Você está na página 1de 119

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

PATRÍCIA MOREIRA PERDIGÃO

MESTRE E MALANDRO
AS LIMINARIDADES DE UM OGAN BAIANO NA HISTÓRIA DO CANDOMBLÉ
PARAENSE

Belém
2021
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

PATRÍCIA MOREIRA PERDIGÃO

MESTRE E MALANDRO
AS LIMINARIDADES DE UM OGAN BAIANO NA HISTÓRIA DO CANDOMBLÉ
PARAENSE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Ciências da Religião da Universidade
do Estado do Pará como requisito parcial à obtenção
do título de Mestre em Ciências da Religião.

Orientadora: Profa. Dra. Taissa Tavernard de Luca

Belém
2021
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
Biblioteca do CCSE/UEPA, Belém – PA
Perdigão, Patrícia Moreira

Mestre e malandro: as liminaridades de um ogan baiano


na história do candomblé paraense / Patrícia Moreira Perdigão;
orientadora Taissa Tavernard de Luca. – 2021.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) –


Universidade do Estado do Pará, Belém, 2021.

1. Candomblé-Belém-PA.2.Música sacra. 3.Cultos afro-


brasileiros I. Luca, Taissa Tavernard, orient. II. Título.
FfF CDD. 23 ED.299.673098115
Ficha catalográfica elaborada por Regina Ribeiro CRB-739
PATRÍCIA MOREIRA PERDIGÃO

MESTRE E MALANDRO
AS LIMINARIDADES DE UM OGAN BAIANO NA HISTÓRIA DO CANDOMBLÉ
PARAENSE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Ciências da Religião da Universidade
do Estado do Pará como requisito parcial à obtenção
do título de Mestre em Ciências da Religião.

Dissertação aprovada em 15/05/2021 para obtenção do título de Mestre em Ciências da


Religião.

Banca Examinadora:

___________________________________________________________
Profª. Dra. Taissa Tavernard de Luca – Presidenta da Banca

_________________________________________________________
Prof. Dr. Peter Fry – Avaliador Externo

_________________________________________________________
Prof. Dr. Hélio Figueiredo da Serra Neto – Avaliador Interno

Belém
2021
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho ao quilombo de mulheres que sustenta


a minha saúde psicológica nesse sistema patriarcal que nos
imputa culpa por sermos mulheres, mães e profissionais:
Luana, Rosângela, Érika, Rosilene, Viviane e Luiza.
AGRADECIMENTOS

Meu maior agradecimento e reverência à Exú, como mensageiro do Supremo, que


processou várias mudanças no trajeto deste trabalho, tanto no que se refere aos encontros
possibilitados nos deslocamentos para pesquisa quanto na minha vida pessoal que se
reconfigura em meio ao caos passageiro. Acolho todas as mudanças que foram e são tão
necessárias para libertar meu Eu suprimido em relações que eu não mais cabia, apesar das
dificuldades, sou grata a essas relações que por muitas vezes me enfraqueceram ao me
imputarem um fardo pesado, pois aprendi a soltá-los. Descobri que o bem viver é cercar-se de
relações que oferecem afinidade de pensamento e de sentimento. Meu compromisso é com a
satisfação das minhas expectativas. Laroiê, Exú1! Orixá e a todas as entidades que respondem
através dessa energia, comadres e compadres que muitas vezes senti presentes e que logo
mostraram porque estavam ao meu lado. Agradeço os livramentos, os descarregos, os presentes
e as conquistas que me trouxeram. Confio e retribuo dando o meu testemunho sobre esse orixá
da mais alta estirpe que produz maravilhas na vida de quem age no sentido de libertação e
reparação de injustiças e silenciamentos. Enfim, à Exú como mensageiro porque é quem executa
as mudanças designadas por Olorum, Suprema Força que a tudo governa sem exigir culto direto
ao seu nome. Mojubá2! Peço agô3 para continuar...
Meu mais profundo sentimento de amor e gratidão aos orixás que regem o meu destino.
À Ogun agradeço a força e resiliência que sempre me foram caras desde tenra infância.
Parafraseando a música de Zeca Pagodinho, foi Ele quem me deu confiança desde criança para,
por vezes, virar um leão. À Oxun agradeço ter me ensinado que, assim como a água, eu posso
fluir, contornar, encontrar frestas e vazar lentamente ultrapassando os obstáculos e que, ao
transbordar compreensão e afeto, é possível fecundar outras vidas.
Minha eterna gratidão à ancestralidade feminina que me gestou, minha mãe Marléa e
minhas avós Olga (in memorian) e Oscarina, mulheres com laços consanguíneos entre si (minha
mãe é filha de vó Olga e sobrinha de vó Oscarina). Mulheres fortes que apesar das adversidades
supriram as minhas necessidades de subsistência física e afetiva. Sou mulher e tenho tentado
me curar das dores que vocês sentiram, sigo tentando cumprir o legado de mãe que vocês me
deixaram, mas também quero a liberdade de fazer as escolhas que me aprazem e a satisfação

1
Saudação do orixá Exú que significa “Viva (ou salve) Exú!
2
Termo em yorubá, língua litúrgica do candomblé keto, que significa “Meus respeitos”.
3
Pedido de licença ou permissão em yorubá.
profissional, que a geração e o contexto social em que vocês viveram, muitas vezes lhes
negaram.
Aos meus filhos, agradeço o amor, carinho e compreensão que me oferecem e que, nos
momentos de dificuldade, me (re)erguem, não me deixando perder de vista o sentido da
existência. Minha responsabilidade com vocês é cuidar, proteger e formar seres humanos
capazes de desconstruir preconceitos, honestos e afetuosos. Minha menina Elis e meu menino
Pedro, espero que vocês um dia possam sentir que o meu esforço é para que vocês tenham ainda
mais margem de manobra para trilharem um caminho de realização e felicidade consigo
mesmos.
Gratidão à professora Taissa Tavernard por ter sido desde a graduação a minha principal
incentivadora. Exímia representante de sua linhagem acadêmica, que ensina através dos muitos
exemplos de humildade, respeito e amizade, você é minha referência de profissional e me faz
sentir orgulho dessa escola. Escrevo aqui o que sempre disse desde a graduação: Você alimenta
o meu sonho de seguir trajetória acadêmica.
Reconheço a contribuição e agradeço todo empenho de meus padrinhos Regina e Walter
para a minha formação pessoal e profissional e nos diversos momentos de ajuda e cuidado com
as crianças para que eu pudesse dedicar tempo às atividades acadêmicas. Meu agradecimento
à prima Jéssica pelas transcrições das entrevistas que não pude fazer por estar trabalhando,
ajuda muito importante para a escrita deste texto.
Gratidão à prima Luana que muitas vezes assumiu os afazeres domésticos para que eu
pudesse escrever e pelos muitos momentos de conversa e desabafos durante o momento de
mudanças que vivo. És a irmã próxima que se preocupa, se doa, que torce e que vibra com cada
conquista. Quero sempre fazer jus a promessa que fiz à vovó de estar sempre te apoiando.
Aos colegas de mestrado, Wellington, Érika, Fábio, Heloísa, Cristian e Wilson agradeço
a vivência das várias experiências de pesquisa e da vida que me ensinaram a pensar como
coletivo, a maior lição que essa turma me trouxe. Obrigada por cada gesto e conversa que não
me deixaram desistir. Gratidão pelo apoio, proteção e carinho nos momentos em que a academia
se mostrou hostil às diferenças sociais que reverbera no tempo e no fazer científico de cada um.
Escrevo aqui meu respeito, consideração e agradecimento pela partilha de conhecimento
e memórias registradas de cada entrevistado para a produção desta pesquisa: Meu muito
obrigada à Maiume, Mãe Iyanarê, Mameto Nangetu, Mãe Rosa, Mãe Ojí Mãe Obasanjí, Pai
Walmir, Pai Carlinhos, Romeu. Espero ter conseguido através dessa biografia me aproximar do
esposo, filho, amigo e pai que Ivonildo dos Santos foi e registrar os feitos dele como
contribuições importantes para o candomblé do Pará. Agradeço também o carinho de mãe
Odomi, Solange e minha mãe pequena Alessandra durante a estadia em Salvador, obrigada por
terem me acolhido como filha e me guiado pela cidade.
Por fim, preciso reconhecer a importância e a necessidade que tive de me aquilombar
para suportar as várias pressões que senti durante a pós-graduação por ser mulher e mãe. Meu
profundo agradecimento às amigas que compõem a minha rede de apoio, mulheres fortes e
conscientes de que se unir para sobreviver e produzir é necessário mesmo em tempos de
“normalidade”, mas especialmente durante a pandemia de covid-19 que nos sobrecarregou
ainda mais. Dediquei o trabalho à essas mulheres por terem me ajudado a manter um ambiente
psicológico salutar para conseguir dar conta das demandas que se impuseram nesses tempos
difíceis.
Eu sou porque nós somos!
Homenagem ao Malandro

Eu fui fazer um samba em homenagem


À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais
Eu fui à Lapa e perdi a viagem
Que aquela tal malandragem
Não existe mais
Agora já não é normal
O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal
Mas o malandro pra valer
Não espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho e tralha e tal
Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central

Chico Buarque
RESUMO

A presente pesquisa é uma etnografia da vida de um sacerdote da música sacra


candomblecista chamado Ivonildo dos Santos. Homem negro, baiano, que transgrediu as
normas da tradição candomblecista ao galgar status de sacerdote. Este alabê se estabeleceu no
Pará em meados da década de 80 quando os esforços para a construção dessa identidade
religiosa estava em voga em Belém. A importância dele para o campo afro-religioso paraense
foi formar outros alabês, ensinar cantigas e danças aos candomblecistas locais, ajudando a
solidificar e expandir a nova matriz religiosa. Procurei investigar a formação e as influências
religiosas que ele adquiriu na Bahia através das relações familiares e dos grupos religiosos que
transitou antes de vir para Belém. Mapeei as relações que estabeleceu com os primeiros
terreiros de candomblé de Belém e descrevi as contribuições do ogan para a história do
candomblé local. Outra questão levantada é a análise de que forma a negritude e a baianidade
funcionaram como capital simbólico que sustenta Banjo como um ícone do candomblé
paraense.

Palavra-Chave: Etnobiografia, Candomblé, Religião Africana, Música Sacra.


ABSTRACT

This research is an ethnography of the life of a priest of sacred Candomblé music called
Ivonildo dos Santos. A black man from Bahia, who transgressed the norms of the Candomblé
tradition by gaining the status of priest. This alabê was established in Pará in the mid-1980s
when efforts to build this religious identity were in vogue in Belém. Its importance for the Afro-
religious field in Pará was to train other alabês, teach songs and dances to local
Candomblecists, helping to solidify and expand the new religious matrix. I tried to investigate
the formation and religious influences he acquired in Bahia through family relationships and
the religious groups he moved before coming to Belém. I mapped the relationships he
established with the first candomblé terreiros in Belém and described the ogan's contributions
to the history of local candomblé. Another issue raised is the analysis of how blackness and
Bahianity functioned as symbolic capital that sustains Banjo as an icon of Candomblé in Pará.

Keywords: Ethnobiography, Candomblé, African Religion, Sacred Music.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Hun do orixá Xangô Ayrá de pai Cícero em seu terreiro keto na capital baiana. Ao
fundo, sentada na cadeira de autoridade, está mãe Pureza, ícone do candomblé jeje savalú de
Belém do Pará. .......................................................................................................................... 31
Figura 2: Banjo acompanhado de mãe Guiomar e pai Boreco no dia do seu orukó ................ 33
Figura 3: Xangô de pai Cícero dando hun, sendo acompanhado por sua sacerdotisa, mãe Pureza,
que traz na mão direita o xere, e Banjo atrás tocando o gan no terreiro de pai Cícero em
Salvador. ................................................................................................................................... 34
Figura 4: Ivonildo dando hun no orixá Omolu. ........................................................................ 38
Figuras 5 e 6: À esquerda, Ivonildo com a filha Rosenilda no colo em frente ao terreiro de Pai
Cícero e com a primeira esposa, Rosália (mãe Ojí) à direita. .................................................. 42
Figura 7: Relacionamentos amorosos e filhos de Ivonildo em Salvador e em Belém. ............ 43
Figura 8: Guia de Recolhimento para iniciação de mãe Rosa expedida pela FEUCABEP. .... 69
Figura 9: Ivonildo dos Santos dançando para o seu orixá na inauguração do próprio terreiro
denominado Ilê Asé Omolu Sadê em agosto de 2000............................................................... 73
Figura 10: Certificado de Atividades Religiosas conferido pela URCABEP ao terreiro de
Ivonildo dos Santos. ................................................................................................................. 74
Figura 11: Banjo dirigindo a festa de candomblé de pagamento de obrigação do ogan Márcio
à direita. Ambos os ogans da foto são filhos do orixá Omolu que se apresenta coberto de palhas.
.................................................................................................................................................. 80
Figura 12: Banjo cantando para o hun de Iemanjá da sua tutora espiritual, mãe Iyanarê. ...... 81
Figura 13: Íkaro, filho mais jovem de Banjo tocando no dia de sua saída como alabê. .......... 86
Figura 14: Orquestra de candomblé no terreiro Ilê Asé Iyá Omi Olokun, liderado por mãe
Iyanarê. Da esquerda para a direita: Romeu (hun), Walter (hunpí), Kinho, Banjo (lé) e
Maurinho (gan). ........................................................................................................................ 89
Figura 15: Certificado do curso de Yorubá conferido a Banjo no ano de 1993. ...................... 96
Figura 16: Diploma de Honra ao Mérito concedido por Instituições vinculadas ao candomblé
angola de Belém. ...................................................................................................................... 99
Figura 17: Certificado do Instituto Max Planck. .................................................................... 100
Figura 18: Ivonildo dos Santos recebendo a comenda Mãe Doca na ALEPA em 2012. ....... 101
Figuras 19, 20, 21, 22, 23, 24: Material utilizado no Curso de Atabaques ministrado por Banjo.
................................................................................................................................................ 102
Figura 25: Primeira página da Lista de Presença no velório de Banjo com as assinaturas de afro-
religiosos que foram prestar a última homenagem. ................................................................ 111
Figura 26: Nota de pesar do Ilê Asé Aga Arô Nilé em decorrência da morte de Ivonildo dos
Santos. .................................................................................................................................... 112
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 15

2. UM MESTRE EM CONSTRUÇÃO: A HISTÓRIA DE VIDA DE IVONILDO DOS


SANTOS ENTRE AS NAÇÕES DO CANDOMBLÉ BAIANO ........................................ 24

2.1. NIDINHO: O FURA RONCÓ ................................................................................. 25

2.2. NASCIMENTO DO OGAN JI GONGOJI ................................................................ 28

2.3. UM MALANDRO BAIANO EM BELÉM DO PARÁ: PARAFRASEANDO O MITO DE


ZÉ PELINTRA ............................................................................................................ 39

3. A CHEGADA DO CANDOMBLÉ EM BELÉM ATRAVÉS DOS AGUIDAVI DE NEGO


BANJO ....................................................................................................................... 49

3.1. “PARA FAZER FESTA BONITA”: BANJO E O CONTEXTO DA CHEGADA DO


CANDOMBLÉ NO PARÁ ............................................................................................ 50

3.2. UM SUJEITO LIMINAR: CONFLITOS E HIERARQUIA NO CANDOMBLÉ


PARAENSE ................................................................................................................ 58

3.3. A BAIANIDADE QUE CONFERE PODER: UM ALABÊ COM STATUS DE


SACERDOTE ............................................................................................................. 66

4. A PEDAGOGIA DO CANDOMBLÉ: O SABER, O FAZER E POR QUE NÃO O


ESCREVER? .............................................................................................................. 76

4.1. O SABER ............................................................................................................. 78

4.2. O FAZER ............................................................................................................. 82

4.3. E POR QUE NÃO ESCREVER? ............................................................................ 90

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 107

6. REFERÊNCIAS .................................................................................................... 116


15

1. INTRODUÇÃO

Ivonildo dos Santos é um nome bastante conhecido no candomblé paraense, talvez não
através do nome oficializado pelos documentos, mas pela alcunha de Banjo, Nidinho, Nego,
entre outras. Baiano, homem negro, ogan do candomblé keto iniciado em Salvador, de classe
social baixa, chegou em Belém nos meados da década de 80 e faleceu no ano de 2016.
O contato mais próximo que tive com ele foi em dois períodos específicos. O primeiro
se deu em meados de 2002 quando ele, por estar doente e sem ter condições de custear o
tratamento, ficou hospedado no terreiro que eu frequento. O segundo momento foi quando
realizei uma entrevista com ele para o trabalho de conclusão de curso de graduação no ano de
2011. Desconsiderando esses períodos, os contatos eram esporádicos e ocorriam quando eu
visitava outros terreiros em que ele estava tocando o candomblé.
No trabalho de graduação realizei uma etnografia do terreiro que faço parte, Ilê Asé Oyá
Nirolê Igbalé, intitulada “O candomblé em cima do muro: reafricanização ou ressignificação?”,
defendida na Universidade do Estado do Pará (UEPA), em 2012, para o curso de licenciatura
plena em Ciências da Religião. Meu objetivo foi refletir sobre as transformações do candomblé
de Belém em função da organização da tradição jeje, o terceiro movimento de entrada do
candomblé baiano no Pará4. Para tal, aproximei-me de Ivonildo para coletar a sua entrevista.
Naquela ocasião, o que me interessava era a explicação dele para um fato de sua vida
contestado por muitos candomblecistas, a iniciação de mãe Rosa5, minha mãe-de-santo. Mãe
Rosa foi iniciada pelo próprio Banjo que, por ser ogan6, não teria essa competência, de acordo
com as regras de constituição de família nas religiões de matrizes africanas. Além dessa
questão, ele falou sobre a sua trajetória em Belém, muito de seu relato era em tom de queixa
sobre ingratidão, pois ele demonstrava que sabia da importância que teve para a implementação
e expansão da religião, mas não se sentia reconhecido e prestigiado pelo que havia feito.

4
O primeiro movimento de entrada do candomblé no Pará se dá na década de 50 quando um homem negro
chamado Astianax Gomes Barreiro (Prego), saiu de Belém para Salvador, passa por um processo de iniciação no
keto (Terreiro do Rufino) retornando à capital paraense sem estabelecer, de fato, uma nova matriz religiosa. O
segundo movimento deu-se entre as décadas de 70 e 80, quando sacerdotes, adeptos do tambor de mina e da
umbanda realizam dois movimentos: saída para iniciação no candomblé keto e angola, na cidade de Salvador e
“importação” de sacerdotes baianos para iniciação dos mesmos em Belém. O terceiro foi o advento de uma terceira
matriz de candomblé em território paraense, o Jeje, em meados dos anos 2000.
5
Vale mencionar que, pela estrutura organizacional do candomblé, só quem realiza iniciação é o sacerdote ou a
sacerdotisa dirigente de terreiro. Aos membros dos demais cargos ou sacerdócios é vetado a realização da ação
iniciática. Neste sentido, um ogan iniciar um filho foi visto, por alguns, como um erro litúrgico.
6
Cargo masculino de pessoas impassíveis ao transe. Entre outras funções, as principais são: a responsabilidade
pela música litúrgica e pelo sacrifício de animais.
16

O interesse em escrever a biografia dele não foi espontâneo, mesmo observando que ele
era uma figura importante para o candomblé paraense. Em função de seus conhecimentos de
toques e cantos, era tido como referência entre os terreiros de Belém e as festas de candomblé
que ele regia eram bastante apreciadas pelos candomblecistas. Foi a minha orientadora,
professora Taissa Tavernard, quem sugeriu o trabalho ao perceber que o candomblé só se radica,
enquanto culto em Belém, quando um sacerdote retorna de Salvador, depois do processo
iniciático, trazendo consigo uma equipe de especialistas da nova liturgia.
Nas leituras para construção do objeto, foi possível descobrir instrumentos teóricos e
metodológicos que possibilitam investigar o indivíduo e seu contexto, colocar em análise a
minha experiência com o grupo e a subjetividade do encontro com o pesquisado. Os trabalhos
que Banjo realizou e o tratamento que recebeu durante a vida podem revelar as estratégias de
implementação e expansão da religião.
O primeiro candomblecista - Astianax Gomes Barreiro - foi iniciado no candomblé
durante a década de 50, retornando à capital paraense dez anos depois sem conseguir manter
aberto um terreiro que fosse capaz de estabelecer a nova matriz religiosa no Pará. O motivo
desta dificuldade era a inexistência de um corpo religioso com conhecimento desta nova matriz
religiosa totalmente diferente do tambor de mina e da umbanda já presentes em Belém do Pará.
Pai Prego, como era conhecido, voltou de Salvador sozinho sem assessoria de uma ekedi7,
alabê8 ou axogun9 que conhecessem a liturgia.
O candomblé de fato só se radica no estado entre o final da década de 70 e o início dos
anos 80. Um dos pioneiros nesse processo foi o sacerdote Walmir da Luz Fernandes, iniciado
por Pai Cícero em Salvador, tendo trazido consigo o ogan aqui biografado. Em função do
exposto, argumento que sua figura foi de fundamental importância para a gênese do candomblé
em Belém.
O objetivo central é reconstruir a trajetória de vida de Ivonildo dos Santos, com ênfase
na religião, para investigar em qual medida os conhecimentos religiosos desse ogan
contribuíram para a radicação e expansão do candomblé no Pará. Destarte, procura-se investigar
a formação e as influências religiosas que adquiriu na trajetória que construiu para si na Bahia
através das relações familiares e dos grupos religiosos que transitou antes de vir para Belém.

7
Cargo feminino de pessoas impassíveis ao transe. As ekedis cuidam da segurança física, das roupas, do conforto
de quem está virado no santo e da arrumação de todos os elementos que o ritual irá precisar, seja ele público ou
secreto.
8
Cargo exclusivamente de homens que não entram em transe. Sacerdote que aprende os códigos musicais que
produzem o transe, responsável pela orquestra religiosa e manutenção dos instrumentos musicais sagrados.
9
Cargo masculino de pessoas impassíveis ao transe. Ogan responsável pelo sacrifício de animais votivos.
17

Mapeei as relações que estabeleceu com os primeiros terreiros de candomblé de Belém e


descrevi as contribuições do ogan para a radicação e expansão do candomblé local. Outra
questão levantada é a análise de que forma a negritude e a baianidade funcionaram como capital
simbólico que sustenta Banjo como um ícone do candomblé paraense.
A primeira problematização que se fez dos estudos sobre a chegada do candomblé em
Belém é que o estabelecimento da religião foi explicado somente pelas trajetórias de pais e
mães-de-santo, porém o candomblé é uma religião altamente hierarquizada onde cada cargo
executa funções específicas que se complementam para a realização dos rituais.
Banjo foi alabê, o cargo responsável pelos instrumentos e cantos, cuja maior
responsabilidade é comandar as festas religiosas do terreiro. A festa é um elemento importante
da liturgia candomblecista, é central no culto ao ponto da religião se confundir com ela, pois “a
própria vida dentro do terreiro pode ser pensada como a permanente produção da próxima
festa” (AMARAL, 2002, p. 29-30).
Rita Amaral esclarece também que é nesse momento que a identidade do grupo se
expressa plenamente na “glória da coletividade” se mostrando publicamente em uma vitrine
que aguça a curiosidade dos que não conhecem a religião, uma forma mais “palatável” de se
apresentar, uma vez que os rituais privados em que ocorrem o sacrifício de animais e
escarificações, por exemplo, são mais difíceis de serem compreendidos por quem desconhece
a religião (AMARAL, 2002; SILVA, 2015).
Diante desses argumentos, parece razoável refletir sobre a importância das festas de
candomblé no contexto de construção de identidade e expansão da religião quando se disputava
reconhecimento em uma terra cuja tradição é o tambor de mina e qual valor se atribuía a um
ogan alabê experiente que ficou conhecido por seu perfeccionismo na realização dessa parte
festiva da liturgia, que se propôs a ensinar o que sabia, transitando por terreiros de diferentes
nações10.
Destarte, a pesquisa levanta alguns questionamentos para nortear a investigação sobre o
tema: Por que o candomblé não se enraíza no Pará desde a década de 50 com a iniciação de Pai
Astianax? Em qual medida os conhecimentos que Banjo tinha ajudaram a radicar a religião?
Qual a importância do processo migratório de uma estrutura ritual complexa para a existência
dessa religião como matriz em território paraense? Como pensar o Banjo nesse contexto? Foi a
baianidade que permitiu, na presença de sacerdotes paraenses, ele ir além de sua função na

10
Grupos étnico-religiosos de teologias específicas que sustentam a identidade dos afro-religiosos. Os principais
marcadores dessas diferenças étnicas que formam as identidades do candomblé keto, angola e jeje são: língua
litúrgica, panteão, mitos, toques, danças, etc.
18

religião iniciando pessoas e abrindo seu próprio terreiro? Por que Banjo parece ter ganhado
reconhecimento após a morte, mas não desfrutou de prestígio em vida?
E diante das problematizações, lanço algumas hipóteses a serem confirmadas ou
refutadas: a primeira hipótese levantada foi a de que os conhecimentos que Ivonildo tinha das
diferentes nações de candomblé foi construído através de sua família, intensa participação
religiosa em rituais de diferentes terreiros e por sua dedicação em aprender os toques e cantigas,
ciente de sua notória habilidade musical.
Sobre a chegada da religião, aponta-se Banjo como um dos precursores baianos que
ajudou na organização das primeiras casas de candomblé de Belém e contribuiu para a expansão
dessa matriz religiosa, através dos toques e cantos, ensinando os primeiros ogans e
reorganizando a pronúncia e sequência ritual das festas de candomblé de Belém, através de
cursos e apostilas construídas em parceria com estudiosos da língua ritual, o yorubá.
As diferenças étnicas que moldam as identidades dos cultos candomblecistas não
impediram que Banjo, mesmo chegando como representante da tradição keto baiana, fosse bem-
vindo e estabelecesse relações de cooperação e amizade com terreiros candomblecistas
paraenses de diferentes nações, pois o que estava em jogo era a legitimidade do candomblé
perante as outras religiões, essa liberdade de transitar e contribuir com diversos terreiros de
nações diferentes foi possível pelo acúmulo de conhecimento sobre a musicalidade litúrgica
que o tornou um especialista durante a juventude em estreita relação com a religião.
E sobre a importância dele no contexto pesquisado, sugere-se que a negritude e a
baianidade foram o capital simbólico que conferiram à ele uma posição de privilégio durante
certo tempo, tornando aceitável o extrapolamento da função de ogan diante dos sacerdotes
paraenses, ou seja, estes dois elementos lhe permitiram exercer influência sobre os sacerdotes
locais que lhes facultaram confiança. Mas na medida em que os conhecimentos sobre a religião
se popularizaram e a identidade candomblecista ganhou reconhecimento, esse capital foi
perdendo força. Traços da personalidade, a maneira de ensinar e fatores socioeconômicos
também contribuíram para o declínio.
A perspectiva que se tem sobre campo religioso é bourdieusiana, como um campo social
composto por relações de força, lutas e estratégias de monopólio com características
específicas. Sendo a organização da hierarquia de cargos, uma característica do campo na
medida em que se desenvolve e complexifica.
A minha inserção no candomblé ocorreu antes de pesquisá-lo, a pertença ao grupo me
possibilitou conhecer o ethos da religião, mapear o campo e reconhecer os principais ícones do
19

candomblé paraense. A posição religiosa que ocupo impõe limitações, pois também sou
observada e os meus laços de parentesco religioso podem suscitar dúvidas sobre as intenções
da pesquisa, uma vez que as entrevistas são realizadas com representantes das três vertentes
rituais do candomblé que carregam muitas disputas entre si. Em decorrência disso, busco a
formalidade ao fazer contato através de ligações ou mensagens solicitando a permissão para as
entrevistas, ocasião em que eu explico os objetivos do estudo, retomando esses esclarecimentos
no ato da entrevista.
O candomblé paraense será analisado através da experiência individualizada de Banjo
“situada num intrincado complexo de relações pessoais e públicas em que se tensionam
personagens culturais ou sociais e formas criativas derivadas da pessoalização”
(GONÇALVES, 2012, p. 31). O foco não é o indivíduo em si, mas a pessoa/personagem que
ao fazer parte de uma nova realidade religiosa interpreta, modifica e é modificado por ela. As
imagens que se criaram sobre Banjo podem revelar os vários estágios de construção e
reconstrução da identidade candomblecista paraense e as contribuições dele nesse processo.
O método adotado é a etnobiografia porque se propõe a etnografar a trajetória religiosa
de um ogan alabê como via de investigação sobre o candomblé. A proposta do método
etnobiográfico é apresentado por Marco Gonçalves como a noção que...

(...) problematiza, por assim dizer, o etnográfico e o biográfico, as experiências


individuais e as percepções culturais, refletindo sobre como é possível estruturar uma
narrativa que dê conta desses dois aspectos na simultaneidade, ou seja, propõe, a um
só momento, repensar a tensa relação entre subjetividade e objetividade, pessoa e
cultura (GONÇALVES, 2012, p. 20).

A etnografia que parte de uma abordagem biográfica busca retratar o indivíduo não
como uma simples manifestação da representação coletiva, desta maneira, o foco no indivíduo
está em função da sua “potência de individuação enquanto manifestação criativa, pois é
justamente através dessa interpretação pessoal que as ideias culturais se precipitam e tem-se
acesso à cultura” (GONÇALVES, 2012, p.30).
Os instrumentos utilizados para a coleta de informações são: observação participante,
análise de documentos e entrevistas. Os interlocutores foram escolhidos pelo tipo de relação
que tiveram com o pesquisado e pela sua posição na religião, pois se pretende analisar discursos
diferentes sobre o ente da pesquisa e sobre a expansão da religião. São eles: Ivonildo dos Santos
(o próprio biografado que por vezes é chamado de Banjo ou pai Nidinho) em entrevista no ano
20

de 2011; a última companheira dele, Maiume Mayara Jamacaru Cardoso que é uma Iyalorixá11
paraense; a ex-exposa Rosália Freitas de Aguiar Filha (mãe Ojí), baiana, tem o cargo de Iyá
kekerê12do terreiro baiano Ilê Asé Omi Alá fundado por mãe Guiomar já falecida; o
Babalorixá13 Walmir da Luz Fernandes (pai Walmir ou Aga Arô Nilè), paraense, tradicional
sacerdote do candomblé keto no Pará e responsável pela radicação de Banjo em território
paraense; a gaiaku14 Rosalídia Tavares Sutelo (mãe Rosa ou Oyá Nirolê), sacerdotisa do
candomblé jeje paraense que foi iniciada por Banjo; o humbono15 Carlos Alberto de Oliveira
Bottas (pai Carlinhos), baiano, tradicional sacerdote do candomblé jeje no Pará e amigo de
Banjo; Oneide Monteiro Rodrigues (Mameto16 Nangetu), paraense, amiga de Banjo; a Iyalorixá
Elizia Palheta dos Santos (mãe Iyanarê), sacerdotisa responsável pela tutela espiritual do
biografado; a Iyalaxé17 Eliane Dolores da Silva Palheta (Obasanjí), amiga paraense; Jutair
Santos de Souza (Romeu), ogan axogun18 baiano, neto de uma importante sacerdotisa baiana
do candomblé keto já falecida chamada Dewí, Romeu e Banjo tinham uma relação de amizade
com vínculos desde a Bahia; e o axogun Walter Marques Rebelo, amigo paraense e artesão que
confecciona ferragens sagradas utilizadas na maioria das religiões afro-brasileiras.
As entrevistas foram realizadas em três municípios paraenses e na capital baiana, a
saber: Belém (pai Walmir e Mameto Nangetu), Ananindeua (mãe Iyanarê, Obasanjí, mãe Rosa,
Romeu, Walter), Marituba (Maiume); e Salvador (pai Carlinhos e mãe Ojí). Dois tipos de
entrevistas foram aplicadas: as semiestruturadas, cujas perguntas variam de acordo com o
relacionamento do interlocutor com o pesquisado, mantendo algumas questões em comum no
que se refere ao prestígio ou reconhecimento de Banjo, através de um roteiro de perguntas
abertas e as abertas, com informantes que surgiram no percurso da pesquisa, pois, dessa forma,
é possível conversar de maneira informal deixando o entrevistado livre para discorrer sobre o
tema sugerido, mas mantendo a condução da entrevista com o fim de garantir uma linearidade
de pensamento, incluindo perguntas para retomar o contexto da entrevista ou para esclarecer o
que não ficou explicado quando necessário.

11
Termo do candomblé keto (também chamado de candomblé nagô) para designar o dirigente do terreiro, a mãe
de santo. O masculino desse cargo é chamado de Babalorixá.
12
Cargo feminino do candomblé keto que significa mãe pequena (o equivalente masculino é babá kekerê). A
segunda pessoa em autoridade de um terreiro.
13
Sacerdote do candomblé keto. Autoridade máxima do terreiro desta nação.
14
Sacerdotisa do candomblé jeje. Autoridade máxima do terreiro desta nação.
15
Sacerdote do candomblé jeje. Autoridade máxima do terreiro desta nação.
16
Sacerdotisa do candomblé angola. Autoridade máxima do terreiro desta nação.
17
Cargo feminino (o masculino é babálaxé) a quem compete a sucessão do terreiro após a morte do dirigente.
18
Cargo masculino do candomblé keto, responsável pelo sacrifício ritual de animais.
21

Essas duas técnicas de entrevistas são as que possibilitaram uma melhor amostra de
informações, quanto menos estruturadas as entrevistas, mais favorecem a investigação dos
aspectos afetivos e valorativos dos informantes (BONI; QUARESMA, 2005, p. 74-75).
Destarte, as entrevistas semiestruturadas e abertas foram mais apropriadas por permitirem o
acesso às explicações nativas, favorecendo o trabalho interpretativo do texto etnográfico.
As entrevistas foram gravadas em aparelho celular, posteriormente transcritas e
entregues aos informantes, quando solicitada, na ocasião em que eles assinaram o Termo de
Compromisso Livre Esclarecido (TCLE). Durante a entrevista, foi pedido ao interlocutor fotos
ou outro tipo de documento sobre Banjo que foram digitalizados e devolvidos na ocasião da
assinatura do TCLE.
Além de fotos e documentos pessoais obtidos com os interlocutores, através da minha
rede de relações, reuni registros da atuação de Banjo na produção de materiais e cursos sobre a
musicalidade candomblecista, principalmente apostilas produzidas na década de 90 e no ano de
2004 contendo várias cantigas e informações sobre os toques e saudações aos orixás, fazendo
referência ao seu nome como contribuição valiosa para a construção do material que contém
cantigas diversas em yorubá com as traduções.
Ainda procurando registros da atuação religiosa de Banjo realizei buscas na internet
utilizando os termos “Nego Banjo”, “Ivonildo dos Santos”, “mestre da cultura afro-brasileira”
entre outros, através das quais tive acesso à vídeos em que ele canta músicas autorais,
propagandas de oficinas e rodas de conversas sobre a religiosidade e cultura afro-brasileira,
notícias sobre a sua morte no ano de 2016 e uma entrevista no ano de 2008 ao Instituto Nangetu
em que ele esclarece sobre a sua vinda para Belém e a relação dele com o candomblé paraense.
Considerando os debates antropológicos sobre modelos discursivos da prática
etnográfica (CLIFFORD, 2002) e as dificuldades de representar a vida de uma pessoa, na
constante tensão entre recriar um passado real e inventar trajetórias para o indivíduo, na
textualização das informações obtidas fiz uso abundante de citações diretas na pretensão de
produzir um texto polifônico e dar voz aos interlocutores.
Sem abrir mão da interpretação das informações obtidas nas entrevistas, o intento, além
de dar voz aos interlocutores, é abrir possibilidades de outras interpretações aos leitores,
produzindo descrições densas sobre os contextos que possam ajudar a explicar os significados
que se pretende alcançar e para acrescentar o que foi captado para além dos discursos. A
interpretação praticada na etnografia tem por finalidade “traçar a curva de um discurso social;
fixá-lo numa forma inspecionável” (GEERTZ, 2008, p. 13).
22

A dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro capítulo denominado “Um


Mestre em Construção: A História de Vida de Ivonildo dos Santos entre as Nações do
Candomblé Baiano” tem por objetivo falar da história de vida do Banjo em Salvador, enfocando
aspectos de sua trajetória pessoal, familiar, trânsito pelas casas e matrizes de candomblé e raízes
religiosas de sua família. O capítulo tem três subtópicos que receberam os seguintes títulos:
“Nidinho: o Fura Roncó” que discute o trânsito deste sujeito por vários terreiros com objetivo
de amealhar conhecimento sobre a música sacra candomblecista; “Nascimento do Ogan Ji
Gongoji” que aborda seu processo iniciático discutindo as várias versões sobre quem o iniciou;
e “Um Malandro Baiano em Belém do Pará: Parafraseando o Mito de Zé Pelintra” que
estabelece uma analogia entre a personalidade do biografado e a mitologia contada sobre o Exú
da umbanda conhecido como Zé Pelintra.
O segundo capítulo recebeu o título de “A Chegada do Candomblé em Belém através
dos Aguidavis19 de Nego Banjo” aborda a chegada de Banjo no Pará, seu papel no processo de
formação dos terreiros locais, o status galgado junto ao campo afro-religioso brasileiro que lhe
conferiu a possibilidade de flexibilizar a estrutura hierárquica do candomblé ao realizar a
feitura20 de mãe Rosa e abrir seu próprio terreiro. Possui três subcapítulos denominados
respectivamente de: “‘Para Fazer Festa Bonita’: Banjo e o Contexto da Chegada do Candomblé
no Pará”; “Um sujeito liminar: Conflitos e Hierarquia no Candomblé Paraense”; e “A
Baianidade que Confere Poder: Um alabê com Status de Sacerdote”. O primeiro chama a
atenção para a importância de um alabê experiente no contexto de chegada do candomblé em
Belém. O segundo analisa a carreira religiosa deste que excedeu os limites do seu cargo e o
terceiro relata a iniciação de Oyá Nirolê pelo alabê baiano.
O terceiro capítulo chama-se “A Pedagogia do Candomblé: O Saber, o Fazer e Por Que
Não Escrever?”, analisa como a estratégia de ensino utilizada por Banjo para o repasse do
conhecimento extrapola os métodos tradicionalmente utilizados nos terreiros. O subtópico “O
Saber” visa mostrar como no processo de repasse do conhecimento, ele demonstrava valorar a
dificuldade que passou para adquirir o saber ritual da música sacra em Salvador o que fez a
forma de ensinar austera de Banjo. No item “O Fazer” procurei apresentar a formação de um
alabê, passando pelo processo de escolha para o cargo, iniciação e conhecimentos necessários.
E no último “E Por Que Não escrever?”, o objetivo foi demonstrar a influência da pedagogia

19
Vareta para tocar os atabaques nos candomblés keto e jeje, preparada a partir de galhos finos de goiabeira.
20
Termo êmico usado como sinônimo de iniciação. Outro termo êmico utilizado com o mesmo significado é fazer
o santo.
23

acadêmica na forma de repasse de conhecimento do biografado sobre a musicalidade litúrgica


nos terreiros que Banjo ensinou.
24

2. UM MESTRE EM CONSTRUÇÃO: A HISTÓRIA DE VIDA DE IVONILDO DOS


SANTOS ENTRE AS NAÇÕES DO CANDOMBLÉ BAIANO

Neste capítulo, tentarei mostrar a construção de um ogan que por razões religiosas,
raciais e econômicas buscou amealhar conhecimento e construir uma carreira que flexibilizou
a estrutura hierárquica da religião em função do contexto em que esteve inserido. Ivonildo
dedicou-se ao aprendizado da liturgia, buscou especializar-se na musicalidade da religião e
construiu para si uma imagem de sacerdote, aproveitando o contexto de exportação do
candomblé baiano para outros estados brasileiros e a carência de sacerdotes especialistas no
Pará.
Essa construção de si teve muito de seu esforço pessoal em buscar aprender a liturgia
candomblecista na juventude em diversos terreiros e nações do candomblé baiano. Além disso,
ele foi enviado como representante do candomblé baiano para ajudar a fundar um tradicional
terreiro paraense e contou com a anuência de sacerdotes baianos e paraenses para as práticas
que lhe conferiram status de sacerdote.
Bem verdade é que o consentimento para flexibilizar a hierarquia começou a ser
problemático quando representou concorrência com os sacerdotes paraenses já formados. Pelos
baianos ele foi criticado uma vez que os mesmos não concordaram com as mudanças teológicas
produzidas a partir dessa situação e que dividia o capital simbólico que tinham com alguém que
não foi feito para ser dirigente de terreiro, iniciador de adeptos.
Conforme mencionado na introdução, esse capítulo tem por objetivo analisar a história
de vida de Banjo no seu estado de origem. Pontuo o nascimento e a infância em Acupe 21, o
processo de migração para a capital Salvador, o trânsito pelas casas e matrizes de candomblé
tradicionais e a formação na música sacra afro-brasileira e seu estilo de vida que muito se
aproxima do arquétipo do orixá Exú.
É possível perceber que as entrevistas para a construção dessa biografia se aproximam
do que Bourdieu no texto “A ilusão biográfica” (2002), descreve como sendo próprio desse tipo
de relato, biográfico ou autobiográfico, uma tentativa de criar uma história totalizante, onde os
acontecimentos fazem sentido e possuem uma direção desde sempre conhecida. Esse tipo de
relato tem a preocupação “de dar sentido, de tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo
tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância, estabelecendo relações
inteligíveis, como a do efeito à causa(...) final" (BOURDIEU, 2002, p.184).

21
Distrito que faz parte do município de Santo Amaro da Purificação, localizado no Recôncavo Baiano.
25

Além disso, nota-se que o jogo das identidades no campo religioso afro-paraense,
balizam os discursos de acordo com a posição religiosa e os interesses sustentados pelos
entrevistados cujos discursos são sempre uma tentativa de enquadrar a memória do candomblé
de uma forma a valorizar a etnicidade que o agrega (POLLAK, 1989).

2.1. NIDINHO: O FURA RONCÓ

Em busca de compreender as relações familiares, infância e contatos religiosos que o


pesquisado teve durante o período em que viveu na Bahia, viajei para Salvador. Antes da
viagem, estabeleci contato por mensagens com o sobrinho de Banjo chamado Paulo, cujo nome
religioso é Tumbalê e pedi autorização para visitar os pais dele, Maria, irmã mais velha de Banjo
e Joaquim ou Talamonako, o cunhado, que moram em Acupe. Mas apesar da insistência, não
obtive êxito pois nenhuma entrevista com a família baiana do pesquisado foi realizada. A
explicação que recebi foi que ambos estavam fora de seu domicílio, a irmã fazendo consultas e
exames e o cunhado com compromissos religiosos, ambos em Feira de Santana, município
baiano, na casa do filho Ominikongo. A viagem ocorreu em janeiro de 2020, Maria faleceu em
outubro do mesmo ano.
A insistência em entrevistar Maria e Joaquim tinha por objetivo investigar as influências
na formação pessoal e religiosa de Banjo. Não dispondo desses relatos, pelas razões já citadas,
as informações sobre a vida de Banjo em Salvador foram colhidas nas entrevistas de sua
companheira Maiume, da ex-esposa Rosália (conhecida como mãe Ojí) e do amigo Carlos
Bottas (conhecido como pai Carlinhos ou humbono Carlinhos)22.
Em alguns momentos e em diferentes narrativas das pessoas que o conheceram jovem,
o nome Nidinho foi usado para se referir ao pesquisado, principalmente quando descreviam a
fase de aprendizagem ou fatos próximos à época que Ivonildo chegou em Belém e, por esse
motivo, a alcunha foi usada no título deste subcapítulo.
Ivonildo dos Santos, homem negro, nasceu no dia 19 de julho de 1954 como consta nos
documentos oficiais, em entrevista, porém, esclareceu que nasceu no ano de 1949 em Acupe na
região do Recôncavo da Bahia. Filho de Elizabeth dos Santos e Augusto Muniz, ambos afro-
religiosos e rodantes23, no entanto, não obtive informações sobre o terreiro que foram iniciados.
A mãe era filha do orixá Oxóssi e o pai, filho de Ogun. Apesar de ter conhecido o pai, Nidinho

22
Grande referência do candomblé jeje baiano que estabeleceu relação de paternidade com diversos sacerdotes
paraenses.
23
Termo utilizado para designar a pessoa que é passível ao transe, quem recebe os orixás.
26

foi registrado só no nome da mãe e não teve convivência com o genitor. Único filho homem,
teve cinco irmãs: Maria, Serenil, Joca, Ivonete e Rosália.
Passou a ser tutelado por Maria e o esposo dela, Joaquim, quando eles mudaram-se de
Acupe para Salvador. Em Caminho de Areia, um bairro de Salvador, ele conheceu Cícero
Fernandes de Araújo, babalorixá dirigente do terreiro Ilê Asé Jakó Afaberó24, templo de Xangô,
orixá para o qual Banjo foi confirmado25 como alabê, que se localizava à Rua Carneiro da
Rocha, Avenida Lima, nº. 100 – Caminho de Areia.

Ele citava muito a família dele. A família dele era bastante extensa, bastante grande.
Ele cita muito a irmã dele, a Maria que é a irmã mais velha, e que também terminou
de criar ele é... a Ivonete que é a caçula, citou muito a “Sereia” que o nome dela é
Serenil que também é irmã dele, o Luís que é um sobrinho, filho da Maria ele citava
muito. E, principalmente, que ele citava como um exemplo de pai, era o Tata
Talamonako que é cunhado dele. Ele costumava dizer que tudo que ele tinha
aprendido como homem e como ogan ele tinha aprendido com ele. Porque era o
exemplo que ele tinha de pai (informação verbal)26.

Banjo nasceu em contato com o candomblé. No trecho abaixo, ele explica a proximidade
com o candomblé angola (ou banto) desde a infância, revelando a relação da família com a
religião através do termo omó orixás27, que tem o significado de pessoas iniciadas no
candomblé, praticantes da religião. Um dos elementos que distingue as nações de candomblé é
a língua litúrgica e mesmo sendo conhecedor dessa diferença, ele utilizou os termos em yorubá,
língua do candomblé keto, nação em que ele foi iniciado, mesmo quando se referia à trajetória
no candomblé banto, cuja língua litúrgica é o quicongo e quimbundo; outros termos como
ariaxé28 e roncó29 são também yorubanos e foram utilizados para explicar que desde a gestação
ele já estava inserido no candomblé através de sua mãe, praticante da religião.

[...] de iniciado eu tenho... 48 anos de idade, eu tô com 62 anos de idade, avulso,


porque no meu documento rege isso. Mas, eu nasci no ariaxé. Eu fui iniciado
praticamente na casa do seu Benedito Gamoiace de Peraculê Grande de Tumba
Junsara, junto com o Deré Lobidí, Karalôsi de Iemanjá, Afonso de Oxóssi, Oyá... Oyá
Dessi Loyá, essa turma. A minha família são omó orixás, a minha mãe... eu,

24
Nome do terreiro grafado como se ouve na entrevista de Banjo, porém na entrevista de pai Carlinhos, que
também frequentava o terreiro de Cícero, o nome seria Ilê Asé Jakó Aberum e na entrevista de pai Walmir, iniciado
nesse terreiro, o nome dado foi Ilê Asé de Ayrá. Uma terceira grafia do nome do terreiro é Ayra Jakoberon,
encontrada na tese de José Luis Moreno Neto (2017, p. 53).
25
No candomblé, a pessoa impassível ao transe é primeiro suspensa (escolhida por um orixá durante uma
cerimônia pública, quando geralmente é carregada por pessoas confirmadas). Quando aceita o convite do orixá,
passa a frequentar o terreiro na condição de suspensa, período em que aprende as atribuições da função e aguarda
ser iniciada, ou seja, confirmada para o orixá e passa a compor a hierarquia do terreiro.
26 Entrevista concedida por CARDOSO, Maiume Mayara Jamacaru. Entrevista III [maio 2019]. Entrevistadora

Patrícia Moreira Perdigão. Marituba, 2019. Arquivo .mp3 (1h18min).


27
Termo do candomblé keto que significa filho de orixá ou filho de santo; pessoa filiada a um terreiro como adepto.
28
Segundo Cacciatore (1988), esse termo designa o banho de ervas aplicado sobre a pessoa antes dos rituais
iniciáticos.
29
Quarto do segredo onde é recolhido o neófito para os rituais e aprendizado da iniciação.
27

praticamente fui parido dentro de um roncó que antigamente não existia a marcação
do bolonan, rolou, ficou alí e tal. Eu sou irmão da finada Sindalucaia, de Karalôsi, de
Jilobi de Nanã essa turma, eu vim por aí... E, eu não sei praticamente como eu me
iniciei. Eu sei que tem esse período da casa de Cícero Fernandes de Araújo, mas se
for contar meu tempo de abian [...], eu tenho uns 60 anos de idade, 62 anos de
candomblé (informação verbal)30.

Em entrevista ao Instituto Nangetu no ano de 2008, Banjo contou que foi suspenso na
nação banto e na nação keto ainda na infância, no trecho, abaixo transcrito, é possível perceber
que antes de ser iniciado no candomblé keto, ele já tinha desenvolvido as habilidades musicais
no município em que nasceu, citando dois terreiros de candomblé banto como a fonte desse
aprendizado; é citada a iniciação da mãe e de irmãs no candomblé keto e também percebe-se
que a idade de iniciação foi superestimada.

[...] eu estava com a idade de dois anos quando fui suspenso (escolhido, destacado)
no Ilê-Axé do sr. Benedito, que era feito na casa do Ciriáco, que era angoleiro. Aos
quatro anos fui suspenso na casa Kassu Lemdembê, da nação Keto, onde minha mãe
e minhas irmãs eram iniciadas. Aos doze anos fui confirmado no cargo de Alabê para
o Orixá Xangô na casa do sr. Cícero Fernandes de Araújo. Aprendi o que sei com
muitos Mestres: com Nuca de Jacó, em Santo Amaro, e Manoel Cremildo da Cruz no
terreiro de Sr Benedito Gamoiace de Peraculê Grande, que foi feito pelo finado
Ciriáco, fundador do Tumba Junsara, que era irmão carnal e filho de santo de
Bernadino da Paixão, fundador do Bate Folha. Também aprendi junto com o sr.
Rosalvo da Cruz, ou Táta Kalendé, e Maria Rosália dos Santos, ou Mameto
Sindalucaia e com Jilobi de Nanã – era eu que levava as maiongas (banho ritual) do
inicio das suas iniciações. Aprendi a tocar com a idade de quatro anos com o sr. Mário,
que não era confirmado, mas que sabia tocar e ensinou não só a mim, como a várias
pessoas em Santo Amaro. Depois que fui pra casa de sr. Cícero, por motivos dos meus
conhecimentos anteriores de toques e cânticos, fui escolhido pelo Orixá Xangô para
ser seu primeiro Alabê. [...] Meu caminho foi assim, eu ainda criança ia com minha
mãe pro terreiro e lá aprendi a tocar muito cedo. Aos doze anos fui confirmado no
cargo de Alabê de Xangô do Babalorixá Cícero Araújo na cidade de Salvador, e desde
então assumi a função e a exerço até hoje, somando mais de quarenta anos, e
continuarei com essa função enquanto Xangô me permitir. (INSTITUTO NANGETU,
2008)31.

No trecho acima, Nidinho informa os nomes dos mestres com quem aprendeu a tocar e
cantar na longa jornada em busca do conhecimento adquirido em festas litúrgicas de diferentes
nações. Frequentou muitos terreiros e foi suspenso mais de uma vez mas não foi confirmado
porque seu objetivo era aprender os toques e cantos. Por isso foi chamado pelo amigo Romeu
de Fura Roncó. Romeu é neto de mãe Dewí, sacerdotisa baiana muito conhecida entre os
paraenses que se estabeleceu no bairro do Entroncamento em Belém na década de 80. Ela foi

30
Entrevista concedida por SANTOS, Ivonildo. Entrevista I [abr. 2011]. Entrevistadora Patrícia Moreira
Perdigão. Icoaraci, 2011. Arquivo .mp3 (59 min.).
31
INSTITUTO NANGETU. Entrevista com Nego Banjo. Blog Overblog. Belém, 11 set. 2008. Disponível em:
http://www.overmundo.com.br/overblog/entrevista-com-nego-Banjo. Acesso em: 20 jun. 2020.
28

responsável pela iniciação de diversos paraenses, faleceu no ano de 1998 nesta capital, mas foi
sepultada em Salvador.

É o cara que está em todas pra aprender. E ele era assim, ele tava em todas, ele parecia
arroz doce. tinha um candomblé ele ia, tinha um samba de caboclo e ele ia, tem um
corte ali ele ia, pai tá tendo comida pra Exú e ele ia, porque ele queria aprender
(Informação verbal)32.

Confirmando a sede de aprendizado na fase da juventude, pai Carlinhos descreve a


impressão que Nidinho passava para as pessoas que conviviam com ele na religião, “a de um
homem inteligente, de um homem sedento de saberes do candomblé relacionados a toques e
cânticos e... ele expressava isso claramente, que ele queria era melhorar, era aprender mais e se
especializar nisso”.
O humbono Carlinhos, que conheceu Banjo no início da década de 70 no terreiro de pai
Cícero, afirma que conheceu algumas pessoas da família consaguínea de Ivonildo, mas não
tinha intimidade com eles. Refere que Banjo era ligado a um núcleo religioso de candomblé
banto, família ligada a Deré Lobidito33 em Feira de Santana e já tocava na época.

2.2. NASCIMENTO DO OGAN JI GONGOJI

Banjo foi iniciado em agosto de 1977, aos 28 anos, como ogan alabê para o orixá Xangô
do babalorixá Cícero Fernandes de Araújo, recebendo o nome34 de Ji Gongoji35. Sobre a pessoa
que presidiu o ritual da iniciação, existem três versões. Segundo José Flávio Pessoa de Barros
(2009), um alabê é:

Trata-se de um título honorífico dos mais respeitados nas comunidades religiosas.


Cabe a ele, além da função de entoar os cânticos e iniciar no aprendizado litúrgico os
que ainda encontram-se em formação, zelar pelos instrumentos musicais, conservar
sua afinação, e providenciar as cerimônias de consagração daqueles que, produzindo
os sons da música, estabelecem a relação entre os homens e as divindades. Os
instrumentos musicais recebem, carinho e consideração especial. Somente os
iniciados podem neles tocar, e as mulheres apenas em situações particulares” (Barros,
2009, p. 71)

32 Entrevista concedida por SOUZA, Jutair Santos de. Entrevista VII [jan. 2020]. Entrevistadora Patrícia Moreira
Perdigão. Ananindeua, 2020. Arquivo .mp3 (48 min).
33
Nome provavelmente iniciático de uma sacerdotisa de candomblé banto que ora é citado como Deré Lobidi e
outra como Deré Lobidito.
34
Quando uma pessoa é iniciada nas religiões africanas ela recebe um nome litúrgico que marca a sua identidade
e a identidade de seu orixá, o termo que designa o nome de iniciado no candomblé keto é orukó.
35
Não consegui informações sobre a tradução desse orukó e, apesar de algumas tentativas, não consegui traduzir.
Sei que o termo Ji se refere às divindades da mitologia fon (etnia que dá origem ao candomblé jeje). Algumas
divindades desse panteão (denominados voduns) estão presentes no candomblé keto, sendo Omolu, orixá de
Ivonildo, uma dessas divindades.
29

Na entrevista ao Instituto Nangetu (2008), Banjo afirma que três pessoas estavam
presentes no ritual da sua iniciação: os ogans Antonio Pejigan36 e Dagoberto (pai Boreco) e a
mãe-de-santo Guiomar de Oxum, dirigente já falecida do Ilê Asé Omi Alá, não explicitando
quem o iniciou. As pessoas que participam diretamente do ritual de iniciação são o sacerdote
iniciador, mãe pequena e pai pequeno, estes dois últimos auxiliam o sacerdote durante o ritual
e são responsáveis pela orientação do neófito.

[...] Neste período marcava-se presente na minha iniciação Antônio Pegigan, da


Corcunda de Yayá, sr. Dagoberto, Ogã confirmado para o caboclo Pena Verde,
angoleiro e meu pai pequeno, e sra. Guiomar de Oxum, minha mãe pequena, com eles
eu continuei meus aprendizados e a essas pessoas eu agradeço tudo o que sei.
(INSTITUTO NANGETU, 2008).

Em entrevista a mim concedida, Banjo fala assim sobre seu iniciador:

[...] Eu fui confirmado por Antonio Pejigan, que se chamava lá na Cacunda de Yayá
Antonio Pejigan de Logun Edé. Quando eu vim me embora, seu Cícero faleceu, eu
não fiquei de vumbi. Quando o Antonio Pejigan faleceu, fiquei de vumbi [...]
(informação verbal)37.

Necessário dizer que os três sacerdotes são de nações diferentes. O terreiro Cacunda de
Yayá de onde descende Antonio Pejigan38, é a casa matriz do candomblé jeje praticado em
Belém do Pará porque dele também descende mãe Pureza, iniciadora de pai Carlinhos que
representa essa tradição; mãe Guiomar de Oxum, conforme revela mãe Ojí, filha de santo da
referida sacerdotisa e ex-esposa do pesquisado, era da nação keto; e Dagoberto é apontado por
Banjo como da nação angola.
A mobilidade entre as nações é recorrente. O convite para participar de uma obrigação39
em terreiro de nação distinta dependia dos laços afetivos entre seus sacerdotes. Geralmente
isso ocorria quando se entendia que o convidado “estava imbuído de poder e saber religioso” e
que tinha “competência ritual para assumir tão importante função” (SANTOS, 2013, p. 107).
Nívea dos Santos revela na biografia de Gaiaku Luiza que a sacerdotisa foi mais de uma vez
convidada para ser mãe pequena em terreiros de nações diferentes quando ainda era iyawô40 e,
depois de se tornar sacerdotisa, também realizou iniciações no keto e no jeje, tendo ela sido

36
Ogan responsável pelo sacrifício de animais na nação jeje, corresponde ao axogun do candomblé keto.
37
Entrevista concedida por SANTOS, Ivonildo. Entrevista I [abr. 2011]. Entrevistadora Patrícia Moreira
Perdigão. Icoaraci, 2011. Arquivo .mp3 (59 min.).
38
Termo que denomina o ogan responsável pelos rituais de sacrifício no candomblé jeje.
39
Cada iniciado precisa cumprir os rituais de um, três, sete, quatorze e vinte e um anos de iniciação. Nesses
momentos, os vínculos com o orixá e com a família de santo são reforçados através de um período de reclusão
que culmina com uma festa de apresentação.
40
Pessoas iniciadas que são suscetíveis ao transe. Essas, após sete anos de iniciação poderá ascender ao cargo de
sacerdotes dirigentes de terreiro ou outro cargo auxiliar específico para quem é passível ao transe.
30

iniciada primeiro no keto e depois no jeje mahi, esta última sendo a sua escolha como identidade
religiosa.
Na versão de mãe Oji e pai Carlinhos, a sacerdotisa responsável pela iniciação de Banjo
foi mãe Pureza, tendo como pais pequenos mãe Guiomar e pai Boreco. Antonio Pejigan surge
no relato de pai Carlinhos como quem auxiliou mãe Pureza, juntamente com pai Boreco.
Quando pai Carlinhos foi questionado sobre quem iniciou Banjo, expôs essa divergência de
informações:

Eu não sei porque de um determinado tempo pra cá, até ele morrer, ele negava a
participação da minha mãe de santo na iniciação dele. Quer dizer, não que ele negava,
mas ele só dizia que quem confirmou ele foi pai Boreco. Mas, na realidade, não foi o
pai Boreco que iniciou ele, quem iniciou ele foi a minha mãe de santo que foi auxiliada
pelo pai Boreco que foi o pai pequeno e por Tonho Pejigan. (Informação verbal)41.

Na versão de pai Walmir, Banjo foi iniciado por mãe Guiomar, sacerdotisa keto, mãe de
santo de mãe Ojí que foi a primeira esposa de Banjo. Pai Walmir cita pai Boreco como pai
pequeno e afirma não lembrar quem foi a mãe pequena.
Importa menos tentar contradizer uma das três versões do que analisar o convívio de
Banjo com as diferentes identidades candomblecistas em Salvador, as intenções dos discursos
ou os lapsos da memória, pois é a construção da memória em sua íntima relação com a
identidade o mais interessante para a investigação.

[...] A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, a nossa
disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por
mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem
que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque
nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de
valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as
imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista
(BOSI, 1994, p. 55).

A identificação com uma nação de candomblé é uma questão importante para os


religiosos que utilizam nomes de seus iniciadores e nomes de terreiros antigos para construírem
a sua linhagem, demarcando assim as diferenças identitárias, baseadas em traços étnicos
representados por essas nações, mais construídas e idealizadas do que factuais, sendo “um ato
de recuperação cultural” e “parte de uma narrativa”, nas palavras de Hall (2016) ao definir
etnicidade.
Hall (2016) afirma que diante das mudanças constantes, rápidas e permanentes das
sociedades modernas as instituições sociais adquirem formas radicalmente novas em relação à

41Entrevista concedida por BOTTAS, Carlos Alberto de Oliveira. Entrevista VIII [jan. 2020]. Entrevistadora
Patrícia Moreira Perdigão. Salvador, 2020. Arquivo .mp3 (30min).
31

sociedades tradicionais ou se reorganizam com princípios diferentes apresentando uma


enganosa continuidade com as formas anteriores. Essa última possibilidade parece ser o que
acontece no campo afro-religioso paraense.
Alguns dos terreiros mais antigos de keto e jeje em Belém partilham da mesma origem,
pai Cícero. Esse sacerdote se identificava como candomblé keto, mas foi iniciado por uma
sacerdotisa do candomblé angola e depois passou a pagar as obrigações42 com mãe Pureza que
esteve em Belém no final da década de 70 entre os baianos trazidos por paraenses no processo
de origem do candomblé neste estado. Ela é o nome evocado para legitimar a identidade jeje
cujo baluarte é o baiano pai Carlinhos, iniciado pela mesma. A Figura 1, abaixo, mostra mãe
Pureza no terreiro de pai Cícero dirigindo o candomblé de Xangô Ayrá, patrono do terreiro.
Figura 1: Hun do orixá Xangô Ayrá de pai Cícero em seu terreiro keto na capital baiana. Ao fundo, sentada na
cadeira de autoridade, está mãe Pureza, ícone do candomblé jeje savalú de Belém do Pará.

Fonte: Acervo pessoal de mãe Ojí.

42
Ritual de fortalecimento da aliança do adepto com o próprio orixá que é realizado após um, três, sete, quatorze
e vinte e um anos da feitura. Na última, o adepto considera ter cumprido a sua missão religiosa e ganha prestígio
através do princípio da senioridade, presente nas religiões de matriz africana.
32

Desta forma a origem do jeje no Pará não representa uma ruptura com os modelos
anteriormente estabelecidos, mas partilha com eles uma mesma origem que sustenta identidades
diferentes. Pai Cícero, através de mãe Pureza se aproximou, no pós-iniciação, de um tradicional
terreiro soteropolitano de tradição jeje savalu, a Cacunda de Yaya, mas permeneceu afirmando
a sua identidade keto. Esse sacerdote iniciou os paraenses mãe Matilde e pai Walmir que se
identificam como jeje e keto, respectivamente.
O trânsito de iniciados entre as nações de candomblé produz um acirrado jogo das
identidades que tem por objetivo angariar prestígio e poder. Esconder ou ressaltar as influências
de nomes de pessoas e terreiros na formação religiosa faz parte desse jogo. Terreiros baianos
com tradições antigas têm valor simbólico em Belém.
Sobre a intenção dos silêncios, Pollak (1989) afirma que os discursos de silêncios, bem
como de alusões e metáforas se moldam “pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser
punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal entendidos”. Caso tenha sido mãe
Pureza quem iniciou o ogan Banjo, pode ser que o agenciamento do nome dessa sacerdotisa na
construção da identidade jeje em Belém, o tenha motivado a não declarar a sua filiação.
O jeje savalu é o movimento de entrada mais recente do candomblé (PERDIGÃO, 2011)
e trouxe em seu bojo transformações nos modelos já sedimentados em Belém, inclusive
convertendo à essa vertente muitas casas que antes tinham identificação keto, tradição da qual
o biografado foi representante. Ser iniciado por mãe Pureza representaria mistura, dar margem
para a identidade keto ser contestada, pois as conversões à nova identidade jeje e a
sistematização dessa tradição tem sido intensificadas, ganhando visibilidade com os encontros
realizados para apresentar as raízes que remontam à tradição baiana, construir consensos e
formas de organização política para eleger representantes que defendam os interesses da
religião.
Conquanto, Nidinho afirmou que seu iniciador foi o ogan Antonio Pejigan e não pai
Boreco. A identidade religiosa de Antonio Pejigan também era jeje, com a diferença de que o
nome dele não representa uma linhagem jeje que liga paraenses a baianos, pois se não podia
negar a iniciação por um sacerdote jeje, preferia “quebrar um modelo normativo na estrutura
do candomblé” (SANTOS, 2013) que desse amparo para as suas práticas em Belém, como
veremos adiante, ao afirmar que ele próprio foi iniciado por um ogan.
Mas essa é uma conjectura que se faz diante da divergência de informações e diante dos
trechos das entrevistas de Banjo citadas anteriormente, onde, na primeira, Antonio Pejigan é a
única pessoa citada como presente na iniciação cuja função não é especificada e, no segundo
33

trecho, ele afirma que esse ogan o confirmou e em nenhuma das entrevistas aparece sequer a
menção ao nome de mãe Pureza. Na Figura 2, Banjo está acompanhado por Mãe Guiomar e Pai
Boreco, seus possíveis pais pequenos43 vestindo a faixa de alabê de Xangô no dia de sua festa
de apresentação como cargo do terreiro de pai Cícero.
Figura 2: Banjo acompanhado de mãe Guiomar e pai Boreco no dia do seu orukó44

Fonte: Acervo pessoal de Mãe Ojí.


Bosi (1994), em consonância com os estudos de Maurice Halbwachs (1990) sobre os
quadros sociais da memória, afirma que a memória individual emana dos relacionamentos com
os grupos sociais de convívio e os grupos de referência peculiares a ele. Destarte, lembrar não
é reviver, mas sim reconstruir. É um trabalho que se faz com imagens e ideias de hoje sobre as
experiências do passado, da forma como se dá no inconsciente de cada sujeito, devendo-se
duvidar da sobrevivência do passado da forma como ocorreu ao questionar as lembranças.
Banjo e pai Carlinhos, amigos desde a juventude em Salvador, apesar de guardarem
recordações de aprendizagens juntos e demonstrarem respeito um pelo outro, em Belém se

43
Pessoas que auxiliam o sacerdote durante o processo de iniciação, cuidando do bem-estar e orientando o
aprendizado do neófito.
44
Festa litúrgica de apresentação do neófito quando o orixá revela o nome iniciático (orukó).
34

afastam e com o tempo passam a representar identidades que concorrem por prestígio no campo
afro-paraense.
Sobre ser ou não Mãe Pureza a iniciadora de Banjo é um fato que pode ter ganhado
importância no Pará, quando essa sacerdotisa passa a representar o candomblé jeje praticado
em Belém através de pai Carlinhos. Soma-se o fato de pai Cícero ter pago obrigação com ela,
mas não se identificar com a nação jeje e permanecer seguindo as raízes religiosas que recebeu
de sua iniciadora, a sacerdotisa Yáya de Iemanjá cujo terreiro era situado na subida da Ladeira
do Largo do Tanque, conforme informou Banjo. Na Figura 3 é possível ver três importantes
nomes para o candomblé paraense.
Figura 3: Xangô de pai Cícero dando hun45, sendo acompanhado por sua sacerdotisa, mãe Pureza, que traz na
mão direita o xere46, e Banjo atrás tocando o gan47 no terreiro de pai Cícero em Salvador.

Fonte: Acervo pessoal de mãe Ojí.


Pai Carlinhos relatou que Yáya foi iniciada por Sabina, de candomblé angola-congo.
Mas, a despeito das mudanças de nações da linhagem de pai Cícero e a mobilidade de sacerdotes

45
O termo dar hun designa o momento da apresentação de um determinado orixá que através da dança conta os
seus mitos.
46
O xere é um instrumento musical usado para invocar o orixá Xangô. Ele pode ser de metal prateado quando
pertence a Ayrá, qualidade de Xangô que veste branco, para as outras qualidades desse orixá, o xere pode ser de
níquel ou cobre (BARROS, 2009).
47
Instrumento musical de percussão feito de metal com duas campânulas de tamanhos diferentes. Junto com os
atabaques, compõe os instrumentos básicos da orquestra religiosa candomblecista.
35

na trajetória religiosa dele, tanto Banjo quanto Carlinhos afirmam que ele foi iniciado no keto
e que era essa a sua identidade religiosa.
Para além da tradição do terreiro de pai Cícero que, conforme foi dito no parágrafo
anterior, se intitulava keto, a versão de pai Walmir sobre a iniciação de Banjo, reafirma a
identidade keto do alabê quando aponta mãe Guiomar como iniciadora dele. Dessa forma,
diminui-se as brechas para a contestação da identidade partilhada por esses sacerdotes.
O relato de Banjo afirmando ter sido iniciado por Antonio Pejigan, admite origem jeje
e cauciona a iniciação por ogans, já em Salvador, na busca por estabelecer um paralelo da sua
trajetória com a de outros ogans baianos, tentando demonstrar coerência nessa construção de si
mesmo. Assim elenca situações afins do candomblé soteropolitano para se definir em relação
com os outros e o seu lugar social (POLLAK, 1992).

[...] Dagoberto (Boreco) tem a área dele lá em Salvador; pai Pedrão iniciava na
Cocunda de Yaya; Lídio primeiro foi Ogan, hoje é vodunsi; como o presidente da
federação, Bezincodiademo, iniciava, pintava e fazia tudo, e ninguém tinha queixa de
dizer nada [...] (informação verbal)48.

Esses relatos são justificativas sobre o extrapolamento das funções de ogan, como será
mais detalhado no próximo capítulo, quando ele realizou em Belém rituais que na hierarquia
candomblecista são incumbências de sacerdotes dirigentes de terreiros, como iniciar outras
pessoas, pagar obrigações, abrir um terreiro e jogar búzios.

(...) eu estava cansando de andar com o meu awon erin orixá na casa de um e na casa
de outro e cada qual procuro ter o que é seu. Se os ogans que tiverem o meu
conhecimento procurar ter o orixá dele na casa dele é a melhor coisa que ele faz
(informação verbal)49.

Isso aí de jogar o pai pequeno dele ensinou ele jogar na pipoca, esse Dagoberto que tá
aí com 92 anos ensinou o Banjo. À mim ele nunca ensinou nem no búzio, que convive
com ele essa vida toda, desde os meus 13 anos praticamente que convivo com eles
aqui, e à mim ele nunca me ensinou nem no búzio. Mas, a Banjo ele ensinou a jogar,
Banjo sabia jogar até na pipoca (informação verbal)50.

Em conversas informais com pessoas ligadas ao candomblé baiano, percebi que no


âmbito restrito dos grupos candomblecistas, a iniciação presidida por ogans nem sempre é algo
considerado errado, tampouco incomum, porém não há consenso.

48
Entrevista concedida por SANTOS, Ivonildo. Entrevista I [abr. 2011]. Entrevistadora Patrícia Moreira
Perdigão. Icoaraci, 2011. Arquivo .mp3 (59 min.).
49
Idem.
50
Entrevista concedida por FILHA, Rosália Freitas de Aguiar. Entrevista IX [jan. 2020]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Salvador, 2020. Arquivo .mp3 (1h24min52s).
36

Ainda sobre o jogo das identidades, é preciso dizer que tanto as origens de pai Cícero
quanto as de mãe Pureza são o candomblé angola, os sacerdotes que os iniciaram foram feitos
em terreiros dessa nação, sendo as identidades que hoje seus descendentes professam uma
escolha deles dois que se tornaram referências de vertentes étnico-religiosas distintas em
Belém.
O trânsito entre as nações de candomblé e entre o candomblé e outras religiões é comum,
no entanto, o jogo das identidades costuma silenciar ou não dar ênfase a esses movimentos em
busca de uma idealização de pureza de tradição que no campo religioso, arena de disputas
políticas, é um importante capital simbólico.
As identidades religiosas em disputa no campo afro-paraense, constroem discursos que
objetivam favorecer a representação que o grupo tem de si, quase sempre no sentido da imagem
de pureza que se materializa na construção das linhagens dos terreiros. É possível que a
demarcação das diferenças de identidades seja uma preocupação maior em Belém por ser a
formação do campo afro-religioso candomblecista recente se comparado à Salvador e pela
necessidade dessas lideranças buscarem capital simbólico na ideia de pureza, seja construindo
linhagens ou resgatando traços étnicos para se diferenciarem, com o objetivo de legitimarem-
se frente a um campo eminentemente umbandista e mineiro.
Em Salvador, a presença de sacerdotes de outra nação era requerida no caso da
realização de rituais que não se conhecia, havendo trocas de segredos quando necessário ou por
consideração. A própria iniciação de Banjo contou com a presença de sacerdotes de nações
diferentes. Esse tipo de cooperação entre sacerdotes de nações candomblecistas foi uma questão
citada em palestra ocorrida no encontro de candomblecistas jejes no município de Santa Bárbara
do Pará em 2017. Em Belém essas trocas de conhecimento não são tão comuns, gerando um
certo mal estar para o sacerdote que requisita a presença de outro, especialmente entre keto e
jeje. É necessária muita confiança para que essa partilha aconteça.
Ao falar sobre identidade como um processo de instabilidades, Stuart Hall (2016) define
este conceito como uma construção constantemente refeita ou retocada em função do contexto
histórico e social.

A identidade propriamente entendida, longe de ser a coisa simples que temos pensado
que é (nós sempre no mesmo lugar), é uma estrutura que é sempre cindida. A história
da identidade é uma história de fachada. Uma história de fachada por te fazer pensar
que você está sempre no mesmo lugar, sendo que no fundo você sabe que está se
movendo. O que temos aprendido sobre a estrutura do modo pelo qual nos
identificamos sugere que a identificação não é uma coisa, um momento. Temos que
reconceitualizar a identidade como um processo de identificação e isso é bem
diferente. É algo que acontece no tempo, que não é nunca absolutamente estável, que
37

é sujeito ao jogo da história e ao jogo da diferença (HALL, 2016, p. 322; grifo do


autor).

Se o trabalho de reconstrução do passado através da memória está ligado a perspectiva


do indivíduo no tempo presente, a identidade como uma estrutura variável permite que
diferentes representações de si sejam construídas a medida em que o campo religioso se
complexifica.

E não há identidade que esteja fora da relação dialógica com o Outro. O Outro não
está fora, mas também dentro do Eu, da identidade. Portanto, a identidade é um
processo, a identidade é cindida. A identidade não é um ponto fixo, mas um ponto
ambivalente. A identidade é a relação do Outro consigo mesmo” (HALL, 2016, p.
323).

É possível, portanto, pensar que as identidades do candomblé jeje-nagô na época da


iniciação de Banjo não concorriam e, portanto, os discursos sobre as diferenças pareciam
arrefecidos ou pouco acirrados, o mesmo parece ter acontecido quando essa religião adentra o
Pará. Na época, os esforços eram para construir uma identidade baseada na alteridade da mina,
por ser hegemonia no Pará, mais do que concorrer internamente entre as nações e enfraquecer
o movimento de entrada. Não se pode desconsiderar que keto e angola se instalam na mesma
época e se distinguem desde então, sendo que o keto alçava status superior em função do
endosso dos trabalhos acadêmicos nagôcentricos, como os de Nina Rodrigues (2001) e Roger
Bastide (2010), para citar apenas o trabalho precursor e um dos mais lidos pelo povo-de-santo.
Ivonildo era filho de Omolu, orixá ambíguo que na natureza “está associado à terra,
necrópoles, estradas de barro vermelho e, sobretudo, ao sol, pois como Senhor do Sol ele
energiza o solo, germinando os grãos [...]”, representa o sol do meio-dia, a terra seca e quente,
febre alta e erupções em pústulas que deixam cicatrizes (MATOS, 2019, p. 39), orixá da doença
e da cura. Tal qual a terra que para gerar vida necessita ser apaziguada pela água, Omolu precisa
ser cultuado com máximo respeito para evitar o lado nefasto de sua natureza, doença e morte.
Esse orixá se apresenta coberto de palhas, miticamente, escondendo as cicatrizes de seu corpo
(ver Figura 4).
38

Figura 4: Ivonildo dando hun no orixá Omolu.

Fonte: Acervo pessoal de mãe Iyanarê.


Nidinho era rígido em seu sacerdócio, a busca pela perfeição na execução da orquestra
religiosa suscitava interpretações e sentimentos, por vezes ambíguos. Era admirado porque
demonstrava muito conhecimento e maestria na execução da sequência de toques e cantigas,
respeitado quando exigia que os religiosos respondessem às cantigas em palavras e passos,
traduzindo em dança o que ele estava tocando e cantando; mas temido por suas atitudes quando
as pessoas não respondiam ou não acertavam os passos evocados pela música. Nesses casos
demonstrava todo o seu descontentamento de maneira ríspida para expor quem, por desatenção
ou desconhecimento, não agia da forma que ele esperava.

Nego era enjoado, ele era encrenqueiro, ele brigava com todo mundo. Mas, ele brigava
porque ele queria ver o certo, ele ensinava pra poder ver o certo, ele queria um
candomblé bem tocado, bem cantado, bem dançado era isso que ele queria. Todo
mundo dizia “Ah! O pai Nidinho faz vergonha, esculhamba com todo mundo na frente
dos outros!”, mas é porque ele queria ver o certo (Informação verbal)51.

A presença dele exigia compromisso. E só a atenção e o respeito satisfaziam as


expectativas de pai Nidinho. Sempre disposto a ensinar, sentia-se no direito de cobrar o máximo
empenho de quem se dispunha a aprender. O conhecimento que ele passava tinha um preço que

51Entrevista concedida por SOUZA, Jutair Santos de. Entrevista VII [jan. 2020]. Entrevistadora Patrícia Moreira
Perdigão. Ananindeua, 2020. Arquivo .mp3 (48 min).
39

nem todos estavam dispostos a pagar, o alto preço do respeito incondicional, que se colocou
muitas vezes contra ele como um lado negativo da sua personalidade.
Doou aos candomblés por onde passou anos de aprendizado que na religião não se
angaria com facilidade. A vocação para a percussão e canto era um fato inegável para todos os
que o conheceram, aliada à grande disposição em conhecer as diversas liturgias étnicas
candomblecistas, fizeram dele um ogan de notável conhecimento musical.

2.3. UM MALANDRO BAIANO EM BELÉM DO PARÁ: PARAFRASEANDO O MITO DE


ZÉ PELINTRA

Nidinho tinha pouco estudo e foi uma pessoa com necessidades básicas não satisfeitas.
Dedicou-se à religião por influência familiar, afinidade, busca por afirmação positiva de sua
identidade negra e provavelmente porque ela também representava a realização e
aperfeiçoamento de seus dons musicais, além de uma alternativa de sobrevivência.
Marceneiro de profissão, trabalhou fazendo móveis no bairro do Uruguai em Salvador
e também como segurança na empresa Caraíba Metais, no município baiano de Jaguarari.
Garantia a sua sobrevivência com os trabalhos temporários e com a ajuda de pai Cícero. O
terreiro realizava toques semanais, além do calendário festivo anual com a principal festa em
janeiro e as atividades de iniciação e obrigações dos filhos da casa.

Na casa do pai Cícero, toda segunda-feira tinha um tabuleiro, dia de sábado tinha
reunião de caboclo e, era assim no sábado e na segunda-feira. Parecia um candomblé
assim, porque era todo mundo de branco, as filhas de santo tudo de branco, tudo
arrumada, muito bonito. Dia 06 de janeiro ele fazia aquela festa de Xangô, muita fruta,
era muito bonito (Informação verbal)52.

Pela dedicação à rotina de festas do terreiro como alabê, Ivonildo tinha comida e
moradia na casa do sacerdote. Ele não recebia dinheiro, embora, em outros terreiros, lhes
dessem “um agrado” quando tocava.

A ajuda que ele tinha não era o dinheiro não mão, ele tinha casa, comida e roupa
lavada na casa do finado Cícero que é um econômico, mas dinheiro em si na mão,
pagamento como salário, ele não tinha (Informação verbal)53.

52 Entrevista concedida por FILHA, Rosália Freitas de Aguiar. Entrevista IX [jan. 2020]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Salvador, 2020. Arquivo .mp3 (1h24min52s).
53 Entrevista concedida por BOTTAS, Carlos Alberto de Oliveira. Entrevista VIII [jan. 2020]. Entrevistadora

Patrícia Moreira Perdigão. Salvador, 2020. Arquivo .mp3 (30min).


40

Não se fixava durante muito tempo em um emprego, mas apesar dos ganhos
descontínuos com os trabalhos que realizava, andava bem vestido, aparentando pertencer a uma
classe acima daquela que realmente ocupou na escala social.

Ele tinha aparência até de um gerente de banco, ele tinha uma aparência assim... ele
sempre se arrumava minha filha parecia até... você olhava assim, parecia que ele era
um bom empregado. Ele não se arrumava de qualquer jeito não, sempre gostou de
andar arrumado, tinha uma aparência assim que era um chefão de algum lugar, era
tudo aparência (Informação verbal)54.

A personalidade de Ivonildo parecia encarnar o arquétipo de Exú: ambíguo, vaidoso,


brigão, mulherengo, bebedor, boêmio. Transparecia altivez e austeridade, era rude, mas sabia
demonstrar sensibilidade e afeto. Mãe Ojí quando questionada sobre a personalidade do
entrevistado, o descreve como “invocado” e “pirracento”, mas acrescenta que “ele não era uma
má pessoa”. Maiume dá a sua opinião sobre a personalidade difícil de Ivonildo, aponta que foi
moldada pelas dificuldades que enfrentou na trajetória pessoal, muitas dessas em função das
condições socioeconômicas em que esteve inserido.

(...) ele era assim um trabalhador, de fibra, guerreiro, um homem de personalidade


forte que não admitia que ninguém entrasse nele. Mas que também tinha um coração
muito mole, que tinha sido um homem muito sofrido na vida, ele tinha apanhado muito
da vida antes de chegar onde ele tinha chegado, que ele já tinha passado muita fome,
que ele tinha passado muita humilhação e que... ele conseguiu vencer. E que aqui...
ali no patamar que ele tinha chegado era o orgulho dele, que ele já tinha sofrido muito
pra chegar até ali. Então, o Banjo como pessoa é ao mesmo tempo um teimoso nato,
teimoso entendeu, um observador, uma pessoa muito humilde, mas uma pessoa muito
meiga que tinha aprendido com a vida a colocar aquela armadura pra não se machucar
mais, entendeu? Ele era assim (informação verbal)55.

Nas palavras das pessoas que conviveram com ele em Salvador, o amigo descreve-o
como alguém que “sabia ser carinhoso”, apesar de ser rude; e a ex-esposa, ao falar das brigas
de casal, apresenta um lado sensível da personalidade de Ivonildo, o de ser “chorão”.

Nidinho era uma pessoa meio difícil, ele era... um pouco grosso, um pouco rude, um
pouco mal educado, era pouco letrado. Mas, ele era uma pessoa amiga, era uma pessoa
que quando necessário ele sabia ser meigo, ele sabia ser carinhoso entendeu? Mas no
geral ele era rude, ele era bruto, isso era uma característica dele que qualquer pessoa
em Salvador sabe e qualquer pessoa em Belém também sabe (Informação verbal)56.

Chorão ele era menina, gostava de um choro, quando falava qualquer coisa assim as
lágrimas desciam, eu dizia assim essas lágrimas nem me comovem, mas eu não fazia

54 Entrevista concedida por FILHA, Rosália Freitas de Aguiar. Entrevista IX [jan. 2020]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Salvador, 2020. Arquivo .mp3 (1h24min52s).
55 Entrevista concedida por CARDOSO, Maiume Mayara Jamacaru. Entrevista III [maio 2019]. Entrevistadora

Patrícia Moreira Perdigão. Marituba, 2019. Arquivo .mp3 (1h18min).


56 Entrevista concedida por BOTTAS, Carlos Alberto de Oliveira. Entrevista VIII [jan. 2020]. Entrevistadora

Patrícia Moreira Perdigão. Salvador, 2020. Arquivo .mp3 (30min).


41

escândalo, eu não queria que os vizinhos tomassem parte da minha vida (Informação
verbal)57.

Apesar das duas ex-companheiras não relatarem episódios de agressão física, pai
Walmir, sacerdote paraense responsável pela radicação de Banjo em Belém, apresenta o lado
violento dele com suas companheiras a partir de um fato que teria ocorrido na época que Banjo
morava em seu terreiro. Ele também afirma que não foi a única vez que o biografado teria
praticado esse tipo de agressão.

Quando foi em 91 ele separou da Ana porque aconteceu uma briga séria entre eles e
eu tive que me meter mesmo porque foi horrível ele bateu muito nela e eu comprei a
passagem da Ana e mandei ela pra Salvador, a pedido dela lógico, né? Não dava mais
pra ela ficar com ele. Ele bateu muito nela. Aí depois ele conheceu a Regina que é
mãe dos meninos que já estão tudo grandes, filhos dele. Depois veio a Inês, uma
iyalorixá aqui de Belém que era filha da finada Ester. Depois da Inês veio a Kaumbesi
de Iemanjá, filha da Jokolosi e depois dela foi que ele ficou com a Maiume que foi
com quem ele terminou a vida. Nesses ínterins tinham outras mulheres, mas as
matrizes na época eram essas (Informação verbal)58.

O apelido Banjo, segundo Maiume, foi originado em uma roda de samba na Bahia onde
ele cantava. Após desentendimento com o tocador do Banjo, bateu no desafeto com o próprio
instrumento, que depois disso passou a lhe emprestar o nome. No campo amoroso, assim como
no trabalho, não se firmava e ostentava vários relacionamentos, sempre heterossexuais. Desses
relacionamentos, nasceram muitos filhos. Segundo mãe Ojí, quando ele saiu de Salvador,
afirmava ter dezoito. Nas fotos abaixo (Figuras 5 e 6), Banjo carrega a única filha gerada no
relacionamento com mãe Ojí.

57 Entrevista concedida por FILHA, Rosália Freitas de Aguiar. Entrevista IX [jan. 2020]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Salvador, 2020. Arquivo .mp3 (1h24min52s).
58
Entrevista concedida por FERNANDES, Walmir da Luz. Entrevista X [maio. 2021]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2021. Arquivo .mp3 (1h28min).
42

Figuras 5 e 6: À esquerda, Ivonildo com a filha Rosenilda no colo em frente ao terreiro de Pai Cícero e com a
primeira esposa, Rosália (mãe Ojí) à direita.

Fonte: Acervo pessoal de Mãe Ojí.


Através da documentação que tive acesso no acervo pessoal do pesquisado e de mãe
Ojí, constatei que cinco filhos nasceram entre os anos de 1980 e 1983, a saber: a filha da única
união oficializada pelo casamento civil ocorrido em 1978, Rosenilda Aguiar dos Santos, nascida
em junho de 1980, filha de Rosália Freitas de Aguiar Filha; Josenildo Sacramento dos Santos,
nascido em setembro de 1980 e Josenilson Sacramento dos Santos, nascido em dezembro de
1983, ambos filhos de Vera Lúcia do Sacramento; Danúbia Pinheiro dos Santos, nascida em
agosto de 1981 e Denilson Pinheiro dos Santos, nascido em agosto de 1983, ambos filhos de
Lindinalva Pinheiro Santos.
Para além dos citados acima, mais nomes de filhos foram informados por Maiume e
mãe Ojí: Ivan e Ivonildo (um dos irmãos foi assassinado em Salvador, segundo Maiume foi
Ivonildo, mãe Ojí não confirmou por não saber qual deles), moravam no bairro de Pero Vaz;
Wellington que mora em Acupe; Daiane, irmã de Danúbia e Denilson citados no parágrafo
anterior; Rosenildo; Ivonete; Graziela. Esses foram os nomes dos filhos baianos citados nas
entrevistas. Em Belém, são mais quatro: Renildo, Renilson e Raíssa (os dois últimos são
gêmeos), filhos de Regina Márcia Corrêa; e o mais novo chamado Íkaro Walter Cardoso dos
Santos, nascido em fevereiro de 2011, filho de Maiume Mayara Jamacaru Cardoso, a última
companheira de Ivonildo dos Santos, cuja união estável do casal foi oficializada no ano de 2014.
Na figura 7 os nomes dos filhos são demonstrados ligados às suas respectivas mães.
Algumas mulheres que se relacionaram com Ivonildo se apresentaram à pesquisa através dos
43

filhos, mas as informações obtidas não foram capazes de revelar os nomes, essas mulheres estão
representadas com um ponto de interrogação. Necessário esclarecer também que mesmo não
tendo certeza de que os filhos com nome da mãe desconhecido pela pesquisa são de mulheres
diferentes, optei por representá-los dessa forma. Vera, Inês e Ana foram mulheres citadas, mas
não geraram filhos de Ivonildo. Rosália e Maiume são nomes grafados em amarelo
representando relacionamentos oficializados pelo casamento civil em 1978 e pela união estável
em 2014, respectivamente. Nem todos os relacionamentos e filhos foram descritos, uma vez
que se considera a afirmação de Banjo feita à mãe Ojí, antes da mudança para Belém, de serem
dezoito filhos na Bahia, a pesquisa contabilizou doze e mais quatro em Belém do Pará.
Figura 7: Relacionamentos amorosos e filhos de Ivonildo em Salvador e em Belém.

Ivan Ivonildo

Íkaro Welington
Nonoca
Maiume ?

Rosenildo
Vera ?

Ana ? Ivonete
Renilson Ivonildo

Regina
Raíssa Márcia
?
Graziela

Renildo Josenildo
Inês Vera
Lúcia
Lindinal-
Rosália
va Josenilson
Danúbia
Rosenilda
Denilson Daiane

Fonte: Elaboração da autora.


Não pude constatar a relação de cada filho com a religião, certeza obtive a respeito de
Rosenilda que é ekedi e Íkaro que seguiu a trajetória do pai como alabê. Estive presente no dia
do orukó, deste último. Ele foi iniciado em agosto de 2019 no terreiro de mãe Néia no bairro
do Tapanã como alabê do orixá da sacerdotisa, Oxumarê. Fui informada pela mãe, Maiume e
44

por Mameto Nangetu que Íkaro é o herdeiro do terreiro de Banjo, cujos assentamentos dos
orixás ainda estão no Mansu Nangetu Mansubandu Kekê Neta, pois por motivo de força maior,
após a morte de Banjo, Maiume e Ikaro precisaram mudar para outro lugar e o terreiro foi dado
em troca de uma casa em Marituba onde não puderam reerguer o Ilê Asé Omolu Sadê, terreiro
fundado por Banjo.
A contar pela quantidade e pela proximidade do nascimento dos filhos com mulheres
diferentes e pelo relato quase que em uma só voz das pessoas que conviveram com o
pesquisado, não resta dúvida de que faz jus à fama de mulherengo. O casamento com mãe Ojí
durou seis anos, apesar do divórcio ter sido oficializado somente em 2016, no ano da morte de
Ivonildo. Sobre a convivência do casal e o término da relação, a ex-esposa assim descreveu:

Ele aparecia o dia que ele queria, sempre foi rueiro, sempre foi assim de gostar de rua,
sempre foi rueiro. Vinha em casa o dia que queria, dormia o dia que queria. O dia que
não queria dormia não sei por onde, dormia nos Caminhos de Areia lá pelas casas da
capeta, eu também não tava nem aí, não me importava, não brigava! Também não
gostava de escândalo! Eu sempre dizia a ele enquanto eu estiver com essa aliança sua
no dedo com toda a tua tortura eu vou te respeitar como marido, agora o dia que eu
tirar, você vai continuar vivendo a sua vida e eu vou passar viver a minha. Aí eu tomei
a decisão assim: um dia ele não dormiu em casa, quando foi de manhã cedo ele foi
subindo assim a escada, eu me lembro como se fosse hoje. Aí eu disse: - “Oh, Banjo,
volte aqui! Que dia que você vem buscar o seu resto de roupa que tá aqui no meu
guarda-roupa, porque eu não aguento mais lhe olhar? – “Ah! faça o que você quiser
pode dar, faça o que quiser! (Informação verbal)59.

Na mitologia africana, Exú é o intermediário entre os dois mundos, mensageiro que tem
o poder de execução, manipulador da realidade para que tudo se desenrole a contento de Olorun
e dos outros orixás. Ele é guardião, justo e fiel às missões que lhes são confiadas. Conhecer
Exú não é fácil. Ele não se deixa prever, é ambíguo, transita pelas energias do mundo e é através
dessas energias que ele materializa as mudanças e encaminha as pessoas. Ele é o emissário das
transformações, o sarcasmo e a precisão com que desenrola os fatos é a sua marca. Pra falar
com Exú, é preciso respeito porque ele antes de executar uma ordem de instância maior, pode
resolver brincar e causar confusão. Ele é o trickster60 do panteão.
E Ivonildo, além dos sucessivos relacionamentos amorosos, gostava das madrugadas,
festas religiosas ou não e bebidas. A sua forma de viver se aproximava tanto das preferências
de Exú, a ponto de ser referido como “um autêntico Zé Pelintra” pelo amigo Romeu.

Como a gente diz lá em Salvador eu não vou nem chamar aqui que é um palavrão... o
bicho era boêmio, ele adorava ficar no Pelourinho, no meio daquelas rodas de

59
Entrevista concedida por FILHA, Rosália Freitas de Aguiar. Entrevista IX [jan. 2020]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Salvador, 2020. Arquivo .mp3 (1h24min52s).
60
O brincalhão, trapaceiro, amoral do panteão afro-brasileiro.
45

capoeira, samba de roda, bar, seresta, essa onda aí. Ele era um idêntico Zé Pelintra,
um malandro. Ele adorava aquela vibe lá! (Informação verbal)61.

Zé Pelintra é representado por “um homem de terno branco, gravata vermelha, chapéu
‘mole’ de fita vermelha, e sapatos bicolores, indumentária típica do malandro dos anos trinta”
(AUGRAS, 1997 p. 43). Ainda de acordo com a autora, poucos se atrevem a falar abertamente
sobre ele. Exú fala quando e como quer, é contraditório e, “como todo trickster, Exú brinca, faz
e desfaz, ata e desata, abre e fecha” (AUGRAS, 1997 p. 43).
No trabalho intitulado “Zé Pelintra, o patrono da malandragem” de Monique Augras
(1997), já referida acima, Zé Pelintra é uma “figura proteiforme”. A pesquisadora mostra que
em alguns estados do nordeste onde o catimbó é praticado, essa entidade é considerada um
Mestre, se apresentando com vestimentas de camponês e como espírito benfazejo, bem
diferente da figura elegante e boêmia que o singulariza em outros estados onde a umbanda é
mais representativa. Considerando que é na figura do malandro que ele se populariza e aparece
nas palavras do ogan Romeu que o compara, nessa perspectiva, à Ivonildo, Zé Pelintra é um
Exú, cujo domínio é a rua, a noite e os locais de diversão para adultos.
Os amigos ao se referirem ao anverso da personalidade de Ivonildo apresentam a figura
de gozador e enganador para tirar vantagem para si e para os amigos comerem e beberem de
graça ou simplesmente se divertir às custas da ingenuidade de alguém.

Ele bebia. Agora assim, não era um alcoolista que largava tudo pra beber não, ele
bebia, gostava da bebida dele, ele na roda de amigos dele de candomblé as vezes eles
saiam juntos, se fingia de caboclo nos candomblés pra poder beber, ele e os amigos,
entendeu? (Informação verbal)62.

Ah, a gente descorando bicho lá e ele pegava o órgão do bode e mandava a pessoa
segurar. Aí chamava todo mundo pra ver, o cara novato ficava segurando sem saber o
que era e achava que aquilo ali era fundamento. Aí ele chamava todo mundo pra ver.
Aí pô era encarnação nos caras! Olha aí o fulano está segurando o negócio do bode,
aí o cara (dizia) “poxa pai Nidinho tá vendo só como o senhor é?” (e ele respondia)
“Ah, segura aí rapaz!”, ele gostava dessas palhaçadas (Informação verbal)63.

Não consegui ter certeza se essa brincadeira entre ogans foi inventada por Nidinho, mas
foi muitas vezes praticada nos terreiros por ogans experientes com seus aprendizes que na
maioria das vezes sentem-se envergonhados diante do grupo que se diverte com a anedota. Ela
acontece no momento do preparo do animal sacrificado, quando o couro é retirado para secar e

61
Entrevista concedida por SOUZA, Jutair Santos de. Entrevista VII [jan. 2020]. Entrevistadora Patrícia Moreira
Perdigão. Ananindeua, 2020. Arquivo .mp3 (48 min).
62 Entrevista concedida por BOTTAS, Carlos Alberto de Oliveira. Entrevista VIII [jan. 2020]. Entrevistadora

Patrícia Moreira Perdigão. Salvador, 2020. Arquivo .mp3 (30min).


63 Entrevista concedida por SOUZA, Jutair Santos de. Entrevista VII [jan. 2020]. Entrevistadora Patrícia Moreira

Perdigão. Ananindeua, 2020. Arquivo .mp3 (48 min).


46

servir de membrana para os atabaques, as carnes divididas em tipos para alimentar o grupo e as
vísceras recolhidas para serem cozidas e servidas aos orixás. A genitália do animal não entra
na oferenda que é servida aos orixás, por isso, Romeu diz que, de forma enganosa, faziam o
novato pensar que era uma parte que serviria e, portanto, precisava ser separada com cuidado,
ficando o inexperiente aprendiz incumbido de segurar enquanto o ogan seguia na tarefa de
preparo do animal.
Mas como no reino da malandragem nem sempre é só vantagem, existiram também
situações desfavoráveis, como quando o amigo bebeu o cachê que Nidinho iria receber por
cantar a noite toda em um bar na praia do Cruzeiro em Icoaraci. Não posso deixar de dizer que
o entrevistado sorria se divertindo ao compartilhar essa lembrança de camaradagem entre
amigos.

Muitas vezes ele saia do candomblé, terminava o candomblé ele ficava bebendo, ele
dizia: “já vou, já vou, eu vou lá pra Icoaraci que eu vou cantar agora, lá no Cruzeiro”.
Aí ele ia embora. Pegava o “fusqueta” dele e ia embora. Não queria nem saber, ele ia
lá para o Cruzeiro, do jeito que ele estava mesmo, de branco, de roupa social, ele ia
embora pro Cruzeiro. Só uma vez que ele não recebeu, porque ele me convidou pra ir
pra lá e eu tava com uma namorada minha, uma ex, né? E aí... a gente foi, eu tava...
eu tinha chevette na época, a gente saiu do candomblé, foi até na casa da Iyanarê o
candomblé, e a gente foi lá pra Icoaraci. Chegou na praia, começou a cantar e ele
apresentou a gente pro garçom “olha, esse aqui é meu irmão!”. Uma hora eu era irmão
dele, outra hora eu já era filho. Não sei o que baiano... “o que ele quiser, o que o meu
irmão quiser aí pode entregar pra ele aí, depois a gente acerta”. Aí ele tava cantando
pra lá, aí eu olhava pro garçom aí pedia uma cerveja, olhava pra ele, ele fazia assim
(concedia com gesto de mão), aí bebi, bebi, bebi, bebi, e aí já não aguentava mais,
falei com ele já vou me embora, ele disse: “já vai, eu ainda vou ficar por aqui ainda.
Tô em casa, tô em Icoaraci, tô em casa”. Aí eu fui embora. Terminou lá a tocada dele,
ele ficou sentado lá esperando o cara pagar, o dono da barraca pagar ele. Aí o dono da
barraca disse: “Que é baiano?”. Aí ele disse: “Tô esperando o meu dinheiro!”. “Que
dinheiro baiano que aquele seu irmão bebeu o seu dinheiro todinho?!”. Ele morreu e
ele não esquecia disso, toda vez ele me cobrava. Mas me cobrava na sacanagem “Meu,
tu não vai mais pra Outeiro, pra Icoaraci comigo, bebeu meu dinheiro todo, porra!”.
Até hoje eu dou risada com isso. (Informação verbal)64.

A preferência de Ivonildo pelas madrugadas e bares de Icoaraci é descrita por Romeu


como tendo relação com seu passado em Salvador, talvez em função dos bares próximos ao
mar cuja água é salgada e a cor é verde transparente e em Belém é doce, turva e marrom.

Era bebida, capoeira, era mulheres, bar, essas ondas aí, samba de roda... O bicho era
boêmio mesmo. Por isso que ele se identificou com Icoaraci porque era a parte de
Belém, que mais lembrava Salvador pra ele (Informação verbal)65.

64 Entrevista concedida por SOUZA, Jutair Santos de. Entrevista VII [jan. 2020]. Entrevistadora Patrícia Moreira
Perdigão. Ananindeua, 2020. Arquivo .mp3 (48 min).
65
Idem.
47

Outro forte vínculo de Banjo com a malandragem é a ligação do mesmo com o carnaval.
Participou e formou afoxés que desfilavam em festividades e nos desfiles carnavalescos. Entre
eles destaca-se Italemi e Bandagira. Esses afoxés são liderados por sacerdotes paraenses e
participavam dos desfiles oficiais promovidos pela Prefeitura Municipal de Belém. Destacou-
se por ter participado de um famoso afoxé existente na capital paraense o Afoxé Axé Dudu
criado e dirigido pelo CEDENPA (Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará).
Passei a maior parte da minha vida em Belém em rodas de conversa, nos terreiros e
em rodas de samba, nos quintais das casas dos sacerdotes, nas conversas contamos
estórias, relatamos mitos e trocamos experiências, nas rodas de samba treinávamos
toques e incentivávamos a dança. Das rodas de samba informais foram formados dois
afoxés (Italemi e Bandagira). (...)Com os afoxés difundimos a nossa crença e visão de
mundo para além dos muros dos terreiros, e eu componho para os dois e tem ano que
ambos cantam música minha. (...) O que eu construí, e que vou esperar que no futuro
se reconheça é a música que fiz para os afoxés e que divulgam a nossa cultura
religiosa, e (a qualidade do) candomblé que se faz hoje, e que eu sei que vai continuar
assim, em Belém, Ananindeua, Marituba, Santa Bárbara e até Macapá (INSTITUTO
NANGETU, 2008).

Se na perspectiva da entidade Zé Pelintra o pagamento mais vale pelo valor simbólico,


como por exemplo, as moedas que estão no bolso de quem faz o pedido para atrair mais
dinheiro, o baralho para que no jogo a entidade aponte o melhor caminho para uma decisão e a
cachaça como elemento de descarrego, Nidinho que viveu na periferia de Salvador e de Belém
pouco recebeu pelas festas de candomblé e pelas aulas que ministrou. Os pagamentos por seus
conhecimentos se davam na medida da subsistência, não sendo suficientes para lhe conferir
uma vida confortável e tranquila.
Em Salvador, ele contava com a ajuda de familiares e de pai Cícero e, apesar dos
numerosos filhos, em torno de dezoito, não se responsabilizava pelo sustento e criação de
nenhum. No entanto, em determinado momento de sua vida no qual precisou sozinho sustentar
os três filhos que teve em Belém, na ausência da mãe das crianças, a precária remuneração pelo
trabalho que levou anos de aprendizado e dedicação foi insuficiente.
Pelas narrativas coletadas sobre o motivo da vinda de Banjo para Belém, é possível dizer
que soava como uma oportunidade de melhoria de condições de vida, pois o mercado religioso
estava em formação e carente de especialistas para implementação do culto nos moldes baianos
com o selo que Augras (1997) chamou de “padrão nagô de qualidade”, discurso nativo
endossado pela antropologia africanista do final do século XIX e início do XX.
Com o passar do tempo, essa expectativa acabou não se concretizando e à medida que
os religiosos locais absorviam os conhecimentos necessários, menos procurada e valorizada a
presença de Nidinho se tornava. Em alguns terreiros ele permaneceu ligado ao longo da vida
por laços afetivos, sempre contribuindo com seus conhecimentos e retribuído com o que lhes
48

era possível oferecer como pode ser notado no trecho da entrevista ao Instituto Nangetu, quando
ele fala sobre a trajetória religiosa e condições de vida em tom de desabafo:

Quero agradecer a entrevista, e dizer que meu desafio é conseguir viver com dignidade
sem abandonar o candomblé, e pra isso estou procurando meios e sobrevivência...
Pois se eu não tenho aposentadoria é por que minha vida foi em candomblé, e não
dava para conciliar empregos com a vida nos terreiros, e com a situação em que me
encontro hoje já pensei até em vender minha casa e investir em canoa e ir viver de
pesca na Bahia. Eu estou vivendo da ajuda dos amigos em troca de aulas de canto - e
não recebo dinheiro, pois eles também não tem muito a dar – dou aulas em troca de
alimentos e vale-transporte, mas tem dia que eu não sei o que vou dar de comer aos
meus filhos, e me magoa saber que aqueles que estão bem de vida, fingem que me
esqueceram... Essa ingratidão me dói (INSTITUTO NANGETU, 2008).

O contexto em que se deu a chegada de Ivonildo em Belém como representante do


candomblé baiano, a motivação e as ações desse ogan nos primeiros terreiros candomblecistas
paraenses com o objetivo de organizar a tradição, ensinar a liturgia da festa e contribuir para os
movimentos de cultura local, serão apresentados no próximo capítulo.
49

3. A CHEGADA DO CANDOMBLÉ EM BELÉM ATRAVÉS DOS AGUIDAVI DE


NEGO BANJO

Este capítulo apresenta os movimentos de entrada do candomblé em Belém do Pará a


partir da década de 60, o contexto em que isso aconteceu e a importância do biografado para o
estabelecimento desta religião em território paraense. Discuto a criação do candomblé como
símbolo da negritude ainda na Bahia, o momento histórico era o de mudanças de paradigmas
sociais, o que impulsionou a expansão do candomblé baiano para outros estados.
Assim, a religião chega no Pará como porta-voz dos movimentos de combate ao
racismo e de busca de um modelo de africanidade, no final da década de 70 e início de 80,
apresentando uma imagem positiva da negritude e atrelando este elemento ao “mito da pureza
nagô”. Desde os escritos de Raymundo Nina Rodrigues (2001) datados do pós-abolição, virada
do século XIX para o século XX, os africanistas brasileiros vêm se dedicando aos estudos das
matrizes religiosas consideradas mais puras. O autor citado ainda teve acesso a entrevista de
negros yorubanos e frequentou os candomblés ketos fundados pelos mesmos e germinou a ideia
de que esses representavam a modalidade religiosa mais tradicional radicada em território
brasileiro.
A explicação para a existência de uma matriz yorubana resguardada em formatação
religiosa pode ser remetida ao fato de tratar-se de uma religião praticada pelos últimos negros
introduzidos no território nacional em meio a experiência do tráfico negreiro. Organizada
teologicamente a partir da oralidade, a memória do grupo sobre sua mitologia e práticas rituais
ainda estavam resguardadas quando os pesquisadores se debruçaram a estudar as religiões afro-
brasileiras.
Por outro lado, as demais religiões eram preteridas pelos acadêmicos que não
consideraram a dinâmica imposta a essas matrizes, ao longo dos séculos, que foi responsável
por provocar alterações consideráveis, esquecimento da mitologia e sincretismo religioso. O
sincretismo religioso foi visto pelos primeiros africanistas de uma forma pejorativa e danosa
como resultado de um processo de aculturação. Não era pensado como ressignificação, mas
como perda cultural. Essa acusação recaiu sobre as religiões afro não yorubanas consideradas
por acadêmicos como degeneradas, discurso que circulou da academia para a comunidade,
gerando hierarquização e contendas no campo local.
Depois de Nina Rodrigues, todos os outros pesquisadores que escreveram até a década
de 60, dedicaram-se aos estudos do candomblé keto, de raiz yorubá culminando com a
publicação do livro “Candomblés da Bahia” de Roger Bastide (2001), etnografia que traça uma
50

espécie de tipo ideal (WEBER, 1991) do sistema religioso yorubano, reafirmando sua pureza e
originalidade. Este texto passou a ser usado como “bíblia” entre os adeptos dessa religião
ágrafa. Grande parte dos terreiros brasileiros possuem um exemplar.
Nas artes, o movimento dos novos baianos despontou cantando uma identidade
completamente erigida sobre o ser yorubano. Os orixás, deuses negros, dessa tradição, eram
referidos em canções e assumidos como divindades protetoras dos músicos. Na literatura,
despontou Jorge Amado com diversos romances que versavam ou tangenciavam a temática
afro-brasileira a partir do modelo nagô66. O Brasil conheceu, nesse contexto, um fotógrafo
francês que, a partir da fotografia etnográfica, viajou entre a África e o Brasil registrando
imagens de iniciação, assentamento, rituais públicos e privados e coletando narrativas míticas.
Trata-se de Pierre Verger que, uma vez iniciado em território africano, ganhou a alcunha de
Fatumbi, passando a ser conhecido como Pierre Fatumbi Verger.
Foi neste contexto de contracultura que o candomblé deixou a “Meca” (CAMPELO,
2001) baiana e passou a circular por todos os estados da federação brasileira, chegando ao Pará.
Atraídos pelo discurso de pureza africana, que servia como capital simbólico diante de um
campo religioso pluralizado, muitos sacerdotes, já iniciados em outras matrizes como a
umbanda e o tambor de mina, passam por um processo de conversão aderindo ao modelo
yorubano baiano em busca de legitimidade.
Através dessa análise dos contextos históricos e dos capitais simbólicos que circulavam
no campo afro-paraense, buscar-se-á analisar a construção da identidade candomblecista a partir
da importância das festas litúrgicas e da competência e disposição de ensinar do alabê Banjo.

3.1. “PARA FAZER FESTA BONITA”: BANJO E O CONTEXTO DA CHEGADA DO


CANDOMBLÉ NO PARÁ

A bibliografia paraense sobre as religiões de matrizes africanas foi lacônica no que tange
aos estudos de Candomblé. Os trabalhos que se dedicavam a analisar essas religiões, até a
primeira década do século XXI, focaram nos estudos do Tambor de Mina e da Umbanda. A
razão deste descaso é a chegada tardia dessa matriz que apenas no final da década de 70 e início
de 80 se estabelecem os primeiros terreiros.
O primeiro trabalho que se debruçou sobre o candomblé paraense foi publicado em
2001, “Os candomblés de Belém: o povo-de-santo reconta sua história”, de autoria da
professora Marilú Campelo que utilizou os relatos de histórias de vida de três pais de santo e

66
Os termos candomblé yorubá, candomblé keto e candomblé nagô são vistos como sinônimos.
51

uma mãe de santo, todos paraenses: pai Astianax Gomes Barreiro (pai Prego), pai Walmir da
Luz Fernandes, pai Hyder Nazareno de Moraes Lisboa e mãe Oneide Monteiro Rodrigues
(Mameto Nangetu), representantes do candomblé keto e angola. Nesse trabalho, a pesquisadora
apresenta o campo afro-paraense e a história das lideranças precursoras, constata que os estudos
até então desenvolvidos sobre esse campo não açambarcavam o candomblé, mapeia as redes de
relações estabelecidas entre o candomblé keto e o candomblé angola construídas a partir da
chegada do primeiro candomblecista em Belém, destaca a luta por poder e legitimação através
de instituições religiosas que representavam o candomblé e o tambor de mina, além de um
levantamento dos terreiros candomblecistas do Pará.
A pesquisa revelou que a chegada da religião aconteceu em dois movimentos no
decorrer da década de 70 e início de 80. O primeiro movimento foi caracterizado como sendo
uma “iniciativa pessoal” de sacerdotes paraenses que foram buscar iniciação em Salvador,
capital da Bahia; o segundo movimento de entrada ocorreu quando sacerdotes baianos vieram
à Belém iniciar filhos, alguns deles, fixaram moradia nos terreiros de filhos de santo, ajudando
a introduzir e organizar o culto nos moldes baianos.
Entre as décadas de 60 e 70, o Brasil experimentava um cenário de mudanças de
paradigmas em decorrência dos movimentos sociais que se articulavam por mudanças na
política, circulavam as ideias encabeçadas pelo movimento de contracultura, a exemplo da
música dos tropicalistas e do cinema novo com fortes críticas à desigualdade social, contestando
os padrões político-sociais elitistas. O contexto brasileiro no final da década de 70 e início da
década de 80 era o de redemocratização.
Enquanto isso, a partir da segunda metade do século passado na Bahia, artistas e
intelectuais baianos se empenhavam na construção de uma identidade diferente, deixando para
trás a imagem da “boa terra”, da malemolência para a “terra da felicidade”, dos ritmos frenéticos
dos tambores e da alegria dos carnavais de rua. Enunciados construídos com “estratégias de
marketing mundiais para vender uma ideia da Bahia a partir da uniformização das produções
culturais simbólicas em detrimento de sua diversidade e pluralidade” (VERGARA, 2017, p.
103). Entre as décadas de 50 e 60 surgiu o discurso da Bahia Negra, atrelando a negritude baiana
à mística do candomblé, tornando a religião uma potente imagem local, “mesmo que esta
dimensão simbólica caísse no discurso carregado de purismo da diáspora africana”
(VERGARA, 2017, p. 96).
É possível analisar a expansão do candomblé baiano como consequência das mudanças
sociais à nível de Brasil, que produziram no âmbito cultural a valorização do pluralismo e das
52

origens étnicas a partir da década de 60, período marcado por tensões políticas entre as elites e
as entidades negras, entre elas o candomblé e suas lideranças.
Em Belém, surge o CEDENPA no ano de 1980, consolidando os movimentos de luta
em defesa da igualdade racial. Segundo Campelo, os movimentos de combate ao racismo
chegaram elegendo o candomblé como porta-voz (CAMPELO, 2013), à exemplo do que já
vinha ocorrendo na Bahia.
A parceria entre a religião e o movimento negro calcada nos ideais de pureza africana
tem por mérito e função fortalecer a construção de uma identidade positiva para a população
negra. Em Belém, um dos exemplos dessa parceria é o terreiro de pai Edson Katendê. Homem
negro, baiano que se estabeleceu em Belém nos meados de 80 e não precisou buscar
legitimidade junto à Federação Espírita, Umbandista e dos Cultos Afro-brasileiros do Estado
do Pará (FEUCABEP), ocupando cargo ou disputando espaço religioso, pois além da
baianidade, o capital simbólico de pai Katendê é a negritude ancorada na tradição do candomblé
baiano de um renomado terreiro de Salvador, o Gantois. O terreiro de pai Katendê é sede da
Associação dos Amigos do Ilê Omin Asé Ofa Kare (AFAIA) (LUCA, 2008).
Assim como o CEDENPA, a AFAIA foi criada na década de 80 e através das atividades
de valorização e ensino da cultura negra a partir da afro-religiosidade, desenvolvidas na
associação de pai Katendê, pode-se perceber a função do candomblé enquanto vetor de uma
imagem positiva da negritude e como centro de apoio da luta contra o racismo. A imbricada
relação entre as duas instituições é enredada pela ideologia da pureza africana, um importante
instrumento que confere prestígio e poder a alguns terreiros tradicionais tanto em Salvador
quanto em Belém. O artigo intitulado “O campo religioso afro-brasileiro em Belém do Pará:
uma disputa entre instituições”, da professora Taissa de Luca, mostra essa relação entre religião
e movimento negro no Pará ao afirmar que “a interação entre CEDENPA e AFAIA é forte, ao
ponto de pai Edson Katendê considerar este último núcleo religioso do primeiro” (LUCA, 2008,
p. 300).
Conforme explica Dantas, a ideologia da pureza “pressupõe a existência de um estado
original, uma espécie de reduto cultural preservado das influências deturpadoras de elementos
estranhos”, uma espécie de “patrimônio cultural” de etnias africanas preservado pela memória
coletiva do negro que conferiria aos terreiros os mesmos contornos em termos litúrgicos
(DANTAS, 1982, p. 105).
No entanto, a pesquisadora revela que os traços culturais considerados como pureza em
dois cultos afro-brasileiros que se auto-definem como nagô, portanto partilham a mesma matriz
53

étnica africana em Sergipe e na Bahia, são diferentes. Elementos da iniciação que no culto
baiano é tido como característica da pureza, tais como a reclusão para iniciação, raspagem da
cabeça e o uso de sangue dos animais sobre a cabeça ou ainda no que se refere ao formato
alongado dos atabaques, entre outros elementos, são considerados sinais de mistura no culto
nagô de Sergipe (DANTAS, 1982).
Em Belém, à medida em que a religião assenta a sua identidade, o campo se reconfigura
e uma nova disputa pelo monopólio se estabelece. Se, no início, o argumento que sobressaiu foi
a ideia de pureza nagô, que guardava relação com a disputa do candomblé por legitimidade
perante a mina, depois de consolidados, os terreiros candomblecistas se reagrupam em torno
de novas identidades étnicas. Sendo que algumas dessas identidades foram formadas a partir de
um mesmo terreiro soteropolitano, mas fazendo outros recortes, readequações e inserções para,
no novo contexto, capitalizarem-se em função de uma nova disputa que na década de 80 não
era possível em função da chegada recente em que o interesse era consolidar-se e o “rival” era
a mina. A disputa atual parece ser por monopólio e o discurso de pureza ganha outra conotação,
faz concessões, mas permanece latente como fonte de legitimidade e prestígio.
A inserção do candomblé como grupo organizado dividiu e reorganizou o campo afro-
religioso e trouxe a ideia de casa mater67 e família de santo68 (CAMPELO, 2001). A vinda do
candomblé mudou os rituais de iniciação da mina, que se modificou para agregar os elementos
símbolos da pureza africana do candomblé keto baiano, a raspagem da cabeça, as escarificações
e o sacrifício de animais sobre o iniciado. Um outro elemento incorporado é o uso de
paramentos que são insígnias próprias das divindades/entidades feitas com materiais e cores
que compõe a vestimenta dos filhos de santo em transe. Mas, sobretudo, é a iniciação nos
moldes do candomblé baiano ou com os elementos citados que passou a conferir maior status
para o indivíduo inserido no campo afro-religioso paraense.
A iniciação no candomblé representava a inserção em uma rede religiosa de relações
familiares que ascende à uma tradição baiana, ligando-se à terreiros que, por sua vez, ascendem
à África; a Bahia está para Belém assim como a África está para a Bahia, são polos irradiadores
de cultura religiosa. A chegada do candomblé mudou o eixo geográfico da tradição que antes
era o Maranhão para a mina. A absorção do discurso de pureza africana pelos outros cultos foi
responsável pela conversão de vários mineiros e umbandistas ao candomblé.

67
Terreiro fundado por africanos que exporta o seu prestígio e tradição para outros terreiros mais recentes pelo
vínculo da filiação dos sacerdotes.
68
Indivíduos iniciados pelo mesmo sacerdote que se vinculam a ele por filiação, sendo responsáveis por levar
adiante a tradição que recebeu. Os filhos de santo do mesmo sacerdote tratam-se como irmãos e essa rede de
relações liga vários terreiros por parentesco.
54

Esses candomblecistas eram praticantes de Linha de Cura (chamada pelos


pesquisadores de Pajelança), umbandistas (que surge na capital paraense por volta dos
anos 30) e mineiros (uma variação do Tambor de Mina presente na região desde o fim
do século XIX) foram buscar a feitura na Bahia. Suas narrativas remetem a outras
tradições e terreiros fora do Pará, como por exemplo: Bate-Folhas, Tumbajunçara,
Gantois, ou por pessoas específicas tais Manuel Rufino de Souza, Jirolando de
Oliveira, entre outros, tendo suas falas permeadas por nomes de pessoas
desconhecidos até então na história das religiões afro-paraenses. Mais recentemente
outras casas foram abertas em Belém através da formação das redes de famílias de
santo. As novas lideranças religiosas emergentes na cidade deixam aos poucos a
invisibilidade e lutam para consolidarem-se numa região onde tradicionalmente a
Mina, a Umbanda e a Pajelança são predominantes na cultura do lugar. (CAMPELO,
2013, p. 3)

A chegada do candomblé apresentou à sociedade paraense temas como “a afirmação da


identidade religiosa e o discurso da identidade e da cultura negra” (CAMPELO, 2013, p. 2).
Não é possível afirmar que o discurso de africanidade é usado como sinônimo de negritude uma
vez que grande parte dos religiosos convertidos ao candomblé – em Belém - são brancos. A
importância da casa mater na tradição candomblecista consiste em criar um ponto de referência
e legitimidade para os terreiros paraenses, pois traz como pressuposto a ideia de reprodução e
manutenção da liturgia por eles realizada. A família de santo tem a função de formar “uma rede
religiosa que congrega os adeptos” (CAMPELO, 2001, p. 6), criar o elo Pará-Bahia-África e
manter os terreiros através das gerações por meio da preparação do sucessor.
Os membros da família constroem relações de afetividade que possibilitam ajuda mútua,
como por exemplo, moradia, ajuda financeira, influência para conseguir emprego, Ivonildo fez
uso dessa rede de relações ao longo da vida, e pela sua trajetória em diferentes tradições
candomblecistas e afro-religiosas, a ampliou, o que muitas vezes o tirou de situações muito
difíceis. Essa rede é responsável por trocas materiais e simbólicas.
As histórias de vida utilizadas na investigação que conta pela primeira vez a história e a
expansão do candomblé baiano em terras paraenses ao mesmo tempo em que aponta as
mudanças que se produziram no campo, sem dúvida são de sacerdotes importantes para a
construção da identidade religiosa tanto pelas atuações dentro do campo religioso como pelos
embates políticos para o reconhecimento e valorização da cultura religiosa negra. No entanto,
o que pretendo demonstrar é que, sendo o candomblé uma religião muito hierarquizada, os
dirigentes de terreiros mesmo com apoio uns dos outros ou por mais poder que exerça sobre o
seu grupo, não seriam capazes de plantar a religião em solo paraense sozinhos, para fazer isso
foi necessário a ajuda de outros especialistas religiosos e cada cargo atuando em conjunto com
os outros foram importantes nessa empreitada.
Na publicação do artigo “Recontando uma história: a formação e a expansão do
Candomblé paraense” em 2008, que faz parte do livro “Pajelanças e Religiões Africanas na
55

Amazônia”, Campelo enfatiza a importância de Astianax Gomes Barreiro (pai Prego) como
marco inicial dos dois movimentos de entrada do candomblé em Belém e como a partir dele o
campo religioso paraense se reconfigura. O primeiro candomblecista paraense só voltou para
Belém em 1968, depois de ter sido iniciado em Salvador no ano de 1952, mas não fundou um
terreiro por dois motivos: o primeiro foi informado por Mameto Nangetu que atribui a
implementação tardia do candomblé ao fato de que o processo iniciático de pai Prego não o
tornou sacerdote quando da sua chegada em Belém, “se iniciou e ficou iyawô, depois que foi
tomar o kigimbô69 dele”, sendo assim, não poderia fundar o seu próprio terreiro; o segundo,
Mameto também aponta as pistas, atribui a tardia implementação ao fato de pai Prego não ter
trazido um ogan para ensinar a tocar, cantar e dançar candomblé, uma questão que também
passa pelo sacerdócio, mas dessa vez relacionado à complementariedade das especialidades
religiosas, sendo a religião altamente hierarquizada, o terreiro só ganha autonomia com a
composição de um corpo sacerdotal próprio.
Antes da fixação de Banjo, mãe Dewí e Romeu, candomblecistas baianos, o candomblé
paraense dependia do trânsito entre Belém e Salvador de sacerdotes paraenses e baianos para a
aquisição de conhecimentos litúrgicos. A autonomia passa pela equipe de trabalho religioso que
se fortalece a partir dos baianos que aqui se radicaram.
Apesar de não ter tido êxito na implementação do candomblé, pai Prego produziu
mudanças nas liturgias mineiras e umbandistas ao se agregar ao tambor de mina. Como revela
Campelo (2008), o prestígio de Astianax como pai de santo foi construído através de sua
associação à FEUCABEP. Essa federação é também um espaço religioso pois se organiza nos
moldes de um terreiro com assentamentos e calendário litúrgico, tem ascendência que remonta
à África via Maranhão e por isso é considerada a casa mater da mina no Pará (LUCA, 2008).
Portanto, deve-se à associação entre o primeiro candomblecista paraense iniciado em Salvador
e a mina do Pará as mudanças que se processaram no campo.
Pretende-se com os dados apresentados na presente pesquisa contribuir para engendrar
uma imagem ainda mais próxima do contexto em que o fenômeno religioso foi produzido, uma
outra via de observação que se abre a partir do percurso feito pela professora Marilú Campelo,
pois à medida em que as lideranças são iniciadas no culto baiano e os terreiros paraenses
fundados, novas demandas são geradas pelo campo que se complexifica e passa a exigir mais

69
Ritual que torna o iniciado no candomblé angola um sacerdote, ganhando o direito de fundar terreiro e iniciar
uma família de santo.
56

especialistas para que a identidade religiosa seja fortalecida, para manter o grupo coeso e
resultar em legitimidade e expansão.
Pela importância que a festa litúrgica tem para o candomblé e no contexto de construção
de uma identidade candomblecista local, a figura de Banjo é um nome fundamental apontado
pelos sacerdotes paraenses. A festa está presente nos cultos afro-brasileiros de qualquer
denominação, ela é apontada como um elemento cultural importante desde os primórdios dos
estudos africanistas (AMARAL, 2002). A palavra candomblé tem duplo significado, nomeia o
culto dos orixás70, inkices71 e voduns72 e o evento que encerra um ciclo de atividades do terreiro
composto por música, dança, comidas e transe.

A festa é uma das mais expressivas instituições dessa religião e sua visão de mundo,
pois é nela que se realiza, de modo paroxístico, toda a diversidade dos papéis, dos
graus de poder e conhecimento a eles relacionados, as individualidades como
identidades de orixás e de “nação”, o gosto, as funções e alternativas que o grupo é
capaz de reunir. Nela não encontramos apenas fiéis envolvidos nas louvações aos
deuses; muitas outras coisas acontecem na festa. Nela andam juntos a religião, a
economia, a política, o prazer, o lazer, a estética, a sociabilidade, etc. Por essa razão
as festas podem ser classificadas na categoria dos fatos sociais totais que, para Mauss
(1974), têm uma dimensão estratégica na elaboração do conhecimento antropológico.
A vivência da religião e da festa é tão intensa que acaba marcando de modo profundo
o gosto e a vida cotidiana do povo-de-santo. A religião passa a se confundir com a
própria festa (AMARAL, 2002, p. 30).

O trecho acima descreve a centralidade da festa que é apresentada pela autora como “o
momento em que a identidade dos grupos se expressa plenamente”, “vitrine da religião”, pois
de forma lúdica e mítica mostra o que o grupo é e como pensa. E esse mostrar-se, numa
ritualística que envolve todos os sentidos de quem está presente, é o que atrai pessoas para a
religião, tanto aquelas que manterão contatos esporádicos com o terreiro, clientes e
simpatizantes, quanto as que escolhem a iniciação para fazer parte do grupo, aumentando ainda
mais a produção de novas festas e assegurando o futuro da religião. É nela que o novo integrante
é apresentado, os mais antigos prestigiados e a morte é lamentada. O sentimento de identidade
produzido na festa mantém a coesão do grupo (AMARAL, 2002, p. 31-32).
Antes de morar em Belém, Ivonildo veio algumas vezes acompanhando pai Cícero ou
como enviado dele para acompanhar os filhos de santo iniciados em Salvador. Sobre o início
da década de 80, mãe Iyanarê afirma que poucas festas aconteciam “quase que não tinha
candomblé” e cita o nome de alguns poucos candomblecistas da época.

70
Termo que designa as deidades que compõem o panteão do candomblé keto.
71
Termo que designa as deidades que compõem o panteão do candomblé angola.
72
Termo que designa as deidades que compõem o panteão do candomblé jeje.
57

Não. Não tinha, o candomblé de Belém era reduzido em pouquíssimas pessoas, meu
padrinho Astianax que era feito no santo, a Ida Carmem que também era feita no santo,
o finado Antônio, o finado Haroldo Ferreira e... depois que já veio nessa safra que eu
fui feita, depois de mim já foi feito o Guilherme, depois já foram a... como é o nome
dela meu Deus, Rosete, que foi feita pelo meu padrinho Astianax (informação
verbal)73.

Sobre esse período de carência de especialistas para tocar, os sacerdotes entrevistados


afirmam que os dirigentes de terreiros baianos do segundo movimento de entrada da religião,
traziam os ogans para a realização das festas e como são quatro os instrumentos, três atabaques
de tamanhos diferentes (hun, hunpi e lé) e mais o gan74, a orquestra se completava com
aspirantes a ogan paraenses, cuja oportunidade de aprender se dava enquanto os baianos
estivessem em Belém.

Alguns ogans de Salvador, e uma ou outra pessoa de Belém que estava por lá, é que
ajudava, não sabia tocar, não sabiam tocar, mas foram aprendendo ao longo do tempo
e foram ajudando (Informação verbal)75.

Era o povo de Salvador que vinha, a mãe Dewí vinha e trazia o pessoal dela para tocar,
aí com a vinda da mãe Dewí, foi uma das pioneiras, seu Cícero quando vinha trazia o
pessoal dele para tocar. E, meu pai Walmir quando abriu a casa dele, foi Carlinhos
que veio, e veio o pessoal de Salvador, quem tocava era o povo de Salvador.
(informação verbal)76.

Sobre as visitas esporádicas dos ogans vindos nas comitivas de baianos e a necessidade
que a religião tinha na época de absorver os conhecimentos sobre a festa litúrgica, Mameto
Nangetu e mãe Iyanarê atribuem a importância de Ivonildo para o campo ao fato de fixar
moradia em Belém e pela iniciativa de ensinar, partilhando com os terreiros banto e keto o
cabedal que possuía sobre festas de candomblé.

A maioria vinha da Bahia, por exemplo, o Astianax foi uma pessoa mesmo que se
iniciou aqui, mas assim se iniciou e ficou iyawô, depois que foi tomar o kigimbô dele,
o Manoel da jóia também tomou o kigimbô, mas nunca teve iniciativa assim de...
trazer um ogan pra ensinar o candomblé, assim como o pai Walmir trouxe ele, por
exemplo, não era agregado ali. Ele serviu todo mundo, ensinou pra todo mundo, todo
mundo daquela época. Acho que aqui em casa o Lazaro foi o que não aprendeu com
ele. Lazaro é um filho de santo meu, porque o outros todinhos. (...) Sempre imigraram
vários. Vários imigraram pra cá, mas que ninguém assim ficou fixo de uma casa ou
tinha esse sentido humanitário de querer o melhor, de fazer o candomblé bonito, de
ser perfeito, por isso que ele era tão rigoroso (informação verbal)77.

73 Entrevista concedida por SANTOS, Elizia Palheta dos. Entrevista V [out. 2019]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2019. Arquivo .mp3 (01h 08min).
74
Também conhecido como agogô.
75 Entrevista concedida por BOTTAS, Carlos Alberto de Oliveira. Entrevista VIII [jan. 2020]. Entrevistadora

Patrícia Moreira Perdigão. Salvador, 2020. Arquivo .mp3 (30min).


76 Entrevista concedida por SANTOS, Elizia Palheta dos. Entrevista V [out. 2019]. Entrevistadora Patrícia

Moreira Perdigão. Belém, 2019. Arquivo .mp3 (01h 08min).


77
Entrevista concedida por RODRIGUES, Oneide Monteiro. Entrevista IV [set. 2019]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2019. Arquivo .mp3 (36min.23s).
58

Foi quando Nidinho veio para cá que fez moradia, aí foi quando começou a ensinar as
pessoas a tocar candomblé. Nidinho foi um pioneiro de ensinar as pessoas a tocar
candomblé, a cantar candomblé. (...) Ensinou aqui, ensinou os meus primeiros iyawôs
a dançar, a cantar, ensinou meus primeiros ogans como o Márcio. Nesse tempo vinha
a mãe Dewí, vinha para cá também, quando vinha pagar obrigação ele estava presente
também, vinha ajudar a mãe Dewí e... tinha o Romeu também já era criança, já era
rapazinho bem novinho e tal, mas já tocava né? (informação verbal)78.

Ivonildo, Banjo ou Nidinho - seja qual for o nome referido - figura na memória dos
candomblecistas como um mestre, título concedido em função do inegável talento para a
musicalidade litúrgica e pela boa vontade em ensinar a quem quisesse aprender.

3.2. UM SUJEITO LIMINAR: CONFLITOS E HIERARQUIA NO CANDOMBLÉ


PARAENSE

Para entender os conflitos estabelecidos no seio do candomblé paraense, especialmente


aqueles que envolvem o ogan baiano que é ego desta dissertação, faz-se necessário definir o
conceito de campo e aplicá-lo a realidade religiosa paraense. O sociólogo francês Pierre Bourdieu
define campo como:
Campo se refere aos diferentes espaços da vida social ou da prática social que possuem
estrutura própria e relativamente autônoma. Um campo se forma, entre outras coisas,
através da definição de objetos de disputa, de interesses específicos que são
irredutíveis aos interesses próprios de outros campos (...). Cada categoria de interesse
implica em indiferença em relação aos outros interesses, a outros investimentos
destinados, assim, a serem percebidos como absurdos insensatos (...). Para que um
campo funcione é preciso que haja objetos de disputa e pessoas prontas para disputar
o jogo, dotadas de habitus que implica conhecimento e reconhecimento das leis do
jogo, dos objetos de disputa, etc. (Bourdieu, 1983: 89).

Conforme já foi dito no tópico anterior, quando o candomblé chegou em Belém já existia
uma diversidade de outras matrizes religiosas solidificadas em território paraense. O tambor de
mina radicou-se no final do século XIX e início do século XX tendo como mito de origem a
maranhense conhecida como Mãe Doca. A umbanda chega na década de 30 através da figura de
Maria Aguiar, adepta do tambor de mina que viajou para o Rio de Janeiro a fim de iniciar-se
nesta religião. Aponta-se também que antes deste período havia práticas umbandistas vinculadas
a centros espíritas denominados pela Federação Espírita como “Baixo Espiritismo” (SOUSA,
2013).
O candomblé apesar de chegar a Belém trazido por Astianax Gomes Barreiro, vulgo Prego,
no final da década de 60 (CAMPELO, 2008) não se institucionaliza nesse período. O argumento

78Entrevista concedida por SANTOS, Elizia Palheta dos. Entrevista V [out. 2019]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2019. Arquivo .mp3 (01h 08min).
59

desta dissertação é que isso não aconteceu em função do mesmo ter regressado sozinho, trazendo
consigo uma religião de liturgia e teologia completamente diferente que precisava de um corpo
sacerdotal mais amplo para constituir-se enquanto identidade religiosa. Assim sendo, a figura de
Banjo foi fundamental neste processo.
A chegada do candomblé divide mais ainda o campo religioso local e provoca conflitos com
as lideranças das vertentes de culto já estabelecidas. O capital simbólico sustentado por essas
vertentes que são: antiguidade, senioridade e brasilidade, não legitimam os sacerdotes
candomblecistas que buscam no mito da africanidade e na rede de relações construídas a partir
do acesso a cidade de Salvador sua principal fonte de capital simbólico.
É possível definir capital simbólico como o poder de impor o reconhecimento ou valor
social dentro de um grupo, é um elemento que gera prestígio a um indivíduo ou grupo e pode ser
revertido em capital cultural ou econômico (BOURDIEU, 1989)
Uma das fontes de expressão do conflito nas religiões afro-brasileiras é o que Anaíza
Vergolino (2015) chamou “Nhigrinhagens”. Trata-se de uma palavra nativa que significa fofoca.
Baseada na teoria antropológica inglesa de Max Gluckman, presente no texto “Gossip and
Scandal” (1963) a autora destaca a fofoca como fonte de apontamento de sujeitos providos de
poder dentro de um grupo social específico, a Federação Espírita, Umbandista e dos Cultos Afro-
Brasileiros do Estado do Pará. É ela que delimita quem possui capital simbólico dentro de um
determinado grupo.

O alcance das “nhigrinhagens” incidiu diferentemente sobre as pessoas, pois algumas


foram apenas referidas e outas foram visadas constantemente e, finalmente, algumas
pessoas foram anônimas diante dos comentários “nhigrinhagens”[...]. (VERGOLINO,
2015, p. 62)

Citando Epstein a autora afirma que:

Ser falado mesmo na ausência, ainda que em termos depreciativos é ser contemplado
com uma medida de importância social no set da fofoca. Não ser falado, é a marca da
insignificância social, da exclusão do set. Em outras palavras, fofoca denota uma certa
comunidade de interesses, mesmo se o limite da comunidade somente possam ser
vagamente definidos (EPSTEIN, 1969, p. 113 apud Vergolino, 2015, p. 63).

Ao mesmo tempo em que destacam os conflitos existentes dentro do candomblé no Pará,


a fofoca delimita sujeitos e valores sociais importantes no interior desse campo. Sem sombra
de dúvida, o baiano Banjo, aqui biografado, foi um dos indivíduos icônicos nos comentários
proferidos dentro deste universo.
60

Tentei responder, nos limites desta dissertação, questionamentos do tipo: O que se


falava sobre o Banjo? Quais eram as acusações proferidas contra o Banjo nas rodadas de
conversa ocorridas no interior do candomblé? E quais eram as pessoas que falavam dele?
Iniciando pelo último dos questionamentos é possível afirmar que toda comunidade
religiosa afro-paraense tinha conhecimento da existência do “Nego Banjo”. Seus amigos
sacerdotes exaltavam sua competência enquanto dirigente da orquestra sagrada nas festas
religiosas e silenciavam sobre seus defeitos como pessoa, marido e pai. Um dos trechos que
exemplificam essa atitude dos amigos é quando a entrevista pergunta sobre a relação com os
filhos, que era de natureza conflituosa.

Tu sabes que às vezes a fome, o desemprego, a valorização, a falta dessa valorização,


faz com que, por exemplo... ele passou muita fome, muita. E, muitas vezes ele com
aqueles meninos (os filhos) não tinham o que comer, e isso aí eu preferia... não quero
falar (informação verbal)79.

Banjo era, indubitavelmente um dos personagens apontados como pontos referenciais


da memória do candomblé no Pará (POLLAK, 1992). Como construção narrativa realizada
pelos informantes, a partir de seleção de fatos considerados importantes, a memória joga para
o esquecimento aquilo que não se quer lembrar. O silêncio possui a função de proteger a
imagem de um sujeito considerado ícone e, portanto, construir a sua biografia de forma a exaltar
seus pontos positivos e omitir as informações que poderiam ferir a sua imagem. De acordo com
Michael Pollak “existem nas lembranças, de uns e de outros, zonas de sombra, silêncios “não
ditos” (POLLAK, 1989, p. 8).
As duas companheiras entrevistadas constroem discursos diferenciados sobre sua
atuação de marido e pai. Mãe Oji, única esposa oficialmente casada com Banjo, o descreve
como um homem mulherengo que comumente mantinha relacionamentos extraconjugais, que
não vivenciava o cotidiano doméstico em função de sua vida boêmia, e nem ajudava no sustento
da filha do casal.

Ele aparecia o dia que ele queria. Sempre foi rueiro, sempre foi assim de gostar de
rua, sempre foi rueiro. Vinha em casa o dia que queria, dormia o dia que queria o dia
que não queria dormia não sei por onde. Dormia nos Caminhos de Areia, lá pelas
casas da capeta. Eu também não tava nem aí, não me importava, não brigava, também
não gostava de escândalo. Eu sempre dizia a ele enquanto eu estiver com essa aliança
sua no dedo com toda a tua tortura eu vou te respeitar como marido, agora o dia que
eu tirar, você vai continuar vivendo a sua vida e eu vou passar viver a minha. Aí eu
tomei a decisão assim: um dia ele não dormiu em casa, quando foi de manhã cedo, ele
foi subindo assim a escada, eu me lembro como se fosse hoje... aí eu disse: oh, Banjo!
Oh, fulano volte aqui! Que dia você vem buscar o seu resto de roupa que tá aqui no

79
Entrevista concedida por RODRIGUES, Oneide Monteiro. Entrevista IV [set. 2019]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2019. Arquivo .mp3 (36min.23s).
61

meu guarda-roupa porque eu não aguento mais lhe olhar? Ah, faça o que você quiser!
Pode dar, faça o que quiser. [...] Ela (a filha do casal) tem uma péssima imagem, ela
diz que o pai dela é o meu ex-cunhado que já morreu também, que foi quem acabou
de criar porque eu sempre trabalhei e tive que levar ela pra minha irmã tomar conta.
Porque a minha irmã e meu cunhado, eles não tiveram filho, então eles eram
apaixonados por ela, Nilza e Luiz.[...] E aí foi o pai que ela conheceu, foi durante o
tempo dela de nascimento, a única coisa que Banjo deu pra ela foi 2 latas de leite e 2
mantas que ele comprou quando eu tava grávida (Informação verbal)80.

A outra companheira entrevistada, conhecida como Maiume, que vivia em união estável
com o mesmo no momento de sua morte, se referia a ele como alguém que mudou com a sua
gravidez e nascimento do último filho, assumindo a responsabilidade de sustentar e educar o
mesmo. Considerava-o um marido presente e fiel.

Aí, quando eu me envolvi com ele, em 2010, eu vi que ele bebia, que ele não bebia
todo dia, mas que de dois em dois ele tava bebendo e realmente era cachaça, era
cerveja... e foi onde eu comecei a tentar lapidar, e nesse meio termo eu engravidei,
nesse meio termo que eu engravidei, aí... teve que fica que não fica, com filho como
é que a gente vai criar e tal... e... o Íkaro nasceu. Quando o Íkaro nasceu, e, eu sentei
com ele e conversei, disse que eu não queria que o Íkaro crescesse vendo o pai dele
beber de dois em dois dias. Que se fosse assim eu preferia vim pra casa do meu pai
que não era isso que eu queria pra minha vida. Mas, que ficava a critério dele, e desse
dia ele virou pra mim e disse assim: “Mulher nenhuma manda em mim, mulher não
me domina”, aí eu disse pra ele, (...) homem nenhum me domina não nasci pra baixar
a cabeça pra ninguém. Aí eu disse então melhor tu ficar, que eu tava de resguardo aqui
na casa do meu pai, Aí eu disse pra ele tu fica pra aí que eu fico pra cá, e nesses
quarenta dias que eu passei aqui ele não deixou de vim, ele vinha quatro vezes na
semana me ver e ver o Íkaro. Quando eu voltei pra casa eu não achei mas o mesmo
homem, tava diferente, ele tava diferente. Ele não queria admitir que a prensa tinha
feito ele mudar, que ele não dava o braço a torcer dele, mas que já era... Baniu a
cachaça da vida dele, quando ele tinha que tomar, tomava uma cerveja e só era no
final de semana, no caso, no domingo fora disso, não. Quando tu chegava em casa,
encontrava ele sóbrio ou tu encontrava ele na feira com filho, tu encontrava ele no
quintal, tu encontrava ele fazendo alguma coisa dentro de casa, ou até mesmo dando
aula de capoeira ou de atabaque, mas ali em casa. E daí por diante, os seis anos que
nós vivemos juntos, foi os seis anos que o Banjo mudou, quando chegava num
determinado local com ele já não amanhecia mais no candomblé, que chegava num
determinado horário ele já vinha embora aí o pessoal costumava a dizer: “é o nego
Banjo não é mais aquele! É, virou canoa, velho?”. Principalmente as encarnações do
ogan. Mas, dava determinada, duas horas que ele tava no candomblé, ele ficava aquele
pouquinho e ia embora pra casa, e daí ele foi, foi... Chegou um determinado tempo
que ele já vivia pra gente, pra família, vivia pros mais íntimos dele e pro orixá. Me
lembro que umas semanas antes dele falecer os orixás dele tavam seco, que ia fazer,
quem dava ossé, quem organizava pra Omolú comer era tudo minha mãe e ele... e...
ele foi entrou dentro do quarto de santo dele e disse: “Ah, Maiume! O meu orixá tá
seco, vou já botar o Íkaro.”. Porque ele já não aguentava carregar o balde. E o Íkaro
pequeno, cinco anos, ele pegou encheu o balde na porta do barracão com uma
mangueira e o Íkaro ia enchendo as quartinhas dos orixás com uma vasilinha, uma
cuia. Aí ele “É Bogó, tu vai ficar enchendo as quartinhas porque eu já tô prá lá de
gapiar pra kazumbo, eu já não aguento mais!”. Foi a última vez que eu vi meu marido

80
Entrevista concedida por FILHA, Rosália Freitas de Aguiar. Entrevista IX [jan. 2020]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Salvador, 2020. Arquivo .mp3 (1h24min52s).
62

deitar pra bater paó pro santo dele, junto com o Íkaro, foi a última vez que eu vi ele
fazer isso. (informação verbal)81.

O potencial de Banjo como alabê era conhecido na comunidade paraense e baiana. É


mencionado como alguém que “tinha o dom para a música”, exímio conhecedor dos toques
chegando a classifica-lo como “um baú de cantigas”82.

Olha, tinha vezes... ele era muito assim de ocasião. Às vezes, ele estava cantando
coisas simples, ele dizia assim que abria um baú dentro dele, e ele lembrava cantigas,
muito antigas. Cantigas que não são eventualmente usadas e que ele tinha aprendido
quando ele era adolescente [,,,]. Então, ele nesse momento, nesse momento que ele
diz que acontecia que ele começava a lembrar, por exemplo de determinada cantiga
que ele estava cantado se fosse pra Xangô remetia ele lá no passado e ele vinha, aí ele
voltava aquilo ia inspirando ele, aí ele fazia esse resgate dentro dele porque muitas
das vezes ele cantava coisas que ninguém respondia, eu principalmente eu tinha um
gesto... eu dizia assim que eu fechava a boca e jogava a chave fora que eu não sabia
responder, eu nunca tinha ouvido, e ele cantava uma, duas, três vezes pra que a gente
tivesse. E eu tinha muito disso com ele, ele cantava alguma coisa que eu não conhecia,
quando teve depois do candomblé ele se sentava nessa mesa, numa mesa mais velinha,
sentava nessa mesa tomava a cerveja dele, ele pedia bode com farofa que era o que
ele gostava de comer, bode com farofa e dizia assim, agora sim cante pra mim, aí ele
começava a achar graça. Ele (dizia) “cantar o quê?” Eu só gravei esse pedacinho,
cante! Aí ele cantava pra mim. “Ah, Obasanji! Eu lembrei essa de tanto tempo atrás
na casa do fulano, porque eu aprendi dessa forma” e contava pra mim. Então esse era
o que a gente tinha, as nossas conversas, tinha muito dele contar o que acontecia
(Informação verbal)83

Sua qualidade musical era considerada perfeita:

A coisa assim, perfeita. Perfeita que ele parecia assim... ele dizia: “Meu, me dê esse
hun aí”. Aí eu ainda brincava com ele, sai pra lá meu, tá velho! Ele me surpreendia,
ele fazia coisas assim, ele ia buscar forças eu não sei de onde cara, pra fazer aquilo
que ele fazia ali, naquela hora, naquele momento! Aí depois ele me entregava, eu
achava aquilo muito bonito. [...] Me surpreendia. Uma vez a gente tocando candomblé
e aí ele cantou pra oyá, ele pegou no hun e ele deu umas porradas no hun que eu fiquei
surpreso. Eu disse tá escondendo o jogo né seu velho?! Aí ele só fez olhar pra mim e
achar graça (Informação verbal)84.

Sua capacidade e o capital simbólico amealhado pela baianidade, pelos anos de


experiência religiosa, e pelo trânsito nas mais diversas casas e nações tradicionais do candomblé
de Salvador lhe conferiram uma auto estima que por vezes lhe rendia o adjetivo “nego boçal”.
E o conhecimento técnico o tornou um professor exigente e ríspido cuja pedagogia não agradava
a todos os aspirantes a alabês.

81
Entrevista concedida por CARDOSO, Maiume Mayara Jamacaru. Entrevista III [maio 2019]. Entrevistadora
Patrícia Moreira Perdigão. Marituba, 2019. Arquivo .mp3 (1h18min).
82
Citar Halbwachs “atleta da memória”
83 Entrevista concedida por PALHETA, Eliane Dolores da Silva. Entrevista VI [out. 2019]. Entrevistadora

Patrícia Moreira Perdigão. Ananindeua, 2019. Arquivo .mp3 (1h24min).


84 Entrevista concedida por SOUZA, Jutair Santos de. Entrevista VII [jan. 2020]. Entrevistadora Patrícia Moreira

Perdigão. Ananindeua, 2020. Arquivo .mp3 (48 min).


63

Ele serviu todo mundo, ensinou pra todo mundo, todo mundo daquela época. Acho
que aqui em casa o Lazaro foi o que não aprendeu com ele. Lazaro é um filho de santo
meu, porque o outros todinhos. [...] O Lazaro não se submetia a ele. Era, uma
personalidade também forte, então pra ele não brigar ele preferiu aprender de outra
forma. Mas, os outros todos foram alunos dele. Até pra não brigarem (informação
verbal)85.

Era único, cara! O estilo dele até hoje ninguém canta igual, ninguém toca igual a ele,
ninguém. [...] Ele fez um bom trabalho. O Nego era enjoado, ele era encrenqueiro, ele
brigava com todo mundo. Mas, ele brigava porque ele queria ver o certo, ele ensinava
pra poder ver o certo, ele queria um candomblé bem tocado, bem cantado, bem
dançado era isso que ele queria. (Informação verbal)86.

Mediante a tantos elementos positivos referidos sobre a sua competência técnica e


religiosa de que forma a fofoca dá vazão aos conflitos do campo afro-paraense e da participação
de Banjo no mesmo?
Antes de discorrer sobre este assunto, faz-se necessário definir o conceito de conflito e
farei isso a partir do texto “A natureza sociológica do conflito” de Georg Simmel (1983). Nesta
obra o autor destaca a importância do conflito como elemento de coesão da estrutura social “O
conflito está (...) destinado a resolver dualismos divergentes” (Simmel, 1983, p. 122).
O autor pensa o conflito como uma forma de sociação que mantém coeso um grupo em
oposição a outro. No contexto aqui estudado, temos: candomblecistas x mineiros e
umbandistas; baianos x paraenses; “puros” (africanos) x misturados. Esse jogo de oposição
entre “identidades rivais” é a causa do estabelecimento do conflito no campo afro-paraense.
Geralmente ele é visto como instaurador de uma ruptura, mas o autor classifica essa visão como
“trivial” e exalta o caráter positivo do mesmo porque “o próprio conflito resolve a tensão entre
contrastes” (Simmel, 1983, p. 123).
Destarte, percebe-se que mesmo instaurado, o conflito não ocasiona rupturas
permanentes, joga-se com o mesmo de acordo com os interesses dos personagens dentro do
referido campo religioso. No caso de Banjo e as polêmicas que a sua liminaridade sacerdotal
provocou, não havia a possibilidade de romper definitivamente as relações entre os indivíduos
envolvidos no conflito em função da interdependência entre os cargos (sacerdote, ogans,
equedis), tal característica foi o motivo do adiamento do estabelecimento da matriz religiosa no
Pará.
Neste sentido, conforme Simmel (1983), não existe unidade social sem conflito, mesmo
coeso, a ideia de união pacífica é irreal porque todo agrupamento social constituído a partir de

85 Entrevista concedida por RODRIGUES, Oneide Monteiro. Entrevista IV [set. 2019]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2019. Arquivo .mp3 (36min.23s).
86 Entrevista concedida por SOUZA, Jutair Santos de. Entrevista VII [jan. 2020]. Entrevistadora Patrícia Moreira

Perdigão. Ananindeua, 2020. Arquivo .mp3 (48 min).


64

diferenças internas e de interesses contrastantes possui divergências abertas ou “consideráveis


diferenciações de ânimos” (Simmel, 1983, p. 123) que o autor chama de mal entendido.
Então, cabe questionar em que conflitos Banjo estava inserido. Primeiramente, de
acordo com as narrativas das esposas dispostas acima, muitos estavam relacionados à sua vida
afetiva-sexual e de paternidade, conforme já foi discutido no terceiro tópico do primeiro
capítulo, assim como Zé Pelintra na imagem de Exú, a figura de Banjo reproduz o arquétipo do
malandro, cuja características básicas são a liberdade sexual e o pouco interesse pelo trabalho
formal.
Analisando a figura de Banjo, posso afirmar que sua profissão foi a festa. Tirava o
sustento da família do pouco que ganhava nas relações de dádiva (Mauss, 2003) estabelecidas
com os sacerdotes paraenses. “Se queriam um candomblé bonito, tinha que chamar o Banjo” é
o que comumente se ouve dos entrevistados, mas, em troca, desta força de trabalho musical
dificilmente havia uma retribuição financeira a contento que desse conta da subsistência de sua
família.

Meu desafio é conseguir viver com dignidade sem abandonar o candomblé pra isso
estou procurando meios de sobrevivência [...], pois se eu não tenho aposentadoria é
porque minha vida foi em candomblé e não dava para conciliar empregos com a vida
do terreiro. Com a situação que me encontro hoje já pensei até em vender a minha
casa e investir em canoa e viver de pesca na Bahia. Eu estou vivendo da ajuda dos
amigos em troca de aulas de canto e não recebo dinheiro, pois eles também não têm
muito a dar. Dou aulas em troca de alimentos e vale-transporte, mas tem dia que não
sei o que vou dar de comer aos meus filhos (...) (INSTITUTO NANGETU, 2008).

Até disse pro Banjo uma vez... o problema também é que você não se deu o
determinado valor, você fez muito por amor ao orixá, te dando uma cerveja, te dando
uma cachaça ou te dando um agrado de R$ 20,00, R$ 30,00 você ia por amor ao orixá,
e eles não te valorizaram. (informação verbal)87

Outro elemento referido nas fofocas e que gerava conflitos entre Banjo e a família e
entre Banjo e a comunidade afro-brasileira local era o vício da bebida que por alguns era
referido como estratégia de esquecimento da situação de vulnerabilidade social e dos problemas
familiares, alguns decorrentes da situação financeira; enquanto que para outros o vício fazia
parte da construção do ethos da malandragem, ou ainda, era um elemento utilizado como
mecanismo de ataque e desconstrução de seu capital simbólico em situações conflituosas e de
disputas de poder.

Então, ele fez isso por muitos e era muito pouco, meu irmão passou muita necessidade
muita, de ter que estar pela casa de um pela casa de outro. Infelizmente não teve
tempo, eu não sei se ele conseguiu porque ele estava em um impasse de conseguir se

87
Entrevista concedida por CARDOSO, Maiume Mayara Jamacaru. Entrevista III [maio 2019]. Entrevistadora
Patrícia Moreira Perdigão. Marituba, 2019. Arquivo .mp3 (1h18min).
65

aposentar por doença, nem conseguiu ter uma renda fixa, não ter um tudo e... passar
por essas coisas. Infelizmente, como o povo achava que ele iria se trocar pelo uma
dose de cachaça algumas coisas. As vezes eu acho que ele até fazia isso por um
desespero, por uma... como é que se diz? Questão sei lá de aliviar o sofrimento a dor
dele. Ele bebia pra esquecer. Eu tenho certeza que por tudo aquilo que conheci ele não
vivia só por causa de cachaça, ele não era um alcoólatra, ele bebia talvez pra esquecer
as amarguras da vida dele, das tristezas da vida dele, ele sempre teve problemas com
esses filhos dele, sempre. Então, eles, eles... como é que se diz... pai Nidinho tinha
muitas dores que acho que ele acabava afogando nas bebidas. E o povo achava que
ele só vivia por bebida, mas não era isso, era um carpinteiro de mão cheia. Até hoje
nós temos uma cadeira que já está velhinha, já tá feia que foi ele que fez. Era um
marceneiro de mão cheia, tudo que ele podia fazer ele fazia, ele foi muito pouco
reconhecido por tantas coisas que ele fazia (Informação verbal)88

Para concluir esse subcapítulo, vale referir que os conflitos que merecem maior destaque
são aqueles que envolvem Banjo e a sua relação com alguns candomblecistas paraenses. Em se
tratando dos grupos contrastantes envolvidos no conflito, destaco, neste caso, a oposição entre
baianos e paraenses. Cabe ressaltar que a identidade do candomblé se constrói, conforme já foi
mencionado, a partir de uma linhagem que interliga o estado do Pará ao continente africano,
tendo como entreposto o estado da Bahia. Ser candomblecista tradicional significa ser baiano
ou ser iniciado por baianos. Entre essas duas categorias existe discrepância de capital simbólico.
Neste caso, afirmo que os paraenses iniciados em Salvador precisaram de Banjo não só
para formar a “equipe” religiosa capaz de solidificar a nova matriz no Pará, mas também para
ensinar a liturgia com status de professor emérito dentro de terreiros liderados por sacerdotes
desprovidos de capital simbólico por sua naturalidade paraense. Todavia, cabe destacar que sua
função de alabê o subalternizava dentro de uma estrutura hierárquica cujo ápice é o ocupado
pelo sacerdote.
A medida em que Banjo foi se empoderando de sua baianidade e utilizando-a como
mecanismo de “libertação” nesta estrutura, o conflito passa a ser gerado. Apesar de não entrar
em transe, condição sine qua non no processo de formação de um sacerdote, exerceu funções
que são próprios desse cargo, a exemplo de abrir e gerenciar o próprio terreiro, jogar búzios,
iniciar e pagar obrigações de filhos de santo. Não detalharei aqui esses episódios, uma vez que
serão discutidos no tópico subsequente, no entanto, é importante ressaltar que esta pretensa
mudança de categoria alterou substancialmente sua relação com os sacerdotes paraenses.
Se o capital simbólico que ele possuía por ser baiano e pelo trânsito entre as casas
reconhecidas como tradicionais pelos terreiros de Belém conferiu a ele reconhecimento ao

88 Entrevista concedida por PALHETA, Eliane Dolores da Silva. Entrevista VI [out. 2019]. Entrevistadora
Patrícia Moreira Perdigão. Ananindeua, 2019. Arquivo .mp3 (1h24min)
66

ponto de ser chamado pelas lideranças locais – desde a sua chegada em Belém – como “Pai”89
Nidinho, o mesmo é relativizado no momento em que Banjo assume características liminares
pleiteando ocupar papel de sacerdote.
Enquanto o baiano Banjo não ameaçava o status dos sacerdotes paraenses, a alcunha
(Pai) que lhe foi conferida carregava uma carga afetiva a ponto de seu nome ser proferido no
diminutivo, carinhosamente como Nidinho. No momento em que ele assume a identidade
conferida por este título (pai), o mesmo, aliado ao capital simbólico da baianidade passa a
significar concorrência no campo. Ele era funcional prestando serviços, ministrando cursos
dentro das casas de babalorixás paraenses sob a égide da sua liderança religiosa. A medida em
que faz o movimento de emancipação, o conflito se instaura, pois o sacerdote negro baiano,
mesmo destituído de dons mediúnicos, afetaria o status dos sacerdotes não soteropolitanos e
ameaçaria seu poder dividindo um campo ainda não consolidado.

3.3. A BAIANIDADE QUE CONFERE PODER: UM ALABÊ COM STATUS DE


SACERDOTE

Um dos elementos mais interessantes da biografia de Ivonildo Santos é a ambiguidade.


Era iniciado como alabê, cargo que lhe conferia domínio sobre os instrumentos musicais e sobre
a orquestra ritual do candomblé. No entanto seu papel no contexto afro-religioso local
transcende essa categoria.
A hierarquia dentro de um terreiro de candomblé tem como ápice a figura do sacerdote
ou sacerdotisa. Cabe unicamente à essa figura gerir uma casa de santo, liderar as festas públicas,
realizar iniciações de todos os cargos, fundar terreiros dos filhos iniciados, repassar o
conhecimento mitológico, ensinar a cantar, dançar, rezar. Trata-se da autoridade máxima dentro
de um terreiro. A ele estão vinculados, por critério de filiação, quase todos os demais cargos.
Só ele pode realizar uma “feitura” que, no candomblé, funciona como uma espécie de parto que
lhe confere o título de pai ou mãe de santo.
O alabê, conforme já foi mencionado, é responsável apenas pela liturgia musical do
candomblé. Através dos seus toques e cantos ele tem a função de chamar o orixá para que
através da dança o mesmo distribua força vital. Ele domina a sequência musical que conduz
esse processo desde a chamada até a despedida da divindade. São religiosos que atuam nos

89
Destaco que o termo pai é utilizado nas religiões de matrizes africanas para se referir ao sacerdote, liderança de
um terreiro.
67

bastidores ensinando a tocar, a cantar, a responder cantigas e dançar. Cabe a eles também cuidar
da manutenção dos instrumentos musicais e preparar os aguidavis.
Apesar destas serem as atribuições reais de um alabê, Banjo teve suas atividades
ampliadas em dois aspectos. Apesar das críticas conferidas pela comunidade afro-religiosa
local, este tocador de tambor realizou a iniciação da sacerdotisa Rosalídia Tavares Sutelo e,
posteriormente, assentou seu próprio terreiro, passando a gerenciá-lo mesmo sem receber os
orixás ou entidades através do transe e sem ter sido iniciado para isso.
Conhecida como mãe Rosa ou Oyá Nirolê, essa sacerdotisa do candomblé é costureira
de profissão, nasceu na Colômbia em 10 de maio de 1956, foi registrada no estado do Amazonas
e veio para o Pará com três anos de idade. Iniciou a trajetória mediúnica aos doze anos a partir
da incorporação da cabocla Mariana, o que a levou a frequentar o terreiro de mina de pai
Celestino no bairro da Terra Firme. Mãe Rosa, assim como a maioria dos sacerdotes mais
antigos de Belém do Pará, começou a sua trajetória no tambor de mina e nessa religião, aos
dezesseis anos de idade, batizou e assentou a sua cabocla, foi conduzida para fazer a bateria de
testes da FEUCABEP a fim de legitimar a sua entidade lá pelos idos de 1978.
Sobre a iniciação no candomblé, mãe Rosa afirma que após a morte de pai Celestino,
ela ficou sem terreiro e migrou para o candomblé keto. Após ter bolado90 nos pés do alabê
Ivonildo, ele teria dito que iria fazer o santo dela tão logo conseguisse um terreiro que aceitasse
a iniciação. Esse terreiro foi o de pai Omineran (Rosenildo Silva Ribeiro), que até então se
identificava como nação keto, no bairro do Coqueiro. Esse sacerdote se tornou seu pai pequeno
junto com mameto Nangetu (Oneide Monteiro Rodrigues) da nação angola.
A explicação de mãe Rosa para a decisão de se iniciar com Banjo remete à vontade de
ser iniciada depois de tanto tempo percorrendo religiões de matriz africana e a falta de
conhecimento em relação à tradição do candomblé. Na entrevista com Banjo ele informa que
Rosa teria bolado nos seus pés e quando indagada se gostaria que sua feitura fosse feita por ele,
Iansã91 teria respondido que sim.
O fato é que no dia 17 de abril de 1992, mãe Rosa recolheu para fazer o santo no
candomblé, tornando-se a humbona92 do ogan Banjo. Na contramão da tradição que prega: “Só
se pode dar o que recebeu”, Banjo inicia uma iyawô, sendo que não recebeu em seu próprio
corpo a iniciação que deu. Mas apesar das críticas sobre quem realizou a feitura, não se
costumam ouvir condenações sobre a veracidade do ritual. Ao que parece, a receita de uma

90
Cair em transe. No candomblé esse é o termo que se usa para o transe descontrolado antes da iniciação.
91
Orixá que rege mãe Rosa.
92
Termo utilizado no candomblé keto para designar o primeiro filho de santo de um sacerdote.
68

iniciação legítima foi seguida neste caso, acompanhada de perto por dois sacerdotes, pais
pequenos da referida sacerdotisa, na época neófita.

A minha iniciação foi muito dura. Ele (Banjo) foi muito ríspido na minha iniciação,
eu fui criada mesmo de cabeça no chão, dormindo no chão, batendo paó, não andava
de cabeça erguida, andava todo tempo abaixada (informação verbal)93.

Mesmo durante o recolhimento, mãe Rosa conta que havia muita confusão em torno de
sua iniciação. A Federação teria se oposto ao ritual, negando a sua validade e chegando ao ponto
de ameaçar envolver a polícia, fazendo com que a recolhida desejasse desistir da feitura, o que
não ocorreu e o ritual se concretizou.
Apesar da pressão exercida pela FEUCABEP no sentido de registrar as iniciações e
terreiros, a partir de 1988, essa instituição reguladora perde a legitimação do Estado e sua única
incumbência passa a ser o de controle, no sentido de não permitir que os cultos obstruíssem o
tráfego de veículos, poluíssem ruas e ambientes naturais e que o barulho não incomodasse a
comunidade (Luca, 2003).
O orukó ocorreu no dia 10 de maio de 1992, a pessoa que conduziu o orixá para que
dissesse o nome iniciático foi Iyá Tundelê, ogan de Mameto Nangetu. O fato dela ter sido
iniciada por um ogan fazia com que grande parte da sociedade candomblecista não a aceitasse
como iyawô. A sacerdotisa baiana Dewi, que iniciou muitos afro-religiosos paraenses, quando
convidada para tirar o orukó da iyawô, negou-se.
Vale dizer que, mesmo diante de tantos conflitos, a federação legitimou a feitura
conforme pode ser visto na Guia de Recolhimento (ver figura 8) expedida pela instituição. No
entanto, para a iniciação ser validada perante a comunidade candomblecista, mãe Rosa precisou
passar para as mãos de um sacerdote legitimado pelo grupo. Ter sido compulsoriamente
afastado das obrigações subsequentes à feitura da sua humbona foi para Banjo motivo de
tristeza, pois a tinha como herdeira.

93Entrevista concedida por SUTELO, Rosalídia Tavares. Entrevista II [abr. 2011]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Ananindeua, 2011. Arquivo .mp3 (52min 28s).
69

Figura 8: Guia de Recolhimento para iniciação de mãe Rosa expedida pela FEUCABEP.

Fonte: FEUCABEP.
Como havia sido iniciada na casa de pai Omineran que, na época da referida iniciação
se auto identificava como keto e hoje de identifica jeje, lá ela permaneceu e passou para as mãos
desse sacerdote na obrigação de um ano. Na obrigação de sete anos passou para as mãos da
iyalorixá Iyánarê (keto) a quem esteve ligada até a obrigação de vinte e um anos. Após a morte
70

de Banjo, o ritual fúnebre da retirada da mão de vumbi94 foi realizado por pai Carlinhos (jeje) a
quem passou a ser filiada.
Se na época em que ocorreu esta iniciação era expressamente condenado ogans
executarem rituais tradicionalmente realizados sacerdotes, atualmente a realidade é outra. Hoje
em dia, de maneira nada velada, é comum ver ogans que jogam búzios, pagam obrigação de
autoridades, receitam e executam ebós e fazem toda sorte de rituais que, tradicionalmente, não
é parte da sua alçada. Apesar de ainda haver um receio maior de divulgar uma iniciação
realizada por ogan.
A tradição candomblecista só permite ao ogan ou ekedi realizar as mesmas funções de
um babalorixá ou iyalorixá se ele receber o cargo de babalaxé (no caso da ekedi seria iyalaxé).
Esse cargo autoriza quem recebe a assumir a direção do terreiro após a morte do sacerdote.
Conquanto, Banjo não se enquadra nessa exceção, uma vez que seu sacerdócio independia do
falecimento de uma liderança.
Diante disso, pode-se afirmar que o candomblé flexibilizou a sua hierarquia, os seus
rituais e os seus tabus. Os rituais que antes só poderiam ser realizados por pais ou mães de
santo, hoje são realizados por ogans. Os elementos que os rituais consomem são
constantemente substituídos e os preceitos indicados àqueles que recebem tais rituais foram
diminuídos em tempo e rigidez, tudo isso para fazer frente à disputa por mercado religioso que
mesmo ressignificando a tradição, sustenta em grande medida, principalmente, sacerdotes e
ogans e parte das necessidades do terreiro.
Uma tentativa de legitimar o seu poder do alabê como sacerdote foi a conferência de
um cargo oferecido a ele por mãe Omeran, sacerdotisa do candomblé keto soteropolitano, que
em cerimônia pública transmitiu a ele o título de huntó. Segundo o pesquisado, o significado
desse cargo seria “herdeiro da cabaça da ancestralidade”. No entanto, sabe-se que esse cargo é
do candomblé jeje e o equivalente a alabê, função que ele já ocupava desde o processo
iniciático. Também, é necessário dizer que na época em que o cargo foi por ele recebido, o jeje
não figurava como uma identidade constituída no campo religioso afro-paraense. Isso pode
denotar que alguns conhecimentos dessa tradição eram apropriados por outra com o objetivo
de conferir status se constituindo como capital simbólico para maior prestígio.

Olha, eu sou herdeiro da cabaça da ancestralidade. Eu sou huntó. Eu recebi uma


cabaça com 16 búzios para que eu olhasse o que o orixá quando viesse do orum para
o aiyê determinasse o que eu poderia fazer por uns amigos, pelo filho meu, pelo uma

94
Tirar a mão do falecido. Cerimônia realizada na pessoa iniciada pelo morto para tirar a influência dele na vida
do filho de santo.
71

mãe minha, por uma irmã minha. Então, a Joselita me entregou na casa do Aga Arô
Nilé, uma cabaça com 16 búzios. Eu acho que esses búzios não foi pra eu botar eles
no bolso, que chama-se Merê de Logum, que chama jogo da adivinhação, eu tinha que
usar. Então, eu tenho cargo de huntó que é após 21 anos de santo ou 14 anos de
obrigação paga que toma esse cargo de huntó, herdeiro da cabaça da ancestralidade.
E só quem toma esse cargo é quem é de Omolú. Hoje estão confirmando huntó, e babá
ewê, dando cargo fora de tempo. Esse cargo que eu peguei foi a Joselita, a mãe
Omeran de Salvador, filha de santo de Odé Tokí da nação keto que me entregou esse
cargo junto com a minha mãe pequena, Mercedes de Aquino. Hoje, quem está no lugar
da minha Iyalorixá foi Elizia Palheta de Iemanjá, a mãe Iyanarê e outras pessoas que
estavam presentes. E nesse momento que foi entregue a minha cabaça de axé, os
orixás vieram do orum para o aiyê dizer que estava tudo positivo. Se hoje eu não posso
fazer, os orixás não existiram no momento (informação verbal)95.

O cargo foi repassado a Banjo na obrigação de sete anos quando também retirou a mão
de vumbi do ogan Antonio Pejigan, esta obrigação foi realizada no terreiro de pai Walmir da
Luz Fernandes. Sobre a compreensão dos paraenses acerca do cargo de huntó, vale ressaltar
que o significado aferido por mãe Omeran foi acolhido por causa de seu status de sacerdotisa
baiana e, como refere esse significado “herdeiro da cabaça da ancestralidade” é possível afirmar
que, para os que não acreditavam que conferia poder de sacerdote, garantiu status de griot96 a
Banjo. Os sacerdotes paraenses entenderam que o cargo dava poderes para Banjo exercer
algumas atribuições de sacerdote dirigente de terreiro como pode ser percebido nos trechos
abaixo.

(O cargo de huntó) dava direito a ele a fazer alguns procedimentos dentro do


candomblé, não sei todos por que... mas alguns procedimentos ela deu o direito à ele
né? Logo depois disso ele mudou pra lá pra Icoaraci. (...) Ele mudou pra lá, e lá foi eu
quem abriu a casa (terreiro) dele. Quer dizer, não fui pra abrir a casa dele. Eu fui pra
pagar obrigação de 14 anos na casa dele, ele já tinha a casa aberta, já tinha algumas
coisas lá do candomblé, o santo dele já estava lá, e lá eu paguei a obrigação de 14
anos dele (informação verbal)97

Olha, até onde sei o Banjo ele recebeu um cargo de huntó que era pra... pra que poderia
jogar, poderia fazer ebós, fazer todos os procedimentos dele. (informação verbal)98

Só algum tempo depois com o estabelecimento desta nova matriz jeje, trazida ao Pará
também por sacerdotes baianos, os paraenses tiveram acesso a informações sobre liturgia e
organização social dos terreiros jeje, podendo assim contestar conhecimentos outrora
considerados “verdades absolutas”.

95
Entrevista concedida por SANTOS, Ivonildo. Entrevista I [abr. 2011]. Entrevistadora Patrícia Moreira
Perdigão. Icoaraci, 2011. Arquivo .mp3 (59 min.).
96
Em algumas sociedades da África ocidental, é o indivíduo responsável por preservar e ensinar os conhecimentos,
mitos, canções de seu povo, podendo ser contadores de histórias ou musicistas.
97
Entrevista concedida por SANTOS, Elizia Palheta dos. Entrevista V [out. 2019]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2019. Arquivo .mp3 (01h08min).
98
Entrevista concedida por CARDOSO, Maiume Mayara Jamacaru. Entrevista III [maio 2019]. Entrevistadora
Patrícia Moreira Perdigão. Marituba, 2019. Arquivo .mp3 (1h18min).
72

Se o finado Cícero tivesse uma identidade jeje, como ele deveria ter porque a minha
mãe de santo que pagava as obrigações dele, ela que ministrava as obrigações dele
e... o similar de alabe é huntó, e aí se ele tivesse, por exemplo, se ele tivesse
confirmado na minha casa ele já nasceria com o cargo de huntó, porque é o cargo do
homem que é preparado para tocar o atabaque. Junto com o hundevá e hundeví. Se ele
recebeu em Belém o cargo de huntó pra ser babalorixá, e foi minha comadre Joselita,
Omeram que deu esse cargo, ela errou muito, errou muito. Primeiro porque na casa
dela não se usa esse termo porque ela vem de uma casa de keto, ela é filha do finado
Ode Toki. Ela conheceu esse termo através do meu pai Pedrinho que era companheiro
dela e vinha de uma linhagem de pejigan, de huntó, de hundevá, hundeví, seneví,
kutó.(...) Esse cargo não existe com atribuições de sacerdote, esse cargo existe com
atribuição de tocar atabaque, de tocar candomblé. (...) (Não com a atribuição) de
iniciar, nem de pagar obrigação, de jogar búzios, de fazer ebó, nenhum. Esse posto
existe, huntó existe, é um cargo de jeje, é um cargo de homem que toca, que é o
responsável pelos atabaques, né? Então, ele é responsável pelo hun, ele é o senhor do
hun, huntó. (...) Similar ao alabê do keto e xicarangomo do angola (Informação
verbal)99

Para finalizar esse tópico que fala da ambiguidade de Banjo, relato a fundação do
terreiro Ilê Asé Omolu Sadê - que significa “Senhor Proprietário do Trono” em 08 de agosto de
2000, no bairro do Tapanã, localizado à Avenida Augusto Montenegro, km 23, passagem Vidal,
nº 15 - Café Liberal (ver figura 9 abaixo). A abertura de uma casa para um ogan representou
mais uma polêmica no campo afro-religioso paraense. Até hoje não se sabe ao certo quem
realizou os fundamentos da mesma. A sacerdotisa responsável pelas suas obrigações de 14 e 21
anos não assume a autoria que provavelmente cabe ao próprio Banjo, possivelmente auxiliado
por um sacerdote para os rituais em que o transe é requerido, informação que obtive em
entrevista com pai Walmir, já que Banjo era impassível ao transe. Ou seja, o ogan baiano não
só inverteu a hierarquia do candomblé abrindo seu próprio terreiro como foi autônomo no
processo de sacralização do mesmo. Conforme relata mãe Iyanarê:

Não sei se foi ele mesmo, não tenho esse conhecimento. Mas sei que ele já tinha essa
casa, já tinha a casa assim. Então, quando eu fui para lá, como eu te disse, eu fui para
pagar a obrigação de 14 anos dele. Nesta obrigação houve uma problemática muito
grande, inclusive comigo, porque o meu pai Walmir disse que eu, inclusive isso foi
muito comentado em Belém, que eu tinha aberto casa para ogan, isso chegou até em
Salvador, que eu tinha aberto casa para ogan, e... aí aquilo foi aquele zum zum, sabe
quando fala né? Aquela história toda. Aí, de imediato eu procurei pedir uma reunião,
e aí eu chamei um filho de santo meu que eu tinha, inclusive hoje ele é formado, ele
estava até para os Estados Unidos agora, Otomir. Aí, eu pedi para o Otomir fazer uma
defesa para mim. Eu expliquei para ele tudinho o que tinha acontecido e ele escreveu
tudinho. E eu fiz uma reunião (Informação verbal)100.

99 Entrevista concedida por BOTTAS, Carlos Alberto de Oliveira. Entrevista VIII [jan. 2020]. Entrevistadora
Patrícia Moreira Perdigão. Salvador, 2020. Arquivo .mp3 (30min).
100
Entrevista concedida por SANTOS, Elizia Palheta dos. Entrevista V [out. 2019]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2019. Arquivo .mp3 (01h08min).
73

Figura 9: Ivonildo dos Santos dançando para o seu orixá na inauguração do próprio terreiro denominado Ilê Asé
Omolu Sadê em agosto de 2000.

Fonte: Acervo pessoal de Maiume Jamacaru.


O fato acima narrado e apresentado na Figura 9 representou uma grande polêmica para
a comunidade afro-religiosa local. A sacerdotisa responsável por suas obrigações foi acusada
tanto em Belém quanto em Salvador de cometer uma infração teológica, suscitando o debate
em várias instituições de congregação de afro-religiosos. O Instituto Nacional da Tradição e
Cultura Afro-brasileira Seção Pará (INTECAB) realizou uma reunião com a mesma, a seu
pedido, para explicação dos fatos. A assembleia aconteceu na sede da instituição, terreiro da
liderança angola Mameto Nangetu, onde os fatos foram esclarecidos conforme a narrativa
abaixo.

Nesse tempo, o Intecab era na casa da Nangetu. Fiz pelo Intecab, aí pedi uma reunião
pra Nangetu pelo Intecab, ela reuniu o pessoal todinho, e aí eu fui fazer a minha defesa
que realmente, se o Banjo tinha feito algumas coisas, ele realmente tinha feito porque
ele tinha recebido aquele cargo, e que aquele cargo a mãe de santo era fulana de tal e
que era... e que foi feito na casa do meu pai Walmir, assim, assim, assim, assim... e
que eu fui para casa do Banjo, não fui abrir a casa dele eu fui pagar obrigação de 14
74

anos dele. Aí, eu sei que eu fui, fui entendida pelas pessoas que estavam na reunião
tudinho, que realmente eu não dei cargos a ele. Eu não dei, não abri a casa dele, a
casa dele já estava aberta. Desde que você tenha uma casa com intoto sentado,
cumieira sentada, Ogum da porta sentado, você tem uma casa de candomblé aberta
né? Você pode até não ter tocado um candomblé, mas você tem uma casa de
Candomblé montada. E isso aconteceu que eu não, não fui eu que fiz isso, eu fui pagar
obrigação de 14 anos do Banjo (Informação verbal)101.

Apesar das polêmicas que envolvem o nome desse ogan que galgou o espaço de
sacerdote, a FEUCABEP conferiu a Guia de Recolhimento para iniciação de Mãe Rosa e a
URCABEP (União Religiosa dos Cultos Umbandistas e Afro-Brasileiros do Estado do Pará)
conferiu ao seu terreiro um alvará de funcionamento onde consta seu nome como líder
religioso, como pode ser visto na figura 10. Isso mostra que Banjo foi reconhecido pelo trabalho
que fez em favor da implementação da religião em Belém do Pará.

Figura 10: Certificado de Atividades Religiosas conferido pela URCABEP ao terreiro de Ivonildo dos Santos.

Fonte: Acervo pessoal de Maiume Jamacaru.

101
Entrevista concedida por SANTOS, Elizia Palheta dos. Entrevista V [out. 2019]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2019. Arquivo .mp3 (01h08min).
75

Entendo que apesar do reconhecimento, o prestígio de Banjo foi comprometido por ele
ser um outlier, que se distanciava radicalmente dos pares, músicos de terreiros, e, como todo
elemento considerado anomalia, precisou ser tratado para não provocar problemas por causa
das suas ambições sacerdotais e por isso mais de uma vez foi confrontado por sacerdotes
tradicionais que possuem status de conselheiros pela senioridade e pela normalidade das suas
funções conforme foi mostrado nesse capítulo.
Os sacerdotes baianos que fixaram moradia em Belém oportunizaram aos paraenses não
somente os conhecimentos da ritualística, mas de modo mais profundo, a compreensão do
significado das práticas e dos valores veiculados através delas, ensinaram os candomblecistas
paraenses a ler a realidade em comparação mítica com a vontade dos orixás e inkices, tanto nos
rituais quanto na vida pessoal e foram revelando no cotidiano dos terreiros o estilo de vida
candomblecista. Contribuições que favoreceram a assimilação do ethos religioso e a fixação da
identidade candomblecista no Pará.
Além do ogan Ivonildo, mãe Dewi e seu axogun Romeu, são os três sacerdotes baianos
que vieram morar na década de 80 em Belém. Apesar do presente trabalho ter escolhido
biografar só um desses três nomes, acredito que a história do candomblé paraense pode ser
incrementada levando em consideração as biografias dos baianos, tanto os que se fixaram aqui
quanto os que mantêm ou mantiveram por um tempo fluxo de idas e vindas na medida em que
são solicitados. São personalidades que assim como Banjo, continuam presentes na memória
dos candomblecistas paraenses.
76

4. A PEDAGOGIA DO CANDOMBLÉ: O SABER, O FAZER E POR QUE NÃO O


ESCREVER?

O processo de repasse de conhecimento dentro de um terreiro se dá tradicionalmente


pela oralidade e pela prática. Tantos os aspirantes à sacerdotes como os demais cargos
existentes dentro de um templo religioso de matriz africana são formados através de uma
pedagogia da experiência que envolve o fazer ritual, o aprendizado dos toques e passos de
dança, a fluência na língua litúrgica e o conhecimento da mitologia e significados do fazer que
são veiculados pela oralidade. Essa “fórmula” representa o que Max Weber chama de tipo ideal
da didática dos terreiros.
As vastas etnografias produzidas sobre as comunidades de terreiros que evidenciam o
significado dos saberes e fazeres e o modo de vida desses grupos também são consideradas
como meios de aquisição de saber, mas com ponderações, aliando-as ao saber empírico, por
vezes complementando estes ou adequando as práticas do terreiro quando os estudos revelam
corruptelas da tradição que foram sendo repassadas sem explicações. Também podem ser
mecanismos de acusação em jogos de disputa de poder, quando, comumente escuta-se
acusações do tipo “Fulano é pai de santo de livro”, “aprendeu com o pai Google”.
Lisa Earl Castillo (2010) ao examinar os entrelugares da oralidade e da escrita nos
candomblés baianos afirma que a aquisição do saber religioso ocorre na integração social dos
indivíduos com a comunidade de terreiro e que essa compreensão é intuitiva, a isso acrescenta
que “(...) Quando se vivencia o dia a dia, surgem inúmeros e efêmeros momentos durante os
quais pequenos atos de aprendizagem transcorrem de uma forma despercebida, [...], levando a
um conhecimento que se torna aparente apenas depois” (CASTILLO, 2010, p. 29).
A autora aponta a primazia da prática sobre a oralidade e a escrita. Esclarece que a
prática que acontece paulatinamente durante a convivência com o grupo é fundamental porque
na descrição oral ao aprendiz, ele perde a oportunidade de observar os gestos e perceber as
entonações da fala que são elementos importantes para a eficácia de um ritual e acrescenta que
a sobreposição da prática também recai sobre a escrita pelo mesmo motivo:

Na fala, assim como na escrita, diversos componentes da percepção sensorial, tais


como aromas, paladares, melodias, ritmos, movimentos e sensações físicas, não são
contáveis. São reconstruídos de uma forma apenas parcial através do filtro redutor das
palavras (CASTILLO, 2010, p. 29).

Para entender esse processo, utilizarei como norte o modelo a partir de alguns aspectos
da tradição candomblecista baseada no conceito weberiano de tipo ideal, que em nenhum
momento deve ser tomado como um sentido correto ou como exemplo de realidade, já que ele
77

é uma construção do pesquisador que escolhe as características a serem levadas em


consideração na análise. Mas é um recurso metodológico para que o pesquisador não incorra
no erro do juízo de valor e serve para comparar e captar de forma científica a especificidade
dos fenômenos culturais.
Segundo o autor, o tipo ideal é um modelo racional que comparado à realidade evidencia
os desvios provocados por ações irracionais como afetos e erros e exemplifica: “Na explicação
de um pânico financeiro, por exemplo, é conveniente averiguar primeiro como se teria
processado a ação sem influências de afetos irracionais, para registrar depois aqueles
componentes irracionais como perturbações.” (WEBER, 1991, p. 5).
Por ter caráter racional, é construído a partir das características comuns observadas
historicamente nos fenômenos da mesma natureza. O que neste trabalho se evidencia pelos
modelos tradicionais de cultos, hierarquia cuja referência é a Bahia. O tipo ideal é uma
construção, por vezes, estranha à realidade.

(...) Mas a Sociologia procura também exprimir fenômenos irracionais (místicos,


proféticos, inspiracionais, afetivos) em conceitos teóricos e adequados por seu
sentido. Em todos os casos, racionais como irracionais, ela se distancia da realidade,
servindo para o conhecimento desta da forma seguinte: mediante a indicação do grau
de aproximação de um fenômeno histórico a um ou vários desses conceitos torna-se
possível classificá-lo [quanto ao tipo]. O mesmo fenômeno histórico, por exemplo,
pode ter, numa parte de seus componentes, caráter feudal, noutra parte, caráter
patrimonial, numa terceira, burocrático e, numa quarta, carismático. Para que com
estas palavras se exprima algo unívoco, a Sociologia, por sua vez, deve delinear tipos
puros (ideais) dessas configurações, os quais mostram em si a unidade consequente
de uma adequação de sentido mais plena possível, mas que, precisamente por isso,
talvez sejam tão pouco frequentes na realidade quanto uma reação física calculada sob
o pressuposto de um espaço absolutamente vazio. Somente desta maneira, partindo
do tipo puro (ideal), pode realizar-se uma casuística sociológica (WEBER, 1991, p.
12).

O último trecho transcrito de Weber demonstra que a análise dos fenômenos sociais só
se torna possível a partir dessas abstrações da realidade, sendo assim, seguirei comparando o
processo de ensino-aprendizagem do saber musical nos terreiros com a experiência de Banjo
que utilizou a oralidade e o ensino prático que formam a epistemologia das comunidades de
terreiros, mas também fez uso da escrita, aproximando-se muitas vezes de instrumentos
acadêmicos de transmissão do conhecimento ao ajudar na elaboração de apostilas em parceria
com intelectuais estudiosos das línguas rituais, especialmente o yorubá, e ao ministrar
minicursos de toques, cantos e danças em diversos terreiros paraenses.
Pelo que já foi mostrado até aqui, se torna desnecessário escrever que o pesquisado
sempre esteve longe de ser um tipo ideal, conquanto essa ferramenta teórica serve de parâmetro
78

para analisar de que forma ele não se encaixou nos padrões tradicionais e os instrumentos que
ele utilizou para transmitir o que sabia.

4.1. O SABER

O conhecimento adquirido por Banjo sobre a ritualidade da festa se deu pelo processo
de circulação dele pelos terreiros de diversas nações através da participação contributiva de
seus dotes musicais que lhe permitia a troca de conhecimentos litúrgicos. No candomblé, é
ajudando que se aprende e que se ganha a confiança dos mais velhos, fonte do conhecimento
ritualístico.
A pedagogia do candomblé é oral e prática, é na convivência e no trabalho dedicado aos
momentos religiosos que se aprende com os mais velhos. Lisa Earl Castillo (2010) ao citar os
trabalhos de Roger Bastide e Juana Elbein sobre a base filosófica do candomblé, afirma que a
religião está fundamentada teologicamente no conceito do Axé, “força vital de criação e
realização que sustenta o mundo” e aponta a oralidade como o mecanismo principal de
transmissão do saber. A oralidade é o veículo do Axé e do saber, esses três elementos formam
um tripé conceitual, “praticamente inseparáveis, o Axé e o saber são repartidos simultaneamente
pelos mais velhos aos jovens, veiculados pela comunicação oral” (Castillo, 2010, p. 27).
São longos anos de aprendizado que, por vezes, podem variar dependendo do grau de
empenho do aprendiz ou da confiança que o mestre tem em relação a esse. O conhecimento
exige trabalho, dedicação e respeito à hierarquia. É pelo esforço feito na jornada pelo
conhecimento litúrgico e seus significados que o aprendiz que se torna mestre passa a valorar
o conhecimento que adquiriu. Para ilustrar o que escrevo, Mameto Nangetu comenta que certa
vez Banjo expressou ser consciente do valor dos conhecimentos que tinha, em função do
esforço que fez para adquirir e por isso não havia ensinado tudo o que sabia: “Mas, ele me dizia,
eu não passei tudo, ainda falta porque andei muito pra adquirir”.
A longa trajetória de aprendizado no candomblé de Salvador fez o mestre, esse
organizou e ensinou os toques e cantigas no Pará. Certa vez, conforme relata Maiume, Banjo
foi procurado por um ogan baiano.

O sobrinho do pai Carlinhos, eu vou tentar lembrar o nome dele... Ele veio de
Salvador, fez de um tudo pra encontrar o Banjo foi até em Outeiro, tá fazendo uns
quatro anos, [...] porque ele queria saber como era as cantigas que se cantava pro
Barba de Fogo. Porque até hoje em Salvador, quando se corta pra Exú na casa do pai
Carlinhos, quando se vai fazer alguma coisa pro Xangô do seu Cícero que tá na mão
da Sonia, ele ainda é muito citado, aí ele cantou pra ele assim “Maria Joana onde está
79

a minha sopa, Maria Joana onde está a minha roupa, Joana, ô Maria, é hora de Barba
de Fogo trabalhar” (informação verbal)102.

A importância de Ivonildo para o candomblé local está relacionada à vinda dele no


período de entrada da religião quando os conhecimentos religiosos eram escassos, gerando
dependência dos sacerdotes paraenses em relação aos sacerdotes baianos; por ser acessível e
colocar os seus conhecimentos em favor da coletividade para além de um só terreiro ou
tradição; e pelo cabedal sobre a musicalidade litúrgica que o permitia ensinar nos terreiros de
diferentes nações. Essa importância é reconhecida por sacerdotes de Salvador e de Belém
quando perguntados sobre as contribuições dadas por Ivonildo:

Total (contribuição). É um renascimento. Eu via ele assim, o candomblé ele se


afirmou. Que as pessoas vinham e muitos diziam não tem candomblé no Pará. E essa
reafirmação para tradições, isso foi muito valiosa, com esse conhecimento que ele
passou, esse pertencimento pros ogans e pra nós (informação verbal)103.

Eu acho que... eu acho que foi uma contribuição muito grande, sem tamanho, porque
eu vou te dizer, o Pará veio ter candomblé de verdade a partir do Banjo. Aquela pessoa
pra tocar, pra cantar, para dirigir as coisas. (Informação verbal)104.

Bem, a importância dele, que eu sei, muitas pessoas aprenderam tocar, e cantar
candomblé com ele no Pará. Então isso é uma coisa que ninguém vai tirar dele. Que
mesmo as pessoas que não gostavam muito dele que achavam ele isso ou aquilo, essas
mesmas pessoas dizem que aprenderam a tocar com ele, então eu acho que a grande
maioria dos ogans de Belém aprenderam com o Banjo e isso é uma riqueza na vida
de Banjo, né? é uma riqueza na passagem dele por Belém do Pará (Informação
verbal)105.

Em uma das apostilas elaboradas para os diversos cursos ministrados pelo mestre Banjo,
o médico, filho biológico da sacerdotisa que iniciou pai Walmir da Luz Fernandes no tambor
de mina, reconhece o potencial do alabê ao afirmar:
Devo fazer uma menção especial ao auxílio, que de tão grande torna-se de difícil
mensuração, que venho recebendo do Ogan Ivonildo T’Omolu (Pai Nidinho ou
Banjo), no que diz respeito às diversas etapas da composição da presente coleção,
como desenvolvimento e divisão dos textos escritos, melodia e ritmo musical, além
de todo apoio nos diversos outros nossos trabalhos. Esta pessoa proemina dentro do
culto aos ìrúnmolè por seu conhecimento não só na “Nação” Ketu e Jeje, como
também nas “Nações” de origem Banto. (Pimentel, s/d: pp.2)

Os rituais de segredo iniciam o sacerdote, plantam uma casa, constroem os laços


familiares, são o lastro da tradição, o que foi guardado, enquanto a visibilidade é dada pelo

102
Entrevista concedida por CARDOSO, Maiume Mayara Jamacaru. Entrevista III [maio 2019]. Entrevistadora
Patrícia Moreira Perdigão. Marituba, 2019. Arquivo .mp3 (1h18min).
103 Entrevista concedida por RODRIGUES, Oneide Monteiro. Entrevista IV [set. 2019]. Entrevistadora Patrícia

Moreira Perdigão. Belém, 2019. Arquivo .mp3 (36min.23s).


104
Entrevista concedida por SANTOS, Elizia Palheta dos. Entrevista V [out. 2019]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2019. Arquivo .mp3 (01h08min).
105 Entrevista concedida por BOTTAS, Carlos Alberto de Oliveira. Entrevista VIII [jan. 2020]. Entrevistadora

Patrícia Moreira Perdigão. Salvador, 2020. Arquivo .mp3 (30min)


80

ritual público, que é o “proselitismo” da religião (AMARAL, 2002) e o estandarte da


identidade. O segredo e o público são complementares na liturgia, pois o segredo é promulgado
através das cerimônias públicas para que possa ganhar o reconhecimento da comunidade mais
ampla, além das pessoas do próprio terreiro, para as pessoas que não fazem parte da religião.
Esse necessário reconhecimento revela o senso de coletividade presente nos valores culturais
africanos e que também faz parte da cultura dos povos originários do Brasil. O prestígio de um
terreiro também é medido pela periodicidade e qualidade de suas festas. A figura 11 mostra
uma festa de candomblé, a culminância do pagamento de obrigação do ogan Márcio, neto de
mãe Iyanarê.
Figura 11: Banjo dirigindo a festa de candomblé de pagamento de obrigação do ogan Márcio à direita. Ambos
os ogans da foto são filhos do orixá Omolu que se apresenta coberto de palhas.

Fonte: Acervo pessoal de mãe Iyanarê.


As festas se constroem através do talento musical de homens que tocam e cantam para
chamar os orixás, voduns e inkices, mãos que dão voz aos atabaques. As cantigas e toques
enaltecem as características das divindades, (en)cantam a natureza que se personifica nos
corpos dos filhos-de-santo, apresentam as gradações hierárquicas internas, em retribuição, o
hun dobra106 na chegada de um sacerdote de outro terreiro, sendo a diplomacia parte dessa

106
Dobrar o hun é fazer uma variação melódica com o maior atabaque. Essa variação pode ter muitos significados,
mas os principais são: marcar mudança do passo de dança e reverenciar alguma autoridade da hierarquia
candomblecista ou mesmo um orixá.
81

ritualística. O atabaque fala pelas mãos dos ogans e os orixás, voduns e inkices respondem a
esse chamado.

Quando a gente notava que o orixá não tava apanhando o babalorixá, a gente pedia
malembe pra esse orixá vim pra terra, eu pedia pra Xangô: Obá nadim, Xangô..., tinha
que apanhar seu Cícero porque eu era alabê dele, ele tinha que me obedecer. (...)
porque lá em Salvador mesmo, como aquela assim Ayrá aê, Ayrá aê, Ayrá aê
Leponsuaberê, isso não é ingorossi, isso é malembe! Babá Xangô e duamekan ê Ogun
aê lepon... Nós estamos pedindo malembe meu pai Ogun, malembe meu pai Xangô
(informação verbal)107.

No trecho acima, Banjo apresenta o poder de um alabê diante das divindades. Através
das cantigas de malembe108, o alabê é capaz de trazê-los depois de todos os recursos esgotados.
O uso desse derradeiro recurso para trazer as divindades ao mundo dos humanos, depende do
conhecimento dessas cantigas e a hora de usá-las, portanto, da experiência do alabê. Na figura
12 é possível perceber a centralidade do alabê na festa litúrgica.
Figura 12: Banjo cantando para o hun de Iemanjá da sua tutora espiritual, mãe Iyanarê.

Fonte: Acervo pessoal de mãe Iyanarê.

107
Entrevista concedida por SANTOS, Ivonildo. Entrevista I [abr. 2011]. Entrevistadora Patrícia Moreira
Perdigão. Icoaraci, 2011. Arquivo .mp3 (59 min.).
108
Cantigas de súplica, pedido de perdão para que as divindades auxiliem os seres humanos.
82

Os sacerdotes da música são homens que chamam os deuses pra terra, esse termo é o
título de uma matéria especial da consciência negra de 2012 publicada pelo jornal
soteropolitano “A Tarde”, essa edição mostra as práticas dos sacerdotes da música do
candomblé e assim escreve sobre eles mostrando a importância para o culto: “Com suas vozes
e mãos, alabês, huntós109 e xicarangomas110 fazem o elo entre o humano e o divino. A música
é o seu sacerdócio no candomblé e ponte para alimentar a ancestralidade”.

4.2. O FAZER

A vivência e a prática são as maneiras de assimilação de conhecimento mais valorizadas


no candomblé. Isso acontece porque o repasse através da fala ou a escrita do saber religioso não
contemplam percepções sensoriais, o conhecimento é intuitivo e a longo prazo. Os
conhecimentos obtidos da prática ritual movimentam o centro do entendimento, as autoridades
religiosas não explicam em detalhes os rituais, mas o rituais mostram seu simbolismo na medida
em que o sujeito se permite pensar a partir do universo simbólico das religiões afro onde há
uma outra compreensão de tempo, de indivíduo e da relação com a natureza.
Os componentes não verbalizados que não se apresentam de forma consciente, mas são
perceptíveis ao sujeito religioso que se insere no modo afro de pensar, conforme nos aponta
Castillo (2010, p. 27), fornecem conhecimentos valiosos que ajudam a inserção na subjetividade
dessa visão de mundo. Gestos e entonações são alguns desses exemplos, quando a palavra só
se torna imbuída de axé se acompanhadas por um modo de proferí-las, em uma linguagem que
é também corporal.
A musicalidade litúrgica, locus em que se privilegia a formação da linguagem corporal,
pode ser pensada como espaço de aprendizado do ethos candomblecista e suas diferenças
étnicas, por isso a necessidade e a valorização do alabê experiente que Banjo era pois através
dos toques, das cantigas nas línguas ritualísticas e da encenação dos mitos que compõe a dança
dos orixás, os candomblecistas paraenses tiveram acesso a esse outro elemento importante da
identidade religiosa onde abundam conhecimentos extralinguísticos e de ordem prática,
guardados e transmitidos pelos alabês.
A formação do alabê é sobretudo de ordem prática, sendo escolhido muitas vezes pela
afinidade com instrumentos de percussão, alguns são músicos que tocam em festas não-

109
Ogan responsável pela festa litúrgica do candomblé jeje, correspondente ao alabê do keto.
110
Ogan responsável pela festa litúrgica do candomblé angola, correspondente ao alabê do keto.
83

religiosas antes de conhecerem a religião, outros se tornam músicos profissionais ao


descobrirem aptidão musical através do candomblé.
É facultado a outros cargos que não entram em transe adquirirem a maioria dos
conhecimentos pertinentes a sua função depois da iniciação. É o caso do axogun, por exemplo,
cuja função principal é o sacrifício. Mas no caso do alabê é positivo e até incentivado que ele
adquira o máximo de conhecimento musical possível mesmo antes da iniciação. Isso vai
representar aos olhos da comunidade que esse indivíduo é predestinado ao cargo.
Por serem de fundamental importância para a formação de um alabê, a observação e a
prática são elementos importantes do aprendizado porque é o trânsito entre os terreiros que vai
proporcionar a aquisição do conhecimento. A esses é permitido tocar em qualquer templo
sagrado e transitar por diferentes nações. Vale mencionar que a permissão para o trânsito entre
os templos sagrados mais diversos não é conferida a pessoas que ocupam outros cargos
religiosos dentro do terreiro. Não é considerado de bom tom que um iyawô, um axogun ou uma
ekedi percorra diferentes terreiros desacompanhados de seu sacerdote iniciador. Em relação ao
alabê, pode-se dizer que o acesso a diferentes casas de santo faz parte de seu processo
pedagógico.
Existe também uma linha tênue que separa o ethos musical religioso e o profissional. O
tocador de atabaque se profissionaliza na arte de tocar para os deuses e muitas vezes faz disso
meio de vida. Ao mesmo tempo que ele estabelece relação de filiação com o terreiro no qual
foi iniciado, seu dom musical é requisitado para tocar em outros templos mediante pagamento
em dinheiro. Em adição ao exposto, pode-se afirmar que a ação de tocar posiciona-se na
liminaridade entre a devoção e a diversão uma vez que ao mesmo tempo que este trânsito
proporciona ao tocador a possibilidade de acessar o sagrado é também um mecanismo de
ludicidade uma vez que esse espaço proporciona possibilidade de encontro, sociabilidade e
comensalidade.
Todavia, faz-se necessário informar que, embora o trânsito de tocadores por entre os
diversos terreiros seja uma constante, é vetado aos alabês de outra casa o acesso ao hun uma
vez que o mesmo pertence exclusivamente ao líder (interno) da orquestra musical, geralmente
um ogan do próprio terreiro iniciado como alabê.
Embora a aptidão e o desenvolvimento do dom seja fundamental na carreira de um
alabê, não se pode desconsiderar a importância do ritual como agente legitimador do músico.
O alabê, conforme já foi mencionado, pelo manuseio do tambor, passa a representar um
84

mediador entre o humano e o divino. Sua ação musical está impregnada de mana (MAUSS,
2003) e essa força vital que intercede junto ao sagrado é adquirida através do processo ritual.
A formação religiosa do alabê dura 16 dias. Durante esse período o músico é submetido
a uma sequência ritual. Antes de tornar-se uma autoridade do terreiro através da iniciação, o
aspirante a alabê é suspenso, ou seja, escolhido por um orixá. Por mais que o sujeito tenha o
dom para a música, este, por si só não faz um alabê. Faz-se necessária a indicação divina. Tocar
para o orixá é uma missão tal qual o é recebê-lo pela experiência extática. É o ritual da
suspensão que torna o músico parte da comunidade de terreiro e o autoriza a iniciar o processo
de aprendizado das funções do cargo.
Depois de ser escolhido por um orixá, o aspirante é submetido aos rituais de ebó111 e
obí112 que representam limpeza espiritual e fortalecimento da cabeça, que é compreendida como
a morada do espírito, para que se torne ambiente favorável para a vibração do orixá. Após essas
etapas “coloca-se ele dentro de casa para começar o aprendizado do toque” (Informação
verbal)113 antes de iniciar. Durante esse período o rapaz vai aperfeiçoar e aprender a tocar.
Faz-se necessário abrir um parêntese para ponderar que o cargo de alabê é
eminentemente masculino. Dentro de um terreiro de candomblé (de qualquer nação) é vetado
o acesso feminino ao espaço do tambor. Trata-se de um instrumento fálico, símbolo de
masculinidade. As explicações nativas conferidas ao tabu feminino a este espaço perpassam
pela atividade menstrual considerada mal presságio, dentro de algumas vertentes afro-
religiosas.
Entre a suspensão e o processo iniciático, o aspirante precisa ter um tempo de
aprendizado para que depois de iniciado ele tenha capacidade de atuar como alabê e tocar em
sua apresentação pública (saída). Aqueles que aprendem desde criança, caso de alguns meninos
que acompanham seus pais nas atividades do terreiro e demonstram aptidão, começam
ensaiando em objetos de casa ou dos terreiros como os apotis114 até terem a autorização para
tocarem os atabaques.
É comum perceber o dom musical ainda na infância através do encantamento que o
tambor gera em alguns meninos. Muitos deles frequentam terreiros por serem filhos ou

111
Oferendas sagradas que possibilita a limpeza e descarrego do indivíduo.
112
Ritual de fortalecimento do ori (cabeça) do indivíduo para galgar seu equilíbrio e possibilitar condições
adequadas para o recebimento da energia do orixá regente.
113 Entrevista concedida por REBELO, Walter Marques. Entrevista XII [maio 2021]. Entrevistadora Patrícia

Moreira Perdigão. Ananindeua, 2021. Arquivo .mp3 (8min).


114
Banco baixo utilizado pelos iyawôs e não iniciados, representando que estão no nível mais baixo da hierarquia
em comparação com a cadeira dos sacerdotes.
85

sobrinhos de pessoas da casa. Os próprios tocadores percebem esse encanto e estimulam o


acesso da criança aos instrumentos. Por muitas vezes pude ver crianças ensaiando toques no
colo de percussionistas renomados no universo sagrado. Outras vezes, os próprios pais mandam
confeccionar tambores e aguidavi em miniatura para dar início ao processo de aprendizagem
em meio as festas públicas do terreiro.
Geralmente quem ensina o aspirante a tocar é um alabê formado, “os mais velhos
passam para os mais novos os fundamentos que são os toques, como se deve usar esses toques
e a qual orixá eles pertencem” (Informação verbal)115, eles ensinam o noviço que também pode
ser submetido a cursos e oficinas geralmente pagos e ofertados por ogans em um terreiro.
Conforme já foi mencionado anteriormente, antes de tocar os atabaques sagrados ou
começar o processo formal de aprendizado ele é submetido a um ritual no qual é escolhido pelo
orixá da casa a “suspensão”. Pode acontecer do ogan ser suspenso na primeira vez que vai a
casa por determinação do orixá. O ritual de suspensão no keto é feito por duas pessoas do
mesmo cargo que fazem uma cadeirinha com o braço e levantam o indivíduo afim de apresentá-
lo à comunidade como sujeito escolhido pelos deuses para cumprir a missão de tocar.
Em outras nações o orixá escolhe o candidato e apresenta-o à comunidade dançando
com ele no salão. De uma ou de outra forma, a apresentação termina com o aspirante sentado
em uma cadeira de autoridade, quando o orixá o reverencia deitando aos seus pés numa
saudação ritual denominada de dubule e ele retribui da mesma forma. Depois disso as
autoridades presentes o abençoam e parabenizam.
O processo iniciático de um alabê se assemelha a de qualquer outro ogan, diferindo na
saída, ritual de apresentação pública no qual ele é apresentado a comunidade carregando na
mão dois aguidavis enrolados em uma fita, instrumento que representa o poder e autoridade do
cargo. Este objeto é sacralizado no ritual de iniciação através do sacrifício de animais que lhe
conferem força vital (axé). Apenas o primeiro aguidavi de um alabê “come”116, todavia, este
processo de sacralização é extensivo a todos os outros aguidavis que ele empunhar ao longo de
sua carreira religiosa.
Durante a sua saída, o alabê também sustenta no peito uma faixa que determina o seu
cargo. Antes desta cerimônia pública, os alabês são recolhidos ao terreiro e passam dias em
um quarto sagrado chamado de roncó onde são submetidos a rituais secretos como a raspagem

115 Entrevista concedida por REBELO, Walter Marques. Entrevista XII [maio 2021]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Ananindeua, 2021. Arquivo .mp3 (8min).
116 Recebe oferenda de sangue dos animais sacrificados para os orixás do alabê.
86

parcial do cabelo, aberturas de curas117 e sacrifícios de animais. Muitas são as diferenças


destacadas entre a iniciação de uma pessoa que recebe a divindade pela experiência do transe e
os que não tem esse dom mediúnico.
Ogans e equedis passam por um único farí, diferente do iyawô que passa por dois farís.
Define-se farí como a parte do ritual iniciático no qual se realiza a raspagem da cabeça e os
cortes rituais. O tempo de recolhimento também é diferente, para ogans e equedis é de 16 dias,
enquanto para os iyawôs esse tempo é de, no mínimo, 21 dias. O recolhimento possui finalidade
pedagógica ao mesmo tempo que representa um nascimento simbólico. Nos rituais de segredo
que ocorrem dentro do roncó as futuras autoridades religiosas são geradas. E a apresentação
pública, denominada de saída de santo, representa um parto, no qual o nascituro recebe um
nome, uma família e uma identidade.
Uma vez recolhidos, os mais experientes ensinam o aspirante a alabê a tocar com os
aguidavis batendo em um apoti. Durante esse período lhes são apresentados os cânticos
sagrados de cada orixá, a sequência litúrgica e a finalidade de cada música. Trata-se de uma
preparação para a apresentação pública à qual será submetido o aspirante no momento de sua
saída, como mostra a figura 13.
Figura 13: Íkaro, filho mais jovem de Banjo tocando no dia de sua saída como alabê.

Foto: Patrícia Perdigão

117 Escarificações rituais, também conhecidas no candomblé keto como iberês. Elas representam marcas da
identidade do grupo religioso e apontam o grupo étnico africano de referência.
87

É possível iniciar mais de um alabê no mesmo barco118, os tocadores também podem


passar pelo processo iniciático junto com os iyawôs, sendo submetidos a feitura depois deles.
E no caso da iniciação de um barco apenas de ogans a ordem iniciática segue a hierarquia dos
orixás, sendo assim, são ordenados a partir do orixá regente de cada recolhido. Os filhos de
Ogum são os primeiros a serem submetidos a feitura e os de Oxalá os últimos, seguindo a
sequência litúrgica existente entre ambos. A senioridade sempre será o princípio utilizado para
dizer quem ficará responsável por qual atabaque. O mais velho terá primazia em relação ao hun.
O ogan, categoria na qual o alabê está inserido, recebe a raspagem parcial da cabeça e
submete-se abertura dos cortes ritualísticos conhecidos como iberês ou curas, esses símbolos
marcados na pele do neófito representam os grupos étnicos e são iguais aos dos iyawôs dentro
de uma mesma nação.
Dentre as atribuições dos alabês, verifica-se o cuidado com os instrumentos musicais,
sobretudo com os atabaques e aguidavis, pois “as armas deles são os aguidavi” (informação
verbal)119. Ele afina, encoura e hidrata os tambores, untando o couro com mel, azeite de oliva
(chamado de óleo doce) e azeite de dendê. O dendê só é utilizado se o orixá da casa receber
obrigação com esse elemento. O processo é: desafina-se o tambor para afrouxar o couro e
coloca-se sobre ele dois pingos de mel, dois de dendê e dois de azeite espalhando com as mãos,
após esse processo leva-se o tambor ao sol uma vez que ele rejuvenesce o couro.

Cuidado especial é dedicado a afinação dos atabaques. Os alabês somente começam


a execução musical depois de estarem certos do devido som que eles são capazes de
distinguir [...]. Os atabaques, em suas apresentações públicas, devem estar “vestidos”,
adornados com laços cujas as cores identificam a cerimônia e a quem é dedicada. Sua
caixa acústica – corpo – geralmente é branca. Pode, no entanto, encontrar-se pintada
nas cores dos orixás patronos de cada casa ou, ainda, elegantemente envernizada. [...]
A afinação dos atabaques tem como aspecto primordial a diferença de tonalidade entre
eles: indo do mais grave, o hum, numa tonalidade mais baixa, ao mais agudo, o lé,
logo numa tonalidade mais alta. O hunpi ficaria afinado na tonalidade média, entre os
dois. Desta maneira temos, nas execuções musicais, o perfeito equilíbrio entre graves,
médios e agudos (Barros, 2009, p. 71-73).

Tecnicamente esse processo faz-se necessário para que o couro não rasgue.

A caixa acústica dos três (atabaques) é de madeira. Na parte superior, mais larga, é
esticada a membrana que suporta a percussão dos aquidavis. Esta é feita do couro dos
animais sacrificiais, sacralizados ainda mais pelas oferendas aos orixás. A tensão da
membrana é produzida por cunhas de madeira que retesam os aros, através de cordas

118
Quando mais de uma pessoa recolhe para iniciar ao mesmo tempo, chama-se de barco onde cada um é
identificado pela ordem de feitura que passa pela hierarquia dos orixás. Dofono, dofonetin, gamo, gamotin e assim
por diante. Tais termos representam ordem: primeiro, segundo, terceiro, quarto, etc. Os irmãos de barco se tornam
ainda mais próximos por terem passado pela iniciação juntos.
119 Entrevista concedida por SUTELO, Rosalídia Tavares. Entrevista XI [maio 2021]. Entrevistadora Patrícia

Moreira Perdigão. Ananindeua, 2021. Arquivo .mp3 (40min34s).


88

presas no ápice e no meio da caixa acústica. Quando se apresentam desse modo, têm
o nome de “atabaques de cunhas”. Em outra forma de “encouramento”, que distingue
e personaliza o atabaque, a pele retesada por pinos de madeira (cravilhas), presas à
caixa de percussão. Neste caso, são denominados de “Sô”, segundo Lody (1989:35).
Os mais comuns são os atabaques de tarraxas ou parafusos, quando, então, a tensão
do couro é feita por parafusos presos à borda do instrumento. São facilmente
encontrados nas casas de comércio. (Barros, 2009, p. 74)

O ogan precisa conhecer a função de cada atabaque na orquestra ritual, qual seu
papel na harmonia do som, seus significados simbólicos e quem pode manuseá-los. Segundo
Barros (2009) os atabaques:

Possuem tamanhos diferentes e nomes próprios. O maior deles, de tom grave, chama-
se hun, o que significa, em yorubá, voz – ohùn ou rugido, grunido – hùn (Cacciatore,
1977:222). Outros atribuem a esse nome outro significado, proveniente da língua fon
e que teria o sentido de sangue ou coração (Lacerda, M.B, 1998: 7). Todas as acepções
aludem ao caráter especial que um instrumento possui no contexto religioso. É o
responsável pelo solo musical e variações melódicas, e também pelas invocações dos
deuses. De som grave, geralmente percutido com uma baqueta de madeira e uma das
mãos, é considerado como “o que chama os orixás”, o som que chega ao “orum”, terra
dos ancestres. Cabe ao hunpi, menor que o hun, e maior que o lé, (o terceiro atabaque),
o papel de suporte musical, ou seja, a manutenção constante do ritmo. Os dois, hunpi
e lé, possuem a mesma função e são percutidos pelos aquiavis, baquetas de madeira,
feitas de galhos de goiabeira. Sustentam uma linha melódica, composta da repetição
permanente de um modelo rítmico, relativamente longo. Permitem ao hun as variações
musicais que o solo impõe, dando suporte e sustentação à peça musical sacra. O nome
hunpi, em yorubá, significa “hùm” – grunido/ rugido mais “pi” – imediatamente
(Cacciatore, 1977: 222). Indica, assim, a posição que ocupa na orquestra e também na
execução musical. O termo “lé”, que na língua ewe significa pequeno – “lee”
(Cacciatore, 2977:160), alude, portanto, ao seu tamanho. O som é considerado mais
agudo que o do hunpi, de tom médio, se o relacionarmos aos outros dois. (...)
Complementando os atabaques, o som do gã e do agogô. Este último, em sua forma
original, consiste em duas campânulas de ferro de tamanhos diferentes, produzindo
sons desiguais, unidas entre si por uma alça. São percutidas por baquetas de ferro,
uma a cada vez, marcando o compassou a que se submetem os outros instrumentos.
Seu timbre é estridente, com um padrão rítmico fixo e curto. O gã possui idêntica
função na orquestra; sua forma, no entanto, é de uma campânula singela, percutida do
mesmo modo que o agogô. A palavra agogô é proveniente do yorubá e significa sino.
Gã, entretanto, é de origem ewe, segundo Cacciatore (1977:41 e 130), que não lhe
atribui significado. (Barros, 2009, p. 72-73)

Outra atribuição dos alabês é a fabricação das baquetas utilizadas para tocar os
atabaques, conhecidas como aguidavis. Os aguidavis são confeccionados do galho da goiabeira.
Segundo informações do ogan Walter (informação verbal)120, o galho utilizado
tradicionalmente para confecção dos mesmos são da árvore de guaraná, mas devido à
dificuldade de acesso a essa árvore, ela foi substituída pela goiabeira. A preferência por essas
árvores é atribuída ao fundamento, saber religioso tradicional, o segredo preservado pela
tradição oral e não revelado para os que estão fora da hierarquia do candomblé.

120
Entrevista concedida por REBELO, Walter Marques. Entrevista XII [maio 2021]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Ananindeua, 2021. Arquivo .mp3 (8min).
89

Para a confecção dos aguidavis, os alabês retiram da árvore pedaços de galhos mais ou
menos do mesmo tamanho, depois alisa-os com uma faca para ficarem uniformes e sem
saliências, posteriormente são passados no fogo para cauterizar as imperfeições e evitar que os
mesmos se partam, por vezes, para garantir que as pontas não abram, é colocado um pedaço de
esparadrapo.
Além do cuidado com os instrumentos, cabe aos alabês o conhecimento dos toques e da
sequência das cantigas. Ele precisa estar ciente da sequência litúrgica e de sua lógica, pois é ele
quem entoa, junto com o sacerdote, as cantigas sagradas responsáveis pela experiência do
transe. Segundo Mãe Rosa “o alabê vira o sacerdote com o aguidavi”, pois ele é uma espécie
de “dono do tambor” responsável pelos toques, cantigas e rezas. Cada orixá dono do terreiro
pode ter um alabê. No terreiro da sacerdotisa iniciada por Banjo existe um de Oyá e outro de
Xangô, as duas deidades donas da cabeça da sacerdotisa.
Dentro de um ritual, quem inicia a orquestra musical é o alabê mais velho que depois
pode passar o hun para outros tocadores iniciados mais novos e só no caso da equipe não estar
completa e não haver a presença de alabês iniciados em outros terreiros que estejam
prestigiando o ritual, é que abre para a participação de não-iniciados. É o princípio da
senioridade que define o alabê mais importante, o líder da orquestra, e não o conhecimento
musical. Na figura 14, vê-se uma orquestra candomblecista.
Figura 14: Orquestra de candomblé no terreiro Ilê Asé Iyá Omi Olokun, liderado por mãe Iyanarê. Da esquerda
para a direita: Romeu (hun), Walter (hunpí), Kinho, Banjo (lé) e Maurinho (gan).

Fonte: Arquivo pessoal de mãe Iyanarê.


90

Todos esses mecanismos de “fazer” e formar um alabê foram apreendidos por Banjo ao
longo de sua carreira religiosa. Conforme mencionado no capítulo primeiro, percebe-se a
importância do ritual de iniciação ao qual o alabê foi submetido em um terreiro baiano,
considerado tradicional em Belém, bem como a importância do trânsito entre terreiros das mais
diversas nações.
Em adição ao conhecimento adquirido, outro elemento é fundamental para formação do
capital simbólico sustentado por Banjo; a baianidade. O Estado da Bahia tradicionalmente é
visto como a “Meca” do candomblé no Brasil (Campelo, 2001). Funciona como entreposto
entre os reinos africanos pré-coloniais, exportadores de tradição religiosa, e os mais diversos
espaços do novo mundo. O sistema de linhagens, tão caro para as culturas africanas interliga o
presente ao passado africano pré-colonial, fazendo escala em Salvador. Esta cidade funciona
como berço da África no Brasil, ponto de chegada da africanidade no novo mundo.
No Pará não há sacerdotes que requisitem para si o status de iniciados no continente
africano, mas a África se faz representada pelos soteropolitanos de forma que ser iniciado na
Bahia ou por baianos confere status de tradicionalidade. Se baianos como mãe Dewi121 foram
agentes que conferiram legitimidade aos sacerdotes paraenses, os ogans sustentam o orgulho
de terem aprendido a tocar pelas mãos do, por vezes despótico, ogan Banjo.
Todas as informações expostas acima sobre o “fazer” de um alabê foram fornecidas em
entrevistas realizadas com o próprio Banjo, antes de falecer, pela única sacerdotisa iniciada por
ele e por alguns dos muitos ogans formados pelas suas mãos. Todavia, o processo pedagógico
implementado por este mestre ia para além do saber e do fazer tradicionalmente utilizados nos
terreiros de candomblé. Seu contato com Walmir da Luz Fernandes, sacerdote de grande
importância para universo do candomblé local, professor que sempre construiu sua trajetória
em parceria com grandes centros universitários, fez Banjo variar sua metodologia de repasse de
informações, adequando-se a uma pedagogia que transborda às tradicionalmente
implementadas nos interiores dos templos sagrados e acessa o fazer das academias. Esta
variação, que lhe gera status de ambiguidade, será analisada no tópico subsequente.

4.3. E POR QUE NÃO ESCREVER?

Para contextualizar esse alinhavo da pedagogia do terreiro com as técnicas de


aprendizado oriundas da academia, gostaria de retomar um elemento importante de sua

121 Sacerdotisa baiana que migrou para Belém e aqui iniciou diversos filhos de santo. Mãe Dewi morreu em Belém
e foi enterrada na capital soteropolitana.
91

biografia que propositalmente não foi destacado no capítulo primeiro: o contato de Banjo com
pai Walmir da Luz Fernandes. Trata-se de um dos sacerdotes de candomblé de maior
expressividade dentro do estado do Pará. Esse religioso, de 66 anos, possui mais de quarenta
anos de vida sacerdotal entre umbanda e candomblé keto. Professor de profissão, liderança do
Ilê Asé Agarô Nilê (fundado em 26 de julho de 1978), templo situado no bairro periférico do
Benguí, que sustenta a identidade yorubana.
Iniciado em 18/08/1977 pelo baiano Cícero Fernandes de Araújo, o sacerdote paraense
conheceu pai Cícero em uma viagem de passeio realizada a Salvador em 1975, quando visitava
um candomblé na região de San Martin. No ano subsequente, estreitou relações com o referido
sacerdote quando o mesmo veio a Belém na ocasião da festividade do Círio de Nossa Senhora
de Nazaré. Os laços estabelecidos entre pai Walmir, o ogan Banjo e o sacerdote soteropolitano
Cícero foram fortalecidos pela iniciação do primeiro e pelo seu retorno ao Pará.
Após sua maioridade religiosa, pai Walmir regressou a Belém trazendo consigo o
candomblé keto pouco conhecido na metrópole da Amazônia. A capital paraense sustentava,
até então, uma tradição religiosa fincada em duas matrizes: a umbanda e o tambor de mina.
Faz-se necessário ponderar que ambas possuem uma teologia muito diferente da praticada em
Salvador pelas três nações de candomblé: keto, angola e jeje. Conforme pode ser visto na fala
de pai Walmir, a equipe baiana era sempre requerida na fase de implementação da religião

Aqui, outras pessoas foram se iniciando também, só que eu ainda não praticava com
tanta veemência. Aqui ou ali porque não tinha quem tocasse, não tinha um bocado de
coisas. E aí na época a Dewi faleceu, trouxe várias pessoas aqui, eu me dei com os
ogans, vieram a gente tocou candomblé. Inclusive, a Dewi tomou vários nomes de
orixá aqui em casa. Aí começou, né? Aí eu fui tendo condições. Eu trabalhando,
mandava buscar. Mandei buscar Bira para cá, pai Nidinho muitas vezes veio até que
pai Nidinho ficou de vez em Belém (Informação verbal)122

Apesar de outros sacerdotes iniciados nestas tradições já transitarem pelas ruas das
periferias belenenses, influenciando liturgicamente o tambor de mina e promovendo
modificações nos terreiros, o candomblé, enquanto religião, até então não havia se estabelecido
na região. Pai Astianax Gomes Barreiros, iniciado na década de 50 pelo baiano Manoel Rufino,
agregara-se aos terreiros de mina nagoizando (Furuya, 1986) essa tradição religiosa. Chegara
a fundar um templo que teve vida curta. A explicação nativa para o fracasso acessava a mística
informando que este religioso teria saído fugido da casa do sacerdote. O mesmo, irado pela
desobediência, teria jogado a pedra do seu santo na cachaça, provocando mau agouro em sua

122
Entrevista concedida por FERNANDES, Walmir da Luz. Entrevista X [maio. 2021]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2021. Arquivo .mp3 (1h28min).
92

carreira religiosa. O terreiro de candomblé aberto por ele em Belém teria sido vítima de um
incêndio. Após esse incidente, ele passou a iniciar seus filhos de santo no interior da
FEUCABEP e fazer seus toques rituais em terreiros de sacerdotes amigos, adeptos da mina e
do candomblé angola.
A explicação sustentada como argumento dessa dissertação para o fracasso do
pioneirismo de Prego pauta-se no fato deste sacerdote ter retornado da capital baiana sozinho e
sem o apoio do iniciador. Conforme já foi mencionado, o candomblé é uma religião
completamente diferente das matrizes já radicadas na região e que possui peculiaridades
litúrgicas que exigem a formação de um corpo sacerdotal que acompanhe o(a) dirigente
máximo(a) de um terreiro.

Pai Walmir informa que pai Cícero veio diversas vezes a Belém acompanhado de Banjo
(alabê), Tico (axogun) e outros religiosos para auxiliar no assentamento de sua casa, nas
obrigações do terreiro e de seus filhos de santo. Outros nomes de baianos informados por pai
Walmir que deram contribuições ao seu terreiro foram Bira e Zé do Acarajé. Em sua vinda a
Belém, pai Cícero iniciou muitas outras pessoas, dentre eles destaca-se: Pedro (falecido), Neli
(Icoaraci), Wilma de Iemanjá, mãe Matilde, o último nome citado, hoje se identifica como a
mais antiga sacerdotisa paraense da nação jeje.

Sobre o interesse no culto afro-brasileiro praticado pelos soteropolitanos, pai Walmir se


descreve como alguém que tem “sede de conhecimento”, motivo que o levara, segundo sua
versão, a buscar iniciação no candomblé.

E eu queria saber. Eu queria saber de orixá. O que era orixá, eu não entendia
absolutamente nada de candomblé. É tanto que eu cheguei em Salvador porque, os
meus irmãos mais antigos podem dizer, a gente passava seis meses recolhido. Eram
seis meses. A Matilde também foi seis meses, todo mundo que fez lá no início foi seis
meses. Passava três meses, como meu pai dizia, quebrando folha e já aprendendo o
ingorossi, aprendendo essas coisas todas, pra depois entrar no fundamento, né? E logo
em seguida ficar mais três meses de kelê123, a gente passava lá mesmo o kelê. Tanto
que da primeira vez eu passei oito meses, foi quando eu iniciei o curso de yorubá
porque eu sou hoje o único professor de yorubá no norte do Brasil, porque eu voltei
pra terminar pra concluir, enfim, e hoje eu sou presidente da Ipamó Egbé E De Yorubá
ni Basil (no certificado de Banjo está Egbé Ipamó E De Yorubá ni Basil) que é a
Sociedade de Preservação da Língua Yorubá no Brasil (SPLYB) e fundamos a escrita
aqui em Belém. Mas por falta de adeptos e de pessoas que realmente são
comprometidas com a coisa porque começa a fazer o curso e depois não quer mais,

123
Colar (estilo gargantilha) tecido com fios de nylon e miçangas na cor litúrgica do orixá que rege o iniciado,
também conhecido como aliança porque representa o compromisso da pessoa com o seu orixá. Durante os três
meses de kelê, o iniciado vivencia uma série de limitações como abstinência sexual, de bebidas alcóolicas, não
pode frequentar certos lugares porque está mais sensível a energia do orixá que pode a qualquer tempo tomar o
iniciado através do transe.
93

não vem e aí não conclui e enfim, foram oito meses que eu passei lá (Informação
verbal)124.

Pai Cícero morreu em 1990, neste período, Banjo já morava em Belém na casa do
próprio pai Walmir auxiliando na formação de seus ogans e demais religiosos de sua casa. A
fixação de Banjo no terreiro paraense era importante ao ponto de o sacerdote construir uma
casa que o acomodasse junto com a companheira Ana, a mulher que, segundo o sacerdote
paraense, foi quem motivou a mudança do ogan para Belém, uma vez que o relacionamento
não era possível de ser vivido lá. Uma das explicações pode ser o fato de na época ele ser
casado.
Segundo pai Walmir, a união desagradava a todos do grupo religioso que eles faziam
parte, sendo necessário fugir para Belém “Ele veio por causa desse relacionamento, veio com
ela e todo mundo ficou revoltado lá”. Ana é filha de uma irmã de santo de pai Walmir. A
moradia construída para o casal era conhecida como Ilê Bahia, e representava o prestígio de ter
um baiano a serviço do templo. Pai Walmir aponta 1988 como o ano do estabelecimento de
Banjo em Belém, quando foi morar em seu templo, o Ilê Asé Aga Arô Nilé e assim descreve o
espaço construído para Banjo:

Aí eu mandei construir uma casa lá atrás pra ele, porque aqui vai até na outra rua, o
meu espaço... E aí lá atrás eu mandei fazer, onde é hoje o barracão do seu Jaguarema,
porque não acontece aqui a festa, é no barracão dele, de caboco. Lá era o Ilê Bahia
que a gente chamava, que eu mandei construir em madeira com três compartimentos
e ele morava lá com a Ana (Informação verbal)125.

Para entender a importância do contato com pai Walmir no processo pedagógico


implementado por Banjo, deve-se ponderar que o ethos desse sacerdote pautado na busca de
conhecimento do saber africano, ao mesmo tempo em que buscou legitimidade nos rituais
realizados na capital soteropolitana, o aproximou do conhecimento acadêmico.
Luca (2003), em sua dissertação de mestrado, aponta que foi esse sacerdote que, após
uma ruptura política com a FEUCABEP, trouxe para Belém o braço norte do INTECAB
(Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira). Segundo a autora trata-se de:

Uma sociedade civil sem fins lucrativos, com sede em Salvador. Se “organizou a partir
da união de terreiros, associações e alguns intelectuais que visavam criar uma
instituição que promovesse os valores afro-brasileiros em nível nacional e
internacional” (Campelo, 2001: 53). Tem por finalidade a “promoção, preservação
dos valores espirituais, culturais e científicos emanados da religião tradicional
africana no Brasil, na África e nas Américas” (Estatuto Reformado Intecab,1992, Cap.

124 Entrevista concedida por FERNANDES, Walmir da Luz. Entrevista X [maio. 2021]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2021. Arquivo .mp3 (1h28min).
125 Entrevista concedida por FERNANDES, Walmir da Luz. Entrevista X [maio. 2021]. Entrevistadora Patrícia

Moreira Perdigão. Belém, 2021. Arquivo .mp3 (1h28min).


94

1, Art. 2: 13.). É formada por três órgãos principais quais sejam: O Conselho Religioso
Nacional, O Conselho Consultivo Nacional, a Coordenação Executiva e suas
secretarias e comissões. O Intecab Nacional possui Coordenações Estaduais, órgãos
que repetem, em nível estadual, a estrutura nacional citada a cima. Essas coordenações
possuem o direito de escolher um membro de cada conselho estadual para integrar o
similar de âmbito nacional. As Coordenações Estaduais não têm autonomia plena,
estando subordinadas a nacional segundo a relação matriz-filial. Cada estado possui
uma “filial” do Intecab nacional que segue o mesmo estatuto e regimento interno. Sua
organização é adaptada às necessidades locais (Luca, 2003, p. 43).

O INTECAB chegara ao Pará como consequência das modificações provocadas no


campo afro-religioso local. Seus líderes são os responsáveis pela introdução do candomblé no
Pará e se organizaram politicamente em torno da instituição que não possui sede própria e
funciona nos terreiros de suas lideranças (Luca, 2003).
Os religiosos que compõe o INTECAB, dentre os quais pai Walmir é a maior liderança:

Introduziam novas informações ao contexto religioso local. Tratava-se de formas de


ritual e organização social distintas e antagônicas àquelas até então praticadas. Seu
discurso era permeado pelo ‘yorubá’ e por longas genealogias que remontavam a
África através da Bahia. Tentava-se implantar longas famílias com avós, tios, filhos
pais, irmãos, todos construídos ritualmente, que se conheciam por ‘djinas’. Buscava-
se a pureza no escrever, no cantar, no traduzir (Luca, 2003, p. 44).

Uma das estratégias utilizadas para ocupar espaço dentro do campo religioso afro-
paraense foi a africanização. O INTECAB, através de suas lideranças, passou a promover
estratégias de busca de conhecimento sobre as nações de candomblé, suas tradições,
conhecimentos litúrgicos e idiomas.

Já nos estatutos reformados do Intecab observa-se preocupação com a preservação de


um culto africano tradicional, puro. Em seu capítulo IV, artigo 6º constatamos a
existência de um Conselho Religioso Nacional que tem, entre outras finalidades,
“preservar no âmbito de ação do Instituto, os ritos, valores, linguagem dentro dos
preceitos da religião tradicional africana, obrigações e finalidades doutrinárias”
(Estatuto Reformado do Intecab, Cap. IV, Art.¨). No discurso dos religiosos em
questão, nota-se empenho na realização de leituras e pesquisas que lhe permitam
chegar ao conhecimento, seja pela busca da literatura produzida pelos acadêmicos nas
universidades brasileiras, seja pelo esforço de freqüentar cursos de ‘Yorubá’ em
Salvador para com isso, africanizar cada vez mais as ‘roças’ (Luca, 2003, p 47).

O anseio pela africanidade aproximou os candomblecistas da academia. Se o


conhecimento nativo, baseado na oralidade tinha uma memória temporal de curto alcance, os
livros e congressos passaram a servir de mecanismo de busca de conhecimento.

Para possibilitar a “recuperação” dos traços africanos e a preservação do culto


tradicional, o Intecab conta com uma infra-estrutura interna muito próxima às das
associações acadêmicas como a própria ABA (Associação Brasileira de Antropologia)
e com finalidades semelhantes. Ela existe enquanto entidade nacional (bem como a
ABA), sede espaço a ramificações (ABANNE – Associação Brasileira de
Antropologia Norte –Nordeste.) e promove encontros nas duas esferas (Luca, 2003,
p. 49).
95

Como demonstra a pesquisadora, folheando o Estatuto do INTECAB, é possível


constatar a existência de uma Comissão de Ciência e Cultura a quem compete, por exemplo:

Elaborar programa de atividade de estudo, pesquisa, trocas de informações,


preservação do culto conferências e comunicações do seminário nacional preparatório
para conferências internacionais. Indicar lista de personalidades de notório saber e /ou
estudiosos para participarem do seminário nacional. Sugerir temas de trabalho
religiosos, científicos, culturais e artísticos para planos e programas da entidade junto
a eventos programados ou atividades especiais (Estatuto Reformado do Intecab, Cap.
VI, Art.13, Nº. 6: 10-11 apud Luca, 2003, p. 49).

Nesse processo, criou-se redes de relações ligando Pai Walmir e outros candomblecistas
paraenses aos principais antropólogos africanistas brasileiros e especialistas em língua africana,
sobretudo o yorubá.

Todo mundo que vem a Belém, qualquer pesquisador, sem querer me enaltecer, mas
o ponto de referência é a casa do pai Walmir e tal. Quer dizer, isso é bacana, bacana
mesmo porque toda a pessoa que vem em Belém assim de São Paulo, vem pra aqui,
até o Reginaldo Prandi. Ele vem muito na minha casa. Toda vez que ele vem a Belém,
já veio quatro vezes na minha casa. E outras mais que vem que; o Duarte, Carlos
Lobato, Marco Aurélio Luz que é meu amigo, a Juanita (Juana Elbein dos Santos) é
minha amiga demais, o marido dela lá do Intecab. De Recife tem outra antropóloga
(Maria do Carmo Brandão) da UFPE faz parte do Intecab. (pai Walmir,
candomblecista apud Luca, 2003, p. 49)

E foi quando eu aceitei a coordenação do INTECAB, foi quando o Baraúna, Gilberto


Barauna, que era o meu professor de iorubá e ele tinha acesso ao INTECAB e queria
que eu coordenasse o INTECAB aqui no Pará. E eu não quis e tal e, dessa vez, quando
eu briguei realmente com a Federação assumi a coordenação do INTECAB. (Pai
Walmir, candomblecista apud Campelo, 2001, p. 54)

O professor Gilberto Baraúna, apesar de ser engenheiro químico por formação,


considerava-se “amante da tradição yorubá, tradição nagô” e dedicou-se a aprender a língua
com o professor Ademolá, em Salvador. Não possuía vínculo iniciático com as religiões de
matrizes africanas, mas foi membro criador da SPLYB (Sociedade de Preservação da Língua
Yorubá no Brasil) e diretor do INTECAB. Resumindo, assim pai Walmir descreve a atuação do
professor “Ele não era afro-religioso por iniciação, mas era afro-religioso por simpatia”
(informação verbal)126.

Baraúna foi uma grande referência no processo de busca pela africanidade de diversos
líderes religiosos locais e ministrou cursos de yorubá a muitos sacerdotes e ogans, inclusive a

126
Entrevista concedida por FERNANDES, Walmir da Luz. Entrevista X [maio. 2021]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2021. Arquivo .mp3 (1h28min).
96

Banjo, conforme certificado que lhe foi conferido pelo presidente da SPLYB – Walmir da Luz
Fernandes - pelo curso realizado no período de 13/09/1993 a 16/10/1993 (ver figura 15).

Figura 15: Certificado do curso de Yorubá conferido a Banjo no ano de 1993.

Fonte: Acervo pessoal de Maiume Jamacaru.

Para prosseguir a análise da pedagogia implementada pelo ogan Banjo, preciso mostrar
ao leitor a relação estabelecida entre ele e a grande liderança do INTECAB-PA, Walmir da Luz
Fernandes. Depois que o último recebeu a sua Cuia de Axé, cargo que lhe conferia status de
sacerdote e que lhe possibilitava o direito de abrir sua própria casa de santo, ele retornou a
Belém trazendo consigo dois baianos, Banjo e Bira. Esses religiosos ajudaram a transportar os
orixás de pai Walmir para Belém. Na sequência, pai Cícero viajou a esta capital a fim abrir a
casa de santo de pai Walmir, fazer os fundamentos na nação keto.

Uma das coisas que foi uma mudança na questão do candomblé é que quando eu tomei
deká eu não tive receio, eu fui em busca. Eu mandava buscar gente em Salvador pra
tocar, pra vim iniciar pessoas, eu trazia pessoas porque eu não me sentia capaz ainda
de assumir sozinho porque eu não tinha mão-de-obra. Então foi muito difícil. Mas eu
nuca temi de forma nenhuma. Em casa nunca tocou mina, nunca tocou umbanda, foi
97

sempre candomblé. Eu primava por isso, porque foi aquilo que eu fui em busca, aquilo
que eu queria. Eu acreditava. (Informação verbal)127.

As visitas de mestre Banjo a Belém iniciaram um processo lento de iniciação de ogans


paraenses. Cabe a ele o pioneirismo na formação dos alabês paraenses.

Quando ele ficou, foi quando ele veio trazer meus orixás comigo. Aí ele já ficou.
Tanto que a gente veio em agosto, no final de agosto ou primeiro de setembro a gente
chegou em Belém, por aí, e ele ficou até outubro quando meu pai veio e ele foi embora
com meu pai. Foi a vez que ele ficou mais tempo. Aí ele começou a ensinar os meninos
por aqui e tudo mais. Eu não tinha ogan na época... Ele ensinou meu filho Fábio que
é babalorixá mas toca muito bem atabaque, enfim ele foi ensinando pessoas, quando
foi em 88 ele já ficou em Belém, direto, morando aqui (Informação verbal)128.

Depois de uma briga conjugal muito grave que conteve agressão física e pôs fim no
relacionamento de Banjo e Ana, a relação entre o ogan Banjo e Pai Walmir estremeceu, dois
motivos podem ser destacados como agravantes deste processo: o primeiro deles foi a iniciação
da mãe Rosa (Oyá Nirolê) - já apontada aqui no tópico “A Baianidade que Confere Poder: Um
Alabê com Status de Sacerdote” - que feria o sistema de hierarquia do candomblé segundo o
qual um ogan jamais poderia iniciar um iyawô; o segundo foi o ethos soberbo e grosseiro
sustentado pelo alabê baiano que ensinava o que sabia com maestria e despotismo, destratando
os aprendizes quando cometiam equívocos. O conhecimento era repassado por ele apenas uma
vez, com a austeridade de um líder que possui o poder conferido pelo conhecimento. Os erros
eram corrigidos com grosseria e muitos são os relatos de pessoas que aprenderam a cantar
através de críticas do tipo “Papagaio velho também aprende a falar”.

Ele era assim... Lá (em Salvador), por exemplo, ele era uma pessoa muito ignorante e
quando ele chegou aqui tiveram vários impactos com os omó orixás, com os filhos
por causa disso. Com o jeito dele ser lá era um e aqui eu não aceitei [...]. Ele era assim
lá porque meu pai nem ligava, ele fazia o que queria no barracão, lá no templo, e meu
pai nem se importava. Impressionante isso! A primeira discussão que eu tive com ele,
séria, foi numa festa de meu pai Odé aqui em casa e ele... o Eraniká, um dos meus
ogans, o primeiro alabê de meu pai, quer dizer vivo, o outro primeiro alabê já morreu,
o Loronim. O Eraniká estava tocando atabaque com os meninos e o Eraniká
atravessou assim com o aguidavi, não tocou certinho, e ele... Estava cheio de gente,
eu fiquei morto de vergonha, disse “Porra Eraniká, toque direito! Parece que você foi
feito nas coxas!” Quando ele disse isso eu virei “Não, nas coxas não! O senhor estava
aqui no dia que ele nasceu, o senhor ajudou na iniciação dele! Ele não foi feito nas
coxas! Agora o senhor eu não sei se foi iniciado, eu não tava lá no dia que o senhor
foi iniciado.” Eu não achei que eu faltei com respeito, eu achei que eu respondi a
altura. O filho era meu! Então aqui pra gritar só eu. Aí ele largou o atabaque foi
embora aqui para esse corredor, que não era assim ainda, naquele tempo era diferente
[...]. Aí depois teve um intervalo, enquanto os orixás se aprontavam para dar hun no
pessoal. Eu fui por lá e ele me chamou e disse “Meu filho, você me humilhou na frente
de todo mundo”. Eu disse “Não, o senhor humilhou o meu filho é diferente, foi um

127 Entrevista concedida por FERNANDES, Walmir da Luz. Entrevista X [maio. 2021]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2021. Arquivo .mp3 (1h28min).
128
Idem.
98

revide do pai! E isso vai acontecer todas as vezes que o senhor gritar com os meus
filhos, o senhor não tem esse direito! Aqui a primeira palavra é a minha e a última
também. Então eu quero que o senhor respeite os meus filhos para que eles venham a
lhe respeitar porque senão eles vão lhe desrespeitar porque vão lhe responder a altura
e o senhor não vai gostar”. Mas não foi nesse tom foi num tom mais agressivo tanto
da parte dele quanto da minha (Informação verbal)129.

Pai Nidinho, por sua vez. possuía consciência de sua importância no processo
pedagógico dos filhos e alabês iniciados no terreiro de pai Walmir e das diversas casas de
candomblé existentes em Belém.

Eu morava num quartinho no fundo do terreiro que era chamado de Ilê Bahia, lugar
onde hoje é a cozinha. Quando os filhos da casa tinham alguma dúvida ou queriam
aprender alguma coisa, eles sabiam que iam me encontrar lá. Então todo dia aparecia
ao menos um para aprender alguma coisa. O bom é que todos os dias eu fazia as
mesmas coisas que fazia em Salvador, e mesmo que não tivesse a quantidade de festas
que tem na Bahia, os filhos do Nilé podiam tocar, cantar, dançar todo santo dia e todo
dia santo (INSTITUTO NANGETU, 2008).

Seu conhecimento e consequentemente sua prática pedagógica lhes possibilitavam


formar religiosos de diversas nações. Poucos foram os ogans baianos que se radicaram na
capital paraense, o que fez com que lideranças das mais diversas matrizes recorressem a ele em
busca da sua sabedoria “inter-religiosa”.

Nessa época outras casas já me chamavam para ensinar também. Aqui na Nanjetu que
é filha do Jorlando eu ensinei os toques de angola ao Kongoande, pro Kamugeji, pro
Kitamukuene, ensinei as autoridades a dançar, corrigi passos de Muzenza... Sabe
como é... Eles também estavam a maior parte do tempo sozinhos. O Jorlando vinha
mas não ficava aqui o tempo todo ai eu comecei a ensinar. Depois o Carlinhos de
Gongobira que é confirmado pela mameto Samba Diamongo para o Anjunsu de
Jorlando, se encarregou de manter a prática dos toques e dança no Mansu Nanjetu,
mas quando ele chegou, eu já tinha começado os trabalhos. Também ensinei toque e
cantigas aos ogans do fundamento da mãe Dewi, como o Romeu, o Omilodé, o
Makaibe. E fui eu que fundei o terreiro de Zazá de Oxumaré, que é neta da Dewi, filha
do Odé Bessi. Senhor Guilherme, também ajudei no Odé Massamburá que era filho
do Edsom de Oxum. Fundei o terreiro do Obá Loqueji e tantos outros. Eu ensinei
muita gente (INSTITUTO NANGETU, 2008).

129
Entrevista concedida por FERNANDES, Walmir da Luz. Entrevista X [maio. 2021]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2021. Arquivo .mp3 (1h28min).
99

Pela dedicação na formação dos alabês, o Instituto Nangetu de Tradição Afro-


Religiosa e Desenvolvimento Social, a Associação Cultural dos Amigos e Filhos da Umbanda
e a Associação Konsenzala de Kafungê, através das sacerdotisas da tradição angola Oneide
Monteiro Rodrigues (Mameto Nangetu) e Kátia Hadad (Mameto Kaiaonilegi) conferiram, em
dezembro de 2008, o título de honra ao mérito a Ivonildo dos Santos pela dedicação e pelos
serviços prestados à comunidade afro-religiosa do município de Belém (figura 16).
Figura 16: Diploma de Honra ao Mérito concedido por Instituições vinculadas ao candomblé angola de Belém.

Fonte: Arquivo pessoal de Maiume Jamacarú.


No ano de 2009, Banjo foi indicado e habilitado, junto com outros afro-religiosos e
mestres da cultura popular para o prêmio Culturas Populares 2009 - Edição Dona Izabel
promovido pela Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural – Ministério da Cultura
(SID/MINC).
Destaco também uma exposição feita pelo mestre baiano em abril de 2010 para a
pesquisa internacional Belém Drumming Study desenvolvida pela doutora Emma Cohen do
Max Planck Institute for Evolucionary Antropology, Germany da Universidade de Oxford (ver
figura 17).
100

Figura 17: Certificado do Instituto Max Planck.

Fonte: Acervo pessoal de Maiume Jamacarú.


Em 23 de abril do ano de 2012, o ogan aqui biografado recebeu a comenda mãe Doca
(conforme mostra abaixo a figura 18), conferida pela Assembleia Legislativa do Pará (ALEPA)
através de um projeto idealizado em 2009 pela deputada Bernadete Ten Caten do Partido dos
Trabalhadores (PT). A honraria é concedida anualmente desde 2011 “às pessoas que trabalham
da divulgação, manutenção e preservação das manifestações das religiões de matrizes
africanas”. No ano de 2012, além de Banjo, outros sacerdotes foram homenageados: Mameto
Kátia Hadad (Angola), pai Fernando Rodrigues (Mina), Mãe Maria Emília Miranda (Mina),
Mãe Vanda de Ogum (Umbanda), Tata Kinambojí (Angola), Mameto Muagilê (Angola), Pai
Benedito Saraiva (Mina) e a antropóloga africanista Anaíza Vergolino. Ressalto que a honraria
recebe este nome, Mãe Doca, em função do pioneirismo dessa sacerdotisa na prática religiosa
de matriz africana no Estado do Pará. Ela é, por muitos, considerada como mito de origem.
101

Figura 18: Ivonildo dos Santos recebendo a comenda Mãe Doca na ALEPA em 2012.

Fonte: Acervo pessoal de mãe Obasanjí


Mesmo em meio a uma relação marcada por conflitos e aprendizados, grande foi a
influência exercida pelo ethos acadêmico de pai Walmir na forma de pai Nidinho ensinar. Se
por um lado Banjo conferia aos neófitos o respaldo da pedagogia do “fazer” e ensinava por
meio de rituais públicos e ritos de passagem, por outro ele acessou o modelo acadêmico
ajudando na elaboração de apostilas usadas em diversos minicursos conferidos pelo INTECAB
e pela SPLYB em diferentes terreiros da capital paraense, sobretudo na casa de santo de pai
Walmir e de diversos dos seus filhos de santo.
As apostilas acima citadas serviam de material de apoio aos diversos cursos ministrados
por Banjo. Eram produzidas com auxílio de sacerdotes mais letrados que o auxiliavam no
processo de sistematização do conhecimento empírico e datilografia. Algumas ilustrações da
capa foram feitas pelo ogan Walter Rebelo, meu tio, um dos tantos que ele ajudou a formar. A
capa das mesmas traz uma imagem do orixá Omolu, dono da cabeça de Banjo e dos três
tambores de candomblé, Hun, Hunpi e Lé. A data dessas apostilas remonta a meados da década
de 90, provavelmente ao ano de 1994 e no cabeçalho ou rodapé de algumas páginas consta
102

“Orientador Pai Ivonildo de Omolú (Banjo)”, como pode ser visto nas figuras 19, 20, 21, 22,
23 e 24 (abaixo).
Figuras 19, 20, 21, 22, 23, 24: Material utilizado no Curso de Atabaques ministrado por Banjo.
103

Fonte: Acervo pessoal de Walter Rebelo.


A primeira delas a ser produzida apresentou conhecimentos básicos sobre o que é um
alabê, quais as suas funções e informações sobre a orquestra sagrada, a função musical dos três
tambores e do gan. Também é possível aprender noções gerais da confecção dos aguidavis e os
toques rituais das três nações (keto, angola e jeje).
A liturgia é ensinada a medida em que as apostilas contêm informações acerca das
funções e os nomes de cada toque nas diferentes matrizes, a sequência ritual em que são
entoadas. Além disso apresentava ao público cada orixá e seus correspondentes angola,
diferenças dos nomes dados aos deuses em cada nação, as saudações votivas a essas divindades,
chamadas de orikis.
A segunda apostila aprofundava os conhecimentos sobre a nação angola apresentando a
sequência de cânticos entoados aos inkices correspondentes a Exu (sem referência na apostila),
Ogum (Roxo Mocumbe), Oxossi (Gongogira), Obsain (Katendê), Omolu (Cafungê), Osumare
(Angaoro), Tempo (sem referência na apostila), Sango (Zaze), Iansan (Bamburussema), Osun
(Dandalunda), Yemonjá (Micayá), Nanã (Nanã Borokê)130 e Osalá (Zambi ou Lemba). Tais
doutrinas eram ensinadas em aulas práticas junto com os seus referidos toques.

130
Conforme informação da apostila.
104

A terceira apostila dessa sequência de cursos ministrados pelo ogan Banjo contém as
doutrinas em keto assim como a tradução de algumas palavras do yorubá para o português.
Deduzo que pelo alabê ter sido iniciado nesta nação e ter assistido aulas de yorubá com o
professor Gilberto Baraúna, fora mais fácil para ele aprofundar os conhecimentos yorubanos,
em suas aulas rituais. Nesta apostila encontra-se as doutrinas cantadas para os deuses Exu,
Ogum, Odé, Logum Ede131, Ossaim, Sango, Omolu, Iroko, Oya, Osun, Yemonjá, etc.
Percebe-se o aprofundamento nas informações contidas, a saber pelo maior número de
doutrinas, pela tradução literal das mesmas, pelo canto a diversas categorias de cada orixá e
pelas informações musicais contidas na mesma. A apostila termina com curiosidades destoantes
do conteúdo sagrado que o autor chamou de “Lista de Coisas Inconfessáveis em Yorubá”. Trata-
se basicamente da tradução de palavrões e nomes dados aos órgãos sexuais.
As duas últimas apostilas que tive acesso destoam da sequência das três anteriormente
descritas. Possuem uma formatação mais acadêmica, com capa contendo informações sobre a
instituição através da qual o minicurso foi ministrado, tema/título do curso e nome do autor/
redator do texto escrito. Percebe-se que este minicurso foi ministrado pelo Centro de Estudos
da Cultura Afro-Brasileira Olómi L´Àyê (CECAO), coordenado pelo médico Marcelo de
Vasconcelos Pimentel, filho biológico da sacerdotisa do tambor de mina e também iniciada no
candomblé Maria Célia de Vasconcelos Pimentel, responsável pelo processo iniciático de pai
Walmir na mina/umbanda.
Após o afastamento de Banjo do terreiro de pai Walmir, o mesmo aliou-se ao médico e
afro-religioso Marcelo que passou a sistematizar seu conhecimento empírico e organizar os
minicursos ofertados a comunidade. Apesar de ter tentado contato com o referido médico
através da rede de relações com afro-religiosos, eu não obtive sucesso. Através de outra pessoa
a quem pedi autorização para falar com ele, o mesmo respondeu que sempre teve admiração e
respeito por pai Nidinho, porém nada tinha a acrescentar que qualquer outra pessoa da família
ou que tenha convivido com ele em Salvador não pudesse dizer.
O esmero acadêmico do material produzido vai para além da capa. O texto conta com
uma apresentação, redigida pelo próprio médico que apresenta a si próprio, a sua mãe, e ao
Banjo, enaltecendo o conhecimento diversificado deste religioso a quem atribui parte de sua
formação. Na sequência, aponta os objetivos da apostila e o público a quem se destina.

A presente apostila encerra a coleção Áwon Orin S’Àwon Imolè, constituída de uma
coletânea de cantigas que vai de Èsú a Òòsààlà passando por todos os imonlès, mais
cultuados no Brasil, incluindo Egúngúm. Esta coleção destina-se àqueles que 1)

131
Denominação dada na apostila.
105

desejam cantar aos Ìmonlès, na língua destes, sabendo o que se está salmodiando,
entendendo o que dizem e o que ouvem, com seriedade e valorização e preservando a
tradição. 2) Almejam conhecer o saber ritual contido nos textos sagrados que informa,
orienta e determina as ações rito-litúrgicas das comunidades de culto aos Àrá-Òrun,
saber este indispensável mas que muitas vezes lhes foi sistematicamente sonegados,
seja por insegurança, intolerância, ignorância, incompetência, falsa auto-suficiência
ou má fé e, 3) Não mais aceitam cantar com palavras criadas ou expressões
onomatopeicas ou “enrolando a língua” ou numa grande miscelânea de idiomas. Este
trabalho completa-se por uma coleção de fitas de áudio (Cassete – K-7), com a
finalidade de tornar possível o aprendizado da pronúncia correta das palavras, bem
como a melodia e o ritmo musical. Tem como base nossa vivência na prática e na
observância ao culto aos Ìmonlés, informações obtidas com outros sacerdotes do
referido culto, bem como as obtidas na literatura citada em bibliografia (PIMENTEL,
[200-]).

Após a apresentação, que também contém preocupação com a reprodução desautorizada


do material, segue-se uma exposição ordenada das doutrinas cantadas para os orixás funfum132
com uma sequência completa de cantigas e a tradução literal para a língua portuguesa. Para
finalizar, a apostila apresenta a bibliografia consultada de acordo com as normas técnicas dos
trabalhos acadêmicos e o índice. No ano de 2004, o CECAO publicou outra apostila, esta
assinada por Marcelo Pimentel e Ivonildo dos Santos. Intitulava-se “Louvando os Orixás” e
seguia o mesmo padrão acadêmico da anterior, esse material de seis páginas (com capa e
bibliografia) apresenta as saudações de todos os orixás do panteão afro-brasileiro (e suas
traduções).
A leitura atenta desses textos didáticos e informações recolhidas nas entrevistas
realizadas mostram que o conhecimento empírico de Banjo, bem como o capital simbólico
sustentado por sua origem soteropolitana e pelo acesso aos terreiros considerados “fonte de
tradição” foi adaptado pelos parceiros nessa empreitada pedagógica de repasse conhecimento
das doutrinas africanas. A linguagem acadêmica parecia ser sustentada menos pelo próprio e
mais por quem se juntava a ele. Seus parceiros podem ser caracterizados como homens brancos,
profissionais liberais de classe média, nascidos fora do estado da Bahia, que possuíam posição
social relevante, conferindo status ao “Nêgo Banjo” e formatação de ciência ao seu saber
empírico.
Também é possível verificar nesses textos a ideologia de pureza que talvez não condiga
com o ethos desse homem negro criado transitando entre templos e nações diversas das
periferias da capital baiana. Ao Banjo interessava ensinar e fazer de seu saber meio de
subsistência e aos parceiros respaldar sua africanidade em quem carregava na fenotipia e na
história de vida vínculo de linhagem com o continente africano.

132Orixás ligados ao processo de criação. Divindades primordiais, os primeiros a serem criados pelo Deus criador.
Orixás que vestem branco (funfum significa branco).
106

Não se sabe ao certo o que o Banjo lucrou com esses cursos uma vez que ele já tinha
falecido quando iniciei esse texto biográfico, todavia os informantes que conviveram com ele,
seja produzindo os minicursos, seja participando deles, informam que ele recebia pela venda
do material didático produzido e pela matrícula cobrada. Não posso garantir, entretanto, que a
renda era completamente revertida para ele.
107

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Saiu da Vida para Entrar na História133


Nas considerações finais pretendo mostrar o desfecho da trajetória deste sujeito liminar
que em vida transgrediu as regras de sociabilidade familiar, sociológica e religiosa. Homem
negro criado na periferia de Salvador, que amealhou dezenas de mulheres e filhos, viveu no
subemprego, fez da festa e da religião meio de subsistência. Amealhou status pelo
conhecimento que tinha e pela origem baiana. Transformou o estigma da negritude em capital
simbólico para tecer rede de relações que envolviam profissionais liberais, homens brancos em
busca da pureza africana.
Este homem que sustentava uma personalidade de Exu, terminou a vida adequado a
padrões. Seu último casamento foi marcado pela monogamia e pelo zelo com a paternidade.
Nas palavras desta companheira ele teria abdicado do vício da bebida e da vida noturna
desenfreada para cuidar do filho temporão chamado Íkaro. De acordo com uma das versões
sobre sua morte, fora assassinado ao denunciar membros de uma “boca de fumo” que teriam
usado o pátio da sua casa para consumo de entorpecentes.
Os últimos anos foram marcados pela debilidade física, que o afastara das atividades
laborais como pedreiro e marceneiro. De acordo com a fala de Banjo “Quando decidi ficar em
Belém montei uma oficina e com ela consegui viver por vários anos, a marcenaria me sustentou
enquanto minha saúde permitiu”. Acumulou atestados médicos que o classificavam como
“portador de deficiência física” que dificultava sua locomoção apresentando problema de
coluna em função de artrose lombar e lombalgia intensa causados pelas atividades laborais. Este
problema o afastava do trabalho de marceneiro e nos últimos anos de sua vida passou a
apresentar perda auditiva neuro-sensorial e hipertensão arterial, o que dificultou suas atividades
musicais.
O enfraquecimento talvez o tenha feito mudar o comportamento conjugal. Amigos do
casal relatam que no início de sua última relação, muitos conflitos se estabeleceram em função
dos hábitos de boemia, alguns deles acompanhados de violência física. No entanto, sua
derradeira cônjuge reverteu a situação frente o revide na tentativa de agressão, o que fez o velho
Banjo mudar sua postura e seu comportamento conjugal. O ethos de dominador, promíscuo e
infiel foi substancialmente modificado.

133
Este título é uma paráfrase da carta testamento de Getúlio Vargas.
108

Em função dos problemas de saúde, foi por diversas vezes internado no Hospital da
Divina Providência no município adjacente de Marituba, todavia não foi nenhuma dessas
mazelas físicas o que ceifou sua vida. O alabê Banjo foi assassinado na porta de sua casa situada
no distrito de Icoaraci, na frente de seu filho mais novo. O relato de sua esposa sobre as
condições do óbito é longo, mas vale ser lido:

Pintaram na porta da nossa casa “Sal BC”. Eu tava dando banho no meu filho mais
velho, o Cauê e ele tinha saído junto com o Íkaro, que era costume dele ir pra feira
quando o Íkaro não tinha aula. Ele tava sempre com o Íkaro. Em Icoaraci tinha uma
garagem com portão grande de correr. Eu vim pela casa e disseram: “o baiano está
aí?”. Eu disse não, ele saiu. “Tu sabe a hora que ele vai chegar?”, eu disse: “não, não
faço a mínima ideia”. [...] Dois homens em uma moto laranjada. [...] Eu cheguei e
falei pra ele. A gente tava num aniversário na frente de casa do nosso afilhado [...] e
chegou um rapaz lá, que ele disse assim: [...] “Dadá, chegou um cara aí, um tal de
Kimzinho, perguntou pra mim quem era o baiano, quem eram o baiano? Aí, eu disse
que eu não sabia!”. Ele, por quê? “Por que é sal nele!”. Aí ele ficou sobressaltado já
não saia mais, não ficava mais na porta como era de costume, que ele sentava na porta
pegava o violão, pegava o berimbal tocando e as crianças sempre iam ali. Ele jogava
com as crianças, então os meninos da capoeira iam. Ele já não fazia mais isso, só ficou
dentro de casa. Como a gente tava em obrigação porque tava com uma filha pequena
recolhida na casa da minha mãe, eu vim pra fazer o ebó dela e voltar pra casa. Aí eu
disse pra ele assim: “Assim que terminar o ebó eu vou pra casa. Aí ele me ligou, ele
foi e disse assim: “Amor, que horas tu vem?”, aí eu peguei e disse assim “Agora que
acabou aqui, mas eu já vou pra casa com o Íkaro”. Ele disse: “Não. Não vem porque
eu não vou te buscar na parada e eu tô sem dinheiro pra ti vim de mototáxi e eu não
quero que tu venha andando de lá pra cá com o neném. Dorme aí, de manhã cedo tu
vem”. Aí eu disse assim: “Tu vai dormir aí sozinho?” Ele disse “Vou, mas vem
amanhã de manhã cedo!”. Nessa noite, [...] a gente deitou tudo na esteira do barracão
e escutou baterem no portão na casa da mamãe, bah, bah, bah! A gente pensava que
era alguém, que tinha acontecido alguma coisa, quando a gente abriu a porta do
barracão não tinha ninguém, quando o menino foi passando assim pela casa de Oyá
Igbale da mamãe, ele se arrepiou todinho e disse assim: “Aí mãe, me deu um medo
tão grande!”. Aí, o Íkaro começou a chorar, que ele queria ir embora, que ele queria
ir embora, que era pra me chamar o pai dele, pro pai dele levar o carro, que ele queria
vim embora. Desde o dia, dessa tarde que eu vim de lá pra fazer esse ebó, o Íkaro fez
maior escândalo que ele queria ficar com o pai dele. Eu tava deitada quando a gente
viu empurrarem a porta do barracão, aquele homem meteu o rosto e o homem saiu era
03:00h da manhã, aí eu peguei o telefone e liguei pra ele, ele tava deitado, eu disse;
“Amor, tá tudo bem contigo?”. Ele disse: “Tá, o que foi?”. Eu disse “Sei lá, eu tô
doida pra ir me embora. Tô agoniada, eu quero ir pra casa. Aí eu fiquei falando com
ele no telefone, ele disse: “Cadê o neném?”. “Ele dormiu era 2:00h”. Ele disse: “Tá,
vem embora logo cedo”. Quando deu 5:00h da manhã que a minha mãe desceu do
quarto dela, eu disse: “Mãe, eu vou me embora que tô com o meu coração muito
apertado”, ela disse: “Tá, vai!”. Aí, peguei, cheguei em casa era 06:00h da manhã.
Quando eu cheguei, ele ainda tava deitado. Aí, fui abracei ele, contei pra ele o que
aconteceu. Ele pegou e disse assim: “Tenho dois ebós pra fazer hoje, passa as folhas
de bananeira pra mim fazer os acaçás e separa as panelas e os pratos”. Assim eu fiz,
separei todos os pratinhos que ele ia botar as coisas dos ebós. [...] Ficou cozinhando,
fez as coisas do ebó da menina, das duas moças e depois elas foram embora. Ele foi e
se sentou lá na frente onde ele se sentava sempre pra comer churrasco com o neném.
Ele se virou pra mim e disse: “Faz um arroz”. Eu entrei pra fazer esse arroz, chegou
um colega dele e sentou do lado dele e botou uma cerveja assim, só que ele não tava
bebendo. As pessoas disseram porque viram que ele tava bebendo, mas ele não tava,
ele tava comendo churrasco. [...] O cara chegou anunciando um assalto, umas oito e
meia da noite, quase nove, se já não era nove. Eu não tava, eu entrei e o Íkaro ficou
com ele. Como o menino lá do lado de casa sempre tavam estourando aquelas bolinhas
109

dentro da garrafa e fazia um barulho igual tiro eu continuei fazendo arroz, só que
quando eu escutei eu fui querer correr... Até hoje eu tento querer explicar uma coisa
que não sei, que eu não consigo explicar. Quando tu entrava assim na sala tinha uma
estante e tava minhas contas tudo lá e eu tinha um ianzinho fininho e ele tava no chão.
Eu peguei disse “Ah, vou levar essas contas daqui vou levar lá pra guardar”. E nessa
minha ida Paty, eu escutei o primeiro, quando eu voltei que eu olhei pra mesa e o
portão tava fechado e eu não enxergava a chave que tava em cima da mesa, naquela
minha agonia quando eu escutei o terceiro tiro que eu consegui ver a chave, eu abri.
Ele já tava no chão, aí eu peguei fui me abracei com ele, ele tava sangrando muito. Eu
peguei fui fiz compressa, ele só olhava e dizia: “Íkaro, Íkaro...”, ele puxava a
respiração, ele olhava pro Íkaro e fazia assim com a mão... Era pra tirar o Íkaro dali,
e o Íkaro gritava. Ele viu tudo, tava com ele. O Íkaro gritava: “Chama a polícia,
socorro, meu pai, socorro!”. E a ambulância não chegou, a gente botou ele dentro do
carro e levou pra UPA. E chegou lá na UPA que eu entrei, entramo numa sala, aí ele
foi respirou fundo segurou na minha mão e disse: “Íkaro, Íkaro...”, aí eu disse: “O
Íkaro tá bem, amor. Não pegou nenhum tiro nele”. Ele balançou a cabeça, suspirou,
quando os médicos chegaram me tiraram, eu acho que foi o tempo de eu sair, aí ele
não aguentou mais, foi a demora dos médicos também. Na UPA de Icoaraci. Demorou
uma hora pra atenderem ele e mais de quarenta e cinco minutos ele esperando e
sangrando, demorou muito e... O semblante que eu tenho hoje do olhar dele me
pedindo socorro com os olhos... e pra ele falar pra mim as últimas palavras dele, foi
só saber o Íkaro. Quando eu disse pra ele que o neném tava bem, que não tinha pegado
nenhum tiro no neném, ele suspirou fundo, deu um sorriso de lado... Eu digo pra
mamãe que a pior sensação que a gente leva porque, pra mim, naquela hora ele desistiu
da vida como se fosse assim: agora eu posso ir, meu filho tá bem, não pegou nenhum
tiro nele. Eu acho que deu tempo de sair da sala só Patrícia, e vi quando já foram me
avisar quando ele já tava em óbito (informação verbal).134

Quando Banjo recebeu as primeiras ameaças de morte, sua preocupação era sair de
Belém com a família. Acionou a rede de relações amealhada com o candomblé através de seus
ensinamentos litúrgicos para conseguir passagens e retornar ao estado natal.

Ele foi, olhou pra mim e disse assim: “Égua Maiume, eu já conversei com o
Mutalambô, e ele vai me ajudar. Eu vou comprar a nossa passagem, a gente vai pra
Salvador. Eu vou ficar lá na casa da mamãe que não tem ninguém morando e a gente
vai embora”. Mutalambô é um ogan, lá de Macapá, também ensinou muito ele quando
a gente foi em Macapá, e ele sempre ligava pra tirar as dúvidas com o Banjo. Aí, eu
disse: “Tá, com essas ameaças que a gente não sabe nem de onde tá vindo. Tu não fez
nada, não deve nada pra ninguém. Isso tá me preocupando e eu não quero criar um
filho sem pai, eu não sei nem o que vai acontecer com o Íkaro, se isso acontecer”. Ele
disse: “Eu sei. Eu quero ter o prazer de pelo menos colocar o anel de ABC na mão do
meu filho porque eu sei que o da faculdade eu não vou”. (Informação verbal)135

Muitas versões sobre o óbito se construíram. Uma delas aponta o envolvimento de um


filho de Banjo no caso, um dos vários que foi preterido pela vida de boemia de sua juventude;
a outra diz que foi morto pelo tráfico:

Porque o pai Nidinho, na realidade, foi morto por traficantes. Porque foi assim, ele
veio aqui uma semana antes. Tinha acontecido a festa do seu Jaguarema no dia 7 de
Setembro, aí na semana seguinte, dia 15 ou 16 por aí, ele chegou aqui. “Meu filho

134
Entrevista concedida por CARDOSO, Maiume Mayara Jamacaru. Entrevista III [maio 2019]. Entrevistadora
Patrícia Moreira Perdigão. Marituba, 2019. Arquivo .mp3 (1h18min).
135
Entrevista concedida por CARDOSO, Maiume Mayara Jamacaru. Entrevista III [maio 2019]. Entrevistadora
Patrícia Moreira Perdigão. Marituba, 2019. Arquivo .mp3 (1h18min).
110

preciso falar com você”. Eu estava em casa, aí eu vim pra cá (terreiro). Quando eu
cheguei, ele estava até comendo feijão com a equedi. “Ah, meu filho eu vim falar uma
coisa, eu tô prometido de morte”. Ele falou pra mim. Como pai Nidinhho?. “É, porque
os caras estavam fumando maconha lá no meu pátio e eu peguei o facão...”. Ele chama
de facão o que a gente chama de terçado em Belém, sabe? “Aí eu voei em cima dos
caras e botei todo mundo pra correr. Eu não aceito um negócio desse”. Eu disse: “O
senhor vai se meter com esse pessoal?”. “Não, mas eles estavam na porta da minha
casa e não vou deixar isso acontecer”. Porque tinha um pátio na frente da casa dele
com um portãozinho, estava chovendo e os caras estavam fumando alí. Era fácil de
abrir talvez aí ele acordou de madrugada e foi lá. Não bastando isso, ele no outro dia
ligou para a polícia e denunciou a boca de fumo lá embaixo. Quando ele veio aqui,
ele disse “Lé (provavelmente a sílaba final de Agá Arô Nilé, nome iniciático), quero
ver o que você faz por mim”. “Então vamos fazer o seguinte: Eu vou comprar agora
uma passagem para Salvador, o senhor vai embora pra Salvador porque eles vão lhe
matar pai Nidinho”. Falei mesmo porque é assim que eles fazem. Ah! Outra que ele
disse assim: “Meu filho, hoje de manhã, foi mais isso que eu vim aqui, amanheceu
bem em frente da minha casa escrito ‘sal’” e uma seta apontando para a casa dele.
Quando eles escrevem assim já é a promessa de morte, né? Aí eu disse: “Vou
comprar” e ele disse: “Não, não, eu vou lhe ligar porque aí eu vou pedir para o
fulano...” - que é amigo dele de Omolu que eu esqueci o nome e pra Oneide (Mameto
Nangetu) - “pra ver se eles me ajudam porque aí você compra a minha e eles compram
a da Maiume e do menino, porque eu não vou sem o meu filho”. Aí assim ele ficou
de me dizer depois. Aí quando foi quatro e pouco da tarde ele ligou de volta. “Nilé,
não compre passagem nenhuma. Se eu tiver de morrer eu vou morrer, não vou pra
canto nenhum, eu vou ficar na minha casa”. “Pai Nidinho, preste atenção, o senhor
fez - com licença da expressão - a merda, agora o senhor tem que assumir. Vá embora
daqui pai Nidinho, o senhor vai morrer, eles vão lhe matar!”. “Não, não vou não! Já
conversei com todo mundo, com a Maiume e a gente não vai não”. Numa semana,
quando foi dia 29 de setembro mataram ele (Informação verbal)136.

Se por um lado o crime que ceifou a vida do alabê em 29 de setembro de 2016 nunca
foi explicado pela justiça, por outro é possível informar que seu falecimento causou comoção
no universo afro-religioso local. O velório aconteceu na sala de sua residência e contou com
noventa e nove pessoas, conforme livro de presença da funerária Good-Pax, cuja primeira folha
pode ser observada na

136
Entrevista concedida por FERNANDES, Walmir da Luz. Entrevista X [maio. 2021]. Entrevistadora Patrícia
Moreira Perdigão. Belém, 2021. Arquivo .mp3 (1h28min).
111

Figura 25 com as assinaturas das principais lideranças do candomblé paraense das mais
diversas nações. Nas cinco páginas da lista constam nomes como: pai Walmir Fernandes,
Mameto Nangetu, Mãe Elizia Palheta (Iyanarê), Mãe Virginia Almeida (Mãe Nalva), Mãe
Risomar Bezerra, Mãe Elba Bezerra, Mameto Muagilê, Mameto Kátia Hadad, os ogans Jutair
Santos (Romeu), Hugo (Ayradenan) e Milton (Babaladê), dentre outros. Seu corpo foi levado
em cortejo até o Cemitério do Tapanã, onde foi enterrado.
112

Figura 25: Primeira página da Lista de Presença no velório de Banjo com as assinaturas de afro-religiosos que
foram prestar a última homenagem.

Fonte: Arquivo pessoal de Maiume Jamacaru.


Muitos terreiros e associações religiosas publicaram notas de pesar lamentando a perda
e registrando o luto da comunidade candomblecista de Belém. Algumas dessas notas revelam
que a morte pôs fim a velhas querelas, jogando para o esquecimento antigas acusações diante
da falta que seu talento musical ocasionaria ao universo afro-religioso. Talvez o lamento mais
significativo tenha sido o advindo do Ilê Asé Aga Arô Nilé (como pode ser visto na figura 26),
templo que o mestre ajudou a fundar, que lhe serviu como lar e que foi responsável pela sua
radicação em território paraense.
113

Figura 26: Nota de pesar do Ilê Asé Aga Arô Nilé em decorrência da morte de Ivonildo dos Santos.

Fonte: Acervo pessoal de Mãe Obasanji.

Se, conforme a queixa de sua derradeira companheira, exposta abaixo, a sua história de
vida não foi devidamente valorizada pela comunidade local, seu legado foi reconhecido após a
morte. Se, sua personalidade violenta, sua trajetória polêmica e seu ethos de malandragem
foram duramente criticados, sua memória foi usada como alavanca para o movimento social
contra o racismo religioso. A nota de pesar confere o status de liderança religiosa que lhe foi
criticado em vida, aponta a importância de sua negritude como elo entre a africanidade e a afro-
religiosidade, sustenta que, pela sua cor, facilitou o diálogo com o movimento negro, tão caro
a comunidade candomblecista. Enfim, o “Nego Banjo” conferiu negritude a terreiros que
sustentavam a pureza africana, sendo liderados por brancos.

Eu não vou te falar o que eu acho, eu vou te falar que tenho certeza. Assim, o Banjo,
as pessoas só procuravam ele quando queriam um candomblé bonito, que sabiam que
só ele faria aquele candomblé bonito, só ele que cantaria coisas que os ogans que ele
114

tinha ensinado naquele determinado Ilê Axé ou Mansu ou Terreiro não iria cantar.
Depois disso Patrícia, achavam que dando R$ 50,00 reais ou um frango, ou umas
picotas, ou uns pedaços de Bode, estavam pagando ele, sendo que não. Ele tinha muito
mais valor, e como o Joaquim, o cunhado dele disse pra mim: “sabe o que é, eles
tinham uma pedra rara na mão deles, esses paraenses, e eles não souberam lapidar”
(informação verbal)137

A morte de Banjo, conforme já foi mencionado, se deu em setembro de 2016 e no mesmo


ano, o Grupo de Trabalho de Matriz Africana do Conselho Estadual de Segurança Pública
(CONSEP) dedicou-se a investigar casos de assassinato de afro-religiosos. Nos meses de agosto
e setembro do referido ano dois afro-religiosos foram friamente assassinados. Além de Banjo,
o sacerdote José Mário Cavalcante (Odé Sigbonilé), morto no dia sete de agosto. O crime foi a
culminância de um longo conflito estabelecido com traficantes do bairro do Icuí-Guajará em
Ananindeua onde se localizava o terreiro em virtude dos toques que eram realizados no templo
religioso do mesmo.
A matéria intitulada “Sofremos com a Violência sem Limites” divulgada no blog do
Instituto Nangetu, em 10 de agosto de 2016, um pouco mais de um mês e meio antes da morte
de Banjo, informa que seis afro-religiosos tiveram a vida ceifada na zona metropolitana de
Belém no curto espaço de um ano. Também enumera outras violências praticadas contra a
comunidade como roubo e invasão de templos e agressão física. Além disso, traz cópia do ofício
protocolado pelas autoridades com a lista de afro-religiosos que perderam a sua vida e relatando
o caso do assassinato de Pai Mário cujo velório foi realizado mediante a ameaça de criminosos
do entorno de seu bairro. O movimento de combate aos crimes de racismo religiosos ganhou
força depois da morte do alabê Banjo tomando forma de seminário, acontecido nos dias 10 e
11 de outubro de 2017, na sede da polícia civil de Belém.
O evento realizou-se através de uma parceria entre Comitê Nacional de Respeito a
Diversidade Religiosa (CNRDR), Ouvidoria do Sistema Estadual de Segurança Pública e
Defesa Social (SIEDS), Grupo de Trabalho de Matriz Africana do Conselho Estadual de
Segurança Pública (CONSEP), Defensoria Pública do Estado do Pará e Delegacia Geral.
Contou com a participação das principais lideranças religiosas e com representantes do Estado,
sobretudo do Sistema de Segurança Pública.
O debate girou em torno do racismo religioso e do respeito a diversidade e proporcionou
a instalação do Comitê Estadual de Respeito à Diversidade Religiosa que visava fomentar a

137
Entrevista concedida por CARDOSO, Maiume Mayara Jamacaru. Entrevista III [maio 2019]. Entrevistadora
Patrícia Moreira Perdigão. Marituba, 2019. Arquivo .mp3 (1h18min).
115

liberdade religiosa e garantir a laicidade do Estado frente ao crescimento dos casos de denúncias
de crime de intolerância religiosa.
O que foi apontado acima, mostra que Banjo deixou a vida terrena para endossar e
fortalecer a bandeira de luta dos movimentos sociais antirracismo religioso. Todavia, não é o
único ponto de eternização de sua memória. Após a sua morte, alguns religiosos paraenses
afirmam que ele foi assentado como Babaegum138 na cidade de Recife. Houve um jogo de
búzios que definiu os detalhes do ritual e as pessoas que participariam. De Belém, viajaram
apenas sua última companheira e seu filho Íkaro. Por ser um ritual secreto poucos dados sobre
esse processo foram repassados.
Para finalizar ressalto que este trabalho pretende ser o primeiro texto de outros artigos
biográficos sobre pessoas importantes dentro do candomblé que não ocupam posições centrais
na hierarquia, mas estão em cargos periféricos do ponto de vista da estrutura de poder dentro
dos terreiros. Essas pessoas possuem fundamental importância para o funcionamento do
candomblé. O Pará possui equedis, ogans, axoguns, produtores de ferros sagrados, artífices de
tambor, vendedores de ervas e animais, sem os quais a religião não existe. Eles geralmente
transitam entre as casas e as nações acessando uma rede de relações infinita e constroem uma
memória invisível do candomblé. Pessoas, na maioria das vezes, preteridas pelas pesquisas
acadêmicas. Finalizo dizendo ser necessário contar essa “história vista de baixo” que está dentro
da “história vista de baixo” que é a do próprio povo negro no Brasil.

138 São espíritos de antepassados evocados nos terreiros de candomblé. Ancestral assentado e cultuado como
entidade que tem a incumbência de zelar e proteger a comunidade do terreiro.
116

6. REFERÊNCIAS

AMARAL, Rita. Xirê!: o modo de crer e de viver no candomblé. São Paulo: EDUC, 2002. 119
p.

AUGRAS, Monique. Zé Pelintra, patrono da malandragem. Revista do Patrimônio, n.25,


p.43-50, 1997.

BARROS, José Flávio Pessoa de. A Fogueira de Xangô, o orixá do fogo: Uma introdução à
música sacra afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.

BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J.; FERREIRA, M. de M. (Orgs.). Usos
e abusos da história oral. Trad. Glória Rodríguez, Luiz Alberto Monjardim, Maria Magalhães
e Maria Carlota Gomes. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. p. 183-191.

______. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

BONI, Valdete; QUARESMA, Sílvia. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em


Ciências Sociais. Revista Eletrônica dos Pós-Graduandos em Sociologia Política da UFSC. v.
2, n. 1 (3), janeiro-julho/2005, p. 68-80.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3 ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.

CACCIATORE, Olga. Dicionário de cultos afro-brasileiros. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 1988.

CAMPELO, Marilu. Relatório de Pesquisa I: Candomblés de Belém – O povo-de-santo reconta


a sua história. 2001. Belém: Departamento de Antropologia, Universidade Federal do Pará.

_____. Recontando uma história: a formação e a expansão do Candomblé paraense. In:


MAUÉS, Heraldo; VILLACORTA, Gisela (orgs.). Pajelanças e Religiões Africanas na
Amazônia. Belém: EDUFPA, 2008, p. 259-271.

_____. Pembele à nação angola. Memórias, histórias e construção do mundo mágico-religioso


do Candomblé Angola em Belém (PA). REUNIÃO EQUATORIAL DE ANTROPOLOGIA,
4.; REUNIÃO DE ANTROÓLOGOS DO NORTE E NORDESTE, 13., 2013. Fortaleza. Anais
eletrônicos... Fortaleza, 2013. Disponível em:
http://ienciaparaeducacao.org/eng/publicacao/campelo-m-m-pembele-a-nacao-angola-
memoriashistorias-e-construcao-do-mundo-magico-religioso-do-candomble-angola-em-
belem-pa-in-ivreuniao-equatorial-de-antropologia-xiii-reuniao-de-antrop/. Acesso 09 nov.
2020.

CASTILLO, Lisa Earl. Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos candomblés da Bahia.
Salvador, EDUFBA, 2010.
117

CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: A experiência etnográfica:


antropologia e literatura no século XX. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.

DANTAS, Beatriz Gois. Vovó nagô, papai branco: Usos e abusos da África no Brasil.
Dissertação de Mestrado Unicamp

– Campinas, 1982.

FURUYA, Yoshiaki. Entre nagoização e umbandização: Uma síntese no culto mina-nagô de


Belém. Brasil. Annals 6, Tóquio, Universidade de Tóquio, 1986.

GEERTZ, Clifford. Por uma teoria interpretativa da cultura. In: A interpretação das culturas.
l.ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

GONÇALVES, Marco. Etnobiografia: biografia e etnografia ou como se encontram pessoas e


personagens. In: GONÇALVES, M. A.; CARDOSO, V.; MARQUES, R.
(Org.). Etnobiografia: subjetividade e etnografia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012. p. 12-37.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990.

HALL, Stuart; CERNICCHIARO, Ana Carolina (Trad). Etnicidade: identidade e diferença.


Crítica Cultural – Critic, Palhoça, SC, v. 11, n. 2, p. 317-327, jul./dez. 2016. Disponível em:
file:///C:/Users/user/Desktop/PPGCR/Refer%C3%AAncias/ETNICIDADE%20IDENTIDAD
E%20E%20DIFEREN%C3%87A.pdf. Acessado em: 26 de Jun. de 2021.

INSTITUTO NANGETU. Entrevista com Nego Banjo. Blog Overblog. Belém, 11 set. 2008.
Disponível em: http://www.overmundo.com.br/overblog/entrevista-com-nego-Banjo. Acesso
em: 20 jun. 2020.

LUCA, Taissa de. Revisitando o tambor das flores: a Federação Espírita e Umbandista dos
cultos afro-brasileiros do Estado do Pará como guardiã de uma tradição. 2003. Dissertação
(Mestrado em Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife. Disponível em:
https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/732/1/arquivo4670_1.pdf. Acessado em: 21 de
Mar. de 2021.

LUCA, Taissa de. O campo religioso afro-brasileiro em Belém do Pará: uma disputa entre
instituições. In: MAUÉS, Heraldo; VILLACORTA, Gisela (orgs.). Pajelanças e Religiões
Africanas na Amazônia. Belém: EDUFPA, 2008, p. 273-305.

MATOS, Denis Alex Barboza de. A Casa do “Velho”: o significado da matéria no candomblé.
2017. Dissertação (Mestrado em Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal
da Bahia, Salvador. Disponível em: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/25818. Acessado em:
06 de Dez. de 2020.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

NETO, José Luiz Moreno Neto. O cuidado nos candomblés jeje savalu. 2017. Tese
(Doutorado em Antropologia) – Programa de Pós-graduação em Antropologia, Universidade
Federal da Bahia, Salvador. Disponível em:
118

https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalh
oConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=6033374. Acessado em: 16 de Jul. de 2020.

OS HOMENS QUE CHAMAM OS DEUSES PRA TERRA, Jornal A Tarde. Salvador, 20 de


Nov. 2012. Especial Consciência Negra. Disponível em:
http://fw.atarde.uol.com.br/2012/11/1292600.pdf. Acessado em 12 de Nov. de 2020.

PERDIGÃO, Patrícia. O Candomblé em Cima do Muro: reafricanização ou ressignificação?.


2012. Monografia (Graduação em Ciências da Religião) - Centro de Ciências Sociais e
Educação, Universidade do Estado do Pará, Belém.

PIMENTEL, Marcelo. Àwon Orin S’Àwon Ìmonlè/ Àwon Orin S’Àwon Òrìsà Funfun. Centro
de Estudos da Cultura Afro-brasileira Olóomi L’Àiyé (CECAO). Belém, [200-], 36 p.

_____. Nbo Àwon Òrìsà. Centro de Estudos da Cultura Afro-brasileira Olóomi L’Àiyé
(CECAO). Belém, [200-], 06 p.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro,


vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

_____. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992,
p. 200-212.

RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Virtual do Centro


Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010.

SANTOS, Nívea dos. Entre ventos e tempestades: os caminhos de uma gaiaku de Oiá.
Dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em Estudos Étnicos E Africanos.
Salvador: UFBA, 2013.

SILVA, Vagner. O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográfico nas
pesquisas antropológicas sobre religiões afro-brasileiras. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2015.

SIMMEL, Georg. A natureza sociológica do conflito. In: MORAES FILHO, Evaristo (org.).
Simmel, São Paulo, Ática, 1983, p. 122-134.

SOUSA, Sônia Maria Quaresma Paiva de. Tenda Miry Santo Expedito: Uma notícia histórica
sobre a umbanda na cidade de Belém (PA). 2013. Dissertação (Mestrado em Ciência da
Religião) – Programa de pós-graduação em Ciências da Religião, Universidade do Estado do
Pará, Belém. Disponível em: https://docplayer.com.br/26873011-Universidade-do-estado-do-
para-centro-de-ciencias-sociais-e-educacao-programa-de-pos-graduacao-em-ciencias-da-
religiao.html. Acessado em: 27 de Jun. de 2021.

VERGARA, Miguel. Da Bahia à baianidade. Especiaria - Cadernos de Ciências Humanas.


Ilhéus, v. 17, n. 31, jun./dez. 2017, p. 87-109.

VERGOLINO, Anaíza. O Tambor das Flores: Uma análise da Federação Espírita,


Umbandista e dos Cultos Afro-brasileiros do Pará. 1 ed. Belém: Pakatatu, 2015. 320 p.
119

WEBER, M. Conceitos sociológicos fundamentais. In: Economia e Sociedade: Fundamentos


da sociologia compreensiva. Parte 1. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. 5 ed.
Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1991.

Você também pode gostar