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A HISTÓRIA E SUAS
PRÁTICAS DE ESCRITA:
narrativas e documentos
Recife | 2015
Universidade Federal de Pernambuco
Reitor: Prof. Anísio Brasileiro de Freitas Dourado
Vice-Reitora: Prof. Florisbela de Arruda Camara e Siqueira Campos ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
Comissão Editorial
Presidente: Prof. Lourival Holanda
Titulares: Alberto Galvão de Moura Filho, Allene Carvalho Lage, Anjolina Grisi de Oliveira, Dilma Tavares
Luciano, Eliane Maria Monteiro da Fonte , Emanuel Souto da Mota Silveira, Flávio Henrique Albert Brayner,
Luciana Grassano de Gouvêa Melo, Otacílio Antunes de Santana, Rosa Maria Cortês de Lima, Sonia Souza
Melo Cavalcanti de Albuquerque.
Suplentes: Charles Ulises de Montreuil Carmona, Edigleide Maria Figueiroa Barretto , Ester Calland de Souza
Rosa, Felipe Pimentel Lopes de Melo, Gorki Mariano, Luiz Gonçalves de Freitas, Madalena de Fátima Pekala
Zaccara , Mário de Faria Carvalho, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da Silva, Silvia Helena Lima Schwan-
born, Tereza Cristina Tarragô Souza Rodrigues.
Editores Executivos: Edigleide Maria Figueiroa Barretto, Rogério Luiz Covaleski e Silvia Helena Lima
Schwamborn
Catalogação na fonte:
ficha catalográfica
(pode alterar a fonte para compor o projeto do gráfico do livro, mas deve-se evitar a mudança nos
recuos e espaçõs definidos pelos bilbiotecários)
Apresentação ............................................................................................................... 7
Prefácio ........................................................................................................................ 11
Parte I
*****
Leituras do tempo nomeia o subtítulo do presente volume. Essa
escolha se deu em virtude de entendermos que nenhum historiador
pode se furtar do debate sobre as temporalidades que intercruzam suas
pesquisas. Esse desafio comum aos historiadores é a linha que costura os
artigos reunidos nesse trabalho. Com suas distintas linguagens, estilos e
relatos, os tempos históricos estudados nas presentes pesquisas se dão a
ler. Instituem-se por meio de diferentes registros documentais, que por sua
vez se apresentam como leituras possíveis dos tempos experimentados nas
presentes narrativas.
O que é o tempo? Que conceito é este e como ele se apresenta nas
experiências históricas? Como percebê-lo na documentação? Afinal, como
estuda-lo? Não temos pretensão nem competência para fazer aqui uma
arqueologia do tempo para a historiografia. Apenas apresentar brevemente
como a temática central do presente volume é apreendida pelos historiadores
8 em seus trajetos escriturísticos. Nesse sentido, podemos recorrer às
discussões do historiador alemão Reinhart Koselleck. O tempo, para ele,
não é entendido como algo dado, natural; com existência própria, como se
existisse desde sempre. O tempo é percebido “como construção cultural que,
em cada época, determina um modo específico de relacionamento entre o já
conhecido e experimentado como passado” (KOSELLECK, 2006: 09).
É esse passado experimentado, esse tempo vivido de diferentes
maneiras que nos interessa no momento. Ou seja, apresentar como esses
experimentos de tempo são interpretados nos artigos dos historiadores
que compõem esse volume. Por este ângulo de percepção é importante
compreender os tempos em suas variantes de pretéritos, presentes e
futuros, como filhos das possibilidades existentes nas disputas das relações
de poder em cada momento. Nesse sentido, as dimensões temporais são
experimentos e como tal, seus significados resultam de uma série de
possibilidades, desde quem experimenta, como experimenta, quando, onde
e para quê.
No entanto, o que seria o tempo histórico? Reinhart Koselleck
chega a questionar sua existência. Em suas análises, entretanto, o conceito
de tempo ganha mobilidade e movimento. Para ele, quem desejar encontrar
as expressões cotidianas do tempo histórico,
Deve contemplar as rugas no rosto de um homem, ou então as
cicatrizes nas quais se delineiam as marcas de um destino já vivido. Ou
ainda deve evocar na memória a presença, lado a lado, de prédios em
ruínas e construções recentes, vislumbrando assim a notável transformação
de estilo que empresta uma profunda dimensão temporal a uma simples
fileira de casas (2006: 14).
Nesta dimensão, o tempo deixa marcas singulares e únicas nas
pessoas, nas relações, nas pequenas coisas. Portanto, se expressa de
infinitas maneiras deixando traços e sinais os mais diversos possíveis.
Nesse caleidoscópico de temporalidades, encontraremos os tempos sendo
esculpidos nas relações de poder.
As temporalidades se apresentam de distintas maneiras no
fazer humano, em suas vivências, percepções, imaginações e registros 9
documentais. Assim encontraremos aqui reunidos diversos vestígios dos
experimentos temporais, como as estratégias de controle e perseguição aos
trabalhadores – no campo e na cidade – e aos seus sindicatos, as disputas
nas relações de poder na Igreja Presbiteriana no período ditatorial, ou da
Igreja Católica sobre o processo de laicização do Estado no Brasil. Tempos
que também se dão a ler por meio dos sinais esculpidos nas trajetórias
de poetas e intelectuais, nos traços e cores das artes no Recife da década
de 1980, nos registros visuais do Rio São Francisco, ou ainda no traçado
multifacetado na arquitetura da cidade do Recife.
Podemos perceber as fisionomias dos experimentos temporais
também nos indícios da vigilância, perseguição e torturas àqueles
considerados uma ameaça à segurança do Brasil na década de 1960, bem
como nas tensões que deram o tom das disputas envolvendo o Brasil e
os EUA no que tange à instalação de uma base militar estadunidense no
arquipélago Fernando de Noronha nos anos de 1950; tempos que também
deixaram seus registros na luta pela terra no Sul do Pará, que não raro,
se expressaram pelos signos da morte de muitos trabalhadores. Foram
tempos também forjados nas disputas das palavras em torno do Mobral,
nas memórias dos praticantes das pajelanças da Baixada Maranhense e nos
crimes cometidos contra as mulheres em Campina Grande-PB. Em síntese,
em cada artigo, as leituras do tempo se apresentam em suas singularidades,
divergências e pluralidades por meio dos indícios documentais mobilizados
por seus autores.
Outro registro de tempo que marca esse projeto diz respeito às
ações da professora Dra. Maria José Luna que esteve à frente da Editora da
UFPE e do professor Dr. Lourival Holanda atualmente diretor da Editora,
a quem agradecemos imensamente pelo efetivo apoio, sem o qual esse
projeto dificilmente existiria.
Os organizadores
10
PREFÁCIO
Eu conto com você, leitor, para que este livro possa surtir os efeitos
para os quais foi pensado e passar os afetos com os quais foi feito. Espero
que ao acabar de ler você saia contando do que ele trata e do que ele se
trata. Os autores estão contando com você para poderem contar quantos
16
livros foram adquiridos e quanto de repercussão ele teve. Eu, a essa altura,
posso lhe contar que o livro merece ser lido, vale a pena ser adquirido sem
desconto. Ele há de contar muito a quem sobre ele efetivamente se debruçar.
Erinaldo Cavalcanti
19
Raimundo Inácio Souza Araújo
Pablo Porfírio
21
Parte I
23
Medo, comunismo e repressão em tempos de
ditadura militar: Pernambuco (1964 – 1968)1
Erinaldo Cavalcanti
ericontadordehistorias@gmail.com
1 Este artigo apresenta uma pequena parte das discussões desenvolvidas na tese de
doutorado, em que analiso a construção política e social do medo do comunismo em
Pernambuco entre os anos de 1960 a 1968, mais especificamente na cidade de Caruaru,
localizada a 120 quilômetros de Recife.
2 A Voz do Agreste, Caruaru, 24 de janeiro de 1965, pág. 03.
3 Refiro-me especificamente aos documentos dos órgãos de informação e segura (Sistema
Nacional de Informação, Dops/PE, IV Exército, II Zona Aérea) e parte da imprensa escrita.
marcados por inúmeras narrativas de distintas maneiras instituíam um
clima de perigo, de ameaça e insegurança para uma parcela da sociedade4.
Nesse sentido, os documentos oferecem uma leitura na qual a experiência
ditatorial se apresenta em suas múltiplas temporalidades. Os relatórios do
Dops, do Exército e da Aeronáutica, por exemplo, oferecem os indícios da
delação, demonstram os vestígios e os rastros da perseguição política como
fragmentos da fisionomia temporal daquelas relações de poder.
9 Segundo Corey, Hobbes defende a tese que o medo político era uma força produzida,
alimentada e divulgada por diferentes canais e em distintos ambientes. Era alimentado
nas igrejas, nas assembleias, nos bares, nas esquinas, nos cafés, nas livrarias, nas escolas e
universidades, por isso não devia ser pensado como uma força alheia à dinâmica de vida
cotidiana da sociedade que o gestava. Seguindo a linha de defesa de Hobbes, o filósofo Paul
Virilio (em entrevista realizada no dia 22 de novembro de 2006 e publicada em www.elpais.
com) defende que o medo e o pânico são os grandes argumentos fundadores da política
moderna. No entanto a assertiva precisa ser relativizada para não inferir interpretações
apressadas sugerindo que sem medo não haveria política. Recentemente Carlo Ginzburg
publicou um artigo compondo a introdução de seu livro Medo, reverência, terror no qual faz
uma discussão com Hobbes apontando como o conceito do medo esteve presente ao longo dos
anos em que o filósofo inglês reescreveu seu livro em diversos idiomas. Ver Ginzburg, Carlo.
Medo, reverência, terror. São Paulo Cia das Letras, 2014. Ver também Uribe de H. María Teresa.
Las incidencias del miedo en la política: una mirada desde Hobbes. In El miedo: reflexiones sobre
su dimensión social y cultural. Editora: Marta Inés: Medellín, Colombia, 2002.
O objeto de estudo pelos documentos: a vigilância do Dops em Caruaru
13 Nos documentos dos órgãos de segurança não há menção aos nomes dos autores
dos boletins, apenas que foram escritos e colocados na residência de Luiz Pessoa pelos
suas interpretações políticas sobre os acontecimentos que no dia anterior
aquele advogado tinha defendido na palestra. Para os autores do boletim
há um ano que o Brasil vivia sob a opressão em virtude da “desmoralizada
revolução de abril. Subverteram a ordem e anularam nossas liberdades e
conquistas”14.
O primeiro informe sobre as ações desenvolvidas em Caruaru
contrárias ao aniversário comemorativo do golpe militar de 1964 chegou
à Aeronáutica no dia 07 de abril de 1965. De acordo com as informações
fornecidas pelo informante, o Quartel General daquele ministério lavrava o
informe 052 no qual apresentava uma síntese dos acontecimentos ocorridos
na cidade. Registrou que entre as comemorações realizadas em Caruaru
para celebrar um ano da revolução, havia ocorrido a mencionada palestra
ministrada por Luiz Pessoa da Silva e no “dia seguinte, o referido cidadão
encontrou em sua residência dois boletins como respostas dos comunistas
ao brilhante discurso proferido em defesa da Revolução”15. O informante
deixou uma cópia dos boletins na Segunda Zona Aérea.
Pelos registros que constam no prontuário do município, aquele
foi o primeiro informe sobre os fatos ocorridos na cidade. O Ministério da
Aeronáutica classificou aquele informe como secreto, atribuindo-lhe B2 em
relação à confiabilidade da fonte emissora e das informações recebidas. Em 37
seguida determinou difusão para o IV Exército, a Secretaria de Segurança
Pública do Estado e a agência do SNI em Recife.
No dia 14 de abril, a Secretaria de Segurança Pública recebeu o
informe da Zona Aérea protocolando-o pelo número 205 e encaminhou
em seguida para a Delegacia Auxiliar. No dia 26 do mesmo mês o IV
comunistas da cidade.
14 Ofício 141-BE/2. Ministério da Guerra. IV Exército – 2ª Sessão. Documento encaminhado
para a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco. Disponível do Arquivo Público
estadual Jordão Emerenciano no prontuário funcional do município de Caruaru, sob
número 29.581, pág. 01.
15 Ofício 052/ZONAER – 2. Ministério da Aeronáutica – 2ª Zona Aérea. Documento
encaminhado para a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco. Disponível do
Arquivo Público estadual Jordão Emerenciano no prontuário funcional do município de
Caruaru, sob número 29.581.
Exército recebia da Aeronáutica o documento sobre as ações ocorridas em
Caruaru. Com base nessas informações recebidas, o IV Exército produziu
outro informe e a encaminhou para a Secretaria de Segurança chegando
no dia 30 de abril às dependências daquele destinatário. Neste novo
documento, repetia as informações recebidas da Segunda Zona Aérea, no
primeiro parágrafo que compunha o ofício e em seguida atribuía a autoria
dos boletins aos comunistas de Caruaru e acrescentava a informação que
o Partido Comunista continuava atuando na cidade juntamente com suas
doze organizações de base. Aquele ofício foi classificado como secreto e
encaminhado diretamente para o secretário de segurança pública do Estado
e remetido à difusão para o Estado Maior do Exército, o SNI no Recife e à
própria Secretaria de Segurança Pública.
Quatro dias depois, chegava à sede da Secretaria de Segurança
o informe outrora emitido no IV Exército. Esse informe se diferenciava
sensivelmente daquele produzido na Aeronáutica, que consistia em um
parágrafo apenas, mencionando rapidamente que os comunistas da cidade
havia colocado alguns boletins na residência do orador da palestra. Chamava
a atenção para as atividades que os comunistas estavam desenvolvendo na
cidade por meio do comitê municipal e das organizações de base que de
38 acordo com o IV Exército não tinham interrompido suas ações.
O argumento exposto no documento produzido pelo IV Exército
se sustentava na apreensão dos boletins que tinham sido colocados na porta
do orador no dia seguinte à conferência por ele ministrada. No entanto, três
dias depois que o Exército emitiu aquele ofício, algumas semanas, portanto,
após as comemorações realizadas em Caruaru, a Aeronáutica recebia outra
delação sobre os comunistas da cidade. Neste informe protocolado pelo
número 079, no dia 29 de abril de 1965, a 2ª Zona Aérea registrava que
diversos boletins subversivos continuavam sendo colocados na residência
de Luiz Pessoa, por elementos desconhecidos. No entanto, havia a suspeita
que o responsável por aquelas ações era o “elemento Alceu, de profissão
enfermeiro e notoriamente comunista”16.
18 Ibidem.
19 Ibidem.
como subiram nesses dozes meses. Enquanto isso esse
governo de cinismo vive anunciando para breve, o fim da
inflação e apelando aos brasileiros que apertem o cinturão,
isto é, que se submeta ainda mais à fome que ele nos impõe20.
23 Ibidem.
24 Ibidem.
Para os comunistas da cidade – ou parte deles – o descontrole
inflacionário era decorrência da política econômica encabeçada pelos
militares, em estreitas relações com os interesses econômicos de empresas
estadunidenses. Arguiam aqueles que “para Castelo Branco, Costa e Silva,
Cordeiro de Farias e outros gorilas, pouco importava a nação brasileira,
sua felicidade e sua independência. Deram o golpe e se mantem no poder
para servir aos interesses dos poderosos grupos econômicos dos Estados
Unidos”25. O Ministério da Fazenda não conseguia acertar o passo no
controle da inflação resultando num aumento galopante dos preços.
A substituição dos ministros daquela pasta, por certo esteve ligada às
tentativas frustradas de ajustes da política econômica. Em dois anos aquele
ministério esteve ocupado por três pessoas distintas26.
Nesse sentido, aqueles boletins questionavam as razões para as
celebrações realizadas na cidade em festejos do golpe de abril. Chamavam
a atenção para outros problemas além do descontrole inflacionário.
Desejavam não apenas ajustes econômicos mas “liberdade irrestrita de
opinião, associação e propaganda. Pedimos a reintegração de todos os
brasileiros no gozo de seus direitos políticos, a cassação dos IPMs políticos,
liberdade para todos os presos políticos, liberdade sindical e estudantil”27.
44 As delações sobre as atividades dos comunistas em Caruaru não
pararam. No dia 15 de junho de 1965 era emitido na 2ª Zona Aérea mais um
informe sobre encontros realizados pelos comunistas na cidade. Dessa vez
Referências Bibliográficas
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PAGE, Joseph A. A revolução que nunca houve: o Nordeste do Brasil (1955 – 1964).
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_________, Las fronteras porosas del miedo. Ciudad Autónoma de Buenos Aires:
Elaleph.com 2013.
Introdução
A constituição dos núcleos urbanos: Cidade Nova, Nova Marabá e São Felix
A busca por melhores condições de vida faz com que muitas pessoas
cheguem, estabeleçam as suas famílias e não voltem mais. “Eu vim tentar
a vida. No Maranhão já não dá mais. Aqui pelo menos, por enquanto, está
10 Muitos chefes de família adquirem uma moto e passam a trabalhar na cidade como moto-
taxista. É um trabalho autônomo que possibilita, minimamente, prover a casa. Fala-se que
existem em Marabá mais de 5.000 moto-taxistas. Outros com o dinheiro acabam montam
um bar, uma quitanda ou mercearia na frente de sua casa ou revendem, ambulantemente,
roupas, calçados, redes ou perfumes.
dando para dar de comer pros meninos. Por enquanto não quero voltar
não”, conta um morador do bairro Novo Planalto onde a maioria das casas
é de madeira e de telha de amianto e não tem água encanada, esgoto e
coleta de lixo. É uma situação precária, mas realidade de quase todos os
bairros da cidade. As fossas são as chamadas “fossas perdidas” ou “secas”
construídas no fundo do quintal. Como não tem água encanada, a maioria
da população se serve de poços rasos, cavados, às vezes, ao lado das fossas,
possibilitando, dessa forma, a contração de diversas doenças uma vez que
essas águas estão contaminadas pelos dejetos fecais. Como não tem esgoto,
as águas servidas são dispostas sobre o solo. Assim, a população mais
pobre desses bairros vive com o fenômeno do reuso da água, sofrendo
riscos constantes de contaminação. Com relação ao abastecimento de água
no bairro Liberdade afirma o Sr. Joaquim Jovito de Souza:
AUDRIN, Frei José Maria. Entre Sertanejos e Índios do Norte. Rio de Janeiro: Púgil,
1946.
BRAZ, Ademir. Rebanho de Pedras & Esta Terra. Poesias. Marabá: Grafecort, 2003.
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SERVIÇO FEDERAL DE HABITAÇÃO E URBANISMO-SERFHAU/JOAQUIM
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78
México e Brasil nos relatos de um exilado político
(1969-1979)1
Pablo F. de A. Porfírio
1 Esse artigo foi apresentado no XII Encontro Nacional de História Oral, realizado em maio
de 2014 na Universidade Federal do Piauí.
2Carta reproduzida em MUNGUÍA, Jacinto Rodríguez. La otra guerra secreta: los archivos
prohibidos de la prensa y el poder. Debolsillo: México, 2010. p. 230
3Proceso é atualmente a principal revista semanal de oposição aos governos do Partido
Acción Nacional – PAN e do Partido Revolucionário Institucional – PRI.
“Recordem que há três tabus: o Presidente da República, o exército mexicano
e a Virgem de Guadalupe. Anotem isso e vamos seguir tranquilos”4.
Francisco Julião chegou ao México no último dia do ano de 1965,
como exilado político da ditadura brasileira iniciada no ano anterior. Passou
a ser mais conhecido no México pela publicação dos seus artigos durante
quase toda a década de 1970. Rodrigo Moya, fotógrafo que trabalhou para
a Revista Siempre! nos anos 1960 e cobriu com o jornalista Luis Suárez a
invasão das tropas dos Estados Unidos à cidade de Santo Domingo em
19655, recorda que o exilado brasileiro era uma leitura obrigatória para as
esquerdas do México naqueles anos6. Moya não conheceu pessoalmente a
Julião, mas Luis Suárez, editor da Siempre!, viajou ao Brasil em 1962 e visitou
a Associação de Imprensa de Pernambuco, em Recife, onde estabeleceu
contato com o então deputado socialista e advogado dos camponeses7, de
quem se tornou amigo nos anos do exílio. O fotógrafo, que ainda esteve
com o jornalista Mario Menéndez na Venezuela e na Guatemala, em 1966,
registrando parte do seu cotidiano e das ações da guerrilha8, ainda lembra
de Francisco Julião como um respeitado líder de esquerda da América
Latina9.
Quando lia os artigos semanais do brasileiro, Rodrigo Moya
80 encontrava várias análises sobre os processos considerados revolucionários
na América Latina, alguns dos quais registrados pelo fotógrafo10. Na
17 Revista Siempre!, 18 de julho de 1973. p. 10. Biblioteca Rubén Bonifaz, UNAM, D.F.,
México.
18 Revista Siempre!, 18 de julho de 1973. p. 85. Op. Cit.
Essa abertura para fora [do México] perderia
seu sentido, sua efetividade, seu realismo, se não
encontrasse seu equivalente dentro das fronteiras
geográficas, políticas, ideológicas do país. Aqueles que
negam, de pés juntos, a existência de uma abertura
interna, cometem, a nosso ver, um erro que somente o
sectarismo pode explicar. […] Pois bem, no momento
em que México se abre em busca de novos horizontes
e se incorpora aos governos que na América Latina já
sustentam, abertamente, o firme propósito de resistir
às agressões imperialistas, Brasil se instrumentaliza
para marchar em sentido oposto. Na sua viagem de
retorno, a ditadura militar abastece os tanques com
as sobras da desnacionalização acelerada e com esses
mesmos tanques esmaga as liberdades. […] Enquanto
México dialoga, Brasil monologa. Assim, entre México
e Brasil as linhas divergentes são bem nítidas19.
que entrevistei em Cuernavaca, agosto de 2010, e de Antólio Julião, filho de Francisco Julião,
entrevistado em Recife, no dia 23 de maio de 2011. Nas duas vezes que estive no México,
em agosto de 2010 e depois entre fevereiro e junho de 2012, quando realizei um doutorado
sanduíche, tentei contato com a última esposa de Francisco Julião, Marta Rosas, que teria
ficado com um acervo do marido composto por correspondências, fotos, escritos e outros.
Nesse material devem estar mais informações sobre as ações de Julião, principalmente
em Cuernavaca. Por meio de alguns padres que conhecem a Marta busquei marcar um
encontro com ela. Não foi possível. Ela afirmava que não aceitaria conversar, sequer por
telefone. Logo não tive acesso a documentos, caso existam, que ofereceriam elementos sobre
essa amizade entre Francisco Julião e Sérgio Méndez Arceo.
Julião, que começavam a circular na revista Siempre!. Houve reuniões e
trocas de ofícios sobre essa questão.
As petições referiam-se aos dois primeiros artigos divulgados no
periódico. Intitulados “Brasil vive a hora mais sombria de sua História e
As lições de um seqüestro: Brasil como ponto chave”, os textos produziam
duras críticas ao governo brasileiro. O primeiro, de 9 de julho de 1969,
ocupava quatro páginas inteiras e construía uma história da ditadura
militar iniciada em 1964, ressaltando a existência de um processo de
desnacionalização do país, promovido por uma política de entreguismo
aos Estados Unidos. Ademais, caracterizava o Exército como um partido
armado que havia tomado de assalto o poder e, por sua vez, as massas
sacrificadas sentiam a necessidade de buscar o caminho revolucionário
para acabar com a ditadura26.
Dias depois dessa publicação, o então embaixador do Brasil, Frank
Moscoso, se reuniu com o Diretor da Primeira Subsecretaria da Secretaria
de Relaciones Exteriores, Alfonso de Rosenzweig Díaz, e lhe expressou
todo o desagrado sentido ao ler aquele artigo. Considerou ser uma clara
incitação à violência, com o objetivo de derrotar pela força o governo do
Brasil. Mesmo reconhecendo a existência da liberdade de expressão para os
90 asilados políticos, alertou que caso Francisco Julião continuasse escrevendo
artigos dessa índole, atingir-se-ia a situação de propaganda sistemática27.
Frank Moscoso retornou ao Brasil dias depois dessa reunião. Em
seu lugar foi nomeado João Baptista Pinheiro. Entre a saída de um e a
chegada do outro, o embaixador Alfonso Rosenzweig Díaz recebeu, em 20
de agosto de 1969, o Encarregado de Negócios da embaixada do Brasil,
Gilberto Martins. Dessa vez, a reunião tratou das declarações de Francisco
Julião ao jornal Novedades, nas quais dizia estar “conspirando eternamente”
contra a ditadura militar brasileira. Mais uma vez foi reafirmada a liberdade
Referências Bibliográficas
VIDELA, Gabriela. Sergio Méndez Arcel, um Señor Obispo. Juan Pablo Editor:
México, 2010.
VILLAR, Samuel I. del. El voto que cuajó tarde. In BIZBERG, Ilán; MEYER, 95
Lorenzo (Org.) Una historia contemporánea de México. Actores – Tomo 2.
México. Editorial Océano de México, 2005.
O protestantismo de missão no Brasil e a força
dos Estados Unidos da América na propagação
do presbiterianismo
104
Figura 1: Caricatura de William Allan Rogers. Fonte: Harper’s Weekly, Nova York, 27 ago.
1898 apud JOHNSON, John J. Latin America in caricature. Austin: University of Texas
Press, 1980. p. 217.
Um dos cartunistas do jornal Harper’s Weekly6, William Rogers,
projetou o seu olhar sobre a América Latina e o papel exercido pelos EUA,
este, portando uma estatura imponente e bem vestido, características que
correspondiam à moderna e avançada civilização protestante do Norte.
A sua imagem é a de quem ensina e civiliza os povos da América Latina,
o que tinha acontecido com alguns países, os quais foram representados
por pessoas de aspectos mais adultos e de comportamentos exemplares,
estando bem vestidas. Enquanto parte da América Latina é retratada como
sendo ainda uma criança rebelde e carente, que se encontrava descalça
e mal vestida. E como toda criança deveria ser educada e/ou civilizada,
processo que muitas vezes só era possível com a utilização da força e o
disciplinamento constante. Não é, então, por acaso que o caricaturista
projetou os EUA fazendo uso de um chicote pronto para disciplinar e
orientar os países rebeldes da América Latina.
Caricaturas semelhantes, nas quais a América Latina e seus
aspectos políticos, econômicos e sociais foram representados a partir de
um código cultural e/ou uma concepção de mundo fortemente aceita, eram
bastante comum circularem nos jornais e revistas dos EUA em vários outros
momentos. (JOHNSON, 1980; PORFÍRIO, 2009: 59-74). Os missionários
norte-americanos, portanto, não estavam fora desse código cultural. O 105
teólogo e filósofo Rubem Alves afirmou que tais agentes ao chegar ao Brasil
em meados do século XIX sempre se comportaram como os representantes
de uma cultura tida como civilizada e superior, em detrimento da cultura
nacional e da religião católica aqui consolidada. (ALVES, 2005; DUPAS,
2009: 07-39).
Paralelamente, não podemos desconsiderar o papel desempenhado
por estes missionários na estruturação (material, doutrinária e organizacional)
6 Harper’s Weekly era uma publicação de política semanal da cidade de Nova York que
circulou entre 1857 até 1916, também intitulado de O Jornal da Civilização. Apresentava
notícias nacionais e internacionais, ficção, ensaios diversos, e humor, ao lado de ilustrações.
De ampla circulação nos Estados Unidos, tinha como importante características a produção
de ilustrações, ou seja, de charges políticas. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/
wiki/Harper’s_Weekly>. Acesso em: 31 de maio de 2013.
do que hoje conhecemos como Igreja Presbiteriana do Brasil. Logo após a
chegada do primeiro missionário, Ashbel Simonton, em 1859, os esforços
da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América (PCUSA), igrejas
do Norte dos EUA, resultaram no surgimento das três primeiras igrejas
presbiterianas localizadas em importantes centros urbanos da época: na
cidade do Rio de Janeiro em 1862, em São Paulo em 1865 e em Brotas/SP em
1865. Tal crescimento, portanto, não se encontrava desarticulado do trabalho
missionário desenvolvido pela Missão do Brasil - subordinada a Junta de
Missões de Nova York (PCUSA) - que atuava inicialmente nos estados do Rio
de Janeiro, São Paulo e Extremo Sul de Minas Gerais; mais posteriormente,
sua inserção atingiria os estados do Paraná, Santa Catarina, Bahia e Sergipe.
Objetivando abranger a maior parte do território nacional, em
1896 a Missão do Brasil foi dividida administrativamente em: Missão
Sul do Brasil (RJ, PR, SC) e Missão Central do Brasil (BA, SE e norte
de MG). Ao mesmo tempo, o Comitê de Missões Estrangeiras, ligado a
Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos (PCUS), igrejas do Sul dos EUA,
concentraram seus esforços no Nordeste do estado de São Paulo, Sudeste
de Minas Gerais e Triângulo Mineiro; estendendo-se também a partir de
uma vasta área do Nordeste acima do rio São Francisco: de Alagoas até a
106 Região Norte do Brasil, na Amazônia. (MATOS, 2004: 13-20). Seguindo
o exemplo anterior, em 1896 dividiu seu corpo missionário em: Missão
Norte do Brasil (Norte e Nordeste) e Missão Sul do Brasil (SP, MG, GO).
Em 1906 esta última também sofre divisões formando: a Missão Oeste do
Brasil, com sede na cidade de Campinas e a Missão Leste do Brasil, sediada
na cidade de Lavras/MG.
A atuação desses missionários, ligados à Igreja Presbiteriana
do Sul dos EUA (PCUS), garantiu o surgimento de uma série de igrejas
presbiterianas, possibilitando em 1872 a criação do Presbitério de São
Paulo que, extinto em 1877, foi reorganizado em 1887 como Presbitério
de Campinas e Oeste de Minas. E no Nordeste destacou-se a criação em
1888 do Presbitério de Pernambuco. Anteriormente, a Igreja Presbiteriana
do Norte dos EUA (PCUSA) tendo como objetivo melhor coordenar suas
igrejas: Igreja Presbiteriana de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Brotas
formou em dezembro de 1865 o Presbitério do Rio de Janeiro, mas este
estava subordinado ao Sínodo de Baltimore - uma importante cidade do
estado de Maryland, Nordeste dos EUA. (MATOS, 2004: 13-20).
É preciso mencionar que toda essa estrutura que começava a ser
organizada estava subordinada às igrejas presbiterianas dos EUA, sejam
do Norte ou do Sul, como popularmente ficaram conhecidas. Não havia,
portanto, uma igreja presbiteriana nacional. Essa realidade só começou a
ser alterada com o surgimento do Sínodo do Brasil em 6 de setembro de
1888, a partir da agremiação do Presbitério do Rio de Janeiro, de São Paulo
e Oeste de Minas e de Pernambuco. Segundo Alderi Matos, o surgimento
do “Sínodo representou a autonomia eclesiástica do presbiterianismo
brasileiro, até então jurisdicionado às igrejas-mães norte-americanas”.
(MATOS, 2004: 15-16) 7.
A partir deste momento, as igrejas estruturadas pela PCUSA e
PCUS foram incorporadas à Igreja Presbiteriana do Brasil, acarretando,
pelo menos em termos formais, uma maior autonomia. A formação
desta igreja presbiteriana nacional foi analisada por Duncan Reily, para
o qual “os missionários presbiterianos, desde a autonomia (1888), foram
arrolados como ministros da nova Igreja Nacional”. Porém, os missionários 107
continuaram a participar de uma organização paralela, a Missão. (REILY,
2003, p. 173). Assim, os missionários norte-americanos passaram a
pertencer a Igreja Presbiteriana do Brasil e a sua Missão com sede nos EUA.
Não houve, no entanto, um desligamento integral, pois as missões tinham
certo grau de ingerência na IPB e compartilhavam a sua condução.
A busca por uma maior autonomia gerou profundos embates entre
a IPB e os missionários norte-americanos, levando à formulação de um
acordo intitulado Modus operandi ou Brazil Plan em 1917. Este documento,
entre outras regulamentações, garantiu às missões norte-americanas suas
permanências e a continuidade do trabalho missionário desenvolvido no
7 Ver também ARNOLD, Frank L. Uma longa jornada missionária. São Paulo: Cultura
Cristã, 2012. p. 50-51.
Brasil, mas, sobretudo, regulamentava as condições em que os missionários
deveriam atuar, assim como, os limites de sua participação em Presbitérios
e na condução de igrejas locais. (REILY, 2003: 173-177; LÉONARD, 2002).
Paralelamente ao seu crescimento com o surgimento de novas
igrejas; Presbitérios e Sínodos; e a busca por autonomia em relação às
igrejas norte-americanas a estrutura administrativa da Igreja Nacional,
conhecida como presbiterianismo, pouco a pouco, foi se consolidando.
É preciso mencionar que o presbiterianismo se trata de um sistema de
governo eclesiástico que se originou na Escócia, no contexto da Reforma
Protestante do século XVI, tendo migrado posteriormente para América
do Norte (Treze Colônias), trazido pelos protestantes ingleses, fugindo
da perseguição religiosa na Inglaterra no século XVII. No Brasil, salvo
algumas particularidades, a igreja implantada por estes missionários seguiu
esta mesma estrutura de governo regida por concílios.
108
Como podemos compreender por meio do organograma
apresentado, a Igreja Presbiteriana do Brasil é regida obedecendo a uma
hierarquia de Concílios: Conselhos, Presbitérios, Sínodos e o Supremo
Concílio8. É nas igrejas locais que os membros convertidos, muitos deles ex-
católicos, começam a conhecer esta estrutura verticalizada. Para ser aceito
como membro efetivo, o novo convertido é acompanhado pela comunidade
na qual pretende ingressar e deverá, posteriormente, ser submetido a uma
cerimônia religiosa conhecida como profissão de fé. Neste ato o fiel terá
que prometer solenemente, entre outras coisas, o respeito incondicional às
autoridades religiosas constituídas. Com este ritual, é recebido por toda a
igreja local como um membro comungante, ou seja, estará apto a receber
todos os sacramentos, como a ceia, onde é lembrada a morte de Jesus Cristo.
Após este momento estará aberta a possibilidade para que o mesmo
participe ativamente – junto com o pastor – da administração da igreja
a que pertence. Todas as igrejas presbiterianas locais são comunidades
administradas por um Conselho formado geralmente por três presbíteros
mais o pastor, que também assume a função de presidente. Os presbíteros
poderão ser indicados pelo próprio Conselho ou pela comunidade de
membros, ou seja, a igreja local. Mas neste último caso, deverão ter seus
nomes também aprovados por este Conselho. Para só assim concorrer ao 109
cargo e ser eleito pelo voto secreto da comunidade (homens e mulheres)
por uma maioria simples, para um mandato de cinco anos. Comumente o
processo eleitoral é realizado para complementar o número de presbíteros
cujo mandato vai sendo expirado.
Um conjunto de no mínimo três igrejas de uma cidade ou região
formará um Presbitério, como prevê o Manual Presbiteriano9. Em cidades
8 Toda esta estrutura dorsal de Concílios é composta apenas por homens. As mulheres
participam e poderão administrar outras instâncias menores que compõe a instituição.
9 Há vários documentos que regem a Igreja Presbiteriana do Brasil. A Igreja tem como única
regra de fé e prática a Bíblia, tendo adotado os símbolos de fé elaborados pela Assembleia
de Westminster em 1646 na Inglaterra. Existe também o Manual Presbiteriano, que é
composto por três partes: a Constituição da IPB (que trata da forma de governo); o Código
de Disciplina (que diz respeito as regras de conduta), e os Princípios de Liturgia (que versa
sobre a vida devocional da instituição).
com grande número de igrejas é comum existirem vários Presbitérios, como
também poderá ser formado por igrejas de várias cidades. Integram estes
Presbitérios, os quais também são Concílios, os representantes destas igrejas
locais acompanhados de seus pastores10, que se reúnem ordinariamente ao
início de cada ano. O primeiro ato quando reunidos é formar uma Mesa
Executiva do Presbitério, composta por um Presidente, Vice-Presidente,
1° e 2° secretários e o Tesoureiro, que serão responsáveis pela realização
do concílio. Em outros momentos, quando necessário, essa Mesa poderá
se reunir, sendo agora nomeada por Comissão Executiva do Presbitério.
Quando existe um grande número de Igrejas e consequentemente de
Presbitérios, há a possibilidade de organizar mais de um Sínodo por
Estado. O contrário também é possível, um Sínodo pode ser formado pelos
Presbitérios de mais de um Estado. Os Sínodos que também são Concílios
que se reúnem ordinariamente a cada biênio, nos anos ímpares, quando
há a composição de uma Mesa Executiva do Sínodo, que assim como nos
presbitérios, se reunirá como Comissão Executiva do Sínodo sempre que
necessário for.
O Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana11 ocorre quando
os representantes de cada presbitério (composto de dois pastores e dois
110 presbíteros, que neste momento são nomeados de deputados), sob a chancela
dos seus respectivos Sínodos, reúnem-se ordinariamente nos anos pares
a cada quatro anos. Há também a possibilidade de reuniões do Supremo
Concílio (SC) em caráter extraordinário. Para conduzir os trabalhos é
eleita uma Mesa Executiva do Supremo Concílio composta por Presidente,
Vice-Presidente, Secretário Executivo, 1° e 2° secretários e Tesoureiro,
que permanecerão em atividade durante os quatro anos seguintes, até a
realização de uma nova reunião. Ao mesmo tempo, para dar continuidade
a esta administração, há uma Comissão Executiva do Supremo Concílio
10 É importante mencionar que os pastores não são membros das igrejas nas quais exercem
seus ofícios, mas do Presbitério que jurisdiciona tais igrejas, como estabelece o Manual
Presbiteriano.
11 Supremo Concílio é uma designação que surgiu a partir de 1937, antes desse momento,
este Concílio se chamava Assembleia Geral, a exemplo dos EUA.
que é formada pela Mesa Executiva do SC (Presidente, Vice-Presidente,
Secretários e Tesoureiro) mais os representantes dos respectivos Sínodos.
Esta Comissão se reúne ordinariamente a cada ano, com possibilidades de
se reunirem extraordinariamente.
No que se refere ao Supremo Concílio, este tem por competência
legal, entre outras atribuições, analisar e julgar as demandas provenientes
dos concílios inferiores, além de “formular sistemas ou padrões de doutrina,
quanto à fé; estabelecer regras de governo, de disciplina e de liturgia, de
conformidade com o ensino das Sagradas Escritura; [...] definir as relações
entre a Igreja e o Estado”. (MANUAL PRESBITERIANO, 1997, p. 36).
É em suas reuniões que se apresentam e efetivam as maiores discussões
sobre o andamento da Igreja; ao final, suas resoluções são divulgadas
em documentos institucionais, espécie de anais denominados Digestos
Presbiterianos12, assim como, as decisões da Comissão Executiva do SC.
Esse conjunto de resoluções, a depender do grau de debates que
o envolvia, era publicado também no jornal oficial da IPB - designado em
meados do século XX de jornal Brasil Presbiteriano - o que possibilitava
a divulgação de tais decisões a significativa parcela de pessoas ligadas à
Igreja; decisões que deveriam funcionar como um tipo de lei e, assim, serem
observadas por todos indistintamente. (MANUAL PRESBITERIANO, 111
1997; GIESBRECH, 2002). São determinações que poderão ser observadas,
por exemplo, a partir de suas concepções sociais e políticas, nas suas
relações com a Igreja Católica Romana e outras igrejas protestantes e nas
suas convicções em torno de instituições ecumênicas, como o Conselho
Mundial de Igrejas (CMI) e o Conselho Internacional de Igrejas Cristãs
(CIIC).
É importante mencionar, para concluir este texto, que todas essas
decisões/determinações são possíveis de serem analisadas, mas para
tanto, carecem de um maior aprofundamento investigativo sobre a Igreja
12 Estes anais são publicados pela Casa da Editora Presbiteriana com o título Digesto
Presbiteriano: Resoluções do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil e da sua
Comissão Executiva, e poderão ser facilmente localizados nas bibliotecas dos seminários e
em algumas igrejas.
Presbiteriana do Brasil. Dito de outra maneira, novas viagens a outros
tempos serão necessárias, principalmente a partir de meados do século XX
quando se observa uma maior intensificação em relação a estas questões,
tendo em vista, os embates políticos e sociais que estão se agigantando no
Brasil, e tem como auge dessa crise o Golpe civil e militar de 1964.
Referências Bibliográficas
ARNOLD, Frank L. Uma longa jornada missionária. São Paulo: Cultura Cristã,
2012. p. 50-51.
CÉSAR, Elben M. Lenz. Mochila nas costas e diário na mão: a fascinante história de
Ashbel Green Simonton. Viçosa, MG: Ultimato, 2009. p. 115-126.
DUPAS, Gilberto. Religião e Sociedade. In: SILVA, Carlos Eduardo Lins da (Org.).
Uma nação com alma de igreja: religiosidade e políticas públicas nos Estados
Unidos. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p. 07-39.
FORSYTH, William B. Jornada no Império: vida e obra do Dr. Kalley no Brasil. São
Paulo: Fiel, 2006. p. 120.
GIESBRECH, Érica. Fiéis em fuga? A nova configuração da Igreja Presbiteriana do
Brasil. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002.
MATOS, Alderi Souza de. Os pioneiros presbiterianos do Brasil. São Paulo: Cultura
Cristã, 2004. p. 13.
114
O Mobral, seu passado e nosso presente
Bianca Nogueira da Silva Souza
Contato: bia_nog@hotmail.com
“Mobral é democracia!
É luz, verdade e carinho
Que serve para você
Para parente ou vizinho,
É o fim da escuridão
Que existia em meu caminho”
(Sebastião Rodrigues, aluno do Mobral
– Garça, São Paulo. Jornal do Mobral
15/11/1971)
115
“O ministério da Educação e Cultura
reconhece amplamente o fracasso do
Mobral. O Mobral foi um equívoco,
diz assessor do MEC” (Jornal O Globo
18/02/1980).
Introdução
1 Programa instaurado pelo governo militar em 1970 que tinha como meta erradicar o
analfabetismo no Brasil entre jovens e adultos em dez anos. Detalho mais à frente as
diretrizes e métodos pedagógicos utilizados para tal.
e motivações. As gerações herdeiras dessas histórias trazem consigo a
responsabilidade de se inteirar dessas versões construídas ao sabor de uma
anistia lenta e gradual, mas, sobretudo “segura” para quem detinha o poder.
A investigação sobre esse passado revela todo o esforço empreendido
pelos militares no convencimento da versão oficial, questionada pouco
a pouco pelas pesquisas mais recentes (RESENDE, 2001; TELES, 2010).
O número de trabalhos nos programas de pós-graduação de história e
sociologia (principalmente, mas não exclusivamente) sobre a ditadura
e seus desdobramentos, tem crescido nas últimas décadas, ampliando os
territórios de debates sobre o tema2.
Temas relacionados à política, violência, arte, lazer e economia
estão entre os mais tocados. É nesse campo de debate que me localizo,
objetivando analisar os eventos pós-1964 pelo prisma da educação
popular e seus impactos sociais na projeção de um “ideal de democracia”
construído pela ditadura militar no Brasil (1964 a 1985)3 e assim entender
como funcionava o projeto educacional dos militares para jovens e adultos
e perceber de que forma esse modelo serviu aos interesses políticos, sociais
e ideológicos do período.
E ainda, considerando o projeto de educação popular do Mobral
como braço da ditadura, acredito que com as pesquisas em andamento, será 117
possível observar o movimento em outras dimensões, bem como entender
seu processo de ressignificação entre esses novos estudos historiográficos e
pela sociedade civil.
2 Fico (2004) faz uma análise desse crescimento bibliográfico sobre temas relacionados à
ditadura no Brasil. Ver referências bibliográficas para mais detalhes.
3 Esse é tema central que desenvolvo atualmente na minha tese de doutorado. Parte dos
resultados já obtidos é apresentada ao longo do artigo.
As mais ousadas, inovadoras e bem intencionadas tentativas
de acabar com essa demanda não conseguiram eliminar essa marca na
sociedade brasileira que atravessa os séculos e ganha status de “problema
social” na atualidade. Segundo dados do IBGE, há 16 milhões de pessoas
com mais de 15 anos que ainda não foram alfabetizadas no Brasil4.
No passado, como no presente, o analfabetismo deve ser analisado
como um conjunto complexo de práticas formais e informais relacionadas
à aquisição de competências como ler e escrever. Qualquer tentativa de
historicizar esse fenômeno tão plural corre o risco de cair no pecado da
generalização e uniformização de tempos e padrões sociais. Diante desses
riscos e dos limites que esse texto oferece proponho uma visão panorâmica
sobre o tema no século XX, mas, sobretudo nas décadas de 1960 a 1980
quando, o combate ao analfabetismo se traveste de “missão nacional”.
Segundo HADDAD (2000) a constituição brasileira de 1891,
importante símbolo da república brasileira, consagrou o federalismo
no Brasil, e deixou a cargo dos estados e municípios a responsabilidade
da educação básica. É marco também deste documento a exclusão dos
analfabetos do processo eleitoral, o que inviabilizou a participação nas
eleições da grande maioria da população adulta da época.
118 Apesar desses limitadores, a historiografia registra os avanços
ideológicos, sociais e político em torno dessa causa a partir dos anos 1920,
que exigiam uma maior ampliação no número de escolas e automaticamente
no número de vagas oferecidas aos jovens e adultos.
Ainda segundo HADDAD (2000, p.3)
4 Dados divulgados pelo IBGE no primeiro semestre de 2013. Para mais detalhes da
pesquisa ver: www.ibge.gov.br.
Latina ou do resto no mundo, começavam a fazer da
educação escolar uma preocupação permanente da
população e das autoridades brasileiras.
5 Apesar da prisão e exílio, Paulo Freire era uma inspiração, de alguma forma, ao Mobral.
Afirmo isso ao constatar o uso dos métodos de palavração e universo vocabular pelo
Mobral. Não estou aqui equiparando os projetos, haja vista o grande fosso ideológico que
os separam. Apenas denuncio a apropriação de conceitos e técnicas pelo governo militar do
trabalho do seu preso e exilado político.
na sociedade, visto que escrever por cima também é uma forma de apagar
rastros do passado (BENJAMIN, 1994). O Mobral ao usar desses recursos
buscou também “higienizar” um passado, aniquilar a memória do derrotado
e se legitimar no campo sociopolítico e educacional. Apresentando-se
como proposta inédita, arrojada e eficiente o Mobral monta uma grande
estrutura que compreendia ações tanto na esfera educacional quanto na
cultural que chegou a todos os municípios brasileiros.
ORGANOGRAMA
121
Execução da
Controle avaliação Assistência técnica Assistência técnica
122 campanha
Recursos
- - Treinamento
financeiros
- - - Avaliação
Aspectos legais da
- - -
cidadania
- - - Fiscalização
- - - Outros
Tabela 1. Fonte: Informações colhidas nos documentos estruturais do Mobral, adaptadas a
partir dos interesses da pesquisa.
7 O golpe militar de 1964 proibiu o voto direto para presidente da República e representantes
de outros cargos majoritários, como governador, prefeito de capitais e senador. Para as demais
cidades as eleições aconteciam de forma direta, por isso a retórica sobre a democracia.
Fonte: INEP – Arquivo Mobral, Cx 126, n°192.
124
10 Esse trabalho foi publicado em 1979 tendo uma segunda edição em 1983 e historicamente
situa-se num contexto da “Abertura Política” onde críticas mais abertas ao regime ganhavam
protagonismo.
Colocando os projetos em paralelo teríamos:
11 Dados apresentados pelo então Ministro da Educação Ney Braga no livro “Soletre o
Brasil e Leia Mobral” publicado em 1975, p.2.
Um balanço inacabado do Movimento
Fontes
135
Manuscritos
• Cartas dos alfabetizadores do Mobral ao Mobral-Central (1970 – 1980)
• Cartas dos alunos do Mobral ao Mobral-Central (1970 – 1980)
• Poesias escritas pelos alunos do Mobral para o Jornal do Mobral (1970 –
1980)
Selo Mobral
BRASIL, Fundação Movimento Brasileiro de Alfabetização. A clientela do Mobral:
suas características socioeconômicas, Rio de Janeiro, 1974.
Jornais
• Folha de São Paulo
• O globo
Referências bibliográficas
136
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In. Hunt, Lynn (Orgs.). A nova
história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PAMUK, Orhan. O romancista Ingênuo e sentimental. São Paulo: Cia das Letras,
2011.
TELES, Edson (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: 137
Boitempo, 2010.
O historiador, o tempo e a ampulheta...
Imagem de satélite: Abrangência do Território Fabril de Fernão Velho. Fonte: Aplicativo 147
Google Earth, disponível em https://www.google.com.br/intl/pt-BR/earth/download/
thanks.html#os=win#chrome=yes#chromedefault=yes#usagestats=yes#updater=yes
7 Esta imagem de satélite foi capturada através do aplicativo Google Earth disponível na
internet. Sendo uma imagem de satélite, a atualização desta depende de novos registros que
o satélite realiza no momento em que passa por esse quadrante no planeta. Desse modo, se
hoje acessarmos o aplicativo, a imagem disponível não corresponderá necessariamente ao
que se apresentava geograficamente no ano de 2014.
tabuleiro e laguna, o que pode nos dar indícios sobre as dificuldades de
acesso e saída. Pressupõe um isolamento que contribui para a prática de
confinamento dos operários nos domínios da fábrica.
Aliás, é essa uma das características para os territórios fabris
apresentadas pelos historiadores José Sérgio Leite Lopes8 e Margareth
Rago9, corroborado por Telma de Barros Correia10 e Ivo dos Santos Faria11
nos casos alagoanos. Situação geográfica que favorecia o isolamento dos
operários, sendo esta uma técnica disciplinadora que arregimentava,
controlava e com uso de outras técnicas, higienizava os operários. Permitia à
fábrica controlar seu trabalho, vida social e tempo de seus operários através
de um sistema de Fábrica com Vila Operária onde o patrão disponibilizava
todo o básico à sobrevivência de seus empregados.
Ao entrecruzar as temporalidades e informações presentes em
ambas as imagens, a mais antiga e atual, respectivamente capturadas por
máquina fotográfica e satélite, visualizamos também a amplitude das
instalações desse território fabril, formando um complexo de Fábrica com
Vila Operária. Neste incluíam-se também outras instalações onde eram
oferecidos serviços diversos aos operários, como sede do Sindicato, sede
da Caixa Beneficente, ambulatório, quadra de esportes, estação de trem,
148 Recreio Operário, mercado, cinema, entre outros.
Nestes espaços, práticas e idéias que circulavam culturalmente na
cidade e no Brasil também estavam presentes. Era comum a reprodução
de filmes hollywoodianos para os operários, conforme destaca Zequinha
Moura, operário aposentado e entrevistado em 2014. Foi a partir do hábito
de frequentar as sessões de filmes no cinema da vila operária, que até hoje
ele nutre o gosto por filmes de western e lembra a admiração que tinha
8LOPES, José Sérgio Leite. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés.
Brasília: EdUnB, 1988.
9RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar (Brasil 1890-1930).
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
10CORREIA, Telma de Barros. Pedra: plano e cotidiano operário no sertão. Campinas:
Papirus, 1998.
11FARIAS, Ivo dos Santos. Nossa casa é do patrão. Dominação e resistência operária no
núcleo fabril de Fernão Velho – Maceió/AL. Curitiba: Appris, 2014.
pelos atores americanos protagonistas no seu tempo de juventude. Da sua
infância, lembra a preocupação de todos com a iluminação noturna durante
a Segunda Guerra, iluminação esta que poderia revelar as instalações
fabris para aviões militares inimigos que por ventura sobrevoassem
aquela localidade. Era um território de difícil acesso, mas que mantinha
permanentemente conexões com a cidade de Maceió e o mundo.
A navegação permitia o deslocamento de pessoas através da laguna
Mundaú, seja para o bairro da Levada conforme narra Veríssimo Ferreira,
seja para outras localidades. A linha férrea existente desde o século XIX
ligando a vila ao centro de Maceió, permitia o abastecimento de matéria-
prima - nesse caso o algodão -, a chegada de maquinário importado e uma
expressiva população a ser arregimentada pela oferta de trabalho na fábrica.
Ainda hoje mantêm fluxo intermitente de pessoas. A circulação de ideias e
valores culturais, a exemplo do cinema e de jornais impressos, transpondo
as fronteiras físicas e limites de deslocamentos daqueles que viviam na vila
operária. Fernão Velho estava integrado ao território de Maceió, porém
com especificidades geográficas, econômicas e sociais, o que interferia
diretamente no ritmo do cotidiano das pessoas que ali trabalhavam e
viviam em cada tempo nesses espaços que constituem o território fabril.
149
A estratigrafia do tempo histórico e a experiência como recursos
metodológicos na escrita da história
Denominação da
Administração Período
Fábrica
Grupo de antigos acionistas e
diretores oriundos do tempo
1996 - 2010
da Administração do Grupo
Othon Fábrica Carmen
153
Embora as diversas administrações de grupos empresariais
sejam referências para demarcação de um tempo organizado linearmente
por Veríssimo Ferreira, apontam também para momentos distintos na
industrialização brasileira e alagoana. Operá-los narrativamente também
possibilita compreende-los como estratos temporais. Cada um desses
estratos temporais singulares remete a experiências únicas, mas que
permanecem em aberto, permitindo deslocamentos que possibilitam
revisitá-los e reinterpretá-los. Nesse caso, chamo atenção para a
denominação da fábrica como referência para designar outros estratos com
múltiplas experiências de sujeitos, administradores e operários, que legam
e atualizam rastros que se deslocam e entrecruzam no tempo, ou ainda se
sobrepõe através de gerações. Distintas datações, rastros e experiências
compõem os tempos da Companhia União Mercantil e Fábrica Carmen.
Importa-nos nestas composições, o lugar que estes ocupam. Trata-se
de múltiplas experiências de gestores e trabalhadores operários. A narrativa
possibilita quebrar a linearidade, operando em cada estrato experiências
que podem se perpetuar e coexistirem no tempo, entrecruzando-se. Desse
modo, o sentimento ser operário em Fernão Velho no tempo presente
simultaneamente demarca uma experiência única a partir do trabalho fabril,
mas que também é múltipla quando evidenciadas as diferentes camadas
de tempo nas quais essas ocorreram, com questões e expectativas distintas
entre as gerações de operários e grupos de administradores e empresários.
A temporalidade quando narrada, enseja movimentos que operam
em distintas formas de organizá-la. O tempo linear, que implica na sucessão
de acontecimentos organizados cronologicamente demarcam processos
históricos na escala do tempo humano. Porém, este mesmo tempo humano,
quando narrado através da experiência, torna-se um tempo entrecruzado e
aberto, permitindo-nos redimensioná-la e movê-la em múltiplas direções
entre passado, presente e futuro.
15 LESSA, Golbery Luiz. Trama da memória, urdidura do tempo. In: TENÓRIO, Douglas
Apratto; LESSA, Golbery Luiz. O ciclo do algodão e as vilas operárias. Maceió: SEBRAE,
EDUFAL, 2013.
16COMPANHIA UNIÃO MERCANTIL. Relatório dos negócios sociaes da Companhia
União Mercantil, relativos ao anno de 1922, para ser apresentado em Assembléia Geral
de Accionistas no dia 15 de março de 1923. In: DIÁRIO OFFICIAL DE ALAGOAS. Edição
de 15 de março de 1923. Maceió: Governo do Estado de Alagoas, 1923.
A água era necessária na produção. O manancial hídrico a que se
refere, encontra-se na área atrás da fábrica, formando um grande açude
que garantia o abastecimento de água para a vila, para a produção de
energia a vapor na fábrica, e para uso nas diversas seções da produção.
Mesmo diante de todo esse prejuízo e paralisação, os investimentos nesse
território fabril não cessaram. Relatam que adquiriram vários maquinários
para o aperfeiçoamento de seus produtos, além da manutenção de antigas
máquinas que possuíam, mas que necessitavam constantemente de reparos
e conservação. Expressam ainda um sentimento positivo em relação
ao aumento da produção, que deverá ser alcançada em pouco tempo,
compensando as largas somas despendidas. Neste ano, o lucro declarado
nos dividendos foi de 15%, apesar de todos os infortúnios. E por fim,
declararam ainda que ao final do ano fiscal restou um expressivo fundo de
reserva no valor de 73:144$971 contos de réis.
Os investimentos em Fernão Velho no ano de 1922 não ocorreram
apenas nas seções de produção. “Foram construídas 40 casas para operários,
e compradas 10 outras a particulares, além do grande sítio Goiabeiras
[...]17.” Do mesmo modo, não foram suspensos os serviços oferecidos aos
operários, a exemplo da assistência médica e escola.
158 Neste período, as instalações da fábrica sofreram intervenções e
melhorias, constituindo um complexo fabril composto não somente pelas
instalações do parque produtivo da fábrica com seus maquinários, mas
também outras edificações e oferta de serviços diversos aos trabalhadores.
Foram construídas novas casas para os operários e suas famílias, assim
como a construção de escola, igreja e outros equipamentos culturais e de
saúde, evitando-se o quanto fosse possível o deslocamento de operários para
fora dos domínios territoriais da fábrica em busca do atendimento dessas
demandas também necessárias à sua vida social. Instituía-se uma política
de mão-de-obra de modo a fixar o trabalhador nos domínios produtivos da
17 COMPANHIA UNIÃO MERCANTIL. Relatório dos negócios sociaes da Companhia
União Mercantil, relativos ao anno de 1922, para ser apresentado em Assembléia Geral
de Accionistas no dia 15 de março de 1923. In: DIÁRIO OFFICIAL DE ALAGOAS. Edição
de 15 de março de 1923. Maceió: Governo do Estado de Alagoas, 1923
fábrica. Na medida em que o morar era provido pelo patrão, este também
sujeitava o tempo dos trabalhadores às suas necessidades produtivas. Foi
durante esse período que o delineamento de complexo território formado
por Fábrica com Vila Operária em Fernão Velho foi se tornando mais
evidente.
O setor de indústrias têxteis em Alagoas era promissor. Dividia
com a produção açucareira, o ranking de principais atividades econômicas
no estado. Segundo Lessa (2011), a indústria têxtil em Alagoas entre a
década de 1930 e 1960 rivalizou com o setor açucareiro o capital investido,
as receitas produzidas, e o número de trabalhadores empregados na
produção. O setor têxtil apresentava-se, portanto, como um setor promissor,
atraindo investimentos de grupos empresariais diversos e interessados no
desenvolvimento da produção industrial brasileira e alagoana.
Entre 1938 e 1943 a Companhia União Mercantil em Fernão Velho
foi administrada pela família Leão. Esse grupo tradicionalmente possuía
negócios no ramo sucroalcoleiro em Alagoas. Tentou diversificar seus
negócios enveredando pelo promissor setor têxtil, comprando a Companhia
União Mercantil pertencente ao grupo Machado. Embora tenha sido
por um curto período, essa administração foi relevante, contribuindo
para a modernização do maquinário, ampliação dos prédios da fábrica, e 159
construção de novas casas para atender a crescente chegada de operários
que eram contratados para o trabalho fabril. Segundo Waldir Cipriano18,
nesse período estimava-se ser uma população de cerca de 8 mil habitantes
na vila.
Podemos ainda, no cotejo da estratigrafia do tempo histórico em
Fernão Velho, identificar como referência temporal, a própria denominação
da fábrica. Fundada com o nome de Companhia União Mercantil em 1857,
e em 1943 quando vendida ao empresário pernambucano Othon Lynch
Bezerra de Mello teve seu nome alterado para Fábrica Carmen. Nessa
administração, a fábrica torna-se parte de um empreendimento que atuava
Referências Bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1996.
CERTEAU, Michel. A Operação Historiográfica. In: A escrita da história. 3º Ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
FARIAS, Ivo dos Santos. Nossa casa é do patrão. Dominação e resistência operária
no núcleo fabril de Fernão Velho – Maceió/AL. Curitiba: Appris, 2014.
LOPES, José Sérgio Leite. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das
chaminés. Brasília: EdUnB, 1988.
PAIVA FILHO, Arnaldo .Rio Largo. Cidade operária. Maceió: SENAI, 2013.
Fontes documentais
Entrevistas:
Periódicos:
3 Edição Princeps de 1505-1506, atribuída por Quaritch a Pietro Pacini di Pescia, partidários
dos Médicis, que por ser adversário de Santorini teria eliminado da carta o nome do
apanhado de cartas-documento enviadas a um gonfaloneiro de Florença,
chamado Pietro Soderini. É com a Lettera que Vespuccio deixava registrada
as diversas incursões realizadas por ele durante as expedições afora do
Mar Mediterrâneo e Fernando de Noronha era descrita como uma “ilha
maravilhosa, com um belo porto e muitos recursos para abastecer-se de
víveres e prosseguir viagem”.
Em outras narrativas, Fernando de Noronha é descrita pela função
de ser porto natural com “infinitas árvores”, “infinitas águas, doces e
correntes”, “aves mansas que vinham comer às mãos”, “bandos de tartarugas
que rodeavam os barcos”, “marsuínos que saltavam fora d’água e gritavam
como porcos”.(LINS E SILVA, 2013).
Passados esses tempos iniciais da colonização brasileira, e séculos
depois e já extinta a Colônia Correcional, em 1938, advinda deste Tempo
dos Viajantes, veio a Segunda Guerra Mundial, em 1942. Fernando de
Noronha se tornava nessa ocasião área de segurança para o Hemisfério
Norte, no caso, para os aliados dos Estados Unidos da América (Inglaterra,
França e Brasil), e, daí, destacando-se como Território Federal. Com a
justificativa de defesa, passava a ser subordinada ao Ministério da Guerra,
sob o comando do Exército.
Com o período do Pós-guerra e o crudescimento da Guerra 177
Fria, instalava o governo americano um ponto para o monitoramento de
mísseis lançados no cabo Canaveral – Flórida: o Posto de Observação de
Teleguiados (POT). As ruínas dessa posto ainda se encontram pela ilha
e é considerada por alguns estudiosos como um importante patrimônio
material da história do Brasil, sendo a
destinatário.
Espacial – como a estação de rastreio de Fernando de
Noronha. (Tácito Rolim, 2012).
4 Fontes orais trabalhadas para a analise desta relação Brasil - Estados Unidos.
5 Diario de Pernambuco, 22 de janeiro de 1957.
6 Também conhecido pela sigla TIAR ou Tratado do Rio, é um tratado de defesa mútua
celebrado na cidade do Rio de Janeiro entre diversos países americanos, cujo princípio
central é que um ataque contra um dos membros será considerado como um ataque contra
todos, com base na chamada “doutrina da defesa hemisférica”.
Essas narrativas jornalísticas permitem entender a Ilha de
Fernando de Noronha em um ambiente tecnológico com os projeteis
balísticos desenvolvidos tanto pelos americanos, como pelos Russos,
ambos a inserir diferentes nações nos seus programas espaciais. A exemplo
do que acontecera com o Arquipélago dos Açores, a partir de 1944, quando
Portugal concedeu facilidades de natureza militar aos Estados Unidos da
América, na Ilha de Santa Maria – mesmo sem Salazar simpatizar com
os americanos e desconfiar profundamente da sua política expansionista7
–, em Fernando de Noronha, a presença americana mudava o dia a dia
de quem a habitava. Considerada como uma das unidades nucleares de
defesa na rota do Atlântico, Fernando de Noronha garantia “o controle
e o acesso aos céus e ás terras do Brasil” (VIEIRA, 1958, pp 18). Estava,
portanto, irremediavelmente inserida no contexto internacional da Guerra
Fria, reforçada pela presença americana que a toma enquanto imperativo
de defesa para essas rotas. Os laços político-militares entre Brasil e Estados
Unidos direcionavam a construção de um discurso baseado pelo temor
de um Terceiro Conflito Mundial, em que a salvaguarda da soberania
brasileira dependia da assistência americana na defesa não apenas do
Arquipélago, mas também, no monitoramento da costa nordeste do Brasil
e, por extensão, do Oceano Atlântico-Sul. 179
A tessitura da pesquisa encontrava respostas nesses recortes
de jornais quando delineavam-se os discursos em torno do americano.
Enquanto o Diario de Pernambuco apresentava tendência pró-americana,
inclusive sendo acusado de servir de “boletim do consulado americano”8,
pela Folha do Povo que deixava claro o seu posicionamento contra não apenas
a cessão do arquipélago aos EUA, mas também, a presença americana no
território brasileiro como um todo: “o perigo”.9 No entanto, nos periódicos
pesquisados, a cessão do Arquipélago rendia discussões homéricas e que
ultrapassavam os limites desejados pela política internacional, já que tudo
7 ANDRADE, Luís Vieira. Portugal, a Aliança Atlântica e o pós-guerra Fria. Revista
Arquipélago – Historia; 2ª serie, IV – Nº 2; PP 613-623; Ponta Delgada, 2000
8 Folha do Povo, quarta-feira, 08 de março de 1956.
9 Folha do Povo, 10 de novembro de 1957.
em torno da cessão era passível de servir como matéria de jornal, incluindo
até a opinião do “pacato morador” da Ilha de Fernando de Noronha sobre
“a ida do americano”, algo apenas realizado pelo Diario de Pernambuco (em
setembro de 1958), como se isso reforçasse o discurso de que o americano
era amigo, já que traria riqueza com o dólar.
As estratégias políticas
O Reinventar da história
20 SILVA, Golbery do Couto e. Conjuntura política nacional: o poder executivo & geopolítica
do Brasil. – 3ª ed. – Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981 pp 165.
Só podemos historicizar aquilo que deixou rastros
de sua produção pelo homem, em dado momento e
espaço. mas desaparecem as fontes privilegiadas da
História, ou os aspectos de que o historiador não
poderia se ocupar e tudo se torna historicizável e
fonte de historicidade. (ALBUQUERQUE JUNIOR,
2007: pp64).
Referências bibliográficas
BACELLAR, Carlos. Fontes documentais: uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY,
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. In: Obras escolhidas. Vol. 1.
DIAS JÚNIOR, José Augusto & ROUBICEK, Rafael. Guerra Fria, a era do medo.
(Coleção História em Movimento). 2ª edição, São Paulo: Ática, 1999.
GAGNEBIN Jeanne Marie. Lembrar, Esquecer, Escrever. São Paulo, Editora 34,
2006.
ROLIM, Tácito Thadeu Leite. “Giram os Sputniks nas Alturas, Ferve a Imaginação
nas Planuras”: a ciência e o bizarro no Ceará em fins da década de 1950. Dissertação
de mestrado em História Social – Ceará: Universidade Federal do Ceará, Fortaleza.
2006.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do
século XIX. São Paulo, Cia editora nacional, 2001.
193
Parte II
195
Fio do Tempo: Entre Passados, presentes e expectativas
do devir em imagens das artes visuais
Joana D’arck
I
Historiadores: narram o tempo
II
E os artistas, narradores do tempo?
7 Cinema Transcendental, cujo título fora extraído da canção Trilhos urbanos, que integra o
repertório. O LP atingiu a vendagem de cerca de cem mil cópias, trouxe canções antológicas
de sua autoria, como “Menino do Rio” (sucesso na voz de Baby Consuelo, atual Baby do
Brasil), “Lua de São Jorge”, “Beleza pura” (que se tornou o grande hit do LP), e “Cajuína”’, e
uma exaltação à religiosidade com “Oração ao tempo”.
se repete e nesse movimento, ou seja, na construção de suas sequencias,
por seres tão inventivo e pareceres contínuo tempo, tempo, tempo, tempo,
um ciclo que se completa: tempo da natureza, do nascer e do findar-se, do
velho e do novo que guardam suas semelhança e dissonâncias, és um senhor
tão bonito, como a cara do teu filho, tempo, tempo, tempo, tempo. Ainda,
quando o poeta diz, compositor de destinos tambor de todos os ritmos, tempo,
tempo, tempo, tempo, entro num acordo contigo tempo, tempo, tempo, tempo,
nesse caso a inserção do elemento tambor - instrumento recorrente na
construção musical de origem africana e afro-brasileira - nos da à medida
da marcação temporal, um dos elementos fundantes da linguagem musical,
que estabelece o ritmo da canção e da passagem do tempo. Esse ritmo
marcado pela metáfora do toque do tambor restaura noções que perpassam
pela presença de um tempo da ancestralidade.
Ainda nessa esteira o tempo se revela circular. O início e o final
correspondem ao ciclo da existência das coisas vivas, quando eu tiver
saídopara fora do teu círculo tempo, tempo, tempo, tempo. Não serei nem
terás sido tempo, tempo, tempo, tempo. Ainda assim acredito. Ser possível
reunirmo-nos tempo, tempo, tempo, tempo. Num outro nível de vínculo (...).
Assim como a construção poética do texto acompanha esse ritmo circular,
por meio do refrão que se repete construindo um texto sem cisões, fluido. 203
No sentido que Zygmunt Bauman propõe no seu conceito de “tempo
líquido”: O tempo líquido é aquele que reúne sem vínculo, sem proximidade,
sem intensidade e sem implicação as pontas das interações humanas. Oração
ao tempo apresenta em linhas gerais essa fluidez do tempo líquido.
A composição é formada por dez estrofes de igual melodia, à
semelhança de uma oração, de uma reza. A repetição é proposital, pois,
repetitivas são as orações. A palavra “tempo” é repetida à exaustão, como se
quem reza estivesse tentando chamar a todo custo a atenção do deus tempo.
É a pequenez humana frente ao tempo. (Miranda, 2010, s/p).
Tal concepção do tempo (sagrado, profano, circular) proposto
pelo poema nos parece ser interessante como escrita sobre o tempo, pois
recoloca na contemporaneidade essa dimensão mítica que se condensa
no “tempo histórico”, estabelecendo correspondência com as construções
narrativas elaboradas por antropólogos, historiadores e cientistas sociais.
Um belo texto que ajuda a desencadear o debate sobre o tempo e suas
muitas interpretações.
III
Marcelo Brodesky: Buena Memória
Muitos artistas buscam escrever suas impressões e experiências
sobre e no tempo. Para além dos textos verbais (literatura), há uma vasta
escrita visual que dialoga com essa questão. No cinema, por exemplo, pode-
se arrolar uma lista de incontáveis textos narrativos cinematográficos que
exploram esse tema e operam efetivamente com uma narrativa que traz o
tema em correspondência com a linguagem do cinema. O cinema consegue
por sua linguagem ser construída por fragmentos, colagens e bricolagens,
narrar diferentes uma história por meio de estratégias narrativas que
colocam as temporalidades em simultaneidades.
Também nas artes visuais - linguagem privilegiada da minha
pesquisa - notam-se poéticas artísticas que desencadeiam essa temática,
privilegiando questões bastante singulares como as significações da
204 memória e suas passagens no tempo – citemos o artista Marcelo Brodsky,
argentino exilado na Espanha durante o Golpe de estado em seu país de
nascimento. O artista trabalha com a apropriação de coleções de fotografias
particulares, palavras recolhidas na cena urbana, entre outras apropriações,
como possibilidade de trazer para o presente, questões referentes aos
tempos: do horror, tempo do medo, tempo da perda, tempo das afetividades
e tempo das ausências.
10 Diante do Tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Paris: Les Éditions de
Minuit, 2000. Tradução de Alberto Pecheu. In Revista Polichenelo, Postado em 21 de março,
2011. Cof. http://revistapolichinelo.blogspot.com.br/2011/03/georges-didi-huberman.html,
visitado em 13/02/2015.
é o elemento do futuro, o elemento da duração.
Freqüentemente, a imagem tem mais memória e mais
porvir do que o ente que a olha.
IV
Dimensões da narrativa poética de Christina Machado em relação ao
seu tempo
11 Jorge Luís Borges. Funes o memorioso, ou a memória (em tradução portuguesa) foi
publicado pela primeira vez em 1944 em um livro intitulado ficciones (ficções). Conf.
Borges. Jorge Luis. Ficções. Cia das letras: São Paulo, 2007.
12 Conferir livro organizado por Lima, Joana D’Arc de Sousa. Fio do Tempo. Funcultura:
Recife, 2009. O fio da meada que conduz a narrativa do livro é a fala em primeira pessoa
da artista. Desejou-se dar voz a Christina Machado para que ela contasse sua trajetória
de aproximadamente 15 anos de trabalho, pesquisa e inserção no campo das artes visuais
do Recife. Buscou-se construir uma escrita de si vista e revista pela organizadora do livro
e pelo jornalista Julio Cavani que participou da produção e edição da entrevista que é o
texto principal da narrativa do livro. Confeccionado por 03 mãos essa publicação marca
Uma experiência leva a outra e a mais outra e mais uma ainda.
Encadeadas. Como na representação, por exemplo, da série de objetos Um
nasce do outro (2007) – nascidos da série Artérias, são objetos/corações
feitos do barro que a sobra de matéria de um, deriva o outro e mais um.
A artista não sossega, produz incansavelmente seus trabalhos na mesma
medida que respira. Christina Machado é obstinada pela vida – pela
experiência - e a inscreve como arte.
Os trabalhos mais recentes deixam a marca da participação. O
“outro” faz parte da pesquisa, investigação e realização da obra. Chris
Machado desnuda-se diante do participador, oferece possibilidades de
uma experiência estética e de uma entrega sensorial para os mais diversos
públicos. Na esteira relacional, bem próxima das experiências propostas
por Lygia Clark13, somos convidados a participar sensorialmente. Dessa
efetivamente o primeiro registro em livro de Christina Machado, uma das mais importantes
artistas contemporâneas de Pernambuco.
13 Lygia Clark inicia aprendizado artístico com Burle Marx. Entre 1950 e 1952, vive em
Paris, onde estuda com Fernand Léger, Arpad Szenes e Isaac Dobrinsky. De volta para o
Brasil, integra o Grupo Frente, liderado por Ivan Serpa. É uma das fundadoras do Grupo
Neoconcreto e participa da sua primeira exposição, em 1959. Gradualmente, troca a
pintura pela experiência com objetos tridimensionais. Realiza proposições participacionais
211
como a série Bichos, de 1960, construções metálicas geométricas que se articulam por meio
de dobradiças e requerem a co-participação do espectador. Dedica-se à exploração sensorial
em trabalhos como A Casa É o Corpo, de 1968. Participa das exposições Opinião 66 e Nova
Objetividade Brasileira, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ). Reside
em Paris entre 1970 e 1976, período em que leciona na Faculté d´Arts Plastiques St. Charles,
na Sorbonne. Nesse período sua atividade se afasta da produção de objetos estéticos e volta-
se sobretudo para experiências corporais em que materiais quaisquer estabelecem relação
entre os participantes. Retorna para o Brasil em 1976; dedica-se ao estudo das possibilidades
terapêuticas da arte sensorial e dos objetos relacionais. Sua prática fará que no final da vida
a artista considere seu trabalho definitivamente alheio à arte e próximo à psicanálise. A
partir dos anos 1980 sua obra ganha reconhecimento internacional com retrospectivas em
várias capitais internacionais e em mostras antológicas da arte internacional do pós-guerra.
Conf in: ASSOCIAÇÃO CULTURAL O MUNDO DE LYGIA CLARK., Rio de Janeiro, s/d.
Disponível em: <http://issuu.com/lygiaclark/docs/1960-bichos_p/3?mode=a_p>. Acesso
em: 27. Fevereiro. 2011; ENCICLOPÉDIA DE VISUAIS ITAÚ CULTURAL, São Paulo, s/d.
Disponível em http://enciclopedia.itaucultural.org.br/#!tipo=pessoas&q=Lygia%20Clark.
Acesso em 08. Março. 2015.
maneira vibra com o trabalho que desenvolve na Tamarineira14, com as
oficinas e encontros que resultaram nas experiências Pé, Mão, Sensação, e
nos desdobramentos do Artérias.
Experiências e deslocamentos, intimidade com a matéria,
estreitamentos da relação arte e vida, sofre uma radicalização quando
da construção, lapidação e destruição do objeto/corpo feito de barro,
representação e cópia de sua imagem. Nesse trabalho também são explorados
dois tempos, dois territórios, duas cores: a argila alva de Tambaba (litoral
paraibano) e a argila escura de Carnaúba dos Dantas (Sertão do Seridó).
Essas “vivências” alimentaram o corpo do trabalho exibido na sua primeira
exposição individual Tempo de carne e osso observatório cultural Torre
Malakoff em 2004.
212
15 O Coletivo de artistas denominado Grupo Corgo tem suas origens no Ateliê das Águas
214
Belas da artista Christina Machado na primeira metade dos anos 1990. A artista já atuava
na pesquisa com o barro, seus usos e possibilidades. Em seu ateliê reuniu artistas jovens,
citados, Dantas Suassuna, Joelson Gomes, José Paulo, Mauricio Silva e Rinaldo Silva, que
não conheciam as técnicas do uso dessa matéria, sua diversidade de cor, textura, origem e
resultados a usar a matéria. Assim, numa convivência de trocas e experimentações cerzidas
pela curiosidade e amizade, o grupo de artistas passou a freqüentar o espaço, produzindo
e discutindo sobre arte, o meio artístico local, suas poéticas e projetos de vida. Em 2002 o
grupo realiza exposição CORGO – Cerâmica Contemporânea de Pernambuco, em Recife
no Observatório Cultural Malakoff. Desse diálogo que se intensifica e produz visibilidade
para a produção contemporânea da cerâmica, o grupo realiza uma pesquisa sobre as diversas
territorialidades e possibilidades do uso do barro no universo cultural de Pernambuco, fruto
de uma bolsa de pesquisa em que o Corgo foi contemplado em edital público no 46º. Salão
de Artes Plásticas de Pernambuco/Brasil em 2003/2004, resultando em uma mostra coletiva
no Museu de Arte Contemporânea – MAC, Olinda. Depois dessa exposição o grupo não
mais se reuniu ou propões outras pesquisas e encontros. Não obstante o grupo de artistas
continua ligado pela amizade, afetividade e pela parceria em ações e experimentações de
diversos materiais, inclusive o uso da cerâmica. Vale destacar que desses nomes o artista
coletiva no Sesc Garanhuns/PE no evento 12º. Festival de Inverno de
Garanhuns e no mesmo ano (2002) na Torre Malakoff na cidade do Recife/
PE;
Sua pesquisa com o barro desloca-se para outros territórios,
Paraíba e Rio Grande do Norte, no nordeste do Brasil. Apropria-se da praia
de Tambaba, sul da Paraíba, e, da região do Seridó (RN), Carnaúba dos
Dantas como lócus da pesquisa com o barro e posterior espaço de suas
intervenções, resultando no trabalho, podemos ousar dizer, divisor de
águas, Tempo de Carne e Osso em 2004.
215
Joelson Gomes é destaque na produção trabalhos com a cerâmica, José Paulo, Mauricio
Silva e Rinaldo Silva continuam experimentando a matéria e justando à outros materiais.
Ver Lima, Joana D’Arc de Sousa Lima. Cartografia das Artes Plásticas no Recife dos anos
1980: Deslocamentos Poéticos e Experimentais. Recife: Editora da Universidade, 2014.
Também da autora, JOSÉ PAULO: Biografia Ilustrada. Recife, s/d. Disponível em http://
www.josepaulo.org/biografia-ilustrada/. Acesso em 1. Fevereiro. 2015.
VI
Tempo de Carne e Osso
Fiz uma visita ao passado, enterrei meus mortos e enfrentei o medo do futuro.
Christina Machado
A performance realizada nos bastidores da Torre Malakoff
em 2004, finalizando o trabalho Tempo de Carne e Osso, simboliza um
momento fundamental da trajetória da artista, podemos dizer que um
divisor de águas em sua produção. O tema do tempo é recorrente, trazido
sob o viés dos seus ciclos e suas passagens, como por exemplo, vida e morte.
Uma espécie de passagem se impõe como repertório nesse trabalho que foi
exibido no espaço cultural Torre Malakoff, na cidade do Recife/PE e reuniu
um conjunto de objetos, vídeos, fotografias e a ação performática realizada
pela artista na véspera da abertura da mostra acompanhada pela fotógrafa
Dominique Bèrth.
216
Tempo de Carne e Osso inicia-se em uma pesquisa que a artista já vinha
realizando sobre o uso e a natureza, como a mesma gosta de se referir, da
argila escura oriunda de uma região denominada por Seridó no estado do
Rio Grande do Norte16, nordeste do Brasil. Segundo relato da artista o que
a mobilizou, primeiramente, para a realização do trabalho Tempo de Carne
e Osso foi uma necessidade de, com base no presente, projetar o futuro, ou
seja, uma viagem para o devir, ampliando seu olhar no horizonte de
expectativas que fossem possíveis vislumbrar naquele momento,
16 À convite de Plínio Vítor, historiador, a artista inicia viagens com vários artistas
convidados para fazer oficinas de arte, trabalhando a preservação de sítios arqueológicos da
região. O projeto se chamou 10.000 Anos de Arte no Brasil.
Lá revisitou o passado. Despiu-se de suas vestes e integrou de
maneira simbólica e experimental a paisagem e seus signos, adensando
218
ao cenário sua presença. Recolheu o barro escuro peculiar a essa região
e a mica. No retorno ao Recife, carregada dessa experiência e de seus
impactos visuais e sensíveis no seu corpo e em sua memória construiu
uma urna funerária com a matéria dessa região – objeto presente nos
rituais de morte na história da humanidade dos povos ancestrais.
Dentro e no interior da urna, feita na medida de seu corpo, a artista
insere a mica da mesma região.
Para dar conta do presente transfere-se para o litoral da Paraíba,
praia de Tambaba, também no nordeste brasileiro, onde há uma argila 219
branca e suave, diferentemente da matéria localizada no Serido/RN. Nessa
praia constrói o molde de seu corpo inteiro com o barro branco e o coloca
em uma cuba. Ao ver sua própria imagem construída em argila, seu duplo, a
artista se assusta com a imagem que condensa as marcas do tempo passado,
além dos registros visuais causados pelas tensões, oriundos do processo de
feitura da réplica em argila. Uma sensação de estranhamento a invade ao
estar diante de da imagem de seu corpo.
Diante da imagem e, certamente diante do tempo e de suas
220 múltiplas temporalidades gravados na representação do seu próprio corpo
feito no barro, a artista tentará amenizar as marcas presentes na imagem
estática e banha-se e a seu duplo de barro com as águas do mar. Ao mesmo
tempo, desfaz em parte sua própria imagem. Resta dessa ação o objeto
destruído, fragmentos que se soltam do todo. Novamente ao retornar para
o Recife a artista refaz/reconstrói o molde com o barro branco e queima
transformando-o, simbolicamente, o corpo pele em corpo cerâmico. Essa
ação, por meio da queima em forno, do objeto em alta temperatura garante
a permanência da escultura que ocupará uma sala expositiva na Torre
Malakoff.
221
222
223
224
Christina Machado aprofunda as questões existenciais, tenciona os
tempos e sua simultaneidade, e por fim, ao projetar-se no espaço expositivo,
por excelência, território de ocupação do artista, lança-se numa viagem
catártica, onde passado e futuro estão juntos, onde o espaço de sacralidade
da arte é invadido pela vida e por intensidades expressivas.
225
226
227
Nas salas expositivas da Torre Malakoff restam os vestígios da
passagem da noite, as paredes guardam a gestualidade da ação – como as
pinturas rupestres guardam o gesto da ação e da narrativa daquele tempo
que sobrevive aos nossos – os cabelos permaneceram no piso das salas, aos
poucos, foram carregados pela passagem dos visitantes. Sua imagem foi
capturada pelo clic da câmera fotográfica de Dominique Bèrth – única
testemunha do fato ocorrido. Restaram as imagens físicas e os relatos orais
de memória para compor de maneira fragmentária essa história.
Estamos diante, então, dos tempos que essas imagens conjugam e
condensam. Estamos diante dos tempos.
Referências Bibliográficas
BORGES. Jorge Luis. Ficções. Cia das letras: São Paulo, 2007.
228
BRODSKY, Marcelo. Buena Memória. São Paulo/Recife: Memorial da Resistência
de São Paulo/Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, 2011.
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Minut, 2012.
LIMA, Joana D’Arc de Sousa Lima. Cartografia das Artes Plásticas no Recife dos
anos 1980: Deslocamentos poéticos e experimentais. Recife: Editora Universitária,
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NOBERT, Elias. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
NOVAES, Adauto (Org). Tempo e História. São Paulo: Cia das Letras, 1994;
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Disponível em: http://www.astuciadeulisses.com.br/milan-kundera-imaginando-
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SIBÍLIA, Paula. O Show do eu: a intimidade como espetáculo. Ed. Nova Fronteira:
São Paulo, 2008.
230
As curvas e retas da História: leituras do tempo nas
crônicas sobre o espaço – rio São Francisco, anos 1970
Elson de Assis Rabelo1*
Email: elson_rabelo@hotmail.com
2 No livro publicado em 2005, a data para a publicação original da crônica citada aparece
como sendo 11 de março de 1978.
Cumpre-nos declarar que não é nosso desejo avocar
a nós próprios a primazia de situar nos devidos
termos a História da navegação fluvial do médio
São Francisco; nosso intuito é contribuir com uma
parcela de conhecimentos em torno do assunto,
graças às pesquisas que fizemos e continuamos a
realizar, baseada sempre em documentação autêntica.
Porém, a fim de esclarecer alguns pontos básicos da
evolução histórica, não é possível prescindir-se da
tradição oral, grande auxiliar de reconstituições,
apesar de reconhecermos a precariedade e falibilidade
de recursos desta ordem, sempre sujeito a revisões
(DOURADO: 1973a, 38).
3 Vários desses textos estão presentes na obra que citamos (MAGALHÃES, 2009), cuja
primeira edição é de 1991. Ressalte-se que, para Ermi Ferrai, até o momento de sua escrita
mais recente, ainda era possível recuperar a navegação.
das experiências espaciais desvalorizadas pelo planejamento oficial, mas
também preocupação com as perdas que poderiam sofrer determinados
grupos sociais. Na coluna “Sobradinho é Notícia” ou nas colunas dos autores
indicados, toda a nostalgia produzida pelos textos em relação à navegação,
às chagas nos peitos dos remeiros e aos ruídos românticos dos vapores que
aportavam em Juazeiro trazendo pessoas, mercadorias e histórias, estava
relacionada às expectativas sobre o que poderia acarretar a transformação
nos espaços.
Em 1975, usando sua coluna regular, Walter Dourado afirmará algo
nessa mesma direção, indicando os agentes sociais e instituições envolvidos:
Referências Bibliográficas
BARQUEIROS do S. Francisco terão a sua vez. RIVALE. Juazeiro, ano VI, n.º 216,
16 de jan. 1977 [1977a].
______. Museu Regional do São Francisco. RIVALE. Juazeiro, ano VI, n.º 243,07 de
ago. 1977. p. 5 (Coluna História – Tradições – Sugestões – Comentários).
______. Juazeiro – Cidade líder da região sanfranciscana. RIVALE. Juazeiro, ano IV,
n.º 170, 06/07 de dez. 1975 [1975a]. p. 3 (Coluna História, Tradições, Comentários
e Sugestões).
MAGALHÃES, Ermi Ferrari. Navegação no rio São Francisco. 3. ed. São Paulo:
P&A, 2009.
______. Velha Sento Sé – adeus. RIVALE. Juazeiro, ano V, n.º 180, 19 de mar. 1976.
p. 2 (Caderno Especial A Última Festa de Sento Sé).
251
______. Saga sentimental da navegação (Capítulo III). RIVALE. Juazeiro, ano III,
n.º 109, 19/20 de out. 1974.
______. Barranqueiros e beradeiros. RIVALE. Juazeiro, ano II, n.º 50, 01/02 de set.
1973 [1973a].
______. Barranqueiros e beradeiros. RIVALE. Juazeiro, ano II, n.º 48, 18/19 de ago.
1973 [1973b].
______. Barranqueiros e beradeiros. RIVALE. Juazeiro, ano II, n.º 47, 11/12 de ago.
1973 [1973c].
______. Barranqueiros e beradeiros. RIVALE. Juazeiro, ano II, n.º 46, 04/05 de ago.
1973 [1973d].
______. Barcas, barqueiros e remeiros. RIVALE. Juazeiro, ano II, n.º 38, 10 de jun.
de 1973 [1973e].
______. Barcas – barqueiros – remeiros. RIVALE. Juazeiro, ano II, n.º 35, 20 de
mai. 1973 [1973f].
MUSEU Regional – Uma realidade. RIVALE. Juazeiro, ano VI, n.º 237, 02 de jul.
1977 [1977].
PORTO. RIVALE. Juazeiro, ano II, n.º 41, 01/02 de jul. 1973.
252
FICÇÃO, SONHO E MEMÓRIA: roteiros possíveis para
a transgressão da escrita historiográfica.
Raimundo Inácio Souza Araújo
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1Peço licença para um pequeno parêntesis a respeito dessa metáfora. Sobre como a cultura
africana afetou a disposição portuguesa nos trópicos, Freyre diz, por exemplo: “O ar da
África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as
durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando
os ossos ao Cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao
direito visigótico, ao lati, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar;
governando antes a África” (FREYRE, 2001, p. 80).
formações culturais só é possível pela mediação através
do processo global. A “mediação” que faz falta e que
encontro encoberta por uma conjuração materialista
historiográfica nada mais é do que a teoria, que o seu
trabalho se poupa. [...] De um lado, essa renúncia
confere à empiria um traço épico, de outro, tira dos
fenômenos seu verdadeiro peso histórico-filosófico,
transformando-os em fenômenos experienciados
de maneira unicamente subjetiva. Pode-se formulá-
lo também assim: o motivo teológico que consiste
em nomear as coisas pelo seu nome inverte-se
tendencialmente numa exposição deslumbrada da
facticidade. Para falar de uma maneira drástica,poder-
se-ia dizer que o trabalho se alojou no cruzamento da
magia com o positivismo. É um lugar enfeitiçado: só
a teoria conseguiria romper o feitiço... ( ADORNO
APUD GAGNEBIN, 1997, p. 95).
268 Vê-se que essa literatura não recupera o acontecido, ela o recria. O
mundo que dela brota não se resume àquilo que é considerado real, pois ela
acrescenta novos mundos a essa dita realidade. O aspecto pessoal e parcial
dessa produção é inegável, ela só existe pela visão daquele determinado
autor. A neutralidade não é possível, nem desejável, como se observa na
seguinte frase de Genet: “Tal definição [...] da violência há de mostrar a
vocês que irei utilizar as palavras, não a fim de que pintem melhor um
acontecimento ou seu herói, mas para que os instruam sobre mim mesmo”
(GENET, 2005, p. 21).
A ficção, o sonho, a memória e outras temáticas são vias possíveis
e já parcialmente utilizadas pela História para adentrar esse novo regime
escriturístico que experimentamos atualmente. Aberto pela literatura, a
História começa a trilhá-lo na década de 60. A História-Revolução abre
espaço paulatinamente para experimentações que põem em questão os
próprios contributos da historiografia, considerados intocáveis até então.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Referências Bibliográficas
ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla (org.). Fontes
históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
BORGES, Jorge Luís. Ficções. Tradução David Arriguci Jr. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.
FREYRE, G. Casa-grande & Senzala. 43ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2001.
NICHOLLS, David. Um dia: vinte anos, duas pessoas. Tradução de Cláudio Carina.
Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011.
PAMUK, Orhan. Meu pai. In: ________ . Outras cores: ensaios e um conto.
Tradução [do turco] de Berilo Vargas. São Paulo: Cia. Das Letras, 2010.
272
Estereotipias dos corpos e marcas da violência
1Os processos crimes foram digitalizados e quantificados com os casos ocorridos nas duas
maiores cidades do estado, Campina Grande e João Pessoa, perfazendo o total de 60 de
estupros ocorridos na Paraíba, nas décadas de 1960 e 1970. Entendemos aqui a produção
dos documentos como artefatos ou narrativas com efeitos de “realidade” a partir dos indícios
que homens e mulheres deixaram no passado. Consistem essencialmente em um universo
de artefatos linguísticos, em um instrumento produzido para o exercício do poder, numa
sequência de páginas cheias de significação, numa conjuntura de embates e conflitos, cujas
fronteiras são atravessadas pelo entrecruzamento de jogos médicos, jurídicos, religiosos e
psiquiátricos, perpassados pelas relações de gênero.
medo, o pecado, as relações entre a vida privada e pública” (DEL PRIORE,
2003:221). Desse modo, a noção de violência foi se tornando cada vez mais
pauta de discussão nos discursos dos governos e assistentes sociais do país.
A historicidade da noção de violência aparece com marcas
distintas inscritas no e pelo tempo. Como afirma Paul Veyne, faz-se
necessário situar as singularidades dos acontecimentos, “levar o mais
longe possível a análise das formações históricas ou sociais, até desnudar
sua singular estranheza” (VEYNE, 2001:23). A proposta desse texto visa
analisar as redes de contingência e os diferentes sentidos que constituíram
a violência sexual por meio da qual algumas menores de 18 anos da Paraíba
passaram a ser ditas e significadas pelos discursos médicos e jurídicos,
durante as décadas de 1960 e 1970. Para tanto, os estudos de Gênero2
têm sido norteadores para as análises em torno do tema, pois possibilita
problematizar as práticas discursivas que constituem e/ou constroem a
noção de violência sexual, física e psicológica como uma problematização
moral produtora de sensibilidades focando os vetores de gênero como raça,
a cor e a condição social das vítimas de estupros.
Questionamos, por conseguinte, o que caracterizava um crime
de estupro segundo os discursos da justiça e da medicina legal no período
em análise? Que marcas de violência teriam de apresentar os corpos das 275
menores para a constituição do crime de estupro durante as cerimônias
de julgamento? A problematização dessas duas questões faz jus às palavras
de Vigarello que abrem o texto como epígrafe, quando o autor afirma que
2 A categoria gênero será discutida com base na interlocução entre o pensamento dos/
as filósofos/as Michel Foucault e Judith Butler. Desde 1970 que a teoria feminista vem
desenvolvendo uma linguagem capaz de representar as mulheres no seio da política, cujo
objetivo é o de promover a sua visibilidade. Dentre as diversas correntes sugeridas, Butler,
inspirada pela problematização de Michel Foucault, acerca da noção de poder, propôs o
caminho da performance, isto é, como cada sujeito, homem ou mulher, apresenta-se ou se
constitui entre as relações sociais estabelecidas no tempo e no espaço. Ao traçar esse caminho,
ela questiona a identidade de sujeito enquanto uma categoria fixa, estanque, permanente no
tempo, além de colocar em xeque a distinção que Joan Scott fez entre sexo/gênero/desejo.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução
Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
a história dos julgamentos “é um emaranhado complexo entre o corpo, o
olhar, a moral, que essa história vem lembrar”. A finalidade desse artigo
consiste em colaborar para o avanço do debate jurídico-histórico acerca
da violência sexual, vinculado às problematizações das relações de gênero.
De acordo com os registros a que tivemos acesso, as adolescentes
vítimas de estupros aparecem na faixa etária entre 11 e 18 anos; a maioria
empregada pobre e doméstica, cursando o ensino médio ou fundamental.
Quanto ao fator da raça ou da cor, os dados demonstram formas diferenciadas
de tratamento de acordo com a raça da ofendida, o nível econômico e as
relações de intimidade entre os/as envolvidos/as nos casos de estupros
coletivos. Quando se tratava de menor de 14 anos, classificada como
alienada ou débil mental e o agente conhecia tal circunstância, falava-se do
estupro presumido. Segundo o jurista Galdino Siqueira, a lei considerava
a pessoa nessa idade como incapaz de resistir ou de consentir livremente,
quer fosse virgem ou não, o que se tornava inadmissível sendo a indagação
da honestidade, pressupondo a inocência, a insciência da meninice da
vítima. A “presunção da violência”3, definição jurídica corroborada por
outro proeminente representante da justiça, Viveiros de Castro, consistia
no fato de que a lei supunha que a menor, juridicamente falando, não tinha
276 bem nítida a compreensão do ato que afetava a sua honra, entenda-se
sexual e moral, e o seu futuro. Tratava-se nas palavras dos juristas de uma
presunção legal.
Boris Fausto demonstra como o Código Penal de 1940 sinalizou
algumas mudanças concernentes aos crimes sexuais. Passando para a
classificação de “crime contra os costumes”, “vocábulo aí empregado”, nas
palavras de Hungria e Lacerda, “para significar os hábitos da vida sexual
3Segundo o Art. 224 do Código Penal a “violência presumida” consiste no ato em que a
chamada vítima foi constrangida fisicamente ou o estupro foi praticado por meio da coação
violenta. Denomina-se nesses termos quando a vítima é menor de 14 anos, é alienada ou
débil mental, e o agente conhecia tal circunstância, não podendo ela, por qualquer outra
causa, oferecer resistência. Eis a combinação do Art. 213- estupro mais o Art. 224 – violência
presumida. Juridicamente falando uma menor de 14 anos, não teria discernimento de sua
vontade, mesmo consentindo com o ato sexual.
aprovados pela moral prática, ou, o que vale mesmo, a conduta social
adaptada à conveniência e disciplinas sociais” (FAUSTO, 1984:177).
A partir de 7 de agosto de 2009, observaram outras mudanças sobre os
crimes sexuais no Brasil, entrando em vigor a Lei 12.015/09, passando a
ser classificados de Crimes contra a Dignidade Sexual. Dentre os referidos
crimes, consta o estupro, constatado pelo ato de “Constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar
ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A Constituição
Federal de 1988 já havia indicado uma possível alteração jurídico social,
uma vez que dizia respeito diretamente à sociedade, de tratamento dos
crimes sexuais, defendida por muitos autores do Direito como o marco de
mudança do título de “Crimes contra os costumes” para “Crimes contra a
dignidade sexual”. O art. 1º, inciso III, da Constituição de 1988, já indicava
o fundamento basilar da “Dignidade da pessoa humana”.
A partir da Lei 12.015/09, passou-se com efeito, a dizer que os
crimes contra os costumes não traduzem o contexto dos bens juridicamente
tutelados pelos tipos penais que se encontravam no art. VI do C.P. Passou-
se então à proteção da dignidade sexual e não mais aquela que pretendia
regular como as pessoas deveriam se comportar sexualmente diante da
sociedade do século XXI. No tocante à nomenclatura “mulher”, a mudança 277
na legislação, a partir da lei de 1940, consiste na substituição daquele
termo por “alguém”, já que as mulheres podem ser tanto vítimas de crimes
sexuais quanto autoras (SERAFIM, 2013:102). Assim, para que fosse
considerado um delito contra a liberdade sexual, tornava-se necessário o
constrangimento mediante a violência, provado por indícios materiais e
pelos testemunhos. O sentido de constranger à violência significa forçar,
subjugar ou obrigar a vítima a ter relação sexual sob violência ou grave
ameaça.
Ao referir-se ao Código Penal, Antonio de Pádua Serafim afirma
que “o termo ‘costumes’ vinha até então carregado de sentido repressor dos
comportamentos ou hábitos sexuais das pessoas, que deveriam acompanhar
padrões estabelecidos pela coletividade” (SERAFIM, 2013:102) ou pela
chamada elite, entendida sob o ponto de vista daqueles que detém o saber e
o poder. Os documentos pesquisados aqui enunciam que, nos crimes contra
os costumes, defendia-se a ideia do amparo, a proteção da “honorabilidade”
e da tranquilidade das famílias.
4Almeida Júnior graduou-se em 1921 pela Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo.
Foi um dos fundadores da Universidade de São Paulo em 1934. Publicou vários livros,
dentre eles, bastante citado nos processos crimes, “Lições de Medicina Legal” (em 1948
chegou à 20ª edição, alcançando grande êxito no âmbito jurídico). Disponível: http://www.
academiamedicinasaopaulo.org.br/biografias/305/BIOGRAFIA-ANTONIO-FERREIRA-
DE-ALMEIDA-JUNIOR.pdf. Acesso: 01/08/2014.
devendo atender não só à forma, como também ao seu conteúdo”. Queria-
se dizer que, em razão do trauma do acontecimento, a menor, confusa,
poderia dissimular ou acrescentar dados inverossímeis ou exagerar em
suas declarações quando interrogadas sobre o acontecimento violento.
Como medida acauteladora, ensinava ainda Almeida Júnior, “deve o perito
indagar a vítima porque não gritou e porque não ofereceu resistência”. A
luz do saber médico de nomes renomados no país, os advogados da época
reconstituíam aos poucos a ideia de que a menor teria sido no mínimo,
condescendente com o ato sexual violento.
Empenhado em determinar o que chamou de “dissimulação”,
supostamente empregada pela moça, o advogado chamou a atenção
para a “farsa do estupro”. Buscava produzir o enunciado de que através
do testemunho da vítima podia-se extrair com alguma clareza a forma
como ela se portava, as vestimentas que usava, dados de seu passado, de
modo que a análise do acontecimento fosse cada vez mais micro, com
vista a provar a dissimulação empregada pela menor acerca da narrativa
da violência.
Referências Bibliográficas
CASTRO, Francisco José Viveiros de. Os Delitos contra a honra da mulher. 1936.
DEL PRIORE, Mary. História das mulheres: as vozes do silêncio. In: CEZAR,
Freitas, Marcos. Historiografia brasileira em perspectiva (org), 5ª ed. São Paulo:
Contexto, 2003.
GAVRON, Eva Lúcia. Drama e Danos: Estudo das vítimas de crimes sexuais
na região de Florianópolis (1964-1985). Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis,
2008, p. 128.
SILVA, Luana de Carvalho. Carne e Culpa: notas sobre a gestão penal do sexo. Tese
apresentada ao Programa de Pós-Graduação do curso de Direito da Universidade
Federal do Paraná. Curitiba, 2012.
Fontes Documentais
LEITE, Marcelo. Pesquisa do Ipea sobre estupro tem falha em metodologia. Folha
de São Paulo, São Paulo, 4 abr. 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.
br/cotidiano/2014/04/1435862-estudo-do-ipea-que-aponta-apoio-a-ataques-a-
mulheres-e-contestado.shtml>. Acesso em: 27 abr. 2014.
PARA 65%, mulher que mostra o corpo merece ser atacada, diz pesquisa. Folha
de São Paulo, Brasília, mar. 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.
br/cotidiano/2014/03/1431871-para-65-mulher-que-mostra-o-corpo-merece-ser-
atacada-diz-pesquisa.shtml>. Acesso em: 27 mar. 2014.
1.Introdução
Este artigo analisa a importância que o Almanaque, denominado
de Calendário Brasileiro e posteriormente Nordestino vem desempenhando
desde 1960 entre seus leitores, mediante as suas múltiplas “leituras” do
Nordeste, do tempo e da vida. Escrito pelo cordelista José Costa Leite2, tido
como o “Amador de Astrologia e Ciências Ocultas”, o Calendário Nordestino
assim denominado desde 1999, vem há 55 anos orientando seu público-
leitor em feiras, praças e mercados públicos. Descrevendo experiências e
práticas culturais, frutos de seus conhecimentos acerca do tempo, dos astros,
das atividades agrícolas, da medicina popular, dos conselhos e crendices.
O almanaque do Costa Leite é um texto diversificado e fragmentado em 301
sua constituição gráfica, editado anualmente com grande circulação pelos
Estados do Brasil e sua leitura transita entre o campo da informação, lazer
e educação.
1 Este texto é parte da pesquisa que venho desenvolvendo junto ao curso de Doutorado
em História da UFPE acerca da produção artística do poeta José Costa Leite, tendo como
orientador o Prof. Dr. Flávio Weinstein Teixeira.
2 José Costa Leite, poeta de cordel, xilógrafo e almanaqueiro, natural da cidade de Sapé -PB,
reside em Condado, Zona da Mata Norte de Pernambuco. Nascido em 27/07/1927, vem
desde a década de 1950 recitando versos para compor seus folhetos de cordel, ilustrando
as capas de seus folhetos e publicando anualmente um almanaque que serve de guia e
orientação ao homem do campo. Desde 2006, foi registrado como Patrimônio Vivo da
Cultura de Pernambucana.
2.Relatos da Pesquisa
3 PAIVA, Mendes F. Almanach Litterario de São Paulo ano 1876. 1ª edição. In: REZENDE,
Carlos Penteado de. Almanaque Literário de São Paulo. Nova Edição. Reedição Fac-similar
dos 8 volumes do Almanaque Literário, 1982, p. 165.
publicado no Almanaque das Fluminenses para o ano de 1889 (Fig. 01), ele
menciona que “O tempo inventou o almanaque; compôs um simples livro,
seco, sem margens, sem nada; tão-somente os dias, as semanas, os meses e
os anos. ... (ASSIS, 1889:25)” e partindo desse princípio podemos perceber
que de fato sua circulação desde a Europa até o Brasil reativou memórias,
linguagens e saberes que se aglutinavam em uma enciclopédia marcada por
conselhos, experiências da vida, guias e leituras do tempo.
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315
4 Entrevista com José Costa Leite concedida ao Prof. Geovanni Cabral em sua residência em
Condado-PE, no dia 20 de março de 2013.
muita gente achou estranho, isto é, fiz a vontade de
alguns e o desagrado da maioria. De 1976 até 1997, ele
continuou a sair com o nome de Calendário Brasileiro.
Em, 1998, por motivos diversos o almanaque não
circulou. E como o almanaque é brasileiro e seus
prognósticos são feitos para o Nordeste, a partir
deste número ele será publicado com o nome de
CALENDÁRIO NORDESTINO (CALENDÁRIO
NORDESTINO, 1999: 2). (Grifo do autor)
319
322
325
327
Referências Bibliográficas
BOLLÈME, G. Les almanachs populares aux XVII et XVIII siècles, essai d’historie
sociale. Paris: Mouton, 1969. Apud MELO, Rosilene Alves de. Arcanos do verso:
trajetória da literatura de cordel. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão. [et al]. 5 ed.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.
MELO, Rosilene Alves de. Arcanos do verso: trajetória da literatura de cordel. Rio
de Janeiro: 7 Letras, 2010.
PAIVA, Mendes F. Almanach Litterario de São Paulo ano 1876. 1ª edição. In:
REZENDE, Carlos Penteado de. Almanaque Literário de São Paulo. Nova Edição.
Reedição Fac-similar dos 8 volumes do Almanaque Literário, 1982, p. 165-167.
RIOS, Kênia Souza. O tempo por escrito: sobre lunários e almanaques. In:
CARVALHO, Gilmar de. (Org.) Bonito pra chover: ensaio sobre a cultura cearense.
Edições Demócrito Rocha, 2003.
Fontes
LEITE, Jose Costa. Calendário Brasileiro para o ano de 1960. (1ª edição). Condado,
PE, 1959. Acervo Fundação Casa Rui Barbosa.
_______. Almanaque do Padre Cícero. Condado, PE, 1973. Acervo Maria Alice
Amorim.
_______. Calendário Nordestino para o ano de 2001. Condado, PE, 1973. Acervo
Maria Alice Amorim
Endereços Eletrônicos
http://www.cibertecadecordel.com.br/
332
http://espacoastrologico.org/almanaques-astrologicos-ii/
“Não tenhais medo”: os intelectuais católicos na formação
do culto a Nossa Senhora de Fátima (1917 – 1935)
fevereiro de 1858, testemunhada por Bernadette Soubirous de 14 anos, sua irmã Toinette
Soubirous e a amiga Jeanne Abadie ambas de 12 anos. O evento ocorreu no ano previsto por
Nossa Senhora em uma aparição na cidade de La Salette, em 19 de setembro de 1846, para
Maximin Giraud de 11 anos e Mélanie Calvat de 15 anos.
As notícias da aparição de Nossa Senhora despertaram a
curiosidade dos populares e a atenção dos membros do governo, já que a lei
de separação entre o Estado e a Igreja proibia tais manifestações no artigo
55º10. A cada dia marcado para os “encontros” aumentava o número de
seguidores que, crentes ou incrédulos, queriam conferir a veracidade dos
fatos. A desconfiança sobre as afirmações de Lúcia eram também recorrente
na sua família, inclusive a sua mãe, que a pressionava para confessar as
possíveis fantasias criadas com os primos (KONDOR, 2011: 82 – 82).
Nas últimas aparições era difícil evitar as aglomerações na região.
Os principais veículos da imprensa já refletiam sobre os acontecimentos
na parte central de Portugal. Mesmo assim, os jornais republicanos
se esforçavam para silenciar os atos dos católicos, com acusações aos
membros da Companhia de Jesus de usar as crianças e a população de uma
região pobre, com alto número de analfabetos e fanáticos, com o objetivo
de divulgar as suas crenças (TORGAL, 2011: 46 – 47).
A última aparição de Nossa Senhora de Fátima, em 13 de outubro de
1917, foi o momento de maior destaque para o culto mariano em Portugal.
Devido a divulgação na imprensa, o compartilhamento de notícias de uma
possível salvadora para o país, a busca por respostas em temas relacionados
342 à fé – seja dos crentes ou dos incrédulos – e a necessidade de reafirmação de
um catolicismo que se sentia ameaçado, os dias marcados para a “recepção”
de Nossa Senhora tomaram proporções jamais vistas.
Se a quinta aparição foi marcada pelo silêncio e o desencanto de
alguns católicos, no encontro seguinte foram “reveladas” mensagens com
conotações políticas e esperança para o final da guerra. Em interrogatório
e nas memórias da irmã Lúcia de Jesus, destacou-se que o diálogo travado
entre as crianças e a representação de Nossa Senhora se baseou em pedidos
e profecias que contemplaram aspectos globais.
10 Diz o artigo 55º: “Os actos de culto de qualquer religião fora dos lugares a isso destinados,
incluindo os funerais ou honras fúnebres com cerimónias cultuais, importam a pena de
desobediência, aplicável aos seus promotores e dirigentes, quando não se tiver obtido, ou
for negado, o consentimento por escrito da respectiva autoridade administrativa”. (Diario
do Governo, 1911: 430 – 446).
No dia 13 de outubro Nossa Senhora comunicou inicialmente que
todos deveriam rezar o terço e que não se deveria ofender “Deus Nosso
Senhor, que já está muito ofendido” (KONDOR, 2011: 97). A “Senhora de
Fátima” também solicitou que se construísse uma capela no local, ação que
foi efetivada entre os dias 28 de abril e 15 de junho de 1919. Antes de partir,
informou ainda que a guerra acabaria naquele dia e que os portugueses que
estavam no front retornariam em breve (TORGAL, 2011: 49)11.
Mesmo que as mensagens reveladas pelos pastores na última
aparição tenham sido importantes para os católicos portugueses, o
fenômeno que ficou conhecido como o “bailado do sol”12 chamou atenção
dos jornalistas, religiosos e curiosos que se encontravam na localidade. O
assunto foi debatido em diversos periódicos, com diferentes conotações
para se explicar o ocorrido, com argumentos que se baseavam em obras
divinas ao em acontecimentos naturais.
O jornalista Avelino de Almeida (1873 – 1932) publicou uma
reportagem n’O Século no dia 13 de outubro de 1917 com destaque para
a importância de se observar um evento que não era novo para a Igreja
Católica. Mesmo que na infância tenha tido contato com os ensinamentos
da Igreja, o repórter fez considerações céticas baseadas nas possibilidades
mercadológicas que se poderiam tirar dos acontecimentos na Cova da Iria 343
(AZEVEDO; CRISTIANO, 2007: 22 – 24).
No entanto, após o dia 13 de outubro as reportagens divulgadas por
vários jornalistas, inclusive Avelino de Almeida, apresentaram uma abordagem
amena em relação aos fatos ocorridos na Cova da Iria. Os textos publicados
pelo republicano fizeram uma análise social, antropológica e cultural do
evento, despertando sentimentos divergentes entre integrantes do governo e os
católicos que trabalhavam para a construção da imagem de Nossa Senhora de
Fátima como recristianizadora de Portugal (TORGAL, 2011: 52).
14 Algumas obras publicadas após 1917 relatam novas ocorrências do “bailado do sol”
na região. A obra As grandes maravilhas de Fátima apresentou algumas imagens que
representam o fenômeno no dia 13 de maio de 1921. (Cf. MONTELO, 1927).
Em 29 de outubro de 1917 o assunto sobre o “bailado do sol”
retornou às páginas da revista Ilustração Portugueza. Na ocasião Avelino
de Almeida abordou algumas questões que foram trabalhadas a partir do
seu texto publicando n’O Seculo. O jornalista reafirmou suas impressões
anteriores, destacando que se era “Milagre, como gritava o povo; fenômeno
natural, como dizem sábios? Não curo agora de sabel-o, mas apenas de te
afirmar o que vi… O resto é com a Ciencia e com a Egreja…” (ALMEIDA,
1917: 356b).
Mesmo com os eventos que marcaram as aparições marianas em
Portugal no início do século XX, a Igreja Católica demonstrava prudência
sobre o reconhecimento das revelações às três crianças na Cova da Iria.
O clero se manteve cauteloso devido à cultura anticlerical formada em
Portugal desde 1910, a fiscalização de setores republicanos e dos livres-
pensadores que denunciavam as “manobras” para a restauração dos cultos
católicos em desacordo com a lei de separação entre o Estado e a Igreja
(BARRETO, 2002: 34-35).
Mesmo com a prudência de alguns setores católicos, parte do clero
não deixou de construir a imagem de Nossa Senhora de Fátima como a
salvadora dos problemas morais de Portugal. O Cônego Manuel Nunes
346 Formigão (1883 – 1958) foi o principal responsável pela estruturação da
devoção mariana em Portugal após 1917.
Sacerdote, escritor e fundador apostólico, Manuel Nunes Formigão
completou a sua formação teológica no Seminário Maior de Santarém,
onde recebeu as ordens menores em 20 de novembro de 1901. Durante o
período de instrução entrou em contato com a história de Nossa Senhora
de Lourdes, tornando-se um devoto militante (AZEVEDO; CRISTIANO,
2007: 232-237).
Mesmo com toda dedicação a Lourdes, Manuel Nunes Formigão
enxergava as notícias sobre as aparições de Nossa Senhora de Fátima com
reservas. Inicialmente incrédulo, visitou a Cova de Iria em 13 de setembro
e outubro de 1917 para acompanhar as anunciadas revelações da “Senhora
do Rosário”.
Durante a última visita ao Concelho de Vila Nova de Ourém, o
Cônego interrogou as crianças com objetivos de confirmar a veracidade
dos fatos. Ao término das entrevistas com Lúcia, Jacinta e Francisco, o
religioso abandonou as incertezas e se tornou a principal fonte sobre os
relatos das aparições marianas em Portugal. O trabalho realizado pelo
sacerdote serviu como base para a construção do processo canônico que
reconheceu o caráter milagroso dos eventos na Cova da Iria (AZEVEDO;
CRISTIANO, 2007: 234).
As referências que aproximavam Nossa Senhora de Fátima a
Lourdes contribuíram para a legitimação do culto mariano em Portugal.
No discurso do Cardeal Patriarca Manuel Gonçalves Cerejeira durante o
Congresso Mariano Internacional em Lourdes, em 16 de Setembro de 1958,
destacou-se a importância dos dois eventos para a Igreja Católica. Para o
religioso, “Lourdes e Fátima interessam à vida religiosa do nosso tempo
e iluminam o drama contemporâneo do mundo. Este período da vida da
Igreja fica profundamente assinalado pela sua irradiação e a sua influência”
(CEREJEIRA, 1958: 06).
Seja por acompanhar as propostas da reorganização da Igreja
em Portugal, promovida pelo Papa Bento XV, ou influenciado pelos
acontecimentos a partir de maio de 191715, em 17 de janeiro de 1918 a 347
Diocese de Leiria foi restaurada após meio século de supressão. Apenas
em 1920 a circunscrição religiosa foi promovida a titular, já que ficou
subordinada ao Patriarcado de Lisboa até a nomeação do bispo Dom José
Alves Correia da Silva (1872 – 1957) (BARRETO, 2002: 21).
Na bula pontifícia Quo Vehementius, o Papa Bento XV não fez
referências aos eventos de Fátima como incentivos determinantes para
a sua decisão de restaurar a diocese de Leiria. No entanto, não devemos
desconsiderar a importância das aparições marianas para a decisão de
reativação da circunscrição religiosa, principalmente durante o processo
15 Desde o final do século XIX os eclesiásticos portugueses tentavam restaurar a diocese de
Leiria. Foram três projetos: o primeiro liderado por Vitorino da Silva Araújo (1885 – 1891),
o segundo pelo padre Júlio Pereira Roque (1903 – 1904) e o último pelo padre José Ferreira
de Lacerda (1913 – 1918), o qual obteve êxito junto a Cúria.
de reconhecimento das revelações e para que o clero local tivesse maior
liberdade na organização dos projetos relacionados ao movimento de
recristianização (TORGAL, 2011: 142 – 148).
A partir de agosto de 1920, com a ascensão de Dom José Alves
Correia da Silva como bispo de Leiria (1920 – 1957), mesmo que de maneira
ainda informal, a Igreja Católica desenvolveu ações que contribuíram para
o reconhecimento das revelações aos três pastores e legitimava o culto a
Nossa Senhora de Fátima em Portugal.
Entre os projetos se destacaram a compra dos terrenos em torno
da Cova da Iria, o acompanhamento da caminhada espiritual de Lúcia de
Jesus, a concessão de indulgências e de privilégios litúrgicos ao local das
aparições, a autorização de celebração de missas, o estabelecimento de
um Capelão para a região e a construção da “Basílica” iniciada em 13 de
maio de 1928. O bispo também apoiou as publicações sobre a temática,
com aprovação das peregrinações e dos atos dos fieis que colaboravam
com a autenticidade das aparições (DOCUMENTAÇÃO CRÍTICA DE
FÁTIMA II, 1999: 25).
O reconhecimento oficial da Igreja Católica foi apresentado com
a Carta Pastoral sobre o culto de Nossa Senhora de Fátima, publicada
348 em 13 de outubro de 1930. No documento o bispo de Leiria fez uma
análise do processo canônico em torno das aparições de Nossa Senhora
de Fátima, com ênfase nos acontecimentos históricos, nos motivos
da cautela da Igreja Católica e no trabalho do clero para se chegar a
uma posição oficial sobre o evento (DOCUMENTAÇÃO CRÍTICA DE
FÁTIMA II, 1999: 25 – 26).
Dom José Alves Correia enfatizou os pontos necessários para
que a Cúria romana reconhecesse o caráter milagroso das aparições. O
bispo destacou que o momento de provações vivenciado em Portugal, as
condições sociais da região e dos três pastores, as perseguições sofridas
pelas crianças e o fenômeno do “bailado do sol” foram fundamentais para
que a Igreja Católica formasse o processo que abordou as aparições da
“Senhora do Rosário” como obra divina (SILVA, 1930: 03, 09 – 12).
O religioso concluiu o documento declarando como “dignas de
crédito as visões das crianças na Cova da Iria […]”, compreendendo por
bem “permitir oficialmente o culto de Nossa Senhora de Fátima” (SILVA,
1930: 15). A declaração publicada pelo bispo de Leiria comprovava o novo
momento da Igreja Católica em Portugal, com a estruturação de projetos
para a recatolização do país e uma afinidade diferente com os membros do
Estado.
É a partir desde instante que o culto a Fátima passou a assumir um
discurso politizado, legitimado por intelectuais como o patriarca de Lisboa
Dom Manuel Gonçalves Cerejeira, ou instituições como a Ação Católica
e o Centro Académico de Democracia Cristã (CADC). A legitimação do
culto a Fátima não contribuiu apenas para o fortalecimento da “renascença
católica”, mas também para a superação da Primeira República Portuguesa
(1910 – 1926), marcada pelo atrito entre o Estado e a Igreja, além do
fortalecimento do Estado Novo salazarista (TORGAL, 2011: 136; PINTO;
FERNANDES, 2010).
Para a legitimação do novo momento político em Portugal, António
Oliveira Salazar era apresentado como o responsável pela salvação moral
de Portugal. Ex-seminarista, fez parte da direção do Centro Académico
de Democracia Cristã, em conjunto com o então Padre Manuel Gonçalves 349
Cerejeira integrou o grupo dos estudantes da Universidade de Coimbra que
se dedicava ao processo de recristianização.
Em alguns discursos Oliveira Salazar criticou o fim dos privilégios
dos eclesiásticos, utilizando o Brasil como exemplo de boas relações entre
o Estado e a Igreja. Para o líder político, o processo de descristianização
da sociedade também passava por uma desnacionalização, por isso a
recatolização não poderia se resumir ao espaço privado, mas deveria se
inserir nas leis e nos costumes do país (ALEXANDRE, 2006: 25 – 26, 35).
Desde quando tomou posse no governo como Ministro das Finanças
em 27 de abril de 1928, aumentavam as expectativas dos católicos por um
posicionamento político que contemplasse os anseios dos integrantes da
Igreja. Suas negociações com o clero tomaram força quando assumiu o
cargo de Primeiro Ministro em 05 de junho de 1932, culminando com a
assinatura da concordata entre o Estado Português e o Vaticano na década
de 1940.
A carta da visionária Alexandrina Balasar16 é ilustrativa
na abordagem feita à imagem de Oliveira Salazar no momento de
recatolização de Portugal. Em sua correspondência a visionária apresentou
uma mensagem que afirmava ter sido transmitida por Jesus Cristo. No
documento, destacou-se que:
que fez na Praça de São Pedro diante da imagem de Fátima. (L’osservatore Romano, 1984:
01 – 04).
a mensagem que a Igreja passava aos fiéis e ao Estado, como colaboradora
no combate a desordem.
354
Imagem de Nossa Senhora de Fátima localizada na Capela do Engenho Uruaé, na cidade
de Goiana – PE. Abaixo da imagem consta: “Nossa senhora de Fátima Livrai o Brasil do
Comunismo”. Fonte: Acervo Particular.
ALMEIDA, Avelino de. Coisa Espantosa. Como o sol Bailou ao Meio dia em
Fátima. O Seculo, Lisboa, p. 01, 15 out. 1917a.
Pio XII. Oração Para a Consagração da Igreja e da Raça Humana para o Coração
Imaculado de Maria. <www.vatican.va/holy_father/pius_xii/speeches/1942/
documents/hf_p-xii_spe_19421031_immaculata_it.html> Acesso, 30 abr. 2014.
Referências:
ARRUPE, Pedro. Os Jesuítas: para onde caminham? São Paulo: Edições Loyola,
1978.
AZEVEDO, Carlos Moreira; CRISTIANO, Luciano (Coord.). Enciclopédia de
Fátima. Estoril: Princípia, 2007.
BARRETO, José. A Brotéria e Fátima. In. RICO, Hermínio; FRANCO, José Eduardo.
(Coord.) Fé, Ciência, Cultura: Brotéria – 100 anos. Lisboa: Gradiva, 2003.
CHRISTIAN JR., William A.. Visionaries: The Spanish Republic the Reign of 357
Christ. Los Angeles: University of California Press, 1996.
KONDOR, Pe. Luís (Comp.). Memórias da Irmã Lúcia I. Fátima: Secretariado dos
Pastorinhos, 2011.
MOURA, Carlos André Silva de. Fé, Saber e Poder: os intelectuais entre a
Restauração Católica e a política no Recife (1930 – 1937). Recife: Prefeitura da
Cidade do Recife, 2012.
REIS, Bruno Cardoso. Fátima: a recepção nos diários católicos (1917 – 1930).
Análise Social, Lisboa, p. 249 – 299, 2001, Vol. XXXVI (158 – 159).
SILVA, D. José Alves Correia da. Carta Pastoral sobre o culto de Nossa Senhora
de Fátima. Lisboa: União Gráfica, 1930.
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Walter Benjamin
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A relação presente-passado
O método de pesquisa
[...] aplicar à parte recém-eliminada, negativa, uma
nova divisão, de tal maneira a, com um desvio do
ângulo de visão [...], fazer surgir de novo um elemento
positivo e diferente daquele que foi previamente
designado como tal. E assim por diante, in infinitum,
até que todo o passado seja, em uma apocatástase
histórica, introduzido no presente.
Referências Bibliográficas