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Sousa Santos
A ideia da repetição é o que permite ao pre- Mas será assim? Estará a vitória da burgue-
sente alastrar ao passado e ao futuro, canibali- sia internacional consumada? Será o presente
zando-os. Estamos perante uma situação nova? capaz de repetir-se para sempre? A verdade é
Até agora a burguesia não pudera elaborar uma que a repetição do presente é a repetição da
teoria da história exclusivamente segundo os fome e da miséria para uma parte cada vez
seus interesses. Vira-se sempre em luta com mais importante da população mundial, é a
adversários fortes, primeiro as classes domi- repetição de novos fascismos transnacionais
nantes do antigo regime e depois, as classes públicos e privados que, sob a capa de uma
trabalhadoras. O desfecho dessa luta estava democracia sem condições democráticas, es-
sempre no futuro, o qual, por essa razão, não tão a criar um apartheid global, é, finalmente,
podia ser visto como mera repetição do passa- a repetição do agravamento dos desequilíbrios
do. Os nomes deste movimento orientado para ecológicos, da destruição maciça da biodi-
o futuro foram vários, tais como, a revolução, versidade, da degradação de recursos que até
o progresso, a evolução. Como o desfecho da agora garantiram a qualidade de vida na terra.
luta não estava predeterminado, a revolução Perante isto, haverá energias no passado ou no
pôde ser burguesa e operária, o progresso pôde futuro suficientes para impedir que o presente
ser visto como consagração do capitalismo ou se repita indefinidamente?
como sua superação, o evolucionismo pôde ser As energias do futuro parecem desvanecer-
reivindicado tanto por Herbert Spencer, como -se pelo menos enquanto o futuro continuar a
por Marx. ser pensado nos termos em que foi pensado
Foi neste quadro que a transformação social, pela modernidade ocidental, ou seja, o futuro
a racionalização da vida individual e colectiva como progresso. Os grandes vencidos do pro-
e a emancipação social, passaram a ser pensa- cesso histórico capitalista, os trabalhadores e
das. À medida que se foi construindo a vitória da os povos do terceiro mundo, descreem hoje
burguesia, o espaço do presente como repetição do progresso porque foi em nome dele que
foi-se ampliando. Hoje a burguesia sente que a viram degradar-se as suas condições de vida
sua vitória histórica está consumada e ao vence- e as suas perspectivas de libertação. Penso
dor consumado não interessa senão a repetição que neste momento, e pelo menos transitoria-
do presente. Daí a teoria do fim da história. mente, há que buscar energias progressistas
sobretudo no passado. Não se trata de uma sestabilizadora que nos fornece do conflito e
tarefa fácil porque a teoria da história da mo- do sofrimento humano. Será através dessas
dernidade desvalorizou sistematicamente o imagens desestabilizadoras que será possível
passado em benefício do futuro. O passado recuperar a nossa capacidade de espanto e de
foi sempre concebido como reaccionário e o indignação e de, através dela, recuperar o nos-
futuro como progressista. Foi assim que a bur- so inconformismo e a nossa rebeldia.
guesia viu a sua luta e foi assim também que Nesta reside, em meu entender, o cerne de
a classe operária viu a sua luta. Esta teoria da um projecto educativo emancipatório, adequa-
história fez com que facilmente fossem esque- do ao tempo presente. Trata-se de um projec-
cidos o sofrimento, a injustiça, a opressão, to- to orientado para combater a trivialização do
dos superáveis num futuro próximo e radioso. sofrimento, por via da produção de imagens
Foi assim que a classe operária se viu menos desestabilizadoras a partir do passado conce-
como herdeira de escravos do que como van- bido não como fatalidade, mas como produto
guarda dos libertadores. da iniciativa humana. Um passado indesculpá-
A mesma teoria da história contribuiu para vel precisamente por ter sido produto de ini-
trivializar, banalizar os conflitos e o sofrimento ciativa humana que, tendo opções, podia ter
humano de que é feita a repetição do presen- evitado o sofrimento causado a grupos sociais
te neste fim de século. O sofrimento humano e à própria natureza. Deste modo, o objectivo
mediatizado pela sociedade de informação está principal do projecto educativo emancipatório
transformado numa telenovela interminável consiste em recuperar a capacidade de espanto
em que as cenas dos próximos capítulos são e de indignação e orientá-la para a formação de
sempre diferentes e sempre iguais às cenas dos subjectividades inconformistas e rebeldes.
capítulos anteriores. Esta trivialização traduz- Só o passado como opção e como conflito é
-se na morte do espanto e da indignação. E capaz de desestabilizar a repetição do presen-
esta, na morte do inconformismo e da rebeldia. te. Maximizar essa desestabilização é a razão
Penso, pois, ser necessário uma outra teo- de ser de um projecto educativo emancipató-
ria da história que devolva ao passado a sua rio. Para isso, tem de ser, por um lado, um pro-
capacidade de revelação, um passado que se jecto de memória e de denúncia e, por outro,
reanime na nossa direcção pela imagem de- um projecto de comunicação e cumplicidade.
Tratarei agora de definir, a traço grosso, o ção do sofrimento e da opressão e veja neles o
perfil de um tal projecto educativo. Limitar-me- resultado de indesculpáveis opções.
-ei ao seu perfil epistemológico deixando de A educação para o inconformismo tem de ser
lado as questões institucionais e organizacio- ela própria inconformista. A aprendizagem da
nais, bem como os processos políticos concre- conflitualidade dos conhecimentos tem de ser
tos que o poderão levar à prática. ela própria conflitual. Por isso, a sala de aula
A conflitualidade do passado, enquanto cam- tem de transformar-se ela própria em campo de
po de possibilidades e de decisões humanas, é possibilidades de conhecimento dentro do qual
assumida no projecto educativo como conflitu- há que optar. Optam os alunos tanto quanto os
alidade de conhecimentos. Para este projecto professores e as opções de uns e outros não
educativo não há uma, mas muitas formas ou têm de coincidir nem são irreversíveis. As op-
tipos de conhecimento. Todo o conhecimento ções não assentam exclusivamente em ideias
é uma prática social de conhecimento, ou seja, já que as ideias deixaram de ser desestabiliza-
só existe na medida em que é protagonizado e doras no nosso tempo. Assentam igualmente
mobilizado por um grupo social, actuando num em emoções, sentimentos e paixões que confe-
campo social em que actuam outros grupos rem aos conteúdos curriculares sentidos ines-
rivais protagonistas ou titulares de formas ri- gotáveis. Só assim é possível produzir imagens
vais de conhecimento. Os conflitos sociais são, desestabilizadoras que alimentem o inconfor-
para além do mais, conflitos de conhecimen- mismo perante um presente que se repete, re-
to. O projecto educativo emancipatório é um petindo as opções indesculpáveis do passado.
projecto de aprendizagem de conhecimentos O objectivo último de uma educação transfor-
conflituantes com o objectivo de, através dele, madora é transformar a educação, converten-
produzir imagens radicais e desestabilizadoras do-a no processo de aquisição daquilo que se
dos conflitos sociais em que se traduziram no aprende, mas não se ensina, o senso comum. O
passado, imagens capazes de potenciar a in- conhecimento só suscita o inconformismo na
dignação e a rebeldia. Educação, pois, para o medida em que se torna senso comum, o saber
inconformismo, para um tipo de subjectividade evidente que não existe separado das práticas
que submete a uma hermenêutica de suspeita a que o confirmam. Uma educação que parte da
repetição do presente, que recusa a trivializa- conflitualidade dos conhecimentos visará, em
6. Para além de um limite crítico socialmen- ciência corre um duplo risco. Por um lado,
te definível, uma maior participação numa sabe que os seus objectivos não são obtí-
visão moral e política é melhor que um veis exclusivamente com base na ciência e
acréscimo no bem-estar material. O know- na argumentação. Há interesses materiais e
-how técnico é imprescindível, mas o sen- lutas entre classes e outros grupos sociais
tido do seu uso é-lhe conferido pelo know- que usam outros meios para impor o que
-how ético que, como tal, tem prioridade lhes é benéfico. Por isso, a luta pela aplica-
na argumentação. ção edificante é sempre precária, integra-
7. Os limites e as deficiências dos saberes -se (por vezes sem saber) noutras lutas e os
locais nunca justificam a recusa in limi- seus resultados nunca são irreversíveis. É,
ne destes, porque isso significa o desarme pois, uma luta sem pressupostos nem segu-
argumentativo e social de quanto são com- ranças. Uma luta por um fim sem fim.
petentes neles. Se o objectivo é ampliar o Por outro lado, a aplicação edificante tem,
espaço de comunicação e distribuir mais nesta fase de transição paradigmática, de
equitativamente as competências argu- partir dos consensos locais para criar mais
mentativas, os limites e as deficiências de conflito, em resultado do maior esclareci-
cada um dos saberes locais superam-se, mento das razões contingentes que susten-
transformando esses saberes por dentro, tam muito do que surge como socialmente
interpenetrando-se com sentidos produzi- necessário. Este conflito ampliado é visto
dos noutros saberes locais, desnaturalizan- como condição da ampliação do espaço
do-se através da crítica científica. de comunicação e do alargamento cultu-
8. A ampliação da comunicação e a equili- ral ético e político dos argumentos utili-
bração das competências visa a criação záveis pelos vários grupos em presença.
de sujeitos socialmente competentes. Os Mas, devido às condições que sustentam
mecanismos de poder tendem a alimentar- o primeiro risco, não há garantias de que
-se da incompetência social e, portanto, a potenciação do conflito não possa indu-
da “objectivação” dos grupos sociais opri- zir algum grupo ao recurso à violência, ao
midos, pelo que a aplicação edificante da silenciamento e ao estranhamento, assim
reduzindo a comunicação e a argumenta-
ção em vez de as aumentar. À ciência que cientista nos vários discursos locais, pró-
se pauta pela aplicação edificante não inte- prios dos vários contextos de aplicação.
ressa que a transformação seja moderada Esta transformação não pode ser exigível
ou radical, reformista ou revolucionária; em pleno e sem contradições ao cientista
interessa tão-só que ela ocorra pela amplia- ou técnico individual. A reflexividade, para
ção da comunicação e da argumentação, o ter algum peso, tem de ser colectiva. Mas,
que, obviamente, não obsta à intensidade para além disso, a transformação é pro-
do conflito ou à incondicionalidade do em- piciada por novas formas de organização
penho de quantos nele participam. da investigação, por meios alternativos de
9. A aplicação edificante vigora dentro da premiar a excelência do trabalho científico.
própria comunidade científica e técnica. Estas formas alternativas chocam-se com a
Os cientistas e os técnicos apostados nela materialidade e a resistência das soluções
lutam pelo aumento da comunicação e da vigentes. E também aqui se verificam os
argumentação no seio da comunidade cien- dois riscos anteriormente apontados: não é
tífica e técnica e lutam, por isso, contra as possível controlar pela ciência ou técnica
formas institucionais e os mecanismos edificante as consequências do aumento da
de poder que nela produzem violência, si- conflitualidade que ela promove nesta fase
lenciamento e estranhamento. Mas, além de transição paradigmática; os resultados,
disso, a transformação dos saberes locais além, de reversíveis, podem ser contrapro-
ocorre com a transformação do saber cien- ducentes e deixar, por momentos, tudo
tífico e com esta ocorre a transformação pior do que dantes. E também não há segu-
do sujeito epistémico, do ser cientista e ros contra estes riscos.
do ser técnico. Porque a aplicação é con- 10. Mas se na comunidade científica, como
textualizada tanto pelos meios como pelos em qualquer outra, não há seguros contra
fins e porque lhes preside know-how ético, estes riscos é, pelo menos, possível deter-
o cientista ou o técnico edificante tem de minar o perfil dos conflitos em que esses
saber falar como cientista e como não cien- riscos se correrão. A aplicação edificante
tista no mesmo discurso científico e, com- não prescinde de aplicações técnicas, mas
plementarmente, tem que saber falar como submete-se às exigências do know-how
tífico, e os pressupostos em que assenta como, tituição desse conflito matricial, se aprofunde
por exemplo, a dicotomia sujeito/objecto ou a a crise da confiança epistemológica da ciência
concepção da natureza como entidade separa- moderna e se criem energias para a emergência
da da sociedade e da cultura. Estes questiona- de novos conflitos epistemológicos.
mentos têm contribuído para diminuir a con- Concebo esse conflito matricial como um
fiança epistemológica da ciência moderna e a conflito entre o conhecimento-como-regulação
tal ponto que, segundo alguns, entre os quais e o conhecimento-como-emancipação3. Tenho
me incluo, estamos a entrar num longo período vindo a defender que não há conhecimento em
de transição paradigmática em cujo decurso o geral, nem ignorância em geral. Cada forma de
paradigma da ciência moderna, ferido de uma conhecimento conhece em relação a um certo
crise irreversível e final, será substituído por tipo de ignorância e, vice-versa, cada forma de
um outro paradigma de conhecimento ainda ignorância é ignorância de um certo tipo de
por definir, mas que eu tenho designado como conhecimento. Cada forma de conhecimento
paradigma de um conhecimento prudente para implica assim uma trajectória de um ponto A,
uma vida decente2. designado por ignorância, e por um ponto B,
O segundo conflito de conhecimento a cons- designado por saber. As formas de conheci-
truir no campo pedagógico parte da ideia da mento distinguem-se pelo modo como carac-
transição paradigmática, mas, em vez de pro- terizam os dois pontos e as trajectórias entre
ceder a uma análise prospectiva do paradigma eles. Na modernidade ocidental, esta trajectó-
emergente, procede a uma arqueologia da mo- ria é simultaneamente uma sequência lógica e
dernidade com o objectivo de reconstruir um uma sequência temporal. O movimento da ig-
conflito epistemológico matricial em que, aliás, norância para o saber é também o movimento
a ciência moderna começou por participar, do passado para o futuro.
mas que passou a ocultar à medida que se foi Tenho vindo a defender que o paradigma da
constituindo em forma hegemónica de conhe- modernidade comporta duas formas principais
cimento. A ideia é a de que, a partir da recons- de conhecimento: o conhecimento-como-regu-
dental mais conservadora que se recusa a ver energias para promover uma dada forma de
no domínio global da economia de mercado, sociabilidade e para a defender sempre que
a consumação da vitória da cultura ocidental. ela estiver ameaçada por sociabilidades rivais.
Pelo contrário, pensa que o domínio económi- Neste contexto, a distinção entre luta económi-
co esconde uma vulnerabilidade cultural cres- ca e luta cultural deixa de fazer sentido.
cente face às culturas não europeias, abrangen- A segunda tendência da turbulência cultural
do populações cada vez maiores e assumindo contemporânea é de sentido oposto à primeira
posições de confrontação hostil com a cultura e defende que nas condições globais geradas,
eurocêntrica, como é especificamente o caso tanto pela sociedade de consumo, como pela
do Islão. Para esta intelectualidade conserva- sociedade de informação, os conflitos culturais
dora, de que o porta-voz é Samuel Huntington, terão cada vez menor acutilância. A globaliza-
estamos a entrar num novo período de choque ção da comunicação social e da informação, o
de civilizações, um choque entre o Ocidente e incremento das interacções transnacionais de
o resto cultural do mundo. bens, de pessoas e de serviços produzem uma
As formas contra-hegemónicas de agrava- tal compressão do tempo e do espaço que as
mento dos conflitos culturais são protagoni- diferenças culturais que sempre foram fruto
zadas pelos movimentos e grupos sociais que da distância e da incomunicabilidade acabarão
lutam pela afirmação da identidade cultural por dissolver-se.
contra a homogeneização descaracterizada Esta tendência assume duas formas dife-
pretendida pela cultura hegemónica. Uma for- rentes, ambas hegemónicas. Uma consiste na
ma particularmente vincada desta afirmação é versão ultra-liberal do relativismo cultural, na
precisamente o fundamentalismo islâmico em ideia de que todas as culturas e todas as ver-
sua luta contra o fundamentalismo ocidental. sões da mesma cultura tem uma singularidade
Comum às formas hegemónicas e contra- original que não permite, nem comparações,
-hegemónicas é a ideia de que os modelos so- nem diálogos profundos entre elas. Todas são
ciais de desenvolvimento e, portanto, também igualmente válidas. Deve, pois, admitir-se a
a luta contra eles, não se sustentam apenas no sua coexistência pacífica e que cada um es-
plano económico. Pressupõem um substracto colha a que lhe estiver mais próxima. A outra
cultural amplamente partilhado que forneça forma de ver a tendência para a atenuação dos
conflitos culturais faz uma leitura da situação que hoje dominam entre culturas, relações ca-
cultural parcialmente contraditória com a an- óticas, de coexistência e de interdependência.
terior. Assenta na ideia de que os contactos Para outros, o imperialismo cultural, longe de
entre culturas, sendo cada vez mais intensos, ter acabado, apenas mudou de forma. Assume
fazem com que estas percam gradualmente a agora formas camaliónicas, ora a forma do
sua integridade e a sua singularidade. No lugar choque de culturas (Huntington), ora a forma
de culturas singulares estão a surgir culturas da hibridização e da cultura global. Para estas,
híbridas, produtos de fertilizações e contami- a hibridização é sempre uma troca desigual
nações cruzadas entre culturas. O fenómeno de que reproduz, sob outra forma, a existência de
hibridização torna mesmo difícil falar de cultu- culturas dominantes e culturas dominadas, en-
ras dominantes e dominadas já que todas estão quanto a cultura global não é mais que a globa-
sujeitas ao mesmo processo de diluição da es- lização de certas características específicas da
pecificidade. Uma outra versão, parcialmente cultura eurocêntrica.
diferente, da teoria da hibridização, é a ideia de Esta enorme diversidade de leituras da situ-
que por sobre as culturas existentes, todas elas ação cultural do nosso tempo tem estado, em
específicas e parcelares, está a emergir uma geral, ausente dos sistemas educativos. O de-
cultura global, uma cultura sem raízes nem le- bate, quando tem lugar, ocorre nas margens do
aldades locais, que é partilhada por gente em sistema em iniciativas extra-curriculares dos
toda a parte do mundo, uma cultura cosmopo- professores e dos estudantes, mas raramente
lita que subjaz ao que é globalmente comum a penetram no curriculum. Em minha opinião,
toda a humanidade. um projecto educativo emancipatório tem de
A coexistência de leituras tão discrepantes colocar o conflito cultural no centro do seu
da nossa condição cultural contemporânea curriculum. As dificuldades para o fazer são
mostra só por si a turbulência a que estão a enormes, não só devido à resistência e à inér-
ser sujeitos os mapas culturais que serviram de cia dos mapas culturais dominantes, mas tam-
base aos sistemas educativos modernos. Para bém devido ao modo caótico como os conflitos
alguns, esses mapas, mesmo que alguma vez culturais têm vindo a ser discutidos do nosso
tenham sido expressão do imperialismo cul- tempo. Acresce que a comunicação, aparente-
tural, deixaram de o ser em face das relações mente facilitada pela sociedade de informação,
continua a ter muitos obstáculos, a ser selecti- dagógico para o multiculturalismo enquanto
va e a reduzir muita gente e muitas causas ao modelo emergente da interculturalidade. O
silêncio. Mesmo algumas políticas contra-hege- modelo dominante, do imperialismo cultural,
mónicas como, por exemplo, as da afirmação não reconhece outro tipo de relações entre
da identidade nacional, étnica, sexual, cultural culturas senão a hierarquização segundo crité-
têm, em suas versões mais extremas, contri- rios que são tidos como universais ainda que
buído para o separatismo e para a criação de sejam específicos de um só universo cultural,
guettos culturais mutuamente incomunicáveis. a cultura ocidental. À luz destes critérios é a
O projecto educativo emancipatório tem, superioridade cultural própria das culturas do-
pois, neste domínio, responsabilidades acres- minantes que justifica a existência de culturas
cidas. Tem de, por um lado, definir correcta- dominadas. Esta superioridade pode afirmar-se
mente a natureza do conflito cultural e tem de de várias formas inclusive através de formas
inventar dispositivos que facilite a comunica- que aparentemente negam a ideia de hierarquia
ção. Não esqueçamos que, ao contrário dos como a hibridização e a cultura global. Qual-
dois conflitos anteriores, o conflito cultural não quer destas têm por limite não bulir com a he-
ocorre no seio da mesma cultura, mas antes gemonia da cultura ocidental.
num espaço intercultural que tem de ser cons- Compete, antes de mais, ao campo pedagó-
truído para que a comunicação seja possível. gico emancipatório criar imagens desestabi-
Proponho que o conflito seja definido como lizadoras deste tipo de relacionamento entre
conflito entre o imperalismo cultural e o mul- culturas, imagens criadas a partir das culturas
ticulturalismo. Mais do que de um conflito de dominadas e da marginalização, opressão e
culturas, trata-se de um meta-conflito de cultu- silenciamento a que são sujeitas e, com elas,
ras. Ou seja, trata-se de um conflito entre duas os grupos sociais que são seus titulares. Estas
maneiras distintas de conceber o conflito entre imagens desestabilizadoras ajudarão a criar o
culturas, dois modelos de interculturalidade. espaço pedagógico para um modelo alternati-
Tal como nos anteriores conflitos, o campo vo de relações interculturais, o multiculturalis-
pedagógico tem de criar pela imaginação uma mo. Como se trata de um modelo emergente, o
conflitualidade que é negada pelo modelo he- tipo de comunicação e de relacionamento que
gemónico. Tem, em suma, de criar espaço pe- estabelece entre as culturas está ainda pouco
mónicos torna possível identificar o âmbito e par do diálogo multicultural. O terceiro pres-
a gravidade dos epistemicídios cometidos pela suposto é o de que das várias versões de uma
modernidade hegemónica eurocêntrica. A ima- dada cultura deve ser escolhida para o diálogo
gem de tais epistemicídios será tanto mais de- multicultural a que oferece o campo mais vas-
sestabilizadora quanto mais consistência tiver to de reciprocidade e a mais ampla abertura a
a prática da hermenêutica diatópica. outras culturas. Dou o exemplo de um tópico
A hermenêutica diatópica é o dispositivo importante na cultura ocidental, os direitos
privilegiado do multiculturalismo enquan- humanos. Existem na cultura ocidental duas
to modelo emergente de interculturalidade. grandes tradições de direitos humanos: a libe-
Trata-se de um modelo muito exigente. Apli- ral que dá prioridade aos direitos cívicos e po-
cado de forma ingénua ou descuidada pode líticos, negligenciando os direitos económicos
transformar-se facilmente no seu contrário, e sociais; e a tradição marxista que, sem perder
ou seja, numa forma de imperialismo cultural. de vista os direitos cívicos e políticos, dá prio-
Daí a atenção que deve ser dada aos seus pres- ridade aos direitos económicos e sociais. Des-
supostos e às condições da sua aplicação. O tas duas tradições deve ser escolhida para o
primeiro pressuposto é o de que, embora to- diálogo multicultural a tradição marxista uma
das as culturas aspirem a valores últimos, só vez que ela tem um campo de reciprocidade
a cultura ocidental os define em termos de va- mais amplo: os direitos económicos e sociais
lores universais. Por esta razão, a questão do são fundamentais para o exercício efectivo dos
universalismo atraiçoa o que pergunta no acto direitos cívicos e políticos.
de perguntar. Por outras palavras, a questão do As condições de prática do multiculturalis-
universalismo é uma questão particular, espe- mo são ainda mais exigentes que os seus pres-
cífica da cultura ocidental. supostos. Depois de séculos de dominação
O segundo pressuposto é o de que, sendo to- cultural, pergunta-se se é legítimo ou sequer
das as culturas incompletas, todas as culturas possível tentar um diálogo tanto quanto possí-
são também relativas; no entanto, o relativis- vel igualitário entre culturas. Acresce que essa
mo, enquanto postura filosófica, é incorrecto. dominação cultural se caracterizou, entre ou-
Ou seja, cada cultura tem várias versões e nem tras coisas, por tornar impronunciáveis alguns
todas são igualmente adequadas para partici- dos temas ou aspirações mais fundamentais
das culturas dominadas. Enquanto a pronúncia gógica emancipatória. O conflito serve, antes
desses temas não lhes for devolvida, o diálogo de mais, para vulnerabilizar e desestabilizar os
intercultural pode perversamente, e apesar das modelos epistemológicos dominantes e para
boas intenções, contribuir para o aprofunda- olhar o passado através do sofrimento huma-
mento da sua dominação. no que, por via deles e da iniciativa humana a
O projecto pedagógico emancipatório que eles referida, foi indesculpavelmente causado.
aqui vos proponho conhece todas estas di- Esse olhar produzirá imagens desestabilizado-
ficuldades, mas sabe também que têm de ser ras susceptíveis de desenvolver nos estudantes
superáveis sob pena de caminharmos cada vez e nos professores a capacidade de espanto e
mais aceleradamente para uma situação de de indignação e a vontade de rebeldia e de in-
apartheid global. Por isso, parte dessas mes- conformismo. Essa capacidade e essa vontade
mas dificuldades e da necessidade de serem serão fundamentais para olhar com empenho
superadas para instaurar o campo pedagógico os modelos dominados ou emergentes através
em que o multiculturalismo surja como uma dos quais é possível aprender um novo tipo
alternativa credível e ao imperialismo cultural. de relacionamento entre saberes e, portanto,
entre pessoas e entre grupos sociais. Um re-
Conclusão lacionamento mais igualitário, mais justo que
Propus-vos nesta comunicação um projec- nos faça aprender o mundo de modo edifican-
to pedagógico conflitual e emancipatório cujo te, emancipatório e multicultural. Será este o
perfil epistemológico procurei desenhar a tra- critério último da boa e da má aprendizagem.
ço grosso. Identifiquei três grandes conflitos
epistemológicos que, por ordem crescente de Bibliografia
conflitualidade, designei por conflito entre a An-na’im, A. A. 1990 Toward an Islamic
aplicação técnica e a aplicação edificante da Reformation (Syracuse: Syracuse
ciência; conflito entre conhecimento-como-re- University Press).
gulação e conhecimento-como-emancipação; An-na’im, A. A. (ed.) 1992 Human Rights in
conflito entre imperialismo cultural e multicul- Cross-Cultural Perspectives. A Quest for
turalismo. Defendi que estes conflitos devem Consensus (Philadelphia: University of
ocupar o centro de toda a experiência peda- Pennsylvania Press).