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CASTRO E SILVA, Anderson Moraes.

Nos braços da lei:


O uso da violência negociada no interior das prisões.
Rio de Janeiro: e+a, 2008. 170 p.

ADRIANA TAETS-SILVA

Pesquisas acadêmicas que tenham como ASP, por vontade própria, escolhe uma carreira
objeto o agente de segurança penitenciária profissional que faz com que ele fique confi-
ainda são raras no Brasil. Os poucos estudos nado aos muros do presídio boa parte do seu
existentes privilegiam, na sua maioria, aspectos dia, em contato direto com essas pessoas que
psicológicos ou da saúde de tais profissionais. a sociedade optou por segregar, tendo que
É possível acessar um certo número de artigos aprender – assim como o preso – as regras que
publicados sobre o tema, teses e dissertações regem o convívio no cárcere, para no final do
são mais raras, livros publicados cabem nos dia voltar ao convívio da sociedade mais am-
dedos de uma só mão. Como exemplo de um pla, seja com seus familiares ou amigos que não
desses livros raros, temos o de Anderson Mo- possuem ligações com o sistema penitenciário.
raes Castro e Silva: Nos braços da lei. O uso da Se a realidade do agente penitenciário é tão
violência negociada no interior das prisões. singular quanto a da pessoa presa, por que ela
A produção acadêmica nacional sobre as re- chama tão pouca atenção do mundo acadê-
lações que se dão dentro do cárcere tendem a mico? Ao avaliar a literatura nacional, Castro
privilegiar o olhar, ou a situação, ou ainda as- e Silva não encontra respostas. A preferência
pectos psicológicos e da saúde do detento. Cer- acadêmica pela pessoa presa, em detrimento
tamente isso se dá pelo fato de que é o preso do guarda, ou até mesmo em detrimento da
quem se encontra em uma situação de exceção: relação entre presos e guardas, não foi ainda
tendo sido julgado e condenado por um crime pesquisada a fundo. O que se tem hoje, aqui
que supostamente cometeu, ele é separado da e ali, são pesquisas que focalizam um ou ou-
sociedade, e tem de cumprir pena de restrição tro aspecto desta profissão, cada qual com seu
de liberdade em algum presídio legalmente olhar específico acerca das diversas facetas de
instituído. A partir de então, ele precisa apren- um agir que pretende ressocializar e ao mesmo
der as regras da prisão, passa a sofrer muitas tempo disciplinar as pessoas que foram segre-
das mazelas típicas do sistema penitenciário, é gadas formalmente do convívio da sociedade1.
muitas vezes alvo da violência dos guardas, de- A pesquisa realizada por Castro e Silva acer-
senvolve patologias típicas daqueles que ficam ca das concepções que os agentes de segurança
confinados em espaços muito pequenos e que penitenciária têm sobre o uso da violência em
possuem pouco contato com a sociedade mais suas interações com as pessoas presas é devi-
ampla. damente contextualizada, em seu livro, com a
A realidade dos agentes de segurança pe- experiência do próprio autor enquanto sujeito
nitenciária, no entanto, apesar de bastante que já exerceu a profissão de guarda. No mo-
diferente daquela que marca a experiência das mento da pesquisa, o autor já havia sido exone-
pessoas presas, parece ser também peculiar: o rado da função para exercer o cargo de policial

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civil, e com isso, o pesquisador se coloca no ponto inicial de sua pesquisa – a curiosidade
texto como uma pessoa distante, porém pró- etnográfica que marca os bons antropólogos:
xima – ele conhece os códigos, mas por estar como, afinal, as coisas funcionam, se elas não
afastado já há algum tempo do convívio pri- seguem as regras estabelecidas de antemão?
sional, desconhece a realidade atual do sistema A regra, para o autor, é norteada pela le-
penitenciário e das circunstâncias que marcam gislação penal, que diz como os agentes de
a atuação dos agentes de segurança penitenci- segurança penitenciários devem se portar em
ária no momento em que realizou a pesquisa. serviço, a maneira como devem se dirigir aos
Descrever o dia a dia da profissão de um detentos, como devem reagir em caso de algu-
agente de segurança penitenciária é uma das ma transgressão ou indisciplina por parte do
tarefas que se propõe o autor. À maneira do preso. A regra, neste caso, é a Lei. No entanto,
etnógrafo que descreve os costumes cotidianos em sua pesquisa de campo, o autor encontra
de uma tribo distante, Castro e Silva oferece ao um abismo entre lei e fato. Diferentemente
leitor a possibilidade de vislumbrar uma reali- de autores clássicos, como Geertz (1998), por
dade bastante diferente da sua: o autor conta exemplo, que ao verificar tal abismo se propõe
como se dá a entrada do guarda no presídio, a observar as diversas relações entre leis e fatos,
descreve a maneira como ele deve se portar e a maneira como uns influenciam ou definem
diante dos presos, dá exemplos de atividades os outros, Castro e Silva opta por procurar
realizadas pelos guardas, identifica cada um dos entender como os fatos acontecem, cotidiana-
setores que compõem o presídio e, principal- mente, em detrimento da lei. Sua proposta é
mente, relata como se dão as negociações em procurar entender a maneira como as relações
caso de indisciplina do preso. dentro do presídio Hélio Gomes subsistem,
No entanto, para além da descrição, o au- mantendo certo equilíbrio de forças, apesar de
tor coloca ao leitor diversas questões acerca do aconteceram de maneira contrária ao que di-
funcionamento do sistema sobre o qual ele pes- zem os textos da lei. O texto do autor, con-
quisa. Para que o leitor possa se contextualizar sequentemente, é formulado a partir de um
acerca das inquietações do autor, ele descreve pano de fundo pautado nas discussões acerca
não apenas o sistema como ele é, mas também do legal e do ilegal, e das consequências que
como ele deveria ser: o texto é repleto de ci- tais relações assumem nas instituições estatais
tações sobre as orientações legais que determi- brasileiras.
nam o funcionamento de um presídio. A violência negociada aparece como o con-
Em uma tensão constante entre o que é e ceito central do livro. São as negociações que
o que deveria ser, Castro e Silva descreve a re- acontecem no interior das prisões, principal-
alidade do Instituto Presídio Hélio Gomes, si- mente nos plantões – momentos em que os
tuado no Rio de Janeiro, como um espaço em agentes das turmas de guardas se encontram
que acontecem constantes negociações entre os em contato direto com os presos (diferente-
guardas e os detentos, em um equilíbrio sem- mente dos agentes que trabalham nas seções
pre tenso que, no final da equação, permite que administrativas, que pouco contato têm com
exista uma certa harmonia nas relações dentro os presos que estão confinados nas celas) – que
do presídio, e faz com que o mesmo funcione, parecem manter de pé o presídio. Manter de
apesar de todas as irregularidades presentes. O pé significa evitar que os presos se rebelem, e à
autor não se esquece por um segundo sequer o sua maneira, derrubem a cadeia. No entanto,
que deveria ser, e talvez seja exatamente este o essa negociação parece possuir características

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bem específicas, envolvendo elementos muito mecanismo tão comum dentro dos presídios,
particulares do mundo prisional. funcionando como instrumento de manuten-
A negociação sempre tem início quando ção da ordem e do equilíbrio? Para Castro e
um detento comete alguma infração contra Silva, a explicação parece estar na própria ló-
os guardas ou contra as regras do presídio. É gica de funcionamento da realidade prisional,
importante destacar que os presos também onde as noções de “sujeito homem” – conceito
podem cometer infrações entre si, sendo que a partir do qual normalmente os presos são jul-
esse tipo de conduta é punida entre os próprios gados em suas condutas e precisam enfrentar
presos. No entanto, as condutas desviantes que bravamente os castigos físicos que lhes são im-
se relacionam com os guardas ou com as re- postos, entre outras coisas – marca a conduta e
gras do presídio em geral são resolvidas entre o as relações não apenas entre os próprios presos,
preso desviante e o guarda de plantão. É para mas também as relações entre presos e guardas.
esta relação específica que o autor se volta. Em É importante frisar que o autor, desde o
uma situação como esta, o guarda possui refe- início de seu livro, afirma que a sua análise so-
rências na lei sobre a maneira como deve agir. bre o uso da violência dentro do presídio como
No entanto, na prática, o que acontece? As um meio de negociação é uma análise com um
orientações da lei são seguidas? Os princípios recorte bastante específico, voltada para as re-
que estão por detrás da lei, de integridade física lações que se dão dentro do cárcere. Isso quer
do prisioneiro e do guarda, assim como aqueles dizer que ele não procura compreender os usos
que garantem a existência de uma instituição da violência na sociedade brasileira como um
marcada pelos princípios democráticos, são se- todo, tampouco procura suas raízes em ele-
guidos? mentos históricos. Para ele, o uso da violência
Na maioria das vezes, segundo o autor, as dentro dos presídios é um fenômeno singular,
práticas dos agentes prisionais se revelam ambí- e procura então sua gênese nas relações que se
guas: quando intentam prejudicar o preso, eles dão dentro do próprio cárcere.
se voltam para o que prevê a lei, e realizam ob- Essa opção teórica e metodológica fica clara
servações no prontuário do detento, adiando, a partir do momento em que o autor se volta
desta forma, a possibilidade de que ele adqui- para a Escola Penitenciária – lugar acontece o
ra benefícios e possa ganhar a liberdade mais curso preparatório para os agentes ingressantes
cedo; se, ao contrário, o detento em questão na carreira – em busca de pistas sobre a manei-
for avaliado como um preso bom, que não dá ra como os novatos são socializados no uso da
trabalho para os guardas, a resolução é aplicar violência física. Mesmo quando o autor sai dos
nele um castigo físico, o que está fora da lei, muros do presídio, sua atenção volta-se para a
mas garante que o preso seja punido – e assim maneira como o agente é instruído a se relacio-
o guarda não fique desmoralizado frente ao co- nar com os presos. Neste momento, Castro e
letivo de presos e também frente aos guardas Silva percebe que a escola formal pouco ensina
de sua equipe – sem, no entanto, prejudicar o aos agentes penitenciários, o que conta, para
andamento da burocracia que marca a vida do eles, é a prática, e esta é marcada pela tradição.
preso, garantindo que ele tenha acesso aos be- Desta forma, a violência negociada continua
nefícios provenientes da legislação penal. sendo analisada, mesmo em sua origem, a par-
Diante de tal ambiguidade, o autor expõe tir das relações que se dão intramuros.
a sua perplexidade: por que será que a violên- Castro e Silva disponibiliza em seu texto
cia física, apesar de ser proibida pela lei, é um muitas das falas que colheu em campo, com

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isso, tem-se um desenho do que seria um dis- que ali acontecem, e acabam por ir aos poucos
curso do agente de segurança penitenciário so- definindo a tradição que se apoia na violência
bre a sua percepção acerca das relações que se física como forma de negociação no cárcere.
dão no cárcere, e principalmente, as decisões
que precisam ser tomadas para que se garan-
ta o funcionamento do presídio. Se a análise Notas
partir das relações entre o legal e o ilegal, ou, o
que prevê a lei e o que de fato acontece, certa- 1. Ver Moraes (2005) e Chies (2001) para exemplos de
mente o discurso dos ASPs se mostrará incon- trabalhos publicados sobre agentes de segurança pe-
nitenciários.
sistente, como indica o autor. No entanto, a
riqueza de tal discurso parece estar exatamente
nas diversas maneiras que os agentes prisionais
encontram para lidar com o dia a dia, apesar da
Referências bibliográficas
inaplicabilidade de muitos dos mecanismos da
CHIES, Luiz Antônio Bogo (Coord.). A prisionalização
lei, como o autor mesmo aponta no início do do agente penitenciário: um estudo sobre encarcerados sem
texto. Certamente que essas escolhas, resultan- pena. Cadernos de Direito, Universidade Católica de
tes de um conjunto de fatores, revelam muito Pelotas – Escola de Direito. Pelotas: EDUCAT, 2001.
do próprio cenário que constitui o sistema pri- GEERTZ, Clifford. “O saber local: fatos e leis em uma
sional, no entanto, mais do indicarem incon- perspectiva comparativa”. In: O saber local: novos en-
saios em antropologia interpretativa. Rio de Janeiro:
sistências na ação dos agentes, revela que eles
Vozes, 1998, p.249-356.
são capazes de avaliar tal cenário, conscientes MORAES, Rodolfo Bodê de. Punição, encarceramento e
do papel e do peso que possuem nas relações construção de identidade profissional entre agentes peni-
tenciários. São Paulo: IBCCRIM, 2005.

autora Adriana Taets-Silva


Mestranda em Antropologia Social / USP

Recebida em 06/02/2011
Aceita para publicação 26/09/2011

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