Você está na página 1de 8
NARRADORES-ESCRITORES-COMPILADORES EM ‘TRES ROMANCES, DE BENEDICTO MONTEIRO Maria de Fatima do NASCIMENTO Universidade Federal do Pasi Bs ste trabalho analisa 0 narrador em trés romances daTetralogia Arsazinen, Je Bendis Monto: Vins Visio 9790 Miso (1973) ¢.AA Tersira Margem (1983), publicados nas décadas de 70 © 80 do steulo XX. Estas obras apresenam estrus fragments, esata do rocesso de montagem utilizada pelo escritor paraense, trago também ipusesco do comporamento oe aezlore as rftds obs que sio todos escritores estreantes As voltas com compilagdes de textos para a composigio de seus livros. PALAVRAS-CHAVE: Romance brasileiro da década de 70; narrador; montagem, STRACT: ‘This paper analyses the narrator in three novels of the ee Minasscura (1975) and A Tercera Margem (1983), published in the 70's and 80's of the last century. These novels presenta fragmentary structure, as a compiling strategy used by the author. This technique is parallel to the one used by the natrators of the three novels themselves because all of them ‘were involved in the meandering of compiling texts to the composition of their first books, KEY WORDS: Brazilian novel of 70's; narrator; compilation, Benedicto Monteiro, escritor paraense, perseguido politico pelo regime militar p6s-1964 brasileiro, produziu quatro obras entre as décadas de 70 e 80: Verde Vagonoundo (1972), O Minessauro (1975), A Tereeira Margem: (1983) e Aquele Um (1985) as quais denominow de Tetralogia Amazénica, Este trabalho tece algumas consideragdes a respeito dos narradores dos trés primeiros romances dessa Tetralogia, conjunto Rez MOARA Belém = .27 96-110 jan/jun, 2007, NASCIMENTO, M. F 7 de obras que esté intimamente imbricada com 0 contexto histérico da ditadura militar pés-1964 no Brasil. A dentincia desse periodo pode ser considerada uma das linhas mestras desses romances. O fato de Benedicto Monteizo tet sido preso e perseguido politico por tal regime refletiu-se muito acentuadamente na matéria narrativa desses trés romances, que aptesentam estruturas fragmentitias, estratégia de montagem/colagem utilizada por Monteiro, teaso também caracteristico do comportamento dos respectivos narradores dos tefetidos romances, ji que sio todos escritores éstreantes as voltas com compilagdes de textos para a composicio de seus livros. Em Verde Vagomundo, Monteito comegou o experimentalismo com a montagem, mesclando certas unidades estilisticas heterogéneas', como, por exemplo, 0 ditio, o depoimento, resumos de noticias veiculadas pelo rédio, o discurso do nartador protagonista Major Anténio de Medcitos € o da personagem Miguel dos Santos Prazeres, contadora de histérias, no contexto fragmentirio do romance. Na obra em pauta, a cidade de Alenquer ¢ 0 Baixo Amazonas, espagos romanescos da Temralagia monteiriana, em que aparece uma forma de resisténcia 4 repressio militar, resisténcia esta transfigurada de uma forma bastante inovadors: a linguagem regional recria, no uuniverso da cultura amazénica, a realidade desse periodo da hist6ria brasileica. Verde Vagomundo (1972), como afirma Anténio R. Esteves, € Um romance equilibrado, em que o autor trabalha bastante a forma, sem chegar, no entanto, a produzir um texto ininveligivel. Apesar da acurada elaboragio formal, © trabalho também critica 0 momento politico vivido pelo pais (1994, p. 36). ee "Wer Bakdtin, Mikhail. Quester de Literatura ede Euttca (A Teotia do Romance). Sto Paulo: UNESP, 1998, p, 71-84, Rev MOARA Belém = n.27 96-110 —_jan./jum., 2007. 98 Narradores-escritores-compiladotes. No entanto, depois dessa obra, Monteiro, embora continuando a trabalhar a composicio romanesca, esgarca cada vez mais o narrador, repetindo a mesma idéia do primeito livro nos seguintes, ou seja: seus narradores sfio sempre escritores estreantes, como que turistas na cidade do interisr de sua propria tetra, que se deslumbram com a fala do caboclo ribeiriaho: Miguel, personagem dos trés romances em andlise. "Tanto o Major Antonio Medeiros de Verde Vagomundo quanto © geblogo Paulo de O Minossauro ¢ 0 Geégrafo de A Terceira Margem sio nattadores-escritores-compiladores, que organizam o material dos seus livros pot meio de um gravador, tendo como motivo principal a fala de Miguel dos Santos Prazeres, personagem apelidada de Cabra- da-Peste ¢ de Afilhado-do-Diabo. Em Verde Vagomundo, Anténio de Medeiros protagoniza uma histéria na qual se pode perceber 0 narradot-escritor-compilador: Quando tio Jozico me fez a eélebre adverténcia que constitui o PROLOGO deste trabalho, achei que entre aquelas trés coisas ~ escrever um livro ~ fosse a coisa mais facil para chegar a ser homem. Agora, nao estou muito certo disso, embora transcreva na integra os escritos de Norberto, e tente reptoduzir fielmente as palavras do tio Jozico ¢ Cabra-da-Peste. Mesmo assim, no sei se consigo ser fiel 4 imagem ¢ & personalidade desses tipos humanos que me impressionaram tio profundamente. Mesmo copiando de um gravador, onde gravei em fita todas as nossas conversas, nfo sei se posso transpor para © papel, com fidelidade, a linguagem interessantissimna desse caboclo extraordinatio que € Cabra da Peste. O proprio timbre da voz, que ougo agora na fita magnética, ja no € 0 mesmo que ouvi sair da sua garganta. As palavras que saiam estalando entre aquelas alvas carreiras Rev MOARA Belém = .27— 96-110 jan,/jun, 2007. NASCIMENTO, M. F 99 de dentes, patece até que nem sio as mesmas, que esto aqui itremediavelmente escritas, nestas letras quase mortas. (Verde Vagomundo, p. 144) No romance Verde Vagomundo, o Major Antonio de Medeiros - ex-expedicionatio da FEB — desempenhando o papel de narrador ordena a matéria narrativa de uma forma menos fragmentiria em relagio as outras duas obras seguintes, considerando as peculiaridades de uma regio - a Amaz6nia brasileira - € a critica ao golpe militar de 1964, através do dilogo que ele estabelece com as outras personagens do livto, a saber: seu tio Jozico, Norberto, Pepe Rico, o cego Buclides ~ Bspitio de Deus, Frei Gil e o caboclo sibeirinho, Miguel. Dessa maneira, tal critica é feita pela interaglo com todas as personagens do romance e pelas reflexes do proprio Major sobre a monétona vida na cidade de Alenquer e sobre a que ele levava antes na cidade grande. Pode-se dizer que essa estratégia narrativa favorece 0 enriquecimento interior das personagens que se tornam mais densas ¢ também porque, ao falarem sobre um contexto local, poem em cena conflitos que se irmanam a questdes essenciais da vida dos homens, estratégia que vai sendo perdida nos outros romances da Tetralogia do esctitor paraense. Jaem O Minossaure, Monteiro, além de criticara ditadura militar no Brasil e de questionar a viabilidade dos faradnicos projetos nacionais e multinacionais, concebidos autositariamente por tal regime para a Regido Amazénica brasileira, deu seqiiéncia a0 experimentalismo e 8 elaboragio da histéria da personagem Miguel dos Santos Prazeres, iniciada no romance Verde Vagomusndo No romance em apreciago, a exemplo de Verde Vagomundo, encontra-se 0 natrador-escritor-compilador (0 gedlogo Paulo) &s voltas com 2 coleta de material para escrever 0 seu livro, o que pode ser visto na seguinte passagem: : Aqui nesta equipe, estou no lugar privilegiado para ler, estudar, analisar ¢ escrever. Todas as tardes chegam as Rex MOARA Belém = .27 96-110 jan, 2007, 100 Narradores-eseritores-compiladores, turmas de topografia e de sismica, do trabalho com material de campo. Se puder tecolher a impressio que cada um traz dos lagos, das matas, da terra e do rio, vou ter material para escrever um grande livro (O Minossauro, pi). Quando ougo (¢ vejo) Miguel viver (¢ narrat) as suas estérias, fico com inveja da fluéncia, da veeméncia € até da poesia, que na sua boca, adquiremn as palavras mais simples. Gravadas em fita, escritas numa pagina, pintadas num quadro, acho que perderiam a vida que explode em puto ritmo. (O Minossauro, p. 66). Nesse sentido, o gedlogo Paulo aproveita as impressdes dos trabalhadores e todo o material esctito ou falado que chega a equipe, como 2s noticias de ridio, as cartas de Zuleika e de Simone e principalmente 2 fala de Miguel, personagem paria, embrenhada em ‘uma tradigio oral, que se faz voz dos oprimidos e despossuidos, e se transforma numa espécie de mito, © romance O Minessauro apresenta uma estrutura romanesca com miiltiplos pontos de vista, em que as personagens se articulam como que em blocos de fala (Miguel, Paulo, Locutor de Radio, Zuleika ¢ Simone). A seqiiéncia desses blocos caracteriza-se pela montagem ja que, em cada bloco, as personagens sompem abruptamente com 0 seus discursos, dando lugar ao de outra personagem, numa seqiiéncia de fragmentos como, por exemplo, textos oralizantes, depoimentos, citagdes de diferentes autores e do préprio Monteiro, textos jornalisticos, poemas, relatérios, composi¢ao musical, cartas, entre outros, que, em sua grande parte, jé existiam e que Benedicto Monteiro tomou como empréstimo, usando, dessa forma, aestratégia natrativa da montagem?, * Peter Burges, analsando a questio da montagem nas artes plisticas de vanguatda do inicio do séeulo XX, exclarece que: 0 que distingue estas obras das técnicas de Rew MOARA Belém 9.27 p 96-110 —_jam/jun, 2007, N’ NASCIMENTO, M. F wot Assim, verifica-se, também, em O Minossauro que, nos refetidos blocos, todas as personagens aludem a uma situago repressiva, tendo como matéria narrativa 2 ditadura militar, reforcada por um locutor de ridio que dé noticias do Brasil e do mundo, noticias estas que vém getalmente ilustradas com desenho de duas ou trés torres de twansmissio radiofénica, como recurso guifico da montagem de textos jornalisticos, descritos em pequenas tiras, acompanhados dos versos do poema “A ‘Torre Sem Degraus”, da obra Boitempo & A Falta que Ama (1969), de Carlos Drummond de Andrade: NO SEXTO ANDAR DA TORRE SEM DEGRAUS de Carlos Drummond de Andrade, zumina-se politica ‘na certeza-esperanga de que a ordem precisa mudar, deve mudar, ha de mudar, contando que nio se mova um alfinete para isso (O Minossauro, p. 39). ‘Tais versos se misturam ao acervo das noticias, descrevendo 08 andares de uma construgio absurda, que evoca a imagem biblica da Torre de Babel’, e que, disseminados a tantas outras informagées, aparentemente desconexas, concorrem para a composicio estilhacada ee pinto priticads desde 0 Renascimento & a incorporagio de fragmento de tetdade na pinta, ous de mates que no foram cabonder neo ing iin ti ie rohan eb de 83, > * & contzuso de uma tore evocs imeditamente Babel, «porta do edu exjo objetivo era o de estabeleces, por um attificio, o eixo primordial rompido e por clevanse até a morada dos Deas A Torre de Babel stsbatos conhens Ca fata de equi lev &confuso noe plancs tena edvinecostorene gin secntendem no filam a mesva lingua, o que que der gue ene de a existe minimo consenso cada uma pensar somente em tititanecscontenns se um Absolut (CHEVALIER, JBAN; GHEERBRANT, Alum, Deoaiar ob Sno, 2002, p 111 B86) Neve seo, o poema A Tine Son Deg e Carlos Drummond de Andrade, transerito na obra O Minastara (1975), seforca a segoria da repessopoitia no plano expresso verbal alate conmencta hotizontl no Brasil do pefodo da dadurmilta Rex MOARA Belém 0.27 96-110 janjun., 2007 102 [Narradores-escritores-compiladores, do romance em tela, dando sentido as inimeras representagdes aleg6ricas relacionadas a ditadura militar. A composiclo fragmentiria do romance reforga o seu cardter alegérico pela relagdo entre fragmento/montagem ¢ alegoria, estabelecida por Peter Biirger: Oalegético acranca um elemento 4 totalidade do contexto social, isola-o, despoja da sua funcio. A alegotia, portanto, € essencialmente um fragmento, em contraste com 0 simbolo orginico. (..). O alegérico cia sentido ao reunir esses fragmentos de realidade isolados. Trata-se de um sentido dado, que nao resulta do contexto original dos fragmentos. (Teoria da Vanguarda, 1993, p. 119) © tomance O Minossauro inicia-se com os primeitos fragmentos do relato da personagem Miguel dos Santos Prazetes, alcunhado também de Minossauro, relembrando 0 tltimo episédio ‘ocorrido no romance Verde Vagomundo. Esse telato é feito como se Miguel estivesse sendo entrevistado para um emprego e 0 entrevistador/empregador (nartador Paulo) fazendo perguntas. Entretanto, é pela fala de Miguel que é recriado a figura do interlocutor = “un senor” - que vai se repetic intimeras vezes, de forma reiterativa (220 vezes), numa espécie de elaboracio lingiiistica como se Fosse um discatso oral Nao, eu nifo me alembro como eu nasci. Faz muito tempo. ‘Mesmo sendo ainda novo, faz muito tempo. De memétia, niio sei o lugar, nem o dia, nem 2 hora. Quando dei acordo de mim diz’que jé era homem, Homem, sim senhor. Nio senhos, emprego eu no aceito. Posso ficar sendo pescador, mateiro, cacador, mas nlio quero emprego fixo, Equipe? O que é equipe? (..). Equipe que o senhor diz... esta.. cequipe, equipe é uma cidade andante... (O Minossauro, p. 30) Rey. MOARA Belém =a. 27, p96-110—_jan./jun,, 2007 NASCIMENTO, M.F 103 No contexto do espago romanesco, num barco, uma espécie de casa flutuante & margem de um tio, a personagem Roberto, engenheiro geofisico ¢ ex-militante politico de esquetda, permanece a margem dos acontecimentos, sendo mostrado 20 leitor por meio das cartas de sua noiva, Zuleika, e pelo filtro de Paulo, seu companheiro de trabalho. Assim, somente duas personagens participam da aio narrativa: Miguel, na condigio de cagador, pescador, guia da mata ou dos tios, e Paulo, na condigio de seu interlocutor e aspirante a escritor, uma espécie de narrador- compilador, que luta em vio, drummondianamente, com as palavras, teorizando a respeito da linguagem e analisando as “linhas stimicas ¢ topepréficas” da Regiio Amazénica. Embora Paulo no consiga encetar uma discussio enriquecedora sobre a linguagem, a maneira de outros nartadores, como Rodrigo S. M,, do romance A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector, questiona, de certa forma, 0 proptio romance e mostra a visio alegérica de que a linguagem, se é expresso, ndo £0 lagar da imediatez, havendo a mediagéo reconbecida de uma convengio que se interpie contre fala e experitncia (SAVIER, p. 52) Novamente as palavras. Toda vez que tento ver, escrever ou pintar neste digtio (astrolabio? caleidoscépio? quadro? prism? espectro?) as palavras constituem-se em matéria- prima a mais dificil. Hoje elas estio duras ¢ inflextveis (© Minossauro, 1990, p. 66). Por isso, pata mim, as palavras podem perfeitamente significar o potencial da mensagem e imagem que nio consigo transmitir utilizando as regras convencionais. Acho que as palavras podem reter o mundo que aprendo ‘na sua pureza mais remota (O Minossauro, p. 83). Nio sei, afinal, o que vai tesultar destas minhas notas. Aqui, s6 conto mesmo com as palavras (O Minossauro, p. 91). Rez MOARA Belém n.27p96-110—_jans/jun, 2007. 104 Narradores-eseritores-compiladores. Estas palavras ilustram que Paulo, narrador culto, esta como ‘que A procura daquilo que ele chama de palavras nao critalizadas,palavras- duplas, palavras-miibiplas. Pos isso, busca, em vitios blocos, expresses que denotem uma nova imagem seméntica da Amazénia, numa espécie de experimentalismo verbo-descritivo, Em O Minossauro, Benedicto Monteiro utilizou uma mixagem partir da fragmentagio e da montage, 0 que se assemelha a técnica dos romances Zero (1975), de Ignacio de Loyola Brandio ¢.A Festa (1976), de Ivan Angelo, mas, refletindo, em consonancia com as reflexdes de Antonio Candido (2000, p.140-162), a consciéncia do subdesenvolvimento regional, do que é um exemplo a presenga constante, na obta, do discurso radiofénico, ao contritio do que ocorre nos dois outros livros citadas, que privilegiam o discurso da imprensa escrita (jornal, revistas) e da televisio. O romance A Tercera Margem (1983) ~ embora produzido na gestio do ultimo governo militar brasileiro (Joo Batista Figueiredo — 1979-1985), €poca reconhecida como a da distensdo politica dos governos militares — apresenta enredo que aborda, também, como ocorre em Verde Vagomundo e em O Minossauro, a problemética da repressio da ditadura militar no Brasil. Na obra A Tereeira Margem € posto em questio 0 modelo repressivo ¢ burocratico absurdo implantado pelos militares no Brasil a partir do Golpe de 1964, E, assim, o medo, mais uma vez, revela-se na obra de Monteiro, que denuncia a incompeténcia administrativa ¢ a reptessio social naqueles apavorantes anos de chumbo. Pelo romance A Tereeira Margem, Benedicto Monteiro foi merecedor, num concurso literatio, de um prémio pela Fundacio Cultural do Distrito Federal em 1981, antes mesmo da publicacao do livro, Nao obstante o prémio recebido, A Terceira Margem & 0 livro mais fraco literariamente entre os dois analisados, sem caracteristicas de romance, pois hé nele sérios problemas de incoeréncia interna, muitas contradiges e repetices como que explicagio dos livros anteriores. Além do que a maioria dos fragmentos dessa obra é Rev MOARA Belém =. 27, p 96-110 jan/jun, 2007, NASCIMENTO, M. E 105 constituida de citagdes de historiadores, etndlogos, antropélogos, cientistas politicos, ingtiistas entre outros, que no passaram por uma claboracio romanesca, tornando-se, portanto, citagdes panfletitias da historia da ditadura militar pés-1964 ¢, sobretado da Amaz6nia brasileira: Ja que estou aqui ¢ tenho um projeto literitio, preciso assumir toda a necessidade de escrever este livro. Infelizmente, quando procufei Major Ant6nio para me ajudar, jé era tarde, Depois de ter descoberto 0 Verde Vagomundo e Miguel dos Santos Prazeres, vulgo Cabra~ da-Peste, esse militar vendeu suas vastas propriedades em Alenquer ¢ desapareceu pelo mundo (..) Procurei entio Paulo, o gedlogo, narrador dO Minossauro, que foi confidente de Miguel, Miguel dos Santos Prazeres, Paulo, depois de trabalhar numa equipe sismogréfica de pesquisa de petrSleo que atuava no Baixo-Amazonas, ficou enredado de tal forma na trama das palavras, ¢ permanece aprisionado nas formulagées de uma linguagem a tal ponto simplificada, que despreza completamente a sintaxe, 0 discurso ¢ a légica formal. (A Tetccira Margem, p. 28) Na obra a Terceira Margem, embora Miguel, personagem- elo da Tetralogia Amazénica, nao seja encontrado pelo narrador, continua sua trajetéria, narrando, entre outras historias, a sua poténcia € fertilidade sexual, ao frisar como foi deixando sua descendéncia na Amaz6nia — sete filhos (todos homens) com sete mulheres diferentes: uma cabocla, uma japonesa, uma libanesa, uma negra, uma nordestina, uma portuguesa e uma india Em A Terceira Margem, petcebe-se uma construcio natrativa inverossimil, “falsa”™, ja que a fala de Miguel surge na obra (ao bloco Segunda Margem) sem que essa personagem se faca presente nos limites Rev MOARA Belém 0.27.96 110 —_jan/jun, 2007, 106 Nartadores-esctitores-compiladores. romanescos € niio haja nenbuma estratégia no livro que possa justificar a ptesenga do discurso desta personagem no livro. E tal incoeréncia se agrava ainda mais quando se observa que o Gedgrafo, natrador- esctitor-compilador, procura Miguel até o fim da narrativa. Veja-se ‘um trecho ilustrativo sobre o discurso do narrador (Geégrafo): Antes mesmo de perguatar pelo hotel ou pela pensio da cidade, perguntei por Miguel dos Santos Prazeres. Uma pessoa ainda me respondeu perguntando: Miguel, o Cabra-da-Peste? Outra também me pergunton respondendo: Nao foi aquele que morreu queimado nos fogos de artificio? — Nio, ninguém sabe se ele morreu, outros dissetam. Falam que ele ainda esta vivo ¢ anda num regatio de comércio, alguns assevera (A Terceira ‘Margem, p. 51). Mesmo que © Comando apreenda nossos arquivos, seqlestre nossas fichas, incinere nossos felatérios ¢ interprete 4 sua maneita os nossos inquétitos, restaria 0 a © A exptessiio se baseia em observagdes de Anatol Rosenfeld quando discorre, ‘em seu ensaio “Literatura e Personagem’, sobre o lugat da “verdade” nos textos jornalisticos e cientifcos, entre outros, eo lugar da verossimilhanga na obra literétia thas ceguintes condigGes: "yfermo ‘erdadads” quando usado nas obras de arte on de fio (-) designa com freqiténcia qualquer cica como genuinidade, sncridade ox autenticidade (dermes que em geral visam & atitude subjetiva do axtor); ow a verossimilbangs, ito 6 ma exprusio de Aristtele ndo a adequarao qui que acontecen, rat agai que poderia tr acontaide; oa coorbncia interna no que tange ao mundo imagindrio das personages sitaydes ‘mimétieas; om meso a visio profunda ~ de ordem flosbfca, pricligca on rcoligica ~ da realidade”. Do mesmo enssio de Rosenfeld, pode-se tomar um trecho que serve para fandamentar a posigio da pesquisadora quanto a inverosimilhangs da Supracitada construsio natrativa no livro ‘4 Tercina Margen”: “quando chamamos de flso’ ume romanse trivial on uma fia mediore,foemo-ly por exemple, porque percébemas (que les se aplicam pacdries do conto de carechinha a stuagbes que pretendem representar 2 realidade cotidiana.” (ROSENFELD, Anatol. Literatura ¢ Personagem In: A Personagem de Figo, Sto Paulo: Perspectiva, 1976, p. 18-19). Rex MOARA Belém .27— 96-110 jan jun, 2007 NASCIMENTO, M. F 107 trinel da Hinguagem que tem me levado sempte a Miguel, dos Santos Prazeres, quer ele esteja num rio, num lago, num igarapé ou viajando num regatio entre Belém- Manaus-Belém, percorrendo as cores ¢ as distincias das Aguas. (A Terceira Margem, p. 180) Apesar da referida procura, por parte do Geégrafo, em A ‘Terceira Margem, a voz de Miguel, estlisticamente individualizada’, mostra-se sempre inserida na obra, semelhante a estrutura do romance O Minossauro, celatando a sua hist6ria, como se estivesse falando com © proprio Geégrafo, como comprova este fragmento: Ja que o senhor insiste, vou contat a minha histésia, mas por viagem”; “Nao senhor, continuo sendo Miguel dos Santos Prazetes. Nunca quis para mim nenhum filho. Eles sfio das mies deles, seguem sina crenga de suas artes (A Terceira Margem, p. 31). (O Senhor se alembra quando Ihe contei que ele se sujeitou a regar mata-pasto e manhurama naquele jardim de palacete¥ (A Terceita Margem, p. 114). Lhe juro que as palavras nfo me ajudam. Sempre pensei que essas coisas eram s6 pra fazer ¢ aio pra dizer, principalmente gravadas em fita ou escritas em livros. O ‘Major Anténio, por exemplo, s6 me petguntava das coisas do meu oficio ou da extensio e produgio da sua grande 5 A pessonagem Miguel dos Santos Prazeres tem sua existéncia ficcional primeiramente em Verde Vagomundo (1972), depois em O Minessanro (1975) er seguida na obra A Tercera Margem (1983). Houve um lapso de meméria do esesitos. Essa histéria do Compadre Franquilino sobre as plantas: “mata-pasto e manhurama’ foi contada pela personagem Miguel 20 gedgrafo Paulo no livro O Minosraur, p. 36-38. Rew MOARA Belém == n.27 96-110 —_janz/jun., 2007. 108 Narradores-escritozes-compiladores.. propriedade. Eu 6 sei Ihe dizer que ele gravou tudo 0 que cu disse naquela maquina. Jé 0 Dr. Paulo, porque patesque era gedlogo da equipe da Petrobris, queria saber de muitas outras coisas. Comecou me perguntando logo sobre 0 meu nome depois quis saber também do meu apelido. (..). Mas, sobre esse negécio de intimidade ninguém, nunca ninguém me perguntou sobre esses meus préstimos. Nao sei porque agora o senhor, como gedgrafo, estando paresque em missao de estudos, precisa de saber dessas minhas intimidades na rede e na cama, (A Terceira Margem, p. 163) No livro A Terceina Margem, a pretensio do Geégrafo de esctever um livto implica encontrar sua “gtande personagem”, 0 contador de hist6rias, Miguel. A partir da gravacio de suas histrias e por meio da montagem/colagem, o livro, segundo o narrador, estaria pronto: Se eu encontrasse Miguel, empunharia um gravador portitil e era s6 gravar as suas conversas ¢ as suas histérias sobte 0 Baixo-Amazonas. Nao podia haver maneira mais pritica de prender na fita magnética arealidade de Miguel. Depois, eta s6 selecionar as histérias, escrever as gravagées € fazer o trabalho de colagem numa boa diagramacio, Muitos escritores parece que tém usado com sucesso este método em varias oportunidades (A Terceira Margem, p. 30). Entretanto, nessa busca de sua personage, o Geégrafo nartador ao teorizar sobre a linguagem (como faz Paulo em O Minossauro) pulveriza suas idéias literatia, sociais e de linguagem, pela repeticio, Franco, ao discutir a defesa da técnica de montagem, afirma o seguinte: Rex MOARA Belém = a.27— 96-110 jan/jun,, 2007 NASCIMENTO, Bt F 109 O prestigio da montagem como principio estético aumentou muito com a defesa que dela fizeram, cada um a seu modo, autores como Bertold Brecht e Walter Benjamin. Para 0 autor do teatro épico, por exemplo, a esséncia da sociedade jé no pode ser mais revelada pela percepeaio emotiva da aparéncia social — ou, em outras palavras, e como diria 0 préprio Brecht: como podemos ainda hoje conceber que o sentido da grande corporacdo capitalista possa ser captada pela mera experiéncia individual? (..) Brecht conceben que o leitor, estimulado pela técnica do estranhamento adotado no seu teatro, pudesse decifrar em profundidade, através da reflexio, © material que lhe é oferecido pela obra para captar, num stibito despertar, a disparidade entre a aparéncia e a esséncia social. Para tanto a montagem construtiva, pot cle proposta, de fragmentos da realidade — ou de documentos ~ podetia ser um método adequado. Dessa maneita, o natrador “que sabia contar a historia inteira” parecia estar em franco proceso de desaparecimento daria lugar a um nartador-organizador. (FRANCO, 1998, 129) Sendo assim, Benedicto Monteiro, consciente ou inconscientemente, recorreu a estratégia de montagem enquanto principio norteador de sua producio romanesca, através do uso sistemitico de fragmentos. REFERENCIAS ANDRADE, Oswald. Memérias Sentimentais de Joi0 Miramar. Sio Paulo: Globo, 1997. ANGELO, Ivan. A Festa, Sio Paulo: Vertente Editora LTDA, 1976. BAKHTIN, Mikhail. Quests de Literatura e de Bstitica:'Teotia do romance. Sio Paulo, HUCITEC, 1990. Rev MOARA Belém = .27 96-110 jan. /jun., 2007, 10 Narradores-esctitores-compiladores... BENJAMIN, Walter. Magia ¢ Téonica, Arte Politica: ensaios sobre Literatura ¢ Histéria da Cultura. Sao Paulo: Brasiliense, 1994, BENJAMIN, Walter. Origen do Drama Barroco Alemiio, Sao Paulo: Brasiliense, 1984, BRAIT, Beth. A Personagem. Sio Paulo, Atica, 1993. BRANDAO, Ignacio de Loyola. Zero. Rio de Janeiro: Brasilia, 1976. BRANDAO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Pett6polis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999. v.3. BURGER. Peter. Teoria da Vanguarda, Coimbra: Veja, 1993, CANDIDO, Antonio, Literatura e Subdesenvolvimento, In: A Educacao pela Noite ¢ outras Ensaios. Sao Paulo: Atica, 2000. ‘CANDIDO, Antonio. A Nova Narrativa. In: 4 Fducagdo pela Noite e outros Ensaias. Sio Paulo: Atica, 2000. CASTRO, José Guilherme de Oliveira. A Viagem Mitica de Miguel dos Santos Prageres. Belém: UNAMA, 2001. ESTEVES, Anténio R. As Aventuras de Miguel dos Santos Prazeres, 0 Cabra-da-Peste, Vulgo Afilhado do Diabo, pelas Trilhas do Grande Labitinto Amaz6nico. Revista de Letras n. 34, Sao Paulo: UNESP. 1994. p. 35-47 FAUSTO Boris. Histiria Concisa do Brasil. Sio Paulo: Universidade de Sio Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2001. FRANCO, Renato. Itinendrio Politica do Romance Pés— 64: A Festa, Sio Paulo: UNESP, 1998. LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O Foco Narrative. Sio Paulo: Atica, 1985. LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela, Rio de Janciro: Francisco Alves, 190. MONTEIRO, Benedicto. Verde Vagomunda, Belém: Cultural CEJUP, 1991. MONTEIRO, Benedicto. 0 Minassaura, Belém-Para: CEJUP, 1990. MONTEIRO, Benedicto, A Tersira Margem. Belém: CEJUP, 1991. ROSENFELD, Anatol. “Literatura ¢ Personagem”. In: CANDIDO, “Antonio (Org). A Personagem de Figg. Sio Paulo: Perspectiva, 1976, SILVERMAN, Malcolm. Protesto e Novo Romance Brasileiro. Rio de Janeiso: Civilizacio Brasileira, 2000. XAVIER, Ismail. Alegoria, Modernidade, Nacionalismo. Revista Novos Ramos, So Paulo: Novos Rumos/Tnstituto Astrojildo Pereira, ano 5 n.16, 1990. Rex MOARA Belém = .27 96-110 —_—jan./jun., 2007.

Você também pode gostar