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FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


CULTURA VISUAL E ENSINO DE HISTÓRIA:
IMAGENS DA ÁFRICA E DO BRASIL AFRODESCENDENTE
PROVA II

Priscila dos Santos Lopes


N° USP: 10326833

Questão 2) As produções cinematográficas brasileiras que retratam as questões relativas


à escravidão e a presença africana no Brasil, ao serem analisadas e questionadas quanto
ao seu valor histórico, permitem algumas considerações críticas. Produções de destaque
como Chico Rei, dirigida por Walter Lima Jr, Quilombo, com direção de Cacá Diegues e
Fio da Memória, Eduardo Coutinho, possibilitam uma análise conjunta capaz de
evidenciar certas aproximações e distanciamentos em relação às escolhas das
representações dos negros retratadas.
Chico Rei é um filme brasileiro do ano de 1985, com direção de Walter Lima Jr.,
que retrata a história de Galanga, um Rei do Congo que foi trazido ao Brasil na
condição de escravo, juntamente com seu filho Muzinga, do qual é separado ao chegar
nas terras brasileiras.
Nesta produção cinematográfica, percebe-se uma preocupação em balizar a
narrativa de Galanga em diversos tipos de fontes, inclusive na oralidade. Esta
preocupação é evidente no início da produção onde são citados os materiais nos quais a
obra foi baseada, contando com fontes escritas literárias, orais e a própria memória dos
negros. Esse cuidado com a utilização de diversas fontes demonstra uma certa
responsabilidade no tratamento do fenômeno apresentado. Cabe dizer também que não
se percebe uma hierarquia no tratamento das mesmas, estas possuem igual valor de
contribuição na construção da narrativa sobre o mito de Chico Rei.
Apesar de não serem encontrados relatos acerca de sua existência de fato, Chico
Rei é uma personagem fortemente presente no imaginário brasileiro, que tem em sua
imagem um símbolo heroico da resistência negra contra a escravidão. Essa concepção
de Galanga é fortemente reforçada e respeitada na construção cinematográfica.
Inicialmente o filme conta com uma contextualização do que foi, concretamente, a
escravidão no Brasil. Estes primeiros letreiros dão destaque ao fato de os negros
escravizados terem sido “ (...) destituídos de qualquer direito” e de serem forçados a
trabalhar ininterruptamente, mas também reforça sua esperança e “fé na liberdade”.
Essa noção de liberdade, apresentada desde o início é repetida ao longo do filme de
diversas formas e, já nas primeiras cenas, é retratada de maneira lírica e poética,
contemplada apenas pelo visível. A cena inicial retrata três escravizados fugidos,
quebrando suas amarras e indo em direção a um quilombo nas serras. É muito alegórico
este primeiro momento por pelo menos dois fatores: em primeiro lugar, a cena exprime
o valor da liberdade para os negros, a quebra das amarras do sistema escravista, a
libertação; em segundo lugar, esta libertação não se encontra pautada somente na quebra
das amarras, mas também na fuga para um quilombo, que tem valor simbólico de
liberdade. Em seguida, o filme explora os antecedentes da escravização no Brasil,
fazendo questão de denunciar a crueldade do sistema, que se inicia desde a aquisição de
escravos em África. Toda primeira parte do filme é voltada em contextualizar o
processo de escravização, em toda sua crueldade e desumanidade. Existe uma
insistência nesta produção cinematográfica em se evidenciar todos os tipos de torturas
que este sistema envolve, desde o batismo forçado até as mortes e torturas que os povos
negros sofriam. Os negros africanos são sempre lembrados de que serão separados de
suas terras, sua família e da vida como conhecem. Além disso, a travessia no mar é
devastadoramente cruel, contando com torturas, estupros e mortes. A ideia de que
aqueles negros, a partir do momento em que foram forçadamente tirados de sua terra,
são objetos, é expressamente dada quando o capitão do navio permite que se joguem
vinte negras ao mar em razão do excesso de peso. E depois de assistir a truculenta
travessia do mar, até a chegada no Brasil, uma fala do capitão é capaz de prenunciar as
demais mazelas das quais os negros serão vítimas, como se não bastasse seu sofrimento
até este ponto: “(...) há negros que estando no Brasil acabam ficando com saudades do
meu navio”.
Chico Rei e seu filho são encaminhados para trabalhar nas Minas Gerais e, no
momento de serem vendidos são separados um do outro. Agora, com o foco da narrativa
na história de Chico Rei, sua trajetória é marcada por um Senhor que lhe promete
liberdade na condição de que ouro lhe seja proporcionado através do trabalho na Mina.
A fé na liberdade é retomada aqui, visto que Galanga de fato conquista sua liberdade a
partir dos aparatos legais do sistema escravista. Neste mesmo momento temos Muzinga,
filho de Galanga, como escravo fugido em busca do Quilombo, de sua liberdade.
Muzinga recebe ajuda do padre que inicialmente acompanhou a busca de negros a
serem escravizados na África, mas que sofreu de uma crise de consciência sobre o
fenômeno da escravização. É interessante ver que o padre gostaria de frequentar o
quilombo, mas não é aceito por ser inimigo, no sentido de estar “do lado dos brancos”,
apesar de se redimir e ajudar Muzanga. Um paralelo interessante que pode ser feito
sobre essa tentativa do Padre em fazer parte do universo de resistência e reminiscência
das culturas negras africanas é em relação a noção de civilização. Muzanga expõe que o
Padre poderia contribuir à comunidade quilombola ao ensinar-lhes a ler, por exemplo.
Um dos membros, no entanto, adverte que de nada servem “ as letras dos brancos” para
o povo negro. Em Reflexos da África: Ideias e Representações sobre os africanos no
imaginário ocidental, estudos de caso no Brasil e em Portugal, Anderson R. Oliva
evidencia um caráter importante para a invasão do europeu no mundo africano: a
civilização. Os brancos estariam supostamente levando aos povos africanos a
civilização concebida e conhecida por eles. Esta advertência dentro do quilombo,
contudo, quebra um pouco com essa noção, pautada na ideia de que não faz sentido
“agraciar” aos negros com elementos brancos. Para eles, a civilidade europeia não tem o
mesmo valor em suas sociedades e organização.
O filme não deixa de denunciar e deixar claras as torturas vividas pelos negros
no processo de sua desumanização e escravização, mas traz um olhar esperançoso, um
olhar que evidencia a luta e resistência negra. A liberdade do quilombo é também a
sobrevivência da cultura negra, é a luta para manter a cultura tribal viva.
A produção tenta representar duas linhas de resistência dentro do sistema de
escravidão: a dos quilombos, ilegal e arriscada e a de Chico Rei, que, através dos meios
legais é capaz de garantir não somente sua liberdade como também a de muitos outros
negros. Chico Rei, desde o momento em que foi tornado escravo, via sua liberdade
como liberdade de seu povo e para tanto conquistou ferramentas inerentes ao sistema
para conquista-la. O filme é capaz de mostrar não somente a resistência negra dentro do
Brasil, mas também a ideia de criar uma nova vida dentro do continente estranho. Como
nas pinturas de J. Moritz Rugendas, a produção cinematográfica também constrói a
ideia de uma nova vida nas américas, que mescla as culturas negra e branca. Essa
mescla é visível na irmandade do Rosário, da qual Chico Rei faz parte quando conquista
sua liberdade. Essa mescla das culturas é retratada também por Debret, por exemplo,
que representa em suas pinturas as festas religiosas das igrejas que contam com a
participação dos negros, inclusive em sua construção, com o acúmulo de ouro
escondido nos cabelos dos negros escravizados e trabalhadores das minas, cena que é
retratada também no filme.
De uma maneira geral, o filme tenta representar a história do heroico, e muito
provavelmente imaginário, Chico Rei sem esquecer os aspectos mais importantes da
sociedade escravista e dos quilombos. A preocupação para que o filme funcione como
um aparato histórico é evidente, fazendo com que os entes tratados ultrapassem o senso
comum acerca das noções de escravidão. Chico Rei é um filme muito rico e informativo
a tratar das questões da escravidão.
A análise de Chico Rei permite uma série de aproximações com a obra
Quilombo, filme do ano de 1984, que retrata a história do Quilombo de Palmares. Assim
como em Chico Rei, essa obra conta com um texto inicial introdutório e informativo
acerca das condições da escravidão vivida pelos negros trazidos da África, bem como a
explicação do que seriam os chamados quilombos. A primeira cena apresentada é muito
forte e remete inclusive a uma pintura de Debret, sobre um dos aparatos de tortura e
castigo utilizados para punir os escravos. Nesta cena o escravo é torturado até sua
morte. Com exceção desta chocante e primeira cena, o filme não denuncia tão
fortemente a violência sofrida pelos negros a fim de fazer-lhes fugir para o Quilombo.
O filme, neste caso, foca-se quase que inteiramente em tratar do Quilombo dos
Palmares sem explorar muito explicitamente as condições da sociedade na qual se deu o
advento deste famoso Quilombo. A obra perpassa todo um processo de sucessão de
“chefes” dentro do quilombo bem como seus processos na construção de resistências
armadas, mas não explora tão profundamente as personagens apresentadas. Alguns
elementos, porém, são representados quase que exatamente da mesma forma que na
produção acerca de Galanga. Ganga Zumba, um dos líderes de Palmares, assim como
Chico Rei, funciona como uma espécie de conciliador entre brancos e negros. Chico Rei
queria que todos os negros fossem livres, pautados na liberdade da alforria, sistema
estipulado pelos brancos, e para isso, previa relações sociais bem estabelecidas entre
brancos e negros. Da mesma forma, Ganga Zumba acreditava na conciliação como
forma de acabar com as guerras entre brancos e negros e contra o Quilombo.
Neste segundo caso a tentativa de tornar amigo o inimigo fez com que se
desenrolassem uma série de tentativas cada vez mais brutas com o fim de destruir
completamente o Quilombo dos Palmares. Zumbi, em oposição a Ganga Zumba, lidera
a resistência através da luta.
Nesta obra o quilombo é também reforçado como sinônimo de liberdade e de
cultura africana viva. Algumas escolhas de representação para essa produção,
entretanto, promovem um olhar um pouco menos crítico para a situação retratada.
Algumas questões trazem concepções como por exemplo a existência de uma harmonia
entre raças dentro do Quilombo, de maneira utópica, a considerar as três mulheres de
Ganga Zumba, uma negra, uma mulata e uma branca. Essa noção é reforçada ao longo
do filme em algumas cenas, como por exemplo quando Zumbi decide não invadir recife,
para não fazer dos inimigos escravos, para que não ajam como os brancos. Essa escolha
de representação sugere uma noção da luta moderada. Toda ideia de Zumbi dos
Palmares e do Quilombo retratada parece ser muito mais romântica do que histórica,
muito mais uma escolha cinematográfica do que crítica.
A produção cinematográfica O fio da memória, se distanciando do gênero dos
filmes anteriormente retratados é um documentário que mescla o conhecimento
histórico do passado e a memória do negro do presente. Menos do que uma produção
que busca narrar a vida de um negro de destaque, seja na história, seja no imaginário
nacional, a obra atravessa diversas temporalidades a tratar do negro no Brasil,
considerando o advento do fim da escravidão. Neste longa metragem são exploradas, de
maneira muito sensível as memórias construídas, coletiva ou individualmente das
populações negras. São contempladas suas experiências únicas e sua memória histórica,
no sentido do conhecimento de seu próprio passado enquanto povo negro e descendente
de outros negros, talvez até escravos. Partida dos relatos de Gabriel dos Santos, contidos
em uma espécie de diário, as memórias são construídas e interligadas, não
cronologicamente ordenadas. O olhar voltado para os negros apresentados não deprecia
suas histórias e vida, em verdade, o olhar se estabelece a partir do viés do negro que se
orgulha de quem é e de sua trajetória e ancestralidade. Existe uma preocupação em se
retratar a reinvenção da vida por parte das populações negras, novamente nos remetendo
a alegoria de Rugendas, pautadas, não somente, mas também nas reinvenções religiosas,
não necessariamente cristãs, mas adaptadas de África ao novo ambiente nas Américas.
Existe uma preocupação informativa no início do documentário, assim como nos filmes
anteriormente tratados, que fala de maneira breve e concisa sobre as temporalidades da
escravidão e alguns de seus significados (questões também relatadas nos escritos de
Gabriel).
As temáticas da religião permitem aproximações com questões retratadas nos
filmes anteriormente analisados, principalmente no que diz respeito às mesclas e o
novo, criado no Brasil. As três produções aqui comparadas demostram o papel de
importância estabelecido pelas religiões para o povo africano e seus descendentes.
Outro importante aspecto dessa produção são os relatos das crianças nas escolas
e o questionamento de suas identidades e identificação com os povos e história da
África e sua experiência no Brasil. Percebe-se que a construção de suas individualidades
é descolada, mesmo que parcialmente, do que se conhece como História “oficial”. O
texto de Federico Navarrete, Las fuentes indígenas: más allá de la dicotomía entre
historia y mito, mesmo que não tratando do caso negro, permite uma reflexão acerca de
como essa memória partilhada pelos povos afrodescendentes contém caráter histórico,
mesmo que misturados com narrativas míticas e que o mito não excluí o acontecimento
como História.
Enxergo que, assim como acontece em Chico Rei, existe na direção de Coutinho
uma grande preocupação com a memória do negro e sua identificação com seu passado
e história, há uma grande sensibilidade a tratar das reinvenções do negro e de sua vida
num território onde mais de quinhentos mil africanos foram escravizados. A oralidade
aqui ganha relevo e importância, e a escolha estilística do filme propõe os próprios
afrodescendentes como oradores de seu passado, algo que talvez tenha faltado em
Quilombo.
Resumidamente conclui-se então que os três filmes estabelecem, diferentemente,
percepções sobre o negro e o sistema escravista no Brasil e, de certa forma, suas
reminiscências. No caso de Chico Rei percebe-se um interesse em fazer da produção um
ente provido de historicidade e respeito à memória dos negros, assim como ocorre na
produção de Eduardo Coutinho, que valoriza também a oralidade como fonte de
conhecimento sobre um passado histórico. Com exceção do filme Quilombo, observo
que as produções atuaram criticamente e de maneira inclusiva na construção de uma
produção visual capaz de levantar questionamentos e reflexões acerca do passado
escravista brasileiro. Quilombo, apesar de também tratar a resistência negra atua talvez
de maneira menos incisiva na crítica ao sistema escravista e na percepção dos negros do
que de fato foi este sistema. Em nenhum dos casos existe uma depreciação da visão do
negro e do afrodescendente que constrói sua vida, forçadamente ou não, no Brasil. As
opções artísticas, em cada caso, incumbidas de alto teor ideológico, proporcionam
interessantes construções reflexivas sobre a história negra elaborada nas terras
brasileiras. No caso de Quilombo, diferentemente dos outros filmes, essa opção
estabelece uma visão menos centrada na visão do negro acerca de seu próprio passado.

Bibliografia

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de – Fontes Visuais, cultura visual, história visual.


Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.
23, n. 45, pg. 11-36, 2003. http://www.scielo.br/pdf/rbh/v23n43/16519.pdf

NAVARRETE LINARES, Federico. Las fuentes indígenas: más allá de la dicotomía


entre historia y mito. Disponível em
http://www.revistas.unam.mx/index.php/ecn/issue/view/845

SLENES, Robert. As provações de um Abraão africano: a nascente nação brasileira na


Viagem alegórica de Johann Moritz Rugendas, in Revista de História da Arte e
Arqueologia, n. 2 (1995-1996), Campinas, IFCH, UNICAMP, pg. 271-294.

Excertos dos textos de textos de Debret e suas ilustrações.

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