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RECHERCHE TRANSTEMPORAL
vivido – e com valor histórico, sob pena de não ser levado a sério, de
ser tomado por mentiroso, para aludir novamente a Platão.
Num estudo de 1968, sugestivamente intitulado Mimésis, Eric
Auerbach, reflectiu amplamente sobre a questão da “representação da
realidade na literatura occidental” (este é, aliás, o sub-título da obra),
postulando que a literatura é uma “interpretação do real” ( Auerbach,
1968: 549). Se atentarmos, de facto, na evolução diacrónica do
romance do século XX, podemos observar, sobretudo a partir dos anos
1910, um progressivo questionamento da referencialidade, o que
talvez possa ser entendido como um gesto de emancipação do artista,
da sua capacidade de percepção e de representação em relação à
realidade e à história. Trata-se daquilo que denominaremos a
descoberta – para aludir ao tema das nossa conferências – da
dimensão transtemporal da literatura, o poder de realização em si
mesma da obra de arte literária, face à precariedade do tempo humano
e à consciência cada vez mais aguda da relatividade. Não estará
justamente a grande potencialidade da literatura no seu carácter de
transposição do real e, por isso mesmo, de fingimento?
O poeta – em sentido lato – é um fingidor, porquanto cria um
mundo quimérico, irreal, ainda que tantas vezes nos apareça, a nós,
leitores, tão verdadeiro, tão próximo da nossa própria mundividência,
dos nossos sentimentos e atitudes... Parece-nos pertinente referir aqui
uma reflexão de Virgílio Ferreira (1991: 57) que, num ensaio
intitulado “Da responsabilidade artística”, coloca a questão:
2
Proust, Marcel, 1986: 282.
3
Ibidem.
4
Noção operatória que tomamos de Wladimir Krysinski (1981: p.12 e segt.) e que
pode sintetizar-se como o espaço correlativo ao espaço-tempo da escrita de um
romance.
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e afirmar, finalmente:
6
M. Raimond (1966).
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7
Proust, 1971: 215.
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A este propósito, a Segunda parte do primeiro volume Du côté de chez Swann,
intitulada «Un amour de Swann» pode ser considerada uma verdadeira «Comédia
Humana » à maneira de Balzac. Mesmo em termos de técnicas romanescas, trata-se
do único momento da obra em que temos uma narração na terceira pessoa, o que
implica um distanciamento que Proust não preconiza nem pratica mais na obra.
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.
Mas, nesse gesto, inventou um mundo, apropriando-se de uma
linguagem e de técnicas ligadas à sua arte. O que mais sobressai na
leitura da Recherche é a excepcional performance do narrador, a
forma como consegue gerir pontos de vista múltiplos, a facilidade
com que imbrica várias linhas diegéticas independentes, a própria
integração, no universo da ficção outros discursos, como o discurso
meta-literário. Este é o segundo nível de referencialidade, a que
chamaremos a referencialidade estética, isto é, a obra literária foi por
assim dizer emancipada pelo seu valor autotélico (logico-referencial)
pelo seu valor ficcional. A Recherche – como qualquer obra de arte
literária – cria um universo romanesco peculiar, distincto do mundo
real e que nós temos a possibilidade de visitar através das formas que
o constituem. Como formulou Genette (1991: 37) num estudo
intitulado Fiction et Diction o texto literário é – igualmente -
intransitivo na medida em que:
9
idem, p. 37.
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Bibliografia