala-se, aqui de "gesto no ar" para designar o gesto realizado sem o artefato - no 27. G- Não.
caso concreto, sem o manipulador de tração, disponível no painel de condução e que
permite, efetivamente, frear o trem. Na situação de autoconfrontação, o "mesmo" gesto 28. J- Ah, garanto-lhe que sim.
já não serve mais para frear. Ele se presta a outros movimentos. Associado à linguagem,
ele permite outras realizações: as de um comentário depois de uma argumentação. 29. Médico do trabalho (dirigindo-se aJ)- Você já tentou alguma vez essa operação?
262 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Analisar os diálogos 263

30. J -Sim. E, justamente por isso, é que abandonei esse troço, porque em meu entender não 52. J Você chega a 100 e depois reduz para 30.
há como misturar os dois sistemas. Ou a gente gerencia por reostato, em ... , por recuperação, 53. G-Sim.
ou seja, a gente gerencia com o freio de VI, portanto, nesse caso, é suave, mas tem-se de an-
tecipar à beça, tem-se de antecipar à beça. Quero dizer, temos 20 km/h, bom, mesmo assim é 54. J- 60 e redução para 30.
necessário anular tal velocidade, hein, evisto que há o seccionamento, ele tem razão, isso deve 55. G- Sim.
ser feito com bastante antecedência já que, ao soltar o disjuntor, acabou-se. Portanto, temos de
antecipar, mas não se deve misturar os dois sistemas porque nosso manipulador de freio em 56. J- Ora, nesse caso, se você utiliza a VI diretamente em 60 e está a 100 e serve-se do freio
Z2N atua também sobre as locomotivas, euh ... , enquanto a velocidade é suficiente, não são as de ar, posso-lhe dizer, então, que você vai sentir o troço, hein ... Nesse caso, é evidente que as
locomotivas que ... enfim, como direi? não é o freio de ar que atua sobre as locomotivas, mas locomotivas sobem a 600 A diretamente.
o freio por recuperação. Equando há uma grande diferença entre a VI ... , o mostrador da VI e a 57. G- Não ...
velocidade real de circulação, a frenagem é brutal.
58. J- Elas não apreciam, hein ...
31. G- Não ...
59. G- Não, porque ...
32. J- Sobe-se imediatamente a 600 A .. de frenagem.
33. G- Não ... 60. J- Já tentei e...
61. G-Isso depende. No seu ... (Nesse instante, Grefaz novamente o gesto "no ar". Éa terce~a
34. J- Eisso é que me leva a achar a manobra brutal.
vez. Ele volta, em primeiro lugar, ao próprio gesto esó depois é que se volta para ocolega.) Nao
35. G- Acho que não é bem assim. estou de acordo porque, no freio, é verdade que se você faz nem que seja uma ligeira alteração
36. Médico do trabalho (dirigindo-se a G)- Você já se encontrou em situações como essa? no linear, é verdade que isso vai subir imediatamente em ampe ... em intensidade.

37. J - Mas pode ser essa, aí. 62. J- Em amperagem.

38. Médico do trabalho (dirigindo-se a G) -Isso já aconteceu com você? 63. G- Em amperagem, a... a, como dizer? sua frenagem .. por recuperação, isso ar Mas, se
justamente você reduz um pouco, você faz no mínimo uma depressão de 500 g.
39. G- Não ... acho que não é bem assim ...
64. J Sim.
40. Médico do trabalho- De fato, o diferencial não é grande?
65. G-Você se dá conta de que ela é menos intensa. No meu caso, desde o início, faço uma
41. J- Sim, sim, isso é menos visível.
depressão superior a 500 g.
42. G- A 20 km, isso não é...
66. J -Isso, pelo contrário, é verdade, sim. Efetivamente, é verdade que ela é menos intensa.
43. J Émenos importante.
67. G- Veja só! Evito os solavancos.
44. Médico do trabalho (dirigindo-se a G) -Já lhe aconteceu de estar em situações em que há ...
68. J -Sim. No meu entender, isso continua sendo brutal; mas é uma estória de apreciação
45. G- Em que há mais? Com certeza, mas costumo utilizar a frenagem. pessoal.
46. Médico do trabalho (dirigindo-se a G)- Evocê não sente isso? 69. G- Sim, sim, isso não muda grande coisa.
47. G- Não. 70. J- No meu caso, preocupo-me com o conforto dos passageiros.
48. J- Por exemplo, não tenho acerteza, você faz o direto ... creio que há trens realmente diretos
para Montsoult Beaumont? Comparemos a fala 4 com a fala 68: em 4, a mistura dos mo-
49. G- Sim. dos de frenagem só pode ser feita para J, em detrimento do confor-
to; em 68, uma boa dosagem antecipada da ação sobre o freio de ar
50. J- Você sabe, você tem trens onde vai direto Montsoult Beaumont?
é considerada, pelo mesmo interlocutor, como um compromisso
51. G-Sim.
aceitável que minimiza os solavancos desconfortáveis. Verificou-se
264 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Analisar os diálogos 265

um deslocamento do ponto de vista. A preocupação inicial não foi junto ao colega; e depois, na terceira vez, objeto de elaboração para
abandonada. Eis o que é visível na fala 70: "Preocupo-me com o ele mesmo. A re-execução efetiva desse gesto por G, em três ocasi-
I
conforto dos passageiros:' No entanto, ele admite que o colega pos- ões na autoconfrontação, à medida que o diálogo se desenrola, é
sa evitar, em parte, os solavancos: "Sim. No meu entender, isso con- sempre uma retomada do pensamento "manualmente': Na terceira
tinua sendo brutal; mas é uma estória de apreciação pessoal" (68). vez, porém, questionado pelo médico do trabalho, ele vai explicar o
Todavia, foi necessário que, entrementes, seu interlocutor e gesto a si· mesmo. Ele não o reconhece na descrição corporal pro-
colega G tivesse reencontrado na fala 63 - acuado em suas certezas posta pelo colega que, por sua vez, não cessa de imitar o desconfor-
no decorrer da controvérsia - o gesto "esquecido" que lhe serve de to de que os passageiros seriam vítimas no momento da frenagem.
argumento no diálogo provocado, aqui, mas que lhe permite sobre- Essa terceira retomada "despertà' o gesto latente em auto ma-
tudo, na situaç_ão real, antecipar - por uma depressão precoce supe- tismos incorporados. Realizado por hábito sem pensar no gesto, ele
rior a 500 g no feio de ar - os efeitos negativos da coexistência das assume as intenções críticas do outro, as quais reconduzem G para o
frenagens. Essa redescoberta se efetua no decorrer do diálogo gra- âmago de seu próprio gesto que, por retroação, se apropria dessas
ças à repetição física- "no ar" e em três ocasiões (identificáveis nas intenções de outro. Tendo sido esquecido, o conforto dos passagei-
falas 3, 15 e 61)- do próprio gesto técnico, durante a autoconfron- ros volta a ser descoberto porque o sujeito observa, agora, seu gesto
tação cruzada. Em todos os sentidos do termo, G vai "refazer" seu com os olhos de outro. O gesto obtém, assim, uma nova amplitude
gesto no decorrer do diálogo, constatando-se, por isso mesmo, a renovando sua significação: a compreensão supera os limites da coi-
mudança do ponto de vista do colega. sa compreendida. O gesto é re-qualificado, re-categorizado, recha-
çado para mais longe. Os condutores vão prestar atenção a todos os
detalhes, testando seus limites. Ele sai retocado do diálogo, levado às
• 2. O CESTO EM MOVIMENTOS • fronteiras daquilo que continha em seu interior, mas que o próprio
G não podia perceber no contexto habitual. O gesto não renasce tal
Durante esse diálogo, o gesto de G não chega a imobilizar-se 1• No qual, mas é revisto no quadro clínico para onde foi deslocado.
iníciq, no quadro clínico que propomos, o gesto de G servirá de Vivenciado, ele permanece vivo ao passar para uma nova ati-
arcabouço corporal para o devir do pensamento na linguagem. Em vidade: atividade dialógica dirigida para o colega, destinada a agir
seguida, esse pensamento vai "retocá-lo" na resposta às perguntas sobre ele em segundo plano por intermédio do médico do trabalho.
do interlocutor. No decorrer da ação dialógica, ele ocupa três fun- Essa "reintrodução" do gesto em três novos movimentos diferentes,
ções sucessivas: na primeira vez, enquanto meio de comentar as para retomar a distinção proposta por G. Fernandez (2003), é uma
imagens, ele vai tornar-se, na segunda vez, meio de argumentação repetição para além da repetição: o movimento corrente no seio do
qual esse gesto é "feito" é uma frenagem efetiva do trem. No quadro
1 dialógico, verifica-se a sobreposição de três movimentos no âmago
A dificuldade de apresentar o componente não verbal da interação é sobejamente
conhecida quando, afinal, todo o mundo está de acordo para sublinhar sua importân- dos quais ele é "refeito": em primeiro lugar, no comentário; em se-
cia. É impossível falar, sem movimentos, insiste Cosnier (2007). O texto está associado guida, na argumentação. E, por último, em um movimento argu-
a um cotexto, vocal e gestual, cuja função é dinamogênica na enunciação; o corpo ga-
mentativo apoiado na auto-observação. Pode-se falar, aqui, de mo-
rante, também, a manutenção e a copilotagem da interação (2007, p. 19). O diálogo
analisado, aqui, mostra incontestavelmente o alcance das manifestações multimodais vimentos no sentido estrito já que, por exemplo, ao gesto da mão, a
dessa troca sem que estejamos em condições de tirar todas as consequências dessa si- auto-observação associa outro gesto da cabeça voltado para o gesto
tuação (Cosnier, 1996, 1997; Danon-Boileau, Morei, & Haladjan, 2006). Em compen-
da mão. Ao mudar de posição, portanto, no decorrer da autocon-
sação, ele mostra também os efeitos variáveis do diálogo em curso nos próprios gestos.
Nosso comentário concentra-se em tais efeitos ao analisar a diversidade dos destinatá- frontação, depois de já ter "passado" do trabalho real ao quadro ar-
rios do gesto realizado. tificial dessa confrontação, o gesto "refeito" é confrontado com o
266 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos 267
Analisar os diálogos

repertório de suas possíveis funções ao atravessar movimentos dife- periente e novato. A análise em questão foi empreendida no quadro
rentes. Na interferência dos movimentos corporais e discursivos da lógica interlocutória, na qual essa sequência é considerada como
I
(François, 1998, p. 205; 2006, p. 33), ele estende assim seu raio de uma operação na arquitetura da interlocução. No entanto, nós a fize-
ação potencial. mos não para descrever a organização sociocognitiva de uma intera-
Esse gesto, afinal de contas, já não é exatamente o de G, tam- ção - como é, frequentemente, o caso com a lógica interlocutória
pouco se tornou o de seu colega. Separando-se deles, mas graças a (Trognon & Kostulski, 1999) - mas, com outras finalidades, para
eles, ele é, mais do que anteriormente, aquele que se pode fazer. E é compreender a dinâmica dos encadeamentos conversacionais atra-
a conquista dessa plurifuncionalidade que subentende o diálogo. vés dos quais se desenvolve o pensamento. O encadeamento conver-
Nesse gesto, quem fala é o ofício, o ofício possível. sacional, objeto de nosso estudo, mostra que a relação entre um
No entanto, um ponto é essencial. A memória desse gesto é enunciado e outro, distribuída entre os dois interlocutores, pode ser
engendrada fora dele, na ação dialógica conjunta. No decorrer da origem de um acontecimento de pensamento e, portanto, recurso
troca, na linguagem, "cria -se uma lembrançà', para falar como Edel- para a análise de um problema. Portanto, ela mostra que a atividade
man e Tononi (2000, p. 125). Ela pode tornar-se disponível para conversacional pode ser colocada a serviço de uma atividade de aná-
todos com a condição de prosseguir seu caminho nos diálogos pro- lise. Mas, inversamente, para desenvolver essa atividade de análise,
fissionais no âmago dos quais ela começa a encontrar uma segunda convém que essa última modifique seu estatuto para tornar-se, por
vida. Essa é, aliás, a função do diálogo e da interação nos movimen- sua vez, recurso a serviço da atividade conversacional e linguageira
tos do gesto. como tal, ao passo que ela era a fonte inicial da conversação. No âm-
bito das confrontações, a atividade empreendida pelos sujeitos é, por
isso, uma relação entre, pelo menos, duas atividades. E, assim, pude-
• 3. DIÁlOGO E INTERAÇÃO • mos esclarecer esse processo fundamental para o desenvolvimento,
constituído pelas migrações funcionais de fonte em recurso por oca-
Voltemos, portanto, a essa ação dialógica conjunta. Para fazer isso, sião da passagem de uma atividade para outra, em que cada uma se
uma observação prévia tem sua importância. Ainda nesse aspecto, torna, por sua vez, o instrumento da outra. Na autoconfrontação
os métodos de análise são objeto de animadas discussões científicas cruzada analisada com K. Kostulski, a atividade de análise dos dois
(Grossen, 2007; Grossen, a publicar); e numerosos trabalhos recen- interlocutores não tinha absolutamente o mesmo objetivo no come-
tes multiplicam as perspectivas (Salazar-Orvig & Grossen, 2004; ço - situação bastante rara - e foi a interação dialógica que produziu,
Grossen & Salazar-Orvig, 2006; Trognon & Kostulski, 1999; Bron- passo a passo, o encontro a partir de um novo objeto de pensamento
ckart, 1996, 2004; Bulea, 2007; François, 2005; Falta & Vieira, 2003; e de seu desenvolvimento. A atividade de análise é comum apenas
Kostulski & Prot, 2004; Kostulski, 2004, 2005; Mondada, 2002, no fim (Clot & Kostulski, 2007, p. 95-100).
2005; Fillietaz, 2002; Sitri, 2003). Aqui, vamos privilegiar uma abor- Ou, dito por outras palavras, o objeto do discurso imposto
dagem, cujo objetivo seja o desenvolvimento, focalizada na reorga- pela conversa na interação dialógica é que renovou o objeto do de-
nização funcional do pensamento através da interação e do diálogo bate1 que cada sujeito estabelecia consigo mesmo. O volume da ati-
(Clot & Falta, 2000; Clot & Kostulski, 2007; Kostulski & Prot, 2004; vidade de pensamento pode ser desenvolvido, portanto, pela exten-
Tomàs, 2005; Bournel-Bosson, 2005). são da superfície conversacional, como ficou demonstrado por esta
Em um artigo recente (Clot & Kostulski, 2007), a propósito de análise, mesmo que, inversamente, a superfície conversacional se
um estudo solicitado pela SNCF sobre a evolução da regulamenta-
ção relativa à segurança na condução dos trens, já analisamos uma 1 Por objeto do debate, entende-se, aqui, não uma forma de sistema de linguagem,
sequência de autoconfrontação cruzada entre dois maquinistas, ex- mas uma questão que é objeto de debate no ofício de condutor.
268 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Analisar os diálogos 269

estenda, também, sob o efeito de um desenvolvimento do volume Na fala 36 e, sobretudo, na 44, a intervenção do médico do
do pensamento na atividade dos sujeitos. Esse tipo de processo está trabalho está orientada em outra direção 1• Ela consiste em pergun-
também em ação na sequência que começamos a estudar aqui. Ati- tar a G se ele se reconhece na descrição efetuada por J acerca da si-
vidade linguageira, atividade de pensamento e atividade corporal se tuação. Ora, G tem o sentimento de não fazer parte do mundo des-
sobrepõem frequentemente, antecipando-se uma à outra ao sacudir crito por J. Entre as falas 21 e 61, existe um momento de desequilíbrio
continuamente hierarquias transitórias 1• Voltemos ao assunto em psicológico, de instabilidade criadora, um pouco como se G se ob-
dois tempos: em primeiro lugar, mobilizando passo a passo, desta servasse em um espelho sem conseguir se ver nele. Então, ele re-
vez, não a lógica interlocutória, mas uma abordagem dialógica de constrói esse mundo "refazendo" o gesto para si mesmo diante do
inspiração bakhtiniana. Em seguida, procurando sistematizar as re- espelho que a pergunta do médico do trabalho lhe estende. E aí, na
lações de ligação e desligamento, evocadas mais acima, entre objeto fala 61, o "isso depende ... não estou de acordo .. :' realiza a recatego-
de discurso e objeto de debate. rização de seu gesto e a redescrição do mundo a seus próprios olhos.
A postura física libera-se, então, da única gestão da interação em
curso para se dirigir, de novo, ao gesto técnico da condução.
m 4. FRENAGEM E FRENAGEM m
Melhor ainda, há um devir de seu gesto nas palavras do outro.
Nesse diálogo realizado em três minutos de 70 falas, pode-se iden- Assim, na fala 63, as palavras "frenagem por recuperação", pronun-
tificar dois patamares transpostos, em ambos os casos, por ocasião ciadas na fala 30 por J como um argumento técnico, são tiradas dos
das intervenções do médico do trabalho. Na fala 29, a falta de flui- lábios do interlocutor por G para submetê-las às suas próprias inten-
dez dialógica é patente. Cada qual mantém sua posição a partir de ções em fase de elaboração. O vocabulário profissional do novato
pressupostos subjacentes. A intervenção nessa fala consiste em pe- chega, inclusive, a passar - na boca do veterano - por uma espécie
dir a J se ele já havia tentado fazer como G. Por isso, a argumentação de dessacralização que coloca o mundo de ponta-cabeça. "Sua frena-
vai até os detalhes, tornando visível o segundo plano de J e, invisí- gem ... por recuperação, isso aí..:', derruba a pretensão técnica ao e~­
vel, em eco, as deliberações interiores de G. Somente os gestos e as tabelecer com ela uma relação livre e familiar. Entretanto, nessa ati-
mímicas de G é que sublinham ou, de preferência, sobrelinham as vidade linguageira é que o pensamento se elabora, não negando as
palavras do interlocutor. O que é dito por J torna-se objeto de acen- palavras do outro, mas ao renová-las, obrigando-as a sustentar ou-
tuações corporais negativas em G. A expressão postura! e facial trai tras vozes, um outro tom. Assim, a frenagem começa a redefinir-se.
a réplica interior que se procura e prepara o comentário atualizado. Apoiando-se na teorização bakthineana do "discurso relata-
O corpo que "refazià' o gesto de frenagem no ar limita-se a garantir, do" (Peytard, 1995, p. 38), pode-se adiantar que o pensamento é
agora, em recuo, a manutenção e a copilotagem depreciativa da in-
engendrado, aqui, na zona de interseção em que há sobreposição de
teração em curso (Cosnier, 2007, p. 19).
dois agentes: o do discurso relatado (J) e o do discurso que relata
(G). "Sua frenagem ... por recuperação, isso aí..:' é um enunciado
1
O texto seguinte deveria - essa é a nossa expectativa - atenuar alguns julgamentos que pode ser descrito como a arena de uma luta com a palavra do
sobre as relações definidas entre linguagem e atividade na clínica da atividade, aliás, outro, o lugar de uma interferência tensa. Essa hibridação do enun-
situação que se verifica há muito tempo (Clot, 1995, 1999a, p. 148-149). Não existe ciado é a ocasião da tomada de consciência de uma linguagem em
assim tanta homogeneidade entre as teorias da atividade, como parece, às vezes, pen-
sar J. Boutet, em seu mais recente livro (2008). Este contém excelentes análises sobre o
trabalho nas centrais telefônicas. Talvez sua preocupação de se afastar tanto quanto
possível de uma redução de linguagem em relação a um instrumento tenha levado 1 A função do especialista da clínica da atividade na condução té,cnica ~a a~tocon­
muito longe: é difícil compartilhar completamente a ideia de que os trabalhadores frontação, assim como a análise de seus efeitos no desenrolar do d1alogo tem s1do ob-
dessas centrais sejam "trabalhadores da linguagem'' em um plano semelhante ao dos jeto de várias pesquisas (Tomàs, 2005; Bournel-Bosson, 2005; Prot, 2006a; Kostulski &
trabalhadores das indústrias têxtil ou siderúrgica. Clot, 2007).
270 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Analisar os diálogos 271

outra. A formação desse "híbrido intencional" (Bakhtine, 1978, p. 176), Pode-se, igualmente, observar dois aspectos: em primeiro lu-
que implica a filiação simultânea de uma palavra a dois discursos gar, as fronteiras, entre o discurso inseridor na fala 63 ("Sua frena-
diferentes, poderia estar perfeitamente na origem da libertação re- gem. Por recuperação, isso aí") e o discurso inserido na fala 30, não
cursiva, pressuposta pela tomada de consciência. Porque esse é o são definidas antecipadamente no diálogo. Em torno dessa linha de
discurso de J no discurso de G, mas é também -ponto decisivo - o demarcação em disputa, no próprio território do enunciado, é que,
discurso de G sobre o discurso de J. É a relação ativa da enunciação inclusive, o pensamento gira para reencontrar o gesto incorporado.
de G com a enunciação de J. É uma apreensão ativa do discurso de Há uma confrontação com a palavra de outro no pensamento de G
J por G que "pega sua palavra: e que desse discurso exterior faz, de Ele deve conseguir liberar-se das palavras do outro para abrir seu
início, um meio para o diálogo interior. O enunciado quase paródi- caminho para o objeto.
co prepara, então, uma contra/palavra. O comentário pastiche ante- Em segundo lugar, ele chegará até esse objeto- o próprio ges-
cipa a réplica, que acaba por se introduzir no discurso de J contra to de frenagem - inicialmente tomado e "agasalhado" nas palavras
esse discurso, para além desse discurso. alheias de J de maneira indireta: ao aproveitar-se da ocasião forneci-
De fato, G colore o que será designado - ainda aqui, em refe- da pelo médico do trabalho. Este redistribui, de fato, as cartas da
rência a F. François (1998)- como o "discurso relatado" por J com troca, tirando G do face-a-face de natureza verbal com o colega. Ele
suas próprias entonações, sua ironia e, até mesmo, um pouco de sua é, nas falas 44 e 46, o "sobredestinatárid' que o "mergulha, de novo"
na situação vivida e o tira do contexto da conversação em curso.
condescendência. Ele o colore pelo desenvolvimento de seu próprio
Bakhtine observou, portanto, acertadamente: ''Arrancar a fala da re-
pensamento, o qual retoma e envolve o pensamento de J que lhe
alidade é destruidor para ela mesma que acaba por se estiolar, perde
oferece resistência. Mas o obstáculo do pensamento de J sobre o
sua profundidade semântica e sua mobilidade, sua capacidade de
qual G exerce seu pensamento exige meios diferentes dos que eles já
ampliar e renovar seu sentido em contextos novos e vivos; para resu-
dispõem. Diante desses limites, G "cria a lembrança'' da depressão
mir, ela morre como fala porque a fala significante vive fora dela
de 500 g, aliás, desencadeada por ele desde o início da frenagem.
mesma, vive de sua orientação para o exterior" (1978, p. 171).
Graças a essa transposição do discurso do outro em si, que É somente assim que a conversação ou o diálogo - sobre um
segue o gesto refeito e precede sua reformulação quase paródica, é fundo que não é linguístico, mas objetai e expressivo - torna-se aqui
que se opera a junção entre o discurso interior e o discurso exterior. um instrumento psicológico para G e J. Voltamos e encontrar os
Esse é o ponto de sutura entre os dois que autoriza a passagem de resultados de Vygotski. Sem essa orientação em direção ao exterior,
um pensamento para o outro: servir-se de afirmações alheias que o pensamento fica privado também "de seu principal papel que
passam "para o interior" de si e que, em seguida, são "colocadas, de consiste em determinar nossa maneira de viver e nosso comporta-
novo, em seu devido lugar" - repletas de um novo sentido - no mento, em mudar nossas ações, em orientá-las e em nos libertar da
discurso exterior. De objeto de pensamento interno, elas se tornam situação concreta'' (1994, p. 229). Na sequência das falas 44 e 46, a
meios de expressão externa. Por isso, ainda nesse ponto, existe uma conjugação dos tempos gramaticais, entre passado e presente, é sig-
migração funcional, mas, dessa vez, ela diz respeito às palavras: de nificativa dessa solicitação do real. Como vimos, a autoconfrontação
início, "fonte" de surpresa, as palavras de outro se tornam recurso na clínica da atividade instala os sujeitos em um paradoxo: sua ativi-
para o desenvolvimento do próprio pensamento. Essa transplanta- dade deve ser compreendida olhando para trás, mas só pode ser vivi-
ção abre- para afirmá-lo à maneira de Vygotski (1997)- uma zona da olhando para a frente. O vivido é nesse caso, vivo. Pode-se pensar
de desenvolvimento do pensamento. E, dessa vez, a "reintrodução" que, também, nessa sequência, esse paradoxo é a mola propulsora da
da palavra em um enunciado diferente realiza a síntese recursiva alternância funcional entre a atividade conversacional propriamente
própria à tomada de consciência (Edelman & Tononi, 2000). dita e a atividade de análise, cuja função se modifica no decorrer da
Analisar os diálogos 273
272 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos

interação. É, realmente, assim que se pode explicar que a atividade hostilidade desses dois pensamentos em confrontação, além de que
de análise, tendo tomado a supremacia nas falas 61 e 6~ na boca de o real resiste ao realizado discursivo. É evidente que este enunciado
G, submete-se à atividade conversacional anterior ao "importar" os a duas vozes soa falso na fala 63, e a paródia está bem perto do
enunciados da fala 30 para a fala 63: o "freio por recuperação", meio modo como G se distancia do gênero de discurso técnico mobiliza-
da atividade conversacional na fala 30, torna-se o objeto da ativida- do por J. No entanto, a promoção desse segmento à categoria de
de de análise na fala 63. objeto de discurso, mesmo que tenha sido efetuada na confronta-
Convém observar que, de passagem, o "freio por recupera- ção, opera-se sem trapacear o real. Ele leva a redescobrir a depres-
ção" da fala 30 converteu-se em "Sua frenagem. Por recuperação, são de 500 g na mesma fala. Pela técnica, portanto, é que se faz a
isso af' da fala 63. O enunciado de G incorpora assim, condensan- crítica do gênero de discurso técnico mobilizado por J; não lhe dan-
do-as, as 13linhas do enunciado de J na fala 30. Portanto, assiste-se do as costas, mas reabilitando-o. Afinal de contas, no instante deci-
a um trabalho de retomada (Sitri, 2003; Grossen & Salazar- Orvig, sivo, a estilização leva vantagem, o que é confirmado, aliás, por J nas
2006, p. 162), a uma repetição deformada do segmento "recupera- falas 64 e 66: "Isso, pelo contrário, é verdade, sim. Efetivamente, é
ção': Nesse trecho, seria possível ver também o queM. Grossen de- verdade que ela é menos intensà'; sem que, por isso, tenha de renun-
signa como uma reformulação distai, identificável aqui nas cláusu- ciar à sua preocupação relativamente ao conforto dos passageiros na
las metadiscursivas "Sua", "isso aí" ( Grossen & Salazar-Orvig, 2006, fala 68: "Sim. No meu entender, isso continua sendo brutal. Mas é
p. 143). Seja como for, o segmento "por recuperação'' - utilizado uma estória de apreciação pessoal. " A última palavra não é dita, mas
duas vezes por J na fala 30- está bem reclassificado na fala 63. No o alívio vem com a resolução de uma tensão na troca verbal. No total
discurso de G, ele é de início destacado por extração. Trata-se de das 70 falas, G utiliza 17 vezes "não", J nunca (usa essa palavra) e diz
uma interrupção no fluxo discursivo sobre um segmento do discur- "sim'' 13 vezes, mesmo que o vocábulo signifique, nesse caso, não
o o 1 o

so do outro que é colocado, de alguma maneira, entre aspas para tanto sua aprovação, mas um mcent1vo para prossegmr .
questioná-lo e, até mesmo, refutá-lo. A palavra "recuperação" serve, De qualquer modo, é efetivamente o conflito sobre a palavra
aqui, de arena para a luta entre duas vozes que, por seu intermédio, que organiza, sem estar na sua origem, a bifurcação da significação.
respondem uma à outra e a atravessam em perseguição daquilo que Por intermédio da deformação da palavra, modifica-se o objeto do
é difícil dizer e compreender (François, 1998). Ela é bivocal, para discurso. Como é observado por F. Sitri: "Por trás da permanência
retomar o vocabulário de Bakhtine (1984). Momento de encontro lexical, uma simples mudança de determinante é suficiente para
com a fala de outro no próprio objeto, ela indica a intensidade dia- produzir a passagem brutal para outro objeto'' (Sitri, 2003, p. 144).
lógica da atividade conversacional, que se coloca, então, a serviço E, aqui, os determinantes - Sua e isso aí- desempenham esse papel.
da atividade de análise. Ela é uma organizadora da realização de sua E "por recuperação', termo bivocal, torna-se o organizador dialógi-
alternância funcional na troca verbal. Esta, por sua vez, pode pros- co da reconversão do diálogo realizado como meio de uma nova
seguir "sem que se resvale em uma confrontação direta das subjeti-
vidades" (Bosson, 2005, p.l68), sem que ela caia no tipo de situação
1 Esse cálculo foi elaborado por A. Lima, cujo trabalho a respeito dests diálogo insis-
em que cada um procura, acima de tudo, não "perder prestígio"*. te também, ao servir-se de Vygotski (2005), sobre o "curto-circuito" emocional que se
Para retomar a distinção bakhtiniana utilizada por M. Bos- manifesta no final quando G experimenta o prazer de convencer J, pelo menos, em
son (2005), a estilização acaba por prevalecer na fala 63 em relação parte; e quando Jexperimenta, por sua vez, a surpresa de ser capaz de sentir e pensar,
mesmo, através de sua resistência, a frenagem um pouco como esta é sentida e pensada
à paródia no enunciado de G. Certamente, "recuperação' ressoa a pelo colega (nota pessoal, 2007). Tais momentos de intensa interfuncionalidade da
consciência já haviam sido detectados quando intelecto e afeto se sobrepõem e mi-
gram brutalmente um no outro, na autoconfrontação analisada com K. Kostulski
* No original, perdre la face, literalmente, perder a face. (N.T.) (Kostulski & Clot, 2007, p. 103).
274 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Analisar os diálogos 275

análise conjunta; o organizador através do qual passa a migração preocupar-se com os passageiros. Pode-se, inclusive, pensar que, no
funcional da atividade em curso na interação. Com c~rteza, o de- decorrer do diálogo - e esse é o ponto de vista que será defendido
senvolvimento dessa alternância funcional supera de longe esse or- aqui -, os maquinistas tenham adotado novos meios de manter esse
ganizador que o realiza sem que possa ser considerado como sua debate, precisamente porque ele se tornou um objeto de discurso
origem. E é sobre este ponto que eu gostaria de concluir. no perímetro interlocutório que lhes havia sido proposto por nós.
Melhor ainda, é a redução funcional desse perímetro que pode ser
considerada como uma das origens de migrações funcionais, anali-
• 5. O OFÍCIO COMO OBJETO DE DEBATE • sacias mais acima. Essas últimas enriqueceram o objeto do debate
ao documentá-lo com possibilidades gestuais não suspeitadas. O
Com efeito, se o ofício é o meio graças ao qual o objeto do discurso conforto dos passageiros pode, eventualmente, beneficiar-se com
se transforma entre os maquinistas presentes, tal transformação uma gama de escolhas gestuais, ampliada graças à focalização sobre
volta a desencadear o debate entre eles. No número 70 e última fala, a frenagem.
acompanhada por um riso, encontra-se em J a seguinte réplica: "No Pode-se formular o problema deste modo: o objeto do dis-
meu caso, preocupo-me com o conforto dos passageiros:' Essa é a curso - a frenagem - imposto, no começo, pela redução da imagem
última frase. Esse diálogo terminou. Mas pode-se dizer que o pró- na realização em vídeo foi imediatamente reconvertido em objeto
prio desenvolvimento do objeto do discurso entre eles- a frenagem de debate pela réplica gestual de J (4). Com efeito, ele introduz os
-permitiu, sobretudo, reabrir um interminável objeto de debate: o passageiros na cabine observada pelos dois maquinistas. Essa é a
conforto dos passageiros. E, aqui, julgo necessário fazer uma distin- razão que explica o desenvolvimento do objeto do discurso: por
ção entre objeto do discurso e objeto do debate. Paradoxalmente, o isso, a frenagem é analisada por eles sob o prisma do conforto, ao
título do livro de F. Sitri a quem pedimos de empréstimo semelhan- passo que essa análise poderia ter sido, por exemplo, sob a perspec-
te vocabulário- I.:objet du débat (2003)- trai seu conteúdo. De fato, tiva da segurança, como é o caso na outra autoconfrontação evoca-
este se refere apenas a objetos do discurso, sem que o título do livro da (Clot & Kostulski, 2007). O objeto do discurso foi desenvolvido
volte a ser evocado. Ora, parece-me que o diálogo que acaba de ser a serviço do desenvolvimento desse objeto de debate. O objeto do
estudado - e muitos outros com ele, em particular, o que analisa- discurso é, em primeiro lugar, recurso para o objeto de debate. Mas
mos com K. Kostulski (Clot & Kostulski, 2007) - não pode ser facil- esse último, no desenrolar da atividade dialógica conjunta, muda de
mente compreendido sem o uso dessa distinção conceitual. Não há estatuto. Ele não é senão um meio para "discutir frenagem': De ori-
coincidência entre objeto do debate e objeto do discurso. Na fala 4, gem, ele torna-se recurso. E é bifurcando em direção à análise téc-
a interação toma impulso quando J utiliza o próprio corpo para nica da frenagem com, ou sem, VI que a "depressão de 500 g': redes-
imitar o desconforto dos passageiros submetidos à frenagem de G. coberta, reintroduz o conforto dos passageiros de uma forma
É verdade que, sem o recurso das sequências de vídeo, das quais é imprevista. O objeto do discurso muda, por sua vez, de função e,
extraído o diálogo para ser transformado em texto analisável, o ob- assim, de recurso se torna origem de um debate que ganha novo
jeto do debate é de difícil acesso. O debate mediante o qual, inicial- impulso ao abordar o conforto. Os novos meios conquistados no
mente, se enfrentam maneiras de encarar a questão do conforto dos decorrer da troca verbal entre maquinistas sobre a questão da fre-
passageiros desaparece tanto mais facilmente do campo da análise nagem podem, até mesmo, levar à redefinição dos critérios do con-
na medida em que os gestos são suprimidos pelo texto, obliterando forto para os passageiros Ou, dito de outra maneira, existem migra-
assim o que a troca tem de multimodal. ções funcionais entre objeto do discurso sobre a frenagem e objeto
E, no entanto, ele não desaparece visto que o diálogo se encer- de debate sobre o conforto. O debate progride se é realizado pelo
ra na fala 70 com a lembrança explícita do que é o tema principal: discurso e, na controvérsia, reinventa-se.
276 Terceira Parte- Ação e conhecimento: metodologia e métodos Analisar os diálogos 277

Para todos os maquinistas, o conforto faz parte dos debates dessa atividade. Elas existem entre debate e discurso. No entanto, o
do ofício 1: o conforto é uma precupação habitual que s~ opõe a ou- próprio discurso, sobretudo, o discurso conjunto, muda de motor
tras preocupações, tais como o respeito pelos horários. Nenhum durante o percurso, na medida em que a conversação e a análise
deles pode ter a pretensão de fixar definitivamente sua atitude nesse ocupam, cada uma por sua vez, o primeiro lugar. Enfim, na particu-
conflito de critérios entre conforto, segurança e respeito pelos horá- laridade de cada segmento, a significação do conjunto pode desen-
rios. No entanto, essa atitude envolve os valores do ofício inteiro. O volver-se também por migração funcional; uma "simples" palavra
fim do diálogo não resolve a questão, mas acaba por levá -la mais reorganiza, então, um conjunto que, entretanto, a ultrapassa com
longe para outros protagonistas e outras situações. Apesar de tudo, uma grande diferença. Se acrescentarmos, como vimos, que os mo-
"no meu caso, preocupo-me com o conforto dos passageiros': Ob- vimentos discursivos e os movimentos gestuais migram, também,
servar-se-á a tonalidade afetiva do enunciado que envolve, ao mes- um para o outro - inclusive, às vezes, até a fusão entre si - podemos
mo tempo, a eficácia, a beleza e a responsabilidade do ato. Mas a fazer ideia daquilo que está implicado no envolvimento da ação
troca é suspensa com uma dúvida criativa que leva em conta um conversacional. Ela se realiza no perímetro interlocutório em que é
problema "real" que nunca será completamente esgotado por ne- provocada; mas, ao proceder assim, ela transpõe suas fronteiras se o
nhum diálogo, mas é enriquecido por cada diálogo. À semelhança real permanecer seu horizonte. Ele não o faz sem deixar em sua
da atividade na área da matemática, na atividade dialógica, existem esteira o rastro de determinadas regularidades entre as quais figura
"sobras" (Scheller, 2003). O que não é passível de uma intervenção aquela que abordamos aqui, ou seja, a alternância funcional das ba-
em determinado momento da interação e deve ser transitoriamente ses do desenvolvimento. Em relação ao que concerne tanto à lin-
subtraído, nem por isso é abolido. A "sobrà' conta para a operação guagem, quanto aos gestos ou, ainda, aos afetos, pode-se explicar
dialógica subsequente. O diálogo no coletivo atravessa a interação e melhor como se produz o novo. Com o objetivo de provocá-lo, em
acaba por superá-la. Se o objeto do discurso em situação de auto- melhores condições, na ação para o desenvolvimento do ofício.
confrontação cruzada nunca é puramente "retórico" e se nunca é
reduzido à lógica especial da dinâmica verbal da interação presente,
é porque ele continua sendo o meio de um debate do ofício.
Neste capítulo, porém, queríamos examinar a maneira como
o debate se torna discurso para continuar sendo, em melhores con-
dições, debate; ou, ainda, a maneira como o debate permanece vivo
ou desaparece no discurso. Acompanhamos a alternância funcional
de um e do outro no prosseguimento da atividade dialógica por
dois maquinistas. Ao proceder desse modo, descobrimos também
que as migrações funcionais se encaixam uma na outra no decorrer

1
Assim, "uma parada agradável, por exemplo, é aquela que não chega a chamar a
atenção dos viajantes, eventualmente, perdidos em seus pensamentos ou mergulhados
na leitura. Quem está lendo um jornal deve ter a possibilidade de continuar essa ativi-
dade, sem ser interrompido, até a parada completa do trem. Para isso, impõe-se con-
seguir que a parada seja suave, a fim de evitar o solavanco final tão característico das
paradas do metrô parisiense. Eis o que é possível conseguir se a aproximação do sinal
for lenta, com os freios quase totalmento soltos" (Fernandez, Gatounes, Herbain &
Vallejo, 2003, p. 33).
avra

No começo deste livro, manifestei meu propósito de encerrá-lo com


a tentativa de sistematizar, tanto quanto isso fosse possível, a ques-
tão do ofício. Será que essa palavra pode tornar-se um conceito na
psicologia do trabalho? E, antes de tudo, deve essa fazê-lo? Não é
urna questão fácil. Obviamente, nos textos precedentes, foi possível
encontrar algumas justificativas para urna resposta positiva. Pode-
se encontrá -las, também, nos resultados convincentes de pesquisa
(Litirn, 2006). Urna coisa é certa: a palavra persiste no vocabulário
cotidiano de um grande número de trabalhadores. Ela circula nos
mais diversos contextos de trabalho e, inclusive - coisa surpreen-
dente -, parece conhecer urna segunda juventude entre os profissio-
nais dos serviços, exatamente em situações em que se verifica o re-
cuo do gesto manual tradicional e industrial. É, provavelmente, um
dos "conceitos cotidianos" mais genéricos no mundo do trabalho
contemporâneo. É sem dúvida, o motivo pelo qual urna socióloga
corno F. Osty chegou a afirmar que, agora, existe corno que "um
desejo de ofício" (Osty, 2003).
280 Trabalho e poder de agir
Conclusão 281

e 1. Ü DESPERTAR DA PALAVRA m
à la personne")* e o que era predominante na indústria. Sem dúvi-
I da, nesse caso, haveria a possibilidade de se reconhecer sempre a
F. Osty tem razão em vincular esse "desejo" contemporâneo à eti- mesma reivindicação de um grupo a fazer reconhecida a sua dife-
mologia da palavra. O termo ofício aparece no final do 1o milênio rença e a sua competência em relação a um perímetro de técnicas.
(Bloch & Von Wartburg, 1991, p. 406) e corresponde à forma popu- Sem dúvida, ainda, poder-se-ia detectar a busca de uma estabilida-
lar atribuída à palavra "ministério': O ministerium implica a função de misturada com a preocupação de status garantido. Apesar disso,
do servidor no sentido religioso, equiparado até o século XVI a · nas situações em que tudo contradiz as velhas culturas de ofícios, a
mysterium, dimensão sagrada cultivada em rituais*. Convirá obser- palavra ofício conserva sua vitalidade. Quando o gesto tradicional
var em que aspectos a persistência da palavra, atualmente, tem a ver do ofício manual deixa de ser central, a palavra ofício mantém essa
com essa história. Mas ainda é necessário reconhecer que M. Des- posição. Por que motivo? Inércia de linguagem? Penso que não.
collonges levantou uma razão a mais pela qual a palavra poderia Com o desenvolvimento dos serviços em que o "objeto" do
reencontrar um valor. Em seu entender, a atual conjuntura histórica trabalho - palavra que, praticamente, deve ser escrita entre aspas
tem dificuldade em aceitar as oposições promovidas por H. Arendt para esse tipo de funções - é, cada vez mais, a vida do outro, as metas
e tão frequentemente retomadas nos discursos convencionais: as a atingir, sendo os meios para alcançá-las muito mais controvertidos
categorias de obra e ação reinvestem o trabalho e o ofício poderia por natureza e, fundamentalmente, discutíveis. O trabalho indus-
trial podia ainda tornar crível a ilusão taylorista segundo a qual é
ser perfeitamente o traço de união que as reúne (Descollonges,
possível separar o trabalho e o pensamento. Mas o trabalho no setor
1995). Eis o que, então, faria dessa palavra uma espécie de senha
de serviços ainda complica muito as tentativas de separação entre as
para exprimir um sentimento e, talvez, até mesmo, um ressenti-
operações de execução e o sentido da ação. O próprio trabalho im-
mento profissional em progressão. E isso, para além mesmo do in-
põe uma responsabilidade renovada quanto ao "objeto" e, por isso, a
teresse crescente que ela suscita quando se trata de abordar as ques- definição das tarefas é influenciada, mais do que em outras circuns-
tões da transmissão profissional entre as gerações (Volkoff & Bardot, tâncias, por avaliações conflitantes. O "objeto" trabalhado, que se
2004; Montandon & Trincaz, 2007). tornou sujeito, deixa- ainda menos que anteriormente- os traba-
Nos serviços- sejam eles de guichês de comércio, saúde, en- lhadores em paz, multiplicando os "problemas de consciêncià'.
sino, justiça ou, ainda, do trabalho social no sentido amplo (Cerf e , Com certa malícia, Hugues escrevia o seguinte: "Talvez, seja
Falzon, 2005, Hubault, 200 1; Roger, 2007),- o vocabulário do ofício \ necessário lembrar que servir opõe-se a desservir e que a fronteira
não pode, por múltiplas razões, tomar o sentido que tinha para os I que separa os dois termos é tênue, indistinta e instável" (1996, p. 62).
operár'ios pré-tayloristas - os "operários de ofícios" ( ''ouvriers de Os objetivos do trabalho e sua qualidade estão no âmago dos dilemas
métiers") -, nem sequer o que, ainda mais cedo, lhe havia sido
atribuído pelas corporações artesanais ou, até mesmo, o compag-
* Além do desenvolvimento dos "services à la personne" [serviços prestados à pes-
nonnage**. É difícil, também, estabelecer um vínculo direto entre soa], a lei francesa n. 2005-841 de 26 de julho de 2005 refere-se a diversas medidas em
o uso da palavra, por exemplo, na prestação de serviços ( "services favor da coesão social. Tais serviços - compreendendo, atualmente, 20 atividades re-
pertoriadas pelo Código de Trabalho francês (artigo Dl29-35)- foram regulamenta-
dos pelo Decreto n. 2007-854 de 14 de maío de 2007 que inclui Les services à la famille
[Serviços prestados à família, tais como guarda de crianças e cursos domiciliares- por
* "Ministere" e "métier" são duas palavras saídas de uma mesma forma etimológica, exemplo, apoio escolar e assistência administrativa]; Les services de la vie quotidienne
no caso o latim "ministerium". A forma "ministere" entrou na língua pela via erudita; a [Serviços prestados na vida cotidiana: por exemplo, tarefas domésticas, preparação de
outra "métier'; pela via popular. (N.T.)
refeições, pequenas reformas, jardinagem]; eLes services aux personnes âgées, handica-
** Literalmente, companheirismo; no século XVIII, associações de solidariedade en- pées, ou dépendantes [Serviços prestados às pessoas idosas, deficientes ou dependentes,
tre operários. (N.T.)
tanto no domicílio, quanto em seus deslocamentos]. (N.T.)
282 Trabalho e poder de agir Conclusão 283

do justo e do injusto, do verdadeiro e do falso e, até mesmo, do bem Essas diferentes instâncias "circunscrevem, aqui, as cenas sociais
e do mal. Eles se tornaram pontos de colisão e conexõe~ de antino- em que se desenvolvem três processos distintos: a elaboração de
mias profissionais (Flageul-Caroly, 2001; Fernandez et al., 2003; uma competência específica, o acesso à identidade e a edificação
Buscato, Loriol, & Weller, 2008). As técnicas são as do uso de si e das regras sociais" (2003, p. 228). Como as instituições da empresa
dos outros, em vez da coisa física. Nos serviços, tudo parece, por- se revelam, atualmente, incapazes de "oferecer cenários sociais de
tanto, complicar o emprego da palavra ofício e, em particular, a reconhecimento ao :processo de subjetivação1em situação de traba-
"mistura dos gêneros': incentivada por esse trabalho, entre vida lho" (p. 228), o desejo de reconhecimento das pessoas dq ramo [gens
profissional e vida pessoal. Em todos os sentidos do termo, ele "re- de métiers] rompe-se "entre o nível micro coletivo e o da empresà'
mete" ao trabalho os arrebatamentos afetivos entre pessoas, viven- (p. 230). De fato, "quanto maior for a diferença entre a oferta iden-
ciados por cada sujeito em sua história própria (Lhuilier, 2005; titária veiculada pelas regras de gestão, por um lado, e, por outro, a
Villatte, Teiger, & Caroly, 2004; Molinier, 2005). Ele é "psicologica- experiência individual e coletiva de subjetivação em situação de tra-
mente" mais intenso e mais carregado. Mais "interior': também, e balho, tanto mais predominante será o sentimento de mal-estar em
muito menos delimitado pelas propriedades físicas ou químicas da relação à construção de uma identidade de ofício" (p. 226). Ora,
matéria.
nesse nível é que intervém o papel da hierarquia de proximidade
Além de não terem feito recuar a palavra ofício, todas essas como redutora das tensões. Esse "ator híbrido" - que, ao mesmo
vicissitudes, segundo parece, acabaram por despertá-la na lingua- tempo, está do lado do controle e do lado das equipes - é o único
gem dos profissionais dos serviços. Se acrescentarmos a inflação da capaz de "construir uma síntese suportável entre lógicas a priori ir-
palavra nos setores da engenharia industrial e de gestão ou da enge- reconciliáveis" (p. 227). Afinal de contas, "esse elo" frágil é, atual-
nharia de formação ou, ainda, a amplitude assumida pelas práticas mente, o único capaz de desviar o movimento de dissonância para
das listas de discussão eletrônicas entre pessoas do ramo [gens de culminar na "estabilização das formas sociais de ofícios nos univer-
métier] (Duveau, 2007, Barcellini et al., no prelo), resta-nos levar a sos organizados" (p. 227). Assim "a regulação hierárquica de proxi-
sério o diagnóstico de F. Osty. Nas palavras que exprimem o traba- midade constitui um espaço de regulação privilegiado" (p. 236), no
lho, a de ofício não é um resíduo: "Longe de ser marginal, esse fenô- qual "o reconhecimento do sujeito é tão crucial quanto o das com-
meno social de afirmação dos ofícios poderia perfeitamente ser am- petências" (p. 230).
plificado, sob a ação dos novos desafios de produção, reabilitando,
nesse caso, o ofício como uma configuração social e organizacional
da modernidade'' (p. 238). Ainda falta compreender o motivo e, so- • 2. RECONHECIMENTO? •
bretudo, em que, no preciso momento em que a significação socio-
lógica da palavra parecia apagar-se, seu sentido psicológico parece Essa análise introduz imediatamente um paradoxo. Seu interesse é
estender-se. Ainda falta compreender em que ponto um conceito incontestável. Mas, enquanto ela se situa no campo da sociologia,
psicológico de ofício pode revelar-se útil. seu domínio é "psicológicd' ou, mais exatamente, mobiliza, há mui-
Antes de responder a esta pergunta, será resumida a análise to tempo, um dos conceitos-chave de uma das correntes da clínica
de F. Osty, para quem "o desejo do ofício': que se exprime pela per- do trabalho, a do reconhecimento na psicodinâmica do trabalho.
sistência da palavra, enraíza-se em uma construção social em três Sem dúvida, nessa análi~e, ela acrescenta a contribuição "híbridà'
"instâncias': O trabalho e o profissionalismo fazem com que o ofício da hierarquia de proximidade. No entanto, ao proceder assim, pro-
encontre suas raízes nos saberes da ação frente aos acontecimentos. pondo esse novo protagonista concreto na psicodinâmica do reco-
O coletivo garante a socialização e a identificação a uma comunida,- nhecimento, ela não colide forçosamente com os pressupostos da
de. de ofíçio. Por último, a profissionalização estabiliza as reg~as. psicodinâmica do trabalho. O julgamento de utilidade pronunciado
- ·~"---- ...._
284 Trabalho e poder de agir Conclusão 285

pela hierarquia sobre o trabalho realizado pelos operadores é dado que "se ocupam ativamente em assegurar uma disposição motiva-
aí como o complemento indispensável do julgamento efCpresso pe- cional a fim de que se efetuem, sem resistência, os deveres e as tare-
los pares. E, seja como for, é exatamente o reconhecimento pelo fas previstos" (ibid., p. 262). E. Renault havia observado acertada-
outro que se encontra, aqui, no centro da questão. Aí, o reconheci- mente, no rastro de H. Kocyba (2007), até que ponto essas "formas
mento é intersubjetivo. Independentemente do fato de incidir sobre de reconhecimento falsificadas" correspondem, de fato, a um recal-
a utilidade ou a beleza, ou de ser obra da hierarquia ou dos pares, é camento da atividade real que não poupa os principais interessados
exatamente a intersubjetividade do reconhecimento que, nesse caso, (Renault, 2007, p. 132 e 134) 1 . A conceitualização do reconhecimen-
parece ser constitutiva do ofício. A "retribuição simbólicà' e as "grati- to é, portanto, um campo de trabalho aberto. Até mesmo para além
ficações" que lhe estão associadas, provenientes da hierarquia, é que das estritas questões do trabalho e da precariedade social, seu status
tornam "útil" aquele que trabalha; além disso, o julgamento dos pares é já objeto de acirradas discussões (Butler, 2006, p. 123-176).
é que outorga o pertencimento ao ofício. Aqui, ofício se torna sinôni-
mo de comunidade ou de coletivo de pertencimento (Dejours, 2007,
p. 21). Este é, também o caso no trabalho de F. Osty mesmo que- e • 3. RECONHECER-SE EM ALGO a
trata-se de um aspecto importante - a edificação de regras sociais
de gestão ocupe uma posição completamente diferente do que ocor- A essa altura, no campo da análise do trabalho, convém procurar
re na psicodinâmica do trabalho (Osty, 2003, p. 205). uma alternativa do lado de uma conceitualização psicológica do
Não posso aprofundar, aqui, as discussões gerais abertas a ofício. Como tentei mostrar em vários capítulos desta obra, é neces-
propósito das estratégias de reconhecimento promovidas nas em- sário chegar ao ponto de se interessar pelo ofício no indivíduo e não
presas contemporâneas e nas organizações. Tampouco posso abor- apenas pelo indivíduo no ofício definido - em resumo, do ponto de
dar, neste contexto, a questão dos modos de reconhecimento da vista sociológico- como comunidade de pertencimento. É necessá-
precariedade social crônica que abala a relação com o trabalho na rio chegar ao ponto de compreender a função psíquica interna do
sociedade contemporânea. Aliás, G. Le Blanc acaba de apresentar coletivo do ofício2 • Certamente, como já foi visto na introdução
tal problemática com uma visão bastante criativa do trabalho social desta obra, convém ter uma ideia precisa acerca do coletivo que não
(Le Blanc, 2007, p. 282 ss.), do qual se pode compartilhar, sem re- se pode reduzir ao trabalho coletivo de cooperação atual entre su-
serva, a ambição dessa análise. jeitos (Caroly & Clot, 2004). Ele não está "situado" apenas aqui e
Limitemo-nos a sublinhar que se começa a avaliar até que agora entre eles. É necessário percebê-lo, igualmente, como a histó-
ponto o reconhecimento do sofrimento em situação de trabalho - ria do coletivo em cada trabalhador: como o interlocutor [répon-
longe de ser a ocasião de transformações efetivas da organização -, dant] coletivo interno, a memória e o diapasão profissional de que
pode tornar-se também um novo campo de gestão dos recursos hu- cada sujeito pode dispor em seu foro íntimo e para si mesmo, a fim
manos que encontram seu lugar no organograma ou no mercado de agir. O ofício não existe somente entre os profissionais, mas em
(Clot, 2006a; Clot, no prelo; Le Blanc, 2007, p. 246-247). Assim, a
propósito dessa noção, o próprio A. Honneth - o qual, no entanto,
1
tanto contribuiu para instalá-la no campo das ideias- chegou a es- A confusão mantida entre a atividade e o "fazer': no artigo de E. Renault, fecha,
infelizmente, a porta que havia sido entreaberta por ele. Para uma discussão sobre este
crever que existe aí uma "inextricável mixórdia de confusões con- ponto, podemos nos referir, ma~s acima, à "Introduçãô' deste livro.
ceituais e de questões não resolvidas" (2006, p. 252). Apesar de ser, 2
Escrever coletivo de ofício é, aqui, um dentilhão [No original, pierre d'attente: con-
sem dúvida alguma, unilateral, o diagnóstico leva-o, na esteira de junto de pedras ou tijolos que ressaem na extremidade de uma parede para neles
amarrar-se outra parede (N.T.)]. A diferença entre métier, trabalho coletivo e coletivo
alguns outros autores, a distinguir reconhecimento e reconhecimen- de trabalho deveria esclarecer-se mais adiante; entretanto, é evidente que o métier su-
to. Ele adverte contra as ideologias gerenciais do reconhecimento pera o perímetro do coletivo profissional.
286 Trabalho e poder de agir Conclusão 287

cada um deles. O paradoxo é, assim que ele não pode viver senão a- circunstância, ela equipa a ação individual. Ao desenvolver com os
partir deles, ao passo que os supera. I
outros no exterior de si essa postura, o sujeito amplifica no seu in-
Sem dúvida, é necessário que o sujeito faça parte de urna co- terior esse "contato social consigo mesmo" (Vygotski, 2003), que é o
munidade profissional para que haja ofício. Mas, para além da even- interlocutor [répondant] coletivo da atividade individual. Essa pos-
tual cooperação em curso no trabalho coletivo, esta deve ser capaz tura genérica inscreve, portanto, o ofício em urna história técnica,
de se "conservar": para determinado meio de trabalho, tal operação cognitiva e, até mesmo, corporal.
ocorre justamente no repertório das atividades profissionais possí- Mas quando ela existe e, ainda mais, quando desapareceu, ela é
veis ou impossíveis sob o registro das ações incentivadas ou inibi- também objeto de urna afetividade singular. Ela se apresenta sob a
1
das, no teclado dos gestos previsíveis ou deslocados. Ela se sedi- forma de um sentimento bem particular: o de viver a mesma história
rnenta no patrimônio coletivo de gestos e de palavras a fazer ou a com a ajuda da qual as provações presentes que afetam os profissio-
não fazer, a dizer ou a não dizer, de técnicas corporais e do espírito; nais são categorizadas e ingeridas. Incorporada, essa postura profis-
no legado dos subentendidos de urna história coletiva. sional pode tornar-se um instrumento de trabalho; privada desse
Essa história contém- para além da série dos gabaritos e "pa- instrumento genérico, a atividade individual fica desnorteada. Em
drões" pré-trabalhados, corno um enigma (Bruner, 1996) - a inte- resumo, nessa função, o ofício é, na atividade, um instrumento, ao
gralidade dos equívocos do trabalho coletivo, a memória dos fra- mesmo tempo, técnico e psicológico para cada s_uj~ito. Ele é, simul-
cassos, das perguntas sem resposta e das proezas realizadas, mas taneamente, relativo ao objeto trabalhado, a si mesmo e aos outros
também as das "pequenezas" em que insistem o não realizado e o (Vygotski, 1985, p. 43).
realizável em gestação. Essa história deve ser endossada. É, inclusi- Agora, sabe-se que, nas situações profissionais em que, p~r
ve, urna dívida que se contrai a contragosto e sem seu conhecirnen- razões a descobrir em cada circunstância, a recriação dessa garantia
to ao ingressar no ambiente de trabalho em que a atividade se de- não é cuidada, a psicopatologia do trabalho nunca está longe. Por-
senrola; urna dívida que deve ser reconhecida e quitada por cada que os que trabalham não podem mais se reconhecer em algo dife- <
um - sozinho com os semelhantes, sozinho em participar dela ou rente, além da sua história pessoal. Quando o gênero profissional
recusá-la- na re-criação desse "interlocutor interno comum'' (Zalt- - designamos, assim, a memória coletiva - é maltratado, traba~ ?s.
zrnan, 1999, p. 256). Ela envolve o queM. Bakhtine, em um contex- lhadores deixam de se reconhecer naquilo que fazem. Sua atividade e
to totalmente diferente, designava corno a responsabilidade do ato desestabilizada. E é, antes de tudo, nesse ponto que tem origem um
(Bakhtine, 2003). Porque essa história coletiva é "algo" que se pode desejo de reconhecimento sem fundo, deslocado para hierarquias
apagar sempre. Ela pode, até mesmo, tornar-se um estorvo em rela- que lhe atribuem o destino dos "reconhecimentos falseados" tão so-
• ção à tarefa prescrita. A única garantia, portanto, de sua transmis- bejamente conhecidos. Aliás, sem a mínima possibilidade de che-
são é a verificação pelos operadores de que ela continua sendo um gar a responder a esse desejo de reconhecimento, mas com todos os
meio apropriado para trabalhar e merece ser mantida. Pode-se es- riscos de alimentar mal-entendidos a respeito de seu objeto.
quecer, acuado pelas organizações do trabalho deletérias - esse é, Pelo fato de terem deixado de reconhecer seu ofício naquilo
frequentemente, o caso -, que fazer seu trabalho é também desone- que fazem - este havia perdido sua função psicológica interna de
rar-se da trama genérica desse "algo" comum. Mas é esquecer, ao
mesmo tempo, os recursos que se pode tirar dessa situação. Porque
desonerar-se, por sua atividade própria, de sua participação na re- 1 o sentimento que permite se reconhecer em uma história diferente da própria é
novação dessa postura coletiva da atividade individual tem urna particularmente mobilizado na intervenção proposta pela clínica da atividade. As ~e­
zes, ele já não existe. Nesse caso, procura-se restaurá-lo ao provocar, a ~artlr de regis-
contrapartida: ·isso dá também os meios de assumir liberdades em tros da atividade comum, as surpresas suscetíveis de despertar as emoçoes de natureza
relação a ela para aumentar seu poder de agir. Retocada em cada profissional para enriquecê-las e cultivá-las com o coletivo.
Conclusão 289
288 Trabalho e poder de agir

interlocutor [répondant]- é que um número crescente de profissio- ~ 4. A ARQUITETURA DO OFÍCIO"


nais não se reencontram mais na sua atividade e solicita:p1, de forma
Vamos indicar com precisão, mais abaixo, o que se pode ainda en-
tão maciça, "ser reconhecidos". Na ausência de previsíveis genéricos
tender por reconhecer-se em sua atividade. Isso é indispensável para
disponíveis, o coletivo profissional reduz-se, nesse caso, a uma reu-
levar a termo a tentativa de propor um modelo psicológico e dire-
nião de indivíduos expostos ao isolamento. Como a produção cole-
cionado para o desenvolvimento do conceito de ofício. Gostaría-
tiva dos previsíveis genéricos do ofício está suspensa, cada um indi-
mos, porém, de chamar a atenção ainda para um aspecto. Acaba-
vidualmente se confronta, então, com as surpresas desagradáveis de
mos de mencionar, com insistência, a importância de alguém se
uma organização do trabalho que pode deixar "sem voz" diante dos
reconhecer em alguma coisa para poder suportar as desilusões pró-
imprevisíveis do real. Sem interlocutor [répondant]. Mas convém prias da busca de reconhecimento endereçada ao outro. Mas esse
entender tal assertiva em sentido dialógico pleno: sem "sobredesti- "alguma coisà' não se limita ao gênero profissional definido mais
natário': para falar como Bakhtine (1984), sem "destinatário de acima. É também o resultado prático da ação: a "coisà' fabricada ou
emergêncià' a quem se dirigir. Ele faz falta justamente por ter dei- o serviço prestado que guarda o traço da qualidade do trabalho,
xado de reunir o passado com o presente, o mundo dos predecesso- "objeto-vínculo" com o utilizador. Reconhecer-se no que se fez é
res com o dos contemporâneos, as vozes familiares com as longín- estar seguro tanto da utilidade social do objeto ou do serviço, como
quas que deveriam fazer eco às preocupações atuais. de sua qualidade. Sabe-se que se pode duvidar disso, mesmo que
De qualquer modo, os que trabalham se voltam, então, "para seja reconhecido como tal pela hierarquia ou por uma parcela dos
cimà' - posição em que paradoxalmente o desleixo infligido ao ofí- colegas de trabalho. Pelo contrário, pode-se não ter dúvidas a esse
cio encontra, no entanto, frequentemente, sua origem -, ou seja, respeito, mesmo que sua utilidade econômica seja contestada pela
para os destinatários hierárquicos a quem solicitam uma reparação hierarquia. Reconhecer-se em alguma coisa pode, portanto, adqui-
imaginária: um reconhecimento pelo outro que corre o risco de se rir uma significação literal. Mas justamente: as propriedades físicas
tornar uma compensação factícia exatamente no lugar em que ha- do objeto industrial se prestam melhor a tal apreciação que as do
via desaparecido a possibilidade de se reconhecer em algo. Algo que serviço. E, assim, pode-se compreender que, diante da maior difi-
havia sido maltratado pela organização. Algo que a etimologia da culdade para se reconhecer no objeto trabalhado 1, os operadores
palavra exprime, finalmente, com suficiente nitidez, entre ministe- dos serviços experimentem maior necessidade de se reconhecer no
rium e mysterium. No exato momento em que essa possibilidade ofício, no próprio gênero profissional, no coletivo como sobredesti-
original de se reconhecer no interlocutor [répondant] do ofício, de natário do esforço consentido (Clot, 2007b) e, até mesmo, na res-
encontrar um sobredestinatário com o qual se comparar, permane- pectiva função oficial. É o que explica, em minha opinião, o desper-
ce, sem nenhuma dúvida, o melhor meio de suportar o fato de não tar da palavra na linguagem cotidiana do trabalho.
ser reconhecido pelo outro; que esse outro se encontra, em posição Mas o ofício não é apenas a memória dos previsíveis genéri-
vertical, na linha hierárquica ou, até mesmo, em posição horizontal, cos conservados em uma história. Ofício e gênero profissional não
na comunidade dos pares. É, com bastante frequência, quando al-
guém deixa de se reconhecer no ofício, tal como esse se exerce, que
1 Evidentemente, conviria proceder a algumas distinções. Com efeito, o objeto ma-
a demanda de ser reconhecido se torna mais insistente. Devido ao nufaturado escapa mais facilment~ de seu produtor, tornando-o muito mais indiferen-
reconhecimento estar desprovido de raizes. Ao passo que se reco- te; o operador reencontra-se aí menos diretamente. Por sua vez, o serviço p;estad.o é
menos separável da atividade própria e da atividade do outro. Nesse caso, e poss1vel
nhecer em algo, ou seja, também fora de si e do outro, é, sem dúvi- reencontrar-se mais facilmente a si mesmo, mas é algo totalmente diferente que o ou-
da, o meio de levar o mais longe possível as transformações da or- tro seja capaz de reconhecer sua qualidade. Desse modo, a definição coletiva dos "ga-
ganização do trabalho. baritos" do ofício se torna vital.
290 Trabalho e poder de agir Conclusão 291

são sinônimos (Litim, 2006; Roger, 2007). Agora, convém definir um, atravessa as gerações e, inclusive, cada profissional. Transferida
melhor a arquitetura conceitual da palavra e, sobretudQ, a perspec- para a atividade, ela continua também potencialmente morta, na
tiva direcionada para o desenvolvimento que lhe aplicamos para maior parte das vezes, organizada por subentendidos; trata-se de
"modelizar" o ofício na psicologia do trabalho. Vamos começar por um traço de união que corre sempre o risco de ser suprimido entre
resumir: no sentido em que já o definimos mais acima, o ofício é, ao os sujeitos e em cada um deles. É ela quem dá o tom e, como um
mesmo tempo, pessoal, interpessoal, impessoal e transpessoaP. Por- diapasão genérico, assinala que o trabalho coletivo em curso é o de
tanto, estruturalmente, ele é conflito. A seu propósito, pode-se reto- um coletivo de trabalho inscrito em uma história (Caroly & Clot,
mar a fórmula de Vygotski, frequentemente utilizada nesta obra: 2004) e capaz de orquestrar a atividade.
em movimento é que um ofício mostra o que ele é. E, quando esse
movimento é impedido ou contrariado, é que o trabalho se torna
.. 5. liGAR, DESLIGAR, REliGAR ..
um risco para a saúde.
Tudo está ligado. Ou, pelo menos, deveria estar para que não Portanto, o ofício nem sempre está vivo pelas mesmas razões. Por
se verifique tanta dissipação da energia psicológica indispensável exemplo, a prescrição impessoal não está condenada à necrose. En-
para a vitalidade profissional nos ambientes de trabalho. O ofício quanto psicólogos do trabalho, à semelhança do que eu próprio fiz
tem várias vidas simultâneas, e isto é que torna possível seu desen- mais acima, temos insistido frequentemente sobre os ri~~o~ ele ne-
volvimento. Na organização e nas instituições, ele existe, impessoal, croses profissionais ou de desestabilização genérica, cuja responsa-
embutido nas tarefas prescritas. Mas não está inteiro aí. Para que ele b1ITàiide é imput~da às empresas ou organizações. Mas este nem
continue a viver aí, é necessário que ele esteja vivo em outro lugar. sempre é o caso e, sobretudo, quando é o caso, trata-se de um obs-
Portanto, ele vive também - ou morre - entre profissionais e em táculo no caminho da eficácia em longo prazo de tal modo que nin-
cada um deles na motricidade dos diálogos em que se realizam, ou guém pode ver aí uma solução duradoura. Portanto, acontece que a
não, as trocas intrapessoais e interpessoais sobre o real do trabalho. prescrição impessoal de origem hierárquica antecipe o desenvolvi-
Os profissionais envolvidos na atividade são diretamente responsá- mento de um ofício e que reformas institucionais consistentes se-
veis por essa vida. Trata-se do trabalho coletivo para realizar atare- jam a origem de uma renovação da criatividade profissional. A or-
fa e repensá-la conjuntamente na atividade conjunta. Essa atividade ganização do trabalho não está destinada apenas a "reconhecer" os
"responsável" produz e mantém a quarta modalidade de existência ofícios existentes. Ela pode, inclusive, e deve trabalhar para fazer
do oficio, esse "algo' abordado, durante tanto tempo, mais acima: a reconhecer a pertinência de novas atividades ainda inexistentes e,
história e a memória profissional só podem permanecer um meio de no entanto, próprias a comprometer profissionais em novos obje-
agir no presente e de "descobrir" o futuro se forem mantidas por eles. tos, a partir de novos quadros e de novas funções, eventualmente
Essa memória é, aqui, designada como transpessoal, visto que não criadores de emprego. Nesse plano, a atividade de direção é tam-
- ---------------,
pertence a ninguém, é um meio disponívelpara todos e para cada bém instituinte. O subdesenvolvimento dessa capacidade social
para instituir novas atividades ou, até mesmo, organizar correta-
1
Aqui, trata-se, efetivamente, do ofício. Já cheguei a escrever, equivocadamente, que
mente as tarefas pode, inclusive, ser percebido como um obstáculo
essas quatro instâncias eram instâncias de atividade; contudo, esse não é o caso. O ao desenvolvimento do ofício nos ofícios. Tais situações "instituintes"
impessoal diz respeito à tarefa, enquanto o transpessoal concerne ao gênero profissio- em que se desenrola a criação ou a re-criação de novas tarefas ou
naL Estes últimos podem ser os instrumentos ou os objetos da atividade dos sujeitos,
mas nunca a própria atividade; eles são instituídos pela atividade pessoal e interpessoal. funções sociais mereceriam uma série de análises que viriam comple-
Estas últimas são instituintes. tar as que já existem (Prot, 2003; Henry, 2007). Em seu princípio, o
Conclusão 293
292 Trabalho e poder de agir

impessoal não é, portanto, amorfo 1 . Hoje, porém, a conjuntura exi- atividade. Vale dizer: procura-se organizar uma passagem ou uma
ge, sobretudo, muita responsabilidade entre os profissionais para transferência de uma para a outra, entre as quatro dimensões do
que a necrose impessoal de ofícios mal gerenciados pelas organiza- ofício, para fazer de uma o meio do desenvolvimento da outra.
ções não venha a envenenar, obliterando o desenvolvimento desses Aqui, não hesitaremos em falar de migrações funcionais entre as
ofícios, sua vida pessoal. dimensões impessoais, pessoais, transpessoais e interpessoais do
ofício na vida dos sujeitos. Talvez, inclusive, essas reorganizações
Ou, dito por outras palavras, tudo está ligado, mas tudo pode
• também ser desligado. No trabalho, o sentimento de viver a mesma funcionais entre as quatro instâncias do ofício - suas agencies [agên-
·história pode extinguir-se, dando livre curso à inflação de discus- das], para retomar o vocabulário da nossa "Introdução" - é que
sões entre pessoas que, rapidamente, toma o lugar da deflação das podem explicar seu desenvolvimento. Sua vida é nômade: localiza-
disputas profissionais. Um ofício, privado dos recursos vitais do tra- da e, ao mesmo tempo, deslocalizada.
balho coletivo interpessoal, sem interlocutor [répondant] transpes- Sem dúvida, esse processo migratório pode fracassar, como é
soal, pode degenerar em um face a face devastador entre um exercí- frequentemente o caso, e uma localização abusiva, vencê-lo. Se de-
1cio pessoal solitário e várias injunções impessoais factícias. Essa senvolver é retirar o que envolve, o desenvolvimento pode sempre
degenerescência pode tornar-se, então, a mola propulsora de um ficar prisioneiro dos invólucros em que está fixado. Ou seja, nada
desejo pessoal de reconhecimento, que exige reparação naquele as- garante antecipadamente um círculo virtuoso do processo direcio-
pecto em que é impossível obtê-la. Por conseguinte, generaliza-se, nado para o desenvolvimento, definido dessa maneira. O círculo
paradoxalmente, uma verdadeira despersonalização da atividade, vicioso das migrações impossíveis faz parte, também, dos destinos
ou seja, exatamente o contrário do que P. Malrieu designou, de do desenvolvimento do ofício. Melhor ainda, muitas vezes, é assim
modo auspicioso, como uma personalização do trabalho (Malrieu, que se pode explicar sua degenerescência. Convém, então, conside-
2003, p. 69-102)2. rá-la como o resultado de um desligamento das quatro instâncias
É ao encontro desse desligamento ameaçador que vai a ação do ofício. Eis o motivo pelo qual o desenvolvimento do ofício pode
da clínica da atividade, com ajuda da metodologia e dos métodos ser analisado como uma discordância criativa ou destrutiva entre as
analisados mais acima. Eles consistem sempre em restaurar a dispu- diferentes funções que ocupa na vida social e pessoal. Mas, sem dú-
ta profissional para fazer recuar as discussões entre pessoas que vida, convém precaver-se, aqui, contra toda abordagem ingenua-
continuam envenenando, em ritmo crescente, a vida profissional. mente sistêmica. É preferível confiar as molas propulsoras do dina-
Ao proceder assim, ela procura também colocar, de novo, o ofício mismo do ofício à "disputa" entre profissionais, à disputa entre
em movimento até a transformação da tarefa prescrita. Seu h o ri- experts, inclusive os organizadores. Esse é o dado que, no essencial,
zonte ·é o desenvolvimento do poder de agir individual e coletivo funda uma clínica da atividade. Porque essa disputa é fonte de vita-
sobre a organização impessoal do trabalho, para além dela e para o lidade profissional. Nesse aspecto é que o ofício se destila. Sem ela,
desenvolvimento dessa "instância" impessoal do ofício. Se esse im- torna-se difícil conservar a vitalidade da atividade pessoal ou da
pessoal tem um devir, ele pode constituir, então, um recurso para a organização impessoal; inversamente, nesse aspecto também, en-
contram-se os recursos essenciais que, em compensação, uma e ou-
tra podem mobilizar para seu próprio devir.
1
É assim que compreendo, por enquanto, a preocupação perfeitamente legítima de
Por analogia com <+. abordagem vygotskiana do desenvolvi-
D. Lhuilier evocada no prólogo desta obra a propósito do problema da instituição.
Sobre esse ponto, pode-se fazer referência, também, à observação de M. Litim ao su- menta da significação das palavras (1997, p. 481), pode-se represen-
gerir, por comparação, que a instituição poderia ser o interlocutor da sociedade (2006, tar as coisas deste modo: o ofício absorve os conteúdos técnicos, cog-
p. 52). Conviria, também, começar a debater, sobre esse ponto preciso, a contribuição
nitivos e afetivos, tirados de todo o contexto profissional em que ele
de C. Castoriadis (2002, p. 22-55).
2
Ver, também, Baubion-Broye (1998). se faz atualmente, alimenta-se deles e põe-se a designar, ao mesmo
295
Conclusão
294 Trabalho e poder de agir

menta corrente, percebe-se indiretamente o que é um ofício. Ob-


tempo, al~o maior e menor do que está contido na sua definição
serva-se como ele passa do exterior para o interior da atividade in-
geral considerada fora de qualquer contexto: mais porque o círculo
dividual e coletiva, como sai dela também para retomá-la, se houver
de suas possibilidades se amplia em função do poder de agir efetivo
empenho dos outros trabalhadores.
em cada situação singular. Ao assumir expressão na vida, ele adqui-
Aquela ou aquele que "entra'' em uma situação de trabalho,
re, como instrumento do poder de agir, um alcance genérico menos
sem conhecê-la previamente, tem de começar, não tem outras esco-
porque o valor geral do ofício é encolhido e limitado apenas ao raio
lhas senão cumprir a prescrição que, inicialmente, é o único recurso
do contexto dado. Se o ofício fornece o equipamento à atividade, em
para conseguir fazer o que deve ser feito. O impessoal da tarefa -
compensação, esta o modifica. Ela o amplia e, ao mesmo tempo, 0
sobretudo, se esta foi bem concebida- revela-se, então, como algo
e~colhe. _o campo de exercício do ofício se desenvolve por prolifera-
precioso para o desenvolvimento da atividade. Ele é mesmo, no co-
çao na VIda concreta e se enriquece graças à especialização dos do- meço, a fonte principal da ação na qual o novato vai buscar suas
mínios e das atividades em que o ofício é mobilizado. Simultanea- razões de agir. Mas a descoberta dos obstáculos do real não deixará
mente, porém, este fica empobrecido pela estrita especialização. Há, de expô-lo ao conflito existente entre a prescrição impessoal que ele
portanto, um futuro do ofício, em parte, imprevisível, na atividade procura utilizar e o leque das atividades pessoais que se desenrolam
individual e coletiva. A multiplicação dos contextos de seu exercício à sua volta. Há ofício e ofício.
se torna, então, decisiva para que ele conserve sua vitalidade. Superar esse conflito é, ao mesmo tempo, indispensável e di-
Felizmente, não há harmonia rigorosa e definitiva entre o ofício fícil. De fato, a imitação direta daquilo que se faz, realmente, na
e o gênero profissional onde ele ocupa um lugar na atividade. Vários atividade dos mais antigos não garante o sucesso. Como já conse-
gêneros profissionais podem convergir no âmago do mesmo ofício e guimos demonstrar (Clot, Fernandez & Scheller, 2007), a imitação
até mesmo, estar em conflito entre si. É ali o que mantém o ofício co~ direta pode revelar-se um obstáculo suplementar porque, do exte-
vida, conferindo-lhe um alcance geral em devir. Nem por isso 0 ofício rior, o novato limita-se a ver automatismos observáveis. É impossí-
"em geral" se dissolve em qualquer uma das realizações genéricas que vel reproduzi-los imediatamente porque só podem formar-se com
atravessa; pelo contrário, ele se refrata em tais realizações e pode des- base em suas próprias ações repetidas nas quais eles acabarão por se
prender-se delas. O ofício impessoal pode sair engrandecido e retoca- decantar. Ora, as particularidades dessas ações são precisamente in-
do no decorrer dessa transposição, tanto dos gêneros transpessoais, visíveis, não por serem dissimuladas forçosamente pelos mais anti-
quanto das atividades pessoais e interpessoais. Mas, a priori, tampou- gos, mas, sobretudo, porque, para estes, trata-se de problemas já
co pode ser descartado o risco de voltar rebaixado desses deslocamen- "resolvidos" em todos os sentidos do termo. Com efeito, para eles,
tos. A única garantia do movimento descrito, assim, é a atividade me- deixaram de ser objetos de pensamento, ao passo que tal situação é
diatizante dos sujeitos sobre todos os registros do ofício. considerada pelo novato como um conjunto de questões ainda in-
solúveis de um enigma.
Nessas condições, fica por resolver o conflito entre o ofício
• 6. ENTRAR NO MÉTIER • impessoal, embutido na tarefa, e o ofício pessoal, exercido por cada
um daqueles que estão à sua volta. Mesmo depois das justificativas
Agora, gostaríamos de sublinhar a que ponto a ação na clínica da
fornecidas por cada um daqueles a quem ele se dirige, o novato aca-
atividade nada inventa; a que ponto ela não faz senão reencontrar
ba constatando que, além de não convergirem, tais depoimentos
os mecanismos, quase sempre, invisíveis do desenvolvimento do
são, inclusive, contraditórios. No entanto, lá onde está o problema
ofício na atividade. Para atingir esse objetivo, e com a ajuda do mo-
está a solução. Sair desse conflito corrente ocorre, na maior parte
delo multifuncional, vamos analisar o ciclo de integração de um
das vezes, exatamente ao proceder à comparação entre a atividade
novato no contexto profissional. Com efeito, ao seguir esse movi-
296 Trabalho e poder de agir Conclusão 297

de uns e de outros. Tal comparação permite a conjugação. Quase no Todavia, nem todos os obstáculos desapareceram porque es-
sentido gramatical do termo, ela autoriza - sobretudo,1 ao ser capaz ses objetivos - aqueles, ao mesmo tempo, prescritos pela tarefa e
de tirar proveito da troca e do diálogo entre antigos - a declinação aqueles reinventados pela atividade coletiva - dão acesso a outro
da atividade, segundo as circunstâncias. Dizendo de outra maneira, conflito. Para atingir esses objetivos, não há convergência entre os
o novato supera a dificuldade ao utilizar os recursos interpessoais gabaritos genéricos e os procedimentos gerais. Além de se adicio~a­
do ofício. Por enquanto, ele deu as costas para a prescrição impes- rem, eles sé subtraem uns aos outros. Estão, inclusive, em conflito.
soal que, inicialmente, lhe havia servido de fonte de inspiração. É As vantagens de uns não são as dos outros. Ainda se impõe mani-
ela agora que se tornou um obstáculo. Ela não lhe fornece nenhuma pular com destreza, experimentar, comparar. Desse conflito vai
ajuda para compreender o que poderia fazer, ou seja, o que os ou- emergir essa "digestão" da prescrição que transforma o novato em
tros fazem, mas de maneira diferente. Esses "outros", seus pares, um trabalhador experiente capaz de assumir certas liberdades, ao
tornam-se então objeto de uma investigação. Distinguindo-os entre mesmo tempo, com a tarefa e com o gênero profissional, porque ele
si, no fluxo das atividades conjuntas, é que ele começa a descobrir o domina os dois. Paradoxalmente, a atividade profissional é, enfim,
diapasão comum que lhes serve de referência, o gabarito das ações pessoal, o que ela não era no começo. Ela acabou por fazer seu o
que cada um retoca à sua maneira, as obrigações nas quais eles se ofício impessoal e transpessoal, graças aos recursos interpessoais
reconhecem juntos. do coletivo. O sujeito está preparado, pelas liberdades que pode as-
sumir agora em relação com os três ofícios endossados por ele - e
dos quais pode se servir para trabalhar- no exercício da "responsa-
• 7. O OFÍCIO QUE ENTRA • bilidade do ato". Ele é capaz de assumir pessoalmente o devir do
ofício.
O fato de serem eficazes não significa que tenham sido pres-
Mas nada o obriga a isso. Ele se tornou "como os outros': Ele
critas. O que se esboça, para o novato, sobretudo quando ele tenta
pode também ficar por aí. Ele é do ramo, de acordo com a simpáti~a
utilizar esses "atalhos" profissionais, apreendidos no decorrer da
expressão utilizada pela linguagem popular. No entanto, se ele nao
ação, é a amplitude dos subentendidos que acabavam tornando des-
trapaceia o real, ou seja, com o que ainda é difícil de fazer e resiste a
locados os gestos, que ele achava que fosse bom imitar formalmente
de início. O que ele percebe cada vez melhor- sobretudo se os an- todos, ele esbarra agora nos limites do próprio ofício no desenvol-
tigos chegam a falar entre si a esse respeito - são os previsíveis gené- vimento da atividade. Dessa vez, não como novato, mas como ex-
ricos da atividade que permitem "livrar-se da situação" diante do pert, ele enfrenta outro co!lflito: aquele que o deixa em dificulda~e
imprevisível. Interpessoal, o ofício abre-se, então, ao transpessoal. E na tarefa e muito mal equipado pelo gênero profissional de que dls-
o gênero profissional abordado neste livro - inicialmente, obstáculo põe para alimentar a expectativa de ser eficaz. Para responder às
invisível no qual se esbarra - torna-se matéria de reflexão para o convocações do real em que se verifica a aliança entre o impossível
novato: ele começa, no melhor dos casos, a reconhecer-se em algo e o possível, é necessário que ele possa prosseguir a história do ofí-
que ele torna cada vez mais independente de cada um dos colegas. cio em e por sua própria atividade. Para que essa história "passe"
Ele o libera das atividades conjugadas dos pares. Ele o vê através de por ele impõe-se uma obrigação: ele terá de inventar. E para isso,
cada um, mas sem confundi-lo com cada um. Apropria-se dele, aceita de bom grado o inventário do já realizado e do já dito para
toma sua posse, ao mesmo tempo, avaliando que nunca será seu examinar todas as questões e chegar até as fronteiras em que o ofício
proprietário. E, finalmente, esse ofício transpessoal, objeto de in- ainda está contido. É necessário que, no trabalho coletivo com os ou-
vestigação e de pesquisa, transforma-se em meio de agir no real, em tros, ele possa também encontrar os novos meios que lhe permitirão
instrumento de ação. Ele era fonte de ações a tentar, mas agora está transpor essas fronteiras com eles e superar as ingenuidades e as ilu-
a serviço de metas, durante muito tempo, fora de alcance. sões que envolvem necessariamente qualquer coletivo de trabalho. A
298 Trabalho e poder de agir Conclusão 299

estilização do gênero profissional só pode se realizar por esse ato transformando-a. É evidente que já se sabe sobejamente que, hoje
responsável que nunca é, no entanto, um "solo" do ego,,nern sequer em dia, esse movimento é contrariado de forma maciça para ali-
urna ruptura solitária. Contudo, mediante esse preço, o novato me- mentar a menor cegueira a esse respeito (Auger, 2007). Mas pode-se
tamorfoseado em expert acabará por tornar-se urna espécie de au- também pensar que o esforço para transformar os círculos viciosos,
tor em seu ofício. Ele não é mais somente do ramo [être du métier]. nos quais se perdem tantas existências profissionais, em círculos
Ele possui um ofício [avo ir du métier]. Ele realiza o ofício [faire du virtuosos, pelo menos, potenciais, não está completamente destitu-
métier]. E assumiu a responsabilidade por seu desenvolvimento. ído de sentido. Mesmo que esse objetivo esteja bem longe de ser
Aqui, o mais importante, para mim, é observar o seguinte: o plenamente conseguido (Idder-La'ib, 2005; Litirn, 2006; Litirn &
ofício é pessoal no final desse ciclo. No começo, ele é profundamen- Kostulski, 2006; Scheller, 2003).
te impessoal em cada um. É necessário tempo e os riscos de um
desenvolvimento imprevisível para que um profissional seja profis-
sional a título pessoal. O reconhecimento desse fato é tanto mais • 8. REENCONTRAR-SE •
crucial que o desenvolvimento do ofício em cada um se torna, en-
Tanto quanto se empenhar em restaurar esse tipo de ciclos parece
tão, um bom critério para avaliar sua vitalidade social. Mais pessoal
no fim para o trabalhador experiente, o ofício, no termo do ciclo ter um efeito real sobre a ~~ú<le dos profissionais envolvidos em tal
descrito aqui, é também mais impessoal se entendermos por isso o processo. E a razão é a seguinte: trata-se de um meio pelo qual eles
enriquecimento possível da tarefa, a partir da tarefa e para além se reconhecem na sua atividade. Reconhecer-se na sua atividade. É
dela. É que o trabalho coletivo sustentado pelo coletivo de trabalho sobre esse ponto que eu gostaria de concluir este livro. Aqui, vou
criou a possibilidade desses desenvolvimentos mutuamente inde- entendê-lo de duas maneiras: reconhecer-se nos resultados obtidos
pendentes. Por seu intermédio, a função psicológica do ofício se e no trabalho realizado, assim corno - eis o que é totalmente dife-
desenvolve em cada sujeito e sua função social se desenvolve na rente- reconhecer-se no que se faz de si na sua própria atividade.
organização. Por seu intermédio, também, a memória transpessoal Vamos insistir sobre este último aspecto. No começo deste livro e,
do gênero profissional se liberou de cada um para estar mais dispo- na sequência, muitas vezes estabelecemos o paralelo entre saúde e
nível para todos. A diferenciação das instâncias do ofício encontra- atividade. Estar em atividade é sentir-se bem. E sentir-se bem é ser
se com o desenvolvirnento 1 . o sujeito ou os sujeitos de urna atividade rnediatizante no decorrer
A dinâmica das migrações funcionais, em que cada função da qual progride o poder de agir. Sem experimentar, pelo menos
do ofício deve mudar de lugar, no meio do caminho, para que o algumas vezes, a possibilidade de instituir, por sua iniciativa, liga-
desenvolvimento do conjunto conserve um elã, não tem, apesar dis- ções entre as coisas, a atividade do sujeito no trabalho se torna in-
so, nenhuma garantia prévia. Inicialmente, objeto das tarefas a exe- suportável a seus próprios olhos. Prevalece o sentimento de que a
cutar pelo sujeito, ela se torna objeto a descobrir entre os sujeitos, vida profissional não vale a pena ser vivida. Ele não se reencontra
antes de converter-se em instrumento genérico da atividade. Nessa nela. Ele não se reconhece nela. Sua saúde vai, por sua vez, ressen-
qualidade, pode-se reencontrá-la corno objeto de urna estilização tir-se com tal situação. Ela é afetada pelo julgamento e pela avalia-
possível para continuar sendo o melhor meio de realizar a tarefa, ção subjetiva do que ele fez em relação ao que desejaria ter feito, ao
que realizou comparado c_orn o que poderia ter realizado, ao que
acabou realizando diante do que pensava ter feito.
1
Portanto, localização e deslocalização dessas instâncias não se opõem. E, aliás, sa- A atividade realizada, individual ou coletiva, é muitas vezes o
be-se como a des-diferenciação entre elas - ao suprimir as fronteiras profissionais do
sujeito em relação com o outro, com a organização, e, inclusive, essas delimitações em
que continua sendo possível quando urna grande parte do que pa-
si mesmo - organiza uma confusão que é fonte de angústia (Roger, 2007). recia desejável no ideal teve de ser descartado. Mas existe ainda
300 Trabalho e poder de agir Conclusão 301

outro aspecto. Ela é avaliada pelos trabalhadores que a julgam de melhor meio de defender um ofício- problema recorrente, hoje em
acordo com o que fizeram das possibilidades e impossibilidades que dia- é talvez ainda atacando-o. Eis o que justifica a perspectiva di-
o real de suas atividades lhes apresentou, das ocasiões que aprovei- recionada para o desenvolvimento adotada por nós (Clot, 2007b).
taram e daquelas que falharam, assim como das opções assumidas e
das renúncias às quais se submeteram. Eles se procuram e se reen-
contram ou se perdem nas realizações que, afinal de contas, são "ex- • 9. O NÓ DO PROBLEMA ~
traídas" dos conflitos em que haviam sido colocados pelo real de
Imagino que o leitor poderá se interrogar, para terminar, sobre a
suas atividades. Eles procuram reconhecer-se não só na atividade
parte que pode ser assumida pela organização oficial do trabalho,
realizada, mas também naquela que recusaram ou rechaçaram, ou
em todos os níveis hierárquicos, no encorajamento desses proces-
naquela que imaginam ainda possível. Pelo menos algumas vezes, sos. Essa parte é, sem dúvida alguma, decisiva. O reconhecimento
eles devem ser capazes de assumir sua vivência do trabalho que não do ofício em desenvolvimento pela hierarquia gerencial, até o nível
é uma "relação de complacência submissa com a realidade exterior" mais elevado, talvez seja um dos principais problemas do trabalho
que engendra o "sentimento de futilidade" evocado por Winnicott contemporâneo. Esse é o caso do que, às vezes, se designa por um
(1975, p. 90); eles devem poder encontrar naquilo que fazem esse "trabalho decente" 1• O primeiro critério é, sem dúvida, não substi-
sujeito defensável, aos seus próprios olhos, que não trapaceia com o tuir o reconhecimento do ofício pelas tentações do "reconhecimen-
real em nome de ideias preconcebidas e de arranjos do momento. to falseado': indivíduo por indivíduo. Se existir a preocupação rela-
Ou, dito por outras palavras, reconhecer naquilo que fazem, juntos tivamente a uma eficácia duradoura, é preferível que se evite quebrar
ou sozinhos, certa "verdade" de sua atividade. Entendendo por esse as molas propulsoras de um reconhecimento autêntico, aquele que
termo, além dos atos que "soam falsos", uma atividade autentica- passa, em primeiro lugar, pela possibilidade de que as mulheres e os
mente voltada para a eficácia dinâmica do trabalho "bem feito"!, homens se reconheçam naquilo que fazem. Mas é necessário que
assim como uma criatividade comprometida na concretização de eles possam reconhecer-se em algo que a própria organização reco-
possibilidades ainda não realizadas. Eles devem conseguir reconhe- nhece e respeita em seu desenvolvimento - o ofício -, para evitar
cer-se na paixão do real e não apenas no trabalho realizado. Porque que a demanda para ser reconhecido, afinal de contas, explicável,
é ela que preserva suas chances de experimentar, mais uma vez, deixe de ter lastro no real e venha a mergulhar inteiramente no
aquilo de que são capazes. É também ela que garante ao ofício essa campo do imaginário no qual ela se torna manipulável.
vitalidade conflitante entre instâncias diferenciadas, vitalidade da O reconhecimento do ofício nesses desenvolvimentos possí-
qual <eada trabalhador pode dispor. É ainda ela que sustenta o mo- veis pela organização passa, então, pela manutenção da instância
vimento de ligação e desligamento entre as instâncias no qual eles impessoal. Há uma responsabilidade hierárquica a exercer na con-
podem reconhecer-se. Essa possibilidade de se encontrar no seu cepção e na re-concepção das tarefas, das funções e dos referentes
ofício permite também que este seja defendido pelos trabalhadores profissionais. Mas essa responsabilidade é exercida de forma pre-
em questão. Não diretamente, mas por meios deslocados. Porque o cária quando a organização oficial do trabalho reivindica o mono-
pólio da definição do ofício em nome de imperativos indiscutíveis.
O impessoal acaba sendodesindexado e, em geral, desvitaliza-se e
1
Fonte principal do "bem -estar'; para retomar uma palavra bastante difundida, mas
difícil de ser considerada como um conceito. Chamando a atenção para o fato de que
o principal interesse do trabalho "bem feito" seja, talvez, o seguinte: nessa matéria, a
última palavra nunca é dita. Ele não pode ser definido de uma vez por todas. Por na- 1 Para retomar, ligeiramente modificada, uma ideia difundida pelo BIT (Rodgers,
tureza, ele é objeto de julgamentos controvertidos em que os valores podem ser justa- 2007) em oposição a "trabalho insuportável", tão bem descrito em uma obra recente
mente comparados entre si. (Théry, 2006).
302 Trabalho e poder de agir

envenena a organização. Porque ele está privado dos recursos trans-


pessoais produzidos pelo coletivo. Com efeito, para permanecer
vivo, o ofício é instável. Ele se torna anêmico se os "experts" - os
profissionais-, em contato com o real, não têm os meios ou deixa-
ram de ter o prazer de cuidar dele. Portanto, o papel da linha hierár-
quica consiste, também, em fornecer um "quadro" regulado a fim
Bibliografia
de incentivar esse "ato responsável': definido mais acima. E que,
também, lhe diz respeito.
Mas, agora, .sabe-se que, para se sentirem responsáveis pelo
devir do seu of:ício, os trabalhadores devem ser capazes de encon-
trar, nessa linha hierárquica, interlocutores que privilegiem o real
do trabalho em relação ao imaginário do gestor (Lorino, 2005).
Caso contrário, a articulação entre o impessoal, o transpessoal, o
interpessoal e o pessoal está em perigo. Caso contrário, a força ins-
tituinte da atividade mediatizante, para além do instituído - seja ele
impessoal ou transpessoal -, está também em perigo. Porque no
real da atividade comum é que reside o nó da questão. E, talvez, sua
solução. Mas, frente ao real, o desenvolvimento do poder de agir Almudever, B. (2007). Créativité individuelle et collectíve au travaíl: en-
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Benchekroun, T. H., 165, 167.
Bakhtine, M., 57, 76, 79, 89-90, 93-94, Bender, C., 30, 234, 245.
119-122, 131, 133, 13 7, 143, 145, Bernié, J.-P., 246.
150, 157, 168-171, 178, 194, 223, Bernstein, N. A., 39, 178, 191-192,246.
225,227-237,242,245-246,248-249, Berthoz, J., 53, 170.
254,257-258,270-272,286,288. Bertone, S., 41.
Balibar, E., 35. Bibikhine, V, 236-237, 258.
Ballouard, C., 150. Billiard, I., 67, 69-70, 75, 99, 110, 147.
Bandura, A., 15, 21, 35. Bloch, 0., 280.
Barcellini, F., 282. Bi:iehle, F., 19.
Bardot, F., 280. Bonnardel, N., 17.
Barone, S., 140. Bournel-Bosson, M., 17, 39, 236,
Bartlett, F., 29, 54. 266, 269.
Barus-Michel, J., 10. Boutet, J., 10, 136, 229, 238, 268.
Índice onomástico 337
336 Trabalho e poder de agir

Braudel, F., 65. Danon-Boileau, L., 264. Gardin, B., 238. Kocyba, H., 285.
Bres, P., 40. Darré, J.-P., 124, 137, 174, f36. Gatounes, F., 276. Korngold, S., 2.
Brétécher, P., 79. Darses, F., 4, 12. Giboin, A., 10. Kostulski, K., 11, 14, 16, 39, 77, 199,
Bril, B., 40. Daumézon, G., 75-76. Gori, R., 78. 245,266-267,269,273-275,299.
Bronckart, J.-P., 40, 60, 202,204, 227, Daurat, A., 6. Grosjean, M., 4-5, 40, 131.
246,266. Davezies, P., 14, 19. Lacomblez, M., 5.
Guichard, J., 202.
Bruner, ]., 18-19, 155-157, 161, 164, Lacoste, M., 131,238.
De Keyser, V, 12-13, 19. Guilbert, L., 36.
168,178,182,255,286.
De la Garza, C., 166, 177. Lalande, K., 167.
Brushlinsky, A., 22, 159.
Dejours, C., 12, 36, 56, 67, 78, 100, Haladjan, E., 264. Lancry, A., 36.
Buber, M., 233.
110-112,119,124,147,165,284. Halbwachs, M., 34. Laugier, S., 35.
Buet, J., 47, 51.
Deleuze, G., 13, 243. Henry, M., 39, 291. Laval, G., 80.
Bulea, E., 266.
Delphy, C., 119. Herbain, P., 276. Lecourt, D., 46.
Butler, J., 35, 119, 285.
Diallo, M., 20, 195. Hersent, M., 79. Le Blanc, G., 68, 205, 284.
Doray, B., 70, 80. Hirata, H., 119. Le Guillant, L., 56, 67-68, 70-73, 75,
Cahour, B., 4.
Dugué B., 14. Hoc, J.-M., 4, 7, 12, 103, 165. 77-79,81,99-101, 147.
Canguilhem, G., 7, 46, 54, 80, 109-
Duraffourg, J., 46, 49-50, 140. Hochschild, A. R., 6. Léontiev, A. N., 19-21, 27, 57-58,
114.
Carles, L., 39. Duveau, V, 282. Holquist, M., 233. 107,225.
Caroly, S., 10, 22, 34, 162, 166-167, Honneth, A., 284. Leplat, J., 3-4, 7, 12, 18-19, 103, 119,
171-172,174-175,282,285,291. Edelman, G., 266, 270. 165.
Hubault, F., 280.
Castoriadis, C., 292. Engestrom, Y., 14, 35, 40, 176. Leroi-Gourhan, A., 159.
Hugues, E. C., 281.
Caverni, J.-P., 146. Ey, H., 110. Levy, A., 2.
Hutchins, E., 165.
Cerf, M., 280. Lewin, K., 188, 194.
Huteau, M., 126.
Certeau (de), M., 107. Falta, D., 10, 14-15, 37, 39, 100, 117, Lhuilier, D., 22, 40, 19, 282, 292.
Chabaud, C., 166. 120, 130, 132, 136, 145, 151, 161, Linhart, R., 16.
Idder-Lai:b, C., 299.
Chassaing, K., 14, 40. 168,239,242,245,253,258,266.
Litim, M., 11, 16, 236, 279, 290, 292,
Clark, K., 233. Falzon, P., 7, 20, 36, 280.
Jacques, F., 233, 236. 299.
Comte, A., 46. Fernandez, G., 9, 16-17, 20, 39-40,
Jakubinski, L., 229, 233, 235. Locke, E.A., 15.
Corteel, D., 36. 124, 130, 155, 161, 163, 181, 191,
Jeantet, A., 6. Lorino, P., 302.
Cosnier, J., 265, 268. 239,248,259,265,276,282,295.
Jobert, G., 41. Louche, C., 12, 36.
Coutarel, F., 14. Fillietaz, L., 40, 266.
Jouanneaux, M., 39. Luria, A., 60, 194.
Cru, D., 10, 79, 100, 107-109, 119, Forseth, U., 22.
134, 165, 167. Foucault, M., 104, 109, 111, 227,243.
Cuvillier, B., 41. Karnas, G., 10-12. Macé, S., 103.
François, F., 120, 132-133, 135, 153,
212,235,242,247,266,270,272. Karwowski, W, 22. Maggi, B., 37, 39, 119, 166.
Dagognet, F., 113. Freud, S., 65, 80. Kaufmann, P., 188. Magnier, J., 150.
Daniellou, F., 14, 38, 48-50. Friedrich, J., 201, 205, 226, 231. Kergoat, D., 119. Malherbe, A., 9, 40.
338 Trabalho e poder de agir Índice onomástico 339

Malrieu, P., 292. Politzer, G., 71-72. Sitri, F., 251, 266, 272-274. Vidaillet, B., 167.
Mathieu, A., 119. Ponzio, A., 233-234. Sivadon, P., 67, 69, 78. Vieira, M., 266.
Mauss, M., 19, 47, 123, 158. Prot, B., 11, 16, 41, 150, 195, 236, Soubiran, M., 93, 132, 201, 209. Villatte, R., 282.
Mayen, P., 27. 245,251,266,269,291. Spinoza, B., 14, 31, 65-66,83, 118,239. Virkkunen, J., 14.
Meister, D., 22. Stech, S., 22. Volkoff, S., 162, 280.
Memmi, A., 75. Rabardel, P., 14, 16, 19, 22, 24-27, Volochinov, V N., 27, 163, 203-204,
Méritan, A., 39. 107,125,170,190-191,208. Teiger, C., 282. 236.
Merleau-Ponty, M., 205,207. Raufaste, E., 4, 6. Terssac, G. De, 51-52, 119, 166-167. Von Wartburg, W, 280.
Merri, M., 27. Reed, E. S., 172. Theureau, J., 47, 131, 165. Vygotski, L., 6, 9, 16-17, 23, 26, 28,
Meyerson, I., 158-159. Remermier, C., 41. Théry, L., 301. 30-33, 40, 57-66, 68, 72, 75-76,
Milkau, B., 19. Renault, E., 50, 285. Todorov, T., 235. 79,80,86,103,112-115,128,130,
Ribert-Van De Weerdt, C., 4-6,40. Tomàs, J.-L., 19, 39, 266, 269. 148, 152, 159, 166, 176, 179, 187-
Moirand, S., 236.
Tomasello, M., 166. 188, 191-194, 201-208, 222, 225,
Molinier, P., 6, 14, 16, 19, 22, 67, 75, Ricceur, P., 14, 116, 118.
229,234,237,243,245-247,251-
119,282. Rodgers, G., 301. Tononi, G., 266, 270.
252,270-271,273,287,290,293.
Mondada, L., 266. Roger, J.-L., 39, 176,280,290,298. Torrente, J., 69, 78.
Montandon, C., 280. Roussillon, R., 113. Tosquelles, F., 30, 67, 69, 75-78, 229,
243. Wallon, H., 26, 33,159-160, 181, 192,
Morel, M. A., 264. Rubinstein, 14-18, 2 7-28.
200,250.
Moscovici, S., 12. Trincaz, J., 280.
Trognon, A., 266-267. Weick, K. E., 167-168, 170, 172.
Salazar-Orvig, A., 266, 272.
Weil-Fassina, A., 192.
Nemeth, C. P., 35. Samurçay, R., 124.
Vallejo, P., 276. Werthe, C., 150, 195, 237.
Norros, L., 22. Sandywell, B., 235.
Valsiner, J., 205. Winnicott, D.W, 8, 80, 113, 300.
Nyssen, A. S., 12-13. Santiago-Delefosse, M., 69.
Vasylchenko, A., 237. Wisner, A., 9, 14, 45-58, 69.
Santos, M., 5.
Oddone, I., 83-88, 91, 93-95, 202, Veil, C., 67, 69, 76.
Savoyant, A., 14.
208,239. Veresov, N., 203, 206. Yvon, F., 10, 16, 195, 239.
Scheller, L., 9, 17, 31, 39, 77, 93, 155,
Olry, P., 41. Vergnaud, G., 60.
161-163,181,196,200,208,236,
Osty, F., 279-280, 282, 284. Vérillon, P., 41. Zaltzman, N., 79-80, 286.
239,241,245,250,255,276,295,
Oury, J., 79. 299. Vermersch, P., 224. Zapf, D., 5.

Ouvrier-Bonnaz, R., 41. Schneuwly, B., 60, 248. Verret, G., 120. Zimmermann, B., 36.

Schõn, A. D., 37.


Pansu, P., 36. Schwartz, Y., 48-49, 77, 107, 136.
Pastré, P., 14, 24-27, 29-31, 124. Seglin, M., 22.
Paulhan, F., 146. Sen, A., 36.
Petit, J., 38. Séris, J.-P., 47.
Peytard, J., 120, 269. Seve, L., 59, 251.
In

A Fabrefactum publica obras que revelam como fatores so-


ciais contribuem para a produção de fatos científicos e artefatos tec-
nológicos. Multidisciplinar em sua proposta, a Fabrefactum acolhe
trabalhos de uma ampla gama de disciplinas, tais como sociologia,
filosofia, história, antropologia, ciências políticas, economia, psico-
logia e educação.
Estudos de controvérsias científicas e da construção social da
tecnologia descrevem o trabalho cotidiano da ciência e tecnologia
em laboratórios e empresas. Eles evidenciam, também, as habilida-
des e os saberes de cientistas, técnicos e usuários, que constróem e
sustentam os fatos científicos e os artefatos. Os estudos sociais de
ciência e tecnologia se contrapõem aos modelos canônicos de ciên-
cia e tecnologia, que desconsideram o saber empírico e as habilida-
des práticas dos atores sociais, as intuições baseadas na experiência,
o conhecimento tácito e os juízos de valor implícitos em qualquer
fazer humano.
"Verdades científicas" e "ótimos tecnológicos" são sempre
criados dentro de um contexto social: o que funciona é sempre jul-
gado em relação às necessidades de uma comunidade particular e
pode parecer bem diferente quando julgado por outra perspectiva.
Fabrefactum: linha editorial 343
342 Trabalho e poder de agir

O "fechamento" de uma controvérsia científica ou tecnológica só que se mostra ainda mais agudo quando se tem uma controvérsia
ocorre quando o grupo vitorioso é capaz de estabilizar os lflUndos que ainda não foi fechada.
sociais e naturais e impor um paradigma dominante. O estudo de Por fim, as obras publicadas pela Fabrefactum pretendem
como as controvérsias são "fechadas" ilustra de que modo conheci- contribuir para a educação em ciências e a compreensão destas
mentos e práticas, antes contingenciais, são reificadas como resulta- pelo público. O modelo canônico de ciência se sustenta no mito da
do inevitável do progresso científico e tecnológico. Pelo menos a infalibilidade do método científico, ao ensinar que a "verdade
esse respeito, não existem diferenças essenciais entre a produção de científicà' é o resultado de um método impessoal e objetivo que
fatos científicos nas ciências sociais e nas ciências da natureza. iniciantes têm de aprender a valorizar e aplicar. Ao mesmo tempo
As obras publicadas pela Fabrefactum examinam como o co- em que não se nega a importância desse modelo como uma aspi-
nhecimento é acordado, disputado, modificado e transmitido. A ração, os estudos sociais da ciência mostram que ele não é uma
produção de novos conhecimentos é a produção de novos acordos descrição fidedigna de como ciência e tecnologia são produzidas.
sociais sobre o que se deve considerar como sendo "certo" ou "erra- O ensino de ciências só pode melhorar se as ideias tradicionais fo-
do". Isso implica reconhecer as dimensões cognitiva e subjetiva da rem complementadas por uma compreensão das maneiras pelas
prática científica e o saber tácito dos agentes sociais envolvidos, se- quais controvérsias científicas e tecnológicas emergem, são fecha-
jam eles cientistas, tecnólogos ou cidadãos que detenham saberes das e reabertas.
específicos. Pretende-se questionar os mitos da ciência e tecnologia, Compreender a ciência e tecnologia como instituições sociais
sem com isso negar a importância do conhecimento especializado. - e assim abrir a possibilidade de propostas alternativas - é um pré-
As obras da Fabrefactum também aprofundam a compreen- -requisito essencial para o desenvolvimento de um diálogo efetivo e
são da recorrente questão da natureza do trabalho humano e sua crítico entre ciência, tecnologia e sociedade. A Fabrefactum espera,
substituição por máquinas, focando, em especial, os limites e possi- com suas publicações, contribuir para esse movimento.
bilidades do uso da inteligência artificial e de sistemas especialistas.
Em termos práticos contribuem para o projeto de tecnologias orien-
tadas para a atividade, ao mostrar o papel das pessoas em fazer pos-
sível o uso rotineiro, a manutenção e atualização de qualquer tec-
nologia. A socialização e a imersão em "formas de vidà' se tornam
centrais na transferência de tecnologia e gestão do conhecimento
tácito.
A compreensão da natureza social do conhecimento científi-
co e tecnológico tem implicações em outras esferas da vida. A des-
mitificação da ciência lhe retira a autoridade e o poder advindos de
uma posição supostamente privilegiada de acesso à realidade abso-
luta. Abre-se, assim, um espaço onde indivíduos que detêm uma
"expertise baseada na experiêncià: mas não necessariamente titula-
ções acadêmicas, possam contribuir para o desenvolvimento de po-
líticas públicas. A participação popular em questões científicas e
tecnológicas passa a ter valor tanto epistêmico como político. Essas
mudanças trazem um novo desafio: como definir critérios de inclu-
são, exclusão e de contribuição de cada grupo social - problema

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