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Belém
2023
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Belém
2023
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
Biblioteca do CCSE/UEPA, Belém - PA
Costa, Keydson Emanuel Garcia
Os mitos africanos na experiência de um Griot: a utilização da mitologia
iorubana na prática educacional /Keydson Emanuel Garcia Costa; orientação
de Leif Erickson Grunewald. - Belém, 2023.
Banca Examinadora:
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Belém
2023
Dedico esse trabalho a Deus por
me manter vivo, mesmo tendo
passado por uma experiência tão
profunda de quase morte. A luta
perene do combate ao racismo. A
ancestralidade africana presente
nos saberes das religiões negras.
AGRADECIMENTOS
EMICIDA
RESUMO
Uma etnobiografia da história de vida de um jovem negro que teve como formação
moral uma visão colonizadora a partir dos princípios cristãos pentecostais presentes
em sua vida familiar e religiosa. A colonização sociorreligiosa só é compreendida
quando o pesquisador, que narra suas histórias, percebe que não consegue se
aproximar das religiões de matriz africana, em consequência do racismo religioso
predominante em nossa sociedade, capaz de impedir com que as pessoas se
aproximem do universo simbólico das religiões negras, em função do medo imposto
pela visão hegemônica cristã ocidental que traduz as religiões como candomblé e
umbanda como uma prática do mal, algo primitivo ou inferior. Depois de reconhecer o
racismo entranhado em sua formação psicossocial e religiosa o autor passa a buscar
formas de romper essa estrutura, procurando maneiras de descolonizar seu olhar
enquanto pessoa negra e educador. O autor, que é um contador de histórias, formado
pelo grupo Griot de contadores de histórias da Universidade do Estado do Pará, passa
a utilizar os mitos iorubanos como pauta para suas contações de histórias, ao observar
os resultados obtidos com sua prática de contar os mitos dos Orixás, ele transforma
essa prática em uma oficina e passa a difundi-la pelo país através de uma oficina
denominada de “Universo das histórias africanas” dentro do projeto “Arte da Palavra”,
desenvolvido pelo sistema SESC. Como análise do seu trabalho de formação, ele
apresenta os resultados da oficina por meio de relatos feitos pelos participantes que
responderam um questionário referente a participação na oficina, bem como a visão
de cada um frente aos resultados alcançados durante sua realização. Os principais
temas discutidos no corpo do trabalho são: ancestralidade, memória, identidade e
racismo religioso. Todas as discussões são feitas com referências diretas a Frantz
Fanon, construindo assim uma relação com o conceito de decolonialismo,
demonstrando como a versão eurocêntrica de mundo, por meio de uma lógica cristã
dominadora, impediu e ainda impede que as pessoas possam acessar as memórias
negras presentes nas tradições religiosas afrocentradas, por demonizarem suas
teogonias e traduzirem de forma desqualificada seus ritos e práticas.
An ethnobiography of the life history of a young black man whose moral formation was
a colonizing view from the Pentecostal Christian principles present in his family and
religious life. Socio -religious colonization is only understood when the researcher, who
tells his stories, realizes that he cannot approach the religions of African matrix, as a
result of predominant religious racism in our society, capable of preventing people from
approaching the symbolic universe of Black religions, due to the fear imposed by the
Western Christian hegemonic view that translates religions such as candomblé and
umbanda as a paractice of evil, something primitive or inferior. After recognizing racism
ingrained in his psychosocial and religious formation, the author becomes ways to
break this structure, seeking ways to decolonize his gaze as a black person and
educator. The author, who is a storyteller, formed by the Grot Grot of History
Accountants of the State University of Pará, starts to use Yoruban myths as an agenda
for his storytelling, observing the results obtained with his paractice of counting the
paractice myths of the orishas. It transforms this paractice into a workshop and spreads
it across the country through a workshop called the “universe of African stories” within
the project “Art of the Word”, developed by the Sesc System. As an analysis of his
training work he presents the workshop results through reports made by the
participants who answered a questionnaire regarding participation in the workshop, as
well as their view of the results achieved during their realization. The main topics
discussed in the body of labor are: ancestry, memory, identity, religious racism. All
discussions are made with direct references to Frantz Fanon, thus building a
relationship with the concept of decolonialism, demonstrating how the Eurocentric
version of the world, through a dominating Christian logic, has prevented and still
prevents people from accessing black memories present in African religious traditions,
for demonize their theogonies and disqualified their rites and paractices in a
disqualified way.
Nada facilita mais a memorização das narrativas que a quela sóbria concisão
que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalização com que o
narrador renuncia as sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se
gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua
própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá a inclinação de
reconta-la um dia. (BENJAMIM, 1987. p. 204)
1 GRIOT é um grupo de contadores de história coordenado pela professora Renilda Bastos, o grupo
estava vinculado a Universidade do Estado do Pará como projeto de extensão e tinha como principais
integrantes as alunas do curso de formação de professores que ofertado pela universidade. (SANTANA,
2015. p. 13).
com as quais tivéssemos uma profunda relação de empatia, uma profunda conexão a
ponto de nos sentirmos capazes de apresentar com o sentimento pretendido pelo
autor ou com o sentimento que ele suscitasse em nós. Procurávamos integrar texto e
corporeidade de forma que nossos corpos e mentes atuassem na ação interpretativa.
A prática de contar histórias me levou por caminhos que não eram
pretendidos, “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte que recorrem os
narradores” (BENJAMIN, 1987. p. 198). Como experimentei um conhecimento que
desconstruiu o olhar preconceituoso que haviam imposto na infância - vivenciada em
uma cultura pentecostal – acerca das religiões de matrizes africanas, passei a me
utilizar do sentimento de respeito e valorização da cultura negra como ação social na
tentativa de desconstruir noções coloniais imputadas no imaginário da infância e
juventude negra pelo processo de opressão social ou pelo mito da democracia racial
(FREYRE, 2006). Sendo assim fiz do uso de minha prática de contação de histórias,
ação política tanto em espaços ligados a arte quanto dentro de sala de aula, como
recurso pedagógico.
Construí uma proposta de trabalho pautada de contar histórias como base
metodológica de linguagem de interpretação da mitologia africana presente nos
terreiros de candomblé Keto possibilitando uma leitura que favorecesse a
desconstrução do racismo religioso direcionado a essas manifestações religiosas
dentro do nosso país.
Ainda sobre a orientação da professora Taissa Tavernad, construí o projeto
e passei pela primeira qualificação do PPGCR, todavia, por motivos pessoais, a
professora não pôde mais me orientar e em seguida pediu afastamento do programa.
Sem orientador, fui direcionado ao Professor Dr. Hélio Neto, que por ser antropólogo
e integrar a linha de pesquisa de linguagens da religião, a qual estava vinculado,
assumiu o direcionamento deste trabalho. No entanto, meses depois, o referido
professor também pediu para se retirar do programa me deixando mais uma vez sem
orientação. Só em agosto de 2022 fui agregado ao grupo de orientandos do professor
Dr. Leif Erickson Grunewald, o que me levou a adaptar novamente essa pesquisa.
Sob a orientação do professor Leif qualifiquei a proposta de uma
etnobiografia como caminho para transcrever minhas memórias acerca da minha
história de vida, de forma a refletir sobre as mudanças pelas quais meu pertencimento
passou ao longo das diferentes fases da minha vida. Para tal fiz uso da noção de
etnobiografia desenvolvida por Gonçalves (2012), segundo a qual:
A memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado.
Á memória é, em parte, herdada, não se refere apenas a vida física da
pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento em
que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do
momento constituem um elemento de estruturação da memória (POLLAK,
1992. p. 204).
Dialogar com Fanon (2008), irá nos orientar para onde olhar, mostrando
como somos repetidores de uma noção de mundo que não nos abraça em nossa
pluralidade de possibilidades e, ao invés de combatermos essa versão castrante de
nós mesmos, a reproduzimos e naturalizamos como se ela fosse única e, portanto,
universal. Refletimos uma humanidade construída pela identidade branca ocidental.
divulgação de novos autores, além de valorizar obras e escritores brasileiros e as novas formas de
produção e fruição literária. Com um circuito de autores e outro de apresentações que privilegiam a
oralidade, pretende-se que diversas possibilidades de manifestações literárias sejam contempladas.
Como ação de complemento formativo, é oferecido também um circuito voltado para a reflexão e
criação literária. Em curadoria coletiva, realizada por especialistas do Sesc de todo o país, são
selecionados os artistas que participam do projeto.
CAPÍTULO I - A ETNOBIOGRAFIA DE UM JOVEM CRISTÃO PENTECOSTAL
Como já disse antes, minhas análises pessoais, pelo menos, nos dois
capítulos seguintes, se constroem a partir da observação de eventos pertinentes a
minha trajetória familiar, assim sendo, parto dessa individualidade para apresentar
algo que considero uma perspectiva de realidade sociocultural mais ampla. As
imagens que pretendo produzir corroboram para um imaginário que simboliza a
construção sociorreligiosa de um indivíduo dentro de uma horizontalização específica
que está diretamente ligada a uma educação judaico-cristã enquadrada por uma
tradição pentecostal4 tradicional.
4Igreja Pentecostal é um movimento cristão protestante que dá grande relevo ao Dia de Pentecostes e
que apresenta algumas diferenças em comparação com outras denominações.
O movimento pentecostal começou em 1906, em Los Angeles, quando William J. Seymour pregou,
dando origem ao Avivamento da Rua Azusa. Os elementos da Igreja Pentecostal consideram o batismo
no Espírito Santo essencial no caminho da salvação. O batismo no Espírito é um fenômeno carismático
caracterizado pela glossolalia, conhecido como dom de línguas (1 Coríntios 12:10).
O pentacostalismo se propagou muito rapidamente nos Estados Unidos através da Church of God in
Christ, e evoluiu bastante principalmente dentro da comunidade afro-descendente. Além disso, as
Assembleias de Deus ficaram muito populares no Chile, Brasil, Indonésia e África do Sul. A partir de
1945 foram organizadas grandes missões populares, onde pregadores utilizavam recursos técnicos
avançados. Muitas dessas igrejas marcam presença na Conferência Mundial Pentecostal, que
acontece a cada três anos desde 1949 em diferente cidades do mundo.
As autoimagens promovidas aqui têm intencionalidade direta, não são
recobradas pelos simples fatos de existirem. Esse trabalho não se trata de uma
biografia, onde há o interesse de valorizar a potência da individualidade, como
apresentado por Alberti (1991): “duas noções de indivíduo: o ser empírico, membro
da espécie humana, encontrado em todas as sociedades, e o indivíduo como "valor",
sustentado pelos ideais de liberdade e igualdade próprios a modernidade.” Não existe
intenção de mostrar o valor do indivíduo frente aos acontecimentos descritos. Não se
trata exclusivamente da descrição de eventos para tornar pública minha pessoalidade,
como seria comum a uma biografia.
A proposta não é o indivíduo como centro, mas os eventos que se
desenrolam na construção dessa pessoalidade como referência para uma análise
sociocultural e religiosa incrustada nessas narrativas. Como uma religião pode e vai
influenciar a construção de uma visão de mundo frente à diversidade de olhares
existentes dentro do constructo social no qual se desenvolve esse indivíduo.
Como indivíduo, suas referências pessoais são direcionadas para uma
leitura de mundo específica e determinada por suas singularidades. Como
mencionado outrora, o fato de se tratar de um jovem negro, de periferia, com uma
formação cristã pentecostal irá balizar uma análise etnográfica onde tais elementos
se fazem relevantes para o entendimento e determinação do trato referente a
colonização do olhar dentro de uma realidade que dá significado a sua forma de ver e
interagir com a religião, com sua pessoalidade étnica, com os demais indivíduos e
manifestações religiosas existentes em seu universo ontológico.
No caminhar da construção da narrativa estabeleço um diálogo com as
experiências para além do espaço familiar e religioso, o que etnobigraficamente é uma
maneira de refletir a esfera social e educacional, onde a construção sobre a identidade
étnica é feita no imaginário infantil, ratificando os estereótipos pensados pela lógica
europeia supremacista branca na qual o destaque a superioridade branca de ver e
interpretar o mundo são utilizadas na reafirmação do quanto a branquitude é superior
e tudo o que envolve a pessoa negra está ligado ao primitivo, ao inferior, ao
demonizado e, portanto, deve ser negado.
O termo pentecostal tem origem na palavra Pentecostes, que é uma festa cristã que ocorre 50 dias
depois da Páscoa, encerrando o ciclo das festas. Comemora a descida do Espírito Santo sobre os
apóstolos, onde surgiram "línguas de fogo" sobre a cabeça dos apóstolos, sendo que as pessoas que
receberam o Espírito Santo começaram a falar em línguas. Este episódio é descrito em Atos dos
Apóstolos 2:1-13.
É indispensável destacar a relevância da individualidade como linguagem
para o entendimento do social. Minha etnobiografia busca seguir as mesmas
preocupações depositadas sobre o tema, como assim o fez Gonçalves ao dizer:
Por mais que minha narrativa seja pessoal, ela reflete e discute um esforço
social em produzir uma determinada visão impressa na minha vida, a partir do
conjunto cultural de saberes que me integraram ao convívio social. A família, a igreja
e a escola são expressões do empenho que o mundo ocidental emprega na imposição
da sua lógica própria aos indivíduos que este alcança. Seguindo o raciocínio de Pollak
(1989), de que a memória é um esforço coletivo, minha intenção é converter as
expressões desses esforços em dizer como as minhas memórias me levaram a ler e
interagir com o mundo, buscando me tornar um reprodutor de máximas sociais de
aceitação da minha condição étnica, a partir do estabelecido, sem questionar ou
refletir o que a mim estava sendo imposto, destacando os motivos e as formas de
como isso é feito.
A memória é o recorte pessoal que irá dialogar com a versão social. Trata-
se de uma construção social feita a partir do presente. É minha visão de mundo da
atualidade que norteia a construção narrativa da minha memória. A sociedade
estruturada busca manter seu status, suas fronteiras, sua coesão, assim como afirma
Pollak (1989), que nessa busca ela irá deixar claro também suas oposições, aquilo
que o amedronta e pode ser nocivo aos seus pertencentes. A memória religiosa,
oriunda dos ensinamentos teológicos reforçam a ideia de bem e mal, constroem as
sombras que alimentam os medos da civilização ocidental, dá cores e formas as suas
representações, e como bem traduz Fanon (2008), o bem é branco e o mal tem a cor
da noite. É sobre esse imaginário direcionado às referências negras que pretendo
discorrer nos recortes da memória que iremos fazer.
Comecemos então a observar as etapas dessa construção pessoal,
arquitetando uma trajetória que favoreça o entendimento do leitor e possibilite a
compreensão das proposições aqui já mencionadas. Irei dar início a narrativa de
eventos que manifestam minha pessoalidade e descrevem o modo de atuar da
sociedade brasileira ao cultivar em sua população uma determinada leitura da
realidade; e como trato de um caso específico, a partir de um contexto cristã-
pentecostal dentro de um segmento socioeconômico de vulnerabilidade.
A explosão não vai acontecer hoje. Ainda é muito cedo... ou tarde demais.
Não venho armado de verdades decisivas.
Minha consciência não é dotada de fulgurâncias essenciais.
Entretanto, com toda a serenidade, penso que é bom que certas coisas sejam
ditas.
Essas coisas, vou dizê-las, não gritá-las. Pois há muito tempo que o grito não
faz mais parte de minha vida.
Faz tanto tempo...
(FANON, 2008. p. 25)
Iniciarei trazendo as memórias dos meus pais, aquilo que me foi dito sobre
um período que antecede minha própria existência e que são heranças de relatos
familiares; daquelas histórias que norteiam desde a minha preconcepção até minha
concepção. Nesse tópico pretendo ir até o momento em que começo a ter consciência
das minhas atitudes e passo a tomar minhas próprias decisões, todavia, se faz
necessário localizar como se deu minha constituição familiar.
Assim como Fanon (2008), diz na citação acima, sei que o mundo não vai
mudar de uma hora para outra, porém, é importante dar início ao seu processo de
transformação e, a meu ver, ele começa por nós. Com serenidade no olhar e na forma
de ver e interpretar o mundo, pretendo dizer através de uma narrativa simples o que
estudo e produzo por meio de imagens que estabeleço a partir da minha própria
experiência de vida.
A intenção desse trabalho é traduzir minha história de vida, em linhas que
promovam o diálogo, sem atacar ou ofender a fé de qualquer pessoa. A proposta é
qualificar uma leitura respeitosa do outro e do próprio indivíduo sobre si. É um desafio
que espero dar início nesse texto, demonstrando que através do diálogo e de uma
cosmovisão antirracista, através de uma análise crítica da história de vida de um
indivíduo, é possível caminhar na direção de um ambiente acadêmico e religioso
capaz de perceber na ancestralidade negra os elementos positivos inerentes a ela e
manifestos na história do povo brasileiro.
1.1.1. A Origem Materna
Minha mãe é uma mulher baiana, nascida na cidade de Ilhéus, mas viveu
sua infância e início da adolescência na cidade de São Paulo, local a que ela se
referência até hoje com grande saudosismo e sempre visita pelo prazer de reconhecer
lá seu lugar de satisfação. Suas memórias afetivas fraternas são respaldadas na maior
megalópole brasileira, considerada o centro econômico do país. Nesta cidade, ela
encontra grande parte dos seus familiares, que passaram a firmar residência por
vários bairros da capital e no entorno paulista.
Nos Estados da Bahia e de São Paulo sua família (meus avós e tios)
frequentam a igreja católica e se autodeclaram católicos, entretanto, ela conta que
seus pais também frequentavam “terreiros de macumba”, termo que ela utiliza para
identificar as religiões de matriz africana.
Sua família se muda para Belém do Pará no ano de 1979. Já na cidade
Belém, ainda jovem, converte-se a fé cristã-pentecostal, na igreja Assembleia de
Deus5. Ela, agora, uma jovem recém-convertida ao protestantismo, busca encontrar
esperança para si, mãe e irmãos, através da fé em um Deus que tudo poder fazer por
ela. Ela se agarra a essa esperança e passa a direcionar sua vida através de sua
crença. Minha mãe, então passa a acreditar que por meio da igreja e da observação
diária das verdades bíblicas, poderá ter uma realidade melhor a qual estava
habituada.
À época da conversão, ela ainda morava com seus pais, que condenaram
veementemente a troca religiosa. Sua mãe (minha avó) respeitou sua opção, mas seu
pai (meu avô) promove uma resistência profunda a escolha da filha e passa a
persegui-la. Nas noites em que meu avô está mais alcoolizado, ele não só fala e
reclama, mas também a agride, dando-lhe surras e dizendo que não quer ter uma filha
“crente”.
Minha mãe sofre o enfrentamento familiar pela fé que abraça e passa
acreditar que escolheu o melhor caminho a seguir, ela enxerga na fé cristã um
5 Igreja Evangélica Assembleia de Deus é uma denominação cristã protestante pentecostal no Brasil,
fundada em 1911 na cidade de Belém do Pará, pelos sueco-americanos Gunnar Vingren e Daniel Berg.
Esta sendo a primeira igreja nacional das Assembleias de Deus, antes mesmo de sua coirmã as
Assembleias de Deus nos EUA, principal percursora mundial. Em 2011 estimava-se que a
denominação tinha 22,5 milhões de membros no Brasil e 280 milhões de membros no mundo, sendo
então a maior denominação pentecostal.
caminho que irá conduzir sua vida a salvação espiritual, ao céu, tão almejado pelos
cristãos. Ela estabelece isso como meta de vida inserida em uma religiosidade muito
perene, trilhando uma jornada que irá direcionar suas escolhas futuras. E lê a situação
familiar desconfortável como provação de sua perseverança.
Nesse tempo minha mãe trabalhava na maior feira a céu aberto da América
Latina, o Ver-o-Peso. Ela, junto com a mãe, o pai e os irmãos, se revezavam para
manter o empreendimento aberto 24h, uma barraca de lanche localizada na avenida
Portugal. Alternando-se em turnos, a jovem ainda estudava, e dentro do ambiente
escolar conheceu e começou a namorar meu pai. Ao iniciar o namoro ela estabeleceu
uma condição, ele precisaria se converter a mesma fé por ela professada, o que
aconteceu, segundo o relato de ambos.
Já nesse ponto quero demonstrar o que Fanon (2008), chama de antinomia
não percebida pela pessoa negra ao buscar referências brancas por ele observadas
enquanto tal, essas referências podem ser de cunho religioso, ascensão profissional,
estratégias de casamento interétnicos, busca de branqueamento estético etc. O
conflito está em reconhecer e valorizar sua identidade cristã mesmo ela reforçando
estereótipos que leiam a origem negra de maneira depreciativa. A leitura cristã da
realidade social provoca negação da identidade negra na comunidade afro-diaspórica,
que passa a rejeitar características físicas e culturais que sustentem a origem africana.
Demonstrarei essa identificação simbólica considerada que exerce grande resistência
a identidade negra, pelo de ser construída a partir de uma visão de mundo
embranquecida. Esse é o motivo da antinomia, vejamos:
Não pretendo aqui fazer críticas tão duras quanto as que faz Fanon (2008,
p. 26), em sua análise afirmando que “descemos a verdadeiros infernos”, mas, mostrar
que essa antinomia ligada as escolhas feitas, as paixões, nos força a aceitar e
reproduzir discursos criados sobre a pessoa negra, onde o ápice do amor visto na
divindade cristã não discute a necessidade de suplantar e atacar a memória negra,
assumindo um discurso que combate e não dialoga com a ancestralidade africana,
tornando o negro inimigos de sua própria origem. Esse conflito talvez se materialize,
na relação pai e filha, vivenciada por minha mãe e avô, sobretudo ao lembrar que o
maior polo de sociabilidade negra, durante todo o período colonial e imperial, foram
as irmandades religiosas dos homens de cor. Nunca vi meu avô falar em ir a um
terreiro, nem se identificar com alguma religião de matriz africana, mas lembro das
guias de contas vermelhas e brancas (cor de identificação do orixá Xangô) em seu
peito, que ele gostava de expor com sua camisa aberta, e sobre a qual havia o tabu
de pôr a mão quando ele dizia: “isso é coisa do vô, não pode colocar a mão não, meu
filho”. Também lembro da sua devoção a São Jorge que era cultuado em uma imagem
exposta numa parateleira de seu estabelecimento comercial (birosca) como forma de
proteção.
As referências negras baianas nunca foram um destaque na identidade da
minha mãe, ouvi pouco falar da época que ela ainda morava na Bahia e da
religiosidade praticada lá. Esses elementos sempre foram negados como referência
na nossa construção identitária por um motivo, eles são vistos de maneira pejorativa,
depreciativa. Minha mãe só citou a relação dos meus avós com as religiões de matriz
africana como referência, que eu lembre, durante a minha pesquisa para produção
deste trabalho, quando eu insisti em obter informações sobre esse passado em Ilhéus.
Referiu-se ao terreiro que sua avó frequentava na Bahia, de forma lacônica e colocou
o acento da narrativa no processo de conversão da mesma antes de sua morte
quando sua avó “aceitou Jesus como seu único salvador”, negando de forma
veemente, “os falsos deuses” que ela acreditava (referência as divindades africanas).
Nesse único relato feito por minha mãe ela declara de maneira repetida, que a idolatria
a esses falsos deuses é um pecado e que eu mesmo devo me afastar, “pois o único
e verdadeiro Deus é o nosso senhor Jesus Cristo”, discurso que ela profere como se
quisesse exorcizar sua memória sobre isso e tentar me salvar do mau que o contato
com essa informação possa vir a me causar.
Os termos utilizados no discurso são todos pejorativos, a exemplo de
macumba, mau, demônio, satanás, diabo, magia, dentre outros; tais termos sempre
estiveram presentes nos discursos a mim apresentados por ela, em função da noção
assumida sobre a religiosidade negra entendida como ligada a tudo que é negativo.
Esse recorte da memória que tenta, a todo custo invisibilizar, o contato com a afro-
religiosidade, é consequência de uma formação religiosa refletida a partir da visão de
mundo que assumiu, das experiências que diz ter tido ao longo de sua vida dentro da
igreja, nas orações realizadas e no trabalho voluntário. Ela sempre afirma que as
pessoas que vivem a fé “nessas coisas, nesses deuses, vivem oprimidas, pois só
quem liberta é Deus”.
É importante salientar nesse momento, que toda essa descrição é relevante
para que o leitor entenda a profundidade da religião na construção da minha família,
como ela está presente em seu imaginário e como é parte de um processo de
branqueamento cultural. Essas são histórias contadas em diversos momentos e irão
reforçar a visão religiosa, moral e social estabelecida entre nós. Não existem histórias
familiares sem que a religião não esteja direta ou indiretamente ligada, ora como pano
de fundo, ora como base central.
Acredito que de maneira educativa e consciente, minha mãe faz um esforço
constante de reforçar os marcos morais e religiosos norteadores de sua vida para
guiar seus filhos no trajeto que ela julga meio de salvação. Sua orientação é forjada
nos valores religiosos adquiridos pela fé cristã e enfatizam o que Pollak (1989, p. 9),
também traduz como sua preocupação da memória ao dizer que: “Recusar levar a
sério o imperativo de justificação sobre o qual repousa a possibilidade de coordenação
das condutas humanas significa admitir o reino da injustiça e da violência”.
Sobre isso penso estarem pautadas as considerações e repetições feitas
por minha mãe, uma tentativa constante de preservar de toda externalidade maldosa
aquilo que possa afetar os seus. Ela, no entanto, não avalia as consequências étnicas
de suas ações. Suas preocupações são objetivas, estão no plano material da
sobrevivência, e sobre isso observamos sem fazer um juízo moral academicista
inconsequente.
Meu pai é também filho de retirantes nordestinos que migraram para o Pará
em busca de melhores condições de vida. Sua família, no entanto, veio do interior do
Maranhão, Estado com grande quantitativo de população negra, que se destaca no
Brasil, por ser o maior em número de comunidades remanescentes de quilombo,
demarcadas e tituladas pelo Estado. Seus parentes já estavam estabelecidos a mais
tempo no Estado, a ponto do meu pai, caçula de cinco irmãos, ter nascido já no Pará,
na cidade de Belém.
Meus avós eram comerciantes, possuíam algumas lojas no centro
comercial, detinham boas relações sociais e, na época, algumas posses que davam
a aparência de certa estabilidade. Meu pai se considera “um homem pardo”, e era filho
de uma mulher negra, apesar de ninguém a considerar como tal. Como estratégia de
fugir da identidade negra, minha família aderiu ao padrão de mestiçagem sustentado
como tipo ideal (WEBER, 1999), de povo brasileiro construído a partir das décadas de
vinte e trinta, quando a intelectualidade nacional, sobretudo ligada ao movimento
modernista e a teoria de Freyre (2006), passaram a pensar o Brasil como uma
democracia racial sustentada na mestiçagem e da antropofagia. Para eles era
considerado como negro, apenas quem possuía derme mais escura, vulgarmente
chamado, em meu núcleo familiar, de “preto retinto”.
A mistura foi a estratégia que meus familiares, assim como grande parte do
povo brasileiro, encontrou de apagar sua origem afro-indígena. Minha bisavó era
nascida em aldeia indígena desconhecida e à minha família, também não interessava
sustentar, como pontos de referência da memória, a ancestralidade indígena,
corriqueiramente tratada como “gente preguiçosa”. Como as ascendentes femininas
não eram “retintas” ou possuíam fortes traços indígenas, recebiam a confortável
alcunha de “morena”, termo não considerado pejorativo no seio familiar.
Meu avô era um homem que também se considerava pardo, mas que por
vezes se descrevia como branco, principalmente por não possuir o cabelo crespo. Ele
também apresentava traços fenotípicos de origem indígena e dizia ter “raiva de
pretos”, raiva essa que era justificada em razão de relações pretéritas baseadas em
desavenças e desilusões com pessoas desta cor. Baseado nisso, produzia
generalizações pejorativas e racistas dirigidas a toda população negra.
Apesar de ter sua cor negada pelo marido, minha avó paterna se
considerava uma mulher negra, e possuía irmãos e irmãs que eram mais retintos. Ela
considerava as falas racistas de meu avô, seu esposo, como “ignorância” e falta de
conhecimento, já que o mesmo “era uma pessoa semianalfabeta” e “mal sabia
escrever o próprio nome”.
Diante do exposto, gostaria de destacar dois elementos. Primeiro que o
racismo em minha família é relacional (DA MATTA, 1997), uma vez que mesmo
odiando negros e sustentando uma postura racista, meu avô casou-se com uma
negra. Talvez seu imaginário se sustente na ideia, muito corrente na sociedade
nacional e respaldada pela academia através dos escritos de Freyre (2006), de que a
mulher negra era vista de forma sexualizada pela elite branca ou que se julgava
enquanto tal. Ainda assim para fugir de sua incoerência, meu avô embranqueceu a
identidade étnico-racial de sua mulher.
Outro elemento a ser destacado são as estratégias que uma família negra
usa para amealhar capital simbólico e fugir dos estigmas. Quem se reconhecia como
negro, empoderava-se pelo acesso a escrita e aos conhecimentos, altamente
valorizados pela sociedade ocidental. Aquele que era considerado analfabeto,
sustentava a cor e a condição social remediada, como forma de valoração.
Empoderando-se através de seu racismo como mecanismo de superioridade diante
de quem tinha a mesma condição social acrescido do acesso às letras. Parece que
esse sistema de afirmação de si e negação do outro eram tentativas de fuga a uma
realidade única, a ascendência afro-indígena e o pertencimento a classe baixa ou
média baixa.
Seja como for, a branquidade era uma condição almejada pela maioria que
criava estratégias de galgá-la seja pela ascendência social, seja pelo orgulho de não
possuir alguns de seus traços, a exemplo dos cabelos crespos. Muitas vezes até as
relações de afeto promoviam embranquecimento e aponto como exemplo o fato de
que, ninguém, nunca ter me considerado negro. Talvez como forma de preservação
daqueles que mais se ama, do racismo estrutural vigente no país, ou como mecanismo
de inconscientemente afirmar que não se pode amar aquilo que é historicamente
negado pela sociedade.
Todas essas situações, ou pelo menos o significado delas, estavam no
plano da subjetividade. Enxergávamos o insistente e velho racismo velado como
piadas e brincadeiras, o que é muito comum na mofada democracia brasileira. Nunca
se percebeu essas pseudo-brincadeiras como ataque velado a identidade negra, ou
como algo que pudesse imputar em qualquer um de nós uma baixa estima por
olharmo-nos no espelho e visualizarmos justamente a cara do esdrúxulo. E nenhum
de nós, que corriqueiramente nos divertíamos com essas brincadeiras direcionadas
aos iguais como espelho, nos autodefiníamos como racistas. Sinto, no entanto, que
minha vó se sentia afetada pelas falas jocosas da família, não por ela ser negra,
porque no fundo todos éramos, mas por perceber-se enquanto tal.
Meus pais se conheceram no Panorama XXI, conjunto habitacional
localizado na periferia de Belém à época, hoje é considerada área valorizada pela
especulação imobiliária, mas naquele tempo era um local distante do centro da cidade
e com valor aquisitivo popular, acessível a classes sociais com menor poder aquisitivo.
Nesse ambiente que a população belemense denomina de “baixada” eles começaram
a namorar. Meu pai se apaixonou por minha mãe, ela era jovem, cheia de qualidades
físicas, como eles costumam relatar, tão bela que havia sido convidada para ser rainha
de bateria de escolas de samba na cidade, o que negou em função de sua fé cristã
recém abraçada e pelas limitações morais dadas por seus pais.
Os predicados físicos de minha mãe sustentados no relato dela e do
marido, eram na verdade os traços da negritude negada enquanto cor, mas valorizada
como traço característico da mulher brasileira. Meu pai, como homem, cis, criado sob
os valores machistas, afirma que ela era “uma negona de parar o trânsito”, ou “de cair
o queixo” e “chamar atenção”. Ele se orgulha de ter ao seu lado, não uma negra, mas
uma “negona”, que carrega no corpo, sobretudo nas partes valorizadas pela
masculinidade brasileira, seus predicados superlativos.
Em adição a isso é preciso lembrar que esse mesmo homem, que vangloria
a negritude de sua esposa, nega a própria, classificando-se como branco, ou no
máximo, pardo. Como explicar esse paradoxo de valoração de cor? Retomo Franz
Fanon (2008, p. 53), em sua afirmação: “Energeticamente, o ser amado me ajudará
na manifestação da minha virilidade, enquanto a sua preocupação em merecer a
admiração ou o amor do outro tecerá, ao longo da minha visão de mundo, uma
superestrutura valorativa”.
O acento do orgulho dessas palavras não está sobre a cor, nem talvez
sobre a beleza da esposa, mas sobre o que esses dois elementos podem refletir
acerca da imagem do que o marido é como homem. É a virilidade dele que está
sustentada no corpo da bela mulher que é minha mãe. Ela sem dúvida era a esposa
ideal a medida em que, para fora, servia de emblema a masculinidade de meu pai,
mas para dentro, tinha a volúpia controlada pela religião que prega a sexualidade
feminina controlada e a liberdade sexual totalmente atada a família.
Voltando a narrativa, meu pai disse que faria tudo para ficar com ela, e por
isso, a primeira coisa foi se converter-se à fé cristã. A conversão de ambos e a
frequência diária em uma igreja pentecostal, era ponto de partida, para a construção
de uma família tipo ideal, patriarcal, nuclear, heteronormartiva, formada por um
homem “branco” casado como uma mulher de atributos físicos próprios de uma mulher
negra, mas com sexualidade cerceada.
Eles se casaram muito jovens, cerca de 18 anos de idade cada um, ambos
nasceram no ano de 1963, possuíam diferença de idade reduzida a meses. Agora
evangélicos, começaram uma vida sem muito apoio, pois ambos não tinham estrutura
financeira para contrair matrimônio. Focados na construção da família ideal,
abandonam a escola e, como relatam: “passaram a viver pela fé”. Os pais dele foram
contra o relacionamento, do casal porque aos olhos deles era claro e muito visível a
negritude dela. O fato de minha mãe ser uma mulher “negra retinta de cabelo ruim” foi
um dos argumentos utilizados para desaprovação do casamento.
Ela, por sua vez, passou a vida tentando resolver o que para meus avós
paternos era um problema. E para tal até hoje usa o cabelo alisado. Quando o
mercado da beleza, que valoriza padrões unicamente brancos não tinha ainda
inventado a “chapinha” elétrica, conhecido instrumento estético de alisamento capilar,
ela utilizada nela própria, uma chapa de ferro levada ao fogo até transformar-se em
brasa para repuxar os cabelos na busca de esticar os fios. Essa ação, que levava
horas para ser concluída, por vezes causava queimaduras sérias e provocava choro
e dor. Todavia era melhor sofrer fisicamente a enfrentar os efeitos do que o racismo
causa na psiquê da mulher negra ao escutar frases racistas do tipo “olha a nega de
cabelo alisado, se cair chuva ela volta a ser gata borralheira”.
Desta forma, minha mãe passou toda sua trajetória tentando
embranquecer-se para ser aceita. Além de esconder os traços étnicos de negritude e
aderir a uma religião hegemônica, ela assumiu com maestria o papel atribuído pela
sociedade a mulher branca. Tornou-se esposa exemplar, pouco afeita as diversões
mundanas, dedicou-se integralmente ao cuidado dos filhos, atrelou sua vida
profissional a do marido, sustentou o casamento nas inúmeras traições descobertas
que eram consideradas por ela como “coisa de homem” e manteve-se casta diante do
abandono do esposo que desaparecia do lar e passava meses ou anos viajando.
Ainda assim seu propósito inconsciente de adequar-se ao que era
considerado em minha família uma pessoa branca nunca foram alcançados. Guardo
na memória seus relatos sobre a humilhação sofrida nas conversas de meu pai com
seus progenitores, tentando persuadi-lo a desistir do casamento. A rejeição sempre
foi velada, jamais dita de forma clara. O que os sogros temiam era o que os intelectuais
ligados as teorias da “degeneração” sustentavam em fins do século XIX; o casamento
interétnico, ou inter-racial, provocasse a contaminação do sangue. Traduzindo para o
discurso popular e essas teorias sempre circularam entre os diversos grupos sociais,
o temor velado de meus avôs era “ter netos negros” pois não seria bom “nem para ele
nem para a esposa”.
Seguiremos a reflexão que Fanon (2008), produz para entender esse
momento e identificar a relevância em destacá-lo aqui como desafio na construção no
imaginário de identidade familiar, inicialmente leiamos Fanon:
O ideal almejado pela sociedade da época não inclui ter entre seus
familiares pessoas com referências consideradas inferiores a que se já se tinha. O
que se tentava buscar era uma limpeza étnica. Esse foi um dos maiores desafios que
meus pais tiveram que enfrentar para consolidar sua relação. Trata-se de um
enfrentamento de ambos, pois meu pai, mesmo não se reconhecendo como homem
negro, em razão do seu tom de pele mais claro e pelos padrões de branquitude
brasileiro, se opõe à determinação de meus avós e decide manter o relacionamento
com àquela para quem declara seus sentimentos, e ela, em contrapartida, resiste a
neurose “na perspectiva fanoniana” de não integração ao que eles consideram, na
época, como inaceitável aos padrões considerados ideais.
A “tara pela aceitação social”, reproduzindo Fanon (2008), leva ao
sentimento de frustação por parte de meus avós, ao ver o filho caçula estruturando
sua família numa direção não almejada e tão difícil, reproduzindo a escolha
matrimonial por uma mulher negra. A “neura” (FANON, 2008), está em pensar na
repetição do drama social vinculado à frustração, pois novamente fracassam diante
do que consideram ser um nível social mais elevados uma vez que integram ao
convívio familiar alguém com estereótipos tão marginalizados quantos os seu e que
em adição a esse estigma também é nordestina, de poucas provisões, e, embora tente
invisibilizar pela conversão ainda traz em sua origem familiar, relações com a religiões
afro-brasileiras que eles de forma racista chamavam de “macumbeiros”.
A visão racista demostrada, no início da relação com meus avós paternos,
não impede que os dois jovens se casem. Meu pai e mãe se casam no ano de 1983.
Agora marido e mulher passam a se dedicar ao trabalho na igreja e à vida conjugal,
depois de pouco tempo juntos, minha mãe descobre que está grávida de mim. Meu
pai que é tido como um profeta6, o que para a igreja é alguém que recebe mensagens
diretamente do divino. Nesse caso, através de sonhos, prática comum em sua
religiosidade pentecostal, a mensagem de um anjo que vem até ele e diz: “você está
vendo esta arma? Meu pai relata ver uma espada à sua frente, e responde: - sim vejo.
O anjo diz em seguida: - pegue a arma! Me pai indaga: - o que eu vou fazer com essa
arma, ela não é mais usada nos dias de hoje, o que devo fazer? Mesmo contrariado,
meu pai vai em direção a arma para pegá-la, entretanto, quando ele a pega ela se
transforma em uma bíblia. Cheio de surpresa, meu pai vê a bíblia e se volta para o
anjo que olha para ele e diz: - essa será a arma do teu filho, ela fará e será o que você
não conseguiu ser e fazer. Meu pai acorda, conta o sonho para minha mãe, ambos
oram e sabem naquele momento que terão um filho homem.
Minha vida foi pautada dentro da igreja Assembleia de Deus, desde que me
entendo com alguma consciência, minhas memórias estão vinculadas a questões na
igreja: festas, cultos, ensaios, atividades. Eu era conhecido como o filho da irmã Dalva,
nome real da minha mãe, que sempre levava a mim e minha irmã para igreja, mesmo
quando ela estava separada do meu pai.
6 Todo crente é potencialmente um profeta. O derramamento do Espírito Santo sobre a carne traz
consigo seus próprios resultados: “e profetizarão” (Bíblia. At 2.18), [...] entretanto, parece ter havido na
igreja do NT. Um grupo especialmente também chamado pelo nome de “profetas”, separados para o
ministério da profecia. São mencionados imediatamente após os apóstolos, nas listas de ministérios
cristãos (bíblia. ICo 12.28,29; Ef. 4.11). (DOUGLAS, 2006)
Meu pai não durou muito tempo na igreja, as primeiras dificuldades vieram
e ele se distanciou da família, com trabalhos sempre em outros Estados ou sempre
viajando, mas sem muito ou nenhum retorno financeiro. A vida conjugal dos dois era
extremamente conflituosa, cheia de idas e vinda, que eram alentadas pela vida
religiosa da minha mãe, sempre em busca constante de orar para Deus reconstruir
nossa família e trazer o pai de volta para dentro de casa.
Inúmeras e constantes eram as marcas que esses conflitos familiares
deixavam, assim como as interseções religiosas para reverter isso. Minha casa era
conhecida como “monte de oração”. Essa expressão é comum para designar lugares
onde cristãos pentecostais e neopentecostais vão para orar, em busca de uma
revelação, através de um profeta que fala em nome de Deus, como um arauto. Esses
eventos aconteciam várias vezes durante as semanas, várias vezes ao dia, sempre
que alguém chegava em casa com a intenção de orar, reuniam-se todos em um
cômodo da casa, na busca de acessar o sagrado e construir uma comunicação que
levasse a obter as respostas almejadas.
As orações eram tão comuns que não existia um limite para que elas
acontecessem. Atravessavam a manhã, tarde ou noite, não era estranho que
acontecessem durante a madrugada inteira. Eu participava de todas elas ou pelo
menos da maioria, mas estando em casa não podia deixar de participar. Esses
momentos de intercessão eram uma tentativa de, cada vez mais, ter a certeza de estar
no caminho certo, na direção de fazer a vontade do divino. Acreditava-se que, em
função disso, e que um dia todas as aquelas mazelas e dificuldades que viviam a
nossa espreita iriam passar. Nossa família iria se reestruturar e toda dificuldade
financeira iria ser superada, pois apegava-se ao que muitos “profetas” anunciavam
como promessas divinas direcionadas a nossa família, entre elas, era recorrente citar
o meu desenvolvimento como pregador, confirmando assim a promessa revelada
antes mesmo do meu nascimento. Esses momentos eram um capital social, pois
garantiam a minha mãe o status de “mulher de Deus”, aquela que está voltada para
os interesses do divino ao invés de se preocupar com assuntos triviais ou “mundanos”
comuns a mulheres da sua idade.
Entendo que, assim como para Fanon (2008. P 50), o “Falar uma língua é
assumir um mundo, uma cultura. O antilhano que quer ser branco o será tanto mais
na medida em que tiver assumido o instrumento cultural que é a linguagem.” para
minha mãe, enquanto mãe, quanto mais ela e sua família fossem reconhecidos como
provedores de práticas religiosas, quanto mais fossemos reconhecidos pelas nossas
referências cristãs, menos preconceitos e problemas teríamos dentro daquela
realidade social, e sem dúvida, espiritual. Seriamos bem aceitos e estaríamos
encaminhados em nossas vidas. Minha mãe nunca cobrou da minha irmã como de
mim a participação nas orações feitas em casa, sempre quis me ver como alguém que
prega bem da bíblia, como “um homem de Deus”, como ela mesma gosta de falar.
Hoje entendo sua proposta, ser um homem bem aceito na sociedade a qual ela está
acostumada é ser um homem que promove as verdades cristãs, esse homem é bom
e está salvo.
Uma das referências recorrentes nas orações, eram os fatos delas sempre
estarem ligadas à quebra de maldições ou ao que chamavam de “trabalhos de
maldição” direcionados aos presentes nas orações. É como se terceiros sempre
tivessem realizado “trabalhos de magia”. A referência era sempre vinculada a terreiros
de “macumba”, linguajar que era frequente na comunicação popular. Existia um
imaginário de que sempre se direcionava a alguém presente ou ao próprio espaço de
oração, no caso minha residência, ações ritualísticas contrárias aquele momento.
Vinham pessoas, irmãos, como costuma-se falar no meio evangélico, de diversos
lugares que sempre usavam as mesmas referências, o inimigo era sempre da mesma
origem, de espaços oriundos de cultos afros, pelo menos era o imaginário que
povoava a espiritualidade no local, mas quero enfatizar que pela diversidade de
pessoas que transitavam pela minha casa, essa era uma ideia que transcendia o local,
pois não eram instruídos a falar assim, o discurso já vinha formado e as “profecias”
convergiam pro mesmo sentido.
Na referência construída pelos participantes desse universo pentecostal
cristão, esses momentos de oração eram povoados de um imaginário que reforça a
demonização dos cultos afro brasileiros. Eram diversos os relatos de ex-praticantes
das religiões afrodescendentes que frequentavam minha residência construídos
sempre através de experiências terríveis,
Temerosos a respeito do que faziam quando eram participantes dos cultos
de origem africana, entretanto, sobre isso acredito que toda religião é feita de
intencionalidades e possui uma moral pessoal depositada sobre ela. Essas pessoas
buscavam algo que tinha uma moral duvidosa e como saída dessa natureza pervertida
de suas práticas, viam na religião o mal que estava nelas.
Examinaremos com rigor os mitos que fundamentam a religiosidade do
candomblé Keto e a cosmogonia que povoa a teologia africanista, assim poderemos
analisar com a devida perícia se essa noção de mal, de demônio, cabe nos textos que
orientam esses cultos e se cabe o discurso do mal tão difundido pelo preconceito
popular de pessoas que alegam tê-lo vivido nessas religiões, veremos se viveram pela
religião ou se por suas intenções pessoais.
Enquanto mantínhamos uma rotina intensa de orações em casa, minha
genitora ainda frequentava igreja, o que era um desafio. Com o marido ausente, ela
podia ocupar cargos, funções na igreja. Como ela tinha uma incrível habilidade de
trabalhar com crianças, por muitos anos foi a responsável pelo grupo de crianças da
congregação. O trabalho com as crianças era uma forma de agradecimento a Deus e
uma forma de retribuição ao divino ao dom da vida. Como não tínhamos dinheiro ela
considerava as horas trabalhadas na igreja uma devolução a tudo que Deus dava a
ela e a nós, afinal, nunca tivemos muito, mas nunca passamos fome ou nos faltou o
que vestir. Nossa realidade social era muito precária e a dedicação a religião era
caminho encontrado para preservação da família.
Como coordenadora do departamento infantil, minha mãe era uma líder
incansável. Sua dedicação gerava encantamento em uma criança, que sem entender
muito da realidade na qual estava inserida, se vê na obrigação de valorizar e dar
resposta a todo sacrifício que sua mãe realizava. Comecei muito cedo a ter um senso
de responsabilidade, entendia que minha mãe sofria muito e eu não poderia ser mais
um peso para ela. Minha identidade de filho começou a ser forjada ainda muito de
forma que os amigos da família relatam que eu era uma criança que me destacava
das demais. Minha mãe entendia que era pelo fato de existir em mim uma intenção
divina, mas penso eu que, como filho eu não podia ver minha mãe soterrada em mais
problemas. Como criança eu errava, fazia bobagens como toda criança, mas existia
uma atitude inconsciente em querer ajudar que tentava não gerar desgosto.
Eu, ainda muito novo, começo a participar das atividades desenvolvidas
pela minha mãe na igreja, cantando hinos, sozinho e com o grupo de crianças. Faço
leituras da bíblia diante de todos no púlpito, tomo a frente das orações, sou uma
criança que se destaca em função do constante compromisso que minha mãe tem
com a igreja.
Algo marcou minha vida, por volta dos meus 6 anos de idade, sou
incumbido de trazer a mensagem final num culto de crianças, a hora mais importante
do ritual na Assembleia de Deus seria por mim ministrada, por ordem da minha mãe.
Ela se empenhou me ensinar como fazer, escolhemos juntos a passagem bíblica no
livro de Daniel, no velho testamento. Todo arrumado, vestido com um terno
improvisado que ela conseguiu emprestado com alguém, subi ao púlpito para falar
sobre Ananias, Misael e Azarias (Sidrac, Misac e Abdênago)7. Minha pregação girava
em torno de três jovens que não se curvaram perante a imagem do rei babilônico,
diante da qual todos deveriam fazê-lo. Conta o velho testamento que os três jovens
hebreus, foram levados cativos, todavia não esquecem suas origens, muito menos a
fé de seus pais, se destacam entre os cativos, criados junto ao palácio. Quando não
se prostam diante da estátua, são jogados em uma fornalha superaquecida, mas os
jovens não morreram porque um anjo aparece os salva da morte. A mensagem
pregada era algo vivo na minha família.
Nossa realidade de pobreza assemelhava-se a metáfora de fornalha.
Enfrentávamos um turbilhão de desafios diários, mas sempre cremos que Cristo
estava conosco e nenhum mal iria nos atingir, a exemplo do que acontecia no mito
bíblico narrado. Até o início da adolescência, esse era meu Ethos religioso, uma fé
formulada ainda criança, numa divindade incansável em proteger, assim éramos
ensinados.
Sim, é preciso que eu vigie minha alocução, pois também é através dela que
serei julgado... Dirão de mim com desprezo: ele não sabe sequer falar o
francês!... Em um grupo de jovens antilhanos, aquele que se exprime bem,
que possui o domínio da língua, é muito temido; é preciso tomar cuidado com
ele, é um quase-branco. Na França se diz: falar como um livro. Na Martinica:
falar como um branco. (FANON 2008, p 36)
7 Entre eles encontravam-se alguns judeus: Daniel, Ananias, Misael e Azarias. O chefe dos eunucos
deu-lhes outros nomes: a Daniel, o de Baltasar a Ananias, o de Sidrac a Misael, o de Misac e a Azarias,
o de Abdênago. (bíblia. Dn. 1.6,7).
cristãs a mim depositadas, assim como o jovem martinicano deveria ser um exímio
dominante do francês eu deveria ser um eloquente e reconhecido pregador da palavra
de Cristo, não para ser temido como o jovem na Martinica, mas para ter o
reconhecimento social necessário dentro da minha realidade comunitária e um bom
representante das verdades cristãs, para cumprir o papel religioso e cultural tão
almejado pelas perspectivas depositadas sobre mim.
Etnobiografar esses eventos é traduzir verdades sociais e culturais que
constituíram minha identidade enquanto pessoa, dando sentido às minhas ações e
visões sobre o mundo. Penso como teria me tornado um reprodutor de verdades que
impõem medo sobre as religiões de matriz africana ao demonizar tudo que expressa
e identifica essas religiosidades.
Na construção de um jovem de periferia essa imagem era muito positiva,
pois todos me viam como o menino da igreja, entre os mais velhos, o irmãozinho,
aquele que tem uma boa orientação. As pessoas se referiam a mim sem mesmo eu
conhecê-las. Minha mãe sentia orgulho e sabia que seu esforço estava produzindo
resultados. Eu assumi o papel e tentava me comportar da melhor maneira possível
para não a decepcionar; essas são memórias muito fortes em mim.
Ao ler Fanon (2008), vejo que nesse momento da minha vida estava num
conflito semelhante. A busca pelas verdades cristãs dava sentido a minha vida, me
colocavam de um lado, mas, esse lado refletia de fato meu modo de pensar? Eu me
questionava. A religião deveria ser meu alento e libertação, mas ao estabelecer a mim
um lado e me dizer quem eram meus inimigos, eu de fato, vivenciava o cristianismo
que eu tanto dizia crer? O amor cristão me impelia a fé ou o medo do inferno? Eu era
um agente da minha salvação ou reprodutor de verdades irrefletidas, que mais me
descaracterizavam da minha fé do que me faziam afirmá-las? Eu também exigi
explicações, fiquei furioso, e muitas vezes, ainda perdido, segui na busca pelas
respostas desejadas.
Na minha casa isso foi um problema muito grande, contei ao pastor sobre
minhas dúvidas, e diante de tantas questões eu não poderia continuar na liderança de
um departamento da igreja. Nessa época eu liderava um grupo de 50 jovens, eu ainda
era muito jovem, mas meu nível de comprometimento me habilitava para tal
responsabilidade. Na academia eu transitava entre teorias que me mostravam uma
nova perspectiva sobre a religião e a religiosidade das pessoas. A minha já não era
única e exclusiva, como subir na tribuna de uma igreja e demonizar todas as outras
quando você entende a sua fé como um microcosmo diante de uma infindável
variedade de propostas de universos religiosos espalhados pelo mundo, nas quais
tudo que se espera é o bem, a bondade, através de uma ou mesmo várias divindades?
Diante de um dilema existencial fui falar com meu pastor responsável, ele
era o responsável pela congregação (igreja) da qual participava, pedi o afastamento
do cargo, falei das novas experiências que havia experimentado, ele tentou me
dissuadir, mas não, eu não tinha condições de continuar, assim que eu terminei de
falar com o pastor, ele encontrou uma forma de comunicar minha mãe. Assim que o
comunicado chegou aos ouvidos da minha família o cenário mudou, eu agora era
tratado como desviado, fui automaticamente disciplinado pela igreja que não afasta
nenhum líder sem motivos. De pregador agora eu era o jovem rebelde que se afastava
de Deus para viver sua vida, porque havia sido ludibriado pelos saberes humanos e
mundanos. Muito semelhante a assertiva feita por Fanon (2008, p. 48), ao dizer que:
“Quando um preto fala de Marx, a primeira reação é a seguinte: “Nós vos educamos
e agora vocês se voltam contra seus benfeitores. Ingratos! Decididamente, não se
pode esperar nada de vocês”. O olhar imposto é o mesmo. Como pode alguém adquirir
conhecimento e não romper com os ditames da igreja? Como pode alguém questionar
a prática da religiosidade de um grupo só porque estudou uma ou duas teorias na
academia? Como vai ser visto agora? Entendo a intenção e a força no olhar da minha
mãe quando dizia que eu não era igual aos outros, não deveria esquecer que como
jovem negro, eu precisava reforçar minhas boas intenções para uma sociedade que
me julgava só pela cor da minha pele.
A religião me dava o crédito, minha mãe sabia disso, mas sem isso eu era
apenas mais um negro correndo risco. Não era o irmão da igreja, o filho da irmã da
Assembleia de Deus, eu só seria mais um jovem negro de periferia, que teve a ousadia
de questionar sua postura frente aos ensinamentos religiosos que teve. O imaginário
comum me mostrava que o caminho seguido não seria o melhor, e me levaria para
morte eterna no inferno, atitude comum entre muitos evangélicos quando pretendem
convencer alguém a reconsiderar sua postura cristã até alcançar um nível aceitável.
As ciências da religião me fizeram ver o mundo de maneira mais ampla, mais plural,
possibilitando uma leitura religiosa e social capaz de dialogar com o diverso, com as
múltiplas manifestações do sagrado, e levar isso para outras pessoas é libertador,
amplia meus horizontes e me permite ser capaz de promover uma sociedade mais
justa e mais respeitosa.
A imagem que construo sobre mim nesse trabalho é um substrato cultural
dentro de uma perspectiva sobre a minha pessoalidade, isso é algo que acontece na
intenção de construir o que Gonçalves (2012), chama de Self, vejamos:
Assim como Fanon (ibidem), saí daquele local sentindo meu sangue ferver,
sentia que havia me encontrado com minha ancestralidade e precisava dar voz a ela.
Era racional, era consciência ao mesmo tempo que era mágica e esclarecimento, meu
sangue pulsava, meu coração fremia, eram intensas as emoções. Eu estava
começando a me desenraizar dos medos colonizadores oriundos da aculturação
religiosa. Não era o fim da minha relação com Cristo, mas sim com o medo. Sempre
tentaram me dizer que dialogar com a religiosidade dos cultos afros é me afastar de
Deus, a partir daquele momento entendi que em nada está certa esta afirmação.
Dialogar com os saberes africanos pode ser uma forma de reencontrar nossa essência
negra, nossa subjetividade étnica numa perspectiva poderosa sobre nós mesmos.
Assim me vi, assim me senti, e cada movimento visto, cada toque ouvido, vibrava,
ressoava com a minha alma e isso não podia ser negativo.
O deslumbramento, essa foi uma palavra que usei para descrever o
momento, foi muito grande, eu pude perceber que todos os meus medos eram
externos a religião, a celebração não dialogava com nada que eu havia ouvido antes
de presenciá-la. Meus medos foram suplantados por um sentimento de vergonha e
êxtase; vergonha por perceber o quanto eu era preconceituoso e reproduzia o racismo
estrutural, tão comum entre os evangélicos brasileiros e pela sociedade leiga de modo
geral, e principalmente pelo fato do nosso olhar social predominante ter suas bases
num cristianismo vulgar, externo as verdades bíblicas e fruto de uma proposta
supremacista de sociedade a partir do olhar eurocêntrico. Senti um êxtase por me
sentir em casa, o som incrível produzido pelos atabaques, o movimento da gira
executado pelos religiosos participantes da celebração era algo belo, profundo,
sincero.
A celebração acabou e eu queria muito entender tudo, fazia muitas
perguntas, a sensação de contato com minha ancestralidade era profunda. Cada
elemento ali motivava meu imaginário a ir até a África, tudo causava em mim
deslumbramento, queria entender a organização, as danças, os movimentos, as
músicas rituais, a organização das pessoas, queria submergir naquele universo, e o
mais incrível é que toda teoria pensada anteriormente só fez sentido quando estive in
loco. Não tinha intenção de me converter, até hoje esse sentimento nunca passou
pela minha cabeça, mas queria entender profundamente como algo tão belo e cheio
de significados não era difundido e ainda permanecia tão marginalizado em nossa
sociedade.
Não quero aqui destacar qualquer intenção de combater a prática do
cristianismo entre negros, ou mesmo no seio da nossa sociedade, eu me confesso
cristão protestante até hoje, minha proposta é mostrar que olhar para nossa
ancestralidade, presente nos cultos e símbolos afro religiosos em nada me afasta de
minha religiosidade cristã, pois ela não nega o cristianismo, ela apresenta outra
perspectiva cultural, além de promover uma autoimagem valorativa da cultura negra,
por meio dos saberes e representações oriundos da grandeza de suas construções.
É possível perceber em toda cosmogonia negra, saberes importantes que podem
construir uma imagem menos afetada sobre nós mesmo, como a que produziu o
colonialismo cristão europeu. Observamos as múltiplas religiosidades europeias,
asiáticas, sem medo, sem demonizar nada, por que o mesmo não pode ser feito com
a diversidade simbólica africana?
A mudança na maneira de ver e interpretar a religiosidade orientada pelos
saberes trazidos da África que começaram a ser vivenciados por mim durante a
participação no culto de candomblé, inspirou em mim uma busca pelo entendimento
teórico sobre o que motivava esse sentimento mantido sem uma consciência clara do
seu significado. Meu primeiro passo foi buscar conhecer a cosmogonia que orientava
o candomblé, foi aí que tive meu primeiro contato com os textos recolhidos pelo
antropólogo francês Verger (1997), um trabalho chamado “Lendas africanas dos
Orixás”, contendo mitos recolhidos pelo pesquisador quando observava a
religiosidade de povos Iorubás.
Na busca por qualificar a autoimagem da pessoa negra sobre si, passo a
buscar os arquétipos presentes na mitologia negra como representações positivas da
identidade africana, mas para isso é preciso primeiro desqualificar o racismo
depositado sobre a simbologia africana e, sobretudo, o que tem origem no continente
africano, demonstrando sua autonomia diante da construção religiosa e cultural
europeia.
Minha busca gerou a necessidade de combater o que estava claro para
mim, o que era fruto da ignorância das pessoas sobre toda realidade praticada dentro
dos terreiros espalhados pelo Brasil. Era preciso dar início à reflexão sobre a
necessidade de educar através dos conteúdos presentes nos mitos iorubanos.
Concluí minha graduação falando, não sobre morte, como eu havia
imaginado mas, tocado pela sabedoria descoberta nos conteúdos produzidos pela
ancestralidade negra presentes nas religiosidades afro. Assim, produzi um trabalho
com o seguinte tema: “O PENSAMENTO AFRICANO NO ENSINO RELIGIOSO: a
epistemologia africana numa breve leitura sobre o candomblé iorubano”. (COSTA,
2009). A intenção era mostrar como havia uma maneira diferente de ver e interpretar
a realidade da mitologia iorubana, e que era importante se valer das ciências da
Religião como instrumento relevante para aplicação da lei 10.639/2003 9 para uma
educação que proporcionasse a desconstrução do racismo estrutural presente em
nossa sociedade, nos diversos lugares onde o europeísmo tocou com sua visão
eurocêntrica demonizando a cultura negra. Faço uso do termo “diversos lugares” pois
acredito que tais proposições devem transcender o espaço acadêmico, chegando até
as diversas formas de educar e de educar-se, como a vida doméstica no ambiente
familiar, espaços de terreiro ou em comunidades campesinas de educação popular.
Meus conhecimentos adquiridos na constante busca para me desconstruir
e tentar levar essa perspectiva para as pessoas, fez com que concluísse a graduação
com um outro olhar sobre as religiões negras, sobre minha identidade negra, sobre
minha própria ancestralidade negra. A partir de tudo que aprendi, era e é muito difícil
ainda ver pessoas subindo em púlpitos na igreja da qual faço parte para demonizar as
religiões de matriz africana e as descreverem como uma expressão demoníaca, como
uma cultura inferior, magia subversiva que não traz benesses para os seus
9Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e
Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.
praticantes. Esse havia sido o protestantismo que eu cri a vida toda, até ali, todavia,
não era esse o cristianismo que eu queria e quero continuar vendo ser propagado.
10 São membros da igreja que estão disponíveis para auxiliar na liturgia dos cultos, fazendo pequenas
pregações, organizando a dinâmica da celebração, cantando hinos e o que mais for necessário a
organização da igreja segundo a ordem pastoral.
11 Fundamentalmente a unção era um ato de Deus (BÍBLIA I Sm 10.1) – que explica o respeito em que
era mantida – em quanto a palavra “ungido” era usada até mesmo metaforicamente para significar a
doação do favor divino (bíblia Sl 23.5; 92.10) ou a nomeação para algum lugar ou função especial do
propósito de Deus (BÍBLIA Sl 115.15; Is 45.1). (DOUGLAS, 2006)
palavra, diáconos, missionários, presbíteros e outros pastores auxiliares) 12, eu era
responsável pela equipe de evangelização. Em um dos anos, ocupei muitos cargos
na igreja. No ano em que ordinariamente saía com a equipe de evangelização, numa
determinada noite algo que me deixou muito feliz aconteceu.
Em uma noite, nos organizamos na frente da igreja para sairmos para
evangelizar, eu orientei a equipe, estávamos vestidos de paletó e gravata, aos moldes
“assembleianos”. Eu estava atrás da equipe dando as últimas orientações, sempre
atento, pois todos eram minha responsabilidade. Percebi que ia um grupo um pouco
mais a frente, eram auxiliares, diáconos e um pastor evangelista, assim como eu,
quando inadvertidamente começaram a passar em frente a uma casa de culto afro
religioso onde acontecia um ritual festivo aberto ao público. O terreiro estava cheio,
os atabaques tocavam intensamente e os filhos de santo estavam todos bem
adornados na frente. Percebi que a parte da equipe que ia a frente começou a levantar
a mão, como se fossem expulsar algo ou repreender algum mal, hábito comum que
reforça o preconceito e racismo estrutural direcionados às religiões de matriz africana.
Quando percebi o que iam fazer, levantei a voz e pedi que me esperassem, e em tom
de aconselhamento perguntei o que iam fazer, responderam que iriam repreender o
“mal”, bem como eu havia previsto.
Como venho descrevendo nessas poucas páginas até agora, eu entendia
a limitação daqueles indivíduos ainda colonizados pelo racismo religioso que
impregna muitos grupos evangélicos pelo país, busquei naquele instante, ali mesmo
na rua, a luz da bíblia, explicar que, como “luz do mundo” e “sal da terra” (BÍBLIA. Mt.
5:13, 14), adjetivos que nós cristãos reivindicamos, precisávamos ter outra postura.
Falei, em princípio, que eles não podiam ter um comportamento hostil como aquele,
às pessoas que só estavam vivenciando sua própria fé, sem nada fazer para nos
atingir. Falei também o quão importante seria se demonstrassem o que havíamos
aprendido com Cristo e, ao invés de atacar, deveríamos semear amor e cordialidade,
nos mostrando respeitosos, dando exemplo de bons cristãos, todos concordaram.
Percebi os mais velhos envergonhados, pois eu tinha acabado de
completar trinta anos e ali existiam homens mais idosos e com mais tempo na igreja
que teoricamente deveriam ser mais sábios do que eu, mas o racismo cega, tira da
13 Os linguistas, como arqueólogos das palavras, são especialistas em decifrar a origem das línguas
faladas no mundo. Eles vivem perseguindo a rota dos significados através dos séculos e acabam
conhecendo línguas muito antigas. Alguns deles defendem que a palavra “griô” é moderna, ou seja,
passou a ser utilizada no século XVII. Se diéli é como os malinqués chamavam seus bardos, alguns
investigadores indicam a palavra “criado” utilizada pelos lusitanos para identificar o diéli. A transcrição
do som da palavra criado ouvida por um viajante francês foi assim grafada: griot. (LIMA E ERNANDES,
2018. Pag. 78).
predominantemente o termo contação e não narração, não há para mim uma
diferenciação conceitual entre narração e contação, sendo ambos sinônimos da
mesma arte, de levar, através da oralidade, histórias para públicos diversos, com o
objetivo de educar e entreter. No grupo de contação, me adaptei a usar o termo
contação como definição usual e ela se mantém em minha autoidentificação enquanto
profissional.
A melhor definição de contador de histórias que cabe na proposta de
atuação profissional por mim pretendida está na descrita por Lima e Hernandez
(2014), na obra “Toque de Griô: memórias sobre contadores africanos”, quando
dizem:
O significado principal de diéli está na ideia de sangue vital, isto é, o diéli faz
circular a vida social. Todavia, para seus vizinhos, o termo podia ser jaaro na
língua soninqué, bambaado para o povo peul, ou wambaabe ou guewel para
os wolofs e marok’i para os hauçás. Imagine tantos povos ao longo dos
séculos traduzindo sentidos sobre aquele mundo dos griôs. Agora imagine
transcrever para o papel o som que ouviam. O inglês, o francês, o alemão, o
espanhol, o árabe ou o chinês precisaram nomear aquele bardo africano.
(LIMA E HERNANDEZ, 2014. p 78).
A vida na aldeia dos griôs era a escola dos griôs. Era lá que eles aprendiam
as técnicas de memorização, a construir instrumentos de música e não
apenas a tocá-los, era onde ensinavam a eles as palavras sagradas. Também
tudo sobre a linguagem dos sonhos ou a do gesto mais expressivo. Os griôs
tinham aulas não apenas de como vestir a roupa adequada, mas até de como
conversar com os gênios. Os griôs podem ter o conhecimento de mais de mil
contos ou ser peritos na arte dos provérbios. Eles são treinados para
aprofundar os saberes sobre a natureza secreta, seja a humana, a animal ou
a vegetal. E, mais que tudo, um griô deve conhecer como ninguém a arte da
guerra. Mas para exercitar a paz. Ele sabe como moldar a palavra. Os
acontecimentos ocorridos há dez ou setecentos anos são mantidos sempre
frescos pela palavra do griô. Só as extraordinárias sociedades que não
dependeram da escrita para o registro dos seus feitos dominam a palavra
para transmitir a história. Essa imensa sabedoria negro-africana conhece não
só as técnicas de resguardar, mas também as de passar a história adiante.
O estrangeiro chama isso de arte da oratória. Mas o que o griô exercita na
sua aldeia é a arte de receber e transmitir conhecimento por meio da palavra.
Exige-se dele um comprometimento com a verdade. O rigor do mestre
garantia a tradição, e a tradição garantia a maestria de cada um. (LIMA E
HERNANDEZ 2014. p 18).
Orientado por alguns relatos de amigos africanos, e por outros que foram
até o continente em busca por aperfeiçoar seus trabalhos, seja na literatura, na música
ou nas religiões de matriz africana, a descrição acima aponta com profundidade o
exercício diário da construção da identidade griô e deixa claro a importância que é
dada à palavra na cultura do povo mandem, no antigo Mali, hoje conhecido como
República do Mali. Para além da narração de histórias, o griô é uma biblioteca viva,
com múltiplos saberes aprendidos e experimentados ao longo da vida, por meio de
uma trajetória longa de aprendizados que compõem a grandeza e a singularidade de
ser um griô.
O povo do Mali, de onde se tem registro dos primeiros griôs, também foi
trazido para o Brasil e compõem parte importante da nossa história. Eles ficaram
conhecidos pela história oficial como Malês e foram responsáveis por uma das mais
importantes revoltas de resistência ao sistema escravista no Brasil. Eles eram homens
eruditos, letrados e convertidos ao islamismo. O Islã é uma religião mulçumana de
origem árabe que tem como base mitológica o Corão, a revelação de Maomé, recebida
diretamente de Deus através de seu arauto, o anjo Gabriel, em uma caverna nos
arredores de Meca, região da Arábia Saudita.
Os Malês carregavam consigo pequenas bolsas amarradas a seus
pescoços, prática comum entre o povo mulçumano da região do Mandem. As bolsas
traziam trechos escritos do Corão, ervas e outras substâncias úteis de domínio desse
povo. As referidas bolsas passaram a ser chamadas de bolsas de mandinga,
provavelmente em função da sua origem estar entre os oriundos do Mandem, ou
mandingas como eram conhecidos. Esses homens se valiam do seu conhecimento
para colocar medo nos homens brancos que passaram a temer o possível poder
mágico contidos nessas bolsas. O domínio das mandingas se popularizou entre os
africanos e passou a ser denominado de patuá, recebendo fundamento ritualístico
dentro da prática do candomblé, que deposita nessas bolsas elementos rituais ligados
aos orixás do iniciado na religião.
A origem dos griôs no continente africano remete a uma grandiosidade
característica na arte de contar histórias que não é comum aos povos ocidentais.
Muitos elementos referentes a essa arte não são de domínio público. O que percebo
é a manutenção de uma visão distorcida desses elementos que chegam ao imaginário
popular de maneira não conceitual ou histórica, baseada em crendices populares.
Ainda somos herdeiros de um medo que povoa nossas mentes sobre tudo, ou quase,
tudo ligado à origem negra. Não existe a intenção do mal no amuleto africano. A
preservação de seus símbolos está ligada diretamente à manutenção da fé e dos
saberes aprendidos ainda em terras africanas.
A mítica negra que envolve elementos desconhecidos, alheios à tradição
branca de interpretar o mundo, sempre foi traduzida de maneira preconceituosa e
demonizada, portanto, racista. Apresentar esses elementos a comunidade brasileira
é algo que está diretamente ligado a prática da contação de histórias, pois no germe
de sua origem, ainda no continente africano, compõe a estrutura formadora da arte de
contar histórias.
Todos os conteúdos que envolvem a origem da contação de histórias no
continente africano estão embebidos de saberes religiosos. Para as ciências da
religião esse universo da palavra é um ambiente comum, pois foi assim que todos os
povos, em suas origens, transmitiram seus saberes, através da oralidade e da
memória. Eis o papel do contator de histórias para civilização ocidental, mostrar o
valor da contação como conexão com o sagrado, respeitando a diversidade de
manifestações religiosas presentes em nossa diversidade cultural.
A prática da contação de histórias atravessou o atlântico, chegando a este
lado se encontrou com outras muitas culturas, cujos repasses dos conhecimentos
também estavam pautados na oralidade. Falo dos diversos povos indígenas
americanos. O contar histórias é uma tradição ainda viva em nosso país e cada dia
mais passa ser utilizada como proposta educativa ou artística de levar até as crianças
as informações contidas nas histórias espalhadas pelo mundo. Não são poucos os
teóricos que pensam sobre a arte de narrar histórias dentro de nossa realidade,
apresentando suas visões sobre o tema. Observo, então, o que diz Prietro (1999), em
sua obra: “Quer ouvir uma história? Lendas e mitos no mundo da criança”, que segue
a perspectiva do pensamento africanista sobre o tema e nos traz a seguinte reflexão:
Um babalaô me contou:
"Antigamente, os orixás eram homens.
Homens que se tomaram orixás por causa de seus poderes.
Homens que se tomaram orixás por causa de sua sabedoria.
Eles eram respeitados por causa da sua força,
Eles eram venerados por causa de suas virtudes.
Nós adoramos sua memória e os altos feitos que realizaram.
Foi assim que estes homens tornaram-se orixás.
Os homens eram numerosos sobre a Terra.
Antigamente, como hoje,
Muitos deles não eram valentes nem sábios.
A memória destes não se perpetuou.
Eles foram completamente esquecidos;
Não se tomaram orixás.
Em cada vila, um culto se estabeleceu
Sobre a lembrança de um ancestral de prestígio
E lendas foram transmitidas de geração em geração,
para render-lhes homenagem".
(VERGER, 1997. p 7)
Transcrevi o texto utilizado na introdução de Verger (ibidem) por ter sido
utilizado de maneira integral. Utilizei-o como narrativa poética para dar sentido ao
espetáculo que aconteceu a noite no teatro da unidade SESC14 Ver-o-Peso, na cidade
de Belém-PA. A apresentação foi destinada para adultos, para um público com um
pouco mais de conhecimento a respeito do tema: estudantes, pesquisadores, amigos
e demais interessados. O espetáculo teve a duração de aproximadamente 1h (uma
hora), no qual narrei as histórias de três Orixás: Exu, Oxóssi e Ogum.
Não irei me aprofundar nesse momento sobre o tema, em função desse
exercício se desenvolver mais a frente, quando pretendo apresentá-los e examiná-los
de maneira mais minuciosa, para apresentar os arquétipos e potencialidades para
identidade negra-brasileira, na busca de incentivar a utilização desses textos por
aqueles que pretendem dar seguimento à leitura desta obra.
O resultado da apresentação foi incrível para mim, pois pude ver um sonho
sendo realizado. Alguém desprovido de medos ou pré-conceitos, um contador
trabalhando a arte da narrativa e traduzindo sua ancestralidade. Me senti de fato um
griot. Seria muita audácia da minha parte me considerar um griot aos moldes
africanos, mas como descende da África, sou um griot aos moldes brasileiros, busco
expressar a memória subjugada dos meus antepassados como minha. Pude então,
fazer aos moldes aprendidos no grupo Griot, uma apresentação satisfatória para mim,
em primeiro lugar. Os aplausos e felicitações da plateia foram a resposta e motivação
necessárias para perceber que caminhava na direção certa.
Algumas características dessa apresentação devem ser apresentadas aqui
para mostrar a importância e significado dela na transformação da perspectiva do meu
trabalho, o que chamo de transformação do meu ethos como contador. O primeiro
item é o fato de ser uma apresentação totalmente voltada para universo africano, com
intenção de traduzir e manifestar minha ligação com minha ancestralidade negra sem
a as amarras da colonização cristã, tão latente na minha construção, assim, eu me
sentia, como descrito por Fanon (2008, p. 114), “cavalgando o mundo” livre, que cabia
a mim levar a mensagem vibrante daquele texto, como sendo negro, eu pudesse
transmitir seus conceitos e intenções com propriedade, pois entendia que as
estruturas presentes na construção dos textos por mim narrados cabiam
14Sesc é a sigla para Serviço Social do Comércio, instituição criada por empresários do comércio de
bens, serviços e turismo com objetivo de proporcionar bem-estar e qualidade de vida aos trabalhadores
e seus familiares. (https://www.sesc.com.br/faq/o-que-e-sesc/)
completamente em mim e dialogavam com uma parte interior que estava silenciada
há muito tempo ou que nunca teve voz.
O primeiro mito trabalhado foi o de Exu através do texto de Verger (ibidem).
O mesmo, apresenta-o, no início, com a saudação usual a divindade africana: “Loroyê”
Exu! (ibidem). Para muitos cristãos, independentemente da origem doutrinária, até
aquele momento nuca havia visto alguém fazer o que fiz durante a apresentação.
Naquele momento, poder dialogar com o arquétipo de Exu era uma incrível revelação
de mim para o mundo, e isso ressoava para mim o quanto eu precisava daquela
apresentação. Estava desconstruindo a estrutura narrativa contada por cristãos
pentecostais na ação de exorcismo. Substituía a demonização pela reflexão, o
etnocentrismo pela relativização estimulando o respeito a alteridade.
Os mitos de Oxóssi e Xangô possuíam um diferencial, eles existem na
construção desses textos-palavras, frases completas ainda no Iorubá, língua ritual da
religiosidade candomblecista. Meu trabalho como contador, desde a minha iniciação
no Griot, sempre esteve voltado para a busca dos significados presentes nos textos,
com a intenção de transmitir com qualidade a mensagem ali presente. Visando tal
qualidade, busquei ajuda de pessoas que vivenciam a religiosidade de matriz africana,
sempre com o intuito de superar minhas limitações no que se refere à linguagem, às
imagens e aos conceitos produzidos pelo texto.
Voltando a me referir sobre a linguagem e a necessidade de transmitir com
qualidade, reproduzo um trecho que considerei o mais difícil de reproduzir na hora de
contar: “Kawo Kabieyesi Alafin Oyó Alayeluwa!” (ibidem), essa construção frasal é
uma referência ao rei de Oyó, o Orixá Xangô, e não poderia ser feita de qualquer
maneira. Como já dito, existiam entre os presentes, pessoas que estudavam a religião
além de outros que eram praticantes do candomblé, e muitas das vezes eram os dois.
Eu, na condição de profissional, me sentia na obrigação de fazê-lo bem-
feito. Essa é uma das observações que faço ao dar oficinas sobre o imaginário
africano. Falo sobre a importância de valorizar os conteúdos presentes nesses textos,
na forma de apresentá-los. É preciso dar qualidade ao trabalho apresentado, não
podendo assim serem tratados de qualquer maneira, sem o cuidado devido. O que
valoriza a fonte e o que se propõe a apresentar. Não é incomum vermos pessoas rindo
ou fazendo brincadeiras em tom de deboche quando não conseguem reproduzir uma
palavra que não é usual na língua portuguesa, essa atitude é ofensiva e depreciativa,
e não cabe na atuação do contador de histórias.
Laroyê!
Exu é o mais sutil e o mais astuto de todos os orixás.
Ele aproveita-se de suas qualidades para provocar mal-entendidos e
discussões entre as
pessoas ou para preparar-lhes armadilhas.
Ele pode fazer coisas extraordinárias como, por exemplo, carregar, numa
peneira, o óleo que
comprou no mercado, sem que este óleo se derrame desse estranho
recipiente!
Exu pode ter matado um pássaro ontem, com uma pedra que jogou hoje!
(VERGER, 1997. Pag. 08)
Exu, como ser divino, pode ser acessado na sua benevolência quando
tratado de maneira respeitosa, respeitando suas vontades e desejos, dentro do que é
permitido na cultura africana. Se o homem conhece a divindade e a busca da maneira
correta, ele recebe duas dádivas, como as, por ele mesmo, estabelecidas e
demonstradas pelo texto no qual Aluman, um agricultor, que conseguiu reverter sua
situação de desgraça em vitória, graças à inteligência no trato com a entidade divina.
A divindade, portanto, em nada reflete a visão colonizada do mal e isso precisa ser
desconstruído entre a população, para que o preconceito deixe de conectar as
pessoas aos saberes, nesses textos apresentados e, assim, possamos nutrir uma
outra visão a respeito de Exu. Laroyê.
Iremos agora observar os arquétipos pertinentes a narrativa de Ogum:
Ogum Yêêê!
Ogum era o mais velho e o mais combativo dos filhos de Odudua, o
conquistador e rei de Ifé.
Por isto, tomou-se o regente do reino quando Odudua, momentaneamente,
perdeu a visão.
Ogum era guerreiro sanguinário e temível.
"Ogum, o valente guerreiro, o homem louco dos músculos de aço!
Ogum, que tendo água em casa, lava-se com sangue!"
Ogum lutava sem cessar contra os reinos vizinhos.
Ele trazia sempre um rico espólio de suas expedições, além de numerosos
escravos.
Todos estes bens conquistados, ele entregava a Odudua, seu pai, rei de Ifé.
(VERGER, 1997. p 11)
Ogum continuou suas guerras. Durante uma delas, ele tomou Irê.
Antigamente, esta cidade era formada por sete aldeias.
Por isto chamam-no, ainda hoje, Ogum mejejê lodê lrê "Ogum das sete partes
de Irê"
Ogum matou o rei Onirê e o substituiu pelo próprio filho, conservando para si
o título de Rei.
Ele é saudado como Ogum Onirê! "Ogum Rei de Irê!"
Entretanto, ele foi autorizado a usar apenas uma pequena coroa, "akorô".
Daí ser chamado, também, de Ogum Alakorô - "Ogum dono da pequena
coroa".
Após instalar seu filho no trono de Irê,
Ogum voltou a guerrear por muitos anos.
Quando voltou a Irê, após longa ausência, ele não reconheceu o lugar.
Por infelicidade, no dia de sua chegada, celebrava-se uma cerimônia, na qual
todo mundo
devia guardar silêncio completo.
Ogum tinha fome e sede.
Ele viu as jarras de vinho de palma, mas não sabia que elas estavam vazias.
O silêncio geral pareceu-lhe sinal de desprezo.
Ogum, cuja paciência é curta, encolerizou-se.
Quebrou as jarras com golpes de espada e cortou a cabeça das pessoas.
A cerimônia tendo acabado, apareceu, finalmente, o filho de Ogum
e ofereceu-lhe seus paratos prediletos (.......)
Ogum, arrependido e calmo, lamentou seus atos de violência,
e disse que já vivera bastante,
que viera agora o tempo de repousar.
Ele baixou, então, sua espada e desapareceu sob a terra.
Ogum tomara-se um orixá.
(ibidem)
A partir do momento que Ogum abandonou sua cidade e sua forja para se
refugiar na floresta, o mundo começou a caminhar para trás. Sem
instrumentos para cultivar a terra, as lavouras fracassaram e o povo já
passava fome. Sem armas para se defender dos inimigos, a cidade vivia
aterrorizada diante da possibilidade de uma invasão. Todos os embaixadores
que levaram a Ogum os clamores do seu povo para que ele voltasse haviam
falhado completamente. Quando o povo se reuniu para pensar o que fazer,
uma bela e frágil jovem, vinda de outro lugar, se ofereceu para trazer Ogum
de volta à cidade e a forja. Ela o convenceria com seus encantos. Chamava-
se Oxum a bela e jovem voluntária. (PARANDI, 2017. p 39)
O mundo passa por um problema com o qual ninguém consegue lidar, pois
Ogum está irredutível na decisão de viver da floresta em detrimento do seu trabalho
como ferreiro. O mundo está passando por dificuldades e uma bela e aparentemente
frágil jovem diz que irá trazer o artífice ao seu trabalho, o nome dela é Oxum. Oxum
corresponde ao arquétipo da deusa grega Afrodite, da deusa romana Vênus e a deusa
egípcia Hátor (PARANDI, 2007, p. 195).
Existem muitas informações complementares a respeito da divindade
Oxum que podem ser utilizadas dentro da prática educacional e aprendizado da
cultura da religiosidade candomblecista. Meu interesse é observar o que esses mitos
possuem de informação dentro das possibilidades desse trabalho, que posso observar
como importantes quando acessados em minha prática educacional, quando busco
apresentá-los a meus alunos e a meu público, quando os acessos através da prática
da contação.
Xangô governava seu império com mãos de ferro. Rei, magistrado maior,
chefe supremo dos exércitos imperiais, gastava o pouco tempo que restava
para si gozando dos parazeres da mesa e desfrutando do amor de suas
esposas. (...) Iansã era sua grande companheira na guerra, leal e destemida
nas horas mais difíceis. Na verdade, as três o acompanhavam aos campos
de batalha quando preciso, mas era Iansã a preferida para guerra, a que
nascera com a alma de guerreira. Apesar da paz então reinante, Xangô
procurava se manter pronto para guerrear, soube que no país dos Baribas,
um povo vizinho, existia uma arma poderosa e secreta que transformaria
qualquer rei em um general invencível. Enviou Iansã aquela terra para saber
do que se tratava. Ela foi e não trouxe explicações nem outro tipo de palavras:
trouxe a arma, a arma poderosa e definitiva. Como se apossou dela, não vem
ao caso. (PARANDI, 2017. p 71)
Um dia, talvez por descuido, erro de cálculo, talvez por má pontaria, por
acidente até o que aconteceu nem Xangô consegue explicar. O fato é que,
em um desses exercícios sobre uma elevação, não longe de sua capital,
Xangô viu com seus olhos seu palácio pegar fogo. (...)
Os doze ministros de Xangô, que por sorte ou sina igualmente se salvaram
reuniram-se em conselho e aplicaram a lei condenaram Xangô ao suicídio,
como mandava a tradição.
Xangô, o rei justo, cumpriu a sentença. Acompanhado apenas de Iansã,
abandonou o palácio e, na floresta, se enforcou. Mas Iansã tinha seus
poderes, muitos poderes, acostumada a lidar com a morte e com os mortos,
e não hesitou em deles fazer uso, impedindo que a morte se aproximasse.
Nesse momento, amparada pela glória e pela honra que Xangô conquistara
para seu povo e seu império, feitos e fatos que jamais seriam esquecidos em
todas as nações dos Orixás no Aiê, Iansã bateu com o pé na terra com magia
e determinação e fez com que o rei entrasse diretamente no Orum como
Orixá.
Se é verdade que Iansã deu a Xangô o instrumento de sua perdição, também
é certo que por obra dela ele recebeu a eterna glorificação. Xangô agora era
um imortal, um Orixá, um deus. (PARANDI, 2017. p 73)
Xangô, acusado de destruir seu próprio reino, é condenado a morte, ele tira
sua vida, mas a poderosa Iansã, acostumada a lidar com a morte, a afasta do honrado
Orixá. Iansã com seu poder constrói um caminho do Aiê para o Orum, onde Xangô é
recebido como um deus. A divindade e grandeza de Iansã são expressas em seus
atos e intenções, não existe desafio que ela não possa superar, nem a morte é páreo
para ela. Ela possui o caminho da terra e do céu, ela não depende de nada nem de
ninguém para ser quem é, e no mito observado é o homem que depende dela para
não ser subjugado pela morte, a glória dele provém dela, pois foi ela que lhe abriu
caminho para imortalidade e divinização. Epa Heyi!
Vejamos agora o arquétipo de uma das divindades mais populares do
imaginário africano presente no Brasil, Iemanjá:
No começo dos tempos, logo depois que o ser humano foi criado por Oxalá,
e quando ele já vivia em comunidades, os Orixás, que dividiam entre si o
governo do mundo natural, receberam de olorum a difícil incumbência de
governar também o mundo social, cada um cuidando de uma das diferentes
atividades desempenhadas pelos homens e pelas mulheres. Exu, que
controlava a atração sexual, a ereção no homem e o coito, ficou incumbido
de gerir os hábitos da sexualidade. Como já era mensageiro desde os
primeiros tempos, ganhou também a comunicação, as trocas e os negócios.
É o senhor das feiras e dos mercados. (...)
Por fim, ao distribuir seus poderes entre os Orixás, Olorum designou o lugar
de Iemanjá no quadro final da divisão do trabalho divino. Iemanjá, que
mandava no mar e estava acostumada a eterna rotina do ir e vir das ondas,
do subir e descer das marés, podia dar uma excelente dona de casa! Olorum
determinou que iemanjá deveria tomar conta pessoalmente de Oxalá, o pai
da humanidade, seu criador. Seria certamente honroso cuidar do inventor das
criaturas que cultuam, alimentam e distraem os Orixás, imaginou Olorum.
Assim Olorum delegou poderes a seus filhos Orixás e pode finalmente
descansar. (PARANDI, 2017, p 84;87)
15Bento Bruno de Menezes Costa ou simplesmente Bruno de Menezes, foi um escritor brasileiro. Ele
nasceu no bairro do Jurunas, em Belém do Pará. Nasceu a 21 março 1893 (Belém PA). Morreu em 02
Julho 1963 (Manaus, Brasil). O texto “Mãe preta” está na obra “Batuque” Belém- UFPA. 2005.
Como resultado das atividades desenvolvidas em sala sugeri que alguns
dos resultados fossem apresentados durante a semana da consciência negra, em
novembro. Muitos alunos aderiram a proposta e fizeram vária apresentações de
teatro, dança e desfile. A aluna presente na foto em específico (Fotografia 3) fez a
declamação do texto “Mãe preta” com outro aluno, que infelizmente faltou no dia por
motivo de doença resultando na minha participação. No registro que trago a vocês
apresento como a conexão com o universo simbólico africano pode produzir
resultados de produção direta por parte dos alunos.
A aluna em questão, hoje maior de idade, mora em outro Estado, mas ainda
mantemos contato pelas redes sociais. Por esses meios me encaminhou,
emocionada, um áudio declamando novamente o texto que decorou para um trabalho
escolar no ano de 2016. Cerca de 6 anos depois, já que nos falamos em dezembro
de 2022, ela ainda tinha uma memória afetiva de algo que é comum se esquecer, pois
temos a falsa ideia de que o aluno decora os conteúdos para cumprir uma tarefa. Ouvir
o áudio da ex-aluna, agora uma mulher, em outra conjuntura de vida, causou em mim
enorme comoção por perceber o quanto o trabalho realizado em sala de aula, por
meio de uma pedagogia valorativa da ancestralidade negra, pode acessar uma
subjetividade que será carregada para vida inteira.
A Fotografia 4 apresenta uma contação de histórias realizada na escola
municipal Mª Madalena Raad, localizada no distrito de Icoaraci, município de Belém.
Fui convidado pela professora de ensino religioso da escola, formada em Ciências da
Religião, Patrícia Perdigão, que todos os anos organizava com poucos recursos e com
quase ajuda nenhuma, a Semana da Consciência Negra como culminância das
atividades desenvolvidas ao longo do ano letivo.
Anualmente eu participava desta programação, auxiliando na execução do
evento, realizando a contação de histórias e promovendo um diálogo a respeito do
tema com os alunos. Os relatos da professora eram de que existia uma resistência
por parte dos colegas professores, principalmente cristãos e do corpo técnico de
mesma confissão religiosa, no que tange a realização do evento da escola. Ela
afirmava contar com a colaboração de apenas duas colegas, militantes reconhecidas
do movimento negro, e uma outra professora, contadora de histórias, que auxiliava no
enfrentamento frente a direção da escola.
Fotografia 4: Escola Mª Madelena Raad.
desenvolvido pelo SESC, programa que faz uma seleção de pessoas que produzem
arte e cultura de diferentes Estados brasileiros para participar de um circuito nacional,
no qual levam seus trabalhos a serem apresentados em diferentes cidades do país.
No ano de 2021 estavam previstas oito edições da oficina “Universo das histórias
africanas” que foi selecionado a participar do circuito cultural promovido pelo SESC,
entretanto em função do advento do Covid apenas 6 foram mantidas, mas apenas 5
foram realizadas. Infelizmente antes da realização da última oficina do ano, que seria
ministrada pelo modo on-line para uma unidade do SESC no Estado do Maranhão,
sofri um acidente que me impediu de realizá-la. Como a pandemia continuou impondo
o afastamento social, o SESC nos convidou a permanecer mais um ano ministrando
a oficina em 10 unidades espalhadas pelo país, como as oficinas eram ofertadas de
maneira virtual, permitia que pessoas, não só daquela localidade, que oferecia a
oficina participassem, o que permitia que numa oficina ofertada pelo SESC Paraná,
por exemplo, pudessem participar pessoas da Bahia, do Rio Grande do Sul e do Pará
ao mesmo tempo. Os públicos eram muito diversos e com diferentes orientações,
buscavam fins destintos ao participar da oficina, todos eram livres para participar, a
única restrição pré-determinada é que os participantes fossem maiores de 16anos,
por questões legais levantadas pelo próprio sistema de fomentação cultural. Não
houve um registro final do número de participantes ao longo das oficinas, até porque
estendi o acesso ao questionário ao público que participou da oficina, em edições
17 Zé Pelintra é uma entidade pertencente aos cultos afros, cultuado principalmente em casas de
Umbanda e/ou Tambor de Mina. Representa o bom malandro, veste-se sempre bem alinhado, com seu
terno, chapéu e sapato lustroso e bengala a mão.
europeu no Brasil estabeleceu essa discórdia entre os diferentes grupos religiosos do
país. A identificação da religiosidade africana como demonizada, expressão do mal
faz com que o indivíduo mais leigo no seio social ache que conhece as religiões dos
povos de orixás.
O olhar etnocêntrico tece generalização das diversas matrizes religiosas de
origem africanas existentes em território brasileiro. O desconhecimento considera
como se tudo se tratasse da mesma coisa, e como se soubessem do que falam.
Grupos cristãos depositam toda sua indiferença ao tema, chegam a combater e
acreditam ser um absurdo a naturalização de um discurso que trate com respeito e
equidade essas religiões.
Não só na África, mas em todos os lugares onde o colonialismo europeu
exerceu seu papel alienador, instaurou-se uma rivalidade entre grupos religiosos. No
Brasil o principal alvo do medo preconceito deixado pela colonização são as religiões
de matriz africana. Fanon (1965), faz uma descrição do que poderia ser o Brasil, mas
ele descreve não só um país, ele fala da realidade de todo um continente que reproduz
uma visão distorcida e maldosa sobre a cultura do seu povo, fazendo com o próprio
povo negro passe a reproduzi-los atacando seus irmãos e irmãs por crerem em algo,
que para esses, não poderia simplesmente existir.
Dentro das oficinas esse é o maior obstáculo que enfrento, como prender
a atenção das pessoas frente a um tema que causa tanto medo e receio? Por vezes
não traduzidos em palavras, são atitudes e gestos reprovativos que deixam claro a
reprovação ou a insegurança em falar sobre. Meu primeiro trabalho ao realizar a
oficina é convencer as pessoas de que o tema é de extrema importância para o
participante, em função das leis que incentivam a aplicação de conteúdos referentes
a África e afro-brasilidade como a lei 10639/2003 e lei 11645/2008.
A ideia da lei não é suficiente para convencer as pessoas a romperem seus
medos. A maioria vai tentar aplicar a lei de maneira não aprofundada procurando, na
maioria das vezes, se afastar de temas polêmicos para não terem nenhum tipo de
enfrentamento por parte dos que militam contra a causa negra. O polo de irradiação
desse preconceito são Igrejas identificadas como extremistas cristãs de doutrinas
distintas, mas principalmente representada pelo pentecostalismo e neopentecostais.
Para estas, a demonização das religiões negras é base do discurso religioso.
Considero importante desenvolver alguns conceitos que pouco foram
aprofundados anteriormente, para consolidar ainda mais a proposta de trabalho aqui
desenvolvida, orientando-se por uma episteme coesa capaz de consolidar nossa
proposição. O primeiro tema a ser observado é que se refere ao racismo religioso.
Segundo Filizola (2020), o racismo religioso tem origem na formação
histórica-social que se desenvolveu durante a colonização das américas com intuito
de impor o padrão eurocêntrico em detrimento de qualquer religiosidade que não fosse
a por eles oferecida. Como para o europeu colonizador a religião cristã deveria ser
hegemônica, ele passa a negar ou demonizar a cultura africana, associando seus
símbolos a ideia de mal maniqueísta ocidental. Segundo os memos autores, a ideia
de intolerância não cabe para identificar o sentimento direcionado as religiões de
resistência negra, por não se tratar de casos isolados, e por se constatar que essa
prática está na estrutura social, e representar um modo de ver e tratar uma religião
que se referência em determinado grupo étnico, o povo negro.
Segundo Filizola (2020), racismo religioso se caracteriza como:
19Iniciado por Allan Kardec em 1857, com a publicação de “O Livro dos Espíritos”, o movimento espírita
se apresenta como a continuação histórica e profética do cristianismo. Mais do que uma alternativa no
mercado religioso, o propósito espírita é a revitalização da figura exemplar de Jesus de Nazaré, num
revigoramento da ética do amor e da fé heróica das primeiras comunidades cristãs. O Espiritismo é um
movimento de reforma do cristianismo, dando continuidade e aprofundando o movimento reformista
dos séculos XV e XVI, visando o retorno às origens, e a purificação dos erros e incompreensões da
mensagem cristã ao longo dos séculos. Sua virtude foi abrir o Cristianismo à modernidade, incentivando
o diálogo entre ciência e fé. O futuro irá dizer também em que medida a espiritualidade mundial terá
caminhado ao ideal de “religião espiritual” e que papel a eclosão do movimento espírita terá
desempenhado nesse processo.
eu descrevi nos primeiros capítulos desse trabalho ao falar sobre minha construção
pessoal, fui alienado por uma formação que era incapaz de enxergar o outro e produzir
um diálogo respeitoso com sua forma de ver o mundo. Não um mundo distante, mas
nossa própria realidade sociocultural que está presente na musicalidade, nas
alegorias do samba que são vendidas para o mundo como cultura brasileira, mas que
na verdade não representa a totalidade nacional, muitos nem se quer possuem uma
referência positiva sobre o tema, entretanto seguem foliões pelas avenidas Brasil a
fora.
Pretendo destacar ainda três falas que considero importantes refletir.
Apontarei em seguida de cada fala apenas a localidade de origem, especificamente
por se tratar de um grupo de pessoas brancas e cristãs. As falas são as seguintes:
“Sou professora e vi a necessidade de contextualizar, desmistificar e refletir com meus
alunos a cultura afro-brasileira, principalmente a respeito das religiões.” (São Paulo);
“Sou apaixonada por contos africanos e li bastante sobre a mitologia dos orixás.”
(Brasília); “Gerar estruturas de resistência e empoderamento.” (Pernambuco).
Essas três falas carregam uma característica, estão no plano além do
senso comum, são pessoas que tem uma proposta de trabalho e como pessoas
brancas entendem e reconhecem sua ancestralidade negra, não só para si, mas
também para os seus, alunos ou familiares, pois sabemos que o conhecimento altera
a forma de ver e interagir com o mundo. Ler sobre, submergir na informação,
empoderar, são formas de resistir ao colonialismo. Estas pessoas já possuem uma
proposta de observância que ultrapassou o primeiro estágio, o do primeiro contato.
Elas se propõem a uma busca por formas, maneiras de aplicar esses conteúdos, têm
a intenção de aprofundar o que já se fez conhecer, como forma de dar força e sentido
para esse conhecimento, não só enquanto indivíduos, mas também como agentes
sociais.
Na quinta pergunta busco entender, se entre os participantes existem
conhecimentos prévios a respeito da continente a africano, me limitando a indagar
quais conhecimentos cada pessoa tinha sobre o continente africano. A maioria das
respostas traduz uma visão que supera a ideia de fome e miséria comumente
atribuídas ao continente. Entre elas fez-se referências a culturas tradicionais
baseadas na oralidade, a diversidade de países, línguas e culturas. Foi citada a
exploração do continente pelo ocidente e a contribuição dos povos africanos na
formação cultural brasílica. Ter uma noção da riqueza presente no continente africano
é um passo importante para desqualificar a falsa ideia do primitivismo e da
irracionalidade depositado sobre o continente (FANON 2008).
Na questão seis o que me parecia ser apenas a descrição do que
aprenderam sobre o tema a respeito das divindades africanas, onde pergunto o que
os Orixás representam para os participantes como uma pergunta direta e simples: “o
que os Orixás representam para você?”. Oito dos participantes disseram entendê-los
como divindades; como santos quando observados pela fé católica dessa pessoa;
declararam serem “ancestrais divinizados que trouxeram conhecimento aos seus
povos”; “energias da natureza”; “são seres encantados que protegem as pessoas, a
natureza e a humanidade por meio da religiosidade”; “são divindades da mitologia
africana”; representação de forças energéticas”; “são forças vitais e cheias de afeto”.
Todas as repostas apresentadas buscam traduzir o mínimo de referência
adquiridos pela formação e acúmulo de cada um, entretanto, para além da forma
respeitosa e entendimento qualificado das respostas acima apresentadas, vou na
direção de uma resposta que ao ver desse pesquisar traduz a visão mais comum entre
os leigos sobre o tema. A meu ver, representa a apatia brasileira em entender ou
buscar refletir sobre o tema, é a fala de uma participante do distrito federal, ao ser
indagado sobre o que os orixás representavam a ele, declara: “Nada”. O uso do termo,
por mais sucinta possa ser a intenção de resposta, tal afirmação traduz uma
asperidade próxima da rejeição, já que tal indiferença desqualifica o outro a uma
invisibilidade pela visão depositada sobre sua cultura. A identidade do outro não pode
ser nada para mim, quando eu mesmo não quero que minha maneira de ver e
interpretar o mundo, através da minha realidade não deva ser vista como nada pelo
outro.
Interpreto Fanon (ibidem) com essa necessidade não só de lutar pela causa
antirracista, não como idealista capaz de ser um mártir, mas como alguém que leva o
conhecimento a outras homens e mulheres para o reconhecimento de nossa
construção histórica. Nossa nação é fruto de miscigenações culturais e étnicas e esse
processo invisibilizou identidades étnicas. É necessário nos reencontramos como
nossas memórias multiculturais sem hierarquias. O combate se faz diariamente, com
palavras, gestos, reflexões imbuídas de uma leitura de mundo na qual a identidade
negra perpetuada em nossa cultura possa enfrentar o movimento de resistência
contraria, o preconceito, o racismo, através daqueles que persistem em traduzir
desqualificadamente os conteúdos negros em nossas vivências, tanto pessoais
quanto profissionais. Sem tais enfrentamentos jamais conseguiremos reconectar os
homens entre si, humanizá-los em seus múltiplos sentidos, pois se faz imperioso que
brancos e negros se vejam e se respeitem ontologicamente.
Na penúltima questão, a décima quarta, levanto a seguinte pergunta: “A
oficina universo das histórias africanas ajudou em qual sentido você a observar as
religiões de matriz africana e os conteúdos vivenciados por elas observados através
de seus mitos?” Predominantemente as respostas foram em sentido afirmativo,
considerando os mitos muito interessantes relatando que a oficina “ajudou a mudar
minha visão sobre a religião e religiosidade, além de ajudar a desconstruir a
concepção preconceituosa sobre os orixás” (Pará). Essas respostas traduzem as
intenções de nossa proposta de trabalho e demostram o quanto podem ser positivos
os resultados de uma educação por meio da desconstrução do muro da indiferença,
do medo, provocados uma educação eurocêntrica cristã que ao invés de dialogar,
diminui, rejeita, menospreza o outro simplesmente por ser o outro, por ter outra cor de
pele. Quando declaram que uma simples oficina é capaz de “ajudar a conhecer as
religiões de matriz africanas e a compreende-las melhor” (Brasília); como essa mesma
oficina pode ser capaz de levar a uma pessoa a dizer que: “sempre! Acho que a olhar
toda a vida em torno com respeito” (São Paulo). A mensagem de aceitação dos
conteúdos e de como essas pessoas puderam reler a mesma realidade a qual
estavam acostumadas, traz profunda satisfação, ou quando dizem que a mesma
oficina “Provocou aprofundamento e maios respeito as culturas africanas e afro-
brasileiras” (Brasília), quando um indivíduo de tez clara entende que tais conteúdos o
levam a “valorizar mais minhas origens” (Brasília) e reconhecendo que “ Ninguém é
dono da verdade nada é hegemônico e tudo é precário e contingente” (Pernambuco),
me leva a crer que o caminho do dialogo por meio de reflexões fundamentadas no
olhar de quem vive e produz tais conhecimentos é o melhor caminho em busca do
autoconhecimento e compreensão reflexiva da nossa realidade.
Na última questão, pergunto: “você acredita que irá enfrentar resistência ou
algum tipo de preconceito ao utilizar os mitos africanos em sua prática profissional ou
ambiente doméstico? Como pretende lidar com isso?” Em todas as repostas a
resistência é reconhecida, uns consideram que há falta de informação pelo conjunto
da sociedade e por significativa parcela de agentes educacionais, reconhecem que
existe desconfiança ao abordar o tema ao falarem sobre os “Orixás e suas energias”
(Pará). Declaram que mesmo existindo o preconceito se faz necessário buscar o
respeito as religiões, dizem se fazer necessário ter calma ao enfrentar os opositores
ao tema impondo o tema como forma de “retratar uma diversidade cultural” (Rio de
Janeiro).
Entendo que a resistência é parte do processo natural do enfrentamento ao
racismo religioso e por isso busco a reflexão por parte dos participantes para que eles
mesmos descrevam como isso faz parte do processo de uma educação para
descolonização do pensamento direcionado as religiosidades de origem negra. Isso
faz com que seja necessário observarmos mais de perto três falas que destacam de
maneira contundente o enfrentamento dessas pessoas brancas que se propõem a
trabalhar o conteúdo dos mitos iorubanos em suas práticas profissionais, vejamos a
primeira:
Não quero afirmar aqui que tal grupo já extirpou a influência ocidental na
sua forma de ver o mundo, mas destacar que o simples fato de, em sua maioria, estar
além da visão cristã como predominante em suas vidas já favorece um cenário mais
aberto a pluralidade. Enquanto no grupo cristão encontramos aqueles que já dialogam
com certa clareza com os conteúdos da mitologia iorubana, muitos ainda estão dando
seus primeiros passos e tendo seu contato inicial com o tema, enquanto os oriundos
de “outras formas de ver e interpretar o mundo”. Mesmo aqueles que não são
orientados por uma religião, como é o caso do agnosticismo, revelam uma promissora
não limitação e isso é um diferencial importante a se observar em relação aos dois
grupos.
A citação acima mostra que a descentralização da visão eurocêntrica
colonial promove uma percepção mais favorável, um entendimento maior sobre a
diversidade de leituras de mundo existentes. Supera-se, portanto, a identidade
hegemônica imposta pelo ocidentalismo e caminha-se para o diálogo com o diverso.
A multiplicidade de confissões religiosas ou a não confissão, favorece o diálogo entre
os diferentes, descolonizando assim a ideia de superioridade de uma sobre a outra.
A questão cinco interpela: “quais conhecimentos você tinha sobre a África?
A África para esse grupo traduz-se de maneira mais próxima. Mesmo em se tratando
de mulheres brancas, o fato de serem orientadas por uma versão menos
preconceituosa de mundo, para além da visão religiosa se traduz em falas como: “a
mãe África é o berço das civilizações” (PR); “o meu ex-marido era angolano, logo
tenho alguma relação com a África e tenho participado de oficinas de dança, roteiro e
arteterapia com brasileiros descendentes que trazem esse conhecimento de matriz
africana.” (SC). Duas mulheres brancas do extremo sul do país que traduzem uma
percepção relacional com o continente negro, uma por reconhecer sua ascendência e
outra por sua relação intima com seus descendentes e pela constante busca em
sempre aprender com os filhos dessa terra. É importante dizer que a participante de
Santa Catarina quando diz aprender com brasileiros descendes ela não está se
referindo a pessoas negras necessariamente, mas a toda e qualquer pessoa nascida
no Brasil, é que ela mora em Santa Catarina, mas é de origem Portuguesa, nascida
na cidade de Porto, e suas interações ficaram marcadas pelo rico discurso das
experiências que a mesma vinha construindo, por meio de suas vivências íntimas ou
profissionais a respeito do continente africano, o que também nos mostra que a
descolonização deve ser levada ao europeu para que não se perpetue entre eles a
falsa ideia de superioridade intelectual e cultural.
Fanon (1965), ao escrever o prefácio da obra “Os condenados da terra” de
Fanon nos traz uma perspectiva interessante ao dizer:
Este livro não necessitava de prefácio. Sobretudo, porque não se dirige a nós.
Escrevi-o, no entanto, para levar a dialéctica às suas últimas consequências:
também a nós, europeus, nos estão descolonizando; quer dizer, estão
extirpando numa sangrenta operação o colono que habita em cada um de
nós. Olhemo-nos bem, se tivermos coragem, e verificaremos que isso existe
de facto em nós. (SARTRE about FANON, 1965. P 14)
20Oríkì são um tipo de louvação, uma série de versos que exaltam as qualidades das divindades, dos
ancestrais e também são usados para dignificar pessoas ilustres e importantes para suas comunidades
como reis, portadores de cargos ou títulos e chefes de família. (SILVEIRA, 2020. P 45)
Percebam como um pequeno distanciamento da visão eurocentrada
promove uma leitura de mundo que já não representa o outro, mas uma percepção
construída por si. Quando indago sobre a visão religiosa espero ver descrita uma
intenção de conflito, não entre os praticantes da religião afro, mas seria possível
enxergar dissidências quando o indivíduo não confessa uma fé, ou se orienta pela
racionalidade. Não é a razão que afasta as pessoas, mas ausência dela, uma versão
cega da religiosidade que impede que as pessoas se enxerguem. Quando vejo os
participantes dizerem que não se aplica, é porque de fato não seguem uma fé e não
estão orientando-se por uma visão g. Vale destacar que mesmo não tendo uma base
religiosa, buscam nos saberes dados pelos Orixás, compreensões sobre o ser no
mundo. Esta ação gera respeito, e esperança em reconhecer o outro em sua
humanidade e em se ver menos capaz de reproduzir o racismo, independentemente
de minha origem étnica.
Existe nas falas expostas acima uma descolonização pois superaram os
preconceitos impostos pela sociedade, reconheceram a negação e a ignorância
destinada a religiosidade negra. A cor da pele não tornou as pessoas racistas, mas a
forma de ver e interagir com o mundo orientado por cosmovisões e teogonias que se
elevaram ao nível de superioridade. Propagavam a máxima de que as pessoas
deviam defender essa superioridade a qualquer custo e que ela não devia ser
corrompida por nenhuma outra cultura, principalmente a cultura negra.
A pergunta oito indaga: “Você conhecia os Orixás iorubanos antes da
oficina? O que você entendia a respeito? Destaco as seguintes respostas: “sempre
revisitando as narrativas” (PR); “conheço, mas não tenho familiaridade suficiente para
desenvolver.” (SC); “representação e cultura” (SC); “sim, porém, é de muita
importância para que os que ainda não sabem conhecer melhor.” (PA). Destaco essas
falas que representam menos da metade das pertencentes a esse grupo, pelo
surpreendente fato de que todas as outras respostas dizem não conhecer nada, quase
nada ou muito pouco. Dentre as que assim responderam estão praticantes de religiões
de matriz africana, a agnóstica e outras que dizem não confessar fé alguma. Entender
como é possível pessoas que tiveram sua construção sociocultural tão próxima das
religiões de matriz africana podem não ter uma referência estruturada a respeito do
assunto. Para isso é preciso entender como funciona a forma do colonialismo no
sentido de negar nossas referências, no que não está centrado na cultura europeia
cristã. Assim, mesmo coexistindo no mesmo espaço geográfico não se enxergar a
construção cultural e religiosa produzida por outros indivíduos. Vejamos o que diz
Carvalho (2020):
O colonialismo gerou em nós uma versão que não nos caracteriza, não só
isso, ela tira o outro, o não cristão de nosso horizonte de entendimento da realidade.
As religiões de matriz africana e os seus foram tão estigmatizados, suas divindades
tão associadas a ideia de mal cristão que impede que as pessoas possam vê-las,
quanto mais se referenciar nelas de maneira positiva, tal artifício faz que tais
conhecimentos estejam tão distantes, que mesmo pessoas que vivenciam religiões
que se comunicam em sua origem não consigam se ver e aprender umas com as
outras. As religiões de matriz africana são diversas e possuem universos simbólicos
distintos teologicamente falando e próximos, pelo processo de enfrentamento e
resistência que ambas tiveram para se perpetuar frente ao racismo colonial que a elas
foi imposto. É preciso entender como esse colonialismo age para que possamos
desconstruir suas estratégias e descolonizar nossa visão de mundo que está
embebida em suas formas, combatendo assim a segregação de suas mitologias e
construindo o diálogo e o reconhecimento entre elas.
Na pergunta nove indago: “No que se refere as religiões de matriz africana,
quais conhecimentos você possui a respeito?” Irei dividir em dois momentos as
respostas, vejamos o primeiro momento: “é a religião que acolhe, independentemente
de sua identidade de gênero, o sagrado é divino!” (PR); “conheço introdutoriamente a
cultura yorubá.” (SC); “frequento” (SC); “a melhor” (RJ). Nesse primeiro momento
reconheço a valorização da positividade própria da religiosidade pertinente a essas
confissões religiosas, destacando principalmente o acolhimento e a sensação
proporcionada pelo acolhimento dado pela religião àqueles que a buscam, bem como
a sincera referência da participante de Santa Catarina quando revela seu pouco e
introdutório conhecimento sobre o que vem aprendendo em seus estudos e constante
busca por construir um conhecimento aquém da ótica colonialista.
No segundo momento temos as seguintes falas: “que precisamos tirar o
véu do preconceito em se tratando de conhecimento, para as filhas da nossa casa.”
(PA); “pouco conhecimento” (SC); “antes de entrar na religião eu achava que eram
demônios” (PE); “que era uma religião muito perseguida por falta de informação ou
informações distorcidas.” (RJ); “algo muito misterioso e talvez algo que eu temia” (SP);
“muito pouco, mas sempre fui contra a intolerância religiosa.” (PR); “também tinha
preconceitos” (PA). Tais relatos mostram que o colonialismo não é algo pontual e não
alcança apenas mentes fracas e desprovidas de conhecimento, mas a maioria da
nossa população; que orientada por uma formação religiosa ou não, absorve os
efeitos do colonialismo que se desenvolvem pelo senso comum em nossa sociedade.
O racismo, por vezes, não se apresenta de formas direta, é velado, manifesta-se em
brincadeiras, referências maldosas e pela falta de habilidade perpetuada em nossa
sociedade em dar o trato devido ao tema. Existem pedagogias que se dizem
humanizadas, mas que colocam a questão racial em segundo, terceiro plano ou para
o momento que for possível.
“A descolonização é realmente a criação de homens novos, no entanto,
essa criação não recebe sua legitimidade de nenhuma força sobrenatural: a «coisa» 21
colonizada converte-se, no homem, no próprio processo pelo qual ele se liberta”
(FANON, 1965, p. 18). A fala de Fanon (ibidem) traduz o movimento pelo qual
passamos quando nós nos reconhecemos na condição de colonizado, não
conceitualmente, mas na prática, quando entendemos que o que nos foi ensinado era
a tentativa de apagar parte de mim enquanto colonizado, parte da referência cultural
que me identifica. Nos tornamos pessoas novas, não por meio de uma revelação do
divino, acontece pelo reconhecimento de mim naquilo que me foi negado. Minha
ancestralidade negra foi ressignificada no novo continente. Não sou apenas africano,
apenas indígena ou europeu, sou esse conjunto de referências que representam a
diversidade brasileira.
Dentre as pessoas que estão nesse segundo grupo temos uma sacerdotisa
de uma religião afro que é uma pessoa branca, e que pela realidade social, hoje insere
novas identidades a esse universo mítico religioso. Percebemos isso quando ela
escreve sua resposta descrevendo seus filhos e filhas na fé por meio de uma
linguagem neutra que busca suprimir os artigos que definem gênero para inseri-los
21 Aspas do autor.
em um ambiente que, segundo ela, é capaz de acolhê-los independentemente de
como cada um desses indivíduos se reconheçam.
Na pergunta dez: “Na sua opinião conhecimento sobre os mitos iorubanos
ajuda a combater o preconceito contra as religiões de matriz africana? Por quê? Nas
respostas dessa pergunta não irei fazer nenhuma colocação ou referência teórica,
entendo que pela profundidade das respostas, elas falam por si, irei suprimir apenas
as respostas monossilábicas e reescrever as demais, sendo importante salientar que
as respostas mesmo que monossilábicas apresentam um teor positivo frente a
indagação, no sentido de apontar o caráter positivo na utilização dos mitos.
As respostas são as seguintes: “o conhecimento é o caminho!!” (PR); “claro!
onde há conhecimento não há lugar para achismos e preconceito. Os mitos iorubanos
trazem muitos ensinamentos para a vida e revelam algo que está no nosso
inconsciente.” (SC); “sim!, porque conhecimento desmistifica o preconceito” (SC);
“após conhecer melhor quem são os orixás, você sai com vontade de mostrar para as
pessoas a importância desta oficina em outros espaços que não só o espaço de
terreiro.” (PA); “sim!, pois são importantes na construção da identidade de nosso país.”
(PR); “sim!, me fizeram conhecer sobre os mitos a que eles cercam” (PE); “sim!,
porque pude conhecer mais sobre a religião,” (RJ); “sim!, a oficina ampliou minha visão
sobre as religiões de matriz africana, pois a abordagem me levou a desconstruir
preconceitos e mudar o olhar.” (SP); “com certeza!, ela é linda, cheia de simbolismos
e significados” (PA).
Tais falas contemplam a proposição e importância desse trabalho, a ponto
de me debruçar sobre e transformá-lo como resultado de trabalho dentro do programa
em Ciências da Religião, para que uma metodologia aplicada possa servir como
referência possível de aplicação epistêmica e metodológica dentro da área. Sigamos
para nossa próxima questão.
A Pergunta onze questiona: você considera importante conhecer a
mitologia de uma cultura? O que a mitologia iorubana mostrou para você?
Respostas: “muito rico, histórico” (PA); “uma fonte imensa de riqueza
cultural e espiritual.” (SP); que deveriam ser mais estudadas pelas pessoas que não
pertencem as religiões de matrizes africanas, para que o preconceito possa ser
combatido com informações.” (RJ); “O curso nos faz ver alguns preconceitos
existentes sobre a matriz africana” (PE); “cultura obrigatória” (RJ); “que seria muito
bom se fosse um projeto para as escolas. Inserido no dia a dia dos alunos.” (PA);
“força da ancestralidade e formação da cultura brasileira” (SC); “resiliência e justiça.”
(SC); “conhecer e aprofundar-se!!!” (PA).
O indicativo positivo de que os mitos podem e devem ser aplicados em
ambientes educacionais, através de uma leitura conceitual da mitologia iorubana por
parte das participantes da oficina, nos referência como salvo-conduto a prosseguir e
aprofundar de maneira qualitativa a mitologia iorubana no formato de traduzir uma
forma de saber ancestral africano, para promover a descolonização nos ambientes
onde puder levá-los.
Sobre a Pergunta doze: “Na sua opinião os mitos iorubanos têm alguma
semelhança com as mitologias de outras culturas? Destaco as seguintes respostas:
“todo mundo se conecta quando é do bem” (RJ); “que todos são divindades
(entidades) para seu povo.” (RJ); “estreita relação” (SC); “alguns aspectos do
inconsciente coletivo e os arquétipos sim, porém com suas especificidades culturais.”
(SC); “algumas semelhanças!” (PR); “todos são mitos, porém os africanos são vistos
com um olhar preconceituoso, apesar de serem lindos” (PA); “nossa sociedade
ocidental valoriza demais a mitologia greco-romana e dá pouco espaço para as outras
mitologias.” (SP); “existe uma correlação, porém o que afasta é o racismo.” (PA); “os
mitos dos africanos são vividos pelas religiões de cultura africana e os mitos gregos
são apenas mitos” (PE).
Irei me ater as três últimas respostas, quando a participante paulista diz
que valorizamos muito a cultura greco-romana ela está evidenciando a necessidade
de traduzir como superior a cultura ocidental, que tem sua tradição filosófica orientada
nessas referências culturais em detrimento a uma infinidade de cosmovisões
espalhadas pelo mundo, o ocidentalismo impõe a falsa ideia de que tudo que está fora
desse reduto iluminado está em desacordo com o que é bom ou evoluído, afinal o
logos grego e força romana inspiraram e inspiram o mundo moderno ocidental que
teve sua origem durante o colonialismo.
O projeto colonial deu início a uma versão racializada de sociedade,
homens passaram a subjugar outros homens por causa de suas origens e cor de pele,
pelo fato de como viam e interagiam com o mundo sob uma ótica que não a europeia,
esse racismo mantem-se até os dias atuais por meio da visão inferiorizada depositada
sobre essas culturas, o racismo não só inferioriza, mas demoniza e termina por
desumanizar a visão africana de mundo, por esse motivo temos a noção, da
informação trazida pela última resposta. O fato de tratarmos toda literatura que
representa a religiosidade de um grupo, sendo ela vivenciada em nossos dias ou não,
não diminui seu valor no plano educacional.
O ensino religioso deve ter como princípio a equidade no trato as religiões,
adequando sua linguagem as demandas sociais e valorizando as referências pessoais
dos educandos, o mito aqui não é uma verdade de fé. É respeitada como tal, mas
equivale-se a qualquer outra proposta religiosa de traduzir a vontade do divino, do
mesmo modo que é a bíblia sagrada para os cristãos e o corão para os islâmicos.
Entro então em uma discussão que pretendo aprofundar no próximo
capítulo sobre afroteologia, um conceito que significa o que acabo de descrever para
o entendimento da mitologia das diferentes teogonias religiosas na busca de
desqualificar a exclusividade judaico cristã em observar seus textos sagrados, e dá
visibilidade a leitura e interpretação filosófica aos saberes contidos nas religiões de
tradição oral afrocentradas, como é o caso do candomblé keto do qual utilizo sua
mitologia para observação, aplicação e reflexão de seus conteúdos, vejamos o que
Carvalho (2020) nos diz:
22 São vertentes, tipos de candomblé, divisões por origem de povos, referenciados na matriz cultural
ainda no continente africano.
cristãos o colonialismo tem suas extensões por toda nossa estrutura social. O
enfrentamento do racismo, dentro de uma vida de ataques sofridos pelo processo de
tentativa de demonização e preconceito sofrido pelos praticantes de religiões de
matriz africana, também pode gerar uma postura de distanciamento ao restante da
sociedade, principalmente dos cristãos, pois, essas pessoas, para se defender,
passam a atacar ou não querer se mostrar, presumindo que serão hostilizadas ao
revelarem sua confissão religiosa. Serão notados alguns exemplos desse afastamento
em algumas de praticantes de religiões africanas, entendo que esse distanciamento,
o não querer se mostrar, é uma busca na direção da autopreservação.
Nas Antilhas, o jovem negro que, na escola, não para de repetir “nossos pais,
os gauleses”, identifica-se com o explorador, com o civilizador, com o branco
que traz a verdade aos selvagens, uma verdade toda branca. Há
identificação, isto é, o jovem negro adota subjetivamente uma atitude de
branco. Ele recarrega o herói, que é branco, com toda a sua agressividade –
a qual, nessa idade, assemelha-se estreitamente a uma dádiva: uma dádiva
carregada de sadismo. Uma criança de oito anos que oferece alguma coisa,
mesmo a um adulto, não saberia tolerar uma recusa. Pouco a pouco se forma
e se cristaliza no jovem antilhano uma atitude, um hábito de pensar e
perceber, que são essencialmente brancos. (....)
Impor os mesmos “gênios maus” ao branco e ao negro constitui um grave
erro de educação. Quem concorda que o “gênio mau” é uma tentativa de
humanização do “isso” *, pode perceber nosso ponto de vista. Rigorosamente
falando, diríamos que as cantigas infantis merecem a mesma crítica. Fica
logo claro que queremos, nem mais nem menos, criar periódicos ilustrados
destinados especialmente aos negros, canções para crianças negras, até
mesmo livros de história, pelo menos até a conclusão dos estudos. Pois, até
prova em contrário, estimamos que, se há traumatismo, ele se situa neste
momento da vida. (FANON, 2008, p. 132)
ALVES, Míriam Cristiane; DE JESUS, Olorode Ògìyàn Kálàfó Jayro Pereira. Orgs. A
Matriz Africana: Epistemologias e Metodologias Negras, Descoloniais e Antirracistas.
Porto Alegre: Rede Unida, 2020.
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