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Estação Carandiru - Dráuzio Varella

O livro de Varella reúne registros sobre seu tempo de trabalho voluntário em campanhas de
prevenção à AIDS, dentro do maior presídio do país à época, a Casa de Detenção do
Carandiru, com pelo menos 7.200 presos, chegando a atingir 9.000 em alguns anos. É
interessante quando o autor comenta, já no início do livro “neste livro, procuro mostrar que a
perda da liberdade e restrição do espaço físico não conduzem à barbárie, ao contrário do que
muitos pensam. Em cativeiro, os homens, como os demais grandes primatas (orangotangos,
gorilas. chimpanzés e bonobos), criam novas regras de comportamento com o objetivo de
preservar a integridade do grupo” (pp. 05). Apesar da comparação feita aos primatas, que
parece controversa frente à noção de “barbárie”, Varella deixa claro que pouco se conhece da
organização e da ordem estipuladas dentro dos complexos penais, pautadas numa espécie de
“código de conduta penal”, com uma série de regras e leis que são rigorosamente aplicadas
por parte dos detentos. Deste modo, o autor tenta construir, ou melhor, reconstruir a vida no
presídio a partir de seus nexos e em seus próprios termos. Antes de evocar as questões
trabalhadas pelo autor, é importante notar que entre seus objetivos com a escrita da obra, em
tom jornalístico, Dráuzio deixa claro que sua obra pressupõe a compreensão desta ordem
dentro da cadeia e não a defesa dos direitos humanos ou a proposição de soluções ao sistema
carcerário.
Ao longo da obra, é perceptível a quebra de alguns estereótipos por parte do médico, uma vez
que ele passa a se tornar uma constante dentro daquele ambiente. Com o tempo, o médico se
torna confidente e amigo de alguns detentos, explorando seus testemunhos individuais de
temporalidades do passado, do presente e do futuro. A obra se inicia com um trabalho
descritivo de ordem geográfica-espacial da Casa de Detenção, explorando as divisões dos
pavilhões, a nomenclatura usual dos espaços (galerias, xadrezes, etc) e a distribuição dos
encarcerados de acordo com a lógica de separação entre os pavilhões. A noção de ordem diz
respeito inclusive à localização dos detentos em cada pavilhão, onde alguns pressupõe a
segurança dos “jurados de morte”, outros dispõem os reincidentes, os cristãos, entre outros.
Neste sentido existe uma ordem social que permeia o complexo. Inicialmente a Detenção
serviria para abrigar detentos à espera de julgamento, posteriormente se transformando em
uma prisão geral.
O autor segue tratando especificamente dessa ordem social própria da Casa, discorrendo
sobre a rotina dos detentos, a divisão laboral, contando com faxineiros, carregadores,
carteiros, burocratas, etc. Os poucos funcionários do complexo são distribuídos entre
carcereiros e guardas na entrada do presídio, principalmente. Um discurso registrado por
Varella quando da chegada de novos detentos expressa claramente o pensamento punitivista
proposto pelo projeto carcerário brasileiro:

“Vocês estão chegando na Casa de Detenção de São Paulo para pagar


uma dívida com a sociedade. [...] Aqueles que forem humildes e respeitarem a
disciplina, podem contar com os funcionários para ir embora do jeito que a
gente gosta: pela porta da frente com a família esperando.” (pp. 14)

Após sua análise descritiva de apresentação do complexo, o autor nos leva a reconhecer
humanidades subjetivas nos detentos. Com um tom de anedota, Varella dá voz aos
encarcerados que contam suas histórias, seus dilemas, suas problemáticas, seus valores e sua
moral. Sem uma temporalidade rigorosamente marcada, o autor deixa os relatos “suspensos”,
mas dá espaço a um outro tipo de visão acerca dos encarcerados. Não só o testemunho de
suas condutas antes do encarceramento, a experiência própria dos detentos na Casa permite a
reconstrução de suas identidades e subjetividades, uma vez que à eles podem ser associadas
tarefas artesanais, como à produção de bolas de futebol, e tarefas mais delicadas, como a de
enfermeiros, cujo certos detentos possuem habilidades que chegam a surpreender e auxiliar o
médico. A obra não se propõe a falar de verdades, pelo menos não explicitamente, de modo
que o registro é dado a partir da ótica do autor que em sua experiência compreendeu, pelo
menos em partes, os termos de convivência dentro do presídio. O autor associa cada espaço
do presídio, no qual ele passou a circular livremente com o tempo, à história de um detento,
construindo assim, em sua obra, lugares de memória dentro do próprio complexo.
A obra se encerra com um breve relato acerca do massacre ocorrido no pavilhão nove da
Casa. De maneira rápida, o autor expõe os momentos de tensão, barbárie e violência extrema
que tomou conta do pavilhão, a partir de uma ação policial, que tirou a vida de, pelo menos,
centenas de detentos.
“Estação Carandiru” evoca o cotidiano da Casa de Detenção presenciado por Varella, de
modo que as noções de verdade e mentira, certo e errado não encerram a vida dentro do
presídio. A ideia de compreender a vida lá dentro a partir de seus próprios nexos permite que
aqueles que não imaginam o funcionamento do presídio, possam enxergar a humanidade dos
detentos, entender as problemáticas do encarceramento em massa (apesar de este não ser um
objetivo do autor), e talvez compreender que da maneira como é proposto o encarceramento,
não existe preocupação social com os detentos que tem que encontrar seus próprios meios
para sobreviver ao espaço precarizado, ao acesso negado à cuidados básicos e dependem da
justiça que pune apenas os mais pobres à margem da sociedade.

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