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A HISTÓRIA E SUAS PRÁTICAS DE


ESCRITA: narrativas e documentos
Erinaldo Cavalcanti, Gilmária Salviano Ramos

A HISTÓRIA E SUAS PRÁTICAS DE ESCRITA: narrativas e documentos

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Impressões do Tempo. Os Almanaques no Ceará


Débora Dias

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENT RO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA …


Geovanni Gomes Cabral

Brasil e Port ugal no século XIX – encont ros cult urais


Andreia Cast ro, Eduardo da Cruz
A HISTÓRIA E SUAS
PRÁTICAS DE ESCRITA:
narrativas e documentos
Erinaldo Cavalcanti
Geovanni Cabral
[organizadores]

A HISTÓRIA E SUAS
PRÁTICAS DE ESCRITA:
narrativas e documentos

Recife | 2015
Universidade Federal de Pernambuco
Reitor: Prof. Anísio Brasileiro de Freitas Dourado
Vice-Reitora: Prof. Florisbela de Arruda Camara e Siqueira Campos ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA

Diretor da Editora: Profa. Lourival Holanda DAS EDITORAS UNIVERSITÁRIAS

Comissão Editorial
Presidente: Prof. Lourival Holanda

Titulares: Alberto Galvão de Moura Filho, Allene Carvalho Lage, Anjolina Grisi de Oliveira, Dilma Tavares
Luciano, Eliane Maria Monteiro da Fonte , Emanuel Souto da Mota Silveira, Flávio Henrique Albert Brayner,
Luciana Grassano de Gouvêa Melo, Otacílio Antunes de Santana, Rosa Maria Cortês de Lima, Sonia Souza
Melo Cavalcanti de Albuquerque.

Suplentes: Charles Ulises de Montreuil Carmona, Edigleide Maria Figueiroa Barretto , Ester Calland de Souza
Rosa, Felipe Pimentel Lopes de Melo, Gorki Mariano, Luiz Gonçalves de Freitas, Madalena de Fátima Pekala
Zaccara , Mário de Faria Carvalho, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da Silva, Silvia Helena Lima Schwan-
born, Tereza Cristina Tarragô Souza Rodrigues.

Editores Executivos: Edigleide Maria Figueiroa Barretto, Rogério Luiz Covaleski e Silvia Helena Lima
Schwamborn

Catalogação na fonte:

ficha catalográfica

(pode alterar a fonte para compor o projeto do gráfico do livro, mas deve-se evitar a mudança nos
recuos e espaçõs definidos pelos bilbiotecários)

Todos os direitos reservados à

Rua Acadêmico Hélio Ramos, 20, Várzea


Recife, PE | CEP: 50.740-530
Fone: (0xx81) 2126.8397 | Fax: (0xx81) 2126.8395
www.ufpe.br/edufpe | livraria@edufpe.com.br
Sumário

Apresentação ............................................................................................................... 7
Prefácio ........................................................................................................................ 11

Sobre os autores ......................................................................................................... 17

Parte I

Medo, comunismo e repressão em tempos de ditadura militar:


Pernambuco (1964 – 1968)....................................................................................... 25
Erinaldo Cavalcanti

A cidade invisível de Marabá ................................................................................... 51


Airton dos Reis Pereira

México e Brasil nos relatos de um exilado político (1969-1979). ............................ 79


Pablo F. de A. Porfírio

O protestantismo de missão no Brasil e a força dos Estados Unidos


da América na propagação do presbiterianismo ................................................. 97
Marcio Ananias Ferreira Vilela

O Mobral, seu passado e nosso presente ...............................................................115


Bianca Nogueira da Silva Souza

O historiador, o tempo e a ampulheta ...................................................................139


Marcelo Góes Tavares

Escrever é reiventar o tempo: a história contada de Fernando .........................175


Grazielle Rodrigues do Nascimento
Parte II

Fio do Tempo: Entre Passados, presentes e expectativas do devir


em imagens das artes visuais ...................................................................................197
Joana D’Arc de Sousa Lima

As curvas e retas da História: leituras do tempo nas crônicas sobre


o espaço – rio São Francisco, anos 1970 ............................................................... 231
Elson de Assis Rabelo

FICÇÃO, SONHO E MEMÓRIA: roteiros possíveis para a transgressão


da escrita historiográfica ......................................................................................... 253
Raimundo Inácio Souza Araújo

Estereotipias dos corpos e marcas da violência .................................................. 273


Gilmária Salviano Ramos

Leituras do tempo e experiências da vida: os almanaques do poeta


José Costa Leite.......................................................................................................... 301
Geovanni Cabral

“Não tenhais medo”: os intelectuais católicos na formação do culto


6 a Nossa Senhora de Fátima (1917 – 1935) ............................................................ 333
Carlos André Silva de Moura

PARA LER AS “PASSAGENS”: contribuições fragmentárias ao estudo


do modus operandi benjaminiano ........................................................................ 361
Apresentação

Nos tempora sumus1


Santo Agostinho

É com muita exultação que escrevemos essa breve apresentação


para o terceiro Tomo do projeto A História e suas práticas de escrita: leituras
do tempo. Projeto que vem se constituindo como uma importante iniciativa
para fazer circular parte de nossas pesquisas de doutorado haja vista, que
apenas algumas teses são indicadas para publicação o que limita o acesso e
circulação de importantes pesquisas historiográficas.
No Tomo I A história e suas práticas de escrita: relatos de pesquisa
(2013) tivemos a satisfação de contar com a leitura atenta da professora
Regina Beatriz que nos brindou com um belo prefácio. No Tomo II A 7
história e suas práticas de escrita: narrativas e documentos (2014) tivemos o
privilégio de contar com o prefácio do professor Antonio Jorge Siqueira que
acompanhou boa parte das discussões sobre as pesquisas dos doutorandos
quando ministrou a disciplina Seminário de Tese.
Para o presente Tomo “leituras do tempo” contamos com a
colaboração do professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior da UFRN,
a quem deixamos expresso aqui nossos sinceros agradecimentos. Este
volume se encontra dividido em duas partes, Tempo & Política e Tempo
& Práticas Culturais para contemplar o amplo leque de discussões aqui
reunido. São pesquisas de doutorandos, doutores e pós-doutorandos que
abordam uma grande diversidade temática que está interconectada por

1 “Nós somos tempo”. Santo Agostinho.


distintas temporalidades narrativas. Nesse sentido, seus artigos oferecem
diferentes leituras e possibilidades de análise sobre as distintas experiências
de tempo por eles pesquisadas e vivenciadas.

*****
Leituras do tempo nomeia o subtítulo do presente volume. Essa
escolha se deu em virtude de entendermos que nenhum historiador
pode se furtar do debate sobre as temporalidades que intercruzam suas
pesquisas. Esse desafio comum aos historiadores é a linha que costura os
artigos reunidos nesse trabalho. Com suas distintas linguagens, estilos e
relatos, os tempos históricos estudados nas presentes pesquisas se dão a
ler. Instituem-se por meio de diferentes registros documentais, que por sua
vez se apresentam como leituras possíveis dos tempos experimentados nas
presentes narrativas.
O que é o tempo? Que conceito é este e como ele se apresenta nas
experiências históricas? Como percebê-lo na documentação? Afinal, como
estuda-lo? Não temos pretensão nem competência para fazer aqui uma
arqueologia do tempo para a historiografia. Apenas apresentar brevemente
como a temática central do presente volume é apreendida pelos historiadores
8 em seus trajetos escriturísticos. Nesse sentido, podemos recorrer às
discussões do historiador alemão Reinhart Koselleck. O tempo, para ele,
não é entendido como algo dado, natural; com existência própria, como se
existisse desde sempre. O tempo é percebido “como construção cultural que,
em cada época, determina um modo específico de relacionamento entre o já
conhecido e experimentado como passado” (KOSELLECK, 2006: 09).
É esse passado experimentado, esse tempo vivido de diferentes
maneiras que nos interessa no momento. Ou seja, apresentar como esses
experimentos de tempo são interpretados nos artigos dos historiadores
que compõem esse volume. Por este ângulo de percepção é importante
compreender os tempos em suas variantes de pretéritos, presentes e
futuros, como filhos das possibilidades existentes nas disputas das relações
de poder em cada momento. Nesse sentido, as dimensões temporais são
experimentos e como tal, seus significados resultam de uma série de
possibilidades, desde quem experimenta, como experimenta, quando, onde
e para quê.
No entanto, o que seria o tempo histórico? Reinhart Koselleck
chega a questionar sua existência. Em suas análises, entretanto, o conceito
de tempo ganha mobilidade e movimento. Para ele, quem desejar encontrar
as expressões cotidianas do tempo histórico,
Deve contemplar as rugas no rosto de um homem, ou então as
cicatrizes nas quais se delineiam as marcas de um destino já vivido. Ou
ainda deve evocar na memória a presença, lado a lado, de prédios em
ruínas e construções recentes, vislumbrando assim a notável transformação
de estilo que empresta uma profunda dimensão temporal a uma simples
fileira de casas (2006: 14).
Nesta dimensão, o tempo deixa marcas singulares e únicas nas
pessoas, nas relações, nas pequenas coisas. Portanto, se expressa de
infinitas maneiras deixando traços e sinais os mais diversos possíveis.
Nesse caleidoscópico de temporalidades, encontraremos os tempos sendo
esculpidos nas relações de poder.
As temporalidades se apresentam de distintas maneiras no
fazer humano, em suas vivências, percepções, imaginações e registros 9
documentais. Assim encontraremos aqui reunidos diversos vestígios dos
experimentos temporais, como as estratégias de controle e perseguição aos
trabalhadores – no campo e na cidade – e aos seus sindicatos, as disputas
nas relações de poder na Igreja Presbiteriana no período ditatorial, ou da
Igreja Católica sobre o processo de laicização do Estado no Brasil. Tempos
que também se dão a ler por meio dos sinais esculpidos nas trajetórias
de poetas e intelectuais, nos traços e cores das artes no Recife da década
de 1980, nos registros visuais do Rio São Francisco, ou ainda no traçado
multifacetado na arquitetura da cidade do Recife.
Podemos perceber as fisionomias dos experimentos temporais
também nos indícios da vigilância, perseguição e torturas àqueles
considerados uma ameaça à segurança do Brasil na década de 1960, bem
como nas tensões que deram o tom das disputas envolvendo o Brasil e
os EUA no que tange à instalação de uma base militar estadunidense no
arquipélago Fernando de Noronha nos anos de 1950; tempos que também
deixaram seus registros na luta pela terra no Sul do Pará, que não raro,
se expressaram pelos signos da morte de muitos trabalhadores. Foram
tempos também forjados nas disputas das palavras em torno do Mobral,
nas memórias dos praticantes das pajelanças da Baixada Maranhense e nos
crimes cometidos contra as mulheres em Campina Grande-PB. Em síntese,
em cada artigo, as leituras do tempo se apresentam em suas singularidades,
divergências e pluralidades por meio dos indícios documentais mobilizados
por seus autores.
Outro registro de tempo que marca esse projeto diz respeito às
ações da professora Dra. Maria José Luna que esteve à frente da Editora da
UFPE e do professor Dr. Lourival Holanda atualmente diretor da Editora,
a quem agradecemos imensamente pelo efetivo apoio, sem o qual esse
projeto dificilmente existiria.

Os organizadores

10
PREFÁCIO

Tempos que se contam

Há muitos séculos que os homens se interrogam sobre o ser do


tempo. Abstrato, imaterial, informe, fluxo interminável e imparável, o tempo
passa por nós e nos passa, nos torna passados. O tempo, mesmo quando
aparenta estar a nosso favor, nos amedronta, pois ele enuncia a finitude
de todas as coisas, de tudo que construímos, ele enuncia a nossa própria
finitude, a nossa morte. Por isso, os homens inventaram distintas formas
para tentar materializar o tempo, controlá-lo, administrá-lo, reduzindo
a angústia que sua presença ausente acarretava. Os homens diante da
imensidade e incomensurabilidade do tempo cósmico e assombrados
pela multiplicidade das manifestações subjetivas, emotivas e psíquicas 11
causadas pela relação com as temporalidades, tentaram construir formas
para o tempo, que lhe dessem aspectos humanos e sociais, que o tornassem
manejável, que permitissem plasmar rostos mais duradouros e estáveis
para o ser temporal. Para objetivar o tempo, para transformá-lo em uma
matéria humana, para domesticá-lo em sua fúria, os homens resolveram
contá-lo e cantá-lo. Dar ao tempo uma mensuração e uma expressão foi
o caminho encontrado para tentar dominá-lo. Desenvolver aparatos
tecnológicos e tecnologias capazes de medir o tempo, de dar a ele uma
ordenação cronológica, de organizá-lo em intervalos matematicamente
controláveis, de dispô-lo em quadros e calendários capazes de ordená-lo,
retirando seu caráter múltiplo, fugidio e aparentemente caótico, foi uma
das maneiras encontradas pelos homens de tentar amainar o medo e a
angústia, a ansiedade produzida pelo ser temporal.
Mas, além da construção de um tempo cronológico, distinto
dos tempos cósmico e psicológico, embora com eles relacionado, um
tempo calculável e racionalizado, os homens vão também construir
temporalidades, construir tempos a partir da tecnologia do relato, seja oral,
seja escrito. Além de contar matematicamente o tempo, os homens vão
se dedicar a contar as peripécias dos deuses, dos homens, dos seres e das
coisas no tempo, os acontecimentos e sucessos que, ocorrendo no tempo,
seriam a sua expressão, a sua materialização, dariam origem às formas em
que o tempo vem ganhar materialidade e forma.

A escrita da história é um capítulo à parte nessa busca empreendida


pelos homens e mulheres em dar ao tempo uma expressão, em contar o
tempo e fazer o tempo contar para nós e para quem venha a nos suceder
nas próximas gerações. A historiografia surgiu entre os gregos preocupada
em fazer com que os grandes feitos humanos, aquilo que de grandioso os
homens fossem capazes de realizar, não se perdessem no esquecimento,
uma das faces da morte. A escrita da história surgiu como uma maneira
de dar forma e perenidade a dados eventos, de dar rosto e eternidade a
dadas vidas, de guardar as lições aprendidas num dado tempo para serem
12
aproveitadas nos tempos futuros. Ela seria uma empresa de luta contra o
esquecimento e contra a morte, uma empresa em luta contra o tempo, no
que ele tem de destrutivo. Dar forma ao tempo, que é informe, usar a escrita
em prosa para tentar retê-lo, para tentar dizê-lo, mostrá-lo, defini-lo, para
tentar preencher de conteúdo esse vazio, para tentar coagular o seu fluxo,
é a tarefa que os historiadores se colocaram. Elaborar imagens dos tempos,
das épocas, dos períodos e colocá-las a serviço dos homens do presente
e no presente, dar materialidade às temporalidades para que sirvam às
práticas humanas, para que possam servir a novos objetivos humanos, eis a
tarefa do historiador.

O livro que ora lhes apresento realiza com desenvoltura essa


tarefa hercúlea a que se propõem os homens e mulheres que se dedicam
ao ofício de historiador. Tomando o tempo como motivo de reflexão, mas
também como pretexto para a realização do que fazem, os historiadores
cujos trabalhos estão reunidos neste livro, cada um à sua maneira, tentam
dar forma a distintas temporalidades, tentam contar um tempo ou vários
tempos. Podemos dizer que esse livro se constitui numa miscelânea de
temporalidades, assim como de temáticas e abordagens. Desigual, defasado,
descontínuo, irregular, como as próprias temporalidades, o livro em seu
conjunto permite ao leitor figurar as próprias antinomias e multiplicidades
do tempo. Convocados a ocupar o lugar de autoria, convidados a dar
forma a distintas temporalidades, por meio de diferentes temáticas e
distintas abordagens, as temporalidades encarnadas não só pelos textos,
mas pelas figuras de sujeito que neles aparecem, pela figura de autoria
que nele vem assumir a voz, testemunham o caráter plural do tempo, no
que tange à produção mesma da historiografia. Os autores e textos aqui
reunidos não só contam, falam de distintas e distantes temporalidades, mas
são de temporalidades diferentes quando se trata do modo de entender e
de praticar a historiografia. Diferentes linhas de tempo vêm se enovelar
e constituir a tessitura mesma desta publicação. Tempos mais enrolados,
mais confusos, vêm conviver com tempos mais lineares, mais desenrolados,
inclusive, com tempos mais difusos. Fruto do acúmulo de distintas camadas
de tempo, esse livro convoca o leitor a realizar uma verdadeira estratigrafia 13
do tempo, a leitura como escavação de estratos temporais diversos, como
contato com o movimento de distintos platôs de tempo.

Ao folhear este livro, o interessado estará tendo contato com o


próprio caráter folheado do tempo, com páginas e páginas que vêm contar
e dar conta de diferentes temporalidades. É um livro de passagens entre
temporalidades e temáticas bastante diversas, pois visa reunir textos
elaborados a partir dos trabalhos de dissertação de Mestrado e tese
de Doutorado, realizados por alunos do Programa de Pós-Graduação
em História, da Universidade Federal de Pernambuco. Ele é também a
materialização do tempo que cada pesquisador dedicou à sua pesquisa. Cada
texto conta não apenas o saber sobre um dado assunto, mas testemunha e
memoriza o tempo de trabalho que cada um dispendeu para realizar seu
trabalho de pós-graduação. O livro que você tem nas mãos é uma maneira
de construir narrativamente esse tempo acadêmico, esse tempo de estudos,
que veio resultar na produção dos saberes que aqui se resumem e dos quais
se dão notícias. Como os tempos investidos na consecução desses trabalhos
e desses textos são bastante diversos, distintos também são os resultados
que daí advieram. Atestando a qualidade do que vem sendo produzido
nesse Programa de Pós-Graduação, este livro também é uma maneira de
contar e construir a própria temporalidade em que se encontra e em que se
conta essa instituição, em que tempos está e de que tempos fala.

Neste livro encontra-se o tempo de longa e de curta duração. O


tempo que ainda se abisma em busca das origens ou que se arrisca em
perscrutar o futuro. O tempo contínuo do processo e o tempo fragmentário
do sucesso. Tempos do relato oficial e tempos do relato indicial. Tempos do
sagrado, do religioso e tempos do laico, do prosaico. Tempos de repressão,
de revolução e de transgressão. Tempos de trabalho, de artesanato e de
artes. Tempos de artimanhas e de astúcias. O tempo dos territórios, dos
espaços, das paisagens. O tempo que corre e o tempo que estanca. Tempos
de mudanças, de crises, de crimes. Tempos vistos, tempos ditos e tempos
14
previstos. Tempos de santos e almanaques. Tempos literários e de literatos.
Tempos para ver e tempos para viver. Tempos para se refletir e tempos para
se divertir ou divergir. Tempos de idílio e tempos de exílio. Tempos das
letras e tempos da voz. Tempos do testemunho, da memória e da história.
Tempos de viajantes e tempos de viagens, de visagens. Tempos de medo e
tempos de degredo.

Todos os tempos aqui abordados contam, são importantes, têm


interesse e pertinência para entendermos muitos dos processos sociais
que ainda vivemos. Os tempos passados estão longe de terem passado, eles
continuam convivendo com e no presente, eles favorecem e dificultam que
dados futuros venham acontecer. Conhecer os tempos passados é uma das
formas de se conhecer e se posicionar em relação ao presente. Todos os
temas aqui tratados, o foram por terem ressonância no presente e fazerem
sentido, antes de mais nada, para cada um de seus autores. O medo do
comunismo, a histeria anticomunista, tratada por Erinaldo Cavalcanti,
continua saindo às ruas em nossos dias e frequentando até o mundo
virtual. A ditadura militar que se valeu desse discurso anticomunista
reaparece como fantasma reconvocado por forças políticas conservadoras
em plena praça pública. A falta ou o problema da educação, tratado por
Bianca Nogueira, através do Mobral, programa de alfabetização de adultos
levado a efeito pela ditadura militar, continua presente em uma sociedade
que por falta de uma educação que permita a formação de indivíduos com
subjetividades críticas, permite o surgimento de uma geração de pessoas
dispostas a consumir as versões da mídia e a defender interesses que não
são os seus, nem de seu país. A presença das religiões protestantes entre
nós, tratada por Márcio Ananias Ferreira, torna-se cada vez mais relevante
em nossos dias, quando além do aquecimento do mercado religioso com a
proliferação de novas religiões, vemos a influência crescente dos evangélicos
na vida política nacional. Assim como os protestantes têm cada vez mais
um nítido projeto de poder no país, a Igreja Católica, que desde a Idade
Média, ocupa posição de destaque entre as elites dirigentes das sociedades
ocidentais, desde o final do século XIX, empreende luta constante e utiliza
distintas estratégias para enfrentar não só a concorrência com outras 15
denominações religiosas, como o processo de laicização da sociedade, o
afastamento das elites da vida religiosa e a concorrência com ideologias
materialistas. O episódio dos milagres de Fátima, tratado por Carlos André
Silva, inscreve-se nessa luta ideológica e política, ainda bastante atual.
Ainda vivemos numa sociedade que valoriza o trabalho, embora este venha
mudando completamente de significados e enquanto prática. Uma história
do trabalho e do trabalhador, tal como realizada por Marcelo Góes, ainda
nos interessa e nos diz respeito. Os territórios, os espaços, com a ilusão de
perenidade que possam transmitir, sofrem também os influxos do tempo.
Como nos mostra Graziela Rodrigues, mesmo que a ilha de Fernando de
Noronha possa ser encontrada como materialidade em todos os momentos
de nossa história, seus sentidos e significados humanos mudaram ao longo
do tempo. Ela se encontra aí no presente, mas como a vemos e os usos
que dela fazemos passaram por mudanças que nos interessa conhecer.
Os crimes sexuais e todos os conceitos e preconceitos que atualizam e
mobilizam, tratados por Gilmária Ramos, continuam como parte de
nosso cotidiano, materializando de forma trágica estereotipias de corpos
e de comportamentos, fazendo funcionar, ainda, imagens e identidades
temporalmente defasadas e variadas de gênero. Com os textos de Joana
D’Arc Lima, de Elson de Assis Rabelo, de Inácio Araújo e de Geovanni
Cabral, podemos aprender como os tempos e os espaços são, para nós
humanos, aqueles que nos contam, aqueles que nos fazem ver. Seja através
das artes visuais, seja através da literatura, da fotografia, do texto jornalístico,
do texto acadêmico, seja através do cordel, constroem-se temporalidades e
paisagens, definem-se sentidos, se estabelecem formas de ver e dizer dadas
épocas e dados espaços. O que importa é contar.

Eu conto com você, leitor, para que este livro possa surtir os efeitos
para os quais foi pensado e passar os afetos com os quais foi feito. Espero
que ao acabar de ler você saia contando do que ele trata e do que ele se
trata. Os autores estão contando com você para poderem contar quantos
16
livros foram adquiridos e quanto de repercussão ele teve. Eu, a essa altura,
posso lhe contar que o livro merece ser lido, vale a pena ser adquirido sem
desconto. Ele há de contar muito a quem sobre ele efetivamente se debruçar.

Natal, 02 de junho de 2015

Durval Muniz de Albuquerque Júnior


Sobre os autores

Airton dos Reis Pereira.

Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).


Atuou como agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no sul e no
sudeste do Pará. Atualmente é professor do Departamento de Filosofia
e Ciências Sociais (DFCS), da Universidade do Estado do Pará (UEPA),
Campus de Marabá (PA). É autor de diversos artigos sobre conflitos agrários
na Amazônia brasileira publicados em anais e em revistas acadêmicas.

Bianca Nogueira da Silva Souza.


17
Professora doutoranda pelo programa de pós-graduação em história
da UFPE, sob a orientação do Prof. Dr. Flávio Weinstein Teixeira e co-
orientação do Prof. Dr. Flávio Henrique Albert Brayner. Desenvolve
pesquisas na área de história da educação e ditadura civil-militar no Brasil.

Carlos André Silva de Moura

Professor Doutor em História na Universidade Estadual de Campinas


(UNICAMP, São Paulo - Brasil), com estágio doutoral no Instituto de
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS – UL). Bolsista da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Elson Rabelo.

Professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco, Campus Juazeiro/


Bahia. Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco.
Pesquisador nas áreas de História e Espaços, História e Cultura Visual,
História e Fotografia, Discursos e imagens sobre as culturas populares.

Erinaldo Cavalcanti

Professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará – UNIFESSPA.


Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco com
Estágio Doutoral – Sandwich – pela Universidad General San Martin –
Buenos Aires, Argentina. É autor de Relatos do Medo: a ameaça comunista
em Pernambuco (Garanhuns 1958-1964) publicado pela EdUFPE, (2012);
organizador e autor de A história e suas práticas de escrita: relatos de pesquisa
(Recife: EdUFPE, 2013); Pernambuco de muitas histórias: história do
Estado de Pernambuco, (São Paulo: Moderna, 2012) e História e Geografia
de Pernambuco (São Paulo: Moderna, 2015).
18

Geovanni Gomes Cabral.

Tem graduação em história pela Universidade Federal Rural de Pernambuco


– UFRPE – Especialização em Ensino de História pela mesma universidade,
Mestrado em História pela UFPE onde também realizou seu doutorado em
História pesquisando a literatura de cordel através da trajetória do poeta
José Costa Leite. Professor da Rede Pública do Estado de Pernambuco.
Autor de Getúlio Vargas nos folhetos de cordel: história versos e poesia
1945/1954 (no prelo) pela EdUFPE e organizador – e autor – de A história e
suas práticas de escrita: relatos de pesquisa (Recife: EdUFPE, 2013).
Gilmária Salviano Ramos

Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2009).


Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (2015)
com Estágio Doutoral (Sandwich) na École des Hautes Études en Sciences
Sociales em Paris (2013). Membro do Laboratório de Estudos de Gênero.
Atua em Teoria da História e História da Filosofia, com experiência em
pesquisas de relações de gênero; Aborto, Infanticídio e Crimes Sexuais.

Grazielle Rodrigues do Nascimento

Investigadora Colaboradora do Centro de Estudos Interdisciplinar


do Século XX (CEIS20)/Universidade de Coimbra; Doutoranda em
Estudos Contemporâneos do Instituto de Investigação Interdisciplinar/
Universidade de Coimbra e Gestora do Memorial Noronhense/Autarquia
Territorial de Fernando de Noronha.

19
Raimundo Inácio Souza Araújo

Professor Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em


História da Universidade Federal de Pernambuco.

Joana D’Arc de Sousa Lima.

Pós-Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco,


onde também realizou seu doutorado. Suas pesquisas enveredam pelas
trilhas da história, da memória, da imagem e da história da arte no Brasil.
Nos últimos anos suas investigações resultaram em narrativas textuais
para catálogos de artistas brasileiros, artigos em revistas e capítulos de
livros, além de construções de narrativas visuais em curadorias e filmes
documentários. Destacam-se as mais recentes produções:  Fora do Eixo:
Situações, Experiências e Movimentos nas artes plásticas no Recife dos anos
1980. In: TEJO, Cristiana [ET al]. Uma História da Arte? (Recife: Fundaj Ed.
Massangana, 2012); Curadoria e organização do catálogo e da exposição
individual da artista Christina Machado, Minha Cabeça Nossa Natureza,
2011; produção do filme documentário, Duplo Mortal Parafuso: estratégias
de artistas (1980/1990). Minha Cabeça Nossa Natureza, realizado em 2009,
41´, Recife/PE.

Marcelo Góes Tavares

É historiador e doutorando em história pela linha de pesquisa Cultura


e Memória da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Possui
graduação em história pela Universidade Federal de Alagoas e Mestrado e
História Cultural pela Universidade Federal de Brasília. Possui experiência
na área de História e Cultura, com ênfase em Memória, Patrimônio,
Trabalho, Identidades e História Oral. Realiza pesquisas sobre História
20 do Brasil, mais precisamente, o Trabalho durante o período republicano.
Como professor já lecionou em diversos níveis de ensino (fundamental,
médio, graduação e pós-graduação), dedicando-se a diversas disciplinas
nas áreas de História do Brasil, História Moderna e Contemporânea, Teoria
da História, Patrimônio e Cultura.

Márcio Ananias Ferreira Vilela.

Pós-Doutor em História pela UFPE – onde também realizou seu doutorado.


É professor do Colégio de Aplicação da UFPE.
Raimundo Inácio Souza Araújo.

Professor de Educação Básica na Universidade Federal do Maranhão


(Colégio Universitário) e doutor em História pela Universidade Federal de
Pernambuco.

Pablo Porfírio

É doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,


pós-doutor pela UFPE, e professor do CAP/UFPE. Autor do livro Medo,
Comunismo e Revolução: Pernambuco 1959-1964. Ed. UFPE, 2009.

21
Parte I
23
Medo, comunismo e repressão em tempos de
ditadura militar: Pernambuco (1964 – 1968)1

Erinaldo Cavalcanti
ericontadordehistorias@gmail.com

Em janeiro de 1965, o articulista do jornal A Voz do Agreste em


Caruaru, fazia um alerta: “enquanto eles tiverem medo da Revolução, a
Pátria não terá medo da volta dos Brizolas”2. Para aquele jornalista, o medo
produzido pela revolução – diga-se, ditadura – era a força mantenedora
das relações políticas naquele momento. Exagero do autor? Talvez. No
entanto, sua leitura não era desprovida de significados. Para ele a ditadura
estava criando um campo de forças capaz de assegurar a ordem política e a
manutenção dos valores sociais por ela defendidos graças, principalmente,
ao poder exercido pelo medo. Era por meio desse fenômeno que o regime
tentava manter seus opositores numa posição em que não representassem
ameaça. Era o temor à “revolução” que tentava manter seus inimigos
políticos sob controle e a pátria livre da ameaça dos “Brizolas”, ou seja,
do comunismo. Nesse sentido, o presente artigo analisa um conjunto de 25
relatos sobre a ameaça comunista em Pernambuco entre os anos de 1960 a
1968, mais especificamente na cidade de Caruaru.
O discurso da ameaça comunista no Brasil na década de 1960
perpassou as diversas temporalidades constituintes da experiência ditatorial.
Foi um discurso que serviu para justificar ações, posturas, projetos, alianças
e acordos. Os documentos3 demonstram como aqueles tempos foram

1 Este artigo apresenta uma pequena parte das discussões desenvolvidas na tese de
doutorado, em que analiso a construção política e social do medo do comunismo em
Pernambuco entre os anos de 1960 a 1968, mais especificamente na cidade de Caruaru,
localizada a 120 quilômetros de Recife.
2 A Voz do Agreste, Caruaru, 24 de janeiro de 1965, pág. 03.
3 Refiro-me especificamente aos documentos dos órgãos de informação e segura (Sistema
Nacional de Informação, Dops/PE, IV Exército, II Zona Aérea) e parte da imprensa escrita.
marcados por inúmeras narrativas de distintas maneiras instituíam um
clima de perigo, de ameaça e insegurança para uma parcela da sociedade4.
Nesse sentido, os documentos oferecem uma leitura na qual a experiência
ditatorial se apresenta em suas múltiplas temporalidades. Os relatórios do
Dops, do Exército e da Aeronáutica, por exemplo, oferecem os indícios da
delação, demonstram os vestígios e os rastros da perseguição política como
fragmentos da fisionomia temporal daquelas relações de poder.

O objeto de estudo pela literatura especializada

Existem diversas maneiras de se contar uma história. Nesse sentido,


as formas do contar, percorrem caminhos diferentes e indicam sinais que
não apareceriam se a mesma história fosse contada de outra forma. Isso
significa que as formas do narrar são constituidoras daquilo que é narrado.
Portanto, os relatos aqui apresentados oferecem narrativas acerca da
construção política do medo do comunismo em Pernambuco entre os anos
de 1960 a 1968, mais especificamente na cidade de Caruaru.
Passados cinquenta anos do golpe militar que instituiu a ditadura
no Brasil em abril de 1964, a historiografia especializada praticamente tem
26 ignorado o papel do medo nas relações políticas e sociais da experiência
ditatorial. Poucos são os trabalhos em História que analisaram o passado
pelas lentes daquele fenômeno.
A historiadora Marieta de Moraes ao analisar as tensões políticas
no governo João Goulart defende que a chamada ameaça comunista merece
uma análise mais aprofundada e “para isso é importante compreender
o papel do medo como aglutinador de tensões e detonador de ações
políticas que podem parecer à primeira vista inexplicáveis ou exageradas”
(FERREIRA: 2006, 25). No que tange à ameaça comunista, o historiador
Rodrigo Patto tem contribuído de maneira significativa para as discussões

4 Para pensar os registros documentais como possibilidades de leituras e narrativas do tempo


me ajudaram de maneira significativa as discussões de Paul Ricouer em Tempo e Narrativa e
Reinhart Koselleck Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos.
historiográficas. Para ele, “o argumento mais forte apresentado nos
discursos favoráveis à derrubada do governo fora o anticomunismo. [...]
O anticomunismo foi o eixo central dos discursos e das representações dos
grupos favoráveis ao golpe” (MOTTA: 2006, 13)5.
Os trabalhos do historiador Antônio Montenegro (2010) têm
contribuído com as discussões acerca do medo. Para ele, a abordagem
histórica daquele fenômeno fundamenta-se na análise dos discursos
e práticas produzidos por diversos segmentos sociais que instituíam
a representação de que a sociedade se encontrava sob perigo e
ameaça. Ou seja, ao estudar os discursos e práticas que instituíam o
símbolo do perigo e da ameaça associados às esquerdas – estratégica e
politicamente denominadas de comunismo – é possível compreender
os desdobramentos políticos que o medo desempenhou no período em
estudo6. A construção política daquele fenômeno, legitimou projetos,
justificou práticas e direcionou políticas de Estado, pois o discurso da
necessidade de combater o inimigo foi justificado pelo temor que as
5 Do mesmo autor ver também Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no
Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva/Fapesp, 2002; e A modernização autoritária-
conservadora nas universidades e as influências da cultura política. In REIS FILHO, Daniel
Aarão, MOTTA, Rodrigo Patto Sá e RIDENTE, Marcelo. A ditadura que mudou o Brasil:
27
50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014 e As universidades e o regime militar:
cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. No que
diz respeito ao estudo do medo, Jean Delumeau na década de 1980, pesquisando aquele
sentimento no Ocidente – ou numa parte da Europa – já defendia a importância de estudar o
passado pelas lentes do medo. Para ele, o medo é uma emoção-choque desencadeada diante
de uma situação de ameaça e “não só os indivíduos, mas as coletividades e as civilizações
estão comprometidas num dialogo permanente com o medo” (DELUMEAU: 2009, 12). E
sentencia que a historiografia pouco estudou o passado por esse ângulo. Da década de 1970
temos O grande medo de 1978, importante trabalho de George Lefebvre (1979) sobre as
condições de produção do medo e sua propagação na crise do Antigo Regime na França.
6 A dissertação de mestrado de Plínio Ferreira Guimarães Caparaó, a lembrança do medo:
a memória dos moradores da região da Serra do Caparaó sobre o primeiro movimento de
luta armada contra a ditadura militar – a Guerrilha de Caparaó (apresentada ao programa
de Pós-Graduação em História da Universidade de Juiz de Fora) também se insere dentre
os trabalhos que tem contribuído para o estudo do medo no período em tela, na medida
em que analisou como a propaganda anticomunista foi divulgada e sua recepção entre os
moradores da região da Serra do Caparaó.
forças de esquerda triunfassem no país, concorrendo para legitimar, por
conseguinte, a intervenção militar.
Não é fácil para alguns historiadores pensarem um sentimento
como construção das relações de forças constituintes da História. Talvez
a maneira como alguns recorrem a certos artifícios gramaticais, como o
uso de aspas, quando se referem ao medo do comunismo, demonstrem as
dificuldades de analisar um sentimento como objeto de estudo histórico.
No entanto, o uso do recurso gramatical, a meu ver, não resolve o
problema. Primeiramente, é como se o medo entre aspas não fosse legítimo,
verdadeiro, real. Por outro lado, o uso das aspas pode ser uma estratégia
para não encarar a questão de frente; não assumir os riscos. Como se o uso
daquele recurso dispensasse a necessidade de discutir e analisar as práticas
sociais que o sentimento de medo e perigo são capazes de produzir.
Se a historiografia tem demonstrado pouco interesse em estudar
o medo, outras áreas do conhecimento têm contribuído de maneira
significativa com os debates. O sociólogo mexicano Robinson Salazar
tem publicado e organizado importantes trabalhos sobre a temática. Para
ele “el miedo es concebido en la política como la percepción de amenaza
vinculada con la idea de un orden” (2010: 17)7. Nessa perspectiva se insere
28 o trabalho El miedo sempiterno (2010) dos sociólogos Flabián Nievas
y Pablo Bonavena. Para eles há muitos desafios em pesquisar o medo, a
começar pela definição, pois não seria fácil encontrar um conceito capaz de
abarcar a complexidade daquele fenômeno, haja vista ele estar imbricado
em dimensões coletivas e individuais, o que implicaria pensá-lo também
em seus aspectos sociais e neurofisiológicos. Há, portanto, uma diversidade
conceitual significativa para pensar aquele fenômeno, pois diversas áreas
7 Organizado pelo mesmo autor ver: Atrapados por el miedo: medios de comunicación,
inseguridad social y militarismo en América Latina. Ciudad Autónoma de Buenos Aires:
Elaleph.com 2013; Violencia y Miedo: una mirada desde lo social. Ciudad Autónoma de
Buenos Aires: Elaleph.com 2012; Las fronteras porosas del miedo. Ciudad Autónoma de
Buenos Aires: Elaleph.com 2013; Ventanos Rotas: por la violencia y la exclusión. Ciudad
Autónoma de Buenos Aires: Elaleph.com 2012. Aqui gostaria de deixar expressos meus
agradecimentos ao professor Robinson Salazar pelas trocas, diálogos e envios de diversos
textos.
do conhecimento o estudam por diferentes perspectivas8. No campo das
ciências humanas, as distintas concepções analíticas apontam que o medo
aparece nas relações sociais diante de uma situação de insegurança, de
ameaça e incerteza. Nas palavras de Nievas e Bonavena, “el entorno social
nos educa para percibir el miedo, para entenderlo y procesarlo” (2010: 29).
Em outras palavras, o medo é um fenômeno social e cultural porque sua
gestação encontra-se ancorada nas relações políticas e históricas de cada
momento de sua construção.
Por este ângulo de percepção, o medo pode ser entendido, e,
por extensão, conceituado como uma resposta defensiva a uma ameaça.
Portanto sua construção encontra-se imbricada nas relações de poder
gestoras da ameaça comunista. Ou seja, o medo em estudo foi um fenômeno
produzido por um campo de forças políticas numa rede de agenciamentos
que concorria para a construção do comunismo como força ameaçadora,
destruidora, perigosa e, portanto, instituidora de incertezas e promotora de
insegurança.
Discutir o medo nas relações políticas nos leva ao clássico trabalho
do pensador inglês, Thomas Hobbes, Leviatã (2008). Para ele, o medo como
instrumento político foi o principal ingrediente da política moderna e se
constituía numa imbricada rede de poder, por meio da lei, das instituições 29
e da educação. Esses campos de poder, por extensão, estavam – e estão –
inseparados da economia, da crença – religiosa ou não – e da linguagem que
imprimia um vocabulário político do medo. Para Hobbes aquele fenômeno
é um produto fabricado na lei.
Para o filósofo inglês, o medo era antes de tudo uma criação e não
era uma paixão primitiva à espera de ser aproveitada por um soberano
armado. Era uma emoção moral e racional ensinada por homens influentes
em igrejas e universidades. Hobbes ainda argumentava que o medo era

8 Entre as perspectivas de estudo, destacam os autores, a sociobiologia que analisa as


condutas sociais em suas bases biológicas. A depender dos interesses de pesquisa, o medo
pode ser percebido em suas relações com fatores biológicos, bioquímicos, neurológicos,
psicológicos e motores, além dos sociais. Por isso não é fácil unificar as discussões em uma
definição geral e comum.
uma reação ante um perigo real no mundo. Também não descartava
a importância da encenação daquele fenômeno no jogo político, na
teatralização de suas manifestações, por alguns sujeitos e ou instituições.
Isso dava ao Estado considerável margem para definir os objetos do medo
que dominariam as preocupações públicas, de acordo com o que julgava
conveniente ao governo.
Essa dimensão apontada por Hobbes é fundamental para entender
o medo como construto histórico, ou seja, como é elaborado nas relações
políticas e sociais de cada experimento de tempo e espaço. Por este ângulo
de perspectiva, é indispensável questionar quais os medos que dominaram
a agenda política na década de 1960 no Brasil, concorrendo para gerar
ganhos políticos, alterar ou manter certas posições, desejos e interesses
disputados.
Importante contribuição nos debates sobre o medo urdido nas
relações políticas também encontramos no texto do cientista político Corey
Robin, El miedo: historia de una idea política. Para ele, o medo político pode
ser compreendido como “el temor de la gente a que su bienestar colectivo
resulte prejudicado, o bien la intimidación de hombres y mujeres por el
gobierno o algunos grupos” (2009: 15). Defende a tese que aquele fenômeno
30
é capaz de gerar laços de pertencimentos e assim promover relações de
sociabilidades. Em certas circunstâncias, pessoas de diferentes concepções,
de distintas maneiras de pensar e sentir são capazes de se unir. Não que
o medo elimine as diferenças, mas tão somente porque institui a mesma
ameaça para todos; cria um inimigo comum e como tal gera um perigo para
todas – ou quase todas – as pessoas do grupo. Por este ângulo de percepção
podemos estabelecer uma proximidade com as discussões do historiador
Rodrigo Patto quando defende que foi a ameaça comunista o elemento que
possibilitou unir diferentes projetos políticos, distintos interesses na luta
contra a mesma ameaça.
Num estreito dialogo com as discussões do filósofo inglês, Corey
sustenta que o medo político, de diferentes maneiras, faz parte das relações
cotidianas das sociedades onde é construído, ou seja, não é um fenômeno
distante e estranho a elas9. Nessa dinâmica ele é gerido e disseminado na
construção das condições de possibilidades políticas e sociais – portanto,
históricas – de ameaça, insegurança e perigo. É sobre essa tríade histórica
que se erguem as condições de possibilidades de produção do medo.
Desnecessário se alongar para dizer que as ameaças, as inseguranças e
incertezas são filhas do tempo e como tal, mudam de cor e tom conforme
se alteram as configurações temporais.
As diferentes abordagens demonstram como o fenômeno do
medo interfere na dinâmica social, e concorre para alterar as alianças, os
acordos e os agenciamentos das relações de sociabilidade. Por este ângulo
de percepção, a política autoritária intensificada principalmente a partir
do golpe militar de 1964 produzia e divulgava um conjunto de medos por
meio dos quais desejava garantir obediência dos indivíduos e dessa forma
restabelecer uma suposta segurança que estava em perigo diante do que
denominava de ameaça comunista. Uma política que institui uma prática
de vigilância para reprimir quem a ela fizesse oposição; que criou leis,
para executar seus projetos de segurança, para efetuar um reordenamento
político nos municípios com a cassação de funcionários divergentes da
política autoritária posta em prática principalmente a partir de abril de
1964. Uma política que se alimentou do medo e o incitou na medida em 31
que estimulava e instituía a delação, como mecanismo de controle.

9 Segundo Corey, Hobbes defende a tese que o medo político era uma força produzida,
alimentada e divulgada por diferentes canais e em distintos ambientes. Era alimentado
nas igrejas, nas assembleias, nos bares, nas esquinas, nos cafés, nas livrarias, nas escolas e
universidades, por isso não devia ser pensado como uma força alheia à dinâmica de vida
cotidiana da sociedade que o gestava. Seguindo a linha de defesa de Hobbes, o filósofo Paul
Virilio (em entrevista realizada no dia 22 de novembro de 2006 e publicada em www.elpais.
com) defende que o medo e o pânico são os grandes argumentos fundadores da política
moderna. No entanto a assertiva precisa ser relativizada para não inferir interpretações
apressadas sugerindo que sem medo não haveria política. Recentemente Carlo Ginzburg
publicou um artigo compondo a introdução de seu livro Medo, reverência, terror no qual faz
uma discussão com Hobbes apontando como o conceito do medo esteve presente ao longo dos
anos em que o filósofo inglês reescreveu seu livro em diversos idiomas. Ver Ginzburg, Carlo.
Medo, reverência, terror. São Paulo Cia das Letras, 2014. Ver também Uribe de H. María Teresa.
Las incidencias del miedo en la política: una mirada desde Hobbes. In El miedo: reflexiones sobre
su dimensión social y cultural. Editora: Marta Inés: Medellín, Colombia, 2002.
O objeto de estudo pelos documentos: a vigilância do Dops em Caruaru

De abril a julho de 1964, a Secretaria de Segurança Pública,


concentrou seus esforços para executar os inquéritos movidos pela
Comissão de Investigação Sumária no Estado. A referida Comissão ficou
encarregada de investigar, processar e punir os cidadãos – principalmente
os funcionários públicos – que foram classificados como uma ameaça à
segurança do país, por defenderem idéias consideradas de esquerda,
ou simplesmente, comunistas. Concluídos os inquéritos, a Secretaria
de Segurança retoma os trabalhos de perseguição, vigilância e controle
sobre os comunistas que não foram investigados pela Comissão. De suas
atividades emergem registros que apontam a necessidade de manter uma
política sistemática de controle diante do perigo que acreditava representar
o comunismo.
No dia 18 de dezembro de 1964, era protocolado um informe
resultante de uma denúncia na Base Aérea da Aeronáutica do Recife,
contendo três informações sobre atividades subversivas em Caruaru. Ao
ser informada, a Segunda Base Aérea, gerou o informe 0100/ZONAER 2.
Quanto ao sigilo, esse foi classificado como secreto e quanto à origem das
32 informações, constava apenas, informante. A credibilidade das informações
oferecidas à Aeronáutica, foi qualificada em B210.
A Aeronáutica de imediato, determinou a difusão daquele informe
para o IV Exército e para a Secretaria de Segurança Pública do Estado.
O informe chegou à Delegacia Auxiliar dez dias após ser lavrado na
Aeronáutica, ou seja, em 28 de dezembro de 1964. Constava que aquele
órgão tinha tomado conhecimento dos informes abaixo descritos:

Um locutor da Radio Cultura do Nordeste em Caruaru, em


programa das 13:20 às 14:30 tece severas críticas à revolução,

10 Os níveis de classificação dos documentos dos órgãos de segurança iam de A a F e de 1 a


5, conforme destaca Fico (2001), sendo A1 fontes e informações altamente confiáveis e F5
merecedoras de pouca credibilidade.
proferindo as seguintes frases: “Que revolução foi esta de 1º
de abril? Onde está a democracia que fecha a UNE, órgãos
estudantis... precisamos de revolução popular. Vamos tomar
as rédeas ou do contrário, aonde vamos parar? Revolução é
feita para aumentar o custo de vida?”11

Aquelas informações chegaram a Aeronáutica, provavelmente, por


meio da denúncia que poderia ser feita de forma anônima ou não. Pelo
conteúdo da primeira informação, a fonte emissora poderia ser qualquer
ouvinte do programa que não concordava com as críticas tecidas pelo
locutor. No entanto, a postura do locutor não se resumia a uma crítica à
ditadura – chamada de revolução. Ele estava convocando seus ouvintes a
tomarem iniciativas. Instigava seus espectadores a tomarem o controle da
situação. Talvez esse fosse o temor dos órgãos de segurança no que tange
àquele informe; o medo que as idéias comunistas ganhassem adeptos,
mobilizassem forças e ameaçassem as relações de poder por eles defendidas.
A outra informação contida no mesmo documento chamava a
atenção para a agência do Banco do Brasil de Caruaru. Naquele recinto
teria circulado no mês de novembro um boletim datilografado procurando
incitar os funcionários a se rebelar contra a ditadura. Constava no conteúdo 33
do boletim, que os funcionários do referido banco deveriam se posicionar
contra “a ditadura e as vacas fardadas que estão governando o país”
(Informe Nº 0100/ZONAER 2). Solicitava ainda que cada servidor deveria
fazer cópia do material e enviar para as demais agências. E, por último,
ainda informava que na casa de um enfermeiro de nome Alceu, estavam
acontecendo reuniões altas horas da noite com a presença de diversas
pessoas, consideradas suspeitas de praticarem subversão.
Diferente da primeira informação gerada na Aeronáutica, sobre o
locutor da Radio Cultura, essas últimas sugerem que a fonte emissora era
uma pessoa que estava atenta às atividades desenvolvidas pelos comunistas
11 Informe Nº 0100/ZONAER 2. Ministério da Aeronáutica. Documento disponível no
arquivo da Secretaria de Segurança Pública do Estado no acervo do Dops/PE, no prontuário
funcional número 29.581.
na cidade. Partia de alguém que conhecia os ambientes relatados, ou
pessoas ligadas àqueles espaços, como o Banco do Brasil e a residência
do enfermeiro suspeito. Sugere ainda a vigilância por parte da sociedade
civil, porque aquelas informações partiram de um informante civil, porque
quando eram informações fornecidas por militares, a classificação era A1,
ao menos nos documentos a que tive acesso para a pesquisa.
Tão logo aquele documento chegou à Delegacia Auxiliar foi
protocolado com o número 194 e de imediato o órgão entrou em ação para
tomar as medidas que julgava necessárias a partir daquele informe. No dia
29 de dezembro foi gerado o Ofício 2.162, com base no documento recebido
da Aeronáutica. Também de caráter secreto, o ofício foi encaminhado para
o delegado de polícia do município de Caruaru, nos seguintes termos:

Ilmo. Sr. Delegado de Polícia do município de Caruaru:


Chegando ao conhecimento desta delegacia que os fatos
abaixo enumerados, vem se verificando nesse município,
solicito de V. S. observar e proceder sindicâncias rigorosas a
fim de apurar a veracidade das informações, comunicando
imediatamente a esta especializada12.
34
Em seguida aquela delegacia transcrevia as três informações
recebidas fazendo pequenas, mas significativas, modificações na redação
do texto. No informe emitido pela Aeronáutica, sobre a postura do locutor
da radio, há a descrição sobre algumas críticas que ele estaria fazendo
em seu programa. No ofício encaminhado pela Delegacia Auxiliar após a
menção das críticas do locutor, foi acrescida a informação que ele estava
incitando o povo a uma contra-revolução. Nas informações sobre o boletim
distribuído na agência do Banco do Brasil, o delegado Alvares Gonçalves da
Costa Lima – responsável pela Delegacia Auxiliar – acrescentou que aquele

12 Ofício secreto nº 2.126. Secretaria de Segurança Pública do Estado. Documento


disponível no acervo do Dops/PE, no arquivo público Jordão Emerenciano, no prontuário
funcional número 29.581.
boletim estava “ofendendo moralmente as autoridades revolucionárias e os
governantes da nação” (Ofício 2.126 – Dops/PE).
As informações acrescidas são importantes e ajudam a entender
a dinâmica constitutiva dos ofícios e relatórios produzidos acerca de
inúmeras pessoas acusadas de praticar a subversão. O relator daquele
informe recebeu o documento e ao tomar as medidas subsequentes
deixava suas marcas sobre os assuntos contidos no ofício oriundo da
Aeronáutica. Nessa perspectiva, qualquer informação inserida ou retirada
demonstra a lógica em que se baseavam os procedimentos da Secretaria de
Segurança por meio da Delegacia Auxiliar. Nesse sentido, as informações
acrescentadas, não eram acréscimos feitos à revelia, mas eram inserções
que demonstravam o lugar de produção e a intencionalidade política para
a qual eram produzidos os documentos.
Os acréscimos, portanto, – independente das informações inseridas
– podem ser pensados como indícios das ações políticas da Secretaria de
Segurança Pública. Não significava, entretanto, que sobre as informações
inseridas os demais órgãos de segurança não compartilhassem daquela
interpretação. A Delegacia Auxiliar era um dos principais órgãos da
Secretaria de Segurança Pública destinado à política de controle e vigilância
dos comunistas no Estado. Em seus documentos emerge uma necessidade 35
de controle rígido sobre as ações desenvolvidas pelos comunistas. Em seus
relatórios, informes e ofícios qualquer ação dos comunistas deveria ser de
perto vistoriada e vigiada. Não que os que outros órgãos de segurança não
demonstrassem esses sinais.
Os registros resultantes das atividades do Dops-PE apresentam um
tempo experimentado em Pernambuco pelas disputas políticas em torno
da ameaça comunista. Nesse sentido, aqueles documentos concorriam
para a construção de um tempo marcado por uma ostensiva e sistemática
política de combate ao perigo comunista que se instituía no Estado de
forma assustadora. Não podemos perder de vista, contudo, que as cores
com as quais os órgãos de segurança, após do golpe militar, pintaram
as temporalidades políticas de Pernambuco – e do Brasil, certamente –,
desejavam imprimir o símbolo da insegurança e ameaça comunista como
estratégias de justificação do golpe e por extensão como discurso de
legitimidade da intervenção militar com a instauração do regime ditatorial.

A ditadura completa um ano: celebrar, vigiar e prevenir

Quando o golpe de Estado e a subsequente ditadura instalada


completaram um ano vida, seus defensores e idealizadores da cidade de
Caruaru, decidiram comemorar o aniversário do que denominavam de
revolução vitoriosa. Uma programação festiva foi preparada na cidade com
a participação de autoridades civis e militares. Entre os civis, o advogado
Luiz Pessoa da Silva, descrito pelos órgãos de segurança como cidadão
democrata e homem das letras, foi convidado para proferir palestra
no auditório da Radio Difusora de Caruaru. O discurso em defesa dos
acontecimentos celebrados foi aplaudido longamente pelos presentes e
classificado como brilhante pelas autoridades militares.
Autoridades políticas ligadas ao prefeito da cidade, que apoiou as
forças de coalização em defesa da intervenção militar, se fizeram presentes
na cerimônia demonstrando a importância do ato comemorativo naquele
36 momento e das feituras comemoradas. A presença de autoridades políticas
do executivo e do legislativo municipal naquele ritual conferia um caráter
de apoio aos feitos que ali celebravam um ano de vida. A participação
das pessoas naquela conferência podia não significar necessariamente
conivência com as ações desenvolvidas pela ditadura durante seu primeiro
ano de vida. No entanto, ser convidado e comparecer ao um evento
destinado a celebrar um ano da ditadura militar no país ao menos era
representativo da concordância com a intervenção militar um ano antes.
No dia seguinte à conferência ministrada na Radio Difusora de
Caruaru, alguns comunistas da cidade em resposta àquele ritual colocaram
dois boletins na porta da casa do orador. No material, os autores13 explicavam

13 Nos documentos dos órgãos de segurança não há menção aos nomes dos autores
dos boletins, apenas que foram escritos e colocados na residência de Luiz Pessoa pelos
suas interpretações políticas sobre os acontecimentos que no dia anterior
aquele advogado tinha defendido na palestra. Para os autores do boletim
há um ano que o Brasil vivia sob a opressão em virtude da “desmoralizada
revolução de abril. Subverteram a ordem e anularam nossas liberdades e
conquistas”14.
O primeiro informe sobre as ações desenvolvidas em Caruaru
contrárias ao aniversário comemorativo do golpe militar de 1964 chegou
à Aeronáutica no dia 07 de abril de 1965. De acordo com as informações
fornecidas pelo informante, o Quartel General daquele ministério lavrava o
informe 052 no qual apresentava uma síntese dos acontecimentos ocorridos
na cidade. Registrou que entre as comemorações realizadas em Caruaru
para celebrar um ano da revolução, havia ocorrido a mencionada palestra
ministrada por Luiz Pessoa da Silva e no “dia seguinte, o referido cidadão
encontrou em sua residência dois boletins como respostas dos comunistas
ao brilhante discurso proferido em defesa da Revolução”15. O informante
deixou uma cópia dos boletins na Segunda Zona Aérea.
Pelos registros que constam no prontuário do município, aquele
foi o primeiro informe sobre os fatos ocorridos na cidade. O Ministério da
Aeronáutica classificou aquele informe como secreto, atribuindo-lhe B2 em
relação à confiabilidade da fonte emissora e das informações recebidas. Em 37
seguida determinou difusão para o IV Exército, a Secretaria de Segurança
Pública do Estado e a agência do SNI em Recife.
No dia 14 de abril, a Secretaria de Segurança Pública recebeu o
informe da Zona Aérea protocolando-o pelo número 205 e encaminhou
em seguida para a Delegacia Auxiliar. No dia 26 do mesmo mês o IV

comunistas da cidade.
14 Ofício 141-BE/2. Ministério da Guerra. IV Exército – 2ª Sessão. Documento encaminhado
para a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco. Disponível do Arquivo Público
estadual Jordão Emerenciano no prontuário funcional do município de Caruaru, sob
número 29.581, pág. 01.
15 Ofício 052/ZONAER – 2. Ministério da Aeronáutica – 2ª Zona Aérea. Documento
encaminhado para a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco. Disponível do
Arquivo Público estadual Jordão Emerenciano no prontuário funcional do município de
Caruaru, sob número 29.581.
Exército recebia da Aeronáutica o documento sobre as ações ocorridas em
Caruaru. Com base nessas informações recebidas, o IV Exército produziu
outro informe e a encaminhou para a Secretaria de Segurança chegando
no dia 30 de abril às dependências daquele destinatário. Neste novo
documento, repetia as informações recebidas da Segunda Zona Aérea, no
primeiro parágrafo que compunha o ofício e em seguida atribuía a autoria
dos boletins aos comunistas de Caruaru e acrescentava a informação que
o Partido Comunista continuava atuando na cidade juntamente com suas
doze organizações de base. Aquele ofício foi classificado como secreto e
encaminhado diretamente para o secretário de segurança pública do Estado
e remetido à difusão para o Estado Maior do Exército, o SNI no Recife e à
própria Secretaria de Segurança Pública.
Quatro dias depois, chegava à sede da Secretaria de Segurança
o informe outrora emitido no IV Exército. Esse informe se diferenciava
sensivelmente daquele produzido na Aeronáutica, que consistia em um
parágrafo apenas, mencionando rapidamente que os comunistas da cidade
havia colocado alguns boletins na residência do orador da palestra. Chamava
a atenção para as atividades que os comunistas estavam desenvolvendo na
cidade por meio do comitê municipal e das organizações de base que de
38 acordo com o IV Exército não tinham interrompido suas ações.
O argumento exposto no documento produzido pelo IV Exército
se sustentava na apreensão dos boletins que tinham sido colocados na porta
do orador no dia seguinte à conferência por ele ministrada. No entanto, três
dias depois que o Exército emitiu aquele ofício, algumas semanas, portanto,
após as comemorações realizadas em Caruaru, a Aeronáutica recebia outra
delação sobre os comunistas da cidade. Neste informe protocolado pelo
número 079, no dia 29 de abril de 1965, a 2ª Zona Aérea registrava que
diversos boletins subversivos continuavam sendo colocados na residência
de Luiz Pessoa, por elementos desconhecidos. No entanto, havia a suspeita
que o responsável por aquelas ações era o “elemento Alceu, de profissão
enfermeiro e notoriamente comunista”16.

16 Informe 070/ZONAER 2. Ministério da Aeronáutica – 2ª Zona Aérea. Documento


O informante também levava ao conhecimento daquela
instituição que os comunistas em Caruaru continuavam com suas
atividades por meio da divulgação de suas propostas políticas. Estas ações
estavam ocorrendo através da impressão e circulação do jornal Combater
e da distribuição do jornal Voz Operária. O primeiro, uma produção
local, já se encontrava na oitava edição. O exemplar do Voz Operária que
estava sendo distribuído em Caruaru estava sendo remetido do Rio de
Janeiro. Dessa forma, demonstrava não apenas a circulação e divulgação
de suas propostas na cidade como a rearticulação dos comunistas locais
com outros localizados em outras partes do país como a cidade do Rio de
Janeiro.
Como mencionado anteriormente, quando um informe era
gerado por meio de uma informação, cuja origem era um militar,
recebia a classificação A1, o que sugere que o informe que foi gerado
na Aeronáutica procedia de um civil porque foi classificado como B2.
Também era uma prática constante dos órgãos de segurança diante de um
informe classificado em B2, inserirem informações extras, geralmente
escritas a mão, solicitando que os órgãos receptores – aos quais eram
enviados pela difusão – que investigassem a veracidade das informações.
No entanto, esses procedimentos não aparecem neste documento emitido 39
pela Aeronáutica nem quando foi recebido e protocolado na Secretaria
de Segurança. A ausência dessas informações teria sido resultante
do esquecimento das autoridades? É possível. No entanto, como os
conteúdos daquele documento já haviam sido anteriormente registrados
por meio do informe 052/ZONAER-2 sobre a distribuição dos boletins
subversivos na residência de Luiz Pessoa, é possível que as autoridades, ao
emitirem esse outro informe, desconsiderassem a necessidade de solicitar
investigação quanto à veracidade dos fatos, por acreditarem que aquelas
ações estavam realmente acontecendo.

encaminhado para a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco. Disponível do


Arquivo Público estadual Jordão Emerenciano no prontuário funcional do município de
Caruaru, sob número 29.581.
Importante destacar que o discurso da ameaça comunista produzido
pelos militares não ficou restrito às instituições às quais pertenciam. A 22ª
Circunscrição de Recrutamento – CR – do Exército, sediada em Caruaru,
publicava de forma regular inúmeros artigos e notas nos órgãos da imprensa
local entre os anos de 1960 a 1968. Eram publicações que abordavam
temáticas variadas, nas quais prevalecia o discurso de alerta, perigo e
ameaça sobre o crescimento do comunismo em Pernambuco e no Brasil. A
leitura daquele tempo como experiência marcada pelo perigo e ameaça não
era elaborada apenas pelos militares. A imprensa local reconhecia e alertava
que os comunistas estavam se rearticulando. No dia 14 de março de 1965 o
jornal A Voz do Agreste informava que os comunistas continuavam em ação
em todo o Brasil.
Os democratas brasileiros não podem desfalecer na luta
aberta contra a ameaça comunista que continua a existir
por todos os recantos do território nacional. A revolução,
é verdade, extinguiu o foco visível, afastou dos postos de
mando os elementos mais representativos. Mas a ameaça
não cessou. O inimigo não desapareceu; apenas recuou.
Agora a cada decisão do governo revolucionário surgem
40 dos bastidores as vozes comunistas para criticar para
semear a confusão, especialmente entre as camadas menos
esclarecidas da população17.

O articulista foi enfático em sua sentença: a ameaça comunista não


tinha sido extinta. Exigia, portanto, do governo ditatorial medidas mais
enérgicas no sentido de abolir de vez essas forças e assim extinguir em
definitivo o perigo que representava o comunismo. De acordo com o artigo,
as ações dos comunistas naquele momento consistiam em disseminar falsas
informações contra o governo para confundir a população ou parte desta.
O articulista não media palavras para destacar a afronta que estava
acontecendo e o perigo que representava, pois do contrário, estariam todos

17 A Voz do Agreste, Caruaru, 14 de março de 1965, pág. 05.


os brasileiros ameaçados de perder as conquistas alcançadas até o momento.
No entanto não era tarefa apenas do governo aquela batalha. Nesse sentido
o articulista asseverou:
O governo não pode lutar sozinho e sua luta só alcançará
êxito se cada um de nós desejando a verdadeira democracia
e a sobrevivência dos ideais do mundo ocidental cristão,
oferecer a sua parcela de colaboração, demonstrando
claramente aos menos avisados que estamos no caminho
certo, do qual não podemos fugir18.

Fica visível o chamamento que a matéria fazia aos leitores: cada


cidadão deveria se tornar um agente de divulgação dos projetos do governo
ditatorial. Esclarecer, informar e discutir, seriam funções de todos os
verdadeiros patriotas e democratas que se encarregariam de explicar as
propostas do governo às pessoas menos esclarecidas. Finalizou o artigo
alimentando o perigo existente e a necessidade do alerta permanente. “Na
luta contra o comunismo”, enfatizou, “cada um de nós precisa estar sempre
de olhos bem abertos, pois em cada sombra, em cada esquina, pode estar
uma ameaça”19.
Nesse sentido, aquela ameaça não estava longínqua, era possível 41
perceber nos boletins que estavam circulando em Caruaru. De acordo
com as informações registradas no IV Exército, aqueles boletins faziam
duras e agressivas críticas ao atual governo. No ofício produzido naquela
instituição, há a transcrição dos principais aspectos que os comunistas
atacavam a revolução e o governo de Castelo Branco. A começar, os
boletins interpretavam a chamada revolução de abril como desmoralizada
e opressora porque tinha eliminado as liberdades políticas de quem a ela se
opunha. Em seguida asseverava que

Cada caruaruense pode ver os preços dos gêneros


alimentícios das utilidades de consumo e das passagens

18 Ibidem.
19 Ibidem.
como subiram nesses dozes meses. Enquanto isso esse
governo de cinismo vive anunciando para breve, o fim da
inflação e apelando aos brasileiros que apertem o cinturão,
isto é, que se submeta ainda mais à fome que ele nos impõe20.

A circulação dos boletins continuava a acontecer para além daquela


data referente ao dia seguinte à palestra como destacava o informe 070/
ZONAER-2 da Aeronáutica21. De acordo com a transcrição do Exército,
uma das críticas presentes no material se referia a questões que afetavam
diretamente a vida cotidiana de muitos cidadãos em Caruaru e por certo
no Brasil. O aumento dos preços dos alimentos e das passagens com a
crescente alta da inflação chegando a uma taxa de crescimento de 40%.
As críticas à inflação que circularam nos panfletos não ficaram
restritas aos discursos dos comunistas. Encontramos no jornal A Voz do
Agreste diversos artigos discutindo o aumento do custo dos bens de primeira
necessidade. No dia 24 de janeiro de 1965 o Voz do Agreste destacava que

O grande inimigo da Revolução está ao nosso lado, vive


conosco, rouba nossa economia, solapa a Revolução,
42 desgraça toda uma obra redentora. De nada adiantou o
governo democrata, moralizar, banir os comunistas. Será
que o povo uma vez livre do perigo vermelho vai ter fartura
à mesa? Será que o minguado dinheiro do povo conseguirá
o milagre da abundância?22.

20 Ofício 141-BE/2. Ministério da Guerra. IV Exército – 2ª Sessão. Documento encaminhado


para a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco. Disponível do Arquivo Público
estadual Jordão Emerenciano no prontuário funcional do município de Caruaru, sob
número 29.581, pág. 01.
21 Importante ressaltar que não localizei os boletins e disponho apenas das transcrições
que as autoridades policiais do IV Exército emitiram no ofício que encaminharam para a
Secretaria de Segurança Pública.
22 A Voz do Agreste, Caruaru, 24 de janeiro de 1965, pág. 03.
Aquele jornal fez de suas páginas, no período em análise, espaço de
divulgação cotidiana dos feitos da chamada revolução. Inúmeros artigos,
notas e reportagens versavam os benefícios morais, políticos e éticos que
a intervenção militar um ano antes, representara. No entanto, sua linha
editorial não pode ser lida como um apoio irrestrito à ditadura que se
instalou no país.
De acordo com o articulista daquela folha o maior inimigo naquele
momento deixava de ser o comunismo; era a inflação, a alta desgovernada
dos preços. Assim, não adiantou banir os comunistas, se não resolviam os
problemas imediatos das pessoas, ou seja, as questões ligadas ao custo de
vida dos cidadãos. Para ele, a inflação estava ameaçando os ideais redentores
da revolução. Nesse sentido, o articulista acreditava que já estava na hora
de Castelo Branco resolver em definitivo o problema da fome, “porque
ninguém pode ficar com o estômago vazio desde março até agora na
esperança de enchê-lo a partir dos primeiros dias de 1965”23.
Uma das providências seria controlar o aumento abusivo dos
preços. Segundo aquele jornal, as pessoas estavam sentindo diretamente
nas transações diárias, nos mercados, nas lojas, nos açougues, nas
farmácias, nos botequins, nas padarias, nos restaurantes e todos os lugares
as consequências do descontrole inflacionário somado com a ganância de 43
muitos comerciantes. Para o articulista, aquela situação era “tão corrosiva
para o povo como a própria subversão”24.
Aquele discurso projetava uma desconfiança quanto à eficácia das
políticas postas em ação pelos militares, para o campo econômico. Nesse
sentido, a chamada revolução não dispunha das competências necessárias –
até aquele momento – para resolver os problemas sociais da vida cotidiana
das pessoas. O governo ditatorial estava perdendo credibilidade porque
de nada adiantava um discurso de promessas se o pão, a carne, o feijão,
a farinha, o remédio, o valor das passagens do transporte público ficavam
mais caros a cada dia.

23 Ibidem.
24 Ibidem.
Para os comunistas da cidade – ou parte deles – o descontrole
inflacionário era decorrência da política econômica encabeçada pelos
militares, em estreitas relações com os interesses econômicos de empresas
estadunidenses. Arguiam aqueles que “para Castelo Branco, Costa e Silva,
Cordeiro de Farias e outros gorilas, pouco importava a nação brasileira,
sua felicidade e sua independência. Deram o golpe e se mantem no poder
para servir aos interesses dos poderosos grupos econômicos dos Estados
Unidos”25. O Ministério da Fazenda não conseguia acertar o passo no
controle da inflação resultando num aumento galopante dos preços.
A substituição dos ministros daquela pasta, por certo esteve ligada às
tentativas frustradas de ajustes da política econômica. Em dois anos aquele
ministério esteve ocupado por três pessoas distintas26.
Nesse sentido, aqueles boletins questionavam as razões para as
celebrações realizadas na cidade em festejos do golpe de abril. Chamavam
a atenção para outros problemas além do descontrole inflacionário.
Desejavam não apenas ajustes econômicos mas “liberdade irrestrita de
opinião, associação e propaganda. Pedimos a reintegração de todos os
brasileiros no gozo de seus direitos políticos, a cassação dos IPMs políticos,
liberdade para todos os presos políticos, liberdade sindical e estudantil”27.
44 As delações sobre as atividades dos comunistas em Caruaru não
pararam. No dia 15 de junho de 1965 era emitido na 2ª Zona Aérea mais um
informe sobre encontros realizados pelos comunistas na cidade. Dessa vez

25 Ofício 141-BE/2. Ministério da Guerra. IV Exército – 2ª Sessão. Documento encaminhado


para a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco. Disponível do Arquivo Público
estadual Jordão Emerenciano no prontuário funcional do município de Caruaru, sob
número 29.581, pág. 01.
26 Os ministros que ocuparam a Fazenda entre 15 de abril de 1964 e 16 de março de 1967
foram respectivamente Octavio Gouvêa de Bulhões, Roberto de Oliveira Campos e Eduardo
Lopes Rodrigues, estes últimos sendo ministros interinos. Informações disponíveis no site
do Ministério da Fazenda: http://www.fazenda.gov.br <Acesso em 14 de outubro de 2013>.
27 Ofício 141-BE/2. Ministério da Guerra. IV Exército – 2ª Sessão. Documento encaminhado
para a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco. Disponível do Arquivo Público
estadual Jordão Emerenciano no prontuário funcional do município de Caruaru, sob
número 29.581, pág. 01.
o documento versava sobre reuniões secretas que os comunistas estavam
realizando, numa garagem que se localizava por trás da prefeitura. Os
encontros estavam sendo coordenados por uma das lideranças comunistas
em Caruaru, Abdias Bastos Lé, cuja garagem dava acesso a sua casa28. O
mencionado informe recebeu a classificação B-2 sendo encaminhado à
difusão com destino ao IV Exército e à Secretaria de Segurança Púbica.
Aquela secretaria recebeu o documento sete dias depois e encaminhou à
Delegacia Auxiliar para que realizassem diligências necessárias sobre as
informações apresentadas.
Mais que desenvolver os procedimentos burocráticos e operacionais,
aquelas instituições estavam a serviço de uma política ditatorial, cujo eixo
central era o controle político e o combate sistemático às propostas e
projetos das esquerdas no Brasil. Nesse sentido os documentos arrolados
pela Secretaria de Segurança Pública nos diálogos com os demais órgãos
não demonstram apenas os procedimentos técnicos e burocráticos. Por
certo fazia parte do métier daquelas instituições proceder com as devidas
medidas no que tange ao exercício de suas funções, como tomar notas
das delações que chegavam, produzir informes, emitir ofícios, fazer o
encaminhamento à difusão e solicitar os pedidos de busca.
Entretanto, é importante não perder de vista as forças agenciadoras 45
que concorriam para promover as ações de vigilância, perseguição,
prisões e torturas. Ou seja, não se tratava de um fichamento qualquer, ou
de um simples informe que o funcionário de umas daquelas instituições,
fazia. Cada função executada, cada documento expedido, cada registro
emitido seja pelo IV Exército, pela Marinha, pela Secretaria de Segurança
Pública, ou SNI – com todas as suas distinções e objetivos – corroborava
com a política ditatorial imposta pelos militares. Cada documento gerado

28 Informe 091/ZONAER. Ministério da Aeronáutica – 2ª Zona Aérea. Documento


encaminhado para a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco. Disponível do
Arquivo Público estadual Jordão Emerenciano no prontuário funcional do município
de Caruaru, sob número 29.581. Abdias Bastos Lé esteve diretamente ligado ao Partido
Comunista local antes do golpe de 1964. Foi investigado e processado pela Comissão de
Investigação Sumária, aberta em Caruaru.
naquelas instituições fazia parte de uma maquinaria repressiva a serviço do
regime militar.
Nessa dinâmica, aqueles documentos se constituem como
representação das experiências temporais em análise, como registros das
práticas de uma política de combate que não media esforços para fazer valer
suas prerrogativas. Representavam, portanto, os alicerces mantenedores de
um projeto de sociedade que desejava fazer uma limpeza ética, moral e
política, onde os desvios, as diferenças, as alteridades eram consideradas
nocivas, portanto, deviam ser eliminadas. São políticas que demonstram
indícios do temor que os projetos e propostas comunistas triunfassem no
Brasil. Acredito que este temor, tenha sido uma das forças agenciadoras
que concorriam para legitimar e justificar as operações realizadas em nome
da segurança, da manutenção da ordem, da tranquilidade e permanência
dos valores sociais que aqueles órgãos bradavam se encontrar ameaçados
enquanto os comunistas não fossem eliminados social e politicamente.

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A cidade invisível de Marabá1
Airton dos Reis Pereira

Introdução

De uma maneira geral, grande parte da literatura que analisa as


práticas sociais e culturais da cidade de Marabá, no sudeste do Pará, está
centrada na personalidade do pioneiro, do suposto herói da conquista de
terras novas, do desbravador que plantou o marco do “desenvolvimento” e
do “progresso” legando aos munícipes o grande e importante patrimônio
que é Marabá. Não raro lamenta as perdas territoriais e os royalties das
grandes empresas de exploração mineral.
Este trabalho, portanto, procura explicar que há uma cidade
invisível em Marabá formada por milhares de empobrecidos, trabalhadores
migrantes, pessoas de vida itinerante, marcada pela provisoriedade e pelo
conflito, sem profissões definidas ou com afazeres diversos que lutam
pela sobrevivência. Nessas situações constituem espaços de moradia, de
sociabilidade e de vivencias. 51
Para compreender esses processos, foram pertinentes as análises que
Figueira (2004) fez sobre a migração de nordestinos para trabalharem nas
grandes fazendas de agropecuária do estado do Pará nos finais do século XX.
Para este autor, muitas pessoas migram não porque querem, mas porque são
obrigadas. Várias são as migrações e diversos são os fatores que as ocasionam,
entre eles: “(...) por razões comerciais, por necessidades econômicas
prementes vividas por uma ou mais pessoas ou mesmo pela totalidade de um
grupo social, pelo desemprego temporário ou estrutural, pela abundância de
mão-de-obra em um lugar e pela escassez em outro” (p.101).

1 Este texto é uma versão ampliada do trabalho apresentado no VI Simpósio Internacional


de História: culturas e identidades, realizado entre 28 de outubro e 1º de novembro de 2013,
em Goiânia (GO).
Migrar é, em certo sentido, uma experiência de vida. As cidades da
Amazônia Oriental, dos séculos XX e XXI, são de quem chega, de quem
fica, mas também de quem parte. São entroncamentos e travessias. Chegou
à cidade porque partiu, mas porque pode partir. É vida dilacerada. É vida
triturada. É vida que virou suco. É sujeito partido, segmentado. É vida
errante. É vida marcada pelas andanças. É sujeito aberto e atravessado por
diferentes fluxos. É entroncamento de diferentes estradas e de diferentes
histórias.
As andanças são parte constitutiva de quem habita a cidade de
Marabá. Pegou a estrada e atravessou o rio. Ou pegou o trem no Maranhão.
Ficar é uma aventura, é construção. Ir também. Olhar para o presente e
para o futuro é sobrevivência. Por isso o passado é relâmpago. Lembrar
pode ser doloroso. Deixar a sua região de origem ou onde se estabeleceu é
deixar a dor e o sofrimento de quem teve de partir. A lembrança pode ser
uma empreitada de quem não quer lembrar. Esquecer é parte de quem quer
(re)construir a vida. Lembrar é reviver o tempo da seca no Nordeste, do
trabalho duro no Maranhão, das lidas nas lavouras de café ou na formação
de pastagem no Sudeste e Centro-Oeste ou na apanha da castanha-do-pará
nos castanhais da região, “da mão calejada que aguentava as injurias do
52 patrão”. Migrar para tentar conseguir uma terra ou um trabalho autônomo
quase sempre foi condição de sobrevivência, de autonomia e de liberdade
de muitas pessoas que habitam a cidade de Marabá. Lembrar pode ser
também nostálgico para quem nessas terras nasceu ou a muito tempo
chegou. Lembrar é recordar os tempos de robustez e de aventuras nos
garimpos de diamante ou de cristal no Araguaia e no Tocantins em épocas
de verão ou na apanha da castanha ou nas cachoeiras de Itaboca ou nos
canais Capitariquara, Arrependido e Inferno conduzindo barcos e batelões.
Nesse sentido, faz-se pertinente compreender a cidade de Marabá
não só como espaço para onde diversas pessoas se deslocam para viver
as suas relações. Espaço de possível acolhimento para os que não têm
lugar. De espaço que se presta à elaboração de sonhos, busca de utopias
e de realizações, mas também de decepções e de confronto entre classes,
concepções, direitos, temporalidades e de variações linguísticas e de
costumes. Assim, enquanto espaço indefinido e impreciso, Marabá abre
como lugar para a possibilidade de diferentes projetos.
Esta cidade, que surgiu nos finais do século XIX, até o início da
década de 70, do século XX, ostentou o posto de cidade ribeirinha. Até
que as estradas chegassem como parte da estratégia do Governo Federal
de integrar a Amazônia ao resto do País - “integrar para não integrar” -
havia uma interação direta entre cidade e os rios Itacaiúnas e Tocantins.
A frente da cidade iniciava-se no rio. Ou seja, com a efetivação dos planos
de colonização agrícola, o incentivo e apoio governamental aos grandes
empreendimentos agropecuários dirigidos por empresas privadas,
sobretudo do Centro-Sul do País, bem como a implantação de projetos
mineralógicos (Carajás e Serra Pelada) e o estabelecimento de siderúrgicas
de ferro-gusa2, em Marabá, a migração para esta parte do território
paraense aumentou consideravelmente e a infraestrutura rodoviária
acabou tirando a supremacia dos rios. Quer dizer, as reflexões que procuro
fazer nesse trabalho embora remeta, em certo sentido, a alguns aspectos do
final do século XIX, se efetiva entre o final da década de 1960 e meados dos
anos 2000, lastro de tempo em que é possível perceber como as estradas
suplantaram os rios e estimularam empresários, fazendeiros, comerciantes 53
e trabalhadores rurais empobrecidos, sobretudo do Nordeste brasileiro,
migrarem para o sudeste paraense. E como parte desse processo se formou
em Marabá uma cidade invisível, visualmente disfarçada e avessa à prática e
aos hábitos de grupos dominantes que se esforçam em não admiti-la.
Para construção deste texto foram importantes, além das fontes
bibliográficas, diversas informações propiciadas por jornais, panfletos,
ofícios e abaixo-assinados de associações de bairros e fotografias diversas.

2 A instalação de indústrias siderúrgicas visando a produção de ferro gusa em Marabá


iniciou-se em 1988. A primeira a se instalar foi a Companhia Siderúrgica do Pará (COSIPAR),
do grupo ITAMINAS, em março de 1988. Nesse mesmo ano foi inaugurado o Distrito
Industrial de Marabá (DIM) numa área de 3.000 hectares. Atualmente são duas grandes
siderúrgicas que funcionam nesse espaço, mas até 2008 eram onze. Cada uma possuía dois
altos-fornos com a capacidade de produzir 200 mil toneladas de ferro gusa ao ano.
Foram primordiais também as andanças, às vezes solitárias, às diversas
partes da cidade, de olhar peculiar e atento procurando perceber os
detalhes, os pormenores, num esforço sem medida para colher informações
e significações nos diversos espaços. Busquei privilegiar os pequenos
acontecimentos, marcas sutis e singulares, pelejas, falas dissonantes,
discursos da margem e do subterrâneo. Entrevistei moradores de bairros,
trabalhadores, políticos e representantes de movimentos sociais e das
pastorais da Igreja Católica.
Todo esse corpus documental não foi tomado como comprovação
do real, mas como “índice, sinal ou outras vezes signo daquilo que se
nomeia real, realidade” (MONTENEGRO, 2011:231), entendendo que
nenhum documento pode ser adotado como espelho do passado, portador
de significados evidentes que se encontram impressos e expressos no
acontecido. Os documentos, são, antes de tudo, narrativas que se encontram
inseridas na rede das relações sociais e são, em certa medida, articuladores
de discursos que devem ser lidos “(...) como um texto onde se inscrevem
desejos, reproduzem-se modelos, apreendem-se fugas” (GUIMARÃES
NETO, 2006:47). São documentos que possibilitaram perceber aspectos e
detalhes até então não registrados e analisados sobre a cidade de Marabá.
54
Marabá dos finais da década de 1890 e um pouco mais...

Em 1897, Henri Coudreau, pesquisador francês, subiu pelo


Tocantins para depois explorar o rio Itacaiúnas. Nos relatos que fez sobre a
sua expedição, a “IV missão paraense”, incumbida pelo então Governador
do Pará, Paes de Carvalho que, segundo ele, era em prosseguimento “às
investigações geográficas (...) designadas por seu antecessor, Sr. Lauro Sodré
(...)”(COUDREAU, 1980:13), afirma que nas proximidades da confluência
dos rios Itacaiúnas e Tocantins existia tão somente um “Burgo Agrícola”,
vaqueiros conduzindo gado às margens do rio Tocantins, pela “estrada do
boi”, subindo do Maranhão para Belém, tribos indígenas, alguns povoados
às margens do rio, como São João do Araguaia, Alcobaça, Arumateua,
etc. Mas percebeu também que diversos trabalhadores faziam a coleta do
látex do caucho no vale do Itacaiúnas. No local onde provavelmente está,
hoje, assentado o núcleo urbano denominado Marabá Pioneira, observou
em agosto daquele ano, que não passava de um “pântano que se encontra
seco neste momento” (p.49). Mas devido às atividades relacionadas à
exploração do caucho3 nas matas do vale do Itacaiúnas, os rios tornaram-
se os caminhos para trabalhadores e comerciantes da goma elástica e na
península, entre os dois rios, embora sujeita às constantes enchentes,
foi onde se instalaram as primeiras casas de comércio dando origem ao
povoado de Marabá4, facilitando “o escoamento das mercadorias e as
trocas que seriam realizadas” (EMMI, 1987:26). Ou seja, foi a partir de
então que se iniciou a migração de trabalhadores e pequenos comerciantes,
principalmente maranhenses, goianos e cearenses para a confluência dos
rios Itacaiúnas e Tocantins conformando, assim, o povoado de Marabá.
Segundo Audrin (1947:155),

A importância de Marabá provinha de sua posição


geográfica e das riquezas de seu território. Afluíam
aí numerosas famílias ribeirinhas do Tocantins e do
Araguaia, outras do interior do Maranhão, junto com 55
milhares de seringueiros e caucheiros do Itacayuna.

3 Caucho ou Castiolla elástica provem da família de árvores produtoras de látex. Contem de


15 a 20 metros de altura e meio metro de diâmetro. É uma espécie inferior a Seringa (Hevea
brasilliensis). Para extrair seu látex, o caucheiro derrubava-a, pois depois de golpeada
morria. Assim, derrubando-a aproveitava-a toda. Tirava-lhe o látex do tronco e dos galhos,
Cf. Ianni (1978).
4 Conta-se que Francisco Coelho da Silva, natural de Barra do Corda ou Grajaú, no Estado
do Maranhão (há controvérsia quanto seu lugar de origem) se instalara, em 1897, no “Burgo
Agrícola Itacaiúnas” fundado e dirigido pelo florianista Carlos Gomes Leitão, ex-deputado
provincial do Rio de Janeiro, que fugira de Boa Vista (hoje Tocantinópolis-TO) após sair
perdedor do conflito armado com o intendente Francisco Maciel Perna. Em 1898, Francisco
Coelho da Silva constituiu no pontal, entre os rios Itacaiúnas e Tocantins, uma casa comercial
a qual deu-lhe o nome “Marabá” em homenagem ao poeta maranhense Gonçalves Dias,
autor do poema denominado “Marabá” (PREFEITURA MUNICIPAL DE MARABÁ, 1984;
MATTOS, 1996; PETIT, 2003; SAMPAIO, 1998 e 2000; OPINIÃO, 05 e 06/04/2006).
Certos meses da safra, a população adventícia atingia
a mais de quinze mil pessoas. Entre essas apareciam
um sem número de doentes, saídos das matas úmidas,
consumidos pela malária, que vinham morrer em
barracas imundas sem o mínimo socorro material
e espiritual (...) Marabá não era Conceição. Marabá
brotara da ganância louca do dinheiro; logo totalmente
alheia a qualquer preocupação religiosa e moral.

Esse fragmento de José Maria Audrin, frade da Ordem dos


Pregadores de Conceição do Araguaia, possibilita entender o processo
migratório de muitas famílias empobrecidas para trabalhar na produção
do látex do caucho no Vale do Itacaiúnas, nas décadas de 1930 e 1940,
bem como as condições sociais a que estavam submetidas essas famílias na
cidade de Marabá nesse período.
Mesmo com a decadência da exploração da borracha, no início da
década de 1920, a cidade de Marabá continuou sendo o ponto de intercâmbio
comercial não só no médio Tocantins, mas servindo ao norte de Goiás e
ao sul do Maranhão com a ascensão da exploração da castanha-do-pará,
56 atividade que passou a atrair aventureiros, principalmente nordestinos, que
chegavam em busca do trabalho e do comércio de mercadorias. Isto é, os rios
Itacaiúnas e Tocantins continuaram sendo os caminhos de uma população
instável, flutuante e aventureira. O transporte de castanha, de animais, de
mercadorias manufaturadas e de passageiros era feito pelos rios por meio
de batelões, canoas, balsas, lanchas e, posteriormente, por barcos a motor,
os “pentas”. Estes “prestaram relevantes serviços no transporte de cargas
e passageiros, cobrindo todo o trajeto de Jacundá, Marabá, Imperatriz e
vice-versa” procura traduzir, nostalgicamente, uma publicação feita pela
Prefeitura Municipal de Marabá, em 1984 (PREFEITURA MUNICIPAL
DE MARABÁ, 1984).
A provisoriedade, dado o predomínio das atividades sazonais
(caucho e castanha), não permitia a fixação definitiva de boa parte da
população de Marabá. As casas, excluindo algumas delas dedicadas ao
comércio, à administração pública ou à moradia de famílias abastadas,
foram por muito tempo habitações simples, em sua maioria de taipas,
coberturas de palhas de babaçu e piso de terra batida. Essa provisoriedade,
de certa forma, pode ser identificada na desproporcionalidade entre
homens e mulheres. Segundo Velho (1972), em 1940, em Marabá existiam
7.839 homens para 4.714 mulheres.
Outra situação que provavelmente forçava a provisoriedade de
grande parte da população de Marabá, eram as periódicas enchentes nos
períodos chuvosos. Américo Leônidas Barbosa de Oliveira, engenheiro
do Ministério da Aviação e Obras Públicas, que visitou Marabá, em 1938,
quando estudava a possibilidade de melhoria na navegação pelo rio Tocantins
chegou a escrever que Marabá era nada mais do que um acampamento que
se levantava todas as vezes que se aproximava uma grande enchente. “Por
isso”, afirmava ele, “rareiam ali as casas de alvenaria. Não existem colégios,
nem bancos, nem hospitais, nem clubes, nem cinemas, nem estradas, nem
automóveis” (BRASIL, 1941:37).
As maiores enchentes ocorreram nos anos de 1926, 1947, 1957,
1968, 1974, 1978, 1979 e 1980 (PREFEITURA MUNICIPAL DE MARABÁ,
1984; SAMPAIO, 2000). A enchente de 1926 inundou toda a cidade, destruiu 57
todas as casas e expulsou a população. Por quatro meses o povoado Lago
Vermelho (hoje Itupiranga) abrigou parte da população asilada, tornando-
se, provisoriamente, a sede da Comarca de Marabá (CORREIO DO
TOCANTINS, 05/04/2000:05), outros, talvez os mais pobres, se abrigaram,
no Amapá, bairro localizado do lado esquerdo do rio Itacaiúnas. A enchente
de 1980 é considerada pela população local como a maior da história de
Marabá. O rio Tocantins passou o nível de 1,20 metros, no verão, para 17,42
metros no período chuvoso (CORREIO DO TOCANTINS, 05/04/2000:05;
MATTOS, 1996; ALMEIDA, 2011). Muitas famílias perderam as suas casas,
os seus empregos ou seus meios de geração de renda.
Até hoje as enchentes incomodam a população que habita grande
parte das margens do Tocantins e do Itacaiúnas. Quando a água transborda
o leito dos rios, os moradores são obrigados a se instalarem, muitas vezes
durante três ou quatro meses, em abrigos improvisados. Não só pescadores,
mas lavadeiras, carregadores, oleiros, entre outros, perdem os seus meios
de sobrevivências. Isso ocorre porque são forçados a deslocarem-se para
longe de seus lugares de trabalho: o rio. Muitas casas, às vezes, precárias,
se deterioram e os quintais onde muitos plantam legumes e hortaliças são
destruídos. Para ajudar a compreender essa questão considero importante
a reflexão que José Viturino Damasceno, um dos antigos moradores do
bairro Santa Rosa, do núcleo Marabá Pioneira, fez. Segundo ele, as famílias
mais pobres da cidade sempre sofreram com a problemática das enchentes
dos rios Itacaiúnas e Tocantins:

Marabá, podemos dizer assim, sempre foi uma cidade


de maioria pobre. Muitos vieram pra cá em busca de
melhora de vida. Lá no Santa Rosa onde eu morei
mesmo todo mundo, vamos dizer assim, são pobres.
Pescadores, trabalhadores de fazendas, apanhadores
de castanhas, mariscadores. Esse povo sempre sofria
muito com as enchentes. Quando o rio enchia tinha
58 que abandonar as casas, mas quando a água abaixava
voltava todo mundo, porque não tinha outro jeito.
Ainda hoje é assim. O povo vive nessa peleja. Não é
só o Santa Rosa não, também o Cabelo Seco e toda
essa beirada de rio aqui da Velha Marabá (Entrevista
concedida em 13/03/2006).

Já os mais abastados, donos de fazendas, de castanhais e de casas de


comércio, a quem grande parte da literatura marabaense atribui o prodígio
e os grandes feitos da cidade, homens que fizeram de Marabá uma “terra
conquistada e produtiva, (...) marco do desenvolvimento” (PREFEITURA
MUNICIPAL DE MARABÁ, 1984), logo passaram a habitar casas luxuosas
e possuírem barcos a motor e, posteriormente, avião. Estes não tardaram
a se beneficiar da energia elétrica gerada por uma usina movida a lenha
instalada na cidade, em 1929. Foram estes que constituíram a oligarquia
local: donos de terra, donos do poder. Não só se apropriaram de áreas de
terras devolutas, mas também da administração pública da cidade. Segundo
a pesquisadora Marilia Emmi (1987), estes exerceram “uma dominação
que se traduziria em relações de exploração de tipo paternalista sobre os
caucheiros, castanheiros, barqueiros, tropeiros e trabalhadores da castanha
de um modo geral” (p.37). Os cargos de vereadores, prefeitos, deputados
estaduais e federais foram e ainda são ocupados por muitos desses homens.
E não foi por acaso que estes tiveram também os seus representantes no
poder judiciário da comarca local. São homens que souberam construir,
não menos pela força, os seus nomes na história. Não é acidentalmente
que Coriolano Milhomem aparece na literatura marabaense como “figura
de lutador inato” e “seus feitos ainda estão vivos na memória dos velhos
habitantes da região”. Foi um homem que “tornou-se temido e respeitado.
Para os índios, foi uma espécie de Átila. Por onde ia levava a morte e a
destruição. Ele sempre vingava a morte dos que caiam sob a impiedosa
borduna dos “Caiapós”. A figura de Coriolano Milhomem se tornou tão
conhecida nas matas da região que os índios – segundo afirmavam –
conheciam os rastos de suas botas” (PREFEITURA MUNICIPAL DE 59
MARABÁ, 1984:42).
Ademir Braz, poeta de Marabá, em seu livro Rebanho de
Pedras & Esta Terra (2003), descreve bem esses aspectos, um tanto
antagônicos, da vida na cidade de Marabá, que segundo ele era regulada
pelas circunstâncias. Para ele, enquanto os proprietários de fazendas,
de castanhais e de comércio possuíam “carros luzidos como caroços de
melancia” e “não cavam o solo e nem se curvam ao peso dos ouriços”,
sendo que a estes “é que o município deve seu progresso”, os quais “vão à
paróquia e guardam seus preceitos cristãos, os que se sentam à porta, no
fim da tarde, com a consciência e a família em repouso. Desses é o reino
do céu” (p.152), os pobres por sua vez,
crianças feias, futuros homens feios, grosseiros, de
dentes podres e camisas de mescla; homens que –
desempregados e sem futuro, no verão – acocoram-
se no topo da ribanceira, cuspindo ruidoso por
entres mascas e sonhos dourados de inverno; que
– subnutridos, ultrajados, as mãos anquilosadas e
pele curtida de sol e de pragas voadoras – não sabem
mais do que manejar o facão e a bateia. Senão, de
onde vieram os braços para a derrubada, a queima, o
plantio? Quem cuidaria do gado, tocaria as tropas nas
capoeiras a levar mercadorias para os cafundós das
quintas? Quem (à chuva, ao maruim, sujeito à selva,
aos horrores do desterro, da febre braba, da solidão
desumanamente verde da mata), quem juntaria das
castanheiras os ouriços, dos garimpos os diamantes
que fazem a riqueza do município, do estado, deste
país? Depois, isto é uma democracia: cada um tem o
direito de morrer como quiser (...) (p.152)

60 O bairro do Amapá, do lado esquerdo do Itacaiúnas, que surgiu


no início da década de 1920, não era diferente do núcleo que crescera
entre os dois rios. Fora formado por uma população pobre: pescadores,
trabalhadores rurais, castanheiros e trabalhadores braçais diversos. A sua
ligação com a Marabá Pioneira se dava por meio das embarcações. Esta
área serviu como moradia para grande parte da população mais pobre
atingida pelas enchentes, sobretudo a partir da grande cheia de 1926
(OASPUC, 1988).

A constituição dos núcleos urbanos: Cidade Nova, Nova Marabá e São Felix

Como foi explicado, o aglomerado urbano denominado de Amapá


surgiu para abrigar as vítimas dos constantes transbordamentos dos rios
Tocantins e Itacaiúnas nos períodos chuvosos. Diversas famílias que foram
atingidas pela enchente de 1926 ali improvisaram os seus barracos de palha
até que as águas dos rios tivessem voltado ao normal. Poucos foram aqueles
que ali permaneceram em razão da reconstrução da cidade no pontal, entre
os dois rios (hoje Marabá Pioneira).
Só com a abertura da rodovia Transamazônica, no início da década
de 1970, foi que a população do Amapá veio aumentar consideravelmente.
Muitas famílias de migrantes passaram a edificar, mesmo que
provisoriamente, as suas casas próximo à rodovia, alargando espacialmente
o bairro. Foi devido a esse fluxo migratório, mais precisamente entre 1974 e
1977 que núcleo Cidade Nova surgiu e se estruturou (OASPUC, 1988). Para
Rosalina Pereira Izoton5, liderança comunitária, o surgimento dos bairros
Cidade Nova, Novo Horizonte e Laranjeiras, do Núcleo Cidade Nova, entre
outros, deve-se à necessidade de moradia segura de muitos moradores da
cidade, vítimas das constantes enchentes do período chuvoso. Mas segundo
ela, grande parte dos novos moradores era formada por famílias de migrantes
de diversas regiões do Brasil, principalmente do Nordeste, que chegavam
em busca de terra, mas também do trabalho nos projetos de infraestrutura
e nos garimpos de ouro da região. “Aqui quase tudo foi ocupação. Foi uma
luta danada. A Associação de Moradores da Cidade Nova junto com as 61
comunidades da Igreja Católica ajudava o povo que chegava. Isso aqui tudo
era fazenda”, conta ela lembrando o tempo que iniciou a sua militância na
comunidade da Igreja Católica. Já “o bairro Laranjeiras”, descreve Maria
Arruda, outra liderança da Igreja Católica, “surgiu em 1976 com a invasão.
Ai entrou muita gente. Depois que o pessoal já estava aqui, todo mundo em
seu lugarzinho certo, a prefeitura entrou e cortou os lotes e entregou para
cada um” (Entrevista concedida em 23/02/2006).
Quer dizer, parte considerável da cidade de Marabá, para além
da península, na confluência do Itacaiúnas e Tocantins, foi produto
de ocupações irregulares por famílias migrantes empobrecidas de
diversas regiões do País que chegaram a Marabá atraídas pelo Projeto de

5 Entrevista concedida em 08/03/2006.


Colonização, do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),
às margens da rodovia Transamazônica,6 pelo surgimento do garimpo de
Serra Pelada, pela instalação do Projeto Ferro Carajás e pela montagem
da linha de transmissão da rede elétrica da Hidrelétrica de Tucuruí, nos
anos de 1980. Estes fatos geraram, naqueles anos, os bairros Alvorada,
Liberdade, Novo Planalto, Independência e Bom Planalto. Ou seja, em
1988, somente o Núcleo Cidade Nova já contava com 35.921 habitantes
(OASPUC, 1988).
Nesse ínterim, surgiu o núcleo Nova Marabá. Já em 1969, o
Ministério do Interior, através do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo
(SERFHAU) e do Grupo de Trabalho do Projeto Rondon, firmou convênio,
com recursos provenientes do Programa de Ação Concentrada, para a
realização de um Relatório Preliminar de Desenvolvimento Integrado
do Município de Marabá, cujos resultados foram publicados em 1970
(MINTER-SERFHAU, 1970). Em 1972, Joaquim Guedes e Associados,
de São Paulo, vencedor da concorrência aberta pelo SERFHAU para
elaboração do Plano de Desenvolvimento Urbano de Marabá, cujos
trabalhos foram publicados em 1973, previa a implantação de um núcleo
urbano após o varjão conseguinte à Velha Marabá. A estrutura pensada
62 era uma “grelha articulada” com ligação com a Velha Marabá pela Av.
Antônio Maia com a BR-230 (Transamazônica) e prolongamento da Av.
Marechal Deodoro às margens do rio Tocantins (SERFHAU/JOAQUIM
GUEDES e ASSOCIADOS, 1973). Visando a concretização do Plano, a
Prefeitura Municipal doou 1.650 hectares de terra à Superintendência de
Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) (Lei nº96 de 14/02/73) por
meio da desapropriação, com vultuosos recursos, da Fazenda Santa Rosa
(Decreto-lei nº 72.534 de 25.07.73 apud OASPUC, 1988:57; EMMI, 1987).

6 O INCRA, no início da década de 1970, procurando consolidar a política de deslocamento


populacional de Garrastazu Médici, implantou nos municípios de São João do Araguaia
e Itupiranga, o Projeto de Colonização denominado Programa Integrado de Colonização
Marabá. Nesses dois pontos da colonização foram assentadas cerca de 2.100 famílias. Mas a
propaganda governamental sobre o Projeto atraiu milhares de famílias empobrecidas para
Marabá. Cf. Pereira (2013).
Com a extinção do SERFHAU, em 1974, a SUDAM assumiu então
a responsabilidade pela a implantação do novo núcleo urbano, entretanto
abandonou o projeto inicial, contratando para tal empreendimento a J.H.
Cole Associados S/A para a elaboração de um novo plano de expansão
urbana de Marabá. Foi quando, desistindo a concepção inicial, o novo
núcleo assumiu o formato de “um organismo de estrutura vegetal no
qual os troncos são os eixos viários periféricos, os galhos o sistema viário
principal de penetração e as folhas as comunidades propriamente ditas”
(MINTER/SUDAM/J.H. COLE e ASSOCIADOS, 1976:114). Para tal
efeito, isto é, para somente a conclusão de 77.770 metros de terraplenagem
e bases do sistema viário, a SUDAM desembolsou, entre 1975 e 1981, Cr$
136.204.591,00 (US$ 7,6 milhões) (YOSHIOKA, 1986). De 1976 a 1981, a
SUDAM entregou 4.979 lotes residenciais, ou seja, 94% do total de 5.302
previstos. Estes 4.979 foram entregues às instituições públicas (3.327),
religiosas (55) e particulares (1.597). Do montante de lotes residenciais,
1.930 foram repassados à Caixa Econômica (CEF), ao Banco Nacional
de Habitação (BNH) e à Prefeitura Municipal de Marabá (PMM), para o
sistema formal de habitação; 1.397 para atendimento de funcionários da
Eletronorte, Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), Amazônia Mineração
e militares do Exército. Os outros 613 lotes foram destinados ao Banco do 63
Brasil, Banco da Amazônia, entre outros (OASPUC, 1988).
Algumas dificuldades no processo de ocupação desse novo espaço
urbano podem ser verificadas. Primeiro, no que se refere à abertura do
sistema viário. O alto índice pluviométrico em alguns meses do ano
obrigava a paralisação quase que completa de maquinários e funcionários
com a terraplenagem, além de causar erosão e atoleiros nas vias abertas.
Segundo, que o projeto da SUDAM determinava obrigatoriedade aos
moradores da Marabá Pioneira que, ao adquirir lotes no novo bairro,
mediante Contrato de Concessão de Uso, a demolição de suas casas na
área alagadiça (ALMEIDA, 2002).
Por outro lado, a escassez de serviços de infraestrutura (água
encanada, energia elétrica, escolas, hospitais, etc.), os poucos recursos
financeiros da maioria da população pobre, sobretudo as pessoas que
moravam nas áreas propícias às enchentes, a distância do centro de
negócios, os custos de deslocamento para o trabalho, para a escola, para
fazer compras ou para o lazer, podem ser vistos como desestímulos iniciais
no processo de ocupação da área planejada. E associada a estas, embora
carecendo de estudos mais aprofundados, longe, talvez, de inclinações
congênitas, estão as relações afetivas e socioeconômicas com o lugar, que
implicava a relação moradia-rio. As vivências desses moradores foram
(podem ser assim entendidas), construídas na relação moradia-rio-
trabalho. Deixar o seu lugar significava deixar o seu espaço constituído
pela afetividade, de valor simbólico, e pelo trabalho, determinado pela
necessidade de sobrevivência. Morar longe do rio significava morar longe
do trabalho, mas também a ruptura com o seu espaço, implicando novas
adaptações. Ao mudar, as famílias distanciavam-se ou desfaziam-se de
seus lugares e das amizades construídas ao longo do tempo. Abandonava-
se a casa, o quintal, o rio e a vizinhança.
Por volta de 1979/1980, a SUDAM abandonou o projeto,
repassando a responsabilidade para a Prefeitura Municipal de Marabá.
Os parcos recursos, a tímida administração municipal e o processo
64 de ocupação espontânea possibilitaram o desvirtuamento do plano
urbanístico. A população de baixa renda, sobretudo migrantes de diversas
regiões do Brasil, passou a ocupar os lotes vagos, espaços vazios destinados
ao sistema viário, às praças e às áreas verdes.

A gente que assistia a palestra do diretor da


implantação do projeto, que era o Dr. Rinei, na época
da SUDAM, era tornar aqui um bairro. Era para tirar
aquelas pessoas dos lugares baixos da cidade velha
para trazer pra cá. Era para trazer o povo só da velha
Marabá. Mas com o garimpo da Serra Pelada isso
aqui teve um crescimento populacional fulminante.
Quando acabou os terrenos destinados pelo projeto
passou-se ocupar onde não era para ocupar como
o corredor da Grota Criminosa. Isso aí nós nem
pensava que um dia fosse ocupada. Então começou-se
tornar periferia. Quando acabou os terrenos oficiais
começou a ocupação das áreas verdes, as áreas baixas,
esse lado da galeria passou a ser ocupada (Mário
Brito, entrevista concedida em 20/03/2006).

As casas que foram construídas pela Companhia Estadual de


Habitação (COHAB) e as áreas reservadas às empresas que não foram
vendidas passaram a ser ocupadas por especuladores imobiliários e por
famílias migrantes. Em 1988, a Nova Marabá já contava com 38.853
habitantes. A sua população somada à da Cidade Nova, nesse ano, chegava
a ser 74.774 habitantes, ou seja, 82,8% da população da sede municipal
(OASPUC, 1988).
A perda de controle da administração pública sobre a organização
física e a alienação dos lotes possibilitaram a especulação quase que
generalizada de lotes, algo que já vinha acontecendo desde o início da
implantação do projeto. Algumas pessoas passaram a titular grandes áreas,
inclusive no centro do núcleo e aguardavam valorização imobiliária. Ainda 65
hoje é possível ver essa realidade. Diversos são os lotes vagos com títulos
definitivos. Aos poucos vão sendo negociados.
Já o bairro São Felix, por algum tempo, foi abrigo para diversos
moradores da Marabá Pioneira prejudicados pelas enchentes do rio
Tocantins. Em 1965 contava com apenas três casas, em 1970, com 297:
uma população de 1.461 habitantes (VELHO, 1972). Com a construção
da PA-70 (hoje BR-222), núcleo que quase desapareceu, com a decadência
do garimpo de diamante e da exploração da castanha7, voltou a crescer. A
travessia sobre o rio Tocantins, na época realizada por meio de barcos e
de balsas, possibilitou o reaparecimento de um pequeno núcleo comercial

7 Sobre a exploração de diamante e castanha-do-pará em Marabá cf. Prefeitura Municipal


de Marabá (1984), Mattos (1996), Petit (2003) e Opinião (05 e 06/04/2006:13).
nessa localidade. O pernoite quase que obrigatório de passageiros e de
veículos, que chegavam após a suspensão diária das travessias, fez com que
surgisse, embora de modo precário, pensões, dormitórios, farmácias, bares
e um pequeno comércio de alimentação (GALVÃO, 2002). Era comum
a movimentação de viajantes nas toscas bancas de madeira de venda de
café, peixe frito e bolo de macaxeira enquanto os barcos esperavam para a
travessia dos transeuntes. Eram ali que as lavadeiras lavavam as roupas nas
águas límpidas do rio. A sua população, em 1988, era de 4.127 habitantes
(OASPUC, 1988).
Com a construção da ponte rodoferroviária sobre o rio Tocantins,
embora tenha decaído o número populacional,8 o bairro passou a ser
também alternativa para diversos moradores acossados pelas enchentes
dos rios Itacaiúnas e Tocantins e para migrantes, sobretudo do Maranhão.
Assim, algumas áreas próximas ao antigo núcleo passaram a ser ocupadas.
Foi assim que surgiu os São Felix II e III. Em fevereiro de 2006, a sua
população somada à de Morada Nova (antigo Km 12) e Vila Murumuru,
segundo informações divulgadas pelo Jornal Opinião passava de 42.000
habitantes (OPINIÃO, 21 e 22/04/2006:5).
Quer dizer, as transformações espaciais, demográficas e culturais
66 mais recentes da cidade de Marabá estão relacionadas diretamente aos
processos migratórios dos finais da década de 1960 e início da década de
19709, em razão da colonização das margens da rodovia Transamazônica,
da construção da Hidrelétrica de Tucuruí e, mais tarde, da exploração de
ouro de Serra Pelada e as atividades de mineração de Carajás e aos projetos
a ela associados. E talvez mais acentuadamente do que em outras cidades

8 É importante notar que com o término da construção da ponte rodoferroviária, um


número considerável de operários, pequenos comerciantes, barqueiros e carregadores
migraram do núcleo São Felix.
9 É importante mencionar que a migração já ocorria em virtude das políticas oficiais
voltadas para a região por meio de planejamentos quinquenais da Superintendência do
Plano de Valorização Econômica da Amazônia – SPVEA (1953), da implantação dos eixos
rodoviários, como Belém-Brasília e PA-70 (BR-222), dos planos regionais com incentivos
fiscais oportunizados pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM
(1966) entre outros.
da Amazônia, a infraestrutura urbana não conseguiu acompanhar o ritmo
de crescimento da cidade (MONTEIRO et. al, 1997). Vejamos a expansão
demográfica de alguns bairros da cidade no quadro abaixo:
Número de residências e habitantes por núcleos urbanos - 1988 a 2000

Núcleos Número de residências Número de habitantes


1988 1995 2000 1988 1995 2000
Marabá Pioneira 2.232 2.461 2.613 11.352 11.075 15.020
Cidade Nova 6.960 9.174 12.007 35.921 41.283 55.232
Nova Marabá 7.473 9.819 11.261 38.853 44.181 51.801
São Felix 864 1.320 1.819 4.127 5.940 8.367
Total 17.529 22.774 27.700 90.253 102.479 130.420
Fonte: OASPUC (1988, vol.1); OLIVEIRA (2004:33).

Por conseguinte, podemos afirmar que Marabá é uma cidade


policêntrica. Em cada núcleo tem um centro comercial mais ou menos
dinâmico: casas comerciais, bancos, escritórios de órgãos governamentais,
de advogados, de assessorias diversas, de Organizações Não-
Governamentais, hotéis etc. O processo de verticalização não é um fator
isolado, vem acontecendo paulatinamente. A cada dia vê-se surgir prédios, 67
escritórios, lojas e hotéis. Segundo Castro (1992), há um deslocamento de
bairro para bairro dentro da cidade. “O processo mais comum”, afirma ela,
“é a mudança por populações de baixa renda, de bairros mais próximos
ao centro da cidade em direção à periferia. Isso em geral ocorre à medida
que os bairros centrais onde moravam, vão sofrendo uma melhoria e sobre
eles incide a especulação imobiliária” (p.171). É um processo que fecha a
possibilidade das populações de baixa renda morar no centro da cidade.
Já para as pessoas mais abastadas, conforme Lefebvre (1969), “conservam
fortes posições no coração da cidade” (p.16). As populações mais pobres se
veem obrigadas a vender as suas casas e migrarem para os bairros periféricos.
Primeiro, porque são pressionadas pela modificação espacial. As taxas
habitacionais são mais elevadas, além de se sentirem constrangidas com
suas casas humildes em meios aos prédios e automóveis de luxo. Segundo,
porque é uma forma de aplicarem dinheiro, depois de comprar uma
casa com um valor mais baixo em outro local, em necessidades, às vezes,
imediatas, como o casamento ou formatura de uma filha, o tratamento
médico, a aquisição de um imóvel para aluguel, aquisição de um carro ou
moto usada ou mesmo montar um pequeno comércio.10
Assim, não muito distante dos centros, estendendo-se a partir
destes, estão os bairros periféricos que aumentam a cada dia com o
processo migratório, sobretudo, devido a implantação de projetos na área
de extração e beneficiamento de minérios, fabricação de carvão e corrida
pela posse da terra em áreas rurais de Marabá e região. A possibilidade de
“arrumar a vida” nessas paragens estimula milhares de famílias a pegarem
o trem e descer na cidade de Marabá. Segundo Mario Brito, ex-presidente
da Associação de Moradores da Nova Marabá, a cidade de

Marabá recebe uma migração muito grande devido


os vários projetos que tem na região, isso é um
... vamos dizer assim, esse trem chega e derrama
gente diariamente aqui em Marabá. A notícia do
68 crescimento de Marabá com essas indústrias está
indo longe, as siderúrgicas e muito mais. Antes você
conhecia pessoa por pessoa, hoje você sobe e desce
rua e não conhece ninguém, é muita gente de fora
(Mário Brito, entrevista concedida em 20/03/2006).

A busca por melhores condições de vida faz com que muitas pessoas
cheguem, estabeleçam as suas famílias e não voltem mais. “Eu vim tentar
a vida. No Maranhão já não dá mais. Aqui pelo menos, por enquanto, está

10 Muitos chefes de família adquirem uma moto e passam a trabalhar na cidade como moto-
taxista. É um trabalho autônomo que possibilita, minimamente, prover a casa. Fala-se que
existem em Marabá mais de 5.000 moto-taxistas. Outros com o dinheiro acabam montam
um bar, uma quitanda ou mercearia na frente de sua casa ou revendem, ambulantemente,
roupas, calçados, redes ou perfumes.
dando para dar de comer pros meninos. Por enquanto não quero voltar
não”, conta um morador do bairro Novo Planalto onde a maioria das casas
é de madeira e de telha de amianto e não tem água encanada, esgoto e
coleta de lixo. É uma situação precária, mas realidade de quase todos os
bairros da cidade. As fossas são as chamadas “fossas perdidas” ou “secas”
construídas no fundo do quintal. Como não tem água encanada, a maioria
da população se serve de poços rasos, cavados, às vezes, ao lado das fossas,
possibilitando, dessa forma, a contração de diversas doenças uma vez que
essas águas estão contaminadas pelos dejetos fecais. Como não tem esgoto,
as águas servidas são dispostas sobre o solo. Assim, a população mais
pobre desses bairros vive com o fenômeno do reuso da água, sofrendo
riscos constantes de contaminação. Com relação ao abastecimento de água
no bairro Liberdade afirma o Sr. Joaquim Jovito de Souza:

Aqui no Liberdade não tem água encanada. É poço,


mas nem todo mundo tem e nem toda água presta
para o consumo em geral porque tem uma caparosa.
É uma nata que tem assim por cima da água. Aí não
presta para o consumo. Muitas pessoas pegam do
vizinho. Aqui mesmo nós somos quatro famílias que 69
pegam água de meu poço. Aqui por perto tem poço,
mas a maioria não presta. O meu graças a Deus é bom
(Entrevista concedida em 22/03/06).

Os serviços públicos como limpeza e coleta de lixo são quase


inexistentes, sendo efetivados nas vias centrais onde há casas comerciais,
como lojas de confecções e tecidos, móveis e eletrodomésticos,
supermercados e linha de ônibus coletivo, entre outros. Nos outros
espaços esses serviços praticamente não existem. Há ruas que, no período
de inverno, são quase que intrafegáveis. As reivindicações dos moradores
parecem não fazer muito efeito. “O pessoal lá da prefeitura” desabafa uma
moradora da Nova Marabá, “até mesmo o prefeito, fala que não tem verba,
que a gente tem que ir se virando”. O sistema de abastecimento de água
nesse núcleo, diferentemente de bairros do Núcleo Cidade Nova, é feito
precariamente pela Companhia de Saneamento do Pará (COSANPA). Além
das constantes interrupções, devido, às vezes, a defeitos nos equipamentos
ou na encanação, a água não consegue subir para os depósitos. Grande
parte da população tem que dispor de caixas d’água no solo e conviver
com o racionamento obrigatório. “Mesmo no tempo chuvoso nós temos
problema com água que falta dois, três, cinco, oito dias. Quando vem, a cor
é de suco de maracujá. Na minha opinião não tem tratamento de água não”
sintetiza Antônia Bezerra liderança de bairro, da Nova Marabá (Entrevista
concedida em 24/03/2006).
Como se não bastassem estes problemas, é também a precariedade
da sinalização de trânsito e a falta de acostamento que provocam
engarrafamentos e os constantes acidentes, às vezes, com mortes. Marabá é
uma cidade que tem pouco espaço para o trânsito de pedestres e nenhum
para ciclistas. Incessantemente acontecem acidentes envolvendo, às vezes
com óbitos, automóveis e ciclistas. Estes são, em maioria, moradores dos
bairros periféricos que trabalham em serviços diversos como pedreiros,
serventes de pedreiros, garçons, vendedores de jornais, mecânicos, oleiros
70 etc. que não podem pagar o transporte coletivo.
Em São Felix a situação não é diferente dos outros bairros. Não
existe rede coletora de esgoto sanitário e as águas de banhos e de lavagem
de louças ou roupas são lançadas e infiltradas no solo dos quintais das
casas. Não há, como nos outros bairros, abastecimento de água potável,
fazendo com que a população se abasteça por meio de poços rasos.
Na Velha Marabá há água encanada e as águas servidas são
encaminhadas para valas e para a rede de esgotos pluviais, contudo, as
fossas são do tipo “perdida” as quais consistem basicamente de tanques
sépticos sem laje do fundo ou com paredes vazadas.
Assim, doenças como diarreia, gripe, coceiras, anemia e desnutrição
são quase que comuns em grande parte dos bairros da cidade de Marabá
onde está a maioria da população mais pobre. Silva (2001), em sua pesquisa
sobre infecções respiratórias agudas no bairro Laranjeiras, constatou que
60% das 20 famílias que pesquisou ganhavam até dois salários mínimos,
10% eram analfabetas e 70% oscilavam entre a primeira e a oitava séries
do ensino fundamental. Ou seja, os problemas relacionados às doenças
e às más condições de moradia, são, geralmente, encontrados entre os
moradores de bairros onde as suas situações econômicas e os níveis de
escolaridades são muito baixos e os serviços públicos mais elementares são
escassos.
Situação parecida foi constatada pela OASPUC, em 1988. Embora
houvesse uma certa heterogeneidade em todos os bairros, em alguns a
renda familiar se apresentava como muito baixa, como no Cabelo Seco,
Santa Rosa e Canela Fina, na Marabá Pioneira; Liberdade e Independência,
no Núcleo Cidade Nova e em diversas partes do Núcleo Nova Marabá. Nos
bairros Liberdade e Independência, segundo a OASPUC (1988), 40,9% dos
domicílios estavam situados na faixa de renda baixa, isto é, domicílios sem
rendimentos ou de até dois salários mensais. Já no aglomerado São Felix esse
percentual era de 75,8% (OASPUC, 1988). Em 2001, segundo informações
fornecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
62.957 habitantes da cidade de Marabá, isto é, 37,47%, do total 168.02011
do município, com 10 anos ou mais de idade, faziam parte da categoria 71
“sem rendimento”; 24.589 (14,63%) possuíam rendimento nominal de até
um salário mínimo; e apenas 16.440 (9,78%) ganhavam entre um e dois
salários mínimos. Somente 939 habitantes (0,55%) possuíam rendimento
nominal de mais 20 salários mínimos. Segundo ainda este instituto, 18.184
(10,82%) habitantes perfaziam a categoria “sem instrução e menos de um
ano de estudo” e 70.822 (42,15%) possuíam de um a sete anos de estudos.
Apenas 1.716 (1,02%) tinham quinze ou mais anos de estudos.
Se somarmos o número de habitantes das categorias denominadas
de “sem instrução e menos de um ano de estudo” com os que possuíam
apenas entre um e sete anos de estudo (89.006), podemos perceber que
mais da metade da população do município de Marabá, isto é, 52,97%,

11 134.373 habitantes na área urbana e 33.647 na área rural (IBGE, 2001).


possuía, nesse período, nível de instrução muito baixa, ou seja, não tinham
nem o ensino fundamental completo. Vamos perceber também que uma
parcela relativamente grande dessa população vivia sem rendimento e com
renda nominal mensal muito baixa.
Essa situação talvez possa explicar porque grande parte da
população dos bairros de Marabá não tem profissão definida e é submetida
à mobilidade constante, ganhando a vida em serviços diversos, sendo
famílias de sem-terra, moradores que buscam trabalho na construção
civil, como pedreiro ou como servente de pedreiro ou são carroceiros,
trabalhadores do comércio, das siderúrgicas, das serrarias, das olarias,
da prefeitura ou são assalariados rurais temporários nas fazendas e nas
carvoarias da região. Para Maria de Jesus, da Pastoral da Criança, da Diocese
de Marabá (Entrevista concedida em 23/04/2006), uma das dificuldades
que a Pastoral da Criança enfrenta na cidade de Marabá é a mobilidade
muito grande das famílias que moram, principalmente, nos bairros
periféricos. Segundo ela, muitas lideranças que passaram pelo processo de
capacitação da pastoral e que já estavam dando excelentes contribuições na
formação de outras líderes são obrigadas a deixar a pastoral em busca do
trabalho. São famílias, a maioria migrantes do Maranhão, que são forçadas
72 a “se virar” com trabalhos incertos, temporários e de remuneração baixa.
À medida que a cidade cresce, a relação “urbanidade-ruralidade”
não desaparece, ao contrário, parece acentuar. Se considerarmos as análises
de Lefebvre (1969), podemos perceber que em Marabá parece persistir
“entre as malhas do tecido urbano ilhotas e ilhas de ruralidade ‘pura’, torrões
natais frequentemente pobres, povoados por camponeses” (p.17). Muitos
moradores são aqueles que vivem do cultivo de hortaliças nos fundos dos
quintais ou nos terrenos baldios ou são pequenos agricultores assentados
da reforma agrária, trabalhadores rurais temporários nas fazendas e
carvoarias da região ou são trabalhadores rurais sem-terra.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) recebe diariamente
trabalhadores rurais fugitivos de fazendas e de carvoarias da região, muitos
deles moradores dos bairros periféricos, que denunciam a situação de trabalho
análoga à escravidão.12 Por outro lado, formam-se na cidade aglomerados
de famílias de sem-terra constituídos de desempregados e trabalhadores
rurais migrantes que lutam pela posse da terra em áreas rurais. Atualmente o
Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Marabá tem aproximadamente
700 famílias de trabalhadores rurais sem-terra pleiteando assentamentos da
reforma agrária pelo INCRA13. Diversos camponeses, assentados da reforma
agrária, possuem moradias na cidade: porque as suas terras são próximas;
porque ali se estabelecem temporariamente (na entressafra); ou porque
fixam moradia em razão dos estudos de seus filhos.
Assim, embora a cidade de Marabá seja uma sede regional e
abrigue sede de diversas instituições públicas e privadas, tanto no plano
administrativo, comercial, industrial, financeiro, etc., quanto político
e religioso, não podemos nos furtar diante do cinturão de pobreza a ela
delegado. Com razão escreveu Hebette (2004:68/69, Vol. IV):

Marabá abandonou em poucos anos os ares de grande


povoado da frente pioneira, como seu comércio
totalmente orientado para as fazendas de gado e os
garimpos, para se tornar uma pequena cidade voltada
para sua própria classe média de comerciantes, de 73
pequenos empresários, de assalariados, uma cidade
de fato bastante indiferente a seu imponente cinturão
de pobreza (...) todo o aparelho administrativo
e econômico deste “lugar central” que é Marabá
contribui muito pouco para o desenvolvimento do
mundo rural que o cerca.
12Normalmente estes trabalhadores rurais, que moram nos bairros mais afastados,
trabalham nas grandes fazendas fazendo roço de juquira, cerca de arame ou jogando veneno
nas pastagens ou trabalham na fabricação de carvão vegetal, nas carvoarias da região, que
alimentam as siderúrgicas de ferro-gusa, em Marabá.
13 São, atualmente, cinco acampamentos de famílias de trabalhadores rurais sem-terra
ligados ao STR de Marabá: Balão II (Fazenda Cigana), Lagedo (Fazenda Castanhal Lagedo),
Cristo Rei (Fazenda Tibiriçá), Zumbi dos Palmares (Fazenda Cabo de Aço) e Nossa Senhora
Aparecida (Fazenda Itacaiúnas).
Considerações finais

Como procurei analisar, há uma cidade invisível em Marabá


formada, sobretudo, pelos bairros – heterogêneos – de casas, às vezes
precárias, sem água encanada e esgoto, onde mora grande parte dos
trabalhadores pobres, migrantes, homens e mulheres sem profissão, de
mão-de-obra polivalente, de vida itinerante, às vezes complexas, marcada
pela provisoriedade e mobilidade. Até parece que estamos, não de outro
modo, diante de uma sociedade desenraizada, dilacerada, excluída, que aos
poucos se inclui, mas de outro modo, desumana, difícil, instável e marginal.
Uma humanidade incorporada através do trabalho precário, do pequeno
comércio, do setor de serviços mal pagos ou, até mesmo, escusos, etc. É
uma cidade composta também por centenas de moradores que vivem do
cultivo de hortaliças e legumes nos fundos dos quintais e/ou nos terrenos
baldios e comercializam de casa em casa ou nas feiras livres.
Ainda como parte desse processo, estão os camponeses que moram,
mesmo que transitoriamente na cidade. São as famílias de sem-terra, alguns
assentados da reforma agrária, assalariados rurais temporários de grandes
fazendas agropecuárias e de carvoarias que, entre uma e outra atividade,
74 consegue um “bico”, como a limpa de um quintal alheio ou se fichando
como servente de pedreiro na construção civil ou como carregador de
mercadorias.
É uma cidade que imprime, como porção da luta pela vida, a luta
pela posse da terra, moradia, água, luz, rede de esgoto, limpeza de ruas,
coleta de lixo, abertura e asfaltamento de ruas, entre outros. São formas
de resistência e estratégias de sobrevivência desses grupos sociais. Práticas
cotidianas de homens e mulheres que intervém e constituem a paisagem
urbana e cultural da cidade de Marabá.
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77
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78
México e Brasil nos relatos de um exilado político
(1969-1979)1
Pablo F. de A. Porfírio

Em 1969, Francisco Julião publicou seus primeiros artigos na revista


mexicana Siempre!. A partir de 1972, passou a escrever textos semanais. Até
1979 foram cerca de 250, que circularam na Siempre! em uma coluna que por
vezes trazia o título de América Latina, hoy. Nas quintas-feiras, a revista era
posta nas ruas e consumida por um público cativo de intelectuais, artistas,
estudantes e pessoas interessadas em ler, principalmente, as opiniões do
time de colunistas sobre a política no México e na Latinoamérica.
José Pagés Llergo, amigo de Francisco Julião e do presidente do
Chile, Salvador Allende, era o diretor da revista. Ele tinha uma relação de
amizade também com Luis Echeverría, presidente do México entre 1970 e
1976, a quem chamara de “Querido Luis” em uma carta2. Existia um bom
convívio entre o presidente e a publicação, na qual circulavam alguns textos
favoráveis ao governo.
Essa condição de proximidade não anulava totalmente uma atitude
crítica e de independência por parte da direção. Em 1976, quando Julio 79
Scherer foi golpeado pela repressão governamental e expulso com sua equipe
da redação do jornal Excélsior, Pagés Llergo o ajudou, disponibilizando as
páginas de sua revista e sua maquinaria. Nas oficinas de Siempre! nasceu a
primeira publicação de Proceso3, novo empreendimento de Scherer.
José Pagés Llergo adotava uma posição de cautela. Apesar da
liberdade que os articulistas tinham para suas publicações, havia limites
bem estabelecidos pelo diretor, que costumava fazer o seguinte alerta:

1 Esse artigo foi apresentado no XII Encontro Nacional de História Oral, realizado em maio
de 2014 na Universidade Federal do Piauí.
2Carta reproduzida em MUNGUÍA, Jacinto Rodríguez. La otra guerra secreta: los archivos
prohibidos de la prensa y el poder. Debolsillo: México, 2010. p. 230
3Proceso é atualmente a principal revista semanal de oposição aos governos do Partido
Acción Nacional – PAN e do Partido Revolucionário Institucional – PRI.
“Recordem que há três tabus: o Presidente da República, o exército mexicano
e a Virgem de Guadalupe. Anotem isso e vamos seguir tranquilos”4.
Francisco Julião chegou ao México no último dia do ano de 1965,
como exilado político da ditadura brasileira iniciada no ano anterior. Passou
a ser mais conhecido no México pela publicação dos seus artigos durante
quase toda a década de 1970. Rodrigo Moya, fotógrafo que trabalhou para
a Revista Siempre! nos anos 1960 e cobriu com o jornalista Luis Suárez a
invasão das tropas dos Estados Unidos à cidade de Santo Domingo em
19655, recorda que o exilado brasileiro era uma leitura obrigatória para as
esquerdas do México naqueles anos6. Moya não conheceu pessoalmente a
Julião, mas Luis Suárez, editor da Siempre!, viajou ao Brasil em 1962 e visitou
a Associação de Imprensa de Pernambuco, em Recife, onde estabeleceu
contato com o então deputado socialista e advogado dos camponeses7, de
quem se tornou amigo nos anos do exílio. O fotógrafo, que ainda esteve
com o jornalista Mario Menéndez na Venezuela e na Guatemala, em 1966,
registrando parte do seu cotidiano e das ações da guerrilha8, ainda lembra
de Francisco Julião como um respeitado líder de esquerda da América
Latina9.
Quando lia os artigos semanais do brasileiro, Rodrigo Moya
80 encontrava várias análises sobre os processos considerados revolucionários
na América Latina, alguns dos quais registrados pelo fotógrafo10. Na

4MUNGUÍA, Jacinto Rodríguez. La outra guerra secreta: los archivos prohibidos de la


prensa y el poder. Op. Cit. p. 232
5CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. Rodrigo Moya: una mirada documental. Ediciones
El Milagro: México, 2011. p. 121-125. Além da Siempre!, também foram publicadas algumas
das fotografias de Rodrigo Moya em reportagens da Revista Sucesos.
6 Conversa com Rodrigo Moya em Cuernavaca, México, 02 jun. 2012.
7 A informação sobre a visita está em CASTELLANOS, Diana G. Hidalgo. Um olhar na vida
de exílio de Francisco Julião. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. p. 65.
8CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. Rodrigo Moya: una mirada documental. Op. Cit. p.
125-153. As reportagens sobre essas guerrilhas circularam nas páginas da Revista Sucesos.
9 Conversa com Rodrigo Moya em Cuernavaca, México, 02 jun. 2012.
10 Em 1964, Rodrigo Moya passou um mês em Cuba fotografando diversos aspectos da
Revolução.
quinta-feira, 20 de junho de 1973, a Siempre! publicava a seguinte análise
do exilado político:
[…] Enquanto a sombra de Che caminha pelos
Andes como a de Bolívar, Fidel retorna ao continente,
mais seguro de si mesmo, para aprender com Chile
e com Peru, segundo ele mesmo confessa, com a
humildade de um verdadeiro líder, que uma revolução
nacionalista, popular e democrática, tanto pode sair
da boca de um fuzil, como na Sierra Maestra ou das
entranhas de uma urna, quando se trata do Chile
[…]11.

Francisco Julião, em alguns dos seus discursos antes de 1964, no


Brasil, afirmava não acreditar nas urnas como um meio para a redenção do
povo e a revolução, apesar de ter sido eleito em todos os pleitos nos quais
foi candidato entre 1954 e 1962. Na década de 1970, ampliou o seu leque
conceitual sobre a revolução. Agora, ela poderia ser realizada por meio das
urnas, além do já conhecido uso das armas. O que importava era que se
apresentasse como um movimento nacionalista, popular e democrático,
como dizia ocorrer no México. 81
Deve-se atentar para a seleção produzida pelo articulista nesse
pequeno trecho. Referia-se a três países latino-americanos, sendo dois da
América do Sul e um desses – Chile – considerado fiel parceiro político do
governo de Luís Echeverría. Cita Fidel Castro, “um verdadeiro líder”, com
quem o presidente mexicano havia produzido uma visível reaproximação12,
além dos nomes de lideranças políticas classificadas como mártires
revolucionários, “Che e Bolívar”.
Os temas presentes nesse texto, como em outros durante a década
de 1970, dialogavam com as ideias desenvolvidas e defendidas pelo governo
11 Revista Siempre! 20 de junho de 1973. p. 31. Hemeroteca Nacional, UNAM, D.F., México.
12 A revista Siempre! publicava algumas fotografias onde apareciam Fidel Castro e Luis
Echeverría em ações informais, como passeios de barco e pesca. Desejava-se publicitar o
laço de amizade entre os dois.
de Luís Echeverría tanto para a política interna, quanto para a externa.
Os escritos de Francisco Julião na Siempre! estariam dentro da ordem de
discursos e práticas implantada no México, que se desejava apresentar como
revolucionário. Ademais, a imagem de um líder de esquerda da América
Latina, como lembrava Rodrigo Moya, poderia contribuir na produção
desse efeito.
Por esse caminho o exilado transitou e obteve reconhecimento
político e intelectual. Viajou ao Chile, Portugal e Argélia. Neste último foi
recebido como o representante do Comité de Solidaridad Latinoamericano13,
integrado, entre outros, por Pablo González Casanova - reitor da UNAM
- Mário Guzmán - jornalista do jornal El Día - e Gabriel Garcia Márquez,
com quem viajou a Cuba, em janeiro de 1979, convidados por Fidel Castro,
para participarem das comemorações do XX aniversário da revolução. Esta
foi a única visita de Julião a Ilha em todo o período do exílio14.
Em 1978, junto com o ex-governador do Rio Grande do Sul,
Leonel Brizola, foi convidado pela direção do PRI para participar das
comemorações do cinquentenário do partido, na cidade de Querétaro15.
O trânsito de Francisco Julião por setores da elite intelectual e política do
México ajudava-o a compreender as regras daquela sociedade e, ao mesmo
82 tempo, possibilitava-lhe produzir uma inserção social para si.
Em julho de 1973, um grupo representativo dessa elite encontrava-
se na casa de José Pagés Llergo. Estava ocorrendo um café da manhã, com
enchiladas e tamales,16 comemorativo dos 20 anos de fundação da Revista
Siempre! e se fizeram presentes jornalistas, o Arcebispo de Cuernavaca e o
presidente Luis Echeverría.

13 Francisco Julião representou o Comitê de Solidariedade na Conferência Internacional


sobre o Imperialismo Cultural. Revista Siempre!, 16 de novembro de 1977. p. 46. Biblioteca
Rubén Bonifaz, UNAM, D.F., México.
14 O relato dessa viagem a Cuba está no artigo Passaporte a Cuba: un breve viaje a la
esperanza. Revista Siempre! 31 de janeiro de 1979. p. 42-43. Biblioteca Rubén Bonifaz,
UNAM, D.F., México.
15 Divisão de Segurança e Informação – Ministério da Justiça / DSI-MJ. Caixa 3413. Doc. n°
100562 de 08 maio 1979. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
16 Comidas tradicionais mexicanas.
2 3
83
1

Fig. 01 –Desayuno (café da manhã) em comemoração aos 20 anos de fundação da Revista


Siempre!. 18 jul. 1973. 1 – José Pagés Llergo; 2 – Alberto Domingos; 3 – Francisco Julião;
4 – Luis Suárez; 5 – Presidente Luis Echeverría
2
1
3
84

Fig. 02 –Desayuno em comemoração aos 20 anos de fundação da Revista Siempre!. 18 jul.


1973. 1 – Francisco Julião; 2 – Don Sérgio Méndez Arceo; 3 – Presidente Luis Echeverría
Das fotografias e seus usos podem ser destacadas duas
intencionalidades. Uma referia-se à representação de um Presidente
democrático, que oferecia a possibilidade de um diálogo direto e franco com
a imprensa. Assim pontuava a reportagem de Carlo Cacciolo, participante
do encontro, cujo título era: “Presença da grandeza em um encontro:
Echeverría – Siempre!. O mais alto nível de simplicidade, franqueza e
respeito”. O jornalista destacava a impressionante fala natural, limpa e sem
enganações do Presidente17.
Ainda no decorrer do texto, Cacciolo contava que havia sido
questionado por José Pagés Llergo sobre o que escreveria para a matéria,
respondendo-lhe: “ao observar de perto a Luis Echeverría um tem desejos
de proclamar sem pudor que, apesar da amplitude dramática, e talvez sem
remédio, dos problemas que lhe e nos acossam é uma charmosa aventura
viver no país por ele governado”18. Havia uma aclamação ao líder.
A outra intencionalidade, presente nas legendas das imagens, seria
a de produzir a ideia de união, como peça chave para enfrentar os problemas
do país e conduzi-lo adiante. Nesse sentido, haveria três personagens de
destaque, que ocupariam o centro das fotografias e da narrativa que lhe
conferem sentido: Luis Echeverría, presidente, José Pagés Llergo, jornalista,
e Don Sérgio Méndez Arceo, Arcebispo de Cuernavaca. O Estado, a Igreja 85
Católica e a imprensa estavam harmoniosamente no mesmo quadro
fotográfico e político.
No mesmo dia em que circulou a matéria com as fotos do desayuno
comemorativo foi publicado um artigo de Francisco Julião, cujo título
era: “México e Brasil, as linhas divergentes: o enorme abismo que separa a
liberdade da escravidão”. O texto apresentava uma integração com alguns
dos elementos editoriais elencados no já referido artigo de Carlo Caciollo.
Dizia em um dos trechos:

17 Revista Siempre!, 18 de julho de 1973. p. 10. Biblioteca Rubén Bonifaz, UNAM, D.F.,
México.
18 Revista Siempre!, 18 de julho de 1973. p. 85. Op. Cit.
Essa abertura para fora [do México] perderia
seu sentido, sua efetividade, seu realismo, se não
encontrasse seu equivalente dentro das fronteiras
geográficas, políticas, ideológicas do país. Aqueles que
negam, de pés juntos, a existência de uma abertura
interna, cometem, a nosso ver, um erro que somente o
sectarismo pode explicar. […] Pois bem, no momento
em que México se abre em busca de novos horizontes
e se incorpora aos governos que na América Latina já
sustentam, abertamente, o firme propósito de resistir
às agressões imperialistas, Brasil se instrumentaliza
para marchar em sentido oposto. Na sua viagem de
retorno, a ditadura militar abastece os tanques com
as sobras da desnacionalização acelerada e com esses
mesmos tanques esmaga as liberdades. […] Enquanto
México dialoga, Brasil monologa. Assim, entre México
e Brasil as linhas divergentes são bem nítidas19.

As diferenças entre o Brasil ditatorial e o México democrático


86 estavam demarcadas no texto e Francisco Julião teria autoridade para falar
sobre isso. Foi obrigado a sair do seu país, após passar mais de um ano
preso, por questões políticas, pelo governo militar. Recebido pelo México,
apresentava-se com liberdade de escrever e publicar as suas ideias. Esse
era um enunciado possível e necessário. As advertências da Secretaria
de Gobernación e as perseguições da Dirección Federal de Seguridad não
deveriam ser lembradas.
O artigo informava aquilo que deveria ser identificado nas fotografias
do café da manhã comemorativo: “México dialoga”, era uma democracia.
Existia “abertura” para isso. Quando se produziu este enunciado, estava-se
afirmando que Luis Echeverría dialogava. Essa personificação era reforçada
nas imagens publicadas na parte superior das duas páginas ocupadas pelo

19 Revista Siempre!, 18 de julho de 1973. p. 31. Op. Cit.


texto, onde aparece de um lado a foto do presidente do México e do outro,
o seu oposto, Emílio Garrastazu Médici, ditador do Brasil.
Não se pode afirmar sobre o nível de proximidade entre Francisco
Julião e Luis Echeverría. Na entrevista publicada pelo jornal O Pasquim,
em 1979, há um breve comentário sobre a ligação entre o exilado e os
filhos do presidente. Mais uma vez não se pode precisar qual a intensidade
desse contato, nem se ele já existia em 1973, nas comemorações do XX
aniversário de Siempre!20.
De volta ao artigo, pode-se ainda identificar que Julião criticava o
governo ditatorial do Brasil por promover uma desnacionalização e esmagar
as liberdades. Se na lógica proposta para o texto os dois países em questão
seguiam caminhos opostos, a denúncia sobre o Brasil reforçava a produção
da legitimidade democrática para o México, que seria nacionalista e livre.
Essa edição festiva da Revista dá forma então a um discurso
visual , constituído pelas fotografias e pela estratégia narrativa, as quais
21

informavam ao leitor a ideia de liberdade, do respeito às instituições, da


democracia e dos seus praticantes.
Dentre as três personalidades consideradas centrais, falta apresentar
Sérgio Méndez Arceo, arcebispo de Cuernavaca, que, assim como Pagés
Llergo, era um amigo em comum entre Francisco Julião e Salvador Allende. 87
Desde o final dos anos 1950, o religioso já tinha iniciado mudanças litúrgicas
em sua diocese, que proporcionavam uma aproximação maior da Igreja
Católica com os movimentos seculares, como: Acción Católica Mexicana
(ACM) e o Secretariado Social Mexicano (SSM). Nos anos posteriores
percebeu-se um aprofundamento dessa prática, principalmente, com a
realização do Concílio Vaticano II, que direcionou setores da Igreja Católica
a debater e se fazer mais atuante em questões sociais e políticas. Ao final de
1965, “a Igreja mexicana não era nem a tradicionalista ultraconservadora
nem a reformista radical, ainda que alguns bispos se inclinassem por estas

20 Jornal O Pasquim. 19 de Janeiro, 1979. p. 15. Fundação Biblioteca Nacional.


21 CASTILLO TRONCOSO, Alberto del. Ensayo sobre el movimiento estudiantil de 1968: la
fotografía y la construcción de un imaginario. México: Instituto Mora: IISUE, 2012. p. 17.
tendências. […] A Igreja mexicana estava, em geral, mais aberta ao mundo
secular”22.
O Arcebispo de Cuernavaca, já na década de 1970, continuava
apoiando grupos seculares, inclusive os compostos por pessoas formadas
na Igreja Católica, mas que depois a deixaram, como Ivan Illich, diretor do
Centro Intercultural de Documentación - CIDOC, onde Julião ministrava
cursos e que se situava em Cuernavaca. Atuava “no limite da permissividade
do Vaticano”. Mesmo sem realizar uma crítica aberta à Igreja de Roma, por
meio de algumas de suas ações era possível identificar que o Arcebispo
estava em desacordo com várias normatizações oriundas das hierarquias
superiores23.
Sérgio Méndez Arceo comandava, na Catedral de Cuernavaca, uma
celebração dominical iniciada às 11 horas da manhã. Nas suas homilias, o
arcebispo frequentemente abordava questões políticas e sociais do México
e também da América Latina. Tratou, entre outros, da censura ao filme
Canoa, que relatava a prática criminosa do anticomunismo, da vitória e
depois da queda de Salvador Allende e do triunfo do sandinismo. Revistas
como Siempre! e Proceso, por vezes, reproduziam em suas páginas parte
dessas homilias, bem como realizavam e publicavam entrevistas com o
88 religioso. Luis Suarez, integrante da equipe de Pagés Llergo, foi um dos
jornalistas que o entrevistou várias vezes24.
Francisco Julião construiu uma relação de amizade com Sérgio
Méndez Arceo. Os dois se encontravam, conversavam e trocavam idéias
seja no CIDOC, seja depois das celebrações de domingo, nas quais o asilado
político sempre procurava estar presente. Em meados da década de 1970,
ele era visto em companhia de sua nova esposa, a mexicana Marta Rosas25.
22BLANCARTE, Roberto J. Religiosidad, creencias e Iglesia em la época de la transición
democrática. In: BIZBERG, Ilán & MEYER, Lorenzo (Org.). Uma história contemporânea de
México. Actores. Tomo 2. El Colégio de México. Ed. Oceno. 2005. p. 236.
23BLANCARTE, Roberto J. Religiosidad, creencias e Iglesia em la época de la transición
democrática. Op. Cit. p 239.
24VIDELA, Gabriela. Sergio Méndez Arcel, um Señor Obispo. Juan Pablo Editor: México,
2010. p. 107-112.
25 Essas informações estão presentes em alguns pequenos trechos das falas de Jean Robert,
É plausível que o contato profissional com a Revista Siempre!, que resultou
em anos de publicação, tenha sido proporcionado por Méndez Arceo, que
dispunha de acesso direto a seu diretor e a diversos dos seus jornalistas,
incluindo um dos principais, Luis Suárez, que, como me referi antes, havia
conhecido o exilado brasileiro ainda quando ele era o famoso dirigente das
Ligas Camponesas do Nordeste do Brasil, entre 1955 e 1964.
Ainda quero retomar as fotografias para uma última análise acerca
da presença do exilado. Ela indica que Francisco Julião havia atendido às
exigências do grupo político ali representado e possuía as qualificações
necessárias para integrá-lo. Foi aceito naquela ordem de práticas e discursos,
na qual se operava com signos e representações de esquerda e se produzia
uma legitimidade para o sistema político, que reprimia manifestações
estudantis e camponesas e, ao mesmo tempo, apresentava-se democrático e
apoiava governos proclamados revolucionários, como Chile e Cuba.
O articulista da coluna América Latina, hoy dominava os
enunciados que deveriam circular dentro do jogo político e social mexicano.
Usava da sua qualificação de líder de esquerda e a memória do ex-dirigente
de um movimento camponês no Brasil. Sua condição de exilado político
era utilizada para promover uma diferenciação entre Brasil e México,
situá-los em oposição, útil na tarefa de construção de uma legitimidade 89
revolucionária e democrática para os governos do PRI na década de 1970.
Entre os últimos meses de 1969 e o final do ano de 1970, a embaixada
do Brasil no México encaminhou interpelações à Secretaria de Relaciones
Exteriores. O objetivo era conseguir uma censura aos textos de Francisco

que entrevistei em Cuernavaca, agosto de 2010, e de Antólio Julião, filho de Francisco Julião,
entrevistado em Recife, no dia 23 de maio de 2011. Nas duas vezes que estive no México,
em agosto de 2010 e depois entre fevereiro e junho de 2012, quando realizei um doutorado
sanduíche, tentei contato com a última esposa de Francisco Julião, Marta Rosas, que teria
ficado com um acervo do marido composto por correspondências, fotos, escritos e outros.
Nesse material devem estar mais informações sobre as ações de Julião, principalmente
em Cuernavaca. Por meio de alguns padres que conhecem a Marta busquei marcar um
encontro com ela. Não foi possível. Ela afirmava que não aceitaria conversar, sequer por
telefone. Logo não tive acesso a documentos, caso existam, que ofereceriam elementos sobre
essa amizade entre Francisco Julião e Sérgio Méndez Arceo.
Julião, que começavam a circular na revista Siempre!. Houve reuniões e
trocas de ofícios sobre essa questão.
As petições referiam-se aos dois primeiros artigos divulgados no
periódico. Intitulados “Brasil vive a hora mais sombria de sua História e
As lições de um seqüestro: Brasil como ponto chave”, os textos produziam
duras críticas ao governo brasileiro. O primeiro, de 9 de julho de 1969,
ocupava quatro páginas inteiras e construía uma história da ditadura
militar iniciada em 1964, ressaltando a existência de um processo de
desnacionalização do país, promovido por uma política de entreguismo
aos Estados Unidos. Ademais, caracterizava o Exército como um partido
armado que havia tomado de assalto o poder e, por sua vez, as massas
sacrificadas sentiam a necessidade de buscar o caminho revolucionário
para acabar com a ditadura26.
Dias depois dessa publicação, o então embaixador do Brasil, Frank
Moscoso, se reuniu com o Diretor da Primeira Subsecretaria da Secretaria
de Relaciones Exteriores, Alfonso de Rosenzweig Díaz, e lhe expressou
todo o desagrado sentido ao ler aquele artigo. Considerou ser uma clara
incitação à violência, com o objetivo de derrotar pela força o governo do
Brasil. Mesmo reconhecendo a existência da liberdade de expressão para os
90 asilados políticos, alertou que caso Francisco Julião continuasse escrevendo
artigos dessa índole, atingir-se-ia a situação de propaganda sistemática27.
Frank Moscoso retornou ao Brasil dias depois dessa reunião. Em
seu lugar foi nomeado João Baptista Pinheiro. Entre a saída de um e a
chegada do outro, o embaixador Alfonso Rosenzweig Díaz recebeu, em 20
de agosto de 1969, o Encarregado de Negócios da embaixada do Brasil,
Gilberto Martins. Dessa vez, a reunião tratou das declarações de Francisco
Julião ao jornal Novedades, nas quais dizia estar “conspirando eternamente”
contra a ditadura militar brasileira. Mais uma vez foi reafirmada a liberdade

26 Revista Siempre! 09 de Julho de 1969. p. 32-33. Hemeroteca Nacional, UNAM, D.F.,


México.
27 Memoradum de conversación de 09 de julho de 1969. Pasta Asilo Político en la Embajada
de México em Brasil - III 5714-11. Arquivo Histórico Genaro Estrada – Secretaria de
Relaciones Exteriores - SRE. México, D.F.
de expressão garantida aos asilados políticos e as afirmações de Julião foram
classificadas pelo embaixador mexicano como “simples fanfarronadas”28.
Talvez Alfonso Rosenzweig não simpatizasse com o asilado político ou
arrumou uma expressão de efeito para desmobilizar mais uma petição do
Brasil em pouco mais de um mês.
Quando João Baptista Pinheiro foi entregar, em agosto de 1969,
suas cartas de apresentação ao chanceler mexicano Antonio Carrillo Flôres,
estava ciente desses problemas. Deveria tentar uma maior aproximação
diplomática e um maior controle sobre os exilados. Em grande parte, o
trabalho do novo embaixador foi bem sucedido. Afinal, ele conseguiu
administrar a questão dos presos políticos brasileiros, aceitos como asilados
no México, depois de libertados pelo governo militar em troca do final do
sequestro do diplomata norte-americano Charles Elbrick. Controlados
pelos órgãos de vigilância e segurança, eles ficaram impossibilitados de
qualquer tipo de articulação política, como desejava o governo do Brasil29.
Em relação a Francisco Julião, exilado desde 1965, o novo
embaixador agiu em outubro de 1969, em consequência da publicação
do seu segundo artigo na revista Siempre!. Referindo-se ao sequestro de
Charles Elbrick como um “ato revolucionário”, o articulista afirmou que
os militares foram surpreendidos, especialmente porque depois do AI-5 91
acreditaram ter o controle total do país. Sugere que esse episódio não
deveria ficar isolado e por isso os “patriotas” necessitavam ganhar apoio e
organização para dar continuidade à luta30.
João Baptista Pinheiro foi tratar do artigo com Alfonso Rosenzweig
Díaz, questionando-o acerca das medidas a serem adotadas, pois, no seu
entendimento, tratava-se de propaganda subversiva encaminhada para
derrotar o governo do Brasil. Após escutar atentamente, o embaixador
mexicano lamentou a situação envolvendo as duas nações amigas e retomou

28 Memoradum de conversación de 20 de agosto de 1969. Pasta Asilo Político en la Embajada


de México em Brasil - III 5714-11. Op. Cit.
29 Ofício Secreto nº 1.089 de 26 de dezembro de 1969. Op. Cit.
30 Revista Siempre! 22 de outubro de 1969. p. 26-27. Hemeroteca Nacional, UNAM, D.F.,
México.
o argumento da ampla liberdade de expressão existente no México. Ao
final, considerou que poderia ser o caso de os países envolvidos estarem
interpretando de maneira distinta a Convenção de Caracas, que dispunha
sobre direitos e deveres do exilados.
No segundo semestre de 1969, seguiu uma troca de informações
entre o governo do Brasil e sua embaixada no México. Havia praticamente
um consenso de que Francisco Julião estaria promovendo atividades
conspiratórias, fomentando a subversão da ordem não só no Brasil, mas
também na América Latina e assim realizando uma flagrante violação do
direito de asilo31.
Parecia não se entender a posição do governo do México, que,
segundo a embaixada do Brasil, havia cooperado no caso do recebimento e
da vigilância aos presos políticos, mas resistia em adotar qualquer atitude
restritiva em relação a Francisco Julião.
Mas, o próprio João Baptista Pinheiro, em telegrama “confidencial-
urgente” enviado ao Brasil, datado de 24 de outubro de 1969, no qual
resumiu e analisou a última conversa com Rosenzweig Díaz, ofereceu
indícios para a resolução dessa questão: ponderou que o México permitia
“manifestações públicas de nítido cunho esquerdista […] como maneira de
92 comprovar sua imparcialidade e não sufocar, inteiramente, a pregação das
correntes esquerdistas mexicanas, o que, se ocorresse, lhe causaria sérios
problemas e reduziria a sua área de ação para manter a estabilidade interna
do país”32.
No decorrer dos anos 1970, os documentos com interpelações do
governo do Brasil deixaram de existir. Novas dinâmicas políticas, como a
mobilização do discurso de direitos humanos realizada por intelectuais e
setores da imprensa dos Estados Unidos contra as torturas praticadas pelo
regime militar, talvez tenham contribuído para uma mudança no foco de

31 Ver pasta de documentos confidenciais sobre Francisco Julião arquivados na Coordenação-


Geral de Documentação Diplomática – CDO. Itamaraty. Ministério de Relações Exteriores
32 Telegrama da Embaixada do Brasil no México. Confidencial n° 501.31 de 24 de outubro
de 1969. Coordenação-Geral de Documentação Diplomática – CDO. Itamaraty. Ministério
de Relações Exteriores.
ação da diplomacia. No início do governo Geisel, o Brasil foi condenado
na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos
Estados Americanos 33.
Entretanto, a análise de João Baptista Pinheiro apontava a
existência de outro fator. Francisco Julião havia se tornado uma peça
da configuração política promotora da estabilidade interna do México.
Integrava essa maquinaria e, apesar de todas as acusações e petições do
Brasil, publicou mais de duas centenas de artigos até 1979, vários deles
críticos à ditadura militar. Pode-se dizer que a estratégia desenvolvida
pela diplomacia brasileira junto aos órgãos de segurança do México para
transformar Francisco Julião em um “inimigo comum” havia fracassado.
Ele produziu e garantiu um novo lugar de ação, pelo menos até o final dos
anos 1970, operando com seu passado de líder de esquerda e ex-dirigente
das Ligas Camponesas.
O exílio, segundo Denise Rollemberg, foi uma ruptura com a
conjuntura de intensa mobilização política vivenciada pelas gerações 1964
e 1968, quando muitos dos seus representantes estavam no centro dos
acontecimentos. O desenraizamento deste universo que oferecia sentido
à luta e a derrota de projetos políticos e pessoais, ainda de acordo com
a historiadora, subverteram a imagem que os exilados tinham de si e 93
promoveram crises de identidade34.
No caso de Francisco Julião, um dos mais conhecidos da geração
1964, o exílio também promoveu deslocamentos e ressignificações. Ele
deixou de ser o deputado socialista e advogado dos camponeses. Não
existiam mais as Ligas e ele estava impedido de exercer sua profissão, devido
à condição de exilado. A luta pela reforma agrária na lei ou na marra não
33 O historiador James Green aponta em seu livro para a existência de uma oposição à
ditadura militar praticada por intelectuais nos Estados Unidos, os chamados Brasilianistas,
pouco conhecida no Brasil devido a censura e a postura nacionalista, anti-imperialista e
marxista do meio acadêmico entre os anos 1950 e 1970. GREEN, James. Apesar de vocês.
Oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009. Para a discussão sobre a condenação na CIDH, ver páginas 302 a 306.
34 ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999. p.
132.
poderia ser praticada no México. Mas, o uso das memórias que estavam
relacionadas a esse cenário passado de luta tornou-se possível. Para Julião,
além das redefinições e reconstruções, comuns à maioria da sua geração, o
exílio foi a escolha de uma identidade e a produção de uma continuidade, a
do líder de esquerda das Ligas Camponesas do Brasil.

Referências Bibliográficas

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O protestantismo de missão no Brasil e a força
dos Estados Unidos da América na propagação
do presbiterianismo

Marcio Ananias Ferreira Vilela

Entender a chegada, presença e organização do protestantismo no


país, e em especial da Igreja Presbiteriana do Brasil, exige um crescente
esforço por parte daqueles que se aventuram a investigar este passado.
Para este empreendimento recorremos a uma série de acontecimentos
que ficaram registrados nas marcas no tempo. Foram exatamente essas
marcas, essas dobras do tempo, que nos possibilitaram delinear as seguintes
considerações sobre o presbiterianismo no Brasil.
Convencionou-se classificar a presença do protestantismo no Brasil
a partir de três categorizações: protestantismo de invasão, de imigração e de
missão1. (MENDONÇA, 2004: 49-79). A primeira surgiu com a expansão
marítima francesa durante as dinastias de Valois e Bourbon, quando foi
estabelecida na Guanabara, entre 1555 e 1567, uma colônia denominada
de França Antártica, liderada pelo Vice-Almirante francês, Nicolas
Villegaignon: com a chegada dos huguenotes2, em 1557, ali foi realizado 97
o primeiro culto protestante nas Américas, assim como a elaboração de
uma confissão de fé baseada nos princípios calvinistas. Este protestantismo
de invasão também foi identificado durante o controle exercido pela
Companhia das Índias Ocidentais na Capitania de Pernambuco e em parte
do que é atualmente a região Nordeste, entre 1630 e 1654, período em que
holandeses, os quais, em sua maioria, professavam uma religião reformada,
passaram a defender e praticar a tolerância religiosa nessas áreas.

1 O estudioso Cândido Procópio Ferreira de Camargo dividiu a presença dos protestantes


no Brasil em duas categorias: protestantismo de imigração e de missão. Mas essa clássica
divisão foi repensada por Antonio Gouvêa Mendonça e tem sido utilizada por vários
estudiosos do protestantismo no Brasil.
2 Recebia o nome de huguenotes os protestantes calvinistas franceses nos séculos XVI e
XVII.
Já no início do século XIX, ainda no período classificado como
Colonial, os estudiosos apresentam a existência de um protestantismo de
imigração, que se intensifica com a efetivação dos tratados de Aliança e
Amizade e de Comércio entre a Coroa portuguesa e a Inglaterra em
1810. Esse protestantismo era assegurado pelo Artigo XII do Tratado do
Comércio e Navegação e garantia aos ingleses a liberdade de realização
do culto protestante, desde que observada uma série de limites, como os
locais de celebração, que não poderiam assumir as formas arquitetônicas
de um templo religioso, não poderiam conter sinos, assim como não era
permitido que fossem feitos prosélitos: respeitando sempre tais limites, essa
liberdade religiosa também foi estendida a outros imigrantes protestantes,
pela Constituição do Império de 1824.
Sobre estas primeiras práticas do protestantismo no Brasil, o
sociólogo Antonio Gouvêa Mendonça fez a seguinte observação: “os
protestantes invasores chegaram e se foram sem deixar traços. Os demais
visitantes, viajantes, comerciantes e mesmo imigrantes [...], não chegaram
a fazer do protestantismo talvez nada mais do que mera curiosidade por
uma religião exótica [...]”. (MENDONÇA, 2008: 179-180). Seguindo um
entendimento semelhante ao apresentado por Mendonça, o missionário
98 escocês William Forsyth, afirma ter o protestantismo chegado ao Brasil no
início do século XIX com os imigrantes europeus, mas este não conseguiu
se transformar, naquele período, em uma força militante considerável, que
deixasse marcas profundas na sociedade. (FORSYTH, 2006: 120).
A terceira e última categoria dessa presença religiosa foi
denominada de protestantismo de missão, quando as diversas igrejas
protestantes dos EUA, sobretudo a partir de meados do século XIX,
passaram a enviar sistematicamente missionários ao Brasil com o objetivo
bem definido de propagar a fé protestante e conquistar seguidores em uma
nação essencialmente católica. Trilhando as diretrizes deste protestantismo
de missão, em agosto de 1859 chegou ao Brasil o jovem missionário e Pastor
Ashbel Green Simonton, proveniente de igrejas presbiterianas do Norte
dos EUA, enviado pela Junta de Missões Estrangeiras, localizada em Nova
York; esta, portanto, tem sido a data propagada pela Igreja Presbiteriana do
Brasil para fins comemorativos, como marco inicial do presbiterianismo
em território nacional. (SOUZA, 2011: 137-155).
Em relação a essa Junta de Missões, Alderi Matos – que se
apresentava como historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil –
afirmou ter sido criada em 1837, sendo a responsável por enviar algum
tempo depois vários missionários para países como Índia, Tailândia, China,
Colômbia e Japão, com o objetivo de propagar o protestantismo. (MATOS,
2004: 13).
No Brasil, mesmo diante das dificuldades iniciais, como o domínio
da língua local e a reação de hostilidade por parte de setores da igreja
católica, Simonton e inúmeros outros missionários norte-americanos
encontraram um ambiente que possibilitou a divulgação e a implantação do
protestantismo. Havia no cenário político nacional, em meados do século
XIX, um forte discurso em defesa da imigração de norte-americanos e da
aceitação da religião protestante.
Representando importantes setores políticos no Segundo Reinado,
o influente jurista e parlamentar Aureliano Tavares Bastos3 defendia que
o Brasil deveria se aproximar dos EUA, não só nos aspectos político e
econômico, mas incentivar internamente um influxo do caráter civilizador 99
norte-americano. Além do que, apresentava duas maneiras que permitiriam
ao Brasil um maior contato com o espírito civilizador da nação do Norte.
A primeira era incentivando um processo migratório para o Brasil de
contingentes de norte-americanos, que após a Guerra de Secessão e a derrota
dos Confederados do Sul, estavam procurando na América do Sul um novo
lar. Com este intuito e tendo o apoio de inúmeros políticos de tendências
liberais, ajudou a estruturar a Sociedade Internacional de Imigrantes em
1866, cujo objetivo era o de realizar campanhas para estimular a imigração
em massa de sulistas dos EUA para o Brasil. Defendia também, como uma
3 Aureliano Cândido Tavares Bastos nasceu em 1839, na cidade de Marechal Deodoro, na
então Província de Alagoas. Iniciou seus estudos na Faculdade de Direito do Recife, tendo
finalizado o curso em São Paulo onde passa a residir com a família, em São Paulo, tornando-
se um destacado político no Império, ligado ao Partido Liberal.
eficiente maneira de ampliar o contato com a próspera civilização dos
EUA, uma permissão que o Império deveria conceder aos missionários
protestantes norte-americanos que àquela altura chegavam ao Brasil para
difundir sua doutrina. Acreditava Tavares Bastos, que a religião protestante
pudesse produzir na sociedade brasileira as mesmas transformações
civilizatórias que entendia terem acontecido nos EUA. (PEREIRA, 2007).
Essa demanda civilizatória pode explicar em parte o não
cumprimento da Constituição de 1824, no que tange a temática religiosa. A
esse respeito uma série de critérios e proibições era preconizada: a religião
oficial do Brasil era o Catolicismo Romano; proibia entre outras coisas a
realização de ações evangelizadoras com o objetivo de fazer prosélitos;
pregar em língua portuguesa, assim como a construção de locais de
culto que pudessem ser identificados como tais externamente. O teólogo
José Roberto de Souza, que até o momento da construção desta escrita é
professor do Seminário Presbiteriano do Norte, afirmou que, de fato, a
Constituição de 1824 não era observada em sua totalidade, tendo o próprio
missionário presbiteriano Ashbel Green Simonton, quando chegou ao
Brasil em 1859, – mas precisamente ao Rio de Janeiro, então capital do
país - procurado aprender o português, o que lhe possibilitou pregar e/ou
100 evangelizar os brasileiros na língua local sem qualquer interferência das
autoridades nacionais. (SOUZA, 2011: 137-155).
A presença destes missionários presbiterianos no Brasil –
protestantismo de missão - proveniente dos Estados Unidos seguiu algumas
especificidades. É importante ressaltar que, desde a primeira metade do
século XIX, questões como o escravismo no território norte-americano
vinham provocando fortes tensões na Igreja Presbiteriana daquele país. E
com os conflitos gerados pela Guerra de Secessão (1861-1865) - conhecida
também, como a Guerra Civil - houve uma ruptura definitiva, surgindo no
Norte, a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América (PCUSA4),
4 É importante informar ao leitor que em 1958, a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da
América (PCUSA), formalizou uma união com a Igreja Presbiteriana Unida, acarretando a
formação da Igreja Presbiteriana Unida dos Estados Unidos da América (UPCUSA), como
explica NASCIMENTO, Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho. Educar, curar, salvar: uma ilha de
que tendia para uma postura antiescravista, e no sul, a Igreja Presbiteriana
dos Estados Unidos (PCUS), descrita como mais conservadora e defensora
da permanência da escravidão. (REILY, 2003: 128-140). Todavia tal
ruptura não inviabilizou os projetos missionários destas instituições,
pelo contrário, passaram a agenciar um notável esforço como o envio de
recursos financeiros e humanos para o Brasil e a América Latina, a partir
da segunda metade do século XIX, atuação que se estende durante quase
todo o século XX5.
Esforços agenciados tanto pela Igreja do Norte, por meio de sua
Junta de Missões sediada em Nova York, como pela recém-estruturada
(1861) Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos (PCUS), cuja sede
missionária (Comitê de Missões Estrangeiras) localizava-se na cidade de
Nashville, no estado do Tennessee. Assim, terminada a Guerra de Secessão,
estas instituições religiosas, por meio dos setores de missões, passaram a
incentivar e enviar um número significativo de pastores e missionários para
várias regiões do Brasil, com objetivo de atrair os brasileiros a professarem
uma nova doutrina. (REILY, 2003: 29).
Para o historiador francês Émile Léonard, após a derrota dos
Confederados (organização dos estados sulistas), uma considerável leva de
missionários cruzaram o Oceano Atlântico em direção ao Brasil. Ao mesmo 101
tempo, o historiador afirmou que não eram apenas estes missionários que
migravam. Havia outro movimento. Várias famílias protestantes do Sul dos
EUA fizeram este mesmo caminho, sobretudo para a província de São Paulo.
(LÉONARD, 2002: 85). Seguindo este raciocínio, o Doutor em Teologia,
o norte-americano Duncan Reily, afirmou ter sido este deslocamento, em
grande medida, incentivado e reforçado por uma série de condições. Ou
seja, teriam sido “atraídos pela boa terra a preços acessíveis, pelo clima
e pela ajuda do governo imperial, além da possibilidade de adquirirem
escravos no Brasil, o que não lhes era mais possível na sua terra de origem”.
civilização no Brasil tropical. Maceió: EDUFAL, 2007. p. 69.
5 A presença destas Missões (presbiterianas, batista, entre outras) norte-americanas no
Brasil, assim como em várias partes da América Latina, África e Ásia, ainda carece de
investigações consistentes no campo da História, da Antropologia e da Sociologia.
(REILY, 2003: 129-130). Todavia, no que tange à temática da escravidão,
é importante salientar os reflexos no Brasil dos embates que permeavam
setores da sociedade nos EUA em torno da permanência ou não do
trabalho escravo. Profundamente inseridos nesse conflito, havia por parte
dos missionários provenientes da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos
da América (PCUSA) - uma tendência maior para condenar a escravidão,
ao contrário daqueles enviados pela Igreja do Sul - Igreja Presbiteriana
dos Estados Unidos (PCUS) - cuja postura inclinava-se muito mais para
uma tolerância ou defesa da escravidão. No Brasil, sinais desse confronto
se fizeram presentes com o próprio Ashbel Green Simonton, enviado pela
Igreja do Norte. O mesmo deixou registrado, em seu diário de viagem,
várias passagens dando conta da sua posição antiescravista tanto em seu
país como no Brasil. (CÉSAR, 2009: 115-126).
Além destes aspectos delineados até o momento, os missionários
protestantes em meados do século XIX agiam motivados por uma concepção
política, social e religiosa, bem demarcada, em relação ao seu papel
perante o mundo, e, sobretudo, frente à América Latina. Provavelmente
eles interagiam, como a maior parte dos seus contemporâneos, com
uma autoimagem carregada de significados religiosos construída em
102 torno da chegada dos puritanos ingleses nas Treze Colônias – imigrantes
protestantes fugidos da perseguição religiosa do século XVII na Inglaterra.
Essa percepção do povo norte-americano foi descrita por Reily da seguinte
maneira:

Como Deus, por Moisés, libertou os israelitas da


escravidão no Egito, pela travessia maravilhosa
do Mar Vermelho, os puritanos se libertaram da
opressão dos soberanos ingleses Tiago I e Carlos
I, atravessando o Atlântico no pequeno navio
Mayflower. Deus estabelecera seu pacto com o povo
liberto, no Sinai; paralelamente, os puritanos, antes
de pôr os pés em terra seca na América, firmaram
o Mayflower Compact. Explicitaram que havia
encetado sua viagem de colonização “para a glória
de Deus, avanço da fé cristã e honra do nosso rei e
país [...] solene e mutuamente, na presença de Deus,
e cada um na presença dos demais, compactuamos
e nos combinamos em um corpo político civil”.
Finalmente, como Josué havia conquistado a terra da
promissão, os americanos viam como seu “destino
manifesto” conquistar o Continente de oceano a
oceano, espalhando os benefícios de uma civilização
republicana e protestante por toda a parte. Assim, os
Americanos do Norte observavam, jubilosos, o início
do processo da libertação da América Latina [...].
(REILY, 2003: 37).

Este imaginário religioso de uma civilização escolhida diante de


um pacto feito com Deus ainda durante a travessia para uma terra distante,
ao norte da America, - dentre outras construções tendo por base todo
um simbolismo religioso e moral – foi incorporado à sociedade norte-
americana. Mentalidade essa que seria extremamente utilizada em meados 103
do século XIX para fundamentar o que ficou conhecido como O Destino
Manifesto, movimento que consolida as bases teóricas (moral, cultural e
ideológica) para a conquista de novos territórios e povos. Este movimento
era a sistematização da crença na qual os anglo-saxões, ou seja, o povo
branco norte-americano se autoafirmava ser uma raça superior ajudada
por Deus; que a religião protestante era o verdadeiro caminho rumo ao
paraíso, o que lhes garantia o direito e/ou a obrigação cristã de regenerar os
povos atrasados. (MENEZES, 2010: 19-20, 56).
Neste sentido, a crença fortemente alicerçada em torno de um povo
eleito e/ou escolhido por Deus integrava e/ou interagia com o imaginário
artístico norte-americano, sendo por esse retratado. É dessa maneira que
entendemos uma série de caricaturas produzidas no século XIX e XX,
tendo circulado na imprensa, sobretudo, em periódicos e revistas. Em 1980
o cientista político John Johnson no livro Latin America in Caricature,
analisou – fazendo uso de caricaturas - a mentalidade recorrente sobre o
papel político que os EUA deveriam desempenhar para com seus vizinhos.
(JOHNSON, 1980). Podemos analisar a seguir que tal imagem não se
encontra fora de um código cultural, legitimado por importantes setores
sociais norte-americanos, sobretudo protestantes; ou seja, a imagem emitia
uma linguagem visual carregada de sentidos e significados aos leitores
daqueles periódicos. Endossando esse enunciado supracitado, o historiador
Alberto Del Castillo afirmou que a produção de imagens interage,
participa de esquemas sociais em circulação em um dado momento. (DEL
CASTILHO TRANCOSO, 2006: 32).

104

Figura 1: Caricatura de William Allan Rogers. Fonte: Harper’s Weekly, Nova York, 27 ago.
1898 apud JOHNSON, John J. Latin America in caricature. Austin: University of Texas
Press, 1980. p. 217.
Um dos cartunistas do jornal Harper’s Weekly6, William Rogers,
projetou o seu olhar sobre a América Latina e o papel exercido pelos EUA,
este, portando uma estatura imponente e bem vestido, características que
correspondiam à moderna e avançada civilização protestante do Norte.
A sua imagem é a de quem ensina e civiliza os povos da América Latina,
o que tinha acontecido com alguns países, os quais foram representados
por pessoas de aspectos mais adultos e de comportamentos exemplares,
estando bem vestidas. Enquanto parte da América Latina é retratada como
sendo ainda uma criança rebelde e carente, que se encontrava descalça
e mal vestida. E como toda criança deveria ser educada e/ou civilizada,
processo que muitas vezes só era possível com a utilização da força e o
disciplinamento constante. Não é, então, por acaso que o caricaturista
projetou os EUA fazendo uso de um chicote pronto para disciplinar e
orientar os países rebeldes da América Latina.
Caricaturas semelhantes, nas quais a América Latina e seus
aspectos políticos, econômicos e sociais foram representados a partir de
um código cultural e/ou uma concepção de mundo fortemente aceita, eram
bastante comum circularem nos jornais e revistas dos EUA em vários outros
momentos. (JOHNSON, 1980; PORFÍRIO, 2009: 59-74). Os missionários
norte-americanos, portanto, não estavam fora desse código cultural. O 105
teólogo e filósofo Rubem Alves afirmou que tais agentes ao chegar ao Brasil
em meados do século XIX sempre se comportaram como os representantes
de uma cultura tida como civilizada e superior, em detrimento da cultura
nacional e da religião católica aqui consolidada. (ALVES, 2005; DUPAS,
2009: 07-39).
Paralelamente, não podemos desconsiderar o papel desempenhado
por estes missionários na estruturação (material, doutrinária e organizacional)

6 Harper’s Weekly era uma publicação de política semanal da cidade de Nova York que
circulou entre 1857 até 1916, também intitulado de O Jornal da Civilização. Apresentava
notícias nacionais e internacionais, ficção, ensaios diversos, e humor, ao lado de ilustrações.
De ampla circulação nos Estados Unidos, tinha como importante características a produção
de ilustrações, ou seja, de charges políticas. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/
wiki/Harper’s_Weekly>. Acesso em: 31 de maio de 2013.
do que hoje conhecemos como Igreja Presbiteriana do Brasil. Logo após a
chegada do primeiro missionário, Ashbel Simonton, em 1859, os esforços
da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América (PCUSA), igrejas
do Norte dos EUA, resultaram no surgimento das três primeiras igrejas
presbiterianas localizadas em importantes centros urbanos da época: na
cidade do Rio de Janeiro em 1862, em São Paulo em 1865 e em Brotas/SP em
1865. Tal crescimento, portanto, não se encontrava desarticulado do trabalho
missionário desenvolvido pela Missão do Brasil - subordinada a Junta de
Missões de Nova York (PCUSA) - que atuava inicialmente nos estados do Rio
de Janeiro, São Paulo e Extremo Sul de Minas Gerais; mais posteriormente,
sua inserção atingiria os estados do Paraná, Santa Catarina, Bahia e Sergipe.
Objetivando abranger a maior parte do território nacional, em
1896 a Missão do Brasil foi dividida administrativamente em: Missão
Sul do Brasil (RJ, PR, SC) e Missão Central do Brasil (BA, SE e norte
de MG). Ao mesmo tempo, o Comitê de Missões Estrangeiras, ligado a
Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos (PCUS), igrejas do Sul dos EUA,
concentraram seus esforços no Nordeste do estado de São Paulo, Sudeste
de Minas Gerais e Triângulo Mineiro; estendendo-se também a partir de
uma vasta área do Nordeste acima do rio São Francisco: de Alagoas até a
106 Região Norte do Brasil, na Amazônia. (MATOS, 2004: 13-20). Seguindo
o exemplo anterior, em 1896 dividiu seu corpo missionário em: Missão
Norte do Brasil (Norte e Nordeste) e Missão Sul do Brasil (SP, MG, GO).
Em 1906 esta última também sofre divisões formando: a Missão Oeste do
Brasil, com sede na cidade de Campinas e a Missão Leste do Brasil, sediada
na cidade de Lavras/MG.
A atuação desses missionários, ligados à Igreja Presbiteriana
do Sul dos EUA (PCUS), garantiu o surgimento de uma série de igrejas
presbiterianas, possibilitando em 1872 a criação do Presbitério de São
Paulo que, extinto em 1877, foi reorganizado em 1887 como Presbitério
de Campinas e Oeste de Minas. E no Nordeste destacou-se a criação em
1888 do Presbitério de Pernambuco. Anteriormente, a Igreja Presbiteriana
do Norte dos EUA (PCUSA) tendo como objetivo melhor coordenar suas
igrejas: Igreja Presbiteriana de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Brotas
formou em dezembro de 1865 o Presbitério do Rio de Janeiro, mas este
estava subordinado ao Sínodo de Baltimore - uma importante cidade do
estado de Maryland, Nordeste dos EUA. (MATOS, 2004: 13-20).
É preciso mencionar que toda essa estrutura que começava a ser
organizada estava subordinada às igrejas presbiterianas dos EUA, sejam
do Norte ou do Sul, como popularmente ficaram conhecidas. Não havia,
portanto, uma igreja presbiteriana nacional. Essa realidade só começou a
ser alterada com o surgimento do Sínodo do Brasil em 6 de setembro de
1888, a partir da agremiação do Presbitério do Rio de Janeiro, de São Paulo
e Oeste de Minas e de Pernambuco. Segundo Alderi Matos, o surgimento
do “Sínodo representou a autonomia eclesiástica do presbiterianismo
brasileiro, até então jurisdicionado às igrejas-mães norte-americanas”.
(MATOS, 2004: 15-16) 7.
A partir deste momento, as igrejas estruturadas pela PCUSA e
PCUS foram incorporadas à Igreja Presbiteriana do Brasil, acarretando,
pelo menos em termos formais, uma maior autonomia. A formação
desta igreja presbiteriana nacional foi analisada por Duncan Reily, para
o qual “os missionários presbiterianos, desde a autonomia (1888), foram
arrolados como ministros da nova Igreja Nacional”. Porém, os missionários 107
continuaram a participar de uma organização paralela, a Missão. (REILY,
2003, p. 173). Assim, os missionários norte-americanos passaram a
pertencer a Igreja Presbiteriana do Brasil e a sua Missão com sede nos EUA.
Não houve, no entanto, um desligamento integral, pois as missões tinham
certo grau de ingerência na IPB e compartilhavam a sua condução.
A busca por uma maior autonomia gerou profundos embates entre
a IPB e os missionários norte-americanos, levando à formulação de um
acordo intitulado Modus operandi ou Brazil Plan em 1917. Este documento,
entre outras regulamentações, garantiu às missões norte-americanas suas
permanências e a continuidade do trabalho missionário desenvolvido no

7 Ver também ARNOLD, Frank L. Uma longa jornada missionária. São Paulo: Cultura
Cristã, 2012. p. 50-51.
Brasil, mas, sobretudo, regulamentava as condições em que os missionários
deveriam atuar, assim como, os limites de sua participação em Presbitérios
e na condução de igrejas locais. (REILY, 2003: 173-177; LÉONARD, 2002).
Paralelamente ao seu crescimento com o surgimento de novas
igrejas; Presbitérios e Sínodos; e a busca por autonomia em relação às
igrejas norte-americanas a estrutura administrativa da Igreja Nacional,
conhecida como presbiterianismo, pouco a pouco, foi se consolidando.
É preciso mencionar que o presbiterianismo se trata de um sistema de
governo eclesiástico que se originou na Escócia, no contexto da Reforma
Protestante do século XVI, tendo migrado posteriormente para América
do Norte (Treze Colônias), trazido pelos protestantes ingleses, fugindo
da perseguição religiosa na Inglaterra no século XVII. No Brasil, salvo
algumas particularidades, a igreja implantada por estes missionários seguiu
esta mesma estrutura de governo regida por concílios.

108
Como podemos compreender por meio do organograma
apresentado, a Igreja Presbiteriana do Brasil é regida obedecendo a uma
hierarquia de Concílios: Conselhos, Presbitérios, Sínodos e o Supremo
Concílio8. É nas igrejas locais que os membros convertidos, muitos deles ex-
católicos, começam a conhecer esta estrutura verticalizada. Para ser aceito
como membro efetivo, o novo convertido é acompanhado pela comunidade
na qual pretende ingressar e deverá, posteriormente, ser submetido a uma
cerimônia religiosa conhecida como profissão de fé. Neste ato o fiel terá
que prometer solenemente, entre outras coisas, o respeito incondicional às
autoridades religiosas constituídas. Com este ritual, é recebido por toda a
igreja local como um membro comungante, ou seja, estará apto a receber
todos os sacramentos, como a ceia, onde é lembrada a morte de Jesus Cristo.
Após este momento estará aberta a possibilidade para que o mesmo
participe ativamente – junto com o pastor – da administração da igreja
a que pertence. Todas as igrejas presbiterianas locais são comunidades
administradas por um Conselho formado geralmente por três presbíteros
mais o pastor, que também assume a função de presidente. Os presbíteros
poderão ser indicados pelo próprio Conselho ou pela comunidade de
membros, ou seja, a igreja local. Mas neste último caso, deverão ter seus
nomes também aprovados por este Conselho. Para só assim concorrer ao 109
cargo e ser eleito pelo voto secreto da comunidade (homens e mulheres)
por uma maioria simples, para um mandato de cinco anos. Comumente o
processo eleitoral é realizado para complementar o número de presbíteros
cujo mandato vai sendo expirado.
Um conjunto de no mínimo três igrejas de uma cidade ou região
formará um Presbitério, como prevê o Manual Presbiteriano9. Em cidades
8 Toda esta estrutura dorsal de Concílios é composta apenas por homens. As mulheres
participam e poderão administrar outras instâncias menores que compõe a instituição.
9 Há vários documentos que regem a Igreja Presbiteriana do Brasil. A Igreja tem como única
regra de fé e prática a Bíblia, tendo adotado os símbolos de fé elaborados pela Assembleia
de Westminster em 1646 na Inglaterra. Existe também o Manual Presbiteriano, que é
composto por três partes: a Constituição da IPB (que trata da forma de governo); o Código
de Disciplina (que diz respeito as regras de conduta), e os Princípios de Liturgia (que versa
sobre a vida devocional da instituição).
com grande número de igrejas é comum existirem vários Presbitérios, como
também poderá ser formado por igrejas de várias cidades. Integram estes
Presbitérios, os quais também são Concílios, os representantes destas igrejas
locais acompanhados de seus pastores10, que se reúnem ordinariamente ao
início de cada ano. O primeiro ato quando reunidos é formar uma Mesa
Executiva do Presbitério, composta por um Presidente, Vice-Presidente,
1° e 2° secretários e o Tesoureiro, que serão responsáveis pela realização
do concílio. Em outros momentos, quando necessário, essa Mesa poderá
se reunir, sendo agora nomeada por Comissão Executiva do Presbitério.
Quando existe um grande número de Igrejas e consequentemente de
Presbitérios, há a possibilidade de organizar mais de um Sínodo por
Estado. O contrário também é possível, um Sínodo pode ser formado pelos
Presbitérios de mais de um Estado. Os Sínodos que também são Concílios
que se reúnem ordinariamente a cada biênio, nos anos ímpares, quando
há a composição de uma Mesa Executiva do Sínodo, que assim como nos
presbitérios, se reunirá como Comissão Executiva do Sínodo sempre que
necessário for.
O Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana11 ocorre quando
os representantes de cada presbitério (composto de dois pastores e dois
110 presbíteros, que neste momento são nomeados de deputados), sob a chancela
dos seus respectivos Sínodos, reúnem-se ordinariamente nos anos pares
a cada quatro anos. Há também a possibilidade de reuniões do Supremo
Concílio (SC) em caráter extraordinário. Para conduzir os trabalhos é
eleita uma Mesa Executiva do Supremo Concílio composta por Presidente,
Vice-Presidente, Secretário Executivo, 1° e 2° secretários e Tesoureiro,
que permanecerão em atividade durante os quatro anos seguintes, até a
realização de uma nova reunião. Ao mesmo tempo, para dar continuidade
a esta administração, há uma Comissão Executiva do Supremo Concílio

10 É importante mencionar que os pastores não são membros das igrejas nas quais exercem
seus ofícios, mas do Presbitério que jurisdiciona tais igrejas, como estabelece o Manual
Presbiteriano.
11 Supremo Concílio é uma designação que surgiu a partir de 1937, antes desse momento,
este Concílio se chamava Assembleia Geral, a exemplo dos EUA.
que é formada pela Mesa Executiva do SC (Presidente, Vice-Presidente,
Secretários e Tesoureiro) mais os representantes dos respectivos Sínodos.
Esta Comissão se reúne ordinariamente a cada ano, com possibilidades de
se reunirem extraordinariamente.
No que se refere ao Supremo Concílio, este tem por competência
legal, entre outras atribuições, analisar e julgar as demandas provenientes
dos concílios inferiores, além de “formular sistemas ou padrões de doutrina,
quanto à fé; estabelecer regras de governo, de disciplina e de liturgia, de
conformidade com o ensino das Sagradas Escritura; [...] definir as relações
entre a Igreja e o Estado”. (MANUAL PRESBITERIANO, 1997, p. 36).
É em suas reuniões que se apresentam e efetivam as maiores discussões
sobre o andamento da Igreja; ao final, suas resoluções são divulgadas
em documentos institucionais, espécie de anais denominados Digestos
Presbiterianos12, assim como, as decisões da Comissão Executiva do SC.
Esse conjunto de resoluções, a depender do grau de debates que
o envolvia, era publicado também no jornal oficial da IPB - designado em
meados do século XX de jornal Brasil Presbiteriano - o que possibilitava
a divulgação de tais decisões a significativa parcela de pessoas ligadas à
Igreja; decisões que deveriam funcionar como um tipo de lei e, assim, serem
observadas por todos indistintamente. (MANUAL PRESBITERIANO, 111
1997; GIESBRECH, 2002). São determinações que poderão ser observadas,
por exemplo, a partir de suas concepções sociais e políticas, nas suas
relações com a Igreja Católica Romana e outras igrejas protestantes e nas
suas convicções em torno de instituições ecumênicas, como o Conselho
Mundial de Igrejas (CMI) e o Conselho Internacional de Igrejas Cristãs
(CIIC).
É importante mencionar, para concluir este texto, que todas essas
decisões/determinações são possíveis de serem analisadas, mas para
tanto, carecem de um maior aprofundamento investigativo sobre a Igreja
12 Estes anais são publicados pela Casa da Editora Presbiteriana com o título Digesto
Presbiteriano: Resoluções do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil e da sua
Comissão Executiva, e poderão ser facilmente localizados nas bibliotecas dos seminários e
em algumas igrejas.
Presbiteriana do Brasil. Dito de outra maneira, novas viagens a outros
tempos serão necessárias, principalmente a partir de meados do século XX
quando se observa uma maior intensificação em relação a estas questões,
tendo em vista, os embates políticos e sociais que estão se agigantando no
Brasil, e tem como auge dessa crise o Golpe civil e militar de 1964.

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Revista Paralellus, Recife, ano 02, n. 04, p. 137-155, 2011.

114
O Mobral, seu passado e nosso presente
Bianca Nogueira da Silva Souza
Contato: bia_nog@hotmail.com

“Mobral é democracia!
É luz, verdade e carinho
Que serve para você
Para parente ou vizinho,
É o fim da escuridão
Que existia em meu caminho”
(Sebastião Rodrigues, aluno do Mobral
– Garça, São Paulo. Jornal do Mobral
15/11/1971)

“Não procuramos os aplausos do


presente, mas estamos seguros de que
o futuro reconhecerá o imenso valor de
nossa obra, tão revolucionária”
(Arlindo Lopes Correia, presidente do
Mobral- 1979, p. 12)

115
“O ministério da Educação e Cultura
reconhece amplamente o fracasso do
Mobral. O Mobral foi um equívoco,
diz assessor do MEC” (Jornal O Globo
18/02/1980).

Introdução

O tempo não muda os fatos históricos, mas interfere


indubitavelmente em nossa interpretação e compreensão sobre eles. Por
isso, o movimento que se faz ao deslocar um fato do passado para uma
reflexão sobre ele no presente exige algumas habilidades do historiador,
como por exemplo, a de construir sentido sobre os vestígios deixados e
questionar sua fabricação e preservação. Por isso, é possível ter diferentes
interpretações sobre o mesmo episódio. Muito depende do momento em
que se analisa e também de quem o faz. O prisma do pesquisador, suas
orientações metodológicas e suas condições de produção também são
ponderações razoáveis, e para ser considerada sensata dentro de um
regime de “verdades” uma narrativa deve ser precedida de uma cuidadosa
investigação sobre seu objeto.
Destaco esses elementos introdutórios para lembrar que após
meio século do golpe civil-militar brasileiro de 1964 houve a edificação
e demolição de alguns monumentos desse passado recente tão (re)
configurado. Vítimas e algozes já revezaram seus papéis (e continuam a
fazê-lo) no palco da história que por sua vez produz múltiplas consciências
coletivas sobre o período.
Poucos anos separam a escrita das narrativas utilizadas como
epígrafes neste texto, no entanto temos concepções bem distintas ali
dispostas. Nos três recortes o objeto principal narrado é o Mobral,
Movimento Brasileiro de Alfabetização1, no entanto, os trechos em destaque
apresentam diferentes tons sobre o que foi o Movimento e seus impactos na
sociedade dos anos 1970/1980. É com o objetivo de discutir o descolamento
de sentidos que o Mobral construiu sobre si (e construíram sobre ele) que
116 este artigo se debruça, abrindo a tessitura de mais uma interpretação sobre
esse passado ainda tão presente, considerando que o regime militar e seus
desdobramentos estão tão vivos em nosso cotidiano.

Mobral, ditadura e história

Os mais recentes esforços dos historiadores em narrar a história


da ditadura civil-militar no Brasil e seus temas transversos apontam para
plurais interpretações dos fatos ocorridos de 1964 a 1985, como já pontuei.
Tão plurais que beiram a contradição em diversos pontos, eventos, intenções

1 Programa instaurado pelo governo militar em 1970 que tinha como meta erradicar o
analfabetismo no Brasil entre jovens e adultos em dez anos. Detalho mais à frente as
diretrizes e métodos pedagógicos utilizados para tal.
e motivações. As gerações herdeiras dessas histórias trazem consigo a
responsabilidade de se inteirar dessas versões construídas ao sabor de uma
anistia lenta e gradual, mas, sobretudo “segura” para quem detinha o poder.
A investigação sobre esse passado revela todo o esforço empreendido
pelos militares no convencimento da versão oficial, questionada pouco
a pouco pelas pesquisas mais recentes (RESENDE, 2001; TELES, 2010).
O número de trabalhos nos programas de pós-graduação de história e
sociologia (principalmente, mas não exclusivamente) sobre a ditadura
e seus desdobramentos, tem crescido nas últimas décadas, ampliando os
territórios de debates sobre o tema2.
Temas relacionados à política, violência, arte, lazer e economia
estão entre os mais tocados. É nesse campo de debate que me localizo,
objetivando analisar os eventos pós-1964 pelo prisma da educação
popular e seus impactos sociais na projeção de um “ideal de democracia”
construído pela ditadura militar no Brasil (1964 a 1985)3 e assim entender
como funcionava o projeto educacional dos militares para jovens e adultos
e perceber de que forma esse modelo serviu aos interesses políticos, sociais
e ideológicos do período.
E ainda, considerando o projeto de educação popular do Mobral
como braço da ditadura, acredito que com as pesquisas em andamento, será 117
possível observar o movimento em outras dimensões, bem como entender
seu processo de ressignificação entre esses novos estudos historiográficos e
pela sociedade civil.

A educação de jovens e adultos na história brasileira

Um olhar panorâmico sobre a história da educação no Brasil nos


permite fazer uma desconfortável afirmação para os padrões iluministas
em voga desde o século XVIII/XIX: o analfabetismo é um traço persistente
na história da educação no Brasil.

2 Fico (2004) faz uma análise desse crescimento bibliográfico sobre temas relacionados à
ditadura no Brasil. Ver referências bibliográficas para mais detalhes.
3 Esse é tema central que desenvolvo atualmente na minha tese de doutorado. Parte dos
resultados já obtidos é apresentada ao longo do artigo.
As mais ousadas, inovadoras e bem intencionadas tentativas
de acabar com essa demanda não conseguiram eliminar essa marca na
sociedade brasileira que atravessa os séculos e ganha status de “problema
social” na atualidade. Segundo dados do IBGE, há 16 milhões de pessoas
com mais de 15 anos que ainda não foram alfabetizadas no Brasil4.
No passado, como no presente, o analfabetismo deve ser analisado
como um conjunto complexo de práticas formais e informais relacionadas
à aquisição de competências como ler e escrever. Qualquer tentativa de
historicizar esse fenômeno tão plural corre o risco de cair no pecado da
generalização e uniformização de tempos e padrões sociais. Diante desses
riscos e dos limites que esse texto oferece proponho uma visão panorâmica
sobre o tema no século XX, mas, sobretudo nas décadas de 1960 a 1980
quando, o combate ao analfabetismo se traveste de “missão nacional”.
Segundo HADDAD (2000) a constituição brasileira de 1891,
importante símbolo da república brasileira, consagrou o federalismo
no Brasil, e deixou a cargo dos estados e municípios a responsabilidade
da educação básica. É marco também deste documento a exclusão dos
analfabetos do processo eleitoral, o que inviabilizou a participação nas
eleições da grande maioria da população adulta da época.
118 Apesar desses limitadores, a historiografia registra os avanços
ideológicos, sociais e político em torno dessa causa a partir dos anos 1920,
que exigiam uma maior ampliação no número de escolas e automaticamente
no número de vagas oferecidas aos jovens e adultos.
Ainda segundo HADDAD (2000, p.3)

Os renovadores da educação passaram a exigir que


o Estado se responsabilizasse definitivamente pela
oferta desses serviços. Além do mais, os precários
índices de escolarização que nosso país mantinha,
quando comparados aos de outros países da América

4 Dados divulgados pelo IBGE no primeiro semestre de 2013. Para mais detalhes da
pesquisa ver: www.ibge.gov.br.
Latina ou do resto no mundo, começavam a fazer da
educação escolar uma preocupação permanente da
população e das autoridades brasileiras.

Esses novos vetores pressionam os governos no sentido de se fazer


firmar um plano nacional de educação que visava traçar metas tanto para
o ensino primário quanto para a educação de jovens e adultos. No plano
global, um importante aspecto precisa ser frisado, a criação da UNESCO
depois do fim da segunda guerra mundial, que chamava a atenção para
as desigualdades sociais entre os países e alçava a educação à condição de
chave-mestra para a dissolução desses contrastes. A partir desses e outros
estímulos, movimentos para a alfabetização de adultos no Brasil entram
em cena.
O final de década de 1950 até o ano de 1964 constitui-se como um
importante capítulo no processo de alfabetização de jovens e adultos no
Brasil. Muitos projetos empreendidos por grupos estudantis, movimentos
sociais, a igreja católica dentre outros ganham a atenção e adesão da
população brasileira. Para os letrados era a oportunidade de responder
a uma demanda social e para os analfabetos a chance de se ressignificar
socialmente promovendo uma auto-inclusão na sociedade e consolidando 119
os princípios democráticos.
Dentre essas ações, talvez o projeto mais citado e estudado pelas
correntes da história e da educação seja o do professor Paulo Freire
que ganhou espaço principalmente no Nordeste onde estava (e está)
concentrado o maior índice de analfabetos. Expressivo pela popularidade,
alcance, baixo custo e eficiência no processo de alfabetização de jovens
e adultos, o trabalho desenvolvido por Freire inspirou uma renovação
pedagógica capaz de ressoar nas tensões provocadas pela Guerra Fria.
O golpe civil-militar de 1964 produziu uma ruptura política em
função da qual os movimentos de educação e cultura foram reprimidos;
seus dirigentes, perseguidos; seus ideais censurados. A repressão foi a
resposta dada pelos militares àqueles que destoavam de seu projeto político
e ideológico.
Uma lacuna, no entanto, estava visíve: o que fazer para substituir
as ações pró-educação que estavam sendo desenvolvidas e dessa forma dar
uma resposta à sociedade? Como atender a demanda nacional disposta a se
inserir no mundo letrado? A resposta a tal questão veio através da lei 5.379
de 15 de dezembro de 1967 com a criação da Fundação Mobral – Movimento
brasileiro de alfabetização, e propunha a alfabetização funcional de jovens e
adultos, visando “conduzir a pessoa humana a adquirir técnicas de leitura,
escrita e cálculo como meio de integrá-la a sua comunidade, permitindo
melhores condições de vida” (BRASIL- Mobral 1973, p. 9).
Dá-se início, para fins de afirmação do Mobral, um processo de
desqualificação dos projetos e movimento pró-alfabetização realizados até
então, em especial, os de Paulo Freire. Parte da documentação levantada
pela pesquisa exibe críticas severas às propostas educacionais desenvolvidas
até então, bem como ataques pessoais. O Mobral, neste sentido, busca a
legitimação do seu projeto didático e ideológico usando dessas práticas.
Num diagnóstico da situação educacional do país publicado em 1979, o
presidente do Mobral Arlindo Lopes Correia afirma que “[apesar de]
algumas das heranças do estado caótico da administração educacional
encontrado em 1964 foi possível identificar desperdícios e decisões
120 irracionais” p. 18.
Apagar registros, destruir documentos e arquivos, desqualificar os
“adversários políticos”. Isso foi uma prática na ditadura no Brasil. Mas essa
não é a única forma de “apagar rastros” do passado. Advogo que a ditadura
também usou das práticas de apropriação e ressignificação na tentativa
de legitimar-se no tecido social, afinal muitas das técnicas e estratégias
pedagógicas desenvolvidas por Paulo Freire foram utilizadas5.
O uso do Mobral por frases, expressões, conceitos (e etc.) do método
Paulo Freire mostra um refinado processo de esquecimento a ser impresso

5 Apesar da prisão e exílio, Paulo Freire era uma inspiração, de alguma forma, ao Mobral.
Afirmo isso ao constatar o uso dos métodos de palavração e universo vocabular pelo
Mobral. Não estou aqui equiparando os projetos, haja vista o grande fosso ideológico que
os separam. Apenas denuncio a apropriação de conceitos e técnicas pelo governo militar do
trabalho do seu preso e exilado político.
na sociedade, visto que escrever por cima também é uma forma de apagar
rastros do passado (BENJAMIN, 1994). O Mobral ao usar desses recursos
buscou também “higienizar” um passado, aniquilar a memória do derrotado
e se legitimar no campo sociopolítico e educacional. Apresentando-se
como proposta inédita, arrojada e eficiente o Mobral monta uma grande
estrutura que compreendia ações tanto na esfera educacional quanto na
cultural que chegou a todos os municípios brasileiros.

Estrutura e funcionamento do Mobral

O Mobral construiu ao longo dos seus anos de atividade uma


complexa estrutura administrativa, composta por diversos setores que
abrange atividades educacionais, sociais e culturais. O organograma
abaixo apresenta sucintamente os pontos centrais dessa engenharia
administrativa, que são:

ORGANOGRAMA

121

Fonte: Mobral, Origem e evolução, 1971 p.7 - Organograma “Mobral sua


organização de funcionamento”.
Todos esses setores eram orquestrados a nível nacional pelo
Mobral-Central com sede no Rio de Janeiro e sequencialmente pelos
estados e municípios. As decisões eram centralizadas (setores normativos)
enquanto as ações se espraiavam pelas comunidades assistidas (setores
operacionais). Essa estrutura tinha recursos próprios e independia de
decisões do Ministério da Educação, o que em muitos momentos provocou
uma tensão entre as altas esferas educacionais do país6. Os órgãos nacionais,
regionais e municipais tinham suas competências assim dispostas:

Órgão central Órgão Regional Órgão estadual Órgão municipal


(Normativo) (Normativo) (Normativo) (Operacional)
Competências Competências Competências Competências
Coord. geral Coord. regional Coord. estadual Definição de áreas
Políticas Levantamento dos
Controle regional Controle estadual
educacionais analfabetos
Levantamento e
diagnóstico do que
Diretrizes didáticas Avaliação regional Avaliação estadual
estava sendo feito em
alfabetização

Planejamento Recursos humanos Recursos humanos Planejamento

Execução da
Controle avaliação Assistência técnica Assistência técnica
122 campanha
Recursos
- - Treinamento
financeiros

Assistência técnica - - Acompanhamento

- - - Avaliação
Aspectos legais da
- - -
cidadania
- - - Fiscalização
- - - Outros
Tabela 1. Fonte: Informações colhidas nos documentos estruturais do Mobral, adaptadas a
partir dos interesses da pesquisa.

6 Os recursos do Mobral vinham basicamente de duas fontes: A loteria esportiva e o Imposto


de Renda de empresas. Havia uma intensa campanha nos jornais e revistas da época para
os empresários destinassem até 2% de suas receitas (o montante máximo permitido) para
o Mobral.
Essa estrutura estendeu uma grande rede sobre o Brasil permitindo
um maior acompanhamento do cotidiano das cidades o que foi largamente
utilizado para um controle social, tanto nos centros urbanos quanto no
campo. De acordo com o próprio Movimento “O Brasil é ocupado pelas
equipes, palmo a palmo. Por isso, o Mobral é excepcional instrumento
de pesquisa geral, porque penetra nos lugares mais remotos, em missão
apostólica. Milhares de professores e de escolas foram a máquina de
alfabetização – exemplo para o mundo” (MOBRAL, 1975 p.5).
Ainda de acordo com as fontes em análise, o governo militar teria
usado essa rede também para trazer informações sobre possíveis ameaças
comunistas que eventualmente poderiam se infiltrar nas estruturas do
Mobral, além de formar uma massa eleitoral favorável aos apoiadores do
regime.
É perceptível, tanto nas fontes e documentos até aqui coletados
que havia uma peculiar atenção com os sujeitos recém-alfabetizados,
pois eles se constituíam em eleitores e, por isso, o assédio sobre eles era
maior. Durante o curso de alfabetização, que durava cinco meses, os alunos
recebiam orientações no sentido de “se alistarem ao movimento e fazer valer
o seu voto”. Essa possibilidade levou muitos prefeitos a firmarem convênio
com o Mobral para fins eleitoreiros7. As ações empreendidas geraram certa 123
euforia tanto entre os profissionais que trabalharam no Mobral pelos ganhos
financeiros quanto entre os mobralenses (como eram chamados os alunos).
Entre os alunos o entusiasmo estava na visão que lhes era apresentada como
cidadão apto para o voto e para a vida em sociedade. Tal sensibilização
gerou um forte sentimento de gratidão entre os alunos, expresso em cartas
destinadas aos órgãos centrais, das quais destaco:

7 O golpe militar de 1964 proibiu o voto direto para presidente da República e representantes
de outros cargos majoritários, como governador, prefeito de capitais e senador. Para as demais
cidades as eleições aconteciam de forma direta, por isso a retórica sobre a democracia.
Fonte: INEP – Arquivo Mobral, Cx 126, n°192.

124

Fonte: INEP – Arquivo Mobral, Cx 126, n°84 e 85.


O Mobral aparece nessas cartas em grande medida como uma
“Graça divina”. “Dádiva dos céus”, e seus idealizadores como pessoas
humanas, generosas que de “bom coração” assistia os que estavam à margem
do conhecimento. Essa assistência, no entanto, deveria ser cuidadosamente
acompanhada no sentido de gerar eleitores fieis e cidadãos submissos à
nação e ao seu governo.
Cientes do potencial político que a alfabetização promove, o
governo militar se preocupa com possíveis desvios da ordem e alerta:

Anteriormente a revolução de 64, houve um


movimento regional de alfabetização, no Nordeste
(...). Logo após o termino dos cursos, os comunistas
distribuíram entre os recém-alfabetizados, literatura
ideológica de fácil leitura, com o objetivo de
comunizá-los. É possível que as esquerdas procurem
infiltrar-se no próprio Mobral, isto é, entre os
elementos executores do plano de alfabetização, como,
também que, aproveitem os recém-alfabetizados,
principalmente nas regiões rurais, onde existe 125
dificuldade de obtenção de material de leitura (...).8

Com essa preocupação o Serviço Nacional de Informação (SNI)


mantém-se atento às ações educativas realizadas bem como se utiliza delas
para a construção de uma legitimidade. Segundo dados do Mobral-central
as ações educativas do Movimento chegaram a todos os estados brasileiros
e cobria em sua totalidade os municípios9.

8 Presidência da República, Serviço nacional de Informação (SNI). Documento n° 1038, de


10 de outubro de 1972. Fonte: Arquivo Dops-PE. Pasta: Mobral
9 Segundo dados do Mobral-central o Brasil tinha nos anos de 1970, cerca de 3.953
municípios. Todos alcançados pelo Mobral. Nenhum outro programa do governo Federal
tinha conseguido tal feito.
Cartilhas, periódicos e manuais: O material didático produzido
pelo Mobral

O Mobral pôs em circulação uma grande quantidade de impressos.


Os títulos eram publicados pelas editoras Abril Cultural, Bloch Editores,
AGGS Indústrias Gráficas e Gráfica Editora Primo, sob o selo Mobral.
Utilizando a estrutura dessas editoras, seus parques gráficos e imprensas,
o Mobral escoou material didático de Norte a Sul do país. Para um
efeito didático e melhor compreensão da intencionalidade dessas edições e
suas efetivas utilizações, classifico essas fontes históricas da seguinte forma:

Tipos Exemplares Objetivos/ Alcance


• Jornal do Mobral Cunho jornalístico informacional.
Periódicos • Integração Circulação nacional não restrita
• Ação Comum aos alunos do Mobral

Cunho pedagógico de uso


• Livro de leitura
exclusivo de alunos matriculados
• Livro de exercícios nas aulas de alfabetização
Kit do aluno de linguagem
• Livro de
126 matemática

• Cartazes e outros Mapas, cartazes, as palavras-


materiais de apoio geradoras além de orientações
Pedagógico geral • Jornal mural do pedagógicas destinadas aos
Mobral + boletim professores para o uso desses
do mural materiais

• Professor Material usado para o treinamento


• Mobilizador de professores, mobilizadores
• Projeto de e alfabetizadores pelo rádio.
Manuais Circulação restrita aos candidatos
treinamento do
à vaga.
alfabetizador pelo
rádio

Tabela 2: Publicações com selo Mobral editadas entre 1970 e 1980


As entranhas da formação docente e do cotidiano da alfabetização

A ambígua relação do leitor e o escritor remetem a um jogo


de espelhos (PAMUK, 2011). Esse jogo é operado com base nas zonas
de expectativa que um lança sobre o outro e que dá ritmo e o que é lido,
vivenciado e experimentado. Penso que esse jogo se aplica (é praticado) não
apenas por leitores esporádicos ou regulares, e sim por todos os tipos de
leitores que de formas diversas se apropriam do que é lido, mas também são
fisgados pelas iscas estrategicamente deixadas pelos narradores de um texto.
O historiador Roger Chartier, ao inserir nessa problemática a
abordagem histórica amplia a complexidade sobre a história da leitura ao
lembrar a relação existente e estreita entre três pólos analíticos: “o próprio
texto, o objeto que comunica o texto e o ato que o apreende” (CHARTIER,
2006, p.220).
As variações dessa relação triangular permite ao historiador
observar e compreender os acordos silenciosos estabelecidos entre quem
escreve e quem lê, ou nas palavras de Brayner (2005, p. 66) “entre o texto
e o leitor se interpõem um conjunto de expectativas, de um lado e de
outro, definido por um horizonte cultural e histórico (...)”. Deste modo é
127
preciso fazer a reconstituição das distâncias entre as práticas que costuram
os textos, os comportamentos vividos nas interdições e os preceitos de
regulamentação que sugere um “padrão de leitor” (CHARTIER, 1990).
Trago essas questões para pensar que, uma das maiores
preocupações da diretoria do Mobral era uniformizar e disciplinar
o discurso dos professores no tocante a construção de valores e
conhecimentos pedagógicos com a finalidade de garantir a alfabetização
dos mobralenses dentro dos padrões desejáveis do ponto de vista político
para a época. Com tal preocupação é criado “O manual do professor” que
tinha como objetivo formar os alfabetizadores, que para exercerem seu
ofício “bastava apenas ser alfabetizado, ou seja, não era exigido nenhum
grau de instrução formal, muito menos voltada ao magistério (CORREIA,
1979 p. 38).
Esse material destinado aos alfabetizadores (e lhes é apresentado
como material de apoio de uso obrigatório) tem uma aparência “moderna”,
de boa qualidade na impressão e estampa das imagens, o que sugere um
alto investimento na produção do material. Apresenta uma capa de fundo
rosa cheia de cubos coloridos desenhados, com o título Alfabetização:
Manual do professor, tendo logo abaixo o logotipo do Mobral. As páginas
são brancas com impressões em preto e azul e apresentam muitos grifos e
destaques em negrito, o que sugere chamar atenção do leitor para detalhes
importantes. Algumas gravuras compõem o livreto, no geral fazendo
alusão ao que o professor encontrará no livro dos alunos, ou seja, trata-
se das representações dos exercícios e as orientações de como deve ser
respondido.
Já pontuei que o Mobral usou professores leigos e que esses, por
suas diversas limitações de conhecimento, ofereciam um ensino de baixa
qualidade àqueles que tinham menos ou nenhum prestígio social, o que
contribuiu para que o ensino oferecido fosse considerado precário, de má
qualidade.
A formação desse professores se deu nos dois primeiros anos
do Movimento primeiro presencialmente e depois passou a ser feita
128 pelo rádio. Num curso de uma semana, os coordenadores de cada área
treinavam sua equipe de alfabetizadores. A mudança na metodologia da
formação da equipe de alfabetizadores se deu pela necessidade de acelerar
o processo de alfabetização a fim do cumprimento da meta da erradicação
do analfabetismo no Brasil. Escolheu-se então, como meio de treinamento,
o rádio que, pela sua “baixa inércia”, seria capaz de propiciar a preparação
de mais de 100 mil alfabetizadores até fins de agosto de 1972.
Segundo dados do movimento a adesão dos pólos pela formação
via rádio foi rápida. Os municípios teriam se mostrados receptivos afinal,

O projeto, pelo simples fato de ter sido deflagrado,


mostrou a imensa capacidade administrativa e
mobilizadora do sistema Mobral. Rapidamente,
usando rádio e salas cedidas pela comunidade, o
Mobral montou 4 mil rádio postos, fato esse jamais
conseguido anteriormente no Brasil”. (Projeto de
treinamento para alfabetizador no rádio P.3)

Preparando-se para atender a mais de dois milhões de novos


alunos em seus cursos de alfabetização, o Mobral necessitaria contar, até o
segundo semestre de 1972, com recursos humanos no nível das exigências
quantitativas e qualitativas requeridas pelo seu trabalho. Em termos
numéricos, esse acréscimo de alunos, no segundo semestre, demandaria o
engajamento de aproximadamente cento e oito mil alfabetizadores.
Tendo o Mobral que procurar soluções para acelerar o treinamento
de novos alfabetizadores, uma vez que o modelo anteriormente utilizado
– treinamento direto, baseado no efeito multiplicador – não atenderia a
pressa em fazer mudar os índices de analfabetos no país, optou-se por um
programa radiofônico. Este teria a vantagem de poder ser levado, numa
mesma época, a todos os alfabetizadores, em vários pontos do país e com
um conteúdo básico “garantido”.
Os desafios da formação aligeirada era apenas a porta de entrada dos
percalços que a tarefa de alfabetizar o Brasil impunha a esses trabalhadores. A 129
ausência de uma estrutura física nos municípios brasileiros, principalmente
no interior era sem dúvida, um dos aspectos mais nodosos do trabalho. Sem
cadeiras, luz e espaços adequados para o ensino e aprendizado, o trabalho
dos alfabetizadores era marcado por desafios constantemente relatados por
eles em suas cartas-relatórios enviadas ao Mobral Central. As Cartas dos
alfabetizadores ao Mobral Central expõem cenários de privações como a
de Maria Furtado trazida abaixo:
130
Fonte: INEP – Arquivo Mobral, Cx 126, n°54.

Essa carta chama atenção por diversos aspectos. A primeira delas


é a possibilidade de lermos o Mobral, suas ações e perspectivas a partir da
narrativa dos alfabetizadores que compuseram um dos maiores programas
de educação de massa realizado no Brasil. Conhecer suas necessidades
“embora muito poquinho já me serve para ajudar a crear meus filinhos que
são nove”, anseios em torno de uma melhoria de vida através do trabalho
“Mais a Deus querer, possa ser que ainda venha um bom aumento”,
seus desafios cotidianos na esfera educacional nas regiões mais inóspitas
do Brasil “Como tambem: para comprar o Querosene pois moro fora da
Cidade dois Quilômetros e não tem Luz”.
Pelo discurso oficial, os alfabetizadores são colocados em lugar
de destaque no processo. Segundo o manual “A tarefa do alfabetizador
neste processo é bastante importante, mesmo que não seja profissional
especializado. Não é necessário possuir um diploma de professor e nem
prática anterior de alfabetização para levar adiante o trabalho” (p.5).
Bastava boa vontade, saber ler e escrever e entender que a responsabilidade
pelo analfabetismo no Brasil era fatoriada por toda a sociedade.
Compreender essa informação é fundamental para entendermos
que papel o livro “Manual do Professor” tem na constituição do professor
do programa, uma vez que esse era seu principal suporte nas diretrizes
pedagógicas.

Conceitos fundamentais da pedagogia do Mobral

Em 1979, a dissertação de mestrado de Gilberta Jannuzzi, defendida


pelo programa da PUC em São Paulo ganha o cenário acadêmico, em
especial no meio educacional, ao fazer um “Confronto pedagógico entre
Paulo Freire e o Mobral”10. Segundo a autora, do ponto de vista pedagógico,
há um grande fosso que separa a proposta Paulo Freiriana da proposta 131
do Mobral. No entanto, há aqueles que acreditam que o MOBRAL foi o
“aperfeiçoamento do sistema Paulo Freire” de um lado e em oposição a
essa linha de pensamento aqueles que não veem possibilidades para
comparação.
Os pontos sucursais dessa divergência estariam: na concepção
e finalidade da educação, no conceito de desenvolvimento e o papel da
educação na promoção deste, o método e as técnicas para preparação dos
materiais para alfabetização.

10 Esse trabalho foi publicado em 1979 tendo uma segunda edição em 1983 e historicamente
situa-se num contexto da “Abertura Política” onde críticas mais abertas ao regime ganhavam
protagonismo.
Colocando os projetos em paralelo teríamos:

PAULO FREIRE MOBRAL


Educação é conscientização Educação é adaptação, reciclagem constante

A educação é vista como elemento Assume a educação como investimento,


fundamental para uma reflexão radical preparação de mão-de-obra para o
da realidade. desenvolvimento econômico.

Analisa criticamente a realidade Oculta a realidade mostrando o bem-estar


brasileira colocando o educando como dos grupos integrados no mercado de
sujeito capaz de provocar as mudanças. trabalho; fazendo sua clientela perceber-
se como “marginalizada” por não ter
desenvolvido as habilidades necessárias a
ingressar neste grupo.

Concebe o mundo “em aberto”, isto é, a Concebe o mundo como pré-determinado


ser transformado em diversas direções sempre para o desenvolvimento dentro dos
pela ação dos homens. moldes prescritos pela elite.

Quanto ao método Paulo freire é O Mobral é vertical e antidialógico. É


dialógico e horizontal autoritário porque acredita que sabe o
que é melhor para o povo. Procurando
trazer o mobralense para um modelo
que não discute, mantém a verticalidade
132 metodológica, mesmo quando procura em
integração didática os melhores meios para
cumprir os objetivos.

Técnicas de alfabetização: levantamento Não tem essa etapa


junto à comunidade das palavras
geradoras
Descodificação Decodificação

Tabela 3: Análise comparativa entre as propostas pedagógicas do Mobral e as de Paulo


Freire.

Essas distintas propostas produziriam um “alfabetizado” com


características bem diferentes: de um lado um sujeito crítico e protagonista
de uma revolução social e outro um sujeito pronto à subordinação imposta
pelo Estado.
A metodologia utilizada pelo Programa de Alfabetização Funcional do
Mobral pode ser considerada uma das chaves na formação desses sujeitos e
baseava-se em seis objetivos:

1. Desenvolver nos alunos as habilidades de leitura,


escrita e contagem; 2. Desenvolver um vocabulário
que permita o enriquecimento de seus alunos; 3.
Desenvolver o raciocínio, visando facilitar a resolução
de seus problemas e os de sua comunidade; 4. Formar
hábitos e atitudes positivas, em relação ao trabalho;
5. Desenvolver a criatividade, a fim de melhorar
as condições de vida, aproveitando os recursos
disponíveis; 6. Levar os alunos: a) a conhecerem
seus direitos e deveres e as melhores formas de
participação comunitária; b) a se empenharem na
conservação da saúde e melhoria das condições
de higiene pessoal, familiar e da comunidade; c)
a se certificarem da responsabilidade de cada um,
na manutenção e melhoria dos serviços públicos
de sua comunidade e na conservação dos bens e 133
instituições; d) a participarem do desenvolvimento da
comunidade, tendo em vista o bem-estar das pessoas
(Coleção Mobral. MOBRAL: Origem e evolução p.9).

Baseado em tais princípios, o Mobral afirma ter alfabetizado


entre os anos de 1970 a 1973 aproximadamente 4,9 milhões de jovens e
adolescentes em todas as regiões do Brasil11, dados que seriam severamente
questionados pelo senso do IBGE e pela sociedade anos depois.

11 Dados apresentados pelo então Ministro da Educação Ney Braga no livro “Soletre o
Brasil e Leia Mobral” publicado em 1975, p.2.
Um balanço inacabado do Movimento

Com a chegada dos anos 1980 o Mobral passaria a ser cobrado


em suas metas. Afinal toda sua exposição midiática afirmava que em dez
anos o programa seria extinto, pois não haveria mais analfabetos no Brasil,
marca que nunca alcançaríamos, até hoje!
Volto à epígrafe que abriu o texto. O recorte em destaque
publicado pelo jornal O globo afirma que o próprio Ministério da Educação
reconhecia o “fracasso do Mobral”. O Estado de São Paulo traz na manchete
do dia 14 de setembro de 1980 “Mobral comemora dez anos: ainda temos
analfabetos”. E esses não seriam os únicos. Em todo o Brasil, onde o Mobral
esteve presente, foi notícia e a promessa era cobrada.
O Mobral fracassou na sua principal e ousada meta: erradicar
o analfabetismo em dez anos. E não só. Passou ao largo desses índices
utilizando muitos recursos e apresentando resultados considerados
medíocres pelos críticos do período. Isso resultou ironicamente numa
ressignificação do próprio termo do ponto de vista léxico, afinal o
que é “Mobral” hoje? O termo “Mobral” ganhou ao longo dos anos
uma conotação pejorativa, passou a ser associado ao analfabetismo, a
134
incapacidade intelectual, a ingenuidade e despreparo. O tempo modificou
o conceito! Se nos anos 1970 o Mobral era sinônimo de esperança,
cidadania e conhecimento os cinquenta anos que se seguem pós-golpe
não sustenta mais esse tom.
A inconsistência dos resultados levou o Mobral a ser alvejado por
muitos críticos que, na fase final da ditadura denunciavam o desperdício
e o desvio de verba destinado ao programa que não alfabetizaria de fato,
mantendo um grande contingente de adultos na condição de “regressão”.
O conjunto dessas críticas levou o corpo técnico do Mobral a uma
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que se arrastou até o final do
ano de 1979, instaurada pelo Senado Federal, baseada nos discursos dos
Senadores João Calmon, Luiz Viana, Jarbas Passarinho e Eurico Rezende,
em virtude da denúncia de atendimento a crianças de nove a quatorze anos,
e de desvio de recursos. O saldo da CPI foi desanimador para os críticos do
projeto, pois não levou ninguém a condição de culpado.
Entretanto, o Mobral não resistiu à crise interna e externa à sua
estrutura. A recessão econômica iniciada nos  anos 1980  inviabilizou a
continuidade do Mobral, que demandava altos recursos para se manter.
Seus programas e patrimônio foram assim incorporados pela  Fundação
Educar, mais um projeto que se lançava no sentido de fazer aquilo que o
Mobral não conseguiu fazer: por fim ao analfabetismo no Brasil.
Toda retórica ufanista do Mobral não resultou em positivo legado
para si. O esforço empreendido para se fazer memorável falhou. O tempo é
produtor de sentidos e por mais que os idealizadores do Mobral desejassem,
as apropriações sobre essa história não lhes é propriedade. O passado não
tem um dono, um único sentido e um único uso. Podemos ingenuamente
negar nisso por um tempo, até que o fenômeno da ressignificação mova as
nossas certezas.

Fontes

135
Manuscritos
• Cartas dos alfabetizadores do Mobral ao Mobral-Central (1970 – 1980)
• Cartas dos alunos do Mobral ao Mobral-Central (1970 – 1980)
• Poesias escritas pelos alunos do Mobral para o Jornal do Mobral (1970 –
1980)

Selo Mobral
BRASIL, Fundação Movimento Brasileiro de Alfabetização. A clientela do Mobral:
suas características socioeconômicas, Rio de Janeiro, 1974.

_________, Fundação Movimento Brasileiro de Alfabetização. Documento básico


MOBRAL, Rio de Janeiro, 1973.
_________, Fundação Movimento Brasileiro de Alfabetização. Política e pesquisa e
treinamento do MOBRAL. Rio de Janeiro, 1973.

_________, Fundação Movimento brasileiro de alfabetização. Soletre Mobral e leia


Brasil, Rio de Janeiro, 1975.

_________, Fundação Movimento brasileiro de alfabetização. Mobral: Teoria e


pesquisa, Rio de Janeiro, 1979.

_________, Fundação Movimento Brasileiro de Alfabetização. Manual do professor.


Rio de Janeiro, 197?.

Jornais
• Folha de São Paulo
• O globo

Referências bibliográficas

136
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2011.

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TELES, Edson (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: 137
Boitempo, 2010.
O historiador, o tempo e a ampulheta...

Marcelo Góes Tavares

Quero por os tempos, em sua mansa ordem, conforme


esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem,
entre a vontade de serem nada e o gosto de me
roubarem do presente.
(Mia Couto- Terra sonâmbula )

Alice: “Quanto tempo dura o eterno?”


Coelho: “As vezes apenas um segundo.”
(Lewis Carrol - Alice no país das maravilhas)

Dizer o tempo! Tarefa complexa e desafiadora ao historiador. Dizer


a duração de um tempo implica em um ato de “contar”, verbo que expressa
atividade com dupla conotação. Contar é uma demarcação onde calculamos
frações de tempo e organizamos em sucessões de escalas cronológicas.
Contar também possui o sentido de narrar, de organizar uma história na 139
qual se registra a existência humana e seus acontecimentos.
Conta-se que no dia 05 de agosto de 1997, às 07 horas e 45
minutos, tocou o apito da Fábrica Carmen em Fernão Velho - Maceió - AL,
iniciando o primeiro turno de trabalho. Não se tratava de um dia qualquer.
A produção da fábrica estava parada há 11 meses, desde outubro de 1996
quando o Grupo Othon Bezerra de Melo, que a administrava durante 54
anos, havia fechado seus portões suspendendo seu funcionamento iniciado
em 1863. A reabertura da fábrica, em 1997, foi marcada por um apito, que
normalmente tocava a cada início e término de turno durante a produção,
demarcando também a alternância das escalas de operários no exercício de
seu labor. Nesse dia, o apito foi longo e estridente, fazendo eco em toda a
comunidade de Fernão Velho.
[...] Foi uma verdadeira festa onde a euforia e a
emoção, traduziam um enorme contentamento nos
semblantes alegres do povo com abraços, muitos
fogos de artifícios e finalmente lágrimas rolando
sobre as faces, mas de alegria e felicidade, porque a
fábrica reabriu [...].(FERREIRA, 1997:17).

A celebração desse dia foi um momento no qual se produziam


múltiplos sentimentos sobre aquele presente, mas também sobre o passado
e as expectativas do futuro de todos que ali trabalhavam e dependiam
daquele labor fabril... Ou mesmo as incertezas em relação ao próprio
território de Fernão Velho cuja fábrica e complexo produtivo também
serviam como referencia de identidade e histórias.
Desse modo, os sentimentos e expectativas entre a população
daquele território fabril são também significantes do tempo. Possibilita-nos
problematizar os possíveis sentidos dessa fábrica para aqueles operários.
Estes foram e são construídos historicamente, cotejados pelo trabalho e
diferentes gestões pelas quais essa fábrica passou desde 1857, ano em que
foi fundada por José Antonio de Mendonça - o então Barão de Jaraguá - e
140 o comerciante Tibúrcio Alves de Carvalho quando receberam autorização
pela Carta Régia nº 617 do Imperador D. Pedro II1 para sua instalação e
funcionamento.
Neste artigo problematizo o tempo como complexa categoria
1As informações sobre a data de criação da Companhia União Mercantil em 1857,
posteriormente denominada Fábrica Carmen, são imprecisas. No relato memorialista de
Veríssimo Ferreira (1997), intitulada “História de Fernão Velho”, toma-se como referência
o dia 01 de setembro. Na enciclopédia “Terra das Alagoas”, faz alusão à data de 21 de março
para início do funcionamento. Para Moacir Medeiros de Sant’Ana (2011) em seu livro
“Contribuição à história do açúcar em Alagoas”, toma-se como referência o dia 31 de janeiro
para instalação e 23 de fevereiro para criação do primeiro estatuto do empreendimento.
Para este autor, o decreto imperial autorizando o funcionamento ocorreu em 22 de agosto.
Ressalto que até o momento de escrita deste artigo, não tive acesso a documentos da Fábrica
que possibilitassem esclarecer melhor essa data. Por outro lado, também deixo claro que
uma pesquisa sobre fundação e origens não é meu foco de trabalho, importando-me os
processos, as tramas, tensões, oque se passa entre nas experiências históricas.
na escrita da história, tomando como objeto de reflexão a história fabril
de Fernão Velho. Inicialmente me debruço em situar espacialmente essa
localidade, destacando as intersecções narrativas entre tempo e espaço.
Em um segundo momento, dedico-me a problematizar alguns percursos
metodológicos para a escrita da história na sua relação com a temporalidade.
Aponto paradigmas epistemológicos que permitam outras concepções de
tempo de modo que seja plural e aberto, passível de ser demarcado em
estratos que se entrecruzam por meio de múltiplas experiências. Por
fim, priorizo um exercício de narrativa como atividade significante do
tempo humano, movendo-se entre um tempo linear e outro, em aberto e
entrecruzado a partir da experiência humana. Possibilita-se desse modo,
perceber a mão do historiador movendo a ampulheta como metáfora para
a dupla acepção do ato de contar, e também da história em sua possível
multiplicidade.

O tempo e múltiplas representações do espaço

Uma história da produção fabril e trabalho operário no ramo


têxtil que remete ao século XIX no Brasil, e que para alguns, deveria ser
141
rememorada. Veríssimo Ferreira, funcionário aposentado da fábrica onde
trabalhou como auxiliar de escritório, nesse ano de 1997 escreveu um relato
memorialista. Neste, se utilizou de suas próprias memórias e experiências
como fontes. Seu conhecimento sobre esse território fabril era amplo,
tendo também atuado em órgãos de representação operária. Foi presidente
da Caixa Beneficente dos Trabalhadores de Fernão Velho a qual prestava
serviços a exemplo de auxílio funeral, e do Sindicato dos Trabalhadores
Têxteis de Fernão Velho. Em ambos, foi associado por mais de 20 anos. Foi
ainda maestro regente da banda Othon mantida pela fábrica. Considera-se
um dos fundadores dessa banda.
Seu relato consiste em um documento composto por três partes.
A primeira, intitulada História de Fernão Velho, recupera o processo de
formação do território fabril de Fernão Velho, evidenciando as diferentes
administrações que geriram a fábrica. Identifica diretores, gerentes, práticas
festivas, as realizações de cada grupo empresarial, e aspectos diversos
sobre as condições de vida na vila operária. A segunda, denominada de
“Histórico da Fábrica Carmen”, é mais sintético e tece um breve histórico da
fábrica. Complementa o primeiro relato, identificando alguns personagens
que trabalharam na fábrica. A terceira parte, “Saudades da banda de música
Othon”, dedica-se mais incisivamente a algumas formas de ocupação
do trabalhador fora da fábrica, seja através da banda de música da qual
Veríssimo também foi integrante, seja o time de futebol “Othon Esporte
Clube” que disputava o campeonato estadual e mobilizava sua torcida
operária. Ambos eram mantidos pelo grupo Othon. Nesta, lembra também
o grupo de escoteiros, a escola, o quantitativo de funcionários, e as diversas
festividades. A banda é uma referência, estando presente em diversos
eventos cotidianos na vila operária, na medida em que “Música é arte,
música é cultura” (FERREIRA, 1997:23). Por fim, conclama, “Não deixe
Fernão Velho morrer”.
Para Veríssimo Ferreira (1997:17), com a reabertura “quebrava-
se aquele nostálgico e melancólico silêncio de 11 (onze) meses” marcado
pela paralisação da produção, mas também pela dúvida em relação à
142 continuidade dessa história que deveria ser eternizada como relato de
memória e na continuidade da produção têxtil.
Como um Heródoto em nosso tempo presente, Veríssimo afirma
sua autoridade de conhecimento, o que pressupõe, legitimidade à sua
intencionalidade memorialística sobre esse território. “Sendo eu com muita
honra, um remanescente de uma geração remota, quero com absoluta
segurança, ratificar aquilo que disseram os antepassados referente ao alto
da Vila Bela Vista. Devo dizer que conheço meu Fernão Velho há setenta
anos”(FERREIRA, 1997:1).
É também através de sua própria narrativa que Veríssimo Ferreira
se coloca ao esforço de síntese do tempo, e rememoração de suas vivências e
de seus antepassados nessa história. Há no tempo presente de sua produção
memorialista, uma tensão entre o lembrar, o esquecer, e as incertezas do
futuro caso a fábrica fechasse, podendo-se também perder referências para
a história de Fernão Velho.
Ao narrar no campo da história, percebo também a plausibilidade
da resposta do Coelho a Alice de Lewis Carrol, e preocupação de Mia
Couto na epígrafe desse texto. Ou seja, ao contar o tempo, possibilitamos
fazer caber a eternidade em um segundo. Permitimos o deslocamento
entre diferentes tempos, alcançando os aparentemente imemoriais, cujas
lembranças podem desobedecer dadas a distância no tempo e a imprecisão
de seus registros. Assim, julgo necessário cotejar o diálogo entre diversas
memórias e relatos, de Veríssimo e outras produzidas em diferentes tempos,
articulando-as através de um duplo esforço de contar no campo da história:
narrar de modo a possibilitar dar sentido às experiências fabris em Fernão
Velho e temporalizar seus acontecimentos.
A cronologia organizada no relato escrito por Veríssimo Ferreira
(1997) nos permite aproximar o passado mais distante ao nosso presente.
Embora a fábrica tenha sido fundada em 1857 no ramo têxtil com seções
de fiação e tecelagem, seu relato remete até o ano de 1811, situando o que
também compreende geograficamente Fernão Velho na cidade de Maceió
– AL, antes mesmo de se tornar um território fabril.
143
O distrito de Fernão Velho, situado na periferia de
Maceió, capital do Estado de Alagoas, logo depois
de Bebedouro, banhado pela Lagoa Mundaú ou do
Norte, como chamavam os antigos, tem uma história
e origem muito remotas, vindas dos tempos do
Primeiro Império, quando os pescadores da Levada ali
penetravam pelos canais da lagoa, e conheceram pela
primeira vez o sítio Fernão Velho, provavelmente nos
idos de 1811 e 1815. [...] Diziam os antepassados que
ali no alto da Vila Bela Vista, onde fora simplesmente
mata, residia um senhor numa casinha de taipa o qual
chamava-se Fernão. Ao redor daquela casinha, por
sinal a única existente no meio daquela mata, também
existiam vários pés de cajueiros e de mangueiras. Com
o decorrer dos tempos, o seu Fernão ficara bastante
conhecido e por isso recebia muitas visitas dos
moradores da Levada e de Bebedouro, naturalmente à
procura daquelas frutas: cajus e mangas. Tanto é que o
seu Fernão, por ser um homem de idade já avançada,
os referidos visitantes nomearam-no de Fernão Velho
(FERREIRA, 1997:01).

Esse relato dá visualidade à existência de múltiplos cenários na


constituição de imagens sobre esse território. Qualificado inicialmente
como “periferia2”, é somado aos demais espaços da cidade como os bairros
da Levada e Bebedouro, todos na margem sudoeste de Maceió. Nesta, a
cidade também é margeada pela laguna Mundaú que em comunicação com
a laguna Manguaba formam um complexo lagunar e lacustre com múltiplos
sistemas de canais. Esse complexo lagunar também se conecta ao mar,
permitindo um intermitente fluxo de navegação e circulação de pessoas
e produção entre os municípios que dele fazem parte e que influenciam
144 simultaneamente uns aos outros, cultural e economicamente. Além de
Maceió, os municípios de Marechal Deodoro, Pilar, Coqueiro Seco, e Santa
Luzia do Norte fazem parte dessa região, ampliando-se sua influência para
outros municípios próximos3.
2Entende-se aqui, que o autor memorialista Veríssimo Ferreira ao ter mobilizado a ideia de
periferia não tenha tido a intenção de operá-lo em um sentido sociológico de pobreza ou
mesmo subdesenvolvimento econômico, mas de um subúrbio com características próprias,
inclusive dificuldade de acesso e certo isolamento geográfico na cidade de Maceió.
3 No passado colonial do Brasil, essa região lagunar compreendia o terceiro foco de
povoamento no território de Alagoas, sul da Capitania de Pernambuco. Foi também área de
administração colonial do território alagoano, tendo sido posteriormente no século XIX o
município de Marechal Deodoro outrora conhecido como Maria Magdalena Alagoas do Sul,
a primeira capital de Alagoas. Ainda nesse século XIX, no município de Pilar foi registrada
a presença de uma indústria têxtil. Trata-se da Companhia Pilarense de Fiação e Tecidos,
instalada no município em 1892 (MARROQUIM, 1922). Já no município de Santa Luzia do
Norte, contemporâneo de Fernão Velho e Pilar, a Fábrica Cachoeira foi fundada em 1888.
Este complexo lagunar por suas características ambientais
proporciona para a população nele residente um sistema geográfico
altamente produtivo como fonte de alimentos, seja pelos recursos pesqueiros
ou pela condição de clima tropical que favorece o desenvolvimento da
agricultura. Nesta, além do cultivo da cana-de-açúcar, eram e ainda são
predominante atividades como a pesca, coleta de moluscos e crustáceos,
agricultura familiar de frutas, verduras e outros gêneros alimentícios. No
tocante à implantação de instalações fabris no ramo têxtil, os mananciais
hídricos eram preponderantes para a geração de energia a vapor4.
A referência ao Alto Bela Vista destacada por Veríssimo Ferreira,
também é um marco espacial para Fernão Velho. Este faz parte de um relevo
formado por tabuleiro5, formação geográfica presente na cidade de Maceió,
que além de praias, possui áreas de mangue, laguna e mata atlântica. Fernão
Velho fica incrustado entre um dos tabuleiros da cidade e a laguna Mundaú.
A localização de Fernão Velho também ganha destaque nos registros
da cidade no início do século XX, produzindo outra representação que embora
seja diferente da que Veríssimo Ferreira narra, as duas em diálogo tornam
possível uma melhor materialização visual. Trata-se da fotografia produzida
pelo jornalista e fotógrafo Luiz Lavenère Wanderley (1868 – 1966). Foi um
dos mais relevantes fotógrafos da cidade de Maceió no início do século XX6, 145
documentando imageticamente o espaço urbano, inclusive publicando suas
fotografias em um periódico ilustrado denominado “A conquista”.

Com o desmembramento territorial deste município, esta fábrica passa a se localizar no


município de Rio Largo à noroeste de Maceió. Formou junto com a Fábrica Companhia
Progresso Alagoano (1892), a Companhia Alagoana de Fiação e Tecidos (PAIVA FILHO,
2013).
4STEIN, Stanley J..Origens e evolução da indústria têxtil no Brasil. 1850-1950. Rio de
Janeiro: Editora Campus, 1979. (p.37)
5Na formação morfológica da geografia costeira, entende-se por tabuleiro um pequeno
platô de altitude modesta, podendo variar entre 20 e pouco mais de 50 metros de altura.
6 LAVENÈRE, Luiz; SANT’ANA, Moacir Medeiros de. A fotografia em Maceió (1858
– 1918). In: Revista do Arquivo Público de Alagoas. Nº01. Maceió: Arquivo Público de
Alagoas, 1966 (p.124-5).
Foto: Fernão Velho. Autor: Luiz Lavenère Wanderley, [1911].
Acervo de fotografias do Arquivo Público de Alagoas

146 Esta foto data provavelmente do ano de 1911 quando Luiz


Lavenère produziu uma série de registros da cidade, podendo ser
também de um momento anterior, pois sua catalogação não traz esse
dado. Compõe uma coleção localizada no Arquivo Público Alagoano.
Esta imagem nos fornece uma vista parcial e panorâmica dessa área de
Maceió, tomando Fernão Velho e a laguna Mundaú como referências.
Podemos perceber nela a predominância da vegetação de mata atlântica
nas encostas do tabuleiro desta localidade. Em seguida, em uma área mais
baixa e no mesmo nível da laguna Mundaú à direita, indico no centro
da fotografia a localização de Fernão Velho já como um território fabril,
posterior ao tempo de “seu Fernão o velho”. E no alto do tabuleiro, o que
Veríssimo Ferreira, quase cem anos depois desse registro fotográfico,
menciona tendo sido Alto Bela Vista.
Em uma imagem mais contemporânea, produzida por satélite
e disponível em 20147, é possível visualizar a localização Fernão Velho.
Percebe-se que nesta está inclusa uma área não construída posteriormente o
registro da imagem de Lavenère. Trata-se do ABC, conjunto de edificações
localizadas no canto superior esquerdo da imagem, resultado da expansão
de casas operárias construídas pela fábrica.

Imagem de satélite: Abrangência do Território Fabril de Fernão Velho. Fonte: Aplicativo 147
Google Earth, disponível em https://www.google.com.br/intl/pt-BR/earth/download/
thanks.html#os=win#chrome=yes#chromedefault=yes#usagestats=yes#updater=yes

Ganha ainda destaque nessa imagem, a continuidade de uma


vegetação de mata circundando esse território fabril, servindo como um
limite demarcador nesse espaço urbano de Maceió, separando Fernão
Velho dos demais bairros que integram essa margem da cidade. Nas duas
imagens, podemos ainda perceber a presença da mata e os limites do

7 Esta imagem de satélite foi capturada através do aplicativo Google Earth disponível na
internet. Sendo uma imagem de satélite, a atualização desta depende de novos registros que
o satélite realiza no momento em que passa por esse quadrante no planeta. Desse modo, se
hoje acessarmos o aplicativo, a imagem disponível não corresponderá necessariamente ao
que se apresentava geograficamente no ano de 2014.
tabuleiro e laguna, o que pode nos dar indícios sobre as dificuldades de
acesso e saída. Pressupõe um isolamento que contribui para a prática de
confinamento dos operários nos domínios da fábrica.
Aliás, é essa uma das características para os territórios fabris
apresentadas pelos historiadores José Sérgio Leite Lopes8 e Margareth
Rago9, corroborado por Telma de Barros Correia10 e Ivo dos Santos Faria11
nos casos alagoanos. Situação geográfica que favorecia o isolamento dos
operários, sendo esta uma técnica disciplinadora que arregimentava,
controlava e com uso de outras técnicas, higienizava os operários. Permitia à
fábrica controlar seu trabalho, vida social e tempo de seus operários através
de um sistema de Fábrica com Vila Operária onde o patrão disponibilizava
todo o básico à sobrevivência de seus empregados.
Ao entrecruzar as temporalidades e informações presentes em
ambas as imagens, a mais antiga e atual, respectivamente capturadas por
máquina fotográfica e satélite, visualizamos também a amplitude das
instalações desse território fabril, formando um complexo de Fábrica com
Vila Operária. Neste incluíam-se também outras instalações onde eram
oferecidos serviços diversos aos operários, como sede do Sindicato, sede
da Caixa Beneficente, ambulatório, quadra de esportes, estação de trem,
148 Recreio Operário, mercado, cinema, entre outros.
Nestes espaços, práticas e idéias que circulavam culturalmente na
cidade e no Brasil também estavam presentes. Era comum a reprodução
de filmes hollywoodianos para os operários, conforme destaca Zequinha
Moura, operário aposentado e entrevistado em 2014. Foi a partir do hábito
de frequentar as sessões de filmes no cinema da vila operária, que até hoje
ele nutre o gosto por filmes de western e lembra a admiração que tinha
8LOPES, José Sérgio Leite. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés.
Brasília: EdUnB, 1988.
9RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar (Brasil 1890-1930).
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
10CORREIA, Telma de Barros. Pedra: plano e cotidiano operário no sertão. Campinas:
Papirus, 1998.
11FARIAS, Ivo dos Santos. Nossa casa é do patrão. Dominação e resistência operária no
núcleo fabril de Fernão Velho – Maceió/AL. Curitiba: Appris, 2014.
pelos atores americanos protagonistas no seu tempo de juventude. Da sua
infância, lembra a preocupação de todos com a iluminação noturna durante
a Segunda Guerra, iluminação esta que poderia revelar as instalações
fabris para aviões militares inimigos que por ventura sobrevoassem
aquela localidade. Era um território de difícil acesso, mas que mantinha
permanentemente conexões com a cidade de Maceió e o mundo.
A navegação permitia o deslocamento de pessoas através da laguna
Mundaú, seja para o bairro da Levada conforme narra Veríssimo Ferreira,
seja para outras localidades. A linha férrea existente desde o século XIX
ligando a vila ao centro de Maceió, permitia o abastecimento de matéria-
prima - nesse caso o algodão -, a chegada de maquinário importado e uma
expressiva população a ser arregimentada pela oferta de trabalho na fábrica.
Ainda hoje mantêm fluxo intermitente de pessoas. A circulação de ideias e
valores culturais, a exemplo do cinema e de jornais impressos, transpondo
as fronteiras físicas e limites de deslocamentos daqueles que viviam na vila
operária. Fernão Velho estava integrado ao território de Maceió, porém
com especificidades geográficas, econômicas e sociais, o que interferia
diretamente no ritmo do cotidiano das pessoas que ali trabalhavam e
viviam em cada tempo nesses espaços que constituem o território fabril.
149
A estratigrafia do tempo histórico e a experiência como recursos
metodológicos na escrita da história

Heinhart Koselleck, em “Estratos del tiempo” (2001), operacionaliza


o tempo histórico utilizando a ideia de “estrato”, termo muito mobilizado
na Geologia. Este campo de saber, entre suas várias abordagens e métodos,
interpreta a composição e processo de formação dos solos e relevos
utilizando um recorte vertical no local a ser temporalizado, medindo o
tempo geológico através de camadas, de estratos formados por diferentes
composições, profundidades, durações, sucessões e sobreposições de
materiais diversos que o compõe. Realiza-se, portanto, uma estratigrafia
como panorama da história do solo e sua temporalidade em termos de
processo de sedimentação, de formação de cada camada.
Cada estrato ou camada do solo é resultado de um processo singular
de sedimentação, assim como também possui diferentes composições de
materiais. A priori, quanto mais fundo esteja o estrato, mais antigo são os
materiais que o compõe. Mas isso não é uma regra! É possível e comum no
movimento do solo – e por que não dizer da história – que um estrato mais
antigo devido a força que o mova, emerja sobrepondo-se ou misturando-
se a outros estratos mais recentes. Dentro de um mesmo estrato podemos
encontrar materiais com distintas datações, dados os deslocamentos
possíveis que estes possam ter sofrido. Desse modo, o tempo geológico não
segue necessariamente uma linearidade, do mais antigo para o mais recente.
Importa a leitura da composição do estrato e o lugar que este ocupa na
formação do solo. Ou no campo da história, a possibilidade de evidenciar
a presença do passado no presente, através de experiências históricas que
se deslocam no tempo, entrecruzando-se diferentes temporalidades e
experiências...
O próprio tempo também se torna uma experiência, rompendo-
se com uma ideia de tempo homogêneo e linear influenciada por uma
visão de progresso na qual o tempo histórico é normalmente representado
150 como sucessão de fatos e um futuro em aberto. Para Koselleck (2006), esses
modelos são insuficientes para representar o tempo histórico.

O tempo, aqui, não é tomado como algo natural e


evidente, mas como construção cultural que, em
cada época, determina um modo específico de
relacionamento entre o já conhecido e experimentado
como passado e as possibilidades de se lançarem ao
futuro como horizonte de expectativas. (KOSELLECK,
2006:09)

Reconhece ainda, a coexistência de vários “estratos de tempo”,


permitindo a separação analítica dos seus diferentes níveis temporais
em que experiências e acontecimentos são materiais que contribuem
para a compreensão de sua composição. Importam-nos, no campo da
história, as experiências que constituem o esforço de dizer o tempo como
transitório, múltiplo e entrecruzado. É na tessitura da narrativa que se
confere sentido ao tempo.
Não se trata de uma história episódica e nem tampouco um outro
modelo de tempo linear e homogêneo. Este é dilacerado, evidenciando-se
os “agoras” como proposto por Walter Benjamin (1996), preenchido por
múltiplas experiências, legando rastros que são deslocados ao presente.
Propõe-se pensar a construção do tempo como uma experiência, seja
cultural ou mesmo operacional na produção da narrativa historiográfica.
O tempo histórico como espaço da experiência suscita a descoberta e a
significação.
Para Walter Benjamin (1996), a noção de experiência pode ser
compreendida como os rastros deixados por nossos antepassados de
modo que marcam nosso tempo através de ensinamentos que compõe
a matéria social. A modernidade, por sua vez, perpetua a pobreza de
experiência, seja pela ausência de rastros ou mesmo uma presença do
passado sem significação. Esta mesma modernidade também transforma
nossa concepção de tempo, sobretudo pelo advento da tecnologia e das 151
novas formas imediatistas de narrar e conceber o tempo, a exemplo da
difusão de notícias instantâneas, curtas e rapidamente inteligíveis. O valor
destas se dá apenas enquanto é configurada como novidade imediata. Em
todo momento recebemos notícias, porém somos pobres em histórias
surpreendentes. Não se abstrai nenhum ensinamento, sabedoria ou
mesmo a própria experiência, mas apenas a informação pura em si. Nesta,
não se matura a experiência no tempo.
Há de se pensar sobre novas formas de narrativas que permitam a
leitura do mundo no tempo. Narrar implica em intercambiar experiências
mobilizadas pela memória, de modo que quem narra possa prover uma
lição que enriqueça o outro a quem se conta uma história. A narrativa
sugere a continuação re-significada e transformada da história que está
sendo contada. É também uma experiência conjunta entre narrador
e ouvinte. A matéria do narrador é a vida humana. A experiência que
passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores
(BENJAMIN, 1996: 198). Esta, quando suscitada na narrativa, possibilita
um processo de rememoração no qual o passado é mobilizado contra o
esquecimento e o silêncio. Constitui-se também toda uma sabedoria que
nos leva a pensar sobre nossa própria existência enquanto experiência
presente e experiência humana em relação ao tempo.
Nessa articulação entre experiência e tempo histórico, podemos
identificar, segundo Koselleck (2001), três níveis de estratos de tempo:
o tempo como experiência única, surpreendente e irreversível; o tempo
em aberto, passível de ser sempre revisitado possibilitando narrá-lo e
interpretá-lo de diversas formas; e os tempos históricos que se sobrepõem
uns aos outros através das experiências e gerações dos sujeitos. Portanto,
podemos, através da estratigrafia do tempo, medir diferentes velocidades
de sua formação, sejam vertiginosas ou lentas. Tornam-se também
visíveis, trocas ou sobreposições que produzem entrecruzamentos de
diferentes experiências de indivíduos e gerações.
No caso de Fernão Velho os sentimentos relatados por Veríssimo
152 Ferreira (1997) implicam também em questionar os múltiplos significados
da fábrica e do trabalho; das experiências fabris produzidas socialmente
ao longo do tempo. Experiências que também implicam na necessidade
metodológica de demarcação de distintas temporalidades, pois cada
tempo de experiência na fábrica possui suas próprias singularidades
diante de suas circunstâncias histórico-sociais. Seu relato demarca
distintos períodos na história de Fernão Velho, tomando como referência
as administrações da fábrica. Relata que até o ano de 2010, sucederam-se
cinco grupos empresariais.
Demarcações temporais em Fernão Velho

Denominação da
Administração Período
Fábrica
Grupo de antigos acionistas e
diretores oriundos do tempo
1996 - 2010
da Administração do Grupo
Othon Fábrica Carmen

Grupo Grupo Othon Bezerra


1943 - 1996
de Melo

Grupo da família Leão 1938 - 1943

Grupo da família Machado 1891 - 1938


Companhia União
Administração de José Mercantil
Antônio de Mendonça (Barão
1857 - 1891
do Jaraguá) e Tibúrcio Alves
de Carvalho.

153
Embora as diversas administrações de grupos empresariais
sejam referências para demarcação de um tempo organizado linearmente
por Veríssimo Ferreira, apontam também para momentos distintos na
industrialização brasileira e alagoana. Operá-los narrativamente também
possibilita compreende-los como estratos temporais. Cada um desses
estratos temporais singulares remete a experiências únicas, mas que
permanecem em aberto, permitindo deslocamentos que possibilitam
revisitá-los e reinterpretá-los. Nesse caso, chamo atenção para a
denominação da fábrica como referência para designar outros estratos com
múltiplas experiências de sujeitos, administradores e operários, que legam
e atualizam rastros que se deslocam e entrecruzam no tempo, ou ainda se
sobrepõe através de gerações. Distintas datações, rastros e experiências
compõem os tempos da Companhia União Mercantil e Fábrica Carmen.
Importa-nos nestas composições, o lugar que estes ocupam. Trata-se
de múltiplas experiências de gestores e trabalhadores operários. A narrativa
possibilita quebrar a linearidade, operando em cada estrato experiências
que podem se perpetuar e coexistirem no tempo, entrecruzando-se. Desse
modo, o sentimento ser operário em Fernão Velho no tempo presente
simultaneamente demarca uma experiência única a partir do trabalho fabril,
mas que também é múltipla quando evidenciadas as diferentes camadas
de tempo nas quais essas ocorreram, com questões e expectativas distintas
entre as gerações de operários e grupos de administradores e empresários.
A temporalidade quando narrada, enseja movimentos que operam
em distintas formas de organizá-la. O tempo linear, que implica na sucessão
de acontecimentos organizados cronologicamente demarcam processos
históricos na escala do tempo humano. Porém, este mesmo tempo humano,
quando narrado através da experiência, torna-se um tempo entrecruzado e
aberto, permitindo-nos redimensioná-la e movê-la em múltiplas direções
entre passado, presente e futuro.

A experiência narrada como significante do tempo

154 Criada em 1857, a então Companhia União Mercantil foi vendida


pela primeira vez em 1891. Sua posse foi transferida para a família Machado,
que a administrou até o ano de 1938. Durante sua gestão, a produção têxtil
em Fernão Velho foi impulsionada com a implantação de novos teares de
modo a também suprir demandas produtivas durante a Primeira Guerra
Mundial12.
Incluindo-se Fernão Velho, foram criadas cinco fábricas têxteis em
Alagoas até o final do século XIX. Estas tiveram como aspectos favoráveis

12 As potências militares e industriais européias ao concentrarem esforços produtivos


para suprirem suas próprias demandas oriundas da guerra, provocou uma retração das
exportações de produtos industrializados para o continente americano. Esse fato teria
forçado o Brasil a impulsionar a produção nacional de modo a atender às demandas internas
de produtos industrializados escassos no mercado internacional. Segundo Simonsen (1977),
esse impulso se intensificou com a Segunda Guerra Mundial.
para sua produção: a disponibilidade do algodão como matéria-prima
produzida no sertão do estado, o apoio de comerciantes do bairro do
Jaraguá em Maceió interessados nas atividades industriais, atuação da
Associação Comercial de Maceió na mediação do comércio de algodão
e tecidos produzidos, a instalação de linhas férreas que possibilitavam o
fluxo de matéria-prima, produção das fábricas, disponibilidade de pessoas
dispostas a se tornarem operários atendendo as demandas produtivas das
fábricas.
Analisando os dados econômicos de Alagoas no biênio 1919-1920
publicados na edição do dia 16 de setembro de 1921 do Diário Official desse
estado, a exportação em toneladas de açúcar superava a de algodão13. E do
mesmo modo, a renda produzida, expressando o montante de 2.111:700$599
contos de réis para o açúcar e 282:526$842 para o algodão. Faço a ressalva
que esses dados não expressam necessariamente a produção de tecidos, o
que poderia nos indicar outra situação sobre os horizontes de expectativas
do empresariado no estado. Segundo Marroquim (1920) ao apresentar
uma síntese do recenseamento do ano de 1920, evidencia-se que o capital
empregado no setor têxtil-algodoeiro foi superior ao das usinas de açúcar,
embora a exportação de algodão e renda produzida por essa matéria-prima
tenha sido menor. As 13 fábricas então existentes em Alagoas neste ano 155
tiveram empregado um capital de 24.828 contos de réis, enquanto as 15
usinas de açúcar, 12.064 contos de réis. Esses números refletem o quanto era
atrativo o setor têxtil, que comparado com os dados do final do século XIX,
evidencia o crescimento no número de fábricas. Correlata a essa produção,
havia ainda em Alagoas nesse biênio, 79 indústrias de beneficiamento de
algodão totalizando 2.051 contos de réis de capital nela empregados.
Como exemplo desse capital empregado no setor têxtil, cita-se a
fábrica Companhia Fiação e Tecidos de São Miguel, localizada no município
de São Miguel dos Campos em Alagoas. Seu corpo diretor publicou no

13 ESTATÍSTICA DE EXPORTAÇÃO DOS PRINCIPAIS PRODUTOS DO ESTADO. In:


Diário oficial. Edição de 16 de setembro de 1921. Maceió: Governo do Estado de Alagoas,
1921.
Diário Official , edição de 18 de fevereiro de 1923, um balanço financeiro
de sua gestão14. Destaca-se em seu ativo financeiro, um valor maior de
capitais empregados em matéria-prima (fios e algodão), maquinário,
edifício para a fábrica, e casas para operários, afirmando que “continuamos
com a construção da Villa Operária.” Esses setores que receberam mais
investimentos refletem a preocupação de seus acionistas e diretores na
construção de um complexo fabril, formado por fábrica com vila operária,
sendo ainda necessários altos investimentos na aquisição de matéria-prima.
Relatam ainda a destinação de recursos para linha férrea, casa para escola,
farmácia, luz elétrica e casa de turbina, edifício para diretoria, entre outros.
No dia 01 de março de 1923, foi ainda publicado nesse mesmo diário
oficial, a Ata da Assembleia Geral realizada pelos diretores dessa fábrica
com seus acionistas no dia 28 de fevereiro de 1923 na cidade de São Miguel
dos Campos. Esta assembleia consistia em um momento de aprovação do
relatório fiscal, que após aprovado, ganhou destaque na pauta a eleição da
nova diretoria gestora da companhia para o biênio de 1923-1925. Na ata
consta uma relação de mais de 35 acionistas entre pessoas e companhias.
O candidato mais votado para compor a nova diretoria representou 840
votos, e os demais diretores eleitos obtiveram totais semelhantes. Observa-
156 se desse modo, o quanto era atrativo o negócio fabril, mobilizando um
grande número de investidores.
Tais condições de investimentos proporcionaram ao setor têxtil
alagoano, um posicionamento vantajoso do ponto de vista econômico.
Observa-se que até a década de 1940, houve uma expansão dos territórios
têxteis no estado. As fábricas e vilas operárias receberam investimentos de
seus grupos empresariais, resultando na instalação de novos maquinários,
ampliações das seções das fábricas, construção de novas casas para
operários e até mesmo a construção novos complexos fabris. Saúde, bairro
de Maceió localizado no litoral norte da cidade, teve instalada uma fábrica

14COMPANHIA FIAÇÃO E TECIDOS S. MIGUEL. Relatório. In:DIÁRIO OFFICIAL.


Edição de 18 de fevereiro de 1923. Maceió: Governo do Estado de Alagoas, 1923. (p.07-08)
com vila operária na década de 192015, denominada Companhia de Fiação
e Tecidos Norte de Alagoas. Essa fábrica fazia parte dos empreendimentos
dos mesmos gestores da Companhia Fiação e Tecidos de São Miguel, no
município de São Miguel dos Campos.
Em Fernão Velho, a então companhia União Mercantil, ainda
administrada pelo grupo Machado, publicou na edição de 15 de março
de 1923 do Diário Official, seu relatório econômico do ano-exercício de
1922. Relata neste que sofreu prejuízo em virtude de uma momentânea
paralização de sua produção. Tal acontecimento ocorreu em virtude de
alguns infortúnios. Nas primeiras horas da noite de 15 de abril daquele
ano, a seção de tecelagem sofreu um incêndio que horas depois foi contido,
mas que forçou a paralisação da fábrica. A fábrica era segurada pela
Northern Assurance Company, que ao ser mobilizada, pagou indenização
no montante de 182:224$000 contos de réis, capital este reinvestido nas
instalações, mas que não cobriu os prejuízos daquele ano, sobretudo diante
de um segundo infortúnio.

Devida as grandes chuvas do inverno passado, no


mez de junho, desabaram da fralda da montanha,
por onde passa o nosso aqueducto, e o inutilizaram 157
completamente, ficando, por isso, mais uma vez parada
a fábrica, enquanto se restabelecia o fornecimento
d’água. Foram grandes os prejuízos que nos deixou o
fallado desabamento16.

15 LESSA, Golbery Luiz. Trama da memória, urdidura do tempo. In: TENÓRIO, Douglas
Apratto; LESSA, Golbery Luiz. O ciclo do algodão e as vilas operárias. Maceió: SEBRAE,
EDUFAL, 2013.
16COMPANHIA UNIÃO MERCANTIL. Relatório dos negócios sociaes da Companhia
União Mercantil, relativos ao anno de 1922, para ser apresentado em Assembléia Geral
de Accionistas no dia 15 de março de 1923. In: DIÁRIO OFFICIAL DE ALAGOAS. Edição
de 15 de março de 1923. Maceió: Governo do Estado de Alagoas, 1923.
A água era necessária na produção. O manancial hídrico a que se
refere, encontra-se na área atrás da fábrica, formando um grande açude
que garantia o abastecimento de água para a vila, para a produção de
energia a vapor na fábrica, e para uso nas diversas seções da produção.
Mesmo diante de todo esse prejuízo e paralisação, os investimentos nesse
território fabril não cessaram. Relatam que adquiriram vários maquinários
para o aperfeiçoamento de seus produtos, além da manutenção de antigas
máquinas que possuíam, mas que necessitavam constantemente de reparos
e conservação. Expressam ainda um sentimento positivo em relação
ao aumento da produção, que deverá ser alcançada em pouco tempo,
compensando as largas somas despendidas. Neste ano, o lucro declarado
nos dividendos foi de 15%, apesar de todos os infortúnios. E por fim,
declararam ainda que ao final do ano fiscal restou um expressivo fundo de
reserva no valor de 73:144$971 contos de réis.
Os investimentos em Fernão Velho no ano de 1922 não ocorreram
apenas nas seções de produção. “Foram construídas 40 casas para operários,
e compradas 10 outras a particulares, além do grande sítio Goiabeiras
[...]17.” Do mesmo modo, não foram suspensos os serviços oferecidos aos
operários, a exemplo da assistência médica e escola.
158 Neste período, as instalações da fábrica sofreram intervenções e
melhorias, constituindo um complexo fabril composto não somente pelas
instalações do parque produtivo da fábrica com seus maquinários, mas
também outras edificações e oferta de serviços diversos aos trabalhadores.
Foram construídas novas casas para os operários e suas famílias, assim
como a construção de escola, igreja e outros equipamentos culturais e de
saúde, evitando-se o quanto fosse possível o deslocamento de operários para
fora dos domínios territoriais da fábrica em busca do atendimento dessas
demandas também necessárias à sua vida social. Instituía-se uma política
de mão-de-obra de modo a fixar o trabalhador nos domínios produtivos da
17 COMPANHIA UNIÃO MERCANTIL. Relatório dos negócios sociaes da Companhia
União Mercantil, relativos ao anno de 1922, para ser apresentado em Assembléia Geral
de Accionistas no dia 15 de março de 1923. In: DIÁRIO OFFICIAL DE ALAGOAS. Edição
de 15 de março de 1923. Maceió: Governo do Estado de Alagoas, 1923
fábrica. Na medida em que o morar era provido pelo patrão, este também
sujeitava o tempo dos trabalhadores às suas necessidades produtivas. Foi
durante esse período que o delineamento de complexo território formado
por Fábrica com Vila Operária em Fernão Velho foi se tornando mais
evidente.
O setor de indústrias têxteis em Alagoas era promissor. Dividia
com a produção açucareira, o ranking de principais atividades econômicas
no estado. Segundo Lessa (2011), a indústria têxtil em Alagoas entre a
década de 1930 e 1960 rivalizou com o setor açucareiro o capital investido,
as receitas produzidas, e o número de trabalhadores empregados na
produção. O setor têxtil apresentava-se, portanto, como um setor promissor,
atraindo investimentos de grupos empresariais diversos e interessados no
desenvolvimento da produção industrial brasileira e alagoana.
Entre 1938 e 1943 a Companhia União Mercantil em Fernão Velho
foi administrada pela família Leão. Esse grupo tradicionalmente possuía
negócios no ramo sucroalcoleiro em Alagoas. Tentou diversificar seus
negócios enveredando pelo promissor setor têxtil, comprando a Companhia
União Mercantil pertencente ao grupo Machado. Embora tenha sido
por um curto período, essa administração foi relevante, contribuindo
para a modernização do maquinário, ampliação dos prédios da fábrica, e 159
construção de novas casas para atender a crescente chegada de operários
que eram contratados para o trabalho fabril. Segundo Waldir Cipriano18,
nesse período estimava-se ser uma população de cerca de 8 mil habitantes
na vila.
Podemos ainda, no cotejo da estratigrafia do tempo histórico em
Fernão Velho, identificar como referência temporal, a própria denominação
da fábrica. Fundada com o nome de Companhia União Mercantil em 1857,
e em 1943 quando vendida ao empresário pernambucano Othon Lynch
Bezerra de Mello teve seu nome alterado para Fábrica Carmen. Nessa
administração, a fábrica torna-se parte de um empreendimento que atuava

18 CIPRIANO, Waldir. Fernão Velho: tradição e história. O Jornal. Caderno de Cultura.


Maceió, 17 jan. 1999. (p.05)
de forma mais ampla no cenário industrial nacional. O grupo Othon
administrava mais outras 5 fábricas nos estados de Pernambuco, Rio de
Janeiro e Minas Gerais. A Companhia União Mercantil foi a ultima a ser
adquirida pelo grupo, que alterou sua denominação como fizera em suas
outras fábricas, atribuindo um nome feminino, Fábrica Carmen. Este até
hoje, é utilizada para designar a fábrica, sendo também contemporâneo de
expressiva parte de operários de outrora que ainda vivem em Fernão Velho.
Esse é um território fabril composto pela fábrica, casas dos
trabalhadores têxteis configurando uma vila operária, estação de trem,
igreja, sede do sindicato, praças, igreja, as ruas e vizinhanças, escola, entre
outros que existiam outrora como o cine-teatro e ambulatório mantidos pelo
empresários que administravam esse complexo fabril. Todos estes espaços
constituem lugares da memória. Segundo Pollak (1989), somam-se a esses
lugares, datas, tradições, costumes, regras sociais, formas de socialização
e interação. São elementos indicadores de memórias compartilhadas
socialmente, possibilitando reconhecê-las em um grupo social, como os
operários têxteis em Fernão Velho.
Suas memórias, compreendidas aqui como constituídas de
lembranças e esquecimentos, quando articuladas e analisadas em uma
160 narrativa historiográfica, possibilita recuperar fragmentos do passado,
produzir representações da história e legar lições para o presente e futuro.
É nesse processo que o tempo histórico torna-se uma dimensão
preenchida pela experiência, sendo mobilizado através do trabalho de
memória. O tempo torna-se parte de nossas ações, de modo que estas se
configuram duplamente como reflexo do passado e sombra do futuro. Deste
modo, não é somente o presente e futuro que permanecem abertos, mas
também o passado que quando narrado contribui para uma atualização
constante da escrita do mundo.
Recupero então as memórias de José Acioly Neto, conhecido em
Fernão Velho como Zequinha Moura. Nasceu em 20 de abril de 1936 em
Fernão Velho. Julgava-se, no dia do registro de suas memórias em 2014, o
mais antigo vivo nascido nesta vila operária. Seu pai - Gaudêncio Silva - era
natural do município de Pilar, e sua mãe – Maria José Moura - de Murici,
ambos em Alagoas e próximos a Maceió. Relata que seus pais vieram para
Fernão Velho em busca de trabalho durante a administração do Grupo
Machado (1891-1938). Encontraram emprego e se fixaram na então vila
operária, onde trabalharam até se aposentarem.
Seu pai, Gaudêncio Silva, foi contramestre de tecelagem, atividade
de confiança dos administradores da fábrica, semelhante a uma gerencia
de seção. Geria de 80 a 100 operários. Cada um manipulava inicialmente
duas máquinas, e depois passaram para três. Estas máquinas eram
chamadas de tear ou maquineta. A função de Gaudêncio lhe conferia
maior responsabilidade mas também privilégios como o acesso a uma
melhor casa para moradia de sua família, salário diferenciado, e certa
garantia de estabilidade empregatícia devido à confiança de seus patrões
dado seu papel na produção. Afastava-se do Sindicato, evitando envolver-
se com as questões políticas e sindicais, até mesmo para se preservar. “Por
que tinha posição aí dentro, não podia estar se expondo lá fora. Tinha um
bom emprego. Era contramestre de tecelagem e tomavam conta de diversas
seções (Zequinha Moura, 2014)”. Assim, os pais de Zequinha Moura, pela
dedicação ao trabalho, nunca sofreram opressão da fábrica.
Sua mãe, Maria José Moura, foi tecelã. É uma atividade comum 161
entre mulheres na vila operária, o que traz indícios de que na gestão da
fábrica havia certa preocupação com o perfil dos operários na produção.
Nesse operariado formado na primeira metade do século XX por maioria
de trabalhadores oriundos de áreas rurais e com corpos e mãos calejadas
ou marcadas pelo trabalho no campo, as mãos femininas pareciam ser mais
adequadas e sensíveis para manipulação dos fios no setor de tecelagem. A
presença de mulheres era expressiva na produção.
Durante esse período, a disciplina no trabalho também era
preocupação dos gestores da Fábrica. As máquinas eram perfiladas uma ao
lado da outra. Era também disponibilizado um espaço livre para circulação
entre as fileiras de máquinas, seja para o acesso dos operários, seja pela
constante circulação dos contramestres no controle da produção.
Foto: Companhia União Mercantil, Seção de Tecelagem - Fernão Velho-AL. Autor: Atelier
de Tissage, [19??]. Acervo de fotografias do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas –
IHGAL. Imagem nº177, Pasta 07 – Postais de Maceió

Esta disciplina abrangia outros espaços e serviços ofertados nesse


território fabril. Encontrava-se presente na educação e no incentivo ao
162 civismo para as crianças de seus trabalhadores.

Estudei aqui e depois fui para o Ginásio Santa


Luzia. Aqui em Fernão Velho tenho boas memórias
ainda. Aqui era o seguinte... De manhã, tinha-se o
fardamento, agente ia de tamanco, tamanco duro de
pneu para não se gastar. Agente ia para a escola e
chegava na frente do colégio e fazia fila, cantava o hino
nacional para poder entrar. Todo mundo cantava o
hino nacional, o hino da bandeira, e o hino do estado.
Tudo isso agente sabia (Zequinha Moura, 2014).
Quanto à imagem acima, além de possibilitar a visualização da
disciplina no trabalho e predominância de mulheres operárias na seção de
tecelagem, podemos ainda fazer outras leituras. Embora não tenha uma
precisa datação, o nome do grupo Machado ao fundo, pintado na parte
superior da parede da seção, aponta para esse estrato temporal. Trata-se de
um registro fotográfico. Sua produção decorreu do objetivo de compor um
conjunto de cartões portais sobre Maceió nas primeiras décadas do século
XX. Expressa a leitura positiva sobre a representatividade da então Fábrica
Companhia União Mercantil e suas ações realizadas na industrialização
brasileira. No cenário econômico e social de Alagoas esta era apresentada
como pioneira na produção têxtil. Foi a primeira fábrica têxtil instalada em
Alagoas, e uma das nove primeiras no Brasil até 1866 (STEIN, 1979:34)19.
Destaque que tornou esse território fabril no período da
administração Othon, um possível alvo de bombardeios durante a Segunda
Guerra Mundial, exigindo estratégias de defesa.

Na época da guerra, tinha uma sirene para controlar


o povo na hora de trabalhar. Quando faltavam 10
minutos, ela uuuuurrrrr. Ficavam sabendo, 10 minutos,
todo mundo entrava. Para largar, a mesma coisa. E 163
na época da guerra essa sirene não funcionou. O que
funcionava na porta da fábrica era um trilho grande,
em 1944, 1945. Daí o trilho bhemmmm, bhemmmm...
Todo mundo entrava. Quando terminou a Guerra,
voltou a sirene. Isso aí era uma prevenção. Aqui mesmo,
essa casa, tinha duas lâmpadas. Uma na sala, outra na
cozinha. Só duas lâmpadas. Era de 60 velas e colocaram

19 A Fábrica Companhia União Mercantil, em Maceió – Fernão Velho, conjuntamente com


5 fábricas existentes na Bahia, perfazia 6 do total de 9 fábricas existentes no Brasil em 1866.
Nos movimentos iniciais de industrialização, o Nordeste foi pioneiro. Posteriormente, no
ano de 1885, a área centro-sul (Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais) registra o número
de 33 das 48 fábricas existentes no Brasil. Ver: STEIN, Stanley J.. Origens e evolução da
indústria têxtil no Brasil. 1850-1950. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1979. (p.36)
tudo de 15. Com um abajur em cima da lâmpada.
Que quando acendiam, os aviões que passasse não
via claridade embaixo. 15 velas e ainda mais com um
abajur em cima. E agente aqui, e quando ouvia os aviões
passando, uma poção de avião, meu pai dizia: Chão!
Todo mundo ia pro chão. Isso me lembro muito bem. E
quando o trem passava ali, tudo cheio de soldado para
Pernambuco para de lá pegar um navio e ir embora.
Tudo aqui de Alagoas. Então ao invés de chorar quem
ia, chorava quem ficava! As mulheres tudo chorando
e eles passavam... Era 1944, 1945, muitos soldados...
(Zequinha Moura, 2014)

A participação do Brasil na 2ª Guerra Mundial, para além dos


soldados na Europa, também mobilizou estratégias e táticas no Brasil.
Nesse tempo da guerra, outras experiências permitem narrar o conflito por
distintos prismas.
No relato de Zequinha Moura, Fernão Velho é constituída por
outros significados para além da atividade industrial. Rememora a
164 relevância que a Fábrica teve na sobrevivência de seus pais e também de si
próprio, na medida em que também se tornou um operário nos tempos da
Fábrica Carmen.

Até meus quatorze anos de idade meu nome era José


Moura da Silva. Que minha família toda é Moura. [...]
E aqui o pessoal me conhece como Zequinha Moura
ou José Moura. O que acontece... Quando arranjei
emprego nessa fábrica, eu não tinha registro. Então
meu pai disse: ‘vou tirar seu registro.’ E no dia que foi
tirar meu registro ele disse: ‘vou colocar seu nome, o
nome do meu pai.’ Eu já com quatorze anos de idade
ele tirou meu registro, o pai dele chamava-se José
Acioly, e fiquei José Acioly Neto. Pouca gente aqui sabe
disso. Pouca gente sabe que meu nome é José Acioly
Neto. Só me conhece como José Moura ou Zequinha
Moura. [...] Nessa época já era o Othon, porque antes
foram os Machado. Depois dos Machado vieram
os Leões. Depois dos Leões viram o Othon Bezerra
de Melo. Meus pais trabalharam no período dos
Machado e Othon Bezerra. Machado, Leão e Bezerra.
(Zequinha Moura, 2014)

A tentativa de início de sua atividade profissional também


representa o seu registro civil como sujeito. Demarca sua história de vida a
partir da mudança de seu nome como referência temporal para uma nova
fase de vida, a do trabalho. Embora tenha tentado ingressar na atividade
fabril aos 14 anos, relata que somente aos 17 anos de idade foi trabalhar
como operário na Fábrica Carmen, sob administração do grupo Othon.

[...] Eu quero trabalhar. Eu quero ajudar meu pai. Meu


pai com nove filhos... Naquela época já se trabalhava
com 14 anos de idade. Mas meu pai não quis não, 165
falou para eu ir estudar. Com 17 eu digo agora vou... e
fui. Aí o gerente me deu um pedaço de jornal e disse:
‘leia aí”. Eu li, e ele... ‘traga seu registro’. Foi quando eu
disse ao meu pai: ‘meu registro?’. Peguei o registro e
fui trabalhar na tecelagem. (Zequinha Moura, 2014).

Em outra passagem também vinculada à sua experiência no


trabalho, demarca outro momento de sua vida. Durante sua atividade
foi chamado pelo gerente de sua sessão para ir ao escritório da Fábrica.
Temeroso em ser demitido, questionando-se se iria receber indenização,
foi atender ao mando do gerente. Chegando no escritório foi promovido a
office boy. Essa atividade permitiu-lhe conhecer todos os setores da Fábrica,
alterando também sua jornada de trabalho. Sua inserção no setor gestor
da fábrica, trabalhando no escritório, lhe assegurou melhores condições
de vida, salário e trabalho, inclusive simbolicamente representado em suas
novas vestimentas conforme relembra. Essa atividade também possibilitou
continuar os estudos, finalizando o nível colegial. Posteriormente,
trabalhou no setor pessoal, realizando pagamentos e compras diversas para
a firma. Nesse setor, trabalhou até se aposentar. Quando se casou continuou
morando na mesma casa de seus pais, pois estes já estavam aposentados e
não tinham outra casa para morar. Aliás, continuavam em Fernão Velho,
mesmo aposentados, devido à vinculação trabalhista de Zequinha Moura
à Fábrica.
Zequinha Moura relata que nenhum entre os operários conquistava
a estabilidade por 10 anos de trabalho contínuo. Com a estabilidade,
o trabalhador teria o direito de trabalhar na empresa até se aposentar.
A fábrica demitia antes que isso ocorresse, e posteriormente readmitia
o operário, iniciando uma nova contagem para a conquista do direito à
estabilidade. Era uma prática comum em Fernão Velho. Embora, em casos
especiais, poderia ocorrer diferente...

166 Eu tava com nove anos e quatro meses. Ai o gerente


mandou me chamar e disse: ‘com mais o mês de aviso
prévio o Sr. vai completar nove anos e seis meses. O
Sr. tem para onde ir? O Sr. tem vontade de ir embora
daqui?’. Eu disse: tenho não! Ele então disse: ‘Pois o
Sr. vai ficar trabalhando e completar sua estabilidade.
Coisa que a companhia não faz para ninguém. ’ Aí
me estabilizei e pensei... Agora posso até me casar. Já
tenho a casa e não me botam mais para fora. Meus
irmãos disseram que eu tava seguro e foram tudo
embora. E ficou eu sozinho com meus pais. (Zequinha
Moura, 2014)
Além dessa passagem em sua história de vida, o tempo de seu
trabalho na Fábrica também o momento em que constituiu sua família,
assim como diversos outros trabalhadores operários. Aos 26 anos de idade
ao frequentar uma das festas de carnaval organizada pelos Othon, conheceu
aquela que posteriormente foi sua esposa por quase 49 anos. Zequinha
Moura após se aposentar, recebeu a casa que morava com seus pais e
depois com sua esposa e filhos, como parte de sua indenização trabalhista.
Em 2014 faleceu, deixando esta como parte de herança material para sua
família.
Ao mesmo tempo, seu relato, poucos meses antes de sua morte,
constitui uma atitude de significação do tempo, no passado e presente,
permitindo particular leitura do mundo capaz de legar lições como outra
forma de herança...
Podemos então perceber, que o tempo histórico não é uma categoria
cujo sentido é inerente à existência humana, preexistindo apenas como
fenômeno na natureza. Ao contrário, o tempo histórico inteligível como
tempo humano suscita a mobilização de uma operação narrativa capaz de
evidenciar a experiência e seus múltiplos sentidos. É uma criação cujos
múltiplos significados são mediados pela experiência. Resulta do processo
de síntese, seleção, e significação na qual a narrativa possui papel relevante 167
como escrita do mundo.

Em tempo... algumas considerações sobre a contagem do tempo


histórico...

Dizer o tempo... Metaforicamente, podermos comparar a contagem


(demarcar e narrar) do tempo histórico ao movimento artesanal que
operamos quando usamos uma ampulheta. Este instrumento é formado
por dois cones ocos, geralmente de vidro, e unidos por um gargalo. Um dos
cones é preenchido por areia ou pó, podendo ser este material de qualquer
natureza, exigindo-se apenas que seja possível passar pela espessura do
gargalo. Esse material representa frações de tempo. A ampulheta é ainda
circundada por uma estrutura de madeira ou metal, de modo a sustenta-la
e também protegê-la. O tempo que ela demarca depende de seu tamanho,
da densidade e quantidade do material dentro dos cones. Desse modo,
explorar a densidade de uma fração de tempo implica em atividade
complexa dada sua riqueza de acontecimentos que demarca com suas fontes
e possibilidades de abordagens que constituirá a narrativa historiográfica.
A densidade desse tipo de narrativa é também dependente das fontes que o
historiador mobiliza no seu recorte temporal e espaço, constituindo assim
seu relato.
Relato que ainda será cotejado por referenciais teóricos que servem
como lupa, possibilitando lapidar suas indagações e suscitar caminhos
múltiplos para análise sobre seu objeto. É como se o arcabouço teórico e
historiográfico do historiador consistisse na estrutura de madeira ou metal
que circunda a ampulheta, oferecendo segurança aos elementos e materiais
que nela estão contidos, permitindo contar o tempo e seus acontecimentos.
A contagem do tempo ocorre quando viramos a ampulheta.
Cada virada inicia uma nova contagem por circunstâncias e movimentos
diferentes. Sempre que indagamos o passado e exercitamos o esforço de
torna-lo inteligível, são elaboradas diferentes questões marcadas sempre
168 pelas circunstancias do presente, suscitando múltiplas hipóteses e tessituras
do relato. Do mesmo modo, a cada virada, a areia ou pó dentro da ampulheta
ao passar de um cone para outro, também se organiza e acomoda de forma
diferente no outro cone, representando o tempo passado de outra maneira.
Desse modo, as múltiplas contagens do tempo em uma mesma
ampulheta nunca serão iguais, embora demarquem a mesma fração ou
estrato de tempo. O historiador ao lidar com o tempo mobiliza diferentes
fontes, lembranças que desobedecem ao movimento ou, porque não, suas
idealizações do presente, apontando também outras maneiras para tornar
legíveis e críveis as representação sobre o passado. O historiador ao narrar,
se mune de diferentes artifícios, de modo que o mesmo acontecimento e
seu tempo possam ser narrados, organizados, acomodados de diferentes
formas e possibilidades. O passado ganha múltiplas representações e
sentidos através do trabalho do historiador, como a ampulheta que ao ser
virada, acomoda seu material de formas diferentes. Cada experiência do
tempo e no tempo é singular.
Dizer o tempo é sim uma tarefa complexa, sobretudo quando
implica em uma significação conjunta com as experiências que nele
identificamos. Torna-se tempo histórico na medida em que seus múltiplos
significados são mediados pela experiência. É resultado de um processo de
síntese, seleção, e significação no qual a narrativa possui papel relevante
como escrita do mundo e significadora do tempo como tempo humano.
Este possui um caráter de transitoriedade na medida em que é produzido e
narrado no presente. Esse tempo como transitório e móvel é deslocado entre
passado, presente e futuro através da experiência e da narrativa. Ao narrar
o passado no presente, criamos uma imagem que toma o lugar no passado
por nós interpretado. Pensar o tempo, portanto, implica em tomá-lo como
resultado de uma construção cultural, semântica e plural, permitindo-nos
significar a própria História e suas múltiplas temporalidades.
“Não há nenhuma história sem relação com o tempo” (Koselleck,
2001:116). A compreensão do tempo histórico a partir do exercício de uma
estratigrafia nos permite identificar múltiplas temporalidades cujos sentidos
são compreendidos a partir da análise de suas respectivas configurações
históricas. O tempo presente é o momento de interseção entre passado e 169
futuro com seus passados, presentes, e futuros.
Veríssimo Ferreira (1997) e Zequinha Moura (2014), em suas
narrativas, realizam cartografias do bairro de Fernão Velho. Descrevem
cenários integrantes desse território e rememoram práticas culturais que
possibilitaram a sobrevivência dos habitantes dessa localidade através do
trabalho operário, além de outras experiências singulares como a passagem
por guerras e processos de industrialização no Brasil. São experiências para
serem (re)conhecidas e lembradas. “Verdadeiramente Fernão Velho, tem
um passado histórico e grandioso no que concerne as suas belezas naturais
e na vida econômica do estado de Alagoas. (FERREIRA, 1997)”
Cabe ainda destacar que são memórias produzidas posteriormente
às experiências lembradas, sendo marcadas pelo tempo presente. Veríssimo
Ferreira ao produzir seu relato no tempo presente de reabertura da fábrica
e atestar o passado grandioso dela, expressa preocupação sobre o legado
das histórias de seu território. Aproxima-se do narrador presente em
Terra Sonâmbula, do escritor Mia Couto, quando tenta por em “mansa
ordem” o tempo desse território fabril em meio às esperanças e sofrências
das experiências ali realizadas. E que naquele momento presente, a não
continuidade do funcionamento da fábrica poderia suscitar o esquecimento,
e cercear a sobrevivência daqueles que trabalhavam nela, também negando
para estes um passado e futuro. Parece-me ser esta a questão do seu tempo
presente – 1997 - que o mobiliza no registro de suas memórias sobre Fernão
Velho para a posteridade.
Porém, o tempo histórico também possui caráter de transitoriedade
na medida em que este é marcadamente um tempo humano construído no
presente em que é narrado. Esse tempo como transitório e móvel é deslocado
entre passado, presente e futuro através da experiência e da narrativa.
Em 2014, a Fábrica se encontra fechada, com sua produção paralisada,
desprovida de seu maquinário, com sua sirene silenciada, com operários
desempregados e até mesmo desprovido dos direitos sociais dos tempos
em que atuavam no labor fabril em Fernão Velho. Em meio a essa sofrência,
o rememorar possui outro papel, o de lembrar e deixar histórias e lições
170 como legados para a posteridade. E é esse sentimento, entre outros, que
mobiliza Zequinha Moura e diversos operários de outrora a rememorarem
o passado no registro do presente. Possibilitam, no campo da História,
operar a ampulheta para quiçá permitir um futuro em que Fernão Velho
em suas diferentes temporalidades, sua Fábrica com vila operária, histórias
fabris e eles próprios sejam lembrados.

Referências Bibliográficas

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Brasiliense, 1996.
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172
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Fernão Velho-AL [19??].. Acervo de fotografias do Instituto Histórico e Geográfico
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WANDERLEY,Luiz Lavenère . Fernão Velho [1911]. Acervo de fotografias do


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Relatos Memorialistas e Enciclopédias

FERREIRA, Veríssimo. História de Fernão Velho. In Mimeo. Maceió: 1997

FERREIRA, Veríssimo. Saudades da Banda de Música Othon – Fernão Velho. In


Mimeo. Maceió: 1997.
MARROQUIM, Adalberto. Terra das Alagoas. Brasil: Edição FAC-SIMILAR, 1922.

Periódicos:

CIPRIANO, Waldir. Fernão Velho: tradição e história. In: O JORNAL. Caderno


de Cultura. Maceió, 17 jan. 1999. (p.05)

Periódicos com relatórios, atas de fábricas têxteis, e dados estatísticos


publicados no diário oficial de alagoas:

COMPANHIA UNIÃO MERCANTIL. Relatório dos negócios sociaes da


Companhia União Mercantil, relativos ao anno de 1922, para ser apresentado
em Assembléia Geral de Accionistas no dia 15 de março de 1923. In: DIÁRIO
OFFICIAL DE ALAGOAS. Edição de 15 de março de 1923.

COMPANHIA FIAÇÃO E TECIDOS S. MIGUEL. Relatório. In:DIÁRIO


OFFICIAL. Edição de 18 de fevereiro de 1923. Maceió: Governo do Estado de
Alagoas, 1923. (p.07-08)

COMPANHIA UNIÃO MERCANTIL. Relatório dos negócios sociaes da 173


Companhia União Mercantil, relativos ao anno de 1922, para ser apresentado
em Assembléia Geral de Accionistas no dia 15 de março de 1923. In: DIÁRIO
OFFICIAL DE ALAGOAS. Edição de 15 de março de 1923. Maceió: Governo do
Estado de Alagoas, 1923.

ESTATÍSTICA DE EXPORTAÇÃO DOS PRINCIPAIS PRODUTOS DO ESTADO.


In: Diário oficial. Edição de 16 de setembro de 1921. Maceió: Governo do Estado
de Alagoas, 1921.
ESCREVER É REIVENTAR O TEMPO: A HISTÓRIA
CONTADA DE FERNANDO1
Grazielle Rodrigues do Nascimento
Contato: graziellenascimento379@hotmail.com

O tempo para o historiador se apresenta retramado de agoras.


Esta afirmação dada por Walter Benjamin, na sua obra Magia e técnica,
arte e política, traz consigo uma perspectiva teórica acerca dos referenciais
epistemológicos, documentais e dissertativos eleitos por cada historiador.
Quando a questão é o tempo, o lembrar e o inventar têm ligações profundas.
Porém, supor que se possa visitar o passado é postura “anti-histórica e
antipedagógica”, pois, como aborda Ulpiano Meneses, “aprisiona-nos no
presente, transformando-o no único termômetro capaz de tudo medir”.2
Diante disso, e eleito como campo de investigação o Arquipélago de
Fernando de Noronha, o fator natureza é elemento condutor e modelador
das análises históricas e culturais dessa narrativa, pois determina as
acomodações, os estranhamentos e as mudanças de análises do objeto de
pesquisa ao longo dos tempos. 175
Em um breve retorno à historiografia fernandina, percebe-se que
desde o tempo das grandes expedições pelo Oceano Atlântico (Século XV-

1 As reflexões em torno do uso dos documentos; o debate tempo-narrativa-memória e a


prática de pesquisa, abordadas aqui neste texto são resultados de atividades coordenadas
por mim durante o IX Encontro Estadual da ANPUH - Sessão Pernambuco, em 2012
(Minicurso: Os documentos como fontes de investigação e prática historiográfica); no
XXVII Simpósio Nacional da ANPUH, em 2013 (Minicurso: Pesquisa histórica e Sociedade:
o uso que se faz dos documentos como registro de memória) e no X Encontro Estadual da
ANPUH - Sessão Pernambuco, em 2014 (Minicurso: Pesquisa e a produção histórica no
século XXI).
2 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A crise da Memória, História e Documento: reflexões
para um tempo de transformações. In: DA SILVA, Zélia Lopes. Arquivos, patrimônio e
memória: trajetórias e perspectivas. Zélia Lopes da Silva (org). Editora UNESP:FAPESP. São
Paulo, 1999. pp18.
XVI), o Arquipélago era narrado de diferentes maneiras: seja através do
mapa de Alberto Cantino; ou do mapa desenhado por Juan de la Cosa;
seja nos relatos do alemão Ulrich Schmidel, Frei André Thevet e Frei
Claude d’Abeville; seja na pintura de Debret a retratar o Pico; seja na
Lettera de Américo Vespúcio e na descrição realizada pelo cientista Charles
Darwin, Bradley, Orly Derby, dentre outros, a perspectiva da paisagem era
modelador do tempo.
Com isso, o ato de se narrar algo não cabe, exclusivamente, ao oficio
do historiador, posto que a narrativa se utiliza de diferentes ferramentas e
métodos, mas cabe a ele proporcionar um diálogo claro entre o presente
e o passado, como se ele, historiador, exercesse a função de “um catador
de lembranças”(Gagnebin, 2007). Sendo assim, o aspecto histórico para
Fernando de Noronha é percebido através do potencial que constrói o
Arquipélago enquanto Patrimônio Natural da Humanidade (2001). Mas o
que fazer com as lembranças, as diferentes respostas de distintas culturas
que também frequentaram a cena eleita como patrimônio? Como e por que
considerar documentos patrimônio e como categorizá-los de históricos?
Para o trabalho de agora as narrativas orais e textuais utilizadas
como fontes históricas para a pesquisa serviram para analisar o
176 Arquipélago de Fernando de Noronha na relação do Brasil com os Estados
Unidos. Em um tempo narrado por distintos interesses e formas de narrá-
lo. Assim, passamos a relatar Fernando de Noronha não como um mero
paraíso que serve de passagem na rota das águas do Atlântico, mas sim
um lugar permeado de agoras, tempos e de narrativas em um “perpétuo
deslocamento” (POLACK, 1989: pp08).

Tempo dos Viajantes

Em 1503, Fernando de Noronha era narrado por Américo


Vespúcio que dera vida àquele conjunto de Ilhas na Lettera3. Esse é um

3 Edição Princeps de 1505-1506, atribuída por Quaritch a Pietro Pacini di Pescia, partidários
dos Médicis, que por ser adversário de Santorini teria eliminado da carta o nome do
apanhado de cartas-documento enviadas a um gonfaloneiro de Florença,
chamado Pietro Soderini. É com a Lettera que Vespuccio deixava registrada
as diversas incursões realizadas por ele durante as expedições afora do
Mar Mediterrâneo e Fernando de Noronha era descrita como uma “ilha
maravilhosa, com um belo porto e muitos recursos para abastecer-se de
víveres e prosseguir viagem”.
Em outras narrativas, Fernando de Noronha é descrita pela função
de ser porto natural com “infinitas árvores”, “infinitas águas, doces e
correntes”, “aves mansas que vinham comer às mãos”, “bandos de tartarugas
que rodeavam os barcos”, “marsuínos que saltavam fora d’água e gritavam
como porcos”.(LINS E SILVA, 2013).
Passados esses tempos iniciais da colonização brasileira, e séculos
depois e já extinta a Colônia Correcional, em 1938, advinda deste Tempo
dos Viajantes, veio a Segunda Guerra Mundial, em 1942. Fernando de
Noronha se tornava nessa ocasião área de segurança para o Hemisfério
Norte, no caso, para os aliados dos Estados Unidos da América (Inglaterra,
França e Brasil), e, daí, destacando-se como Território Federal. Com a
justificativa de defesa, passava a ser subordinada ao Ministério da Guerra,
sob o comando do Exército.
Com o período do Pós-guerra e o crudescimento da Guerra 177
Fria, instalava o governo americano um ponto para o monitoramento de
mísseis lançados no cabo Canaveral – Flórida: o Posto de Observação de
Teleguiados (POT). As ruínas dessa posto ainda se encontram pela ilha
e é considerada por alguns estudiosos como um importante patrimônio
material da história do Brasil, sendo a

materialização de um dos momentos mais visíveis e


tangíveis das relações entre o Brasil e os EUA depois
da Segunda Guerra. Não há, no Brasil, nenhuma
outra estrutura que simbolize tão bem a “Guerra
Fria” e seus subprodutos – a Corrida Armamentista e

destinatário.
Espacial – como a estação de rastreio de Fernando de
Noronha. (Tácito Rolim, 2012).

Diante de todos esses argumentos, apresenta-se um tempo


histórico em que a pesquisa e o trabalho com os documentos nos revelou
uma história da relação do Brasil com os Estados Unidos articulada
com a história da própria ilha de Fernando de Noronha. Uma relação de
“barganha” para uns e de “estreitamento político” para outros, mas que traz
à tona uma reinvenção da própria historia da Guerra Fria.

O trabalho com as fontes

As narrativas dos jornais do Estado de Pernambuco (Brasil): Diario


de Pernambuco, Jornal do Commercio, Folha do Povo e Folha da Manhã4,
traziam a notícia sobre a cessão da Ilha de Fernando de Noronha para
instalação de uma base militar dos Estados Unidos. Manchetes do tipo
“vigorará pelo prazo de cinco anos sujeito a prorrogação”5, eram publicadas
pelo Diario de Pernambuco reforçadas pela necessidade de defesa
intercontinental, destaque: Brasil e Estados Unidos. O governo do Brasil
178 disponibilizava aos Estados Unidos parte da Ilha de Fernando de Noronha
para ali ser instalado o 11o Posto de Observação de Teleguiados (POT),
onde a função era acompanhar os experimentos com projéteis teleguiados
lançados no Cabo Canaveral, Flórida (USA).
Ainda conforme a matéria, o ajuste de cessão da Ilha era
complemento dos atos diplomáticos assinados antes de 1956, especialmente
o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, de 19476, que previa a
defesa mútua e bilateral de todo o hemisfério Ocidental.

4 Fontes orais trabalhadas para a analise desta relação Brasil - Estados Unidos.
5 Diario de Pernambuco, 22 de janeiro de 1957.
6 Também conhecido pela sigla TIAR ou Tratado do Rio, é um tratado de defesa mútua
celebrado na cidade do Rio de Janeiro entre diversos países americanos, cujo princípio
central é que um ataque contra um dos membros será considerado como um ataque contra
todos, com base na chamada “doutrina da defesa hemisférica”.
Essas narrativas jornalísticas permitem entender a Ilha de
Fernando de Noronha em um ambiente tecnológico com os projeteis
balísticos desenvolvidos tanto pelos americanos, como pelos Russos,
ambos a inserir diferentes nações nos seus programas espaciais. A exemplo
do que acontecera com o Arquipélago dos Açores, a partir de 1944, quando
Portugal concedeu facilidades de natureza militar aos Estados Unidos da
América, na Ilha de Santa Maria – mesmo sem Salazar simpatizar com
os americanos e desconfiar profundamente da sua política expansionista7
–, em Fernando de Noronha, a presença americana mudava o dia a dia
de quem a habitava. Considerada como uma das unidades nucleares de
defesa na rota do Atlântico, Fernando de Noronha garantia “o controle
e o acesso aos céus e ás terras do Brasil” (VIEIRA, 1958, pp 18). Estava,
portanto, irremediavelmente inserida no contexto internacional da Guerra
Fria, reforçada pela presença americana que a toma enquanto imperativo
de defesa para essas rotas. Os laços político-militares entre Brasil e Estados
Unidos direcionavam a construção de um discurso baseado pelo temor
de um Terceiro Conflito Mundial, em que a salvaguarda da soberania
brasileira dependia da assistência americana na defesa não apenas do
Arquipélago, mas também, no monitoramento da costa nordeste do Brasil
e, por extensão, do Oceano Atlântico-Sul. 179
A tessitura da pesquisa encontrava respostas nesses recortes
de jornais quando delineavam-se os discursos em torno do americano.
Enquanto o Diario de Pernambuco apresentava tendência pró-americana,
inclusive sendo acusado de servir de “boletim do consulado americano”8,
pela Folha do Povo que deixava claro o seu posicionamento contra não apenas
a cessão do arquipélago aos EUA, mas também, a presença americana no
território brasileiro como um todo: “o perigo”.9 No entanto, nos periódicos
pesquisados, a cessão do Arquipélago rendia discussões homéricas e que
ultrapassavam os limites desejados pela política internacional, já que tudo
7 ANDRADE, Luís Vieira. Portugal, a Aliança Atlântica e o pós-guerra Fria. Revista
Arquipélago – Historia; 2ª serie, IV – Nº 2; PP 613-623; Ponta Delgada, 2000
8 Folha do Povo, quarta-feira, 08 de março de 1956.
9 Folha do Povo, 10 de novembro de 1957.
em torno da cessão era passível de servir como matéria de jornal, incluindo
até a opinião do “pacato morador” da Ilha de Fernando de Noronha sobre
“a ida do americano”, algo apenas realizado pelo Diario de Pernambuco (em
setembro de 1958), como se isso reforçasse o discurso de que o americano
era amigo, já que traria riqueza com o dólar.

Tempo dos Americanos

A narrativa sobre a presença dos Estados Unidos na Ilha de Fernando


de Noronha tem suas bases nos jornais de circulação pernambucana e nos
relatos de vida de quem trabalhou como houseboy, para o estrangeiro.
Fontes capazes de montar um tempo da História do Brasil de segurança, de
defesa e de acordos que reforçavam tais argumentos.
Neste sentido, ao analisar as fontes eleitas na cena histórica
noronhense, compreende-se: pela necessidade de vigiar e defender a rota
do Atlântico, mantinha-se uma estrutura arquitetônica de acordo com
as diretrizes militares. A entrada dos Estados Unidos na história da Ilha
de Fernando de Noronha, no final do ano de 1957, traz consigo um novo
ritmo urbano e paisagístico: a engenharia espacial.
180 Urbanisticamente, por exemplo, enquanto Recife vivia uma fase de
projetos audaciosos para a organização dos espaços urbanos, Fernando de
Noronha seguia uma conduta disciplinar exigida nos quartéis a beneficiar
o vigiar dos insulares e que atendiam às normas de Segurança Nacional.
Clarice Peixoto, na sua dissertação de mestrado nos revela que em Fernando
de Noronha
distribuir os indivíduos no espaço era, de certo modo,
uma exigência da disciplina imposta pelos militares
para evitar a deserção, a vadiagem, e a aglomeração.
Essa concepção arquitetural, que vai pouco a pouco
codificando os espaços, determinava que a moradia
do governador ficasse assentada no alto de uma
colina, de onde se avistassem as principais vilas da
ilha e a vila dos pescadores (PEIXOTO, 1983, pp 62).

Em relatório dirigido ao governador do Território Federal de


Fernando de Noronha (TFFN), Coronel José Francisco da Costa, os técnicos
enviados pela Escola Superior de Guerra (ESG), detalham as especificações
quanto à habitação local, encontrando “cerca de 150 casas distribuídas pela
Vila dos Remédios e mais outros quatro pequenos povoados em outros
pontos da ilha”. (ESG 1960: pp 04).
Em outro documento datado de 1957, o periódico Jornal do
Comércio registra a informação que operários especializados e engenheiros
chegavam para dar suporte ao serviço técnico realizado. Mas pouco se sabia
da chegada desses estrangeiros, o que causava desconfiança e especulações.
Ainda de acordo com matéria do Jornal:

os 50 soldados do Exército e os 30 da Aeronáutica não


[tocavam] no assunto, mas os pescadores e o restante
dos civis [comentavam] ingenuamente sobre uma
idéia exata do que será aquilo, mas acham que vai haver
muita confusão. Há um grupo neutro e uma grande
maioria que gostará da vinda dos norte-americanos, 181
já que americano significa dólar e trabalho (APEJE;
hemeroteca; JC: 29/01/1957).

Outras fontes históricas possibilitam refletir acerca das relações


trabalhistas entre brasileiros e americanos. Os testemunhos do Sr.
Francisco Oliveira (Seu Chiquito), que foi parar em Fernando de Noronha
para trabalhar na base como encanador, narra como os norte-americanos
“pagavam bem” para aqueles que possuía um oficio/profissão:

Eles pagavam bem. Pagavam trinta e cinco por


horas. Trinta e cinco ‘mirreis’. Naquela época era
‘mirreis’. Um ‘mirrei’ era um real hoje. O cara que
tinha profissão ganhava trinta e cinco. O que era
braçal ganhava quinze. Geralmente era a metade. Os
funcionários do exército quando entravam de licença
especial, iam trabalhar nos americanos, que são seis
meses. Ai, quando terminavam a licença, ai, não
voltavam para o emprego do exército. Queria ficar no
americano, que ganhava mais, e o emprego público
federal ganhava do exército era uma micharia. Ai, foi
obrigado o major Mafra, empacou e os americanos
não podiam pagar esse preço, e baixou o preço. Ai
baixou os salários dos funcionários porque senão ele
ia ficar sem nenhum funcionário. O pessoal ia para
o americano e não queria mais voltar pro trabalhado
dele, né? (SEU CHIQUITO: julho, 2008).

Assim, os trabalhadores da base de teletipos não voltariam ao


trabalho caso não fosse determinada uma ordem para tal. A disciplina
aqui não foi transgredida, pelo simples fato que os próprios americanos
diminuíam o seu poder em barganhar a mão-de-obra em favor da paz
182 insular. “Trinta ‘mirreis’” se tornava um instrumento de poder em que a
força não se encontrava entre as mãos militares, mas sim na necessidade de
sobrevivência.
Destarte, entender a dinâmica política e social da presença desses
estrangeiros em solos brasileiros, é aprofundar-se nas normativas dos atos
diplomático assinados entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos
durante o conflito Mundial de 1942.

As estratégias políticas

O ano de 1942 marca a entrada do Brasil na Segunda Guerra


Mundial. No Rio de Janeiro, a Conferência dos Chanceleres, em sentido
estritamente militar, decidia ser tarefa, exclusiva, das Forças Armadas
norte-americanas a defesa hemisférica em escala internacional, cabendo às
Forças Armadas da latino-América apenas a manutenção da ordem política
e social de caráter interno de seus territórios.
Em março de 1945, na cidade de Chapultepec, no México, ocorria
a Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz10.
Seguindo a dinâmica da política internacional, Estados Unidos e alguns
países Latinos Americanos divergiram quanto a essa defesa hemisférica.
As nações latino-americanas defendiam a multipolarização desta defesa
hemisférica, sendo esse argumento contestado pelos representantes do
governo dos Estados Unidos, que baseados no princípio da Defesa Nacional
Estadunidense previa o sentido bipolar dessa na Ata de Chapultepec.
Desses dois encontros resultou, no ano de 1947, a assinatura do Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) funcionando em caso de
agressão ou ameaça de agressão (MOURA, 1990, pp 48 e 49).
Essas normativas das relações entre Estados Unidos e os seus
aliados da America Latinas, eram reforçadas em 1952, em especial, com
os Estados Unidos fornecendo ao Brasil equipamentos, assistência militar
e treinamentos. Até meados da década de 1960, mais de dois bilhões de
dólares haviam sidos utilizados para os programas de melhoria militar
(MOURA, 1990, pp 36, 40 e 44). 183
Esse cenário militar estruturava o ano de 1957 para a concessão
de Fernando de Noronha aos Estados Unidos. Cedia-se o território de
Fernando de Noronha para a instalação de um ponto de monitoramento de
mísseis por parte do governo americano.
As tensas negociações entre Brasil e Estados Unidos podem ser
encontrados em diversos trabalhos sobre o tema. Pesquisadores como
Moniz Bandeira, Jean Baptista Duroselle, Leandro Karnal, Sean Purdy,
Gerson Moura, a citar, nos revelam as acusações por parte de alguns

10 As Conferências Pan-americanas foram uma séries de reuniões de delegados, ministros


de relações exteriores e presidentes nacionais da América que ocorreram entre 1889 e
1954. Dentro das idéias e princípios do panamericanismo, idealizado em 1826 pelo criollo
venezuelano Simón Bolívar, a Primera Conferência Pan-americana (1889-1890) foi uma
iniciativa dos Estados Unidos para aumentar seu comércio com o resto da América do Sul.
grupos, considerados nacionalistas, contra as concessões feitas ao governo
dos Estados Unidos sob a alegação de que isso contribuiria para o progresso
brasileiro.
A Folha do Povo tratava essa permissão como “uma barganha do
governo brasileiro para conseguir empréstimos do governo americano,
através do Eximbank”11, sendo acompanhada pelo periódico Jornal do
Comercio quando registra que “todos os projetos que lá se encontravam
em estudo foram resolvidos e o que é melhor, satisfatoriamente”12, discurso
pronunciando pelo embaixador brasileiro, Almirante Amaral Peixoto, em
1957.
Apesar disso, não podemos simplificar a idéia de que a Ilha de
Fernando de Noronha se tornava um dos palcos da Guerra Fria para se
prestar apenas ao combate do comunismo. Os interesses norte-americanos
iam além dessas fronteiras. Os focos de preocupação estadunidense
encontravam eco de garantia por adquirir matéria-prima estratégica para
o desenvolvimento nuclear e, até, o aprimoramento das indústrias de
consumo básicos nos Estados Unidos, como o Petróleo.
Neste sentido, Fernando de Noronha era tomada como parte de uma
exposição de poder cujo teor era a noção de territorialidade, fator
184 que constrói a soberania de uma nação. Se de um lado “o Estado tem o
direito de defender a sua integridade e independência, de promover a
sua conservação e prosperidade, (...) de se organizar como melhor
entender”13, mesmo antes de ser reconhecido. Para os nacionalistas, a
presença dos militares americanos era tomada como uma ameaça, por ferir
a integridade (soberania) do Brasil, que se contrapõe ao que o governador
do Território Federal de Fernando de Noronha, na época, Major Abelardo
Mafra, declava: como sendo apenas “um cumprimento à nova geopolítica

11 Folha do Povo, 29 de maio de 1957 – NÃO PERMITAMOS QUE O SOLO NACIONAL


SE TORNE NUMA BASE MILITAR NORTEAMERICANA.
12 Jornal do Comércio, 12 de fevereiro de 1957 – O ALMIRANTE AMARAL PEIXOTO
REVELA NOVAS MINÚNCIAS DO ACORDO SOBRE FERNANDO DE NORONHA.
13 Carta da Organização dos Estados Americanos; Capítulo IV - Direitos e Deveres
Fundamentais dos Estados. Artigos 13 e 16.
de segurança internacional”14 contra a expansão do comunismo (da União
Soviética) e a proteção do Nordeste brasileiro, caso acontecesse um Terceiro
Conflito Mundial.
O que se realizou em Fernando de Noronha foi uma estratégia militar
articulada entre duas nações com propósitos muito bem definidos para
a segurança de um centro hegemônico norte-americano. Segurança esta
que se apóia no princípio elementar da defesa da soberania do Estado,
pois “as fronteiras nacionais delimitam objetivamente o campo de ação
das suas outras atividades de segurança e definem, geograficamente, as
suas responsabilidades e os seus direitos inalienáveis, face aos interesses
e objetivos nacionais dos outros Estados” (TAVARES, 1958, pp 157-158).
Por outro lado, alguns militares brasileiros mostram certa
preocupação frente às decisões negociadas entre Brasil Estados Unidos.
Especificamente, aqueles que se encontravam na ilha eram alvo de críticas
por parte dos nacionalistas, que ainda patrocinavam uma campanha contra
a presença norte-americana no arquipélago de Fernando de Noronha. Para
esses a segurança do território brasileiro estava ameaçada, por entender que
a segurança do território “é o princípio elementar da defesa da soberania
dos Estados” 15.
Portanto, o Arquipélago de Fernando de Noronha era um lugar 185
de fronteira entre comunistas e capitalistas na geopolítica da Guerra Fria,
por estar a serviço da política norte-americana, enquanto sentinela ao
desenvolvimento da energia nuclear e da tecnologia de mísseis, elementos
tidos como o que havia de mais avançado em termos de equipamento
militar à defesa e à segurança, não apenas do hemisfério ocidental, mas,
especificamente, dos Estados Unidos. Esse era o motivo dos segredos
velados na Ilha de Fernando de Noronha em torno dos MILS (Missile
Impact System Center).
As contrapartidas adquiridas pelo Brasil nessa negociação são
consideradas pequenas em relação à importância que a ilha adquiria nesse

14 Correio do Povo, 27 de junho de 1957.


15 TAVARES, op. cit. pp 157-158.
tempo em que a sua posição geoestratégica a colocava como ponto central
para todo e qualquer movimento no centro do Atlântico.
Neste sentido, toda a conjuntura política desenvolvida pelo governo
de Juscelino Kubistekch imbricava-se com o cotidiano da ilha quando
essa é tida como “um elo importante” no combate ao comunismo.16 Os
discursos de combate a essa ameaça, faziam da soberania brasileira, bem
como a salvaguarda da democracia do mundo livre, temas constantes nas
preocupações de JK e do comandante de Fernando de Noronha.
Transformada numa base de observação de projéteis teleguiados
intercontinentais17 (ICBM), a presença americana mudava a feição da
ilha, que aos poucos ia se tornando a “11ª base do sistema de controle dos
moderníssimos ‘missiles’ norte-americanos”18, cuja tecnologia produzida a
partir dos testes com os mísseis intercontinentais aproximava o arquipélago
de Fernando de Noronha de um ambiente, em que a disputa pela liderança
na “corrida espacial”19, consolidava ainda mais a permanência da divisão
política internacional entre americanos e russos, tanto na liderança dessa
tecnologia, como na geopolítica internacional.

16 Diario de Pernambuco, sexta-feira, 02 de março de 1956 - ACIMA DA POLITICA, NO


COMBATE AO COMUNISMO.
186
17 Diario de Pernambuco, 15 abril de 1958.
18 Idem.
19 Desde a segunda metade dos anos 50, Os Estados Unidos e União Soviética estavam
envolvidos em outra competição além da corrida nuclear: a disputa pelo desenvolvimento
da tecnologia de exploração espacial. Os soviéticos se adiantavam e lançavam, em outubro
de 1957, o Sputnik I, 1º satélite artificial a ser colocado em órbita da Terra. Menos de um
mês depois, lançavam um segundo satélite, dessa vez transportando um ser vivo (uma
cadela). Os norte-americanos, considerados como uma das áreas estratégicas da Guerra
Fria, em 1958, iniciava um vasto programa espacial, através da criação da NASA (National
Aeronautics and Space Administration), do Projeto Apolo. Mesmo com todos os esforços
americano em superar os russos, foram eles que em 1961 enviaram ao espaço um satélite
ocupado pelo 1º ser humano (Iuri Gagarin) que permaneceu 108 minutos em órbita. Em
1969, como um dos resultados do Projeto Apolo, e para demonstrar o poder americano
neste cenário tecnológico, os EUA lançavam dois astronautas ao espaço. Só que dessa vez,
diferente dos russos, esses desciam a Lua. DIAS JÚNIOR, José Augusto & ROUBICEK,
Rafael. Guerra Fria, a era do medo. (Coleção História em Movimento). 2ª edição, São Paulo:
Ática, 1999. pp 50.
Neste sentido, Fernando de Noronha estava na rota de colisão da
Guerra Fria, como alvo irreversível de uma possível guerra nuclear, assim
como as cidades nordestinas de Natal e Recife, ligadas militarmente à
defesa do Oceano Atlântico.
O planejamento da política de segurança de um país em
termos de seus fatores geográficos20 inseria a ilha na corrida espacial, no
desenvolvimento da tecnologia de guerra, com o lançamento dos mísseis
intercontinentais, alcançando longas distâncias e quebrando, assim, barreira
do tempo e do espaço em termos de conquistas bélicas, proporcionando
uma segurança maior para o hemisfério. Noronha passava a fazer parte de
uma outra rota do atlântico: a rota dos teleguiados americanos.
Assim, compactuando da idéia do historiador Tácito Rolim, a
cessão da Ilha de Fernando de Noronha aos Estados Unidos se constituiu
em um dos momentos mais interessante de nossa história, “em que tudo
parecia possível e factível” de acontecer.

O Reinventar da história

A narrativa histórica estabelece a relação entre o narrador e o tempo.


Essa afirmação tem suas bases no fato de o narrador ter, através do ato de 187
lembrar, de localizar os fatos em sua memória, de acordo com o significado
desses em determinado momento de sua vida. Neste sentido, a invenção de
cotidiano passa pela idéia de perceber realidades sociais e ressignificações
dos centros culturais, políticos e econômicos, justificada pelos debates
intelectuais. Dito isso, o homem passa a ser tomado como produto dos
significados construídos e partilhados pela narrativa de uma cultura. E
neste campo, encontramos a memória e o tempo. Essas duas temáticas
fazem parte da essência do historiador. No entanto, não podemos fugir do
limite imposto pelo nosso arquivo.

20 SILVA, Golbery do Couto e. Conjuntura política nacional: o poder executivo & geopolítica
do Brasil. – 3ª ed. – Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981 pp 165.
Só podemos historicizar aquilo que deixou rastros
de sua produção pelo homem, em dado momento e
espaço. mas desaparecem as fontes privilegiadas da
História, ou os aspectos de que o historiador não
poderia se ocupar e tudo se torna historicizável e
fonte de historicidade. (ALBUQUERQUE JUNIOR,
2007: pp64).

Se de um lado, percebe-se a prática da pesquisa histórica construída


sobre três pilares: documento; tempo e narrativa, em que o documento se
emoldura a responder às reflexões e às problemáticas levantadas. Por outro,
“documento algum é neutro”, pois ele é carregado de impressões de um passado.
O professor Carlos Bacellar ao afirmar a neutralidade do documento,
leva-nos a enxergar os documentos como uma construção permanente, em
que a história tramada e retraçada, se metamorfoseia a partir das relações
sociais, políticas e culturais, tornando a informação (discurso) peça chave na
construção de memórias. Essas repletas de significados já que o documento
é patrimônio e como tal, retrata o individuo em um momento especifico
da sua historia, e a “qualidade desse patrimônio deve necessariamente ser
188 considerada segundo esse momento” (BACELLAR, 2008, pp 69).
Neste sentido, a ampliação do campo de investigação do
conhecimento histórico constrói meios de democratizar o acesso aos
documentos, permitindo a sistematização de novas fontes, de novos
referenciais teóricos e de novas metodologias e possibilitando ao historiador
perceber-se como parte integrante do processo de maturação da historia
em si. A produção historiográfica, portanto, encontra-se atrelada ao uso
do documento como fonte importante para a narrativa histórica, seja
qual for, materializada nas diversas correntes que o campo historiográfico
proporciona. Contudo, devemos estar atentos que

o historiador não pode se submeter a sua fonte, julgar que


o documento é a verdade. Antes de tudo, ser historiador
exige que se desconfie das fontes, das intenções de quem
a produziu, somente entendidas com o olhar critico e
a correta contextualização documental que se tem em
mãos (BACELLAR, 2008, pp 64).

Assim, a triagem e a leitura crítica dos documentos exige a


realização de um levantamento bibliográfico inicial sobre o contexto em
que eles estão inseridos. Como o estudo da história repousa na lógica da
acumulação de conhecimentos, quanto melhor a análise dos trabalhos
escritos sobre um determinado tema, melhor podem ser identificadas as
mais diversas interpretações de um fato específico.
Diante de todos esses argumento, a tessitura da narrativa permitiu
construir reflexões em torno da presença americana em Fernando de
Noronha. Pensar o porquê dessa presença foi enveredar na relação do Brasil
com os Estados Unidos durante a Guerra Fria. Daí, questionar o por que
os americanos estiveram na ilha? Qual o interesse os movia a permanecer
por cinco anos em território insular? Deparamo-nos com diferentes fontes
históricas: jornais, ofícios, memorandos, relatórios, revistas, relatos orais,
fotos, dentre outros.
Neste sentido, a passagem humana por Noronha é constantemente 189
lembrada e ressaltado pelos documentos, mas também, é posta ao
esquecimento diante da exuberante natureza que a cerca. O simples ato
de passar pelos seus arredores engendra descortinar o fio que tece a trama
histórica cultural desse lugar.
Ao escrever este texto, nosso objetivo foi o de trazer à cena eleita
o trabalho com as fontes (documentos) com a interface do tempo na
construção de narrativas históricas sobre a Ilha, cujo rigor com o uso dos
documentos é uma das premissas ao oficio do historiador, entendendo que
o “documento é a base para o julgamento histórico” (KARNAL & TATSCH,
2009, pp 09).
O tempo dos americanos aqui exposto se encontra “esquecido”
pela Ilha. As estradas de pretas pedras ainda têm por falar. As fronteiras
desses silêncios e “não-ditos” com o esquecimento definitivo e o reprimido
inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo
deslocamento (POLACK, 1989). Mas para (re)elaborar o passado, se faz
necessário o exercício de esquecer, percebendo os rastros deixados por este
exercício (GAGNEBIN, 2006, pp.105), cujo objetivo é buscar/encontrar
um “tempo perdido” que talvez possa ser entendido não como um tempo
que se perde sem fundamento, mas como é utilizado no revisitar de um
tempo do americano repleto de significados. (DELEUZE, 2006, pp.16 ).
Como a história é um processo em construção permanente, elaborada
por sujeitos individuais e coletivos, que envolve ideologias, cultura,
vida privada, ações públicas, representações, imaginários, lutas,
reações, resistências, valores, instituições, entre múltiplas variáveis
que constituem a complexa rede de inserção do homem na vida em
comunidade através do tempo21, este trabalho, que por hora se encerra,
não se esgota em possibilidades.
Todos esses argumentos encerram a Ilha de Fernando de Noronha
na história da relação do Brasil com os Estados Unidos, como fator para a
construção de imperialismos, que ambos representavam na América da Sul
e no mundo, constituindo um dos momentos mais interessante de nossa
190 história, onde tudo poderia acontecer.

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193
Parte II
195
Fio do Tempo: Entre Passados, presentes e expectativas
do devir em imagens das artes visuais

Joana D’arck

“Quando não me perguntam pelo tempo, sei o que ele


é”, dizia um ancião cheio de sabedoria. “Quando me
perguntam, não sei”. Então porque fazer a pergunta?
(Norbert Elias)

I
Historiadores: narram o tempo

Retomo o texto supracitado da epígrafe utilizado por Norbert Elias,


sociólogo alemão, na obra Sobre o Tempo (1990) logo no início da introdução
dessa obra. Diz Elias que ao nos debruçarmos sobre os problemas ou a
problemática do tempo, estamos nos aproximando dos homens, dos seus
fazeres, dos espaços, aprendemos sobre nós mesmos e nossa existência. O
tempo é nossa existência, é permanência, é simultaneidade, é invenção da 197
cultura para controlar a natureza.
O tempo apresenta-se de muitas e diversas formas. O tempo
se impõe com soberania à existência humana. Quando nos olhamos no
espelho, por exemplo, notamos sua passagem. O tempo deixa suas marcas
e seus ruídos. O tempo possui durações diferenciadas a depender de nosso
estado emocional, de certos contextos externos, reais e/ou virtuais.
Norbert Elias na obra Sobe o Tempo nos alerta que ao examinarmos
os problemas relativos ao tempo, aprendemos sobre os homens e sobre nós
mesmos muitas coisas que antes não discerníamos com clareza (1990, p. 7). Ou
seja, nos deparamos com questões que dizem respeito às ciências humanas
e singularmente com nosso ofício de historiador ou ainda especificamente
com o narrar histórias.
Segundo Elias, o tempo não se deixa ver, tocar, ouvir, saborear nem
respirar como um odor. Há uma pergunta que continua à espera de resposta:
como medir uma coisa que não se pode perceber pelos sentidos? (idem).
Os físicos e os matemáticos dizem medir o tempo, se valendo do uso de
fórmulas nas quais o tempo desempenha papel de um quantum específico
(ibidem). Escrevem o tempo por meio de uma linguagem estrangeira para
leigos e pouco iniciados.
Há de outra parte, as invenções técnicas e as astúcias dos humanos
na construção da cultura que inventaram marcadores do tempo, partindo
dos elementos da natureza e aperfeiçoando para objetos técnicos e
tecnológicos, uma tentativa astuciosa de apreender o tempo e controlá-lo
para o bem e para o mal. Por exemplo, o relógio1, (processos físicos que
a sociedade padronizou) quando inserido na vida social, serviu e serve
até hoje como medida de controle da duração de um dia, decomposto em
segundo, minutos e horas, instrumento fundamental para disciplinar a vida
cotidiana, sobretudo, os operários das fábricas.
Quando o sistema capitalista, por exemplo, no final do XIX,
entende que por meio da inserção dos relógios no cenário urbano - por
um lado nos ambientes públicos como ruas, praças, boulevards, fachadas
198 de grandes magazines e de instituições publicas oficiais, por outro, em

1 O relógio é utilizado como medidor do tempo desde a Antiguidade em variados formatos.


Os mais antigos eram os relógios de sol provavelmente usados pelos gnômons. A história
registra que apareceu na Judéia mais ou menos 600 a.C., os relógios de água (clepsidras)
e relógios de areia (ampulhetas). Já em 850 da era actual construido um relógio mecânico
baseado em engrenagens e pesos. Quanto à construção do primeiro relógio mecânico
existem algumas controvérsias. Uma corrente considera que o primeiro contrutor de relógios
foi o monge francês Gerbert, posteriorente Papa Silvestre II. Outras grandes construtores e
aperfeiçoadores dos relógios foram; Ricardo de Walinfard (1344); Santigo de Dondis (1344)
e o seu filho João de Dondis que ficou conhecido como “Horologius” e Henrique de Vick
(1370).Já o primeiro relógio de bolso foi construído em Nuremberg por Pedro Henlein. Em
1595 Galileu Galilei descobre a Lei do Pêndulo, ou seja 2.200 anos depois do aparecimento
do primeiro relógio na Judéia. Com os relógios mecânicos surgiu uma grande variedade de
técnicas de registo da passagem do tempo. Os relógios deste tipo podem ser de pêndulo, de
quartzo ou cronómetros. Mas sem dúvida alguma, os relógios mais precisos são os relógios
atómicos.
ambientes privados como galpões de fábricas, casas burguesas e etc –
provoca e desencadeia um processo de controle e autocontrole por parte
dos passantes da vida urbana, dos burgueses que se recolhem em seus lares
(em busca da individualidade e preservação de sua individualidade) e dos
operários enclausurados nas fábricas.
Segundo a historiadora Maria Stella M. Bresciani na obra Londres
e Paris No Século XIX: O Espetáculo Da Pobreza2, cujo estudo recai sobre
as multidões que ocuparam Londres e Paris nesse período, diz que
ao ser inserido o relógio nos espaços públicos e privados das cidades,
metaforicamente arrancaram o coração dos trabalhadores substituindo-o
pelo relógio. Uma espécie de alegoria do homem ciborgue3 já se esboçava
na imagem do homem máquina, regido pelo movimento da contagem do
tempo, cujo símbolo da emoção e afetividade fora transplantado e em seu
lugar apenas a maquinaria do relógio o regia.
Então, se físicos, matemáticos buscaram produzir uma gramática
para narrar o tempo e daí derivaram-se as invenções técnicas de controle
e apreensão desse, também cientistas sociais e particularmente os
historiadores de ofício precisaram dizer e inventar conceitos para narrar e
dar conta dessa dimensão da existência humana e social.
Para os historiadores, a dimensão temporal é fundamental. 199
Segundo Antonio Paulo Rezende, a história é tempo e espaços vividos que
se articulam e são re-atualizados (inventados) na narrativa histórica. Sem
deixar escapar no tecer da narrativa as aventuras dos sujeitos no tempo - o
sentir, o fazer, o viver, o interpretar, o sonhar. Por tal, a história apresenta-
se como um campo de possibilidades, cujas relações de força se impõe,

2 A autora utilizou-se de documentos históricos e literários para reconstruir a vida urbana


incipiente nessas duas cidades (Londres e Paris), Maria Stella Brecianni faz uma descrição
minuciosa de duas grandes capitais do velho mundo no século XIX, Londres e Paris, porém,
longe de realizar uma visão romancista e fantasiosa, ela oferece um trabalho focado mais
para o lado tumultuado e aterrorizante das duas cidades. A autora nos traz um agudo olhar
sobre a dura realidade das ruas, numa época em que a industrialização tinha acabado de
criar suas raízes e trazido consigo seus males sobre uma população pobre e iletrada.
3 Ver Paula Sibília, O Show do eu: a intimidade como espetáculo. Ed. Nova Fronteira: São
Paulo, 2008.
mas não a determinam. Um campo de inúmeras possibilidades para as
experiências, aberto aos improvisos, às astúcias, aos acasos.
A historiografia ocidental marcada pela presença da escola
francesa4 (Nouvelle Histoire) da qual a historiografia brasileira é herdeira
tem na temporalidade sua chave interpretativa. Praticamente toda a
“escola histórica” realiza uma mudança profunda na representação do
tempo histórico, apoiadas em mudanças ocorridas na história efetiva,
representando uma mudança dessa área do conhecimento. Isso permitiu
a renovação metodológica e teórica da história e a fundação do próprio
campo de conhecimento. Com base nessa renovação – sob a influência das
ciências sociais – há uma distinção dos novos objetos que serão formulados,
os novos problemas e reformulam-se os antigos, e se constroem novas
abordagens com as quais nós historiadores contemporâneos ainda nos
debatemos5.
Na prática do fazer historiográfico - no horizonte maior de
sua abrangência – o historiador faz ver muitas camadas das dimensões
temporais – passado, presente, futuro. Obviamente não só as camadas do
passado – mas, as tensões e questões do presente e do passado mediadas
pelas expectativas do devir6, uma espécie de relação entre a dimensão
200
4 Primeira fase dos Analles – Febvre e Bloch – história problema – imaginário; Segunda
fase - Fernand Braudel (1968) – e seu determinismo geográfico – fundamental trazido
por ele os três tempos da história. Terceira Fase - retomada do imaginário, ampliação da
interdisciplinaridade, novos diálogos, problemas, abordagens e fontes. Devido aos impasses
houve um estilhaçamento desse grupo fazendo originar outros estudos como o caso da
micro-história com Carlo Ginzburg.
5 Em linhas gerais pode-se ter acesso às obras citadas para aprofundar esse debate: NORA,
Pierre; LE GOFF, Jacques. Historia: Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves
Editora, 1988; NOVAES, Adauto (Org). Tempo e História. São Paulo: Cia das Letras, 1994;
REIS, José Carlos. História da ‘Consciência Histórica’ Ocidental Contemporânea: Hegel,
Nietzsche, Ricoeur. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013 eTeoria & História Tempo
Histórico, História Do Pensamento Histórico Ocidental E Pensamento Brasileiro. 1. ed. Rio
de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 2012. v. 1. 272 p.
6 Sobre tal relação de reciprocidade entre passado/futuro nos valemos do historiador
Reinhart Koselleck (2006) que considera que Desde a Antiguidade até os dias de hoje
acumulam-se inúmeros testemunhos dessa relação: políticos, filósofos, teólogos, poetas,
mas também manuscritos de autoria desconhecida, provérbios e enciclopédias, quadros e
temporal do passado que entra em relação de reciprocidade com a dimensão
temporal do futuro. Podemos pensar que o historiador lida com o tempo
histórico – como conceito com sentido próprio, e,

(...) está associado à ação social e política, a homens


concretos que agem e sofrem as conseqüências de
ações, a suas instituições e organizações. Todos eles,
homens e instituições têm formas próprias de ação e
consecução que lhe são imanentes e que possuem um
ritmo temporal próprio (Koselleck:1979, p. 14).

II
E os artistas, narradores do tempo?

Tempo, tempo, tempo, tempo. És um senhor tão bonito,


como a cara do teu filho, tempo, tempo, tempo, tempo,
vou te fazer um pedido tempo, tempo, tempo, tempo.
Compositor de destinos tambor de todos os ritmos, 201
tempo, tempo, tempo, tempo, entro num acordo contigo
tempo, tempo, tempo, tempo. Por seres tão inventivo e
pareceres contínuo tempo, tempo, tempo, tempo, és um
dos deuses mais lindos tempo, tempo, tempo, tempo.
Que sejas ainda mais vivo. No som do meu estribilho
tempo, tempo, tempo, tempo. Ouve bem o que te digo,
tempo, tempo, tempo, tempo. Peço-te o prazer legítimo
e o movimento preciso tempo, tempo, tempo, tempo,
quando o tempo for propício, tempo, tempo, tempo,

sonhos foram investigados, assim como os próprios historiadores. Todos os testemunhos


atestam a maneira como a experiência do passado foi elaborada em uma situação concreta,
assim como a maneira pela qual expectativas, esperanças e prognósticos foram trazidos à
superfície da linguagem (p. 15).
tempo. De modo que o meu espírito ganhe um brilho
definido, tempo, tempo, tempo, tempo, e eu espalhe
benefícios. tempo, tempo, tempo, tempo. O que usaremos
pra isso, fica guardado em sigilo tempo, tempo, tempo,
tempo. Apenas contigo e comigo, tempo, tempo, tempo,
tempo. E quando eu tiver saído para fora do teu círculo
tempo, tempo, tempo, tempo. Não serei nem terás sido
tempo, tempo, tempo, tempo. Ainda assim acredito. Ser
possível reunirmo-nos tempo, tempo, tempo, tempo.
Num outro nível de vínculo, tempo, tempo, tempo,
tempo. Portanto, peço-te aquilo e te ofereço elogios,
tempo, tempo, tempo, tempo. Nas rimas do meu estilo,
tempo, tempo, tempo, tempo (Caetano Veloso, 1979).

Para além das escritas dos historiadores e de suas problemáticas,


o tempo é narrado por artistas em suas mais variadas linguagens e poièses
- conjunto de questões que intencionalmente o artista quer trabalhar - de
natureza social, política, cultural, religiosa e antropológica, são obras que
se apresentam ao mundo de maneira sofisticada e com rigor formal ou
202 não. Por vezes, é o processo que antecede a obra que mais ganha potência
poética.
Tomemos primeiramente o poema de Caetano Veloso que foi
musicado e gravando no LP Cinema Transcendental7, para fazermos uma
leitura analítica de como o artista atualiza o tema sobre o tempo, e, nessa
medida, o poema auxilia (a nós, historiadores) a refletir sobre a dimensão
mística do tempo, suas repetições e sua circularidade.
Oração ao Tempo condensa em sua linguagem poética e estética,
simultaneamente a noção de temporalidade. O tempo é um mantra que

7 Cinema Transcendental, cujo título fora extraído da canção Trilhos urbanos, que integra o
repertório. O LP atingiu a vendagem de cerca de cem mil cópias, trouxe canções antológicas
de sua autoria, como “Menino do Rio” (sucesso na voz de Baby Consuelo, atual Baby do
Brasil), “Lua de São Jorge”, “Beleza pura” (que se tornou o grande hit do LP), e “Cajuína”’, e
uma exaltação à religiosidade com “Oração ao tempo”.
se repete e nesse movimento, ou seja, na construção de suas sequencias,
por seres tão inventivo e pareceres contínuo tempo, tempo, tempo, tempo,
um ciclo que se completa: tempo da natureza, do nascer e do findar-se, do
velho e do novo que guardam suas semelhança e dissonâncias, és um senhor
tão bonito, como a cara do teu filho, tempo, tempo, tempo, tempo. Ainda,
quando o poeta diz, compositor de destinos tambor de todos os ritmos, tempo,
tempo, tempo, tempo, entro num acordo contigo tempo, tempo, tempo, tempo,
nesse caso a inserção do elemento tambor - instrumento recorrente na
construção musical de origem africana e afro-brasileira - nos da à medida
da marcação temporal, um dos elementos fundantes da linguagem musical,
que estabelece o ritmo da canção e da passagem do tempo. Esse ritmo
marcado pela metáfora do toque do tambor restaura noções que perpassam
pela presença de um tempo da ancestralidade.
Ainda nessa esteira o tempo se revela circular. O início e o final
correspondem ao ciclo da existência das coisas vivas, quando eu tiver
saídopara fora do teu círculo tempo, tempo, tempo, tempo. Não serei nem
terás sido tempo, tempo, tempo, tempo. Ainda assim acredito. Ser possível
reunirmo-nos tempo, tempo, tempo, tempo. Num outro nível de vínculo (...).
Assim como a construção poética do texto acompanha esse ritmo circular,
por meio do refrão que se repete construindo um texto sem cisões, fluido. 203
No sentido que Zygmunt Bauman propõe no seu conceito de “tempo
líquido”: O tempo líquido é aquele que reúne sem vínculo, sem proximidade,
sem intensidade e sem implicação as pontas das interações humanas. Oração
ao tempo apresenta em linhas gerais essa fluidez do tempo líquido.
A composição é formada por dez estrofes de igual melodia, à
semelhança de uma oração, de uma reza. A repetição é proposital, pois,
repetitivas são as orações. A palavra “tempo” é repetida à exaustão, como se
quem reza estivesse tentando chamar a todo custo a atenção do deus tempo.
É a pequenez humana frente ao tempo. (Miranda, 2010, s/p).
Tal concepção do tempo (sagrado, profano, circular) proposto
pelo poema nos parece ser interessante como escrita sobre o tempo, pois
recoloca na contemporaneidade essa dimensão mítica que se condensa
no “tempo histórico”, estabelecendo correspondência com as construções
narrativas elaboradas por antropólogos, historiadores e cientistas sociais.
Um belo texto que ajuda a desencadear o debate sobre o tempo e suas
muitas interpretações.

III
Marcelo Brodesky: Buena Memória
Muitos artistas buscam escrever suas impressões e experiências
sobre e no tempo. Para além dos textos verbais (literatura), há uma vasta
escrita visual que dialoga com essa questão. No cinema, por exemplo, pode-
se arrolar uma lista de incontáveis textos narrativos cinematográficos que
exploram esse tema e operam efetivamente com uma narrativa que traz o
tema em correspondência com a linguagem do cinema. O cinema consegue
por sua linguagem ser construída por fragmentos, colagens e bricolagens,
narrar diferentes uma história por meio de estratégias narrativas que
colocam as temporalidades em simultaneidades.
Também nas artes visuais - linguagem privilegiada da minha
pesquisa - notam-se poéticas artísticas que desencadeiam essa temática,
privilegiando questões bastante singulares como as significações da
204 memória e suas passagens no tempo – citemos o artista Marcelo Brodsky,
argentino exilado na Espanha durante o Golpe de estado em seu país de
nascimento. O artista trabalha com a apropriação de coleções de fotografias
particulares, palavras recolhidas na cena urbana, entre outras apropriações,
como possibilidade de trazer para o presente, questões referentes aos
tempos: do horror, tempo do medo, tempo da perda, tempo das afetividades
e tempo das ausências.

Em sua obra emblemática chamada por Buena Memória, Los


Campaneros, 19968 o artista mobiliza amigos de infância, que viveram,
8 Essa obra foi exibida no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães/Mamam, na cidade
do Recife em Pernambuco no período de 14 de outubro a 20 de novembro de 2011. Antes
de chegar no Recife a mostra foi realizada pelo Memorial da Resistência em São Paulo.
A mostra teve a curadoria de Diógenes Moura, do Núcleo de Curadoria e Pesquisa em
assim como ele, a experiência do terrorismo de estado, vivida após o golpe
na Argentina. Essa proposição de arrancar do passado essas memórias e
reuni-las no presente, por meio da construção de uma narrativa visual,
produziu uma experiência que potencializa a reflexão sobre a simultaneidade
temporal, aquele passado que não quer passar, que convive com o presente
e com as expectativas e apostas no devir: o futuro que nos espera e ou o
futuro que desejamos viver. Além de abrir uma agenda política sobre o
tema do direito à verdade e à memória. Segundo relato9 do artista Buena
Memória tem início quando ele retorna à Argentina após ter vivido na
Espanha por muitos anos,

(…) acababa de cumplir cuarenta y quería trabajar


sobre mi identidad. La fotografía, con su capacidad
exacta de congelar un punto en el tiempo, fue mi
herramienta para hacerlo. Empecé a revisar mis fotos
familiares, las de la juventud, las del Colegio. Encontré
el retrato grupal de nuestra división en primer año,
tomado en 1967, y sentí necesidad de saber qué había
sido de la vida de cada uno. Decidí convocar a una
reunión de mis compañeros de división del Colegio 205
Nacional de Buenos Aires para reencontrarnos
después de veinticinco años. Invité a mi casa a los que
conseguí localizar, y les propuse hacer un retrato de
cada uno. Amplié a un gran formato la foto del 67, la
primera en la que estábamos todos juntos, para que
sirviera de fondo a los retratos y pedí a cada uno que
llevara consigo para el retrato un elemento de su vida

História da Arte da Pinacoteca do Estado, também responsável pela coordenação editorial


do catálogo dessa.
9 Infelizmente não pude nesse momento exibir as imagens do trabalho, contudo, todo o
projeto pode ser visitado em http://www.marcelobrodsky.com. O relato que se segue também
foi retirado do site do artista. Ver também catálogo da exposição: MOURA, Diógenes. (org)
Buena Memória. São Paulo: Memorial da Resistência de São Paulo, 2011.
actual. Seguí retratando a los compañeros del curso
que no vinieron a la reunión, pero la foto grande
no podía transportarse. Llevaba conmigo pequeñas
copias de la imagen para incluir en esos retratos, que
se realizaron en Buenos Aires, en Madrid, en Robledo
de Chavela (España) y en Nueva York. Más tarde se
organizó un acto para recordar a los compañeros
del Colegio que desaparecieron o fueron asesinados
por el Terrorismo de Estado en los años negros de la
dictadura. Después de veinte años, las autoridades del
Colegio aceptaron por primera vez que recordáramos
oficialmente en el Aula Magna a los que faltan. Fue un
hecho histórico. Resolví trabajar sobre la foto grande
que me había servido de fondo para fotografiar a mis
compañeros de división y escribir encima de la imagen
una reflexión acerca de la vida de cada uno de ellos.
La misma se completó posteriormente con un texto
más extenso que acompaña los retratos (Brodesky, in
http://www.marcelobrodsky.com/intro.html).
206
O fotógrafo Marcelo Brodsky produziu um ensaio fotográfico
recolhendo os espaços de ausências próximos a ele próprio: o
desaparecimento do seu irmão Fernando, do seu amigo Martín, dos
amigos dos seus amigos. Uma fenda que se abriu na vida e nas famílias de
cada um dos desaparecidos (...). Buena Memoria é um documento sobre a
ditadura militar na Argentina em e todas as outras partes do mundo onde o
sistema político atiçou (e ainda atiça) as suas garras. (Moura: 2011, s/p, apud
Brodesky, in http://www.marcelobrodsky.com/intro.html).
Brevemente farei uma leitura das imagens fotográficas que Marcelo
Brosdsky produziu para essa obra supracitada. O artista ampliou uma
fotografia da turma do colégio. A imagem traz os companheiros sentados
em uma “arquibancada” (pode ser o espaço do ginásio de esporte do
referido colégio). Os jovens estão distribuídos enfileirados e ocupam quatro
dos estágios da “arquibancada”. Estão uniformizados, (os meninos vestem
terno com gravata e as meninas uma espécie de jardineira com uma camisa
branca por baixo, sobre a jardineira, um casaco) e aparentam uma leveza e
descontração na maneira com que possam para a foto. A imagem ainda nos
dá a ver certa intimidade entre os integrantes do grupo, pois, estão todos
bem à vontade e sorridentes. Na primeira fila da direita para a esquerda a
segunda estudante segura uma placa que contém como legenda: Colégio
Nacional de Buenos Aires, depois em baixo, 1º. Ano, seguido da data, 1967.
Tal fotografia foi ampliada pelo artista e serve de cenário e fundo
para que os mesmos companheiros e integrantes da imagem do colégio que
figuram na fotografia possam posar novamente. Agora, ocupando outro
lugar e acompanhados de algo, alguém e ou retrato que seja significativo
para sua vida atual. Alguns deles posam com filhos, violão, livro que
publicou, entre outros elementos. Ou seja, há dois planos na imagem
fotográfica final, que estão separados, contudo se apresentam visualmente
quase que chapados num único plano: o primeiro plano está o adulto, que
em alguns casos, deixa escapar certo desconforto com situação e as marcas
do tempo vivido e em seguida o segundo plano que apresenta os jovens
estudantes que deixam escapar uma potência de vida e vigor juvenil. 207
Os tempos estão colados, é difícil separá-los fisicamente e das
experiências vividas: O tempo nos acompanha. Minutos podem parecer
meses. A indeterminação nos puxa (Rezende: 2015, s/d). As idealizações e
as esperanças de juventude estão presentes na imagem fotográfica. Quem
imaginaria que anos depois alguns dos presentes nessa imagem estariam
ausentes? Como esquecer que as idealizações estão presentes e nos empurram
para o futuro? Como riscar a memória se ela dialoga com o presente?
(Rezende, idem).
O fato de sobrepor duas imagens que foram realizadas em situações
temporais diferentes usando os mesmos personagens faz com que, do ponto
de vista da linguagem o artista produza uma espécie de bricolage temporal,
mescle e sobreponha passado presente, emblemáticos na percepção da
passagem do tempo, e, as esperanças do futuro, contido e retido nas duas
situações nas quais as imagens foram feitas. As expectativas e desejo do
devir que ambas congelam e suportam, cada qual a sua maneira. Diante da
imagem estamos sempre diante do tempo, como sugere Di-di Huberman10,

Diante da imagem, estamos sempre diante do tempo.


Como o pobre iletrado da narrativa de Kafka, estamos
diante da imagem como Diante da Lei: como diante do
vão de uma porta aberta. Ela não nos esconde nada,
bastaria entrar nela, sua luz quase nos cega, ela nos
impõe respeito. Sua própria abertura – não falo do
guardião – nos faz parar: olhá-la é desejar, é estar à
espera, é estar diante do tempo. Mas de que gênero de
tempo? Que plasticidades e que fraturas, que ritmos e
que choques do tempo podem estar em questão nesta
abertura da imagem?

Na esteira das observações acima, diante de uma imagem, – não


importa quão antiga –, o presente não cessa jamais de se reconfigurar, mesmo
208 que o desapossamento do olhar tenha completamente cedido lugar ao hábito
enfadado do “especialista”. Também sendo a imagem a mais recente e
contemporânea,
o passado também não cessa jamais de se reconfigurar,
pois esta imagem não se torna pensável senão em
uma construção da memória, chegando ao ponto de
uma obsessão. Diante de uma imagem, temos, enfim,
de reconhecer humildemente: provavelmente, ela
sobreviverá a nós, diante dela, nós somos o elemento
frágil, o elemento passageiro, e, diante de nós, ela

10 Diante do Tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Paris: Les Éditions de
Minuit, 2000. Tradução de Alberto Pecheu. In Revista Polichenelo, Postado em 21 de março,
2011. Cof. http://revistapolichinelo.blogspot.com.br/2011/03/georges-didi-huberman.html,
visitado em 13/02/2015.
é o elemento do futuro, o elemento da duração.
Freqüentemente, a imagem tem mais memória e mais
porvir do que o ente que a olha.

Essa imagem, como demais imagens condensa muitas


temporalidades. Como lidar e dar conta disso na pesquisa histórica?
Estamos diante, ouso dizer, do conceito de tempo histórico com que os
historiadores têm que lidar na investigação histórica. Diante das imagens
e especificamente dessa imagem temos que lidar com todos os tempos e
camadas temporais que ela condensa.
O uso da fotografia pelo artista – por meio dessa operação de
arrancar do passado a imagem, fazê-la falar do seu passado no presente e
exibi-la como parte de outra imagem produzida no instante agora – instaura
uma situação propicia para que essa fotografia se torne uma bandeira
política, uma arma de luta, que pode abrir uma fissura para novos debates
sobre o terror e o projeto atual de democracia. Nesse caso, podemos dizer
que as imagens fotográficas e das artes plásticas de maneira geral, para ficar
apenas nesses dois territórios que dialogam entre si, são uma produção
para o futuro, são artefatos produzidos, imagens que diante delas podemos
plasmar o tempo histórico e dar novos significados para ele. 209

IV
Dimensões da narrativa poética de Christina Machado em relação ao
seu tempo

Outro exemplo que gostaria de apresentar nesse ensaio sobre as


dimensões narrativas nas poéticas que abordam a temática do tempo,
diferentemente do esboçado sobre a obra fotográfica de Brosdky, é o
trabalho das artes visuais denominado de Tempo de Carne e Osso (2004),
realizado pela artista radicada no Recife/PE Christina Machado,
Christina Machado não se intimida com o tempo. Lança-se em
sua captura. O mergulho que faz é intenso na simultaneidade temporal.
Organiza passado, presente e futuro como se estivesse montando um móbile,
ou seja, para ela as forças da natureza se encarregam do movimento: futuro,
passado, presente. A experiência temporal é alimento para suas obras.
Recordo o personagem de Borges, Ireneo Funes, o memorioso11,
teve a má sorte, talvez o único homem a padecer do não esquecimento.
Não conseguia viver em paz, as lembranças o atormentavam. A memória
se balança entre o esquecimento e as lembranças. Não podemos nos recordar
de tudo, nem tampouco apagar todos os registros do passado, nos lembra
Antonio Paulo Rezende. Christina Machado se faz valer desse aprendizado.
O processo de criação da artista é agarrado às experiências da vida.
Os acontecimentos, com toda a carga emocional que os sustentam, são por
ela apropriados e ressignificados em sua experiência estética. Arte e vida
são relações cúmplices, inseparáveis se entrelaçam e se harmonizam sem
relação de precedência, simulação, competição ou contradição. Ambas são
fios de um mesmo tecido.
Nesse sentido, quando Chris Machado fala de seu trabalho,
envereda numa narrativa reveladora de si mesma - vida pública ou privada.
Procedimento semelhante é reconhecido na pesquisa e investigação de suas
obras: Pé Mão Sensação (2009/2006), Minha Cabeça Nossa Natureza (2009),
210 serie ELENELA (2005), O Ar que Respiro (2005/2008), Artérias (2006-2010),
Mulher de Ferro (2005), Tempo de Carne e Osso (2004), Impressões Sobre
Minha Vagina (2002/2005), a série Órgão e Organdi (2003/05), A Pele é o
que Separa o Corpo do Mundo (2000/2002), entre outros desdobramentos
retirados desses trabalhos12.

11 Jorge Luís Borges. Funes o memorioso, ou a memória (em tradução portuguesa) foi
publicado pela primeira vez em 1944 em um livro intitulado ficciones (ficções). Conf.
Borges. Jorge Luis. Ficções. Cia das letras: São Paulo, 2007.
12 Conferir livro organizado por Lima, Joana D’Arc de Sousa. Fio do Tempo. Funcultura:
Recife, 2009. O fio da meada que conduz a narrativa do livro é a fala em primeira pessoa
da artista. Desejou-se dar voz a Christina Machado para que ela contasse sua trajetória
de aproximadamente 15 anos de trabalho, pesquisa e inserção no campo das artes visuais
do Recife. Buscou-se construir uma escrita de si vista e revista pela organizadora do livro
e pelo jornalista Julio Cavani que participou da produção e edição da entrevista que é o
texto principal da narrativa do livro. Confeccionado por 03 mãos essa publicação marca
Uma experiência leva a outra e a mais outra e mais uma ainda.
Encadeadas. Como na representação, por exemplo, da série de objetos Um
nasce do outro (2007) – nascidos da série Artérias, são objetos/corações
feitos do barro que a sobra de matéria de um, deriva o outro e mais um.
A artista não sossega, produz incansavelmente seus trabalhos na mesma
medida que respira. Christina Machado é obstinada pela vida – pela
experiência - e a inscreve como arte.
Os trabalhos mais recentes deixam a marca da participação. O
“outro” faz parte da pesquisa, investigação e realização da obra. Chris
Machado desnuda-se diante do participador, oferece possibilidades de
uma experiência estética e de uma entrega sensorial para os mais diversos
públicos. Na esteira relacional, bem próxima das experiências propostas
por Lygia Clark13, somos convidados a participar sensorialmente. Dessa

efetivamente o primeiro registro em livro de Christina Machado, uma das mais importantes
artistas contemporâneas de Pernambuco.
13 Lygia Clark inicia aprendizado artístico com Burle Marx. Entre 1950 e 1952, vive em
Paris, onde estuda com Fernand Léger, Arpad Szenes e Isaac Dobrinsky. De volta para o
Brasil, integra o Grupo Frente, liderado por Ivan Serpa. É uma das fundadoras do Grupo
Neoconcreto e participa da sua primeira exposição, em 1959. Gradualmente, troca a
pintura pela experiência com objetos tridimensionais. Realiza proposições participacionais
211
como a série Bichos, de 1960, construções metálicas geométricas que se articulam por meio
de dobradiças e requerem a co-participação do espectador. Dedica-se à exploração sensorial
em trabalhos como A Casa É o Corpo, de 1968. Participa das exposições Opinião 66 e Nova
Objetividade Brasileira, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ). Reside
em Paris entre 1970 e 1976, período em que leciona na Faculté d´Arts Plastiques St. Charles,
na Sorbonne. Nesse período sua atividade se afasta da produção de objetos estéticos e volta-
se sobretudo para experiências corporais em que materiais quaisquer estabelecem relação
entre os participantes. Retorna para o Brasil em 1976; dedica-se ao estudo das possibilidades
terapêuticas da arte sensorial e dos objetos relacionais. Sua prática fará que no final da vida
a artista considere seu trabalho definitivamente alheio à arte  e próximo à psicanálise. A
partir dos anos 1980 sua obra ganha reconhecimento internacional com retrospectivas em
várias capitais internacionais e em mostras antológicas da arte internacional do pós-guerra.
Conf in: ASSOCIAÇÃO CULTURAL O MUNDO DE LYGIA CLARK., Rio de Janeiro, s/d.
Disponível em: <http://issuu.com/lygiaclark/docs/1960-bichos_p/3?mode=a_p>. Acesso
em: 27. Fevereiro. 2011; ENCICLOPÉDIA DE VISUAIS ITAÚ CULTURAL, São Paulo, s/d.
Disponível em http://enciclopedia.itaucultural.org.br/#!tipo=pessoas&q=Lygia%20Clark.
Acesso em 08. Março. 2015.
maneira vibra com o trabalho que desenvolve na Tamarineira14, com as
oficinas e encontros que resultaram nas experiências Pé, Mão, Sensação, e
nos desdobramentos do Artérias.
Experiências e deslocamentos, intimidade com a matéria,
estreitamentos da relação arte e vida, sofre uma radicalização quando
da construção, lapidação e destruição do objeto/corpo feito de barro,
representação e cópia de sua imagem. Nesse trabalho também são explorados
dois tempos, dois territórios, duas cores: a argila alva de Tambaba (litoral
paraibano) e a argila escura de Carnaúba dos Dantas (Sertão do Seridó).
Essas “vivências” alimentaram o corpo do trabalho exibido na sua primeira
exposição individual Tempo de carne e osso observatório cultural Torre
Malakoff em 2004.

212

14 Hospital Ulysses Pernambucano, ou simplesmente Hospital da Tamarineira, é o


segundo hospital psiquiátrico do Brasil, inicialmente administrado pelo governo da
província de Pernambuco. Atualmente é administrado pela Prefeitura da Cidade do Recife.
V
Christina Machado e seu Tempo de Carne e Osso

Christina Machado nasceu em 1957 na cidade de Belém no Pará,


filha de seu Raymundo Machado e D. Lalinha, presenças importantes
na vida da artista. A família se transfere para Recife em 1961. Christina
Machado passa a infância e adolescência percorrendo as ruas dos bairros
da Torre e Madalena. Entre quintais e o Rio Capibaribe a jovem se insere na
vida social e cultural da cidade. O rio Capibaribe se mimetiza em sua retina
como espaço de fruição, criação e referencia de deslocamento e natureza.
Casa-se apaixonada aos 26 anos com Murilo Mendonça, e com ele
tem dois filhos, Marcelo Machado Mendonça, nascido em 1984 e depois
de dois anos chega Vicente Machado Mendonça. Cultiva a educação dos
filhos sempre muito próxima da natureza e de repertórios e parâmetros
humanísticos e éticos. Entra na Universidade Federal de Pernambuco em
1975 para fazer o curso de educação artística e conclui sua formação em
artes em 1979. Desde então inicia trabalhos com a cerâmica, e continua sua
formação em artes nos ateliês e coletivos de artistas no Recife.
No início dos anos 1980 passou a dedicar-se ao desenvolvimento
de técnicas de modelagem, desenho e pintura própria a esta matéria. Em 213
1994 nasce Júlia de Machado Meira, de seu segundo casamento. Nessa
década de 1990 lança-se em experimentações no campo artístico e é nesse
período que assume a identidade artística voltando-se mais para sua
carreira profissional. Nesse momento realiza Ilustrações para livro Pé de
Chulé de Luciana Távora publicado pela editora Bagaço.
Sua dedicação à pesquisa e à sua produção artística na década de
1990 conduz a artista a várias exposições públicas. Em 1999 a exposição
coletiva Gambiarra I - Sistema móvel de Sensações Rústicas, em Paris na
França na Galeria Debret, no evento Ano do Brasil na França, refazendo
essa exposição na Galeria Amparo 60, na cidade de Recife/PE com a
participação dos artistas, Dantas Suassuna, Jose Paulo, Mauricio Castro,
Rinaldo Silva e Mauricio Silva.
Em 1998 realiza a Coletiva Cerâmica, no Núcleo de Arte
Contemporânea da UFPB, em João Pessoa/PB. No ano de(1996) a Galeria
de arte Dumaresq em Recife/PE convida a artista(ela convida todo o grupo
que estava fazendo parte dessa residência) a expor Cerâmicas, resultado de
residência artística coletiva no Atelier das Águas Belas e em 1995 e 1994
expõe respectivamente Arte na Rua, no Studio A em Recife e Cerâmica na
Galeria Baobá na Fundação Joaquim Nabuco/Fundaj, Recife/PE.
Nessa década de 2000 o corpo e o vasto universo feminino passam a
ser problematizados pela artista: como tema, espaço e lugar, suporte e obra,
território de inscrição e exposição. Essa década é marcada pela ruptura
da artista com dogmas e formas pré concebidas de tratar a matéria barro e
suas inserções. Ousadia experimentação foi a tônica da produção da artista,
suas pesquisas se intensificaram e a relação entre arte e vida se estreita. Sua
poética torna-se ao mesmo tempo em que intimista, revelando percursos
de sua intimidade, também escancaram para o público as questões sociais e
políticas do lugar da mulher e do uso do seu corpo na sociedade.
A pesquisa com o barro ganha força com a organização do grupo
Corgo, pesquisa da cerâmica, com artistas pernambucanos: Corgo15 –

15 O Coletivo de artistas denominado Grupo Corgo tem suas origens no Ateliê das Águas
214
Belas da artista Christina Machado na primeira metade dos anos 1990. A artista já atuava
na pesquisa com o barro, seus usos e possibilidades. Em seu ateliê reuniu artistas jovens,
citados, Dantas Suassuna, Joelson Gomes, José Paulo, Mauricio Silva e Rinaldo Silva, que
não conheciam as técnicas do uso dessa matéria, sua diversidade de cor, textura, origem e
resultados a usar a matéria. Assim, numa convivência de trocas e experimentações cerzidas
pela curiosidade e amizade, o grupo de artistas passou a freqüentar o espaço, produzindo
e discutindo sobre arte, o meio artístico local, suas poéticas e projetos de vida. Em 2002 o
grupo realiza exposição CORGO – Cerâmica Contemporânea de Pernambuco, em Recife
no Observatório Cultural Malakoff. Desse diálogo que se intensifica e produz visibilidade
para a produção contemporânea da cerâmica, o grupo realiza uma pesquisa sobre as diversas
territorialidades e possibilidades do uso do barro no universo cultural de Pernambuco, fruto
de uma bolsa de pesquisa em que o Corgo foi contemplado em edital público no 46º. Salão
de Artes Plásticas de Pernambuco/Brasil em 2003/2004, resultando em uma mostra coletiva
no Museu de Arte Contemporânea – MAC, Olinda. Depois dessa exposição o grupo não
mais se reuniu ou propões outras pesquisas e encontros. Não obstante o grupo de artistas
continua ligado pela amizade, afetividade e pela parceria em ações e experimentações de
diversos materiais, inclusive o uso da cerâmica. Vale destacar que desses nomes o artista
coletiva no Sesc Garanhuns/PE no evento 12º. Festival de Inverno de
Garanhuns e no mesmo ano (2002) na Torre Malakoff na cidade do Recife/
PE;
Sua pesquisa com o barro desloca-se para outros territórios,
Paraíba e Rio Grande do Norte, no nordeste do Brasil. Apropria-se da praia
de Tambaba, sul da Paraíba, e, da região do Seridó (RN), Carnaúba dos
Dantas como lócus da pesquisa com o barro e posterior espaço de suas
intervenções, resultando no trabalho, podemos ousar dizer, divisor de
águas, Tempo de Carne e Osso em 2004.

215

Joelson Gomes é destaque na produção trabalhos com a cerâmica, José Paulo, Mauricio
Silva e Rinaldo Silva continuam experimentando a matéria e justando à outros materiais.
Ver Lima, Joana D’Arc de Sousa Lima. Cartografia das Artes Plásticas no Recife dos anos
1980: Deslocamentos Poéticos e Experimentais. Recife: Editora da Universidade, 2014.
Também da autora, JOSÉ PAULO: Biografia Ilustrada. Recife, s/d. Disponível em http://
www.josepaulo.org/biografia-ilustrada/. Acesso em 1. Fevereiro. 2015.
VI
Tempo de Carne e Osso

Fiz uma visita ao passado, enterrei meus mortos e enfrentei o medo do futuro.
Christina Machado
A performance realizada nos bastidores da Torre Malakoff
em 2004, finalizando o trabalho Tempo de Carne e Osso, simboliza um
momento fundamental da trajetória da artista, podemos dizer que um
divisor de águas em sua produção. O tema do tempo é recorrente, trazido
sob o viés dos seus ciclos e suas passagens, como por exemplo, vida e morte.
Uma espécie de passagem se impõe como repertório nesse trabalho que foi
exibido no espaço cultural Torre Malakoff, na cidade do Recife/PE e reuniu
um conjunto de objetos, vídeos, fotografias e a ação performática realizada
pela artista na véspera da abertura da mostra acompanhada pela fotógrafa
Dominique Bèrth.

216
Tempo de Carne e Osso inicia-se em uma pesquisa que a artista já vinha
realizando sobre o uso e a natureza, como a mesma gosta de se referir, da
argila escura oriunda de uma região denominada por Seridó no estado do
Rio Grande do Norte16, nordeste do Brasil. Segundo relato da artista o que
a mobilizou, primeiramente, para a realização do trabalho Tempo de Carne
e Osso foi uma necessidade de, com base no presente, projetar o futuro, ou
seja, uma viagem para o devir, ampliando seu olhar no horizonte de
expectativas que fossem possíveis vislumbrar naquele momento,

[Eu] precisava, agora, encontrar o eixo desse trabalho.


O presente foi o eixo. Numa ação para o futuro, o
presente foi revelador para mergulhar no passado.
E o trabalho foi montado em cima dessa estrutura.
Um laboratório onde vida e arte se confundiam.
Precisava, agora, buscar as ferramentas de expressão
e tudo partiu do vídeo, acho até que por ser uma
ação com começo, meio e fim. Uma historinha que
precisava agora ser preenchida de conteúdo e ações
e que trariam a técnica como aliada para o diálogo.
Fiz o roteiro e comecei a introduzir as ferramentas: 217
a urna, o sarcófago, a cuba, o corpo, o barro branco e
marrom, o gesso, o interior, o litoral, a cidade e assim
foi sendo construído o trabalho Tempo de Carne e
Osso (Machado, relato cedido à autora, 2009).

A artista precisava representar o tempo passado, provocar


simbolicamente o deslocamento temporal, ou ainda, fazer ver o passado no
tempo presente. Uma necessidade que gerou uma busca de origem e de um
começo. A escolha foi fazer uma visita ao passado revisitando a região do
Seridó, cuja paisagem da caatinga é integrada por pinturas rupestres.

16 À convite de Plínio Vítor, historiador, a artista inicia viagens com vários artistas
convidados para fazer oficinas de arte, trabalhando a preservação de sítios arqueológicos da
região. O projeto se chamou 10.000 Anos de Arte no Brasil.
Lá revisitou o passado. Despiu-se de suas vestes e integrou de
maneira simbólica e experimental a paisagem e seus signos, adensando
218
ao cenário sua presença. Recolheu o barro escuro peculiar a essa região
e a mica. No retorno ao Recife, carregada dessa experiência e de seus
impactos visuais e sensíveis no seu corpo e em sua memória construiu
uma urna funerária com a matéria dessa região – objeto presente nos
rituais de morte na história da humanidade dos povos ancestrais.
Dentro e no interior da urna, feita na medida de seu corpo, a artista
insere a mica da mesma região.
Para dar conta do presente transfere-se para o litoral da Paraíba,
praia de Tambaba, também no nordeste brasileiro, onde há uma argila 219
branca e suave, diferentemente da matéria localizada no Serido/RN. Nessa
praia constrói o molde de seu corpo inteiro com o barro branco e o coloca
em uma cuba. Ao ver sua própria imagem construída em argila, seu duplo, a
artista se assusta com a imagem que condensa as marcas do tempo passado,
além dos registros visuais causados pelas tensões, oriundos do processo de
feitura da réplica em argila. Uma sensação de estranhamento a invade ao
estar diante de da imagem de seu corpo.
Diante da imagem e, certamente diante do tempo e de suas
220 múltiplas temporalidades gravados na representação do seu próprio corpo
feito no barro, a artista tentará amenizar as marcas presentes na imagem
estática e banha-se e a seu duplo de barro com as águas do mar. Ao mesmo
tempo, desfaz em parte sua própria imagem. Resta dessa ação o objeto
destruído, fragmentos que se soltam do todo. Novamente ao retornar para
o Recife a artista refaz/reconstrói o molde com o barro branco e queima
transformando-o, simbolicamente, o corpo pele em corpo cerâmico. Essa
ação, por meio da queima em forno, do objeto em alta temperatura garante
a permanência da escultura que ocupará uma sala expositiva na Torre
Malakoff.
221
222
223
224
Christina Machado aprofunda as questões existenciais, tenciona os
tempos e sua simultaneidade, e por fim, ao projetar-se no espaço expositivo,
por excelência, território de ocupação do artista, lança-se numa viagem
catártica, onde passado e futuro estão juntos, onde o espaço de sacralidade
da arte é invadido pela vida e por intensidades expressivas.

225

Na ação performática17, despe-se, raspa os cabelos, lança-se sobre


as paredes brancas e deixa os gestos, suas marcas feitas com as argilas
trazidas desses dois sítios visitados, como registro de uma existência, ao
exemplo das marcas e desenhos deixados pelos homens em pedras e rochas

17Realizada na véspera da abertura da exposição no espaço cultural Torre Malakoff. Em


relato cedido a mim a artista conta que não havia intenção prévia de realizar performance,
apenas havia agendado com a artista e também fotógrafa Dominique Bèrth de registrarem
a exposição montada antes de sua abertura pública para convidados que se daria no dia
seguinte. Christina Machado comenta que estando naquele espaço construído por suas
narrativas simbólicas que, em certa medida, suportavam as metáforas das temporalidades,
das passagens do tempo, da sua existência e do que naquele momento a artista gostaria de
deixar para trás objetivando continuar.
nos mais remotos tempos que continuam atuais, nos lembrando do que
somos.

226

Tempo de Carne e Osso foi uma experiência que levou a artista a


uma superação, criando espaço para desenvolver com o público uma nova
relação com o desejo. Em seu relato a artista comenta sobre os sentidos que
adquiriu sua ação performática,

A performance realizada nos bastidores da Torre


Malakoff, finalizando o trabalho Tempo de Carne e
Osso, é um exemplo disso: precisava representar o
passado de uma forma verdadeira na elaboração da
instalação, já que - no vídeo construído no interior de
Carnaúba e a própria urna em que fico dentro dela - foi
uma representação por não poder viver o passado. Surge,
então, a ideia de deixar meus cabelos ali, no passado,
criando assim uma ação performática de sentimentos
verdadeiros (Machado, relato cedido à autora, 2009).

Nesse fragmento de memória é possível perceber que a artista


difere o ato da representação de se inserir no interior de uma urna funerária
para metaforicamente viver o passado, já que há uma impossibilidade
desse “viver” na sua inteireza, assim como há uma impossibilidade nossa,
historiadores, de trazer o passado por inteiro, senão, aos pedaços, em
fragmentos. A artista projeta-se no amanhã e entrega-se numa espécie
de vertigem, de transe, lança-se numa ação performática que revela seus
instintos e sua racionalidade diante do tempo. O desejo de deixar no
espaço expositivo o passado, que naquele momento era o presente/agora –
o instante da ação – e corta seus cabelos na raiz, simbolicamente, despe-se
de sua imagem, retira o peso dos dias que se foram para poder atravessar a
noite e a noite de abertura pública da mostra.

227
Nas salas expositivas da Torre Malakoff restam os vestígios da
passagem da noite, as paredes guardam a gestualidade da ação – como as
pinturas rupestres guardam o gesto da ação e da narrativa daquele tempo
que sobrevive aos nossos – os cabelos permaneceram no piso das salas, aos
poucos, foram carregados pela passagem dos visitantes. Sua imagem foi
capturada pelo clic da câmera fotográfica de Dominique Bèrth – única
testemunha do fato ocorrido. Restaram as imagens físicas e os relatos orais
de memória para compor de maneira fragmentária essa história.
Estamos diante, então, dos tempos que essas imagens conjugam e
condensam. Estamos diante dos tempos.

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230
As curvas e retas da História: leituras do tempo nas
crônicas sobre o espaço – rio São Francisco, anos 1970
Elson de Assis Rabelo1*
Email: elson_rabelo@hotmail.com

“A curva da História obedece a uma variação incontrolável”


(DOURADO: 1973a, 38). A frase é de Walter Dourado, comerciante,
cronista da imprensa e nome importante do meio intelectual de Juazeiro,
na Bahia, nos anos 1970. O enunciado fazia parte das reflexões sobre a
História deste que foi proclamado, por si mesmo e por outros integrantes
de seu grupo social, como “historiador”. As transformações sofridas em
particular pelo rio São Francisco e pelos espaços de suas margens, desde
o período colonial até aquele momento presente, e que eram objeto de
preocupação do escritor, permitem-nos dizer que a palavra “rio” poderia
metaforicamente substituir a palavra “História”, sobretudo quando
observamos que as práticas sociais de então vinham se detendo justamente
sobre o controle das variações e curvas fluviais.
Neste texto, trataremos de outra tentativa de apreensão – a do tempo 231
–, através de uma escrita que, se não conseguia deter as variações e passagens
temporais, procurava acompanhá-las e interpretá-las seletivamente, a partir
de seu lugar social e do posicionamento tomado a respeito das intervenções
do Estado autoritário, de suas instituições e da iniciativa privada sobre o
São Francisco. Em particular, através de suas colunas regulares no jornal
Renovação e Integração do Vale (RIVALE), cronistas como o citado Walter
Dourado e o barqueiro e ex-militar Ermi Ferrari Magalhães se valiam de sua
escrita para dar sentido à memória dos espaços ribeirinhos e à decadência
econômica e cultural de determinadas práticas, em plena retomada do
desenvolvimentismo nacional pelo regime civil-militar.

1* Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade


Federal de Pernambuco. Professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco.
O que nomeamos metodologicamente aqui, de crônicas, são textos
que apresentam certa flexibilidade quanto ao seu gênero: temos narrativas
factuais, relatos de memória, opiniões críticas sobre os problemas
urbanos ou sobre o andamento de obras de construção civil, conforme
os interesses e posicionamentos dos autores. São textos incisivos, diretos,
publicados com certa regularidade na imprensa, e apesar de ser difícil
defini-los apenas dentro do gênero da crônica, optamos por seguir a
trilha de uma historiografia que tem recuperado tal modalidade textual
para além de sua localização, geralmente pejorativa, entre o jornalismo
e a literatura (CHALHOUB; NEVES; PEREIRA: 2005; NASCIMENTO:
2007). Ao tomarmos essas crônicas como vestígios que trazem a marca
de certa atenção ao cotidiano da sociedade que os produz, remetemos
a sua própria etimologia: as crônicas são, por assim dizer, leituras do
tempo; são formas de representá-lo, pensando seja a duração dos eventos
efêmeras, sejam as configurações sociais de escala temporal mais larga
(CHARTIER: 2010, 65-68).
A escrita das crônicas, por assim dizer, se constituía como
fronteira escolhida por esses intelectuais na luta pelos espaços e pelos
destinos de sua reconfiguração, em meio a atores, práticas e interesses
232 diversos. Por sua formação e atuação naquela sociedade, no meio
comercial e na liderança da navegação, esses intelectuais, que podemos
chamar de tradicionais, elaboravam uma memória da ferrovia, do
transporte fluvial e da urbanização de Juazeiro como estratégia de
localização, especialmente diante do crescimento iminente de Petrolina,
sob o domínio da família Coelho. Ao passo em que tentavam cicatrizar
as feridas provocadas pela da crise da navegação, as crônicas também
serviam para dar um adeus nostálgico às cidades que iam desaparecer
sob o Lago de Sobradinho, mas afirmando um delicado posicionamento
que não poderia contrariar a legitimidade social construída pelo regime
político para as inundações e os deslocamentos dos habitantes, cujo
clamor tendia a crescer.
1. A escrita das crônicas: espaço de memória e de batalhas

Desde que trouxe à luz, em 1973, sua Pequena história da navegação


do São Francisco, ilustrada com desenhos dos artistas locais Antônio Carlos
Coelho de Assis e Sanduarte (Sandoval Duarte Filho), e com fotografias
do estúdio ArtFoto Santo Antônio, Walter Dourado foi autoproclamado e
reconhecido por seu grupo social como “historiador”, conforme aludimos
(DOURADO: 1998, 5-8). Sua leitura de documentos e autores do passado se
direcionava para afirmar a importância histórica da navegação fluvial, mas
os textos fazem referência, também, ao leque de propostas de intervenção
espacial que estava no nascedouro das instituições desenvolvimentistas
estatais, criadas ainda nos anos 1940, e que, apesar de incluir outras práticas,
davam destaque à irrigação e à eletrificação. Desse modo, na história recente
que era narrada, a navegação era tida como vítima da falta de planejamento,
e, portanto, das consequências que as intervenções no rio poderiam trazer.
Por outro lado, quando de sua criação em 1972, por um grupo de
jovens intelectuais e profissionais liberais, o jornal RIVALE se inseria no
debate sobre o desenvolvimento local e regional assumido pelos governos
militares, elaborando as notícias sobre o que se entendia como práticas que
iriam renovar o Vale. Além de escrever para outros jornais, Ermi Ferrari 233
chegou a ser um dos diretores de RIVALE, e, ao chamar também Walter
Dourado, para contribuir com seu projeto editorial, o periódico se coloca
como testemunha e porta-voz dessa preocupação com a continuidade
da navegação em meio à grande mudança que se efetuava na paisagem
do rio e em sua dinâmica econômico-social. É por isso que os cronistas
falam em nome de um lugar muito particular, buscando interlocução com
as instituições do Estado através da imprensa escrita e tentando conciliar
o apego ao passado de uma atividade que, segundo eles, precisava ser
restaurada, com seu apoio explícito às novas práticas de desenvolvimento,
como a construção de barragens.
Por sua vez, desde que RIVALE fora criado, Walter Dourado estreara
sua coluna que reunia conceitos tão amplos no título (“História, tradições,
comentários, sugestões”), e na qual passou a publicar narrativas sobre os
carnavais, as manifestações populares e suas origens, sobre a colonização, o
surgimento, a emancipação e o crescimento de Juazeiro. Esse olhar sobre o
passado se desdobrou, inclusive, na participação de Dourado na elaboração
de um Plano Diretor, que, às vésperas do centenário da cidade, em 1978, a
renovasse e a adaptasse ao tráfego de novos veículos, mas que respeitasse sua
arquitetura de finais do século XIX. O cronista contribuiu na explicitação
dos aspectos históricos da problemática organização do espaço urbano. No
jornal, ele constatava, em 1978, o crescimento populacional ocasionado
com a construção da Barragem de Sobradinho, que vinha reconfigurando
não apenas o rio e sua dinâmica hidrológica, mas também cidades, como a
pernambucana Petrolina, no lado oposto do rio São Francisco:

Não há necessidade de realizar-se estudos profundos


sobre a matéria, desde que a disparidade está a olhos
vistos. Basta citar o aumento da população decorrente
da implantação das obras de Sobradinho, quando
se deslocaram para Juazeiro mais de 25 mil pessoas,
uma parte delas somente tendo se fixado lá; a outra
234 ficou em Juazeiro, agravando a crise habitacional. E
o problema não se agravou mais porque Petrolina
absorveu grande parte desta população, que lá se
instalou por ter estrutura habitacional favorável
(DOURADO: 2005, 7)2.

Embora sem formação acadêmica de historiador, e escrevendo a


partir do lugar de cronista e articulador político, Dourado gostava de
assumir o personagem do historiador que dizia recorrer a documentos para
se arrogar conhecedor dos procedimentos do ofício:

2 No livro publicado em 2005, a data para a publicação original da crônica citada aparece
como sendo 11 de março de 1978.
Cumpre-nos declarar que não é nosso desejo avocar
a nós próprios a primazia de situar nos devidos
termos a História da navegação fluvial do médio
São Francisco; nosso intuito é contribuir com uma
parcela de conhecimentos em torno do assunto,
graças às pesquisas que fizemos e continuamos a
realizar, baseada sempre em documentação autêntica.
Porém, a fim de esclarecer alguns pontos básicos da
evolução histórica, não é possível prescindir-se da
tradição oral, grande auxiliar de reconstituições,
apesar de reconhecermos a precariedade e falibilidade
de recursos desta ordem, sempre sujeito a revisões
(DOURADO: 1973a, 38).

Conforme a argumentação acima, sobre a autenticidade da


documentação compulsada, as narrativas de Dourado são baseadas na
pretensão de cuidados metodológicos que pretendiam legitimar seu
discurso de “historiador”. As crônicas, inclusive, traziam conceitos e imagens
utilizados na época para falar de outras práticas sociais para definir a escrita
da História: esta seria “Monumento arquitetônico do Saber”, “patrimônio 235
da Humanidade Culta”, “feita através de múltiplas manifestações de forças
construtivas em progressão constante” (DOURADO: 1973c, 4).
Nos diversos estratos temporais narrados pelas crônicas, lançava-
se mão de temas como o dos transportes, a fim de elaborar a memória
desses sujeitos e de seu grupo social aristocrático que, paradoxalmente,
apostava nas mudanças encabeçadas pelo Estado autoritário. Para Walter
Dourado, isso significava contar a saga hierárquica dos potentados
locais, dos barranqueiros e dos embarcadiços que escreveram “com o
suor do seu corpo a História do barranco”, e, de forma espacializada, dos
municípios que estavam prestes a se extinguir, inundados pela Barragem,
mas especialmente de outro município, Juazeiro, que, por sua reputada
centralidade no Vale e pela aproximação de seu centenário, careceria de
relatos que o engrandecessem:

No intuito de comprovar a existência de estrutura


sólida no sentido socioeconômico em Juazeiro, o que
possibilita colocar-se em posição privilegiada perante
suas coirmãs, faremos um retrospecto histórico das
atividades vitais da Comuna, destacando prioridades
incontestáveis.
[...].
Em primeiro lugar, sobressaem-se os transportes,
limitados no passado a caminhos palmilhados por
tropas de muares. O tráfego de vapores veio trazer
melhores condições de atendimento às necessidades
dos ribeirinhos. Incontestavelmente, o ponto de
convergência desta atividade – navegação fluvial,
quer seja por barcas ou por navios a vapor, foi a cidade
de Juazeiro. Aqui se formou o primeiro núcleo de
exploração dos transportes, em atividades particulares
ou em empreendimentos governamentais.
236 A chegada dos trilhos do caminho de ferro a Juazeiro
(1896) representou o passo mais importante para o
desenvolvimento da região (DOURADO: 1975a, 3).

As crônicas seriam uma forma de reler o passado e conscientizar


ou lembrar o presente sobre a importância, por exemplo, dos transportes
na consolidação do espaço urbano. Em espaços como Juazeiro e Petrolina,
por exemplo, a construção da Ponte Presidente Dutra, concluída em
1954, comprometera seriamente o transporte ferroviário, que teve sua
extensão e importância reduzidas com a demolição da Estação da Viação
Férrea Federal Leste Brasileiro, no lado baiano, e o uso cada vez menor
da estrada de ferro. O incremento no transporte rodoviário promovera
uma considerável mutação na vida social de uma cidade como Juazeiro,
estabelecida ainda no final do século XIX como entreposto comercial da
navegação (DOURADO: 1973b, 4). A celebrada “lordeza” dessa cidade,
sinalizada no luxo algo aristocrático de suas elites, no refinamento de sua
arquitetura, na opulência de seus carnavais e orquestras, tinha relação
com esse fecundo comércio, agora irremediavelmente comprometido,
na segunda metade do século XX. Não à toa, o tema da navegação quase
sempre passou a vir acompanhado de conceitos como “recuperação”, nas
crônicas e demais enunciados da imprensa.
Assim como Walter Dourado, Ermi Ferrari se constituía como
homem público pelo engajamento tanto nas instâncias políticas e comerciais
quanto através de discursos, como se percebe na sequência de crônicas sobre
os tipos sociais e as atividades econômicas, veiculadas no jornal RIVALE
sob títulos como: “Vapores e vapozeiros”, “Barcas, barqueiros e remeiros”,
“Coronéis barranqueiros”, “Barranqueiros e beradeiros”. Sua escrita se situa
entre o relato, com traços de memória do autor, e a descrição tipificadora
dos habitantes dos espaços, sobretudo das classes subalternas, com vagos
elementos de denúncia social. Como seu colega de geração, o ex-barqueiro
também faz um uso político e narrativo conservador do “material histórico”,
aproximando-se daquilo que, em relação a outro momento histórico de
ditadura – a do Estado Novo – foi chamado de “cultura histórica”, e que é 237
uma forma de se situar ante as práticas do presente, relendo e ritualizando
o tempo através de determinadas práticas sociais e, particularmente, de
uma escrita socialmente implicada, ao privilegiar personagens, práticas e
eventos considerados históricos e lhes dar destaque (GOMES: 1998).
Tomemos uma das crônicas sobre barcas e barqueiros:

Essas barcas de velas latinas por longo tempo foram o


suporte do desenvolvimento do barranco. Na minha
juventude, vezes sem conta as contemplei e vi chegando
e saindo do nosso porto, coxias levando carregadas no
máximo, quando subindo, com sal, querosene, açúcar
etc. e quando descendo com rapaduras, peixe seco –
as tradicionais olaias – a carne cheirosa [da cidade] de
Remanso e produtos do rio de cima. [...] Velhas barcas
de outrora que hoje já não existem [...] que o progresso
extinguiu; não voltarão jamais, porém viverão sempre
na lembrança de todos quantos na região têm ligação
com o rio (MAGALHÃES: 1973f, p. 7).

É importante atentar que tal elaboração da memória da navegação era


construída do ponto de vista de quem administrava o negócio das barcas,
chegando, por isso, a engrandecer o heroísmo dos remeiros e naturalizar
suas difíceis condições de trabalho, como as feridas provocadas pelo esforço
físico. Embora Ermi, quando patrão, já tivesse atuado com o uso das barcas
a vapor, ele mobiliza suas lembranças sobre os barcos a remo para trazer
esses personagens à narrativa do recorte regional e de seu desenvolvimento.
Paradoxalmente, o mesmo desenvolvimento, materializado na execução
dos projetos para o rio São Francisco, como a construção da Barragem de
Sobradinho, estava prestes a prescindir da navegação:

Já não existem mais remeiros. No beradão, já não se


238 ouve loas nem o linguajar estranho. Já não se ouve
mais cantigas dolentes animando o tapa de gato na
descida das barcas.
A época pioneira e heróica das barcas a vara e pano
desapareceu – o progresso da região assim o exigiu –
às Barcas, barqueiros e remeiros, a nossa homenagem
pelo muito que deram de cooperação pelo
desenvolvimento da região, pois foram os precursores
da navegação e do aproveitamento do rio como meio
de transporte (DOURADO: 1973e, 5).

Ironia da história, em breve, chegaria o momento de se dizer que


também já não haveria mais barqueiros, como mais uma imposição do
progresso exigente. E a sucessão de desaparição de personagens fazia parte
da retórica do jornal RIVALE, que buscava tomar posicionamentos sobre as
intervenções do Estado na sociedade e construir narrativas lineares a favor
do desenvolvimentismo. Para isso, as figuras populares, como os remeiros,
são lembradas, e frequentemente idealizadas, por sua capacidade poética,
pelos versos que eram capazes de compor para cantar durante o trabalho.
Segundo o autor, eram esses versos que deveriam permanecer para os
jovens de então, embora eles desconhecessem as práticas econômicas do
passado.
Em outra série de crônicas intituladas “Barranqueiros e beradeiros”,
Ermi Ferrari faz uma distinção: a partir de categorias espaciais localizadoras
como “margem” ou da ideia recorrente do rio como recurso disponível,
o beradeiro seria o pequeno agricultor das vazantes, “à margem da vida,
na margem do grande rio de riquezas imensas e totalmente inexploradas”,
“triste e desanimado, vendo a família crescer, sem uma escola para os
seus filhos frequentar, sem um médico e um dentista para dar assistência
e sem nenhuma presença governamental”; enquanto barranqueiro – por
uma suposta supressão das diferenças políticas e econômicas –, seríamos
“somos todos nós que vivemos, nos povoados, vilas e cidades ribeirinhas”
(MAGALHÃES: 1973d, 8; 1973c, 8; 1973b, 8). A série se encerra com a 239
profissão de fé no trabalho das instituições desenvolvimentistas:

A antiga Comissão do Vale e atualmente a SUVALE


[Superintendência do Vale do São Francisco] têm
realmente trabalhado pelo desenvolvimento do
Vale, porém esse desenvolvimento, por razões
difíceis de explicar, ainda não teve a sua engrenagem
em funcionamento, de modo que o progresso e o
desenvolvimento que se verifica em outros Vales e
outras regiões do País seja visível [sic] e apresente os
frutos do benefício geral para as populações.
Podem até dizer que isto não acontece, em decorrência
do espírito acomodatício do barranqueiro, e, em
princípio, até concordo, porém causas outras devem
existir e precisam ser estudadas e localizadas, para
seu alijamento do esquema, a fim de que o Vale,
principalmente o Médio São Francisco e seus
afluentes, entre de fato no bojo do desenvolvimento
que está transformando o nosso País em verdadeira
potência (DOURADO: 1973a, 8).

A espera pela atuação das instituições do Estado, a expectativa


pelo crescimento do “Brasil potência”, construída pela propaganda do
regime militar e comungada pelas elites da época, são reiteradas nessas
crônicas do ex-militar e do periódico que veicula seu discurso (FICO:
1997, 49. 84. 86). O desenvolvimento, para ser pleno, deveria retirar seus
obscuros impedimentos, entre os quais, o referido espírito acomodatício
do barranqueiro. Considerando a generalização dessa categoria pelo
cronista, estariam as elites, a que pertencia Ferrari, incluídas nesse uso
pejorativo? A caracterização dos tipos sociais pelo cronista serve ao seu
uso anedótico e passadista, quando, por outro lado, a política deveria
240 promover o progresso acima de todos os interesses e conflitos, à custa da
desaparição de determinados segmentos socioprofissionais. Foi com esse
propósito, aliás, que o cronista decidiu ser um dos representantes de seu
decadente grupo social, o dos barqueiros, junto à Companhia Energética
do São Francisco (CHESF), no pedido vitorioso de indenizações pela
falência de sua atividade econômica, quando da conclusão da Barragem de
Sobradinho (RIVALE: 1977a, 1).
Com tom épico semelhante, no ano de 1974, Ermi Ferrari
escreve outra pequena série de crônicas intitulada “Saga sentimental
da navegação”, na qual conta a história desde as primeiras embarcações,
até a consolidação dessa atividade como prática econômica central para
o transporte de pessoas e víveres no rio, no período de predomínio dos
vapores (MAGALHÃES: 1974, 6). Sua opção pelo “sentimental” passava
pelo relato de uma substituição sem conflitos das experiências de navegação
dos povos indígenas pelas embarcações dos colonizadores, e em seguida
pelo surgimento dos navios modernos, sem destacar as lutas políticas e
econômicas que aí se travaram, desde o século XIX.
Em outro texto, Ermi Ferrari celebra as figuras dos antigos coronéis
e a substituição temporal e espacial de seu universo com a chegada de
“progresso e desenvolvimento”, como no trecho a seguir, em que se dava
“adeus à velha [cidade de] Sento Sé”, que, junto às outras cidades baianas
de Remanso, Casa Nova e Pilão Arcado, seria inundada pelo Lago artificial
criado com a construção da Barragem de Sobradinho, iniciada em 1972:
[...].
O Velho Chefe da Família [Sento-Sé, que chegara
junto com a “gente de Garcia Dávila”], ao instalar-se,
jamais pensou que todo o seu esforço para desbravar
a terra; todo o seu esforço para instalar currais, roças
e a Casa Grande, anos depois seria inútil, pois tudo
desapareceria inundando pelas águas do Grande
Lago formado pela Barragem de Sobradinho, pelas
exigências do progresso e desenvolvimento do Brasil.
A Casa Grande, os currais, as roças e a própria 241
cidade estão com seus dias contados, tudo isto que
de modo muito especial deve falar ao coração dos
remanescentes do Clã e também dos que sem a ela
pertencer, ali se instalaram.
[...] (MAGALHÃES: 1976, 2).

Desde os protagonistas elencados de forma heroica como


desbravadores e fundadores da cidade à opção pela caracterização dos
espaços de seu domínio, a narrativa estava atualizada com o pensamento
conservador do período, que privilegiava as memórias e os sentimentos
nostálgicos daquelas elites familiares. Na mesma tônica de despedida,
o jornal RIVALE publicou, em 1976, um caderno especial intitulado
“Homenagem à Festa de Despedida de Santana do Sobrado”, antigo
porto fluvial pertencente ao município de Casa Nova e que também
seria brevemente tragado pelas águas da Barragem. Ermi Ferrari escreve
outra crônica de “adeus”, celebrando a casa-grande da elite dos Araújos,
e legitimando a ideia de que, não apenas tal elite, mas toda a “população
[...] vai sofrer, vai sentir o sacrifício do deslocamento; o sacrifício difícil de
suportar, ver desaparecer todo um vasto cabedal de memórias que o tempo
não conseguiu fazer desaparecer” (RIVALE: 1976, 2). Mas Ermi Ferrari
não era considerado historiador, e talvez por isso se servisse mais de suas
próprias memórias para ler o tempo e não se preocupasse em demonstrar
apego empírico a documentos para suas narrativas3.
Como temos pontuado, a busca pela definição de posicionamentos,
na dimensão geopolítica, era importante não apenas para essas crônicas,
mas para toda a organização e edição do jornal, e isso era recorrente,
por exemplo, na coluna “Sobradinho é notícia”, publicada sem autoria,
e que se propunha a apresentar relatórios constantes sobre a construção
da Barragem. Nela, ficava ainda mais explícita a dimensão geopolítica
dos enunciados de RIVALE, e com cujos temas conflitantes os cronistas
dialogavam.
242
2. A geopolítica dos relatos: do espaço das práticas ao espaço do Museu

Um dos propósitos da coluna “Sobradinho é Notícia”, parece-nos,


era incluir em suas discussões a navegação, de modo a contribuir para
que, fatalmente, as queixas pela recuperação daquela atividade econômica
chegassem até a CHESF. Ao se situar entre os barqueiros e a instituição
desenvolvimentista, o periódico elaborava os fatos, selecionava os
eventos e práticas que considerava dignas de publicação ou de debate, o
que não pode ser visto apenas como o cuidado para com a recuperação

3 Vários desses textos estão presentes na obra que citamos (MAGALHÃES, 2009), cuja
primeira edição é de 1991. Ressalte-se que, para Ermi Ferrai, até o momento de sua escrita
mais recente, ainda era possível recuperar a navegação.
das experiências espaciais desvalorizadas pelo planejamento oficial, mas
também preocupação com as perdas que poderiam sofrer determinados
grupos sociais. Na coluna “Sobradinho é Notícia” ou nas colunas dos autores
indicados, toda a nostalgia produzida pelos textos em relação à navegação,
às chagas nos peitos dos remeiros e aos ruídos românticos dos vapores que
aportavam em Juazeiro trazendo pessoas, mercadorias e histórias, estava
relacionada às expectativas sobre o que poderia acarretar a transformação
nos espaços.
Em 1975, usando sua coluna regular, Walter Dourado afirmará algo
nessa mesma direção, indicando os agentes sociais e instituições envolvidos:

Surgiu a Cia. Hidrelétrica do São Francisco com o seu


gigantesco projeto de construção de um lago artificial
dentro do leito do rio São Francisco, mediante a
construção de uma Barragem no Sobradinho, ou seja,
às proximidades da Cachoeira deste nome. [...].
Com uma reunião promovida pela União dos
Estudantes Juazeirenses, estabeleceu-se um diálogo
entre os interessados e o Superintendente da CHESF
para as obras da Barragem, o Sr. Eunápio Peltier de 243
Queiroz, o qual pronunciou-se contra qualquer
projeto envolvendo o tríplice aspecto – navegação –
energia – irrigação. Fui um dos que se pronunciaram
e o único a abordar a questão dentro daquele tríplice
aspecto. A CHESF era taxativa: somente a energia lhe
interessava. Mas as coisas foram se encaminhando
de forma que tudo mudou de rumo e agora, depois
de debates, inclusive em reuniões da Assembleia
Legislativa do Estado da Bahia, logramos ver vitoriosa
a ideia do tríplice aproveitamento da Barragem,
por meio de convênio firmado entre a CHESF e o
Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis
para a construção de um sistema de eclusas, com
aprovação da Superintendência Nacional da Marinha
Mercante. [...] (DOURADO: 1975c, 4).

A narrativa da crônica retoma os acontecimentos deixando


a entender os motivos pelo engajamento do autor, considerando-
se que o “tríplice aspecto” referido estava na agenda das instituições
desenvolvimentistas, ainda quando de sua criação, na transição do Estado
Novo à redemocratização, nos anos 1940, mas que a própria história das
mesmas instituições apontaram na eleição de outras prioridades e opções
de desenvolvimento. Mas teriam os barqueiros vencido a luta junto à
CHESF? Posteriormente, o engenheiro Eunápio Peltier ainda relutou sobre
a questão, mencionando que a navegação se daria no lago artificial e não
por meio de eclusagens que dessem acesso a Juazeiro. O problema parecia
ainda estar longe de encontrar uma solução, apesar de, como Dourado
procura demonstrar, seu grupo social buscar estender seus tentáculos
para outras esferas do Estado e as crônicas servirem de veículo para dar
visibilidade à questão e construir sua legitimidade.
A preocupação geopolítica desses autores baianos se desdobrava,
244 ainda, na latente rivalidade entre as cidades de Juazeiro e Petrolina. Esta
última estava se destacando pelos investimentos que sua elite local, com
grande articulação na política pernambucana, vinha fazendo em indústria,
comércio, infraestrutura urbana e no projeto Bebedouro, um dos pioneiros
na agricultura irrigada nessa área, especialmente à época em que o
petrolinense Nilo Coelho ascendeu ao governo estadual, sediado em Recife,
nomeado pelo presidente Castelo Branco, em 1967.
Assim, quando se decidia sobre a construção de um porto provisório
para as embarcações, acima da Barragem, uma questão se impunha: este
porto corria o risco de ficar na margem esquerda do rio, próximo ao
povoado baiano de Santana do Sobrado, o que, de certa forma, favoreceria
a economia pernambucana, situada do mesmo lado esquerdo e melhor
servida de transporte rodoviário para escoar as cargas. Por dias seguidos,
a discussão agitou a imprensa e o meio político, inclusive em jornais de
Salvador, como a Tribuna da Bahia, de cuja edição do dia 27 de junho de
1973, RIVALE reproduz um texto:

Em síntese: a construção da barragem vai forçar o


deslocamento provisório do porto de Juazeiro para
local acima da barragem. [...], criada a alternativa,
com a insinuação do porto provisório na margem
esquerda, os pernambucanos passaram imediatamente
a uma ofensiva. [...], o porto terminal, que hoje é em
Juazeiro, poderá ficar fixado em Petrolina. [...].
E a intenção não parece ser outra. Em primeiro lugar,
há a família Coelho, cuja base política e econômica
está em Petrolina. Quando o Sr. Nilo Coelho era
governador de Pernambuco, tudo fez para desviar
o movimento de navios de Juazeiro para Petrolina.
Não conseguiu porque o governo baiano tocou para
a frente a construção do porto de Juazeiro e porque o
Sr. Nilo Coelho não teve tempo de, no governo, cavar
o leito do rio no lado de lá, onde pretendia abrir o 245
principal canal. Mas bastou surgir essa questão do
porto provisório, para desencadear nova investida
(RIVALE: 1973, 2) [negritos no original].

O editorial acima permite questionar a reverberada unidade regional


de que o jornal RIVALE se dizia representante, pois os editores também
situavam claramente seu lugar na disputa pelo porto, que se acirrava com
contornos de um conflito estadual. Apesar disso, decidiu-se pela criação do
porto provisório de Juacema, no povoado homônimo, acima da Barragem, na
margem direita, como vinham pleiteando os juazeirenses. Vitória ambígua:
numerosas barcas ficaram estacionadas em Juacema, e outro grupo de
embarcações ficou na mesma situação em Pirapora, Minas Gerais, enquanto
as comportas eram fechadas para que o reservatório fosse preenchido,
criando o Lago artificial de Sobradinho; mas a maioria das barcas não voltou
a funcionar, e as que permaneceram funcionando já não percorreram trechos
tão longos, como no passado (MAGALHÃES: 2009, 79).
Diante da decadência da navegação, e considerando sua articulação
política e seu lugar pretendido de “historiador”, Walter Dourado passou a
militar, no final dos anos 1970, pela criação de um Museu Regional, o qual,
assim como o jornal RIVALE, assumiria e cristalizaria o recorte do Vale
do São Francisco para pensar uma instituição que guardasse os artefatos
referentes a amplos espaços, e não apenas a Juazeiro. Eis como argumentava
Dourado:

As circunstâncias do momento, com o desaparecimento


de quatro cidades e seus respectivos distritos, impõem
uma medida urgente que assegure a preservação das
coisas tradicionais, tão caras aos habitantes da gleba.
Mais ainda: alvitramos a conjugação de esforços das
quatro comunidades a sofrerem a inundação – Casa
Nova, Sento Sé, Remanso e Pilão Arcado –, no sentido
246 de realizarem um trabalho a fim de que possam reunir
acervo documental de âmbito regional, abrangendo os
setores da cultura, da arte, do folclore e de atividades
humanas – usos e costumes de um povo, o que
valeria pela representação objetiva do passado vivido
pelos eméritos sertanejos. Assim, é preciso angariar
recursos de ordem sociológica e econômico-social a
fim de fazer face a trabalho de tamanha envergadura,
para que se reproduzam os aspectos antigos das glebas
nas faixas urbana, suburbana e rurais, com todos os
aspectos das suas casas-grandes, fazendas, sítios e
currais de gado, plantações, pastagens etc. O carro
de bois, as casas de farinha, os apetrechos utilizados
nas roças, a indumentária dos vaqueiros com o ferrão
e os ferros de marcar gado e tudo o que lembra a
vida sertaneja, deverá ser exibido, lembrando o
seu primitivismo e assinalando a civilização que se
extingue.
[...].
Devemos acrescentar que, na concepção moderna,
Museu não é um acervo de velharias. É a
representação de um passado, a reconstituição de
fatos, acontecimentos e episódios vividos por um
povo, por uma civilização! (DOURADO: 1975b, 4).

Em boa medida, assim como as crônicas eram uma leitura do tempo,


em suas diferentes camadas de duração, também o Museu seria constituído
como mais uma forma de contar o tempo a partir de seus fragmentos,
retirados dos espaços da vida social e trazidos aos espaços expositivos,
conforme o recorte temporal proposto por Dourado e por sua concepção
de sociedade, de história, de “civilização”. O Museu teria a tarefa de
produzir uma memória oficial, dando a ver o passado na materialidade dos
objetos transmutados em documentos, representação, reconstituição de 247
tempos e espaços cuja desaparição, sob as águas do São Francisco, parecia
iminente (GUIMARÃES: 2007, 25; LE GOFF: 1990). O espaço do Museu
tocaria na imaginação e na memória de grupos sociais como as elites locais,
dando espessura àquela temporalidade vivida por uma sociedade que
ainda cria ter primitivismos, mas que se via diante de conflitivas opções
de desenvolvimento, desencontradas das muitas propostas do passado –
curiosamente, na mesma época, Dourado lutava pela chegada de um sinal
de televisão próprio a Juazeiro.
O Museu era também indicativo do entrecruzamento entre regimes
de historicidade distintos que concorriam para aquela reconfiguração dos
espaços conhecidos como Vale do São Francisco: foram as instituições
desenvolvimentistas que colaboraram na sua criação, no final de 1976,
tendo sido doado, pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São
Francisco (CODEVASF), um palacete para abrigá-lo. Assim, não apenas
seria reunida uma coleção de objetos dos espaços que desapareceriam, mas
se irmanaria o passado também dessas instituições:

Criado a 1.º de dezembro de 1976, o Museu Regional


do São Francisco, que visa a proteção da história e
cultura regionais, pode ser uma realidade para nossa
terra. Tal iniciativa surgiu da CODEVASF, CODESF–
JU, Prefeitura Municipal, Clubes de Serviço, Diocese,
Associação Comercial e Agrícola, CERIN e DISF que,
irmanados, sentiram a necessidade de preservarem os
acervos históricos e culturais das cidades localizadas
na área da Bacia do São Francisco.
Os acervos históricos e culturais serão constituídos
de: objetos, máquinas, peças, documentos, filmes,
slides, fitas, discos, quadros, livros, fotografias e tudo
que represente valor histórico e cultural relativo à vida
da Antiga Comissão do Vale do São Francisco, da
248 SUVALE, da Antiga Viação Bahiana do São Francisco
e das Prefeituras Municipais das cidades que margeiam
o Grande Rio. Tal acervo pode ser doado, emprestado
ou vendido ao Museu (RIVALE: 1977, 1)4.

Walter Dourado comemorava o evento, no jornal, reiterando o


discurso da centralidade espacial de Juazeiro:

4 Atualmente, grande parte do acervo do Museu Regional, que é uma instituição


privada, é constituída de artefatos relacionados à navegação (peças de navio, carrancas,
mobiliário, louça). A inserção desses artefatos numa política de memória de museificação,
frequentemente efetuada como apropriação sob o registro do privado, concebida com ares
de colecionismo e com pouco diálogo expográfico com o público, seria indício ainda mais
patente da decadência da navegação e da construção de uma memória elitista sobre tal
prática.
Foi uma grande conquista obtida por Juazeiro a
doação em sistema [de] comodato, por 5 anos, com
renovação automática do antigo Palacete Miguel
Siqueira para nele instalar-se o Museu Regional do
São Francisco. Situado [sic] em ponto convergente
da região, nossa cidade merece a denominação de
Capital Regional do São Francisco. E a localização
de um Museu da região na sede do nosso Município
é medida acertada, deliberação justa das lideranças
locais (DOURADO: 1977, 5).

Um pequeno trecho da longa curva da História era, portanto,


supostamente controlado e materializado nesse espaço de salvaguarda
de uma memória que, sem dúvida, tinha seus critérios sociais, políticos
e culturais. Simultaneamente, o mesmo tempo histórico agitava, turvava
e represava outras águas, criava outras curvas e retas de concreto, na
constelação heterogênea de projetos, discursos, imagens e práticas de
produção de espaços que rearranjavam o rio São Francisco e suas paisagens.
A escrita das crônicas encontrava sua contrapartida, portanto, em várias
práticas sociais que, por sua vez, também reliam o tempo ou interferiam na 249
configuração dos espaços.

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252
FICÇÃO, SONHO E MEMÓRIA: roteiros possíveis para
a transgressão da escrita historiográfica.
Raimundo Inácio Souza Araújo

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este texto emerge do desafio de discorrer sobre a aproximação entre


a História e a Literatura, sobre as temáticas da Revolução e da Transgressão.
De certa forma, ele traz à tona os caminhos diferenciados percorridos por
esses dois motivos: a História pautando-se na Revolução desde o século XIX
e a Literatura abrigando a Transgressão. Recentemente, desde a década de
1960, com o fim da utopia revolucionária, a História vem se aproximando
das características da Literatura, sobretudo no que toca ao reconhecimento
de sua dimensão ficcional, da discussão de sua linguagem, além do abrigo
de objetos e problemas antes considerados inadequados ou indignos.
Desde há alguns anos, tenho estado próximo - não sem dificuldade
e, por vezes, perplexidade - dos escritos de Walter Benjamin, sobretudo
de seu projeto inconcluso, as Passagens. Intriga-me e instiga a biblioteca
fragmentária e multi-direcional pensada por esse filósofo, embasada por 253
uma teoria do conhecimento segundo a qual a exatidão e o racionalismo
extremado não são o ponto de partida necessário para o aprendizado, e
nem mesmo o melhor. Para Benjamin, bem como para Proust, na tradução
que dele faz Gilles Deleuze, o pensamento não é um comportamento
gratuito e natural, mas é movido pela ação diante da incerteza, pela paixão,
pelo ódio. Nesse sentido, o caráter lacunar do saber é um obstáculo, mas
também um impulso por sobre o qual o conhecimento pode se realizar
(DELEUZE, 2003, p. 4).
A temática da transgressão possibilita entrever uma dimensão
importante da produção historiográfica: a lenta adesão do campo a um
modelo analítico menos rígido e aberto ao contato com outras áreas do
conhecimento. A Psicanálise e a Literatura desempenharam um papel
fundamental nesse processo, que Freyre talvez denominaria de africanização
da História1, tirando-lhe a rigidez e a exatidão. Nesse processo, a noção de
transgressão é fundamental.
Em seus escritos, Foucault refere-se à busca por uma alternativa à
dialética. Walter Benjamin pode ser considerado uma possibilidade nesse
sentido, haja vista sua ênfase sobre a linguagem e seu projeto de uma história
que se debruça sobre aquilo que é superficial e passageiro. Talvez ninguém
melhor do que Adorno poderia reforçar com mais clareza a ojeriza que tal
iniciativa causaria às sensibilidades marxistas, para as quais o particular e o
superficial só podem existir se relacionados à totalidade que lhes confere seu
justo significado. “Interpolar sobre o infinitamente pequeno”, como queria
Benjamin, só poderia resultar numa reação como a relatada por Jean-Marie
Gagnebin, acerca da polêmica entre esses dois grandes expoentes da escola
de Frankfurt. Diz Adorno a Benjamin, a respeito da primeira versão do
ensaio sobre Baudelaire:

O sentimento de uma tal artificialidade se me impõe


todas as vezes que o trabalho faz uma afirmação
metafórica em lugar de uma afirmação cogente.
254 A razão (do meu desacordo teórico) está em que
julgo infeliz, do ponto de vista do método, tomar
“materialisticamente” alguns traços singulares
claramente reconhecíveis do âmbito da superestrutura,
pondo-os em relação, sem mediação e até mesmo
de maneira causal, com os traços correspondentes
da infra-estrutura. A determinação materialista das

1Peço licença para um pequeno parêntesis a respeito dessa metáfora. Sobre como a cultura
africana afetou a disposição portuguesa nos trópicos, Freyre diz, por exemplo: “O ar da
África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as
durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando
os ossos ao Cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao
direito visigótico, ao lati, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar;
governando antes a África” (FREYRE, 2001, p. 80).
formações culturais só é possível pela mediação através
do processo global. A “mediação” que faz falta e que
encontro encoberta por uma conjuração materialista
historiográfica nada mais é do que a teoria, que o seu
trabalho se poupa. [...] De um lado, essa renúncia
confere à empiria um traço épico, de outro, tira dos
fenômenos seu verdadeiro peso histórico-filosófico,
transformando-os em fenômenos experienciados
de maneira unicamente subjetiva. Pode-se formulá-
lo também assim: o motivo teológico que consiste
em nomear as coisas pelo seu nome inverte-se
tendencialmente numa exposição deslumbrada da
facticidade. Para falar de uma maneira drástica,poder-
se-ia dizer que o trabalho se alojou no cruzamento da
magia com o positivismo. É um lugar enfeitiçado: só
a teoria conseguiria romper o feitiço... ( ADORNO
APUD GAGNEBIN, 1997, p. 95).

A estranheza com que Adorno trata a abordagem superficial


e metafórica de Walter Benjamin talvez tenha parte importante de sua 255
explicação na apropriação particular que este fez do marxismo. Para Gagnebin,
“poderíamos dizer que a filosofia benjaminiana abre uma possibilidade —
que me parece essencial para a nossa famosa “pós-modernidade” — de um
pensamento que desista da visão da totalidade, mas que, no entanto, continue
critico e perturbador” (GABNEBIN, 1997, p. 97).
Esse interesse pela heterodoxia benjaminiana provavelmente foi o
que me levou a participar da disciplina A palavra da meia-noite: História
– Revolução e/ou Transgressão, ministrada pelo professor Durval Muniz
Albuquerque Júnior com um sentimento constante de Deja vu. Talvez
porque os temas da Revolução, da Morte, da finitude, e as biografias trágicas,
encontradas e reencontradas frequentemente ao longo desse curso, estejam
longe de ser estranhas ao perfil do pensador alemão. De qualquer forma,
o que segue é uma síntese desses meses de aproximação entre a proposta
da disciplina, calcada nos escritos foucaultianos, e alguns elementos que
podem ser percebidos também em Walter Benjamin.

A MORTE DE DEUS, A HISTÓRIA E A LITERATURA

Nietzsche, através de seu Zaratustra, proclama a morte de Deus. Isso


poderia parecer uma falsa constatação, haja vista a pujança do fenômeno
religioso atual. O número de fiéis, dentre várias Igrejas e denominações,
nunca foi tão elevado. Entretanto, o argumento nietzsheano permanece
válido, pois a morte a que ele se referia dizia respeito ao lugar do divino
ou do absoluto na explicação e compreensão da realidade. Os brasileiros,
por exemplo, são reconhecidos mundialmente como um país em que o
fervor religioso é destaque. Mesmo assim, na recente tragédia que levou
ao desabamento de três prédios no centro da cidade do Rio de Janeiro,
nenhum periódico de relevo aventou a possibilidade de um castigo divino
ser a verdadeira razão do ocorrido. Deus pode ser lembrado, mas não é
considerado como efetivamente relevante.
A morte de Deus, coetânea aos avanços científico-tecnológicos
de fins do século XVIII e do século XIX, teve resultados de várias ordens
256 e em várias dimensões. Não apenas o aparato de explicação do mundo é
afetado, mas novas possibilidades de experiência são abertas assim que o
limite absoluto - Deus - se retira do cosmos. Experiências de transgressão
e, curiosamente, tentativas de absolutização: da Revolução, da nação, da
História, por exemplo.
Para Orhan Pamuk, “a morte de cada homem começa com a morte
do pai” (PAMUK, 2010, p. 33). É esse doloroso evento que descortina a
mortalidade daquele que o observa, fragilizado. É ele que acena, ainda em
vida, a vitória final da morte, limite último. A morte do pai potencializa a
sensação de finitude dos que lhe sobrevivem. Da mesma forma, é a morte
de Deus que abre ao humano a clarividência de sua efemeridade.
História e Literatura tomarão caminhos distintos diante dessa
situação. No campo da História, não serão raras as tentativas de apresentar
ao mundo um novo objeto de transcendência. A finitude é negada pela
História, que a ela opõe a divindade da razão, da ciência, e/ou, sobretudo,
da Revolução. A negação se equilibra através de uma afirmação, envolta
novamente na fé, ainda que laica.
A literatura, por sua vez, defronta-se mais diretamente com a
constatação da volatilidade da vida humana, mesmo que também ela
tenha optado, por vezes, pela ambígua posição de destronar antigos e
desarrazoados deuses para substituí-los por outros, mais conformes à
natureza humana, como, por exemplo, o conceito de natureza na obra de
Sade.
Nesse sentido, mesmo considerando particularidades de lado a
lado, História e Literatura trilharam caminhos diferenciados ao longo
dos séculos XIX e XX. Se a História esteve mais ou menos orientada pelo
regime escriturístico da Revolução, que lhe legou padrões, regras, e uma
ligação considerada essencial para com um referencial externo – “aquilo
que efetivamente ocorreu” – as experiências abertas pela Literatura diante
do vazio deixado pela morte de Deus tornaram-na pioneira no voltar-se
para si mesma, para o ser de sua própria linguagem.
Esse desdobrar-se da linguagem, que é para Foucault o próprio
nascimento da Literatura, vemo-lo aproximar-se da História a partir das 257
turbulências da década de 60. O declínio e ulterior esfacelamento das
possibilidades de alternativa ao capitalismo selaram o destino do paradigma
da Revolução sobre a historiografia. O livro 1930 - O silêncio dos vencidos,
de Edgar de Decca é uma narrativa lúcida que brota após esse cenário de
desilusão: destituídos os constantes universais, depostas as divindades,
resta ao homem o voltar-se para si mesmo e, no caso da História, para as
próprias ficções que ela até então mantivera intocadas em muitos altares
acadêmicos.
Entretanto, nesse momento de crua reflexividade, estarão o homem
e a História preparados para se defrontar com as duras verdades que por
tanto tempo a figura divina manteve afastadas? Para Irving Yalom, mais
do que o tratamento de problemas-padrão como o complexo edipiano
ou as exigências impossíveis do id freudiano, toda a psicoterapia poderia
ser resumida na elaboração da verdade contraditória que o além-homem
precisa enfrentar diante da ausência de Deus: “saber-se destinado ao nada”.

Tanto querer. Tanta saudade. E tanta dor, tão perto


da superfície, à profundidade de alguns poucos
minutos. Dor do destino. Dor da existência. Dor
que está sempre lá, sussurrando continuamente
sob a película da vida. Dor acessível com excessiva
facilidade. Muitas coisas — um simples exercício de
grupo, alguns minutos de profunda reflexão, uma
obra de arte, um sermão, uma crise pessoal, uma
perda — nos lembram de que nossos desejos mais
profundos jamais serão realizados: nossos desejos
de juventude, de interromper o envelhecimento,
do retorno das pessoas que desapareceram, de
amor eterno, de proteção, de significado, da própria
imortalidade. É quando esses desejos inalcançáveis
chegam a dominar nossas vidas que buscamos ajuda
258 na família, nos amigos, na religião — algumas vezes
nos psicoterapeutas (YALOM, 2007, p. 09).

HISTÓRIA, REVOLUÇÃO E LITERATURA

A ambigüidade presente na palavra História vem sendo notada e


destacada por diferentes autores ao longo das últimas décadas. De fato,
o conceito em questão pode designar eventos pretéritos e/ou a reflexão,
escrita/registro acerca deles (também chamada de historiografia, a escrita
da História). A História é o vivido e é também linguagem. Debates muito
ricos tem sido travados no campo da historiografia no momento mesmo
que essa ‘epistemologia da coincidência’ vem chegando aos seus limites.
Não sem pouco choro e ranger de dentes, nós historiadores temos discutido
e rediscutido o fato de que a obra mais célebre ou extensa não contém
a totalidade ou mesmo a substancialidade de uma determinada época
(CHARTIER, 2010, p. 12).
Mesmo considerando esse consenso, eivado de tensão, diga-se,
aquilo que em geral chamamos realidade estabelece uma relação toda
especial com o campo da produção historiográfica. A História não diz
o real, não o reproduz em sua imediaticidade, pelo menos não como
certamente gostaria de fazê-lo a intenção metódica oitocentista. Não
obstante, historiografia e História guardam entre si elos fundamentais,
de tal forma que, por exemplo, a historiografia sobre a Revolução de 30
guarda não poucas ligações para com os processos político-culturais de
revoluções coetâneas à produção historiográfica de então, ou seja, para com
a turbulenta década de 1960.
A História, entendida aqui como conjunto de processos sócio-
culturais, e a Historiografia, não são idênticas, nem complementares,
mas podemos ler uma na outra, sem que necessariamente o papel de
colonizadora caiba a priori a uma das partes. Dessa forma, a instauração
da temática da Revolução como uma importante matriz discursiva no
campo da Historiografia acompanha de perto a turbulência que caracteriza
a decadência do Antigo Regime na Europa e nos Estados Unidos. A 259
contestação do poder real e da ordem do privilégio operadas pelo nascente
regime industrial deixaram suas marcas no pensamento social, como bem
o demonstra Reinhart Koselleck.
A emergência da concepção de História como coletivo singular
se dá sob os impactos da Revolução. Desde fins do século XVIII, tal
concepção se consolida sob os signos da substancialidade e da unidade.
A História é palpável, identificável pela razão e é também una, apesar dos
múltiplos espaços em que se desenrola. Além disso, a aceleração que a
caracteriza conduz a uma experiência nunca antes sentida, que coloca em
segundo plano as lições e os dilemas vivenciados até então, subvalorizando
a dimensão pedagógica do passado. A História Magistra Vita perde espaço,
pois de pouco servem as lições de tempos idos diante da monumentalidade
e da imprevisibilidade que se fazem sentir (KOSELLECK, 2006, p. 41).
Não apenas essa História Universal entra em cena nesse período,
como o demonstrou Reinhart Koselleck. Uma série de mutações conceituais
relacionadas sugere que algo de realmente especial se dava nesse período
e diferentes registros atestam a maleabilidade da linguagem para captar e
operar com tais transformações. Lembremos, nesse sentido, as noções de
História, Revolução, bem como os conceitos políticos de liberdade, igualdade,
fraternidade, os quais constituíam-se, simultaneamente, como resultados e
vetores desse processo: reorientados na tensão dos acontecimentos, tinham
também papel decisivo na constituição destes (KOSELLECK, 2006, p. 51).
A História que é escrita a partir momento estará imbuída de um
sentido muito forte: a temática da Revolução. A favor ou contra tal arqui-
motivo, a historiografia parece não conseguir se desvencilhar do peso
dessa experiência: a transformação brusca das realidades sócio-políticas
ou a melhoria contínua das tecnologias de produção. A Revolução torna-
se um mito fundamental no pensamento ocidental e a História enquanto
concepção do tempo marcada pela linearidade e por um suposto sentido
do progresso tem nos fins do século XVIII sua gênese. A História que é
coletivo singular entende- se como um avançar inexorável de um passado
mais simples a um futuro considerado superior e complexo. Tal linearidade
260 é um convite a ver no passado elementos originais ou puros de um processo
contínuo, no esquema intelectual contra o qual Foucault afirmaria: “O
que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda
preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate.”
(FOUCAULT, 1979, p. 18).
A História que nasce sob os auspícios da Revolução traz em si a
promessa de sua constituição como disciplina científica, bem como a
inevitabilidade e a fatuidade que garantiriam tal propósito. A História, sob
o véu das aparências, tem um sentido fulcral, palco da verdadeira História.
Tal sentido, nada o pode deter. Ele marcha sobre a superfície irracional dos
eventos e necessariamente acaba por se efetivar, tal como a vontade divina
acaba por triunfar sobre os pecados humanos, na escatologia cristã. Nesse
sentido podemos compreender o título do discurso de defesa proferido por
Fidel Castro em 1953: “A História me Absolverá”.
Ao lado dessa concepção de História está a também nascente
literatura moderna. Entretanto, as características que esta tomará
distinguem-na radicalmente da mitologia da Revolução, onipresente no
relato historiográfico. À literatura caberá o discorrer sobre as experiências
relegadas a segundo plano, por talvez serem humanas-demasiado-humanas
para serem tratadas pela narrativa hagiográfica do historiador.
Por outro lado, em oposição à História positivista, para quem o
real é o referente indispensável do ofício do Historiador – real captado
a partir dos indícios considerados neutros oferecidos pelos documentos
escritos – a literatura se assumirá desde cedo como um texto que remete
a outros textos, que tem sua referência na própria linguagem. A ontologia
da literatura proposta por Foucault propõe-se à retomada de autores como
Klossowski e Sade, cujos escritos estiveram sob a influência direta de um
motivo alternativo: a transgressão.
A transgressão brinca com as regras, com o tempo, duvida da
realidade, ao mesmo tempo que a parafraseia. A literatura vê com menos
preocupação a ligação do texto para com acontecimentos considerados
reais, pois ela é antes de tudo uma construção, fictio, cujas ordenações,
limites e tabus têm como referência apenas as regras do seu próprio campo
de produção. A literatura assume-se como linguagem, como construção 261
narrativa e não tem a pretensão de ser um reflexo imediato do mundo. Ela
estabelece dessa forma uma distância bastante considerável em relação ao
modelo positivo de ciência, pois diferentemente deste, não há um referente
extra-discursivo a que ela se remeta como sua origem ou razão de ser; a
literatura é assim um texto sobre textos. A ontologia da literatura proposta
por Foucault explicita esse aspecto duplo, dúbio, do ser da literatura:
simulacros que se auto-remetem, imagens que são perpetuamente recriadas,
sombras sem um corpo a projetá-las. Não há segredo, não há uma última
instância definidora (FOUCAULT, 2009, p. IX).
Antecipadamente, a literatura percebia que a busca pela exatidão e
pela reprodução totalizante do mundo sócio-cultural constituía uma negação
do caráter representacional da arte, no que poderíamos lembrar Borges e seu
famoso mapa, tão grande quanto a própria província que pretendia representar.
A literatura moderna sempre foi, em alguma medida, uma escrita
de reflexão sobre si mesma, sobre sua linguagem. A partir de 1960, também
a História passa a adotar esse procedimento, ainda que de maneira tímida.
O olhar sobre a dimensão narrativo-ficcional da História, proposto por
Michel de Certeau, Foucault e Paul Veyne, impunha ao historiador um
passo além do exame de fatos, seguindo o entendimento de que o próprio
fato é, também, uma construção coletiva, que parte de outros textos, ou
seja, de uma cultura institucional, da hierarquia de temáticas consideradas
relevantes, de problemas postos ou criados por determinadas escolas ou
orientações teóricas.
No caso do Brasil, onde por razões internas essas reflexões demoram
um pouco mais a se fazer presentes no campo da produção historiográfica,
o estranhamento com que foi recebido O silêncio dos vencidos é bastante
representativo do que foi dito acima. A Revolução de 30 é analisada sob o
ponto de vista de sua constituição como fato histórico, relegando a segundo
plano a substancialidade e o caráter evidente com que fora tratada pelos
demais historiadores (DECCA, 1994, p. 31).
Nesse livro, Edgar de Decca mostrou como mesmo a reorientação
operada no interior do marxismo, influenciada por eventos decisivos
262 entre os quais a Revolução Cultural chinesa ou a Revolução Cubana, que
contribuíram para matizar a temática da Revolução em vários aspectos,
inclusive na escolha dos agentes que teriam o protagonismo na luta
política, não foi suficiente para gestar modelos interpretativos satisfatórios
no exame dos acontecimentos da década de 30. O calcanhar de Aquiles
de tais modelos interpretativos, entre os quais podemos citar o binômio
revolução-militarismo ou o estruturalismo gramsciano de Poulantzas, era
exatamente o não perceberem a Revolução de 30 em sua dimensão ficcional
e a si mesmos como novos desdobramentos do discurso historiográfico, ao
invés de uma verdade final sobre a questão (DECCA, 1994, p. 26).
O texto seminal de Decca estava profundamente influenciado
pelos estudos inovadores de Michel Foucault sobre a loucura, a sexualidade
ou o sistema prisional. Para o filósofo francês - um “positivista feliz” na
definição de Paul Veyne - não há constantes universais sobre as quais apoiar
a análise das ciências sociais. Os conceitos considerados mais científicos não
podem ser levianamente aplicados sobre quaisquer períodos, pois mesmo
as ferramentas teórico-metodológicas estão imbuídas de historicidade.

FICÇÃO, SONHO E MEMÓRIA: A HISTÓRIA SE APROXIMA DA


LITERATURA

Desde a década de 60, historiadores têm buscado se apropriar da


concepção da escrita historiográfica como linguagem. Novamente, está
em foco a necessidade de ampliar os horizontes de interpretação e buscar
experiências alternativas ao que foi construído como História. Nessas
tentativas, vemos presentes alguns temas que potencializam a matização das
afirmações sobre o passado, demolindo certezas e discutindo possibilidades.
A ficção é um dos gêneros que contribui sobremaneira nessa
reorientação do ofício do historiador frente aos novos horizontes
interpretativos abertos durante o fim do século XX. Os escritos ficcionais
podem ser utilizados para alem da perspectiva utilitária que neles visualizava
apenas mais uma possibilidade de fonte, um manancial de informações
disponível para aquele que estivesse capacitado a extraí-las, através da 263
crítica das fontes. A literatura, muito antes da História, debruçou-se sobre
temas malditos e incômodos, e pode conduzir o historiador por uma certa
educação da sensibilidade que reabilite objetos como a prostituição, a morte,
os sentimentos, ou o próprio ser da linguagem da História. É ilusão pensar
a obra ficcional como livre de qualquer amarra; sabe-se que cada segmento
tem suas próprias regras de ofício e a literatura não está livre disso. No
entanto, o estímulo à criatividade e à sensibilidade são certamente pontos
fortes desse gênero narrativo.
Como exemplo sugestivo, podemos citar o best-seller Um Dia,
de David Nicholls, pelas estratégias utilizadas por este autor na prática de
narrar o passado (NICHOLLS, 2011). Nicholls conta-nos a história de dois
jovens ingleses que iniciam um relacionamento ambíguo às vésperas de sua
formatura na faculdade. Durante anos a fio, eles construirão uma amizade
bastante intensa que esconde um desejo mútuo, apenas tardiamente
realizado. Nicholls escolhe contar essa história a partir da narrativa de um
único dia - o 15 de julho - a cada ano, durante 20 anos. As lacunas do relato
orientado dessa forma são evidentes, o que aguça a curiosidade do leitor
para os fatos não narrados dos 364 dias ausentes.
A narrativa é construída de forma deliberadamente fragmentária,
mas não é difícil para o leitor estabelecer uma reta imaginária que liga os
pontos mencionados: uma noite especial em 1988 da juventude de Dexter
e Emma; caminhos diferentes a partir de então, com sucesso e futilidade na
vida de Dexter em contraste com uma vida de frustração, trabalho e sonhos
irrealizados por Emma; posteriormente, a situação se inverte, Emma constrói
uma carreira literária e Dexter perde o emprego que tinha na mídia televisiva,
além de sofrer uma dura traição; anos depois, finalmente os dois engatam um
romance, prematuramente encerrado por um acidente fatal para Emma. Não
obstante as lacunas, a história tem um delineamento bastante claro.
Entretanto, o que merece destaque maior, além do caráter parcial da
narrativa, é o momento que Nicholls escolhe para encerrar a triste história
do amor tardio entre Dex e Em. Entremeada às lúgubres cenas finais em
264 que Dexter se desespera e tenta reconstruir sua vida sem sua amada, o autor
narra - sem qualquer explicação - momentos imediatamente posteriores
à noite em que os dois protagonistas se conheceram. O fim, trágico, não
é negado em sua efetividade. Mas ele se torna ainda mais comovente ao
ser contrastado com interesses, intenções, utopias nunca realizadas de fato.
Ao se conhecerem, os protagonistas tinham a intenção - não mutuamente
revelada - de rever-se e de estar juntos, intenção selada “pelo beijo mais
doce que já tinham sentido”. Que ela nunca seria efetivada realmente é
apenas um detalhe. O livro é a história de um projeto não levado adiante,
mas que não perde sua beleza por esse motivo.
A História é, também, a História “do que poderia ter ocorrido”,
lembrando o pensamento do estudioso alemão Walter Benjamin, para
quem haveria uma dimensão onírica no mundo social a ser investigada e
recuperada para o presente. Uma pluralidade de mundos, de dimensões,
a povoar aquilo que chamamos realidade (TIEDEMANN, 2006, p. 17).
Essa dimensão da promessa não cumprida, dos sonhos projetados, mas
esquecidos, recuperados posteriormente em razão de uma constelação
aleatória de fatos, é o que Nicholls realiza em seu romance.
De fato, Um Dia lembra os escritos de Benjamin em vários
momentos da trama. A proposição benjaminiana de reconstruir uma nova
modalidade de experiência, diante do fato de que as narrativas tradicionais
não são mais possíveis no mundo moderno - anunciada nas Teses - se
daria de que maneira? Através de uma ligação intensa com o presente, a
partir de suas ruínas, de seus sonhos irrealizados. Conferir significado ao
presente por meio do conhecimento daquilo que foi desejado, mas não
efetivado. Os projetos abandonados, suplantados por uma trajetória apenas
aparentemente retilínea e unívoca, tornam-se o eixo de religação da história
à sua pluralidade e incerteza características, à sua nudez. Poderíamos
remeter diretamente as cenas finais de Um Dia à síntese da proposição
benjaminiana elaborada por Caroline Mitrovitch:

Essa nudez [...] traduz a experiência contemporânea


em que a significação da vida se explicita por meio 265
das ruínas, da ausência, das perdas, do sofrimento
e da morte, que foram negados ou esquecidos pela
trajetória do progresso triunfante. Isso requer uma
volta ao passado, não para se fixar nele de forma
nostálgica, mas para rememorar dele o que foi
esquecido, recalcado, deixado de lado como algo que
não tem sentido e não cabe no registro da história
oficial (MITROVITCH, 2011, p. 15).

Aqui não posso deixar de pensar em termos de aproximação


entre as ruínas benjaminianas e o disparate foucaultiano2. Certamente

2 Espero empreender tentativa semelhante àquela referida por Durval Albuquerque a


não há identidade entre essas noções, elas não se substituem uma à outra
e tem genealogias conceituais bastante distintas, a começar pelo legado
eminentemente marxista utilizado pelo filósofo alemão. Não obstante,
as duas proposições ajudam mutuamente a pensar a não-linearidade
da História e a ilusão de identidade única que freqüentemente se nos
apresenta, inclusive como metodologia de ofício. Foucault a denomina de
História continuidade ou tradição.
Esse procedimento de desfazer uma trajetória linear ou uma
identidade que se mantém estática ao longo do tempo, Foucault o demonstra
efetivamente em sua História da Loucura na Idade Clássica. No capítulo O
mundo correcional, o filósofo francês destaca a pluralidade de usos a que se
sujeitavam as casas correcionais, que encerravam em suas portas não apenas
a loucura, mas também sodomitas, blasfemos, doentes venéreos, entre outras
modalidades de delitos. Foucault critica a generalização de que o internamento
se resume a um mecanismo social de exclusão dos indesejáveis – essa seria, na
perspectiva de um grupo de historiadores, sua identidade essencial – e sugere
que se observe o elemento criador ou redefinidor da internação:

Por volta de 1657 a centésima parte da população de


266 Paris não foi internada a fim de que a cidade se livrasse
dos “a-sociais”. Esse gesto tinha, sem dúvida, outro
alcance: ele não isolava estranhos desconhecidos,
durante muito tempo evitados por hábito; criava-os,
alterando rostos familiares na paisagem social a fim de
fazer deles figuras bizarras que ninguém reconhecia
mais (FOUCAULT, 1978, p. 81).
respeito da aliança conceitual provisória entre os escritos foucaultianos e thompsonianos
na UNICAMP da década de 80. Se por uma lado essa conjunção sugeria um conhecimento
ainda incipiente das particularidades de cada autor, por exemplo no que toca às divergências
entre um e outro acerca da noção de experiência, por outro lado apresentava vantagens no
tratamento de algumas questões ao diferenciar-se do marxismo hard (ALBUQUERQUE
JR., 2007, p. 146). Neste caso, pergunto-me sobre a possibilidade e a efetividade de uma
aproximação entre Foucault e Benjamin, colocando em segundo plano a complexa
engenharia conceitual que acompanha as teorias de cada um desses autores.
Para Foucault, portanto, os começos são caóticos, são disparatados.
Somente no devir, no processo, é que se forjarão, se inventarão identidades,
reconhecidas posteriormente como aspectos inquestionáveis de uma
determinada trajetória individual, coletiva ou institucional. A História para
ele é disruptiva, pois não cessa de decepcionar os arroubos metafísicos a que
tanto nos afeiçoamos. Observados de perto, os objetos a que nos dedicamos
parecem bem menos definidos do que gostaríamos e, segundo Foucault,
a História fornece o material que possibilita a experimentação constante
desse princípio de incerteza.
Essa chegada tardia da indefinição e da ambigüidade ao campo da
historiografia tem ainda nos usos da memória um material fundamental
para tal reorientação. As reminiscências, desautorizadas que estavam
enquanto ferramenta do historiador, eram observadas com desconfiança
pela História positivista. Além de maleáveis, passionais, incertas, as
memórias punham em questão elementos importantes da História
enquanto coletivo singular, enquanto relato que pode abarcar todos os
relatos. Não deixa de ser curioso que esses mesmos atributos tenham sido
mais recentemente utilizados para legitimar o uso das fontes orais pela
historiografia: as narrativas pregnantes são hoje consideradas importantes
não porque repetem a História consagrada, mas ao contrário, porque filham 267
novas interpretações, são possibilidade de criação e recriação, dinamizam a
reflexão, matizam contornos considerados bem definidos, põem a História
em movimento (ALBERTI, 2005, p. 163).
Os usos da memória feitos por Genet são sugestivos dessa
dinamicidade, por diferentes razões. Em primeiro lugar, pela positivação
feita ao que é comumente considerado como crime, ou seja, pela inversão
da moral que esse autor faz para resguardar a fidelidade aos sentimentos
que experimentava, concluindo com isso que sua preocupação maior não é
o que foi consagrado como verdade, mas a fidelidade para consigo próprio.
O mundo de Genet é um mundo de ficções, de farsas e a moral e os bons
costumes não estão acima dessa constatação: “Não seja idiota, a vida é um
estelionato”, foi o que ouviu Ruth Escobar ao indagá-lo em relação a seus
comportamentos inusuais (GENET, 2005, p. 8).
A linguagem utilizada por Genet, por sua vez, mostra uma subversão
de outra ordem, sobretudo no que toca à relação dessa linguagem e seu
suporte na memória pessoal do autor. O relato de Diário de um ladrão está
longe da tentativa de reprodução da realidade. Está clara e declaradamente
imerso nos sentimentos e nos humores do autor, que reconstrói o vivido
tendo por base seu desejo dirigido aos forçados, vendo flores onde a maioria
só percebe decaimento:

Além das suas cores, pela sua rugosidade, a fazenda


evoca certas flores cujas pétalas são ligeiramente
felpudas, particularidade que, à idéia de força e
de vergonha, me faz associar aquilo que é mais
naturalmente precioso e frágil. Esta aproximação, que
me informa sobre meu eu, não haveria de impor-se a
outro espírito, ao passo que o meu não pode evitá-la.
Ofereci pois aos forçados a minha ternura, quis dar-
lhes nomes encantadores, designar os seus crimes com,
por pudor, a mais sutil metáfora (GENET, 2005, p. 16).

268 Vê-se que essa literatura não recupera o acontecido, ela o recria. O
mundo que dela brota não se resume àquilo que é considerado real, pois ela
acrescenta novos mundos a essa dita realidade. O aspecto pessoal e parcial
dessa produção é inegável, ela só existe pela visão daquele determinado
autor. A neutralidade não é possível, nem desejável, como se observa na
seguinte frase de Genet: “Tal definição [...] da violência há de mostrar a
vocês que irei utilizar as palavras, não a fim de que pintem melhor um
acontecimento ou seu herói, mas para que os instruam sobre mim mesmo”
(GENET, 2005, p. 21).
A ficção, o sonho, a memória e outras temáticas são vias possíveis
e já parcialmente utilizadas pela História para adentrar esse novo regime
escriturístico que experimentamos atualmente. Aberto pela literatura, a
História começa a trilhá-lo na década de 60. A História-Revolução abre
espaço paulatinamente para experimentações que põem em questão os
próprios contributos da historiografia, considerados intocáveis até então.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nestas páginas tentei empreender uma dupla tentativa: por um lado,


rever e sintetizar elementos fundamentais do curso A palavra da meia-noite:
História – Revolução e/ou Transgressão, ministrado pelo professor Durval
Albuquerque, sobre os regimes discursivos da Revolução e da Transgressão
nos campos da História e da Literatura, tendo como referência o filósofo
francês Michel Foucault. Por outro, busquei experimentar também
aproximações possíveis entre a discussão travada e alguns elementos-chave
dos escritos benjaminianos.
Essa tentativa de aproximação não se mostrou infrutífera pois,
como dissemos acima, as temáticas da morte, da finitude, da desrazão e
da pluralidade temporal destacadas por Foucault e pela literatura podem
ser encontradas também nas contribuições de Benjamin, feitas as devidas
ressalvas de tempo e espaço em que ocorrem. De forma diferenciada, o
pensador alemão também se deparou com os desafios existenciais dos quais
a Literatura pode ser considerada como resultado e vetor, simultaneamente. 269
A aproximação da historiografia com escritos tão ricos e complexos
traz, sem dúvida, grandes possibilidades e desafios. Uma História mais
próxima do cotidiano, porque mais humana, tem sido de certa forma a
tentativa empreendida pelo nosso campo. A Literatura, a Psicanálise e a
Antropologia desempenham um papel fundamental nessa tentativa de
reinvenção da História.
Grandes possibilidades remetem também a riscos de igual
proporção. A atratividade dessas áreas afins deve ser pensada em função
do perigo que enfrentamos ao ser subsumidos nas tradições das quais
nos aproximamos. Uma história fincada na antropologia ou na literatura
não correria o risco de perder de vista seu interesse mais fundamental?
As críticas a respeito de trabalhos que teriam ido longe demais nessa sua
aproximação com o estilo ficcional são, de certa forma, uma outra maneira
de realizar esses mesmos questionamentos.
Mesmo considerando essas advertências, é conveniente relembrar
o fato de que a Transgressão se alimenta do risco, proporcional ao gozo.
Invertendo a questão, relembremos o que foi dito acima: grandes riscos
remetem a grandes possibilidades. Este trabalho, da forma como o redigi,
inserindo Benjamin numa discussão em que ele não foi diretamente
nomeado, é o risco que por ora eu espero ter condições de correr.

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272
Estereotipias dos corpos e marcas da violência

Gilmária Salviano Ramos

A história dos julgamentos e processos mostra


mais profundamente como a história do
estupro não poderia ficar limitada à história da
violência. É um emaranhado complexo entre o
corpo, o olhar, a moral, que essa história vem
lembrar. (VIGARELLO, 1988:08).

Após um dia árduo de trabalho doméstico, Maria do Carmo, 18


anos, analfabeta, comparecera com a sua colega, Irene, 20 anos, analfabeta,
a uma “animada festa” (BRASIL, 1965), às vésperas dos “Santos Reis
Magos/Noite de Reis”, no bairro da Torre no dia 05 de janeiro de 1965,
em João Pessoa. Ao retornarem pelo “caminho de casa”, acompanhadas
respectivamente por seus namorados, Antonio Francisco, 16 anos, e Geraldo
Augusto, por volta das 23 horas, Antonio Francisco “convidou a queixosa
e seus companheiros para entrarem no Beco do Hospital do Câncer, que
liga as ruas Dom Pedro II e da Conceição”. O local parecia “meio esquisito 273
e escuro, pouco movimentado, pois só havia duas lâmpadas, cada uma em
um poste, êsses postes eram distantes um do outro”. O beco dava acesso
para “os lados” da residência onde Maria do Carmo trabalhava. Embora
existissem algumas casas ali perto, estavam todas fechadas. Quando, de
repente, “logo na entrada do beco” um tanto estreito e sem pavimento,
fétido em razão do acúmulo de urina e restos fecais, os dois casais foram
surpreendidos por seis rapazes “que se cercaram dela queixosa”.
Segundo o depoimento da vítima, os seis homens dispensaram os
rapazes, inclusive o seu namorado e a sua colega de trabalho, Irene Josefa,
após terem perguntado para a última se ela “era virgem”. Tendo respondido
“que não mais era moça, o mesmo acusado [disse] que ia cortá-la com um
canivete”. “Assombrada”, a amiga de Maria do Carmo a deixou para trás
quando “em ato contínuo os acusados levaram-na para lugares ermos e
forçaram-na a ter com eles relações sexuais por duas vias, pela vagina e pelo
ânus, tendo, também nesta oportunidade se servido da vítima mais três
rapazes” que chegaram depois. Depois de consumado “o terrível crime”,
um deles, chamado Crispim, foi incumbido pelos demais de levá-la até as
proximidades da casa onde trabalhava. Três dos rapazes faziam parte da
vizinhança, sendo reconhecidos pela menor, muito embora, ela não soube
indicar os seus nomes. Maria do Carmo ainda disse que os outros três
rapazes que chegaram em seguida e “mantiveram também relações sexuais
com a queixosa, seguraram-na pelos braços, pernas e tampavam a bôca
dela queixosa, assim estiveram até uma hora da madrugada” no local.
Este é um caso de estupro1 entre tantos encontrados em processos
crimes do Tribunal da Justiça da Paraíba - Fórum Afonso Campos, na
cidade de Campina Grande e no Tribunal da Justiça, em João Pessoa - o que
permite identificar e analisar diferentes formas de controle social do corpo
feminino, bem como normalizações de condutas sexuais em um momento
em que o palco jurídico de controle e os debates feministas apontavam para
a emergência de políticas públicas voltadas para a saúde e para o controle
da natalidade no país, como a emergência da pílula anticoncepcional, em
274 1960, no Brasil.
Desde o início da década de 1970, a violência contra as mulheres
tem sido objeto de estudos, associada à emergência do feminismo e à
perspectiva de se continuar a fazer a história das mulheres. Frente à tendência
voltada para a pesquisa histórica, colocavam-se em cena objetos inéditos,
como os papéis sexuais e a sua diferenciação, a criminalidade, os desvios, “o

1Os processos crimes foram digitalizados e quantificados com os casos ocorridos nas duas
maiores cidades do estado, Campina Grande e João Pessoa, perfazendo o total de 60 de
estupros ocorridos na Paraíba, nas décadas de 1960 e 1970. Entendemos aqui a produção
dos documentos como artefatos ou narrativas com efeitos de “realidade” a partir dos indícios
que homens e mulheres deixaram no passado. Consistem essencialmente em um universo
de artefatos linguísticos, em um instrumento produzido para o exercício do poder, numa
sequência de páginas cheias de significação, numa conjuntura de embates e conflitos, cujas
fronteiras são atravessadas pelo entrecruzamento de jogos médicos, jurídicos, religiosos e
psiquiátricos, perpassados pelas relações de gênero.
medo, o pecado, as relações entre a vida privada e pública” (DEL PRIORE,
2003:221). Desse modo, a noção de violência foi se tornando cada vez mais
pauta de discussão nos discursos dos governos e assistentes sociais do país.
A historicidade da noção de violência aparece com marcas
distintas inscritas no e pelo tempo. Como afirma Paul Veyne, faz-se
necessário situar as singularidades dos acontecimentos, “levar o mais
longe possível a análise das formações históricas ou sociais, até desnudar
sua singular estranheza” (VEYNE, 2001:23). A proposta desse texto visa
analisar as redes de contingência e os diferentes sentidos que constituíram
a violência sexual por meio da qual algumas menores de 18 anos da Paraíba
passaram a ser ditas e significadas pelos discursos médicos e jurídicos,
durante as décadas de 1960 e 1970. Para tanto, os estudos de Gênero2
têm sido norteadores para as análises em torno do tema, pois possibilita
problematizar as práticas discursivas que constituem e/ou constroem a
noção de violência sexual, física e psicológica como uma problematização
moral produtora de sensibilidades focando os vetores de gênero como raça,
a cor e a condição social das vítimas de estupros.
Questionamos, por conseguinte, o que caracterizava um crime
de estupro segundo os discursos da justiça e da medicina legal no período
em análise? Que marcas de violência teriam de apresentar os corpos das 275
menores para a constituição do crime de estupro durante as cerimônias
de julgamento? A problematização dessas duas questões faz jus às palavras
de Vigarello que abrem o texto como epígrafe, quando o autor afirma que

2 A categoria gênero será discutida com base na interlocução entre o pensamento dos/
as filósofos/as Michel Foucault e Judith Butler. Desde 1970 que a teoria feminista vem
desenvolvendo uma linguagem capaz de representar as mulheres no seio da política, cujo
objetivo é o de promover a sua visibilidade. Dentre as diversas correntes sugeridas, Butler,
inspirada pela problematização de Michel Foucault, acerca da noção de poder, propôs o
caminho da performance, isto é, como cada sujeito, homem ou mulher, apresenta-se ou se
constitui entre as relações sociais estabelecidas no tempo e no espaço. Ao traçar esse caminho,
ela questiona a identidade de sujeito enquanto uma categoria fixa, estanque, permanente no
tempo, além de colocar em xeque a distinção que Joan Scott fez entre sexo/gênero/desejo.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução
Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
a história dos julgamentos “é um emaranhado complexo entre o corpo, o
olhar, a moral, que essa história vem lembrar”. A finalidade desse artigo
consiste em colaborar para o avanço do debate jurídico-histórico acerca
da violência sexual, vinculado às problematizações das relações de gênero.
De acordo com os registros a que tivemos acesso, as adolescentes
vítimas de estupros aparecem na faixa etária entre 11 e 18 anos; a maioria
empregada pobre e doméstica, cursando o ensino médio ou fundamental.
Quanto ao fator da raça ou da cor, os dados demonstram formas diferenciadas
de tratamento de acordo com a raça da ofendida, o nível econômico e as
relações de intimidade entre os/as envolvidos/as nos casos de estupros
coletivos. Quando se tratava de menor de 14 anos, classificada como
alienada ou débil mental e o agente conhecia tal circunstância, falava-se do
estupro presumido. Segundo o jurista Galdino Siqueira, a lei considerava
a pessoa nessa idade como incapaz de resistir ou de consentir livremente,
quer fosse virgem ou não, o que se tornava inadmissível sendo a indagação
da honestidade, pressupondo a inocência, a insciência da meninice da
vítima. A “presunção da violência”3, definição jurídica corroborada por
outro proeminente representante da justiça, Viveiros de Castro, consistia
no fato de que a lei supunha que a menor, juridicamente falando, não tinha
276 bem nítida a compreensão do ato que afetava a sua honra, entenda-se
sexual e moral, e o seu futuro. Tratava-se nas palavras dos juristas de uma
presunção legal.
Boris Fausto demonstra como o Código Penal de 1940 sinalizou
algumas mudanças concernentes aos crimes sexuais. Passando para a
classificação de “crime contra os costumes”, “vocábulo aí empregado”, nas
palavras de Hungria e Lacerda, “para significar os hábitos da vida sexual

3Segundo o Art. 224 do Código Penal a “violência presumida” consiste no ato em que a
chamada vítima foi constrangida fisicamente ou o estupro foi praticado por meio da coação
violenta. Denomina-se nesses termos quando a vítima é menor de 14 anos, é alienada ou
débil mental, e o agente conhecia tal circunstância, não podendo ela, por qualquer outra
causa, oferecer resistência. Eis a combinação do Art. 213- estupro mais o Art. 224 – violência
presumida. Juridicamente falando uma menor de 14 anos, não teria discernimento de sua
vontade, mesmo consentindo com o ato sexual.
aprovados pela moral prática, ou, o que vale mesmo, a conduta social
adaptada à conveniência e disciplinas sociais” (FAUSTO, 1984:177).
A partir de 7 de agosto de 2009, observaram outras mudanças sobre os
crimes sexuais no Brasil, entrando em vigor a Lei 12.015/09, passando a
ser classificados de Crimes contra a Dignidade Sexual. Dentre os referidos
crimes, consta o estupro, constatado pelo ato de “Constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar
ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A Constituição
Federal de 1988 já havia indicado uma possível alteração jurídico social,
uma vez que dizia respeito diretamente à sociedade, de tratamento dos
crimes sexuais, defendida por muitos autores do Direito como o marco de
mudança do título de “Crimes contra os costumes” para “Crimes contra a
dignidade sexual”. O art. 1º, inciso III, da Constituição de 1988, já indicava
o fundamento basilar da “Dignidade da pessoa humana”.
A partir da Lei 12.015/09, passou-se com efeito, a dizer que os
crimes contra os costumes não traduzem o contexto dos bens juridicamente
tutelados pelos tipos penais que se encontravam no art. VI do C.P. Passou-
se então à proteção da dignidade sexual e não mais aquela que pretendia
regular como as pessoas deveriam se comportar sexualmente diante da
sociedade do século XXI. No tocante à nomenclatura “mulher”, a mudança 277
na legislação, a partir da lei de 1940, consiste na substituição daquele
termo por “alguém”, já que as mulheres podem ser tanto vítimas de crimes
sexuais quanto autoras (SERAFIM, 2013:102). Assim, para que fosse
considerado um delito contra a liberdade sexual, tornava-se necessário o
constrangimento mediante a violência, provado por indícios materiais e
pelos testemunhos. O sentido de constranger à violência significa forçar,
subjugar ou obrigar a vítima a ter relação sexual sob violência ou grave
ameaça.
Ao referir-se ao Código Penal, Antonio de Pádua Serafim afirma
que “o termo ‘costumes’ vinha até então carregado de sentido repressor dos
comportamentos ou hábitos sexuais das pessoas, que deveriam acompanhar
padrões estabelecidos pela coletividade” (SERAFIM, 2013:102) ou pela
chamada elite, entendida sob o ponto de vista daqueles que detém o saber e
o poder. Os documentos pesquisados aqui enunciam que, nos crimes contra
os costumes, defendia-se a ideia do amparo, a proteção da “honorabilidade”
e da tranquilidade das famílias.

ESQUADRINHEM “AS REGIÕES GENITAIS E SEUS ADJACENTES”

O caso de estupro coletivo que introduz esse texto é indicativo de


como a violência sexual carrega suas sutilezas, podendo escapar à força do
seu terror de forma quase imperceptível no tempo. A violência moral por
que passara muitas vítimas de estupro indica um mecanismo da coação,
o que dificulta sobremodo a forma teórica de objetivá-la. Ao analisar os
discursos dos juristas das décadas de 1960 e 1970, observa-se a reiteração
da ideia de que a prática do estupro era semelhante a de defloramento,
isto é, buscava-se precisá-lo de acordo com a definição jurídica em termos
da ação de violência física e moral. Essa perspectiva, no entanto, não se
sustenta, pois identificamos vários casos, inscritos pelo Art. 217 do C.P.,
em que as declarações das ofendidas indicavam acontecimentos sexuais de
extrema violência física (ou, diga-se, real ou absoluta nos termos jurídicos).
278 A esse respeito, os advogados lançavam mão de várias estratégias visando
à invalidação do sentido jurídico em torno da prática sexual por violência.
Quando analisamos os depoimentos dos acusados de estupro
notou-se certo consenso, uma espécie de camaradagem compartilhada
entre eles em função do jogo da permissividade durante o fato criminoso.
Era comum à época, os acusados alegarem que a vítima “não fez nenhuma
resistência” sugerindo a conivência por parte da vítima com a prática do ato
sexual mediante á força. Ao analisar os vários sentidos implicados acerca
da noção de vítima de crime sexual, na cidade de Florianópolis, durante
a Ditadura Militar, a historiadora Eva Gavron mostra como “as vítimas
colocadas como possuidoras de corpo erótico” (GAVRON, 2008:128)
eram vistas como aquelas que “atenuavam a intencionalidade da violência”.
A autora observou por meio da análise dos processos de estupros e de
reportagens, que “um corpo erotizado consente a violência, consente o
ato sexual, a vítima é, portanto, culpada, e deixa de ser a vítima que se
auto-intitulou”. Semelhantemente, nos casos que analisamos, observou-
se regularmente o discurso de que as moças se tornavam indiretamente
responsáveis pelo crime, migrando rapidamente do lugar social de vítimas
para o de criminosas. Naquela mesma temporalidade, na região sul do país,
enquanto o corpo da vítima de crime sexual era visto como “erotizado,
sedutor”, como aponta Gavron, no estado da Paraíba, contudo, reforçava-se
a ideia do “corpo possuído”, à mercê dos desejos do outro, um corpo que se
entregava sem nenhuma resistência, propenso à devassidão com um gosto
desenfreado por praticar o ato sexual sem o menor escrúpulo diante da
circunstância, como o caso em questão.
Após a violência sexual, os estupradores largavam as vítimas
despidas no local do crime. Isso significa dizer que para além dos maus-
tratos, expô-las ao constrangimento indicava uma ação que ultrapassava
o fato criminoso. Ao que tudo indica, visava-se com isso envergonhá-las
frente aos demais participantes, submetendo-as a toda forma de vexames
em um jogo de poder que as colocava em ambígua situação de objeto sexual
e, ao mesmo tempo, de repúdio. Além disso, fragilizá-las emocional ou
psicologicamente significava, no mínimo, ter a segurança de que as mesmas, 279
coagidas pelo medo e pela violência do ato, não registrassem queixa contra
os seus violentadores, razão por que nem todos os casos de estupros eram
denunciados na Justiça, permanecendo na esfera do silenciamento e da
invisibilidade.
O juiz que julgou o caso em voga decretou a prisão preventiva aos
cinco acusados, chamando atenção para o fato de que o caso em suma se
tratava do art. 213 do Código Penal. E, segundo a sua argumentação, o crime
de estupro não fazia distinção entre a virgindade e a idade da vítima, tal
como fora apontado por várias testemunhas. Dizia o magistrado: “a própria
‘prostituta’ pode ser vítima de ‘Estupro’ – o seu corpo é dela; ninguém pode
possuí-la sexualmente, sem o seu consentimento”. Essa assertiva também
aparece décadas anteriores na fala de Viveiros de Castro, no ano de 1936:
“O estupro, o gozo a força, pode realizar-se em mulheres maiores, virgens,
casadas, viúvas, até mesmo prostitutas” (CASTRO, 1936:98). As menções
“a própria” e “até prostitutas” deixam entrever que, embora se tratasse
de um sujeito de direito, havia certas restrições referentes ao benefício
jurídico de proteção em função da sua opção de vida. Ou seja, a atividade
da prostituição aparecia como “transgressora da ordem moral” (RAGO,
1991:21), com efeito, as prostitutas, vistas como objeto de consumo livre
ao bel prazer dos homens, estariam mais propensas ao crime de estupro
como um dado ou consequência das escolhas por elas feitas. O ato sexual
violento ainda que de forma implícita, era justificável ou, no mínimo, era
citado nos tribunais como uma prática excluída dos valores morais, sob a
qual os magistrados deveriam dar tratamento diferenciado.
Ao analisar os significados do termo “ser-vítima” de crime de
sexual durante o período da ditadura militar no Brasil, Eva Lúcia Gavron
demonstrou como a condição “ser-vítima” perpassava por um complexo
processo de construção histórica e social, como quando as vítimas eram
abordadas para a realização do exame de corpo de delito, visando à
constatação da relação sexual. A esse respeito, a autora afirma que havia
formas de tratamento diferenciadas em termos de gênero na medida em
280 que os médicos legistas as distinguiam em relação àquelas que já teriam tido
experiência sexual e àquelas classificadas donzelas. Para com as últimas, os
cuidados por parte dos legistas eram redobrados visando a identificar se
teria ocorrido o estupro. Eles procuravam ser mais cautelosos de acordo
com a reputação sexual de cada uma.
Quando as declarações das testemunhas cruzavam com as provas
materiais, como o exame de conjunção carnal com vista a identificar se
houve ou não a violência, o crime era considerado inafiançável, podendo
o juiz decretar a pena privativa de liberdade máxima por quatro anos
de reclusão. Outro fator que pressionava o juiz a decretar a prisão dos
acusados era a repercussão na sociedade por meio da imprensa. Em razão
da “intensa repercussão nos meios locais” por causa do estupro coletivo
ocorrido em João Pessoa, o juiz da época decretou “a custódia dos então
indiciados como garantia da ordem pública, por conveniência da instrução
criminal e para assegurar a aplicação da lei penal”. Objetivava-se acalmar
as populações em nome da tranquilidade pública, procurando dar resposta
à sociedade.
A repercussão em torno do estupro coletivo produzia a imagem
da cidade caótica associada à insegurança. A empregada doméstica, Penha,
chamada a testemunhar, afirmou que “o fato em apreço já é conhecido de
tôdo o pessoal do bairro Jaguaribe”, onde morava na cidade de João Pessoa.
A manifestação das populações corroborava, com a maior rapidez, com
a circulação das notícias sobre os crimes, principalmente, os de ordem
sexuais. Quanto maior fosse a indignação das pessoas, mais matérias
os jornais publicavam sobre o assunto. As conjecturas e hipóteses sobre
esse tipo de caso exerciam grande poder de crítica no meio social e, em
grande medida, ajudavam os policiais nas investigações. As autoridades
convocavam, por meio de notas nos jornais, o apoio das populações para
solucionarem os casos de estupro que demandavam bastante tempo nas
investigações.
Como afirmam Lana Lage e Maria B. Nader, “os casos de
assassinatos ou graves agressões publicados muitas vezes de forma
sensacionalista, sempre agitaram a opinião pública, provocando debates 281
e ajudando a vender jornais” (LAGE & NADER, 2012: 290). Durante as
décadas de 1960 e de 1970 esse tipo de prática social não era diferente. Era
regular a exposição de manchetes que estampavam os casos de sedução,
estupros, incestos, pedofilia e homicídios no país e, consequentemente, na
Paraíba, dentre as quais as prostitutas apareciam como alvo preferido dos
homicidas e dos estupradores.
Ao elaborar o relatório sobre as vésperas da noite dos “Santos
Reis Magos”, o delegado João afirmou que se tratava de uma moça de “cor
preta”. Geralmente, a cor das vítimas só era mencionada no registro de
nascimento, no exame de corpo de delito, quando se tratava de agressões
físicas, ou no de conjunção carnal. Ou seja, a mulher “preta, humilde
e empregada doméstica de uma casa de família”, tal como também foi
destacado pelo promotor João Bernardo de Albuquerque, era indicativo
da inferioridade da jovem em relação às outras de cor branca, envolvidas
na mesma tipificação criminal. Havia assim uma associação entre a
condição social e o crime cometido, como se fosse justificável diante da
sociedade.
A atividade de empregada doméstica aparece ainda no discurso
do subprocurador, como desqualificada, o qual dizia: “A pobreza da vítima
está mais que provado. Trata-se de uma empregada doméstica, dessas
pobres moças que fugindo da fome e miséria dos seus pais, procuram em
residência de família um lenitivo para matar a fome”. Ao que tudo indica o
ato de estupro realizado em uma moça pobre e negra, fosse visto por parte
de alguns juristas, com menor gravidade se realizado em uma moça branca,
embora ambas estivessem dentro da mesma categoria social e fossem
igualmente virgens. Como mostra Vigarello, “a distância social modula a
escala de gravidade dos crimes em uma sociedade de classes, distribuindo
o peso das violências segundo a condição das vítimas” (VIGARELLO,
1998:23). Como um dispositivo de poder, a Justiça fomentava a criação de
novas normas que acentuavam ainda mais as desigualdades e a violência
de gênero. Os sistemas jurídicos que deveriam atender aos delitos e às
282 situações de conflitos sexuais entre pessoas “interligadas por afetos,
emoções, sentimentos e relações íntimas” configuravam culturalmente
como situações desiguais de poder (MACHADO, 2014:15).
Enquanto isso, a defensoria pública demonstrava uma tentativa
exacerbada de provar, por meio de várias citações de juristas renomados
como Viveiros de Castro, que o crime de estupro registrado pelo delegado
e pela promotoria não tinha fundamento algum. Baseava-se no fato de
que a vítima não teria demonstrado “nenhuma resistência”, argumentando
que “o estupro é o ato pelo qual o indivíduo abusa dos recursos físicos e
mentais, para por meio da violência, conseguir ter conjunção carnal com a
vítima, qualquer que seja o seu sexo”. Isto é, a violência empregada tinha de
consistir no “elemento essencial do crime, não se admitindo a presunção,
mas a prova inquestionável”.
Segundo esse discurso, os corpos das vítimas tinham de apresentar
“marcas e sinais indeléveis”, lesões corporais contundentes. Para se admitir
a certeza de que a violência foi exercida, exigiam-se provas terminantes,
indícios de valor robusto, e de que, contra a investida do agente ou ofensor,
tenha a vítima oposto a resistência séria e constante. Até que fosse provada
a violência efetiva, seja física ou moral, não se poderia falar em crime contra
a liberdade sexual. Assim, buscava-se constituir o perfil da vítima de modo
que a violência estivesse mais associada ao comportamento da jovem, em
termos de seu contato físico com os agressores, que propriamente com
o crime. Nesse sentido, o crime de estupro era reconstituído durante o
julgamento sob um enunciado que, aos poucos, desaparecia para dar
visibilidade a outro discurso em torno da conduta moral da vítima no
momento do crime.
Para os advogados, não bastava os estupradores forçarem e
submeterem as vítimas contra a sua vontade. Sobre elas era transferida a
responsabilidade moral “manifestando-se por inequívoca resistência”, tal
como afirmou o advogado. Seguindo a lição de Nelson Hungria, o qual
alertava para que as declarações das vítimas não fossem de todo creditadas,
a defesa dizia que, durante o ato libidinoso, o “discurso da vítima deve
ser sincero e positivo, não bastando uma recusa meramente verbal, uma 283
oposição passiva e inerte, tornando-se necessário uma vontade decidida e
militantemente contrária, uma posição que só a violência física ou moral
consiga vencer”. Ao mesmo tempo, deveriam indicar a “temibilidade”
frente à situação de a vítima ter sido “arrastada pelos seus estupradores”.
Como afirma Boris Fausto, a fala das queixosas poucas vezes servia para
corroborar uma acusação, “é um campo aberto onde os advogados dos
acusados recolhem contradições maiores ou menores” (FAUSTO, 1984:
176-177). De acordo com as práticas discursivas, para que fosse classificado
um crime de estupro não bastava o ato sexual violento contra a vontade da
vítima, os seus gritos tinham de ecoar por toda a vizinhança. Ela precisava
se debater no chão, ser espancada, de modo que os sinais e os hematomas
em seu corpo sinalizassem “as marcas” ou os signos da agressão física. As
marcas deveriam ser identificadas de preferência a olho nu, “em seu corpo,
nos seus braços, nas suas coxas e nos órgãos genitais externos” (BRASIL,
1965).
O corpo tinha que apresentar-se em lamentável estado físico,
marcar fisicamente as vítimas significava para a Justiça que seus corpos teriam
sido precisamente sujeitos às formas de violência moral e psicológica. Todos
os “vestígios” tinham que estar visivelmente presentes para a configuração
do crime, o que o tornava uma expressão exacerbada da violência em seu
aspecto mais aterrorizante. Essas indicações deixam entrever a importância
da construção da tipificação do ato penal, o sofrimento da vítima era o
núcleo central das atenções da defesa. Os advogados e os promotores
exigiam dos peritos que examinassem minuciosamente “as vestes, pois se
feito oportunamente revelará sinais de luta, que são evidenciandos pelas
rasgaduras, arrancamento de vestes, de botão, lama e manchas de sangue”,
como prova de um número maior de elementos e implicações médico-
legais. A violência física nos crimes de estupro tinha que figurar “um
elemento preponderante à sua consumação”.
Além disso, observou-se a humilhação moral por que passaram
muitas das jovens. As vítimas se viam frente ao incansável interrogatório,
284 à exposição de suas imagens nos jornais e a ao exame minucioso de
seus corpos. Tinham que provar frente à Justiça que foram violentadas,
assumindo assim o cargo dos peritos e da polícia se quisessem que a queixa
crime tivesse o mínimo de credibilidade junto à justiça.
Já dizia o médico legista, Antonio Ferreira de Almeida Júnior4, era
de suma importância os médicos peritos interrogarem a “vítima a respeito
dos pormenores dos fatos, pois a forma pela qual ela faz essas declarações é,
em si mesma, elemento valioso para o diagnóstico psicológico da situação,

4Almeida Júnior graduou-se em 1921 pela Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo.
Foi um dos fundadores da Universidade de São Paulo em 1934. Publicou vários livros,
dentre eles, bastante citado nos processos crimes, “Lições de Medicina Legal” (em 1948
chegou à 20ª edição, alcançando grande êxito no âmbito jurídico). Disponível: http://www.
academiamedicinasaopaulo.org.br/biografias/305/BIOGRAFIA-ANTONIO-FERREIRA-
DE-ALMEIDA-JUNIOR.pdf. Acesso: 01/08/2014.
devendo atender não só à forma, como também ao seu conteúdo”. Queria-
se dizer que, em razão do trauma do acontecimento, a menor, confusa,
poderia dissimular ou acrescentar dados inverossímeis ou exagerar em
suas declarações quando interrogadas sobre o acontecimento violento.
Como medida acauteladora, ensinava ainda Almeida Júnior, “deve o perito
indagar a vítima porque não gritou e porque não ofereceu resistência”. A
luz do saber médico de nomes renomados no país, os advogados da época
reconstituíam aos poucos a ideia de que a menor teria sido no mínimo,
condescendente com o ato sexual violento.
Empenhado em determinar o que chamou de “dissimulação”,
supostamente empregada pela moça, o advogado chamou a atenção
para a “farsa do estupro”. Buscava produzir o enunciado de que através
do testemunho da vítima podia-se extrair com alguma clareza a forma
como ela se portava, as vestimentas que usava, dados de seu passado, de
modo que a análise do acontecimento fosse cada vez mais micro, com
vista a provar a dissimulação empregada pela menor acerca da narrativa
da violência.

Quando se trata da violência moral, a prova é


dificilíssima, quando não haja confissão do acusado, 285
os testemunhos especialmente positivos. No caso de
violência física, se desta não ficam traços, proclama o
mesmo Tratadista, a prova não será fácil. A violência
física deve ser apreciada em face dos vestígios
deixados pelo estupro violento, sendo tema da própria
medicina legal, devendo ser os traços materiais da
violência sofrida, procurando ao nível das regiões
genitais e seus adjacentes, bem como, obviamente,
em todo corpo da queixosa, para que se constate a
existência de arranhões, escoriações ou equimoses nas
coxas, nas nádegas, nos joelhos, nos seios e se houve
luta violência, contusões e manchas nos antebraços,
nos pulsos, nos pescoços, nos lábios, nos rostos,
etc., precatando-se a autoridade contra a simulação
(BRASIL, 1965).

Além das marcas inscritas no corpo, as declarações das vítimas


tinham que ser submetidas à crítica rigorosa. A narrativa do acontecimento
não era suficiente, pois já dizia Hungria, citado pelo advogado: “não se deve
dar crédito à declaração da queixosa, notadamente se esta não apresenta
vestígios de alguma violência”. A prática jurídica do interrogatório, em
mãos daqueles que detinham o Poder Judiciário, funcionava como “um
conjunto de gestos acionados que produziam versões, juízos de valor, para
além das intenções” (ZENHA, 1985,131) das vítimas e ofendidas. Exigia-se
assim que seguissem conforme as regras de uma espécie de lei do horror
que deveria realçar mais o espetáculo da vítima durante o acontecimento
que o crime praticado.
A reconstrução do fato por meio do maior número de
depoimentos contrários à vítima poderia surtir, com efeito, a possibilidade
da versão da menor ter foros de mentira, “uma invencionice”, tal como
era comum nos argumentos dos advogados da época. Outrossim, a maior
286 quantidade de homens convocados para testemunhar na Justiça superava a
de mulheres, o que expressa a legitimidade que a figura masculina detinha
no âmbito jurídico. O discurso masculino era visto como digno e moral,
essa confiabilidade não dizia respeito à fala das mulheres, de forma geral,
expressava uma visão masculina de mundo. Possivelmente, essa prática
social se explique também pelo fator econômico, haja vista os acusados
gozarem de melhor posição financeira se comparada à das vítimas.
À medida que os juristas argumentavam sobre o fato sexual, a
condição jurídica de Maria do Carmo ia sendo deslocada de estatuto
no Judiciário, pois de vítima de estupro, ela passou a estereotipada de
“pseudovítima”, “pseudo-ofendida”, “suposta vítima” (BRASIL, 1965), “a
que se diz vítima”, entre outros. E, em vez de “crime de estupro”, deslocava-
se também o sentido para o “emprego dos intentos libidinosos”. Aos poucos,
se constituía a dúvida sobre o crime sexual de forma mais expressiva em
face do argumento da defesa que afirmava que a moça conhecia os seus
violentadores, sabendo, inclusive, indicar-lhes os nomes. Ou seja, um
discurso sem fundamento que caminhava cada vez mais para a irrelevância
dentro da perspectiva do direito penal, além de se considerar que nem
sempre o estuprador faz parte das redes de sociabilidade das vítimas.
Era nesse jogo de poder e saber que se demarcavam as diferenças
de tratamento com relação às vítimas e aos acusados, deixando entrever as
várias formas de desigualdades de gênero. As testemunhas em favor dos
agressores, possivelmente orientadas pelos advogados, construíam sutilmente
o discurso de que a moça não tinha sido propriamente violentada, deixando
entrever que a mesma protagonizou a situação como uma sedutora quando
fora encontrada pelos oito rapazes naquela noite: “todos em pé e vestidos,
que a mulher estava conversando naturalmente, dentro do mato com mais
dois homens, demonstrando satisfação, nada revelando nenhuma coação”
(BRASIL, 1965), segundo o depoimento dos envolvidos.
Naquele jogo de interesse e de estratégia, construia-se a idéia
de que a vítima intencionou a relação sexual, uma justificativa da defesa
para reafirmar que o seu corpo estaria ali disponível para qualquer um;
falava-se de um corpo transgredido. Dentro daquela perspectiva, quando 287
um homem olhava o corpo de uma mulher ou se aproximava dele, não é
somente ele que se aproximava, era por meio dele que todo um sistema
de relações se colocava em funcionamento. Tal circunstância reporta
as palavras da filósofa Marilena Chauí quando define a violência como
“uma ação que transforma diferenças em desigualdades hierárquicas” por
meio dos discursos masculinos, os quais incidem especificamente sobre o
corpo das mulheres. Ou seja, naquela situação de passividade frente o ato
violento, as mulheres perdem sua autonomia, sua liberdade, “entendida
como a capacidade de autodeterminação para pensar, querer, sentir e agir”
(CHAUÍ, 1985:36).
Como forma estratégica, os advogados e a promotoria se referiam
às várias circunstâncias em que se encontrava Maria do Carmo: faziam
menção à sua roupa, ao caminho que tomara durante o percurso do retorno
para casa, se o local estava escuro ou não, motivo pelo qual supostamente
atraíra a atenção dos estupradores, se a vítima sabia se a amiga, Irene, era
desquitada e “mulher da vida”, diga-se: se relacionava-se sexualmente fora
da condição social do casamento. Era com base em todas essas estratégias
que os juristas deslocavam a condição de vítima para construir o lugar
social de culpada, como uma espécie de encenação, conduzindo as falas das
testemunhas e da vítima de modo que esta última fosse responsabilizada
pelo estupro. Eles forjavam os depoimentos e redefiniam o acontecimento
sexual violento, visando a inocentar a cada um dos envolvidos pelo crime.
Nesse sentido, a defesa colocava em questão “os atributos
morais da vítima. Seu grau de experiência”, identificado e avaliado por
meio da observação das declarações das testemunhas. Todas as versões
do acontecimento do estupro, obtidas por meio dos discursos de cada
personagem, corroboravam para a construção de “verdades fabricadas”.
Como diz Chalhoub, o fundamental em cada história não é “descobrir ‘o
que realmente se passou’, apesar de isso ser possível em alguma medida,
e sim tentar compreender como se produzem e explicam” (CHALHOUB,
1990:22) os discursos dos diferentes sujeitos de poder para cada caso.
288 “Esses significados devem ser buscados nas relações que se repetem
sistematicamente entre as várias versões” (CHALHOUB, 1990:22-23), com
vista a identificarmos os enunciados dos jogos discursivos.
A mesma lei que buscava criminalizar os réus, também encontrava
meios de absolvê-los por meio das arestas do dispositivo legal. Havia uma
separação entre a teoria em torno do cumprimento da lei penal e a prática
de julgamento. Se a lei dizia que em se tratando do crime de estupro, a
palavra da vítima tinha de consistir em prova irrefutável, na prática do
julgamento o testemunho dela era distorcido e reconstituído pela defesa.
Conforme afirma Foucault, a verdade jurídica: “(…) não passa pela
testemunha, mas por uma espécie de jogo, de prova, de desafio lançado por
um adversário a outro. Um lança um desafio, o outro deve aceitar o risco
ou a ele renunciar” (FOUCAULT, 2005:32). Assim, em nome de um saber/
poder estabelecia-se, criava-se e legislava-se em conformidade às regras do
jogo da violência, invalidando a prova acusatória. Todos os gestos da vítima
eram reconstituídos como um indício de desvio de conduta moral, sob uma
grande névoa de testemunhos que encobria e tentava minimizar o grau de
importância do crime.
Era nesses termos que aparecia o corpo das mulheres vítimas
de estupros. Tal como o corpo de Maria do Carmo, um corpo marcado,
mutilado, esquadrinhado, colonizado por uma série de discursos e, ao
mesmo tempo, palco nebuloso no qual se digladiavam médicos e juristas
em busca de desvelar os sinais da violência física. Trata-se da “conversão
do corpo em um resto carne” (SILVA, 2012:187), pois naqueles momentos,
ele perdera a sua identidade, seu nome, em razão do modo como incidiam
os vários discursos que o fabricavam e o ressignificavam, deslocando-o do
lugar de corpo sexual violentado, político e socialmente conhecido como
o corpo de Maria do Carmo, para a noção de corpo objeto, esculpido pelo
fogo do saber jurídico e escancarado ao olhar do deus da ciência médica:
o perito. O corpo estuprado é o “corpo performático”, objeto da violência
por parte daquele/a que o observa. O corpo é assim reduzido por inteiro à
sua aparência visível, película, imagem. Reduzido ao olhar do/a outro/a ou
esquadrinhado. Esse tipo de ação operacionaliza uma discriminação em 289
nome da única forma de se ver, mutilando todas as vontades do/da outro/a.
Esta redução do outro ao outro como objeto do olhar que esquadrinha
demonstra, com efeito, a degradação humana, abrindo espaços para a
reprodução da violência de gênero em seus aspectos mais performáticos:
estupro-prazer-sofrimento-silêncio.

ATUALMENTE, PODE-SE FALAR DE MUDANÇAS?

Nas últimas décadas tem-se percebido a criação de legislação e


ações de organização com vista a sensibilizar um número cada vez maior de
governos e sociedades, objetivando maior adesão à causa (LAGE & NADER,
2012: 286). Presenciamos assim um avanço liderado por vozes feministas,
que anunciam: “o questionamento da situação subalterna e vulnerável à que
as mulheres estavam submetidas foi minando a legitimidade das formas
de violência específicas contra elas” (LAGE & NADER, 2012: 288). Desse
modo, o tema passou a se tornar objeto de investigação e de produções
acadêmicas. Além disso, de acordo com as autoras, se observa-se algumas
sinalizações como a criação do:

Dia Internacional da Não-Violência contra a


Mulher, em 1960, das Delegacias especializadas das
mulheres, em meados dos anos 1980, com destaque
ao atendimento às mulheres vítimas de violência; o
Conselho Nacional de Direitos da Mulher, em 1985;
a Campanha Nacional que trazia a seguinte frase
como alerta aos agressores: “Denuncie a violência
contra a mulher”, resultado do Primeiro Encontro
Nacional das Delegadas, em 1986; ainda neste mesmo
ano, houve a eleição de deputadas constituintes que
atuariam no combate à violência contra as mulheres;
a inclusão do parágrafo 8º do art. 226, ocorrida na
290 Legislação de 1988, ratificando a presença do Estado
quanto à assistência a cada membro das famílias no
que diz respeito à coibição da violência no âmbito
das relações familiares; a Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a violência contra as
mulheres, em 1995; e ainda a criação da Central de
Atendimento à Mulher – Ligue 180, no ano de 2003
(LAGE & NADER, 2012: 290).

Equivale a dizer, conforme Lage e Nader, que embora as mudanças


sejam importantes, há muito a ser feito com relação às novas formas de
assistência social no atendimento a esses casos. Entretanto, até que se
viabilizassem as políticas públicas de assistência social efetivas com vista
aos direitos das mulheres em casos de estupro, no estado da Paraíba, muitas
delas sofreram as mais variadas formas de violência, sejam as marcas de
agressão em seus corpos, sejam as estereotipias morais de suas condutas.
Bastante pertinentes são as palavras de Nietzsche, citadas por Foucault: “em
nossas sociedades contemporâneas, não sabemos mais exatamente o que se
faz quando se pune e o que pode, no fundo, a princípio, justificar a punição”
(FOUCAULT, 2012:286).
É, portanto, nessa linha tênue, entre o controle e certa “tolerância”,
que deve ser compreendidos os processos de estupro na Paraíba, na
segunda metade do século XX. Alguns documentos demonstram a falta
de formalidade e também notória negligência por parte de muitos juízes,
haja vista, os casos de estupros eram seguidos de agressões físicas e
espancamentos, muitos dos quais passavam despercebidos pelos juristas
que pareciam fazer vistas grossas em nome da prática social da resolução
de quantos casos pudessem.
Dos inquéritos e processos de estupro a que tivemos acesso, foi
possível perceber que as alegações finais em favor da absolvição ou da
improcedência das denúncias variavam, desde a dificuldade de encontrar
os acusados, testemunhas, culminando muitas vezes na prescrição do
crime, até os argumentos como estes que destacamos do parecer do juiz 291
Aluízio Ferreira Guerreiro, ao julgar um crime de estupro: “(...) solta a
suposta vítima pela cidade, chegando em casa pela madrugada, demonstra
não ter ela boa conduta, merecer a proteção da lei (...), parecendo que se
entregou ao réu de plena e espontânea vontade, desprezando a virgindade,
que para a maior parte das moças de hoje não passa de um ultrapassado
preconceito”(BRASIL, 1975:39). Observam-se ainda vários casos em que
os juízes julgavam a denúncia improcedente, mesmo com a presença do
laudo que indicava o fator da violência física e sexual, baseado no parecer
da promotoria e no indício de que antes do estupro a moça tinha sido
deflorada. A partir das análises, pode-se perceber como o crime de estupro,
assim como o de sedução, fazia referência à proteção da “honra sexual” da
moça virgem, como expressão jurídica do contrato social entre o Estado
e as famílias que deveriam zelar pelos costumes da época e preservá-los.
Isso demonstra como se constituía a violência de gênero, explicitada nos
discursos dos advogados. Nesses termos, a Justiça continuava a reproduzir
as desigualdades de gênero pelas quais os homens eram vistos como os
detentores da sexualidade, seja de que forma ela fosse praticada.
Com a emergência dos estudos sobre a violência sexual contra
as mulheres desde o final dos anos 1970, muitos dos quais se devem às
inciativas dos movimentos feministas no Brasil e no exterior, sendo um dos
assuntos priorizados pelos pesquisadores que têm interesses específicos na
área de gênero, cada vez mais se observa como o interesse pelo tema tem
se estendido. De modo que abrange diversas perspectivas do conhecimento
e áreas afins, tornando-se instigante e corroborando para a ampliação da
criação de novas leis e instituições que deem mais atenção às reinvindicações
de homens e mulheres inseridos nos casos em voga.
A partir dos anos 1980, observa-se a criação de delegacias para
as mulheres no Brasil, bem como a emergência dos Juizados Especiais
Criminais, em 1990, e a promulgação, em 2006, da Lei Maria da Penha
– Lei nº 11.340 (OLIVEIRA, 2015). Esta última teve o respaldo dos
movimentos sociais em defesa das mulheres, o que possibilitou repensar
292 as várias práticas de violência dentro da perspectiva das relações de gênero.
Ao buscar combater a violência doméstica, a Lei Maria da Penha, nº 11.340,
sancionada no dia 07 de agosto de 2006, corroborou com várias iniciativas
governamentais de direitos das mulheres.
Contudo, apesar dos avanços que a referida lei tem trazido para
as pesquisas atuais, há muito a ser feito para combater a violência sexual
que continua ocorrendo em todo o país. Em março de 2014, o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), órgão do governo federal, estimou
que, a cada ano no Brasil, 0,26% da população sofra violência sexual, o
que significa 527 mil tentativas ou casos de estupro no país (PARA 65%,
2014). Desses, somente 10% são reportados à polícia. Por isso, não há como
contabilizar os casos de estupro que ocorrem no cotidiano das famílias
brasileiras, em que muitas mulheres se omitem por vergonha ou por medo
de serem discriminadas. O IPEA ouviu 3.810 pessoas em 212 munícipios
das grandes regiões do país de ambos os sexos (LEITE, 2014).
No caso de estupro coletivo que analisamos, a vítima foi
responsabilizada pela defesa, em vista da roupa que vestia no momento
do acontecimento. Identificamos essa mesma prática social em que muitas
das menores eram frequentemente apontadas como sendo a motivação do
crime, acusadas de atraírem os acusados de estupro á satisfação da volúpia
e de seus “instintos bestiais”, mesmo afirmando em juízo que a violência
sexual que fora submetida teria sido contra à sua vontade. Como afirma
Lia Zanotta Machado, o estupro tal como representado pela legislação e
jurisprudência brasileira
desliza porosamente entre a ideia de um ato que
deve ser entendido como um crime hediondo contra
a pessoa; a ideia de um ato que é crime contra os
costumes e a ideia de um ato que não é um crime”,
quando visto como a realização do mais banal e
cotidiano dos atos de relações sexuais entre homens
e mulheres – o defrontamento da esperada iniciativa
masculina com uma das respostas femininas possíveis:
“a mulher que diz não para dizer sim” (MACHADO, 293
1998:233).

Ou seja, o imperialismo da sexualidade machista, corroborado


por muitos advogados, busca fabricar e justificar uma sexualidade feminina
passiva, masoquista, inteiramente sujeita às iniciativas e desejos dos homens.
Dizer “não”, mas na verdade, querendo dizer “sim” significa que a violência
sexual não é um ato criminoso, mas um ato de prazer que as mulheres
violentadas inconscientemente o desejam, de forma excitante e deliberada e
o provocam. Em outras palavras, os estupradores são vítimas antes mesmo
de praticarem o ato. Um argumento que tem sido compartilhado por boa
parte dos acusados de estupro, pois basta observar a continuidade da prática
sexual à força nas últimas décadas no Brasil. Assim como nas décadas de
1960 e 1970 era comum a defesa alegar que o estupro decorria do fato de
as mulheres serem deliberadas frente à chamada “vida moderna” e, com
efeito, observa-se como a prática criminosa atravessa o tempo, resultante
de um pensamento que é ressignificado por meio da banalização de que as
vítimas são provocadoras do estupro contra si mesmas e, portanto, devem
ser responsabilizadas junto à Justiça.
O IPEA realizou pesquisa e constatou que 26% das pessoas
concordam que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo
merecem ser atacadas” (LEITE, 2014). Mesmo considerando as margens
de erro dessas pesquisas, a região, a faixa etária, o nível de escolaridade
ou conhecimento sobre o assunto, entre outros, não se pode deixar de
perceber a permanência do enunciado de que os homens não têm como
controlar seus apetites, ou, nas palavras dos promotores e advogados da
Paraíba da segunda metade do século XX, seus “instintos sexuais”. Essa
maneira de pensar parece funcionar como um determinismo sexual que
tem se arrastado de geração em geração. A esse respeito, as estatísticas de
estupro só têm aumentado, as queixas e os processos-crime continuam
sendo amontoados nas prateleiras dos gabinetes, pouco se vendo de
resultados efetivos e positivos contra a prática desse crime. Enquanto isso,
294 as manchetes de jornais do país não deixam de publicar casos de violência
doméstica e sexual contra as mulheres todos os dias.
Em se tratando da Paraíba, em particular, os indicadores
numéricos, associados às estatísticas dos casos de estupro, apontam para a
manutenção do problema histórico de desigualdades nas relações de gênero.
Um caso de estupro coletivo seguido de homicídio, ocorrido na madrugada
do dia 12 de fevereiro de 2012, causou forte repercussão nos jornais do país
e indignação por parte das populações do município de Queimadas, agreste
paraibano, a 130 km da capital João Pessoa. Segundo as investigações da
Polícia Civil e as denúncias do Ministério Público da Paraíba, dez homens
estupraram cinco mulheres durante a comemoração de aniversário de um
dos participantes. Dentre as cinco, duas delas foram assassinadas por terem
reconhecido os agressores. O fator incomum nesse caso específico é que o
estupro foi planejado pelo irmão do aniversariante para este, empenhado
em realizar o desejo de “presentear-lhe com mulheres” (VÍTIMAS, 2015).
Dos dez homens, seis maiores de idade foram condenados pelo crime de
cárcere privado, formação de quadrilha e estupro. O arquiteto do crime
foi sentenciado em 106 anos por estupro, formação de quadrilha, porte
ilegal de armas e corrupção de menores. A Secretaria de Política para
as Mulheres da Presidência da República destacou a importância da
responsabilização dos agressores e assassinos de mulheres em vista do
“processo de conscientização sociocultural e engajamento da sociedade
para o enfrentamento à violência contra as mulheres” (BRANDINO, 2015).
O caso ocorrido no município de Queimadas há quase três anos
traz particularidades que se assemelham com os casos de crimes sexuais
analisados nos processos crime de 1960 e 1970. É indicativo de como ainda
hoje muitos homens em nossa sociedade consideram o sentido da virilidade
um fator social que está para além do respeito à vida. O presente concedido
ao irmão simbolizava a força do “macho viril”. Basta observar que o crime
de estupro não foi praticado em um quarto, entre o aniversariante e as
cinco vítimas, de modo que se preservassem isolados, mas o que estava em
jogo era a autoafirmação da masculinidade, ou a capacidade de praticar
sexo com várias mulheres na presença de outros homens. Assim como nos 295
casos que analisamos, observa-se por meio do estupro coletivo o desejo de
atestar a potência sexual masculina como um requisito inerente à honra
sexual dos homens.
Portanto, problematizar a noção de violência sexual dentro da
perspectiva das relações de gênero possibilitou perceber momentos históricos
distintos, mas que guardam semelhanças no que se refere à banalização da
violência, seja ela empregada nas formas de comportamentos morais que as
mulheres devem ter no meio social, seja nas diferentes posturas machistas
entre homens que persistem em pensar ou agir como se a prática sexual
por meio da força fosse um direito legitimado. Por outro lado, essa forma
de pensar põe em xeque a efetividade de políticas preventivas à violência
sexual, bem como a existência de programas educativos, pois ainda hoje
não se percebem iniciativas por parte do Ministério Público para a criação
de tecnologias políticas de combate e prevenção à violência de gênero.
Questionamos aqui: o que faz um homem pensar que a violência sexual
contra cinco mulheres pode representar um “presente” a ser oferecido a
outro homem, senão o fato de que entre alguns deles persiste ainda a prática
social da desqualificação da vontade e do corpo delas? Ainda hoje, observa-
se como a prática da violência sexual contra as mulheres é amplamente
subestimada e relegada à esfera privada.
De outro modo, observa-se que a violência sexual atinge tanto
as mulheres quanto os homens em nossa sociedade, isso se considerarmos
que tanto um quanto o outro podem ser rés/réus de estupro. De outra
parte, se hesitarmos em considerar o fato de que somente os homens
estupram mulheres e não o inverso, recorreríamos a um destino biológico
amplamente combatido nos estudos de gênero e deveras ultrapassado. A
violência sexual mutila uns e outros, paralisa o exercício de seus desejos
e do prazer em vez de recriá-los, deteriora suas relações, expõe o corpo e,
na maioria dos casos de violência sexual, o corpo feminino aparece como
objeto do olhar público.
Considerada frequentemente como um conflito familiar, a
296 violência sexual não se enquadra no âmbito da intervenção judicial, razão
por que se faz necessária a responsabilização do Estado “para prevenir, punir
agressores e proporcionar às vítimas assistência e reparação” (AMNESTY
INTERNATIONAL, 2006) psicológica. Perguntaríamos então como casos
de estupros não se repetirão em nossa sociedade se, a despeito da chamada
modernidade ou pós-modernidade, o contrato social não sofreu grandes
alterações em termos elitistas? De modo que, se não nos concentramos de
forma viva e efetiva sobre o contrato social e as legislações que reproduzem
uma sistematização de valores inerentemente diferentes entre homens e
mulheres, em particular no quesito sexual, bem como na crítica feminista
de 1960 e 1970, o crime de estupro pode ganhar ares conformistas e
naturalizados. Portanto, que há a necessidade de serem criados programas
e leis que possibilitem mudanças efetivas no tratamento e julgamentos de
casos de estupro. O fato é que homens que violentam sexualmente mulheres
precisam de punição e de tratamento psicológico, pois acreditamos que,
para além da “conscientização”, faz-se necessário assegurar uma efetiva
responsabilização para que casos como o que narramos aqui e também o
estupro coletivo de Queimadas deixem de consistir em uma prática social
naturalizada, senão banalizada em nossa sociedade.

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VÍTIMAS de estupro coletivo são ouvidas durante júri na Paraíba. Portal G1


PB, set. 2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2014/09/
vitimas-de-estupro-coletivo-sao-ouvidas-durante-juri-na-paraiba.html>. Acesso
em: 14 jan. 2015.
300
Leituras do tempo e experiências da vida: os
almanaques do poeta José Costa Leite 1
Geovanni Cabral

O Tempo inventou o Almanack


(Almanaques das Fluminenses, 1889:25)

1.Introdução
Este artigo analisa a importância que o Almanaque, denominado
de Calendário Brasileiro e posteriormente Nordestino vem desempenhando
desde 1960 entre seus leitores, mediante as suas múltiplas “leituras” do
Nordeste, do tempo e da vida. Escrito pelo cordelista José Costa Leite2, tido
como o “Amador de Astrologia e Ciências Ocultas”, o Calendário Nordestino
assim denominado desde 1999, vem há 55 anos orientando seu público-
leitor em feiras, praças e mercados públicos. Descrevendo experiências e
práticas culturais, frutos de seus conhecimentos acerca do tempo, dos astros,
das atividades agrícolas, da medicina popular, dos conselhos e crendices.
O almanaque do Costa Leite é um texto diversificado e fragmentado em 301
sua constituição gráfica, editado anualmente com grande circulação pelos
Estados do Brasil e sua leitura transita entre o campo da informação, lazer
e educação.

1 Este texto é parte da pesquisa que venho desenvolvendo junto ao curso de Doutorado
em História da UFPE acerca da produção artística do poeta José Costa Leite, tendo como
orientador o Prof. Dr. Flávio Weinstein Teixeira.
2 José Costa Leite, poeta de cordel, xilógrafo e almanaqueiro, natural da cidade de Sapé -PB,
reside em Condado, Zona da Mata Norte de Pernambuco. Nascido em 27/07/1927, vem
desde a década de 1950 recitando versos para compor seus folhetos de cordel, ilustrando
as capas de seus folhetos e publicando anualmente um almanaque que serve de guia e
orientação ao homem do campo. Desde 2006, foi registrado como Patrimônio Vivo da
Cultura de Pernambucana.
2.Relatos da Pesquisa

O trabalho do historiador é algo fascinante, rico e encantador. À


medida que se debruça sobre os arquivos, livros e documentos, encontra
sempre algo além de sua pesquisa, de seu foco primordial. Ao trilhar a
trajetória artística do poeta José Costa Leite, fomos exultados com uma
multiplicidade de fontes que, ao invés de delimitar os espaços temporais,
facilitando o desenrolar da pesquisa, deixava-se cada vez mais ampla. Diria
que o tempo preterido para determinado estudo e seus recortes tornava-
se elástico, entrecruzava-se em fontes diversas, que iam surgindo e nos
deixando cada vez mais envolvidos com a diversidade textual, inseridos em
temporalidades distintas.
Uma dessas fontes a que nos reportamos e que faz parte dessa
análise são os almanaques de cordel, que vêm somar à obra desse artista com
seus folhetos e xilogravuras, uma marca no tocante à produção, vendagem
e circulação. Os almanaques despontam como um texto de orientação,
de guia e sabedoria associados a práticas culturais e experiências de vida.
Podemos constatar a importância que esses impressos exerceram ao longo
de sua existência, nas feiras livres, nas praças, nas maletas de revendedores,
302 nas leituras em voz alta, na constituição de saberes diversos contidos em suas
páginas. Os almanaques nos inserem em uma dimensão historiográfica que
nos possibilita perceber como a visualidade, materialidade e textualidade
desses livros são fatores decisivos para sua circulação e apropriação.
No primeiro momento, fizemos o levantamento dos almanaques
produzidos pelo poeta José Costa Leite, que teve o ano de 1960 como marco
inicial de sua produção. Catalogamos e digitalizamos vários almanaques
referentes aos anos compreendidos entre 1960 a 2014. Outros foram
adquiridos junto ao autor e à editora Coqueiro-PE, com a qual publica
seus trabalhos há mais de vinte anos. Ao todo, foram impressos, ao longo
desses anos, 55 calendários que ocuparam diferentes espaços de leituras e
orientações, atingindo um público-leitor composto, em sua grande maioria,
por agricultores e plantadores de um modo geral. Inclusive, o almanaque
com previsões para o ano de 2015 já foi escrito pelo autor.
Nessa “caça” aos almanaques, visitamos a Fundação Casa Rui
Barbosa, no Rio de Janeiro, a Biblioteca Átila de Almeida, em Campina
Grande, a Fundação Joaquim Nabuco, em Recife e o acervo particular do
artista. Essas Instituições guardam verdadeiros tesouros ligados à produção
popular. Além desses almanaques, outros foram registrados à medida em
que nos deparávamos com a pesquisa. No segundo momento, escolhemos
alguns almanaques do Costa Leite visando analisar e problematizar algumas
especificidades e singularidades da trajetória desse impresso em conexão
com as mudanças tipográficas e sua organização textual.
Para tal proposta, escolhemos o Calendário Brasileiro 1960, em
sua primeira edição, o Calendário Brasileiro 1974, o qual completava 15
anos de publicação, o Calendário Brasileiro 1979, que completava 20 anos, o
Calendário Nordestino 1999, completando 40 anos e o Calendário Nordestino
para o ano 2009, completando 50 anos de circulação e publicação. Os anos
que determinaram a escolha desses almanaques não são aleatórios, eles
indicam momentos de transição, representados por mudanças tipográficas,
de tamanhos, de layout das capas e organização textual como exigência
do autor e do público consumidor. Por último realizamos uma entrevista
com o poeta, em sua residência na cidade de Condado-PE, em março de
2013, a qual nos apontou indícios escriturísticos da escrita e publicação de 303
almanaques.

3. O Almanach tem uma História3

A epigrafe acima “O Almanach tem uma história (PAIVA,


1876:165)”, está relacionada com as práticas culturais, com os registros do
tempo, da forma como cada sociedade percebia os astros, a religião e sua
relação com o cotidiano das pessoas. Nas palavras de Machado de Assis,
em um belíssimo texto intitulado Como se inventaram os almanaques,

3 PAIVA, Mendes F. Almanach Litterario de São Paulo ano 1876. 1ª edição. In: REZENDE,
Carlos Penteado de. Almanaque Literário de São Paulo. Nova Edição. Reedição Fac-similar
dos 8 volumes do Almanaque Literário, 1982, p. 165.
publicado no Almanaque das Fluminenses para o ano de 1889 (Fig. 01), ele
menciona que “O tempo inventou o almanaque; compôs um simples livro,
seco, sem margens, sem nada; tão-somente os dias, as semanas, os meses e
os anos. ... (ASSIS, 1889:25)” e partindo desse princípio podemos perceber
que de fato sua circulação desde a Europa até o Brasil reativou memórias,
linguagens e saberes que se aglutinavam em uma enciclopédia marcada por
conselhos, experiências da vida, guias e leituras do tempo.

304

Figura 01 – Capa do Almanaque das Fluminenses para o ano de 1889.


(Superior da imagem)
Fonte: Acervo da Fundação Casa Rui Barbosa, Rio de Janeiro.
Um verbete que apresenta controvérsias quanto à sua etimologia,
a palavra Almanaque é de origem árabe Al-manakh que significa: a conta.
Por sua vez, os almanaques antigos traziam em suas páginas a conta das
noites, dos dias, das estações do ano, dos movimentos da lua, etc. Este termo
almaná significava “calendário ou folhinha” estando associado ao termo
árabe maná, que significa “contar, numerar, definir, repartir”. No Dicionário
Etimológico da Língua Portuguesa de Antenor Nascente (Apud NOVA,
1996), o étimo é definido como sendo o lugar onde o cavalo se ajoelha.
Acredita-se que nesse local os árabes paravam para contar mercadorias,
conversarem entre si, trocar informações, sobre as plantações e sobre o
tempo (NOVA, 1996: 17-18; DUTRA, 1999: 481).
O que podemos perceber é que o termo chegou ao Ocidente
e está articulado a publicações em torno de calendário, geralmente de
periodicidade anual, computando e contando os dias, os anos, os meses,
oferecendo dicas medicinais, e previsões do tempo (DUTRA, 2005: 62).
Maria Nogueira em seu artigo A sagração do tempo, menciona a seguinte
explicação para o almanaque:

Podemos definir o gênero Almanaque como


um vasto mural dos conhecimentos produzidos 305
sob a égide de uma universalidade cultural-
aquela que combina natureza e cultura, real
e imaginário, razão e desrazão. Trata-se de
uma tentativa de resumo de explicação total
da vida: uma resistência à fragmentação do
conhecimento. Um livro-holograma, princípio
caro ao pensamento Complexo, na medida
que contém previsões, sonhos, receituários,
horóscopo, poesia, conselhos, informações e
orientações em geral (NOGUEIRA, 2011:112).

É um livro que traz informações úteis, anedotas, curiosidades,


matéria humorística e recreativa, um guia do tempo. Reúne em seu bojo
um texto fluido, capaz de prender o leitor nas suas andanças pelo mundo
do conhecimento e práticas do cotidiano. Ensina a plantar, a rezar, entre
outras práticas corriqueiras, constituindo-se um guia prático e útil à
sociedade. Nele, o tempo aparece fracionado, fragmentado, refletindo o
contexto social no qual está inserido. Para Jerusa Pires Ferreira (2001:20),
“a concepção de almanaques cobre e recupera práticas e saberes dos mais
antigos aos mais imediatos”. No Almanaque Enciclopédico de 1896, Eça de
Queirós define bem o almanaque como um livro disciplinar ordenado pelo
tempo, como é possível observar a seguir:

O almanach com effeito é o livro disciplinar que


colloca os marcos, traça as linhas dentro dos quaes,
circula com precisão toda nossa vida social. O tempo,
essa impressão mysteriosa que chamamos Tempo, é
para o homem como uma planície, sem forma, sem
caminho, sem fim, sem luz onde ele transita, guiado
pelo Almanach, que o segura pelas mãos, os vae
puxando e a cada passo murmurando:
_ “Aqui estás em Setembro!... Além finda a semana!...
306 Em breve alcança o 28... Hojé é sábbado...” (QUEIRÓS,
1896:XXII).

Por sua vez, corroborando com as ideias de Eça de Queirós,


Rosilene Alves de Melo (2010: 113) ressalta a importância do almanaque
junto à produção de folhetos de cordel, uma vez que ambos são impressos
para quem vive no campo ou nas grandes cidades. Em seus estudos, a
pesquisadora assim define almanaque: “é uma publicação anual, apresenta
previsões meteorológicas, as épocas mais propícias ao plantio e à colheita,
informações sobre doenças e uso de plantas medicinais. Traz sempre o
calendário, datas comemorativas, orações, os santos do dia, eclipses e
anedotas.”
A produção e propagação de almanaques remontam à Europa dos
séculos XVI e XVII, principalmente na França, onde eram produzidos
almanaques voltados para a organização do calendário com marcações das
festas religiosas, das medidas do tempo, das movimentações do céu e da
lua. De acordo com Jacques Le Goff (2003:518), “o primeiro almanaque
foi impresso na Alemanha em 1455; em 1464, com um almanaque de
barbeiros, começam a publicar-se os almanaques das corporações; em 1471
aparece o almanaque anual”. Em suas observações, destaca características:

Ilustrado com sinos, imagens, o atamanque dirige-se


aos analfabetos e a quem lê pouco. Reúne e oferece
um saber para todos: astronômico, com os eclipses
e as fases da Lua; religioso e social, com festas e
especialmente as festas dos santos, que dão lugar
aos aniversários no seio das famílias; científico e
técnico, com conselhos sobre os trabalhos agrícolas,
a medicina, a higiene. Histórico, com as cronologias,
os grandes personagens, os acontecimentos históricos
ou anedóticos; utilitário, com a indicação das feiras,
das chegadas e partidas dos correios; com anedotas,
fábulas, contos; e finalmente, astrológico (LE GOFF,
2003: 518). 307

Assim, firmam-se como livros de caráter enciclopédico, estimulando


a curiosidade, a propaganda e a instrução. Em estudo realizado em 1969,
Geneviève Bollème menciona que o “Almanaque é um manual prático de
salva-vidas, método para aprender a viver, a preservar a vida, a melhor
viver” e chama atenção para o fato de que essa literatura também tem
uma dimensão política em sua escrita, não se trata de textos “ingênuos”
apenas para orientar “o ato de escrever, esclareçamo-lo, é momento forte
de uma tensão, pois escrever consiste em medir-se, em confrontar-se com
uma língua estabelecida a fim de nela assumir um lugar com suas próprias
palavras (Apud MELO:2010:114-115)”. Nas palavras de Martín-Barbero
(2009:156-157), o almanaque “é o lugar de misturas e entrecruzamentos
especiais, a primeira enciclopédica popular...”
Aqui no Brasil, por volta do século XVIII, já vamos encontrar
publicações desses livros, como por exemplo, o Almanaque Histórico do
Rio de Janeiro, tido como um dos pioneiros do gênero, segundo Rosilene
Melo (2010, p.116). Outros vão sendo publicados e especializando-se em
assuntos diversos ligados ao setor mercantil, ao público de teatro e ao
público feminino; como exemplos, podemos mencionar alguns destes
livros do acervo da Fundação Casa Rui Barbosa, a saber; Almanaque
Administrativo, Mercantil e Industrial da Província de São Paulo (1857),
Almanaque Brasileiro Garnier (1903), Almanaque das Fluminenses (1889),
dedicado às senhoras brasileiras, Almanaque Correio do Povo (1916),
Almanaque do Paiz (1910), Almanaque da Platéia (1900), Almanaque
Popular Brasileiro (1903), Almanaque Bertrand (1903), entre outros.
Para Eliana Dutra, em Rebeldes Literários da República, os
almanaques, mudam, assumem novos significados, contextos e impressões.
Associados à procura e consumo de seu público-leitor, ao crescimento
urbano e sua dinâmica social, os almanaques assumem sua singularidade
em cada editoração, como afirma a autora:

“vão se transmutando em diferentes modelos e


308 formas: são almanaques agrícolas, de saúde, literários,
históricos, enciclopédicos, de família, de recreação,
informativos, de cidades, administrativos, de livraria,
às vezes guias urbanos, sempre com espaço reservado
aos calendários, via de regra com os santos do dia, e ao
horóscopo, sobrevivência dos grandes prognósticos
astrológicos (DUTRA, 2005:16-17).

Outro tipo de almanaque que obteve bastante sucesso e circulação


em todo o Brasil mediante suas orientações no campo da saúde, educação
sanitária e publicidade foram os almanaques farmacêuticos, como A Saúde
da Mulher (Fig.02), Biotônico Fontoura (Fig.03), Almanaque Capivarol e o
Almanaque Sadol. Tais livros serviram de fontes documentais nas pesquisas
de Margareth Brandini Park em Histórias e Leituras de Almanaques
Farmacêuticos (1999) e Vera Casa Nova, com Lições de Almanaques: um
estudo semiótico (1996), obras de referência no gênero.

309

Figura 02 – Capa do Almanaque da Mulher para o ano de 1953.


Fonte: Disponível em https://www.google.com.br/. Acesso em 03 de março de 2015.
Figura 03 – Capa do Almanaque Biotonico Fontoura para o ano de 1943.
Fonte: Disponível em https://www.google.com.br/. Acesso em 03 de março de 2015.

310

Figura 04 – Capa do Almanaque Capivarol para o ano de 1950.


Fonte: Disponível em https://www.google.com.br/. Acesso em 03 de março de 2015.
Para nossos estudos, merecem destaque os Almanaques Sertanejos,
aqueles que são vendidos nas feiras livres, nas praças e mercados, expostos
em balaios no chão, pendurados em barbantes e/ou nas bancadas,
misturados com outros livros e folhetos de cordel. Escritos e editados
por poetas populares, esse tipo de livro obteve grande destaque por volta
dos anos 1940 a 1960 no Nordeste do Brasil. São destinados ao público
em geral, no entanto, não podemos ignorar o acentuado quantitativo
de temas de interesse de trabalhadores da zona rural, em especial
agricultores e plantadores, os quais recorrem a esse tipo de publicação
buscando orientações como o melhor dia para plantar e colher. São
também denominados Folhinha de Inverno, por circular nesse período, ou
Almanaque de Cordel, por apresentar aspectos similares a esses impressos.
Segundo José Alves Sobrinho (2003:195-196), o primeiro
almanaque-folhinha data de 1924, é de autoria de José Honorato de Souza.
Anos depois, surgiu o Almanaque Pernambuco de João Ferreira Lima, na
cidade de Bezerros, o qual circulou por 38 anos. Também foram editados os
almanaques de Manoel Luiz dos Santos, Almanaque do Nordeste Brasileiro
(1952), em São José do Egito-PE; o Almanaque do Nordeste (1953), de
Vicente Vitorino de Melo, o Almanaque Leão do Norte (1953), de José
Joavelim Silva, ambos em Caruaru-PE, o Almanaque Calendário Brasileiro 311
(1960), de José Costa Leite, em Condado-PE e o Almanaque do Juízo Final
(1960), de Manoel Caboclo e Silva, no Ceará.
O almanaque de cordel é um texto com múltiplos recortes e
sentidos que se entrelaçam entre significados, produção e transformação.
Ao escrever esse texto o poeta demarca linhas temporais, recorta o
tempo em fatias, especificando suas delimitações, objetivando informar e
educar o homem diante das previsões do futuro (BENJAMIM, 2011:131).
Percorrer as páginas de um almanaque é caminhar no tempo diante de suas
sinalizações e indícios. Nas palavras de Eliana Dutra (1999:483) “é acima
de tudo um objeto de transmissão de experiência, práticas e verdades, um
texto literário que atrela em suas páginas distração, orientação, manipula o
tempo em favor do homem e suas ações.”
4. Os Almanaques de José Costa Leite

Ao pesquisar os almanaques de José Costa Leite, nos deparamos


com vários prognósticos acerca das experiências e “leituras do tempo”
que estes estabelecem com suas profecias e intimidades com o homem e
a natureza. Sua escrita denota mistério, conduz os leitores a interpretações
calculadas de acordo com os astros, os planetas, as orientações celestes.
O poeta conheceu esses livros mediante suas andanças pelas feiras do
Nordeste, onde se deparou com os Almanaques Farmacêuticos, e com
os almanaques de Manuel Luiz dos Santos (Fig.05), Vicente Vitorino de
Melo (Fig.06) e João Ferreira de Lima, o qual passou a revender junto com
folhetos, miudezas, defumadores e plantas medicinais. Sobre esse contato
inicial com tais livros, menciona o poeta no Calendário Nordestino para o
ano de 2009:
Na minha mocidade, conheci vários tipos deles,
Almanaque do Capivarol, Biotônico Fontoura, A
Saúde da Mulher, A Cabeça do Leão e o Almanaque
Sadol que até agora recente, circulava. Conheci e
revendi o Almanaque do Nordeste de Vicente Vitorino.
312 O Nordeste Brasileiro de Manoel Luiz dos Santos, que
além do meu Almanaque e o de Vicente Vitorino, eu o
revendia também, O Juízo do Ano de Manoel Caboclo
e Silva (CALENDÁRIO NORDESTINO; 2009: 2).
Figura 05 – Capa do Almanaque O Nordeste Brasileiro para o ano de 1977.
Fonte: Acervo Maria Alice Amorim. Disponível em http://www.cibertecadecordel.com.br/.
Acesso em 03 de março de 2015.

313

Figura 06 – Capa do Almanaque do Nordeste para o ano de 1985.


Fonte: Acervo Maria Alice Amorim. Disponível em http://www.cibertecadecordel.com.br/.
Acesso em 03 de março de 2015.
Além desses livros, teve acesso ainda às publicações portuguesas do
Almanaque Bertrand (Fig.07), Almanaque das Lembranças e do Lunário
Perpétuo (Fig.08). Este último, tido como uma espécie de bíblia para os
“profetas do cordel”, um guia na sistematização do tempo e da vida (RIOS,
2003:80). Escrito por Jerónimo Cortéz, publicado em Valência em 1594 e
reeditados várias vezes ao longo de anos, este livro surgiu na Europa em uma
época em que estavam sendo barateadas as publicações populares mediante
a invenção da imprensa. Em função de sua popularização, passou a ser
utilizado por agricultores, por conter orientações de plantações e colheitas,
mas também por curiosos dos astros, signos e estrelas. Foi editado em
Portugal em 1703, aqui no Brasil foi o livro mais lido no Nordeste brasileiro
e bastante apreciado no período colonial (PRIORI, 1997:299).

314

Figura 07 – Capas do Almanaque Bertrand para o ano de 1907 e 1903.


Fonte: Disponível em https://www.google.com.br/. Acesso em 03 de março de 2015.
Figura 08: a – Capa do frontispício do Lunário Perpértuo da edição espanhola de 1820.

315

Figura 08: b – Capa do frontispício do Lunário Perpértuo da edição portuguesa de 1857.


Disponível em http://espacoastrologico.org/almanaques-astrologicos/. Acesso em 03 de
maio de 2015.
O contato com esses livros, profecias e leituras fez com que Seu
Costa Leite passasse a produzir o seu próprio almanaque. Iniciando seus
escritos em 1950, publicando por dois anos almanaques versados, segundo
informações contidas no almanaque para o ano de 2009 (CALENDÁRIO
NORDESTINO: 2009:2). Mas, foi apenas no ano de 1959, que Seu Costa
Leite, com experiência, habilidade e objetivo, somados à vontade de “vender
e lucrar”, despontou com a publicação do Calendário Brasileiro, impresso
na Tipografia A Folha (ITABAIANA HOJE, 2000:06) estabelecendo sua
conversa com o tempo e a natureza, com grande aceitação nas feiras por
onde circulava. À medida que vendia seus folhetos e romances, apresentava
seu almanaque e procurava a cada ano aperfeiçoá-lo. De 1960 a 2015,
mantém uma produção relevante, com inúmeras tiragens e pedidos,
ocupando lugar de destaque entre as demais publicações.
Com relação ao nome de seu almanaque, Seu Costa Leite, no
Calendário Nordestino para o ano de 1999, explica para o povo as mudanças
que ocorreram ao longo dos anos em que publicou seu almanaque.
Denominou primeiro de Calendário Brasileiro, depois de Almanaque do
Padre Cícero e por último Calendário Nordestino. Ressalta que a escolha do
nome Almanaque do Padre Cícero não foi bem aceito nas feiras, o que fez
316 mudar ano depois (ALMEIDA, 1981:53). Destaca, também, o fato de que
em 1998, por motivos diversos, o almanaque não circulou. Em entrevista
concedida em 20 de março de 20134, o autor justifica o hiato explicando-o
da seguinte forma: “não publiquei porque estava desgostoso e não estava
tendo saída, eu pensei em não publicar, mas no ano seguinte publiquei”.
Complementa ainda:
Em 1959, este almanaque foi escrito para o ano de
1960, o seu primeiro número. De 1960 até 1974 foi
publicado com o nome de Calendário Brasileiro. Em
1975 por solicitação de pessoas amigas, ele saiu com o
nome de Almanaque do Padre Cícero, onde notei que

4 Entrevista com José Costa Leite concedida ao Prof. Geovanni Cabral em sua residência em
Condado-PE, no dia 20 de março de 2013.
muita gente achou estranho, isto é, fiz a vontade de
alguns e o desagrado da maioria. De 1976 até 1997, ele
continuou a sair com o nome de Calendário Brasileiro.
Em, 1998, por motivos diversos o almanaque não
circulou. E como o almanaque é brasileiro e seus
prognósticos são feitos para o Nordeste, a partir
deste número ele será publicado com o nome de
CALENDÁRIO NORDESTINO (CALENDÁRIO
NORDESTINO, 1999: 2). (Grifo do autor)

Analisando os almanaques de José Costa Leite, detectamos algumas


características recorrentes, as quais são responsáveis pela construção
identitária das obras. De uma forma geral, eles apresentam na capa
principal uma foto do autor, um acróstico utilizando o nome do calendário,
indicações do conteúdo e desenhos, sejam do leão, representando o signo
de seu Costa Leite, ou elementos do zodíaco. Medindo geralmente entre 12
x 16,5, 14,5 x 18,5 e 23,5x16, com número de páginas que variam entre 16 a
20. Na contracapa, encontra-se a relação dos distribuidores que negociam
com o poeta a venda de seus exemplares pelo Brasil. Temos ainda alguns
almanaques que trazem oração do Padre Cícero ou dados biográficos em 317
sua contracapa. Percebemos que durante esses 55 anos de existência, a
capa e o miolo passaram por diversas modificações no tamanho, no design
gráfico e no conteúdo, a pedido do autor. Tais mudanças permitiram-lhe
aprimorar o texto, aumentar o tamanho da letra, facilitando a leitura, além,
claro, de deixá-lo mais atrativo para seu público-leitor (ALMEIDA, 1981:
53). Uma curiosidade em relação aos almanaques de Seu Costa Leite é que
nos primeiros anos vinha expresso na capa o título “O Rei dos Almanaques”,
sendo depois substituído pela expressão “O Campeão do Nordeste”, fruto
de sua aceitação e vendagem.
Para confeccionar um almanaque, Costa Leite descreve no
Calendário Nordestino para o ano de 2009 (LEITE, 2009:02), que “é
preciso além de ter o dom, a prática e os livros; Lunário Perpétuo, Tarô
Advinhatório, Astrologia Prática e as Plantas Curam”. Destes, o Lunário
Perpétuo é o principal, a matriz orientadora para delimitar e controlar o
tempo, sua linguagem e formato permitem ao poeta caminhar por entre
temporalidades e interpretações distintas da natureza. Mas outras leituras
fazem parte da composição textual, como acontece com O Almanaque do
Pensamento, em que são utilizadas frases célebres, de efeito moral, que estão
inseridas em outros almanaques e livros de ervas medicinais. De posse
dessas fontes, com sua experiência de homem do campo, já que trabalhou
muitos anos na lavoura da cana-de-açúcar, batata e inhame (CABRAL:
2013:82), observando a natureza e seu movimento, compõe seu texto e
articula seus prognósticos e suas previsões.
Para elaborar seu almanaque, Seu Costa Leite estabelece algumas
etapas, as quais são ordenadas da seguinte forma: primeiro escreve em
papel pautado, buscando equilíbrio entre a escrita e o gosto popular. O
poeta conhece bem o universo das feiras, capta das pessoas o que estão
gostando ou não, nesses impressos e consegue com isso aprimorar sua
confecção. Depois distribui os diversos textos ao longo da folha, de forma
a dar um sentido diante dos recortes temporais dos anos, meses e dias. Em
seguida, com o material pronto, leva para a tipografia ou editora, com todas
318 as orientações possíveis, e aguarda a impressão para, enfim, propagar entre
seus distribuidores e vendê-los nas feiras. Suas previsões e “leituras do
tempo” apresentam, segundo ele, a marca de 70% a 80% de acertos.
O primeiro almanaque de Costa Leite foi o Calendário Brasileiro
para 1960 (Fig.09), como já mencionamos anteriormente. Medindo 12 x
16,5, com 16 páginas, traz em sua capa uma espécie de sumário, chamado a
atenção para o conteúdo do livro; Em suas páginas encontram-se profecias,
experiências populares, fases da lua, dias bons para fazer plantações,
prognósticos do ano, flora brasileira, eclipse, tábua lunar, previsão do
tempo, astrologia, gêneros alimentícios, horóscopos para o povo, guia
prático e mais um mundo de novidades. Na capa, é possível visualizar
algumas convenções recorrentes, marcas do autor; no lado direito, um
desenho de um leão representando o signo do autor, abaixo um acróstico
versado com o nome do calendário. No lado esquerdo, uma foto de seu
Costa bem jovem e logo abaixo o preço, estabelecido em CR$ 20,00 (vinte
cruzeiros). Neste calendário, o autor se proclama o “Rei dos Almanaques”,
e se declara “Armador de Astrologia e experiências populares”.

319

Figura 09 – Capa do Almanaque Calendário Brasileiro para o ano de 1960.


Fonte: Acervo Fundação Casa Rui Barbosa, Rio de Janeiro.

No tocante ao conteúdo, é coerente com o sumário na distribuição


dos temas, mantendo o foco em dois pontos básicos: orientações aos
agricultores e orientações pelos astros e estrelas, elementos do Zodíaco.
Chama atenção ainda um prefácio no qual o autor justifica a elaboração
do seu livro dizendo que este veio para ajudar e orientar e não atrapalhar,
como comprovamos a seguir:
Prezados leitores! Vos apresento pela primeira vez,
o Calendário Nordestino, para 1960, para dirigir e
instruir aos agricultores, lavradores e criadores. É a
primeira vez que ele surge, mas no entanto será, o seu
amigo inseparável, seu amigo certo nas horas incertas.
Não vá confundir este, como muitos que existem por
aí, este é para vos ajudar e orientar, ao passo que
os outros, são para vos atrapalhar ou desorientar.
Quem compara e confere escolhe o melhor, quem
conferir este com os outros, escolhe este, a verdade
pura estampada em suas páginas, e quem faz ele
preferido por todos! Só compra o bom quem conhece!
(CALENDÁRIO BRASILEIRO, 1960:1). (Foi mantida
a escrita como se encontra no original)

Em 1972, conforme já mencionado, é publicado o Almanaque do


Padre Cícero (Fig. 10), o qual não obteve tanto sucesso em suas vendagens.
Cabe destacar que além deste livro existiam outros em circulação nas
feiras, os quais representavam uma expressiva concorrência. Diferente dos
320 demais livros editados por Seu Costa Leite, sua capa veio com a imagem
do Padre Cícero no canto da página no lado esquerdo, além de desenhos
representando astros, estrelas e horóscopos. Na parte superior, está o nome
do autor e na inferior a expressão “Um verdadeiro guia para os agricultores
e criadores de todo o Nordeste do Brasil”; ele já toma para si a expressão “um
verdadeiro guia”, reforçando a ideia de que outros existem, mas apenas esse
expressa a verdade. Na contracapa, encontra-se o nome dos distribuidores
em Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, bem como a indicação
das feiras que o poeta percorre toda semana, como a Feira de Vicência,
Itaquitinga, Pedras de Fogo, Timbaúba e Itabaiana, caso alguém desejasse
adquirir algum exemplar (LEITE, 1972: 24).
321
Figura 10 – Capa do Almanaque do Padre Cícero para o ano de 1975.
Fonte: Acervo Maria Alice Amorim. Disponível em http://www.cibertecadecordel.com.br/.
Acesso em 03 de março 2015.

Os almanaques Calendário Brasileiro para o ano de 1974 (Fig.11), e


Calendário Brasileiro para 1979 (Fig. 12), ambos completando 15 e 20 anos
de publicação, trazem algumas modificações, principalmente no tocante ao
aspecto a visual de suas capas. Do lado direito o leão, que representa o signo
do autor, está mais robusto, com uma juba bem expressiva. Logo abaixo, o
acróstico com o nome do almanaque versado se mantém. Do lado esquerdo,
Seu Costa Leite muda a fotografia, mas permanece o índice indicativo de
seu conteúdo. Uma mudança registrada nesses anos de publicação foi
que quando iniciou, ele se autodenominava “Armador de Astrologia e
Experiências Populares”; nos novos exemplares, a expressão foi substituída
por “Armador de Astrologia e Ciências Ocultas”. O novo título expressa uma
maior sofisticação diante de suas análises. São mantidos na parte inferior os
mesmos dizeres do Almanaque do Padre Cícero “Um verdadeiro guia para
os agricultores e criadores de todo o Nordeste do Brasil”.

322

Figura 11 – Capa do Almanaque Calendário Brasileiro para o ano de 1974.


Fonte: Acervo Fundação Casa Rui Barbosa, Rio de Janeiro.
323

Figura 12 – Capa do Almanaque Calendário Brasileiro para o ano de 1979.


Fonte: Acervo Fundação Casa Rui Barbosa, Rio de Janeiro.

Em sua contracapa ambos, vêm com a relação dos distribuidores


e agenciadores que compram e revendem em suas cidades e estados. Um
dado curioso no Calendário de 1979 são dois anúncios na parte inferior: em
um deles, o autor diz que precisa de revendedores para os Estados do Ceará,
Bahia e Alagoas e no outro informa que alguns nomes de revendedores
foram retirados da lista por falta de pagamento. Interessante perceber
que em torno dessas publicações existia toda uma rede de negociações e
agenciadores, os quais compravam a Seu Costa Leite, pagando à vista, ou
pegavam para pagar depois, dificultando os ganhos do poeta.
No que se refere ao conteúdo, alguns textos passaram por
modificações. Como exemplo, em 1960, o autor realiza os prognósticos do
ano, iniciando com o título “A Experiência do ano de 1960”, já nos anos de
1974 e 1979, essa descrição passou a se chamar “O Juízo do Ano”. A cada
ano, surgem novos conselhos, dicas de plantas medicinais e orientações
para plantar em cima e embaixo da terra tomando como ponto de partida
a movimentação da terra e os movimentos da lua. A forma de lidar com o
tempo o torna um “profeta” que acumula experiência. Ler os indícios da
natureza, se vai chover, fazer muito sol, se o milho vai florar, se o tempo será
bom para a colheita da manga ou do caju. O almanaque sertanejo percorre
esses caminhos, o que o distingue de outras literaturas do gênero.
Alguns anos se passaram. Em 1999 e 2009, o Calendário Nordestino
completava 40 e 50, respectivamente. Costa Leite, nesses volumes, alterou
nomes, páginas, desenho na capa, introduziu novos textos, poesias,
histórias, mas permaneceu com suas orientações e instruções para o
homem do campo, cumprindo, dessa forma, o que ele prometeu no prefácio
do almanaque para o ano de 1960. A diagramação e o tamanho das letras
324 ganharam novas proporções, os textos foram melhores distribuídos ao
longo da folha.
Com a publicação do almanaque Calendário Nordestino 1999 (Fig.
13) e o Calendário Nordestino 2009 (Fig.14), Costa Leite procurou manter
alguns elementos que já faziam parte de outras edições. Permaneceu a
denominação de “Amador de Astrologia e Ciências Ocultas”, o termo “O
Campeão do Nordeste”, o leão o qual representa seu signo, uma foto que
o identifica como autor e proprietário dos direitos autorais e o acróstico
versado, fazendo alusão aos amigos almanaqueiros Manoel Luiz, Vicente
Vitorino e João Ferreira de Lima. No exemplar de 1999, o autor chama a
atenção do leitor para o fato de que o seu almanaque tem tudo que uma
boa obra dessa natureza precisa ter em seu conteúdo “O segredo das tabelas
Místicas do seu Signo, para ganhar na roleta, loteria e jogo do bicho. A
tabela da Sorte respondendo as perguntas que você tem feito e ninguém
lhe respondeu ainda!” (CALENDÁRIO NORDESTINO, 1999:1). Essa
chamada publicitária é uma forma de o autor mostrar que seu almanaque,
apesar de anos de publicação mantém a mesma qualidade.

325

Figura 13 – Capa do Almanaque Calendário Brasileiro para o ano de 1999.


Fonte: Acervo Geovanni Cabral.
326

Figura 14 - Capa do Almanaque Calendário Brasileiro para o ano de 1999.


Fonte: Acervo Geovanni Cabral.

A capa do almanaque para o ano de 2009 chega às bancas com


uma modificação bastante interessante: o autor, além de exibir o leão, traz
os desenhos representativos dos signos do zodíaco distribuídos em uma
mandala (círculo) com sua foto ao centro. Essa apresentação vem desde
o ano de 2001, muito semelhante às capas dos almanaques de Vicente
Vitorino de Melo (Fig.15) e Manoel Cabloco e Silva. Verifica-se em outros
almanaques de Seu Costa Leite, como por exemplo, do ano de 2001
(Fig.16) que esta mandala ocupa praticamente toda a capa principal e o
acróstico passa para a página seguinte, uma estratégia de venda para atrair
o consumidor.

327

Figura 15 – Capa do Almanaque do Nordeste para o ano de 2005.


Fonte: Acervo Maria Alice Amorim. Disponível em http://www.cibertecadecordel.com.br/.
Acesso em 03 de março 2015.
328

Figura 16 – Capa do Almanaque Nordestino para o ano 2001.


Fonte: Acervo Maria Alice Amorim. Disponível em http://www.cibertecadecordel.com.br/.
Acesso em 03 de março 2015.

Todavia, as mudanças no tocante à diagramação, conteúdos,


visualidade e materialidade fizeram deste almanaque sucesso de público
e vendagem. Espalhados pelo Nordeste e Sudeste do Brasil, este impresso
vem cumprindo a sua função de guiar e orientar, seja o homem do campo
ou da cidade. Ele identifica a relação do homem com os indícios deixados
pela natureza, aprisiona o tempo em datas, calendários e festas. José Costa
Leite usa de habilidade para escrever seu almanaque, brinca com o tempo
nas páginas do Lunário Perpétuo, é um amador no campo das ciências
ocultas. Ao indicar seus prognósticos e ações, dita regras e se mantém
como “Campeão do Nordeste”.

Referências Bibliográficas

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Mestrado em Antropologia Cultural. Recife, Universidade Federal de Pernambuco,
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_______. Calendário Nordestino para o ano de 2001. Condado, PE, 1973. Acervo
Maria Alice Amorim

_______. Calendário Nordestino para o ano de 2009. (50 anos de publicação).


Condado, PE, Editora Coqueiro, 2008. Acervo Geovanni Cabral.

_______. Calendário Nordestino para o ano de 2014. Condado, PE, Editora


Coqueiro, 2008. Acervo Geovanni Cabral.

Endereços Eletrônicos

http://www.cibertecadecordel.com.br/
332
http://espacoastrologico.org/almanaques-astrologicos-ii/
“Não tenhais medo”: os intelectuais católicos na formação
do culto a Nossa Senhora de Fátima (1917 – 1935)

Carlos André Silva de Moura


E-mail: casmcarlos@yahoo.com.br

Le culture possono inventare arbitrariamente i propri


idoli, mas devono avere una fede culturale nella fede
idolatria, cioè utilizzare un codice surculturale che
implica un rituale di relazioni ortopratiche della
comunità.

(GASBARRO, Nicola. Religione e / o Religioni? la


sfida dell’antropologia e della comparazione storico-
religiosa. In. MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de
Albuquerque. (Org.). (Re) conhecendo o Sagrado. p.
99.)

O processo de laicização do Estado no Brasil e em Portugal 333


apresentaram formas distintas quanto às negociações entre o poder político
e o religioso. Enquanto o início da República no país lusitano foi marcado
por perseguições ao clero, confisco dos bens da Igreja Católica e expulsão
das ordens religiosas; em terras brasileiras, os eclesiásticos conseguiram
preservar a sua estrutura de atuação, mesmo com críticas aos projetos que
tinham a intenção de implementar a secularização das instituições e da
sociedade (CATROGA, 2006; AZZI, 1996).
Durante o texto analisamos como o culto a Nossa Senhora de
Fátima contribuiu com o processo de reação da Igreja Católica ao laicismo
e à descristianização da sociedade no mundo luso-brasileiro. Observamos
como os intelectuais católicos se utilizaram das narrativas em torno das
aparições da “Senhora do Rosário”1 entre os dias 13 de maio e 13 de outubro
de 1917 na Cova da Iria, – concelho de Vila Nova de Ourém –, para os
pastores Lúcia de Jesus, Francisco e Jacinta Marto, dez, nove e sete anos
respectivamente.
Em nossa análise estivemos atentos a questões históricas e sociais
em torno do evento, às práticas culturais que foram atreladas ao culto e os
seus usos para os projetos da Igreja Católica. O nosso objetivo foi perceber
como o discurso recatolizador atribuído à “obra” de Nossa Senhora de
Fátima foi resultado do trabalho que tinha o objetivo de reestruturar uma
Igreja Católica militante, com propostas de novas formas de culto para os
fiéis (MATTOSO; RAMOS, 2001: 493).
As aparições na Cova da Iria aconteceram em um momento
importante para os projetos da Igreja Católica em Portugal. Alguns eventos
que marcaram a reação ao anticatolicismo a partir de 1917, como o retorno
das negociações do Estado com o clero e a publicação do Decreto Moura
Pinto, foram vistos por parte dos católicos como providências determinadas
por Nossa Senhora de Fátima2. Em 09 de dezembro do mesmo ano, António
Sardinha publicou um texto no jornal A Monarquia analisando as relações
do evento religioso com o momento político em Portugal. Para o líder do
334 Movimento Integralista Lusitano, a vitória do sidonismo e a queda dos
seguidores de Afonso Costa3 era resultado de uma intervenção direta de
Nossa Senhora de Fátima (BARRETO, 2002: 42-43).
1 Em suas memórias, a irmã Lúcia de Jesus destacou que na aparição do dia 13 de outubro
de 1917 a revelação se autodenominou a “Senhora do Rosário”. (KONDOR, 2011: 180).
2 O governo de Sidónio Pais (1872 – 1918) iniciou em 08 de dezembro de 1917, quando
chegou ao poder após um movimento que reivindicava mudanças internas em Portugal.
Sua gestão firmou parcerias com vários setores da sociedade, inclusive os membros da Igreja
Católica. Após diálogos com os eclesiásticos assinou o Decreto Moura Pinto, que fez uma
revisão da lei de separação entre o Estado e a Igreja publicada em abril de 1911. (SILVA,
1996-1997: 385-499a; PINTO, 2000; ROBINSON, 2000).
3 Ministro da Justiça na transição da Monarquia para a República em Portugal foi
o responsável pela elaboração do Decreto de 20 de abril de 1911, que estabeleceu
as normas para a separação entre o Estado e a Igreja. Devido à cultura laicista
implementada com seus decretos, Afonso Costa ficou conhecido como o político
“mata frades”.
Na elaboração dos discursos de recristianização, o pensamento
conservador serviu como um ponto de apoio para os intelectuais que
trabalharam no processo de “renascença católica”. As críticas à República,
à descristianização, ao pensamento moderno e à desordem estavam de
acordo com as propostas elaboradas após os eventos das aparições marianas
AZEVEDO, 2007: 265; PINTO, 1994).
O projeto de recatolização fez das aparições de Fátima um dos
maiores cultos de massa do catolicismo no início do século XX. A partir
da segunda metade dos anos de 1930, com as ressonâncias da Guerra Civil
espanhola e os desdobramentos do período entre guerras, as mensagens
tomaram conotações internacionais, atribuindo ao culto mariano um
projeto anticomunista, de implementação da moral e de combate à
“barbárie” nos países que defendiam doutrinas anticatólicas.
As interpretações feitas das mensagens de Nossa Senhora de Fátima
estiveram relacionadas ao momento sociocultural, histórico e político, não
apenas em Portugal, mas em um contexto global. Os intelectuais inseridos
na hierarquia da Cúria romana trabalharam para a elaboração de algo novo
que tomasse o lugar de uma religião ancestral, com o objetivo de reorganizar
o catolicismo a partir da segunda metade dos anos de 1930 (MATTOSO;
RAMOS, 2001: 493). 335
Nicola Gasbarro ajuda-nos a compreender as inserções feitas nos
cultos referentes às aparições marianas e o surgimento de “novos deuses”
no início do século XX. Para o autor, cada sociedade pode arbitrariamente
“inventar” seus próprios ídolos, com os códigos que envolvem a comunidade
a partir de práticas culturais inseridas na ortodoxia católica, a qual classifica
como ortopráticas (GASBARRO, 2013: 99).
O conceito de ortopráticas abrange as regras rituais e as “ações
inclusivas e performativas da vida social”, com invenções e reinvenções
em termos de práticas religiosas. Com a análise nos distanciamos das
classificações atribuídas ao catolicismo popular, pois historicizamos as
artes de fazer e as formas adotadas em novos cultos por fiéis e os líderes da
Igreja (GASBARRO, 2006; GASBARRO, 2014).
Cada cultura constitui sua própria ortoprática que funciona em
uma ordem hierárquica (GASBARRO, 2013: 99). É assim que observamos
as inserções culturais no culto a Nossa Senhora de Fátima a partir de 1917,
como ortopráticas que foram pensadas por intelectuais católicos e fieis
que buscavam um novo catolicismo para o Portugal republicano após o
processo de laicização do Estado, dos projetos baseados no anticatolicismo
e da dessacralização da sociedade.
As aparições da “Senhora do Rosário” às três crianças na Cova da
Iria, as revelações dos segredos4 e a construção de um culto internacional ao
Imaculado Coração de Maria foram acompanhados por um debate político
sobre o processo de laicização dos Estados e a expansão do comunismo em
vários países. Após o reconhecimento pela Igreja Católica as aparições na
Cova da iria, os líderes da Cúria romana trabalharam para o silenciamento
não apenas das ações anticatólicas, mas dos discursos que não estavam de
acordo com as orientações do clero (BARRETO, 2002: 45).
É no contexto de atuação da chamada “Fátima II”5, acompanhada
do processo de internacionalização das mensagens marianas oriundas
de Portugal, que observamos a inserção do culto no Brasil. Mesmo
reconhecendo todas as propostas de devoção a Nossa Senhora de Fátima,
336
4 Os segredos de Fátima são divididos em três partes. A 1ª e 2º mensagens foram
escritas por Lúcia de Jesus em 1941 e revelado logo em seguida, já o 3º segredo foi
escrito em 1944 em uma correspondência que deveria ser aberta apenas pelo Papa.
No dia 26 de junho de 2000, o Vaticano divulgou a última parte da mensagem
de Fátima. Os segredos consistem em: 1º e 2º. A visão do inferno, à devoção ao
Imaculado Coração de Maria, a Segunda Guerra Mundial e o prenúncio dos danos
que a Rússia poderia causar a humanidade com seu abandono do cristianismo
e adesão ao comunismo. O 3º segredo se refere ao martírio dos líderes da Igreja
Católica, sobretudo do Papa, em um mundo em crise devido aos “erros da Rússia”.
5 Estudiosos das aparições de Nossa Senhora de Fátima atribuem dois momentos para
as interpretações das mensagens durante a primeira metade do século XX. Segundo
José Barreto, o teólogo Edouard Dhanis foi um dos pioneiros a abrir um debate crítico
internacional sobre Fátima. As argumentações levaram a nomenclaturas como “Fátima I”,
que tem sua atuação voltada para a recristianização de Portugal até meados dos anos de
1930. A segunda classificação é denominada de “Fátima II”, que se baseia na sua mensagem
contra o comunismo e na internacionalização do culto. (BARRETO, 2003: 412).
as suas atribuições anticomunistas foram as mais utilizadas pelos líderes
da Igreja Católica no país. O discurso contra o pensamento de esquerda
colaborou com o trabalho desenvolvido por Dom Sebastião Leme, já que
este era um dos pontos de aproximação entre o poder político e o religioso
nos anos de 1930 (BANDEIRA, 2000: 34 – 35).
O processo de imigração / migração dos portugueses para o Brasil,
principalmente os membros das diversas ordens religiosas, cooperou com
as trocas culturais relacionadas aos cultos católicos. As atividades dos
membros da Companhia de Jesus que se destinaram à cidade do Recife
foram importantes para a formação do primeiro templo dedicado a Nossa
Senhora de Fátima fora de Portugal, inaugurado em 08 de dezembro de
19356.
Além dos membros do clero, a imigração de trabalhadores,
intelectuais, políticos e inúmeros portugueses que procuravam melhores
condições de vida ajudaram na organização de uma ação cultural no Brasil.
António Cândido destacou que diferente dos religiosos, este grupo realizou
uma missão não planejada, compartilhando costumes, tradições e crenças
em seu novo local de atuação (GOBBI, 2002: 30).
Neste texto nosso objetivo foi perceber como o culto mariano
contribuiu para a elaboração dos discursos de recatolização e de combate 337
ao comunismo. Para isso, utilizamos como recorte os eventos acontecidos
no Brasil e Portugal devido às trocas culturais dos intelectuais no início do
século XX.

As aparições de Nossa Senhora de Fátima e seus usos para o movimento


de recatolização

Em maio do ano 2000, durante os eventos que marcaram a


divulgação do terceiro segredo de Fátima, o então cardeal Dom Joseph
6 O templo destinado a Nossa Senhora de Fátima na cidade do Recife foi construído nas
instalações do Colégio Nóbrega dos Jesuítas. A instituição foi inaugurada por religiosos
oriundos de Portugal, com importante participação nas atividades socioculturais e religiosas
da região. (ARRUPE, 1978).
Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, publicou o
texto Comentário Teológico com questões pertinentes às interpretações
das aparições marianas para a Igreja Católica. Em seus escritos, o religioso
enfatizou os episódios em torno de Nossa Senhora de Fátima, com algumas
análises sobre os segredos que foram revelados pela irmã Lúcia de Jesus.
Referente ao terceiro segredo, o cardeal alemão indagou se as
mensagens traduzidas pelos visionários refletiam as palavras de Maria,
“[…] Ou não serão talvez apenas projecções do mundo interior de crianças,
crescidas num ambiente de profunda piedade, mas simultaneamente
assustadas pelas tempestades que ameaçavam o seu tempo?” (RATZINGER,
2000).
As indagações nos levaram a pensar sobre o tempo histórico, o
ambiente geográfico, político e social em que aconteceram as aparições
de Nossa Senhora de Fátima a partir de 13 de maio de 1917. A segunda
década do século XX foi marcada por diversas crises para além das questões
religiosas, sobretudo, nos concelhos localizados no Norte de Portugal.
Com uma tradição agrária e a maioria da população economicamente ativa
voltada para o trabalho braçal, a localidade enfrentava problemas de falta
de mão de obra devido ao número de enviados para a guerra e do aumento
338 nas taxas de exílios.
Durante o primeiro conflito mundial (1914 – 1918) foram
mobilizados mais de cem mil portugueses para as trincheiras, com mais
de oito mil mortos, feridos ou aprisionados. As epidemias de tifo, varíola
e pneumonia atingiam as famílias mais carentes, diminuindo a expectativa
de vida dos lusitanos que se deparavam todos os anos com uma vastidão
de enfermidades (ROSAS; ROLLO, 2009; SOUSA; MONTEIRO; RAMOS,
2012)7.
Desde 1914 os lusitanos enfrentavam a baixa oferta de trigo,
matéria-prima para a base alimentar do período. Enquanto o governo

7 Dois pastores protagonistas das visões de Nossa Senhora de Fátima, Francisco


Marto e Jacinta Marto, foram vítimas da pneumonia e morreram em 04 de abril de
1919 e 20 de Fevereiro de 1920 respectivamente. (ANTT, 1920).
republicano tentava resolver seus problemas internos, os estabelecimentos
comerciais eram saqueados por parte da população que se tornava
personagem principal da chamada “revolução da fome” (MATTOSO;
RAMOS, 2001: 453, 454).
Os problemas econômicos, a crise na saúde e o medo da guerra
despertaram a necessidade do revigoramento da fé. Para tentar resolver
as problemáticas que foram expostas anteriormente, alguns católicos
se apegaram a manifestações que eram traduzidas como a salvação para
Portugal (TORGAL, 2011: 22). No início do século XX foi criada uma
cultura visionária em Portugal, com mensagens com conotações políticas
sobre o momento histórico vivenciado.
É importante destacar que os eventos relacionados a Nossa Senhora
de Fátima em 1917 não foram os únicos registrados em Portugal na primeira
metade do século XX. O período foi marcado por várias outras aparições /
visões, sendo classificado como o século de ouro do culto mariano (REIS,
2001: 272 – 273). As mensagens de Fátima se popularizaram devido
ao trabalho dos intelectuais católicos para criar uma identidade com a
nacionalidade portuguesa, os discursos políticos adotados para o evento e
a relação das aparições com o projeto de recatolização da sociedade.
As outras experiências se diferenciaram das ocorridas na Cova da 339
Iria pela forma de divulgação do evento, recepção dos habitantes da região,
aceitação dos fiéis e os usos que os membros da Igreja Católica fizeram
do caso. As notícias das visões muitas vezes ficavam resumidas ao espaço
familiar e de alguns moradores próximos dos visionários.
No entanto, as experiências resguardaram os princípios
necessários para o reconhecimento de uma aparição privada pela Igreja
Católica. A partir dos ensinamentos do clero, o reconhecimento da
revelação privada deve seguir alguns aspectos doutrinários: 1. que a
mensagem não contenha nada em contraste com a fé e os bons costumes;
2. o evento pode se tornar público e 3. os fiéis ficam autorizados a aderir às
mensagens da revelação como um auxílio para compreender o evangelho
(RATZINGER, 2000).
A adoção do conceito de revelação ou aparição pela Igreja Católica
é importante, já que entre os seus requisitos existe a necessidade de se
tornar um momento público. Tal questão se diferencia do termo visão, que
é entendido como um momento particular, com aspectos que se resumem
a sentimentos interiores (Cf. RATZINGER, 2000; BARRETO, 2002: 65;
CHRISTIAN JR., 1996).
Para a análise dos eventos relacionados a Fátima, utilizamos o conceito
de aparições ou revelações, que fazem parte de um conjunto conhecido
como aparições / revelações marianas. No entanto, não descartamos que
as primeiras experiências de Lúcia de Jesus podem ser consideradas visões
privadas, que também são reconhecidas pela Igreja Católica.
Nota-se que os eventos em torno das aparições marianas
envolveram crianças, de regiões pobres e analfabetas, como as visionárias
e divulgadoras das mensagens que deveriam ser direcionadas ao público.
Para os líderes da Cúria romana, no momento das aparições “A pessoa é
levada para além da pura exterioridade, onde é tocada por dimensões mais
profundas da realidade que se lhe tornam visíveis”. Por este motivo, explica-
se o papel destes personagens, teriam a alma ainda “pouco alterada, e quase
intacta a sua capacidade interior de percepção” (RATZINGER, 2000)8.
340 A partir de maio de 1917, Lúcia de Jesus, Jacinta e Francisco
Marto foram personagens dos eventos em torno das aparições religiosas.
No entanto, os acontecimentos apresentaram mensagens definidas para o
contexto sociopolítico do momento, com uma intervenção direta da Igreja
Católica. Neste instante, teve início à construção da imagem de Nossa
Senhora de Fátima como a responsável pela salvação sociopolítica em
Portugal. As mensagens abordadas entre maio e outubro de 1917 foram
consideradas as mais proféticas das aparições marianas na modernidade,
acompanhadas pelos eventos em torno de Nossa Senhora de Lourdes na
França em 1858 (BERTONE, 2000)9.
8 Os casos das aparições marianas em La Salette (França, 1846), Lourdes (Franças,
1858), Fátima (Portugal, 1917) e Garabandal (Espanha, 1961) tiveram as crianças como
interlocutora das representações de Maria.
9 A primeira aparição de Nossa Senhora de Lourdes teria acontecido na França em 11 de
A primeira aparição da “Senhora do Rosário” aconteceu em 13 de
maio de 1917, enquanto as crianças cuidavam do rebanho de ovelhas em
uma propriedade conhecida como Cova da Iria. O lugar era considerado
impróprio para a agricultura, com a resistência apenas das azinheiras em
alguns períodos do ano.
Segundo os relatos, durante o dia de trabalho os pastores
presenciaram dois relâmpagos, seguidos do surgimento de uma mulher
vestida de branco. No diálogo travado entre as crianças e Nossa Senhora,
falou-se que o evento se repetiria na mesma data por seis meses, que iriam
para o céu e que no momento não se poderia informar quando a guerra
acabaria (TORGAL, 2011: 41).
A angústia sobre os desdobramentos do primeiro conflito mundial
era uma das principais preocupações dos portugueses durante a década de
1910. As incertezas, as crises, os rumos a serem seguidos e a esperança
pelo fim do evento bélico estavam na ordem do dia dos portugueses e se
refletiam no primeiro diálogo entre os três pastores e Nossa Senhora de
Fátima (Cf. FRAGA, 2010).
A distância do Concelho de Vila Nova de Ourém dos principais
centros urbanos dificultou a divulgação imediata do evento. As notícias
ficaram restritas à região central de Portugal, sendo “popularizada” apenas 341
a partir da segunda aparição em 13 de junho de 1917, mas ainda com
pequenos relatos sobre o ocorrido.
O jornal O Seculo foi o primeiro em âmbito nacional a noticiar os
eventos das aparições marianas. A matéria publicada em 23 de julho de
1917 se limitou a apresentar a notícia, sem uma análise ou crítica referente
ao acontecido. O periódico Liberdade foi o pioneiro entre os católicos, com
a publicação de uma reportagem descritiva em 17 de agosto de 1917 (REIS,
2001: 253).

fevereiro de 1858, testemunhada por Bernadette Soubirous de 14 anos, sua irmã Toinette
Soubirous e a amiga Jeanne Abadie ambas de 12 anos. O evento ocorreu no ano previsto por
Nossa Senhora em uma aparição na cidade de La Salette, em 19 de setembro de 1846, para
Maximin Giraud de 11 anos e Mélanie Calvat de 15 anos.
As notícias da aparição de Nossa Senhora despertaram a
curiosidade dos populares e a atenção dos membros do governo, já que a lei
de separação entre o Estado e a Igreja proibia tais manifestações no artigo
55º10. A cada dia marcado para os “encontros” aumentava o número de
seguidores que, crentes ou incrédulos, queriam conferir a veracidade dos
fatos. A desconfiança sobre as afirmações de Lúcia eram também recorrente
na sua família, inclusive a sua mãe, que a pressionava para confessar as
possíveis fantasias criadas com os primos (KONDOR, 2011: 82 – 82).
Nas últimas aparições era difícil evitar as aglomerações na região.
Os principais veículos da imprensa já refletiam sobre os acontecimentos
na parte central de Portugal. Mesmo assim, os jornais republicanos
se esforçavam para silenciar os atos dos católicos, com acusações aos
membros da Companhia de Jesus de usar as crianças e a população de uma
região pobre, com alto número de analfabetos e fanáticos, com o objetivo
de divulgar as suas crenças (TORGAL, 2011: 46 – 47).
A última aparição de Nossa Senhora de Fátima, em 13 de outubro de
1917, foi o momento de maior destaque para o culto mariano em Portugal.
Devido a divulgação na imprensa, o compartilhamento de notícias de uma
possível salvadora para o país, a busca por respostas em temas relacionados
342 à fé – seja dos crentes ou dos incrédulos – e a necessidade de reafirmação de
um catolicismo que se sentia ameaçado, os dias marcados para a “recepção”
de Nossa Senhora tomaram proporções jamais vistas.
Se a quinta aparição foi marcada pelo silêncio e o desencanto de
alguns católicos, no encontro seguinte foram “reveladas” mensagens com
conotações políticas e esperança para o final da guerra. Em interrogatório
e nas memórias da irmã Lúcia de Jesus, destacou-se que o diálogo travado
entre as crianças e a representação de Nossa Senhora se baseou em pedidos
e profecias que contemplaram aspectos globais.

10 Diz o artigo 55º: “Os actos de culto de qualquer religião fora dos lugares a isso destinados,
incluindo os funerais ou honras fúnebres com cerimónias cultuais, importam a pena de
desobediência, aplicável aos seus promotores e dirigentes, quando não se tiver obtido, ou
for negado, o consentimento por escrito da respectiva autoridade administrativa”. (Diario
do Governo, 1911: 430 – 446).
No dia 13 de outubro Nossa Senhora comunicou inicialmente que
todos deveriam rezar o terço e que não se deveria ofender “Deus Nosso
Senhor, que já está muito ofendido” (KONDOR, 2011: 97). A “Senhora de
Fátima” também solicitou que se construísse uma capela no local, ação que
foi efetivada entre os dias 28 de abril e 15 de junho de 1919. Antes de partir,
informou ainda que a guerra acabaria naquele dia e que os portugueses que
estavam no front retornariam em breve (TORGAL, 2011: 49)11.
Mesmo que as mensagens reveladas pelos pastores na última
aparição tenham sido importantes para os católicos portugueses, o
fenômeno que ficou conhecido como o “bailado do sol”12 chamou atenção
dos jornalistas, religiosos e curiosos que se encontravam na localidade. O
assunto foi debatido em diversos periódicos, com diferentes conotações
para se explicar o ocorrido, com argumentos que se baseavam em obras
divinas ao em acontecimentos naturais.
O jornalista Avelino de Almeida (1873 – 1932) publicou uma
reportagem n’O Século no dia 13 de outubro de 1917 com destaque para
a importância de se observar um evento que não era novo para a Igreja
Católica. Mesmo que na infância tenha tido contato com os ensinamentos
da Igreja, o repórter fez considerações céticas baseadas nas possibilidades
mercadológicas que se poderiam tirar dos acontecimentos na Cova da Iria 343
(AZEVEDO; CRISTIANO, 2007: 22 – 24).
No entanto, após o dia 13 de outubro as reportagens divulgadas por
vários jornalistas, inclusive Avelino de Almeida, apresentaram uma abordagem
amena em relação aos fatos ocorridos na Cova da Iria. Os textos publicados
pelo republicano fizeram uma análise social, antropológica e cultural do
evento, despertando sentimentos divergentes entre integrantes do governo e os
católicos que trabalhavam para a construção da imagem de Nossa Senhora de
Fátima como recristianizadora de Portugal (TORGAL, 2011: 52).

11 A Primeira Guerra Mundial durou até 11 de novembro de 1918.


12 Parte do público que esteve presente nas aparições do dia 13 de outubro de 1917 afirmou
que o sol apresentou movimentos que deslocou as nuvens, lembrando um bailado no ar. O
evento ficou conhecido como “o bailado do sol”, devido às reportagens que tenham como
título “O Sol Bailou ao Meio-dia”.
Em artigo também publicado no jornal O Seculo, Avelino de
Almeida descreveu como se encontrava a região de Vila Nova de Ourém
no dia marcado para a última aparição. Em sua exposição destacou que
homens, mulheres e crianças caminhavam descalços, rezando o terço em
direção a Cova da Iria, com a intenção de dormir o mais próximo possível
da azinheira que já era considerada sagrada pelos fiéis. Mesmo com uma
intensa devoção, os peregrinos eram vítimas de chacotas proferidas por
alguns céticos que os esperavam no caminho (ALMEIDA, 1917: 01a).
Segundo o jornalista, a localidade foi tomada por mais de quarenta
mil13 peregrinos e curiosos que queriam conferir a veracidade sobre a
aparição de Maria. Nota-se que durante as últimas revelações, a região da
Cova da Iria já tinha se tornado um espaço de devoção e peregrinação,
mesmo sem a Igreja Católica apresentar uma intervenção efetiva no evento.
Avelino de Almeida conclui seu texto relatando o caso do “bailado
do sol”, que ficou marcado para os católicos como a principal demonstração
de veracidade das revelações de Fátima às três crianças. Segundo o
jornalista, que já tinha questionado a exploração em torno dos eventos na
Cova da Iria, no horário estabelecido para a aparição de Nossa Senhora:

344 […] assiste-se então a um espetáculo único e


inacreditável para quem não foi testemunha d’ele. Do
cimo da estrada, onde se aglomeram os carros e se
conservam muitas centenas de pessoas […], vê-se toda
a imensa multidão voltar-se para o sol, que se mostra
liberto de nuvens, no zenit. O astro lembra uma placa
de prata fosca e é possivel atar-lhe o disco sem o mínimo
esforço. Não queima, não cega. Dir-se-hia estar-se
realisando um eclipse. Mas eis que um alarido colossal
se levanta, e aos espectadores que se encontram mais

13 O número de peregrinos apresentado por Avelino de Almeida é questionado por


republicanos e críticos ao evento, havendo a divergência em diversos periódicos do período.
Alguns meios de comunicação, principalmente os de tendência católica, chegaram a afirmar
que a região recebeu cerca de setenta mil pessoas.
perto se ouve gritar. - Milagre, milagre! Maravilha,
uma maravilha! Aos olhos deslumbrados d’aquele
povo, cuja atitude nos transporta aos tempos bíblicos
e que, pálido de assombro, com a cabeça descoberta,
encara o azulão sol tremeu, o sol teve nunca vistos
movimentos bruscos fóra de todas as leis cósmicas
– o sol <<bailou>> segundo a típica expressão dos
camponezes… (ALMEIDA, 1917: 01-02a)

A reportagem de Avelino de Almeida agradou setores da Igreja


Católica, que ainda se mantinham tímidos sobre os eventos em torno das
aparições de Nossa Senhora de Fátima, já que necessitava de uma análise
aprofundada e “comprovações” sobre as revelações feitas às três crianças.
A manifestação pública de Fátima no momento de sua aparição para os
pastores era um pré-requisito para o reconhecimento do evento pela Cúria
romana. Sendo assim, os relatos sobre o “bailado do sol” contribuíram
para com a construção da imagem de Fátima como salvadora e principal
responsável pela recatolização em Portugal.
Os eventos ocorridos na Cova da Iria em 13 de outubro de 1917
contribuíram para a formação do caráter milagroso em torno de Fátima, 345
tendo como base os testemunhos sobre o “milagre do sol”. O episódio foi
o momento em que a massa de fieis pôde “participar” das aparições, que a
partir daquela data tornavam-se públicas (REIS, 2001: 256)14.
As tentativas de desconstrução dos relatos referentes ao “bailado do
sol” partiram de diversas frentes, desde alguns membros da Igreja Católica,
que ainda tinham receios sobre a temática, até pensadores republicanos que
combatiam o discurso de milagre. As explicações eram das mais diversas,
no entanto, os argumentos sobre o fenômeno meteorológico de encontro de
duas massas de ar foi a mais utilizada pelos céticos do evento (AZEVEDO;
CRISTIANO, 2007: 355 – 358).

14 Algumas obras publicadas após 1917 relatam novas ocorrências do “bailado do sol”
na região. A obra As grandes maravilhas de Fátima apresentou algumas imagens que
representam o fenômeno no dia 13 de maio de 1921. (Cf. MONTELO, 1927).
Em 29 de outubro de 1917 o assunto sobre o “bailado do sol”
retornou às páginas da revista Ilustração Portugueza. Na ocasião Avelino
de Almeida abordou algumas questões que foram trabalhadas a partir do
seu texto publicando n’O Seculo. O jornalista reafirmou suas impressões
anteriores, destacando que se era “Milagre, como gritava o povo; fenômeno
natural, como dizem sábios? Não curo agora de sabel-o, mas apenas de te
afirmar o que vi… O resto é com a Ciencia e com a Egreja…” (ALMEIDA,
1917: 356b).
Mesmo com os eventos que marcaram as aparições marianas em
Portugal no início do século XX, a Igreja Católica demonstrava prudência
sobre o reconhecimento das revelações às três crianças na Cova da Iria.
O clero se manteve cauteloso devido à cultura anticlerical formada em
Portugal desde 1910, a fiscalização de setores republicanos e dos livres-
pensadores que denunciavam as “manobras” para a restauração dos cultos
católicos em desacordo com a lei de separação entre o Estado e a Igreja
(BARRETO, 2002: 34-35).
Mesmo com a prudência de alguns setores católicos, parte do clero
não deixou de construir a imagem de Nossa Senhora de Fátima como a
salvadora dos problemas morais de Portugal. O Cônego Manuel Nunes
346 Formigão (1883 – 1958) foi o principal responsável pela estruturação da
devoção mariana em Portugal após 1917.
Sacerdote, escritor e fundador apostólico, Manuel Nunes Formigão
completou a sua formação teológica no Seminário Maior de Santarém,
onde recebeu as ordens menores em 20 de novembro de 1901. Durante o
período de instrução entrou em contato com a história de Nossa Senhora
de Lourdes, tornando-se um devoto militante (AZEVEDO; CRISTIANO,
2007: 232-237).
Mesmo com toda dedicação a Lourdes, Manuel Nunes Formigão
enxergava as notícias sobre as aparições de Nossa Senhora de Fátima com
reservas. Inicialmente incrédulo, visitou a Cova de Iria em 13 de setembro
e outubro de 1917 para acompanhar as anunciadas revelações da “Senhora
do Rosário”.
Durante a última visita ao Concelho de Vila Nova de Ourém, o
Cônego interrogou as crianças com objetivos de confirmar a veracidade
dos fatos. Ao término das entrevistas com Lúcia, Jacinta e Francisco, o
religioso abandonou as incertezas e se tornou a principal fonte sobre os
relatos das aparições marianas em Portugal. O trabalho realizado pelo
sacerdote serviu como base para a construção do processo canônico que
reconheceu o caráter milagroso dos eventos na Cova da Iria (AZEVEDO;
CRISTIANO, 2007: 234).
As referências que aproximavam Nossa Senhora de Fátima a
Lourdes contribuíram para a legitimação do culto mariano em Portugal.
No discurso do Cardeal Patriarca Manuel Gonçalves Cerejeira durante o
Congresso Mariano Internacional em Lourdes, em 16 de Setembro de 1958,
destacou-se a importância dos dois eventos para a Igreja Católica. Para o
religioso, “Lourdes e Fátima interessam à vida religiosa do nosso tempo
e iluminam o drama contemporâneo do mundo. Este período da vida da
Igreja fica profundamente assinalado pela sua irradiação e a sua influência”
(CEREJEIRA, 1958: 06).
Seja por acompanhar as propostas da reorganização da Igreja
em Portugal, promovida pelo Papa Bento XV, ou influenciado pelos
acontecimentos a partir de maio de 191715, em 17 de janeiro de 1918 a 347
Diocese de Leiria foi restaurada após meio século de supressão. Apenas
em 1920 a circunscrição religiosa foi promovida a titular, já que ficou
subordinada ao Patriarcado de Lisboa até a nomeação do bispo Dom José
Alves Correia da Silva (1872 – 1957) (BARRETO, 2002: 21).
Na bula pontifícia Quo Vehementius, o Papa Bento XV não fez
referências aos eventos de Fátima como incentivos determinantes para
a sua decisão de restaurar a diocese de Leiria. No entanto, não devemos
desconsiderar a importância das aparições marianas para a decisão de
reativação da circunscrição religiosa, principalmente durante o processo
15 Desde o final do século XIX os eclesiásticos portugueses tentavam restaurar a diocese de
Leiria. Foram três projetos: o primeiro liderado por Vitorino da Silva Araújo (1885 – 1891),
o segundo pelo padre Júlio Pereira Roque (1903 – 1904) e o último pelo padre José Ferreira
de Lacerda (1913 – 1918), o qual obteve êxito junto a Cúria.
de reconhecimento das revelações e para que o clero local tivesse maior
liberdade na organização dos projetos relacionados ao movimento de
recristianização (TORGAL, 2011: 142 – 148).
A partir de agosto de 1920, com a ascensão de Dom José Alves
Correia da Silva como bispo de Leiria (1920 – 1957), mesmo que de maneira
ainda informal, a Igreja Católica desenvolveu ações que contribuíram para
o reconhecimento das revelações aos três pastores e legitimava o culto a
Nossa Senhora de Fátima em Portugal.
Entre os projetos se destacaram a compra dos terrenos em torno
da Cova da Iria, o acompanhamento da caminhada espiritual de Lúcia de
Jesus, a concessão de indulgências e de privilégios litúrgicos ao local das
aparições, a autorização de celebração de missas, o estabelecimento de
um Capelão para a região e a construção da “Basílica” iniciada em 13 de
maio de 1928. O bispo também apoiou as publicações sobre a temática,
com aprovação das peregrinações e dos atos dos fieis que colaboravam
com a autenticidade das aparições (DOCUMENTAÇÃO CRÍTICA DE
FÁTIMA II, 1999: 25).
O reconhecimento oficial da Igreja Católica foi apresentado com
a Carta Pastoral sobre o culto de Nossa Senhora de Fátima, publicada
348 em 13 de outubro de 1930. No documento o bispo de Leiria fez uma
análise do processo canônico em torno das aparições de Nossa Senhora
de Fátima, com ênfase nos acontecimentos históricos, nos motivos
da cautela da Igreja Católica e no trabalho do clero para se chegar a
uma posição oficial sobre o evento (DOCUMENTAÇÃO CRÍTICA DE
FÁTIMA II, 1999: 25 – 26).
Dom José Alves Correia enfatizou os pontos necessários para
que a Cúria romana reconhecesse o caráter milagroso das aparições. O
bispo destacou que o momento de provações vivenciado em Portugal, as
condições sociais da região e dos três pastores, as perseguições sofridas
pelas crianças e o fenômeno do “bailado do sol” foram fundamentais para
que a Igreja Católica formasse o processo que abordou as aparições da
“Senhora do Rosário” como obra divina (SILVA, 1930: 03, 09 – 12).
O religioso concluiu o documento declarando como “dignas de
crédito as visões das crianças na Cova da Iria […]”, compreendendo por
bem “permitir oficialmente o culto de Nossa Senhora de Fátima” (SILVA,
1930: 15). A declaração publicada pelo bispo de Leiria comprovava o novo
momento da Igreja Católica em Portugal, com a estruturação de projetos
para a recatolização do país e uma afinidade diferente com os membros do
Estado.
É a partir desde instante que o culto a Fátima passou a assumir um
discurso politizado, legitimado por intelectuais como o patriarca de Lisboa
Dom Manuel Gonçalves Cerejeira, ou instituições como a Ação Católica
e o Centro Académico de Democracia Cristã (CADC). A legitimação do
culto a Fátima não contribuiu apenas para o fortalecimento da “renascença
católica”, mas também para a superação da Primeira República Portuguesa
(1910 – 1926), marcada pelo atrito entre o Estado e a Igreja, além do
fortalecimento do Estado Novo salazarista (TORGAL, 2011: 136; PINTO;
FERNANDES, 2010).
Para a legitimação do novo momento político em Portugal, António
Oliveira Salazar era apresentado como o responsável pela salvação moral
de Portugal. Ex-seminarista, fez parte da direção do Centro Académico
de Democracia Cristã, em conjunto com o então Padre Manuel Gonçalves 349
Cerejeira integrou o grupo dos estudantes da Universidade de Coimbra que
se dedicava ao processo de recristianização.
Em alguns discursos Oliveira Salazar criticou o fim dos privilégios
dos eclesiásticos, utilizando o Brasil como exemplo de boas relações entre
o Estado e a Igreja. Para o líder político, o processo de descristianização
da sociedade também passava por uma desnacionalização, por isso a
recatolização não poderia se resumir ao espaço privado, mas deveria se
inserir nas leis e nos costumes do país (ALEXANDRE, 2006: 25 – 26, 35).
Desde quando tomou posse no governo como Ministro das Finanças
em 27 de abril de 1928, aumentavam as expectativas dos católicos por um
posicionamento político que contemplasse os anseios dos integrantes da
Igreja. Suas negociações com o clero tomaram força quando assumiu o
cargo de Primeiro Ministro em 05 de junho de 1932, culminando com a
assinatura da concordata entre o Estado Português e o Vaticano na década
de 1940.
A carta da visionária Alexandrina Balasar16 é ilustrativa
na abordagem feita à imagem de Oliveira Salazar no momento de
recatolização de Portugal. Em sua correspondência a visionária apresentou
uma mensagem que afirmava ter sido transmitida por Jesus Cristo. No
documento, destacou-se que:

[…] Foi no dia 2 do corrente mês que Nosso Senhor


me disse entre outras coisas estas: Vai depressa como
um mendigo pedir a esmola para Jesus. Vai pôr termo
depressa, muito depressa á desmoralização das praias.
Vais escrever a Salazar. É ele, só êle mais que todos
os sacerdotes põe termo a tanto pecado. Vai pedir-lhe
com instância que faça mais isto pela causa de Deus
e por Portugal. Prometo-lhe auxilio e conforto em
todos os perigos e necessidades. Prometo-lhe o céu.
Também êle com a autoridade dele pode pôr termo
350 ao pecado da carne proibindo e castigando (AHPL,
1940a).

Os fieis e os membros da Igreja Católica enxergavam na parceria


entre Oliveira Salazar e o Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira a
possibilidade de retorno dos diálogos entre as duas instituições e o fim das
leis laicistas do início da República. A carta da vidente Alexandrina Balasar
representou os anseios dos católicos que esperavam um líder “ungido por
Deus” (BARRETO, 2002: 41).
A construção discursiva em torno de um salvador para Portugal
16 Alexandrina Maria da Costa (1904 – 1955) nasceu na freguesia de Balasar,
região Norte de Portugal. A vida de Alexandrina foi repleta de relatos sobre o seu
sofrimento físico e moral, visões, possessões demoníacas, mortificações, êxtases e
fenômenos sobrenaturais. (Cf. MARQUES, 2012: 90 – 92).
estava relacionada com as propostas da “Fátima II”. Após a década de 1930,
principalmente a partir da revelação do segundo segredo, as mensagens da
irmã Lúcia adotaram conotações políticas que polarizavam o nacionalismo,
o catolicismo e a moral contra as doutrinas da esquerda.
A conversão da Rússia passou a ser o ponto primordial nos debates
sobre a Fátima II. Em carta da irmã Lúcia de Jesus ao Papa Pio XII (1939
– 1958), revelou-se mais uma mensagem da “Senhora do Rosário” sobre
as expectativas da Segunda Guerra Mundial e os avanços do comunismo.
Segundo a vidente:

[…] Em 1917 na parte que temos designado o segredo


a Santissima Virgem revelou o fim da guerra que então
afligia a Europa e anunciou outra futura dizendo que
para a impedir viria pedir a consagração da Russia
a seu Imaculado Coração e a comunhão reparadora
nos primeiro sábados. Prometeu se atendessem a
seus pedidos a conversão d’essa nação e a paz. De
contrario, anunciou a propagação de seus erros
pelo mundo; guerras, perseguições e sufrimentos
reservados a Vossa Santidade, e a anequilamento de 351
varias nações. […] Às pessoas que praticarem esta
devoção, promete a nossa bôa Mãe do Céu, assistir
na hora da morte com todas as graças necessárias
para se salvarem. […] Em 1929 Nossa Senhora por
meio d’outra aparição, pediu a consagração da Russia
a seu Imaculado Coração, prometendo por êste meio
empedir a propagação de seus erros […] Santissimo
Padre se é que na união da minha alma com Deus não
sou enganada, Nosso Senhor promete em atenção
à consagração que os Excelentissimos Prelados
Portuguezes fizeram da nação ao Imaculado Coração
de Maria uma protecção especial à nossa Patria
durante esta guerra e que esta protecção será a prova
das graças que consederia às outras nações se como
ele lhe tivessem sido consagradas (AHPL, 1940b).

A consagração do Imaculado Coração de Maria ao mundo era um


tema que retornava a tona entre os religiosos. Alguns problemas sociais
ou eventos que marcaram a história, a exemplo da Segunda Guerra, eram
justificados pela falta da expansão das mensagens religiosas para o restante
do mundo. Em 13 de maio de 1931, após a primeira grande peregrinação
nacional em Portugal, os bispos fizeram a consagração do país ao Imaculado
Coração de Maria, fato que para a irmã Lúcia os livrou da guerra.
A solicitação de consagração do mundo ao Imaculado Coração de
Maria foi atendida por Pio XII em 31 de outubro de 1942. Em mensagem
destinada aos fiéis portugueses, o líder da Igreja acolheu o pedido atribuído
a Nossa Senhora de Fátima, mas sem fazer referências diretas a Rússia (PIO
XII, 1942). Com a renovação do seu ato em 03 de junho de 1946, o Papa fez
a coroação de Nossa Senhora de Fátima como “Rainha da Paz e do mundo”,
ação que se repetiu em outros momentos do seu pontificado (AZEVEDO;
CRISTIANO, 2007: 147).
352 As obras organizadas por Pio XII contribuíram para a
internacionalização do culto em um período em que os católicos russos
sofriam perseguições políticas (AZEVEDO; CRISTIANO, 2007: 500).
No entanto, para a irmã Lúcia de Jesus suas ações eram insuficientes no
combate ao avanço do comunismo. O líder da Igreja Católica não condenou
o sistema político Soviético de forma clara, assim como, não reuniu os
bispos em torno desta ação17.
17 Mesmo com as consagrações aqui expostas, o Papa Pio XII só fez referências diretas a
Rússia na carta apostólica Sacro vergente anno, mas sem reunir os bispos em comunhão
como era solicitado na carta da Irmã Lúcia. Muito influenciado pelo ataque que sofreu na
Praça de São Pedro em 13 de maio de 1981, o Papa João Paulo II foi o líder da Igreja que fez
a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria em 13 de maio de 1982, renovando
a mensagem em 16 de outubro de 1983, com a reunião dos bispos como solicitado pela
vidente a partir das mensagens de Fátima. Em 08 de Dezembro de 1983 João Paulo II enviou
uma carta a todos os bispos solicitando que renovassem o ato em 25 de março de 1984, o
Foi neste contexto político que o culto a Nossa Senhora de Fátima
ganhou força no Brasil. Resultado do trabalho de imigrantes e integrantes
das diversas ordens religiosas que saíram de Portugal, as mensagens
da “Senhora do Rosário” chegaram ao país além-mar com abordagens
importantes para a recatolização e para as trocas culturais entre os
intelectuais católicos.
Com um projeto de Restauração Católica já em desenvolvimento
desde meados da década de 1910, o culto a Fátima veio somar com os
trabalhos liderados por Dom Sebastião Leme e o conjunto de intelectuais
que colaboravam com os movimentos da Igreja (Cf. MOURA, 2012). No
Brasil as mensagens se concentraram no combate ao comunismo, como a
salvadora dos males que a esquerda política poderia provocar ao país.
A devoção a Fátima cresceu a partir do discurso da ordem social,
do fortalecimento da fé e das tradições que estavam em acordo com os
ensinamentos católicos. Suas atribuições foram adaptadas às necessidades
dos fiéis e aos projetos eclesiásticos que estavam em desenvolvimento no
país, como o processo de politização do clero.
Durante os anos de 1930, a devoção a Fátima colaborou para a
instituição de uma religião civil no Brasil. Neste período a Igreja Católica
prestava o serviço de domesticação das consciências ao Estado, com o apoio 353
político dos intelectuais católicos (LENHARO, 1986: 190). Para Maria das
Graças Ataíde, os membros do governo de Getúlio Vargas (1930 – 1945)
acreditavam que a ordem social só seria implementada a partir do controle
político das massas, instituindo um modelo de sociedade com base no
Deus (Catolicismo), na Pátria (nacionalismo) e na Família (Moral). A
desordem estava representada pelas religiões não católicas, o ensino laico,
o pensamento de esquerda e por todas as propostas que questionavam os
ensinamentos da Cúria romana (ALMEIDA, 2001: 41, 43).
As representações de Nossa Senhora de Fátima como anticomunista
colaborou para o projeto de moralização da sociedade. Na imagem, notamos

que fez na Praça de São Pedro diante da imagem de Fátima. (L’osservatore Romano, 1984:
01 – 04).
a mensagem que a Igreja passava aos fiéis e ao Estado, como colaboradora
no combate a desordem.

354
Imagem de Nossa Senhora de Fátima localizada na Capela do Engenho Uruaé, na cidade
de Goiana – PE. Abaixo da imagem consta: “Nossa senhora de Fátima Livrai o Brasil do
Comunismo”. Fonte: Acervo Particular.

A implementação do culto a Nossa Senhora de Fátima no Brasil


foi uma importante parcela para as trocas cultuais entre os intelectuais
católicos portugueses e brasileiros. As abordagens políticas na construção
de sua devoção, principalmente no momento de politização do clero, foram
fundamentais para os projetos de Restauração Católica que modificaram
conformo o tempo histórico na primeira metade do século XX.
O discurso anticomunista inserido na ortodoxia católica ligada
às mensagens de Fátima foi fundamental para a construção de um novo
culto em Portugal, que contribuiu para a formação de um catolicismo
militante. No Brasil, o projeto fortaleceu os trabalhos já desenvolvidos por
Dom Sebastião Leme e os seus colaboradores, mesmo que resguardando as
particularidades de cada localidade.

Referências Bibliográficas e Fontes

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Fátima. O Seculo, Lisboa, p. 01, 15 out. 1917a.

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Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa (AHPL), Lisboa, fundo Manuel 355


Gonçalves Cerejeira, PT/AHPL/PAT 14-SP/N-01/04/005, Carta da Irmã Maria
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PARA LER AS “PASSAGENS”: contribuições
fragmentárias ao estudo do modus operandi
benjaminiano1.

Elizabet Soares de Souza


Elson de Assis Rabelo
Erinaldo Cavalcanti
Márcio Ananias Ferreira Vilela
Maria do Rosário da Silva
Pablo Porfírio
Raimundo Inácio Souza Araújo
Vânia Cristina da Silva
Waldefrankly Rolim de Almeida Santos

A edição brasileira da obra “Passagens”, de Walter Benjamin,


vem acompanhada de três textos escritos por especialistas, dois dos quais
gostaríamos de destacar: Rolf Tiedemann (editor da obra em alemão) e
Willi Bole (organizador da edição brasileira). Ambos contribuíram para
uma melhor intersecção entre o conjunto dos escritos do autor e os leitores 361
da aludida obra, permitindo observar, dentre as várias possibilidades
suscitadas pela leitura, temáticas importantes dentro de uma postura
filosófica revolucionária presente no conjunto epistemológico produzido
por Benjamim. O exame atencioso dessas orientações é uma das tarefas a
que nos propomos neste texto.
Se fragmentação, inacabado, provisório, passageiro, fazem parte
do tecido escriturístico de Walter Benjamin, o próprio título de sua obra
capital representa essa tessitura escriturária. A começar pela ausência de

1 Este artigo é resultado de elaboração conjunta dos alunos da disciplina Problematizando


os relatos de espaço, a questão da experiência e a narrativa (tópico especial de teoria),
ministrada pela prof. Dra. Regina Beatriz Guimarães Neto, do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
título. Os que são a ela costurados, nas mais diversas versões e traduções,
deve-se sobretudo a seus editores.
A começar pelo editor alemão, que atribuiu A Obra das Passagens
como título para os escritos de Benjamin. No que tange à escolha do editor
brasileiro, este nomeou de Passagens e explica sua opção por entender que
esta expressão contempla três dimensões fundantes para Walter Benjamin
ao abrir um leque semântico que abraça uma referência topográfica,
uma referência temporal e uma referência ao próprio modo de gestação
escriturária da história, nesse caso, da história da metrópole Paris.
Os escritos que Benjamin deixou, ora assinados por Passagens, foram
fabricados em três momentos distintos e não seguindo uma linearidade
cronológica. Seria essa não-linearidade, uma estratégia metodológica de
Walter Benjamin, representando suas concepções de tempo e história?
A primeira fase de construção é denominada pelo próprio
Benjamin, de esboço. Este termo nos remete à idéia de uma construção
processual, que nas palavras de Wille Bolle “o esboço é uma expressão do
provisório, do ainda não pronto, de algo em fase de planejamento” (BOLLE,
2006, p. 1144).
Para a segunda fase da construção, a denominação mais adequada,
362 de acordo com Wille Bolle é arquivo. Esta fase foi nomeada por seu autor
de coletânea, sendo traduzida para o português, como arquivo e aplica-se
“a cada um dos materiais e notas, excertos, resumos, citações, trechos de
outros textos, em suma a cada uma das ‘passagens’” (IBIDEM, p. 1145).
Na terceira fase reside o projeto de um livro, que não chegou a ser
produzido. Nesse momento, Walter Benjamin foi “encarregado de escrever
‘um artigo materialista sobre Baudelaire’, ele projetou em vez disso um
livro, que seria um ‘modelo [...] do trabalho das Passagens’ e se chamaria
Baudelaire – um poeta lírico no Auge do Capitalismo” (IBIDEM, p. 1141).
Não podemos caracterizar o que Benjamin produziu, nas Passagens,
como algo acabado, fechado e concluído, como se faze em muitas “oficinas
historiográficas”, nem seu objetivo consciente era a exposição de um livro
nas prateleiras de livrarias. O que ele fabricou se assemelha a um bordado;
uma colcha de retalhos, que foi costurada e pintada com os fios do tempo.
Não o tempo opaco e sem cor distribuído numa linearidade. Mas tempos
plurais do aqui e do agora, que são ressignificados e atualizados nos ateliês
das narrativas. Tempos que permanecem inacabados, já que o acabado para
Walter Benjamin representa o sofrimento. Em seus escritos relampejam os
fios dourados dos múltiplos tempos. Tempos fragmentados e inconclusos,
não lineares e polifônicos.

***

Como afirmamos acima, para a consecução deste texto dialogamos


com outros dois: a “Introdução à Edição Alemã”, de Rolf Tiedemann
(2006) e o posfácio à edição brasileira, intitulado “Um Painel com Milhares
de Lâmpadas” – Metrópole & Megacidade, de Willi Bolle (2006). De
modo amplo, podemos dizer que ambos se propõem a tarefa de oferecer
orientações aos possíveis leitores das Passagens. Esses dois textos são
fundamentais para a compreensão de questões teóricas e metodológicas
inovadoras colocadas para os historiadores na atualidade.

“Método deste trabalho: montagem literária. 363


Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não
surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de
formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os
resíduos: não quero inventariá-los, mas sim fazer-lhes
justiça da única maneira possível: utilizando-os.” [N
1a, 8]

Walter Benjamin

Diante da grandiosidade das Passagens surgem-nos inúmeras


questões: como ler essa “obra constitutivamente fragmentaria” (BOLLE,
2006, p. 1150)? Como ler esses dois roteiros antes de adentrar no labirinto
de Walter Benjamin? Como as ferramentas analíticas apontadas pelos dois
autores colocam-nos questões para a escrita da história? Como nos situamos
diante dessas orientações? Como essas orientações se transformam em
ferramentas analíticas que nos permitem explorar as Passagens? Qual a
nossa proposta no sentido de montar um mapeamento criativo que nos
ajude a explorar a arquitetura da escrita das Passagens?
Pretendemos dialogar com a historiografia, mas o que nos interessa
é a proposta de escrita da história de Walter Benjamin, é o seu método
historiográfico, é a ressonância desse método no trabalho dos historiadores.
Assim, propomos um método de leitura baseado no princípio da montagem
cujo objetivo é nos ajudar a flanar pelas Passagens benjaminianas.

***

Como podemos pensar as análises construídas sobre as Passagens para


a nossa escrita historiográfica? Essa é uma questão que pode ser respondida
através de múltiplos caminhos. Escolhemos aqui trabalhar com a idéia
do fragmento, presente no trabalho das passagens2 realizado por Walter
Benjamin. Para isso, é necessário reconhecer o fazer historiográfico como
364 algo que se institui como uma maquinaria narrativa que vai esculpindo
tempos e fabricando espaços em sua usinaria. Fabricando, não como se
fabrica nas indústrias modernas, mas como se tece os bordados nos ateliês
de artesãos e bordadeiras.
A citação acima, de autoria de Walter Benjamin, deve nos servir de
ponto de partida para a discussão que nos propõem Rolf Tiedemann e Willi
Bolle, comentadores da edição brasileira do livro das Passagens. Com efeito,
conforme o presente texto tentará mostrar, método de pesquisa e forma
de organização do material pesquisado parecem se remeter mutuamente
na obra do filósofo alemão. É daí que nos encaminharemos para pensar
2 A publicação dos arquivos de Walter Benjamin recebeu diversos títulos. Contudo, segundo
Willi Bole, na maioria das vezes, Benjamin falava em “Passagenarbeit”, que significaria o
“Trabalho das Passagens”. Acreditamos que esse título realmente representaria mais a idéia
de um trabalho ou um texto fragmentário, tão estudado e desenvolvido por Benjamin.
como essa metodologia e essa elaboração fragmentária do livro em questão
podem informar o trabalho do historiador – passo seguinte da nossa leitura
assumidamente focada, esquivada dos problemas maiores que percorrem a
obra de Benjamin e que são tomados por seus comentadores.

A relação presente-passado

Tanto Rolf Tiedemann como Willi Bolle destacam um aspecto que


consideramos importante para quem deseja compreender a prática de
pesquisa de Benjamin: o presente. O tempo presente é para este pensador
um momento revolucionário, um tempo de ação. Pensando num melhor
entendimento sobre esse tempo, Rolf faz a seguinte afirmação:

[...] para Benjamin, os fenômenos históricos eram


opacos, obscuros ao próprio coletivo que sonha [...]
a interpretação do presente para Benjamin é remetida
ao passado mais recente: a ação presente era para
ele um despertar do sonho da história, ‘explosão’ do
ocorrido, a reviravolta revolucionária (TIEDEMANN,
2006, p. 20-21). 365

Ora, o passado pelo passado é apresentado como algo impossível de


compreensão histórica. É opaco, sem cor, sem vida. O despertar do sonho
coletivo, da imobilidade social, só é possível para Benjamin no tempo
presente, no tempo da ação. Aprofundando mais, podemos pensar outra
dimensão crucial no pensamento de Benjamin, o presente como um tempo
de atualização. Ou seja, a história como um despertar da sociedade não
se encontra em um fluxo linear dos acontecimentos, pensada dentro de
explicações gerais. Para Willi Bolle,

Distanciando-se da visão progressista da história,


que o marxismo ortodoxo compartilha com o
pensamento burguês, Benjamin visa ‘demonstrar um
materialismo histórico que aniquilou em si a idéia
de progresso’ e cujo conceito básico não é progresso,
e sim atualização’. Atualização enquanto leitura
não-linear, não aplainada, mas vertical da História
(BOLLE, 2006, p. 1155-1156).

Esse fragmento nos leva à seguinte afirmação: para Benjamin, a


verdade é sempre uma verdade no tempo. Ele afasta-se do conceito de uma
verdade atemporal. O autor revoluciona o conceito de verdade presente no
historicismo e no idealismo (uma imagem eterna do passado). O tempo
delineado como o tempo da verdade se encontra no presente. A verdade
não se localiza no passado, ela não é fruto de um amontoado de fatos
ocorridos em uma lógica linear ou evolutiva da humanidade. No entanto,
esse passado exige, coage o presente. Ele se impõe enquanto passado. O
presente se obriga a dizer, a falar. Uma explicação condizente sobre esse
aspecto foi elaborada por Willi Bolle citando o próprio Benjamin: “‘para que
um fragmento do passado seja tocado pela atualidade’, explica Benjamin,
‘não pode haver qualquer continuidade entre eles’” (BOLLE, 2006, p. 1158).
366 Aqui, Benjamin estabelece uma complexa e rica dialética entre o ocorrido
e o agora, no que denominou de “o agora da cognoscibilidade”. Para ele,
“a relação entre o ocorrido e o agora é dialética – não é uma progressão, e
sim uma imagem que salta” (BOLLE, 2006, p. 1158). Em outras palavras,
podemos afirmar que o passado salta ao presente, fazendo surgir suas
diferenças e semelhanças. Ele é chamado a depor, é citado e se apresenta
aberto, inconcluso. Ele não progride para um presente, mas salta por meio
do processo de atualização, a ter como participantes o historiador, bem
como seu leitor.
Feito este percurso, torna-se possível compreendermos o tempo
presente como um momento de uma reviravolta revolucionária. Ou mais
ainda, nos faz pensar no presente como um tempo da redenção. Uma
redenção que não está fora de uma ação, de um agir do historiador. Para
Rolf Tiedemann e Willi Bolle, Benjamin, ao tratar do tempo presente como
um momento de salvação, assume uma posição política. Ou seja, Benjamin
projeta em seus escritos uma forte crítica a sua época, sobretudo ao
capitalismo. A redenção é para ele uma reação à idéia de modernidade e de
progresso. De um progresso cuja fé é voltada para o futuro da humanidade. É
no agora que Benjamin visualiza a possibilidade de revolução, de mudança.
É revelador o esforço de Benjamin com relação ao trato do
problema histórico que deveria tomar configuração a partir da envergadura
metodológica de seu projeto. O rigor da crítica ao historicismo está,
portanto, em perceber que, além de uma estruturação teleológica dos
eventos históricos, pontuando o continuum sob o qual é estabelecido
o falacioso progresso automático, pesam também aspectos relativos à
apresentação da história, isto é, a narratividade dos fatos, a partir da qual o
“tempo homogêneo e vazio do progresso” perpetua seu status quo.
As Passagens, nesse sentido, são uma obra que se apresenta
lançando enormes desafios aos historiadores atuais. Deixando de lado as
intensas discussões que remetem essa obra como um texto acabado ou
não, se em formato de livro ou um grande fichário, enfim, Benjamin nos
faz pensar, para além dessas questões: como elaborarmos uma escrita do
mundo, uma escrita que produza ação, e não uma extensa descrição do 367
passado pelo passado. Uma escrita capaz de iluminar um canto do mundo
como uma mônada. Uma leitura do mundo capaz de construir destruindo,
pois, como no exemplo da relação que Benjamin estabelece com Baudelaire
para abordar o século XIX, “ao desconstruir a recepção convencional do
poeta, o crítico abre novos caminhos de mediação da tradicional cultura”
(BOLLE, 2006, p. 1161). Eis aí o desafio lançado aos historiadores, de uma
história-ação, despertar de sonhos, por isso, redentora.

O método de pesquisa
[...] aplicar à parte recém-eliminada, negativa, uma
nova divisão, de tal maneira a, com um desvio do
ângulo de visão [...], fazer surgir de novo um elemento
positivo e diferente daquele que foi previamente
designado como tal. E assim por diante, in infinitum,
até que todo o passado seja, em uma apocatástase
histórica, introduzido no presente.

BENJAMIN, Walter apud TIEDEMANN, Rolf.


Introdução à edição alemã. In: BENJAMIN, Walter.
Passagens. Belo Horizonte: Editora da. UFMG; São
Paulo: Imprensa Oficial, 2006.

Sem nos propormos a uma comparação aberta entre os dois


apresentadores cujos textos servem de guia para a leitura da referida
obra, um primeiro elemento digno de nota é a sutil discordância entre as
abordagens da forma textual do livro. Rolf Tiedemann, ao procurar situar
a escrita do trabalho nas referências biográficas e intelectuais de Benjamin,
lamenta repetidamente o caráter inacabado da obra: “Se tivesse sido
concluída, as Passagens não teria sido nada menos do que uma filosofia
material da história do século XX” (TIEDEMANN, 2006, p. 13). Por sua
368 vez, Willi Bolle elogia, desde o início, a “escrita fragmentaria” benjaminiana,
utilizando-se, por exemplo, de uma citação de Benjamin sobre A origem
do drama barroco alemão: “A quintessência de seu método é a forma de
apresentação” (BOLLE, 2006, p. 1141).
Seja ressaltando o aspecto absolutamente inacabado de um tratado
filosófico – “material de construção de uma casa da qual apenas demarcou-
se a planta ou se preparou o alicerce” (Tiedemann) –, seja celebrando o
“esboço” e a forma do arquivo temático contra a do livro “fechado” (Bolle),
a leitura desses textos permite vislumbrar nas Passagens certo aspecto da
metodologia de pesquisa de Walter Benjamin que, a par de uma visão
política libertadora do passado, traz à baila questões ainda recorrentes para
os historiadores. Método que apesar de frequentemente enunciado em
termos teológicos, como nas teses Sobre o conceito de história, se materializa
na obra em questão depois de ter sido cada vez mais temperado ao sabor
das mudanças teóricas e políticas do pensamento de Benjamin – incluindo
a deglutição muito particular que ele fez do materialismo histórico.
Esse método implica primeiramente o “desvio do ângulo de visão”,
uma volta insistente por sobre as fontes, que consiste em “aplicar à parte
recém-eliminada, negativa, uma nova divisão” – aquilo que a historiografia
contemporânea tem praticado a partir da problematização dos recortes
estabelecidos. Por “positivo” e “negativo”, subentende-se a aberta inspiração
do método na reprodução fotográfica de novas imagens: do negativo, isto é,
de recortes e fontes outrora negligenciados, é preciso “fazer surgir de novo
um elemento positivo e diferente daquele que foi previamente designado
como tal”. Não é isso que Benjamin pretende fazer dos chamados “períodos
de decadência”, relendo-os e salvando-os como emblemas da caducidade
do tempo e como “miragens de sínteses futuras”, e não como o pólo oposto
do progresso e, portanto, preso a sua grade teórica (BOLLE, 2006, p. 115-
1155)? Se, assim, os objetos do passado não se esgotam na periodização e
nas classificações que lhes são dadas, se a história não sela definitivamente
os túmulos que revira, é porque é sempre possível, como na relação entre
negativo e positivo, inverter posições de luz e de sombra, atualizar o
passado segundo os diferentes germes de futuro que ele possui, os quais 369
encontram suas ressonâncias no “tempo do agora” propício e politicamente
interessado dos diferentes presentes.
Ora, as imagens reproduzidas pela fotografia são cópias de semelhantes,
nas quais Benjamin vê a possibilidade de acentuação da tradicional faculdade
mimética, aquela através da qual captamos o semelhante no mundo.
A atribuição e o reconhecimento de semelhanças, segundo o conceito
benjaminiano muito peculiar de mimeses, tributário da Poética aristotélica,
se dão justamente no exercício dessa faculdade eminentemente criadora,
que insere naquilo que não é aparentemente sensível relações inesperadas
de correspondência (GAGNEBIN, 1997; TIEDEMANN, 2006, p. 18). Para
nossa leitura do grande tecido de semelhanças que são as Passagens, o que
Benjamin sugere com a exploração de positivos no interior de negativos é a
captação de semelhanças no passado, de modo que cada nova mirada sobre
os pequenos cristais de temporalidade que são os documentos é a abertura
para indagações que ressituam os objetos. Longe estamos daquilo que foi
rotulado de “positivismo”, entendido como a emanação pura do passado a
partir unicamente da fonte: a relação de semelhança só nos traz um dado
passado à medida que o filtra e o traduz segundo critérios particulares de
correspondências.
Introduzir de modo infinitesimal o passado no presente, como diz a
epígrafe que utilizamos, remete a outra importante assertiva benjaminiana,
segundo a qual: “Escrever a história significa [...] citar a história”. Diferente
da “empatia” historicista e do seu projeto de restituir o passado “tal como
ele foi”, está em questão na visão da prática da pesquisa histórica como
citação a abertura para a criação que Benjamin credita ao diálogo com o
passado e a determinados objetos que o historiador, em sua intervenção,
pode construir: os vencidos e seu “amontoado de ruínas [que] cresce até o
céu”. Dito de outro modo, antes mesmo de fazer um texto poético, criador e
inventivo que dê forma à trama de fatos e documentos – como costumamos
dizer na reflexão mais recente sobre a narrativa histórica – o próprio fazer
história, sua técnica e seu método, parece ter aí sua dimensão artística e
370 necessariamente política.
Destaca-se, também, da leitura dos dois comentadores o caráter
monadológico da filosofia de Benjamin que, em uma instância mais
nitidamente operacional para o trabalho historiográfico, pontua novamente,
e sob outro matiz, a questão metodológica de que nos ocupamos aqui: na
mônada, partícula semelhante mas singular da reprodução do ser, estaria
uma imagem desse mesmo ser, uma forma muito específica de acessá-
lo. É o que se vê na obra de Benjamin, por exemplo, com a tomada de
determinados objetos – como a metrópole, a narrativa, a arte reprodutível
– e seu tratamento como “cristais” sobre os quais se podem “edificar as
grandes construções” de temporalidade – o século XIX, a experiência na
sociedade moderna, as relações da arte com o capitalismo e com o Estado
fascista. Nas Passagens, em particular, os documentos mesmos são tratados
como mônadas que deflagram uma visualização abrangente do passado,
como se nota por sua seleção temática, pela abertura que sugerem para que
possamos interpolar interpretações “no infinitamente pequeno” e por não
haver comentários maiores que pretendessem costurar definitivamente o
texto do autor e, por conseguinte, remontar um “contexto” inteiriço.
Da leitura de Rolf Tiedemann, depreende-se o longo e incerto
percurso, de mais de uma década, no qual Benjamin insistia em introduzir
o passado nos diferentes presentes vividos, sobretudo nos mais críticos em
termos pessoais e políticos na conturbada década de 1930. Não deixando de
fazer as semelhanças proliferarem pela reunião das citações do século XIX,
o percurso foi sem dúvida deixado em aberto, mesmo a acreditar na forma
proposital do “esboço” defendida por Willi Bolle. Ao creditar essa forma
às referências estéticas de Benjamin – o romantismo, o expressionismo e
o surrealismo – Bolle retoma, sob outro viés, o corpo textual que foi dado
às Passagens, o que nos reenvia a uma citação pertinente feita por Rolf
Tiedemann: “Benjamin deifiniu como ‘problema central do materialismo
histórico’ [...] a seguinte pergunta: ‘de que maneira seria possível conciliar
uma plena visibilidade com a aplicação do método marxista’”. Ora, a plena
visibilidade como proposta de conhecimento nunca chegou a ser o horizonte
teórico de Benjamin, para quem a verdadeira imagem dialética do passado 371
“corre veloz” como um clarão fugidio; tampouco, a aplicação fiel do método
marxista foi concretizada, seja nas demais obras, seja nas Passagens. Resta
que, enquanto exercício de prática de pesquisa, essa obra póstuma, que se
nos apresenta como o “amontoado de ruínas” das teses Sobre o conceito de
história, além de ter servido como material de experimentação estética e
política do autor, serviu ainda como mais um de seus eixos de flexibilização
teórica – o que nos dá muito o que pensar para a construção de nossos
objetos na relação entre fontes e referências teóricas.
Acreditamos, portanto, que as Passagens apontam para um rico
leque de possibilidades sobre questões teóricas metodológicas – de grande
interesse dos historiadores contemporâneos – sobre como escrever a
História.
Os fragmentos e a escrita da história

Para seu estudo sobre a metrópole Paris no século XIX, o autor


alemão criou uma coletânea de fragmentos que serviria de material para
a escrita de um livro ou poderia se constituir como banco de dados para
a construção de novas histórias. Segundo Rolf Tiedemann, Benjamin
desenvolveu o princípio da montagem na História. Assim, buscou edificar
grandes construções a partir do uso de elementos mínimos, fragmentos
(TIEDEMANN, 2006, p. 15). Com isso, interessava-lhe o objeto singular, o
pequeno momento, que seria confeccionado com um movimento preciso e
agudo. Era necessário ter precisão.
Mas, como proceder a uma escrita da História partindo de um
conjunto ou arquivo de fragmentos? Willi Bolle, em seu pósfacio sobre
Passagens nos oferece alguns caminhos a serem percorridos. Em primeiro
lugar, reafirmando a idéia de Tiedemann, a operação da escrita consistiria
em uma montagem, uma construção que ligaria diversos fragmentos,
produzindo múltiplas percepções, simultâneas e polifônicas.
A união desses fragmentos, contudo, não representa o resgate de um
fluxo linear dos fatos. Eles não operam como peças que se encaixariam para
372 resgatar causas genéticas de uma história épica. Cada tópico apresentado
no texto tem suas questões próprias. Mas, elas também se entrecruzam.
O historiador produz então um tecido historiográfico ao trabalhar com a
produção desses entrecruzamentos.
Essa produção e o seu resultado se apresentam como um mecanismo
móvel e dinâmico. Segundo Willi Bolle, nas Passagens, o leitor é chamado
para participar de um trabalho produtivo de construção, desconstrução e
nova construção (BOLLE, 2006, p. 1152). Os fragmentos do passado são
usados pelo historiador para produzir imagens e fisionomias, que oferecem
diversas possibilidades de leituras.
Entretanto, para oferecer esse construtivismo fragmentário em um
texto que ofereça possibilidades de atuação, é necessário o historiador
saber utilizar algumas ferramentas e procedimentos. Primeiro é importante
construir o fichário do historiador. Para tanto, deve-se formular um
programa de investigação. Depois se inicia a exploração do banco de dados
em função das questões colocadas em seu programa. Entrar no banco
de dados significa realizar o processo de seleção, resumo e organização
conceitual dos fragmentos.
Ao final, necessita-se construir o que Bolle chama de painel de comando.
Isso possibilita ao historiador visualizar o roteiro que se quer percorrer e
articular com o conjunto de materiais à disposição. No painel, poderemos
acender e apagar milhares de lâmpadas, experimentar combinações de cores,
formas e temporalidades. Assim, definiremos as imagens ou fisionomias que
desejamos que permaneçam acessas para o público.
Mas, as lâmpadas que aparecem no painel ou os fragmentos
formadores do texto historiográfico devem ser pensados, como nos afirma
Gilles Deleuze;

[...] como o problema de uma unidade e de uma


totalidade que seriam nem lógicas nem orgânicas,
isto é, que não seriam nem pressupostas pelas partes,
como unidade perdida, ou totalidade fragmentada,
nem formadas ou prefiguradas por elas no curso 373
de um desenvolvimento lógico ou de uma evolução
orgânica (DELEUZE, 2006, p. 156).

O historiador ao trabalhar com a unidade singular não a deve


pensar simplesmente como o fragmento de uma totalidade perdida e
predefinida. Nem como sendo definida pelo total, uma simples peça que já
tem sua função e forma determinada em quebra-cabeça já existente.

Uma proposta de estudo das Passagens

Rolf Tiedemann compara os fragmentos das Passagens ao material


de construção de uma casa da qual apenas se desenhou a planta ou se
preparou as fundações. Esse desenho encontra-se delineado nas duas
Exposés que iniciam a edição brasileira. Com as Exposés, Walter Benjamin
traçou a imagem do edifício que ele pretendia construir, cujas plantas foram
desenhadas entre incertas circunstâncias de vida e trabalho.
Ao ler as Passagens precisamos ter em mente a imagem deste edifício:
aos capítulos correspondem os andares, seis na Exposé de 1935 e cinco na
Exposé de 1939; ao alicerce equivale o amontoado de citações que têm a
função de compor as paredes, pois para Walter Benjamin é possível edificar
grandes construções a partir de elementos mínimos; as reflexões do próprio
Benjamin exercem a função de argamassa que liga o amontoado de citações
por meio de correspondências.
A proposta benjaminiana de escrita da história apresenta um
princípio construtivo, revestido de vivacidade, em um tempo “saturado de
agoras”, no qual movimento e imobilização são simultâneos. O “historiador
materialista” não deseja a cristalização de sua escrita, mas constrói um
trabalho produtivo, móvel, dinâmico, com abertura para uma nova
construção que se desdobra em outras histórias.

A redação deste texto que trata das passagens


374 parisienses foi iniciada ao ar livre, sob um céu azul
sem nuvens, arcado como uma abóbada sobre a
folhagem e que, no entanto, foi coberto com o pó dos
séculos por milhões de folhas, nas quais rumorejam
a brisa fresca do labor, a respiração ofegante do
estudioso, o ímpeto do zelo juvenil e o leve lento
sopro da curiosidade. Pois o céu de verão pintado
nas arcadas, que se debruça sobre a sala de leitura da
Biblioteca Nacional de Paris, estendeu sobre ela seu
manto opaco e sonhador. [N 1, 5]

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte:


Editora da UFMG. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.
“Os fragmentos, em sua maioria curtos, representando, por vezes,
um resumo do pensamento, raramente permitem perceber como Benjamin
imaginava que seriam interligados” (TIEDEMANN, 2006, p. 15).
Dois roteiros nos são sugeridos para a leitura dessa obra. O editor
alemão Rolf Tiedemann, recomenda que iniciemos a leitura pelas Exposés.
Feito isso, recomenda que se dê seguimento à leitura do arquivo N: Teoria
do Conhecimento, Teoria do Progresso, para depois iniciarmos nosso
percurso às Notas e Materiais. Adverte-nos, portanto, a uma leitura mais
acurada dos fragmentos reservados à reflexão do próprio Benjamin, bem
como das citações comentadas por ele, “mesmo que de forma embrionária”.
Notamos em Tiedemann, certo incômodo com o caráter fragmentário
do texto, posto isso, faz questão de ressaltar em vários momentos, que se a
obra tivesse sido concluída, “teria sido evitada a distinção entre a teoria e
o material”. Por fim, ele faz uma ressalva e adverte que devemos “enfatizar
ainda mais que apenas a leitura de todas as notas, apenas o estudo de todas
as citações, mesmo as mais dispersas, pode levar à compreensão plena das
intenções de Benjamin” (TIEDEMANN, 2006, p. 33).
Já Willi Bolle, organizador da edição brasileira, nos aponta um grande
leque de possibilidades para a leitura desse texto, ressaltando sempre que se
trata de algo inovador e que “em vez de lamentar o caráter inacabado do livro 375
das Passagens, deveríamos valorizar o projeto de Benjamin como arquivo,
dispositivo aberto para novas pesquisas”. Ou seja, o caráter inconcluso da
obra não faz dela algo frágil, mas traz à tona uma nova forma de escrita.
Além do mais, “não há nenhuma evidência de que Benjamin quisesse
publicar em vida seu arquivo de esboços, notas e materiais da forma como
foi editado postumamente”, mas devemos considerar a hipótese de que
talvez ele “vislumbrasse uma saída daqueles impasses no sentido de deixar
– como alternativa à obra condenada a permanecer fragmentária, por força
das contingências – uma obra constitutivamente fragmentária”, onde sua
proposta de escrever a história seria continuada por nós leitores (BOLLE,
2006, p.1150). E mais, destaca que:
Na medida em que atribuímos às Passagens, em
termos de gênero e estatuto de texto, as características
de um grande arquivo ou banco de dados, nós o
valorizamos como um dispositivo essencialmente
móvel e dinâmico, voltado para um trabalho produtivo
de construção, desconstrução e nova construção,
envolvendo a participação ativa dos leitores (BOLLE,
2006, p. 1152, grifo nosso).

Após a leitura desses dois textos, percebemos que ambos os


autores, cada um em suas idiossincrasias, trazem grandes contribuições e
são de suma importância para a realização da leitura das Passagens, obra
na qual Benjamin consegue articular e correlacionar teoria com uma
pretendida estilização literária, construindo assim, uma narratividade
poética do histórico, que busca a produção de um conhecimento.
Devemos, pois, nos enlear entre esses fragmentos e imagens e
a partir daí, traçarmos nossas próprias “incursões, pesquisas e descobertas
nesse Grande Arquivo que são as Passagens”. É uma possibilidade para
repensarmos nossa própria escrita, pois “escrever a história significa,
376 portanto, citar a história. Ora, no conceito de citação está implícito que o
objeto histórico em questão seja arrancado de seu contexto” (N 11, 3).
Frente à sua peculiar textura escritural, devemos levar conosco suas
noções sobre a arte de escrever, lembrando sempre que, “o conhecimento
existe apenas em lampejos” e que “o texto é o trovão que segue ressoando
por muito tempo” (N 1,1).
Walter Benjamin é adepto de uma história não seqüencial, não
épica, e descontínua, através de uma historiografia constituída por citações
e imagens, pois para ele escrever a história é citar a história “assim como
alguém é citado diante de um tribunal”. E desafia os historiadores a
erguerem suas construções “a partir de elementos minúsculos e descobrir
na análise do pequeno momento individual o cristal do acontecimento
total” (BOLLE, 2006, p. 1158). Dessa forma ele desafia o historiador a
transformar-se em carpinteiro do passado, e mais que isso; desafia-o a
trabalhar em sua carpintaria com os escombros, os destroços, os pequenos
pedaços que necessitam ser juntados, organizados.

Referências Bibliográficas

BOLLE, Willi. Um painel com milhares de lâmpadas. In: BENJAMIN, Walter.


Passagens. Trad. de Irene Aron. Belo Horizonte: Editora da. UFMG; São Paulo:
Imprensa Oficial, 2006.

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Tradução de Antonio Piquet e Roberto


Machado. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno


e Benjamin. In: ______. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de
Janeiro: Imago, 1997 (Biblioteca Pierre Menard).

TIEDEMANN, Rolf. Introdução à edição alemã. In: BENJAMIN, Walter.


Passagens. Belo Horizonte: Editora da. UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. 377
Título A história e suas práticas de escrita: narrativas e documentos
Organizadores Erinaldo Cavalcanti
Geovanni Cabral
Projeto Gráfico/Capa João Dionisio
Revisão de Texto Organizadores

formato 15,5 x 22,0 cm


fontes Fontin Sans, Minion Pro
papel Póloen Bold 90g/m2 (miolo)
Triplex 250 g/m2 (capa)

tiragem XXX exemplares - mes 2015


Impressão e Acabamento Oficina Gráfica | EdUFPE

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