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Analía Soria Batista

ESTADO E CONTROLE NAS PRISÕES

Analía Soria Batista*

Este artigo analisa o problema da produção do controle e da ordem em prisões brasileiras,


utilizando as perspectivas histórica e sociológica, e levanta a hipóteses de que, no Brasil,
convivem duas modalidades de construção da ordem e do controle nas prisões. Uma delas,
minoritária, baseia-se na prerrogativa do Estado na gestão do dia a dia prisional. A outra é
relativa à negociação da pacificação do presídio entre o Estado e as lideranças dos presos.
Embora, no primeiro caso, a prerrogativa do Estado possa ser vinculada às condições institucionais
adequadas e, no segundo (negociação entre o estado e as lideranças dos presos) às condições
precárias dos presídios, como superlotação, número reduzido de agentes penitenciários, entre
outros, a análise apontou que ambas as modalidades traduzem formas de relacionamentos e
interações sociais historicamente produzidas entre o Estado e a sociedade, que remetem à
fundação da República, recriadas através do habitus dos atores sociais, não se restringindo
exclusivamente ao espaço social das prisões.
PALAVRAS-CHAVE: prisões, Estado, agentes penitenciários, controle, ordem.

INTRODUÇÃO Nesse contexto, o autor levanta a hipótese


de que
Um aspecto frequentemente apontado, nos
o Estado, representado pelo corpo dirigente lo-
estudos sobre as prisões brasileiras, é a perda quase cal, não tem mais o controle efetivo da maioria
total do controle do Estado sobre a vida cotidiana das prisões sob sua responsabilidade, conseguin-
do assegurar a paz interna somente pela delega-
dos detentos nos estabelecimentos. Ao “descontro- ção do dia a dia prisional às lideranças desses
grupos criminosos.
le” ou “desordem” observados corresponderia a
emergência de um “controle” ou “ordem”, exercido Assim, o controle dentro das prisões ou é

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pelos próprios internos, organizados em coletivos exercido pelo Estado, que impõe a ordem, ou pelos
denominados “comandos”, com suas lideranças sem- internos, significando, nesse último caso, que o
pre violentas, que disputam poderes e hierarquias Estado perdeu o controle efetivo. É nesse sentido
impondo regulamentações sobre o dia a dia da prisão. que as noções de “controle e descontrole” e “ordem
Em estudo sobre as rebeliões nos presídios e desordem” são construídas como polaridades
entre os anos de 1990 e 2001, Sallas (2006, p. 3) analíticas, isto é, processos sociais dicotômicos e a-
indica que esses episódios revelaram históricos. Nessa direção, e fazendo referência ao
uma baixa capacidade do Estado em controlar a problema da segurança pública no Brasil, Soares e
dinâmica prisional, em fazer valer princípios Guindani (2007) criticam a abordagem positivista
fundamentais de respeito à integridade física dos
indivíduos presos, permitindo que grupos cri- da experiência brasileira sobre a barbárie, isto é, a
minosos imponham uma ordem interna sobre a explicação desse processo a partir das dicotomias
massa dos presos.
de ordem versus anomia, sendo a primeira ideali-
* Doutora em Sociologia. Professora do Instituto de Ci- zada e a segunda observada como patologia,
ências Sociais - ICS, Departamento de Sociologia da Uni- explicada em função de desvios ou transgressões,
versidade de Brasília.
Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte. Cep: independentemente dos processos geradores da
70910-900. Brasília - DF - Brasil. analiasoria@unb.br /
trrab526@terra.com.br ordem.

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Com base em uma pesquisa empírica compa- ferenciadas, graças à transferência analógica de
esquemas adquiridos em uma prática anterior.
rativa realizada durante os anos de 2006 e 2007 em
prisões do Distrito Federal e de Goiás junto aos Agen- Ainda, o habitus é experimentado e posto
tes Penitenciários e os internos, cujos objetivos fo- em prática na medida em que as conjunturas de
ram mais amplos e diversificados, tentarei aqui esbo- um campo o estimulam. Campo seria um espaço de
çar uma leitura, ainda preliminar, sobre o problema relações entre grupos com distintos posicionamentos
do controle e da ordem nas prisões.1 Minha hipóte- sociais, espaço de disputa e jogos de poder. Segun-
se é a de que, no Brasil, convivem duas modalidades do Bourdieu, a sociedade é composta por vários
de construção da ordem e do controle nas prisões. campos, vários espaços dotados de relativa autono-
Uma delas, minoritária, baseada, principalmente, mia, mas regidos por regras próprias. O habitus,
sobre a prerrogativa do Estado na gestão do dia a dia produto da história, se configura como um sistema
prisional.2 A outra, baseada sobre a negociação da de disposições aberto, que é afetado por novas ex-
pacificação do presídio entre o Estado e as lideran- periências e, nesse sentido, criado e recriado.
ças dos presos. Embora, no primeiro caso, a prerro- Na análise, proponho-me a discutir a pro-
gativa do Estado possa ser vinculada às condições dução de determinadas relações e modos de
institucionais adequadas e, no segundo (negociação interação entre o Estado e a sociedade no processo
entre o estado e as lideranças dos presos), às condi- de constituição da República brasileira, processos
ções precárias dos presídios, como superlotação, nú- sociais que contribuíram para criação e recriação
mero reduzido de agentes penitenciários, entre ou- de disposições nos atores sociais, isto é, esque-
tros. Consideramos que ambas as abordagens tradu- mas de percepção, apreciação e ação que, de modo
zem formas de relacionamentos e interações sociais singular, continuam presentes na atualidade, re-
historicamente produzidas entre o Estado e a socieda- velando antagonismos, contradições, opressões e
de, recriadas através do habitus dos atores sociais e poderes no espaço da instituição prisional.
que não se restringem ao espaço social das prisões. Assim, pois, a instituição prisional consti-
O habitus é entendido por Bourdieu (1983, tui cenário privilegiado de manifestação de com-
p. 46, 47) como plexos processos de controle social e de produção
da ordem, traduzidos em modalidades de relações
... um sistema de disposições duráveis e
transponíveis que, integrando todas as experiên- e interações sociais historicamente produzidos e
cias passadas, funciona, em cada momento, como reproduzidos através do habitus dos atores soci-
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uma matriz de percepção, apreciação e ação e


torna possível cumprir tarefas infinitamente di- ais. Trata-se, no entanto, de dinâmicas sociais que
1
A pesquisa, coordenada pelas professoras Lourdes M. excedem esse espaço social em suas manifestações,
Bandeira e Analía Soria Batista, foi financiada pela Secre-
taria Nacional de Segurança Pública (SENASP- MJ). No consequências e significados. Por isso, embora
Distrito Federal, a investigação baseou-se na prisão mas- considere a prisão espaço privilegiado para com-
culina denominada Centro de Internamento e Reeduca-
ção (CIR), e na prisão feminina, denominada Colmeia. preender as dinâmicas de controle social e de cons-
Em Goiás, o campo empírico foi o complexo Penitenciário
Odenir Guimarães, de Aparecida de Goiás, e o presídio trução da ordem na atualidade, o estudo pretende
feminino Centro de Inserção Social (CIS) Consuelo Nasser.
Realizaram-se observações etnográficas, entrevistas em apontar para a importância de analisar o fenôme-
profundidade com agentes, diretores, psicólogos e famili- no que nos ocupa sem restringi-lo à esfera jurídica
ares dos internos. Também foram realizados grupos fo-
cais com os internos e as internas. Foram feitas em torno ou penal e institucional.
de 100 entrevistas e 19 grupos focais, os quais permiti-
ram interagir com 85 internos e internas.
2
Os Agentes Penitenciários de Brasília são policiais (Polí-
cia Civil) que desempenham a função de agentes peni-
tenciários. Isso significa que seus salários são significa- ESTADO E SOCIEDADE
tivamente superiores aos dos agentes de outros Estados
da Federação, que não são policiais civis, como é no caso
de Goiás. Agregam-se a isso outras condições, como as Para compreender o fenômeno do controle
características do prédio, o estilo de gestão penitenciária
adotado, os recursos disponíveis e as estratégias de se- e da produção da ordem atualmente, no interior
gurança e inteligência utilizadas que permitem manter
as iniciativas de controle do Estado dentro da prisão. das prisões brasileiras, proponho abandonar tem-

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porariamente o espaço institucional da prisão para ros, nas associações, nos grupos étnicos, e assim
refletir sobre um momento considerado chave na por diante. Desse modo, expandiu-se uma varie-
constituição das relações entre o Estado brasileiro dade de ordenamentos jurídicos que coexistiam,
e a sociedade: a fundação da República. No centro competiam ou conflitavam com o ordenamento
desse debate, encontra-se o problema da constru- jurídico estatal. Como aponta Carvalho, a comple-
ção da cidadania. xa trama das relações entre as classes populares e
Carvalho (1987) aponta que a República bra- o poder acabou se traduzindo num conluio entre
sileira conseguiu se consolidar com um mínimo de “ordem e desordem”, “lei e transgressão”.
participação eleitoral, excluindo o movimento popu- Até o presente, o fenômeno do pluralismo
lar do governo e da cultura.3 Segundo o autor, o va- jurídico associado ao déficit de cidadania constitui
zio da exclusão política e cultural foi paulatinamente um traço marcante da sociedade brasileira (Carcova,
preenchido pela produção de novos ordenamentos, 1998). Na década de 70 do século passado, Sousa
ou “outras” repúblicas, por parte das classes popu- Santos (1980) discutiu essa questão focando sua
lares. Essas outras repúblicas acabaram produzindo análise no processo histórico, jurídico e social de
suas próprias regulamentações e modalidades de re- surgimento de uma favela do Rio de Janeiro. A situ-
solução dos conflitos e criando comunidades de sen- ação inicial de ilegalidade da favela e as ações vio-
timentos em torno de suas manifestações culturais. lentas do Estado para desalojar os moradores com a
Também produziram modos singulares de contato e força policial foram fatores fundamentais (embora
articulação com o ordenamento jurídico estatal, re- não os únicos) para se compreenderem as razões
presentado pelas leis da República, os burocratas da do aparecimento, muito embora frágeis, de formas
esfera jurídica, a polícia e os políticos, isto é, com os singulares de resolução dos conflitos na comunida-
representantes do poder. de, isto é, de outro ordenamento jurídico. Em sín-
O déficit de cidadania que feudalizou juri- tese, na medida em que o poder judiciário estava
dicamente a sociedade brasileira propiciou a pro- vedado para os moradores da favela, pois ela resul-
liferação de modos singulares dos não-cidadãos tava de processos de ocupação ilícitos à luz do di-
se relacionarem com o poder e com os poderosos, reito oficial, a comunidade produziu seu próprio
e vice-versa. Indiferença, pragmatismo para conse- direito, o direito de Pasárgada.
guir favores dos poderosos e violência, quando se Consideramos que a análise sobre o exercí-
considerava que o Estado pretendia regular os di- cio do controle do Estado nas prisões precisa le-

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reitos e valores tidos pelas classes populares como var em conta que a ordem que se consegue manter
fora de sua órbita de poder, caracterizaram e pare- nessas instituições, seja ela percebida como “per-
cem caracterizar ainda as complexas relações entre da de controle por parte do Estado”, ou como “con-
a sociedade e o Estado no Brasil. trole efetivo por parte do Estado” pode ser consi-
Desse modo, junto com Carvalho (1987), é derada como caudatária de determinados habitus
possível refletir que, em face da ausência de direi- ou disposições dos atores sociais. Isso significa
tos, isto é, do déficit de cidadania que se instau- que a dinâmica dessa ordem, nos processos de
rou paulatinamente, até se consolidar como um interação entre os agentes penitenciários e os in-
traço peculiar da sociedade brasileira, foi sendo ternos, é produzida e recriada sobre a negação his-
produzida uma visão cínica e irônica do poder. tórica do reconhecimento do status de cidadãos
Sem espaço sociopolítico para a sua participação desses últimos e sobre uma visão irônica e cínica
pública, as classes populares construíram seus do poder por todos compartilhada.
modos específicos de participação social nos bair- De outro lado, esses não-cidadãos são cida-
3
Mas, o fato de as elites se apegarem aos costumes euro- dãos de “outras repúblicas” que coexistem com a
peus da belle époque não impediu a aproximação dessas república hegemônica, caudatários de suas regula-
classes com a cultura da elite, modelando novas realida-
des sociais, assim como uma nova identidade coletiva. mentações, sentimentos, emoções e referências

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culturais. Caudatários de habitus produzidos nas articulação entre os representantes do Estado e os


modalidades históricas de relacionamentos e dos internos que se expressam em interações e
interações com os representantes do poder estatal. relações sociais peculiares e complexas.
De uma parte e de outra, do lado do Estado e do A análise sobre cada um dos casos das pri-
lado dos internos, o déficit de cidadania colocado sões, que denominarei Prisão do DF e Prisão de
a nu no espaço social da prisão poderá ser preen- Goiás, estrutura-se em dois momentos. O primeiro
chido pelo que resta de práticas como favoritismo, apresenta observações extensivas sobre a prisão,
corrupção, tortura, delação e, é claro, também da visando a contextualizar espacial e esteticamente os
aplicação das leis. Por isso, talvez resulte inade- cenários das relações e interações sociais entre os
quado tomar a aparência de ordem ou a aparência agentes e os internos. O segundo descreve e analisa
de desordem nas prisões pela realidade da produ- a dinâmica das relações e interações sociais a partir
ção do controle e da ordem efetiva. Essa última do estudo das regulamentações da vida cotidiana
resulta de enquadramentos e transgressões que nas prisões, focadas na intimidade, apontando para
envolvem representantes do Estado, como agen- seus antagonismos, contradições, oposições, opres-
tes, policiais, juízes, advogados, entre outros, e os sões e poderes. Nas prisões, a intimidade dos inter-
próprios internos. nos se constitui em espaço político, arena de dis-
Assim, a fragilidade dos direitos ou a sua puta, isto é, da imposição e negociação de regras
negação tem como contrapartida a substituição por que visam ao estabelecimento de um cotidiano sub-
modalidades singulares de relacionamento e metido ao controle. É desse modo que as práticas
interação social entre os envolvidos nesses proces- sociais relativas às regulamentações sobre a intimi-
sos sociais. Tais modalidades não podem ser ocul- dade revelam as lutas pelo poder entre os agentes e
tadas ou invisibilizadas pela invocação dos concei- os presos e entre os próprios internos. Giddens
tos de “sociedade disciplinar” de Foucault (1987) (1998) considera a intimidade como esfera da vida
ou de “instituição total” de Goffman (2003). Há o social onde acontecem as relações pessoais, os afe-
ressaibo da negação histórica do status de cidada- tos, a vida erótica, os amores filiais ou fraternais
nia para as classes populares brasileiras pelos po- com os outros significativos.
derosos e há, nelas, a presença material e simbólica
das “outras repúblicas”, construídas no vazio da
negação da participação pública e dos direitos soci- CONTROLE E ORDEM COMO PRERROGATIVA
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ais. Há, pois, habitus estimulados da sociedade bra- DO ESTADO: a prisão e as regulamentações
sileira atualizados no espaço social da prisão. da vida cotidiana em prisão do Distrito Federal

Até pouco tempo, a penitenciária masculi-


MODALIDADES DE ORDEM E CONTROLE na do Distrito Federal localizava-se relativamente
NAS PRISÕES distante do meio urbano.4 Com relação ao deno-
minado Plano Piloto da cidade de Brasília, ela dis-
O estudo realizado permitiu identificar duas tava em torno de 25 km. Mas a cidade se expandiu
modalidades de construção da ordem e do contro- e, atualmente, ela se localiza perto de uma diversi-
le nas prisões. No caso da prisão analisada no Dis- dade de condomínios de classe média e de uma
trito Federal, o controle sobre o cotidiano aparece vila de trabalhadores pobres, tradicionalmente clas-
como prerrogativa do Estado; na prisão estudada sificada como “cidade-dormitório”. Apesar da pro-
em Goiás, como produto de um processo de nego-
4
Comumente, as prisões são alvo de processos de
ciação entre os agentes que representam o Estado e banimento que permitem mantê-las afastadas dos lo-
os internos, realizado através de suas lideranças. cais mais urbanizados, para preservar os cidadãos livres
da “nocividade” que uma parte significativa da socieda-
Trata-se, prima facie, de modos diferenciados de de lhes atribui.

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ximidade desses conglomerados urbanos, o aces- sim, a sociedade e a penitenciária podem ser
so até a unidade estudada é difícil: é necessário construídas como territórios peculiares e distan-
descer, seguindo um caminho de asfalto que ser- tes, acenando para uma ruptura entre a sociedade
penteia entre os morros. Parece estar localizada “nas e o mundo dos presídios. Como já indicado, a
profundezas da terra”. De um lado, apenas os localização geográfica, “nas profundezas da terra”,
morros a rodeiam; do outro, eles foram transfor- colabora para a construção dessas fronteiras sim-
mados pelas construções precárias da vila de tra- bólicas, traduzindo, de certa maneira, a experiên-
balhadores pobres. cia radical de se trabalhar na instituição e, eviden-
Interessante se torna apontar que as grades temente, a do encarceramento. “O mundo aqui
e alambrados que rodeiam essa unidade, não con- dentro é o dos transgressores, rotulados como cri-
seguiram, inicialmente, prender a nossa atenção. minosos, o pior da sociedade”, afirma um agente.5
Acostumados como estamos à paisagem urbana de Mas também o discurso dos agentes indica
condomínios e casas gradeadas, a penitenciária se certas continuidades entre a rua e a penitenciária.
apresenta muito mais como continuidade do esti- O interior da penitenciária é construído como
lo de urbanização que vem sendo adotado na cida- continuidade de uma rua considerada perigosa:
de de Brasília e suas redondezas, nas últimas dé- – “... a penitenciária, no período diurno, está em total
cadas, como uma ruptura da geografia possível. movimento. Durante a noite, os detentos são coloca-
dos nas celas, mas aí, quem vai entrar num pavilhão
Em razão disso, produz-se uma contradição na ex- de 20 celas? Tem o mesmo perigo que a gente entrar
periência do observador: o sentimento de ruptura é numa quadra perigosa. Você pode correr o risco de
alguém, lá na última cela, pedir um socorro médico e
produzido pela localização da penitenciária; e a ex- as primeiras celas já estarem devidamente prepara-
das com facas artesanais, por exemplo.”
periência de continuidade é relativa à paisagem
construída pelos arames e grades que a rodeiam. Os pavilhões assemelham-se a ruas perigo-
São esses aspectos mais exteriores que per- sas da cidade, caracterizadas pelas armadilhas, os
mitem, inicialmente, observar a penitenciária como assaltos, os estupros: eis ai a continuidade entre a
continuidade e ruptura em relação à sociedade que cidade e o presídio. O presídio é construído como
a cria, mantém e reproduz. Além disso, certas continuidade da parte abjeta da cidade.
continuidades e rupturas entre a rua e a penitenci- Uma guarita serve de passagem para o in-
ária são construídas discursivamente com base no gresso nas instalações da prisão. Para entrar, é ne-
senso moral dos agentes. O discurso desses agen- cessário atravessar um molinete e registrar-se no

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tes “divide” a sociedade em dois grupos bem defi- balcão, deixando em escaninhos certos objetos,
nidos: os criminosos e os normais. Prima facie, os como telefones celulares, por exemplo. Não se in-
criminosos pertencem à penitenciária, e os ditos gressa sem ser conduzido por um agente. À direi-
“normais” à sociedade dos homens livres. ta, observa-se um bloco térreo, onde funciona a
No interior da prisão masculina, um agente administração da prisão; em frente, há o prédio
entrevistado medita e observa: “... há um mundo principal, lugar onde se localizam os pavilhões com
lá fora e há um mundo aqui dentro...”. Essa ex- suas celas e o setor de ensino da prisão. Na entra-
pressão é indicativa da construção discursiva so- da do prédio principal, há um cartaz com a se-
bre duas moralidades: a do mundo dos corretos e guinte inscrição: “Jesus te ama”. Debaixo do car-
a dos incorretos, a dos transgressores, que orien- taz, um agente armado e com várias algemas de-
tam seu comportamento por prescrições diferen- penduradas no cinto parece estar aguardando al-
tes das impostas pela ordem jurídica, e a dos que gum comando, distraidamente. Esse prédio tam-
vivem em harmonia com essa mesma ordem. No 5
Esses socialmente apontados como os “piores” serão
discurso proferido, cada um desses mundos apa- alvo de novo julgamento classificatório no interior da
instituição, sendo produzido um grupo social mencio-
rece, discursivamente, como uma totalidade de nado como “os piores dos piores” do presídio, aqueles
finalmente destinados ao isolamento do “Pavilhão de
coisas que pertencem a domínios diferentes. As- Segurança Máxima (PSM).

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bém possui uma guarita onde é necessário se re- As paredes da prisão estão descascadas. Por
gistrar. Depois dela, visualiza-se um corredor es- vezes, observamos água no piso dos corredores,
treito e comprido, em cujas celas de grade se ob- como se houvessem limpado o local recentemen-
servam os internos recém-chegados ao lugar ou em te. Percebe-se um cheiro estranho, azedo, que lem-
vias de serem transferidos de setor. Tecnicamente, bra o dos hospitais públicos.
aguardam a triagem. Chegamos a um pátio. Dois agentes muni-
Ao entrar no prédio principal, o agente, com dos com cassetete de madeira (os que nos acompa-
voz firme, exige dos internos virarem de costas, nham têm cassetetes comuns) observam os inter-
ficarem de cócoras, longe das grades, olhando para nos do “posto de serviço”.7 Os internos tomam
a parede. Algemados, eles se movimentam sem banho de sol. Um Agente explica:
inquietação ou curiosidade pela nossa presença.
– “... durante o dia, ninguém pode ficar nas celas
São apenas corpos que se movimentam.
e, à noite, ninguém pode ficar no pátio. A rotina
Ingressamos na prisão junto com os agen-
do detento é assim por causa da segurança, não
tes, cujos corpos se dispõem, como escudos pro-
porque se pense que ele precisa de “banho de
tetores, entre nós e os internos, face à proximida-
sol”, mas para evitar confabulações”.
de das celas transitórias que os albergam. Essa
performance dos agentes do Estado visa a comu- Entre os internos e nós há a performance
nicar que o local é considerado perigoso. Eles dos agentes e as grades. Os internos conversam
enfatizam que o lugar oferece riscos, situação que em grupos, mais ou menos numerosos. Parecem
contribui para criar em nós um sentimento de ex- muito jovens, há negros, mulatos e brancos, esses
pectativa, curiosidade e certo nervosismo. No cor- últimos em menor proporção. Todos com a cabeça
redor, cruzamos com alguns internos que traba- rapada. Usam vestimentas comuns, shorts, cami-
lham dentro da prisão. Quando nos visualizam, setas e chinelos, e alguns exibem tatuagens nos
param e automaticamente ficam de costas, olhando braços. As paredes descascadas do pátio apresen-
para a parede, evitando-nos, e é desse modo que tam desenhos infantis tradicionais, de Walt Disney.
nos deixam passar, roçando seus corpos no corre- Logo que somos percebidas, os internos nos olham,
dor estreito. Pouco depois, passamos pelo parlatório, juntam-se e comentam. Os agentes se apressam a
lugar onde os internos fazem sexo com suas espo- dizer que, na cadeia, é necessário evitar a circula-
sas ou namoradas, em finais de semana, durante as ção de pessoas e as aglomerações. Também experi-
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“visitas íntimas”. Cada interno tem direito a quatro mentamos dificuldades para escutar o que os agen-
visitas, uma delas, pode ser íntima. Em média, tes nos dizem, pois há barulho constante, vozes,
esse cadastro pode ser renovado a cada seis meses. conversas.
É o “chefe de pátio”6 quem elabora a lista dos inter- Aproveitando que os internos permanecem
nos que desejam receber visita íntima. O tempo es- reunidos no pátio, visitamos as pequenas e sufo-
tipulado é de 40 minutos, e ultrapassá-lo determina cantes celas. Observamos que, do lado direito de-
a interdição da consumação do desejo: o interno las, há uma estrutura de concreto com um colchão
poderá ter a visita íntima suspensa. e roupa de cama. Essas celas abrigam dois ou três
Chama a atenção que, do outro lado do cor- internos, mas há apenas uma cama. Do lado es-
redor, em frente ao parlatório, está situado o Pavi- querdo, uma escada de concreto conduz ao ba-
lhão de Segurança Máxima, destinado àqueles que nheiro. No lugar onde deveria estar o chuveiro, há
são considerados “lideranças negativas” pelos uma garrafa de plástico. Não existe vaso sanitário,
Agentes. Nesse pavilhão, há vinte e três internos. apenas um buraco. Uma meia parede separa o ba-
6
Denomina-se “chefe de pátio” o agente encarregado do
7
atendimento social e sanitário dos internos e que enca- O “posto de serviço” é o local destinado aos agentes
minha suas solicitações, escolhendo aquelas que avalia encarregados da vigilância dos internos durante o banho
como prioritárias. de sol no pátio.

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nheiro do lugar onde os internos dormem e reali- submetidos ao controle dos agentes. Por exemplo,
zam suas refeições. a sexualidade do interno é regulamentada até certo
Nas paredes das celas, há desenhos de ar- ponto. Há uma espécie de taylorização dos “en-
mas de fogo e de Jesus Cristo. Nelas, há diversas contros íntimos” dos internos, que têm direito, no
inscrições: caso dos homens, a receber esposas, namoradas e
– “Viciados, vida louca, paz, liberdade.” amigas, como apontado anteriormente. Mas a ins-
– “Roubaste minha alma.” tituição estabelece determinadas interdições, como,
– “Você venceu este deserto, fui e nunca mais.” por exemplo, a proibição de os homens fazerem
– “Apocalipse.” sexo com outros homens nesses espaços formal-
– “Porque para Deus nada é impossível.”
mente “preparados” para o momento “higiênico”
da atividade sexual. Assim, a versão oficial do
– “Adoro poder durar uma noite mais a alegria vem
pela manhã.” encontro íntimo entre o interno e a mulher aconte-
– “Se Deus está por nos, quem será contra nos? Nin- ce sob o olhar atento do Estado, embora a versão
guém.” não-oficial do encontro íntimo entre internos seja
“Você não sabe como é caminhar na mira de uma HK.” regulamentada pelos próprios internos. Há encon-
É nessa prisão que o Estado tem assumido tros sexuais consensuais e abusos. No caso des-
a prerrogativa de regulamentar uma parte impor- ses últimos, conta-se com a indiferença dos agen-
tante da vida cotidiana dos internos. A jornada é tes do Estado, existindo um acordo tácito no que
organizada em função de rotinas carcerárias, tais diz respeito à menor interferência oficial possível
como banho de sol,8 recolhimento,9 confere,10 visi- nesse espaço de intimidade dos prisioneiros.
tas de familiares e relacionamentos sexuais. Essas O comportamento do interno na prisão é
ações são orientadas por normas e procedimentos alvo de monitoramento, recompensa e punição,
justificados pelo discurso a respeito da necessida- realizados pelos agentes. De fato, os internos são
de de manutenção da segurança, isto é, de evitar as classificados em quatro níveis, em função de seu
“armadilhas” dos internos. Tais rotinas são consti- comportamento: comportamento muito mau,11 com-
tuídas por exigências que dizem respeito ao portamento mau, comportamento bom e compor-
disciplinamento do corpo dos internos, tais como tamento excelente. Essa classificação, que aponta
evitar olhar nos olhos dos superiores, ou caminhar o grau de sujeição dos detentos à ordem da insti-
com a “cabeça baixa e as mãos atrás”, entre outras. tuição, constitui um parâmetro para eles terem aces-

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Tais exigências podem motivar questionamentos. Em so ou não às atividades educativas e de trabalho
que medida o disciplinamento da fala, dos gestos e oferecidas na prisão. Na medida em que os direi-
do corpo dos internos é um elemento de seguran- tos dos internos (educação e trabalho) não são ga-
ça? Em que medida constitui um tipo de controle rantidos pelo Estado, embora sejam estabeleci-
que objetiva a humilhação do interno? dos como direitos na Lei de Execuções Penais (LEP,
Embora a regulamentação de uma parte signi- 1984), a classificação dos internos permite a dis-
ficativa da vida íntima dos internos constitua prer- tribuição desses bens escassos,12 que funcionam
rogativa do Estado, há espaços de intimidade não 11
Os socialmente apontados como os “piores” serão alvo
8
de novo julgamento classificatório no interior da insti-
O banho de sol é o momento em que os internos são tuição, sendo produzido um grupo social mencionado
conduzidos aos pátios da prisão. como “os piores dos piores” do presídio, aqueles final-
9
O recolhimento é o momento em que os agentes proce- mente destinados ao isolamento do Pavilhão de Segu-
dem à retirada dos internos dos pátios, após o banho de rança Máxima (PSM).
sol. O recolhimento acontece mediado por uma série de 12
A LEP garante a remição penal por meio do trabalho,
procedimentos de segurança. Os internos têm de sen- estabelecendo que, a cada três dias trabalhados, o preso
tar-se no chão com as mãos atrás, enfileirados. A retira- tem o direito de descontar um dia da pena a ser cumpri-
da acontece de forma ordenada, seguindo ordem dos da. Ela reproduziu também, em seu conteúdo, a ideia de
agentes que os organizam, uma fila de cada vez. Estado democrático de Direito, segundo o qual o cum-
10
O confere é o procedimento realizado por um agente, primento da pena não pode implicar a perda ou
para conferir o número de presos por cela, após o reco- minimização dos direitos fundamentais. Assim, o art.
lhimento do banho de sol. 41 da LEP estabelece os direitos elementares que devem

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ESTADO E CONTROLE NAS PRISÕES

como recompensas para quem aceita ou simula letivos dentro da prisão visa a manter os guetos14 à
aceitar a sujeição à ordem institucional. Assim, na distância, para que sua lógica “poluída” não con-
prática, a educação e o trabalho não constituem tamine o espaço social da prisão.
aspectos vinculados à lógica da reintegração social Nesse caso, os membros dos guetos, que
dos internos, embora a LEP pregue o caráter foram arrancados de suas condições comunitárias
ressocializador da pena. Necessário enfatizar que de vida, são cotidianamente considerados pelos
um número significativo de agentes não acredita representantes do Estado como “inimigos” e
na possibilidade de reintegração dos detentos à “psicóticos”.15 Essas representações dos internos
sociedade.13 mediatizam as relações e interações sociais com os
Os internos classificados com “comporta- agentes, orientados pelo pressuposto do “contato
mento excelente”, além de terem acesso às ativida- zero” com os internos. O pressuposto ideológico
des educativas e de trabalho, residem em celas- do ideal de igualdade, na prática, acaba sendo ne-
dormitórios, separados dos demais internos, pois gado pelo habitus dos agentes, que fragiliza a con-
são aqueles que colaboram com os agentes nas es- sideração do interno como um sujeito digno de
tratégias de inteligência destinadas a descobrir in- respeito, isto é, como um “igual”. Por essa via,
dícios de guetização na prisão, como por exem- verifica-se o desrespeito aos direitos dos que per-
plo, a formação de comandos. manecem presos.
Essas classificações têm impacto na regulação A prisão, como produção material e simbó-
da vida íntima dos internos, pois seus direitos à lica, resulta, na prática, de uma luta cotidiana dos
visita íntima, à relação com familiares, entre ou- representantes do Estado contra a possibilidade
tros, dependerão da avaliação que os agentes fa- de “guetização” de seu ambiente. Não se pode afir-
çam de seu comportamento na prisão. É nesse jogo mar até que ponto o Estado consegue, mas o en-
de sujeições e resistências entre agentes e internos durecimento do controle e da disciplina, durante
que se podem manifestar diversas trocas, caracte- os últimos anos, abarcando inclusive os familiares
rizadas como transgressões: imposições, lealdades, dos presos, pode ser observado como resultante
delações, entre outros. desse esforço para manter a prisão imune à amea-
A regulamentação institucional de uma par- ça do gueto.
te das relações e interações sociais do interno pres- De fato, observamos registros fotográficos do
supõe a negação, no espaço da prisão, da proce- pátio da prisão antes do endurecimento do con-
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dência comunitária dos internos, ou seja, dos po- trole e da disciplina, realizados por agentes mais
deres, hierarquias e valores culturais próprios dos antigos durante as visitas dos familiares dos pre-
detentos. A prerrogativa do Estado em controlar o sos. Neles, só percebemos tendas feitas com len-
mais possível a vida cotidiana na prisão implica 14
Na sua forma completa, o gueto “... é uma instituição de
impedir sua guetização. Isso exige vigilância per- duas faces, na medida em que serve a funções opostas
para dois coletivos aos quais une em uma relação
manente para barrar qualquer indício de surgimento assimétrica de dependência. Para a categoria dominante,
sua função é circunscrever e controlar, o que se traduz
de comunidades, em suas formas organizativas, no que Max Weber chamou de “cercamento excludente”
como quadrilhas, gangues ou comandos crimino- da categoria dominada. Para esta última, no entanto,
trata-se de um recurso integrador e protetor na medida
sos. Assim, o confinamento na prisão significa, em que livra seus membros de um contato constante
com os dominantes e permite colaboração e formação de
até certo ponto, o confinamento da própria comu- uma comunidade dentro da esfera restrita de relações
criada. O isolamento imposto pelo exterior leva a uma
nidade. A estratégia de impedir a formação de co- intensificação do intercâmbio social e cultural dentro do
gueto. O gueto é o produto de uma dialética móvel e
ser assegurados aos que estão sob a responsabilidade do tensa entre a hostilidade externa e a afinidade interna
Estado: alimentação, vestuário, educação, instalações que se expressa como uma ambivalência no nível do
higiênicas, assistência médica, farmacêutica e consciente coletivo.” Wacquant (2004).
odontológica. 15
Interessa destacar que a psicopatia é considerada relati-
13
Para uma compreensão da nova cultura do controle e de vamente rara; uma estimativa a situa em 10% ou menos
sua relação com a descrença sobre as possibilidades de da população prisional e em 3% da população geral. Doren
reintegração social dos detentos, ver Garland (2001). (1996).

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Analía Soria Batista

çóis, o que tornava invisíveis ou privativas as visi- unidade a outra a pé. O local é silencioso e
tas. Hoje, a construção de tendas está proibida. arborizado, e por ele transitam alguns dos inter-
Nessa modalidade de ordem e controle nos com roupas da cor azul, com a inscrição “Re-
prisional, a lógica da segurança predomina sobre a educando”, na parte posterior. Alguns deles exe-
da reintegração social. O atendimento psicológico cutam suas tarefas fumando maconha.
dos internos também é atrelado à lógica da segu- Para ingressar na prisão, temos de atraves-
rança, na medida em que o profissional é instado sar um portão de ferro, com dois ou três policiais
a colaborar como informante e se integra às estraté- monitorando essa movimentação. Somos informa-
gias de inteligência, se necessário, chegando a in- dos de que essa prisão data da década de 60. Ob-
terpelar os familiares dos detentos. servamos sinais de deterioração em seus muros e
Da perspectiva do padrão das interações en- paredes, pintados de uma cor amarela envelhecida
tre os agentes e os internos, observa-se que o Esta- que teima em se desvanecer e descascar, deixando
do mantém o controle e impõe disciplina na prisão, expostas as lajotas e pedaços de cimento. Vem à
regulando o mais possível a vida cotidiana dos nossa mente a estética cinematográfica de Carandiru
detentos, classificando-os, interpelando-os para que e as impressões sobre suas misérias, sujeiras,
colaborem e delatem. O Estado os recompensa quan- imprevisibilidades e inseguranças.
do “obedecem”, facilitando-lhes o acesso à educa- Observamos o pátio da prisão “de cima”, isto
ção, ao trabalho, ao médico e a outras regalias, e os é, de uma passarela que nos permite uma visão re-
pune quando não se sujeitam, interditando-lhes o lativa. Destaque-se que, durante o banho de sol dos
acesso ao trabalho e à educação, dificultando-lhes o internos, os agentes monitoram o pátio dessa mes-
acesso aos médicos e às regalias. O Estado persegue ma passarela. O pátio dos internos está dividido
sem descanso as possíveis lideranças, integrando, em dois espaços. De um lado há uma quadra de
em suas estratégias de inteligência, outros profissi- esportes e algumas árvores, onde os internos jogam
onais do presídio, os internos que se sujeitam e os futebol ou conversam, circulando livremente; do
familiares que são manipulados. Nessas dinâmicas outro, há tendas armadas com lençóis, uma barbea-
interativas, a troca de favores, o estabelecimento de ria, um local para reuniões religiosas, mesas de si-
lealdades, os favoritismos e transgressões das leis, nuca, cantinas. Percebe-se, no entanto, que o pátio
entre outras, estão presentes. constitui um espaço de intimidade dos internos. A
proliferação de cantinas (muitas) e mesas de sinuca

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constitui indícios da natureza das relações e
ORDEM COMO NEGOCIAÇÃO ENTRE ESTA- interações sociais entre agentes e internos. Trata-se
DO E INTERNOS: a prisão e a regulamenta- de “concessões” que segundo, os agentes, fazem da
ção da vida cotidiana em prisão de Goiás prisão “colônia de férias” ou “mamão com açúcar”.
Não foi possível visitar as celas, mas somos infor-
mados sobre a presença de DVDs e TVs a cabo em
Ingressamos no Complexo Penitenciário algumas delas. A privacidade e a intimidade dos
passando pelo lado direito de uma guarita. Os internos permanecem nebulosas, pois não foram
guardas pediram para descer do carro, para efetu- explicitadas para as pesquisadoras, como no caso
ar nosso registro. Depois, continuamos circulan- da prisão estudada no Distrito Federal. Os agentes
do de carro até ao setor da Administração, onde informaram “basta os presos quererem pra cadeia
fomos recebidos pelo Diretor do Complexo. Poste- virar”. Nesse primeiro momento associamos essa
riormente, outros funcionários nos encaminharam assimetria de poderes às condições ruins da
para a prisão objeto de nosso estudo, distante, infraestrutura da prisão.
aproximadamente, uns cem metros da Adminis- Durante uma de nossas visitas, ocorreu um
tração. Dentro do Complexo, é possível ir de uma incidente revelador do padrão de relacionamento

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ESTADO E CONTROLE NAS PRISÕES

entre os agentes e os internos. Aguardávamos para pectos. Sob esses parâmetros, são estabelecidos
realizar as entrevistas, caminhando pela parte ex- pactos entre os agentes e as lideranças dos inter-
terna do setor de Administração do Complexo Pe- nos, caracterizados pela fragilidade e instabilida-
nitenciário, quando escutamos tiros, vindos da de, embora a sua ruptura seja percebida pelos ato-
prisão objeto de nosso estudo. Nesse momento, res sociais como exceção. Tem-se, nesse caso, o
um agente segurou meu braço, arrastando-me até Estado reconhecendo a presença de “outras repú-
o interior do prédio da Administração. Os funcio- blicas”, produzidas pela população mais pobre,
nários se mostravam inquietos e nervosos, alguns desprovida de cidadania.
corriam de um lado para outro, passando informa- A delegação da gestão da vida cotidiana da
ções, situação que contribuiu para aumentar nossa prisão às lideranças dos internos aparece justificada
expectativa. Desde a noite passada, tinham se espa- pelo discurso institucional sobre a necessidade de
lhado ameaças de rebelião em várias unidades do promover a reintegração social dos presos, o que
Complexo Penitenciário, movimento promovido exigiria incentivar o desenvolvimento de compor-
pelos internos da prisão que estávamos estudando. tamentos responsáveis e disciplinados. Essa dele-
Em função disso, os Agentes Prisionais convoca- gação teria esse sentido. Mas a reforma, a reabilita-
ram a Polícia Militar, que ingressou na unidade, ção e a redenção, não existem no “gueto”.
enfrentando, segundo fomos informados, uma ala A lógica do “gueto” reaparece na organiza-
rebelde. Nessa operação, a polícia tirou dos inter- ção dos internos em “comandos”, com suas lide-
nos celulares e drogas. Esse incidente revelou que ranças que repartem o controle sobre diferentes
o ingresso da PM na prisão foi a resposta dos repre- aspectos do cotidiano da prisão. Por exemplo, a
sentantes do Estado em face dos rumores de rebe- indicação das celas em que irão habitar os recém-
lião que tinham se espalhado. Para os agentes, isso chegados, a estipulação de tarefas que deverão ser
indicava que os internos estavam dispostos a que- realizadas nas celas, pavilhões ou mesmo nas ofi-
brar os acordos de pacificação estabelecidos em fun- cinas de trabalho. As lideranças escolhem os pre-
ção de certas trocas. Observamos que a manutenção sos que irão trabalhar nessa ou naquela oficina, na
desses acordos resulta de uma frágil dinâmica, ba- cozinha, na lavanderia e assim por diante. As li-
seada em trocas, lealdades, ilegalidades, exercícios deranças, inclusive, indicam quem será privilegia-
de dominação e opressão entre os internos e os agen- do com a administração da lanchonete, lugar es-
tes e entre os próprios internos. tratégico para implementar o tráfego de drogas na
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Em Goiás, observou-se que o Estado delega instituição. Elas também decidem se um interno
uma parte importante da regulação da vida cotidi- condenado por estupro poderá ter garantida sua
ana da prisão aos próprios internos, organizados permanência nos pavilhões, sem ser morto pelos
em grupos de natureza diversa, representados por outros internos, em troca de lealdade e servidão.
lideranças. Essa delegação age como moeda de Assim, também a dura lei da cadeia, produzida e
troca pela manutenção da paz nas instituições. reproduzida pelos internos, pode admitir exceções:
Esse modelo de controle do Estado na pri- tudo depende das circunstâncias, isto é, do que se
são revela as relações historicamente estabelecidas possa obter em troca dessa flexibilidade.
entre o Estado e a população pobre e excluída, O controle sobre espaços e atividades gera a
muitas das quais permanecem até hoje. O Estado imposição de todo tipo de constrangimento aos pre-
permite a “guetização” da prisão, isto é, aceita que sos – contribuições financeiras, doação de alimen-
a lógica social do “gueto” seja instalada no dia a tos, relacionamentos sexuais, colaboração com as ati-
dia da prisão e, em troca, exige a pacificação, isto vidades ilegais dentro e fora da prisão –, envolven-
é, a participação das lideranças dos detentos no do, muitas vezes, os próprios familiares dos presos.
controle das ações de fuga e das violências Nesse modelo, o considerado “réu” acabará
interpessoais entre os internos, entre outros as- se transformando em “reeducando”, termo que

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Analía Soria Batista

contrasta com o de “inimigo”, no modelo analisa- o relacionamento histórico entre o Estado e os se-
do para a instituição do Distrito Federal. Tudo pa- tores populares, atualizado no espaço social da
rece indicar a prevalência, na prisão, da lógica da prisão pelo habitus dos agentes. Tais relações tam-
reintegração social. Mas, como assinalado, dificil- bém podem ser observadas em outros espaços so-
mente a lógica do hipergueto conduzirá alguém à ciais, nas favelas, nas feiras de pirataria, nas feiras
reintegração. Muito pelo contrário, a violência informais, entre outros.
interpessoal, a brutalidade e a imprevisibilidade
acabarão reforçando, em cada interno, a experiên-
cia coletiva do banimento. (Recebido para publicação em outubro de 2008)
(Aceito em dezembro de 2008)

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CÃO, Joaquim (Orgs.). Sociologia e Direito, São Paulo:
dia. Os acordos resultam frágeis e podem ser rom- Livraria Pioneira Editora, 1980. p. 88-89.
pidos a qualquer momento. No primeiro caso, o WACQUANT, Loïc, Que é gueto? Construindo um con-
ceito sociológico. Revista de Sociologia e Política. Curitiba,
Estado luta abertamente contra o gueto; no segun- n. 23, 2004. p . 155-164,
do, usa o gueto para pacificar o presídio, entregan-
do para as lideranças a custodia dos internos mais
fracos, que serão submetidos às regulamentações
opressivas e violentas estabelecidas pelos que de-
têm o poder. Ambas as modalidades de controle e
da ordem nas prisões expressam complexas dinâ-
micas sociais entre os representantes do Estado e
os internos, com a presença de repressão, opres-
são, conluio, ordem e desordem, o que caracteriza

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ESTADO E CONTROLE NAS PRISÕES

STATE AND CONTROL IN THE PRISON SYSTEM ETAT ET CONTROLE DANS LES PRISONS

Analía Soria Batista Analía Soria Batista

This paper analyzes the problem of the order Ce travail analyse le problème de la production
and control production in Brazilian prisons, using the du contrôle et de l’ordre dans les prisons brésiliennes
historical and sociological perspectives, and brings the en tenant compte des perspectives historique et
hypotheses that, in Brazil, two modalities of sociologique et soulève l’hypothèse selon laquelle, au
construction of order and control in the prisons happen Brésil, il y a deux manières de construire l’ordre et le
together. One of them, minoritary, is based on the State’s contrôle dans les prisons. L’une d’elles, minoritaire, est
prerogative of daily prisional administration. The other basée sur la prérogative de l’Etat pour la gestion
regards the negotiation of the prison pacification quotidienne des prisons. L’autre est relative à la
between the State and the prisoners’ leaderships. négociation de la pacification de la prison entre l’Etat
Although, in the first case, the prerogative of the State et les leaders des prisonniers. Même si, dans le premier
can be linked to the appropriate institutional conditions cas, la prérogative de l’Etat peut être liée aux conditions
and, in the second (negotiation between the State and institutionnelles adéquates et, dans le deuxième cas
the prisoners’ leaderships) to such precarious (négociation entre l’état et les leaders des prisonniers),
conditions of the prisons, as overcrowding, reduced aux conditions précaires des prisons - telles que la
number of penitentiary agents, the analysis pointed surpopulation, le nombre réduit d’agents pénitentiaires,
out that both modalities translate forms of relationships entre autres -, l’analyse montre que les deux modalités
and social interactions historically produced among sont le reflet des formes de relations et d’interactions
the State and society, that go to the foundation of the sociales historiquement produites entre l’Etat et la
Republic, recreated through the social actors’ habitus, société qui remontent à la fondation de la République
not limiting exclusively to the social space of the et qui sont recréées par l’intermédiaire de l’habitus
prisons. des acteurs sociaux mais qui ne se limitent pas
exclusivement à l’espace social des prisons.

KEYWORDS: prisons, State, penitentiary agents, control, MOTS-CLÉS: prisons, Etat, agents pénitentiaires, contrôle,
order. ordre.
CADERNO CRH, Salvador, v. 22, n. 56, p. 399-410, Maio/Ago. 2009

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