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MONTEIRO
BELÉM
2022
0
DALVA LIMA DOS SANTOS
Belém
2022
1
DALVA LIMA DOS SANTOS
Banca examinadora:
_____________________________________________________
Profª Drª Luclinda Ribeiro Teixeira (Coorientadora)
Universidade da Amazônia
_____________________________________________________
Profª Drª Rosângela Araújo Darwich
Universidade da Amazônia
_____________________________________________________
Prof Dr Marco Antônio da Costa Camelo
Universidade Estadual do Pará
_____________________________________________________
Profª Drª Veridiana Valente Pinheiro (Convidada)
Belém
2022
2
Sumário
1 Introdução .............................................................................................................. 4
3
1. Introdução
Os anos que antecederam o golpe militar no Brasil, conhecido como “período pré-
ditadura”, já demonstrava as tensões em que o país estava mergulhado. Com a
renúncia de Jânio Quadros, que ficou apenas sete meses no governo, com a posse
de seu vice, João Goulart, o conflito político-ideológico ficou mais tenso.
Devido sua relação com o sindicalismo brasileiro, várias vezes João Goulart foi
acusado de ser comunista e a crise em seu governo fortaleceu-se após definição das
Reformas de Base que previa, entre outras medidas, a reforma agrária.
Eram tempos da chamada Guerra-Fria (1947-1989) e havia o temor de um
suposto “perigo comunista”, assim, os Estados Unidos da América, defensor do
capitalismo, financiou as ditaduras militares em toda a América Latina como forma de
“frear o crescimento de ideias comunistas na região”(ARAUJO et al, 2013). Assim, em
31 de março de 1964, após vários movimentos de parte da sociedade civil,
empresariado, igreja católica e militares, tanques do exército foram enviados ao Rio
de Janeiro, onde estava o presidente João Goulart. Três dias depois, João
Goulart partiu para o exílio no Uruguai, para “evitar uma guerra civil”. Em seu lugar,
uma junta militar assumiu o poder do Brasil e no dia 15 de abril, o general Castello
Branco toma posse e declara o primeiro Ato Institucional da Ditadura Militar no Brasil
– conhecido como AI 1.
É nesse período que, no Brasil se estende até 1985, surge um extenso corpus
de textos denunciando o terror das ditaduras militares instaladas em vários países da
América Latina. A violência gerada pelos regimes ditatoriais causou impacto imediato
nas letras (poesia, narração, romances, contos, crônicas, editoriais entre outros) o
que, de acordo com André (2004), descontruiu as fronteiras da literatura e contribuiu
para o surgimento de um “universo linguístico” que mostra o cenário de lutas e,
sobretudo, de sobrevivência nos tempos em que a violência era usada como política
de estado, em nome da segurança nacional, contra os opositores políticos do
governo.
Os reflexos do golpe foram, ainda que distante do grande centro político
nacional, sentidos na Amazônia, onde também houve perseguições políticas, torturas,
prisões. No Pará, Père Petit (2003), afirma que os trabalhos que voltaram suas
atenções para a história da Amazônia no período da ditadura militar, mostram que
4
uma das consequências da presença das Forças Armadas na Amazônia durante o
regime militar foi o enfraquecimento do poder político dos governos estaduais e
prefeituras da região.
Naquelas eleições, dos seis deputados estaduais eleitos pelo PTB em 1962, o
advogado Benedicto Monteiro, foi quem maior número de votos obteve. Os três
comandantes do Estado-Maior do Comando Militar da Amazonia – 8ª Região Militar -
sediado em Belém, acusando Benedicto Monteiro de comunista e subversivo,
tentaram, após a divulgação dos resultados eleitorais, impugnar sua candidatura, mas
suas alegações não foram aceitas pelo Tribunal Eleitoral. Somente após o golpe
militar de 1964, em 9 de junho daquele ano, por estritas motivações políticas, Monteiro
teve seus direitos políticos suspensos e mandato cassados.
Das situações-limite, diga-se torturas, Monteiro (1993) afirma que, antes de ser
preso, tinha apenas a ideia dos livros de literatura e dos filmes de cinema, e que
durante os sete meses que ficara preso, foi na cela solitária que conheceu outras
formas de tortura
5
e poeta, com a minha carteira de advogado. O que valiam toas essas
coisas naquele momento para a sociedade: o que valia a minha
própria pessoa humana para as outras pessoas? Estas eram apenas
algumas das indagações íntimas que faziam parte da minha tortura;
Eram as incertezas e as dúvidas que ocupavam, de maneira
obsessiva, a minha mente. E por causa dessa tortura mental, caí logo
em outro tipo de torturamento: a incomunicabilidade. (MONTEIRO,
1993, p. 64-65)
Schimidt (2014) afirma que uma pesquisa é suscitada por algo que nos
inquieta, algo que “nos atravessa e fica sem resposta”. Neste trabalho a pergunta,
para qual se busca uma resposta, surgiu após o reencontro com o romance Verde
Vagomundo, obra pertencente à Tetralogia Amazônica, de Benedicto Monteiro: o que
há de real, portanto, testemunhal nas vozes das personagens deste romance?
6
herdou, necessita de alguém que as conheça e o leve até elas e seja também capaz
de navegar pelos rios daquela região. É assim que o major conhece Miguel dos
Santos Prazeres, personagem presente em todos os romances da Tetralogia
Amazônica e os acontecimentos presentes no romance Verde Vagomundo começam
a se entrelaçar entre o real e o fictício.
7
Eles nascem dos escombros para testemunhar que a única
coisa que não se extingue é a linguagem. (p. 3) 1
1
No original: estos testimonios en el sentido de ser la estética de lo irrepresentable, o la representación
estética de la catástrofe, donde la convergencia de violencia y lenguaje es el punto central que genera
la discusión. Estos estudios dimensionan el sentido del testimonio porque este alude a lo que pareciera
ser irrepresentable: la experiencia traumática, el instante mismo del horror. Es el lenguaje que también
perpasa por la vivencia del silencio y la mudez, de la oscuridad de la prisión, para testimoniar él mismo
esta experiencia, porque el lenguaje no puede reducirse a criterios simplificadores por niveles de
representación, o no representación, sino verlo como la materia esencial de la representación de los
momentos de silencio e impotencia, de la ausencia de vida y de la suspensión del horror. Es así que
las narraciones y los versos surgen igualmente mutilados, doloridos. Nacen de entre los escombros
para testimoniar que lo único que no se extingue es el lenguaje.
2
No original: la littérature de l’holocauste? Le terme même est un contresens. Qui n’a pas vécu l’événement
jamais ne le connaîtra et qui l’a vécu jamais ne le dévoilera. Pas vraiment. Pas jusqu’au fond.
3 No origininal: bée entre eux l’abîme de la Shoah. Celui qui ne le voit pas tente manifestement de niveler les
histoires séparées des victimes et des bourreaux.
8
“segunda geração" não podem, portanto, mais reivindicar o que marcou a literatura
de seus antepassados: autenticidade.4
4
Para saber mais sobre o assunto, consultar: “La Shoah dans la littérature de la « deuxième génération”. Hartmut
Steinecke, Traduit de l’allemand par Olivier Mannoni. Dans Revue d’Histoire de la Shoah 2014/2 (N° 201), pages
239 à 264. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-revue-d-histoire-de-la-shoah-2014-2-page-
239.htm#re2no2 .
9
Eu em particular, desde o final dos anos 1990, prefiro falar não
tanto em testemunho, mas sim em “teor testemunhal” da cultura.
Acredito que o que aconteceu na teoria do testemunho foi uma
revalorização desse nó entre o real e a linguagem
(SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 11)
Por isso, quando se busca analisar o romance Verde Vagomundo sob a ótica
da literatura de testemunho, busca-se identificar o teor testemunhal presente na obra,
enfatizando que o testemunho está para além da ideia de gênero literário. Ou seja,
não se buscará caracterizar o romance de Benedicto Monteiro como de testemunho,
mas descrever o modo de manifestação do teor testemunhal presente na narrativa,
sem perder de vista, no entanto que, não é porque se trata de uma obra de ficção,
está isenta das marcas memorialísticas de seu autor, uma vez que “testemunho é
uma possibilidade de apresentar relatos com um peso traumático e inarrável”
(MACIEL, 2016). Assim, deve-se afastar a ideia de que tudo em Verde Vagomundo é
ficção, pois
toda representação contém (...) seu resto de silêncio - de algo
que já não está - de algo que nunca se entregou por inteiro à
simbolização. (KEHL, 2000, p. 140)
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CAPÍTULO 1. TRAVESSIA DO TEMPO
Após este período de internato, Benedicto Monteiro foi para o Rio de Janeiro
onde concluiu o ensino científico no Colégio Rabelo e em seguida iniciou o curso de
Direito na Faculdade Nacional de Direito, no entanto, apenas em 1952, pela
Faculdade de Direito do Pará que se bacharelou em Ciências Jurídicas e Sociais.
No período em que viveu no Rio de Janeiro (1943 a 1950), foi carregador,
despachante e gerente de aeroporto. Pode conviver com seu conterrâneo e
comunista declarado, Dalcídio Jurandir. Foi também repórter do Diário Carioca o que
lhe permitiu conhecer o líder revolucionário Carlos Marighella, que era Deputado
Federal Constituinte da Bahia pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi também
onde publicou, em 1945, ano do término da Primeira Grande Guerra, seu primeiro
livro, que por isso foi intitulado Bandeira Branca.
De volta ao Pará, exerceu importantes cargos públicos, como Pretor, Promotor,
Juiz de Direito, Professor (entre 1950 e 1954); Secretário de Estado de Obras, Terras
e Aviação, de janeiro de 1960 a abril de 1964; Procurador Geral do Estado, de 1983
a 1984, e advogado.
11
Na esfera política, Monteiro elegeu-se, na década de 50, vereador de Alenquer
pelo Partido Social Progressista (PSP); deputado estadual em 1958, pelo Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB) e reeleito pelo mesmo partido, em 1962 como candidato
mais votado naquele pleito, porém, em decorrência de sua militância política,
considerado como “comunista e subversivo”, foi solicitada pelos comandantes do
Estado-Maior do Comando Militar da Amazônia (CMA), a cassação do seu mandato.
As alegações dos comandantes foram aceitas, no entanto,
Foi preciso impetrar mandado de segurança perante o Superior
Tribunal Eleitoral, já funcionando em Brasília, para poder ter o direito
de disputar a minha reeleição. Devo ressaltar que se não fosse a
ajuda pessoal do meu amigo João Goulart, presidente da república,
que colocou um grande advogado para defender a minha causa, eu
não teria restabelecido esse direito (MONTEIRO, 1993, p.190).
5
A Quinta Companhia de Guardas, localizava-se onde hoje é a Casa das 11 Janelas e conta com Exposição
Permanente de Arte Modernista Amazônica. A Casa das 11 Janelas, juntamente com o Forte do Presépio,
compõe o Complexo Turístico Feliz Lusitânia, em Belém.
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combatido e todos os seus líderes e seguidores foram presos ou mortos6. Segundo
dados históricos, não houve prisioneiros de guerra: os guerrilheiros simplesmente
deixaram de existir.
Apenas em 1974, Monteiro foi absolvido pela Justiça Militar das acusações que
recaíam sobre si, voltando ao cenário político somente em 1982 como primeiro
suplente ao cargo de Deputado Federal pelo PDT, assumindo-o efetivamente em
1985, após renúncia de dois deputados federais, no mesmo ano que recebe o Título
de Honra ao Mérito da Assembleia Legislativa do Pará, como reconhecimento aos
“inestimáveis, extraordinários e relevantes serviços” prestados ao Pará. Reeleito
deputado federal em 1986 pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro, pode
participar da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, quando apresentou uma
emenda sobre reforma agrária.
O retorno à vida político-partidária fez-lhe também retomar a função como
escritor, iniciada em 1945 com o livro de poemas Bandeira Branca, seguido por Verde
Vagomundo (1972), seu primeiro romance e primeiro livro da tetralogia amazônica,
seguido do livro de contos O Carro dos Milagres (1975); o romance O Minossauro
(1975); a coletânea de poesias, O Cancioneiro de Dalcídio Jurandir (1985); o
autoplágio Como se Faz um Guerrilheiro (1985), relato da personagem Miguel retirado
na íntegra de A Terceira Margem (1983); romance Aquele Um (1985); a autobiografia
Transtempo (1993); o romance Maria de Todos os Rios (1995); o livro de poemas
Discurso Sobre a Corda (1994); a coletânea de poesias A Poesia do Texto (1998); o
romance A Terceira Dimensão da Mulher (2002), além do livro não literário Direito
Agrário e Processo Fundiário (1980), da área jurídica.
Especialmente pelo livro pelo livro de contos O Carro dos Milagres (1975), em
22 de março de 1984, o romancista de Alenquer assumiu a cadeira nº 20 da Academia
Paraense de Letras, cujo patrono fora o escritor paraense Inglês de Sousa.
Benedicto Monteiro acumulou atividades de advogado militante, com forte
atuação nas causas agrárias da região amazônica, e como escritor até seu
falecimento em 15 de junho de 2008.
6
Alguns guerrilheiros assassinados, nunca tiveram seus corpos encontrados. Segundo, Barbosa (2016), o
Exército desenvolveu a “Operação Limpeza”. Os militares que faziam parte dessa operação, exumavam dos
corpos dos guerrilheiros e os transferiam para a Serra das Andorinhas, “onde foram cremados com gasolina e
pneus usados, na tentativa de eliminar vestígios da “guerra suja” que ocorrera no Araguaia.” (p. 43)
13
1.2 Um tempo de medo – Golpe de 1964
O golpe e processo ditatorial militar de 1964, teve início, segundo Petit (2014),
em março daquele ano. Entre outros muitos fatores, a crise político-militar provocada
pelas mobilizações de sargentos, marinheiros e fuzileiros navais; pela proposta de
reforma da Constituição defendida pelo presidente João Goulart; por manifestações
que ocorreram no Rio de Janeiro (Comício pelas Reformas de Base, no dia 13) e em
São Paulo (A Marcha da Família com Deus pela Liberdade7, no dia 19).
O ambiente de crise institucional entre Forças Armadas e poder executivo
gerou “condições cruciais para o sucesso da conspiração militar”. D’Araujo et. al
(2014, p. 14) “muitos oficiais conspiraram contra seus chefes e doutrinaram suas
tropas enquanto procuravam um líder general que os representasse e liderasse.”
O receio pelas mudanças que uma reforma constitucional, fez com que no dia
20 de março, fosse encaminhada a todos os generais e demais militares demais
organizações subordinadas, a Instrução Reservada do General Castelo Branco
(chefe do Estado-Maior do Exército). Este documento, considerava ilegais as medidas
anunciadas por Goulart no comício de 13 de março daquele ano e alertava sobre as
ameaças que essas mudanças representariam ao Brasil.
Com o discurso de agir “dentro dos limites da lei”, Castelo Branco afirmou que
advento de uma Constituinte como caminho para a consecução das
reformas de base e o desencadeamento em maior escala de
agitações generalizadas do ilegal poder do CGT (...). A ambicionada
Constituinte é um objetivo revolucionário pela violência com o
fechamento do atual Congresso e a instituição de uma ditadura (...).
É preciso aí perseverar, sempre “dentro dos limites da lei”. Estar
pronto para a defesa da legalidade, a saber, pelo funcionamento
integral dos três poderes constitucionais (LIRA NETO, 2013, p. 239).
7
Em Belém esse movimento ocorreu no dia 20 de abril e foi liderado pelo arcebispo Alberto Gaudêncio Ramos,
que celebrou a Missa em Ação de Graças que o governo do estado mandou celebrar pelo êxito da redemocratização do País
e posse do marechal Castelo Branco. Nesse sentido, não se pode esquecer, como afirma Père Petit (2014, p. 200), “que na
‘luta contra o comunismo e seus aliados’ o discurso religioso-católico era incorporado, ao repudiar o comunismo ateu e
tirânico.”
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No Pará, o Tenente-Coronel Jarbas Passarinho foi o principal articulador
golpista, ao lado do major Antônio José do Carmo Ramos, ambos oficiais do Estado-
Maior do Exército em Belém. O grupo liderado por Passarinho e Carmo Ramos
reunia-se de forma clandestina
para fugir da delação e da vigilância dos esquerdistas (...). Fazíamos
a propaganda dos valores democráticos, justificando o porquê de
nossa luta. Defendíamos o princípio de que a segurança interna não
era assunto privativo das Forças Armadas, cabendo-nos o
esclarecimento da opinião pública sobre a realidade do comunismo
mundial, o desmascaramento das infiltrações, a identificação das
organizações de fachada (...). Nossos grupos, já então se
aproximando de cem integrantes (...), eram constituídos de jovens, em
geral: advogados, médicos, engenheiros, economistas, professores
universitários, funcionários públicos, comerciantes (...). De militares,
só o Major Ramos e eu. Não queríamos, de modo algum, dar caráter
paramilitar ao movimento essencialmente cívico (PASSARINHO,
1990, p. 93-97)
15
Tem-se início, no Pará, o período de cassações, perseguições e prisões
políticas.
Benedicto Monteiro, deputado estadual e militante do PCB, visto, portanto,
como “comunista e subversivo”, teve seu mandato cassado e fugiu para Alenquer,
com receio de que fosse, segundo boatos que circulavam na capital, de que ele seria
o primeiro a ser preso e assassinado pelos militares. Foi procurado, ou caçado, como
afirma em Transtempo (1993), em Bragança, Santarém e em sua cidade natal pelo
Exército, que pedia a colaboração da população para que a prisão fosse efetivada.
Fora preso no dia 16 de abril, em Alenquer,
às margens do Rio Curuá e exposto, em trajes menores e descalço,
aos ribeirinhos da região da cidade de Alenquer, para intimidar
aqueles que, porventura, ousassem acolher e esconder todos aqueles
julgados ou acusados de comunistas pelos militares. (NASCIMENTO,
2004, p. 10)
Embora tenha sito liberto em 30 de novembro daquele ano, por Habeas Corpus
do Supremo Tribunal Federal (STF), Monteiro continuou sofrendo com retaliações e
perseguições do governo militar, vivendo o que Nascimento (2007) denominou de
“exílio domiciliar, sem poder exercer a profissão e nem assinar documentos junto aos
órgãos de justiça”, o que se agravou em 1968 com o decreto do Ato Institucional Nº
5, em dezembro de 1968, período de censura e repressão que ficou
historicamente conhecido como o mais duro do período da ditadura militar.
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No Pará, a perseguição aos comunistas teve grande apoio da imprensa local.
O Liberal, A Província do Pará e Folha do Norte enalteciam as ações do novo governo,
sendo estes últimos os que mais destacavam a empreitada militar.
Os jornais de Belém aceitaram a tese que havia um inimigo subversivo
da democracia, das tradições, da ordem e que era necessário
combatê-lo. Aceitaram também a assertiva de que os militares eram
o herói do momento. Muitos artigos foram escritos de forma a exaltar
as forças armadas, em alguns momentos chegaram até aparentar que
antes do golpe de 1964 no Brasil não vigorava uma democracia.
Contra os inimigos subversivos da democracia e da ordem são poucos
os apoios do presidente João Goulart. (FONTES, 2014, p. 340)
Petit (2014), afirma que na sua edição de 5 de abril, a Folha do Norte publicou
a matéria “Exército e Polícia intensificam a caçada aos comunistas em Belém”, onde
informava que as lideranças do Partido Comunista no Pará Raimundo Jinkings
(presidente do Sindicato dos Bancários de Pará e Amapá e presidente do CGT
regional), Francisco Ribeiro do Nascimento (secretário geral do Sindicato dos
Comerciários), deputado Benedicto Monteiro e o engenheiro João Luiz de Aragão,
eram procurados em Bragança, Alenquer e Santarém, e suas prisões eram aguardas
a qualquer momento, “solicitando o Exército a colaboração do povo em particular para
a concretização da prisão dos citados comunistas foragidos”. No dia dez de maio, A
Província publica “Dez paraenses na lista de ontem de cassação de mandatos e
direitos”, onde constava o nome de Benedicto Monteiro.
Nessa atmosfera, Benedicto Monteiro só voltaria à cena política em 1982 como
candidato à deputado federal pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), ficando
com a primeira suplência. Reassumiu o cargo em 1985 com a renúncia de dois
deputados federais que ocuparam cargos de prefeitos. Reelegeu-se em 1986 pelo
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e participou da Assembleia
Nacional Constituinte de 1988, quando apresentou uma emenda sobre reforma
agrária.
Após um ano da criação do Comissão Nacional da Verdade em maio de 2011
com o intuito de investigar crimes cometidos por agentes do Estado, principalmente
aqueles ocorridos durante a Ditadura Militar, no período que se estendeu de 18 de
setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, no Pará foram criadas três comissões para
ouvir as testemunhas deste período: a Comissão da Verdade dos Jornalistas do Pará
(SINJOR-PA), a Comissão da Verdade César Leite, da Universidade Federal do Pará
e a Estadual da Verdade.
17
É no contexto das discussões sobre a Comissão Nacional da Verdade (CNV),
que em março de 2013, após sugestão da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção
Pará (OAB-PA), ao presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Pará,
deputado Márcio Miranda, que foi realizada seção solene para devolução simbólica
dos mandatos de Aurélio do Carmo (ex-governador) e Newton Miranda (vice-
governador) e de Benedicto Monteiro (deputado federal), que tiveram seus mandatos
cassados arbitrariamente por meio do Ato Institucional Nº 1, de 9 de abril de 1964. O
diploma que outorgava o título de ex-deputado federal foi recebido por seus familiares.
Benedicto Monteiro falecera em 22 de maio de 2008, aos 84 anos, em função de
complicações do câncer nos ossos.
18
2. CAPÍTULO 2 – ESCLARECIMENTOS CONCEITUAIS: MEMÓRIA, E
NARRATIVA, E FICÇÃO, E TESTEMUNHO
Inevitável, ao se tratar de testemunho em obras literárias, não passar pela
questão da memória, sobretudo quando se busca analisar a forte imbricação entre
ficção e testemunho. O quanto de ficção há nessas memórias narradas? O quanto há
de testemunho nessa narrativa de ficção?
19
Na mesma obra, no capítulo “Experiência e Pobreza”, Benjamin trata do não
lugar que a narrativa ocupa no século XX. Uma vez a experiência tradicional perdida
- baseada na transmissão de vivências - devido à Primeira Grande Guerra, foi perdida
também a capacidade de contar histórias, ocorrendo assim o empobrecimento da
experiência na sociedade moderna tornando os homens inábeis para transmitirem
suas experiências.
Ainda que não seja foco desta dissertação as teorias das memórias, é
importante ressaltar a importância desses estudos para a questão do testemunho que
tem sido tema que tem despertado a atenção de diversos estudiosos através de
diferentes campos do conhecimento. Nesse contexto, em que inúmeros são os
estudiosos que têm se dedicado ao estudo da narrativa e sua relação com a memória,
o próprio filósofo francês Paul Ricoeur na obra La memóire, l’histoire, l’oublie” (2000)
trata de uma fenomenologia da memória, uma epistemologia da história e uma
hermenêutica do esquecimento.
20
as vozes dos grupos sociais em que aqueles sujeitos estavam inseridos, e no quanto
elas também pertencem a uma memória histórica.
21
experiências na memória, onde, como sabemos desde os estudos
clássicos de Barlet, ela é sistematicamente alterada para se adaptar
às nossas representações canônicas do mundo social ou, se ela não
puder assim alterada, é esquecida ou reforçada em sua
excepcionalidade. (BRUNER, 1997, p. 54-55)
22
Este será o nosso caminho: de "quê?" "Para quem? "Através do"
como? " - da memória à memória refletida por meio da reminiscência.8
(RICOEUR, 2000, p. 04)
Desse ponto de vista, pode-se afirmar que a memória não é apenas a busca
por uma imagem que possa representar o passado, não é apenas um arquivo de
lembranças. A memória seria uma espécie mantenedora do passado que a
presentifica e a ressignifica, é uma defesa contra o esquecimento que surge a partir
das vivências do presente.
Considerando que o objeto de estudo deste trabalho é uma narrativa de ficção
com indícios de teor testemunhal, cabe destacar a relação entre memória e trauma,
ainda que não este não seja alvo principal desta análise.
Seligmann-Silva (2008, p. 69) considera o trauma como “uma memória de um
passado que não passa” e que a memória, assim como a literatura de testemunho “é
uma arte de leitura de cicatrizes” (2003, p. 56). Assim, poder-se-ia dizer que o
testemunho é uma modalidade de memória, já que visa salvar ou resguardar, uma
versão da história do “memoricídio” que poderia ser causado tanto pelo negacionismo
quanto pelo próprio historicismo. Os relatos testemunhais, por terem sido construídos
por fragmentos de memória, fazem, portanto, refletir sobre a possibilidade de tradução
de experiências traumáticas, utilizando-se da linguagem como mecanismo de
8
No original: Tel sera notre chemin: du « quoi? » au « qui? » en passant par le « comment?» - du souvenir à la
mémoire réfléchie en passant par la réminiscence.
9 No original: le souvenir est du côté de la perception, quant à la thèse de réalité: « il existe [...] une différence
essentielle entre la thèse du souvenir et celle de l'image. Si je me rappelle un événement de ma vie passée, je
ne l'imagine pas, je m'en souviens, c'est-à-dire que je ne le pose pas comme donné-absent, mais comme donné-
présent au passé.”
23
sobrevivência contra as estratégias de apagamento da memória dos que passaram
por situações limite.
Ao considerar o trauma como uma memória que não passa, Seligmann-Silva
(2008) caracteriza-o como um tempo pretérito que se faz presente, desta forma a
memória traumática traz à tona a lembrança da dor em um presente massacrado pelo
passado que toma forma a partir de fragmentos de memória de situações dolorosas
que são preferíveis esquecer.
Em Tempo passado, Sarlo (2007), debate os conflitos da memória do passado,
argumentando que o tempo presente é próprio para lembrar e elaborar o passado:
Além de toda decisão pública ou privada, além da justiça e da
responsabilidade, há algo inabordável no passado. Só a patologia
psicológica, intelectual ou moral é capaz de reprimi-lo; mas ele
continua ali, longe e perto, espreitando o presente como a lembrança
que irrompe no momento em que menos se espera ou como a nuvem
insidiosa que ronda o fato do qual não se quer ou não se pode lembrar.
[...]. O retorno do passado nem sempre é um momento libertador da
lembrança, mas um advento, uma captura do presente.
Propor-se não lembrar é como se propor não perceber um cheiro,
porque a lembrança, assim como o cheiro, acomete, até mesmo
quando não é convocada. Vinda não se sabe de onde, a lembrança
não permite ser deslocada; pelo contrário, obriga a uma perseguição,
pois nunca está completa. A lembrança insiste porque de certo modo
é soberana e incontrolável (em todos os sentidos dessa palavra).
Poderíamos dizer que o passado se faz presente. E a lembrança
precisa do presente porque, como assinalou Deleuze a respeito de
Bergson, o tempo próprio da lembrança é o presente: isto é, o único
tempo apropriado para lembrar e, também, o tempo do qual a
lembrança se apodera, tornando-o próprio. (SARLO, 2007, p. 9)
24
A partir dessa afirmação, torna-se clara a relação com o passado com um
tempo presente, característica própria da literatura de testemunho, destacada pelo
autor a partir do pensamento benjaminiano de que “toda história é fruto do encontro,
de um entrecruzar de um determinado presente com o passado”, sem deixar de lado
o fato de que o estudo do testemunho requer “uma concepção da linguagem como
campo associado ao passado” em que a escrita é o lugar de contato entre o
sofrimento e suas causas, ainda que estas possam ser repugnantes e obscuras.
10
Pela natureza implícita entre escritor e o leitor.
11
En ouvrant un roman, le lecteur se prépare à entrer dans un univers irréel à l'égard duquel la question
de savoir où et quand ces choses-là se sont passées est incongrue; en revanche, ce lecteur est disposé
à opérer ce que Coleridge appelait wilful suspension of disbelief, sous réserve que l'histoire racontée
soit intéressante: c'est volontiers que le lecteur suspend sa méfiance, son incrédulité, et qu'il accepte
de jouer le jeu du comme si - comme si ces choses racontées étaient arrivées. En ouvrant un livre
d'histoire, le lecteur s'attend à rentrer, sous la conduite du pilier d'archives, dans um monde
d'événements réellement arrivés. En outre, en passant le seuil de l'écrit, il se tient sur ses gardes, ouvre
un oeil critique et exige, sinon un discours vrai comparable à celui d'un traité de physique, du moins un
discours plausible, admissible, probable et en tout cas honnête et véridique; éduqué à la chasse aux
faux, il ne veut pas avoir affaire à un menteur.
25
No entanto, em Temps et récit III – Le temps raconté (1985), o autor afirma que
entre ambas (ficção e narrativa histórica) há algo que lhes é próprio, uma vez que
a ficção é quase histórica, tanto quanto a história é quase ficcional. A
história é quase fictícia, já que a quase presença dos acontecimentos
colocados “sob os olhos” do leitor por uma narrativa animada
compensa, por sua intuitividade, sua vivacidade, pelo caráter elusivo
do passado do passado, que os paradoxos de representação ilustrar.
A história de ficção é quase histórica, na medida em que os eventos
irreais que relata são fatos passados para a voz narrativa que se dirige
ao leitor; é assim que eles se parecem com eventos passados e como
a ficção se parece com história.12. (1985, p. 276-277)
Essa relação entre narrativa histórica e ficção seria, segundo o próprio Paul
Ricoeur, de complementariedade já que “a ficção é quase histórica, tanto quanto a
história é quase fictícia”. Nesse sentido, pode-se dizer que a história precisa da ficção
e esta da história para refigurar experiências vividas.
Nota-se que ao contrastar os dois tipos de narrativa (histórica e ficcional), o
filósofo francês lança os conceitos de cada um. Assim, pode-se concluir que a
narrativa histórica fala do real como passado, de igual forma que a narrativa ficcional
fala do que é irreal como fictício. No entanto, é importante ressaltar que
a própria imaginação tem sua verdade que o romancista e o leitor
conhecem bem: um personagem é verdadeiro quando tem coerência
interna, quando sua presença plena na imaginação comanda seu
criador e convence o leitor13. (RICOEUR, 1985, p. 215)
É válido destacar também que tanto a narrativa histórica quanto a ficcional tem
objetivos distintos, quais sejam a intencionalidade e a referencialidade, no entanto
ambas partem das experiências de vida do indivíduo, entrecruzam-se e fundam a
identidade narrativa que para Paul Ricoeur é aquela construída a partir das narrativas
que vamos elaborando sobre nós mesmos ao longo da vida.
Nesse sentido, conforme Vilarinho (2013), no campo textual da história, a
referência é o passado real, enquanto que “nos domínios textuais da ficção, a
referência é o poder ser (passado, presente e futuro possíveis)”.
12
No original: la fiction est quasi historique, tout autant que l'histoire est quasi fictive. L'histoire est quasi fictive,
dès lors que la quasi-présence des événements placés “sous les yeux” du lecteur par un récit animé supplée, par
son intuitivité, sa vivacité, au caractère élusif de la passéité du passé, que les paradoxes de la représentance
illustrent. Le récit de fiction est quasi historique dans la mesure ou les événements irréels qu'il rapporte sont
des faits passés pour la voix narrative qui s'adresse au lecteur; c'est ainsi qu'ils ressemblent a des événements
passés et que la fiction ressemble à l'histoire.
13
No original: l’imaginaire même a sa vérité que le romancier connaît bien et le lecteur aussi: un personnage est
vrai quand as cohérence interne, quand sa présence complète dans l’imagination commande à son créateur et
fait la conviction du lecteur.
26
Em Temps et récits I (1983), Ricoeur traz a definição de tripla mimese. Ao tratar
do assunto, Ricoeur deixa claro que sua intenção de romper com a ideia de que
mimese é uma imitation-copie, propondo que seja uma mimese criadora. Assim,
seguindo Aristoteles, aponta que a narratividade apresente uma tripla mimese, quais
sejam, a mimese I: compreensão do mundo (pré-compreensão do mundo); mimese
II: composição da intriga (configuração da narrativa); e mimese III: recepção do texto
pelo leitor (refiguração).
Assim, para Ricoeur (1983), a relação entre literatura e história, estabelece-
se pela mimese, compreendida pelo autor como mimesis d’action, isto pois, ao
mesmo tempo em que é mediação (prefiguração, configuração e refiguração), faz a
mediação entre tempo e narrativa, uma vez que só há tempo pensado quando este é
narrado. Esse processo mediador hermenêutico da mimese se dá porque em uma
obra histórica ou literária é possível configurar a ação humana e refigurá-la na leitura.
É nesse sentido que em Verde Vagomundo (1972) temos uma narrativa fictícia,
mas por ser fruto memorialístico de Benedicto Monteiro enquanto estivera preso e
torturado pela repressão do golpe de 1964, nos oferece uma narrativa testemunhal e
histórica do período da ditadura militar na Amazônia, refigurando, assim, uma
experiência limite vivida por Monteiro.
Em Literatura, violência e melancolia, o historiador Carlo Ginzburg (2013) ao
mesmo tempo que considera o século XX como um tempo marcado violência e
autoritarismo, afirma que o testemunho das experiências-limite desse período foge à
noção de realidade e chama de “estética da violência” o movimento de tensão entre
vida e morte que, portanto, admitiria “recursos como a fragmentação, o grotesco, o
abjeto e o choque”.
Ao se admitir que o testemunho de experiências traumáticas foge à noção de
realidade, abre-se possibilidade para que o testemunho ocorra também via ficção. A
estudiosa na área do trauma-linguagem-real, Maria Rita Kehl14 (2010) ressalta que
Sabemos que nem tudo, do real, pode ser dito; o que a linguagem diz
define, necessariamente, um resto que ela deixa de dizer. O recorte
que a linguagem opera sobre o real, pela própria definição de recorte,
deixa um resto – resto de gozo, resto de pulsão – sempre por
simbolizar. (KEHL, 2010, p. 126).
14
Maria Rita Kehl participou da Comissão Nacional da Verdade e, no relatório final, escreveu o capítulo sobre os
camponeses e indígenas. A Comissão Nacional da Verdade foi criada com o objetivo de investigar crimes, como
mortes e desaparecimentos, cometidos por agentes representantes do Estado no período de 18 de setembro
de 1946 a 5 de outubro de 1988, principalmente aqueles ocorridos durante o período da Ditadura Militar no
Brasil.
27
A afirmação de Kehl nos coloca diante do trauma como algo real, no entanto
irrepresentável, no entanto, possível de ser semiotizado pela linguagem, o que nos
faz pensar a literatura de testemunho, como afirma Seligmann-Silva, em literatura do
trauma. Essa impossibilidade de narrar/representar o trauma, nesse sentido, é o que
permite a fusão dos elementos factuais e ficcionais no testemunho.
Beatriz Vieira (2010) endossa essa linha de pensamento quando declara que
a fronteira entre ficção e realidade histórica não é claramente
delimitável, o testemunho subjetivo precisa frequentemente dos
recursos literários, mas mobilizando um tipo peculiar de mímesis, em
que a manifestação do vivido se sobrepõe ao imitatio, observa
Seligmann-Silva, que propõe, para tratar dessas formas testemunhais
relativas a experiências históricas de grande violência, o conceito de
‘teor testemunhal’, como uma função ou elemento discursivo partícipe
de diversos gêneros, alocado entre a literatura e a história,
possibilitando levar em consideração a especificidade da experiência
que o originou, bem como as modalidades de marca, rastro, índice
que essa experiência imprime na escritura (VIEIRA, 2010, p. 156,
grifos da autora).
Diante dessa linha tênue entre real e ficção no testemunho é que vem se
adotando a noção de teor testemunhal, apresentada por Seligamnn-Silva, perspectiva
também adotada para análise do romance Verde Vagomundo de Benedicto Monteiro
e que será mais bem discutida no decorrer deste trabalho.
Vieira (2010) traz em As ciladas do trauma: considerações sobre história e
poesia dos anos1970, uma síntese da noção de teor testemunhal de Siligmann-Silva.
De acordo com a autora,
o conceito de teor testemunhal é derivado de uma dupla significação:
o discurso daquele que viu um fato e é capaz de assegurar sua
veracidade e daquele que atravessa e sobrevive a um evento-limite,
e cuja dor problematiza a relação entre a linguagem e a realidade,
pois não há discurso que a esgote. Não se trata de ‘psicanalisar’ a
literatura, mas de compreender que o testemunho traz uma
reivindicação de verdade, que pode conferir à ficção o caráter de
documento (VIEIRA, 2010, p. 156).
Vieira mostra que o testemunho pode ser também constituído por elementos
que vão além da realidade, ou seja, pela ficção pode-se também contemplar o que é
histórico e real, uma vez que o trauma excede a narrativa, tornando-o assim, algo
indizível e inenarrável.
28
Sobre o inenarrável, Waldman (2003), embora trate especificamente sobre a
escrita ficcional relacionada ao Holocausto, destaca a importância da literatura/escrita
para o que chama de perlaboração de vivências inenarráveis
Como conjugar esses dois apelos inconciliáveis [‘o desejo de manter
o silêncio e o desejo de falar’] a não ser através da palavra literária?
Da palavra que significa pelo que diz e pelo que cala, capaz de
estimular um encontro mais efetivo com o vivido e, por seu intermédio,
de frear os sentidos estratificados e estabelecidos de uma experiência
de abismo tateável, porém intangível? (WALDMAN, 2003, p. 173).
Assim, diante do que fora exposto até o momento sobre o teor testemunhal e
sua relação com ficção e realidade, é que será analisada no capítulo subsequente a
obra Verde Vagomundo de Benedicto Monteiro.
29
(1973) como o primeiro romance contextual da Amazônia, uma obra, “transregional”,
pois
30
e as modalidades de marca e rastro que esse ‘real’ imprime na
escritura. A literatura expressa o seu teor testemunhal de modo mais
evidente ao tratar de temas-limite, de situações que marcam e
‘deformam’ tanto a nossa percepção como também a nossa
capacidade de expressão. O testemunho alimenta-se, como vimos,
da necessidade de narrar e dos limites dessa narração (subjetivos e
objetivos, em uma palavra: éticos) (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 40).
Ou seja, fingindo tratar-se de uma ficção alguns eventos por ele vivenciados,
Monteiro afasta a atenção do leitor do compromisso com os fatos, fazendo-o
concentrar-se apenas na assimilação da experiência que aquela verdade,
aparentemente criada, lhe permite conhecer.
pois a literatura pode dizer tudo, aceitar tudo, receber tudo, tudo sofrer
e tudo simular, pode até fingir engano, como exércitos modernos que
sabem se livrar de falsos engodos; estes fazem crer em verdadeiras
15
No original: en faisant semblant d’être une ficcion et donc en tant que ficcion de ficcion, comme s’il s’agissait
de prendre une responsabilité en n’en répondant plus et de manifester la vérité en vous laissant la responsabilité
de la recevoir à travers le mensonge ou la ficion.
31
iscas e enganam as máquinas para detectar simulações sob as mais
sofisticadas camuflagens.16 (p. 30)
Nessa passagem ressalta-se que o “real” não pode ser confundido com
“realidade”, ou seja, no testemunho a “realidade” deve ser pensada como uma
representação do vivido.
16
No original: car la littérature peut tout dire, tout accepter, tout recevoir, tout souffrir et tout simuler, elle
peut feindre même le leurre, comme les armées modernes qui savent disposer de faux leurres; ceux-ci font
croire à de vraus leurres et trompent les machines à détecter les simulations sous les camouflages les plus
sophistiqués.
32
2.4 Literatura de testemunho: um novo gênero
A busca por uma definição sobre o que seja o gênero Literatura de Testimonio
tem sido tema de discussões na América Latina desde os anos sessenta. É nesse
período que surge um extenso corpus de relatos sobre os horrores das ditaduras
militares que ocorriam por praticamente todo o continente americano, é, portanto,
nesse contexto que surge a necessidade de conceitualização desta escrita oriunda
dos “porões da ditadura”.
Ainda sobre este esforço em conceituar Testimonio, Alonso (2017) afirma que
alguns dos estudos incluem o que ele considera uma metacrítica, que será a
tendência seguida nos estudos sobre o testemunho nos anos 1990. Dessa nova
tendência destacam-se John Bervely, e Elzbieta Sklodovska representantes do que
se convencionou chamar de corrente/crítica americana.
Barvely em Anatomia del testimonio (1987, apud ANDRÉ, 2004) após analisar
a diversidade de textos que foram considerados de Testimonio e listar relatos e
autores de diferentes países diferentes, afirma ser difícil uma definição que os
abarque todos. No entanto, elencou algumas características comuns a todos e finaliza
sua descrição afirmando que este constitui um novo gênero literário.
33
transcrição e escrita por outrem. Um aspecto singular "é a presença
de uma dimensão moralizante, iconoclasta", bem como o seu carácter
de "narrativa urgente" e sugere "uma afinidade com o romance
picaresco" (159), que é a afirmação textual do locutor-narrador
Enfatiza que o depoimento não é uma obra de ficção, mas, "sua
história é verdadeira" ao representar uma situação social
problemática17. (p.9 – grifo do autor)
17
No original: é uma narração em primeira pessoa por um protagonista testemunha, geralmente narra uma
experiência, tem um propósito político; em certos casos, o narrador é analfabeto, o que envolve gravação,
transcrição e escrita por outrem. Um aspecto singular "é a presença de uma dimensão moralizante, iconoclasta",
bem como o seu carácter de "narrativa urgente" e sugere "uma afinidade com o romance picaresco" (159), que
é a afirmação textual do locutor-narrador . Enfatiza que o depoimento não é uma obra de ficção, mas, "sua
história é verdadeira" ao representar uma situação social problemática.
34
É a partir da análise desses estudos que Valéria De Marco em “A literatura de
testemunho e a violência de Estado” (2004), de forma sintética, aponta que além da
linha teórica oriunda dos estudos do Holocausto ou da Shoah, há outra voltada à
análise de obras latino-americanas. Dentro da segunda linha teórica, que nos
interessa, é possível identificar, segundo De Marco, dois conceitos distintos do que
seja literatura de testemunho: 1) originária do júri do Prêmio Casa de las Americas,
dedicada ao estudo de produções que envolvem discursos literários, documentais ou
jornalísticos, que têm como objetivo principal relatar a violência das ditaduras latino-
americanas do século XX; 2) ligada à crítica americana nos anos 80, que lança mão
de estudos culturais para analisar textos do período ditatorial na América Latina, e
tem como representantes, os já mencionados, Elzbieta Sklodowska e John Beverley
segundo os quais, a literatura de testemunho encontra como elemento definidor um
narrador, visto como um mediador, normalmente intelectual letrado, que recolhe o
testemunho da voz do outro, pertencente às camadas marginalizadas e excluídas da
sociedade, para produzir um saber que potencialmente transformaria a consciência
de classe, o que segundo De Marco busca, como estratégia de reprodução e
transmissão, estabelecer um vínculo ao mesmo tempo político e solidário entre o
letrado e o não-letrado, uma forma de difundir o discurso do outro, numa espécie de
contra-narrativa ao discurso hegemônico, histórico e oficial.
18
Destaque dos trechos como no original.
35
Embora o autor não defina o que seja a face da literatura a que se refere, fica
claro que se trata de um campo de estudos interdisciplinar, como afirma
posteriormente na sua obra História, memória, literatura – o testemunho na era das
catástrofes (2020). Isto porque debates sobre o testemunho surgiram sob diversos
aspectos e em vários campos de estudos que envolvam situações limites, trauma,
memória, história, direito. No campo da historiografia, por exemplo, o tema ganhou
destaque a partir do século XX na discussão sobre as diferentes perspectivas que a
memória e o testemunho são abordados pela História e pela literatura.
Sobre a relação entre memória e história, Walter Benjamin em uma de suas
teses sobre o conceito de história declara que
Em “L’ére du témoin”, Annette Wieviorka, reconhecida por ser uma das mais
importantes pesquisadoras sobre a Shoa, mas também vítimas dos recentes
massacres na Bósnia, Ruanda, Kosovo, afirma que o marco da era do testemunho
teve início nos anos 60 com o processo de Adolf Eichmann19 ,
19
Adolf Eichmann é considerado um dos principais responsáveis pela logística de extermínio e deportação em
massa dos judeus europeus durante o Holocausto.
20
mais les années soixante-dix sont aussi celles où les états d'âme et les difficultés psychologiques s'ex-posent
désormais publiquement, par le biais de la radio d'abord, puis de la télévision. Au début des années quatre-
vingt-dix, apparût en France, sur le modèle américain, une nouvelle forme de spectacle télévisé fondé sur la
parole de gens ordinaires. Cette irruption de l'expérience profane et du témoignage privé dans l'espace public
36
A observação feita pela historiadora é que, a partir do início dos anos 90,
ocorre, entre outras coisas, o surgimento de coletâneas sistemáticas de testemunhos
audiovisuais - que posteriormente passou-se a chamar de “Arquivos de Testemunho”
- que deram voz à sujeitos comuns que não tinham, até então, “o desejo nem talvez
a capacidade de escrever a história de sua própria vida” e, assim, darem uma cara,
tirá-los da multidão.
constitue la marque de ce que la sociologue Dominique Mehl nomme la télévision de l'intimité. C'est aussi dans
ces années soixante-dix le triomphe de l'idéologie des droits de l'homme: chaque société, chaque période
historique se mesure à l'aune de son respect. L’homme-individu est ainsi placé au cœur de la société et
rétrospectivement de l'histoire. Il devient publiquement, et lui seul, Histoire.
21
No original: Raconter sa vie est une satisfaction qu'on se refuse difficilement. C'est la preuve qu'on a bien
existé et qu'un interlocuteur est là, prêt à s'intéresser à vous. Les grands hommes et aussi les moins grands ont
toujours brûlé de s'adresser au reste des mortels en écrivant leurs mémoires. Les autres, les gens ordinaires, se
satisfaisaient du public plus restreint de la veillée familiale ou du comptoir de bistrot. (...) Mais maintenant, cette
relativité des destins individuels n'est plus de mise. L'idée s'est imposée que toutes les vies se valent et sont
bonnes à raconter.
37
É interessante como a Wieviorka aborda a questão do homem como o vetor da
história enquanto os historiadores geralmente mostram uma grande desconfiança em
relação ao testemunho de sobreviventes, enfatizando que essas narrativas são
frágeis e maleáveis e dependem dos objetivos perseguidos pela testemunha e do
contexto em que ela é chamada a transmitir sua experiência. Ou seja, o testemunho
do sobrevivente, embora considerado um pré-requisito para o conhecimento dos
fatos, base da futura narrativa histórica, é desconsiderada ou ignorada por alguns
estudiosos da História da humanidade, o que permite a existência de uma lacuna que
poderia ser preenchida pela literatura, que foca em materiais pouco observados,
conforme afirma Seligmann-Silva
38
2.4.1 Zeugnis e Testimonio: uma breve distinção
ZEUGNIS TESTIMONIO
Âmbito Alemanha América Latina
(local onde se teoriza o
conceito)
Shoah e Segunda Guerra Ditadura; exploração
Evento histórico Mundial econômica, repressão às
minorias étnicas, às
39
(acontecimento marcante para mulheres e aos
o âmbito) homossexuais
Forma de Pensar o Psicanálise (trauma) Tradição religiosa da
testemunho teoria e história da confissão, apresentação
memória de vidas “exemplares
tradição da crônica e da
reportagem
CORNELSEN, apud Batista & Sarmento-Pantoja, 2014, p. 1121
Diante disto e a partir do que afirma Valéria de Marco (2004) sobre a existência
de duas vertentes da Literatura de Testemunho na América Latina, Batista &
Sarmento-Pantoja (2014), enfatizam que, para análise de narrativas literárias do
período da ditadura militar, seria necessária uma terceira vertente dentro do quadro
organizacional proposto por Cornelsen, isto por que essas narrativas são
ZEUGNIS TESTIMONIO
Âmbito Alemanha América Latina América Latina
Ditadura;
Shoah e Segunda exploração
Evento histórico Guerra Mundial econômica, Ditadura
40
repressão às
minorias étnicas,
às mulheres e aos
homossexuais
Tradição religiosa Psicanálise
Forma de Pensar Psicanálise da confissão, (trauma) teria e
o testemunho (trauma) teoria e apresentação de história da
história da vidas “exemplares memória,
memória tradição da crônica apresentação de
e da reportagem vidas "exemplares"
e teoria literária.
No sentido mais geral, testemunho é definido como o discurso feito por uma
testemunha sobre uma dada realidade e surge a partir de várias tradições e práticas
sociais. O conceito religioso, por exemplo, é baseado em atos de atestação de fé, já
22
Narrativas de resistência faz parte do trabalho de Alfredo Bosi intitulado “Literatura e resistência”, publicado
em 2002, que segundo Martins (2017) é um dos que mais é o que mais se insere na política do discurso crítico.
Segundo Bosi, a resistência é uma “forma imanente da escrita”, que antes de ser um conceito estético, é ético,
pois " A resistência é um movimento interno ao foco narrativo, uma luz que ilumina o nó inextricável que ata o
sujeito ao seu contexto existencial e histórico. Momento negativo de um processo dialético no qual o sujeito,
em vez de reproduzir mecanicamente o esquema das interações onde se insere, dá um salto para uma posição
de distância e, deste ângulo, se vê a si mesmo e reconhece e põe em crise os laços apertados que o prendem à
teia das instituições.” (BOSI, 2002, p. 26-27)
41
no contexto jurídico, o depoimento se baseia antes em atos de declaração
juramentada e é definido como declaração pela qual uma pessoa relata fatos dos
quais teve conhecimento pessoal ou pela qual um perito dá sua opinião. Seligmann-
Silva (2003, p. 8) afirma que há basicamente duas acepções de testemunho: “no
sentido jurídico e de testemunho histórico”; 2) “no sentido de ‘sobreviver’, de ter-se
passado por um evento-limite, radical, passagem essa que foi também um
‘atravessar’ a ‘morte’, que problematiza a relação entre a linguagem e o ‘real’”.
42
ao invés de se falar em 'literatura de testemunho' [...]deve-se
buscar caracterizar o 'teor testemunhal' que marca certa obra
literária. Segundo o crítico, “este teor indica diversas
modalidades de relação 'metonímica' entre o real e a escritura.
(2008, p. 1).
Assim, não se pode definir que obras devem ser considerada “de testemunho”
ou não. Caberia aos analistas definir o teor testemunhal presente nas obras e o modo
como este se faz presente na escrita de cada uma delas. Seligmann-Silva, afirma
ainda que uma das principais características do testemunho é o fato de que ele “põe
em questão as fronteiras entre o literário, o fictício e o descritivo”, no entanto não pode
ser usado de forma indiscriminada, como sinônimo de “documental”.
43
3. CAPÍTULO 3 – A FICÇÃO DE TESTEMUNHAL EM VERDE VAGOMUNDO
23
Seligmann-Silva, Márcio. Grande Sertão: Veredas como gesto testemunhal e confessional. 2009, p. 133
44
Assim, a partir do conceito de teor testemunhal trazido por este autor, buscar-
se-á identificar os elementos que podem caracterizar o romance Verde Vagomundo
como sendo uma obra de forte teor testemunhal.
Benedicto Monteiro, em seu romance de 1972, entrelaça parte de suas
memórias como preso político e do cenário político nacional e internacional do período
das ditaduras militares com a ficção. Nascimento (2007), afirma que Verde
Vagomundo traz o experimentalismo ao mesclar o que Bakhtin (1998) chamou de
unidades heterogêneas24, essa característica apontada pela autora na escrita de
Monteiro, que não negligencia as questões político-sociais da Amazônia em um
contexto nacional e internacional polarizado pós Guerra Fria, nos é revelado pelas
marcas da oralidade, presentes nas falas dos personagens alenquerenses; da
colagem de resumos de notícias do rádio transistor; dos depoimentos dados ao
coronel responsável pela instauração do Inquérito Policial Militar (IPM) para “apurar a
corrupção e a subversão no município”; do uso da estrutura textual do gênero diário,
já na última parte do romance.
Antes, no entanto, de proceder a análise para identificar os elementos que
podem conferir à Verde Vagomundo o caráter testemunhal previsto pelos critérios da
revista cubana La Casa de las Americas, por Barnet (1969) e Seligmann-Silva (2003),
é importante observar a sua estrutura. O livro apresenta capítulos não numerados,
alguns não possuem títulos, outros, no entanto, são intitulados como “GRAVADOR-
AUTOMÁTICO – FITA”, seguido de sua numeração, somando 4 fitas; há capítulos
com título “Rádio Transistor 10”, com registro da numeração que vai até oito; e ainda
capítulos intitulados por uma anotação que faz referência a um diário, com contagem
regressiva para a festa do “glorioso padroeiro da cidade”: Faltam hoje X dias para o
início da festa de Santo Antonio.
Santelli (2008) aponta outra característica da estrutura narrativa de Verde
Vagomundo: Benedicto Monteiro apresenta um cenário divergente da imagem que se
tinha da região amazônica no século XIX até o início do século XX, para apresentar
uma paisagem em que o homem mantém relações dinâmicas com o espaço-tempo
amazônico. A imagem da Amazônia desconhecida e geograficamente inacessível
pode ser verificada, como notou Santelli (2008), em Euclides da Cunha (1985)
24
Ver Bakhtin, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética (A teoria do Romance). São Paulo: UNESP, 1998, p.
71-84
45
A impressão dominante que tive, e talvez correspondente a uma
verdade positiva, é esta: o homem, ali, é ainda um intruso
impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido – quando a
natureza ainda estava arrumando o seu vasto e luxuosos salão. E
encontrou uma opulenta desordem ... Os mesmos rios ainda não se
firmaram nos leitos; parecem tatear uma situação de equilíbrio,
derivando, divagantes em meandros instáveis, contorcidos em
sacados (p. 25-26)
46
transmite notícias do período que antecede o regime ditatorial no Brasil até sua
implementação.
Quanto a tessitura do romance em análise,
foi muito bem planejada, evidenciando um mosaico composto por
fragmentos que se completam ou não de acordo com a necessidade
de encaminhamento dada pelo autor. Monteiro apresenta os
acontecimentos conduzindo a narrativa a fim de que não haja uma
compreensão totalmente aleatória da obra. Ele prepara cada
momento de ruptura com títulos e os alinhava com as narrativas de
seu personagem Major Antônio, que anuncia constantemente a
captação de elementos de sua viagem para escrever um livro.
(SANTELLI, 2008, p. 48)
Para o narrador, Major Antônio Medeiros, o rádio transistor era o elemento que
lhe devolvia o contato com o mundo, um “cinto de segurança”, como se vê
Abri maquinalmente a maleta como único gesto capaz de me restituir
a estabilidade. Sim, porque aquela maleta, para mim, era naquela
casa, a única coisa que tinha ligação com a vida. Eu precisava me
agarrar a alguma coisa, que me tirasse aquela sensação de estar fora
do tempo e do espaço. Aí, foi que me lembrei do meu aparelho de
rádio. O que eu procurava mesmo era o meu rádio, o rádio-transistor:
47
ele sim, era capaz de me restituir a ligação para o mundo.
(MONTEIRO, 1991, p. 105)
Como se viu, além do Major Antonio de Medeiros, o Frei Gil também possuía
um rádio que o mantinha informado do que ocorria no mundo. Frei Gil, recém-chegado
da Alemanha, dissera não compreender o porquê, e por isso considerar suspeito, de
25
A Voz da América citado pelo frei Gil, fundada em 1943, era o serviço oficial de radiodifusão do governo norte
americano autorizado a operar fora de seu território. As transmissões ocorriam em mais de 20 idiomas entre
elas, a partir de 1961, em português.
48
as autoridades eclesiásticas terem afastado frades alemães de certas áreas da região
amazônica, que posteriormente foram ocupadas por frades norte-americanos.
Vim para o Brasil destinado a uma missão franciscana completamente
isolada da selva amazônica, para pacificar os indígenas que ainda
sobram nas selvas do Xingu. Queria ficar desterrado da civilização.
Logo depois apareceram sobrevoando nossas aldeias, aviões da
Força Aérea Norte-Americana: eram aviões de reconhecimento.
Depois, mais tarde vieram outros aviões e helicópteros. Fizeram
campos de pouso. Diziam que estavam fazendo levantamento
geodésicos para um acordo internacional com objetivos de corrigir os
mapas, as rotas aéreas, sei lá.... Certo dia, nós alemães, fomos
surpreendidos com ordens superiores para cedermos nossos lugares
a frades norte-americanos da nossa mesma ordem. Fomos rápido e
sumariamente substituídos. Falam que descobriram minérios
radioativos... eu mesmo não sei. Só sei que vim parar nesta paróquia
de Santo Antônio de Alenquer. (MONTEIRO, 1991, p. 128)
49
jornais nem tragam datas específicas, as notícias, que chegavam pelo rádio apenas
aos ouvidos do Major Antônio, apontam para fatos acontecidos em dado período
histórico-social.
Segundo Nascimento (2004), essa estratégia de utilizar fragmentos, foi
utilizada por Benedicto Monteiro como princípio norteador de sua produção
romanesca, característica também presente em obras de outros autores da literatura
brasileira nas décadas de 60 e 70, por exemplo, Ignácio Loyola de Brandão nos
romances Bebel que a cidade comeu (1968) e Zero (1974), além do romance A festa
(1976), de Ivan Ângelo. A autora ressalta que
26
Primeira entrevista de Benedicto Monteiro, concedida em 26 DE JULHO DE 2000 à professora Fátima
Nascimento, por ocasião de sua pesquisa para dissertação de mestrado intitulada “A representação alegórica da
ditadura militar em O Minossauro, de Benedicto Monteiro: fragmentação e montagem”, Campinas, SP: [s.n.],
2004.
27
Romance publicado em 1975, durante o governo militar de Geisel (1974-1979), conhecido pela
implementação da Política Nacional de Cultura (1975) que exercia total controle do processo cultural do país,
centralizando toda produção intelectual brasileira.
50
Tudo é ficção, não fiz pesquisa para escrever esses fragmentos. Se
você procurar em jornal ou rádio talvez até encontre algo parecido
porque a ficção é um pouco da realidade, mas tais fragmentos não
foram feitos baseados naquela realidade (em fatos retirados de
noticiários de rádio ou jornal impresso). Uma coisa que eu quero que
fique claro é o seguinte: tudo o que eu escrevi nesses livros é ficção,
a não ser no “Transtempo”, o resto tudo é ficção.
Diante disso, é preferível pensar, como afirma Pacheco de Souza (2020), que
Benedicto Monteiro buscou tudo o que fosse possível para estabelecer um contexto
daquele momento por que passava o Brasil e que o rádio elemento que une ficção e
realidade em Verde Vagomundo.
Embora os recortes de notícias não sigam uma cronologia, é possível
identificar, portanto uma certa linearidade que tem como objetivo contextualizar a
obra, além de apresentarem uma gradação nas notícias ouvidas pelo Major Antônio
Medeiros que levará ao golpe de estado ocorrido no Brasil em 1964
RADIO TRANSISTOR 10/1
O presidente da República do Brasil empenha-se em resolver os
problemas da Nação dentro da estrutura política vigente.
(MONTEIRO, 1991, p.24)
51
DIZENDO QUERER EVITAR UMA GUERRA CIVIL, O PRESIDENTE
DA REPÚBLICA, JÁ DEPOSTO, EXILA-SE NO URUGAY.
(...)
DE UMA LISTA DE 5.000 INIMIGOS DO NOVO REGIME,
ORGANIZADA POR OFICIAIS DA “LINHA DURA”, O COMANDO
SUPREMO CASSA INICIALMENTE MANDATOS E DITEITOS
POLITICOS DE 378 PESSOAS, ENTRE OS QUAIS TRÊS EX-
PRESIDENTES DA REPÚBLICA, SEIS GOVERNADORES DE
ESTADO E 55 MEMBROS DO CONGRESSO NACIONAL.
52
o dia em que o caboclo Miguel estoura os fogos de artifício, é de no mínimo um ano.
Embora não seja citada no romance, a data fim, por assim dizer, é o dia 13 de junho,
dia de Santo Antônio, quando ocorria a queima dos fogos de artifício.
A partir das transcrições das notícias do rádio transistor, pode-se situar o tempo
do romance em agosto de 1962, data mais remota que se pode chegar levando-se
em consideração a notícia relacionada à corrida espacial, mais precisamente à sonda
espacial robótica Mariner II do governo americano, 27 de agosto de 1962 em direção
ao planeta Vênus. Os primeiros dados sobre o planeta chegaram em 14 de dezembro
de 1962, é justamente a notícia sobre esses dados que aparece como primeira
transcrição do rádio transistor
RADIO- TRANSISTOR - 10/01
A NASA divulga as primeiras informações reveladas pela nave
Mariner II, que descobriu que Vênus não é o mundo frio que muitos
esperavam: 400 graus centígrados. (MONTEIRO, 1991, p. 23)
Embora não seja foco deste estudo determinar o calendário em que ocorrem
as ações em Verde Vagomundo, as transcrições auxiliam na demarcação espaço-
tempo no contexto histórico-social. Embora a não-linearidade cronológica, ou seja, a
falta, do que Wanda Monteiro28 chamou de “compatibilidade cronológica” não permita
uma demarcação precisa. Esta característica da obra se dá pois, afirma
28
Wanda Monteiro, filha do escrito Benedicto Monteiro em entrevista à Abílio Pacheco de Souza, em maio de
2017.
53
EXIGIDO PARA EXECUÇÃO DO PLANO TRIENAL. (MONTEIRO,
1991, p. 24)
29
“como forma híbrida, encabalgada entre historia y literatura, entre realidad e imaginación, el testimonio
guarda un margen importante para la intervención del escritor, ese "tercero incluido" entre lector y personaje,
que es al mismo tiempo narrador primario, actor social, testigo de parte” (MORAÑA, 1995, p. 494, texto original).
54
caminho mais curto de a ficção alcançar a história”. Seligmann-Silva (2010) nota que
há uma “força perlocutória de convencimento do ato de escrita do diário”, esse
convencimento estético
é reforçado por um elemento ético. A escrita é vista tanto como ducto
por onde escorre a vida privada, como também, em muitos diários,
neste duto misturam-se de modo claro as águas da vida pública. O
texto, nestes casos, se transforma em um dique. A potência que
guarda pode ser transformada em energia mesmo muitos anos depois
de passados os fatos, justamente porque na estrutura do texto se
entrecruzam, em uma trama, a vida íntima
com a pública, o trabalho literário com as marcas do “real”. No limite,
tendemos a ver nestes diários uma escrita performática
(SELIGMANNSILVA, 2010, pág. 162)
55
No diário do Major há transcrição dos sete depoimentos do Inquérito Policial
Militar instaurado pelo Coronel que veio da capital Belém para apurar as denúncias
do serviço secreto que “Alenquer destinava-se a ser um dos maiores focos de
subversão na área da Amazônia” (p. 181).
Hans Rudolf Picard ao explicitar a trajetória de literatizarão do diário (partindo
da definição de “diário autêntico” – de foro íntimo - ao diário publicado até chegar ao
diário ficcional), considera que este saiu da esfera da intimidade e adentrou a esfera
do que chamou de status da literatura. Desta forma, o uso ficcional do diário é aquele
em que o autor é uma personagem de ficção. Para Picard
quando o diário passa a ser uma técnica da narração ficcional, uma
das formas do romance em primeira pessoa, junto às memórias e ao
romance epistolar, suas propriedades (fragmentação, incoerência
etc.) adquirem um status semiótico distinto: se convertem em
elementos e meios de expressão no seio da estrutura de uma obra. A
escritura do diário, aquela em que não havia comunicação, ao ser
utilizada de modo ficcional dentro dos limites da estrutura da obra
literária, passa a ser, de forma completamente nova, comunicação
estética. (PICARD, 1981)30
30
No original: ―Cuando el diario pasa a ser una técnica de la narración ficcional, una de las formas de la novela
en primera persona – junto con las memorias y la novela epistolar –, sus propiedades – fragmentariedad,
incoherencia, etc. – adquieren un status semiótico distinto: se convierten en elementos y medios de expresión
en el seno de la estructura de una obra. La escritura diarial, en la que no había comunicación, al ser utilizada de
un modo ficcional dentro del marco de la estructura de la obra literaria, pasa a ser, de un modo completamente
nuevo, comunicación estética.
56
Embora, como já dito antes, Verde Vagomundo não seja um romance
autobiográfico, é possível notar que as reflexões do Major quanto a compreender a
sua ignorância aquilo que julgava saber e conhecer: as coisas da pátria; e suas
indagações que refletem o contexto histórico porque passou Benedicto Monteiro
Vejo, como diante da força, representada aqui por três oficiais
militares, eventualmente investidos de atribuições policiais, se
dissolvem todas as instituições jurídicas, políticas e sociais da nossa
República. (...) Nação? Pátria? Onde está a Nação, a Pátria, com
conceito que aprendemos na escola e na tropa? Onde está a Nação,
a Pátria, cujo símbolo nós defendemos nos campos de batalha? Onde
está, a Nação, a Pátria, que representamos nas missões
diplomáticas?
O que eu vejo aqui é o Estado, não é a Nação; o que eu vejo aqui é o
Governo, não é a Pátria; é a administração, a força e a política, por
seus funcionários, por seus sub-rogados, por seus delegados-de-
delegados-de-delegados-de-delegados, por seus ínfimos caudatários
nos municípios; - não é o povo o qual permanece amorfo e dissolvido,
sem outro liame entre si, a não ser a comunhão da língua dos maus
costumes e do servilismo. (MONTEIRO, 1991, p. 204-205)
Benedicto Monteiro, após boatos de que seria morto na capital por sua relação
com o governo deposto foge para Alenquer após ter seu mandato cassado. A
presença do autor nas matas alenquerenses aparece no diário do Major nos
depoimentos do prefeito e do Pepe-rico, além de ser mencionada pelo próprio Major.
57
Nas respostas dadas e que constam na transcrição do depoimento do Prefeito
nota-se que o Coronel responsável pelo IPM busca uma relação entre o Major, que
utiliza um gravador, com “o deputado do governo com tendências esquerdistas”,
Depoimento do Prefeito
...que o depoente nunca teve conhecimento de ligações do Major com
o deputado do governo deposto, preso e cassado pela Revolução.
(MONTEIRO, 1991, p. 195)
58
Considerações finais
Em construção ...
59
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