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Ok 10.242601/2189-81620484 Narrativa e memoria na Amazénia de Dalcidio Jurandir Paulo Jorge Nunes’ Maira Oliveira Maia’ ‘Thaina Oliveira Chemelo* Dalcidio Ramos Jurandir nasceu em 1909, em Ponta de Pedras, ento pequena vila localizada na Ilha do Marajé, no interior do Para. Em 1910 se mudou com a familia para Cachoeira do Arari, vila também marajoara, onde passou a infancia. Em 1922, com 13 anos, mudou-se para Belém, quando entao estudou no Grupo Ba- rao do Rio Branco, concluindo, em 1924, 0 primério, Jurandir, em 1927, ingressou no entao Ginasio Paes de Carvalho; ele, no entanto, nao chega sequer a frequen- tar 0 tetceito ano.” Em 1928 resolveu tentar a sorte na capital federal, o Rio de Janeiro, porém, nao tendo como se sustentar, retorna a Belém. Seu amigo, Dr. Rainero Maroja, Inten- dente Municipal de Gurupa - Baixo Amazonas - nomeou Dalefdio Jurandir “secre- tério do Tesouro”, em outubro de 1929, Nesse periodo, ele comega a escrever a pri- meira versio de seu romance, Chove nes campos de Cachoeira,o primeiro do ciclo ‘que o proprio autor denominou “Ciclo do Extremo Norte”, Em 1931, por indicagio de amigos, é nomeado auxiliar de gabinete da interventoria do Estado, além de tornar-se colaborador dos jornais O Imparcial, Critica e Estado do Pari. Em 1935, em plena vigéncia da Academia do Peixe Prito,? j& participava ativa- ‘mente da vida intelectual da cidade de Belém, escrevendo para as revistas Guaja- ‘Doutor em Letras e Literatura em Linguas Portuguesas e professor da Universidade da Amazénia (UNAMA), Belém, PA, Brasil E-mail: pontedogaloy@gmailcom. ‘Doutora em Hista e professora da Universidade da Amazénia (ONAMA), Belém, PA, Brasil. E> mail: mairamaiar3e9@yahoo.com. ‘Mestranda no Programa de Pés-Graduasio em Comunicacdo, Linguagem ¢ Cultura na Universi dade da Amazénia (UNAMA), Belém, PA, Brasil E-mail: thainachemelo@botmailcom. Para conhecer Dalcidio Jurandir, ler Nunes; Prneana; Punta, Dale Jurandir ~ Romancista da Amazinia (literatura & meméria), Belém: Seeut, 2006. ‘A Academia do Peixe Frito, associngo hidico-andrquica ce atuagio em Belém, era composta por cerca de 15 rapazes, liderados por Bruno de Menezes (1896/3965); jomalistase literatos, cles t= ‘nham consciéncia de que havia lacunas socias e culturais que precisavam ser contempladas, ma, juventude negra ede periferia no dispuna, rosso modo, recursos materias para frequentar os ‘cafés chiques da cidade (coisa que ocortia desde a década anterior). Eistoremetia a agio de grupo {que enfatizava inovagGes estéticas, defesa da Negritude e da Indianidade (NUNES; TORRES, 2018) [Nangariva tenons te Astazbta ne Datcino nanan rina, A Semana e Pari Ilustrado, além de manter amizade com varios intelectuais ¢ jornalistas. Casou-se com Guiomarina Luzia Freire, em 1935. Nos anos de 1930, Daleidio Jurandir jé expressava ideias de esquerda e participou do apoio aos presos politicos que se envolveram no movimento liderado por Luis Carlos Prestes ¢ a Alianga Nacional Libertadora, acarretando em sua prisio em Belém, no ano de 1936. Ficou cencarcerado durante dois meses, Em 1937 € novamente preso por mais trés meses devido sua filiacio ao Partido Comunista e a seu engajamento na campanha contra o fascism. Apis esse periodo de maior perseguicio politica, reassume as suas funcdes na Diretoria Geral de Educacao ¢ Ensino, em Belém, ¢ intensifica as suas atividades jomnalisticas. Em 1939 transfere-se para Oeiras, na ilha do Maraj6, onde passa a exercer cargo de inspetor escolar; no entanto, nao interrompe a sua colabora- ‘cdo com as revistas e jornais de Belém. Ao mesmo tempo, exigente no aprimora- mento de sua criacio literdria, Dalcidio prossegue na escritura do ja citado Chove nos campos de Cachoeira e Missuga, que depois viria a ser denominado Marajé. Em 1940, € convidado a trabalhar no recenseamento em Santarém, na regido do Baixo Amazonas paraense. £ de conhecimento ptiblico, devido a inimeros compromis- sos profissionais, as dificuldades enfrentadas para a conclusio dos dois romances, Assim ele insereve Chove nos campos de Cachoeira no concurso “Vecchi/Dom Cas- murro" no Rio de Janeiro. Sem que ele saiba, seus amigos fazema inscrigao de Mis- sunga, no mesmo certame: ele é premiado em primeiro lugar com Chove nos cam- ‘pos de Cachoeira enquanto Missunga é laureado com o terceiro Iugar. Essa dupla vitoria de Daleidio Jurandir no concurso leva & sua transferéncia, em 1941, para ‘© Rio de Janeiro, Na capital federal, militando no Partido Comunista e exercendo © jornalismo nos periddicos de esquerda, ele escreve os seus proximos romances, como o analisado neste estudo, Belém do Grao-Pard A experiencia ordinria que define a pritica da escrita e o projeto estético e politico da literatura de Jurandir, torna o estudo de seus romances fundamentais pata que hoje se possa compreender a sociedade paraense da primeira metade do século XX. O autor testemunhou este mundo € construit nos seus romances una interpretacao politica da sua experiencia testemunhal, vista a partir das margens, em experiencia apreendida, em primeiro momento, na Academia do Peixe Frito, de que ele foi participante esporddico mas decisivo, ¢, em segundo, na militancia ativa do Partido Comunista. E justamente esta interpretagao politica ¢ testemu- nhal que se iri problematizar neste presente estudo. Em nosso caso especifico, estamos a tratar do Norte do Brasil, a ‘Amazénia de Daleidio’, representada no romance que ora interpretamos. Se, como ensinaram Williams ¢ os ingleses ao renovarem 0 marxismo, 0 que valida a fungio social da cultura ordinaria é a experiéncia pessoal, experiéncia esta como algo comum a toda a sociedade, entio Jurandir, um homem do interior da Amaz6nia, comum, transformou a experiéncia ordinaria de sua vida cotidiana \Veredas: Revista da Associacso Internacional de Lustanistas,n. 34, . 54-64 ju/der. 2020, 8 Puno Jonct Nunes | Maina Ouvinna Masa | Tuan Otvenna Curus10 material em dez romances, que compéem 0 Ciclo do Extremo Norte: Chove nos campos de Cachoeira (1943), Marajé (1947), Trés casas e um rio (1958), Belém do Grao-Para (1960), Passagem dos Inocentes (1963), Primeira Manha (4967), Ponte do Gato (197), Chao de Lobos (1976), Os habitantes (1976) e Ribanceira (1978). Além dos seus poemas péstumos e do romance sobre o extremo sul, Linha do Parque (1959). alguns destes romances ~ como Chove nos campos de Cachoeira e Belém do Grao- Paré-, receberam prémios nacionais importantes. Belém do Gréo-Paré teve duas edigdes em Portugal, pela editora Buropa-América. Uma espécie de antor etndgrafo,s Daleidio Jurandir, intelectual atuante, deixa claro em depoimentos, entrevistas e cartas, que a sua perspectiva é priorit mente a de romancista, embora também chame a atencio a sua pratica jornalis- tica, que faz, par com a outra, a de criador de romances. Porém, devemos ressaltar que ele utiliza, além de sua meméria pessoal, a memoria historica da regiao base- ada em pesquisas feitas pessoalmente ou a partir de testemunhos de amigos e pa- rentes, sobre fatos ¢ pessoas que viveram em Belém durante a primeira metade do século XX. Essa memoria pessoal ¢ a meméria historia da regido amazOnica vio dialogar nos romances de Jurandir, transformando-os em “lugares de memoria” Se sairmos um pouco do campo da histéria para o da sociologia, dialogando com ‘Maurice Halbwachs, perceberemos que a meméria coletiva tende a influir, atra- vvés de um proceso pendular, na meméria individual Para que nossa memiéria se auxilie com a dos outros, nio basta que eles, ‘nos tragam seus depoimentos: & necessirio ainda que ela nao tenha ces- sado ainda de concordar com suas memérias ¢ que haja bastante ponto de contato entre uma e as outras para que a lembranga que nos recor dam possa ser reeonstruida sobre um fundamento comum (Hatswacxs, 2013, p22). Dalcidio Jurandir, a0 eserever seus romances, elide através dos emaranhados de sua escrita, a meméria coletiva dos sujeitos amazénicos, priorizando os mais po- bres, demarcada por experiéncias e testemunhos individuais, que ganham no lei- tor a mesma forga de identificagao e significados. Assim, a escrita do autor signi- fica, em sintese, uma meméria da AmazOnia atravessada por diversas memérias individuais. ‘Segundo Pierre Nora (1993), na contemporaneidade, nao habitamos mais a nossa meméria, logo temos uma grande necessidade de lhe consagrar lugares especifi- cos. Porém, esses lugares da meméria pertencem ao dominio nao sé da mesma, * Considerar o acerve do autor que esta sob a guarda do projeto Memorial de Livro Morongueti, ligado ao Férum Landi, cvordenado pelo professor Fvio Nassar ligado a Faculdade de Arqui- tetura e Urbanismo da UFPA. Ali pereebemos o cuidado de jurandir ao elaborar reportagens ot romances; seu processo de escritura ¢ antecedido de pesquians de campo, como demonstrari um dos anexos deste ensaio, relacionados & Mae Ciana, personagem de Belém do Grio-Pard \Veredas: Revista da Associacso Internacional de Lustanistas,n. 34, . 54-64 ju/der. 2020, % [Nangariva tenons te Astazbta ne Datcino nanan mas também da histéria, 0 que faz com que esses lugares da meméria contempo- neos postulem outra histéria. Os lugares da meméria seriam, ao mesmo tempo, materiais, simbélicos ¢ funcionais, ¢ s6 poderiam existir se tivessem “vontade da meméria”, condicao primeira e que nao pode ser abandonada, caso contrario, todo “objeto digno de lembranca se transformaria em um lugar de meméria” (NORA, 1993, p. 22). Posteriormente, haveria um jogo dialético entre meméria e historia, com a interagio de ambas. Dessa forma, seguindo o proposto por Nora, uma obra de arte, como os textos literarios de Dalefdio Jurandir, teria a "vontade de meméria’, j4 que seria um teste- munho “voluntariamente produzido para ser reproduzido como tal” (Nona, 1993, p.22). Entre a “meméria verdadeira” do romancista (definida por Nora como “afe- tiva e magica”) a “meméria alcada pela historia” (Nona, 1993. p. 9). ou seja, a memeéria histérica da regido amaz6nica (que seria a representacio do passado a partir do discurso critico, segundo aquele historiador) haveria um jogo dialético, interativo ¢ reciproco. Deste jogo surgiria 0 “Ciclo do Extremo Norte” como um lugar de meméria sobre a Amazénia, € em especial sobre a cidade de Belém, do ‘Maraj6 ¢ do Baixo Amazonas paraense. Com uma pesquisa de cariter transdisciplinar, a historiadora Jacy Alves de Seixas (2004) envolve a literatura de Proust ¢ a filosofia de Bergson, Bachelard ¢ Nietzche para repensar as relagdes entre meméria € historia, e, mais do que isso, para propor um didlogo que possibilite informar a histéria sobre os procedimen- tos préprios da meméria (nem sempre redutiveis aos métodos historiograficos) Seixas discorda de Nora, quando este afirma que “se ainda habitassemos a nossa meméria nio haveria a necessidade de the consagrar lugares especificos” (NORA, 1993). Tal discordaneia surge do fato do autor desconsiderar um traco fundamen- tal da memsria, a “espacializagao do tempo” (SeIxAs, 2004, p. 44). trago este que nos é fundamental, para compreender a perspectiva politica de Dalefdio Jurandir, ‘que apontara para uma percepeao bastante singular sobre o “fausto” e a decadén- cia da cidade de Belém, percepgao distanciada do modo saudosista como as elites remontam o passado da belle époque amazénica. Daleidio é critico. Ele sugere, através do emprego da ironia, que a decadéncia é mais sentida pelas elites, na me- dida em que as classes populares foram, em grande parte, excluidas das benesses daquele “fausto”. A meméria exprime-se, materializa-se e atualiza-se a partir dos “lugares de meméria’, como nos romances que compoem 0 “Ciclo do Extremo Norte”. Dessa forma, os lugares da meméria no representariam, como afirma Nora, a mani- festacao de uma meméria historicizada, mas sim a “irrupgao afetiva e simbélica da meméria em seu dislogo sempre atual com a historia” (SEIXAS, 2004, p. 44). E porque Daleidio Jurandir ainda habita a sua meméria, no momento em que escreve 0 “Ciclo do Extremo Norte’, a partir de uma perspectiva que romances podem ser compreendidos como “lugares de meméria”. 0 fato dessa meméria ser descontinua e fragmentada, como ocorre nas experiéncias da modernidade, nao \Veredas: Revista da Associacso Internacional de Lustanistas,n. 34, . 54-64 ju/der. 2020, = Puno Jonct Nunes | Maina Ouvinna Masa | Tuan Otvenna Curus10 caracteriza uma auséncia de meméria, mas, ao contrario, uma escrita de memoria bastante singularizada. A perspectiva de Seixas vai ao encontro do nosso propésito de andlise, uma ver que @ historiadora trabalha a meméria no plural, ou seja, nao se ocupando apenas com a “meméria voluntéria”, mas também com a “meméria involuntaria’, afirmando inclusive que ambas existem nos romances do século XX, como nos de Marcel Proust. E a partir da obra de Proust que a pesquisadora envereda por ‘uma discussio sobre meméria voluntaria e involuntaria. Se o historiador se ocupa apenas com a meméria voluntaria, afirma Seixas, 0 mesmo deixara eseapar toda a dimensao afetiva e descontinua da vida e das agdes humanas. Essa faceta involuntaria da meméria dialoga com diversos ¢ miiltiplos tempos, reatualizando as experiéncias passadas. Essas reutilizagdes ocorrem em um “ins- ante’, que no possui duragio maior do que “um relampago”, e é por esse mo- tivo que a materialidade da meméria nos aparece como algo que “irrompe", um passado que retorna, porque de alguma forma ainda nao passou, continua ativo e atual, sendo entao retomado, recriado, reatualizado (SEIXAS, 2004, p. 49). Dalcidio Jurandir afirmou, em varios momentos, que buscou “fragmentos de sua meméria” para construir a narrativa do “Ciclo do Extremo Norte’, a partir “do menino que foi, com os pés fineados em Cachoeira do Arari” e olhando Be- em sempre como “casa alheia”, pintando os seus romances com cores de um teste- munho hist6rico de um caboclo marajoara (Setxas, 2004, p. 96-97). Sua memria miiltipla (voluntéria ¢ involuntéria) vai dialogar com diversos tempos ¢ espagos ~ ‘0s anos de 1900 em Cachocira do Arari; a Amazénia cabana de meados do século XIX; a Belém da populagao pobre da virada do século XIX para 0 XX; a Belém da belle époque lemista do “fausto” e do progresso urbano; a Belém da decadéncia dos anos de 1920; 0 tempo da sua vivéncia de funcionario puiblico e romancista no in- terior do Para e na capital da Amazénia nos anos de 1930 e 1940. Ele reatualiza as suas experiéncias passadas, que irrompem recriadas em seus romances do Ciclo, Ingares da memaria do extremo Norte do Brasil. Como em Proust, a meméria em Dalefdio Jurandir opera em fusdo, recuperando a superposicao de tempos milti- plos, justamente porque incorpora o instante e coloca-o na condigao de memria, Isto pode ser visto no emprego do discurso indireto livre ¢ dos mondlogos que marcam as enuinciagdes do romance dalcidiano, © exemplo mais apropriado que bem corporifica esse exercicio de fixacdo de meméria se da através da manipula- ‘cao que faz Alfredo (o protagonista da grande maioria dos romances amazénicos do autor) do carogo de tucumd,t espécie de “valvula de escape’ desse personagem diante das angiistias a que ele se submete na trama das narrativas. E Marcel Proust que, segundo Seixas (2004), ao fundir instante ¢ duragdo, eria csteticamente uma dimensio particular do tempo, que seria “atemporal”, algo que s6 emerge porque adentra todos os tempos descontinuos ¢ assimétricos constitu- +O tueuma é uma palmeira amazinica que tem 0 nome cientifien de Astrocaryum aculeatum. \Veredas: Revista da Associacso Internacional de Lustanistas,n. 34, . 54-64 ju/der. 2020, 38 [Nangariva tenons te Astazbta ne Datcino nanan tivos de uma duracao. Essa dimensao atemporal tanto pode ser verificada nos so- hos e devaneios de Alfredo, quanto na representagio que faz. 0 narrador de fa- tos histéricos, como Cabanagem, Belle époque de Anténio Lemos, decadéncia do fausto ete. E este atemporal proustiano que irrompe nas tramas do Ciclo do Ex- tremo Norte, porque tramam todos os tempos descontinuos e assimétricos consti- tutivos da duragao proposta por Dalcidio Jurandir. A meméria em Dalcidio Jurandir é, portanto, construtiva. Ela age tecendo fios centre narrador, personagens, tempo/espaco e acontecimentos, o que torna alguns personagens mais densos do que os outros. Dalcidio Jurandir, tal qual Proust, re- encontra 0 vivido ao mesmo tempo no passado e no presente € desta maneira recria a sua percepcio do real. De uma realidade que se forma na meméria e que encontra o seu lugar na trama de sua narrativa O tempo que ele retoma, seja a Cabanagem, a Belle époque ou a decadéncia econdmica do latex, € um tempo que comeca de novo € nio se refere apenas 40 pasado € ao presente, mas projeto, para além do tempo da narrativa, de um futuro promissor. Através de manobras enunciativas ~ uso de mondlogo e discurso indireto livre =, a meméria atualiza 0 passado ao introduzi-lo no presente, porém, esse passado nao € tinico, ele é plural, o que Seixas (2004) chama de “plural de descontinuida- des”. Os lugares da meméria acoplam-se formando mundos a parte e que so pas- siveis de serem colocados em comunicagao pela meméria. Essa meméria pode nos evar a lugares diversos ~ ¢ a narrativa dos romances de Dalcidio Jurandir sobre Belém é um bom exemplo disso -, “viajando” pelos varios tempos ¢ lugares, pelas “cidades” de Belém (Covées de Sao Bras, Nazaré, Umarizal, ete). Esses planos des- continuos e lacunares da meméria constroem uma continuidade, algo que é ‘nico. Por isso a antora afirma que a meméria “constréi 0 real muito mais do que 0 res- gata” (SEIxAS, 2004, p. 51). Podemos inferir uma possibilidade de construcio do real em Daleidio Jurandir, 1 partir de uma passagem do romance Belém do Grio-Paré, na qual 0 narrador, a0 descrever 0 Cirio de Nazaré (vivido pelas personagens pobres da trama), apropria- se desta faceta involuntaria da meméria do escritor, dialogando com tempos di- vversos € miiltiplos. Trata-se da passagem em que a personagem “mae Ciana” vé a procissao da transladagao chegar a Tgreja da Sé, no bairro da Cidade Vetha, em Be- em, A procissao ocorre na noite anterior ao Cirio de Nazaré, uma das maiores fes- tas religiosas do Brasil. Todos esses tempos vistos por uma personagem como mie Ciana ou que recebem a adesio do narrador de Belém do Gréo-Paré se reatualizam neste instante de fé e devocio, que irrompe exatamente na chegada da imagem de Nossa Senhora de Nazaré a Igreja da Sé, retornando todo um passado que conti- ‘ua ativo e atual, ressignificado pelo narrador instruido por Dalcidio Jurandir: ‘A transladagio chegou ao ponto, na Sé, agora escoava-se. A Sé guarda 1 imagem. Cobria-se de visoes do seu passado, a Cidade Velha. Mae Ci- ‘ana via o tempo velho chegando, Nasciam de novo, prateanda sobre 0 ar- vorecer antigo, aqueles igarapés em que indio andou, eabano viu. Ao pé \Veredas: Revista da Associacso Internacional de Lustanistas,n. 34, . 54-64 ju/der. 2020, » Puno Jonct Nunes | Maina Ouvinna Masa | Tuan Otvenna Curus10 do Castelo, as idosas gurijubas rabeavam. Desembarcavam pages do sal- ‘gado, seus cachimbos acesos, os maracés, suas rezas. Das velhas barcas de Portugal pulavam as marujadas. E negros do Mazagio com seus tam- bores, dentro da Sé,a modo que estrondavam. Mae Ciana trazia também seus pretos do Araquicaua, os afogados e desaparecidos tirava do fando do invisivel, todos eles na Sé, guardando a imagem, falando suas tantas reclamacdes, seus ais. E os do Guam, também nao? O sono da Cobra No- rato debaixo da Sé, a Mae Ciana escutava (JURANDIR, 2004, p. 284) Entao, ao incorporar o “instante” da chegada da procissdo na Tgreja da Sé, colocando-6 na condigio de meméria, o narrador, industriado pelo autor diegético, ‘opera uma fusio, recuperando a superposi¢ao dos miitiplos tempos, momento em que as ruas de Belém eram rios, onde os indios andavam em seus barcos, tempo ‘em que 0 cabano revolucionario viveu, em que pajés vinham do Salgado para a transladagio, em que barcas de Portugal traziam marujas, em que negros escravos tocavam seus tambores dentro da Sé, tempo em que muitas “mies Cianas’, mi- seraveis e invisfveis, levavam suas dores para suplicar por salvacao. Todos esses tempos se superpdem, ao serem fundidos, instante e duracio, o instante da trans- adagao € a duragdo dos miltiplos tempos de Belém do Grao-Paré, sendo assim & criada, esteticamente, uma dimensao miltipla ¢ transtemporal, que emerge a par- tir do momento em que se tramaram varios tempos descontinuos e assimétricos. Ao reencontrar 0 vivido no tempo passado de indigenas, cabanos, marujos, ne~ _Br0s escravos, caboclos, pajés, e no tempo, presente da trama, Jurandir recria a sua petcepgao do real, de uma realidade que funde varios tempos e lugares € que se forma em sua meméria, encontrando o seu lugar na narrativa. O tempo da trans- adage de 1922 € um tempo que comega de novo ¢ que se refere nfo apenas a0 passado e ao presente, mas também & possibilidade de um futuro diferente, aberto pela rebelido dos rocciros do interior do Para. Desta forma, o romance Belém do Grao-Para, e todo o Ciclo do Extremo Norte, pode ser compreendido como um lu- gar de meméria da regio. Mie Ciana e a ‘Aristocracia do Pés no Chao" Mie Ciana é personagem que, embora aparentemente ocupe espago secundario nna trama do romance Belém do Gréo-Pard, constitu uma alegoria da diversidade etnocultural da Amazdnia, fruto envolvente da mistura entre nativos amerindios ce negros, ‘filhos’ das didspora africana no Norte do Brasil Ciana é fundamental para que Alfredo se reconheca como negro e assim re~ cupere o elo afetivo com sua mie, dona Amélia; Ciana constitu uma espécie de ponte de ligagao entre Alfredo, o alter ego de Dalcidio Jurandir, e os problemas sociais da periferia de Belém como a rebelio dos roceiros no Guam, movimento este que se sobrepunha, paulatinamente, na trama, 4 Belém dos escombros lemi tas, de atritos sociais entre classes antagOnicas, A escrita desse romance tinha wm \Veredas: Revista da Associacso Internacional de Lustanistas,n. 34, . 54-64 ju/der. 2020, [Nangariva tenons te Astazbta ne Datcino nanan compromisso com a maioria’ explorada. Um romance politico que seria a sua con- tribuigdo decisiva para a transformacio do mundo. Era, desta feita, preciso mos- trar para os oprimidos a possibilidade da “desagregacio das coisas’, através da es- crita da historia “a contrapelo”. (BENJAMIN, 2012, p. 13). (Onarrador nos relata que mae Ciana vivia durante o tempo da Belém do Fausto “na Bernaldo Couto, olhando © muro lateral da Santa Casa”. Bem diferente dos palacetes de marmore ¢ granito importados da Europa, mae Ciana morava numa barraca, “beiral de palha, como uma pestana, sobre a tinica janelita envergonhada” (JuRANDIR, 2004, p. 185). Nesses tempos vivia com a personagem Seu Licio, mas a histéria de ambos é mais antiga, nao datando o narrador, mas deixando com que 1 rastros nos facam inferir que por volta do final do XIX e inicio do XX os dois jd estivessem juntos. Mie Ciana é definida pelo narrador como uma mulher de uma dedicacio apai- xonada, Mais cafuza que preta, com roupa sempre limpa, nao tinha medo de pe- gar no pesado, e quando enviuvou do primeiro marido, amassou e vendeu acai ‘na Domingos Marreiros, com a bandeira na porta, faxinow muita casa de branco, vendeu tacaci, ¢, nos idos de 1922, fazia “cheiro de papelinho para freguesia certa, certas casas da Independéncia, Rui Barbosa ¢ Reduto” (JURANDIR, 2004, p. 184). vai e vem desta labuta, as infimeras atividades nas quais as mulheres como ‘Mae Ciana se envolviam, nos sugere a dura luta pela sobrevivéncia das mulheres das classes populares do final do século XIX e inicio do século XX. As mulheres tinham pouca possibilidade de empregos regulares, uma vez que raras eram as que trabalhavam como balconistas no comércio de alguma loja (Dtas, 1995), sobrando para claso comércio mais pobre, a venda de géneros alimenticios. £ posstvel inferit também que muitas destas mulheres cram mal-vistas neste momento em Belém, ‘uma vez que o seu lugar social nio era as ruas, mais o lar, cuidando da casa e da prole (LEAL, 2008) Mae Ciana, a personagem que nao apanhava o bonde, que rodava a cidade en- tregando seus cheiros a pé, fazia desta uma de suas mais marcantes caracteristi- cas, como que, implicitamente, o autor quisesse mostrar o brio da aristocracia da qual ele proprio descendia, “a aristocracia do pé no chiio": a pé a personagem pro- curava os parentes no Ver-o-Peso, a pé foi madrinha de muitas eriangas, de ba- tismo e de fogueira, a pé ficou conhecida e conheceu os pajés, frequentava de vez ‘em quando o terreiro de Dr. Luis Franca na Cremagao, conhecen de feitiaria, de cencantos € de ervas maravilhosas. Mas sua sina era estar sempre em busca de Seu Licio pela cidade, com os dois pés fincados no chao, na sua realidade de trabalho duro. O narrador afirma que, embora devota da virgem de Nazaré, acompanhando > Uma das fortes prevcupasdes dos inteletuais que militavam na Academia do Peixe Frito era verter a dinimieae fluxo de poder: antes as reas centeais da cidade erar vistas com primazia nas representagbesliterdrias. A agi dos académicos do Peixe Frito faz inverter e deixa as peri- ferias da cidade como centros do featrum mundi sto esti muito bem representado na iteratta de autores como linuna de Menezes e Dalcidi Jurandir, por exemple, \Veredas: Revista da Associacso Internacional de Lustanistas,n. 34, . 54-64 ju/der. 2020, a Puno Jonct Nunes | Maina Ouvinna Masa | Tuan Otvenna Curus10 todos os anos a transladagao, cra com Nossa Senhora do Rosario que mae Ciana se pegava de fato, ela e “a pretada inteira” se pegavam com a imagem da santa, na Igreja construida pelos escravos (JURANDIR, 2004, p. 472). Por meio das memérias da personagem Seu Licio, companheiro de mae Ciana, ‘vamos tecendo o lugar das classes populares no “fausto” da Belém do Grito-Paré, de Daleidio Jurandir. A personagem, seu Licio narra que viu Mae Ciana pela primeira vez em um carimbé,° no Pinheiro, Voltava ele de Mosquciro, da Baia do Sol, depois de varios dias de “vadiagao” pelos “terreiros e chiios de festa, velério e serenata” (JuRANDIR, 2004, p. 398). Mae Ciana, muito cheirosa, estava de “chinelinho no pé, bata branca, pente alto na cabeca e dancava como ninguém ao som do carimbs" (uRaNDIR, 2004, p. 398) Mas é 0 caminho do carimbé & casa de Mie Ciana que nos chama atengio. As personagens populares da trama de Dalcidio Jurandir nao passaram por nenhum dos simbolos do progresso burgués. Havia 0 pogo, de onde a populacao tirava sua gua que nao era encanada, havia lama e no ruas pavimentadas, havia pa- Ihogas € nao palacetes, haviam mulheres trabalhando na peneira da tapioca para fazer beijus, € nao banquetes europeus ¢ nem mulheres tocando piano. Narrando © periodo longo em que tentava convencer mie Ciana a aceité-lo, Seu Licio nos mostra o quanto a vida desta mulher era feita de “labutas das casas desses bran- cos, trabalhar no tacacé”, mas também no cheiro, na banca do peixe, na merceatia. Na festa de Nazaré, “longe dos luxos ¢ do muito caro das barracas ¢ das diversdes do Largo”, estava, enfim, mée Ciana trabalhando como mingauzeira no “cu da festa, que era atras do arraial, aquele arraialzinho da maior pobreza” (JURANDIR, 2004, p. 399). © modo como o narrador “adere” Mie Ciana nos faz admiré-la e devotar a ela a mais intensa simpatia. Ciana é uma digna representante da ‘nata’ da “aristocracia dos pés no chao”, que ele tao bem representou. Para Daleidio Jurandir, essa “aristocracia do pé no chao” era o que de melhor existia no romance Belém do Griio-Paré. Independente dos tempos, era ela que fazia pulsar a cidade a partir das ruas, dos cheiros, das dancas, da mtisica, das co- midas, das feiras, da arte, do brio, da dedicagao, da honestidade, da determinagao, da forga, da inteligéncia, f esta gente de pé no chao, muito bem representada por Daleidio Jurandir, que contradiz a ideia equivocada das elites de que, apés a der- rocada do latex no mercado internacional, a capital do Para vive a mais sombria decadéncia, Como jé dissemos, o povo da periferia foi, em grande parte, excluido do fausto da Belle Epoque. Mae Ciana, Libania, Isaura, Antonio ¢ tantos outros, estavam envolvidos com as tarefas inglérias de um cotidiano duro, servindo aos brancos, Iutando pela sobrevivéncia, embora isso nao signifique que eles fossem desesperangados. © Ritmo musical amazénico, palriménio cultural brasilir e, também, um género de danga de toda de origem indigena tipica da regio Norte brasileira, praticado no Paré a partir do século XVI: inluenciado por negros (percusaio e sensualidade) e portugueses (palms ¢ pro). O nome é ‘oriundo de um instrumento rascal, um tambor artesanal chamado “eurimbs \Veredas: Revista da Associacso Internacional de Lustanistas,n. 34, . 54-64 ju/der. 2020, e [Nangariva tenons te Astazbta ne Datcino nanan Ao pensarmos, panoramicamente, na atividade intelectual de Dalcidio Jurandir ~ 0 jornalista, o romancista, o poeta bissexto, o militante, o internacionalista — en- fim, o homem de ideias, chegaremos a sintese de que a funcao do intelectual mate- rialista era a de libertar o presente do passado que o oprimia, para salvéi-lo de uma historia oficial, na qual existia a empatia apenas com o vencedor. A historia de Be- em, representada por Daleidio Jurandir, demonstrara que ele tem, como nao po- deria deixar de ser, empatia com as classes populares, que conheciam a realidade cotidiana de opressao e de luta. Os sujeitos da periferia que protagonizaram 0s ro- mances do Extremo Norte resistem ¢ se dedicam a busca de um bem maior: em que © sol nasca igualmente para todos. Mae Ciana, Magé, Alfredo, Seu Licio, Libania, cenfim, todos esto afinados para resistir; ele compe como que uma orquestra em que o ‘regente’ é o narrador do romance, mas o maestro é mesmo Dalefdio Juran- dire sua escrita singular que problematizou a AmazAnia e seus sujeitos como nin- guém, dedicando-se a uma causa que aponta para a libertacio de toda a opressio. Referéncias BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da Histéria. IN: BARRETO, Jodo. Walter Benja- min: o anjo da historia. Belo Horizonte: auténtica, 2012. Dias, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em Sio Paulo do século XIX. ‘Sao Paulo: brasiliense, 1995 Hatawacus, Maurice. A memdria coletiva, Tradugao de Beatriz Sidou, 2 ed. S20 Paulo: Centauro, 2033. Jonanpin, Daleidio. Belém do Grio-Para, 2 ed. . Belém/Rio de Janeiro: Edufpa/Casa de Rui Barbosa, 2004. Leat, Luiz Augusto Pinheiro. A Politica da Capoeiragem: histéria social da eapo- cia e do boi bumba no Paré Republicano (1888- 1906). 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Aprovado em 17 de setembro de 2020. Resumo Narrativa e meméria na Amazonia de Dalcidio Jurandir Paulo Jorge Nunes, Maira Oliveira Maia e Thaina Oliveira Chemelo Este texto enfatiza a eserita do romance amaz6nico de Dalcidio Jurandir e reforga a ideia de uma meméria & moda, principalmente de Maurice Hawbachs. Trata-se de uma anilise dos romances Belém do Grito-Paré (1960) € Passagem dos Inocentes (1963), através dos quais Daleidio Jurandir representa a sociedade paraense da pri- meira metade do século XX, a partir de uma experiéncia testemunhal, vista das periferias da grande cidade da Amaz6nia oriental. Para demonstrar essa preocupa- io do autor em retratar “as minorias’, nos debrucamos sobre a anilise da perso- nagem "Mie Ciana’”, de Belém do Grao-Para, que, aparentemente secundaria, cons- titui uma perfeita alegoria étnicocultural da Amazénia. Ressaltamos que o autor utiliza, além de sua meméria pessoal, a meméria historica da regido, baseado em pesquisas feitas na Belém da primeira metade do século XX, transformando seus livros em “lugares de meméria’, emaranhados aos coletivos dos sujeitos amazéni- cos, priorizando os mais pobres, por ele denominados “aristocracia do pé no cho’, O autor de Chove nos campos de Cachoeira percebia a historia como um campo de Intas, sua narrativa esté comprometida com a maioria explorada, dai porque seus escritos configuram manifestos que apontam para a transformagao da sociedade. \Veredas: Revista da Associacso Internacional de Lustanistas,n. 34, . 54-64 ju/der. 2020, o

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