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1. A EXPERIÊNCIA DO CÁCERE
O que é o cárcere?
2
Idem ESPEN.
3
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 29ª ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2004, p.11.
2
envolvem não só o corpo do condenado, mas seu psicológico e sua alma 4. Entender
o cárcere é entender o conceito de indivíduo, que se esvazia no complexo sistema
de sua anulação e criminalização5 de condutas, cujo principal objetivo é neutralizar o
indivíduo através de disciplinas.
É complexo pensar o cárcere, e quanto mais o fazemos, mais difícil fica a
resposta à indagação sobre o que ele é. É possível que cada pessoa, ao ser
questionada sobre o que entende por cárcere, apresente uma resposta distinta da
outra. Contudo, em uma coisa todos concordam: o cárcere não é um lugar bom.
“Cadeia é um lugar povoado de maldade”. 6 Só quem passou pelo cárcere pode
realmente dizer com segurança o que ele é.
A maioria das pessoas sabe que o indivíduo, quando é mandado para o
cárcere, é submetido a condições regradas de vida e, sem ainda tocar no ponto
chave, é submetido a tais regras para aperfeiçoamento próprio e possível reinserção
à sociedade (ideologia da ressocialização). Qual crença fundamenta a ideia geral de
que o indivíduo poderá se regenerar num local em que é submetido a constante
vigilância, regras duras de convivência sob condições tensas de violência, onde
imperam condições precárias de vida e, em que é sujeitado a um constante sistema
de neutralização de sua individualidade? Pensar que as pessoas são mandadas ao
cárcere para cumprir uma pena e serem ressocializadas é um mito, um delírio 7. O
cárcere não faz isso, pois é um lugar em que pessoas perdem essa característica de
indivíduos, tornam-se animais enjaulados, uma massa de criaturas em uma
instituição totalizante, que tem como função real - e esse é o ponto chave - a
segregação de classe, neutralização do indivíduo e consequentemente sua
desumanização. Podemos dizer que o cárcere é uma instituição em que o indivíduo
que ali está, por um curto ou longo período, “leva uma vida fechada e formalmente
4
Op. Cit. Vigiar e punir...p. 83 e 84.
5
“(...) os teóricos do conflito representam o processo de criminalização, como um processo no qual
grupos poderosos conseguem influir sobre a legislação, usando as instituições penais como uma
arma para combater e neutralizar comportamentos de grupos contrários” (BARATTA, Alessandro.
Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Introdução à Sociologia do Direito Penal. 3ª ed.
Tradução e prefácio Juarez Cirino dos Santos. Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002,
p.129).
6
VARELLA, Dráuzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 12.
7
“Prender alguém, mantê-lo na prisão, privá-lo de alimentação, de aquecimento, impedi-lo de sair, de
fazer amor etc., é a manifestação de poder mais delirante que se possa imaginar” (FOUCAULT,
Michel. Microfísica do Poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 28ª
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p.134.
3
8
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974,
p.15.
9
PORTAL de notícias UOL. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/20
20/09/24/elias-maluco-oea-cobrou-governo-brasileiro-por-pena-cruel-antes-de-morte.htm>. Acesso
em 08 jun. 2021.
10
NEGRELLI, Andreia Maria. Suicídio no sistema carcerário: análise a partir do perfil
biopsicossocial do preso nas instituições prisionais do Rio Grande do Sul. Dissertação de
mestrado. PUC, 2006, p.37.
11
Segundo Günter Jakobs, o direito penal do cidadão é o direito de todos. Já o direito penal do
inimigo é constituído contra este. O direito do cidadão visa manutenção das normas, já o do inimigo
cria normas para combater perigos. (JAKOBS, Günter. Direito Penal do Inimigo noções e críticas.
Org. e trad. André Luis Callegarim, Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Ed., 2007, p. 30).
4
Fazendo uma análise bem fria da situação, a gente, às vezes, exige deles
um comportamento dentro dos padrões morais nossos, mas só que eles não
conhecem... a maioria não conhece nossos padrões morais, porque eles já
nascem e crescem entre a miséria e a violência, então, o código moral
deles é o código da delinquência (sic).13
13
PRADO, Josemir José Fernandes. Diário de um detento. Entrevista concedida a Marília Gabriela.
Programa Gabi. Emissora Rede TV. Ano 2001. 9:28 minutos. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=8Bv3NO5ymQo>. Acesso em 06 de jun. 2021.
5
Assim o indivíduo vai cedendo aos poucos, acostumando-se, por assim dizer,
a “esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que
14
SANTOS, Juarez Cirino. A criminologia radical. Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2006, p. 83
15
Idem. Criminologia radical…p. 82
16
Se o principio da pena é sem duvida uma decisão de justiça, sua gestão, sua qualidade e seus
rigores devem pertencer a um mecanismo autônomo que controla os efeitos da punição no próprio
interior do aparelho que os produz (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir - nascimento da prisão.
Tradução de Raquel Ramalhete. 29ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, p. 205)
17
Idem. Vigiar e punir...p. 117.
6
2. SUPERLOTAÇÃO
18
Idem. Vigiar e punir...p. 117.
19
Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP. Disponível em: <https://www.cnmp.mp.br/portal/
relatoriosbi/sistema-prisional-em-numeros>. Acesso em 29 dez. 2020.
7
Aos nos debruçarmos sobre esses números, temos de considerar que eles
compõem uma realidade triste, perversa e que espelha a desigualdade em nosso
país, onde nem todos têm acesso à justiça devido a fatores de ordem econômica,
social...
20
CARDOSO, Helena Schiessl; NUNES, Leandro Gornicki; GUSSO, Luana de Carvalho. Criminologia
contemporânea: crítica às estratégias de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p.
121.
21
FIGUEIREDO, Alcio Manoel de Souza. Acesso à justiça: uma visão sócio-econômica. 2002.
Artigo. Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR. Disponível em: file:///D:/Users/Ezequiel/Downloa
ds/72357-299962-1-PB.pdf. Acesso em 15 de out. 2020.
8
22
Superior Tribunal de Justiça. Disponível e: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicaca
o/Noticias/14102020-STJ-confirma-decisao-que-mandou-soltar-todos-os-presos-do-pais-que-tiveram-
liberdade-condicionada-a-fianca.aspx>. Acesso em: 29 dez. 2020.
23
Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunic
acao/Noticias-antigas/2017/2017-07-26_08-07_Excesso-de-prazo-nao-pode-ser-constatado-apenas-
por-soma-de-prazos-processuais.aspx>. Acesso em 29 dez. 2020.
24
BRASIL. Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/533204-
especialistas-sugerem-aumento-de-penas-alternativas-para-reduzir-superlotacao-nos-presidios/>.
Acesso em 29 dez. 2020.
25
Portal Conectas. Disponível em: <https://www.conectas.org/noticias/10-medidas-para-o-sistema-
prisional?
gclid=CjwKCAjwn9v7BRBqEiwAbq1Ey7fy2psDQlp1u2Jb5gjsp06SdJrW6hp8CC6Qgbs522Qafthq_bB7
LBoCUWwQAvD_BwE>. Acesso em 29 dez. 2020.
9
27
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1994, p. 14.
10
Depreende-se das questões vistas acima que a violência passa a ser o meio
principal de segregação, aliada à pobreza e a um sistema que se vale de ambos
para definir quem é quem na escala social. Disso, inevitavelmente, surgem aspectos
definidores que são o mote para o que chamamos de coisificação ou
desumanização do ser humano, aqui entendido, é claro, como o pobre, pois as
classes mais abastadas estão longe dessa ressignificação.
29
Op. cit. A criminologia radical. p. 11 e 12.
11
Se se consome algo, sem refletir, coisa também se torna, pois faz parte de
um sistema de coisificação, de objetificação do ser para um simples consumidor.
30
LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; LEÃO REGO, Walquíria Gertrudes Domingues. Atualidade
da Reificação de Marx como Instrumento da Análise de Relações Jurídicas e Sociais.
Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ln/a/HG7ChyVdLb9kQRHnSxWK45m/?lang=pt>. Acesso em 8
de jun. 2021.
31
ADORNO, Theodor W. Industria Cultural e Sociedade. Traduzido por Juba Elisabeth Levy. São
Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 50.
12
A exclusão social é endêmica. O cárcere, neste caso, apenas reflete algo que
está no seu entorno: a exclusão de alguns passa a ser quase uma necessidade ao
modelo capitalista, principalmente àqueles que não se adaptam a este modelo, os
não-consumidores, logo, precisam dar espaço para os que o são.
32
ANDRADE, C. D. Obra poética. Volumes 4-6. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989.
33
CARDOSO, Helena Schiessl. NUNES, Leandro Gornicki. GUSSO, Luana de Carvalho Silva.
(organizadores). Criminologia Contemporânea: crítica Às estratégias de controle social. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 79.
13
35
Portal de Notícias da BBC Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-
37852352>. Acesso em 29 dez. 2020.
14
Entretanto, indicar que a mídia, por vezes, não só divulga, mas fomenta a
violência quando a exibe como uma mercadoria – e é isso que é, pelo menos para
muitos programas - é também negar que a violência é um fato social real. É sabido
que nos primórdios da vida em sociedade, quando os primeiros seres humanos já
perambulavam pela terra, a violência era uma ferramenta de proteção contra
animais e também outros grupos humanos, mas no sentido de garantir a
sobrevivência, de manutenção da prole e do grupo. Contudo, mesmo nesse
longínquo período em que os caçadores-coletores seguiam a marcha da evolução,
sabe-se que esta só foi possível por uma característica bem peculiar: a compaixão.
Pode parecer estranha essa afirmação, já que as imagens que temos dos homens
primitivos estão sempre ligadas a indivíduos brutos, insensíveis e prontos a atacar
ao menor movimento. Entretanto, segundo pesquisas arqueológicas e
antropológicas, os primeiros grupos de seres humanos só sobreviveram porque
desenvolveram um senso de cuidado e proteção entre os seus, permitindo que sua
descendência se perpetuasse.
deeply about each other, is often disregarded. Yet despite its subtlety, evidence for a rather unique
sensitivity persists in challenging our images of our ancestors and comes across even from some of
the earliest periods of prehistory, markedly more widespread than we might suppose.(tradução livre)
SPIKINS, Penny. How Compassion made us human - The New Story of Human Origins. New
York: Pen and Sword, 2018, p. 43. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/3267183
60_How_Compassion_Made_Us_Human_The_origins_of_tenderness_trust_and_morality>. Acesso
em 29 ago. 2020).
38
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Obras Completas. v. 18. Tradução Paulo César de
Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2010. p. 51.
39
ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos. Uma história dos perversos.
Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 121. Livro eletrônico disponível em:
<http://lelivros.love/book/baixar-livro-a-parte-obscura-de-nos-mesmos-elisabeth-roudinesco-em-pdf-
epub-e-mobi-ou-ler-online/>. Acesso em 24 de set. 2020.
16
Na citação de Roudinesco vemos que ela levanta certas questões sobre essa
utopia do fim da perversão. É de grande valia pensarmos sobre suas palavras, já
que o pano de fundo sobre o qual ela faz tais indagações, modernamente falando,
foi a sociedade nazista, cujo lema inicial tinha tudo a ver com uma limpeza étnica e o
fim da criminalidade pelo uso da violência, e os resultados disso todos conhecem.
Semelhante ao que nos ocorre hoje, em que o poder estatal decide, acima de outras
considerações humanísticas, quem está liberto ou quem está preso, quem vive ou
quem morre, “os nazistas haviam se arrogado no direito de decidir quem devia ou
não devia habitar o planeta Terra”.40
CONCLUSÃO
40
Ibid. A parte obscura de nós mesmos...p.95
17
- BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor W. Industria Cultural e Sociedade. Traduzido por Juba Elisabeth Levy.
São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 50.
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1994.
FIGUEIREDO, Alcio Manoel de Souza. Acesso à justiça: uma visão sócio-econômica. 2002.
Artigo. Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR. Disponível em: file:///D:/Users/Ezequiel/
Downloads/72357-299962-1-PB.pdf. Acesso em 15 de out. 2020.
__________Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 29ª ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2004.
JAKOBS, Günter. Direito Penal do Inimigo noções e críticas. Org. e trad. André Luis
Callegarim, Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007.
ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos. Uma história dos perversos.
Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 121. Livro eletrônico disponível em:
<http://lelivros.love/book/baixar-livro-a-parte-obscura-de-nos-mesmos-elisabeth-roudinesco-
em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/>. Acesso em 24 de set. 2020.
SANTOS, Juarez Cirino. A criminologia radical. Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2006, p. 83
SPIKINS, Penny. How Compassion made us human - The New Story of Human Origins.
New York: Pen and Sword, 2018, p. 43. Disponível em: <https://www.researchgate.net/public
ation/
326718360_How_Compassion_Made_Us_Human_The_origins_of_tenderness_trust_and_m
orality>. Acesso em 29 ago. 2020).
VARELLA, Dráuzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.