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A FICÇÃO TESTEMUNHAL EM VERDE VAGOMUNDO, DE BENEDICTO

MONTEIRO

LINHA DE PESQUISA: LINGUAGEM, IDENTIDADE E CULTURA DA/NA AMAZÔNIA

BELÉM
2022

0
DALVA LIMA DOS SANTOS

A FICÇÃO TESTEMUNHAL EM VERDE VAGOMUNDO, DE BENEDICTO


MONTEIRO

Qualificação apresentada como


parte dos requisitos necessários para
obtenção do título de Mestre em
Comunicação, Linguagens e Cultura
da Universidade da Amazônia –
UNAMA

Orientador: Prof. Dr. José Guilherme de Oliveira Castro

Belém
2022

1
DALVA LIMA DOS SANTOS

A FICÇÃO TESTEMUNHAL EM VERDE VAGOMUNDO, DE BENEDICTO


MONTEIRO

Qualificação apresentada como


parte dos requisitos necessários para
obtenção do título de Mestre em
Comunicação, Linguagens e Cultura
da Universidade da Amazônia –
UNAMA

Qualificado em: _____/____/____

Banca examinadora:

_____________________________________________________
Profª Drª Luclinda Ribeiro Teixeira (Coorientadora)
Universidade da Amazônia

_____________________________________________________
Profª Drª Rosângela Araújo Darwich
Universidade da Amazônia

_____________________________________________________
Prof Dr Marco Antônio da Costa Camelo
Universidade Estadual do Pará

_____________________________________________________
Profª Drª Veridiana Valente Pinheiro (Convidada)

Belém
2022

2
Sumário
1 Introdução .............................................................................................................. 4

Capítulo 1 – Travessia do tempo ...........................................................................11


1.1 Um punhado de tempo ................................................................................ 11
1.2 Um tempo de medo ..................................................................................... 13
Capítulo 2 – Esclarecimentos conceituais: Memória, e Narrativa, e Ficção,
e Testemunho .........................................................................................................18
2.1 Memória e narrativa .................................................................................. 18
2.2 Narrativa histórica e ficção ....................................................................... 25
2.3 Entre a narrativa de ficção e memória: o testemunho .............................. 28
2.4 Literatura de testemunho: um novo gênero .............................................. 33
2.4.1 Zeugnis e Testimonio: uma breve distinção .................................. 39
2. 4. 2 O teor testemunhal ...................................................................... 41

Capítulo 3 – A ficção de testemunhal em Verde Vagomundo ........................... 44


Considerações finais ............................................................................................. 59
Referências bibliográficas ..................... ............................................................... 60

3
1. Introdução

Os anos que antecederam o golpe militar no Brasil, conhecido como “período pré-
ditadura”, já demonstrava as tensões em que o país estava mergulhado. Com a
renúncia de Jânio Quadros, que ficou apenas sete meses no governo, com a posse
de seu vice, João Goulart, o conflito político-ideológico ficou mais tenso.
Devido sua relação com o sindicalismo brasileiro, várias vezes João Goulart foi
acusado de ser comunista e a crise em seu governo fortaleceu-se após definição das
Reformas de Base que previa, entre outras medidas, a reforma agrária.
Eram tempos da chamada Guerra-Fria (1947-1989) e havia o temor de um
suposto “perigo comunista”, assim, os Estados Unidos da América, defensor do
capitalismo, financiou as ditaduras militares em toda a América Latina como forma de
“frear o crescimento de ideias comunistas na região”(ARAUJO et al, 2013). Assim, em
31 de março de 1964, após vários movimentos de parte da sociedade civil,
empresariado, igreja católica e militares, tanques do exército foram enviados ao Rio
de Janeiro, onde estava o presidente João Goulart. Três dias depois, João
Goulart partiu para o exílio no Uruguai, para “evitar uma guerra civil”. Em seu lugar,
uma junta militar assumiu o poder do Brasil e no dia 15 de abril, o general Castello
Branco toma posse e declara o primeiro Ato Institucional da Ditadura Militar no Brasil
– conhecido como AI 1.
É nesse período que, no Brasil se estende até 1985, surge um extenso corpus
de textos denunciando o terror das ditaduras militares instaladas em vários países da
América Latina. A violência gerada pelos regimes ditatoriais causou impacto imediato
nas letras (poesia, narração, romances, contos, crônicas, editoriais entre outros) o
que, de acordo com André (2004), descontruiu as fronteiras da literatura e contribuiu
para o surgimento de um “universo linguístico” que mostra o cenário de lutas e,
sobretudo, de sobrevivência nos tempos em que a violência era usada como política
de estado, em nome da segurança nacional, contra os opositores políticos do
governo.
Os reflexos do golpe foram, ainda que distante do grande centro político
nacional, sentidos na Amazônia, onde também houve perseguições políticas, torturas,
prisões. No Pará, Père Petit (2003), afirma que os trabalhos que voltaram suas
atenções para a história da Amazônia no período da ditadura militar, mostram que

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uma das consequências da presença das Forças Armadas na Amazônia durante o
regime militar foi o enfraquecimento do poder político dos governos estaduais e
prefeituras da região.

As disputas políticas iniciadas pós-revolução de 1930, entre os Partido Liberal


(PL), liderado por Magalhães Barata, que posteriormente, em 1945, lideraria a
fundação do Partido Social Democrático (PSD); Partido Comunista do Brasil (PCB);
o Partido Social Trabalhista; o Partido Trabalhista do Pará (PTB), se estenderam até
as eleições de1962, quando o PSD elegeu quatro dos dez deputados federais
paraenses e 17 dos 37 membros da Assembleia Legislativa.

Naquelas eleições, dos seis deputados estaduais eleitos pelo PTB em 1962, o
advogado Benedicto Monteiro, foi quem maior número de votos obteve. Os três
comandantes do Estado-Maior do Comando Militar da Amazonia – 8ª Região Militar -
sediado em Belém, acusando Benedicto Monteiro de comunista e subversivo,
tentaram, após a divulgação dos resultados eleitorais, impugnar sua candidatura, mas
suas alegações não foram aceitas pelo Tribunal Eleitoral. Somente após o golpe
militar de 1964, em 9 de junho daquele ano, por estritas motivações políticas, Monteiro
teve seus direitos políticos suspensos e mandato cassados.

É nesse cenário que Benedicto Monteiro, advogado, assumidamente alinhado


à ideologia de esquerda, com projetos voltados para a reforma agrária, contava com
viagens à China, Cuba, países de orientação marxista, amigo de João Goulart, levou-
o, após perseguição, à prisão em 16 de abril de 1964 e, como tantos outros na mesma
situação, foi torturado.

Das situações-limite, diga-se torturas, Monteiro (1993) afirma que, antes de ser
preso, tinha apenas a ideia dos livros de literatura e dos filmes de cinema, e que
durante os sete meses que ficara preso, foi na cela solitária que conheceu outras
formas de tortura

A tortura mental, da icomunicabilidade, da psicológica, da orgânica e


a tortura do silêncio. [...] Quando iriam me interrogar? O que iriam me
perguntar? O que teriam dito os meus amigos, meus inimigos, meus
correligionários e meus familiares? O que estava acontecendo,
politicamente, em nossa pátria e no nosso Estado? O que estava
acontecendo com meus pais, com minha mulher e como meus filhos?
O que restava de mim lá fora? Com o meu mandato de deputado
Estadual, meu cargo de secretário de Estado, meu título de Bacharel
em Ciências Jurídicas e Sociais e com minhas lembranças de escritor

5
e poeta, com a minha carteira de advogado. O que valiam toas essas
coisas naquele momento para a sociedade: o que valia a minha
própria pessoa humana para as outras pessoas? Estas eram apenas
algumas das indagações íntimas que faziam parte da minha tortura;
Eram as incertezas e as dúvidas que ocupavam, de maneira
obsessiva, a minha mente. E por causa dessa tortura mental, caí logo
em outro tipo de torturamento: a incomunicabilidade. (MONTEIRO,
1993, p. 64-65)

Foi nesse contexto de incomunicabilidade imposta pela ditadura militar que a


ideia de escrever Verde Vagomundo, “um romance equilibrado que também critica o
momento político vivido pelo país”. (ESTEVES, 1994, p. 36)

A busca por identificar, interpretar e analisar, em Verde Vagomundo, “primeiro


romance contextual sobre a Amazonia”, elementos que podem defini-lo como
romance de teor testemunhal, e não como romance de testemunho, terá como um
dos fundamentos o conceito de teor testemunhal trazido por Seligmann-Silva (2005).

A análise de Verde Vagimundo sob a óptica do teor testemunhal que, segundo


Seligmann-Silva (2005), é passível de ser observado em vários produtos culturais,
surgiu timidamente durante as aulas da disciplina “Narrativas: tradição e o
contemporâneo”, ministradas pelos professores José Guilherme de Oliveira Castro e
Lucilinda Teixeira, e foi tomando forma, sobretudo pelo contexto político em que se
vive: o do negacionismo. Período em que que se busca exaltar torturadores e apagar,
com narrativas que fogem aos fatos históricos, a memória dos que sucumbiram ou
sobreviveram aos anos de chumbo da ditadura militar no Brasil.

Schimidt (2014) afirma que uma pesquisa é suscitada por algo que nos
inquieta, algo que “nos atravessa e fica sem resposta”. Neste trabalho a pergunta,
para qual se busca uma resposta, surgiu após o reencontro com o romance Verde
Vagomundo, obra pertencente à Tetralogia Amazônica, de Benedicto Monteiro: o que
há de real, portanto, testemunhal nas vozes das personagens deste romance?

Para responder à esta primeira inquietação recorre-se à além do romance


foco desta dissertação, à obra autobiográfica Transtempo (1993), obra que nos
permitirá identificar traços do real e da ficção em Verde Vagomundo, romance que
narra a história de Antonio de Medeiros, major do Exército Brasileiro, que retorna à
Alenquer, sua terra natal, na Ilha do Marajó, para vender suas terras, grandes
propriedades herdadas de seus pais. Porém, como este não conhece as terras que

6
herdou, necessita de alguém que as conheça e o leve até elas e seja também capaz
de navegar pelos rios daquela região. É assim que o major conhece Miguel dos
Santos Prazeres, personagem presente em todos os romances da Tetralogia
Amazônica e os acontecimentos presentes no romance Verde Vagomundo começam
a se entrelaçar entre o real e o fictício.

Nos estudos sobre Literatura de Testemunho, como se convencionou designar


as produções literárias narradas por aqueles que sobreviveram a fatos historicamente
importantes e pessoalmente traumáticos, passou a ganhar espaço nos debates em
revistas especializadas, considera-se a existência de duas vertentes: uma
proveniente dos estudos de textos produzidos por sobreviventes dos campos de
concentração nazistas, chamada Literatura da Shoah (Holocausto), cujo maior
representante é Primo Levi; e outra sobre a literatura produzida na América Latina,
designada Testimonio.

O interesse por analisar obras literárias que testemunham diretamente ou


evocam o genocídio dos judeus pelo nazismo entre 1939 e 1945, surge após a
Segunda Grande Guerra. Correspondências, diários, contos, romances e várias
outras formas de escrita deste período, adquiriram uma dimensão social que até
então a escrita não possuira, permitindo ver nesses escritos não apenas uma fonte
sobre a experiências vividas pelos sobreviventes, mas também os efeitos da guerra
na transformação do campo literário.

De acordo com André (2002)

Esses testemunhos no sentido de serem a estética do


irrepresentável, ou a representação estética da catástrofe, onde
a convergência da violência e da linguagem é o ponto central
que gera a discussão. Esses estudos dimensionam o sentido
do depoimento porque alude ao que parece irrepresentável: a
experiência traumática, o próprio momento de horror. É a
linguagem que permeia também a experiência do silêncio e do
mudo, da escuridão da prisão, para testemunhar essa própria
experiência, porque a linguagem não se reduz a critérios
simplificadores por níveis de representação, ou não
representação, mas antes vista como o essencial questão da
representação de momentos de silêncio e impotência, da
ausência de vida e da suspensão do horror. Assim, as
narrativas e os versos surgem igualmente mutilados, na dor.

7
Eles nascem dos escombros para testemunhar que a única
coisa que não se extingue é a linguagem. (p. 3) 1

Sobre o termo Literatura de Holocausto, Elie Wiesel, escritor e sobrevivente


dos campos de concentração, afirma

Literatura do Holocausto? O próprio termo é um nome impróprio.


Quem não viveu o acontecimento nunca o saberá e quem o viveu
nunca o revelará. Na verdade. Não à fundo. (1977, p. 190-191)2

Há autores que propõem a existência de duas gerações da Literatura de


Shoah. A primeira, feita por autores que viveram o Holocausto, e a segunda feita por
escritores nascidos após o fim da guerra começaram a escrever sobre o Holocausto.
A pesquisadora de literatura germano-americana Ernestine Schlant corretamente
apontou em seu livro The Language of Silence. West German Literature and the
Holocaust (1999), que a separação entre autores judeus e não judeus era inevitável
pois

o abismo da Shoah se abriu entre eles. Aquele que não vê está


obviamente tentando nivelar as histórias separadas das vítimas e dos
algozes. (p.17)3
No entanto, esta tese levantada por Schlant, é refutada, pois, segundo Maxim
Biller, os argumentos da disparidade entre vítimas e algozes, bem como a posição de
testemunhas oculares dos autores judeus, ou pelo menos como testemunhas da
época, caducaram, uma vez que seus conhecimentos sobre a Shoah vêm, em grande
parte, das mesmas fontes e dos mesmos materiais de informação dos não-judeus:
arquivos, documentos, produções de pesquisas científicas, relatos de testemunhas
da época, autobiografias e obras literárias da geração anterior. Os autores da

1
No original: estos testimonios en el sentido de ser la estética de lo irrepresentable, o la representación
estética de la catástrofe, donde la convergencia de violencia y lenguaje es el punto central que genera
la discusión. Estos estudios dimensionan el sentido del testimonio porque este alude a lo que pareciera
ser irrepresentable: la experiencia traumática, el instante mismo del horror. Es el lenguaje que también
perpasa por la vivencia del silencio y la mudez, de la oscuridad de la prisión, para testimoniar él mismo
esta experiencia, porque el lenguaje no puede reducirse a criterios simplificadores por niveles de
representación, o no representación, sino verlo como la materia esencial de la representación de los
momentos de silencio e impotencia, de la ausencia de vida y de la suspensión del horror. Es así que
las narraciones y los versos surgen igualmente mutilados, doloridos. Nacen de entre los escombros
para testimoniar que lo único que no se extingue es el lenguaje.
2
No original: la littérature de l’holocauste? Le terme même est un contresens. Qui n’a pas vécu l’événement
jamais ne le connaîtra et qui l’a vécu jamais ne le dévoilera. Pas vraiment. Pas jusqu’au fond.
3 No origininal: bée entre eux l’abîme de la Shoah. Celui qui ne le voit pas tente manifestement de niveler les
histoires séparées des victimes et des bourreaux.

8
“segunda geração" não podem, portanto, mais reivindicar o que marcou a literatura
de seus antepassados: autenticidade.4

Já na América do Sul, a Literatura de Testimonio, nota-se duas acepções

uma acepção orienta o exame de textos que, construídos a


partir de múltiplas combinações de discursos literários,
documentais ou jornalísticos, registram e interpretam a
violência das ditaduras da América Latina durante o século XX;
é ela, em parte, tributária da pauta sobre testemunho formulada
pelos intelectuais reunidos no Júri do Prêmio Casa das
Américas de 1969. Outra, quase absolutamente hegemônica,
emerge na década de 1980, a partir do testemunho de
Rigoberta Menchú, e volta-se exclusivamente para a literatura
hispanoamericana. Esta apresenta uma sólida sistematização,
tem sido desenvolvida no espaço universitário norte-americano
ou em áreas a ele vinculadas e faz fronteira com os estudos
culturais (DE MARCO, 2004, p. 46)

O crescente interesse por (re)conhecer a literaridade de textos produzidos no


período ditatoriais na América Latina, lança debates sobre o tema “testemunho na
literatura”, como afirma Seligmann-Silva. E uma das maneiras de se verificar o
testemunho na literatura é examinar o teor testemunhal que possa estar presente em
vários gêneros literários.

foi no século XX que assistimos ao surgimento de uma literatura


com forte teor testemunhal. Não diria que existe a partir de
então um novo gênero, a literatura de testemunho, mas antes
que neste século tanto se desenvolveu uma literatura com forte
teor testemunhal, como também, por outro lado, aprendemos a
ler nos documentos de cultura traços, marcas da barbárie. O
excesso de catástrofes impingidas pelas nossas próprias mãos
– nesse século cerca de 140 milhões morreram por atos
bárbaros em guerras, genocídios e perseguições – gerou uma
necessidade de testemunho. (SELIGMANN-SILVA, 2009, p.
133)

Ao utilizar “teor testemunhal”, Seligmann-Silva amplia o campo de análise para


qualquer produção cultural, não restringindo, assim, o estudo do teor testemunhal a
esta produções literárias nascidas para testemunhar catástrofes no século XX.

4
Para saber mais sobre o assunto, consultar: “La Shoah dans la littérature de la « deuxième génération”. Hartmut
Steinecke, Traduit de l’allemand par Olivier Mannoni. Dans Revue d’Histoire de la Shoah 2014/2 (N° 201), pages
239 à 264. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-revue-d-histoire-de-la-shoah-2014-2-page-
239.htm#re2no2 .

9
Eu em particular, desde o final dos anos 1990, prefiro falar não
tanto em testemunho, mas sim em “teor testemunhal” da cultura.
Acredito que o que aconteceu na teoria do testemunho foi uma
revalorização desse nó entre o real e a linguagem
(SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 11)

Por isso, quando se busca analisar o romance Verde Vagomundo sob a ótica
da literatura de testemunho, busca-se identificar o teor testemunhal presente na obra,
enfatizando que o testemunho está para além da ideia de gênero literário. Ou seja,
não se buscará caracterizar o romance de Benedicto Monteiro como de testemunho,
mas descrever o modo de manifestação do teor testemunhal presente na narrativa,
sem perder de vista, no entanto que, não é porque se trata de uma obra de ficção,
está isenta das marcas memorialísticas de seu autor, uma vez que “testemunho é
uma possibilidade de apresentar relatos com um peso traumático e inarrável”
(MACIEL, 2016). Assim, deve-se afastar a ideia de que tudo em Verde Vagomundo é
ficção, pois
toda representação contém (...) seu resto de silêncio - de algo
que já não está - de algo que nunca se entregou por inteiro à
simbolização. (KEHL, 2000, p. 140)

Diante disto, identificar os elementos que conferem teor testemunhal à obra


Verde Vagomundo, com base no cenário político histórico que se vivia durante a
ditadura militar na Amazônia, é o objetivo principal deste trabalho, para tanto, sob a
luz de autores como Seligmann-Silva, Annette Wieviorka e Mabel Moraña, o trabalho
organizar-se-á em três capítulos. No primeiro, serão abordadas as trajetórias
histórica, política e social de Benedicto Monteiro com o fim de situar o romance Verde
Vagomundo na linha tênue entre ficção e realidade. Para atingir este propósito,
recorreu-se, além do romance foco desta análise, à obra autobiográfica Transtempo
(1993) onde é possível vislumbrar a construção da autoimagem do autor.
No segundo capítulo será trabalhado teoricamente o testemunho mediante as
duas correntes da Teoria Literária, quais sejam a Shoah e o Testimonio para que, no
terceiro capítulo possa ser possível identificar elementos na construção narrativa da
obra sob análise, que lhe confiram o caráter de obra testemunhal do período da
ditadura militar na Amazônia paraense.

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CAPÍTULO 1. TRAVESSIA DO TEMPO

1.1 Um punhado de tempo

Benedicto Wilfredo Monteiro, nascido “numa cidade pobre com o nome


pretensioso de Alenquer”, no Baixo Amazonas, no Pará, após ter feito seus estudos
primários no Grupo Escolar Fulgêncio Simões daquela cidade, mudou-se para a
capital para, como aluno interno do Colégio Marista Nossa Senhora de Nazaré, fazer
o Curso de Humanidades. Segundo o próprio autor, teria sido nessa época que
durante as aulas do Irmão Paulo, professor de História, tomou conhecimento dos
ideais liberais da Revolução Francesa (1789) de Igualdade, Liberdade e Fraternidade,
oposto ao ambiente de censura da instituição religiosa em que estudava.
Sobre este período, em sua autobiografia Transtempo (1993), Monteiro afirma
Cinco anos de internato, longe dos meus pais e meus irmãos, longe
da convivência com o povo, embora tenham concorrido muito para a
minha disciplina pessoal e para o meu conhecimento, contaminaram
a minha adolescência de tantas certezas teológicas, de tantos
preconceitos da sociedade, que só muito mais tarde foi que eu fui
perceber a grande falta que me fez a liberdade (p. 17).

Após este período de internato, Benedicto Monteiro foi para o Rio de Janeiro
onde concluiu o ensino científico no Colégio Rabelo e em seguida iniciou o curso de
Direito na Faculdade Nacional de Direito, no entanto, apenas em 1952, pela
Faculdade de Direito do Pará que se bacharelou em Ciências Jurídicas e Sociais.
No período em que viveu no Rio de Janeiro (1943 a 1950), foi carregador,
despachante e gerente de aeroporto. Pode conviver com seu conterrâneo e
comunista declarado, Dalcídio Jurandir. Foi também repórter do Diário Carioca o que
lhe permitiu conhecer o líder revolucionário Carlos Marighella, que era Deputado
Federal Constituinte da Bahia pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi também
onde publicou, em 1945, ano do término da Primeira Grande Guerra, seu primeiro
livro, que por isso foi intitulado Bandeira Branca.
De volta ao Pará, exerceu importantes cargos públicos, como Pretor, Promotor,
Juiz de Direito, Professor (entre 1950 e 1954); Secretário de Estado de Obras, Terras
e Aviação, de janeiro de 1960 a abril de 1964; Procurador Geral do Estado, de 1983
a 1984, e advogado.

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Na esfera política, Monteiro elegeu-se, na década de 50, vereador de Alenquer
pelo Partido Social Progressista (PSP); deputado estadual em 1958, pelo Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB) e reeleito pelo mesmo partido, em 1962 como candidato
mais votado naquele pleito, porém, em decorrência de sua militância política,
considerado como “comunista e subversivo”, foi solicitada pelos comandantes do
Estado-Maior do Comando Militar da Amazônia (CMA), a cassação do seu mandato.
As alegações dos comandantes foram aceitas, no entanto,
Foi preciso impetrar mandado de segurança perante o Superior
Tribunal Eleitoral, já funcionando em Brasília, para poder ter o direito
de disputar a minha reeleição. Devo ressaltar que se não fosse a
ajuda pessoal do meu amigo João Goulart, presidente da república,
que colocou um grande advogado para defender a minha causa, eu
não teria restabelecido esse direito (MONTEIRO, 1993, p.190).

Político ativo e, embora bisneto, neto e filho de latifundiários, mostrou-se


preocupado com as questões agrárias da região amazônica, foi durante seu mandato
que se iniciaram os projetos de colonização das terras situadas às margens da Belém-
Brasília para o assentamento de posseiros e trabalhadores rurais, apresentando à
Assembleia Legislativa, em 1963, o projeto de reforma agrária do estado do Pará, que
tinha como governador o advogado Aurélio do Carmo.
Com o Golpe de 1964, em uma reunião convocada especialmente para este
fim, teve seus direitos políticos suspensos e foi cassado ou caçado, como preferiu
enfatizar em sua autobiografia Transtempo (1993). Embora tenha conseguido fugir da
capital, foi preso em Alenquer no dia 16 de abril daquele ano. Levado de volta à capital
paraense, Benedicto Monteiro foi conduzido, primeiramente no Quartel da
Aeronáutica, onde passou 60 dias sendo torturado, posteriormente à em uma das
celas da Quinta Companhia de Guardas5, onde permaneceu preso até 30 de
novembro de 1964.
Mesmo após sua libertação, Benedicto Monteiro permaneceu em constante
vigilância, principalmente após a publicação do decreto do Ato Institucional nº 5 (A.I-
5) e com o movimento de resistência ao regime militar, Guerrilha do Araguaia,
implementado no sul do estado do Pará pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB),
liderado por Carlos Marighella. O foco de resistência no Pará foi severamente

5
A Quinta Companhia de Guardas, localizava-se onde hoje é a Casa das 11 Janelas e conta com Exposição
Permanente de Arte Modernista Amazônica. A Casa das 11 Janelas, juntamente com o Forte do Presépio,
compõe o Complexo Turístico Feliz Lusitânia, em Belém.

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combatido e todos os seus líderes e seguidores foram presos ou mortos6. Segundo
dados históricos, não houve prisioneiros de guerra: os guerrilheiros simplesmente
deixaram de existir.
Apenas em 1974, Monteiro foi absolvido pela Justiça Militar das acusações que
recaíam sobre si, voltando ao cenário político somente em 1982 como primeiro
suplente ao cargo de Deputado Federal pelo PDT, assumindo-o efetivamente em
1985, após renúncia de dois deputados federais, no mesmo ano que recebe o Título
de Honra ao Mérito da Assembleia Legislativa do Pará, como reconhecimento aos
“inestimáveis, extraordinários e relevantes serviços” prestados ao Pará. Reeleito
deputado federal em 1986 pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro, pode
participar da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, quando apresentou uma
emenda sobre reforma agrária.
O retorno à vida político-partidária fez-lhe também retomar a função como
escritor, iniciada em 1945 com o livro de poemas Bandeira Branca, seguido por Verde
Vagomundo (1972), seu primeiro romance e primeiro livro da tetralogia amazônica,
seguido do livro de contos O Carro dos Milagres (1975); o romance O Minossauro
(1975); a coletânea de poesias, O Cancioneiro de Dalcídio Jurandir (1985); o
autoplágio Como se Faz um Guerrilheiro (1985), relato da personagem Miguel retirado
na íntegra de A Terceira Margem (1983); romance Aquele Um (1985); a autobiografia
Transtempo (1993); o romance Maria de Todos os Rios (1995); o livro de poemas
Discurso Sobre a Corda (1994); a coletânea de poesias A Poesia do Texto (1998); o
romance A Terceira Dimensão da Mulher (2002), além do livro não literário Direito
Agrário e Processo Fundiário (1980), da área jurídica.
Especialmente pelo livro pelo livro de contos O Carro dos Milagres (1975), em
22 de março de 1984, o romancista de Alenquer assumiu a cadeira nº 20 da Academia
Paraense de Letras, cujo patrono fora o escritor paraense Inglês de Sousa.
Benedicto Monteiro acumulou atividades de advogado militante, com forte
atuação nas causas agrárias da região amazônica, e como escritor até seu
falecimento em 15 de junho de 2008.

6
Alguns guerrilheiros assassinados, nunca tiveram seus corpos encontrados. Segundo, Barbosa (2016), o
Exército desenvolveu a “Operação Limpeza”. Os militares que faziam parte dessa operação, exumavam dos
corpos dos guerrilheiros e os transferiam para a Serra das Andorinhas, “onde foram cremados com gasolina e
pneus usados, na tentativa de eliminar vestígios da “guerra suja” que ocorrera no Araguaia.” (p. 43)

13
1.2 Um tempo de medo – Golpe de 1964

O golpe e processo ditatorial militar de 1964, teve início, segundo Petit (2014),
em março daquele ano. Entre outros muitos fatores, a crise político-militar provocada
pelas mobilizações de sargentos, marinheiros e fuzileiros navais; pela proposta de
reforma da Constituição defendida pelo presidente João Goulart; por manifestações
que ocorreram no Rio de Janeiro (Comício pelas Reformas de Base, no dia 13) e em
São Paulo (A Marcha da Família com Deus pela Liberdade7, no dia 19).
O ambiente de crise institucional entre Forças Armadas e poder executivo
gerou “condições cruciais para o sucesso da conspiração militar”. D’Araujo et. al
(2014, p. 14) “muitos oficiais conspiraram contra seus chefes e doutrinaram suas
tropas enquanto procuravam um líder general que os representasse e liderasse.”
O receio pelas mudanças que uma reforma constitucional, fez com que no dia
20 de março, fosse encaminhada a todos os generais e demais militares demais
organizações subordinadas, a Instrução Reservada do General Castelo Branco
(chefe do Estado-Maior do Exército). Este documento, considerava ilegais as medidas
anunciadas por Goulart no comício de 13 de março daquele ano e alertava sobre as
ameaças que essas mudanças representariam ao Brasil.
Com o discurso de agir “dentro dos limites da lei”, Castelo Branco afirmou que
advento de uma Constituinte como caminho para a consecução das
reformas de base e o desencadeamento em maior escala de
agitações generalizadas do ilegal poder do CGT (...). A ambicionada
Constituinte é um objetivo revolucionário pela violência com o
fechamento do atual Congresso e a instituição de uma ditadura (...).
É preciso aí perseverar, sempre “dentro dos limites da lei”. Estar
pronto para a defesa da legalidade, a saber, pelo funcionamento
integral dos três poderes constitucionais (LIRA NETO, 2013, p. 239).

Sob um discurso legalista, no dia 31 de março, o General Mourão Filho,


Comandante da IV Região Militar, em Juiz De fora (MG), ordenou às suas tropas que
se dirigissem à ao Rio de Janeiro para exigir a renúncia do presidente João Goulart.
Iniciava-se o levante militar que culminaria com o golpe de Estado.

7
Em Belém esse movimento ocorreu no dia 20 de abril e foi liderado pelo arcebispo Alberto Gaudêncio Ramos,
que celebrou a Missa em Ação de Graças que o governo do estado mandou celebrar pelo êxito da redemocratização do País
e posse do marechal Castelo Branco. Nesse sentido, não se pode esquecer, como afirma Père Petit (2014, p. 200), “que na
‘luta contra o comunismo e seus aliados’ o discurso religioso-católico era incorporado, ao repudiar o comunismo ateu e
tirânico.”

14
No Pará, o Tenente-Coronel Jarbas Passarinho foi o principal articulador
golpista, ao lado do major Antônio José do Carmo Ramos, ambos oficiais do Estado-
Maior do Exército em Belém. O grupo liderado por Passarinho e Carmo Ramos
reunia-se de forma clandestina
para fugir da delação e da vigilância dos esquerdistas (...). Fazíamos
a propaganda dos valores democráticos, justificando o porquê de
nossa luta. Defendíamos o princípio de que a segurança interna não
era assunto privativo das Forças Armadas, cabendo-nos o
esclarecimento da opinião pública sobre a realidade do comunismo
mundial, o desmascaramento das infiltrações, a identificação das
organizações de fachada (...). Nossos grupos, já então se
aproximando de cem integrantes (...), eram constituídos de jovens, em
geral: advogados, médicos, engenheiros, economistas, professores
universitários, funcionários públicos, comerciantes (...). De militares,
só o Major Ramos e eu. Não queríamos, de modo algum, dar caráter
paramilitar ao movimento essencialmente cívico (PASSARINHO,
1990, p. 93-97)

Em 1º de abril de 1964, após o governador Aurélio do Carmo, que estava no


Rio de Janeiro, juntamente com maioria das lideranças nacionais do PSD optarem
pelo afastamento do presidente da República João Goulart, Newton Miranda, vice-
governador, aceitou que seu nome fosse incluído como um dos signatários do
Manifesto ao Povo do Pará (PASSARINHO, 1990), assinavam, também este
manifesto, general Orlando Gomes Ramagem, o brigadeiro Armando de Menezes e
o comandante Boris Markense.
Neste manifesto publicado no Folha do Norte em 02 de abril, redigido por
Jarbas Passarinho, a pedido do General Ramagem, lia-se
Não poderiam os paraenses, pelo seu governador, e os militares, por
seus chefes legítimos, retardar por mais tempo a sua completa
adesão ao abençoado movimento, que eclodiu no generoso solo de
Minas Gerais (...), que logo se irradiou por todo o território pátrio.
Governo e Comandantes Militares, em íntima comunhão de
pensamento, ligados pelo mesmo amor ao Brasil, e igualmente
repudiando o comunismo ateu e tirânico, fazem saber à Nação
brasileira a sua firme e inabalável determinação de formarem ao lado
das forças que se batem pela restauração do princípio da autoridade
e pelos fundamentos da própria organização militar, que são a
disciplina e a hierarquia, tão vilmente vilipendiados e enxovalhados
pela mais despudorada demagogia e pela deplorável ausência de
espírito público. Conscientes da gravidade da sua decisão perante a
história que os há de julgar, Governo do Pará e Comandantes
Militares em serviço na Amazônia, proclamaram-se enfaticamente
contra o despotismo que se pretendeu instaurar no Brasil para servir
ao comunismo internacional. (Folha do Norte. Belém, 02/04/1964,
APUD, PETIT, 2016)

15
Tem-se início, no Pará, o período de cassações, perseguições e prisões
políticas.
Benedicto Monteiro, deputado estadual e militante do PCB, visto, portanto,
como “comunista e subversivo”, teve seu mandato cassado e fugiu para Alenquer,
com receio de que fosse, segundo boatos que circulavam na capital, de que ele seria
o primeiro a ser preso e assassinado pelos militares. Foi procurado, ou caçado, como
afirma em Transtempo (1993), em Bragança, Santarém e em sua cidade natal pelo
Exército, que pedia a colaboração da população para que a prisão fosse efetivada.
Fora preso no dia 16 de abril, em Alenquer,
às margens do Rio Curuá e exposto, em trajes menores e descalço,
aos ribeirinhos da região da cidade de Alenquer, para intimidar
aqueles que, porventura, ousassem acolher e esconder todos aqueles
julgados ou acusados de comunistas pelos militares. (NASCIMENTO,
2004, p. 10)

Assim como várias outras personalidades políticas da época que se opunham


ao golpe, Monteiro foi levado para o Quartel da Aeronáutica, onde permaneceu
sessenta dias, e posteriormente ao Quartel do 26º Batalhão de Caçadores do
Exército, atual 2º Batalhão de Infantaria de Selva – 2º BIS. Em ambos os lugares,
conheceu a tortura que antes só ouvira e vira em páginas de livros e cenas de filme
Antes da minha prisão em 1964, eu pensava que só existia a
tortura física. Espancamentos, pancadas nas partes mais sensíveis,
choque elétrico, pau-de-arara, queimadura no corpo, telefones nos
ouvidos e afogamentos. Dessas torturas eu tinha também apenas a
ideia dos livros de literatura e das investigações policiais exibidas no
cinema. Mas na prisão, durante os sete meses que passei na cela
solitária de um quartel da Aeronáutica e do Exército, conheci outros
tipos de torturas. Como a tortura mental, da incomunicabilidade, da
psicológica, da orgânica e a tortura do silêncio. (MONTEIRO, 1993,
p.64)

Embora tenha sito liberto em 30 de novembro daquele ano, por Habeas Corpus
do Supremo Tribunal Federal (STF), Monteiro continuou sofrendo com retaliações e
perseguições do governo militar, vivendo o que Nascimento (2007) denominou de
“exílio domiciliar, sem poder exercer a profissão e nem assinar documentos junto aos
órgãos de justiça”, o que se agravou em 1968 com o decreto do Ato Institucional Nº
5, em dezembro de 1968, período de censura e repressão que ficou
historicamente conhecido como o mais duro do período da ditadura militar.

16
No Pará, a perseguição aos comunistas teve grande apoio da imprensa local.
O Liberal, A Província do Pará e Folha do Norte enalteciam as ações do novo governo,
sendo estes últimos os que mais destacavam a empreitada militar.
Os jornais de Belém aceitaram a tese que havia um inimigo subversivo
da democracia, das tradições, da ordem e que era necessário
combatê-lo. Aceitaram também a assertiva de que os militares eram
o herói do momento. Muitos artigos foram escritos de forma a exaltar
as forças armadas, em alguns momentos chegaram até aparentar que
antes do golpe de 1964 no Brasil não vigorava uma democracia.
Contra os inimigos subversivos da democracia e da ordem são poucos
os apoios do presidente João Goulart. (FONTES, 2014, p. 340)

Petit (2014), afirma que na sua edição de 5 de abril, a Folha do Norte publicou
a matéria “Exército e Polícia intensificam a caçada aos comunistas em Belém”, onde
informava que as lideranças do Partido Comunista no Pará Raimundo Jinkings
(presidente do Sindicato dos Bancários de Pará e Amapá e presidente do CGT
regional), Francisco Ribeiro do Nascimento (secretário geral do Sindicato dos
Comerciários), deputado Benedicto Monteiro e o engenheiro João Luiz de Aragão,
eram procurados em Bragança, Alenquer e Santarém, e suas prisões eram aguardas
a qualquer momento, “solicitando o Exército a colaboração do povo em particular para
a concretização da prisão dos citados comunistas foragidos”. No dia dez de maio, A
Província publica “Dez paraenses na lista de ontem de cassação de mandatos e
direitos”, onde constava o nome de Benedicto Monteiro.
Nessa atmosfera, Benedicto Monteiro só voltaria à cena política em 1982 como
candidato à deputado federal pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), ficando
com a primeira suplência. Reassumiu o cargo em 1985 com a renúncia de dois
deputados federais que ocuparam cargos de prefeitos. Reelegeu-se em 1986 pelo
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e participou da Assembleia
Nacional Constituinte de 1988, quando apresentou uma emenda sobre reforma
agrária.
Após um ano da criação do Comissão Nacional da Verdade em maio de 2011
com o intuito de investigar crimes cometidos por agentes do Estado, principalmente
aqueles ocorridos durante a Ditadura Militar, no período que se estendeu de 18 de
setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, no Pará foram criadas três comissões para
ouvir as testemunhas deste período: a Comissão da Verdade dos Jornalistas do Pará
(SINJOR-PA), a Comissão da Verdade César Leite, da Universidade Federal do Pará
e a Estadual da Verdade.

17
É no contexto das discussões sobre a Comissão Nacional da Verdade (CNV),
que em março de 2013, após sugestão da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção
Pará (OAB-PA), ao presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Pará,
deputado Márcio Miranda, que foi realizada seção solene para devolução simbólica
dos mandatos de Aurélio do Carmo (ex-governador) e Newton Miranda (vice-
governador) e de Benedicto Monteiro (deputado federal), que tiveram seus mandatos
cassados arbitrariamente por meio do Ato Institucional Nº 1, de 9 de abril de 1964. O
diploma que outorgava o título de ex-deputado federal foi recebido por seus familiares.
Benedicto Monteiro falecera em 22 de maio de 2008, aos 84 anos, em função de
complicações do câncer nos ossos.

18
2. CAPÍTULO 2 – ESCLARECIMENTOS CONCEITUAIS: MEMÓRIA, E
NARRATIVA, E FICÇÃO, E TESTEMUNHO
Inevitável, ao se tratar de testemunho em obras literárias, não passar pela
questão da memória, sobretudo quando se busca analisar a forte imbricação entre
ficção e testemunho. O quanto de ficção há nessas memórias narradas? O quanto há
de testemunho nessa narrativa de ficção?

Diante, disso cabe aqui abrir um espaço a esta questão, levando-se em


consideração os pensamentos de Jacques Derrida, de Paul Ricoeur, além de
Seligmann-Silva e Wieviorka outros autores que contribuem sobremaneira para a
discussão entre teoria literária articulada à realidade histórico-social na qual ela se
insere.

2.1 Memória e narrativa

Narrar é uma forma de lembrarmos o passado, de contar as histórias que


vivemos, as que presenciamos, as que ouvimos no decorrer de nossas vidas. O narrar
histórias faz, portanto, parte da natureza humana e, segundo Motta (2013), citando
Bruner, como seres humanos temos aptidão “cultural, primitiva e inata” para narra e
utilizamos desta habilidade para compreender o mundo de forma narrativa.

Paul Ricoeur, a partir da constatação de que o tempo é uma realidade ilusória,


portanto, perturbadora para os homens, sugere em Temps et récit (1984), que as
narrativas têm o poder de organizar, refletir e dar sentido ao tempo. A realidade torna-
se “humain” grâce aux narrations, qui le travaillent, le mettent en forme et le donnent
à penser (grifo do autor).

Para Walter Benjamin (1985), narrar está essencialmente conectado à


experiência transmitida oralmente de uma geração à outra carregando consigo a
experiência daquele que a narra. Na sua obra “Magia e Técnica, Arte e Política:
ensaios sobre literatura e história da cultura”, no célebre ensaio de 1933 “O Narrador
- considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, Benjamin fala da extinção do ato de
narrar. É importante ressaltar a datação do contexto de produção deste ensaio, pois
Benjamin estava sob os efeitos de um regime totalitarista na Europa, um tempo, como
afirma Edwald (2008), de devastação e desesperança. A extinção da narrativa, a que
se referiu Benjamin, se daria pelo silêncio dos combatentes que voltavam silenciosos
do campo de batalha e pobres em experiências comunicáveis.

19
Na mesma obra, no capítulo “Experiência e Pobreza”, Benjamin trata do não
lugar que a narrativa ocupa no século XX. Uma vez a experiência tradicional perdida
- baseada na transmissão de vivências - devido à Primeira Grande Guerra, foi perdida
também a capacidade de contar histórias, ocorrendo assim o empobrecimento da
experiência na sociedade moderna tornando os homens inábeis para transmitirem
suas experiências.

Ainda que não seja foco desta dissertação as teorias das memórias, é
importante ressaltar a importância desses estudos para a questão do testemunho que
tem sido tema que tem despertado a atenção de diversos estudiosos através de
diferentes campos do conhecimento. Nesse contexto, em que inúmeros são os
estudiosos que têm se dedicado ao estudo da narrativa e sua relação com a memória,
o próprio filósofo francês Paul Ricoeur na obra La memóire, l’histoire, l’oublie” (2000)
trata de uma fenomenologia da memória, uma epistemologia da história e uma
hermenêutica do esquecimento.

Inegavelmente, os três temas são interessantes tanto do ponto de vista da vida


cotidiana quanto do ponto de vista filosófico, afinal, de forma geral, todos imaginam
saber o que é memória: lembramos alguém ou um lugar, um acontecimento do nosso
passado, ao mesmo tempo, que estamos familiarizados com o esquecimento, afinal,
esquecemos um nome, o título de um livro ou filme, ou do endereço daquele
restaurante onde jantamos anos atrás. Quanto à história, esta aprendemos ouvindo
em casa, na escola e agora gostamos de ler histórias ou romances históricos.

No caminho que percorre, Ricœur analisa a tese de Maurice Halbwachs


segundo a qual a memória é coletiva. Para lembrar, precisamos de outros. Não é uma
passagem analógica da memória individual para a memória coletiva. Toda memória
se confunde com o testemunho de outras pessoas. Existe uma capacidade original
das comunidades de preservar e relembrar memórias comuns. Voltaremos
posteriormente às discussões entre memória e narrativa defendidas por este autor.

No Brasil, Ecléa Bosi (1994) entrelaça o narrar e o lembrar inspirada


principalmente na obra de Bergson, Halbwachs e Barlett. Em “Memória e sociedade”,
publicado em 1994, a autora parte das narrativas de velhos, como ela mesmo os
chama, e percebe como as vozes presentes nessas narrativas reverberam também

20
as vozes dos grupos sociais em que aqueles sujeitos estavam inseridos, e no quanto
elas também pertencem a uma memória histórica.

A memória guarda, além de histórias, significados que são construídos ao


longo de nossa existência. Maurice Halbwachs, que, segundo Cordeiro (2013, p. 102)
foi fortemente influenciado por Durkheim (fatos sociais), trata da memória como um
fenômeno social, assim, afirma, em sua obra dedica ao tema “A memória Coletiva”,
que a memória individual depende das relações que estabelecemos com os grupos
sociais em que circulamos (família, igreja, profissão, etc..), uma vez que “o maior
número de nossas lembranças nos vem quando nossos pais, nossos amigos, ou
outros homens, no-las provocam” (HALBWACHS, 1990, p.55).

A memória individual sofre, portanto, diferentes influências sociais e por isso é


um fenômeno eminentemente coletivo. Essa abordagem halbawchsiana da memória
como um fato social, descarta a possibilidade de a memória ser um fato puramente
individual, ou seja, o indivíduo, sozinho, isolado, não forma lembranças ou, de outra
forma, não as sustentaria por muito tempo, pois necessitaria do testemunho, ou
testemunhos, dos outros para formatá-las e alimentá-las.
De acordo com essa perspectiva,
nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas
pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós
estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em
realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens
estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos
sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se
confundem. (HALBWACHS, 1990, p. 26)

Inerente à nossa condição humana, a narrativa, sobretudo a partir da década


de 80, tem sido investigada por campos do conhecimento que vão além da teoria
literária. Novos horizontes se abrem para as investigações que enfatizam o seu
caráter social, discursivo e cultural. Nesse sentido, Jerome Bruner (1997), confere à
narrativa papel fundamental nos estudos sobre a mente, pois, segundo ele, o que
vivemos é organizado e construído obedecendo às regras da narrativa como a
sucessão de acontecimentos, o tempo, o espaço, múltiplas interpretações, pontos de
vistas e que
a forma típica de esquematização da experiência (e a memória que
temos dela) é a narrativa, e Jean Mandler nos fez o serviço de reunir
evidências mostrando que o que não se torna estruturado
narrativamente sofre perdas de memória. A esquematização busca

21
experiências na memória, onde, como sabemos desde os estudos
clássicos de Barlet, ela é sistematicamente alterada para se adaptar
às nossas representações canônicas do mundo social ou, se ela não
puder assim alterada, é esquecida ou reforçada em sua
excepcionalidade. (BRUNER, 1997, p. 54-55)

A narrativa é, portanto, definida como estruturadora de nossas experiências e


das memórias que temos dessas experiências, o que corrobora com o que Walter
Benjamin (1985), afirma, em “O narrador”, que quem narra recorre sempre a um
acervo de experiencias vividas que ou são suas ou foram relatados por outros e, que
ao narrar essas histórias, as torna experiências daqueles que estão ouvindo. Assim,
acaba por conferir à narrativa um caráter integrador e como um mecanismo de
comunicação de experiências humanas.
Já o filósofo francês Paul Ricoeur em “La mémoire, l’histoire, l’oubli” (2000),
afirma que o testemunho é a memória em seu estado declarativo. Embora sua obra
seja voltada para as questões relacionadas à construção da narrativa histórica, as
reflexões de Ricoeur, por meio da hermenêutica, contribuiu sobremaneira para a
análise narrativa (escrita) seja esta histórica ou ficcional. Esses recursos, segundo
Vilarinho (2013) “são de suma importância para o estudioso que almeja refletir sobre
o texto como fonte reveladora do Outro e da historicidade”.

O narrar põe em evidência intrigas, paisagens, personagens etc. Na obra


ricoeuriana supramencionada, observa-se entre os tipos de narrativa, segundo
Valerino (2013), duas que são trabalhadas naquele texto: narrativa ficcional e
histórica. Como é foco desta dissertação encontrar elementos do real na ficção
monteiriana, as reflexões de Paul Ricoeur podem ser consideradas cabíveis para
entender como é construída a relação memória, ficção e testemunho em Verde
Vagomundo.

De início Ricoeur provoca-nos com duas questões formuladas a partir da


fenomenologia husserliana: “de quoi y a-t-il souvenir? de qui est la mémoire?” - Do
que lembramos? De quem é a memória? Ricoeur propõe, portanto, que se deva partir
primeiramente do “o quê” e, somente depois, à pergunta “quem?” passando pela
reminiscência

22
Este será o nosso caminho: de "quê?" "Para quem? "Através do"
como? " - da memória à memória refletida por meio da reminiscência.8
(RICOEUR, 2000, p. 04)

Apoiando-se no que ele chama de “magnifique petit texte” de Aristóteles, Parvia


Naturalia - De memoria et reminiscentia, segundo o qual a memória é passado,
Ricoeur relaciona imagem e memória. O filósofo francês entende a memória como
uma experiência que o homem precisa (re)significar, só assim ela permitiria trazer à
tona informações que não se encontram no presente. Citando Sartre, o autor afirma

a memória está do lado da percepção, como para a tese da realidade:


“existe [...] uma diferença essencial entre a tese da memória e a da
imagem. Se me lembro de um acontecimento da minha vida passada,
não o imagino, lembro-me, isto é, não o coloco como dado-ausente,
mas como dado-presente no passado9. (RICOEUR, 2000, p. 64-65)

Desse ponto de vista, pode-se afirmar que a memória não é apenas a busca
por uma imagem que possa representar o passado, não é apenas um arquivo de
lembranças. A memória seria uma espécie mantenedora do passado que a
presentifica e a ressignifica, é uma defesa contra o esquecimento que surge a partir
das vivências do presente.
Considerando que o objeto de estudo deste trabalho é uma narrativa de ficção
com indícios de teor testemunhal, cabe destacar a relação entre memória e trauma,
ainda que não este não seja alvo principal desta análise.
Seligmann-Silva (2008, p. 69) considera o trauma como “uma memória de um
passado que não passa” e que a memória, assim como a literatura de testemunho “é
uma arte de leitura de cicatrizes” (2003, p. 56). Assim, poder-se-ia dizer que o
testemunho é uma modalidade de memória, já que visa salvar ou resguardar, uma
versão da história do “memoricídio” que poderia ser causado tanto pelo negacionismo
quanto pelo próprio historicismo. Os relatos testemunhais, por terem sido construídos
por fragmentos de memória, fazem, portanto, refletir sobre a possibilidade de tradução
de experiências traumáticas, utilizando-se da linguagem como mecanismo de

8
No original: Tel sera notre chemin: du « quoi? » au « qui? » en passant par le « comment?» - du souvenir à la
mémoire réfléchie en passant par la réminiscence.
9 No original: le souvenir est du côté de la perception, quant à la thèse de réalité: « il existe [...] une différence
essentielle entre la thèse du souvenir et celle de l'image. Si je me rappelle un événement de ma vie passée, je
ne l'imagine pas, je m'en souviens, c'est-à-dire que je ne le pose pas comme donné-absent, mais comme donné-
présent au passé.”

23
sobrevivência contra as estratégias de apagamento da memória dos que passaram
por situações limite.
Ao considerar o trauma como uma memória que não passa, Seligmann-Silva
(2008) caracteriza-o como um tempo pretérito que se faz presente, desta forma a
memória traumática traz à tona a lembrança da dor em um presente massacrado pelo
passado que toma forma a partir de fragmentos de memória de situações dolorosas
que são preferíveis esquecer.
Em Tempo passado, Sarlo (2007), debate os conflitos da memória do passado,
argumentando que o tempo presente é próprio para lembrar e elaborar o passado:
Além de toda decisão pública ou privada, além da justiça e da
responsabilidade, há algo inabordável no passado. Só a patologia
psicológica, intelectual ou moral é capaz de reprimi-lo; mas ele
continua ali, longe e perto, espreitando o presente como a lembrança
que irrompe no momento em que menos se espera ou como a nuvem
insidiosa que ronda o fato do qual não se quer ou não se pode lembrar.
[...]. O retorno do passado nem sempre é um momento libertador da
lembrança, mas um advento, uma captura do presente.
Propor-se não lembrar é como se propor não perceber um cheiro,
porque a lembrança, assim como o cheiro, acomete, até mesmo
quando não é convocada. Vinda não se sabe de onde, a lembrança
não permite ser deslocada; pelo contrário, obriga a uma perseguição,
pois nunca está completa. A lembrança insiste porque de certo modo
é soberana e incontrolável (em todos os sentidos dessa palavra).
Poderíamos dizer que o passado se faz presente. E a lembrança
precisa do presente porque, como assinalou Deleuze a respeito de
Bergson, o tempo próprio da lembrança é o presente: isto é, o único
tempo apropriado para lembrar e, também, o tempo do qual a
lembrança se apodera, tornando-o próprio. (SARLO, 2007, p. 9)

Desse modo, fica evidente, a partir do pensamento da autora, que o tempo


presente é o único tempo apropriado para lembrar, pois é no presente que se tem as
lembranças que serão colocadas em narrativas e estas também pertencem ao
presente.
Em “Literatura e trauma: um novo paradigma”, Seligmann-Silva (2005, p. 79)
afirma que a literatura de testemunho se relaciona com passado de forma diferente,
pois parte de um dado tempo presente para a elaboração das narrativas testemunhais
concepção linear do tempo é substituída por uma concepção
topográfica: a memória é concebida como um local de construção de
uma cartografia, sendo que nesse modelo diversos pontos no mapa
mnemônico entrecruzam-se, como em um campo arqueológico ou em
um hipertexto. [...] Ao invés de visar uma representação do passado,
a literatura do testemunho tem em mira a sua construção a partir de
um presente (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 79, grifo do autor).

24
A partir dessa afirmação, torna-se clara a relação com o passado com um
tempo presente, característica própria da literatura de testemunho, destacada pelo
autor a partir do pensamento benjaminiano de que “toda história é fruto do encontro,
de um entrecruzar de um determinado presente com o passado”, sem deixar de lado
o fato de que o estudo do testemunho requer “uma concepção da linguagem como
campo associado ao passado” em que a escrita é o lugar de contato entre o
sofrimento e suas causas, ainda que estas possam ser repugnantes e obscuras.

2.2 Narrativa histórica e ficção

Em Ricoeur (2000), encontramos a distinção entre ficção e narrativa histórica.


A diferença consistiria, segundo o autor, par la nature du pacte implicite passé entre
l'écrivain et son lecteur10. Este pacto se estrutura sobre as diferentes expectativas
criadas pelo leitor e pelas diferentes promessas criadas por parte do autor e isto
ocorre pois,
ao abrir um romance, o leitor se prepara para entrar em um universo
irreal no qual a questão de onde e quando essas coisas aconteceram
é incongruente; por outro lado, este leitor está preparado para operar
o que Coleridge chamou de wilful suspension of disbelief, com a
condição de que a história contada seja interessante: o leitor está
disposto a suspender sua desconfiança, sua descrença e concorda
em jogar como se - como se essas coisas contadas tivessem
acontecido. Ao abrir um livro de história, o leitor espera entrar
novamente, sob a orientação da coluna arquivística, em um mundo de
eventos que realmente aconteceram. Além disso, ao ultrapassar o
limiar da escrita, ele fica em guarda, abre um olhar crítico e exige, se
não um discurso verdadeiro comparável ao de um tratado de física,
pelo menos um discurso plausível, admissível, provável e, em
qualquer caso, honesto e verdadeiro; educado na caça à foice, ele
não quer lidar com um mentiroso (p. 339-340, grifo do autor – tradução
nossa)11

10
Pela natureza implícita entre escritor e o leitor.
11
En ouvrant un roman, le lecteur se prépare à entrer dans un univers irréel à l'égard duquel la question
de savoir où et quand ces choses-là se sont passées est incongrue; en revanche, ce lecteur est disposé
à opérer ce que Coleridge appelait wilful suspension of disbelief, sous réserve que l'histoire racontée
soit intéressante: c'est volontiers que le lecteur suspend sa méfiance, son incrédulité, et qu'il accepte
de jouer le jeu du comme si - comme si ces choses racontées étaient arrivées. En ouvrant un livre
d'histoire, le lecteur s'attend à rentrer, sous la conduite du pilier d'archives, dans um monde
d'événements réellement arrivés. En outre, en passant le seuil de l'écrit, il se tient sur ses gardes, ouvre
un oeil critique et exige, sinon un discours vrai comparable à celui d'un traité de physique, du moins un
discours plausible, admissible, probable et en tout cas honnête et véridique; éduqué à la chasse aux
faux, il ne veut pas avoir affaire à un menteur.

25
No entanto, em Temps et récit III – Le temps raconté (1985), o autor afirma que
entre ambas (ficção e narrativa histórica) há algo que lhes é próprio, uma vez que
a ficção é quase histórica, tanto quanto a história é quase ficcional. A
história é quase fictícia, já que a quase presença dos acontecimentos
colocados “sob os olhos” do leitor por uma narrativa animada
compensa, por sua intuitividade, sua vivacidade, pelo caráter elusivo
do passado do passado, que os paradoxos de representação ilustrar.
A história de ficção é quase histórica, na medida em que os eventos
irreais que relata são fatos passados para a voz narrativa que se dirige
ao leitor; é assim que eles se parecem com eventos passados e como
a ficção se parece com história.12. (1985, p. 276-277)

Essa relação entre narrativa histórica e ficção seria, segundo o próprio Paul
Ricoeur, de complementariedade já que “a ficção é quase histórica, tanto quanto a
história é quase fictícia”. Nesse sentido, pode-se dizer que a história precisa da ficção
e esta da história para refigurar experiências vividas.
Nota-se que ao contrastar os dois tipos de narrativa (histórica e ficcional), o
filósofo francês lança os conceitos de cada um. Assim, pode-se concluir que a
narrativa histórica fala do real como passado, de igual forma que a narrativa ficcional
fala do que é irreal como fictício. No entanto, é importante ressaltar que
a própria imaginação tem sua verdade que o romancista e o leitor
conhecem bem: um personagem é verdadeiro quando tem coerência
interna, quando sua presença plena na imaginação comanda seu
criador e convence o leitor13. (RICOEUR, 1985, p. 215)

É válido destacar também que tanto a narrativa histórica quanto a ficcional tem
objetivos distintos, quais sejam a intencionalidade e a referencialidade, no entanto
ambas partem das experiências de vida do indivíduo, entrecruzam-se e fundam a
identidade narrativa que para Paul Ricoeur é aquela construída a partir das narrativas
que vamos elaborando sobre nós mesmos ao longo da vida.
Nesse sentido, conforme Vilarinho (2013), no campo textual da história, a
referência é o passado real, enquanto que “nos domínios textuais da ficção, a
referência é o poder ser (passado, presente e futuro possíveis)”.

12
No original: la fiction est quasi historique, tout autant que l'histoire est quasi fictive. L'histoire est quasi fictive,
dès lors que la quasi-présence des événements placés “sous les yeux” du lecteur par un récit animé supplée, par
son intuitivité, sa vivacité, au caractère élusif de la passéité du passé, que les paradoxes de la représentance
illustrent. Le récit de fiction est quasi historique dans la mesure ou les événements irréels qu'il rapporte sont
des faits passés pour la voix narrative qui s'adresse au lecteur; c'est ainsi qu'ils ressemblent a des événements
passés et que la fiction ressemble à l'histoire.
13
No original: l’imaginaire même a sa vérité que le romancier connaît bien et le lecteur aussi: un personnage est
vrai quand as cohérence interne, quand sa présence complète dans l’imagination commande à son créateur et
fait la conviction du lecteur.

26
Em Temps et récits I (1983), Ricoeur traz a definição de tripla mimese. Ao tratar
do assunto, Ricoeur deixa claro que sua intenção de romper com a ideia de que
mimese é uma imitation-copie, propondo que seja uma mimese criadora. Assim,
seguindo Aristoteles, aponta que a narratividade apresente uma tripla mimese, quais
sejam, a mimese I: compreensão do mundo (pré-compreensão do mundo); mimese
II: composição da intriga (configuração da narrativa); e mimese III: recepção do texto
pelo leitor (refiguração).
Assim, para Ricoeur (1983), a relação entre literatura e história, estabelece-
se pela mimese, compreendida pelo autor como mimesis d’action, isto pois, ao
mesmo tempo em que é mediação (prefiguração, configuração e refiguração), faz a
mediação entre tempo e narrativa, uma vez que só há tempo pensado quando este é
narrado. Esse processo mediador hermenêutico da mimese se dá porque em uma
obra histórica ou literária é possível configurar a ação humana e refigurá-la na leitura.
É nesse sentido que em Verde Vagomundo (1972) temos uma narrativa fictícia,
mas por ser fruto memorialístico de Benedicto Monteiro enquanto estivera preso e
torturado pela repressão do golpe de 1964, nos oferece uma narrativa testemunhal e
histórica do período da ditadura militar na Amazônia, refigurando, assim, uma
experiência limite vivida por Monteiro.
Em Literatura, violência e melancolia, o historiador Carlo Ginzburg (2013) ao
mesmo tempo que considera o século XX como um tempo marcado violência e
autoritarismo, afirma que o testemunho das experiências-limite desse período foge à
noção de realidade e chama de “estética da violência” o movimento de tensão entre
vida e morte que, portanto, admitiria “recursos como a fragmentação, o grotesco, o
abjeto e o choque”.
Ao se admitir que o testemunho de experiências traumáticas foge à noção de
realidade, abre-se possibilidade para que o testemunho ocorra também via ficção. A
estudiosa na área do trauma-linguagem-real, Maria Rita Kehl14 (2010) ressalta que
Sabemos que nem tudo, do real, pode ser dito; o que a linguagem diz
define, necessariamente, um resto que ela deixa de dizer. O recorte
que a linguagem opera sobre o real, pela própria definição de recorte,
deixa um resto – resto de gozo, resto de pulsão – sempre por
simbolizar. (KEHL, 2010, p. 126).

14
Maria Rita Kehl participou da Comissão Nacional da Verdade e, no relatório final, escreveu o capítulo sobre os
camponeses e indígenas. A Comissão Nacional da Verdade foi criada com o objetivo de investigar crimes, como
mortes e desaparecimentos, cometidos por agentes representantes do Estado no período de 18 de setembro
de 1946 a 5 de outubro de 1988, principalmente aqueles ocorridos durante o período da Ditadura Militar no
Brasil.

27
A afirmação de Kehl nos coloca diante do trauma como algo real, no entanto
irrepresentável, no entanto, possível de ser semiotizado pela linguagem, o que nos
faz pensar a literatura de testemunho, como afirma Seligmann-Silva, em literatura do
trauma. Essa impossibilidade de narrar/representar o trauma, nesse sentido, é o que
permite a fusão dos elementos factuais e ficcionais no testemunho.
Beatriz Vieira (2010) endossa essa linha de pensamento quando declara que
a fronteira entre ficção e realidade histórica não é claramente
delimitável, o testemunho subjetivo precisa frequentemente dos
recursos literários, mas mobilizando um tipo peculiar de mímesis, em
que a manifestação do vivido se sobrepõe ao imitatio, observa
Seligmann-Silva, que propõe, para tratar dessas formas testemunhais
relativas a experiências históricas de grande violência, o conceito de
‘teor testemunhal’, como uma função ou elemento discursivo partícipe
de diversos gêneros, alocado entre a literatura e a história,
possibilitando levar em consideração a especificidade da experiência
que o originou, bem como as modalidades de marca, rastro, índice
que essa experiência imprime na escritura (VIEIRA, 2010, p. 156,
grifos da autora).

Diante dessa linha tênue entre real e ficção no testemunho é que vem se
adotando a noção de teor testemunhal, apresentada por Seligamnn-Silva, perspectiva
também adotada para análise do romance Verde Vagomundo de Benedicto Monteiro
e que será mais bem discutida no decorrer deste trabalho.
Vieira (2010) traz em As ciladas do trauma: considerações sobre história e
poesia dos anos1970, uma síntese da noção de teor testemunhal de Siligmann-Silva.
De acordo com a autora,
o conceito de teor testemunhal é derivado de uma dupla significação:
o discurso daquele que viu um fato e é capaz de assegurar sua
veracidade e daquele que atravessa e sobrevive a um evento-limite,
e cuja dor problematiza a relação entre a linguagem e a realidade,
pois não há discurso que a esgote. Não se trata de ‘psicanalisar’ a
literatura, mas de compreender que o testemunho traz uma
reivindicação de verdade, que pode conferir à ficção o caráter de
documento (VIEIRA, 2010, p. 156).

Vieira mostra que o testemunho pode ser também constituído por elementos
que vão além da realidade, ou seja, pela ficção pode-se também contemplar o que é
histórico e real, uma vez que o trauma excede a narrativa, tornando-o assim, algo
indizível e inenarrável.

28
Sobre o inenarrável, Waldman (2003), embora trate especificamente sobre a
escrita ficcional relacionada ao Holocausto, destaca a importância da literatura/escrita
para o que chama de perlaboração de vivências inenarráveis
Como conjugar esses dois apelos inconciliáveis [‘o desejo de manter
o silêncio e o desejo de falar’] a não ser através da palavra literária?
Da palavra que significa pelo que diz e pelo que cala, capaz de
estimular um encontro mais efetivo com o vivido e, por seu intermédio,
de frear os sentidos estratificados e estabelecidos de uma experiência
de abismo tateável, porém intangível? (WALDMAN, 2003, p. 173).

É, outra vez, Seligmann-Silva, sobre ficção e real, que ressalta


Apenas a passagem pela imaginação poderia dar conta daquilo que
escapa ao conceito. [...] Mas a imaginação não deve ser confundida
com a ‘imagem’: o que conta é a capacidade de criar imagens,
comparações e sobretudo de evocar o que não pode ser diretamente
apresentado e muito menos representado (SELIGMANN-SILVA,
2003, p. 380, grifos do autor).

Ora, levando-se em consideração que o testemunho surge da impossibilidade


de narrar o trauma, do indizível diante do horror que foram experienciados por aqueles
que sobreviveram à situações-limite e que, como afirma Santana (2019), o
testemunho se dá pela atividade simultânea entre memória e esquecimento, pensar
a relação entre ficção e testemunho é fulcral pois
o teor testemunhal da literatura, a equação sujeito-mundo não é
mais resolvida de modo simplista: a balança ora pende para o
subjetivo - discurso sobre a memória individual, a autobiografia, a
construção do “passado” como reconstrução individual etc. -, ora
para o objetivo - o “real” como algo que molda a linguagem e escapa
a ela, a memória coletiva como discurso de construção de uma
identidade que se dá em uma negociação nos planos político e
estético (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 42)

Assim, diante do que fora exposto até o momento sobre o teor testemunhal e
sua relação com ficção e realidade, é que será analisada no capítulo subsequente a
obra Verde Vagomundo de Benedicto Monteiro.

2.3 Entre a narrativa de ficção e memória: o testemunho


Publicado em 1972 durante o governo de General Emílio Garrastazu Médici
(1969-1974), considerado como responsável pela fase mais truculenta da história da
ditadura militar no Brasil, caracterizada pela intensa censura à produção intelectual e
cultural do período, o romance Verde Vagomundo é reconhecido por Benedito Nunes

29
(1973) como o primeiro romance contextual da Amazônia, uma obra, “transregional”,
pois

a universalidade alcançada por tão abrangente obra, e que a torna


representativa do regional na medida em que o vincula ao nacional e
ao mundial, e a universalidade concreta dos vários contextos –
linguísticos, sociológicos, religiosos, políticos - “cabalmente latino-
americanos" (p.95)
Ainda sobre a obra monteiriana, Nunes (idem) afirma que Verde Vagomundo
é um romance onde “a ficção toma pé na realidade e a ela se volta reflexivamente
para compreendê-la”.

Benedicto Monteiro, preso político durante ditadura militar, traz em Verde


Vagomundo algumas evidências desse período na Amazônia. Ficção e testemunho e
a linha tênue entre ambas suscitam interesse de vários estudiosos na obra destete
autor. Especificamente em Verde Vagomundo, o que é ficção e que é autobiográfico,
testemunhal?

Sobre a relação entra ficção e realidade, Moraña (1995), opondo-se a noção


de ‘piscanalisar’ a literatura afirma que que esta relação

está na base da reelaboração de versões originais a cargo do


mediador, ou na mesma operação de literaturizar uma determinada
experiência (seleção de materiais, linguagem, composição,
configuração de personagens, definição do ‘narrador’, etc.)
(MORAÑA, 1995, p. 489, grifo nosso)

Moraña (1995) destaca que essa problemática implica no questionamento da


noção entre verdade e ficcionalização do testemunho, uma vez que ambas as noções
têm valores subjetivos. A diferença proposta pela pesquisadora uruguaia, aponta que
enquanto um romance testemunhal utiliza tem, muitas vezes, “um ponto de partida
para uma narração que independe imaginativamente da história original” (1995, p.
490, tradução nossa), o segundo “se atém aos eixos testemunhados” (1995, p. 490,
tradução nossa).

No entanto, a partir do pensamento de Theodor Adorno, de que “toda obra de


arte, em suma, pode e deve ser lida como um testemunho de barbárie”, Seligmann-
Silva afirma que

O conceito de testemunho pode permitir uma nova abordagem do fato


literário que leva em conta a especificidade do ‘real’ que está na base

30
e as modalidades de marca e rastro que esse ‘real’ imprime na
escritura. A literatura expressa o seu teor testemunhal de modo mais
evidente ao tratar de temas-limite, de situações que marcam e
‘deformam’ tanto a nossa percepção como também a nossa
capacidade de expressão. O testemunho alimenta-se, como vimos,
da necessidade de narrar e dos limites dessa narração (subjetivos e
objetivos, em uma palavra: éticos) (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 40).

Jacques Derrida, filósofo desconstrutivista francês, na sua obra Demeure


(1998), sobre ficção e testemunho afirma que

Fingindo ser uma ficção e, portanto, como a ficção de uma ficção,


como se fosse uma questão de assumir responsabilidade ao não mais
responder por isso e de manifestar a verdade deixando a
responsabilidade de recebê-la através de mentira ou de ficção. (p. 53,
tradução nossa).15

Ou seja, fingindo tratar-se de uma ficção alguns eventos por ele vivenciados,
Monteiro afasta a atenção do leitor do compromisso com os fatos, fazendo-o
concentrar-se apenas na assimilação da experiência que aquela verdade,
aparentemente criada, lhe permite conhecer.

Nesse sentido, a questão da memória em narrativas de testemunho toma lugar


importante, uma vez que o que se convencionou chamar de Literatura de
Testemunho, é fruto de memórias narradas por aqueles que, na América Latina, sob
o domínio de regimes ditatoriais, como é o caso de Benedicto Moneiro.

O gênero testemunhal permite aos indivíduos que passaram por situações


traumáticas narrarem suas experiências enquanto vítimas de regimes totalitários.
Desta maneira, segundo Adorno (2018), as memórias que foram construídas ao longo
do processo histórico perturbador “passam a se fazer presente no romance e se
tornam uma denúncia social”.

Sobre isso, Derrida (1998) afirma que isto ocorre

pois a literatura pode dizer tudo, aceitar tudo, receber tudo, tudo sofrer
e tudo simular, pode até fingir engano, como exércitos modernos que
sabem se livrar de falsos engodos; estes fazem crer em verdadeiras

15
No original: en faisant semblant d’être une ficcion et donc en tant que ficcion de ficcion, comme s’il s’agissait
de prendre une responsabilité en n’en répondant plus et de manifester la vérité en vous laissant la responsabilité
de la recevoir à travers le mensonge ou la ficion.

31
iscas e enganam as máquinas para detectar simulações sob as mais
sofisticadas camuflagens.16 (p. 30)

Sobre o gênero Testemunho, entre os teóricos da área, é consenso afirmar


que embora o escritor cubano Miguel Barnet com seu livro Biografía de un cimarrón,
publicado em 1966, tenha iniciado as reflexões sobre o testemunho, foi Manuel Galich
o primeiro que tentou uma definição do termo em texto publicado no Boletín de la
Casa de las Américas, em 1969. Neste texto, Manuel Galich argumenta que a
literatura de testemunho possui, ao mesmo tempo, caráter documental e ficcional,
pois este último está presente tanto na reconstrução quanto na representação dos
fatos históricos, já que o século XX foi um período considerado como propício às
narrativas testemunhais devido aos regimes ditatoriais ocorridos.

Os limites entre ficção e o fato histórico é um dos grandes debates na literatura


do último século, sobretudo no que se refere à literatura de testemunho. Sobre isso,
Seligmann-Silva afirma

Nos estudos de testemunho deve-se buscar caracterizar o “teor


testemunhal” que marca toda obra literária, mas que aprendemos a
detectar a partir da concentração desse teor na literatura e escritura
do século XX. Esse teor indica diversas modalidades de relação
metonímica entre o “real” e a escritura. (2005, p. 85)

Nessa passagem ressalta-se que o “real” não pode ser confundido com
“realidade”, ou seja, no testemunho a “realidade” deve ser pensada como uma
representação do vivido.

Nesse sentido, em Verde Vagomundo, entrelaçam-se real e ficção. Nas vozes


dos personagens, o testemunho da Amazônia, do real vivido por Monteiro durante a
ditadura militar; no rádio, único meio de comunicação com o mundo externo, fatos
ficcionais próximos da realidade brasileira sob a ditadura militar e do mundo que
passava por uma guerra ao regime comunista e uma corrida tecnológica que
antecede a chegada do homem à lua em 1969.

16
No original: car la littérature peut tout dire, tout accepter, tout recevoir, tout souffrir et tout simuler, elle
peut feindre même le leurre, comme les armées modernes qui savent disposer de faux leurres; ceux-ci font
croire à de vraus leurres et trompent les machines à détecter les simulations sous les camouflages les plus
sophistiqués.

32
2.4 Literatura de testemunho: um novo gênero

A busca por uma definição sobre o que seja o gênero Literatura de Testimonio
tem sido tema de discussões na América Latina desde os anos sessenta. É nesse
período que surge um extenso corpus de relatos sobre os horrores das ditaduras
militares que ocorriam por praticamente todo o continente americano, é, portanto,
nesse contexto que surge a necessidade de conceitualização desta escrita oriunda
dos “porões da ditadura”.

Cabe destacar que, embora a literatura de Testimonio seja proveniente de


estudos da Shoah sustentam-se sobre pressupostos distintos. Enquanto esta
debruça-se sobre a produção feita por sobreviventes dos campos de concentração
nazistas, aquela investiga a produção escrita (literárias, jornalísticas, biográficas etc.)
que registraram a violência dos regimes totalitários impostos em vários países da
América Latina durante o século XX.

Segundo Alonso (2017), o esforço na busca de um conceito de Testimonio


concentra-se principalmente em duas questões: a primeira, centrada em um conceito
mais genérica que o situa em um campo interdisciplinar e que, portanto, transita nas
áreas da literatura, história, antropologia, ciências sociais e jornalismo; e a segunda
que busca uma definição voltada para a análise das diferentes modalidades de
produção escrita.

Ainda sobre este esforço em conceituar Testimonio, Alonso (2017) afirma que
alguns dos estudos incluem o que ele considera uma metacrítica, que será a
tendência seguida nos estudos sobre o testemunho nos anos 1990. Dessa nova
tendência destacam-se John Bervely, e Elzbieta Sklodovska representantes do que
se convencionou chamar de corrente/crítica americana.

Barvely em Anatomia del testimonio (1987, apud ANDRÉ, 2004) após analisar
a diversidade de textos que foram considerados de Testimonio e listar relatos e
autores de diferentes países diferentes, afirma ser difícil uma definição que os
abarque todos. No entanto, elencou algumas características comuns a todos e finaliza
sua descrição afirmando que este constitui um novo gênero literário.

é uma narração em primeira pessoa por um protagonista testemunha,


geralmente narra uma experiência, tem um propósito político; em
certos casos, o narrador é analfabeto, o que envolve gravação,

33
transcrição e escrita por outrem. Um aspecto singular "é a presença
de uma dimensão moralizante, iconoclasta", bem como o seu carácter
de "narrativa urgente" e sugere "uma afinidade com o romance
picaresco" (159), que é a afirmação textual do locutor-narrador
Enfatiza que o depoimento não é uma obra de ficção, mas, "sua
história é verdadeira" ao representar uma situação social
problemática17. (p.9 – grifo do autor)

Sklodovska (1992), da universidade de Washington, realiza um estudo


minucios dos diversos relatos surgidos entre os anos 70-90 e elabora uma tipologia a
partir das oposições literariedade-ambiguidade; desambiguação, representatividade,
fabulação versus não literariedade; estuda a gênese do testemunho, a semantização
do termo que fora formulada por Miguel Barnet, principal criador e estudioso romance-
testemunho na América Latina, e a caracterização dada por Casa de las Américas,
não ajustadas à heterogeneidade das histórias porque contêm “Contradições teórico-
utópicas".

A definição de Barnet mencionada nos estudos da autora supramencionada,


foi divulgada em 1969, na Revista Unión de La Habana, no ensaio Novela-Testimonio,
socioliteratura, republicado em 1986. Segundo Barnet (1986, p. 293), este gênero tem
por natureza “luchar, oponerse, romper” onde o onde o protagonista /narrador é
aquele que ocupa o papel central porque é a testemunha que faz a denúncia e que a
recria pela ficção e propõe, “contribuir al conocimiento de la realidad e imprimirle un
sentido histórico”.
Antes disso, em 1970, a Casa de las Americas estabelece um prêmio em
Testimonio, para tanto fora necessário estabelecer critérios para estabelecer uma
definição do gênero. Assim, optou-se pela de Manuel Galich, segundo o qual, as
obras, para concorrerem à categoria Testimonio deveria ser um livro “donde se
documente de fuente directa, um aspecto de la realidade latino-americana actual. O
testemunho poderia incluir algumas características da reportagem, da narrativa, do
ensaio e da biografia, no entanto, deveria se diferenciar destes pela temática,
amplitude e profundidade.

17
No original: é uma narração em primeira pessoa por um protagonista testemunha, geralmente narra uma
experiência, tem um propósito político; em certos casos, o narrador é analfabeto, o que envolve gravação,
transcrição e escrita por outrem. Um aspecto singular "é a presença de uma dimensão moralizante, iconoclasta",
bem como o seu carácter de "narrativa urgente" e sugere "uma afinidade com o romance picaresco" (159), que
é a afirmação textual do locutor-narrador . Enfatiza que o depoimento não é uma obra de ficção, mas, "sua
história é verdadeira" ao representar uma situação social problemática.

34
É a partir da análise desses estudos que Valéria De Marco em “A literatura de
testemunho e a violência de Estado” (2004), de forma sintética, aponta que além da
linha teórica oriunda dos estudos do Holocausto ou da Shoah, há outra voltada à
análise de obras latino-americanas. Dentro da segunda linha teórica, que nos
interessa, é possível identificar, segundo De Marco, dois conceitos distintos do que
seja literatura de testemunho: 1) originária do júri do Prêmio Casa de las Americas,
dedicada ao estudo de produções que envolvem discursos literários, documentais ou
jornalísticos, que têm como objetivo principal relatar a violência das ditaduras latino-
americanas do século XX; 2) ligada à crítica americana nos anos 80, que lança mão
de estudos culturais para analisar textos do período ditatorial na América Latina, e
tem como representantes, os já mencionados, Elzbieta Sklodowska e John Beverley
segundo os quais, a literatura de testemunho encontra como elemento definidor um
narrador, visto como um mediador, normalmente intelectual letrado, que recolhe o
testemunho da voz do outro, pertencente às camadas marginalizadas e excluídas da
sociedade, para produzir um saber que potencialmente transformaria a consciência
de classe, o que segundo De Marco busca, como estratégia de reprodução e
transmissão, estabelecer um vínculo ao mesmo tempo político e solidário entre o
letrado e o não-letrado, uma forma de difundir o discurso do outro, numa espécie de
contra-narrativa ao discurso hegemônico, histórico e oficial.

Também no Brasil, um dos nomes que se destacam na pesquisa sobre esses


relatos, conhecidos como Shoah, designação atribuída ao holocausto judeu, é Márcio
Seligmann-Silva que estabeleceu conceitos que denominaram e fundamentaram a
“literatura de testemunho” abrangendo também pesquisas voltadas para o
testemunho em situações de governos repressivos na América Latina.

O “testemunho”, embora considerado um novo gênero que relaciona literatura,


violência e trauma, Seligmann-Silva, afirma que

ao invés de se falar em “literatura de testemunho”, que não é um


gênero, percebemos agora uma face da literatura que vem à tona na
nossa época de catástrofes e que faz com que toda a história da
literatura - após duzentos anos de auto-referência - seja revista a partir
do questionamento da rua relação e do seu compromisso com o “real”
(2006, p. 85)18

18
Destaque dos trechos como no original.

35
Embora o autor não defina o que seja a face da literatura a que se refere, fica
claro que se trata de um campo de estudos interdisciplinar, como afirma
posteriormente na sua obra História, memória, literatura – o testemunho na era das
catástrofes (2020). Isto porque debates sobre o testemunho surgiram sob diversos
aspectos e em vários campos de estudos que envolvam situações limites, trauma,
memória, história, direito. No campo da historiografia, por exemplo, o tema ganhou
destaque a partir do século XX na discussão sobre as diferentes perspectivas que a
memória e o testemunho são abordados pela História e pela literatura.
Sobre a relação entre memória e história, Walter Benjamin em uma de suas
teses sobre o conceito de história declara que

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo tal como


ele propriamente foi. Significa apoderar-se de uma lembrança tal
como ela cintila num instante de perigo. (apud GANEBIN, 2006, p. 40)

Segundo Ganebin (2006), trata-se de uma crítica ao que o ensaísta alemão


chama de “visão historicista" cujo objetivo seria apenas descrever exaustiva e
exatamente os fatos ocorridos no passado, isto porque, segundo Benjamin, “na falta
de algo melhor, chamamos de real”.

Em “L’ére du témoin”, Annette Wieviorka, reconhecida por ser uma das mais
importantes pesquisadoras sobre a Shoa, mas também vítimas dos recentes
massacres na Bósnia, Ruanda, Kosovo, afirma que o marco da era do testemunho
teve início nos anos 60 com o processo de Adolf Eichmann19 ,

mas os anos setenta também são aqueles em que os humores e as


dificuldades psicológicas são agora expostos publicamente, primeiro
pelo rádio, depois pela televisão. No início dos anos noventa, surgiu
na França, no modelo americano, uma nova forma de programa de
televisão baseado em palavras de pessoas comuns. Essa irrupção da
experiência secular e do testemunho privado no espaço público é a
marca registrada do que o sociólogo Dominique Mehl chama de
televisão privada. Foi também nos anos 1970 o triunfo da ideologia
dos direitos humanos: cada sociedade, cada período histórico é
medido pelo seu respeito. o homem-indivíduo é assim colocado no
seio da sociedade e, em retrospecto, da história. Ele se torna
publicamente, e só ele, História20. (Wieviorka, 1998. p.12)

19
Adolf Eichmann é considerado um dos principais responsáveis pela logística de extermínio e deportação em
massa dos judeus europeus durante o Holocausto.
20
mais les années soixante-dix sont aussi celles où les états d'âme et les difficultés psychologiques s'ex-posent
désormais publiquement, par le biais de la radio d'abord, puis de la télévision. Au début des années quatre-
vingt-dix, apparût en France, sur le modèle américain, une nouvelle forme de spectacle télévisé fondé sur la
parole de gens ordinaires. Cette irruption de l'expérience profane et du témoignage privé dans l'espace public

36
A observação feita pela historiadora é que, a partir do início dos anos 90,
ocorre, entre outras coisas, o surgimento de coletâneas sistemáticas de testemunhos
audiovisuais - que posteriormente passou-se a chamar de “Arquivos de Testemunho”
- que deram voz à sujeitos comuns que não tinham, até então, “o desejo nem talvez
a capacidade de escrever a história de sua própria vida” e, assim, darem uma cara,
tirá-los da multidão.

O jornalista Frédéric Gaussen (1982), referindo-se a esse período em artigo


publicado no jornal francês Le Monde, nota que

Contar a história de sua vida é uma satisfação difícil de negar a si


mesmo. Essa é a prova de que existimos de verdade e de que um
interlocutor está lá, pronto para se interessar por você. Grandes
homens e também os menos importantes sempre fizeram questão de
se dirigir ao resto dos mortais ao escreverem suas memórias. O resto,
as pessoas comuns, ficavam satisfeitas com o público menor na vigília
familiar ou no balcão do bistrô. (...) Mas agora, essa relatividade dos
destinos individuais não é mais adequada. Surgiu a ideia de que todas
as vidas são iguais e é bom contar21. (p. 12)

Sobre isso, Wieviorka observa que esses testemunhos “são dirigidos ao


coração e não à razão" o que desperta compaixão, pena, indignação, às vezes
revolta. Sentimentos perfeitamente compreensíveis, mas dos quais o historiador deve
se distanciar, isto porque qualquer verdade individual não é e não pode ser parcial e
também porque não se alcança o rigor da narrativa histórica não se consegue sob o
signo e a pressão das emoções. Valorizada socialmente, esta coleção resulta em uma
justaposição de histórias individuais, não de História, pois enquanto esta se debruça
sobre os fatos materializados e, portanto, observáveis, a Literatura consideraria o
testemunho baseado em experiências associadas à memórias individuais e seus
impactos na produção artística de um dado período.

constitue la marque de ce que la sociologue Dominique Mehl nomme la télévision de l'intimité. C'est aussi dans
ces années soixante-dix le triomphe de l'idéologie des droits de l'homme: chaque société, chaque période
historique se mesure à l'aune de son respect. L’homme-individu est ainsi placé au cœur de la société et
rétrospectivement de l'histoire. Il devient publiquement, et lui seul, Histoire.
21
No original: Raconter sa vie est une satisfaction qu'on se refuse difficilement. C'est la preuve qu'on a bien
existé et qu'un interlocuteur est là, prêt à s'intéresser à vous. Les grands hommes et aussi les moins grands ont
toujours brûlé de s'adresser au reste des mortels en écrivant leurs mémoires. Les autres, les gens ordinaires, se
satisfaisaient du public plus restreint de la veillée familiale ou du comptoir de bistrot. (...) Mais maintenant, cette
relativité des destins individuels n'est plus de mise. L'idée s'est imposée que toutes les vies se valent et sont
bonnes à raconter.

37
É interessante como a Wieviorka aborda a questão do homem como o vetor da
história enquanto os historiadores geralmente mostram uma grande desconfiança em
relação ao testemunho de sobreviventes, enfatizando que essas narrativas são
frágeis e maleáveis e dependem dos objetivos perseguidos pela testemunha e do
contexto em que ela é chamada a transmitir sua experiência. Ou seja, o testemunho
do sobrevivente, embora considerado um pré-requisito para o conhecimento dos
fatos, base da futura narrativa histórica, é desconsiderada ou ignorada por alguns
estudiosos da História da humanidade, o que permite a existência de uma lacuna que
poderia ser preenchida pela literatura, que foca em materiais pouco observados,
conforme afirma Seligmann-Silva

O testemunho, como exercício de narrar e elaborar traumas sociais,


na prática política, conforme veremos, é uma tentativa de se escovar
a história a contrapelo, abrindo espaço para aquilo que normalmente
permanece esquecido, recalcado e legado a um segundo (ou último)
plano. (2012, p. 103)

A partir dos estudos sobre a Shoah de Wieviorka e de Selligmann-Silva, não


se pode negar que o marco para que os estudos sobre o testemunho emergissem,
foram as experiências violentas por que passaram os judeus durante o Holocausto,
embora já existam estudos que abordam os relatos de violência sofrida por outras
minorias perseguidas durante a Segunda Guerra Mundial, e posteriormente, as
ditaduras sobretudo na América Latina, mas também massacres étnicos em Ruanda,
Moçambique, Angola e em tantos outros, marcando, assim, o que a historiadora
francesa Annette Wieviorka (2006) denominou como “A Era dos Testemunhos

Importante ressaltar que o século XX tem sido considerado por vários


estudiosos do gênero testemunhal como o período propício ao testemunho devido a
enorme presença de guerras e genocídios que permitiriam, e ainda permitem, que os
relatos dos sujeitos que passaram por situações limites relacionadas a tais catástrofes
sejam estudados sob a perspectiva de como os impactos dessas catástrofes estão
impressos nos relatos dos sobreviventes.

Diante disto, é inegável, no contexto citado acima, que o dizer e o escrever


torna-se uma forma de trazer à tona, segundo Nestrovski & Seligmann-Silva (2000),
"fragmentos, ou cacos esmagados” que “nunca chegam nunca a se cristalizar em
compreensão ou lembrança".

38
2.4.1 Zeugnis e Testimonio: uma breve distinção

De acordo com Seligmann-Silva (2010), existe três formas de testemunho: a


testis, aquele que conta a outra pessoa o que viu; a tertis, aquele que conta o que
ouviu de outras pessoas e está em condições de validar o testemunho; e a superstes,
aquele que passou pessoalmente por um evento e é capaz de falar a respeito dele
como sobrevivente. Este seria a prova viva de que algo aconteceu da forma como
está sendo narrada.

Segundo Batista & Sarmento-Pantoja,

Essas três definições têm como ponto de partida a experiência vivida


por um indivíduo, e corresponde a uma de sentido jurídico (o relato da
testemunha ante o tribunal), outra de sentido histórico (de registro de
um determinado período e determinado por uma matéria histórica) e
uma última no sentido de sobrevivência a um evento-limite traumático
vivenciado pelo individuo (2014, p. 1119)
Esta breve explanação sobre o testemunho na literatura, é necessária pois,
segundo Valéria de Marco (2004), desde os anos 90, por vezes, tem significado
impreciso e isto se deve, também, à semântica da palavra testemunho, mas também
às correntes teóricas que fundamentam o que se tem considerado como novo gênero
literário.

É Seligmann-Silva (2002), diante da literatura que começam a surgir sobre a


literatura de testemunho a partir da década de 90, que traça uma distinção entre a
Literatura de Shoah e Testimonio. A discussão surge exatamente da questão da
traduzibilidade entre “zeugnis” (testemunho em alemão) e testimonio.

Com base nessa distinção levantada por Seligmann-Silva, Cornelsen (2011),


estabeleceu três critérios que sintetizam os aspectos dessas duas vertentes: o
âmbito, o evento histórico e a forma de pensar. De forma sucinta, os aspectos desses
campos seriam

ZEUGNIS TESTIMONIO
Âmbito Alemanha América Latina
(local onde se teoriza o
conceito)
Shoah e Segunda Guerra Ditadura; exploração
Evento histórico Mundial econômica, repressão às
minorias étnicas, às

39
(acontecimento marcante para mulheres e aos
o âmbito) homossexuais
Forma de Pensar o Psicanálise (trauma) Tradição religiosa da
testemunho teoria e história da confissão, apresentação
memória de vidas “exemplares
tradição da crônica e da
reportagem
CORNELSEN, apud Batista & Sarmento-Pantoja, 2014, p. 1121

Este quadro permite-nos observar de forma mais didática as peculiaridades


das duas principais categorias das narrativas de testemunho que vêm sendo
estudadas no cenário acadêmico. No entanto, é importante sinalizar que tal
organização, para analisar a obra Verde Vagomundo de Benedicto Monteiro, torna-
se insipiente, pois não abarca todas as características da narrativa de testemunho
desenvolvida na América Latina, portanto, optar apenas entre Zeugnis ou testimonio
não bastaria, embora ambas digam respeito a massacres associados a eventos
históricos mundiais.

Diante disto e a partir do que afirma Valéria de Marco (2004) sobre a existência
de duas vertentes da Literatura de Testemunho na América Latina, Batista &
Sarmento-Pantoja (2014), enfatizam que, para análise de narrativas literárias do
período da ditadura militar, seria necessária uma terceira vertente dentro do quadro
organizacional proposto por Cornelsen, isto por que essas narrativas são

uma tentativa de ficcionalização do testemunho da tortura, isto é, eram


textos ficcionais que incorporam aspectos de um testemunho de
tortura, tais como hesitações, repetições, utilização de metáforas.
Essas estratégias tentavam reconstruir o vivido por meio de palavras.
(p. 1122)

Como se pressupõe que o corpus objeto de análise desta dissertação lidam


com aspectos do processo de rememoração do trauma, tratado pelos estudos da
Zeugnis, ao mesmo tempo que traz fatos relacionados ao contexto da ditatura militar,
especificamente no Brasil, enquadrando-se, assim, no que se tem chamado de
narrativa de testimonio, este estudo seguirá, para fins de análise, o quadro a seguir
proposto pelos autores acima citados, que tem como base o proposto por Cornelsen

ZEUGNIS TESTIMONIO
Âmbito Alemanha América Latina América Latina
Ditadura;
Shoah e Segunda exploração
Evento histórico Guerra Mundial econômica, Ditadura

40
repressão às
minorias étnicas,
às mulheres e aos
homossexuais
Tradição religiosa Psicanálise
Forma de Pensar Psicanálise da confissão, (trauma) teria e
o testemunho (trauma) teoria e apresentação de história da
história da vidas “exemplares memória,
memória tradição da crônica apresentação de
e da reportagem vidas "exemplares"
e teoria literária.

Embora, como afirmam os próprios autores, aparente uma mescla das


abordagens, esta fusão permitirá "uma análise mais profunda das narrativas", uma
vez que facilitará a percepção de que algumas narrativas podem ser consideradas
como narrativas de resistência22, que possuem características de narrativas
testemunhais.

Diante disso, é possível fazer uma análise aliando o caráter ficcional e


histórico da obra escolhida nesta dissertação.

2.4.2 O teor testemunhal

A discussão em torno da origem e definição do testemunho é bastante


complexa. Do testemunho judicial ao testemunho histórico, o gênero testemunhal
pode ser visto de diferentes maneiras, dependendo da abordagem que se adota ao
estudá-lo. Nos estudos literários, o gênero testemunhal tem suas próprias
convenções textuais, códigos formais, códigos genéricos e um teor testemunhal.

No sentido mais geral, testemunho é definido como o discurso feito por uma
testemunha sobre uma dada realidade e surge a partir de várias tradições e práticas
sociais. O conceito religioso, por exemplo, é baseado em atos de atestação de fé, já

22
Narrativas de resistência faz parte do trabalho de Alfredo Bosi intitulado “Literatura e resistência”, publicado
em 2002, que segundo Martins (2017) é um dos que mais é o que mais se insere na política do discurso crítico.
Segundo Bosi, a resistência é uma “forma imanente da escrita”, que antes de ser um conceito estético, é ético,
pois " A resistência é um movimento interno ao foco narrativo, uma luz que ilumina o nó inextricável que ata o
sujeito ao seu contexto existencial e histórico. Momento negativo de um processo dialético no qual o sujeito,
em vez de reproduzir mecanicamente o esquema das interações onde se insere, dá um salto para uma posição
de distância e, deste ângulo, se vê a si mesmo e reconhece e põe em crise os laços apertados que o prendem à
teia das instituições.” (BOSI, 2002, p. 26-27)

41
no contexto jurídico, o depoimento se baseia antes em atos de declaração
juramentada e é definido como declaração pela qual uma pessoa relata fatos dos
quais teve conhecimento pessoal ou pela qual um perito dá sua opinião. Seligmann-
Silva (2003, p. 8) afirma que há basicamente duas acepções de testemunho: “no
sentido jurídico e de testemunho histórico”; 2) “no sentido de ‘sobreviver’, de ter-se
passado por um evento-limite, radical, passagem essa que foi também um
‘atravessar’ a ‘morte’, que problematiza a relação entre a linguagem e o ‘real’”.

Seligmann-Silva chama a atenção para o fato de que é preciso diferenciar esse


“real” da “realidade” dos romances realista, que precisa ser entendido como algo que
resiste à representação. Assim escreve:

O conceito de testemunho ganhou importância no último quarto do


século XX por conta de uma série de atrocidades históricas cujos
testemunhos começaram a ser publicados ou apresentados em forma
de vídeo testemunhos, obras de arte etc. Fala-se de testemunho
porque vivemos uma era de testemunhos. Refiro-me às atrocidades
da Segunda Guerra (campos de concentração, bombardeios, as
bombas atômicas), das guerras de independência na Ásia e na África,
assim como às guerras geradas pela guerra fria, como a guerra do
Vietnã. Mas refiro-me também aos totalitarismos e às ditaduras
latinoamericanas. Apesar de Benjamin ter decretado que os soldados
voltaram mudos da Primeira Guerra Mundial, na verdade já ela gerou
grande número de testemunhos. É verdade também que ela gerou
silêncios, traumas, mas esses silêncios são parte de todo testemunho.
O testemunho é o relato pós-era da narrativa tradicional. Todas essas
atrocidades geraram uma necessidade de testemunho: como
denúncia, mas também como processamento do trauma. A escrita é
um modo de se processar a violência (SELIGMANN-SILVA, 2011, p.
10).

O testemunho a que se refere Seligmann-Silva, no entanto, não consegue


eliminar elementos ficcionais. Diante disto, é possível concordar com Shoshana
Felman (2000, p. 17), que afirma que o testemunho é “uma modalidade crucial de
nossa relação com os acontecimentos de nosso tempo – com o trauma da história
contemporânea” de tal forma que a “nossa era pode ser definida precisamente como
a era do testemunho” (FELMAN, 2000, p. 18). Alinhar-se a este posicionamento,
implica admitir que o testemunho não pode ser limitado a um gênero literário
específico, e que se trata de um fazer literário/discursivo “difuso” e que permeia todos
os tipos de escrita (FELMAN, 2000).

Seligmann-Silva faz eco a essa proposta quando aponta que

42
ao invés de se falar em 'literatura de testemunho' [...]deve-se
buscar caracterizar o 'teor testemunhal' que marca certa obra
literária. Segundo o crítico, “este teor indica diversas
modalidades de relação 'metonímica' entre o real e a escritura.
(2008, p. 1).
Assim, não se pode definir que obras devem ser considerada “de testemunho”
ou não. Caberia aos analistas definir o teor testemunhal presente nas obras e o modo
como este se faz presente na escrita de cada uma delas. Seligmann-Silva, afirma
ainda que uma das principais características do testemunho é o fato de que ele “põe
em questão as fronteiras entre o literário, o fictício e o descritivo”, no entanto não pode
ser usado de forma indiscriminada, como sinônimo de “documental”.

A obra Verde Vagomundo, de 1972, é segundo Benedito Nunes (Op. cit), é o


“primeiro romance contextual sobre a Amazônia". A partir dessa afirmação, interessa-
nos identificar, interpretar e analisar a presença de elementos que podem definir o
romance como testemunhal, os quais aproximam ficção e realidade na construção
narrativa monteiriana.

43
3. CAPÍTULO 3 – A FICÇÃO DE TESTEMUNHAL EM VERDE VAGOMUNDO

Para analisar a relação entre a obra Verde Vagomundo de Benedicto Monteiro


e a literatura de testemunho, mais especificamente, identificar elementos que possam
caracterizá-lo como obra de grande teor testemunhal do período da ditadura militar
na Amazônia, foi necessário, em primeiro lugar, traçar nos capítulos anteriores,
breves conceituações de memória, ficção e realidade e de literatura de testemunho
utilizados por alguns autores para suas análises no campo do testemunho.
Foi a partir desses estudos, tanto da corrente europeia, voltada para análise
de produções pós-segunda grande guerra, quanto dos estudos realizados pelas
academias americanas sobre literatura produzida na América Latina durante o
período das ditaduras militares e da denominação/caracterização de Galich (1969)
sobre que seja literatura de Testimonio é que se pode vislumbrar que a violência
gerada pelos regimes ditatoriais causou grande impacto imediato nas letras (poesia,
narração, romances, contos entre outros) desconstruindo, segundo André (2004), as
fronteiras da literatura, contribuindo para o surgimento de um “universo linguístico”
que mostra o cenário de lutas e, sobretudo, de sobrevivência nos tempos em que a
violência era usada como política de estado, em nome da segurança nacional, contra
os opositores políticos do governo.
Contudo, é Seligmann-Silva (2003) que, partindo de conceitos benjaminianos
de “teor de verdade” e de “teor coisal”, traz a noção de teor testemunhal ao afirmar
que o excesso das barbáries no século XX fez surgir uma literatura com forte teor
testemunhal, enfatizando não o surgimento de um novo gênero, mas uma literatura
que nos fez aprender “a ler nos documentos de cultura traços, marcas da barbárie”23,
Considero mais produtivo se estudarem os traços característicos
deste teor testemunhal, que pode ser encontrado em qualquer
produção cultural, do que se falar em um gênero “literatura de
testemunho”. Esta expressão, por outro lado, tem sido aplicada
àquelas obras programaticamente nascidas para testemunhar
catástrofes no século XX. Não considero errado se falar em literatura
de testemunho, mas creio que não devemos reduzir o estudo do teor
testemunhal a esta produção específica. (SELIGMANN-SILVA, 2009,
p. 133)

23
Seligmann-Silva, Márcio. Grande Sertão: Veredas como gesto testemunhal e confessional. 2009, p. 133

44
Assim, a partir do conceito de teor testemunhal trazido por este autor, buscar-
se-á identificar os elementos que podem caracterizar o romance Verde Vagomundo
como sendo uma obra de forte teor testemunhal.
Benedicto Monteiro, em seu romance de 1972, entrelaça parte de suas
memórias como preso político e do cenário político nacional e internacional do período
das ditaduras militares com a ficção. Nascimento (2007), afirma que Verde
Vagomundo traz o experimentalismo ao mesclar o que Bakhtin (1998) chamou de
unidades heterogêneas24, essa característica apontada pela autora na escrita de
Monteiro, que não negligencia as questões político-sociais da Amazônia em um
contexto nacional e internacional polarizado pós Guerra Fria, nos é revelado pelas
marcas da oralidade, presentes nas falas dos personagens alenquerenses; da
colagem de resumos de notícias do rádio transistor; dos depoimentos dados ao
coronel responsável pela instauração do Inquérito Policial Militar (IPM) para “apurar a
corrupção e a subversão no município”; do uso da estrutura textual do gênero diário,
já na última parte do romance.
Antes, no entanto, de proceder a análise para identificar os elementos que
podem conferir à Verde Vagomundo o caráter testemunhal previsto pelos critérios da
revista cubana La Casa de las Americas, por Barnet (1969) e Seligmann-Silva (2003),
é importante observar a sua estrutura. O livro apresenta capítulos não numerados,
alguns não possuem títulos, outros, no entanto, são intitulados como “GRAVADOR-
AUTOMÁTICO – FITA”, seguido de sua numeração, somando 4 fitas; há capítulos
com título “Rádio Transistor 10”, com registro da numeração que vai até oito; e ainda
capítulos intitulados por uma anotação que faz referência a um diário, com contagem
regressiva para a festa do “glorioso padroeiro da cidade”: Faltam hoje X dias para o
início da festa de Santo Antonio.
Santelli (2008) aponta outra característica da estrutura narrativa de Verde
Vagomundo: Benedicto Monteiro apresenta um cenário divergente da imagem que se
tinha da região amazônica no século XIX até o início do século XX, para apresentar
uma paisagem em que o homem mantém relações dinâmicas com o espaço-tempo
amazônico. A imagem da Amazônia desconhecida e geograficamente inacessível
pode ser verificada, como notou Santelli (2008), em Euclides da Cunha (1985)

24
Ver Bakhtin, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética (A teoria do Romance). São Paulo: UNESP, 1998, p.
71-84

45
A impressão dominante que tive, e talvez correspondente a uma
verdade positiva, é esta: o homem, ali, é ainda um intruso
impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido – quando a
natureza ainda estava arrumando o seu vasto e luxuosos salão. E
encontrou uma opulenta desordem ... Os mesmos rios ainda não se
firmaram nos leitos; parecem tatear uma situação de equilíbrio,
derivando, divagantes em meandros instáveis, contorcidos em
sacados (p. 25-26)

De forma diferente, como foi afirmado anteriormente, Monteiro mostra o


homem não mais como um intruso, mas como um indivíduo que é parte da paisagem,
permitindo uma nova leitura desse homem em simbiose com o espaço-tempo
amazônico marcado pelo movimento das águas dos rios
- Então é este o lago, o famoso lago descrito por Norberto! É
inacreditável que existam por baixo desse espelho formidável,
milhares de canais em verdadeiro labirinto! As matas do outro lado,
parecem mantas de capim na flor da água, marcando a linha do
horizonte.
- Vamos ter que fundear por estas bandas. A noite parece que não
tarda – disse Pepe Rico – Olhe o sol, como já está quase lambendo a
linha d’água. De noite, não se deve atravessar, por causa dos baixios.
Basta o menor desvio pra encalhar a lancha.
- Mesmo esta lancha?
- Até canoa esbarra, Major, basta sair fora do canal.
- E como se sabe onde ficam esses canais?
- Só os proeiros acostumados. Miguel, por exemplo, seria capaz de
nos levar por este lago até de olhos fechados. Mas acho que não
convém arriscar desta viajada, não é, Major? (MONTEIRO, 1991, p.
63-64)

Benedicto Monteiro lança mão, portanto, desses dois olhares sobre a


Amazônia em sua narrativa, modificando a visão construída sobre a região.
Como dito anteriormente, Major Antonio Medeiros é o narrador que retorna a
sua terra natal. Ele traz consigo um rádio transistor pelo qual ouve notícias do Brasil
e do mundo, além de um gravador onde documenta a fala das personagens locais,
como por exemplo do seu tio Jozico e do caboclo Miguel dos Prazeres, chamado de
Cabra-da-Peste.
A forma como os capítulos estão estruturados na obra traz uma dinâmica que
impede, conforme Santelli (2008), o acomodamento do leitor, pois rompe com a
linearidade narrativa tradicional composta de elementos que revelam ao leitor os
percursos das personagens que compõem a trama. Em Verde Vagomundo, há
interrupções constantes da narrativa pelas transmissões do rádio transistor que

46
transmite notícias do período que antecede o regime ditatorial no Brasil até sua
implementação.
Quanto a tessitura do romance em análise,
foi muito bem planejada, evidenciando um mosaico composto por
fragmentos que se completam ou não de acordo com a necessidade
de encaminhamento dada pelo autor. Monteiro apresenta os
acontecimentos conduzindo a narrativa a fim de que não haja uma
compreensão totalmente aleatória da obra. Ele prepara cada
momento de ruptura com títulos e os alinhava com as narrativas de
seu personagem Major Antônio, que anuncia constantemente a
captação de elementos de sua viagem para escrever um livro.
(SANTELLI, 2008, p. 48)

Assim, um dos elementos primordiais dessa interrupção são as transmissões


radiofônicas a que o Major tem acesso e pelas quais se sente ligado ao mundo ao
mesmo tempo que mantem o leitor em contato com o contexto político, histórico e
social de produção da obra.
O rádio, para a Amazônia, representou uma grande revolução. Adentrou os
lares dos amazônidas e transformou o seu cotidiano, era a conexão entre o homem
interiorano e o mundo urbano. As ondas radiofônicas chegavam aos lugares mais
longínquos: garimpos, balatais, seringais. Das sedes das fazendas aos municípios
mais distante, as notícias veiculadas pelo rádio, encurtavam distâncias e diminuíam
o isolamento da região.
Dada importância do rádio não apenas para a região amazônica como para
todo o país, durante o regime militar, o rádio foi utilizado como estratégia para a
manutenção da integração nacional, nesse contexto,
Apesar de ser um veículo de mão única, não possibilitar a contra
comunicação e servir ao poder instituído, na maioria das vezes, o
homem caboclo conseguiu dialogar por meio do rádio, informando a
seus vizinhos e parentes suas mensagens, seu jeito de viver, sua
oralidade, suas crendices e paixões. (SANTELLI, 2008, p. 35 – grifo
da autora)

Para o narrador, Major Antônio Medeiros, o rádio transistor era o elemento que
lhe devolvia o contato com o mundo, um “cinto de segurança”, como se vê
Abri maquinalmente a maleta como único gesto capaz de me restituir
a estabilidade. Sim, porque aquela maleta, para mim, era naquela
casa, a única coisa que tinha ligação com a vida. Eu precisava me
agarrar a alguma coisa, que me tirasse aquela sensação de estar fora
do tempo e do espaço. Aí, foi que me lembrei do meu aparelho de
rádio. O que eu procurava mesmo era o meu rádio, o rádio-transistor:

47
ele sim, era capaz de me restituir a ligação para o mundo.
(MONTEIRO, 1991, p. 105)

Divergindo, assim, da maioria das personagens vivem alheias, isoladas dos


fatos políticos, culturais e sociais que ocorriam no mundo à época, como se observa
no diálogo da personagem Pepe Rico e o Major Antônio:
- Quero pelo menos conversar com o homem. Escuta, o que ele acha
da morte do Presidente?
- Que Presidente?
- Oh, Pepe, será que não sabe que assassinaram o Presidente da
América?
- Qual? Aquele que mandou invadir a ilha de Cuba?
- Não, Pepe, aquele que fundou a aliança para o Progresso.
Justamente o homem que é responsável pelo fracasso dessa famosa
invasão na Bahia dos Porcos.
- Bahia dos Porcos? Mas o presidente de que o senhor fala não é o
Presidente da América? O que tem isso haver conosco? (MONTEIRO,
1991, p.134).

Importa dizer que a notícia da morte do presidente norte americano John


Kennedy fez com que buscasse um interlocutor que pudesse compartilhar de suas
preocupações. Encontrou na cidade o Vigário, Frei Gil, alemão da Ordem dos
Franciscanos, para quem a notícia foi tão impactante quanto para o Major.
Antes mesmo de aproximar-se, ele foi logo falando do acontecimento:
- Oh, o senhor ouviu a terrível, notícia?
- Sim, Frei Gil, morreu o Presidente.
- Morreu? Não, mataram.
- Por que o senhor diz que mataram?
- Por quê? Porque ele como Presidente não podia ser deposto,
senhor.
-Então por isso o assassinaram?
- Sim, sim, nas democracias capitalistas ou se suicidam ou são
sempre assassinados em público. O Senhor não ouviu todas as
notícias? Oh, não ouviu? Pois eu ouvi tudo: ouvi Berlim, é o que eles
dizem... Depois ouvi Londres. Paris, Moscou e a Voz da América: ouvi
tudo. Passei escutando rádio a noite toda.
MONTEIRO, 1991, p. 123)25

Como se viu, além do Major Antonio de Medeiros, o Frei Gil também possuía
um rádio que o mantinha informado do que ocorria no mundo. Frei Gil, recém-chegado
da Alemanha, dissera não compreender o porquê, e por isso considerar suspeito, de

25
A Voz da América citado pelo frei Gil, fundada em 1943, era o serviço oficial de radiodifusão do governo norte
americano autorizado a operar fora de seu território. As transmissões ocorriam em mais de 20 idiomas entre
elas, a partir de 1961, em português.

48
as autoridades eclesiásticas terem afastado frades alemães de certas áreas da região
amazônica, que posteriormente foram ocupadas por frades norte-americanos.
Vim para o Brasil destinado a uma missão franciscana completamente
isolada da selva amazônica, para pacificar os indígenas que ainda
sobram nas selvas do Xingu. Queria ficar desterrado da civilização.
Logo depois apareceram sobrevoando nossas aldeias, aviões da
Força Aérea Norte-Americana: eram aviões de reconhecimento.
Depois, mais tarde vieram outros aviões e helicópteros. Fizeram
campos de pouso. Diziam que estavam fazendo levantamento
geodésicos para um acordo internacional com objetivos de corrigir os
mapas, as rotas aéreas, sei lá.... Certo dia, nós alemães, fomos
surpreendidos com ordens superiores para cedermos nossos lugares
a frades norte-americanos da nossa mesma ordem. Fomos rápido e
sumariamente substituídos. Falam que descobriram minérios
radioativos... eu mesmo não sei. Só sei que vim parar nesta paróquia
de Santo Antônio de Alenquer. (MONTEIRO, 1991, p. 128)

A história do frei contada pelo narrador, entrelaça ficção e realidade. Benedicto


Monteiro, enquanto deputado estadual, denunciou em plenário, a presença de
aeronaves militares dos Estados Unidos que sobrevoavam, sem licença, o Baixo
Amazonas. Pode-se dizer que, em Verde Vagomundo, Monteiro utilizou-se da figura
do frei para, além de denunciar a presença norte-americana na Amazônia, expor o
posicionamento da igreja católica ante à repressão política que ocorria no país.
No romance em análise a realidade amazônica, regulada pelos ciclos das
enchentes e vazantes dos rios é recriada por Benedicto Monteiro que retrata, na voz
do Major, uma Amazônia isolada do mundo, com seus habitantes alheios ao que
acontece no exterior de suas realidades, o rádio transistor abruptamente interrompe
a narrativa apresentando notícias que, como afirma Santelli (2008), não têm
significado para a vida dos alenquerenses, interessados nos preparativos da festa do
Santo Padroeiro,
RÁDIO - TRANSISTOR - 10/01

A FIRMA DECCA PATENTEIA O PRIMEIRO RADAR


TRANSISTORIZADO PARA USO A BORDO DE PEQUENOS
NAVIOS.

O cosmonauta russo Bykovsky sobe ao espaço a bordo da Vostok VI,


seguido de Valentina Tereshkova, a primeira mulher a se lançar no
espaço sideral (MONTEIRO, 1991, p. 23)

A estratégia de Benedicto Monteiro em utilizar a transcrição de notícias situa o


romance temporalmente. Ainda que não sejam reproduções literais de manchetes de

49
jornais nem tragam datas específicas, as notícias, que chegavam pelo rádio apenas
aos ouvidos do Major Antônio, apontam para fatos acontecidos em dado período
histórico-social.
Segundo Nascimento (2004), essa estratégia de utilizar fragmentos, foi
utilizada por Benedicto Monteiro como princípio norteador de sua produção
romanesca, característica também presente em obras de outros autores da literatura
brasileira nas décadas de 60 e 70, por exemplo, Ignácio Loyola de Brandão nos
romances Bebel que a cidade comeu (1968) e Zero (1974), além do romance A festa
(1976), de Ivan Ângelo. A autora ressalta que

Monteiro, no afã de denunciar, como ocorreu na década de 1970, com


tantos outros autores de obras datadas, supervalorizou a função
social (o compromisso) da literatura em detrimento da função primeira
da arte, qual seja, a função estética. (NASCIMENTO, 2004, p. 92)

Pacheco de Souza (2020) em sua tese de doutorado, afirma que existe


intencionalidade na seleção das notícias transcritas em Verde Vagomundo e que
estas “indicam a própria mudança na forma de apreensão do mundo da década de
60 para 70” (p. 149).
Isto é corroborado com que Monteiro afirma em entrevista à professora Fátima
Nascimento26, menciona a importância dessas transcrições para a contextualização
das ações do romance
Você se lembra que o personagem Major Antônio Medeiros do
romance Verde Vagomundo portava um radinho de pilha e um
gravador? Pois é, ele gravava tudo que era interessante numa fita k-
7. Significa aí também um contexto (NASCIMENTO, 2004, pág.
107).

Dado importante a ser destacado é o fato de não se poder afirmar que


Benedicto Monteiro tenha compilado notícias e fragmentos destas para a construção
da narrativa de Verde Vagomundo. Segundo o próprio autor, fazendo referência a “O
Minossauro”27, que também trazem recortes de notícias tenha relatado que

26
Primeira entrevista de Benedicto Monteiro, concedida em 26 DE JULHO DE 2000 à professora Fátima
Nascimento, por ocasião de sua pesquisa para dissertação de mestrado intitulada “A representação alegórica da
ditadura militar em O Minossauro, de Benedicto Monteiro: fragmentação e montagem”, Campinas, SP: [s.n.],
2004.
27
Romance publicado em 1975, durante o governo militar de Geisel (1974-1979), conhecido pela
implementação da Política Nacional de Cultura (1975) que exercia total controle do processo cultural do país,
centralizando toda produção intelectual brasileira.

50
Tudo é ficção, não fiz pesquisa para escrever esses fragmentos. Se
você procurar em jornal ou rádio talvez até encontre algo parecido
porque a ficção é um pouco da realidade, mas tais fragmentos não
foram feitos baseados naquela realidade (em fatos retirados de
noticiários de rádio ou jornal impresso). Uma coisa que eu quero que
fique claro é o seguinte: tudo o que eu escrevi nesses livros é ficção,
a não ser no “Transtempo”, o resto tudo é ficção.

Diante disso, é preferível pensar, como afirma Pacheco de Souza (2020), que
Benedicto Monteiro buscou tudo o que fosse possível para estabelecer um contexto
daquele momento por que passava o Brasil e que o rádio elemento que une ficção e
realidade em Verde Vagomundo.
Embora os recortes de notícias não sigam uma cronologia, é possível
identificar, portanto uma certa linearidade que tem como objetivo contextualizar a
obra, além de apresentarem uma gradação nas notícias ouvidas pelo Major Antônio
Medeiros que levará ao golpe de estado ocorrido no Brasil em 1964
RADIO TRANSISTOR 10/1
O presidente da República do Brasil empenha-se em resolver os
problemas da Nação dentro da estrutura política vigente.
(MONTEIRO, 1991, p.24)

RADIO TRANSISTPR 10/08


ATO INSTITUCIONAL EDITADO PELO COMANDO SUPREMO DA
REVOLUÇÃO OUTORGA A SI PRÓPRIO PODERES
DISCRICIONÁRIOS ILIMITADOS.
Especialmente, o Comando Supremo, tem poderes para cassar
mandatos eletivos, suspender direitos políticos de qualquer pessoa e
praticar qualquer ato de interesse da Revolução.
(MONTEIRO, 1991, p. 185)

Como dito anteriormente, embora não obedeçam a uma ordem cronológica,


essas notícias nos situam historicamente em relação aso fatos narrados. Os oito
registros do rádio transistor, dispõem-se de forma que, primeiro são dadas as notícias
internacionais, depois as nacionais.
As transcrições presentes em Verde Vagomundo referem-se a temas dentro
do contexto internacional da Guerra Fria e à crise no governo de João Goulart.
Consequentemente, as notícias abordam, no plano internacional, a conquista
espacial, corrida armamentista, política externa norte americana, cenário político na
américa latina, manifestações sociais; no plano nacional, notícias sobre a crise
econômica, crise institucional, debates sobre as reformas de base, o apoio da igreja
católica com a passeata com “Deus pela liberdade e pela pátria”, até a última
transcrição do Rádio Transistor 10/8 com as notícias decorrentes do golpe militar

51
DIZENDO QUERER EVITAR UMA GUERRA CIVIL, O PRESIDENTE
DA REPÚBLICA, JÁ DEPOSTO, EXILA-SE NO URUGAY.
(...)
DE UMA LISTA DE 5.000 INIMIGOS DO NOVO REGIME,
ORGANIZADA POR OFICIAIS DA “LINHA DURA”, O COMANDO
SUPREMO CASSA INICIALMENTE MANDATOS E DITEITOS
POLITICOS DE 378 PESSOAS, ENTRE OS QUAIS TRÊS EX-
PRESIDENTES DA REPÚBLICA, SEIS GOVERNADORES DE
ESTADO E 55 MEMBROS DO CONGRESSO NACIONAL.

DAS 50.000 PESSOAS DETIDAS OU ENCARCERADAS A MAIORIA


É CONSTITUÍDA DE INTELECTUAIS, POLÍTICOS, ESTUDANTES,
SINDICALISTAS OU SIMPLESMENTE CAMPONESES OU
OPERÁRIOS. (Monteiro, 1991, p. 185-186)

No que tange à produção literária denominada testemunhal, o uso de


transcrição de notícias fazia, segundo De Marco (2004), da estratégia utilizada por
romances de testimonio. O Prêmio Casa de Las Americas, ao instituir o prêmio
Testimonio, indicou, segundo a autora, alguns requisitos necessários para a inscrição
dos textos, entre os quais apresentar “fontes de informação ou documentação
fidedignas e qualidade literária” (p.46) e ressalta que, embora as obras contempladas
com o prêmio tenham respeitado apenas parcialmente este critério, a criação de um
paradigma foi um marco na institucionalização do gênero.
Assim, as transcrições utilizadas por Benedicto Monteiro em Verde
Vagomundo, ainda que não sejam fidedignas à registros de arquivos de jornais,
conferem ao romance um teor testemunhal de seu tempo, pois nas palavras de
Benedito Nunes,
a universalidade alcançada por tão abrangente obram e que a torna
representativa do regional na medida em que o vincula ao nacional e
ao mundial, é a universalidade concreta dos vários contextos –
linguísticos, sociológicos, religiosos, políticos. (NUNES, 1972, p. 95)

Outra questão a ser destacada quanto às transcrições do Rádio Transistor


levado pelo narrador, é o fato de que estas fornecem ao leitor indícios de verdade,
ainda que não estejam, como já afirmado antes, em registros de jornais, elas
assinalam, de acordo com Nunes (1972), “o contexto nacional e mundial da ação
regionalmente localizada”, auxiliando assim, no reconhecimento do marco temporal
do contexto de produção.
Embora não se possa determinar com exatidão o tempo em que ocorrem todas
as ações, é possível delimitar que entre a chegada do Major à cidade de Alenquer até

52
o dia em que o caboclo Miguel estoura os fogos de artifício, é de no mínimo um ano.
Embora não seja citada no romance, a data fim, por assim dizer, é o dia 13 de junho,
dia de Santo Antônio, quando ocorria a queima dos fogos de artifício.
A partir das transcrições das notícias do rádio transistor, pode-se situar o tempo
do romance em agosto de 1962, data mais remota que se pode chegar levando-se
em consideração a notícia relacionada à corrida espacial, mais precisamente à sonda
espacial robótica Mariner II do governo americano, 27 de agosto de 1962 em direção
ao planeta Vênus. Os primeiros dados sobre o planeta chegaram em 14 de dezembro
de 1962, é justamente a notícia sobre esses dados que aparece como primeira
transcrição do rádio transistor
RADIO- TRANSISTOR - 10/01
A NASA divulga as primeiras informações reveladas pela nave
Mariner II, que descobriu que Vênus não é o mundo frio que muitos
esperavam: 400 graus centígrados. (MONTEIRO, 1991, p. 23)

Embora não seja foco deste estudo determinar o calendário em que ocorrem
as ações em Verde Vagomundo, as transcrições auxiliam na demarcação espaço-
tempo no contexto histórico-social. Embora a não-linearidade cronológica, ou seja, a
falta, do que Wanda Monteiro28 chamou de “compatibilidade cronológica” não permita
uma demarcação precisa. Esta característica da obra se dá pois, afirma

Eu sou contra datas. Eu sou contra a cronologia, tanto que você vê


que no “Transtempo” não há nenhuma referência a data. Então, tudo
que eu escrevo é sem data. É a minha forma de escrever. A data, ela
prende as pessoas. (NASCIMENTO, 2007, p. 109)

À parte disso, outras notícias transcritas corroboram para se delimitar a data


em que se inicia a narração
RÁDIO – TRANSISTOR – 10/01

Economista brasileiro formula o primeiro Plano Trienal que é aprovado


pelo Presidente da República. Objetivo: manter um ritmo de
crescimento elevado a (7%), reduzindo paralelamente a taxa de
inflação (10%) e realizando as reformas necessárias.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA NOMEIA PARA O MINSTÉRIO DO


TRABALHO JOVEM POLÍTICO DA ESQUERDA INDICADO SOB
PRESSÃO DOS SINDICATOS OPERÁRIOS. O MINISTRO
NOMEADO É CONTRA O CONGELAMENTO DE SALÁRIOS

28
Wanda Monteiro, filha do escrito Benedicto Monteiro em entrevista à Abílio Pacheco de Souza, em maio de
2017.

53
EXIGIDO PARA EXECUÇÃO DO PLANO TRIENAL. (MONTEIRO,
1991, p. 24)

As duas notícias transcritas acima reforçam para delimitar o início da narrativa,


pois fazem referência ao Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social,
anunciado em dezembro de 1962.
As transcrições de notícias, insere o romance Verde Vagomundo dentro de um
dos requisitos da revista cubana La Casa das Americas, para considerá-lo como uma
obra como de testimonio, ao mesmo tempo, em que, com base no que afirma
Seligmann-Silva, possui teor testemunhal de um período marcado pela repressão
política no país em um cenário distante dos grandes centros de manifestações:
Amazônia.
Nos estudos a respeito da literatura de testimonio, ligadas exclusivamente às
narrativas de testemunho, Mabel Moraña (1995), destaca que autor e personagem se
confundem
como forma híbrida, enraizada entre história e literatura, entre
realidade e imaginação, o testimonio guarda uma margem importante
para a intervenção do escritor, aquele ‘terceiro’ entre leitor e
personagem, que é ao mesmo tempo narrador principal, ator social,
testemunha de parte (MORAÑA, 1995, p. 494, tradução nossa).29

Apesar de haver uma mescla entre as experiências de Benedicto Monteiro e


ficção, Verde Vagomundo não é um romance memorialístico. O narrador, apesar de
se sentir isolado no meio da floresta Amazônica,
não se apresenta como alguém preso em sua interioridade e exilado da
sociedade circundante. Não tem um comportamento de um
autobiógrafo que vive apenas o passado que deseja resgatar, anulando
todo o presente histórico. Não é tampouco alguém preso ao passado
que narra (PACHECO DE SOUZA, 2020. p. 69).

Diferente dos romances memorialísticos e autobiográficos tradicionais de


personagens de ficção, o narrador principal não é conhecedor de todos os
acontecimentos da narrativa.
Em Verde Vagomundo, percebe-se a opção do autor/narrador pelo uso do
diário. Para Renato Franco, em sua obra “Itinerário político do romance pós-64: A
festa” (1998), afirma que o uso da escrita de um diário no interior de uma ficção é “um

29
“como forma híbrida, encabalgada entre historia y literatura, entre realidad e imaginación, el testimonio
guarda un margen importante para la intervención del escritor, ese "tercero incluido" entre lector y personaje,
que es al mismo tiempo narrador primario, actor social, testigo de parte” (MORAÑA, 1995, p. 494, texto original).

54
caminho mais curto de a ficção alcançar a história”. Seligmann-Silva (2010) nota que
há uma “força perlocutória de convencimento do ato de escrita do diário”, esse
convencimento estético
é reforçado por um elemento ético. A escrita é vista tanto como ducto
por onde escorre a vida privada, como também, em muitos diários,
neste duto misturam-se de modo claro as águas da vida pública. O
texto, nestes casos, se transforma em um dique. A potência que
guarda pode ser transformada em energia mesmo muitos anos depois
de passados os fatos, justamente porque na estrutura do texto se
entrecruzam, em uma trama, a vida íntima
com a pública, o trabalho literário com as marcas do “real”. No limite,
tendemos a ver nestes diários uma escrita performática
(SELIGMANNSILVA, 2010, pág. 162)

O diário do Major Antonio Medeiros surge, na edição de 1991, a partir da


página 144. O diário, dentro da estrutura de Verde Vagomundo, marca uma divisão
no romance, pois a partir das entradas das contagens regressivas que aparecem no
diário do Major (FALTAM HOJE XX DIAS PARA O INÍCIO DA FESTA DE SANTO
ANTONIO), pode-se enfim perceber uma cronologia linear. Percebe-se também que,
a partir do momento em que se inicia o diário, há apenas uma transcrição do Rádio
Transistor que se refere ao exílio do presidente da república no Uruguai e aos
primeiros atos institucionais após o golpe de estado. Não há mais transcrições do
gravador automático que o narrador usava para registrar o falar dos alenquerenses.
Aqui, vale relembrar que o Major se punha a gravar tudo e registrar as notícias que
ouvia nas transmissões de rádio com o intuito de escrever um livro, assim, em seu
gravador automático, gravou em 4 fitas, seu tio Jozico, o mateiro Miguel e Norberto,
secretário da Prefeitura.
Insta lembrar que em sua autobiografia Transtempo, Benedicto Monteiro
declara, que após livre da prisão em 1965, teve seu acervo de fitas e fichários, com
anotações sobre os falares da Amazônia, compilado enquanto fazia campanha e
durante as visitas que fazia à várias comunidades ribeirinhas e da zona rural do Baixo
Amazonas, gravou, em várias fitas cassete, os falares dos caboclos foi confiscado
pelo governo militar: “mais de cem fitas e mais de trezentas fichas” (1993, pág. 83),
que nunca foram devolvidas nem encontradas.
(...) pelo menos, esta tarefa de escrever um livro, parece qye já está
quase no meio. E eu devo ir – agora – apenas narrando p que está
acontecendo. (...) Tenho agora que apelar para o “Diário”. Só, que
continuarei intercalando as narrativas e os depoimentos, com os
noticiários que ouço no meu inseparável rádio-transistor.
(MONTEIRO, 1991, p. 146)

55
No diário do Major há transcrição dos sete depoimentos do Inquérito Policial
Militar instaurado pelo Coronel que veio da capital Belém para apurar as denúncias
do serviço secreto que “Alenquer destinava-se a ser um dos maiores focos de
subversão na área da Amazônia” (p. 181).
Hans Rudolf Picard ao explicitar a trajetória de literatizarão do diário (partindo
da definição de “diário autêntico” – de foro íntimo - ao diário publicado até chegar ao
diário ficcional), considera que este saiu da esfera da intimidade e adentrou a esfera
do que chamou de status da literatura. Desta forma, o uso ficcional do diário é aquele
em que o autor é uma personagem de ficção. Para Picard
quando o diário passa a ser uma técnica da narração ficcional, uma
das formas do romance em primeira pessoa, junto às memórias e ao
romance epistolar, suas propriedades (fragmentação, incoerência
etc.) adquirem um status semiótico distinto: se convertem em
elementos e meios de expressão no seio da estrutura de uma obra. A
escritura do diário, aquela em que não havia comunicação, ao ser
utilizada de modo ficcional dentro dos limites da estrutura da obra
literária, passa a ser, de forma completamente nova, comunicação
estética. (PICARD, 1981)30

Assim, como uma estratégia narrativa, Monteiro apresenta algumas reflexões


do narrador sobre o cenário político nacional, sobre os impactos deste na cidade de
Alenquer
Ninguém aqui se apercebe que houve no País um golpe de Estado. A
saída do Presidente da capital federal, a prisão de parlamentares,
ministros, militares, operários e estudantes, nada, absolutamente
nada tem a ver com os preparativos da festa. (MONTEIRO, 1991,
p.177)

É no diário que aparece mais explicitamente o efeito de distanciamento


brechtiano de que fala Santelli (2008) no romance Verde Vagomundo, que como
mecanismo narrativo cuja a “função é aproximar a distante e impenetrável Amazônia
do mundo externo e das coisas em geral.”

30
No original: ―Cuando el diario pasa a ser una técnica de la narración ficcional, una de las formas de la novela
en primera persona – junto con las memorias y la novela epistolar –, sus propiedades – fragmentariedad,
incoherencia, etc. – adquieren un status semiótico distinto: se convierten en elementos y medios de expresión
en el seno de la estructura de una obra. La escritura diarial, en la que no había comunicación, al ser utilizada de
un modo ficcional dentro del marco de la estructura de la obra literaria, pasa a ser, de un modo completamente
nuevo, comunicación estética.

56
Embora, como já dito antes, Verde Vagomundo não seja um romance
autobiográfico, é possível notar que as reflexões do Major quanto a compreender a
sua ignorância aquilo que julgava saber e conhecer: as coisas da pátria; e suas
indagações que refletem o contexto histórico porque passou Benedicto Monteiro
Vejo, como diante da força, representada aqui por três oficiais
militares, eventualmente investidos de atribuições policiais, se
dissolvem todas as instituições jurídicas, políticas e sociais da nossa
República. (...) Nação? Pátria? Onde está a Nação, a Pátria, com
conceito que aprendemos na escola e na tropa? Onde está a Nação,
a Pátria, cujo símbolo nós defendemos nos campos de batalha? Onde
está, a Nação, a Pátria, que representamos nas missões
diplomáticas?
O que eu vejo aqui é o Estado, não é a Nação; o que eu vejo aqui é o
Governo, não é a Pátria; é a administração, a força e a política, por
seus funcionários, por seus sub-rogados, por seus delegados-de-
delegados-de-delegados-de-delegados, por seus ínfimos caudatários
nos municípios; - não é o povo o qual permanece amorfo e dissolvido,
sem outro liame entre si, a não ser a comunhão da língua dos maus
costumes e do servilismo. (MONTEIRO, 1991, p. 204-205)

Seligmann-Silva (2003), apesar de se referir à Shoah, salienta que é pela


imaginação que se pode dar conta do que escapa a um conceito, no entanto, não se
deve confundir com a capacidade de criar imagens, de fazer comparações e
sobretudo de evocar aquilo que não pode ser apresentado ou representado de forma
direta.
Considerando, portanto, que o testemunho surge da impossibilidade de narrar,
da indizibilidade que eventos-limites e que o testemunho se dá simultaneamente pela
ação da memória e do esquecimento, Benedicto Monteiro, nas reflexões do narrador
Major Antonio Medeiros, relata o que testemunhou enquanto representante eleito, que
teve seus direitos cassados, das mudanças ocorridas no país com a tomada do poder
pelos militares e suas arbitrariedades
Creio que a maioria das prisões estão relacionadas com as atividades
políticas do deputado do governo deposto. Ele teve seu mandato
cassado, seus direitos políticos suspensos, mas a Comissão ainda
está ouvindo e prendendo os seus eleitores. Pelos nomes, não
parecem homens, parecem coisas. (MONTEIRO, 1991, p. 203)

Benedicto Monteiro, após boatos de que seria morto na capital por sua relação
com o governo deposto foge para Alenquer após ter seu mandato cassado. A
presença do autor nas matas alenquerenses aparece no diário do Major nos
depoimentos do prefeito e do Pepe-rico, além de ser mencionada pelo próprio Major.

57
Nas respostas dadas e que constam na transcrição do depoimento do Prefeito
nota-se que o Coronel responsável pelo IPM busca uma relação entre o Major, que
utiliza um gravador, com “o deputado do governo com tendências esquerdistas”,
Depoimento do Prefeito
...que o depoente nunca teve conhecimento de ligações do Major com
o deputado do governo deposto, preso e cassado pela Revolução.
(MONTEIRO, 1991, p. 195)

Dos quatro depoimentos transcritos, em três, pelas respostas dadas ao


Coronel fica claro, em vários momentos, que o Major é também alvo de investigação,
como no depoimento do Pepe-rico, de Norberto e do Prefeito, o que faz o narrador
perceber que
Em virtude de ter exercido várias comissões do Governo deposto,
eu sou considerado logicamente hostil à revolução. (...) Mas o que
mais pesa mesmo contra mim nestas circunstâncias, é o fato de eu
ter pertencido à Comissão Militar de Reforma Agrária e logo em
seguida, ter me licenciado para vir para essa pequena e remota
cidade da Amazônia. (MONTEIRO, 1991, p. 181)

No capítulo final do livro intitulado “Vozes da Cidade” ocorrem as últimas ações:


as medidas impostas pela Comissão de Inquérito; a chegada dos romeiros que não
sabem do que ocorre na cidade; a procura por Miguel dos Santos Prazeres e queima
dos fogos de artifício, “eram foguetes armazenados para nove dias e nove noites!”.
O Major ainda faz uma crítica em seu diário sobre a Revolução estar ali “para
cumprir a ordem” de garantido que a festa em homenagem ao padroeiro da cidade,
“a tradição cristã do nosso povo, a segurança, a segurança nacional e a segurança
do hemisfério”, ocorra sem percalços.
A ação subversiva de Miguel encerra o romance. Cabe ao leitor inferir o destino
dos demais personagens. Pepe-Rico, o engenheiro agrônomo e o gerente do banco,
ribeirinhos (eleitores do deputado cassado/caçado), presos políticos num contexto
ditatorial, sujeitos a torturas, desaparecimentos, incomunicabilidade.
Importante destacar que foi no contexto de incomunicabilidade imposta pela
ditadura militar, que surgiu a Benedicto Monteiro a ideia de escrever Verde
Vagomundo, um romance critica o momento político vivido pelo país e suas
reverberações na Amazônia, conferindo-lhe, por seu teor documentalista, mesclando
a ficção e realidade, também um teor testemunhal por desvelar a presença do Estado
militar na Amazônia.

58
Considerações finais
Em construção ...

59
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