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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

KEYDSON EMANUEL GARCIA COSTA

OS MITOS AFRICANOS NA EXPERIÊNCIA DE UM GRIOT:

A UTILIZAÇÃO DA MITOLOGIA IORUBANA NA PRÁTICA EDUCACIONAL

Belém
2023
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

KEYDSON EMANUEL GARCIA COSTA

OS MITOS AFRICANOS NA EXPERIÊNCIA DE UM GRIOT:

A UTILIZAÇÃO DA MITOLOGIA IORUBANA NA PRÁTICA EDUCACIONAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências da Religião, da
Universidade do Estado do Pará como
requisito parcial para a obtenção do título de
mestre em Ciências da Religião, sob a
orientação do Prof. Dr. Leif Erickson
Grunewald.

Linha de Pesquisa: Religião e Sociedades.

Belém
2023
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
Biblioteca do CCSE/UEPA, Belém - PA
Costa, Keydson Emanuel Garcia
Os mitos africanos na experiência de um Griot: a utilização da mitologia
iorubana na prática educacional /Keydson Emanuel Garcia Costa; orientação
de Leif Erickson Grunewald. - Belém, 2023.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) - Universidade do Estado


do Pará. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Belém,
2023.

1.Negros-Religião. 2.Mitos. 3.Contação de histórias. I. Negros-Identidade,


Grunewald, Leif Erickson (orient). II. Título.
CDD 23ed. 299
Regina Coeli A. Ribeiro - CRB-2/739
KEYDSON EMANUEL GARCIA COSTA

OS MITOS AFRICANOS NA EXPERIÊNCIA DE UM GRIOT:

A UTILIZAÇÃO DA MITOLOGIA IORUBANA NA PRÁTICA EDUCACIONAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências da Religião, da
Universidade do Estado do Pará como
requisito parcial para a obtenção do título de
mestre em Ciências da Religião, sob a
orientação do Prof. Dr. Leif Erickson
Grunewald.

Linha de Pesquisa: Religião e Sociedades.

Data de defesa: 28.02.2023

Banca Examinadora:

__________________________________

Prof. Dr. Leif Erickson Grunewald


Universidade do Estado do Pará

__________________________________

Profa. Dra. Taissa Tavernad


Universidade do Estado do Pará

__________________________________

Prof. Dr. Thiago Azevedo


Universidade do Estado do Pará

Belém
2023
Dedico esse trabalho a Deus por
me manter vivo, mesmo tendo
passado por uma experiência tão
profunda de quase morte. A luta
perene do combate ao racismo. A
ancestralidade africana presente
nos saberes das religiões negras.
AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a Deus por me permitir ter sanidade e conseguir


chegar até o final da jornada dentro do programa. A todas as pessoas que me
ajudaram direta ou indiretamente a passar pela recuperação dos traumas do acidente
que quase me tirou a vida; aos meus queridos amigos e fisioterapeutas: José de Deus,
Felipe Calandrine e Cleo Sampaio de Oliveira que me ajudaram a me sentir forte, a
enfrentar minhas dores, a recuperar o vigor e a força para ter condições de dar
continuidade a minha vida com qualidade.
Agradeço imensamente ao Dr. Maurício Câmara, cirurgião ortopedista, que
juntamente com uma equipe de outros profissionais, salvou minha vida, literalmente;
passou a me acompanhar mais que profissionalmente, mas de forma humana e
afetuosa cuidou e cuida de mim até hoje, deixando clara sua satisfação em me ver
bem e retomando minha vida.
Gratidão as pessoas que compõem minha trajetória de vida, e me ensinaram a
ser a pessoa que me tornei, principalmente as mulheres que me fizeram ser o homem
que sou: minha mãe, Dona Alice Dalva; minhas avós, Maria Eliza e Margarida; e a
todas as minhas tias que foram mulheres fortes frente ao desafio de estarem casadas
com homens complicados e com uma visão distorcida de família. Agradeço a minha
irmã dada pela vida, Patrícia Perdigão, sobre a possibilidade de compartilhar a
jornada, abrindo meus olhos para minha ancestralidade negra por meio de uma
melhor concepção a respeito das religiões de matriz africana. Sou grato por sua
família, Sr. Walter e D. Regina, autoridades religiosas que sempre com muita
paciência me acolheram em seu lar, me ensinaram e me consolaram em momentos
de aflição.
Quero agradecer a figura forte e paternal do meu tio Sergio Lourival Garcia,
sempre presente nos momentos mais difíceis e importantes da minha vida, me
ensinando e acarinhando com palavras inspiradoras.
Agradeço a minha família Griot, minhas mestras na arte de contar histórias,
minha eterna coordenadora e amiga, a fada das letras, Prof.ª Dra. Renilda Bastos, e
as sensivelmente utilizadas para nos avaliar, minhas irmãs da palavra: Adrine Motley,
Claudia Moscoso, Alessandra Dias, Rita de Cássia e Dia Favacho, meu quilombo
poético, que me acolheu e me formou na arte das histórias.
Quero agradecer aos amigos Anderson Costa, Armando Gabriel, Cristian Ralf,
Lívio Ederson pelos cuidados dedicados a mim e a minha família, por estarem perto
nos momentos mais difíceis.
Agradeço o amor e paciência da minha esposa, Luiza Marta, minha filha M ª
Cecília, e meu filho Emanuel, por terem que passar tantos momentos longe de mim,
momentos que geraram consequências para vida toda, mas que tenho certeza de que
iremos superar. Agradeço ao companheirismo da minha esposa que suportou o
mundo nas costas enquanto eu me recuperava do trauma do acidente, físico e
emocional. É por eles que persisti e consegui terminar esse trabelho.
A todos e todas que responderam ao questionário para o desenvolvimento do
meu trabalho, tirando parte do seu tempo para contribuir com essa pesquisa, e tiveram
o desejo de transmitir da melhor maneira seus pontos de vista, pois sabem o quão
importante é o tema para caminharmos em direção ao combate do racismo.
Agradeço enormemente a professora Taissa Tavernad de Luca, pelo cuidado
que teve em me direcionar à construção desse trabalho, que me acolheu no programa,
mas que infelizmente precisou deixa-lo; agradeço por estar sempre comigo de
maneira direta e indireta, e por ainda compor a banca para avaliação desse trabalho
que tem seu DNA na origem.
Agradeço a toda ajuda física, espiritual e financeira das pessoas para chegar
até aqui, muito obrigado, que Deus possa abençoar a todos e todas, eu aprendo e me
melhoro com a ajuda de cada um de vocês. Ubunto!
Pantera Negra.

Minha pele, Luanda


Antessala, Aruanda
Tipo T'Challa, Wakanda
Veneno Black Mamba
Bandoleiro em bando
Qué o comanda dessas banda?
'Sa noite ceis vão ver mais sangue
Do que Hotel Ruanda
A era vem selvagem
Pantera sem amarra
Mostra garra negra
Eu trouxe a noite como camuflagem
Sou vingador, vingando a dor
Dos esmagados pela engrenagem
Ceis veio golpe, eu vim Sabotage
Místico, mil orixás num panteão, bravo
Mato colono, pono fim, igual leão de Tsavo
Tuchano grave memo
Entrave nunca, eu agravo
Monstro, crânio, vibranium
Te corto em 12 avos
Raio tipo Usain Bolt, 10 mil volts
Ancestrais aplaudem, gravem
Tanehi sem coachs
Memória longa, pavio curto
Nesse approach e pá
Digam que o zica voltou tipo uma ak
Com a garra, razão e frieza, mano
Se a barra é pesada, a certeza é voltar
Tipo Pantera Negra (eu voltei)
Tipo Pantera Negra

EMICIDA
RESUMO

COSTA, K. E. G. “OS MITOS AFRICANOS NA EXPERIÊNCIA DE UM GRIOT: a


utilização da mitologia lorubana na prática educacional” 2023. Dissertação
(Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2023.

Uma etnobiografia da história de vida de um jovem negro que teve como formação
moral uma visão colonizadora a partir dos princípios cristãos pentecostais presentes
em sua vida familiar e religiosa. A colonização sociorreligiosa só é compreendida
quando o pesquisador, que narra suas histórias, percebe que não consegue se
aproximar das religiões de matriz africana, em consequência do racismo religioso
predominante em nossa sociedade, capaz de impedir com que as pessoas se
aproximem do universo simbólico das religiões negras, em função do medo imposto
pela visão hegemônica cristã ocidental que traduz as religiões como candomblé e
umbanda como uma prática do mal, algo primitivo ou inferior. Depois de reconhecer o
racismo entranhado em sua formação psicossocial e religiosa o autor passa a buscar
formas de romper essa estrutura, procurando maneiras de descolonizar seu olhar
enquanto pessoa negra e educador. O autor, que é um contador de histórias, formado
pelo grupo Griot de contadores de histórias da Universidade do Estado do Pará, passa
a utilizar os mitos iorubanos como pauta para suas contações de histórias, ao observar
os resultados obtidos com sua prática de contar os mitos dos Orixás, ele transforma
essa prática em uma oficina e passa a difundi-la pelo país através de uma oficina
denominada de “Universo das histórias africanas” dentro do projeto “Arte da Palavra”,
desenvolvido pelo sistema SESC. Como análise do seu trabalho de formação, ele
apresenta os resultados da oficina por meio de relatos feitos pelos participantes que
responderam um questionário referente a participação na oficina, bem como a visão
de cada um frente aos resultados alcançados durante sua realização. Os principais
temas discutidos no corpo do trabalho são: ancestralidade, memória, identidade e
racismo religioso. Todas as discussões são feitas com referências diretas a Frantz
Fanon, construindo assim uma relação com o conceito de decolonialismo,
demonstrando como a versão eurocêntrica de mundo, por meio de uma lógica cristã
dominadora, impediu e ainda impede que as pessoas possam acessar as memórias
negras presentes nas tradições religiosas afrocentradas, por demonizarem suas
teogonias e traduzirem de forma desqualificada seus ritos e práticas.

Palavras-chaves: Griot/griô; Contação de histórias; Etnobiografia; Racismo religioso;


Identidade/ancestralidade.
ABSTRACT

COSTA, K. E. G. “OS MITOS AFRICANOS NA EXPERIÊNCIA DE UM GRIOT: a


utilização da mitologia lorubana na prática educacional” 2023. Dissertação
(Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2023.

An ethnobiography of the life history of a young black man whose moral formation was
a colonizing view from the Pentecostal Christian principles present in his family and
religious life. Socio -religious colonization is only understood when the researcher, who
tells his stories, realizes that he cannot approach the religions of African matrix, as a
result of predominant religious racism in our society, capable of preventing people from
approaching the symbolic universe of Black religions, due to the fear imposed by the
Western Christian hegemonic view that translates religions such as candomblé and
umbanda as a paractice of evil, something primitive or inferior. After recognizing racism
ingrained in his psychosocial and religious formation, the author becomes ways to
break this structure, seeking ways to decolonize his gaze as a black person and
educator. The author, who is a storyteller, formed by the Grot Grot of History
Accountants of the State University of Pará, starts to use Yoruban myths as an agenda
for his storytelling, observing the results obtained with his paractice of counting the
paractice myths of the orishas. It transforms this paractice into a workshop and spreads
it across the country through a workshop called the “universe of African stories” within
the project “Art of the Word”, developed by the Sesc System. As an analysis of his
training work he presents the workshop results through reports made by the
participants who answered a questionnaire regarding participation in the workshop, as
well as their view of the results achieved during their realization. The main topics
discussed in the body of labor are: ancestry, memory, identity, religious racism. All
discussions are made with direct references to Frantz Fanon, thus building a
relationship with the concept of decolonialism, demonstrating how the Eurocentric
version of the world, through a dominating Christian logic, has prevented and still
prevents people from accessing black memories present in African religious traditions,
for demonize their theogonies and disqualified their rites and paractices in a
disqualified way.

Key-words: griot/griô; storytelling; ethnobiography; religious racismo; identity/ancestry.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Fotografia 1: K. Emanuel G. Costa no espetáculo: "MITOS AFRICANOS:


conhecendo antigas memórias." 67
Figura 1: Mitos africanos conhecendo antigas memórias – espetáculo. 68
Fotografia 2: Keydson Costa Memórias da mãe África. 79
Figura 2: Memórias da mãe África. 79
Fotografia 3: Escola Nagib apresentação com aluna. 89
Fotografia 4: Escola Mª Madelena Raad. 91
Fotografia 5:Mãe Katia Hadad escola Nagib. 92
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9
CAPÍTULO I - A ETNOBIOGRAFIA DE UM JOVEM CRISTÃO PENTECOSTAL... 19
1.1 PRIMEIRAS MEMÓRIAS E LOCALIZAÇÃO SOCIOCULTURAL E RELIGIOSA
24
1.1.2 A Origem Paterna. .......................................................................................... 28
1.2 A COLONIZAÇÃO DO OLHAR A PARTIR DA FÉ CRISTÃ .............................. 34
1.3 O PAPEL DAS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO NA CONSTRUÇÃO DE UM NOVO
OLHAR ...................................................................................................................... 39
1.4 O AUTORRECONHECIMENTO COMO PESSOA NEGRA E O NOVO OLHAR
RELIGIOSO CRISTÃO .............................................................................................. 52
CAPÍTULO II - A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS COMO LINGUAGEM
EDUCACIONAL PARA O COMBATE AO RACISMO RELIGIOSO ......................... 56
2.1 A ORIGEM DE UM GRIOT ............................................................................... 63
2.2 OS MITOS IORUBANOS COMO PROPOSTA DE DESCONSTRUÇÃO DO
RACISMO.................................................................................................................. 71
2.3 EXPERIÊNCIA DE APLICAÇÃO DOS CONTEÚDOS DENTRO DOS
AMBIENTES EDUCACIONAIS, DESAFIOS E CONQUISTAS COMO RESULTADO
DA PRÁTICA DE CONTAÇÃO.................................................................................. 87
CAPÍTULO III - O UNIVERSO DAS HISTÓRIAS AFRICANAS, DESAFIOS E
CONQUISTA ............................................................................................................. 95
3.1 PARTICIPANTES AUTODECLARADOS BRANCOS/CRISTÃOS E OS MITOS
IORUBANOS. .......................................................................................................... 104
3.2 PARTICIPANTES AUTODECLARADOS BRANCOS/NÃO CRISTÃOS E OS
MITOS IORUBANOS. ............................................................................................. 116
3.3 PARTICIPANTES AUTODECLARADOS NEGROS/PARDOS/CRISTÃOS E OS
MITOS IORUBANOS. ............................................................................................. 128
3.4 PARTICIPANTES AUTODECLARADOS NEGROS/PARDOS/ NÃO CRISTÃOS
E OS MITOS IORUBANOS. .................................................................................... 140
CONCLUSÃO ......................................................................................................... 154
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 161
INTRODUÇÃO

O meu ingresso no Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião


ofertado pela Universidade do Estado do Pará (UEPA) se deu através da aprovação
do projeto que tinha como tema: “Ancestralidade africana: o contexto por trás do texto”,
que, entre seus objetivos, visava: analisar textos de autores da antropologia e da
sociologia escolhidos pelos praticantes do candomblé Keto nos estudos sobre a
mitologia iorubana; entender de que forma essa mitologia escrita pelos antropólogos
brancos e/ou europeus transformaram-se em referências para as religiões de
oralidade e passaram a ser lidas como “bíblia” sendo utilizada na cosmologia dos
terreiros. Minha intenção era entender o papel da branquitude e do pensamento
científico no processo de modificação de sistemas culturais africanos.
Os autores que pretendia utilizar na pesquisa eram: Verger, em sua obra
“Orixás” (1981), e o sociólogo e pesquisador brasileiro Parandi, por meio da obra
“Mitologia dos Orixás” (2001). Ambos desenvolveram um conjunto de informações que
os tornaram verdadeiras referências no que se refere o universo religioso africano.
Suas obras foram e são utilizadas nas pesquisas de muitos estudiosos africanistas
bem como para praticantes da religiosidade de matriz africana, que passaram a fazer
uso litúrgico e ritual do conhecimento contido nas obras a respeito dos saberes
existentes dentro das religiões tradicionais africanas.
A intenção era entender como essas construções teórico literárias
influenciaram na própria prática da religião; como esses conteúdos são vistos e
utilizados dentro de um espaço de culto do candomblé Keto; qual a relação e
referências dos conteúdos produzidos por esses autores dentro da casa de
candomblé Ilê Axé Oyá Nirolê Igbale, localizada na cidade de Ananindeua, que se
auto identificava como nação Keto e posteriormente passou por um processo de
conversão a nação Jeje, sem, no entanto abrir mão da mitologia Keto contida nas
obras Supara-citadas (Parandi e Verger) possuindo no seu panteão sagrado muitas
das divindades estudadas pelos autores destacados como alvo de pesquisa.
Logo no início do levantamento de dados para o projeto de pesquisa
apresentado no processo de seleção para Programa de Pós-graduação em Ciências
da Religião (PPGCR) pela Universidade do Estado do Pará (UEPA), teve início no
país e no mundo a propagação do vírus denominado de COVID-19, alcançando o
status de pandemia. Esse contexto pandêmico reorganizou, pelo menos no período
do seu ápice, quando milhares de vidas eram ceifadas diariamente, as relações
sociais. Estabelecimentos comerciais, educacionais, espaços públicos e religiosos
foram impedidos de funcionar como tentativa de diminuir a disseminação do vírus
entre toda a população. Dentro da realidade imposta pelo COVID-19 fui obrigado a
rever minha proposta de projeto, em consequência do medo e da possibilidade real
de sucumbir aos sintomas característicos do vírus.
Em adição a isso passei por um acidente de trânsito que me levou a
realização de muitos procedimentos cirúrgicos. Este desastre reduziu minha
capacidade locomotora ao retirar o movimento do pé direito depois quebrar a bacia.
Tal situação limitou minha capacidade de estar em campo da forma planejada
anteriormente. Neste sentido, minha então orientadora, professora Taissa Tavernad
de Luca, propôs a reformulação do projeto adequando-o ao novo contexto. O objetivo
do projeto reformulado passou a ser realizar uma etnobiografia da minha história de
vida, considerando minha experiência profissional na prática da contação de histórias
africanas e meu olhar religioso cristão pentecostal.
Meu nome é Keydson Costa, sou um homem negro, ou melhor, me
descobri negro ao entrar na universidade. Tenho hoje 38 anos de idade e exerço a
atividade de contador de histórias desde os 17 anos, quando entrei na universidade.
Sou professor da rede estadual de ensino na área de ensino religioso, atualmente
atuando no município de Paragominas para onde me mudei com minha família.
Apesar de não estar em sala de aula, por ter sido readaptado em consequência do
acidente acima referido, continuo atuando como educador, em projetos desenvolvidos
na biblioteca da Escola de Ensino Fundamental e Médio Presidente Castelo Branco,
situado no bairro periférico, de forte presença da população negra, chamado Bairro
Industrial (Paragominas). Esta escola tem como perfil o atendimento da população
negra, indígena e das demais comunidades rurais do município de Paragominas. Tais
projetos têm como eixo de ação a lei 10.639/2003, promulgada pelo presidente Luís
Inácio Lula da Silva, com o objetivo de desconstruir o sistema educacional
eurocentrado e inserir na matriz curricular da educação básica conteúdos ligados a
história e cultura africana e afro-brasileira.
Minha graduação em Ciências das Religiões (2009) se desenvolveu entre
os anos 2002 e 2009 com a produção do seguinte trabalho de conclusão de curso
intitulado: “O PENSAMENTO AFRICANO NO RELIGIOSO: a epstemologia africana
numa breve leitura sobre o candomblé iorubano.” Já nesse trabalho me proponho a
mostrar a relevância da utilização dos mitos Iorubanos como recurso para uma
educação que promova o diálogo entre a metodologia escolar de ensino e os saberes
dos terreiros de candomblé Keto. Na produção deste TCC, apresentado como
requisito avaliativo para conclusão da graduação, tive contato com os trabalhos de
Reginaldo Parandi e Pierre Verger, tais referências me seguiram na vida profissional
e artística como contador de histórias.
Durante minha graduação tive a oportunidade de conhecer a Professora
Dr.ª Renilda Bastos, até então, coordenadora de um grupo de contadores de histórias
na UEPA, o Griot1. Ainda no ano de 2002 passei a compor o grupo e fui iniciado na
arte de contar histórias e, como proposta de narração, seguíamos as diretrizes de
Walter Benjamim:

Nada facilita mais a memorização das narrativas que a quela sóbria concisão
que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalização com que o
narrador renuncia as sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se
gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua
própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá a inclinação de
reconta-la um dia. (BENJAMIM, 1987. p. 204)

A proposta do grupo de contadores de histórias, ao entrar em contato com


os textos mitológicos, era a decorá-los na busca de criar uma conexão com a realidade
do público que escutava a narração. Tínhamos o entendimento de que o texto lido
“entrava no corpo” do contador. Todos líamos os textos escolhidos pelo grupo e os
decorávamos. Entretanto, se o texto não se manifestasse quando narrado com a
naturalidade pretendida pela obra, o contador não estava apto para seguir contando
essa história. Assim como Benjamim propõe, a intenção era superar as “sutilezas
psicológicas” e tornar o mais natural possível a narrativa pretendida, no propósito de
construir com o público a conexão necessária para aproximá-los do texto narrado.
Durante o processo de formação dentro do grupo de contadores de
histórias da UEPA, éramos incentivados a trazer como proposta, não textos que
apenas coubessem na produção do espetáculo a ser apresentado, mas, narrativas

1 GRIOT é um grupo de contadores de história coordenado pela professora Renilda Bastos, o grupo
estava vinculado a Universidade do Estado do Pará como projeto de extensão e tinha como principais
integrantes as alunas do curso de formação de professores que ofertado pela universidade. (SANTANA,
2015. p. 13).
com as quais tivéssemos uma profunda relação de empatia, uma profunda conexão a
ponto de nos sentirmos capazes de apresentar com o sentimento pretendido pelo
autor ou com o sentimento que ele suscitasse em nós. Procurávamos integrar texto e
corporeidade de forma que nossos corpos e mentes atuassem na ação interpretativa.
A prática de contar histórias me levou por caminhos que não eram
pretendidos, “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte que recorrem os
narradores” (BENJAMIN, 1987. p. 198). Como experimentei um conhecimento que
desconstruiu o olhar preconceituoso que haviam imposto na infância - vivenciada em
uma cultura pentecostal – acerca das religiões de matrizes africanas, passei a me
utilizar do sentimento de respeito e valorização da cultura negra como ação social na
tentativa de desconstruir noções coloniais imputadas no imaginário da infância e
juventude negra pelo processo de opressão social ou pelo mito da democracia racial
(FREYRE, 2006). Sendo assim fiz do uso de minha prática de contação de histórias,
ação política tanto em espaços ligados a arte quanto dentro de sala de aula, como
recurso pedagógico.
Construí uma proposta de trabalho pautada de contar histórias como base
metodológica de linguagem de interpretação da mitologia africana presente nos
terreiros de candomblé Keto possibilitando uma leitura que favorecesse a
desconstrução do racismo religioso direcionado a essas manifestações religiosas
dentro do nosso país.
Ainda sobre a orientação da professora Taissa Tavernad, construí o projeto
e passei pela primeira qualificação do PPGCR, todavia, por motivos pessoais, a
professora não pôde mais me orientar e em seguida pediu afastamento do programa.
Sem orientador, fui direcionado ao Professor Dr. Hélio Neto, que por ser antropólogo
e integrar a linha de pesquisa de linguagens da religião, a qual estava vinculado,
assumiu o direcionamento deste trabalho. No entanto, meses depois, o referido
professor também pediu para se retirar do programa me deixando mais uma vez sem
orientação. Só em agosto de 2022 fui agregado ao grupo de orientandos do professor
Dr. Leif Erickson Grunewald, o que me levou a adaptar novamente essa pesquisa.
Sob a orientação do professor Leif qualifiquei a proposta de uma
etnobiografia como caminho para transcrever minhas memórias acerca da minha
história de vida, de forma a refletir sobre as mudanças pelas quais meu pertencimento
passou ao longo das diferentes fases da minha vida. Para tal fiz uso da noção de
etnobiografia desenvolvida por Gonçalves (2012), segundo a qual:

O indivíduo passa a ser pensado a partir de sua potência de individuação


enquanto manifestação criativa, pois é justamente através dessa
interpretação pessoal que as ideias culturais se precipitam e tem-se acesso
à cultura. É nesse sentido que emerge a conceituação de etnobiografia que
procura dar conta da intrincada relação entre sujeito, indivíduo e cultura.
Chegamos aqui a uma definição de mundos socioculturais em que estes são
pensados como produção dos indivíduos que deles fazem parte, indivíduos
cuja imaginação pessoal está sempre situada: criando o mundo, eles próprios
e suas perspectivas sobre este mundo. A realidade sociocultural, portanto,
não é mais que as histórias contadas sobre isso, as narrativas pelas quais ela
é representada. (GONÇALVES, 2012. p. 9)

Abracei a autoetnografia como recurso metodológico utilizado para


construção desse trabalho. Utilizarei com a finalidade de analisar os eventos de minha
vida pessoal frente a realidade sociocultural e religiosa na qual se desenvolve a
narrativa, marcado pela conversão ao pentecostalismo e pela minha construção como
pastor. Identifico o processo de negação da negritude praticada por meus
ascendentes, apontando episódios marcantes como a construção do relato sobre o
meu nascimento e culminando na minha trajetória e atuação acadêmica e profissional.
Na obra “Pele negra, máscaras Brancas” produzida por Fanon (2008), o
autor tece um movimento similar ao que pretendo apresentar na estruturação desse
trabalho. O autor se debruça sobre sua realidade na Martinica, colônia francesa, para
desenvolver sua análise psicossocial dos seus conterrâneos e das consequências
deixadas pela colonização europeia na ideia de ser humano construído na pessoa
negra nas Antilhas. Ele aponta a proposta de ser humano e sociedade que idealiza e
descreve como saudável ao indivíduo de origem étnica africana. Minha intenção é
similar e a partir da etnobiografia descrevo minhas experiências pessoais para
construir toda uma ambientação que levará a entender um fim almejado, uma proposta
educacional, baseada na análise de um jovem cristão pentecostal negro dentro da
sociedade brasileira. Minha leitura é uma compreensão, assim como Fanon (2008),
de como o olhar do negro pode ser construído sob uma proposta colonizadora que
nega e invisibiliza sua ancestralidade negra e nem produz o reconhecimento dessa
origem étnica.
Todavia ao observar essa realidade ele reconstrói conexões com esse
passado que lhe foi negligenciado para propor uma nova leitura da realidade onde
aqueles que, alcançados pelos relatos dessas experiências, possam construir uma
nova leitura da realidade, na qual a identidade negra seja vista. Aponta uma proposta
humanizada que enxerga e desconstrói os racismos presentes em nossa sociedade,
aqui especificamente, o racismo religioso.
É um fato que os recortes aqui descritos sobre minha vida serão
observados no intuito de favorecer a análise da proposta pretendida, mostrando o
caminho em que se forma uma personalidade cultural baseada em ensinamentos
neopentecostais, em uma família negra dentro da periferia brasileira, mais
especificamente em Ananindeua-PA.
Etnobiografar uma realidade baseada na memória de um indivíduo como
objeto de análise é um esforço complexo, tendo em vista que não se trata apenas da
descrição desses eventos em ordem cronológica, mas de realizar um recorte seletivo
de momentos que traduzem aspectos da vida coerentes com a proposta teórica desta
dissertação. Para utilizar a memória como instrumento metodológico, utilizo o conceito
desenvolvido por Pollak (1992):

A memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado.
Á memória é, em parte, herdada, não se refere apenas a vida física da
pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento em
que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do
momento constituem um elemento de estruturação da memória (POLLAK,
1992. p. 204).

Para além da seletividade, outro fator importante na descrição do escritor


austríaco é o fato da memória ser herdada. Muitos dos relatos por mim realizados
durante este trabalho são memórias anteriores a mim, repassadas por meus pais e
que possuem importância na construção da minha identidade sociorreligiosa e,
portanto, imprescindíveis para construção do entendimento sobre meu próprio eu.
A memória então, é a base conceitual que me permitirá refletir minha
história de vida, apontar os pontos de referências de minta identidade que tantas
vezes foi redefinida. Algumas perguntas norteadoras desse trabalho sempre foram:
Minha trajetória pessoal pode servir como referência para demonstrar, a partir da
minha individualidade, uma possível leitura da realidade de jovens negros e de
periferia? O que essa trajetória teria a contribuir na construção de uma leitura de
mundo menos racista dentro da nossa sociedade? Quais os conflitos que se
apresentam nessa mudança de visão de mundo? De que forma a contação de
histórias africanas pode servir de base à descolonização do olhar e ao combate ao
racismo religioso? Como esse trânsito entre o ethos cristão e a mitologia africana
facilita o diálogo nas escolas públicas, onde o público discente é, em sua grande
maioria, oriundo das religiões cristãs? A referência prática do meu trabalho, de alguma
forma, já contribuiu ou contribui, para desconstrução do racismo religioso sobre as
religiões de matriz africana? A contação de histórias utilizando os mitos Iorubanos são
um instrumento para o descolonialismo da identidade da pessoa negra?
Ao longo dos capítulos busco apresentar meu objetivo central, logo,
discorro sobre como a experiência do conhecer os mitos de origem africana pode
influenciar na prática educacional de profissionais de diversas áreas auxiliando no
combate ao racismo religioso; para isso, trago minha experiência de vida como
referência.
A descolonização do olhar sobre as religiões de matriz africana se faz
importante para facilitar o diálogo com os conteúdos apresentados a respeito dos
mitos observados na obra do francês Verger (1997). A mudança na visão sobre os
Orixás apresentados por Verger está diretamente ligada ao processo de tornar-me
negro, traduz a reconstrução de uma identidade negada e marginalizada pela versão
europeizada de ser humano imposta a pessoa negra, e para tal reflexão abordaremos
a seguinte perspectiva em Fanon, citado por Streva (2015):

No percurso sinuoso de Fanon em torno da questão da identidade cultural,


da vivência da pessoa negra, encontramos, em seu primeiro e últimos livros
o dilema fundamental da colonização que assolou todo o pensamento anti-
sistêmico no último meio século e, provavelmente, assolará também o meio
século seguinte. A rejeição do universalismo europeu é fundamental para a
rejeição do domínio europeu e da sua retórica do poder na estrutura do
sistema-mundo moderno.” (STREVA, 2015. p. 26)

Assim como Streva (2015), vejo em Fanon (2008) a perspectiva necessária


para desconstrução do olhar colonizado das pessoas negras, que se lê através da
superação dessa falsa ideia de universalismo europeu. Fanon será a voz que irá me
orientar na busca da construção de um novo panorama construído a partir da
experiência de um contador de histórias cristão para ressignificar seu olhar religioso,
por meio do conhecimento científico apreendido na academia e da relação não racista
com a mitologia vivenciada pelo candomblé Keto brasileiro.
A leitura de Fanon, ao denunciar as atrocidades construídas através da
desumanização da pessoa negra nas colônias europeias, torna-se referência na
busca para forjar um horizonte menos europeizado, reconhecendo a ancestralidade
Africana e presentes nos mitos iorubanos, relidos através de uma nova percepção
manifesta através da contação de histórias.
Mesmo diante das dificuldades descritas em parágrafos anteriores para
construção desse trabalho, consegui chegar a uma estruturação que me parece
desenvolver um caminho possível para o aprimoramento do pretendido no esforço
desse texto. É uma tentativa de fomentar o debate dentro da área de Ciências da
Religião sobre o tema tão recorrente do racismo religioso no nosso sistema
educacional, que reflete uma realidade social muito preocupante.
Preocupante porque partimos da premissa já abordada por Fanon (2008.
Pag. 132): “Há identificação, isto é, o jovem negro adota subjetivamente uma atitude
de branco.” A educação eurocentrada molda nossa lógica social, nossas imagens e
referências de certo ou errado de bem ou mal, dentro de um modelo racializado, que
traduz tudo de bom como branco, como a imagem de Deus ou do próprio Cristo, e
tudo que é de mal como negro, representado pela pessoa preta, ou por referências
diretas a ancestralidade africana. Esta atitude constrói uma subjetividade
problemática. Sendo assim a imagem que se vê ao olhar no espelho difere daquela
valorizada pelo processo educacional, o que gera uma negação da mesma.
Assim como Cavalheiro (2015), diz:

Ao mesmo tempo, será também na escola que a criança aprenderá atitudes


em relação ao seu grupo e a outros grupos raciais representativos em sua
sociedade, que são sustentados pela família e pela sociedade mais ampla.
Com isso, aprenderá de qual grupo racial é integrante, e disso derivará parte
de sua identidade social. (CAVALLEIRO, 2015. p. 57)

Dito isto, precisamos dar referências positivas para além do imaginário


branco ocidental, salvador e bom como o demostrado por Fanon (2008), em sua obra
“Pele negra, máscaras brancas”. O imaginário infantil é inundado de imagens que
trazem uma autorreferência a pessoa negra traduzindo um dilema expresso por uma
identificação social conflitante dentro e fora do espaço escolar, dentro da sociedade
mais ampla, dentro da própria escola. Ao referenciar-me em um grupo étnico no qual
me reconheça, se faz necessário a construção de uma leitura de mim mesmo que
supere a versão unilateral da brancura em detrimento a pessoa negra e suas
referências simbólicas e culturais.
Mostro como a colonização do olhar se dá e se estrutura pelas suas
diversas formas de disseminação, superando o ambiente religioso, familiar, de
convívio social, chegando até as outras estruturas de formação do indivíduo, como é
o caso do sistema de ensino.
No capítulo seguinte passo a descrever a proposta de trabalho que construí
ao longo da minha formação acadêmica como profissional das Ciências da Religião e
como contador de histórias.
É relevante que se mencione que o recorte dessas experiências, enfatizam
meu trabalho quando voltado à prática da contação de histórias do universo simbólico
conflitante à perspectiva predominante de origem semita, que enxerga na tradição
cultural de origem negra uma versão inferiorizada de mundo. Apresento uma leitura
epistemológica dos saberes herdados da nossa ancestralidade negra e ainda vivo nos
terreiros, segundo Santos:

No Candomblé, é a partir do mito que se inicia todo um processo de


percepção e interpretação da realidade, gerando conhecimento e
aprendizado. Nesse entendimento, o terreiro é uma religião escola, um
espaço sociopolítico-cultural onde se aprende a respeitar a natureza, as
tradições, os valores comunitários, mediante a uma postura ética especifica.
O mito originário da África se expressa por meio do conhecimento mítico
numa tela simbólica do imaginário individual e coletivo. No terreiro, esse
modo de conhecimento integrou-se a comunidade por meio de uma interação
dinâmica com o ethos da terra brasileira, a partir de mecanismos de
resistência, gerando um modo singular afro brasileiro de ver a vida.”
(SANTOS, 2006. p. 145)

A interação com os conteúdos presentes nos mitos africanos traduz uma


leitura da realidade pouco ou nada enfatizada pela versão ocidentalizada de mundo.
Para além da perspectiva sociopolítica, cultural e religiosa presentes nesses mitos, a
proposta de pessoa e de referência histórica sobre nossa ancestralidade étnica
apresentados nesses textos são o grande enfoque desse trabalho. Transcendendo o
conjunto de possibilidades, como bem destaca Santos (2006), em seu trabalho: “A
dimensão pedagógica do mito: um estudo do Ilê Axé Ijexá”, minha principal proposta
é demonstrar uma versão da pessoa negra que foge ao estereótipo ocidental do falso
ideal de subserviência e aceitação pacífica do processo de dominação.
Esse é o momento em que seguimos com a perspectiva que Lewis R.
Gordon, na introdução da obra Fanoniana, onde descreve o momento no qual o
martinicano “argumenta que o racismo força um grupo de pessoas a sair da relação
dialética entre o Eu e o Outro, uma relação que é a base da vida ética.”. Sob o olhar
do descolonial percebemos nossa diversidade a partir de uma perspectiva
horizontalizada. É através da prática da contação de histórias que encontro meus
resultados, e é através do enfrentamento de perspectivas contrárias e afirmações
preconceituosas que construo uma trajetória que tem sido de extrema relevância no
desenvolvimento de um percurso de educação para além dos limites ordinários
determinados dentro do sistema educacional do qual também faço parte.
No quarto capítulo elucido os relatos, dividido em grupos2, de pessoas que
participaram de oficinas por mim realizadas durante os anos de 2020 e 2021 de modo
online dentro do projeto do SESC: Arte da palavra3, realizado em diversas regiões do
Brasil. Nessas oficinas participaram pessoas de faixas etárias múltiplas, de
construções sociais e educacionais distintas. indivíduos que de alguma forma foram
tocados pelo tema da minha oficina: “O UNIVERSO DA HISTÓRIAS AFRICANAS”.
Minha intenção é proporcionar um novo panorama no posicionamento do
olhar sobre a ancestralidade negra e sobre as memórias africanas. A proposta é
conduzir o expectador para uma leitura da realidade urgente e não recente, e que
ainda precisa dar muitos passos para que aconteça.

Este racismo dos negros contra o negro é um exemplo da forma de


narcisismo no qual os negros buscam a ilusão dos espelhos que oferecem
um reflexo branco. Eles literalmente tentam olhar sem ver, ou ver apenas o
que querem ver. (GORDON apud FANON, 2008. Pag.15)

Dialogar com Fanon (2008), irá nos orientar para onde olhar, mostrando
como somos repetidores de uma noção de mundo que não nos abraça em nossa
pluralidade de possibilidades e, ao invés de combatermos essa versão castrante de
nós mesmos, a reproduzimos e naturalizamos como se ela fosse única e, portanto,
universal. Refletimos uma humanidade construída pela identidade branca ocidental.

2 Brancos/cristãos; brancos/não cristãos/afro religiosos; negros/pardos/cristãos; negros/pardos/não


cristãos/afro religiosos.
3 O projeto é um circuito atuante em todas as regiões do país que estimula a formação de leitores e a

divulgação de novos autores, além de valorizar obras e escritores brasileiros e as novas formas de
produção e fruição literária. Com um circuito de autores e outro de apresentações que privilegiam a
oralidade, pretende-se que diversas possibilidades de manifestações literárias sejam contempladas.
Como ação de complemento formativo, é oferecido também um circuito voltado para a reflexão e
criação literária. Em curadoria coletiva, realizada por especialistas do Sesc de todo o país, são
selecionados os artistas que participam do projeto.
CAPÍTULO I - A ETNOBIOGRAFIA DE UM JOVEM CRISTÃO PENTECOSTAL

A produção desse trabalho é um esforço contínuo para traduzir a


importância de uma visão mais profunda da pessoa negra sobre si, por meio da
análise de uma perspectiva de mundo, um olhar individual, que parte do autor desse
texto. O percurso do trabalho irá passar por diversas fases da minha vida, farei
observações sobre um período que se inicia antes mesmo da minha própria
concepção e nascimento, pois em minha construção familiar existem narrativas
significativas; elementos que revelam um cenário sociocultural próprio, específico, o
qual espero que, a partir das análises aqui desenvolvidas, possam dar conta de uma
imagem social que, mesmo pessoal, encontre nas suas dimensões socioculturais
elementos que dialoguem de maneira profunda com indivíduos que discutam temas
como descolonialismo, racismo religioso, diálogo interreligioso, mitologia africana e
identidade, a partir do apresentado através dessa obra.
O individual aqui tem a intenção de dialogar com uma noção social mais
ampla, onde o retrato sociocultural e religioso aqui descrito, sirvam de base para
percebemos o quanto necessitamos caminhar para construir referências teóricas no
sentido de pleitear mais esforços em direção ao respeito, ao diálogo e a uma possível
equidade no trato aos saberes produzidos pela ancestralidade africana dentro da
realidade ocidentalizada que está estruturada nas academias, espaços religiosos e de
ensino.
Irei construir uma narrativa, não pela mera intenção de apresentar minha
vida como exemplo, mas por entender que existem ensinamentos profundos e
necessários a serem observados, que, de tão relevantes, precisam ser descritos
nesse trabalho. A intenção é utilizar minha trajetória como fonte de informação para
nossas pretensas proposições, partindo do específico para uma análise mais profunda
e ampla, visando dialogar com a matriz conceitual acima descrita
Nesse primeiro capítulo do trabalho o foco é apresentar quais elementos
presentes na minha construção pessoal levaram ao que considero como colonização
do olhar, ou seja, entender como um jovem, negro e periférico, oriundo de uma
realidade social complexa é ensinado, a partir de uma cosmogonia cristã pentecostal,
a ler o mundo sob princípios apreendidos dentro de um núcleo familiar que dialoga
diretamente com espaços religiosos que são a verdadeira fonte de conhecimento
vivenciados dentro da minha, então, realidade.
Para construir o percurso do entendimento da minha própria vida através
dessas linhas utilizo a etnobiografia como recurso para qualificar minhas descrições
dos eventos vivenciados na minha trajetória familiar. Antes de começar a descrever
tal trajetória, se faz necessário entender como a etnobiografia pode nos ajudar nessa
empreitada.
O contato com a obra: “Etnobiografia: subjetivação e etnografia”
(GONÇALVES, 2012) me trouxe a direção necessária para o desenvolvimento da
descrição dos eventos e marcos históricos que considero importantes para elaboração
desse trabalho, já na introdução da obra eles afirmam algo que acho de extrema
relevância, ao dizer que:

O conceito de etnobiografia propõe, necessariamente, uma problematização


dos conceitos-chave do pensamento sociológico clássico − como o individual
e o coletivo, o sujeito e a cultura − ao abrir espaço para a individualidade ou
a imaginação pessoal criativa. O indivíduo passa a ser pensado a partir de
sua potência de individuação enquanto manifestação criativa, pois é
justamente através dessa interpretação pessoal que as ideias culturais se
precipitam e tem-se acesso à cultura. (GONÇALVES, 2012. p. 9).

Como já disse antes, minhas análises pessoais, pelo menos, nos dois
capítulos seguintes, se constroem a partir da observação de eventos pertinentes a
minha trajetória familiar, assim sendo, parto dessa individualidade para apresentar
algo que considero uma perspectiva de realidade sociocultural mais ampla. As
imagens que pretendo produzir corroboram para um imaginário que simboliza a
construção sociorreligiosa de um indivíduo dentro de uma horizontalização específica
que está diretamente ligada a uma educação judaico-cristã enquadrada por uma
tradição pentecostal4 tradicional.

4Igreja Pentecostal é um movimento cristão protestante que dá grande relevo ao Dia de Pentecostes e
que apresenta algumas diferenças em comparação com outras denominações.
O movimento pentecostal começou em 1906, em Los Angeles, quando William J. Seymour pregou,
dando origem ao Avivamento da Rua Azusa. Os elementos da Igreja Pentecostal consideram o batismo
no Espírito Santo essencial no caminho da salvação. O batismo no Espírito é um fenômeno carismático
caracterizado pela glossolalia, conhecido como dom de línguas (1 Coríntios 12:10).
O pentacostalismo se propagou muito rapidamente nos Estados Unidos através da Church of God in
Christ, e evoluiu bastante principalmente dentro da comunidade afro-descendente. Além disso, as
Assembleias de Deus ficaram muito populares no Chile, Brasil, Indonésia e África do Sul. A partir de
1945 foram organizadas grandes missões populares, onde pregadores utilizavam recursos técnicos
avançados. Muitas dessas igrejas marcam presença na Conferência Mundial Pentecostal, que
acontece a cada três anos desde 1949 em diferente cidades do mundo.
As autoimagens promovidas aqui têm intencionalidade direta, não são
recobradas pelos simples fatos de existirem. Esse trabalho não se trata de uma
biografia, onde há o interesse de valorizar a potência da individualidade, como
apresentado por Alberti (1991): “duas noções de indivíduo: o ser empírico, membro
da espécie humana, encontrado em todas as sociedades, e o indivíduo como "valor",
sustentado pelos ideais de liberdade e igualdade próprios a modernidade.” Não existe
intenção de mostrar o valor do indivíduo frente aos acontecimentos descritos. Não se
trata exclusivamente da descrição de eventos para tornar pública minha pessoalidade,
como seria comum a uma biografia.
A proposta não é o indivíduo como centro, mas os eventos que se
desenrolam na construção dessa pessoalidade como referência para uma análise
sociocultural e religiosa incrustada nessas narrativas. Como uma religião pode e vai
influenciar a construção de uma visão de mundo frente à diversidade de olhares
existentes dentro do constructo social no qual se desenvolve esse indivíduo.
Como indivíduo, suas referências pessoais são direcionadas para uma
leitura de mundo específica e determinada por suas singularidades. Como
mencionado outrora, o fato de se tratar de um jovem negro, de periferia, com uma
formação cristã pentecostal irá balizar uma análise etnográfica onde tais elementos
se fazem relevantes para o entendimento e determinação do trato referente a
colonização do olhar dentro de uma realidade que dá significado a sua forma de ver e
interagir com a religião, com sua pessoalidade étnica, com os demais indivíduos e
manifestações religiosas existentes em seu universo ontológico.
No caminhar da construção da narrativa estabeleço um diálogo com as
experiências para além do espaço familiar e religioso, o que etnobigraficamente é uma
maneira de refletir a esfera social e educacional, onde a construção sobre a identidade
étnica é feita no imaginário infantil, ratificando os estereótipos pensados pela lógica
europeia supremacista branca na qual o destaque a superioridade branca de ver e
interpretar o mundo são utilizadas na reafirmação do quanto a branquitude é superior
e tudo o que envolve a pessoa negra está ligado ao primitivo, ao inferior, ao
demonizado e, portanto, deve ser negado.

O termo pentecostal tem origem na palavra Pentecostes, que é uma festa cristã que ocorre 50 dias
depois da Páscoa, encerrando o ciclo das festas. Comemora a descida do Espírito Santo sobre os
apóstolos, onde surgiram "línguas de fogo" sobre a cabeça dos apóstolos, sendo que as pessoas que
receberam o Espírito Santo começaram a falar em línguas. Este episódio é descrito em Atos dos
Apóstolos 2:1-13.
É indispensável destacar a relevância da individualidade como linguagem
para o entendimento do social. Minha etnobiografia busca seguir as mesmas
preocupações depositadas sobre o tema, como assim o fez Gonçalves ao dizer:

A noção de etnobiográfico problematiza, por assim dizer, o etnográfico e o


biográfico, as experiências individuais e as percepções culturais, refletindo
sobre como é possível estruturar uma narrativa que dê conta desses dois
aspectos na simultaneidade, ou seja, propõe, a um só momento, repensar a
tensa relação entre subjetividade e objetividade, pessoa e cultura.”
(GONÇALVES, 2012. p. 20)

Quando penso a realidade subjetiva narrada, busco dar referências reais


de como esse conhecimento se reflete na vida prática desse indivíduo, e mais a frente
irei problematizar em que nível entendemos quão preocupante é a perspectiva
castrante do olhar colonizador na autoimagem que criam os jovens negros.
A etnobiografia, busca, portanto, elucidar a subjetividade da relação entre
o indivíduo e sua realidade social, assim como suas possibilidades de manifestações,
tais quais: família, escola, igreja, trabalho, entre outros. Pode-se afirmar então que um
sujeito que não existe isoladamente, ele dialoga com um conjunto exterior de
informações e percepções do mundo que irão moldar o olhar de uma pessoa. Todo
esforço em narrar minha pessoalidade não é uma busca de compreender as nuances
da minha psique, mas, uma busca de entender dentro de uma proposta ontológica o
complexo de informações que podem promover o racismo religioso por meio de uma
percepção colonizada, a partir da versão europeizada de cristianismo que afeta a
sociedade na forma de enxergar e interagir com o mundo, para, logo em seguida, após
compor o cenário que justifica tal afirmação, apresentar maneiras de combater o que
considero uma deficiência social, pois traduz de forma depreciativa os saberes
oriundos da população negra-africana.
E como faremos os recortes necessários para construção dessa
etnobiografia? Quais as bases qualitativas da construção dessa narrativa que valem
da pessoalidade para demonstrar uma perspectiva? Vamos nos valer do conceito de
memória apresentado por Pollak em dois textos obras suas, a primeira: “Memória,
Esquecimento e Silêncio” (1989) e a segunda: “Memória e identidade social” (1992).
Considero relevante em princípio, destacar sua fala ao promover o que ele chama de:
“enquadramento da memória”, quando afirma:
A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações
do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas
mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de
pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos
diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias,
nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos
e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar
respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis.
(POLLAK, 1989. p. 9)

Por mais que minha narrativa seja pessoal, ela reflete e discute um esforço
social em produzir uma determinada visão impressa na minha vida, a partir do
conjunto cultural de saberes que me integraram ao convívio social. A família, a igreja
e a escola são expressões do empenho que o mundo ocidental emprega na imposição
da sua lógica própria aos indivíduos que este alcança. Seguindo o raciocínio de Pollak
(1989), de que a memória é um esforço coletivo, minha intenção é converter as
expressões desses esforços em dizer como as minhas memórias me levaram a ler e
interagir com o mundo, buscando me tornar um reprodutor de máximas sociais de
aceitação da minha condição étnica, a partir do estabelecido, sem questionar ou
refletir o que a mim estava sendo imposto, destacando os motivos e as formas de
como isso é feito.
A memória é o recorte pessoal que irá dialogar com a versão social. Trata-
se de uma construção social feita a partir do presente. É minha visão de mundo da
atualidade que norteia a construção narrativa da minha memória. A sociedade
estruturada busca manter seu status, suas fronteiras, sua coesão, assim como afirma
Pollak (1989), que nessa busca ela irá deixar claro também suas oposições, aquilo
que o amedronta e pode ser nocivo aos seus pertencentes. A memória religiosa,
oriunda dos ensinamentos teológicos reforçam a ideia de bem e mal, constroem as
sombras que alimentam os medos da civilização ocidental, dá cores e formas as suas
representações, e como bem traduz Fanon (2008), o bem é branco e o mal tem a cor
da noite. É sobre esse imaginário direcionado às referências negras que pretendo
discorrer nos recortes da memória que iremos fazer.
Comecemos então a observar as etapas dessa construção pessoal,
arquitetando uma trajetória que favoreça o entendimento do leitor e possibilite a
compreensão das proposições aqui já mencionadas. Irei dar início a narrativa de
eventos que manifestam minha pessoalidade e descrevem o modo de atuar da
sociedade brasileira ao cultivar em sua população uma determinada leitura da
realidade; e como trato de um caso específico, a partir de um contexto cristã-
pentecostal dentro de um segmento socioeconômico de vulnerabilidade.

1.1. PRIMEIRAS MEMÓRIAS E LOCALIZAÇÃO SOCIOCULTURAL E RELIGIOSA

A explosão não vai acontecer hoje. Ainda é muito cedo... ou tarde demais.
Não venho armado de verdades decisivas.
Minha consciência não é dotada de fulgurâncias essenciais.
Entretanto, com toda a serenidade, penso que é bom que certas coisas sejam
ditas.
Essas coisas, vou dizê-las, não gritá-las. Pois há muito tempo que o grito não
faz mais parte de minha vida.
Faz tanto tempo...
(FANON, 2008. p. 25)

Iniciarei trazendo as memórias dos meus pais, aquilo que me foi dito sobre
um período que antecede minha própria existência e que são heranças de relatos
familiares; daquelas histórias que norteiam desde a minha preconcepção até minha
concepção. Nesse tópico pretendo ir até o momento em que começo a ter consciência
das minhas atitudes e passo a tomar minhas próprias decisões, todavia, se faz
necessário localizar como se deu minha constituição familiar.
Assim como Fanon (2008), diz na citação acima, sei que o mundo não vai
mudar de uma hora para outra, porém, é importante dar início ao seu processo de
transformação e, a meu ver, ele começa por nós. Com serenidade no olhar e na forma
de ver e interpretar o mundo, pretendo dizer através de uma narrativa simples o que
estudo e produzo por meio de imagens que estabeleço a partir da minha própria
experiência de vida.
A intenção desse trabalho é traduzir minha história de vida, em linhas que
promovam o diálogo, sem atacar ou ofender a fé de qualquer pessoa. A proposta é
qualificar uma leitura respeitosa do outro e do próprio indivíduo sobre si. É um desafio
que espero dar início nesse texto, demonstrando que através do diálogo e de uma
cosmovisão antirracista, através de uma análise crítica da história de vida de um
indivíduo, é possível caminhar na direção de um ambiente acadêmico e religioso
capaz de perceber na ancestralidade negra os elementos positivos inerentes a ela e
manifestos na história do povo brasileiro.
1.1.1. A Origem Materna

Minha mãe é uma mulher baiana, nascida na cidade de Ilhéus, mas viveu
sua infância e início da adolescência na cidade de São Paulo, local a que ela se
referência até hoje com grande saudosismo e sempre visita pelo prazer de reconhecer
lá seu lugar de satisfação. Suas memórias afetivas fraternas são respaldadas na maior
megalópole brasileira, considerada o centro econômico do país. Nesta cidade, ela
encontra grande parte dos seus familiares, que passaram a firmar residência por
vários bairros da capital e no entorno paulista.
Nos Estados da Bahia e de São Paulo sua família (meus avós e tios)
frequentam a igreja católica e se autodeclaram católicos, entretanto, ela conta que
seus pais também frequentavam “terreiros de macumba”, termo que ela utiliza para
identificar as religiões de matriz africana.
Sua família se muda para Belém do Pará no ano de 1979. Já na cidade
Belém, ainda jovem, converte-se a fé cristã-pentecostal, na igreja Assembleia de
Deus5. Ela, agora, uma jovem recém-convertida ao protestantismo, busca encontrar
esperança para si, mãe e irmãos, através da fé em um Deus que tudo poder fazer por
ela. Ela se agarra a essa esperança e passa a direcionar sua vida através de sua
crença. Minha mãe, então passa a acreditar que por meio da igreja e da observação
diária das verdades bíblicas, poderá ter uma realidade melhor a qual estava
habituada.
À época da conversão, ela ainda morava com seus pais, que condenaram
veementemente a troca religiosa. Sua mãe (minha avó) respeitou sua opção, mas seu
pai (meu avô) promove uma resistência profunda a escolha da filha e passa a
persegui-la. Nas noites em que meu avô está mais alcoolizado, ele não só fala e
reclama, mas também a agride, dando-lhe surras e dizendo que não quer ter uma filha
“crente”.
Minha mãe sofre o enfrentamento familiar pela fé que abraça e passa
acreditar que escolheu o melhor caminho a seguir, ela enxerga na fé cristã um

5 Igreja Evangélica Assembleia de Deus é uma denominação cristã protestante pentecostal no Brasil,
fundada em 1911 na cidade de Belém do Pará, pelos sueco-americanos Gunnar Vingren e Daniel Berg.
Esta sendo a primeira igreja nacional das Assembleias de Deus, antes mesmo de sua coirmã as
Assembleias de Deus nos EUA, principal percursora mundial. Em 2011 estimava-se que a
denominação tinha 22,5 milhões de membros no Brasil e 280 milhões de membros no mundo, sendo
então a maior denominação pentecostal.
caminho que irá conduzir sua vida a salvação espiritual, ao céu, tão almejado pelos
cristãos. Ela estabelece isso como meta de vida inserida em uma religiosidade muito
perene, trilhando uma jornada que irá direcionar suas escolhas futuras. E lê a situação
familiar desconfortável como provação de sua perseverança.
Nesse tempo minha mãe trabalhava na maior feira a céu aberto da América
Latina, o Ver-o-Peso. Ela, junto com a mãe, o pai e os irmãos, se revezavam para
manter o empreendimento aberto 24h, uma barraca de lanche localizada na avenida
Portugal. Alternando-se em turnos, a jovem ainda estudava, e dentro do ambiente
escolar conheceu e começou a namorar meu pai. Ao iniciar o namoro ela estabeleceu
uma condição, ele precisaria se converter a mesma fé por ela professada, o que
aconteceu, segundo o relato de ambos.
Já nesse ponto quero demonstrar o que Fanon (2008), chama de antinomia
não percebida pela pessoa negra ao buscar referências brancas por ele observadas
enquanto tal, essas referências podem ser de cunho religioso, ascensão profissional,
estratégias de casamento interétnicos, busca de branqueamento estético etc. O
conflito está em reconhecer e valorizar sua identidade cristã mesmo ela reforçando
estereótipos que leiam a origem negra de maneira depreciativa. A leitura cristã da
realidade social provoca negação da identidade negra na comunidade afro-diaspórica,
que passa a rejeitar características físicas e culturais que sustentem a origem africana.
Demonstrarei essa identificação simbólica considerada que exerce grande resistência
a identidade negra, pelo de ser construída a partir de uma visão de mundo
embranquecida. Esse é o motivo da antinomia, vejamos:

O homem não é apenas possibilidade de recomeço, de negação. Se é


verdade que a consciência é atividade transcendental, devemos saber
também que essa transcendência é assolada pelo problema do amor e da
compreensão. O homem é um SIM vibrando com as harmonias cósmicas.
Desenraizado, disperso, confuso, condenado a ver se dissolverem, uma após
as outras, as verdades que elaborou, é obrigado a deixar de projetar no
mundo uma antinomia que lhe é inerente (FANON, 2008. p. 26).

Não pretendo aqui fazer críticas tão duras quanto as que faz Fanon (2008,
p. 26), em sua análise afirmando que “descemos a verdadeiros infernos”, mas, mostrar
que essa antinomia ligada as escolhas feitas, as paixões, nos força a aceitar e
reproduzir discursos criados sobre a pessoa negra, onde o ápice do amor visto na
divindade cristã não discute a necessidade de suplantar e atacar a memória negra,
assumindo um discurso que combate e não dialoga com a ancestralidade africana,
tornando o negro inimigos de sua própria origem. Esse conflito talvez se materialize,
na relação pai e filha, vivenciada por minha mãe e avô, sobretudo ao lembrar que o
maior polo de sociabilidade negra, durante todo o período colonial e imperial, foram
as irmandades religiosas dos homens de cor. Nunca vi meu avô falar em ir a um
terreiro, nem se identificar com alguma religião de matriz africana, mas lembro das
guias de contas vermelhas e brancas (cor de identificação do orixá Xangô) em seu
peito, que ele gostava de expor com sua camisa aberta, e sobre a qual havia o tabu
de pôr a mão quando ele dizia: “isso é coisa do vô, não pode colocar a mão não, meu
filho”. Também lembro da sua devoção a São Jorge que era cultuado em uma imagem
exposta numa parateleira de seu estabelecimento comercial (birosca) como forma de
proteção.
As referências negras baianas nunca foram um destaque na identidade da
minha mãe, ouvi pouco falar da época que ela ainda morava na Bahia e da
religiosidade praticada lá. Esses elementos sempre foram negados como referência
na nossa construção identitária por um motivo, eles são vistos de maneira pejorativa,
depreciativa. Minha mãe só citou a relação dos meus avós com as religiões de matriz
africana como referência, que eu lembre, durante a minha pesquisa para produção
deste trabalho, quando eu insisti em obter informações sobre esse passado em Ilhéus.
Referiu-se ao terreiro que sua avó frequentava na Bahia, de forma lacônica e colocou
o acento da narrativa no processo de conversão da mesma antes de sua morte
quando sua avó “aceitou Jesus como seu único salvador”, negando de forma
veemente, “os falsos deuses” que ela acreditava (referência as divindades africanas).
Nesse único relato feito por minha mãe ela declara de maneira repetida, que a idolatria
a esses falsos deuses é um pecado e que eu mesmo devo me afastar, “pois o único
e verdadeiro Deus é o nosso senhor Jesus Cristo”, discurso que ela profere como se
quisesse exorcizar sua memória sobre isso e tentar me salvar do mau que o contato
com essa informação possa vir a me causar.
Os termos utilizados no discurso são todos pejorativos, a exemplo de
macumba, mau, demônio, satanás, diabo, magia, dentre outros; tais termos sempre
estiveram presentes nos discursos a mim apresentados por ela, em função da noção
assumida sobre a religiosidade negra entendida como ligada a tudo que é negativo.
Esse recorte da memória que tenta, a todo custo invisibilizar, o contato com a afro-
religiosidade, é consequência de uma formação religiosa refletida a partir da visão de
mundo que assumiu, das experiências que diz ter tido ao longo de sua vida dentro da
igreja, nas orações realizadas e no trabalho voluntário. Ela sempre afirma que as
pessoas que vivem a fé “nessas coisas, nesses deuses, vivem oprimidas, pois só
quem liberta é Deus”.
É importante salientar nesse momento, que toda essa descrição é relevante
para que o leitor entenda a profundidade da religião na construção da minha família,
como ela está presente em seu imaginário e como é parte de um processo de
branqueamento cultural. Essas são histórias contadas em diversos momentos e irão
reforçar a visão religiosa, moral e social estabelecida entre nós. Não existem histórias
familiares sem que a religião não esteja direta ou indiretamente ligada, ora como pano
de fundo, ora como base central.
Acredito que de maneira educativa e consciente, minha mãe faz um esforço
constante de reforçar os marcos morais e religiosos norteadores de sua vida para
guiar seus filhos no trajeto que ela julga meio de salvação. Sua orientação é forjada
nos valores religiosos adquiridos pela fé cristã e enfatizam o que Pollak (1989, p. 9),
também traduz como sua preocupação da memória ao dizer que: “Recusar levar a
sério o imperativo de justificação sobre o qual repousa a possibilidade de coordenação
das condutas humanas significa admitir o reino da injustiça e da violência”.
Sobre isso penso estarem pautadas as considerações e repetições feitas
por minha mãe, uma tentativa constante de preservar de toda externalidade maldosa
aquilo que possa afetar os seus. Ela, no entanto, não avalia as consequências étnicas
de suas ações. Suas preocupações são objetivas, estão no plano material da
sobrevivência, e sobre isso observamos sem fazer um juízo moral academicista
inconsequente.

1.1.2. A Origem Paterna.

Meu pai é também filho de retirantes nordestinos que migraram para o Pará
em busca de melhores condições de vida. Sua família, no entanto, veio do interior do
Maranhão, Estado com grande quantitativo de população negra, que se destaca no
Brasil, por ser o maior em número de comunidades remanescentes de quilombo,
demarcadas e tituladas pelo Estado. Seus parentes já estavam estabelecidos a mais
tempo no Estado, a ponto do meu pai, caçula de cinco irmãos, ter nascido já no Pará,
na cidade de Belém.
Meus avós eram comerciantes, possuíam algumas lojas no centro
comercial, detinham boas relações sociais e, na época, algumas posses que davam
a aparência de certa estabilidade. Meu pai se considera “um homem pardo”, e era filho
de uma mulher negra, apesar de ninguém a considerar como tal. Como estratégia de
fugir da identidade negra, minha família aderiu ao padrão de mestiçagem sustentado
como tipo ideal (WEBER, 1999), de povo brasileiro construído a partir das décadas de
vinte e trinta, quando a intelectualidade nacional, sobretudo ligada ao movimento
modernista e a teoria de Freyre (2006), passaram a pensar o Brasil como uma
democracia racial sustentada na mestiçagem e da antropofagia. Para eles era
considerado como negro, apenas quem possuía derme mais escura, vulgarmente
chamado, em meu núcleo familiar, de “preto retinto”.
A mistura foi a estratégia que meus familiares, assim como grande parte do
povo brasileiro, encontrou de apagar sua origem afro-indígena. Minha bisavó era
nascida em aldeia indígena desconhecida e à minha família, também não interessava
sustentar, como pontos de referência da memória, a ancestralidade indígena,
corriqueiramente tratada como “gente preguiçosa”. Como as ascendentes femininas
não eram “retintas” ou possuíam fortes traços indígenas, recebiam a confortável
alcunha de “morena”, termo não considerado pejorativo no seio familiar.
Meu avô era um homem que também se considerava pardo, mas que por
vezes se descrevia como branco, principalmente por não possuir o cabelo crespo. Ele
também apresentava traços fenotípicos de origem indígena e dizia ter “raiva de
pretos”, raiva essa que era justificada em razão de relações pretéritas baseadas em
desavenças e desilusões com pessoas desta cor. Baseado nisso, produzia
generalizações pejorativas e racistas dirigidas a toda população negra.
Apesar de ter sua cor negada pelo marido, minha avó paterna se
considerava uma mulher negra, e possuía irmãos e irmãs que eram mais retintos. Ela
considerava as falas racistas de meu avô, seu esposo, como “ignorância” e falta de
conhecimento, já que o mesmo “era uma pessoa semianalfabeta” e “mal sabia
escrever o próprio nome”.
Diante do exposto, gostaria de destacar dois elementos. Primeiro que o
racismo em minha família é relacional (DA MATTA, 1997), uma vez que mesmo
odiando negros e sustentando uma postura racista, meu avô casou-se com uma
negra. Talvez seu imaginário se sustente na ideia, muito corrente na sociedade
nacional e respaldada pela academia através dos escritos de Freyre (2006), de que a
mulher negra era vista de forma sexualizada pela elite branca ou que se julgava
enquanto tal. Ainda assim para fugir de sua incoerência, meu avô embranqueceu a
identidade étnico-racial de sua mulher.
Outro elemento a ser destacado são as estratégias que uma família negra
usa para amealhar capital simbólico e fugir dos estigmas. Quem se reconhecia como
negro, empoderava-se pelo acesso a escrita e aos conhecimentos, altamente
valorizados pela sociedade ocidental. Aquele que era considerado analfabeto,
sustentava a cor e a condição social remediada, como forma de valoração.
Empoderando-se através de seu racismo como mecanismo de superioridade diante
de quem tinha a mesma condição social acrescido do acesso às letras. Parece que
esse sistema de afirmação de si e negação do outro eram tentativas de fuga a uma
realidade única, a ascendência afro-indígena e o pertencimento a classe baixa ou
média baixa.
Seja como for, a branquidade era uma condição almejada pela maioria que
criava estratégias de galgá-la seja pela ascendência social, seja pelo orgulho de não
possuir alguns de seus traços, a exemplo dos cabelos crespos. Muitas vezes até as
relações de afeto promoviam embranquecimento e aponto como exemplo o fato de
que, ninguém, nunca ter me considerado negro. Talvez como forma de preservação
daqueles que mais se ama, do racismo estrutural vigente no país, ou como mecanismo
de inconscientemente afirmar que não se pode amar aquilo que é historicamente
negado pela sociedade.
Todas essas situações, ou pelo menos o significado delas, estavam no
plano da subjetividade. Enxergávamos o insistente e velho racismo velado como
piadas e brincadeiras, o que é muito comum na mofada democracia brasileira. Nunca
se percebeu essas pseudo-brincadeiras como ataque velado a identidade negra, ou
como algo que pudesse imputar em qualquer um de nós uma baixa estima por
olharmo-nos no espelho e visualizarmos justamente a cara do esdrúxulo. E nenhum
de nós, que corriqueiramente nos divertíamos com essas brincadeiras direcionadas
aos iguais como espelho, nos autodefiníamos como racistas. Sinto, no entanto, que
minha vó se sentia afetada pelas falas jocosas da família, não por ela ser negra,
porque no fundo todos éramos, mas por perceber-se enquanto tal.
Meus pais se conheceram no Panorama XXI, conjunto habitacional
localizado na periferia de Belém à época, hoje é considerada área valorizada pela
especulação imobiliária, mas naquele tempo era um local distante do centro da cidade
e com valor aquisitivo popular, acessível a classes sociais com menor poder aquisitivo.
Nesse ambiente que a população belemense denomina de “baixada” eles começaram
a namorar. Meu pai se apaixonou por minha mãe, ela era jovem, cheia de qualidades
físicas, como eles costumam relatar, tão bela que havia sido convidada para ser rainha
de bateria de escolas de samba na cidade, o que negou em função de sua fé cristã
recém abraçada e pelas limitações morais dadas por seus pais.
Os predicados físicos de minha mãe sustentados no relato dela e do
marido, eram na verdade os traços da negritude negada enquanto cor, mas valorizada
como traço característico da mulher brasileira. Meu pai, como homem, cis, criado sob
os valores machistas, afirma que ela era “uma negona de parar o trânsito”, ou “de cair
o queixo” e “chamar atenção”. Ele se orgulha de ter ao seu lado, não uma negra, mas
uma “negona”, que carrega no corpo, sobretudo nas partes valorizadas pela
masculinidade brasileira, seus predicados superlativos.
Em adição a isso é preciso lembrar que esse mesmo homem, que vangloria
a negritude de sua esposa, nega a própria, classificando-se como branco, ou no
máximo, pardo. Como explicar esse paradoxo de valoração de cor? Retomo Franz
Fanon (2008, p. 53), em sua afirmação: “Energeticamente, o ser amado me ajudará
na manifestação da minha virilidade, enquanto a sua preocupação em merecer a
admiração ou o amor do outro tecerá, ao longo da minha visão de mundo, uma
superestrutura valorativa”.
O acento do orgulho dessas palavras não está sobre a cor, nem talvez
sobre a beleza da esposa, mas sobre o que esses dois elementos podem refletir
acerca da imagem do que o marido é como homem. É a virilidade dele que está
sustentada no corpo da bela mulher que é minha mãe. Ela sem dúvida era a esposa
ideal a medida em que, para fora, servia de emblema a masculinidade de meu pai,
mas para dentro, tinha a volúpia controlada pela religião que prega a sexualidade
feminina controlada e a liberdade sexual totalmente atada a família.
Voltando a narrativa, meu pai disse que faria tudo para ficar com ela, e por
isso, a primeira coisa foi se converter-se à fé cristã. A conversão de ambos e a
frequência diária em uma igreja pentecostal, era ponto de partida, para a construção
de uma família tipo ideal, patriarcal, nuclear, heteronormartiva, formada por um
homem “branco” casado como uma mulher de atributos físicos próprios de uma mulher
negra, mas com sexualidade cerceada.
Eles se casaram muito jovens, cerca de 18 anos de idade cada um, ambos
nasceram no ano de 1963, possuíam diferença de idade reduzida a meses. Agora
evangélicos, começaram uma vida sem muito apoio, pois ambos não tinham estrutura
financeira para contrair matrimônio. Focados na construção da família ideal,
abandonam a escola e, como relatam: “passaram a viver pela fé”. Os pais dele foram
contra o relacionamento, do casal porque aos olhos deles era claro e muito visível a
negritude dela. O fato de minha mãe ser uma mulher “negra retinta de cabelo ruim” foi
um dos argumentos utilizados para desaprovação do casamento.
Ela, por sua vez, passou a vida tentando resolver o que para meus avós
paternos era um problema. E para tal até hoje usa o cabelo alisado. Quando o
mercado da beleza, que valoriza padrões unicamente brancos não tinha ainda
inventado a “chapinha” elétrica, conhecido instrumento estético de alisamento capilar,
ela utilizada nela própria, uma chapa de ferro levada ao fogo até transformar-se em
brasa para repuxar os cabelos na busca de esticar os fios. Essa ação, que levava
horas para ser concluída, por vezes causava queimaduras sérias e provocava choro
e dor. Todavia era melhor sofrer fisicamente a enfrentar os efeitos do que o racismo
causa na psiquê da mulher negra ao escutar frases racistas do tipo “olha a nega de
cabelo alisado, se cair chuva ela volta a ser gata borralheira”.
Desta forma, minha mãe passou toda sua trajetória tentando
embranquecer-se para ser aceita. Além de esconder os traços étnicos de negritude e
aderir a uma religião hegemônica, ela assumiu com maestria o papel atribuído pela
sociedade a mulher branca. Tornou-se esposa exemplar, pouco afeita as diversões
mundanas, dedicou-se integralmente ao cuidado dos filhos, atrelou sua vida
profissional a do marido, sustentou o casamento nas inúmeras traições descobertas
que eram consideradas por ela como “coisa de homem” e manteve-se casta diante do
abandono do esposo que desaparecia do lar e passava meses ou anos viajando.
Ainda assim seu propósito inconsciente de adequar-se ao que era
considerado em minha família uma pessoa branca nunca foram alcançados. Guardo
na memória seus relatos sobre a humilhação sofrida nas conversas de meu pai com
seus progenitores, tentando persuadi-lo a desistir do casamento. A rejeição sempre
foi velada, jamais dita de forma clara. O que os sogros temiam era o que os intelectuais
ligados as teorias da “degeneração” sustentavam em fins do século XIX; o casamento
interétnico, ou inter-racial, provocasse a contaminação do sangue. Traduzindo para o
discurso popular e essas teorias sempre circularam entre os diversos grupos sociais,
o temor velado de meus avôs era “ter netos negros” pois não seria bom “nem para ele
nem para a esposa”.
Seguiremos a reflexão que Fanon (2008), produz para entender esse
momento e identificar a relevância em destacá-lo aqui como desafio na construção no
imaginário de identidade familiar, inicialmente leiamos Fanon:

Toda experiência, sobretudo quando ela se revela infecunda, deve entrar na


composição do real, e, por esse meio, ocupar um lugar na reestruturação
desse real. Isto quer dizer que, com suas taras, seus fracassos, seus vícios,
a família européia, patriarcal, em relação estreita com a sociedade que
conhecemos, produz cerca de três décimos de neuróticos. Trata-se,
apoiando-se em dados psicanalíticos, sociológicos e políticos, de edificar um
novo meio familiar susceptível de diminuir ou mesmo eliminar detritos, no
sentido anti-social do termo. (FANON 2008, p 58)

O ideal almejado pela sociedade da época não inclui ter entre seus
familiares pessoas com referências consideradas inferiores a que se já se tinha. O
que se tentava buscar era uma limpeza étnica. Esse foi um dos maiores desafios que
meus pais tiveram que enfrentar para consolidar sua relação. Trata-se de um
enfrentamento de ambos, pois meu pai, mesmo não se reconhecendo como homem
negro, em razão do seu tom de pele mais claro e pelos padrões de branquitude
brasileiro, se opõe à determinação de meus avós e decide manter o relacionamento
com àquela para quem declara seus sentimentos, e ela, em contrapartida, resiste a
neurose “na perspectiva fanoniana” de não integração ao que eles consideram, na
época, como inaceitável aos padrões considerados ideais.
A “tara pela aceitação social”, reproduzindo Fanon (2008), leva ao
sentimento de frustação por parte de meus avós, ao ver o filho caçula estruturando
sua família numa direção não almejada e tão difícil, reproduzindo a escolha
matrimonial por uma mulher negra. A “neura” (FANON, 2008), está em pensar na
repetição do drama social vinculado à frustração, pois novamente fracassam diante
do que consideram ser um nível social mais elevados uma vez que integram ao
convívio familiar alguém com estereótipos tão marginalizados quantos os seu e que
em adição a esse estigma também é nordestina, de poucas provisões, e, embora tente
invisibilizar pela conversão ainda traz em sua origem familiar, relações com a religiões
afro-brasileiras que eles de forma racista chamavam de “macumbeiros”.
A visão racista demostrada, no início da relação com meus avós paternos,
não impede que os dois jovens se casem. Meu pai e mãe se casam no ano de 1983.
Agora marido e mulher passam a se dedicar ao trabalho na igreja e à vida conjugal,
depois de pouco tempo juntos, minha mãe descobre que está grávida de mim. Meu
pai que é tido como um profeta6, o que para a igreja é alguém que recebe mensagens
diretamente do divino. Nesse caso, através de sonhos, prática comum em sua
religiosidade pentecostal, a mensagem de um anjo que vem até ele e diz: “você está
vendo esta arma? Meu pai relata ver uma espada à sua frente, e responde: - sim vejo.
O anjo diz em seguida: - pegue a arma! Me pai indaga: - o que eu vou fazer com essa
arma, ela não é mais usada nos dias de hoje, o que devo fazer? Mesmo contrariado,
meu pai vai em direção a arma para pegá-la, entretanto, quando ele a pega ela se
transforma em uma bíblia. Cheio de surpresa, meu pai vê a bíblia e se volta para o
anjo que olha para ele e diz: - essa será a arma do teu filho, ela fará e será o que você
não conseguiu ser e fazer. Meu pai acorda, conta o sonho para minha mãe, ambos
oram e sabem naquele momento que terão um filho homem.

1.2. A COLONIZAÇÃO DO OLHAR A PARTIR DA FÉ CRISTÃ

Minha vida foi pautada dentro da igreja Assembleia de Deus, desde que me
entendo com alguma consciência, minhas memórias estão vinculadas a questões na
igreja: festas, cultos, ensaios, atividades. Eu era conhecido como o filho da irmã Dalva,
nome real da minha mãe, que sempre levava a mim e minha irmã para igreja, mesmo
quando ela estava separada do meu pai.

6 Todo crente é potencialmente um profeta. O derramamento do Espírito Santo sobre a carne traz
consigo seus próprios resultados: “e profetizarão” (Bíblia. At 2.18), [...] entretanto, parece ter havido na
igreja do NT. Um grupo especialmente também chamado pelo nome de “profetas”, separados para o
ministério da profecia. São mencionados imediatamente após os apóstolos, nas listas de ministérios
cristãos (bíblia. ICo 12.28,29; Ef. 4.11). (DOUGLAS, 2006)
Meu pai não durou muito tempo na igreja, as primeiras dificuldades vieram
e ele se distanciou da família, com trabalhos sempre em outros Estados ou sempre
viajando, mas sem muito ou nenhum retorno financeiro. A vida conjugal dos dois era
extremamente conflituosa, cheia de idas e vinda, que eram alentadas pela vida
religiosa da minha mãe, sempre em busca constante de orar para Deus reconstruir
nossa família e trazer o pai de volta para dentro de casa.
Inúmeras e constantes eram as marcas que esses conflitos familiares
deixavam, assim como as interseções religiosas para reverter isso. Minha casa era
conhecida como “monte de oração”. Essa expressão é comum para designar lugares
onde cristãos pentecostais e neopentecostais vão para orar, em busca de uma
revelação, através de um profeta que fala em nome de Deus, como um arauto. Esses
eventos aconteciam várias vezes durante as semanas, várias vezes ao dia, sempre
que alguém chegava em casa com a intenção de orar, reuniam-se todos em um
cômodo da casa, na busca de acessar o sagrado e construir uma comunicação que
levasse a obter as respostas almejadas.
As orações eram tão comuns que não existia um limite para que elas
acontecessem. Atravessavam a manhã, tarde ou noite, não era estranho que
acontecessem durante a madrugada inteira. Eu participava de todas elas ou pelo
menos da maioria, mas estando em casa não podia deixar de participar. Esses
momentos de intercessão eram uma tentativa de, cada vez mais, ter a certeza de estar
no caminho certo, na direção de fazer a vontade do divino. Acreditava-se que, em
função disso, e que um dia todas as aquelas mazelas e dificuldades que viviam a
nossa espreita iriam passar. Nossa família iria se reestruturar e toda dificuldade
financeira iria ser superada, pois apegava-se ao que muitos “profetas” anunciavam
como promessas divinas direcionadas a nossa família, entre elas, era recorrente citar
o meu desenvolvimento como pregador, confirmando assim a promessa revelada
antes mesmo do meu nascimento. Esses momentos eram um capital social, pois
garantiam a minha mãe o status de “mulher de Deus”, aquela que está voltada para
os interesses do divino ao invés de se preocupar com assuntos triviais ou “mundanos”
comuns a mulheres da sua idade.
Entendo que, assim como para Fanon (2008. P 50), o “Falar uma língua é
assumir um mundo, uma cultura. O antilhano que quer ser branco o será tanto mais
na medida em que tiver assumido o instrumento cultural que é a linguagem.” para
minha mãe, enquanto mãe, quanto mais ela e sua família fossem reconhecidos como
provedores de práticas religiosas, quanto mais fossemos reconhecidos pelas nossas
referências cristãs, menos preconceitos e problemas teríamos dentro daquela
realidade social, e sem dúvida, espiritual. Seriamos bem aceitos e estaríamos
encaminhados em nossas vidas. Minha mãe nunca cobrou da minha irmã como de
mim a participação nas orações feitas em casa, sempre quis me ver como alguém que
prega bem da bíblia, como “um homem de Deus”, como ela mesma gosta de falar.
Hoje entendo sua proposta, ser um homem bem aceito na sociedade a qual ela está
acostumada é ser um homem que promove as verdades cristãs, esse homem é bom
e está salvo.
Uma das referências recorrentes nas orações, eram os fatos delas sempre
estarem ligadas à quebra de maldições ou ao que chamavam de “trabalhos de
maldição” direcionados aos presentes nas orações. É como se terceiros sempre
tivessem realizado “trabalhos de magia”. A referência era sempre vinculada a terreiros
de “macumba”, linguajar que era frequente na comunicação popular. Existia um
imaginário de que sempre se direcionava a alguém presente ou ao próprio espaço de
oração, no caso minha residência, ações ritualísticas contrárias aquele momento.
Vinham pessoas, irmãos, como costuma-se falar no meio evangélico, de diversos
lugares que sempre usavam as mesmas referências, o inimigo era sempre da mesma
origem, de espaços oriundos de cultos afros, pelo menos era o imaginário que
povoava a espiritualidade no local, mas quero enfatizar que pela diversidade de
pessoas que transitavam pela minha casa, essa era uma ideia que transcendia o local,
pois não eram instruídos a falar assim, o discurso já vinha formado e as “profecias”
convergiam pro mesmo sentido.
Na referência construída pelos participantes desse universo pentecostal
cristão, esses momentos de oração eram povoados de um imaginário que reforça a
demonização dos cultos afro brasileiros. Eram diversos os relatos de ex-praticantes
das religiões afrodescendentes que frequentavam minha residência construídos
sempre através de experiências terríveis,
Temerosos a respeito do que faziam quando eram participantes dos cultos
de origem africana, entretanto, sobre isso acredito que toda religião é feita de
intencionalidades e possui uma moral pessoal depositada sobre ela. Essas pessoas
buscavam algo que tinha uma moral duvidosa e como saída dessa natureza pervertida
de suas práticas, viam na religião o mal que estava nelas.
Examinaremos com rigor os mitos que fundamentam a religiosidade do
candomblé Keto e a cosmogonia que povoa a teologia africanista, assim poderemos
analisar com a devida perícia se essa noção de mal, de demônio, cabe nos textos que
orientam esses cultos e se cabe o discurso do mal tão difundido pelo preconceito
popular de pessoas que alegam tê-lo vivido nessas religiões, veremos se viveram pela
religião ou se por suas intenções pessoais.
Enquanto mantínhamos uma rotina intensa de orações em casa, minha
genitora ainda frequentava igreja, o que era um desafio. Com o marido ausente, ela
podia ocupar cargos, funções na igreja. Como ela tinha uma incrível habilidade de
trabalhar com crianças, por muitos anos foi a responsável pelo grupo de crianças da
congregação. O trabalho com as crianças era uma forma de agradecimento a Deus e
uma forma de retribuição ao divino ao dom da vida. Como não tínhamos dinheiro ela
considerava as horas trabalhadas na igreja uma devolução a tudo que Deus dava a
ela e a nós, afinal, nunca tivemos muito, mas nunca passamos fome ou nos faltou o
que vestir. Nossa realidade social era muito precária e a dedicação a religião era
caminho encontrado para preservação da família.
Como coordenadora do departamento infantil, minha mãe era uma líder
incansável. Sua dedicação gerava encantamento em uma criança, que sem entender
muito da realidade na qual estava inserida, se vê na obrigação de valorizar e dar
resposta a todo sacrifício que sua mãe realizava. Comecei muito cedo a ter um senso
de responsabilidade, entendia que minha mãe sofria muito e eu não poderia ser mais
um peso para ela. Minha identidade de filho começou a ser forjada ainda muito de
forma que os amigos da família relatam que eu era uma criança que me destacava
das demais. Minha mãe entendia que era pelo fato de existir em mim uma intenção
divina, mas penso eu que, como filho eu não podia ver minha mãe soterrada em mais
problemas. Como criança eu errava, fazia bobagens como toda criança, mas existia
uma atitude inconsciente em querer ajudar que tentava não gerar desgosto.
Eu, ainda muito novo, começo a participar das atividades desenvolvidas
pela minha mãe na igreja, cantando hinos, sozinho e com o grupo de crianças. Faço
leituras da bíblia diante de todos no púlpito, tomo a frente das orações, sou uma
criança que se destaca em função do constante compromisso que minha mãe tem
com a igreja.
Algo marcou minha vida, por volta dos meus 6 anos de idade, sou
incumbido de trazer a mensagem final num culto de crianças, a hora mais importante
do ritual na Assembleia de Deus seria por mim ministrada, por ordem da minha mãe.
Ela se empenhou me ensinar como fazer, escolhemos juntos a passagem bíblica no
livro de Daniel, no velho testamento. Todo arrumado, vestido com um terno
improvisado que ela conseguiu emprestado com alguém, subi ao púlpito para falar
sobre Ananias, Misael e Azarias (Sidrac, Misac e Abdênago)7. Minha pregação girava
em torno de três jovens que não se curvaram perante a imagem do rei babilônico,
diante da qual todos deveriam fazê-lo. Conta o velho testamento que os três jovens
hebreus, foram levados cativos, todavia não esquecem suas origens, muito menos a
fé de seus pais, se destacam entre os cativos, criados junto ao palácio. Quando não
se prostam diante da estátua, são jogados em uma fornalha superaquecida, mas os
jovens não morreram porque um anjo aparece os salva da morte. A mensagem
pregada era algo vivo na minha família.
Nossa realidade de pobreza assemelhava-se a metáfora de fornalha.
Enfrentávamos um turbilhão de desafios diários, mas sempre cremos que Cristo
estava conosco e nenhum mal iria nos atingir, a exemplo do que acontecia no mito
bíblico narrado. Até o início da adolescência, esse era meu Ethos religioso, uma fé
formulada ainda criança, numa divindade incansável em proteger, assim éramos
ensinados.

Sim, é preciso que eu vigie minha alocução, pois também é através dela que
serei julgado... Dirão de mim com desprezo: ele não sabe sequer falar o
francês!... Em um grupo de jovens antilhanos, aquele que se exprime bem,
que possui o domínio da língua, é muito temido; é preciso tomar cuidado com
ele, é um quase-branco. Na França se diz: falar como um livro. Na Martinica:
falar como um branco. (FANON 2008, p 36)

Minha história de vida traduz-se na primeira infância, adolescência e


juventude, na elaboração de um indivíduo, no primeiro momento, pela indução
materna e em seguida por escolha própria, me tornar um representante das verdades

7 Entre eles encontravam-se alguns judeus: Daniel, Ananias, Misael e Azarias. O chefe dos eunucos
deu-lhes outros nomes: a Daniel, o de Baltasar a Ananias, o de Sidrac a Misael, o de Misac e a Azarias,
o de Abdênago. (bíblia. Dn. 1.6,7).
cristãs a mim depositadas, assim como o jovem martinicano deveria ser um exímio
dominante do francês eu deveria ser um eloquente e reconhecido pregador da palavra
de Cristo, não para ser temido como o jovem na Martinica, mas para ter o
reconhecimento social necessário dentro da minha realidade comunitária e um bom
representante das verdades cristãs, para cumprir o papel religioso e cultural tão
almejado pelas perspectivas depositadas sobre mim.
Etnobiografar esses eventos é traduzir verdades sociais e culturais que
constituíram minha identidade enquanto pessoa, dando sentido às minhas ações e
visões sobre o mundo. Penso como teria me tornado um reprodutor de verdades que
impõem medo sobre as religiões de matriz africana ao demonizar tudo que expressa
e identifica essas religiosidades.
Na construção de um jovem de periferia essa imagem era muito positiva,
pois todos me viam como o menino da igreja, entre os mais velhos, o irmãozinho,
aquele que tem uma boa orientação. As pessoas se referiam a mim sem mesmo eu
conhecê-las. Minha mãe sentia orgulho e sabia que seu esforço estava produzindo
resultados. Eu assumi o papel e tentava me comportar da melhor maneira possível
para não a decepcionar; essas são memórias muito fortes em mim.

1.3. O PAPEL DAS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO NA CONSTRUÇÃO DE UM NOVO


OLHAR

A construção familiar é a primeira leitura de mundo de uma criança. Seus


valores, sua moral, a forma de conduzir suas atitudes são fruto dessa relação. A
incapacidade de conseguir perceber-se dentro de uma realidade maior e mais plural
constrói barreiras muitos difíceis de serem ultrapassadas, então, como dialogar com
isso no ambiente acadêmico onde novas cosmovisões serão trabalhadas? Como se
permitir ler o mundo através de saberes sociais, políticos, filosóficos e educacionais,
quando se está dentro de um curso como o de Ciências da Religião tendo sido
fundamentado por uma visão tão limitadora?
Quando entrei na universidade a realidade dos que ingressavam no ensino
superior no país era de apenas 2% da população negra (ANDRADE, 2012). Estava
frente a um desafio que antes de ingressar na universidade não parecia ser tão
grande, minha intenção era aprender uma profissão, que a meu ver iria fundamentar
o que já vivia dentro da igreja, pois sem entender bem, via o curso de Ciências da
Religião como algo próximo da teologia. Para a minha surpresa, descobri que eu não
iria me tornar um cristão mais fundamentado na minha fé, mas que eu colocaria em
xeque todas as verdades tão bem fundamentadas na minha cabeça, verdades que eu
acreditava serem inquestionáveis. Vale ressaltar que estava ingressando em um curso
com uma base epistemológica totalmente diferente da convencionalidade
característica dos cursos teológicos.
O ano que ingressei na universidade foi 2002, com 17 anos e cheio de
certezas, comecei a confrontar as verdades religiosas que nunca haviam sido
criticadas, cada aula era um desafio, cada professor trazia uma leitura sobre as
premissas religiosas, consideradas por mim, tão simples e profundas e que estavam
marcadas na minha construção pessoal. A religião agora era objeto de estudo,
permeada de disciplinas como: Filosofia das Religiões, História das Religiões,
hermenêutica dos livros Sagrados, Introdução à Psicologia e Antropologia da Religião,
me lavavam a reflexões que colocavam em dúvida todas as minhas certezas,
produzindo a cada dia mais dúvidas.
Como eu ainda estava muito apegado às práticas religiosas aprendidas na
igreja, me juntei aos meus pares cristãos dentro da universidade, realizamos
momentos de reflexão sobre a bíblia dentro do campus, realizamos alguns cultos no
anfiteatro do centro de educação. Eu queria manter minha fé firme e constante, na
certeza de que eu estava ali para aprofundar meus conhecimentos e manter a fé
aprendida ao longo da minha jornada até ali.
As ciências da religião, no seu escopo epistemológico, têm como premissa
entender as religiões como um dado humano, múltiplas construções simbólicas que
servem para entender realidades sociais, culturais e políticas, e a relação desses
dados no processo da construção humana. Observemos o que diz Passos (2007),
quando fala sobre a base epistemológica das Ciências da Religião:

O pressuposto deverá ser antes de tudo o valor teórico, social, político e


pedagógico do estudo da religião para a formação do cidadão. Estamos
insistindo na necessidade de distinguir educação da religiosidade e educação
do cidadão, incluindo nessa última, a dimensão religiosa, enquanto algo
presente no indivíduo e na sociedade. (PASSOS, 2007, p 35)
A proposta curricular do curso era para mim muito prazerosa, pois me
permitia ver além das “quatro linhas” nas quais sempre me senti seguro, entretanto,
era também muito desafiadora, a cada novo conceito apreendido, o fundamentalismo
religioso, que ainda norteava minha fé, perdia o sentido. Eu era obrigado a dialogar
com formas de ler a religião que iam além da certeza de uma única verdade e um
único caminho. Como entender que as pessoas podiam e deviam ser respeitadas por
suas escolhas de fé, mesmo que essas contradissessem à verdade suprema e
inquestionável que era a minha? Como profissional, como promover uma atuação
onde só cristãos deveriam ser vistos e referenciados, se existiam outras proposições
de fé presentes na sociedade brasileira, universo no qual eu iria atuar? A demonização
e o medo principalmente sobre as religiões de matriz africana, eram linguagens que
como profissional eu precisava superar, caso contrário toda teoria que eu aprendia e
entedia como valorativa à atuação do profissional das Ciências da Religião seriam
subvertidas.
Minhas amarras históricas fundamentadas em uma única leitura de mundo
estavam ruindo, passei a me permitir viver de maneira mais leve, sem maiores medos
de não estar agradando a Deus, pois percebia que agora novos conhecimentos
chegavam e me davam a possibilidade de viver uma vida sem o medo do inferno e de
não corresponder as profecias divinas.

Cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido nas coisas, minha alma


cheia do desejo de estar na origem do mundo, e eis que me descubro objeto
em meio a outros objetos. Enclausurado nesta objetividade esmagadora,
implorei ao outro. Seu olhar libertador, percorrendo meu corpo subitamente
livre de asperezas, me devolveu uma leveza que eu pensava perdida e,
extraindo-me do mundo, me entregou ao mundo. Mas, no novo mundo, logo
me choquei com a outra vertente, e o outro, através de gestos, atitudes,
olhares, fixou-me como se fixa uma solução com um estabilizador. Fiquei
furioso, exigi explicações... Não adiantou nada. Explodi. Aqui estão os farelos
reunidos por um outro eu (FANON, 2008, p 103).

Ao ler Fanon (2008), vejo que nesse momento da minha vida estava num
conflito semelhante. A busca pelas verdades cristãs dava sentido a minha vida, me
colocavam de um lado, mas, esse lado refletia de fato meu modo de pensar? Eu me
questionava. A religião deveria ser meu alento e libertação, mas ao estabelecer a mim
um lado e me dizer quem eram meus inimigos, eu de fato, vivenciava o cristianismo
que eu tanto dizia crer? O amor cristão me impelia a fé ou o medo do inferno? Eu era
um agente da minha salvação ou reprodutor de verdades irrefletidas, que mais me
descaracterizavam da minha fé do que me faziam afirmá-las? Eu também exigi
explicações, fiquei furioso, e muitas vezes, ainda perdido, segui na busca pelas
respostas desejadas.
Na minha casa isso foi um problema muito grande, contei ao pastor sobre
minhas dúvidas, e diante de tantas questões eu não poderia continuar na liderança de
um departamento da igreja. Nessa época eu liderava um grupo de 50 jovens, eu ainda
era muito jovem, mas meu nível de comprometimento me habilitava para tal
responsabilidade. Na academia eu transitava entre teorias que me mostravam uma
nova perspectiva sobre a religião e a religiosidade das pessoas. A minha já não era
única e exclusiva, como subir na tribuna de uma igreja e demonizar todas as outras
quando você entende a sua fé como um microcosmo diante de uma infindável
variedade de propostas de universos religiosos espalhados pelo mundo, nas quais
tudo que se espera é o bem, a bondade, através de uma ou mesmo várias divindades?
Diante de um dilema existencial fui falar com meu pastor responsável, ele
era o responsável pela congregação (igreja) da qual participava, pedi o afastamento
do cargo, falei das novas experiências que havia experimentado, ele tentou me
dissuadir, mas não, eu não tinha condições de continuar, assim que eu terminei de
falar com o pastor, ele encontrou uma forma de comunicar minha mãe. Assim que o
comunicado chegou aos ouvidos da minha família o cenário mudou, eu agora era
tratado como desviado, fui automaticamente disciplinado pela igreja que não afasta
nenhum líder sem motivos. De pregador agora eu era o jovem rebelde que se afastava
de Deus para viver sua vida, porque havia sido ludibriado pelos saberes humanos e
mundanos. Muito semelhante a assertiva feita por Fanon (2008, p. 48), ao dizer que:
“Quando um preto fala de Marx, a primeira reação é a seguinte: “Nós vos educamos
e agora vocês se voltam contra seus benfeitores. Ingratos! Decididamente, não se
pode esperar nada de vocês”. O olhar imposto é o mesmo. Como pode alguém adquirir
conhecimento e não romper com os ditames da igreja? Como pode alguém questionar
a prática da religiosidade de um grupo só porque estudou uma ou duas teorias na
academia? Como vai ser visto agora? Entendo a intenção e a força no olhar da minha
mãe quando dizia que eu não era igual aos outros, não deveria esquecer que como
jovem negro, eu precisava reforçar minhas boas intenções para uma sociedade que
me julgava só pela cor da minha pele.
A religião me dava o crédito, minha mãe sabia disso, mas sem isso eu era
apenas mais um negro correndo risco. Não era o irmão da igreja, o filho da irmã da
Assembleia de Deus, eu só seria mais um jovem negro de periferia, que teve a ousadia
de questionar sua postura frente aos ensinamentos religiosos que teve. O imaginário
comum me mostrava que o caminho seguido não seria o melhor, e me levaria para
morte eterna no inferno, atitude comum entre muitos evangélicos quando pretendem
convencer alguém a reconsiderar sua postura cristã até alcançar um nível aceitável.
As ciências da religião me fizeram ver o mundo de maneira mais ampla, mais plural,
possibilitando uma leitura religiosa e social capaz de dialogar com o diverso, com as
múltiplas manifestações do sagrado, e levar isso para outras pessoas é libertador,
amplia meus horizontes e me permite ser capaz de promover uma sociedade mais
justa e mais respeitosa.
A imagem que construo sobre mim nesse trabalho é um substrato cultural
dentro de uma perspectiva sobre a minha pessoalidade, isso é algo que acontece na
intenção de construir o que Gonçalves (2012), chama de Self, vejamos:

A narração da própria vida como construção do self e construção do mundo


encontra-se nas mais variadas formações culturais. A narrativa sobre si
incide, sobretudo, na noção de pessoa construída culturalmente: uma pessoa
culturalmente constituída é ela mesma objeto, também, de modelos
convencionados pela cultura de se ter acesso a estas narrativas sobre si que
veiculam os acontecimentos a uma história sociocultural (GONÇALVES,
2012. p 21).

Minha self narrativa é onde estabeleço minha interioridade, minha


identidade construída a partir das minhas experiências, as quais resultaram quem eu
sou, através da minha história sociocultural. Revelar essas imagens que construo
durante minha narrativa são uma busca de demonstrar quais eventos foram relevantes
para criação dessas identidades, que são múltiplas e busco conseguir transcrever da
imagem que faço de mim e tento comunicar para o leitor por meio da escrita
etnobiográfica. A multiplicidade de identidades se faz pelas identidades de contador
de histórias, de filho, de membro da igreja, de pesquisador, enfim. Todo papel social
vivenciado é uma identidade pertencente a minha pessoalidade.
Durante os anos de curso, eram muitas as experiências que tínhamos ao
frequentar espaços religiosos para termos contato com nosso objeto de estudo, para
além das leituras bibliográficas. Era comum nos sentirmos motivados a estarmos em
contato com diferentes religiões. Eu fui a um encontro com Judeus, foi um aprendizado
proveitoso e sempre muito respeitoso; fui em alguns rituais da Wicca, elas possuem
uma comunidade forte na cidade de Belém; fui ao Círio de Nazaré, ambiente que como
evangélico eu nunca sonhei em pisar. Meu Ethos religioso agora dialoga com o
diverso, busca estar aberto ao diálogo, está em construção e se norteia por observar
o novo.
Ir a espaços religiosos diversos virou uma constante, comecei a viajar, fui
a tribos indígenas, tinha prazer em observar os cemitérios de cada cidade que
frequentava no interior do Pará e em outros Estados. Estava decidido a falar sobre o
culto aos mortos em meu trabalho de conclusão de curso, tema pensado já no início
do meu segundo ano. As visitas continuavam, muitos templos católicos, comunidades
quilombolas e festividades religiosas populares diversas.
Eu ia as variadas manifestações religiosas sem medo e com a certeza que
estava indo como cientista da religião, como parte do método de observação para
desconstruir o etnocentrismo em mim, e observando “in loco” grupos diferenciados,
mas sempre com a certeza de que em nada isso afetaria minha fé em Cristo e minha
relação com Deus. Por mais que ninguém na minha casa me visse como um crente,
aos moldes do protestantismo do Assembleiano8, eu, no íntimo da minha consciência,
tinha certeza de que Deus nunca havia se afastado de mim e nem eu d’Ele, afinal que
eu estava buscando respostas sem nunca negá-lo. Todas as visitas eram
interessantes e me levavam a aprofundar meus conhecimentos, sem nunca me
causarem medo ou receio de como poderiam afetar na minha pessoalidade religiosa.
Na minha turma de graduação conheci uma pessoa com a qual, com o
passar do tempo, construí profunda empatia e passamos a nos relacionar
academicamente, produzindo nossos trabalhos juntos, uma colega de turma, Patrícia
Perdigão; com muitas informações a respeito das religiões de matriz africana. Como
nunca havia tido contato com uma pessoa desse universo, passamos a contribuir
muito um com o outro, pois nossos conhecimentos eram complementares, cada um
dentro do seu universo simbólico, eu como cristão e ela como afro religiosa.
Os estudos dentro do curso de Ciências das Religiões começaram a me
fazer entender que esse universo das religiões de matriz africana não são uma coisa
só, que existe uma diversidade muito grande de religiões que compõem o que eu
entendia ser um único grupo, superando assim o falso conceito de “macumba” e

8 Termo usado para se referir a membro da Igreja Evangélica Assembleia de Deus.


deixando enfim de universalizar as práticas afro-religiosas. A Patrícia me ajudou
muito, ela se declara pertencente candomblé jeje-nagô, em uma casa religiosa
localizada no município de Ananindeua, cidade que compõem a região metropolitana
da capital do Estado do Pará.
Ela passa então a me convidar, como amigo e pesquisador, a ir à rituais
religiosos dentro da casa de culto da qual ela faz parte. Nesse momento percebo uma
limitação que até então não havia percebido em mim, mas, como o racismo religioso
estava arraigado, me percebo relutante em aceitar os convites. Atribuo esse
comportamento à versão religiosa aprendida ao longo da minha vida e que ainda é
muito latente em mim, mesmo que de forma inconsciente.
Como definir e entender que seria o racismo religioso, braço do racismo
estrutural de mais difícil enfrentamento, responsável pelo processo de estigma que
historicamente têm desqualificado as religiões afro-religiosas. Para refletir sobre o
tema farei uso da análise desenvolvida por Carvalho (2021), ao analisar o preconceito
desenvolvido pela sociedade brasileira contra as práticas sacrificiais, desqualificando
as práticas e demonizando-as, em última instância promovendo verdadeiro ataque a
prática ritual. O racismo religioso promove referências depreciativas sobre o
imaginário negro, vejamos o que ele diz:

É fato que essas adaptações muito se devem ao racismo religioso e não


apenas ao “preconceito” ou à intolerância (ideias diferentes, mas não
antagônicas), que tenta de todas as formas excluir as práticas não-cristãs, e
o processo de captação de fiéis, desde os que não se identificavam com
religião alguma, até egressos das próprias religiões de matriz africanas.
Estruturado no seio da sociedade brasileira, difunde mascaradamente a
perseguição à afrodescendência em forma de “purificação” cultural, civil e
religiosa, tendo em vista a criação de um Estado laico que, no entanto, sirva
aos propósitos cristãos da branquitude, como já se fazia desde os tempos
coloniais mas teve que se adaptar às novas Constituições religiosamente
democráticas. (CARVALHO. 2021, p 77).

O conceito de racismo religioso empregado aqui não descarta, assim como


Carvalho (2021), apresenta, os conceitos de intolerância e preconceito, todavia traduz
a tentativa de sobreposição da cultura branca sobre a cultura negra. Este preconceito
constrói-se para além do juízo de valor religioso, incidindo contra os valores étnicos
contidos no ethos e na visão de mundo dos povos afro-diaspóricos. A perspectiva se
torna racial, pois as religiões afro-brasileiras são alvo de classificação demonizada
enquanto outras matrizes religiosas, que possuem arquétipos muito semelhantes, não
sofrem negação tão veemente de suas liturgias, mitologias ou simbologias.
O fato de ter me formado em uma estrutura religiosa pentecostal, me
proporcionou uma visão capaz de perceber o quanto os cultos negros são traduzidos,
pelo olhar cristão, de maneira racializada e estigmatizada se comparada a outras
religiões. O racismo religioso é uma definição para demonstrar uma pauta social que
se reflete em uma parte específica da nossa cultura, a religião, elemento formador do
olhar da criança sobre o mundo e sobre si mesmo. Tais práticas também podem ser
entendidas como intolerância e preconceito, mas não só isso, pois está diretamente
ligada a questões étnicas.
Definido o motivo de usar o conceito de racismo religioso que irei sustentar
até o final desse trabalho, volto a análise da minha trajetória. Tinha orgulho em me ver
como alguém que já havia frequentado muitas manifestações religiosas, mas ir até
uma casa de Candomblé, em um culto religioso, que durante a minha vida toda era o
principal alvo de leituras teológicas que apontavam como manifestação do mau, onde
eu acreditava que se cultuava o próprio diabo. Era quase que um desafio
intransponível para mim. Eu tinha medo, sim medo, medo de verdade, de estar
contradizendo tudo que havia aprendido sobre a religiosidade herdada pelos
antepassados negros. Imaginava que estaria cultuando o mau e que lá veria a
manifestação do próprio diabo encarnado. Essa é uma das faces do racismo religioso,
que de forma velada traduz apenas que é negro em ruim, demoniza as divindades e
o sobrenatural africanista, enquanto o imaginário pertinente as demais religiões está
livre para ter seus símbolos observados e assumidos pela cultura popular sem medos
ou ressalvas.

Na Europa, o preto tem uma função: representar os sentimentos inferiores,


as más tendências, o lado obscuro da alma. No inconsciente coletivo do homo
occidentalis, o preto, ou melhor, a cor negra, simboliza o mal, o pecado, a
miséria, a morte, a guerra, a fome. Todas as aves de rapina são negras. Na
Martinica, que é um país europeu no seu inconsciente coletivo, quando um
preto “azul” faz uma visita, exclama-se: “Que maus ventos o trazem?” O
inconsciente coletivo não depende de uma herança cerebral: é a
consequência do que eu chamaria de imposição cultural irrefletida. Nada de
surpreendente, pois que o antilhano, submetido ao método do sonho em
vigília, reviva as mesmas fantasias de um europeu. É que o antilhano tem o
mesmo inconsciente coletivo do europeu. (FANON, 2008. p 162).
O imaginário pertinente a cultura religiosa afro-brasileira é semelhante a
vivenciada pelo negro retinto martinicano, numa versão da realidade na qual só as
referências negras são consideradas pejorativa e são assumidas de forma irrefletida
pelo conjunto da sociedade que reproduz essa proposta de racismo. Pessoas negras
reproduzem o inconsciente do mau, naturalizando a cosmovisão ocidental judaico-
cristã. É preciso que se defina bem a origem dessa visão, porque ela é branca e
ocidental, o povo negro não é responsável por ela, mas é vítima da herança da
colonização europeia, da imposição religiosa que inferiorizou e demonizou
historicamente a cultura africana. Infelizmente esse imaginário racista, como
apresentado por Fanon (2008), se faz presente entre os afrodescendentes
aculturados pela versão neurótica embranquecida ocidental.
A visão que permeia as religiões de matriz africana como encarnação do
próprio mau é fruto da construção social que traduz a religiosidade de origem negra
como expressão demoníaca em nossa sociedade. Essa era a visão que eu havia
apreendido ao longo da minha vida religiosa, a questão era: como superar isso e
transpor toda essa construção de maneira saudável? Aceitei o convite da Patrícia,
tentei mascarar meu medo de todas as formas, dando desculpas sem demonstrar meu
receio em ir a um espaço como uma casa de candomblé.
Sou muito feliz por ter feito Ciências da Religião, e durante uma atividade
da disciplina hermenêutica dos livros sagrados, onde estudávamos a teologia oral
presente nos cultos africanos, acabamos indo visitar uma pessoa que era um Ogam
Alabê, sacerdote religioso que é responsável pela dinâmica religiosa do culto afro
religioso, através do toque dos atabaques (PERDIGÃO, 2021, p. 16). O Ogam não era
um indivíduo comum para os padrões da religião, tornando-se inclusive tema da tese
de mestrado da, agora Mestra, Patrícia Perdigão (ibidem), dentro do mesmo programa
ao qual submeto este trabalho, o PPGCR da UEPA.
Na visita que fizemos a casa do Pai Banjo, título pelo qual nos dirigíamos
ao pesquisado que iria nos ajudar na realização do trabalho para avaliação na
disciplina; entrei pela primeira vez em um terreiro de candomblé. No momento em que
fomos, não se realizava nenhum culto, e pude conhecer muitas coisas a respeito da
afro religiosidade. Ele era um homem que dominava os códigos religiosos e era muito
reconhecido pela comunidade. Perdigão faz a seguinte descrição sobre o Pai Banjo:
[...], aponta-se Banjo como um dos precursores baianos que ajudou na
organização das primeiras casas de candomblé de Belém e contribuiu para a
expansão dessa matriz religiosa, através dos toques e cantos, ensinando os
primeiros ogans e reorganizando a pronúncia e sequência ritual das festas de
candomblé de Belém, através de cursos e apostilas construídas em parceria
com estudiosos da língua ritual, o yorubá. (PERDIGÃO, 2021. p 18).

O nível de conhecimento e autoridade demonstrados pelo Pai Banjo eram


notórios, conseguimos convencê-lo a nos ajudar na execução do nosso trabalho. Ele
se dispôs tanto que chegou a compor uma cantiga que ele mesmo tocou durante a
apresentação do trabalho, bem como, levou uma de suas filhas de santo para
abrilhantar nossa apresentação dançando com vestimentas rituais. Eu participei junto
com a Patrícia explicando a motivação teórica orientadora da apresentação e falando
sobre os símbolos que estavam sendo ali expressados. Nós também fizemos coro
cantando a composição do pai Banjo durante a apresentação.
O evento acima descrito tirou de mim parte do peso e do medo que eu
carregava veladamente. Eu já tinha discutido teoricamente muitas vezes o fato de a
demonização dos cultos afros serem fruto do processo da construção etnocêntrica
aplicada sobre a religiosidade negra, todavia, entre teorizar e superar uma vida de
preconceitos existe uma profunda distância. Depois da execução da atividade e do
contato com os elementos presentes na casa afro religiosa do alabê, me senti mais
seguro para aceitar um dos convites da minha já amiga Patrícia Perdigão, apesar de
ainda ter em mim muitos receios.
Fui convidado a ir em um terreiro no bairro do Tapanã, região periférica da
cidade de Belém, onde o Pai Banjo estaria conduzindo seus trabalhos, comandando
a orquestra da noite para celebração do culto de Candomblé. Confesso que fui ao
evento com profundo receio e preparado para me confrontar com manifestações de
caráter duvidosos. Estava preocupado em sustentar minha fé e não me deixar sujeitar
a nada que pudesse contradizê-la fé. Sentia que veria algo, que assim como o texto
sobre os três jovens em exílio babilônico, sobre os quais preguei ainda quando
criança. Tinha medo de verdade de causar incômodo às pessoas por
inconscientemente demonstrar meus preconceitos e por isso fui muito apreensivo.
Chegando ao local do culto, procurei me camuflar entre os espectadores,
como quem se esconde, busquei ficar o mais distante possível e não ser alvo das
atenções, mas como as coisas nem sempre saem como imaginamos, fui convidado a
ocupar uma cadeira na primeira fila, pois minha amiga havia dito que estava ali como
um pesquisador da área de Ciências da Religião. Agora posicionado a frente, próximo
a orquestra, podendo ver diretamente o ritual e o desempenho do já tão admirado
alabê, fui tomado por um encantamento profundo. A sinergia presente era incrível,
durante todo o ritual não existiu nenhuma referência que eu havia aprendido ao longo
da minha vida, e sim a descoberta de um universo completamente estranho a mim,
pois nunca havia tido contato com a religião; uma admiração profunda e muita vontade
em entender como tudo funcionava.

Sangue! Sangue!... Nascimento! Vertigem do devir! Em três quartos de mim,


danificados pelo aturdimento do dia, senti-me avermelhar de sangue. As
artérias do mundo arrancadas, desmanteladas, desenraizadas, voltaram-se
para mim e me fecundaram. (FANON, 2008. p 115).

Assim como Fanon (ibidem), saí daquele local sentindo meu sangue ferver,
sentia que havia me encontrado com minha ancestralidade e precisava dar voz a ela.
Era racional, era consciência ao mesmo tempo que era mágica e esclarecimento, meu
sangue pulsava, meu coração fremia, eram intensas as emoções. Eu estava
começando a me desenraizar dos medos colonizadores oriundos da aculturação
religiosa. Não era o fim da minha relação com Cristo, mas sim com o medo. Sempre
tentaram me dizer que dialogar com a religiosidade dos cultos afros é me afastar de
Deus, a partir daquele momento entendi que em nada está certa esta afirmação.
Dialogar com os saberes africanos pode ser uma forma de reencontrar nossa essência
negra, nossa subjetividade étnica numa perspectiva poderosa sobre nós mesmos.
Assim me vi, assim me senti, e cada movimento visto, cada toque ouvido, vibrava,
ressoava com a minha alma e isso não podia ser negativo.
O deslumbramento, essa foi uma palavra que usei para descrever o
momento, foi muito grande, eu pude perceber que todos os meus medos eram
externos a religião, a celebração não dialogava com nada que eu havia ouvido antes
de presenciá-la. Meus medos foram suplantados por um sentimento de vergonha e
êxtase; vergonha por perceber o quanto eu era preconceituoso e reproduzia o racismo
estrutural, tão comum entre os evangélicos brasileiros e pela sociedade leiga de modo
geral, e principalmente pelo fato do nosso olhar social predominante ter suas bases
num cristianismo vulgar, externo as verdades bíblicas e fruto de uma proposta
supremacista de sociedade a partir do olhar eurocêntrico. Senti um êxtase por me
sentir em casa, o som incrível produzido pelos atabaques, o movimento da gira
executado pelos religiosos participantes da celebração era algo belo, profundo,
sincero.
A celebração acabou e eu queria muito entender tudo, fazia muitas
perguntas, a sensação de contato com minha ancestralidade era profunda. Cada
elemento ali motivava meu imaginário a ir até a África, tudo causava em mim
deslumbramento, queria entender a organização, as danças, os movimentos, as
músicas rituais, a organização das pessoas, queria submergir naquele universo, e o
mais incrível é que toda teoria pensada anteriormente só fez sentido quando estive in
loco. Não tinha intenção de me converter, até hoje esse sentimento nunca passou
pela minha cabeça, mas queria entender profundamente como algo tão belo e cheio
de significados não era difundido e ainda permanecia tão marginalizado em nossa
sociedade.
Não quero aqui destacar qualquer intenção de combater a prática do
cristianismo entre negros, ou mesmo no seio da nossa sociedade, eu me confesso
cristão protestante até hoje, minha proposta é mostrar que olhar para nossa
ancestralidade, presente nos cultos e símbolos afro religiosos em nada me afasta de
minha religiosidade cristã, pois ela não nega o cristianismo, ela apresenta outra
perspectiva cultural, além de promover uma autoimagem valorativa da cultura negra,
por meio dos saberes e representações oriundos da grandeza de suas construções.
É possível perceber em toda cosmogonia negra, saberes importantes que podem
construir uma imagem menos afetada sobre nós mesmo, como a que produziu o
colonialismo cristão europeu. Observamos as múltiplas religiosidades europeias,
asiáticas, sem medo, sem demonizar nada, por que o mesmo não pode ser feito com
a diversidade simbólica africana?
A mudança na maneira de ver e interpretar a religiosidade orientada pelos
saberes trazidos da África que começaram a ser vivenciados por mim durante a
participação no culto de candomblé, inspirou em mim uma busca pelo entendimento
teórico sobre o que motivava esse sentimento mantido sem uma consciência clara do
seu significado. Meu primeiro passo foi buscar conhecer a cosmogonia que orientava
o candomblé, foi aí que tive meu primeiro contato com os textos recolhidos pelo
antropólogo francês Verger (1997), um trabalho chamado “Lendas africanas dos
Orixás”, contendo mitos recolhidos pelo pesquisador quando observava a
religiosidade de povos Iorubás.
Na busca por qualificar a autoimagem da pessoa negra sobre si, passo a
buscar os arquétipos presentes na mitologia negra como representações positivas da
identidade africana, mas para isso é preciso primeiro desqualificar o racismo
depositado sobre a simbologia africana e, sobretudo, o que tem origem no continente
africano, demonstrando sua autonomia diante da construção religiosa e cultural
europeia.
Minha busca gerou a necessidade de combater o que estava claro para
mim, o que era fruto da ignorância das pessoas sobre toda realidade praticada dentro
dos terreiros espalhados pelo Brasil. Era preciso dar início à reflexão sobre a
necessidade de educar através dos conteúdos presentes nos mitos iorubanos.
Concluí minha graduação falando, não sobre morte, como eu havia
imaginado mas, tocado pela sabedoria descoberta nos conteúdos produzidos pela
ancestralidade negra presentes nas religiosidades afro. Assim, produzi um trabalho
com o seguinte tema: “O PENSAMENTO AFRICANO NO ENSINO RELIGIOSO: a
epistemologia africana numa breve leitura sobre o candomblé iorubano”. (COSTA,
2009). A intenção era mostrar como havia uma maneira diferente de ver e interpretar
a realidade da mitologia iorubana, e que era importante se valer das ciências da
Religião como instrumento relevante para aplicação da lei 10.639/2003 9 para uma
educação que proporcionasse a desconstrução do racismo estrutural presente em
nossa sociedade, nos diversos lugares onde o europeísmo tocou com sua visão
eurocêntrica demonizando a cultura negra. Faço uso do termo “diversos lugares” pois
acredito que tais proposições devem transcender o espaço acadêmico, chegando até
as diversas formas de educar e de educar-se, como a vida doméstica no ambiente
familiar, espaços de terreiro ou em comunidades campesinas de educação popular.
Meus conhecimentos adquiridos na constante busca para me desconstruir
e tentar levar essa perspectiva para as pessoas, fez com que concluísse a graduação
com um outro olhar sobre as religiões negras, sobre minha identidade negra, sobre
minha própria ancestralidade negra. A partir de tudo que aprendi, era e é muito difícil
ainda ver pessoas subindo em púlpitos na igreja da qual faço parte para demonizar as
religiões de matriz africana e as descreverem como uma expressão demoníaca, como
uma cultura inferior, magia subversiva que não traz benesses para os seus

9Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e
Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.
praticantes. Esse havia sido o protestantismo que eu cri a vida toda, até ali, todavia,
não era esse o cristianismo que eu queria e quero continuar vendo ser propagado.

1.4. O AUTORRECONHECIMENTO COMO PESSOA NEGRA E O NOVO OLHAR


RELIGIOSO CRISTÃO

E eis o preto reabilitado, “alerta no posto de comando”, governando o mundo


com sua intuição, o preto restaurado, reunido, reivindicado, assumido, e é um
preto, não, não é um preto, mas o preto, alertando as antenas fecundas do
mundo, bem plantado na cena do mundo, borrifando o mundo com sua
potência poética, “poroso a todos os suspiros do mundo”. Caso-me com o
mundo! Eu sou o mundo! O branco nunca compreendeu esta substituição
mágica. O branco quer o mundo; ele o quer só para si. Ele se considera o
senhor predestinado deste mundo. Ele o submete, estabelece-se entre ele e
o mundo uma relação de apropriação. Mas existem valores que só se
harmonizam com o meu molho. Enquanto mago, roubo do branco “um certo
mundo”, perdido para ele e para os seus. Nessa ocasião, o branco deve ter
sentido um choque que não pôde identificar, tão pouco habituado a essas
reações. É que, além do mundo objetivo das terras, das bananeiras ou das
seringueiras, eu tinha delicadamente instituído o mundo verdadeiro. A
essência do mundo era o meu bem. Entre o mundo e mim estabelecia-se uma
relação de coexistência. Eu tinha reencontrado o Um primordial. Minhas
“mãos sonoras” devoravam a garganta histérica do mundo. O branco teve a
dolorosa impressão de que eu lhe escapava, e que levava algo comigo. Ele
revistou meus bolsos. Passou a sonda na menos desenhada das minhas
circunvoluções. Em toda parte, só encontrou coisas conhecidas. Ora, era
evidente, eu possuía um segredo. Interrogaram-me; esquivando-me com um
ar misterioso, murmurei: (FANON, 2008. p 117).

Para muitos é difícil conceber a possibilidade de diálogo entre o


cristianismo e a africanidade, pois para eles uma é antagônica a outra. A verdade é
que não são, o fato de serem diferentes não a tornam inimigas, na certeza dessa
afirmação, me vejo em um local de destaque, como um “preto reabilitado, ‘alerta no
posto de comando’, governando o mundo” (ibidem). Não com minha intuição, mas
com meus conhecimentos a partir dos estudos direcionados a cultura africana, as
tradições negras. Meu discurso é cristão, mas não é mais antagônico à minha
ancestralidade, busco dialogar com ela, isso causa espanto, e assim como na citação
também me sinto constantemente sondado, vigiado, pois como homem negro cristão,
consciente da minha realidade, tenho uma dupla tarefa. Primeiro, pregar um
evangelho sem precisar demonizar as religiões de matriz africana e segundo, dialogar
com minha ancestralidade negra e demonstrá-la as outras pessoas.
Após concluir minha graduação, tendo consciência sobre mim e sobre o
que pretendia como projeto de vida, estando agora mais maduro e de volta à igreja,
logo sou recolocado nas funções que há tempos havia deixado, todos contam minhas
histórias de quando era mais novo, isso inspira a direção atual da igreja, o pastor atual
era amigo da minha mãe e na época havia sido auxiliar da palavra quando eu ainda
era criança na mesma congregação. Conhecendo minha família e a mim, ele me
coloca na direção e supervisão das congregações que dirige, como responsável pelo
grupo de jovens, eu volto a ocupar um lugar no púlpito e a dar aulas na escola bíblica
dominical, ora para os auxiliares da palavra10, os que compõem a direção da
congregação, e senhores (homens casados, divorciados, viúvos) da igreja; ora dando
aula para os jovens da igreja; ora ajudando minha mãe que ainda coordenava o
departamento infantil e de adolescente da igreja. Meu histórico como contador de
histórias desenvolvido na universidade, me qualifica a ocupar mais um importante
espaço dentro da igreja, o de formador de líderes para trabalhar com crianças e
adolescentes. Sempre muito dedicado, atuava em diversas áreas sem problemas, já
havia passado por todas e não tinha dificuldades em exercê-las.
Depois de me formar, alguns anos depois, eu me caso com uma irmã de
fé, a igreja passa por um processo de dissidência e eu sigo um pastor que se junta a
outro ministério doutrinário, mas que ainda compõe a diversidade de Assembleias de
Deus espalhadas pelo país e pelo mundo. A Assembléia de Deus a qual nos juntamos
tinha sede na cidade de Ananindeua, eu passo a me congregar na sede, juntamente
com o pastor que nos levou até lá. A profecia tão sonhada da minha mãe tomava
forma, nessa ocasião, não só eu, mas meu pai também foi “ungido”11 pastor, ritual que
nos titulava pastores e dava autoridade eclesiástica dentro da comunidade religiosa,
sendo reconhecidos em todo território nacional.
Como pastor, eu era responsável por liderar outros líderes, que na
hierarquia religiosa da organização estariam subordinados a mim (auxiliares da

10 São membros da igreja que estão disponíveis para auxiliar na liturgia dos cultos, fazendo pequenas
pregações, organizando a dinâmica da celebração, cantando hinos e o que mais for necessário a
organização da igreja segundo a ordem pastoral.
11 Fundamentalmente a unção era um ato de Deus (BÍBLIA I Sm 10.1) – que explica o respeito em que

era mantida – em quanto a palavra “ungido” era usada até mesmo metaforicamente para significar a
doação do favor divino (bíblia Sl 23.5; 92.10) ou a nomeação para algum lugar ou função especial do
propósito de Deus (BÍBLIA Sl 115.15; Is 45.1). (DOUGLAS, 2006)
palavra, diáconos, missionários, presbíteros e outros pastores auxiliares) 12, eu era
responsável pela equipe de evangelização. Em um dos anos, ocupei muitos cargos
na igreja. No ano em que ordinariamente saía com a equipe de evangelização, numa
determinada noite algo que me deixou muito feliz aconteceu.
Em uma noite, nos organizamos na frente da igreja para sairmos para
evangelizar, eu orientei a equipe, estávamos vestidos de paletó e gravata, aos moldes
“assembleianos”. Eu estava atrás da equipe dando as últimas orientações, sempre
atento, pois todos eram minha responsabilidade. Percebi que ia um grupo um pouco
mais a frente, eram auxiliares, diáconos e um pastor evangelista, assim como eu,
quando inadvertidamente começaram a passar em frente a uma casa de culto afro
religioso onde acontecia um ritual festivo aberto ao público. O terreiro estava cheio,
os atabaques tocavam intensamente e os filhos de santo estavam todos bem
adornados na frente. Percebi que a parte da equipe que ia a frente começou a levantar
a mão, como se fossem expulsar algo ou repreender algum mal, hábito comum que
reforça o preconceito e racismo estrutural direcionados às religiões de matriz africana.
Quando percebi o que iam fazer, levantei a voz e pedi que me esperassem, e em tom
de aconselhamento perguntei o que iam fazer, responderam que iriam repreender o
“mal”, bem como eu havia previsto.
Como venho descrevendo nessas poucas páginas até agora, eu entendia
a limitação daqueles indivíduos ainda colonizados pelo racismo religioso que
impregna muitos grupos evangélicos pelo país, busquei naquele instante, ali mesmo
na rua, a luz da bíblia, explicar que, como “luz do mundo” e “sal da terra” (BÍBLIA. Mt.
5:13, 14), adjetivos que nós cristãos reivindicamos, precisávamos ter outra postura.
Falei, em princípio, que eles não podiam ter um comportamento hostil como aquele,
às pessoas que só estavam vivenciando sua própria fé, sem nada fazer para nos
atingir. Falei também o quão importante seria se demonstrassem o que havíamos
aprendido com Cristo e, ao invés de atacar, deveríamos semear amor e cordialidade,
nos mostrando respeitosos, dando exemplo de bons cristãos, todos concordaram.
Percebi os mais velhos envergonhados, pois eu tinha acabado de
completar trinta anos e ali existiam homens mais idosos e com mais tempo na igreja
que teoricamente deveriam ser mais sábios do que eu, mas o racismo cega, tira da

12Designações existentes para os diferentes cargos e funções presente na estrutura da igreja


Assembleia de Deus.
humanidade e leva-nos a contradizer o princípio mais básico da vida cristã, que é o
amor. Seguimos em frente e nesse momento eles voltaram ao caminho, levantaram
as mãos, não mais para repreender, mas para serem cordiais e desejarem boa noite
e esperançar dizendo que Deus abençoasse a vida de todos ali presente.
O resultado dessa experiência foi a certeza que eu havia aprendido algo
importante e poderia influenciar minha religião por dentro dela, como autoridade
eclesiástica capaz de ensinar e formar pessoas que se reconheçam como cristãos em
Cristo, sem precisar atacar a fé de ninguém e acabando com esse ciclo de ódio que o
etnocentrismo cristão produziu ao longo dos anos. Sigo assim, dentro da minha
própria religião, crendo poder fazer a diferença entre aqueles que assim como eu
abraçaram a fé cristã, entendo que não consigo deixar de ser cristão, minhas
experiências de fé são muito profundas e não me vejo seguindo por outro caminho.
Pude etnobiografar até aqui minhas experiências familiares e acadêmicas,
para dar uma dimensão de esferas relevantes para construção da minha
pessoalidade, entretanto, quase nada foi dito sobre a prática que motivou a produção
desse trabalho, a arte de contar histórias. Como me tornei um praticante da contação
de histórias? Como se deu a construção da prática de contar histórias e o que ela tem
a ver com as ciências da religião? Essas respostas estarão na construção do próximo
capítulo e são extremamente importantes para estrutura metodológica pensada para
aplicabilidade de uma leitura feita pelas ciências da religião, esse campo do saber que
traz a religiosidade humana como poderosa linguagem de interpretação da esfera
social e cultural.
CAPÍTULO II - A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS COMO LINGUAGEM EDUCACIONAL
PARA O COMBATE AO RACISMO RELIGIOSO

Mas esqueceram a constância do meu amor. Eu me defino como tensão


absoluta de abertura. Tomo esta negritude e, com lágrimas nos olhos,
reconstituo seu mecanismo. Aquilo que foi despedaçado é, pelas minhas
mãos, lianas intuitivas, reconstruído, edificado. (FANON, 2008. p 124).

Nesse capítulo irei tratar do ato de contar histórias como estratégias


pedagógicas no combate ao racismo religioso que vigora na sociedade abrangente, e
na comunidade escolar como reflexo desta. A partir das minhas experiências como
contador de histórias voltadas para o imaginário africanista, direcionando minha
proposta de trabalho para textos capazes de traduzir a ancestralidade negra e os
diversos ensinamentos pertinentes ao olhar construído pelas populações negras ao
longo do tempo, como na citação acima, desenvolvo esse trabalho aquecido pela
constância do amor, um amor gerador da necessidade de trabalhar conteúdos com a
possibilidade de refletir uma autorreferência negra com valor superior ao comum nos
estereótipos tão presentes no cenário educacional brasileiro.
No sentido da edificação de uma identidade valorativa da imagem da
pessoa negra, me proponho a apresentar minha atuação como contador de histórias,
direcionado pelos conceitos obtidos através uma metodologia descolonial na qual o
negro deixa de ser secularizado e torna-se uma referência para linguagem,
ambientação e simbologias.
Minha intencionalidade é trazer uma proposta descolonial, por entender
que mesmo os conteúdos aqui analisados, trabalhados na oralidade, terem sido
obtidos pelo texto escrito, pelo olhar de pesquisadores ocidentais brancos, são ainda
nossa referência de memória mitológica negra. Traduzem, em sua essência, um olhar
mais próximo da complexidade da cultura africana, sendo algumas das poucas
referências que servem como fonte de consulta, por terem sido registradas na língua
portuguesa, para análise da cosmovisão dos povos africanos que deram origem a
nossa nação. Descolonialismo, portanto, nos traria a seguinte proposição:

Para mobilizar o descolonizar das percepções de mundo, é fundamental se


desprender da ótica colonial e promover outros sentidos sobre as concepções
de racionalidade e de ciências. Assim, o pensamento descolonial inaugura
uma alternativa contra a hegemonia do eurocentrismo ao abrir condições de
possibilidades para um pensamento que pressupõe a diferença e a
pluriversidade do conhecimento. (ALVES; DE JESUS, 2020. p 31)
A racionalidade pretendida aqui foge àquela comumente utilizada em sala
de aula, a proposta é que a partir da prática da contação de histórias africanas, da
utilização dos saberes vivenciados no universo religioso negro, seja trabalhada uma
nova forma de ver os conteúdos neles existentes. Entendo que os saberes africanos
transmitidos através da oralidade ao longo de milênios são poderosos em transmitir
uma imagem valorativa da pessoa negra que difere daquela comumente transmitida
pela linguagem colonizada e ocidental que mantêm uma versão inferiorizada e
demonizada da história negra no Brasil e na África.
A intenção é mostrar um outro olhar, uma outra proposta, descolonizando
a versão europeizada destinada a desqualificar os saberes africanos e afro-brasileiros,
principalmente, quando se referem à religiosidade. Apresentar, a partir da minha
própria experiência de vida, como o etnocentrismo pode e deve ser superado para
que o indivíduo se descolonialize e dê voz à sua ancestralidade negra, às nossas
memórias étnicas, que foram marginalizadas, subjugadas e demonizadas apenas por
sua origem.
Pelo fato deste trabalho ser uma proposta etnobiográfica, seguirei a mesma
proposição de Gonçalves (2012), quando diz seguir a mesma intuição de Benjamim:
“diríamos que a construção da etnobiografia depende da capacidade de intercambiar
experiências, no sentido de potencializar a experiência mesma da narração”. Como
nesse trabalho eu sou o narrador e os eventos narrados são eventos por mim
vivenciados, a relação entre a narrativa e a proposição metodológica se faz necessária
para identificação, o que se espera construir como resultado. Como se trata de uma
etnobiografia, irei abordar simultaneamente os eventos ligados à contação. Para
elucidar as proposições, começarei a identificar historicamente como a contação se
desenvolveu em minha vida.
A prática da contação teve início na minha vida no ano de 2002, ano que
ingresso na Universidade do Estado do Pará (UEPA), aprovado para o curso de
Ciências da Religião. Descubro então um grupo de contadores de histórias, GRIOT13,
onde desenvolvo todo aprendizado na arte de contar histórias. Por esse motivo uso

13 Os linguistas, como arqueólogos das palavras, são especialistas em decifrar a origem das línguas
faladas no mundo. Eles vivem perseguindo a rota dos significados através dos séculos e acabam
conhecendo línguas muito antigas. Alguns deles defendem que a palavra “griô” é moderna, ou seja,
passou a ser utilizada no século XVII. Se diéli é como os malinqués chamavam seus bardos, alguns
investigadores indicam a palavra “criado” utilizada pelos lusitanos para identificar o diéli. A transcrição
do som da palavra criado ouvida por um viajante francês foi assim grafada: griot. (LIMA E ERNANDES,
2018. Pag. 78).
predominantemente o termo contação e não narração, não há para mim uma
diferenciação conceitual entre narração e contação, sendo ambos sinônimos da
mesma arte, de levar, através da oralidade, histórias para públicos diversos, com o
objetivo de educar e entreter. No grupo de contação, me adaptei a usar o termo
contação como definição usual e ela se mantém em minha autoidentificação enquanto
profissional.
A melhor definição de contador de histórias que cabe na proposta de
atuação profissional por mim pretendida está na descrita por Lima e Hernandez
(2014), na obra “Toque de Griô: memórias sobre contadores africanos”, quando
dizem:

A palavra do griô não deixa esquecer. Nossa memória é gigantesca, e tudo o


que conhecemos foi entregue palavra a palavra. Aprendemos a guardar, mas
também a distribuir histórias. É esse o nosso ofício. Nós somos bolsas
carregadas de palavras; carregamos os segredos que conhecemos desde a
fundação do Mandem. Nós guardamos as doze chaves do Mandem. (LIMA E
HERNANDEZ, 2014. p 18)

O termo griot é escrito de forma abrasileirada como griô. A palavra que


utilizamos para identificar o grupo ao qual fiz parte na UEPA, usa o termo em sua
origem na língua francesa. O termo griot significa “homens memória” e faz referência
aos africanos que eram levados para a França trazendo consigo a memória de seus
ancestrais. Por isso dizemos que a memória de um contador transcende o tempo, as
gerações e a própria existência. O contador de histórias fala de tempos idos, de
épocas em que o mundo nem era mundo, antes mesmo da sua criação.
O contador de histórias é um propagador da palavra, “somos bolsas
carregadas de palavras”, transmitimos esses conhecimentos para que os homens se
reconheçam na construção de suas memórias. Essas memórias dizem quem somos,
de onde viemos e como chegamos aqui, nossas lutas, derrotas, vitórias e conquistas
são rememoradas por mitos de origem. Nas muitas tradições africanas encontramos
informações para justificar desde a origem do universo até como se dão as relações
domésticas entre homens e animais.
É importante que se diga que a nomenclatura griot, depositada sobre os
indivíduos que levados do continente africano que detinham profundo conhecimento
a respeito das histórias de seus povos, é um nome europeu, nome esse que hoje já
compõe o imaginário de países africanos, mas, na África antiga, essa nomenclatura
não existia, entre os povos africanos são muitas as nomenclaturas relacionadas à
prática da contação de histórias. O ofício de contar histórias existe em muitas
civilizações pelo mundo, na Europa temos os bardos, que exerciam uma função
similar a dos contadores de histórias africanas. Sobre a multiplicidade de nomes
atribuídos aos contadores de histórias em algumas nações africanas e sobre a
necessidade dos outros povos dar nome a esses homens e suas habilidades ao entrar
em contato com eles, vejamos o que dizem Lima e Hernandez:

O significado principal de diéli está na ideia de sangue vital, isto é, o diéli faz
circular a vida social. Todavia, para seus vizinhos, o termo podia ser jaaro na
língua soninqué, bambaado para o povo peul, ou wambaabe ou guewel para
os wolofs e marok’i para os hauçás. Imagine tantos povos ao longo dos
séculos traduzindo sentidos sobre aquele mundo dos griôs. Agora imagine
transcrever para o papel o som que ouviam. O inglês, o francês, o alemão, o
espanhol, o árabe ou o chinês precisaram nomear aquele bardo africano.
(LIMA E HERNANDEZ, 2014. p 78).

No continente africano, entre os muitos povos, a diversidade de nomes que


traduzem a arte de contar histórias revelam uma profunda relação desses povos com
a prática de manter na memória os saberes e ensinamentos característicos. Alguns
povos mantêm a tradição por meio de linhagens familiares, possuem escolas e dão
orientação para seus diélis desde a mais tenra idade. O texto a seguir, por mais que
não possua e intenção de ter uma abordagem histórica e sim literária, traduz muito
bem a profundidade que os povos do Mali davam a formação de seus diélis:

A vida na aldeia dos griôs era a escola dos griôs. Era lá que eles aprendiam
as técnicas de memorização, a construir instrumentos de música e não
apenas a tocá-los, era onde ensinavam a eles as palavras sagradas. Também
tudo sobre a linguagem dos sonhos ou a do gesto mais expressivo. Os griôs
tinham aulas não apenas de como vestir a roupa adequada, mas até de como
conversar com os gênios. Os griôs podem ter o conhecimento de mais de mil
contos ou ser peritos na arte dos provérbios. Eles são treinados para
aprofundar os saberes sobre a natureza secreta, seja a humana, a animal ou
a vegetal. E, mais que tudo, um griô deve conhecer como ninguém a arte da
guerra. Mas para exercitar a paz. Ele sabe como moldar a palavra. Os
acontecimentos ocorridos há dez ou setecentos anos são mantidos sempre
frescos pela palavra do griô. Só as extraordinárias sociedades que não
dependeram da escrita para o registro dos seus feitos dominam a palavra
para transmitir a história. Essa imensa sabedoria negro-africana conhece não
só as técnicas de resguardar, mas também as de passar a história adiante.
O estrangeiro chama isso de arte da oratória. Mas o que o griô exercita na
sua aldeia é a arte de receber e transmitir conhecimento por meio da palavra.
Exige-se dele um comprometimento com a verdade. O rigor do mestre
garantia a tradição, e a tradição garantia a maestria de cada um. (LIMA E
HERNANDEZ 2014. p 18).
Orientado por alguns relatos de amigos africanos, e por outros que foram
até o continente em busca por aperfeiçoar seus trabalhos, seja na literatura, na música
ou nas religiões de matriz africana, a descrição acima aponta com profundidade o
exercício diário da construção da identidade griô e deixa claro a importância que é
dada à palavra na cultura do povo mandem, no antigo Mali, hoje conhecido como
República do Mali. Para além da narração de histórias, o griô é uma biblioteca viva,
com múltiplos saberes aprendidos e experimentados ao longo da vida, por meio de
uma trajetória longa de aprendizados que compõem a grandeza e a singularidade de
ser um griô.
O povo do Mali, de onde se tem registro dos primeiros griôs, também foi
trazido para o Brasil e compõem parte importante da nossa história. Eles ficaram
conhecidos pela história oficial como Malês e foram responsáveis por uma das mais
importantes revoltas de resistência ao sistema escravista no Brasil. Eles eram homens
eruditos, letrados e convertidos ao islamismo. O Islã é uma religião mulçumana de
origem árabe que tem como base mitológica o Corão, a revelação de Maomé, recebida
diretamente de Deus através de seu arauto, o anjo Gabriel, em uma caverna nos
arredores de Meca, região da Arábia Saudita.
Os Malês carregavam consigo pequenas bolsas amarradas a seus
pescoços, prática comum entre o povo mulçumano da região do Mandem. As bolsas
traziam trechos escritos do Corão, ervas e outras substâncias úteis de domínio desse
povo. As referidas bolsas passaram a ser chamadas de bolsas de mandinga,
provavelmente em função da sua origem estar entre os oriundos do Mandem, ou
mandingas como eram conhecidos. Esses homens se valiam do seu conhecimento
para colocar medo nos homens brancos que passaram a temer o possível poder
mágico contidos nessas bolsas. O domínio das mandingas se popularizou entre os
africanos e passou a ser denominado de patuá, recebendo fundamento ritualístico
dentro da prática do candomblé, que deposita nessas bolsas elementos rituais ligados
aos orixás do iniciado na religião.
A origem dos griôs no continente africano remete a uma grandiosidade
característica na arte de contar histórias que não é comum aos povos ocidentais.
Muitos elementos referentes a essa arte não são de domínio público. O que percebo
é a manutenção de uma visão distorcida desses elementos que chegam ao imaginário
popular de maneira não conceitual ou histórica, baseada em crendices populares.
Ainda somos herdeiros de um medo que povoa nossas mentes sobre tudo, ou quase,
tudo ligado à origem negra. Não existe a intenção do mal no amuleto africano. A
preservação de seus símbolos está ligada diretamente à manutenção da fé e dos
saberes aprendidos ainda em terras africanas.
A mítica negra que envolve elementos desconhecidos, alheios à tradição
branca de interpretar o mundo, sempre foi traduzida de maneira preconceituosa e
demonizada, portanto, racista. Apresentar esses elementos a comunidade brasileira
é algo que está diretamente ligado a prática da contação de histórias, pois no germe
de sua origem, ainda no continente africano, compõe a estrutura formadora da arte de
contar histórias.
Todos os conteúdos que envolvem a origem da contação de histórias no
continente africano estão embebidos de saberes religiosos. Para as ciências da
religião esse universo da palavra é um ambiente comum, pois foi assim que todos os
povos, em suas origens, transmitiram seus saberes, através da oralidade e da
memória. Eis o papel do contator de histórias para civilização ocidental, mostrar o
valor da contação como conexão com o sagrado, respeitando a diversidade de
manifestações religiosas presentes em nossa diversidade cultural.
A prática da contação de histórias atravessou o atlântico, chegando a este
lado se encontrou com outras muitas culturas, cujos repasses dos conhecimentos
também estavam pautados na oralidade. Falo dos diversos povos indígenas
americanos. O contar histórias é uma tradição ainda viva em nosso país e cada dia
mais passa ser utilizada como proposta educativa ou artística de levar até as crianças
as informações contidas nas histórias espalhadas pelo mundo. Não são poucos os
teóricos que pensam sobre a arte de narrar histórias dentro de nossa realidade,
apresentando suas visões sobre o tema. Observo, então, o que diz Prietro (1999), em
sua obra: “Quer ouvir uma história? Lendas e mitos no mundo da criança”, que segue
a perspectiva do pensamento africanista sobre o tema e nos traz a seguinte reflexão:

Segundo a tradição oral africana, a palavra contém o hálito, elemento vital,


que desaparece dela quando escrita. Ao contrário de nosso ponto de vista,
que tende a considerar válido apenas o que é documentado por escrito,
certos conhecimentos milenares só podem ser transmitidos em uma troca
interpessoal, para que haja a força da troca vital entre duas ou mais pessoas.
(PRIETRO, 1999. p 38)
Pensando sobre os moldes ocidentais de produzir conhecimento, está
incutido em nosso subconsciente o valor do livro e das fontes escritas para promoção
do aprendizado, mas, como transmitir emoção na letra fria? Nem o mais fino recurso
literário consegue traduzir a impressão que um indivíduo tem ao ouvir alguém
narrando uma história, que leva à uma sincronia de sentimentos: medo, angústia,
alegria, espanto, dúvida. São muitas as possibilidades presentes na prática da
contação, nesse “hálito vital” manifesto pelo fascínio causado na atuação do narrador.
Se esse não conta com verdade, até o entendimento se perde por parte do ouvinte,
mas existindo a conexão com quem ouve, a história pode compor um universo
totalmente alheio ao seu, mas existira uma conectividade, uma “troca vital”, como
sugere a autora.
Perpetuamos em nossa existência a prática da contação de histórias como
formato agregador capaz de criar a conexão necessária para promover o
entendimento do que se pretende dizer, porque assim como Prietro (1999), acredito
que:

Em plena virada do milênio, quando um professor se senta no meio de um


círculo de alunos e narra uma história, na verdade cumpre um desígnio
ancestral. Nesse momento, ocupa o lugar do Xamã, do bardo celta, do
cigano, do mestre oriental, daquele que detém a sabedoria e o encanto, do
porta voz da ancestralidade e da sabedoria. Nesse momento ele exerce a
arte da memória. (PRIETRO, 1999. p 41)

Introduzo este capítulo apresentando o que para mim representa um pouco


da potencialidade da arte de contar histórias, e como contador de histórias sei o
quanto contá-las faz bem. A maioria dos contadores de histórias possui como jargão,
uma frase de efeito que brinca com as palavras, traduz a poder da palavra sempre em
movimento: “entrou por uma porta saiu pela outra, quem quiser que conte outra”. Frase
que, enquanto grupo (Griot de contadores de histórias da UEPA) costumávamos falar
ao final de nossas apresentações. Hoje, fazendo meu trabalho de contação de
histórias sustento que existem duas máximas, uma antes de contar e outra depois. A
anterior a contação é semelhante aos moldes do “era uma vez”, digo: “num tempo em
que o tempo nem era tempo”. Então sigo fazendo minha narração, ao término falo:
“Contar histórias é uma arte que faz bem, fez bem para mim, espero que tenha feito
para vocês também”. Contar histórias é se sentir bem ao transmitir algo de valor, de
maneira bela e poética, criando uma sinergia profunda entre narrativa, narrador e
público, em uma dança profunda de imagens e sentimentos construídos pelo poder
da palavra narrada.
Eia! O atabaque baratina a mensagem cósmica! Só o preto é capaz de
transmiti-la, de decifrar seu sentido, seu alcance. Cavalgando o mundo,
esporas vigorosas contra os flancos do mundo, lustro o pescoço do mundo,
como o sacrificador entre os olhos da vítima. (FANON, 2008, p.114).

A mensagem cósmica está na prática da contação que traduz a


africanidade, o sangue que corre nas veias de todos os brasileiros que se reconhecem
na grandeza da diversidade das suas origens, consegue cavalgar e sentir todo o posto
por sua ancestralidade negra. Ao se referir a pessoa negra Fanon (2008), não quer
dizer que só o indivíduo negro pode ser o que transmite, o narrador, a mensagem tem
que partir dele, por isso a importância do texto transmitido ter sua construção a partir
do imaginário negro traduzindo-se em arquétipos que serão reconhecidos por quem
ouve. Não somos mais as vítimas, mas aqueles que caminham na direção da
construção de uma identidade que reconhece a negritude em todo seu valor e
profundidade.

2.1. A ORIGEM DE UM GRIOT

Esse trabalho me dá a oportunidade de traduzir em linhas, minhas


experiências. Garante a chance de expressar em palavras uma formação profissional
que me permitiu, com o passar dos anos, entender como o poder da palavra pode
alcançar indivíduos das mais distintas origens étnicas, sociais e culturais. Quando me
propus ser um contador de histórias, no ano de 2002, sentia o desejo de dar voz a
parte de mim que até então não entendia bem, pensava ser só o desejo de comunicar
minha formação cristã.
Sempre fui muito atuante através de pregações, que é como os evangélicos
denominam o ato de refletir sobre textos bíblicos, com intuito de transmitir uma
mensagem, dialogando com a realidade atual. Como jovem pregador, eu sempre
produzia narrativas orientadas pelos textos bíblicos, como contador de histórias,
comecei a entender o poder de textos literários para além do campo religioso, mas
que de forma semelhante, alcançavam as pessoas em seu íntimo, acessando a
subjetividade delas. Não são raros os momentos em que, ao longo de minha trajetória
de contador, vi pessoas chorando, sorrindo, com semblantes de angústia ou dando
gargalhadas. Às vezes, relatavam o quão era impossível conter suas emoções frente
a apresentação do texto. Tais reações eram expressas por crianças na mais tenra
idade, até senhores e senhoras, já na melhor idade.
As histórias que eu conto hoje não são as mesmas que eu usava nos
púlpitos. Minha fonte de conhecimento não é o texto bíblico como verdade absoluta.
Meu objetivo não é mais a conversão e a aceitação de uma visão de mundo
considerada fonte de salvação. Construí-me como griot depois de conhecer o valor da
palavra nas culturas de oralidade, e pela oralidade submergi ainda mais em contextos
culturais diferentes do meu.
Talvez o pregador que fui não se permitisse nem se aproximar dos mitos
africanos. E, diante de minha visão atual acerca desses grupos, nem sei se o uso da
palavra mito é pertinente ao falar dessas narrativas que são tratadas como mitos, pelo
universo cristão, mas são verdades sustentadas pelos grupos que os vivenciam.
Pergunto-me até se a palavra mito, utilizada a partir de uma conotação pouco
conceitual não é resquício de meu cristianismo original. Justifico, todavia, que persisto
na escolha dessa palavra utilizando-a de forma ressemantizada a partir da teoria
antropológica de Strauss (1985), que será conceituado abaixo. Antecipo aqui,
somente, que não trato mito como narrativa falaciosa nem a restrinjo aos grupos de
oralidade cuja tradição religiosa não são pautadas nas religiões de livro.
Quem se debruça sobre as narrativas africanas e as sustenta como base
de afirmação da minha identidade negra, certamente não é o jovem cristão. Meu olhar
atual sobre ele recebeu outras lentes e o exercício hermenêutico, completamente
fincado na história e nas mudanças que ela proporciona, redefiniu minha interpretação
sobre as religiões negras.
Quando busco traduzir aqui minhas experiências, revelo momentos que
aconteceram em consequência do uso da palavra escrita através da oralidade, através
da conexão que se estabelece com o público, através do vínculo poderoso
proporcionado pela palavra que resulta em interações marcantes e se perpetuam na
memória tanto do ouvinte quanto do contador. A autonarrativa foi escolhida para
construção desse trabalho por possuir essa possibilidade de fazer o eu dialogar com
o outro, não existe comunicação sem interação entre os diferentes, ela só existe se
construir o elo entre o indivíduo que escreve ou fala e aquele que lê ou escuta. A
narrativa construída, através de minhas experiências têm a intenção de conectar a
minha realidade com aquele que lê, sobre essa interação, Gonçalves (2012), nos traz
a seguinte designação:

Deste modo, a autonarração de si através do encontro com um outro produz


o que designamos por flexibilidade e experimentações nas identidades
individuais e coletivas. Etnobiografia, portanto, é produto de um discurso
autoral proferido por um sujeito num processo de reinvenção identitária
mediada por uma relação (Cf. Carvalho, 2003:284). (GONÇALVES, 2012. p
24)

O encontro produzido acontece entre partes de mim, o eu que produz esse


trabalho demonstrando sua experiência enquanto contador de histórias, que se
reinventa dentro do universo das mitologias africanas, vai através do recurso da
memória apresentar para o leitor momentos dessa trajetória enquanto contador de
histórias, favorecendo o entendimento da aplicação da metodologia pretendida. A
identidade de griot traduz uma nova jornada de vida que converge para elaboração
de um diálogo valorativo dos conceitos e propostas aqui abordados.
A reflexão sobre identidade se faz necessária pois essa transição
aconteceu inclusive no eu contador de histórias. Quando entrei no grupo de
contadores, entrei por outra subjetividade, ligada diretamente a um passado cristão
que me ensinou sobre o poder da palavra, da qual eu sentia a necessidade de
vivenciar e aprendi dentro da linguagem literária, através da performance da contação
de histórias a ter uma outra proposta. As motivações para continuar contando histórias
mudaram ao longo da minha trajetória profissional, destaco inclusive que me ver como
um profissional da arte de narrar histórias é fruto de um caminho de transformação.
Ao iniciar, não tinha a intenção de me ver como profissional, existia em mim o prazer
de trabalhar com histórias, de me comunicar e interagir com pessoas pela linguagem
artística, que só era vista por mim como mera qualificação de prática pedagógica, o
que para mim já era muito. As muitas formações, estudos e viagens direcionas para
prática da contação e para o universo das narrativas fez eu me ver como um
profissional da área, que já atuava há mais de 10 anos como contador de histórias e
com um histórico de apresentações que variavam de espaços, como bibliotecas
públicas comunitárias até eventos internacionais acadêmicos dentro do território
nacional.
Como membro do grupo Griot, eu trabalhava aquilo que era proposto em
comum acordo. O grupo tinha uma característica interessante, incomum à maioria dos
grupos de contadores de histórias conhecidos. O grupo trabalhava com textos em
versos, predominantemente poemas da literatura universal que transitava entre
autores paraenses e autores de nacionalidades distintas. A intenção era comunicar
através da palavra, sobre isso trago o relato presente no trabalho de uma companheira
de grupo, Santana (2015):

A prática do contar histórias, tanto em prosa quanto em verso, requer uma


preparação anterior, cautelosa e amiúde, de escolha de textos, de memória,
corpo e voz. Não basta escolher qualquer texto, decorá-lo e depois falar alto
para que todos ouçam. O processo de preparação, no qual os integrantes do
grupo compartilham seus textos prediletos, torna-se muito próximo do que
fala Galeano (2009) na epígrafe do “Livro dos Abraços”: “Recordar: do latim
re-cordis, voltar a passar pelo coração”. Sendo assim, para o contador de
histórias o que fica na memória é aquilo que está gravado em seu coração.
(SANTANA, 2015. p 68)

Santana (2015), em seu trabalho, “Memória e narrativa na voz de


contadoras itinerantes e griots”, trata da prática da contação na cidade de Belém,
observando dois grupos de contadores coordenados pela Prof.ª Dr.ª Renilda Bastos;
o grupo de contadores itinerantes e o grupo Griot. Ambos foram pesquisados em suas
vozes femininas e é nossa formação como proposta que ela descreve, no parágrafo
acima. Apresenta nossa preparação e nossa intenção ao trabalhar as histórias, seja
em verso ou em prosa, em nossas apresentações. Enquanto grupo, reconheço em
Santana a observação de que a comunicação poética chegava ao coração do público,
por meio de um trabalho profundo e exaustivo de leitura, seleção, memorização e
treinamento. Tanta dedicação visava qualificar nosso trabalho, para não ser uma mera
apresentação, de se falar alto para que todos escutassem, o desejo era alcançar os
corações, numa subjetividade sensível presente no poder da palavra.
No ano de 2015, meu ethos como contador de histórias mudou, não na
relação estruturante da apresentação, mas na escolha de seus conteúdos e com o
acréscimo de outros objetivos. Para além da profundidade subjetiva artística, percebi
na contação de histórias algo que me move, que foi o trabalho direcionado a minha
etnicidade, as questões raciais no Brasil. Isso se tornou mais latente depois que me
reconheci como homem negro e percebi a negação de minha ancestralidade negra
praticada nos cultos de matriz africana. Mesmo tendo mudado minha visão de mundo
religiosa, isso ainda não havia chegado a minha prática da contação de histórias, não
como identidade enquanto contador. Terminei a graduação no ano de 2009, mas só
em 2015 produzi meu primeiro espetáculo e curso de formação voltado para o
universo simbólico negro.
Nas imagens abaixo, apresento primeiro uma imagem minha (Fotografia 1)
contanto as histórias e a divulgação desse primeiro espetáculo (Figura 1), que fiz
apenas com textos provenientes do imaginário africano, esses textos traduziam a
força dos meus antepassados, era o que me desafiava e mais, me davam coragem a
fazer aquele trabalho, porque me causavam admiração, representavam força e
coragem, tudo o que eu precisava naquele momento.

Fotografia 1: K. Emanuel G. Costa no espetáculo: "MITOS AFRICANOS:


conhecendo antigas memórias."
Figura 1: Mitos africanos conhecendo antigas memórias – espetáculo.

No espetáculo “MITOS AFRICANOS: conhecendo antigas memórias”,


realizei meu primeiro trabalho de contação de histórias voltado para o tema
africanidade, utilizando textos recolhidos por Verger (1997), fiz uma adaptação dos
seus textos e a introdução da apresentação com o texto que abre a obra
Verger(ibidem):

Um babalaô me contou:
"Antigamente, os orixás eram homens.
Homens que se tomaram orixás por causa de seus poderes.
Homens que se tomaram orixás por causa de sua sabedoria.
Eles eram respeitados por causa da sua força,
Eles eram venerados por causa de suas virtudes.
Nós adoramos sua memória e os altos feitos que realizaram.
Foi assim que estes homens tornaram-se orixás.
Os homens eram numerosos sobre a Terra.
Antigamente, como hoje,
Muitos deles não eram valentes nem sábios.
A memória destes não se perpetuou.
Eles foram completamente esquecidos;
Não se tomaram orixás.
Em cada vila, um culto se estabeleceu
Sobre a lembrança de um ancestral de prestígio
E lendas foram transmitidas de geração em geração,
para render-lhes homenagem".
(VERGER, 1997. p 7)
Transcrevi o texto utilizado na introdução de Verger (ibidem) por ter sido
utilizado de maneira integral. Utilizei-o como narrativa poética para dar sentido ao
espetáculo que aconteceu a noite no teatro da unidade SESC14 Ver-o-Peso, na cidade
de Belém-PA. A apresentação foi destinada para adultos, para um público com um
pouco mais de conhecimento a respeito do tema: estudantes, pesquisadores, amigos
e demais interessados. O espetáculo teve a duração de aproximadamente 1h (uma
hora), no qual narrei as histórias de três Orixás: Exu, Oxóssi e Ogum.
Não irei me aprofundar nesse momento sobre o tema, em função desse
exercício se desenvolver mais a frente, quando pretendo apresentá-los e examiná-los
de maneira mais minuciosa, para apresentar os arquétipos e potencialidades para
identidade negra-brasileira, na busca de incentivar a utilização desses textos por
aqueles que pretendem dar seguimento à leitura desta obra.
O resultado da apresentação foi incrível para mim, pois pude ver um sonho
sendo realizado. Alguém desprovido de medos ou pré-conceitos, um contador
trabalhando a arte da narrativa e traduzindo sua ancestralidade. Me senti de fato um
griot. Seria muita audácia da minha parte me considerar um griot aos moldes
africanos, mas como descende da África, sou um griot aos moldes brasileiros, busco
expressar a memória subjugada dos meus antepassados como minha. Pude então,
fazer aos moldes aprendidos no grupo Griot, uma apresentação satisfatória para mim,
em primeiro lugar. Os aplausos e felicitações da plateia foram a resposta e motivação
necessárias para perceber que caminhava na direção certa.
Algumas características dessa apresentação devem ser apresentadas aqui
para mostrar a importância e significado dela na transformação da perspectiva do meu
trabalho, o que chamo de transformação do meu ethos como contador. O primeiro
item é o fato de ser uma apresentação totalmente voltada para universo africano, com
intenção de traduzir e manifestar minha ligação com minha ancestralidade negra sem
a as amarras da colonização cristã, tão latente na minha construção, assim, eu me
sentia, como descrito por Fanon (2008, p. 114), “cavalgando o mundo” livre, que cabia
a mim levar a mensagem vibrante daquele texto, como sendo negro, eu pudesse
transmitir seus conceitos e intenções com propriedade, pois entendia que as
estruturas presentes na construção dos textos por mim narrados cabiam

14Sesc é a sigla para Serviço Social do Comércio, instituição criada por empresários do comércio de
bens, serviços e turismo com objetivo de proporcionar bem-estar e qualidade de vida aos trabalhadores
e seus familiares. (https://www.sesc.com.br/faq/o-que-e-sesc/)
completamente em mim e dialogavam com uma parte interior que estava silenciada
há muito tempo ou que nunca teve voz.
O primeiro mito trabalhado foi o de Exu através do texto de Verger (ibidem).
O mesmo, apresenta-o, no início, com a saudação usual a divindade africana: “Loroyê”
Exu! (ibidem). Para muitos cristãos, independentemente da origem doutrinária, até
aquele momento nuca havia visto alguém fazer o que fiz durante a apresentação.
Naquele momento, poder dialogar com o arquétipo de Exu era uma incrível revelação
de mim para o mundo, e isso ressoava para mim o quanto eu precisava daquela
apresentação. Estava desconstruindo a estrutura narrativa contada por cristãos
pentecostais na ação de exorcismo. Substituía a demonização pela reflexão, o
etnocentrismo pela relativização estimulando o respeito a alteridade.
Os mitos de Oxóssi e Xangô possuíam um diferencial, eles existem na
construção desses textos-palavras, frases completas ainda no Iorubá, língua ritual da
religiosidade candomblecista. Meu trabalho como contador, desde a minha iniciação
no Griot, sempre esteve voltado para a busca dos significados presentes nos textos,
com a intenção de transmitir com qualidade a mensagem ali presente. Visando tal
qualidade, busquei ajuda de pessoas que vivenciam a religiosidade de matriz africana,
sempre com o intuito de superar minhas limitações no que se refere à linguagem, às
imagens e aos conceitos produzidos pelo texto.
Voltando a me referir sobre a linguagem e a necessidade de transmitir com
qualidade, reproduzo um trecho que considerei o mais difícil de reproduzir na hora de
contar: “Kawo Kabieyesi Alafin Oyó Alayeluwa!” (ibidem), essa construção frasal é
uma referência ao rei de Oyó, o Orixá Xangô, e não poderia ser feita de qualquer
maneira. Como já dito, existiam entre os presentes, pessoas que estudavam a religião
além de outros que eram praticantes do candomblé, e muitas das vezes eram os dois.
Eu, na condição de profissional, me sentia na obrigação de fazê-lo bem-
feito. Essa é uma das observações que faço ao dar oficinas sobre o imaginário
africano. Falo sobre a importância de valorizar os conteúdos presentes nesses textos,
na forma de apresentá-los. É preciso dar qualidade ao trabalho apresentado, não
podendo assim serem tratados de qualquer maneira, sem o cuidado devido. O que
valoriza a fonte e o que se propõe a apresentar. Não é incomum vermos pessoas rindo
ou fazendo brincadeiras em tom de deboche quando não conseguem reproduzir uma
palavra que não é usual na língua portuguesa, essa atitude é ofensiva e depreciativa,
e não cabe na atuação do contador de histórias.

2.2. OS MITOS IORUBANOS COMO PROPOSTA DE DESCONSTRUÇÃO DO


RACISMO

Darei início a um momento que entendo ser de extrema relevância para


construção desse trabalho, onde busco apresentar os conteúdos presentes em alguns
mitos iorubanos que compõem o imaginário vivenciado na religiosidade do candomblé
Keto, e que pela diversidade de composição preservada no imaginário nacional,
herdado do continente africano, manifestam uma expressividade profunda do
pensamento construído anteriormente ao processo de colonização.
Trabalharei uma amostra do conjunto de mitos que venho desenvolvendo
ao longo da minha trajetória enquanto contador de histórias, com referências nos
trabalhos que desenvolvi ao longo dos anos, na intenção de despertar diferentes
olhares sobre a identidade negra e evidenciar o poder das mensagens contidas neles
para despertar no público uma outra visão sobre essa identidade. Minha proposta é
incitar a reflexão sobre questões direcionadas à religiosidade vivenciadas pelas
religiões de matriz africana no Brasil.
Neste subtópico irei detalhar a escolha de cada texto, buscando extrair
deles propostas de reflexão a serem feitas ora com o público masculino, ora com o
público feminino. Busco construir pontes com discussões que refletem a visão
preconceituosa imposta sobre a religiosidade manifestada por eles. Demonstrarei
como esses mitos, assim como os demais podem ser observados sem receios ou
medos por se tratar da expressão cultural de um povo, desde que assim observados,
sem as amarras do racismo religioso que constrói barreiras e inibe as pessoas do
acesso e aceitação, livre de preconceitos.
Para iniciar a análise observo o que Strauss (1985), diz a respeito do estudo
dos mitos:

Reconheçamos, antes, que o estudo dos mitos nos conduz a constatações


contraditórias. Tudo pode acontecer num mito; parece que a sucessão de
acontecimento não está ai sujeita a nenhuma regra de lógica ou de
continuidade. Qualquer sujeito pode ter um predicado qualquer; toda relação
concebível é possível. Contudo, esses mitos, aparentemente arbitrários, se
reproduzem com os mesmos caracteres e segundo os mesmos detalhes, nas
diversas regiões do mundo. Donde o problema: se o conteúdo do mito é
inteiramente contingente, como compreender que de um canto a outro da
terra, os mitos se parecem tanto? É somente com a condição de tomar
consciência desta antinomia fundamental, que provém da natureza do mito,
que se pode esperar resolvê-la. (STRAUSS, 1985. p 239)

É importante fazer a leitura segundo a proposta de Strauss para colocar em


discussão a visão analítica que trata os mitos como manifestação cultural humana
comum a diversidade de povos espalhadas por todo o globo terrestre,
independentemente de sua origem. Todos os povos têm em sua constituição o mito
como base integrante de sua formação cultural. Segundo o antropólogo francês, cada
mito só pode ser entendido através da leitura do povo que o originou. Lê-lo a partir de
outra cosmovisão irá causar uma antinomia. Se essa antinomia ocorresse apenas no
plano conceitual seria aceitável, mas quando extrapola a esfera acadêmica e acessa
a sociedade, ela ganha forma da desumanização. Não se pode ler uma cultura a partir
de outra, é preciso entendê-la sob seus elementos fundantes, da cosmovisão que
permeia seu imaginário e envolve o universo simbólico resultante de sua construção.
O mito tem uma regra própria, para entender a sua lógica tem que se usar
uma lógica que não está sustentada pela racionalidade científica. Traduzir o divino, o
todo possibilitado nesse mito, é fruto dos poderes possíveis pensados a partir desse
ser divino e fogem totalmente a natureza humana ocidentalizada. O tempo e o espaço
seguem uma lógica própria construída a partir de perspectiva diferenciada. Os valores
e a moral seguem a lógica cultural do povo. Nenhum grupo social é amoral, mas segue
uma moral redefinida a partir de outros padrões,
O etnocentrismo, europeu, segundo Strauss (1985), por muito tempo,
vislumbrou na cultura africana uma versão amoral de religiosidade e de cultura, não
só referente à cultura africana, mas sobretudo ao que não era europeu. Nossos
antepassados indígenas também sofreram com tal visão. O etnocentrismo construiu
a falsa ideia de que tudo que estava fora da versão europeia precisava ser civilizado
ou cristianizado, pois não possui lógica ou razão de ser ou existir fora das referências
eurocêntricas.
Na sequência, ressaltarei a importância de observarmos a ancestralidade
negra presente nos mitos selecionados e recolhidos por Verger (1997), por terem sido
os primeiros textos com os quais trabalhei a africanidade através dos quais consegui
ver pela primeira vez uma construção de mundo idealizada a partir de uma visão
negra. Traziam arquétipos extremamente valiosos para reorientação do olhar sobre a
ancestralidade negra. O impacto que esses textos trazem qualificam nosso olhar para
além da visão colonizada, pós diáspora africana, sem a figura do escravo, onde os
deuses e deusas, reis e rainhas e guerreiros são negros. Mulheres exuberantes
possuem a pele negra, não existe dúvida sobre, ou relativização da sua beleza ou
grandeza, são reinos insuperáveis, aventuras incomparáveis, tudo aos modos
africanos. Começarei com aquele que mais me intriga e causa admiração, aquele que
tem a astúcia como característica, vejamos o arquétipo de Exu:

Laroyê!
Exu é o mais sutil e o mais astuto de todos os orixás.
Ele aproveita-se de suas qualidades para provocar mal-entendidos e
discussões entre as
pessoas ou para preparar-lhes armadilhas.
Ele pode fazer coisas extraordinárias como, por exemplo, carregar, numa
peneira, o óleo que
comprou no mercado, sem que este óleo se derrame desse estranho
recipiente!
Exu pode ter matado um pássaro ontem, com uma pedra que jogou hoje!
(VERGER, 1997. Pag. 08)

Para favorecer o entendimento do que pretende ser observado em cada


mito, farei isso por partes, para que possamos observar minúcias relevantes no trato
do tema. Exu é uma divindade considerada trickster, que segundo Strauss (1985. Pag.
261), possui um caráter dual, ambíguo, equívoco, ou seja, ele não oferece uma única
forma de resolver um problema. Exu é essa divindade, aos mesmos moldes de Loki,
na cultura nórdica, ou de Hermes, na cultura grega. Cito este dois pois são
popularmente conhecidos em função dos sistemas de valoração das sociedades
ocidentais. Inclusive pelo universo das animações, quadrinhos e, atualmente, o
cinema, que os reproduzem dentro do que hoje se denomina de cultura pop.
A divindade trickster negra é muito estigmatizada, enquanto seus
arquétipos semelhantes, presentes em outras culturas não negras, são bem aceitos e
nunca foram demonizados. Exu é astuto, ele é uma divindade, por que se limitar a
lógica humana se o divino pode ir além? Carregar óleo na peneira, lançar uma pedra
que transcende a lógica do tempo, são manifestações da sua divindade, questioná-lo
é ir contra o divino. Esse entendimento só é percebido quando se respeita a lógica
cultural que traduz a divindade de Exu, e o valoriza como tal. Quando se olha para ele
como manifestação do mal todas suas atitudes receberão tal referência, isso
encerraria a discussão e manteria a segregação do deus negro frente à visão
preconceituosa do arquétipo cristão que o demoniza.
Depois que dois amigos deixam de fazer as oferendas devidas para Exu, a
negligência fez com que a divindade transfigurada de viajante, passasse entre os dois
amigos que cuidavam de suas terras, cada um de seu lado, ao passar ele usava um
chapéu, que de um lado era vermelho e do outro era branco, os dois amigos
começaram uma terrível discussão que terminou assim: “Cada um dos amigos tinha
razão e estava furioso da desconfiança do outro. Irritados, eles agarraram-se e
começaram a bater-se até matarem-se a golpes de enxada. Exu estava vingado!”
(VERGER, 1997, p. 10). Existem sempre questionamentos quando apresento esse
mito, tentando indiretamente reforçar ideia de que Exu é mal. Sempre expressam que
o resultado do conflito entre os dois amigos que negligenciaram o tributo à divindade,
e em consequência disso, ele, ao passar entre os dois, motivou a discussão, faz dele
um ser mal. Nesse momento lembro aos meus indagadores que Exu é um ser divino
e como ser divino tem suas regras, o limite dado por toda divindade.
Em toda cultura religiosa toda e qualquer divindade irá beneficiar seus
seguidores e deixar a própria sorte os que a negligencia, essa é uma máxima presente
em toda manifestação religiosa e com Exu não é diferente, ele não foi lá e matou, ou
mesmo mandou seu anjo matar, porque não gostou da atitude deles, ele gerou uma
dúvida. Os dois se mataram por intenções próprias, alguém mandou que brigassem?
Criou em seus corações o desejo de morte ou de violência? A lógica africana nos diz
que Exu, na sua astúcia, prega peças, não diz que as consequências das atitudes
humanas são sua culpa.

Há uma maneira hábil de obter um favor de Exu.


É preparar-lhe um golpe mais astuto que-aqueles que ele mesmo prepara.
Conta-se que Aluman estava desesperado com uma grande seca. Seus
campos estavam áridos,
a chuva não caía.
As rãs choravam de tanta sede e os rios
estavam cobertos de folhas mortas, caídas das árvores. Nenhum orixá
invocado escutou suas
queixas e gemidos.
Aluman decidiu, então, oferecer a Exu grandes pedaços de carne de bode.
Exu comeu com
apetite desta excelente oferenda.
Só que Aluman havia temperado a carne com um molho muito apimentado.
Exu teve sede.
Uma sede tão grande que toda a água de todas as jarras que ele tinha em
casa, e que tinham,
em suas casas, os vizinhos, não foi suficiente para matar sua sede!
Exu foi à torneira da chuva e abriu-a sem pena.
A chuva caiu.
Ela caiu de dia, ela caiu de noite.
Ela caiu no dia seguinte e no dia de depois, sem parar. Os campos de Aluman
tomaram-se
verdes.
Todos os vizinhos de Aluman cantaram sua glória:
”Joro, jara, joro Aluman,
Dono dos dendezeiros, cujos cachos são abundantes! Joro, jara, joro Aluman,
Dono dos campos de milho, cujas espigas são pesadas! Joro, jara, joro
Aluman,
Dono dos campos de feijão, inhame e mandioca! Joro, jara, joro Aluman! ”
E as rãzinhas gargarejavam e coaxavam, e o rio corria velozmente para não
transbordar!
Aluman, reconhecido, ofereceu a Exu carne de bode com o tempero no ponto
certo da pimenta.
Havia chovido bastante. Mais, seria desastroso!
Pois, em todas as coisas, o demais é inimigo do bom.
(ibidem)

Exu, como ser divino, pode ser acessado na sua benevolência quando
tratado de maneira respeitosa, respeitando suas vontades e desejos, dentro do que é
permitido na cultura africana. Se o homem conhece a divindade e a busca da maneira
correta, ele recebe duas dádivas, como as, por ele mesmo, estabelecidas e
demonstradas pelo texto no qual Aluman, um agricultor, que conseguiu reverter sua
situação de desgraça em vitória, graças à inteligência no trato com a entidade divina.
A divindade, portanto, em nada reflete a visão colonizada do mal e isso precisa ser
desconstruído entre a população, para que o preconceito deixe de conectar as
pessoas aos saberes, nesses textos apresentados e, assim, possamos nutrir uma
outra visão a respeito de Exu. Laroyê.
Iremos agora observar os arquétipos pertinentes a narrativa de Ogum:

Ogum Yêêê!
Ogum era o mais velho e o mais combativo dos filhos de Odudua, o
conquistador e rei de Ifé.
Por isto, tomou-se o regente do reino quando Odudua, momentaneamente,
perdeu a visão.
Ogum era guerreiro sanguinário e temível.
"Ogum, o valente guerreiro, o homem louco dos músculos de aço!
Ogum, que tendo água em casa, lava-se com sangue!"
Ogum lutava sem cessar contra os reinos vizinhos.
Ele trazia sempre um rico espólio de suas expedições, além de numerosos
escravos.
Todos estes bens conquistados, ele entregava a Odudua, seu pai, rei de Ifé.
(VERGER, 1997. p 11)

Ogum é o senhor da “guerra e do metal, um arquétipo semelhante ao de


Ares, deus grego; Marte, deus romano; Bastet, deus egípcio” (PARANDI, 2007, p.
168;195). Orixá da guerra, é um arquétipo da força e habilidade. Não almeja ser maior,
ser superior por sua força; seu prazer é a batalha. Está acostumado a servir, traz os
espólios de suas conquistas para o seu pai Ododua, mostrando que é possível ser
forte servindo. É poderoso e, por isso, descrito como “o homem louco, de músculos
de aço” e reforça a potencialidade de sua violência. Trata-se de um deus da guerra,
por isso ratifica a loucura em ter água em casa e ainda sim se lavar com sangue.

Ogum continuou suas guerras. Durante uma delas, ele tomou Irê.
Antigamente, esta cidade era formada por sete aldeias.
Por isto chamam-no, ainda hoje, Ogum mejejê lodê lrê "Ogum das sete partes
de Irê"
Ogum matou o rei Onirê e o substituiu pelo próprio filho, conservando para si
o título de Rei.
Ele é saudado como Ogum Onirê! "Ogum Rei de Irê!"
Entretanto, ele foi autorizado a usar apenas uma pequena coroa, "akorô".
Daí ser chamado, também, de Ogum Alakorô - "Ogum dono da pequena
coroa".
Após instalar seu filho no trono de Irê,
Ogum voltou a guerrear por muitos anos.
Quando voltou a Irê, após longa ausência, ele não reconheceu o lugar.
Por infelicidade, no dia de sua chegada, celebrava-se uma cerimônia, na qual
todo mundo
devia guardar silêncio completo.
Ogum tinha fome e sede.
Ele viu as jarras de vinho de palma, mas não sabia que elas estavam vazias.
O silêncio geral pareceu-lhe sinal de desprezo.
Ogum, cuja paciência é curta, encolerizou-se.
Quebrou as jarras com golpes de espada e cortou a cabeça das pessoas.
A cerimônia tendo acabado, apareceu, finalmente, o filho de Ogum
e ofereceu-lhe seus paratos prediletos (.......)
Ogum, arrependido e calmo, lamentou seus atos de violência,
e disse que já vivera bastante,
que viera agora o tempo de repousar.
Ele baixou, então, sua espada e desapareceu sob a terra.
Ogum tomara-se um orixá.
(ibidem)

Ogum é um conquistador, um guerreiro imbatível, todos os reinos caem


diante de sua espada. Um deles, ele toma para si, ainda assim obedece a uma
autoridade superior e usa apenas uma pequena coroa, “akorô”. Trata-se de uma
demonstração de humildade e resignação. Ele segue seu maior prazer, que é a
guerra, e deixa seu filho reinando, todavia comete um erro grave, sua falta de
paciência, que é sua característica humana, faz com que cometa sua falha mais
grotesca, num excesso de fúria por se sentir ignorado, saca sua espada e mata as
pessoas que estão participando de um ritual religioso e não podem falar. Mesmo
sendo poderoso, um deus, sente-se envergonhado e torna-se divino ao penetrar a
terra tornando-se assim um orixá.
A ideia de um deus da guerra negro, tão poderoso e insuperável quanto
qualquer super-herói para uma criança, é algo, de fato, incomum na cultura ocidental.
A cultura africana está repleta dessas figuras, estou explorando aqui nesse trabalho
apenas uma vertente cultural, todavia, no continente africano existe uma diversidade
de culturas conhecidas e embranquecidas, como é caso da cultura egípcia que possui
um panteão tão incrível que sua mitologia foi absorvida pela cultura ocidental e
representada a partir de suas representações étnicas.
Observemos, agora, o Orixá Oxóssi: Durante a grande festa anual de
colheita dos inhames no palácio de Ifé, “lugar de origem de todos Iorubás” (VERGER,
1997, p. 16), estando todos na presença do rei soberano: ministros, esposas, servos
e súditos. Enquanto todos comiam e bebiam, um pássaro gigantesco e terrível surgiu.
Era tão grande que se confundia com uma nuvem, pois chegava a encobrir o sol. Ele
pousou acima do palácio, cobrindo os muros laterais, a entrada e os fundos do palácio,
causando espanto e medo entre os presentes. O rei mandou chamar os maiores
caçadores de fé, trouxeram o caçador das cinquenta flexas, que infeliz em sua
tentativa de derrotar o pássaro, foi preso. Foram infelizes na empreitada também os
caçadores das 40 e das 20 flechas, segue a história:

De Iremã, chegou, finalmente, Oxotokanxoxô, o "Caçador de uma flecha só".


O rei lhe
ordenou matar o pássaro com sua única flecha. Oxotokanxoxô afirmou: "Que
me cortem em pedaços se eu não o matar!" Ouvindo isto, a mãe de
Oxotokanxoxô, que não tinha outros filhos, foi rápido consultar um babalaô, o
adivinho, e saber o que fazer para ajudar seu único filho.
"Ah! - disse-lhe o babalaô. "Seu filho está a um passo da morte ou da riqueza.
Faça uma oferenda e a morte tomar-se-á riqueza." E ensinou-lhe como fazer
uma oferenda que agradasse às feiticeiras. A mãe sacrificou, então, uma
galinha, abrindo-lhe o peito, e foi, rápido, colocar na estrada, gritando três
vezes: "Que o peito do pássaro aceite este presente!" Foi no momento exato
que Oxotokanxoxô atirava sua única flecha. O feitiço pronunciado pela mãe
do caçador chegou ao grande pássaro. Ele quis receber a oferenda e relaxou
o encanto que o protegera até então. A flecha de Oxotokanxoxô o atingiu em
pleno peito. O pássaro caiu pesadamente, se debateu e morreu. A notícia
espalhou-se: "Foi Oxotokanxoxô, o "Caçador de uma flecha só", que matou o
pássaro!
O Rei lhe fez uma promessa, se ele o conseguisse! Ele ganhará a metade da
sua fortuna! Todas as riquezas do reino serão divididas ao meio, e uma
metade será dada a Oxotokanxoxô!
!" Os três caçadores foram soltos da prisão e, como recompensa, Oxotogun,
o "Caçador das vinte flechas", ofereceu a Oxotokanxoxô vinte sacos de
búzios; Oxotogí, o "Caçador das quarenta flechas", ofereceu-lhe quarenta
sacos; Oxotadotá, o "Caçador das cinquenta flechas", ofereceu-lhe
cinquenta. E todos cantaram para Oxotokanxoxô. O babalaô, também, juntou-
se a eles, cantando e batendo em seu agogô: "Oxowusi! Oxowusi!! Oxowusi!!!
"O caçador Oxo é popular!"
E assim é que Oxotokanxoxô foi chamado Oxowusi.
Oxowusi! Oxowui!! Oxowusi!!!
(ibidem).

Oxóssi é o arquétipo do Orixá caçador, senhor das matas e da fartura de


alimentos, semelhante as deusas Diana (Roma) e Ártemis (Grécia) (PARANDI, 2007,
p. 175;195). Trata-se de uma divindade muito cultuada no Brasil e que com sua única
“flexa” consegue transpor seus desafios. Ao aceitar o desafio de enfrentar o pássaro,
o mito de Odé - outro nome atribuído à divindade - ele vai ao encontro da besta com
sua única flecha, mas o que ele não sabe é que o pássaro está encantado, e para
quebrar um encanto só outro encanto na cultura africana. A mãe de Oxóssi faz a
oferenda necessária para que seu filho vença o desafio, demonstrando que o oráculo
sagrado de Ifá, consultado através do Babalaô - nome dado ao sacerdote que
manipula a previsão divina - desconstruindo a falsa ideia de que utilização das
oferendas tem motivação maldosa. Tenho o hábito de me referenciar a esse mito para
atestar o preconceito direcionado as religiões de matriz africana, demonstrando que
diante de uma situação difícil, o candomblecista procura auxílio de suas divindades
através das oferendas para superar suas dificuldades, do mesmo modo que cristão
faz sua oração ou reza, a oferenda, jejum, vigília, etc., trata-se de uma forma de
comunicação com o divino.
O mito de Oxóssi ensina que é preciso ter coragem, mas sem atenção aos
preceitos religiosos é quase impossível transpor as barreiras impostas pela vida, e
quando vencemos todos se beneficiam com os resultados. Ensina o valor civilizatório
da coletividade. Os caçadores que vieram antes de Oxóssi estavam mais preparados
que ele e com muito mais flexas, mesmo assim falharam, demonstrando que não é a
força que vence, mas a astúcia, e todos foram gratos, louvando e eternizando o nome
do nobre guerreiro que jamais foi esquecido e passou a ser celebrado de forma
divinizada, pois como Verger mesmo fala, na introdução desta mesma obra, os Orixás
eram homens que foram divinizados por suas obras e feitos (VERGER, 1997, p. 7).
Observemos, agora, alguns arquétipos femininos, com base em textos
adaptados para minhas contações. Aqui irei utilizar os textos inspiradores do meu
trabalho intitulado “Memórias da Mãe África” (Figura 2) (Fotografia 2). No ano de 2018
construí esse espetáculo de contação, onde incluí os textos dos mitos das Orixás:
Oxum, Iansã e Iemanjá, por apresentarem estruturas completamente distintas,
traduzindo assim um universo maior do que as imagens pertinentes a mulher africana
construídas a partir do imaginário africano.

Figura 2: Memórias da mãe África.

Fotografia 2: Keydson Costa Memórias da mãe África.


Vamos iniciar observando o mito de Oxum:

A partir do momento que Ogum abandonou sua cidade e sua forja para se
refugiar na floresta, o mundo começou a caminhar para trás. Sem
instrumentos para cultivar a terra, as lavouras fracassaram e o povo já
passava fome. Sem armas para se defender dos inimigos, a cidade vivia
aterrorizada diante da possibilidade de uma invasão. Todos os embaixadores
que levaram a Ogum os clamores do seu povo para que ele voltasse haviam
falhado completamente. Quando o povo se reuniu para pensar o que fazer,
uma bela e frágil jovem, vinda de outro lugar, se ofereceu para trazer Ogum
de volta à cidade e a forja. Ela o convenceria com seus encantos. Chamava-
se Oxum a bela e jovem voluntária. (PARANDI, 2017. p 39)

O mundo passa por um problema com o qual ninguém consegue lidar, pois
Ogum está irredutível na decisão de viver da floresta em detrimento do seu trabalho
como ferreiro. O mundo está passando por dificuldades e uma bela e aparentemente
frágil jovem diz que irá trazer o artífice ao seu trabalho, o nome dela é Oxum. Oxum
corresponde ao arquétipo da deusa grega Afrodite, da deusa romana Vênus e a deusa
egípcia Hátor (PARANDI, 2007, p. 195).
Existem muitas informações complementares a respeito da divindade
Oxum que podem ser utilizadas dentro da prática educacional e aprendizado da
cultura da religiosidade candomblecista. Meu interesse é observar o que esses mitos
possuem de informação dentro das possibilidades desse trabalho, que posso observar
como importantes quando acessados em minha prática educacional, quando busco
apresentá-los a meus alunos e a meu público, quando os acessos através da prática
da contação.

Caminhando com graça, Oxum entrou no mato e se aproximou do lugar onde


Ogum acostumava acampar. Presos a cintura, ela usava cinco lenços
transparentes e esvoaçantes, e só. Tinha o cabelo preso no alto da cabeça
por fios de contas de vidro, os pés descalços, os braços carregados de
pulseiras de ouro e de cobre, colares de peças miúdas de cerâmica,
miçangas de louça e seguis de cristal preenchiam o vão entre seus seios nus
e empinados.
Oxum dançava agora, já não caminhava mais. Oxum dançava como a brisa
que ondula a superfície da lagoa, ogum sentiu-se imediatamente atraído,
irremediavelmente conquistado pela visão estonteante, mas se manteve à
distância. Ficou a espreita atrás dos arbustos, absorto, admirando Oxum
embevecido.
Oxum via o guerreiro, mas fazia de conta que não. A cada passo de sua
dança, ela se aproximava dele, mas fingia não notar sua presença. A dança
e o vento faziam flutuar os cinco lenços da cintura, mostrando de Oxum toda
a nudez. Ela dançava o enlouquecia. Oxum se aproximava e com os dedos
atrevidos lambuzava de mel os lábios de Ogum. Ela o atraia para si e
avançava mata a fora, sutilmente tomando a direção da cidade. Mais dança,
mais mel, mais sedução, Ogum não se dava conta do estratagema da
dançarina. Ela ia na frente, ele seguia inebriado, louco de desejo. E lá iam
Oxum e Ogum em sua dança, e quando Ogum percebeu, os dois se
encontravam na praça da cidade. Os Orixás todos estavam lá com o povo e
aclamavam o casal em seu bailado de amor. Ogum estava na cidade, Ogum
voltara! (PARANDI, 2017. p 39-41)

A mulher em Oxum não apresenta força física, mas é forte e poderosa. No


mito apresentado ela vence, com sua beleza e astúcia, o homem mais forte que o seu
mundo conhece. Ela é bela, vaidosa, com um requinte e graça que só o imaginário
africano consegue descrever em uma mulher negra. Esse mito, e os próximos que
iremos observar, fazem parte da cosmovisão dos praticantes do candomblé Keto.
Sendo assim, é uma herança ancestral africana, uma memória da ancestralidade
negra, uma construção simbólica que remete à outra proposta da pessoa e da
religiosidade negra, sem inferiorização. Mostrando uma identidade negra que valoriza
suas características, sua vaidade, sua sexualidade e astúcia. A sexualidade está lá,
mas não é o centro, não é só isso, nunca a pessoa negra foi só isso.
É relevante que se diga que:

No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de


seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade
de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno do corpo reina
uma atmosfera densa de incertezas. (FANON, 2008. p 104)

O corpo na formação da identidade da pessoa negra sempre foi um conflito,


pois as referências do belo sempre estiveram distantes do ser negro. O corpo negro
estereotipado, relegado a caricaturas e preconceitos, gera uma visão inferiorizada,
subalternizada, pois foi sempre dito ao negro que o belo, como Fanon (ibidem),
mostra, foi construído em cima de padrões eurocentrados. Por esse motivo queremos
negar aquilo que nos referencia etnicamente: o cabelo, a boca, as curvas. Num mar
de incertezas, crescemos na dúvida se somos realmente belos. A mulher negra,
principalmente, que tem na estética uma referência maior, vê em Oxum uma menção
poderosa da beleza feminina, da vaidade presente nos detalhes tão explícitos dos
textos apresentados por Parandi (2018). Entendo que é preciso promover esse valor
estético entre a pulação negra, principalmente entre as jovens negras.
Nesse momento irei observar a figura de Iansã:

Xangô governava seu império com mãos de ferro. Rei, magistrado maior,
chefe supremo dos exércitos imperiais, gastava o pouco tempo que restava
para si gozando dos parazeres da mesa e desfrutando do amor de suas
esposas. (...) Iansã era sua grande companheira na guerra, leal e destemida
nas horas mais difíceis. Na verdade, as três o acompanhavam aos campos
de batalha quando preciso, mas era Iansã a preferida para guerra, a que
nascera com a alma de guerreira. Apesar da paz então reinante, Xangô
procurava se manter pronto para guerrear, soube que no país dos Baribas,
um povo vizinho, existia uma arma poderosa e secreta que transformaria
qualquer rei em um general invencível. Enviou Iansã aquela terra para saber
do que se tratava. Ela foi e não trouxe explicações nem outro tipo de palavras:
trouxe a arma, a arma poderosa e definitiva. Como se apossou dela, não vem
ao caso. (PARANDI, 2017. p 71)

Iansã apresenta um caráter forte, é uma mulher guerreira, sempre pronta


para luta e aquela que está ao lado do esposo nos campos de batalha, ela é sua
preferida. O rei, um estrategista, conhecendo a possibilidade de uma arma poderosa
estar na posse de seus vizinhos, busca informações sobre essa arma e incumbe sua
esposa habilidosa para ir sondar no reino vizinho sobre a referida arma. As habilidades
de Iansã transcendem a razão e ela não chega com informações sobre a arma, ela
traz a própria arma para o marido. Iansã é a senhora dos ventos, deusa das
tempestades, ela também é a responsável por encaminhar as pessoas do Aiê (Terra)
para o Orum (Céu), morada celeste para o povo iorubano (PARANDI, 2017, p. 85). No
trato aos mortos o arquétipo da Orixá é semelhante ao do deus grego Hades e da
divindade egípcia Osíris (PARANDI, 2007, p. 195).
A coragem e habilidades de Iansã são uma inspiração para mulheres que
são educadas a sempre calar, a se submeter a vontade de seus maridos de maneira
inquestionável. Iansã não é assim, ela caminha ao lado do esposo, resolve problemas
sozinha, é corajosa e consegue coisas que surpreendem Xangô que reconhece o
poder e autoridade de sua esposa.

Um dia, talvez por descuido, erro de cálculo, talvez por má pontaria, por
acidente até o que aconteceu nem Xangô consegue explicar. O fato é que,
em um desses exercícios sobre uma elevação, não longe de sua capital,
Xangô viu com seus olhos seu palácio pegar fogo. (...)
Os doze ministros de Xangô, que por sorte ou sina igualmente se salvaram
reuniram-se em conselho e aplicaram a lei condenaram Xangô ao suicídio,
como mandava a tradição.
Xangô, o rei justo, cumpriu a sentença. Acompanhado apenas de Iansã,
abandonou o palácio e, na floresta, se enforcou. Mas Iansã tinha seus
poderes, muitos poderes, acostumada a lidar com a morte e com os mortos,
e não hesitou em deles fazer uso, impedindo que a morte se aproximasse.
Nesse momento, amparada pela glória e pela honra que Xangô conquistara
para seu povo e seu império, feitos e fatos que jamais seriam esquecidos em
todas as nações dos Orixás no Aiê, Iansã bateu com o pé na terra com magia
e determinação e fez com que o rei entrasse diretamente no Orum como
Orixá.
Se é verdade que Iansã deu a Xangô o instrumento de sua perdição, também
é certo que por obra dela ele recebeu a eterna glorificação. Xangô agora era
um imortal, um Orixá, um deus. (PARANDI, 2017. p 73)

Xangô, acusado de destruir seu próprio reino, é condenado a morte, ele tira
sua vida, mas a poderosa Iansã, acostumada a lidar com a morte, a afasta do honrado
Orixá. Iansã com seu poder constrói um caminho do Aiê para o Orum, onde Xangô é
recebido como um deus. A divindade e grandeza de Iansã são expressas em seus
atos e intenções, não existe desafio que ela não possa superar, nem a morte é páreo
para ela. Ela possui o caminho da terra e do céu, ela não depende de nada nem de
ninguém para ser quem é, e no mito observado é o homem que depende dela para
não ser subjugado pela morte, a glória dele provém dela, pois foi ela que lhe abriu
caminho para imortalidade e divinização. Epa Heyi!
Vejamos agora o arquétipo de uma das divindades mais populares do
imaginário africano presente no Brasil, Iemanjá:

No começo dos tempos, logo depois que o ser humano foi criado por Oxalá,
e quando ele já vivia em comunidades, os Orixás, que dividiam entre si o
governo do mundo natural, receberam de olorum a difícil incumbência de
governar também o mundo social, cada um cuidando de uma das diferentes
atividades desempenhadas pelos homens e pelas mulheres. Exu, que
controlava a atração sexual, a ereção no homem e o coito, ficou incumbido
de gerir os hábitos da sexualidade. Como já era mensageiro desde os
primeiros tempos, ganhou também a comunicação, as trocas e os negócios.
É o senhor das feiras e dos mercados. (...)
Por fim, ao distribuir seus poderes entre os Orixás, Olorum designou o lugar
de Iemanjá no quadro final da divisão do trabalho divino. Iemanjá, que
mandava no mar e estava acostumada a eterna rotina do ir e vir das ondas,
do subir e descer das marés, podia dar uma excelente dona de casa! Olorum
determinou que iemanjá deveria tomar conta pessoalmente de Oxalá, o pai
da humanidade, seu criador. Seria certamente honroso cuidar do inventor das
criaturas que cultuam, alimentam e distraem os Orixás, imaginou Olorum.
Assim Olorum delegou poderes a seus filhos Orixás e pode finalmente
descansar. (PARANDI, 2017, p 84;87)

A história de Iemanjá é uma das maiores histórias que possuo em meu


repertório, pois ela faz referência a quase todo panteão iorubano cultuado em solo
brasileiro. Apresenta as características e funções exercidas por cada divindade, cada
deus ou deusa é referenciado em seu domínio natural e social, destaquei na citação
acima apenas Exu, para dar um vislumbre pro leitor do quão interessante se faz o
texto, para familiarizar o público com as divindades africanas e seus atributos. Olorum,
a divindade suprema iorubana, que não é cultuada por ter dado a função de atender
as demandas humanas para seus filhos Orixás, é considerado na cosmogonia
africana como o deus supremo, aos modos do Deus Pai cristão, em termos
referenciais.
O mito de Iemanjá nos envolve, pois evolui de uma forma inesperada.
Depois de dar atribuições significativas e de destaque a todos outros Orixás, a grande
rainha dos mares recebe a incumbência de ter uma vida doméstica para cuidar de
Oxalá. A grandiosa Iemanjá estava designada então a cuidar de Oxalá, a vontade de
deus não se contradiz, se obedece.

Iemanjá reconhecia a importância de Oxalá e logo tratou de se mudar para a


casa dele, que então vivia na cidade santa de Ilê-Ifé. Cuidava de tudo, fazia
todo o serviço de casa, lavava, passava, cozinhava. Recebia as visitas que
iam ver Oxalá e se enfiava na cozinha para oferecer aos visitantes comidas
e refrescos à altura e prestígio de Oxalá, mas considerava os encargos dela
um poder menor. Os demais Orixás ganharam poderes pelos quais
interferiam diretamente nas coisas dos mortais. Poderes pelos quais
recebiam muitas homenagens e oferendas, festas, seguidores e iniciações. E
ela, coitada, dentro de casa, sempre em casa. Queria mais, queria ser
procurada, ser festejada. Queria devotos e sacerdotes que exaltassem seus
poderes e levassem seu nome para terras distantes. Oxalá era muito
importante, ele criara o homem e mudara por completo a face dos mundos,
todos os mundos. Mas ela achava que também merecia um poder maior, que
a fizesse amada, respeitada e temida. Falava para Oxalá pedir isso por ela a
Olorum. Oxalá era tão importante, Olorum o atenderia. E repetia esse pedido
sem parar. Falava, falava e falava no ouvido do pobre Oxalá. Tanto pediu,
tanto reclamou, tanto falou que Oxalá acabou enlouquecendo.
Que desespero! Ela não soubera cumprir uma missão tão simples. O que
seria dela quando soubessem que ela provocara a doença na cabeça de
Oxalá, que o ori de Oxalá adoecera por causa dela. Imediatamente tratou de
curar o pobrezinho. Banhou Oxalá em água de cheiro que ela mesmo
preparou com ervas que acalmam, o vestiu com roupas limpíssimas e o pôs
para repousarem um quarto tranquilo, de paredes brancas e chão forrado.
Deitou-o numa esteira nova e o cobriu com um alvo e cheiroso alá de linho
puro. Tratou a cabeça de Oxalá, seu ori, com muitas oferendas, água fresca,
frutas dulcíssimas. Ofereceu em sacrifício pombos brancos, inhame pilado,
obis, canjicas e acaçás. Sentava-se ao seu lado e cantava ternas cantigas,
dançava para ele. E dias depois ele ficou bom, sarou completamente.
Quando informado do acontecido, Olorum não teve dúvida: nomeou Iemanjá
mãe da cabeça de toda a humanidade. E não há lugar no mundo em que seu
nome hoje não seja venerado. Onde houver uma mente insana, uma cabeça
desequilibrada, um louco, um deprimido, um desnorteado, desanimado e
triste, onde houver quem por algum motivo perdeu a razão, um sofredor, um
colori, uma cabeça oca, lá Iemanjá é chamada. E como no mundo dos
homens e das mulheres a loucura é o estado de alma que mais prolifera e faz
sofrer o poder de curar dado a Iemanjá fez dela a deusa mais venerada entre
todos os Orixás. Não há poder maior que o dela, é o que ela agora afirma
com orgulho e alegria. (PARANDI, 2017. p 88-90)

O conto de Iemanjá é uma imersão ampla na cultura iorubana, ela


apresenta muitos conceitos do universo cultural simbólico africano para além de nos
mostrar quem é a Orixá e todos seus atributos. A divindade é popular no Brasil por
sua ligação com as águas, como senhora dos mares, muito cultuada por seu senhorio
frente aos oceanos. Entretanto, o mito levanta um outro lado da divindade, numa
proposta mais humanizada. Quando ela aceita servir Oxalá dentro dos afazeres
domésticos, contrariada é claro, pois ela está acostumada com a grandeza dos
oceanos, ela obedece. No entanto, vê como solução insistir para que o criador da
humanidade leve suas reivindicações ao deus supremo, pois por sua reputação ele
seria atendido e ela alcançaria o fim almejado. Todavia, ele adoece e ela se vê frente
a um novo desafio, curá-lo para que não se veja em situação ainda pior à que estava
submetida. Iemanjá então desenvolve uma forma de curar seu companheiro, trata seu
ori, sua cabeça, com aquilo que ela sabe que ele gosta. Faz banhos, lhe veste de
maneira adequada e chega a cantar e dançar para que Oxalá recobre a sanidade.
As oferendas são parte essencial da tradição africana e a divindade da paz
gosta que lhe façam oferendas de pombas brancas. O sacrifício animal, tema tão
polêmico quando observado sob a visão etnocêntrica cristã, é utilizado aqui como
estratégia de cura, busca em sanar um mal adquirido involuntariamente. Iemanjá
alcança seu objetivo, Oxalá fica curado através de seus cuidados e atenção.
Olorum ao descobrir o que havia acontecido como resultado da missão
dada à Orixá, reconhece a grandiosidade dela, dá a ela o domínio sobre a mente
humana. Pelo mito conhecemos uma outra potencialidade da divindade africana,
conhecimento que sempre surpreende a maioria dos leigos não praticantes das
religiões de matriz africana. Não à toa ela é a divindade mais cultuada no mundo
inteiro, a extensão do seu poder transcende os oceanos, o que já seria muito, se
pensarmos no seu arquétipo enquanto deusa do mar, assim como Poseidon para os
gregos ou Netuno para os romanos (PARANDI, 2007, p. 195).
Em adição a isso, ela também pode ser vista como a grande mãe que cuida
e preserva a mente e a sanidade de todos, como Ísis era no Egito antigo (ibidem).
Trazer tais informações enriquece o olhar a respeito das divindades africanas e sobre
a ancestralidade que não está ligada só a memória da escravidão.
A memória descrita nos mitos é muito anterior ao período da escravidão e
dialoga com outras informações já conhecidas pelo imaginário popular, pois os deuses
que citei de outras culturas para fazer um paralelo com as divindades africanas são
conhecidos, estão nos filmes, nas histórias ouvidas, nas animações infantis e não são
vistos de maneira inferiorizada ou demonizada. Nossa intenção em traçar paralelos
com outras matrizes culturais é apontar o racismo estrutural da sociedade brasileira e
mostrar que as divindades negras devem e podem ser vistas da mesma maneira.
É preciso ver com naturalidade o corpo negro, a força dos nossos
ancestrais, o poder e sabedoria presentes nas práticas mantidas dos hábitos
religiosos. É preciso que se traduza sem medos e sem preconceitos esses
conhecimentos, para que possam ser acessados sob a lógica de quem os construiu e
vê neles um conjunto de informações positivos capazes de auxiliar a percepção sobre
a religião e sobre a pessoa negra em sua história constitutiva.
Somos filhos dessas estruturas míticas, são nossos corpos traduzidos nas
descrições ali apresentadas, são as memórias produzidas pelos nossos ancestrais
africanos que compõem o imaginário, as paisagens, os conflitos. Assim, Cristo está
para o Judeu, que sem crer em sua divindade, o respeita, por ver n’Ele uma
representação étnica sua. Nós negros precisamos ver em Oxalá, Ogum, Iemanjá,
Oxum, nossos iguais e, mesmo sem ter fé, reconhecer que são nossos antepassados
ou estruturas míticas construídas por nossos antepassados para nos ensinar a sermos
pessoas melhores.

Caminho sobre espinhos brancos. Lençóis d’água ameaçam minha alma de


fogo. Diante destes ritos, redobro minha atenção. Magia negra! Orgias, sabá,
cerimônias pagãs,patuás. O coito é o momento de invocar os deuses da
fratria. É um ato sagrado, puro, absoluto, favorecendo a intervenção de forças
invisíveis. Que pensar de todas essas manifestações, de todas essas
iniciações, de todas essas operações? De tudo quanto é canto volta para mim
a obscenidade das danças, das propostas. Bem perto de mim ressoa um
canto:
Antes nossos corações eram quentes
Agora eles estão frios
Nós não sonhamos senão com o Amor
De volta à aldeia
Quanto reencontraremos o grande falo
Ah! como faremos bem o amor
Pois nosso sexo estará enxuto e limpo. (FANON, 2008. p 115;116)

Toda sexualidade, religiosidade, quando vistas sem o medo e o preconceito


imposto pela visão branca ou etnocêntrica tornam-se livres, livres das amarras. O
coito, prática comum e humana, passa a ser realizada sem medo. Essa linguagem
metafórica traduz que nossa humanidade passa a vivenciar sua natureza de maneira
liberta, favorecendo o que ele, Fanon (2008), chama de forças invisíveis, podendo ser
o amor-próprio ou a autoestima.
Meu corpo não é obsceno, não preciso me iniciar em nada para me
esconder, nenhuma religião pode me dar isso, isso é apagamento. Não preciso ser o
outro ou negar parte de mim para ser visto e reconhecido. Somos o amor que voltou
a aldeia e se vê livre, na sua beleza, no seu corpo, na sua sexualidade. Fanon (2008),
traduz nesse pequeno texto, acima mencionado, minha intenção ao tornar possível o
acesso a mitologia africana. Apresento aqui uma pequena parte do vasto universo de
mitos referentes à cultura Iorubana, dentro das ainda muitas possibilidades a serem
observadas.

2.3. EXPERIÊNCIA DE APLICAÇÃO DOS CONTEÚDOS DENTRO DOS


AMBIENTES EDUCACIONAIS, DESAFIOS E CONQUISTAS COMO RESULTADO
DA PRÁTICA DE CONTAÇÃO

Irei agora apresentar alguns resultados obtidos a partir da minha


experiência de contação de histórias e os em espaços de diálogo resultante da minha
atividade de contador. Tenho sido convidado por diversas instituições, com o intuído
de debater sobre temas relacionados a africanidade, ao diálogo interreligioso e sobre
formas de superação do racismo religioso. Embasado pela minha atuação como
contador de histórias e cientista da religião, tenho servido de agente multiplicador de
uma educação antirracista. Esses temas têm sido debatidos dentro de espaços
educacionais e socioculturais como, terreiro, bibliotecas comunitárias, escolas
públicas, eventos culturais de ordem pública e privada, dentre outros.
Espero poder apresentar através de imagens e suas descrições como
percebo meu trabalho dentro do universo de pessoas alcançadas por ele. O público
varia de crianças na mais tenra idade à profissionais de diversas áreas e até idosos,
avós que tem o interesse de conhecer o universo das histórias para transmiti-las a
seus netos com mais qualidade. São muitos os motivos que levam as pessoas a
quererem se integrar a prática da narrativa. Devido a extensão já alcançada pela
produção já obtida até aqui nessa obra, irei me ater apenas a três momentos em
ambientes educacionais.
Como já venho demonstrando ao longo desse trabalho minha proposta é
apresentar uma maneira de superar o inconsciente racista existentes em nossa
sociedade através da conscientização de que as referências contidas nos textos
africanos quando utilizadas em uma proposta descolonialista, promovem a
desconstrução de um olhar impregnado de preconceitos quando direcionados a nossa
ancestralidade negra e para isso seguimos as orientações de Munanga (2005, p.
18,19), na apresentação do livro “Superando o racismo na escola”, quando faz a
seguinte afirmação:

Aqui está o grande desafio da educação como estratégia na luta contra o


racismo, pois não basta a lógica da razão científica que diz que
biologicamente não existem raças superiores e inferiores, como não basta a
moral cristã que diz que perante Deus somos todos iguais, para que as
cabeças de nossos alunos possam automaticamente deixar de ser
preconceituosas. Como educadores, devemos saber que apesar da lógica da
razão ser importante nos processos formativos e informativos, ela não
modifica por si o imaginário e as representações coletivas negativas que se
tem do negro e do índio na nossa sociedade. Considerando que esse
imaginário e essas representações, em parte situados no inconsciente
coletivo, possuem uma dimensão afetiva e emocional, dimensão onde brotam
e são cultivadas as crenças, os estereótipos e os valores que codificam as
atitudes, é preciso descobrir e inventar técnicas e linguagens capazes de
superar os limites da pura razão e de tocar no imaginário e nas
representações. Enfim, capazes de deixar aflorar os preconceitos escondidos
na estrutura profunda do nosso psiquismo. (ibidem)

A educação brasileira precisa sempre buscar formas de superar o racismo


estrutural tão latente em nossa sociedade, reforçando verdades científicas e valores
religiosos que buscam o diálogo social nas múltiplas expressões. O racismo está tão
naturalizado em nossa sociedade por meio de anedotas, expressões, traduções do
sagrado e outros estereótipos que afligem e diminuem de maneira afetiva e emocional
a população negra.
Minha estratégia para a superação disso é apresentar uma visão valorativa
da cultura negra. Por isso levo a mitologia africana e outros contos de origem africana
além de trabalhos produzidos por escritores negros na intenção de superar essa carga
histórica tão nociva ao povo preto. Julgo que essa proposição tem colhido frutos,
resultados que pretendo analisar de maneira mais profunda no próximo capítulo
partindo das falas daqueles que vivenciaram as oficinas do projeto “Arte da palavra”
ofertadas pelo sistema SESC e desenvolvidas por mim, que serão apresentados aqui
para referenciá-los no universo de múltiplas atuações que desenvolvo. Meu intento é
favorecer o entendimento da minha jornada profissional e dessas múltiplas tentativas
de me qualificar teoricamente para exercer a prática, do que hoje trago como base
para construção e orientação desse trabalho etnobiográfico.
Apresento imagens de alguns dos trabalhos realizados. Tais imagens foram
recolhidas em meus arquivos pessoais. A imagem à baixo mostra a prática da
contação (Fotografia 3), apresenta o momento em que realizo a declamação do texto
“Mãe preta” do Poeta Bruno de Menezes15 (2005). Este texto descreve como o povo
africano deu vida ao Brasil ao atravessar o atlântico com suas múltiplas riquezas.
Mostra como herdamos do continente africano a força e grandiosidade que
alimentaram nossa nação, nossos ícones históricos e poéticos. O poema foi
declamado com uma aluna, fruto da prática da contação de histórias realizadas em
sala de aula, ela declarava que durante as aulas “aprendia com mais facilidade” e se
“sentia representada” nos conteúdos abordados.

Fotografia 3: Escola Nagib apresentação com aluna.

As aulas de filosofia, que assumi na ausência de um professor específico


da disciplina, suprindo assim uma demanda na escola, também foram espaços de
diálogos. Nessas aulas sempre relacionava os conteúdos da filosofia ocidental ao
pensamento africanista, dentro de uma maneira de ver o mundo na perspectiva negra.

15Bento Bruno de Menezes Costa ou simplesmente Bruno de Menezes, foi um escritor brasileiro. Ele
nasceu no bairro do Jurunas, em Belém do Pará. Nasceu a 21 março 1893 (Belém PA). Morreu em 02
Julho 1963 (Manaus, Brasil). O texto “Mãe preta” está na obra “Batuque” Belém- UFPA. 2005.
Como resultado das atividades desenvolvidas em sala sugeri que alguns
dos resultados fossem apresentados durante a semana da consciência negra, em
novembro. Muitos alunos aderiram a proposta e fizeram vária apresentações de
teatro, dança e desfile. A aluna presente na foto em específico (Fotografia 3) fez a
declamação do texto “Mãe preta” com outro aluno, que infelizmente faltou no dia por
motivo de doença resultando na minha participação. No registro que trago a vocês
apresento como a conexão com o universo simbólico africano pode produzir
resultados de produção direta por parte dos alunos.
A aluna em questão, hoje maior de idade, mora em outro Estado, mas ainda
mantemos contato pelas redes sociais. Por esses meios me encaminhou,
emocionada, um áudio declamando novamente o texto que decorou para um trabalho
escolar no ano de 2016. Cerca de 6 anos depois, já que nos falamos em dezembro
de 2022, ela ainda tinha uma memória afetiva de algo que é comum se esquecer, pois
temos a falsa ideia de que o aluno decora os conteúdos para cumprir uma tarefa. Ouvir
o áudio da ex-aluna, agora uma mulher, em outra conjuntura de vida, causou em mim
enorme comoção por perceber o quanto o trabalho realizado em sala de aula, por
meio de uma pedagogia valorativa da ancestralidade negra, pode acessar uma
subjetividade que será carregada para vida inteira.
A Fotografia 4 apresenta uma contação de histórias realizada na escola
municipal Mª Madalena Raad, localizada no distrito de Icoaraci, município de Belém.
Fui convidado pela professora de ensino religioso da escola, formada em Ciências da
Religião, Patrícia Perdigão, que todos os anos organizava com poucos recursos e com
quase ajuda nenhuma, a Semana da Consciência Negra como culminância das
atividades desenvolvidas ao longo do ano letivo.
Anualmente eu participava desta programação, auxiliando na execução do
evento, realizando a contação de histórias e promovendo um diálogo a respeito do
tema com os alunos. Os relatos da professora eram de que existia uma resistência
por parte dos colegas professores, principalmente cristãos e do corpo técnico de
mesma confissão religiosa, no que tange a realização do evento da escola. Ela
afirmava contar com a colaboração de apenas duas colegas, militantes reconhecidas
do movimento negro, e uma outra professora, contadora de histórias, que auxiliava no
enfrentamento frente a direção da escola.
Fotografia 4: Escola Mª Madelena Raad.

A foto apresentada na Fotografia 4, na escola Madalena Raad, é datada do


ano de 2016. A narração foi realizada na quadra da escola, onde foram reunidas todas
as turmas do turno da tarde, do sexto ao nono ano. Neste ano contei o mito de Oxóssi
(VERGER, 1997, p.16), cuja narrativa é realizada de maneira interativa. O público
participa em coro contando as flexas lançadas pelos caçadores. A interatividade
promove uma conexão maior com o público, facilitando a concentração dos ouvintes
e, assim, a assimilação das informações apresentadas no conto.
A atividade da consciência negra era um esforço contínuo, e sua promoção
um verdadeiro desafio de resistência frente alguns colegas. Elas relatam que sofreram
muitos boicotes. Em um dos anos tiveram a decoração do evento substituída pela de
Natal, mesmo fora da época, pois ainda estavam no mês de novembro. Em outra
situação, a escola teve um problema de água que não foi solucionado a tempo para
inviabilizar a permanência das crianças na escola, e consecutivamente boicotar o
evento. Em uma terceira tentativa de boicote, levaram as crianças para participar de
uma programação referente ao círio de Nossa Senhora de Fátima, padroeira do
distrito de Icoaraci, na tentativa de esvaziar a escola. Um último exemplo foi o caso
de uma coordenadora que aconselhou uma professora recém-chegada, e em tom de
ameaça, pois a professora em questão era contratada, disse para ela, que não se
envolvesse com o evento porque “era só macumbaria”. Esta fala preconceituosa é
corriqueiramente usada por alguns cristãos para diminuir as referências negras.
Promover eventos como estes não são simples práticas educacionais, mas formas de
resistência frente ao racismo existente em nossa sociedade.

Fotografia 5:Mãe Katia Hadad escola Nagib.

Na Fotografia 5, apresento um momento no qual estamos dialogando com


um grupo de alunos do ensino fundamental e médio da escola Nagib Coelho Matini,
no ano de 2017, no conjunto habitacional Jardim Sideral, localizado no bairro do
Parque Verde, zona periférica de Belém. Em pé vê-se a mãe de santo Katia Hadad
de tradição angola, eu encontro-me sentado ao lado dela e, neste dia, estávamos
participando da programação alusiva a semana da consciência negra.
Falávamos sobre a religiosidade de matriz africana e sobre os
enfrentamentos realizados para superação do racismo religioso dentro de nossa
sociedade, principalmente, sobre o respeito que devemos ter frente a religiosidade do
outro. Naquele ano, dentro da escola, haviam ocorrido muitos casos de conflito entre
alunos por causa de questões religiosas, especificamente com uma aluna, do oitavo
ano, autodeclarada praticante da Umbanda.
Toda sexta feira, como preceito religioso ela se vestia com roupas
tradicionais e ornamentos referentes a sua fé. Normalmente ela se vestia de branco,
com turbante, guias e outros símbolos religiosos. Como ela mesmo dizia as guias
eram uma referência ao seu Orixá, a divindade da qual ela era devota, e como era
tradição em sua religião, toda sexta feira ela precisa se vestir daquela maneira para
prestar reverência a sua divindade. A guia, que causava tanto frisson entre os demais
alunos é um colar de miçangas de cores diversas, no caso da aluna, tenho na memória
se tratar de miçangas brancas, em sua maioria, com algumas poucas e espaçadas
miçangas douradas e as vestimentas brancas, normalmente saias muito longas,
amarradas com panos na cintura.
A falta de entendimento, e o racismo por parte dos demais alunos
causavam muitos conflitos e a aluna praticante da religiosidade afro-brasileira era alvo
de constantes ataques por parte dos colegas, que hora ou outra a acusavam de
“adoradora do demônio”; “macumbeira”; “praticante de magia negra” entre outros
adjetivos pejorativos direcionados aos povos de terreiro. Nessa época, eu era o
professor de ensino religioso de todas as turmas e turnos do ensino fundamental. Em
minhas aulas ela sempre levantava a questão sobre o preconceito e racismo. Pela
imposição da autoridade e pela forma antirracista com que eu tratava esses temas em
minhas aulas, não se viam embates ou acusações sobre a aluna, entretanto a aluna
sempre relatava ser vítima de ataques pelos colegas, em horários livres, relatos que
eram sempre confirmados por outros colegas que presenciavam os acontecidos.
Esses casos de racismo sempre iam parar na direção e por vezes eu era chamado
para conversar com os alunos agressores ou com seus pais. Diante de tantos
ocorridos, juntamente com a direção, decidimos fazer um evento no qual pudéssemos
dialogar com a comunidade escolar para falarmos sobre intolerância religiosa, foi
então que pensamos na estruturação do momento representado na imagem
(Fotografia 5).
Primeiro fiz um momento de contação onde narrei o mito de origem da
humanidade na perspectiva iorubana. Esta narrativa mítica tem muitas semelhanças
com o conto cristão, mesmo ele sendo estruturado no imaginário africano, com
divindades negras e dentro de um outro universo simbólico. Muitos elementos são
familiares e criam referências que se aproximam do conto cristão. O mito diz que
Oxalá se valeu da matéria prima dada por outra Orixá, Nanã, que trouxe o barro do
fundo do rio e deu para Oxalá moldar o homem (PARANDI, 2017, p. 120). Depois de
moldado, Olorum, divindade suprema, semelhantemente ao Deus judeu, soprou o èmi
(VERGER, 1981, p. 28) conferindo aos humanos o sopro de vida. Assim como na
mitologia cristã a origem humana advém do barro. Nas duas culturas foi o deus criador
o responsável pelo sopro de vida.
Fiz a contação do mito africano e a comparação com o cristão, mostrando
para os presentes, que não somos tão diferentes quando observados mais de perto.
Falamos sobre o medo depositado sobre as religiões de matriz africana e de como o
comportamento que agride e ofende a religião do outro é contrária a proposta de
qualquer religião. A mãe de santo Katia Hadad, enriqueceu enormemente o debate
trazendo suas referências enquanto praticante do candomblé angola, demostrando
que, por vezes, a experiência religiosa do respeito e da aceitação do outro constroem
pontes que valorizam as relações sociais. A empatia entre os diferentes promove o
diálogo e fortalece os laços nos momentos de dificuldades imprevisíveis frente aos
muitos momentos de dificuldades apresentados pela vida. Ela deu vários exemplos
de situações nos quais auxiliou e foi auxiliada por pessoas de diferentes
manifestações religiosas, dentre eles católicos e evangélicos, na busca pela luta por
direitos e igualdade no trato das pessoas dentro de questões sociais.
Como resultados da ação, entendemos, juntamente com a direção da
escola, corpo técnico, professores e alguns alunos com quem conversamos, que o
resultado foi positivo por aproximar a comunidade de conteúdos e de
representatividades, como é o caso de uma autoridade religiosa, para esclarecer e
dialogar na intenção de superar a visão social distorcida, por parte significativa de
nossa sociedade e que é reproduzida por nossos alunos nas suas relações sociais,
dentro dos ambientes escolares, nas brincadeiras, na linguagem. Essas ações mesmo
sem a intenção de ofender, agridem física e emocionalmente a subjetividade das
pessoas que confessam a religiosidade de matriz africana, inibe que a pessoa negra
veja no conteúdo presente nessas mitologias e religiosidades algo positivo para si e
enalteça a memória da sua ancestralidade negra.
CAPÍTULO III - O UNIVERSO DAS HISTÓRIAS AFRICANAS, DESAFIOS E
CONQUISTA

O colonialismo utiliza sem vergonha todos os seus cordéis, certo de colocar


uns contra os outros africanos que ontem se haviam ligado a ele. (...) Dentro
de uma mesma nação, a religião divide o povo e estabelece a discórdia entre
ele e as comunidades espirituais mantidas e fortalecidas pelo colonialismo e
pelos seus instrumentos. Fenómenos totalmente inesperados irrompem aqui
e além. Nos países com predomínio católico ou protestante, as minorias
muçulmanas demonstram uma devoção desusada. As festas islâmicas são
estimuladas, a religião muçulmana defende-se do absolutismo violento da
religião católica. Alguns sacerdotes afirmam, então, que se esses indivíduos
não estão contentes, podem retirar-se para o Cairo. Algumas vezes, o
protestantismo norte-americano transporta para o território africano os seus
prejuízos anticatólicos e fomenta rivalidades tribais através da religião.
(Fanon, 1965, p. 84,85)

No ano de 2021 fui selecionado pelo programa “Arte da palavra” 16

desenvolvido pelo SESC, programa que faz uma seleção de pessoas que produzem
arte e cultura de diferentes Estados brasileiros para participar de um circuito nacional,
no qual levam seus trabalhos a serem apresentados em diferentes cidades do país.
No ano de 2021 estavam previstas oito edições da oficina “Universo das histórias
africanas” que foi selecionado a participar do circuito cultural promovido pelo SESC,
entretanto em função do advento do Covid apenas 6 foram mantidas, mas apenas 5
foram realizadas. Infelizmente antes da realização da última oficina do ano, que seria
ministrada pelo modo on-line para uma unidade do SESC no Estado do Maranhão,
sofri um acidente que me impediu de realizá-la. Como a pandemia continuou impondo
o afastamento social, o SESC nos convidou a permanecer mais um ano ministrando
a oficina em 10 unidades espalhadas pelo país, como as oficinas eram ofertadas de
maneira virtual, permitia que pessoas, não só daquela localidade, que oferecia a
oficina participassem, o que permitia que numa oficina ofertada pelo SESC Paraná,
por exemplo, pudessem participar pessoas da Bahia, do Rio Grande do Sul e do Pará
ao mesmo tempo. Os públicos eram muito diversos e com diferentes orientações,
buscavam fins destintos ao participar da oficina, todos eram livres para participar, a
única restrição pré-determinada é que os participantes fossem maiores de 16anos,
por questões legais levantadas pelo próprio sistema de fomentação cultural. Não
houve um registro final do número de participantes ao longo das oficinas, até porque
estendi o acesso ao questionário ao público que participou da oficina, em edições

16 Ver referência 3 na página 20.


preliminares, uma ofertada dentro do próprio SESC, situado na cidade de Belém, o
SESC Ver-o-Peso, e em outro momento em que uma amiga e mãe de Santo, mãe
Vanessa Pereira, do terreiro de Mina Nagô Omulu e Oxóssi, me convidou para levar
essa oficina a seus filhos e filhas de santo, como proposta de promover o diálogo do
ambiente de ancestralidade de sua casa religiosa com a comunidade no seu entrono,
num momento de troca e aprendizados incríveis no qual a comunidade daquela casa,
que também é conhecida como Barracão do seu Zé17, pode compartilhar seus saberes
e me proporcionar uma experiência incrível de diálogo e empatia.
Dentro da oficina desenvolvo um trabalho introdutório onde dou início ao
universo das histórias africanas falando de textos em verso e prosa, escritos por
escritores africanos e afro-brasileiros, em seguida passamos a observar contos
populares africanos onde introduzimos a forma de ver e sentir o mundo na percepção
africana, dentro do universo dos contos escolhidos e de acordo com a localidade de
onde esse conto se origina, na intenção de familiarizar o olhar do meu público com a
orientação de mundo existentes nesses contos, um desvelar do olhar africano dando
voz a quem produziu e manteve esses contos na oralidade.
Nos últimos dias da oficina, damos início a leitura dos mitos iorubanos,
quando já consigo junto com os participantes perceber o quanto somos leigos a
respeito do continente africano e do seu modo perceber a realidade. Como o tempo
de oficina não nos permite ver todos os mitos, dou liberdade ao meu público para
escolher os mitos que serão observados e analisados. O intuito da dinâmica é
descontruir preconceitos e tratar, a partir da ótica dos próprios contos, seus conteúdos
levando, assim, a desmistificação deles.
As oficinas são uma proposta de levar o diálogo dos conteúdos do meu
trabalho a outras pessoas, divulgando os conhecimentos e levando reflexões
consideradas por mim relevantes para utilização dos mitos dos Orixás como fonte de
pauta para atividade de contar histórias, tanto por educadores, contadores de histórias
que tentam diversificar sua atuação, bem como todo e qualquer indivíduo,
independente da faixa etária, interessados em falar e aprender sobre o tema.
Um dos maiores desafios que encontro para trabalhar meus conteúdos, é
o olhar depositado sobre as religiões negras. A colonização do olhar por parte do

17 Zé Pelintra é uma entidade pertencente aos cultos afros, cultuado principalmente em casas de
Umbanda e/ou Tambor de Mina. Representa o bom malandro, veste-se sempre bem alinhado, com seu
terno, chapéu e sapato lustroso e bengala a mão.
europeu no Brasil estabeleceu essa discórdia entre os diferentes grupos religiosos do
país. A identificação da religiosidade africana como demonizada, expressão do mal
faz com que o indivíduo mais leigo no seio social ache que conhece as religiões dos
povos de orixás.
O olhar etnocêntrico tece generalização das diversas matrizes religiosas de
origem africanas existentes em território brasileiro. O desconhecimento considera
como se tudo se tratasse da mesma coisa, e como se soubessem do que falam.
Grupos cristãos depositam toda sua indiferença ao tema, chegam a combater e
acreditam ser um absurdo a naturalização de um discurso que trate com respeito e
equidade essas religiões.
Não só na África, mas em todos os lugares onde o colonialismo europeu
exerceu seu papel alienador, instaurou-se uma rivalidade entre grupos religiosos. No
Brasil o principal alvo do medo preconceito deixado pela colonização são as religiões
de matriz africana. Fanon (1965), faz uma descrição do que poderia ser o Brasil, mas
ele descreve não só um país, ele fala da realidade de todo um continente que reproduz
uma visão distorcida e maldosa sobre a cultura do seu povo, fazendo com o próprio
povo negro passe a reproduzi-los atacando seus irmãos e irmãs por crerem em algo,
que para esses, não poderia simplesmente existir.
Dentro das oficinas esse é o maior obstáculo que enfrento, como prender
a atenção das pessoas frente a um tema que causa tanto medo e receio? Por vezes
não traduzidos em palavras, são atitudes e gestos reprovativos que deixam claro a
reprovação ou a insegurança em falar sobre. Meu primeiro trabalho ao realizar a
oficina é convencer as pessoas de que o tema é de extrema importância para o
participante, em função das leis que incentivam a aplicação de conteúdos referentes
a África e afro-brasilidade como a lei 10639/2003 e lei 11645/2008.
A ideia da lei não é suficiente para convencer as pessoas a romperem seus
medos. A maioria vai tentar aplicar a lei de maneira não aprofundada procurando, na
maioria das vezes, se afastar de temas polêmicos para não terem nenhum tipo de
enfrentamento por parte dos que militam contra a causa negra. O polo de irradiação
desse preconceito são Igrejas identificadas como extremistas cristãs de doutrinas
distintas, mas principalmente representada pelo pentecostalismo e neopentecostais.
Para estas, a demonização das religiões negras é base do discurso religioso.
Considero importante desenvolver alguns conceitos que pouco foram
aprofundados anteriormente, para consolidar ainda mais a proposta de trabalho aqui
desenvolvida, orientando-se por uma episteme coesa capaz de consolidar nossa
proposição. O primeiro tema a ser observado é que se refere ao racismo religioso.
Segundo Filizola (2020), o racismo religioso tem origem na formação
histórica-social que se desenvolveu durante a colonização das américas com intuito
de impor o padrão eurocêntrico em detrimento de qualquer religiosidade que não fosse
a por eles oferecida. Como para o europeu colonizador a religião cristã deveria ser
hegemônica, ele passa a negar ou demonizar a cultura africana, associando seus
símbolos a ideia de mal maniqueísta ocidental. Segundo os memos autores, a ideia
de intolerância não cabe para identificar o sentimento direcionado as religiões de
resistência negra, por não se tratar de casos isolados, e por se constatar que essa
prática está na estrutura social, e representar um modo de ver e tratar uma religião
que se referência em determinado grupo étnico, o povo negro.
Segundo Filizola (2020), racismo religioso se caracteriza como:

A valorização dos conhecimentos, da religiosidade e cultura europeia em


detrimento das culturas indígenas, africanas, ciganas e de outras etnias, ou
seja, “uma hierarquia espiritual que privilegia os cristãos relativamente às
espiritualidades não cristãs/não europeias institucionalizadas na globalização
da igreja cristã (católica e, posteriormente, protestante).” (GROSFOGUEL,
2009, p.51). (FILIZOLA, 2020, p. 150).

O racismo religioso busca hierarquizar as religiões, estabelecendo como


predominante, ou superior a religião cristã, em detrimento as religiões praticadas pelos
povos dominados durante o processo de colonização. Sendo assim esse tipo de
racismo está na origem da construção nacional, arraigado na visão de mundo de boa
parte de nossa sociedade, que mantém uma tradição preconceituosa, direcionada aos
grupos religiosos que não tem no cristianismo sua fonte de fé e salvação.
A maneira de ver e interpretar o mundo da religiosidade africana e afro-
brasileira, se diferencia e muito da visão cristã europeia, isso põe de sobre aviso as
autoridades religiosas cristãs, que automaticamente traduzem como inimigas as
religiosidades trazidas do outro continente. A expansão do capitalismo e a versão
universalista de sociedade, é incapaz de conceber que outra cosmovisão possa
coexistir com a sua fé. É branca a busca por suprimir o outro na tentativa de se
sobrepor, dominando e desumanizando suas memórias para possa ser considerada
como melhor e superior, desconsiderando assim toda individualidade e possibilidade
de respeito a diversidade.
Racismo religioso é uma projeção de sociedade que coloca os saberes
negros no nível da primitividade, abaixo da linha do humano como Fanon (2008),
reflete, ela busca impor seu projeto de mundo, de sociedade, por meio de uma fé única
e universal, não atoa a maior expressão religiosa cristã se auto denomina de católica,
traduzindo assim seu caráter universalista, supremacista e sob a qual todos devem
manter-se para fugir de uma condenação eterna que ela mesmo propõe em sua
interpretação teológica.
O cristianismo oferece um medo que reforça a necessidade de se combater
o diferente, pois tudo que está fora dela é o mal. Primeiramente é preciso desmistificar
essa falsa imagem imposta pelo colonialismo por meio do racismo religioso e que
ainda oprime as mentes e corações de muitas pessoas que ao serem confrontadas
com a mitologia africana. Leem a mitologia afro como ameaça a tudo aquilo que
aprenderam durante suas trajetórias de vida. Fanon (1965), traduz em sua obra “Os
condenados da terra” a dificuldade que os homens e mulheres tem em se perceber
para além da visão imposta pelos colonizadores, passa a expressar profundos
traumas físicos e mentais. O processo de ruptura com essa visão eurocêntrica de
mundo se faz importante pois reconecta a pessoa a sua humanidade, traduzindo por
meio de um novo olhar a realidade que lhe haviam dito fixa e intransponível baseado
na ideia de mal e que levaria a uma condenação eterna.
Toda essa leitura sobre o conceito de racismo religioso e como ele se
consolidou na realidade sociopolítica e religiosa brasileira, reforça a necessidade de
buscar a descolonização de nosso olhar sobre nossa ancestralidade negra, já que
tratar a religiões de matriz africana como uma representação do mal é uma maneira
de desqualificar as poucas referências históricas negras no Brasil.
Como a religiosidade está baseada numa construção mítica a qual o tempo
não se pode determinar de maneira precisa, os mitos africanos trazidos do modo vida
possível no novo continente, podem ser considerados uma das referências mais
antigas para a construção de uma identidade negra de valor, com a qualidade devida.
No entanto se esse universo simbólico está contaminado com/pelo racismo religioso,
pelo medo da demonização, como pode ser bom querer parecer com tal estereótipo?
Por meio de ações diretas ou veladas vemos o racismo se propagar no seio
de nossa sociedade, vejamos o que diz Lima (2019):

No Brasil, um exemplo mais frequente são as práticas discriminatórias contra


religiões afro-brasileiras. O racismo, nesse caso, não ocorre somente de
forma explícita, mas também implicitamente, como nos atos que, apesar de
não se voltarem de forma direta contra essas religiões, buscam obstar ou
dificultar aspectos de sua liturgia. É o que ocorre por exemplo em movimento
que, a pretexto de combaterem a crueldade contra animais, buscam impedir
seu sacrifício em cerimônias religiosas. Nota-se que os mesmos grupos que
reivindicam essa proibição não mostram a mesma determinação em obstar
práticas cruéis contra os animais adotados pelo setor agropecuário ou pela
indústria da moda.
Os atos de descriminação, nesses casos, são fundados primordialmente no
caráter não cristão (ou não eurocêntrico) e no fato dessas religiões serem
baseadas em elementos africanos e indígenas. Aqui a essência do racismo
reside no próprio desrespeito as heranças africanas e indígenas, às formas
de organizar as relações com o mundo, com a comunidade e com a natureza
(NASCIMENTO, 2017). Tanto é assim que não se observa o mesmo grau de
violência e estereotipificação em relação as outras religiões, como, por
exemplo, o budismo. (LIMA, 2019. P 24)

Logo após conceituar a prática do racismo religioso, Lima (2019), nos


mostra em seu trabalho que o racismo pode acontecer e se propagar de maneira
indireta, velada, quando tenta promover o boicote de práticas religiosas pertencentes
a esses grupos, baseando-se em discursos humanitários, mas que na verdade
possuem a intenção de camuflar os preconceitos destinados as religiões como
Candomblé e Umbanda. Não é a preocupação pela vida que determina esses
comportamentos, mas a tentativa de coibir suas práticas rituais, já que essas práticas,
orientadas no pensamento não cristão, são tidas como exercício do mal, ações
impuras e de valor primitivo ou mesmo irracional. A estereotipificação feita às religiões
negras, acontecem porque são negras, sentimento construído principalmente dentro
das comunidades cristãs que trazem no seio do seu discurso uma visão
discriminatória das práticas africanas, afro-brasileiras e indígenas.
É importante dizer que nem todo discurso baseado em uma proposta dita
social, aparentemente direcionada a questões de meio ambiente ou sociais, possuem
de fato esse fim. Quando vemos algumas pessoas promoverem certos discursos onde
apenas a religiosidade de matriz negra é o alvo, tornando-se referência para o mal, a
primeira pergunta a ser feita é: esse olhar é depositado sobre outras religiões ou só
as de origem negra? Outra dúvida importante é entender se o propósito do
questionamento tem valor social para o conjunto da sociedade como um todo, ou se
busca beneficiar apenas um grupo. É muito fácil demonizar o outro e naturalizar de
maneira irreflexiva minhas atitudes, quando comparamos as práticas religiosas, dentro
da especificidade de cada uma, elas apresentam um mesmo propósito, visam
construir uma conexão com o sagrado, levar as pessoas a encontrar um alento para
seus medos e anseios espirituais. É importante desqualificar as práticas direcionadas
a perceber de maneira negativa e demonizada a cultura religiosa de origem negra,
naturalizar de maneira respeitosa suas práticas, para que possamos perceber de
maneira tranquila as simbologias africanas e afro-brasileiras.
Quando conseguimos observar as imagens produzidas por esse universo
simbólico e traduzir seus conteúdos, damos início a uma reflexão qualitativa sobre a
cultura africana. A imagem da pessoa negra, elaborada nesses textos pode e deve
ser percebida de maneira a refletir uma estrutura cultural capaz de romper com a visão
discriminatória, as leis existem a cerca de 20 anos18, para aplicação dos saberes
africanos e afro-brasileiros em sala de aula, orientados pela lei estou propondo uma
maneira de levar a aplicação de conteúdos que revelam e naturalizam a
ancestralidade negra preservada em nosso país.
A África é um continente que ainda tem muito a nos ensinar para
desconstrução do racismo étnico que compõe o mundo ocidental. A proposta aqui
desenvolvida é mostrar, através dos resultados obtidos de oficinas que observavam
também a mitologia iorubana como recurso para contação de histórias na intenção de
naturalizar seus conteúdos. Entendo que podemos olhar com mais clareza para longe,
se conseguimos assimilar de maneira positiva o que já possuímos em nosso país.
A ancestralidade negra está presente na cultura brasileira, a religiosidade
candomblecista é rica em saberes que podem promover uma educação social e
cultural antirracista. Compactuo com a perspectiva apresentada por Lopes e Freitas
(2019) quando descrevem as potencialidades e enfrentamentos existentes para uma
nova leitura e percepção do candomblé brasileiro, vejamos:

O candomblé é um movimento azeviche de resistência cultural, religiosa e


política; portanto, é inadmissível que instituições formativas ainda perpetuem
visões criminalizadoras, estereotipadas, discriminatórias, preconceituosas e
racistas, desconsiderando a potência intelectual do legado ancestral do além-
Atlântico que constitui(u) a brasilidade. (LOPES; FREITAS, 2019, p. 127)

18 Lei 10 639/2003. Lei 11 645/2008.


Nos subtópicos desse capítulo irei observar os desdobramentos resultantes
da utilização dos mitos iorubanos na prática da contação de histórias na execução da
oficina “Universo das histórias africanas” que foi aplicada nos anos de 2018 a 2021.
Ao todo 47 pessoas responderam ao questionário que foi aplicado no ano de 2022.
Após a execução da oficina, muitos dos participantes permaneceram em contato
comigo por meio do aplicativo do WhatsApp, dentro de um grupo com mesmo nome
da oficina, no qual continuamos dialogando sobre temas relacionados ao universo da
contação de histórias e assuntos relacionados às práticas de combate ao racismo.
Como o meu ingresso no programa se deu através de uma outra proposta
de pesquisa e esta que está sendo desenvolvida só aconteceu depois de alguns
percalços que descrevo na introdução desse trabalho, ao reformular o projeto, a
oficina se tornou objeto da minha pesquisa como base referencial para entender na
prática possíveis resultados alcançados com a execução dos mitos africanos como
atividade profissional, doméstica ou reflexiva entre os participantes da oficina.
A oficina foi executa pelos métodos presencial e on-line, como disse
anteriormente na introdução, durante meu percurso no PPGCR, sofri um acidente que
me deixou por quatro meses acamado, o que apesar de me deixar com uma limitação
física permanente, não me impediram que o trabalho continuasse. Em função da
Covid-19 limitar o encontro de pessoas o sistema SESC, que promoveu todas as
edições da oficina por meio do projeto Arte da palavra, passou a oferecer a oficina
pelo modelo on-line, adaptando suas atividades a realidade presente no país e
respeitando as diretrizes de isolamento social. Essa nova realidade favoreceu a
aplicação da oficina por mim, que sem poder se locomover, consegui realizar as
oficinas ainda no leito.
A primeira oficina que realizei pós acidente, foi ainda acamado para
biblioteca do SESC Paraty no Rio de Janeiro. Mesmo hospitalizado consegui dar
seguimento as oficinas e realizar assim meu desejo de levar os conteúdos
pretendidos, como trabalho direcionando a orientar pessoas a tratar o imaginário
negro de forma valorativa com a qualidade que acredito ter construído pela minha
pesquisa e dedicação ao tema.
Minha proposta é interpretar os questionários aplicados a um universo de
47 pessoas que se propuseram a responder o formulário. As perguntas eram
referentes a participação dessas pessoas na oficina realizada por mim dentro do
SESC, nas múltiplas unidades espalhadas pelo território nacional, de Norte a Sul do
país.
Dentre todo o público que participou da oficina, responderam um universo
reduzido de pessoas, um total de 47 respostas, como a proposta da análise é
qualitativa e não quantitativa o número não é predominante, e enquanto análise
qualitativa seguirei o modelo qualitativo apresentado por Amegeiras (2018):

Una estrategia cualitativa que presenta una gran capacidad hermenéutica y


facilitadora de prácticas cognitivas. Una apreciación estrechamente
relacionada con nuestra convicción respecto a considerar que son los sujetos,
los protagonistas de la vida social en sus múltiples posicionamientos y
actividades. Sujetos ubicados espacio temporalmente, hacedores de
relaciones, enmarcados en tramas conflictivas, pujas de intereses y
predominios hegemónicos, que construyen, reconstruyen y asumen
determinadas modalidades de vivir y de expresar su vida en distintas
situaciones. Sujetos que no solo poseen la capacidad de conocer sino
también de interpretar y de manifestarse en prácticas y relatos cuyas
argumentaciones y densidad teórica, explicita la presencia de otras lógicas y
racionalidades no disociadas de las hegemónicas pero diferentes e incluso
alternativas. Sujetos interactuando con el sujeto investigador en un proceso
social no exento de encuentros y desencuentros, de desigualdades y
asimetrías frente al desafío de construir conocimiento. (AMEGEIRAS, 2018,
p 198)

Como proposta qualitativa irei interpretar os formulários levando em


consideração as percepções dos indivíduos bem como suas formações pessoais para
construção do entendimento e interação com os conteúdos pensados ao longo da
oficina. Refletirei também sobre atuação profissional ou não de cada participante no
que se refere ao tema. O protagonismo dos participantes está em serem agentes
promotores do diálogo com os conteúdos apresentados ao longo da oficina, e no trato
desses indivíduos com esses conteúdos em seus cotidianos pessoais e profissionais.
As perspectivas que cada um utiliza para observar os conteúdos, serão
interpretadas levando em conta a identidade étnica, religiosa e como entendem que
devem se posicionar diante do tema. O fato de terem realizado a oficina com no
mínimo um ano de distância até o momento em que responderam o questionário que
utilizo para desenvolver esse capítulo, faz com que a temporalidade portanto seja vista
como um diferencial que poderia ter levado o tema ao apagamento em suas
construções, estagnação ou aprofundamento dependendo do quanto o tema é
relevante na vida de cada um, ou mesmo quais enfrentamentos eles encaram para
aplicação dos mitos em suas vidas.
A religiosidade de cada é um quesito que pode traduzir a compreensão e
comprometimento com o tema, bem como o autorreconhecimento étnico como
brancos e negros. Depois de fazer a análise acerca dos critérios étnicos pretendo
subdividir esses grupos em cristãos e não cristãos, para observar o nível de ralação
de cada grupo com o tema, bem como os desdobramentos pessoais desenvolvidos
pós conhecerem o tema. Entre os indivíduos autodeclarados negros também os dividi
entre cristãos e não cristãos, a intenção é observar como cada grupo interpreta e se
relaciona com a religiosidade africana por meio dos mitos dos Orixás. Busco observar
se a cor da pele, a religiosidade ou se a combinação de ambos modifica a forma de
ver e interpretar o tema.
As respostas apresentadas visam traduzir a subjetividade dos
participantes, as perguntas são subjetivas e tentam traduzir o olhar depositado pelos
participantes quando questionados sobre a relevância e aplicabilidade da temática.
Na sequência, questiono se eles aplicariam tais conteúdos em suas vivências. Irei
dialogar com cada grupo buscando relacionar as respostas que traduzem os limites
observados com os extremos dentro de um mesmo grupo. Minha análise é qualitativa
e busca o diálogo com base na relevância do tema para desconstrução do racismo
religioso bem como a naturalização dos conteúdos negros para descolonizar a
sociedade para reconhecer a ancestralidade negra presente na mitologia iorubana.

3.1. PARTICIPANTES AUTODECLARADOS BRANCOS/CRISTÃOS E OS MITOS


IORUBANOS.

Irei analisar as respostas de 09 participantes da oficina “Universo das


histórias africana” que se autodeclaram brancos e cristãos. Como cristão identifico
todos aqueles que tem em sua base doutrinária os ensinamentos de Cristo, estão
entre os cristãos declarados praticantes do: catolicismo, evangélicos de diferentes
grupos e kardecistas. Talvez muitos não entendam o espiritismo como cristão,
entretanto como as bases fundantes dessa religiosidade é cristã e a bíblia compõe
seu cânone sagrado, bem como Pereira 19(2009) entendo o espiritismo como uma
vertente cristã.
Responderam ao formulário, pela plataforma Google Forms, três pessoas
do Distrito Federal, duas pessoas do Estado de São Paulo, duas paraenses e uma do
Rio de Janeiro, todas se autodeclaram brancas e cristãs, dentro de algumas das
vertentes descritas acima.
As três primeiras perguntas do questionário foram referentes ao nome,
localidade e identidade étnica, dados que já repassei acima. Anteriormente às
perguntas que localizam essas pessoas na forma como ela se vem, dizendo de onde
são e qual sua religiosidade, tive o cuidado de perguntar o nome e e-mail dessas
pessoas para que não ocorresse duplicidade de respostas. Todavia informo que essas
informações serão suprimidas por não considerar importante ou mesmo relevante
para o desenvolvimento do trabalho.
A partir da quarta pergunta é que pretendo dar início a minha análise das
referências produzidas pela oficina. Nela levanto a seguinte questão: “qual o seu
interesse ao participar da oficina universo das histórias africanas?”. Dentre as
respostas a maioria aponta, estar em busca de novos conhecimentos, conhecer ou
valorizar nossa cultura, ou ainda conhecer outra cultura. O distanciamento da
população brasileira com a cultura negra não é novidade, pode ser entendida como
“Em se tratando dos africanos que fizeram parte da humanidade histórica como
vítimas subjugadas no secular sistema de opressão e dominação, vigora o
amordaçamento de suas culturas e saberes.” (LOPES; FREITA, 2020). Esse
silenciamento levou a maioria da população brasileira a não ver como sua a herança
africana, muito menos a que está ligada a religiosidade, pois a mesma foi demonizada
e inferiorizada pela visão cristã ocidental.
Nos interessa perceber o quando os saberes herdados da ancestralidade
negra estão tão distantes de muitos membros de nossa sociedade, que assim como

19Iniciado por Allan Kardec em 1857, com a publicação de “O Livro dos Espíritos”, o movimento espírita
se apresenta como a continuação histórica e profética do cristianismo. Mais do que uma alternativa no
mercado religioso, o propósito espírita é a revitalização da figura exemplar de Jesus de Nazaré, num
revigoramento da ética do amor e da fé heróica das primeiras comunidades cristãs. O Espiritismo é um
movimento de reforma do cristianismo, dando continuidade e aprofundando o movimento reformista
dos séculos XV e XVI, visando o retorno às origens, e a purificação dos erros e incompreensões da
mensagem cristã ao longo dos séculos. Sua virtude foi abrir o Cristianismo à modernidade, incentivando
o diálogo entre ciência e fé. O futuro irá dizer também em que medida a espiritualidade mundial terá
caminhado ao ideal de “religião espiritual” e que papel a eclosão do movimento espírita terá
desempenhado nesse processo.
eu descrevi nos primeiros capítulos desse trabalho ao falar sobre minha construção
pessoal, fui alienado por uma formação que era incapaz de enxergar o outro e produzir
um diálogo respeitoso com sua forma de ver o mundo. Não um mundo distante, mas
nossa própria realidade sociocultural que está presente na musicalidade, nas
alegorias do samba que são vendidas para o mundo como cultura brasileira, mas que
na verdade não representa a totalidade nacional, muitos nem se quer possuem uma
referência positiva sobre o tema, entretanto seguem foliões pelas avenidas Brasil a
fora.
Pretendo destacar ainda três falas que considero importantes refletir.
Apontarei em seguida de cada fala apenas a localidade de origem, especificamente
por se tratar de um grupo de pessoas brancas e cristãs. As falas são as seguintes:
“Sou professora e vi a necessidade de contextualizar, desmistificar e refletir com meus
alunos a cultura afro-brasileira, principalmente a respeito das religiões.” (São Paulo);
“Sou apaixonada por contos africanos e li bastante sobre a mitologia dos orixás.”
(Brasília); “Gerar estruturas de resistência e empoderamento.” (Pernambuco).
Essas três falas carregam uma característica, estão no plano além do
senso comum, são pessoas que tem uma proposta de trabalho e como pessoas
brancas entendem e reconhecem sua ancestralidade negra, não só para si, mas
também para os seus, alunos ou familiares, pois sabemos que o conhecimento altera
a forma de ver e interagir com o mundo. Ler sobre, submergir na informação,
empoderar, são formas de resistir ao colonialismo. Estas pessoas já possuem uma
proposta de observância que ultrapassou o primeiro estágio, o do primeiro contato.
Elas se propõem a uma busca por formas, maneiras de aplicar esses conteúdos, têm
a intenção de aprofundar o que já se fez conhecer, como forma de dar força e sentido
para esse conhecimento, não só enquanto indivíduos, mas também como agentes
sociais.
Na quinta pergunta busco entender, se entre os participantes existem
conhecimentos prévios a respeito da continente a africano, me limitando a indagar
quais conhecimentos cada pessoa tinha sobre o continente africano. A maioria das
respostas traduz uma visão que supera a ideia de fome e miséria comumente
atribuídas ao continente. Entre elas fez-se referências a culturas tradicionais
baseadas na oralidade, a diversidade de países, línguas e culturas. Foi citada a
exploração do continente pelo ocidente e a contribuição dos povos africanos na
formação cultural brasílica. Ter uma noção da riqueza presente no continente africano
é um passo importante para desqualificar a falsa ideia do primitivismo e da
irracionalidade depositado sobre o continente (FANON 2008).
Na questão seis o que me parecia ser apenas a descrição do que
aprenderam sobre o tema a respeito das divindades africanas, onde pergunto o que
os Orixás representam para os participantes como uma pergunta direta e simples: “o
que os Orixás representam para você?”. Oito dos participantes disseram entendê-los
como divindades; como santos quando observados pela fé católica dessa pessoa;
declararam serem “ancestrais divinizados que trouxeram conhecimento aos seus
povos”; “energias da natureza”; “são seres encantados que protegem as pessoas, a
natureza e a humanidade por meio da religiosidade”; “são divindades da mitologia
africana”; representação de forças energéticas”; “são forças vitais e cheias de afeto”.
Todas as repostas apresentadas buscam traduzir o mínimo de referência
adquiridos pela formação e acúmulo de cada um, entretanto, para além da forma
respeitosa e entendimento qualificado das respostas acima apresentadas, vou na
direção de uma resposta que ao ver desse pesquisar traduz a visão mais comum entre
os leigos sobre o tema. A meu ver, representa a apatia brasileira em entender ou
buscar refletir sobre o tema, é a fala de uma participante do distrito federal, ao ser
indagado sobre o que os orixás representavam a ele, declara: “Nada”. O uso do termo,
por mais sucinta possa ser a intenção de resposta, tal afirmação traduz uma
asperidade próxima da rejeição, já que tal indiferença desqualifica o outro a uma
invisibilidade pela visão depositada sobre sua cultura. A identidade do outro não pode
ser nada para mim, quando eu mesmo não quero que minha maneira de ver e
interpretar o mundo, através da minha realidade não deva ser vista como nada pelo
outro.

Porque o colonialismo não fez outra coisa senão despersonalizar o


colonizado. Esta despersonalização ressente-se igualmente no plano
colectivo ao nível das estruturas sociais. O povo colonizado vê-se reduzido,
então, a um conjunto de indivíduos que não encontram a sua razão de ser,
senão em presença do colonizador. (FANON, 1965, p. 159)

A versão da personalização do colonizado, a partir da visão do colonizador,


do ocidentalismo busca apagar, diminuir desqualificar toda e qualquer existência
alheia a sua versão de mundo, dizendo indiretamente, ser alguma coisa apenas o que
reflete ou traduz o seu modo de ver a realidade. O meu Eu precisa do reconhecimento
do outro para ser visto dentro de uma dinâmica social, quando traduzo o outro como
nada, estou tentando desqualificar e invisibilizar sua existência. Trata-se de uma
simples fala que na verdade traduz uma ação comum do colonialismo, que por não
conseguir silenciar, busca desqualificar a versão negra de nossa sociedade.
Na sétima questão faço a seguinte pergunta: o que você aprende ou
aprendeu a respeito dos Orixás na sua religião? Qual a sua opinião sobre? Muitas das
respostas foram direcionando sempre a prática respeitosa a escolha da fé de cada
um, ou mesmo da ausência de informação sobre o tema dentro da sua religião, todavia
duas respostas serão tema de nossa reflexão, que são: “Faço parte de uma igreja
muito diversa há os que reproduzem a colonialidade mas há outros que dialogam e
tentam aprender” (Pernambuco); “Hoje se fala em respeito, mas ouvi muito que era
coisa do ‘diabo’” (Pará).
A confissão de existir um embate dentro dos grupos religiosos cristãos é
um horizonte saudável para nossa sociedade, pois se dentro dos espaços religiosos
forem combatidas as práticas racistas direcionadas a religiosidade negra brasileira,
caminharemos para uma versão mais respeitosa de sociedade. É fato que as leis
coíbem a prática do racismo, mas essa é uma luta histórica e diária, quando a pessoa
paraense responde que cresceu ouvindo falar dessas religiões de forma demonizada
e hoje em dia vê-las sendo tratadas de forma respeitosa, mostra o quanto a busca por
formas de combater o racismo religioso tem possibilitado ambientes religiosos menos
alienantes e mais próximos a perspectiva humanizada de sociedade como a que se
pretende, fruto da descolonização do olhar também proposta aqui.
A pergunta oito trazia as seguintes interrogações: “Você conhecia os Orixás
iorubanos antes da oficina? O que você entendia a respeito? As respostas revelaram
que 6 dos participantes não possuíam conhecimento prévio sobre o tema. Duas
disseram ter algum conhecimento sobre o tema, mas se resumiram a uma resposta
monossilábica e uma disse: “Muito pouco. O conhecimento que eu tinha vinha do
acompanhamento das escolas de samba do RJ como é muito frequente a menção a
orixás”. É interessante perceber como um tema que é repetido todos os anos, num
evento que repercute internacionalmente, pode estar ainda tão longe dos indivíduos
em nossa sociedade, mesmo assim ainda reverbera na consciência de muitos e se
torna um caminho de diálogo para superação da alienação estrutural brasileira, sobre
nossa identidade representada nos deuses africanos.
“Como é uma negação sistemática do outro, uma decisão furiosa de privar
o outro de qualquer atributo de humanidade, o colonialismo leva o povo dominado a
perguntar-se constantemente: «Quem sou eu na realidade?»” (FANON, 1965, p. 133).
A citação a Fanon (ibidem), revela uma questão de que ao sermos negados em
nossas origens, e por termos poucos momentos para revelar nossa ancestralidade,
nos leva a pensar se somos apenas o que é mostrado pela mídia, através da
reprodução desses grandes eventos de repercussão midiática, como é caso do
carnaval brasileiro. Seriam os negros portanto apenas a sensualidade e misticismo
representados pelo evento festivo do mês de fevereiro? A redução da identidade
negra a datas comemorativas, como fevereiro ou novembro com dia da consciência
negra, são introdutórios e de enorme relevância para se abrir espaço para o tema da
identidade negra, mas não são o suficiente. É preciso se elevar a discussão e reflexão
do tema de maneira permanente e mais aprofundada. Nossa autoimagem e identidade
enquanto pessoas negras, precisa ser construída dia após dia de maneira laboriosa e
consciente, para nos localizar no mundo e valorizar nossa ancestralidade étnica.
Quando, na questão 9, ao serem perguntados: “No que se refere as
religiões de matriz africana, quais conhecimentos você possui a respeito?”. Na busca
por me aprofundar no reconhecimento do quanto os participantes dominavam o tema
e faziam ligação entre os conteúdos, as informações tornam-se complementares e por
isso destaco apenas duas falas, são essas: “Tinha a impressão de que eram mitos de
outra religião. O que me foi ensinado com certo preconceito” (Pará); “a de que era
algo perigoso” (Pará). Ambas respostas provém de pessoas do Estado do Pará e
revelam uma construção comum às religiões cristãs, a de implantar o medo para
colonizar o olhar, produzindo a maioria da sociedade que vive aquém das formações
intelectuais a respeito do tema e que propagam um senso comum de medo e
insegurança quando tratam das religiões afrocentradas.

Enfim, os terreiros são lócus de singulares trocas ancestrais nos quais se


reafirmam as identidades política, cultural e religiosa dos negros sob a
proteção espiritual de seus seres encantados, sejam Orixás, Inquices e
Voduns. Parafraseando Reis e Silva (1989), em seus templos religiosos, eles,
muito além de cantar, dançar, tocar e homenagear seus deuses, promoveram
coesão social antecipando levantes e rebeliões; reafirmando, assim, o
significado do verbo resistir. (LOPES; FREITAS, 2000, p. 121)

A religiosidade afrocentrada é malvista por trazer além de elementos


simbólicos demonizados pela cultura ocidental, ela também é um ambiente de
resistência, de luta pela manutenção da vida negra, tanto cultural como física, pois
nesse ambiente a memória negra, ainda na origem africana, é perpetuada pelas
tradições praticadas em seus cultos e nas interações realizadas em seus espaços de
vivência.
Nas questões dez e onze faço as seguintes indagações: “Na sua opinião o
conhecimento sobre os mitos iorubanos ajuda a combater o preconceito contra as
religiões de matriz africana? Por quê?”; “Você considera importante conhecer a
mitologia de uma cultura? O que a mitologia iorubana mostrou para você?”. As
questões acima buscam entender qual a perspectiva dos participantes sobre o que de
fato apreenderam sobre o tema no decorrer da oficina e compreender o quanto o tema
se inseriu na realidade dos participantes.
Dentre as respostas direcionadas à décima questão todos compreendem
que de maneira positiva, pois tão abordagem ajuda a desconstruir o imaginário
predominante em nossa sociedade, a de que as divindades descritas nos mitos
estariam ligadas à ideia cristã de mal ou seriam a própria expressão desse mal.
Mesmo entre pessoas de etnia branca os orixás foram reconhecidos como parte de
nossa ancestralidade, declarando ser importante conhecer sobre, pois trata de se
“compreender aquela que é nossa raiz” (São Paulo). Dentre as respostas foi
reconhecido o preconceito destinado a essas religiões e que a falta de conhecimento
seria o motivador desse preconceito. Logo considero que traduzir de maneira simples
e direta os conteúdos presentes nos mitos para o público é interessante para favorecer
uma percepção valorativa da cultura herdada da África. O ponto máximo dentre as
repostas a essa questão entre as pessoas brancas foi a que afirmou que “A cada curso
que faço sinto-me mais africana” (Brasília), se esse sentimento pode existir de maneira
positiva entre pessoas brancas penso como seria importante esse discurso estar na
fala entre pessoas negras e na construção de uma memória ancestral sem o filtro
racial imposto pela colonização.
A décima primeira questão traduz a satisfação dos participantes em
conhecer sobre o universo simbólico negro, valorizando e enfatizando conceitos como
respeito, sabedoria e ancestralidade, conceitos discutidos durante a observação dos
mitos iorubanos, essa pequena parcela da cultura africana que depois de atravessar
o atlântico veio enriquecer e dar valor a construção da identidade nacional. “Elas são
profundas e parte de todos nós” declara uma participante do Pará. O poder dos mitos
traduz a nossa proposta de trabalhá-los, como uma verdade mítica cheia de riquezas
pouco valorizadas pela maioria da nossa sociedade. Outra importante declaração foi
a seguinte: “Ajudou a entender melhor a origem dos mitos e a diminuir o preconceito
que eu tenho” (Brasília). O preconceito está no seio de nossa sociedade e reconhecer
isso é um passo importante para superação desse mal, que incrustado pelo
colonialismo precisa ser extirpado por conteúdos capazes de promover o
reconhecimento dos saberes produzidos pelo continente mãe dos nossos ancestrais.
No intuito de ver o quanto foi possível relacionar os conteúdos encontrados na
mitologia iorubana com outras culturas referenciais, comuns em nosso universo
simbólico, mesmo que superficialmente, fiz a seguinte pergunta na questão doze: “Na
sua opinião os mitos iorubanos têm alguma semelhança com as mitologias de outras
culturas?”. Faz-se interessante descrever que muitos conseguiram fazer uma ligação
entre os universos simbólicos destintos, construindo analogias interessantes e que
relacionam os universos distintos de maneira qualificada. Essa percepção ao menos
transmite uma equivalência entre as cosmovisões comparadas, mesmo entendendo
que a mitologia africana ainda esbarra numa série de outros enfrentamentos que as
demais culturas não precisam enfrentar para serem reconhecidas. Naturalizar os
conteúdos na mitologia africana já é um começo importante para construção do
diálogo e do respeito em nossa sociedade.
Na questão treze perguntei: “Você acredita que os mitos dos Orixás devem ser
utilizados como recurso de ensino para combater o preconceito/racismo nas escolas?
Se possível comente um pouco.” Dentre as respostas apresentadas traziam em seu
conteúdo a necessidade de se produzir “respeito e conhecimento” (Pernambuco) pois
através desses conhecimentos aprendemos a “valorizar ainda mais o que recebemos
da cultura africana” (Brasília). Tais conhecimentos também seriam uteis para
“desmistificar esse preconceito com as religiões de matriza africana” (São Paulo). O
reconhecimento do quanto “a cultura brasileira tem profunda influência africana, pois
os povos escravizados trazidos para cá à força resistiram bravamente à aculturação
forçada, e também modificaram a cultura de seus colonizadores”. Todo esse
aprofundamento em “aprender a cultura brasileira, é necessário. Uma por ser
brasileiro, outra por ser professora da disciplina de arte”. Uma proposta de trazer para
a vida profissional os conteúdos pertinentes a africanidade. Todas essas falas
mostram o quanto esses indivíduos conseguem hoje enxergar a importância de
abordar todos esses conteúdos presentes nos mitos, promovendo o entendimento da
mitologia africana ao reconhecer tais saberes como parte do mosaico nacional.
Reconhecer o valor da cultura negra é interessante para comunidade branca, penso
no quanto podem ser grandiosos os resultados entre a população negra.
Em relação ainda a décima terceira questão destaco as seguintes respostas:
“É importante para gente se entender como povo e para combater o preconceito racial”
(Pará); “Aprendi que a cultura brasileira é permeada e entrelaçada com a cultura
africana por meio da religiosidade e ancestralidade”; “Acredito! Mas acredito que pode
haver rejeição, pode não ser valorizada! Pode haver resistência!”.

Não é necessário apenas que se combata pela liberdade do povo. Também


é preciso ensinar a esse povo e a nós mesmos, durante o tempo da luta, a
dimensão do homem. Deve remontar-se pelos caminhos da história, da
história do homem condenado pelos homens e provocar, tornar possível o
reencontro com o seu povo e com os outros homens. (FANON, 1965, p. 158)

Interpreto Fanon (ibidem) com essa necessidade não só de lutar pela causa
antirracista, não como idealista capaz de ser um mártir, mas como alguém que leva o
conhecimento a outras homens e mulheres para o reconhecimento de nossa
construção histórica. Nossa nação é fruto de miscigenações culturais e étnicas e esse
processo invisibilizou identidades étnicas. É necessário nos reencontramos como
nossas memórias multiculturais sem hierarquias. O combate se faz diariamente, com
palavras, gestos, reflexões imbuídas de uma leitura de mundo na qual a identidade
negra perpetuada em nossa cultura possa enfrentar o movimento de resistência
contraria, o preconceito, o racismo, através daqueles que persistem em traduzir
desqualificadamente os conteúdos negros em nossas vivências, tanto pessoais
quanto profissionais. Sem tais enfrentamentos jamais conseguiremos reconectar os
homens entre si, humanizá-los em seus múltiplos sentidos, pois se faz imperioso que
brancos e negros se vejam e se respeitem ontologicamente.
Na penúltima questão, a décima quarta, levanto a seguinte pergunta: “A
oficina universo das histórias africanas ajudou em qual sentido você a observar as
religiões de matriz africana e os conteúdos vivenciados por elas observados através
de seus mitos?” Predominantemente as respostas foram em sentido afirmativo,
considerando os mitos muito interessantes relatando que a oficina “ajudou a mudar
minha visão sobre a religião e religiosidade, além de ajudar a desconstruir a
concepção preconceituosa sobre os orixás” (Pará). Essas respostas traduzem as
intenções de nossa proposta de trabalho e demostram o quanto podem ser positivos
os resultados de uma educação por meio da desconstrução do muro da indiferença,
do medo, provocados uma educação eurocêntrica cristã que ao invés de dialogar,
diminui, rejeita, menospreza o outro simplesmente por ser o outro, por ter outra cor de
pele. Quando declaram que uma simples oficina é capaz de “ajudar a conhecer as
religiões de matriz africanas e a compreende-las melhor” (Brasília); como essa mesma
oficina pode ser capaz de levar a uma pessoa a dizer que: “sempre! Acho que a olhar
toda a vida em torno com respeito” (São Paulo). A mensagem de aceitação dos
conteúdos e de como essas pessoas puderam reler a mesma realidade a qual
estavam acostumadas, traz profunda satisfação, ou quando dizem que a mesma
oficina “Provocou aprofundamento e maios respeito as culturas africanas e afro-
brasileiras” (Brasília), quando um indivíduo de tez clara entende que tais conteúdos o
levam a “valorizar mais minhas origens” (Brasília) e reconhecendo que “ Ninguém é
dono da verdade nada é hegemônico e tudo é precário e contingente” (Pernambuco),
me leva a crer que o caminho do dialogo por meio de reflexões fundamentadas no
olhar de quem vive e produz tais conhecimentos é o melhor caminho em busca do
autoconhecimento e compreensão reflexiva da nossa realidade.
Na última questão, pergunto: “você acredita que irá enfrentar resistência ou
algum tipo de preconceito ao utilizar os mitos africanos em sua prática profissional ou
ambiente doméstico? Como pretende lidar com isso?” Em todas as repostas a
resistência é reconhecida, uns consideram que há falta de informação pelo conjunto
da sociedade e por significativa parcela de agentes educacionais, reconhecem que
existe desconfiança ao abordar o tema ao falarem sobre os “Orixás e suas energias”
(Pará). Declaram que mesmo existindo o preconceito se faz necessário buscar o
respeito as religiões, dizem se fazer necessário ter calma ao enfrentar os opositores
ao tema impondo o tema como forma de “retratar uma diversidade cultural” (Rio de
Janeiro).
Entendo que a resistência é parte do processo natural do enfrentamento ao
racismo religioso e por isso busco a reflexão por parte dos participantes para que eles
mesmos descrevam como isso faz parte do processo de uma educação para
descolonização do pensamento direcionado as religiosidades de origem negra. Isso
faz com que seja necessário observarmos mais de perto três falas que destacam de
maneira contundente o enfrentamento dessas pessoas brancas que se propõem a
trabalhar o conteúdo dos mitos iorubanos em suas práticas profissionais, vejamos a
primeira:

“Infelizmente, acredito que sim. No ambiente escolar, conto histórias


africanas, mas ainda seleciono histórias que não façam menção aos Orixás,
por temer a reação das famílias dos alunos. Mas, por ter maior conhecimento
hoje, me sinto mais capaz de interpelar colegas que por ventura façam algum
comentário preconceituoso.” (Brasília)

Dentro do ambiente escolar se faz necessário discussões a respeito do


tema, trabalhar com o educador uma intervenção que dialogue com a questão para
que ele mesmo desconstrua em si os hábitos naturalizados pelo racismo em nosso
dia. Para isso, é preciso qualificar esse profissional, dar a ele suporte para
paulatinamente traduzir em sua metodologia uma discussão capaz de desqualificar
preconceitos, presentes desde a forma como os conteúdos são abordados até as
brincadeiras racistas que são praticadas de maneira “despretensiosa” entre os alunos.
Deve estar no profissional a proposta em se desconstruir para se qualificar frente ao
tema, auxiliando seus alunos e outros profissionais que ainda mantenham essa prática
e sobre isso trago Sant’Ana (2005), quando afirma que:

Conclui-se, portanto, no que se refere à postura do professor diante da


questão racial em sala de aula, que o mesmo “atua como mantenedor difusor
do preconceito racial entre os alunos, seja por omissão, seja por efetivas
declarações racistas, seja pelo simples fato de desconsiderar a questão, por
tratá-la como um problema menor ou inexistente” (p. 68). (SANT’ ANA, 2005,
p. 56)

Na fala da participante da oficina ela se cerceia ao escolher o tema de suas


contações com receio de um possível enfrentamento com a família dos alunos, no
entanto sente-se segura, e conclui que assim se sente, pois vê-se mais fundamentada
para dialogar com colegas que reproduzam os mesmos preconceitos que imagina
encontrar entre os pais dos alunos. É um fato que dentro de uma sociedade na qual o
racismo está presente no imaginário social, esse racismo também se reproduz entre
educadores e como Sant’ Ana (2005) mesmo alude. São diversos os fatores que
justificam esse comportamento, todavia, dialogar com nossos colegas é uma
necessidade se pretendemos superar tal realidade.
Dentro do ambiente escolar vamos encontrar muitas imposições por parte
de nossos colegas e uma resposta me causou enorme espanto, mas devido a
impessoalidade do formulário, não pude me aprofundar na questão que me causou
profundo incomodo: “sim. Sou contadora de histórias e me pediram para interromper
uma história que estava contando, era uma história sobre Xangô.” (Brasília) Vejam a
que ponto chega o preconceito ainda em nossos dias, uma contadora de histórias foi
impedida de concluir sua narrativa por se tratar da história de um Orixá. A autora da
resposta não discorre mais detalhes sobre o episódio, dizendo onde estava, se eram
adultos ou crianças ou mesmo quem pediu para que ela parasse, mas para ter algum
conhecimento a ponto de interromper seu trabalho provavelmente o impedimento
partiu de um adulto.
Não querer ouvir é o pior dos erros, é anulação do diálogo, a incapacidade
de dar ao outro o direito de mostrar sua identidade, vejam que nesse grupo estamos
tratando apenas de pessoas brancas e cristãs que abordam o tema em suas vidas
profissionais ou domésticas. Mesmo fugindo a todos estereótipos já estigmatizados
pela nossa sociedade a contadora foi impedida de concluir seu trabalho. Frente a
situações como essas é que se torna imperioso dar continuidade a tais práticas como
forma de desqualificar sua tentativa de manter em silêncio os saberes africanos e a
representatividade negra no Brasil.
Por último irei compartilhar uma declaração que traduz muito bem a
intenção em dividir por grupos a análise dos questionários: “Acredito que irei enfrentar.
Sempre penso duas vezes antes de escolher alguma história sobre os orixás para
contar, por não ser o meu lugar de fala e por medo da reação do público” (Pará).
Enquanto pessoa branca o medo em trazer à tona seus conhecimentos a respeito dos
conteúdos africanos revelam a dificuldade de reconhecê-los também como seus,
como parte da sua identidade nacional, como saber possibilitador do diálogo. O lugar
de fala para esses conteúdos é de todos os brasileiros, de pessoas que fazem parte
dessa mesma diversidade cultural tão anunciada e reproduzida nos meios de
comunicação, somos diversos e somos negros também em nossas origens, assim
como somos indígenas e europeus. O medo dá voz a manutenção do preconceito e a
superação disso só se faz frente ao enfrentamento e desconstrução de suas práticas
(FANON 2008, 1965).
3.2. PARTICIPANTES AUTODECLARADOS BRANCOS/NÃO CRISTÃOS E OS
MITOS IORUBANOS.

Nesse grupo foram reconhecidos 11 participantes que correspondem a


essa definição e, para observar melhor os conteúdos das respostas irei dar início a
análise qualitativa das informações apresentadas no questionário, destacando cada
uma das perguntas e em seguida observando as respectivas respostas para orientar
melhor a observação do leitor, buscando favorecer a relação pergunta e resposta.
Dos 11 participantes que responderam ao questionário e correspondem ao
perfil desse grupo todos são mulheres e se autodeclaram como pessoas brancas.
Cinco dizem não praticar nenhuma religião ou religiosidade e cinco são praticantes de
religiões de matriz africana (Candomblé, Umbanda). Entre as últimas existem dois
casos em destaque relevante para esse grupo: umas das participantes ser uma
sacerdotisa da Umbanda e de outra se declarar judia e umbandista, identidades que
referenciam autoridade dentro do tema e uma expressão do multiculturalismo
nacional. Apenas uma pessoa oriunda do Pará se declara agnóstica, que é alguém
capaz de aceitar a existência de seres divinos, mas não segue uma religião específica
por entender como incompreensível a manifestação do divino.
Entre as perguntas realizadas destaco a quarta: “Qual o seu interesse ao
participar da oficina universo das histórias africanas?”
As respostas foram na sua maioria sucintas e diretas quando afirmam o
desejo de conhecer “a história dos meus ancestrais” (PE), busca pelo “conhecimento”
(SC) ou “conhecer o universo riquíssimo das narrativas e mitos entre as divindades e
os seres humanos” (PR). Algumas já tinham uma visão profissional quando declaram:
“atuo em biblioteca escolar e estou em busca de material sobre culturas africanas e
afro-brasileiras.” (SP) outra, por questões profissionais deseja “conhecer a mitologia
Iorubá” (PA).
Posso dizer que as falas destacadas no parágrafo anterior resumem as
respostas encontradas a essa pergunta e observa-se nesse grupo um direcionamento
na busca pelo aprofundamento de conteúdos que é percebido entre outros indivíduos
de pele branca. Em comparação com o grupo branco cristão percebo um
distanciamento um pouco maior, logo, não encontramos nas repostas desse grupo
termos como desmistificação ou outra cultura, mas uma busca por qualificar os
saberes que já possuem e o desejo de aplicar tais saberes nas práticas profissionais.
É uma diferença sensível, mas que deixa claro uma percepção diversa de ver os
mesmos conteúdos visando estar diretamente ligado a formação religiosa. Trata-se
de pessoas mesmo brancas, mas que não estão presas a versão colonialista cristã.
Visualizam um horizonte mais aberto e mais capaz de interagir com o outro, sem medo
ou mistificação.

Para mobilizar o descolonizar das percepções de mundo, é fundamental se


desprender da ótica colonial e promover outros sentidos sobre as concepções
de racionalidade e de ciências. Assim, o pensamento descolonial inaugura
uma alternativa contra a hegemonia do eurocentrismo ao abrir condições de
possibilidades para um pensamento que pressupõe a diferença e a
pluriversidade do conhecimento (MIGNOLO; CASTRO GÓMEZ, 2007).
(SOUSA; ALVES, 2020, p. 37)

Não quero afirmar aqui que tal grupo já extirpou a influência ocidental na
sua forma de ver o mundo, mas destacar que o simples fato de, em sua maioria, estar
além da visão cristã como predominante em suas vidas já favorece um cenário mais
aberto a pluralidade. Enquanto no grupo cristão encontramos aqueles que já dialogam
com certa clareza com os conteúdos da mitologia iorubana, muitos ainda estão dando
seus primeiros passos e tendo seu contato inicial com o tema, enquanto os oriundos
de “outras formas de ver e interpretar o mundo”. Mesmo aqueles que não são
orientados por uma religião, como é o caso do agnosticismo, revelam uma promissora
não limitação e isso é um diferencial importante a se observar em relação aos dois
grupos.
A citação acima mostra que a descentralização da visão eurocêntrica
colonial promove uma percepção mais favorável, um entendimento maior sobre a
diversidade de leituras de mundo existentes. Supera-se, portanto, a identidade
hegemônica imposta pelo ocidentalismo e caminha-se para o diálogo com o diverso.
A multiplicidade de confissões religiosas ou a não confissão, favorece o diálogo entre
os diferentes, descolonizando assim a ideia de superioridade de uma sobre a outra.
A questão cinco interpela: “quais conhecimentos você tinha sobre a África?
A África para esse grupo traduz-se de maneira mais próxima. Mesmo em se tratando
de mulheres brancas, o fato de serem orientadas por uma versão menos
preconceituosa de mundo, para além da visão religiosa se traduz em falas como: “a
mãe África é o berço das civilizações” (PR); “o meu ex-marido era angolano, logo
tenho alguma relação com a África e tenho participado de oficinas de dança, roteiro e
arteterapia com brasileiros descendentes que trazem esse conhecimento de matriz
africana.” (SC). Duas mulheres brancas do extremo sul do país que traduzem uma
percepção relacional com o continente negro, uma por reconhecer sua ascendência e
outra por sua relação intima com seus descendentes e pela constante busca em
sempre aprender com os filhos dessa terra. É importante dizer que a participante de
Santa Catarina quando diz aprender com brasileiros descendes ela não está se
referindo a pessoas negras necessariamente, mas a toda e qualquer pessoa nascida
no Brasil, é que ela mora em Santa Catarina, mas é de origem Portuguesa, nascida
na cidade de Porto, e suas interações ficaram marcadas pelo rico discurso das
experiências que a mesma vinha construindo, por meio de suas vivências íntimas ou
profissionais a respeito do continente africano, o que também nos mostra que a
descolonização deve ser levada ao europeu para que não se perpetue entre eles a
falsa ideia de superioridade intelectual e cultural.
Fanon (1965), ao escrever o prefácio da obra “Os condenados da terra” de
Fanon nos traz uma perspectiva interessante ao dizer:

Este livro não necessitava de prefácio. Sobretudo, porque não se dirige a nós.
Escrevi-o, no entanto, para levar a dialéctica às suas últimas consequências:
também a nós, europeus, nos estão descolonizando; quer dizer, estão
extirpando numa sangrenta operação o colono que habita em cada um de
nós. Olhemo-nos bem, se tivermos coragem, e verificaremos que isso existe
de facto em nós. (SARTRE about FANON, 1965. P 14)

No transitar das informações também se faz importante que o colonizador


se reconheça como tal e busque mudar revendo suas práticas. Esse trabalho não é
direcionado a um grupo específico de pessoas, mas a todos aqueles que entendem
que ter um olhar segregador, de superioridade, que discrimina e hostiliza o outro não
é bom para o conjunto da sociedade, o racismo não é bom para quem é vítima, como
também não é bom para quem o paratica. Em nada favorece ao ser humano, e para
isso ser superado é preciso que se encare com coragem essa realidade e a enfrente
na busca da sua superação.
A Pergunta seis questiona: “O que os Orixás representam para você?”
Entre essas mulheres de tez branca encontro as seguintes respostas: “Deuses” (PA);
“divindades do panteão africano” (PA); “religiosidade” (SC); “ancestralidade. Pessoas
que viveram, morreram e foram divinizadas. Seres com poder, sabedoria e força.”
(PR); “são forças da natureza que nos guiam com sabedoria” (SP); “Ogum e Insã”
(RJ); “são entidades da religião do candomblé” (RJ); “sou iniciante nesse estudo de
arquétipos onde tive contato na formação em arteterapia” (SC); “os donos dos nossos
oris” (PE); “divindades baseadas nos elementos da natureza” (SC); “sagrado! Vida!
Natureza! ‘sem folha não tem Orixá’” (PR).
Todas as falas acima descritas revelam um conhecimento mais profundo
sobre conteúdos ligado ao universo simbólico que compreende a identidade divina do
Orixás. Nenhuma resposta representa a tradução depreciativa ou reducionista sobre
o poder da simbologia dessas figuras que traduzem o modo de ver e interagir com a
realidade dos povos iorubanos.
Os Orixás são todas as características descritas acima, mas o que
pretendia observar e trazer como reflexão a esse trabalho é que ao transcrever aqui
todas as respostas em nenhuma encontrei uma percepção reducionista das
divindades negras. Ao contrário, na verdade o contrário se evidencia um
conhecimento íntimo do panteão iorubano a ponto de utilizarem palavras nativas e
correlacionarem essas entidades a própria noção de pessoa, com o “ori”, a cabeça de
cada indivíduo, e com a natureza, pois eles são a própria natureza. Deuses africanos
que compõem a memória ancestral do povo brasileiro, sacralizados ou não por quem
os observa, devem ser respeitados por serem divinos e estarem ligados a
religiosidade e a maneira de ver e sentir o mundo pelos crentes que neles depositam
sua fé.
Na pergunta sete desejei saber: “O que você aprende ou aprendeu a
respeito dos Orixás na sua religião? Qual a sua opinião sobre? Dentre as respostas
destaco: “aprendi que seriam ligados ao demônio. Acho preconceituoso e ignorante.”
(PA); “eu acredito que os orikis 20, que são versos das histórias, podem contribuir muito
para nossa sociedade.” (PA); “força e axé” (SC); “não sigo uma religião” (PR); “não
sigo nenhuma religião, mas tenho interesse nos arquétipos e narrativas que para mim
mostram caminhos a serem seguidos.” (SP); “saber, cultura, proteção.” (RJ);
“consciência da natureza humana e seus princípios éticos que atravessam o tempo e
o espaço.” (SC); “são nossos guias” (PE); “o catolicismo nega a matriz africana” (SC);
“tempo, respeito, fé e esperança!” (PR).

20Oríkì são um tipo de louvação, uma série de versos que exaltam as qualidades das divindades, dos
ancestrais e também são usados para dignificar pessoas ilustres e importantes para suas comunidades
como reis, portadores de cargos ou títulos e chefes de família. (SILVEIRA, 2020. P 45)
Percebam como um pequeno distanciamento da visão eurocentrada
promove uma leitura de mundo que já não representa o outro, mas uma percepção
construída por si. Quando indago sobre a visão religiosa espero ver descrita uma
intenção de conflito, não entre os praticantes da religião afro, mas seria possível
enxergar dissidências quando o indivíduo não confessa uma fé, ou se orienta pela
racionalidade. Não é a razão que afasta as pessoas, mas ausência dela, uma versão
cega da religiosidade que impede que as pessoas se enxerguem. Quando vejo os
participantes dizerem que não se aplica, é porque de fato não seguem uma fé e não
estão orientando-se por uma visão g. Vale destacar que mesmo não tendo uma base
religiosa, buscam nos saberes dados pelos Orixás, compreensões sobre o ser no
mundo. Esta ação gera respeito, e esperança em reconhecer o outro em sua
humanidade e em se ver menos capaz de reproduzir o racismo, independentemente
de minha origem étnica.
Existe nas falas expostas acima uma descolonização pois superaram os
preconceitos impostos pela sociedade, reconheceram a negação e a ignorância
destinada a religiosidade negra. A cor da pele não tornou as pessoas racistas, mas a
forma de ver e interagir com o mundo orientado por cosmovisões e teogonias que se
elevaram ao nível de superioridade. Propagavam a máxima de que as pessoas
deviam defender essa superioridade a qualquer custo e que ela não devia ser
corrompida por nenhuma outra cultura, principalmente a cultura negra.
A pergunta oito indaga: “Você conhecia os Orixás iorubanos antes da
oficina? O que você entendia a respeito? Destaco as seguintes respostas: “sempre
revisitando as narrativas” (PR); “conheço, mas não tenho familiaridade suficiente para
desenvolver.” (SC); “representação e cultura” (SC); “sim, porém, é de muita
importância para que os que ainda não sabem conhecer melhor.” (PA). Destaco essas
falas que representam menos da metade das pertencentes a esse grupo, pelo
surpreendente fato de que todas as outras respostas dizem não conhecer nada, quase
nada ou muito pouco. Dentre as que assim responderam estão praticantes de religiões
de matriz africana, a agnóstica e outras que dizem não confessar fé alguma. Entender
como é possível pessoas que tiveram sua construção sociocultural tão próxima das
religiões de matriz africana podem não ter uma referência estruturada a respeito do
assunto. Para isso é preciso entender como funciona a forma do colonialismo no
sentido de negar nossas referências, no que não está centrado na cultura europeia
cristã. Assim, mesmo coexistindo no mesmo espaço geográfico não se enxergar a
construção cultural e religiosa produzida por outros indivíduos. Vejamos o que diz
Carvalho (2020):

Interessante observar, também, que através da invenção do “outro” a partir


do seu “eu”, ou seja, de sua identidade e de sua significação, o colonizador,
não só inventou o “outro”, como inventou a si mesmo. Ou seja, ao definir e
dizer quem é o “outro”, o colonizador também anuncia, define e afirma quem
ele é. Há aqui um evidente processo de “extermínio” da humanidade do
“outro” e o processo de afirmação do ideal de ser humano pautado pelo “eu”
colonizador (DUSSEL, 1993). (CARVALHO, 2020, p. 72)

O colonialismo gerou em nós uma versão que não nos caracteriza, não só
isso, ela tira o outro, o não cristão de nosso horizonte de entendimento da realidade.
As religiões de matriz africana e os seus foram tão estigmatizados, suas divindades
tão associadas a ideia de mal cristão que impede que as pessoas possam vê-las,
quanto mais se referenciar nelas de maneira positiva, tal artifício faz que tais
conhecimentos estejam tão distantes, que mesmo pessoas que vivenciam religiões
que se comunicam em sua origem não consigam se ver e aprender umas com as
outras. As religiões de matriz africana são diversas e possuem universos simbólicos
distintos teologicamente falando e próximos, pelo processo de enfrentamento e
resistência que ambas tiveram para se perpetuar frente ao racismo colonial que a elas
foi imposto. É preciso entender como esse colonialismo age para que possamos
desconstruir suas estratégias e descolonizar nossa visão de mundo que está
embebida em suas formas, combatendo assim a segregação de suas mitologias e
construindo o diálogo e o reconhecimento entre elas.
Na pergunta nove indago: “No que se refere as religiões de matriz africana,
quais conhecimentos você possui a respeito?” Irei dividir em dois momentos as
respostas, vejamos o primeiro momento: “é a religião que acolhe, independentemente
de sua identidade de gênero, o sagrado é divino!” (PR); “conheço introdutoriamente a
cultura yorubá.” (SC); “frequento” (SC); “a melhor” (RJ). Nesse primeiro momento
reconheço a valorização da positividade própria da religiosidade pertinente a essas
confissões religiosas, destacando principalmente o acolhimento e a sensação
proporcionada pelo acolhimento dado pela religião àqueles que a buscam, bem como
a sincera referência da participante de Santa Catarina quando revela seu pouco e
introdutório conhecimento sobre o que vem aprendendo em seus estudos e constante
busca por construir um conhecimento aquém da ótica colonialista.
No segundo momento temos as seguintes falas: “que precisamos tirar o
véu do preconceito em se tratando de conhecimento, para as filhas da nossa casa.”
(PA); “pouco conhecimento” (SC); “antes de entrar na religião eu achava que eram
demônios” (PE); “que era uma religião muito perseguida por falta de informação ou
informações distorcidas.” (RJ); “algo muito misterioso e talvez algo que eu temia” (SP);
“muito pouco, mas sempre fui contra a intolerância religiosa.” (PR); “também tinha
preconceitos” (PA). Tais relatos mostram que o colonialismo não é algo pontual e não
alcança apenas mentes fracas e desprovidas de conhecimento, mas a maioria da
nossa população; que orientada por uma formação religiosa ou não, absorve os
efeitos do colonialismo que se desenvolvem pelo senso comum em nossa sociedade.
O racismo, por vezes, não se apresenta de formas direta, é velado, manifesta-se em
brincadeiras, referências maldosas e pela falta de habilidade perpetuada em nossa
sociedade em dar o trato devido ao tema. Existem pedagogias que se dizem
humanizadas, mas que colocam a questão racial em segundo, terceiro plano ou para
o momento que for possível.
“A descolonização é realmente a criação de homens novos, no entanto,
essa criação não recebe sua legitimidade de nenhuma força sobrenatural: a «coisa» 21
colonizada converte-se, no homem, no próprio processo pelo qual ele se liberta”
(FANON, 1965, p. 18). A fala de Fanon (ibidem) traduz o movimento pelo qual
passamos quando nós nos reconhecemos na condição de colonizado, não
conceitualmente, mas na prática, quando entendemos que o que nos foi ensinado era
a tentativa de apagar parte de mim enquanto colonizado, parte da referência cultural
que me identifica. Nos tornamos pessoas novas, não por meio de uma revelação do
divino, acontece pelo reconhecimento de mim naquilo que me foi negado. Minha
ancestralidade negra foi ressignificada no novo continente. Não sou apenas africano,
apenas indígena ou europeu, sou esse conjunto de referências que representam a
diversidade brasileira.
Dentre as pessoas que estão nesse segundo grupo temos uma sacerdotisa
de uma religião afro que é uma pessoa branca, e que pela realidade social, hoje insere
novas identidades a esse universo mítico religioso. Percebemos isso quando ela
escreve sua resposta descrevendo seus filhos e filhas na fé por meio de uma
linguagem neutra que busca suprimir os artigos que definem gênero para inseri-los

21 Aspas do autor.
em um ambiente que, segundo ela, é capaz de acolhê-los independentemente de
como cada um desses indivíduos se reconheçam.
Na pergunta dez: “Na sua opinião conhecimento sobre os mitos iorubanos
ajuda a combater o preconceito contra as religiões de matriz africana? Por quê? Nas
respostas dessa pergunta não irei fazer nenhuma colocação ou referência teórica,
entendo que pela profundidade das respostas, elas falam por si, irei suprimir apenas
as respostas monossilábicas e reescrever as demais, sendo importante salientar que
as respostas mesmo que monossilábicas apresentam um teor positivo frente a
indagação, no sentido de apontar o caráter positivo na utilização dos mitos.
As respostas são as seguintes: “o conhecimento é o caminho!!” (PR); “claro!
onde há conhecimento não há lugar para achismos e preconceito. Os mitos iorubanos
trazem muitos ensinamentos para a vida e revelam algo que está no nosso
inconsciente.” (SC); “sim!, porque conhecimento desmistifica o preconceito” (SC);
“após conhecer melhor quem são os orixás, você sai com vontade de mostrar para as
pessoas a importância desta oficina em outros espaços que não só o espaço de
terreiro.” (PA); “sim!, pois são importantes na construção da identidade de nosso país.”
(PR); “sim!, me fizeram conhecer sobre os mitos a que eles cercam” (PE); “sim!,
porque pude conhecer mais sobre a religião,” (RJ); “sim!, a oficina ampliou minha visão
sobre as religiões de matriz africana, pois a abordagem me levou a desconstruir
preconceitos e mudar o olhar.” (SP); “com certeza!, ela é linda, cheia de simbolismos
e significados” (PA).
Tais falas contemplam a proposição e importância desse trabalho, a ponto
de me debruçar sobre e transformá-lo como resultado de trabalho dentro do programa
em Ciências da Religião, para que uma metodologia aplicada possa servir como
referência possível de aplicação epistêmica e metodológica dentro da área. Sigamos
para nossa próxima questão.
A Pergunta onze questiona: você considera importante conhecer a
mitologia de uma cultura? O que a mitologia iorubana mostrou para você?
Respostas: “muito rico, histórico” (PA); “uma fonte imensa de riqueza
cultural e espiritual.” (SP); que deveriam ser mais estudadas pelas pessoas que não
pertencem as religiões de matrizes africanas, para que o preconceito possa ser
combatido com informações.” (RJ); “O curso nos faz ver alguns preconceitos
existentes sobre a matriz africana” (PE); “cultura obrigatória” (RJ); “que seria muito
bom se fosse um projeto para as escolas. Inserido no dia a dia dos alunos.” (PA);
“força da ancestralidade e formação da cultura brasileira” (SC); “resiliência e justiça.”
(SC); “conhecer e aprofundar-se!!!” (PA).
O indicativo positivo de que os mitos podem e devem ser aplicados em
ambientes educacionais, através de uma leitura conceitual da mitologia iorubana por
parte das participantes da oficina, nos referência como salvo-conduto a prosseguir e
aprofundar de maneira qualitativa a mitologia iorubana no formato de traduzir uma
forma de saber ancestral africano, para promover a descolonização nos ambientes
onde puder levá-los.
Sobre a Pergunta doze: “Na sua opinião os mitos iorubanos têm alguma
semelhança com as mitologias de outras culturas? Destaco as seguintes respostas:
“todo mundo se conecta quando é do bem” (RJ); “que todos são divindades
(entidades) para seu povo.” (RJ); “estreita relação” (SC); “alguns aspectos do
inconsciente coletivo e os arquétipos sim, porém com suas especificidades culturais.”
(SC); “algumas semelhanças!” (PR); “todos são mitos, porém os africanos são vistos
com um olhar preconceituoso, apesar de serem lindos” (PA); “nossa sociedade
ocidental valoriza demais a mitologia greco-romana e dá pouco espaço para as outras
mitologias.” (SP); “existe uma correlação, porém o que afasta é o racismo.” (PA); “os
mitos dos africanos são vividos pelas religiões de cultura africana e os mitos gregos
são apenas mitos” (PE).
Irei me ater as três últimas respostas, quando a participante paulista diz
que valorizamos muito a cultura greco-romana ela está evidenciando a necessidade
de traduzir como superior a cultura ocidental, que tem sua tradição filosófica orientada
nessas referências culturais em detrimento a uma infinidade de cosmovisões
espalhadas pelo mundo, o ocidentalismo impõe a falsa ideia de que tudo que está fora
desse reduto iluminado está em desacordo com o que é bom ou evoluído, afinal o
logos grego e força romana inspiraram e inspiram o mundo moderno ocidental que
teve sua origem durante o colonialismo.
O projeto colonial deu início a uma versão racializada de sociedade,
homens passaram a subjugar outros homens por causa de suas origens e cor de pele,
pelo fato de como viam e interagiam com o mundo sob uma ótica que não a europeia,
esse racismo mantem-se até os dias atuais por meio da visão inferiorizada depositada
sobre essas culturas, o racismo não só inferioriza, mas demoniza e termina por
desumanizar a visão africana de mundo, por esse motivo temos a noção, da
informação trazida pela última resposta. O fato de tratarmos toda literatura que
representa a religiosidade de um grupo, sendo ela vivenciada em nossos dias ou não,
não diminui seu valor no plano educacional.
O ensino religioso deve ter como princípio a equidade no trato as religiões,
adequando sua linguagem as demandas sociais e valorizando as referências pessoais
dos educandos, o mito aqui não é uma verdade de fé. É respeitada como tal, mas
equivale-se a qualquer outra proposta religiosa de traduzir a vontade do divino, do
mesmo modo que é a bíblia sagrada para os cristãos e o corão para os islâmicos.
Entro então em uma discussão que pretendo aprofundar no próximo
capítulo sobre afroteologia, um conceito que significa o que acabo de descrever para
o entendimento da mitologia das diferentes teogonias religiosas na busca de
desqualificar a exclusividade judaico cristã em observar seus textos sagrados, e dá
visibilidade a leitura e interpretação filosófica aos saberes contidos nas religiões de
tradição oral afrocentradas, como é o caso do candomblé keto do qual utilizo sua
mitologia para observação, aplicação e reflexão de seus conteúdos, vejamos o que
Carvalho (2020) nos diz:

Essa concepção do autor me leva a refletir sobre a relação entre teologia-


filosofia-ontologia, na medida em que a teologia, ao formular os conteúdos
racionais das narrativas míticas, pode contribuir para nos fazer compreender
os elementos filosóficos imersos nos mitos, nos ritos e nos símbolos das
diversas tradições. E para entender como essa compreensão pode nos
informar sobre as formas de ser, de pensar, de agir, de sentir dos diversos
povos, ou seja, a constituição ontológica, ética e epistemológica do ser no
mundo. Em outras palavras: entender como os seres humanos se constituem
e se concebem. (CARVALHO, 2020, p. 75)

A leitura mítica, portanto, pode ocorrer sobre toda e qualquer literatura


religiosa, como referência “ontológica, ética e epistemológica” (ibidem) na intenção de
a cosmovisão que as orientam sociocultural e religiosamente.
A pergunta treze reflete: “Você acredita que os mitos dos Orixás devem ser
utilizados como recurso de ensino para combater o preconceito/ racismo nas escolas?
Se possível comente um pouco.” Encontramos as seguintes respostas: “que temos
que respeitar todas as culturas” (PE); “que todos nós quanto brasileiros deveríamos
aprender mais sobre os alicerces que construíram o nosso país.” (PA); “conhecer mais
das culturas africanas nos permite entender muito melhor nosso lugar, nossa cultura
e nosso povo.” (SP); “com certeza! Conteúdo riquíssimo no contexto escolar!” (PR);
“claro. Os mitos apresentam vários princípios que na essência todos sentimos e
vivemos emoções semelhantes. Somos todos humanos com diferentes formas de agir
e também iguais.” (SC): “sim, pois amplia a representatividade e desmistifica a ideia
de que religião de matriz africana é usada para fazer mal para as pessoas” (SC); “com
certeza. Defendendo a importância da cultura africana para o nosso país.” (PR); “que
devemos respeitar todas as religiões e exaltar as culturas populares.” (SP); “tudo de
bom para passarmos adiante” (RJ).
Nesse ponto, percebo o quanto essas pessoas, na sua maioria não
praticantes das religiões herdadas dos povos tradicionais, conseguem enxergar de
maneira positiva o conteúdo de uma religião, que como vimos em respostas
anteriores, causavam medo e receito; eram vistas pela ótica do preconceito e da
discriminação. A naturalidade com que tiveram contato com os arquétipos existentes
no panteão iorubano, de Exu a Nanã, conseguiram conhecer sem se sentirem
atacados ou pressionados a verem o que não queriam. As respostas aqui
reproduzidas, foram realizadas com no mínimo um ano de diferença da última oficina
até o momento em que os convidei a responder esse formulário, não existia a emoção
do momento ou outra impressão superficial que não pudesse através do tempo ter
sido refletida por parte dos participantes. Dentre as pessoas que responderam,
existem pessoas que fizeram a oficina em 2018 (SESC Vêr-o-Peso), 2020 (Barracão
do seu Zé), 2021 (Arte da palavra), 2022 (Arte da palavra). Acredito pelos relatos aqui
expostos que os resultados em observar a cultura iorubana, presente nas tradições
africanas perpetuadas no Brasil, deu um novo olhar a essas pessoas sobre o universo
simbólico negro.
Na pergunta quatorze questiono: “A oficina Universo das histórias africanas
ajudou em qual sentido você a observar as religiões de matriz africana e os conteúdos
vivenciados por elas observados através de seus mitos?”
Das respostas: “sim, por conhecer novas culturas” (PE); “que devemos
levar para outros espaços estas oficinas.” (PA); “sim, despertou em mim o interesse
de conhecer mais e fazer relações com o que recebemos como cultura e aceitamos
como ‘universal’ (SP); “sim, de deixar as porteiras do conhecimento abertas” (PA);
“Saber sobre nossa existência, arquétipos e missões!!!” (PR); “ajudou a pensar a
humanidade com suas subjetividades e práticas.” (SC); “relação com ancestralidade
e natureza” (SC); “descobrir o discurso preconceituoso alimentado pelo racismo
estrutural.” (PR); “sim, que devemos respeitar todas as religiões.” (RJ).
Quando discutimos sobre descolonialidade, estamos tratando da
possibilidade de perceber o outro, de dar voz a uma leitura de mundo que nos foi
cerceada, mas que é tão nossa quanto a europeia, a indígena. Os povos africanos
estão presentes no nosso dia a dia, na culinária, na linguagem, na música. O legado
africano não serve só para entreter o mundo, mas para ensinar também, mostrando
outras possibilidades a se seguir, outras formas de ver, sentir e interagir com o mundo.
Quando conseguimos ver o outro que sempre esteve do nosso lado, nos perguntamos
como nunca tínhamos percebido antes. O racismo cega, limita, tenta destruir e
invisibilizar o outro. O momento em que voltamos a olhar para as diferenças dos
indivíduos não vemos mais inimigos, mas pessoas que assim como nós buscam se
localizar no espaço mundo. Se deixarmos as porteiras abertas para o conhecimento,
como disse uma das participantes, passamos a respeitar e a enxergar o outro. Fanon
nos diz que “a descolonização é simplesmente a substituição de uma «espécie» de
homens por outra «espécie» de homens.” (FANON. 1965, p. 18)
Quando superamos a universalização do conhecimento, a falsa ideia de
que existe apenas uma fonte de conhecimento e mais, quando achamos que essa
fonte do conhecimento é branca unicamente, existe para o descolonizado uma nova
espécie de “homens”, eles são negros, tem milênios de história e saberes disponíveis
para serem acessados por todos que passem a vê-los não como inimigos, não como
inferiores, não como o mal, mas como homens na dimensão ontológica da palavra.
Pergunta quinze: “Você acredita que irá enfrentar resistência ou algum tipo
de preconceito ao utilizar os mitos africanos em sua prática profissional ou ambiente
doméstico? Como pretende lidar com isso?”. Respostas: “sim, acredito que ainda há
muito preconceito em ralação a tudo relacionado às religiões de matriz africana, mas
vejo como importante a missão de todas as pessoas, especialmente educadores/ras,
de trabalhar para desconstruir esses preconceitos.” (SP); “sim. Acredito que vou
enfrentar resistência na escola onde trabalho, por a mesma estar inserida num
ambiente predominantemente de pessoas da religião cristã, que já demonstram um
certo afastamento das informações sobre África.” (RJ); “ainda não” (RJ); “sempre”
(SC); “sim, pretendo lidar com isso utilizando os meus conhecimentos sobre a
valorização dos mitos africanos para a nossa cultura pois esses mitos possuem
funções importantes, em especial, por explicarem a origem da terra, do ser humano,
fundamental para a nossa construção social e cultural. Função pedagógica e social.”
(PR); “conhecimento bem justificado deve ser usado para combater preconceito” (SC);
“agindo com conhecimento de causa, com estudo e algum humor” (SC); “em minha
sala de aula já encontrei muita resistência por parte das crianças e dos pais. Uma vez
que a religião evangélica é predominante.” (PR); “já enfrentei” (PA); “sim, sempre!”
(PA); “sim sou professora e a cultura evangélica é a que impera nas escolas” (PE).
Há muito já debatemos aqui sobre o triste fato de a comunidade evangélica
ser a principal referência em propagação da perseguição contra religiões de matriz
africana, não à toa, nos primeiros capítulos utilizo a minha experiência de vida para
demonstrar como funciona a colonização do olhar de um indivíduo orientado por uma
visão evangélica não reflexiva a respeito de temas raciais como os que estamos
desenvolvendo aqui. Assim como eu, existem outros cristãos que buscam superar
essa visão desrespeitosa, racista e que fere os princípios deixados pelo próprio Cristo.
Esse grupo de mulheres brancas com uma outra visão religiosa, que não
predominantemente cristã, nos traz um outro horizonte, a quase totalidade das falas
já reconhecem o enfrentamento e tem proposições, ou mesmo já enfrentaram e
entendem que isso é um processo natural na luta pela descolonização, pelo combate
contra o racismo. Quando vejo a resposta “sempre!”, destaca-se por mostrar que em
um país onde o racismo é real combatê-lo torna-se um hábito entre os que acreditam
numa sociedade melhor e mais humanizada.
Como muitas falas afirmaram acima, concordo com a ideia de que o
conhecimento é o melhor caminho para o combate perene ao colonialismo, dessa
versão reduzida de sociedade. O conhecimento deve ser o caminho para nossa
transformação, e desmitificar a cultura afro-brasileira é dar um passo em direção a
conhecer a nós mesmos através da nossa ancestralidade negra.

3.3. PARTICIPANTES AUTODECLARADOS NEGROS/PARDOS/CRISTÃOS E OS


MITOS IORUBANOS.

Nesse grupo irei observar as respostas das pessoas que se autodeclaram


negras e se confessam como praticantes de alguma confissão cristã. Reitero que
entre os grupos considerados cristãos estão todos aqueles que tem a bíblia cristã
como cânon sagrado, tais como católicos, evangélicos e Kardecistas. Nesse grupo
responderam um total de 9 pessoas que correspondem ao arquétipo definido, todas
participaram da oficina e são na sua maioria de diferentes estados, sendo apenas
duas delas oriundas de um mesmo estado, o estado do Pará.
Das perguntas.
Pergunta quatro: “Qual o seu interesse ao participar da oficina universo das
histórias africanas?”
Como respostas: “as indicações dos amigos e a temática muito
interessante. Sou bibliotecária e preciso repassar informações sérias, verdadeiras e
confiáveis. Acho lindas as histórias dos orixás e fui aprender mais.” (AL); “angariar
conhecimento e auxiliar na desconstrução do racismo e da intolerância religiosa.”
(PR); “estudo e troca de conhecimento” (DF); “sou pesquisadora das culturas
africanas e contadora de histórias.” (PA); “aprender cada vez mais sobre o mundo das
religiões” (SC); “entender sobre os arquétipos da cultura yoruba” (RS); “quando fiz
minha inscrição foi para ter o conhecimento sobre o assunto e tirar o preconceito, sair
da ignorância. Foi muito gratificante participar” (SP); “conhecer técnicas e práticas
para contação de histórias e a ter um contato maior com as histórias dos meus
ancestrais” (MA); “conhecer melhor minhas origens” (PA).
Considero relevante salientar que não é pelo fato de a origem étnica dos
participantes desse grupo ser a mesma das comunidades de matriz africana que
existe o conhecimento a respeito dos mitos iorubanos. A mitologia e a cosmogonia
africana não são temas conhecidos entre esses participantes. Existe na verdade muito
distanciamento e ausência de informação; e muitos, através da oficina, deram seus
primeiros passos em direção a mitologia negra. Todavia, apesar do distanciamento,
afirmaram que através do conhecimento adquirido se conectaram com sua
ancestralidade. Buscavam sair da ignorância, almejavam informações verdadeiras e
confiáveis.
Buscavam nas oficinas o reencontro com sua própria história, por meio das
memórias de sua ancestralidade. Através do método da contação de histórias, numa
proposta orientada pela análise dialógica, os participantes conseguem ressignificar
sua visão sobre a simbologia presente nas religiões desenvolvidas no Brasil e que são
referência ao povo negro. Os participantes desse grupo são cristãos, e pela
predominância da formação religiosa, tem uma ausência maior de informações a
respeito do assunto assim, encontraram na oficina a possibilidade de suprir essa
ausência, e ao se permitir ouvir falar sobre o tema, deram início a uma jornada de
desconstrução do racismo imposta pelo ocidentalismo colonial.
Questão cinco: “quais conhecimentos você tinha sobre a África?”
Respostas: “básico de escola” (PA); “alguns conhecimentos sobre a história e cultura,
sobre a mitologia dos orixás” (MA); “que a África é um continente” (SP); “que são
muitas culturas diferentes, mas que se encontram mal atualmente” (RS); “músicas,
religião, costumes bastante coisas a maioria aprendi através das oficinas” (SC); “nós
somos fruto das culturas africanas, indígenas e europeias. Por conta do processo de
colonização fomos impedidos de conhecer as heranças indígenas e africanas devido
a imposição da cultura do colonizador europeu. África é um universo de
conhecimentos, culturas, filosofias e tantas outras coisas. Temos muito ainda para
aprender sobre e com o continente para entendermos melhor quem somos...” (PA);
“já estudo a algum tempo, mas nunca sei o suficiente. O continente africano é tão rico
e amplo” (DF); “que é onde ocorreu a origem de todos os povos. Um continente
exuberante em natureza e de vastidão de diversas culturas que originaram muitos
costumes, religiões e cultura do Brasil e do mundo. Além de sido um continente
marcado historicamente pela escravatura.” (PR); “que não é um país e sim um
continente de lindos guerreiros e guerreiras com força incrível” (AL).
O reconhecimento e a valorização da grandiosidade do continente africano
presente em alguns relatos, contrasta com algumas leituras bem introdutórias a
respeito do tema. Precisamos evidenciar a necessidade de o tema África ser
constantemente observado em nossa formação nacional, buscando assim uma leitura
que favoreça o entendimento de nossa ancestralidade de lá herdada. Para tal
precisamos descolonizar a falsa ideia de que os povos tradicionais africanos, a versão
indígena africana seja vista como algo primitivo e inferior, mas acenar a essas culturas
com o olhar da ancestralidade por meio de uma percepção que reconheça essas
culturas como uma outra maneira de racionalizar a realidade, diferente da maneira
ocidental. Não se tratam de propostas antagônicas, mas diferentes, cada uma com
sua leitura de mundo e que precisam ser respeitadas dentro das suas especificidades.

Nas sociedades de tipo capitalista, o ensino, religioso ou laico, a formação de


princípios morais transmitidos de pais para filhos, a honestidade exemplar de
trabalhadores condecorados após cinquenta anos de bons e leais serviços, o
amor encorajado pela harmonia e pela prudência, essas formas estéticas do
respeito à ordem estabelecida criam em redor do explorado uma atmosfera
de submissão e de inibição que diminui consideravelmente as forças da
ordem. Nos países capitalistas, entre o explorado e o poder interpõe-se uma
multidão de professores de moral, de conselheiros, de «desorientadores».
(FANON, 1965, p. 19)

Fanon (ibidem) deixa claro como a percepção de mundo da pessoa


colonizada é direcionada pelo conjunto de espaços, ambientes, valores morais e
éticos, que conduzem a uma forma especifica de ver o mundo, o colonizado passa a
entender e se relacionar com a realidade sob a ótica do colonizador, não são nossas
origens, mas onde aprendemos o que é segundo eles, os brancos ocidentais, é o certo
ou o errado a compreendido. A submissão é imposta por meio de uma coerção social,
não mais por leis, o colonialismo não desfruto de poder pleno atualmente, mais através
de naturalizações sociais que impõem uma versão social a ser seguida. A ideia de
demonização das religiões cristãs não está na constituição, mas constitui o imaginário
social de brasileiros que absorveram essa visão do colonialismo cristão ocidental.
Entendo que a alguém que busque novas orientações fora do modelo
tradicional de educação que preserve o medo e o distanciamento da religiosidade
africana encontre dificuldades em perceber se estão certos ou não os conteúdos que
estão sendo apreendidos. Os títulos nos falam muito em nossa sociedade, os mitos
iorubanos nos ensinam que é importante aprender com a espiritualidade, com a
natureza, com os mais velhos. É preciso ensinar que o melhor conteúdo está nas
mãos daqueles que o vivenciam, o produzem no seu dia a dia. É preciso demonstrar
que nem sempre, o portador do título acadêmico, nos moldes europeizados, possui o
conhecimento para orientar a uma visão mais próxima de nós mesmos. Faz-se
urgente revelar os “desorientares” como define Fanon (ibidem) e mostrar que o
verdadeiro aprendizado estar em ouvir nossos iguais que confessam e vivem uma
outra fé religiosa, para que eles possam dizer quem são e o conjunto da sociedade
possa aprender a dialogar e se respeitar através do autorreconhecimento pelos
diferentes, religiões diferentes não nos devem fazer pessoas diferentes, mas pessoas
que possuem fés distintas e caminham em direção ao respeito e ao diálogo.
Pergunta seis: “O que os Orixás representam para você?”
Respostas: “a representação das forças da natureza e deuses que guiam
seus povos com força e honra.” (AL); “são entidades simbolizam a fé afro-brasileira
no candomblé e representam as manifestações da natureza.” (PR); “são seres
cuidadores que influenciam na vida das pessoas.” (DF); “são a cosmologia de África.”
(PA); “são deuses da religião africana” (SC); “ciência, deuses africanos que nos
constituem enquanto seres” (RS); “divindades que representam a natureza, força e
justiça” (SP); “forças que regem as religiões de matriz africanas” (MA); “divindades”
(PA).
A referência ao reconhecimento das divindades iorubanas é um passo
importante para caminharmos em direção ao diálogo, reconhecer a fé do outro, não
tolerar. Reconhecer, é um ato de respeito e de visibilização do outro. Não é preciso
ter a mesma confissão religiosa para que se entenda que a fé alheia deve ser
respeitada, a intenção do trabalho com a contação de histórias e na qualidade de
cientista das religiões permite dialogar com analogias que mostram como toda e
qualquer religião deve e merece ser respeita, mesmo acreditando que essa postura
deveria ser humana, ética, para um bom viver social, por vezes é preciso mostrar
sobre uma ótica conceitual como o ver o outro de maneira respeitosa remete a um
ideal de respeito como o que estamos trabalhando nesse projeto.
Pergunta sete: “O que você aprende ou aprendeu a respeito dos Orixás na
sua religião? Qual a sua opinião sobre?
“Aprendi que são manifestações do mal. Eu acredito que são canais
diferentes de alcançar o divino.” (PA); “não aprendi nada sobre os orixás na minha
religião, mas aprendi em minhas pesquisas voluntárias sobre a história e cultura
africana” (MA); “que são demônios, do mal. Eles usam da nossa ignorância para nos
dominar, para o poder ser da igreja católica, mas conhecendo a história da igreja
católica...” (SP); “diz que fazem parte de nós e estão em todos os lugares” (RS); “na
minha matriz fala sobre eles serem demônios, mas na verdade isso é uma grande
besteira sei bem que são deuses na minha eles veriam em uma linhagem de santos”
(SC); “para o cristão evangélico tudo o que está fora da bíblia judaico cristã é o
demônio. Eu acho que a religiosidade leva ao radicalismo e impede cristãs e cristãos
de conhecerem e vivenciarem outras cosmologias.” (PA); “acho que tudo que for
melhorar a vida dos seres é bom.” (DF); “no passado já ouvi horrores chegando a
satanizá-los. Acho uma falta de respeito e ignorância.” (PR).
Destaco aqui o reforço da informação do quanto as religiões cristãs buscam
conduzir nosso olhar para uma versão demonizada da religiosidade africana, mas que
felizmente muitos cristãos já caminham no sentido de libertar dessa perspectiva,
estabelecendo seus próprios conhecimentos a respeito do assunto e não se
permitindo conduzir por guias cegos que caminham na direção da deseducação e
alienação étnica dessas pessoas pretas. O reconhecimento de que infelizmente o
colonialismo cristão restringiu nossa percepção sobre nós mesmos, enquanto nação
formada por pessoas negras, com origem num imaginário tão rico quanto o iorubano.
Pergunta oito: “Você conhecia os Orixás iorubanos antes da oficina? O que
você entendia a respeito? Respostas: “conhecia sim, mas não com tantos detalhes e
histórias.” (PR); “não. A oficina foi muito rica.” (AL); “sim algumas coisas” (DF); “sim,
já conhecia.” (PA); “já sim, um dos melhores que já conheci” (SC); “sim alguns” (RS);
“não conhecia, não sabia da diferença da religião do candomblé e umbanda. Foi nessa
oficina que tive a oportunidade de ter esses conhecimentos.” (SP); “sim conhecia, a
história da criação do mundo através da mitologia dos orixás.” (MA); “sim, entendia
que são formas divinas mais próximas dos humanos e da natureza.” (PA).
Nesse grupo de pessoas negras e cristãs temos uma boa referência a
respeito das divindades africanas, são pesquisadoras/res da religiosidade em sua
maioria, mas é interessante perceber como aqueles que acessaram a informação pela
primeira vez se sentem favorecidos com o conhecimento obtido, sentem-se bem em
desvelar algo que parecia oculto, reconhecem como verdadeira riqueza a absorção
de tais conhecimentos, por isso entendo que toda prática educacional em direção a
descolonização do olhar é difícil, mas necessário para auxiliar pessoas que queiram
descontruir seus medos e preconceitos.

A cidade do colonizado, a cidade indígena, a cidade negra, o bairro árabe, é


um lugar de má fama, povoado por homens também de má fama. Ali, nasce-
se em qualquer lado, de qualquer maneira. Morre-se em qualquer parte e não
se sabe nunca de quê. É um mundo sem intervalos, os homens estão uns
sobre os outros, as cabanas dispõem-se do mesmo modo. A cidade do
colonizado é uma cidade esfomeada, por falta de pão, de carne, de sapatos,
de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade agachada, de joelhos,
a chafurdar. É uma cidade de negros, uma cidade de ruminantes. O olhar que
o colonizado lança sobre a cidade do colono é um olhar de luxúria, um olhar
de desejo. Sonhos de possessão. (FANON, 1965, p. 20)

Faz-se necessário construir uma outra percepção sobre nossa realidade


atual e histórica. Não podemos olhar a cultura ocidental, mesmo que predominante
em nossa sociedade, como superior e muito menos exclusiva. A versão de pessoa
que Fanon (ibidem) descreve é a do colonizado que não vê em si e na memória do
seu povo. A demonização, a inferiorização de nossa ancestralidade, precisa ser
combatida como estratégia de libertação dos racismos impostos pela colonização.
Depositamos nossos desejos, no mundo ocidental pois só nos foram apresentadas
suas formas, sua maneira de ver, a partir do momento em que a comunidade negra
reconhece os saberes construídos pelos nossos ancestrais africanos, reconhece e
aprende que esses saberes que nos foram ditos serem a representação do mal, são
na verdade apenas uma outra forma de ver e interpretar o mundo. Consegue-se
promover outra percepção de si entre essas pessoas, por isso é preciso descolonizar
para que a comunidade negra possa ver por meio de arquétipos tão profundo e
positivos como os presentes nos mitos dos Orixás.
Pergunta nove: “No que se refere as religiões de matriz africana, quais
conhecimentos você possui a respeito?” Respostas: “apenas o básico” (PA); “que o
mundo por Obatalá e Oxalá criou os humanos, que a força do está no seu ori.” (MA);
“sempre quis saber sobre as religiões de matriz africana, mas o preconceito me
atravessa, por ignorância mesmo, depois da oficina algo de muito poderoso me
despertou, continuo pesquisando, sei que tem a ver com minha ancestralidade.” (SP);
“que são lugares de potência e aprendizagem para a vida fala sobre respeito,
comunidade” (RS); “antes eu sabia de muita, mas tinha algumas dúvidas, mas depois
da oficina tudo mudou” (SC); “sempre achei que as religiões de matriz africanas têm
muito para ensinar sobre amor e nossa relação com a Pachamama.” (PA); “eu já tinha
curiosidade e admiração. E quanto mais conheço, mais gosto.” (DF); “sempre fui
curiosa e a oficina me ajudou a descobrir mais lindezas.” (AL); “tinha uma boa
impressão por serem ricas de cultura e luta.” (PR).

O candomblé é considerado uma religião monoteísta, haja vista que, dentro


da sua estrutura filosófica e religiosa, entende-se que existe apenas um Deus
criador, único, supremo, o qual para as nações83 Ketu, Bantu e Jeje, é,
respectivamente, Olórun, Zambi e Mawu. Entre o Deus supremo e os seres
humanos, há os Orixás, os Inquices e os Voduns, denominação das
divindades, que são os ancestrais simbolicamente divinizados e ligados à
natureza, que viveram as mesmas experiências dos homens (BENITE et. al.,
2019). (LOPES; FREITAS, p. 117, 118)

A leitura afro-teológica apresentada por Lopes e Freitas (ibidem) mostra o


quanto é possível construir analogias proximais entre o cristianismo e o candomblé,
ambas são religiões monoteístas por possuírem a figura de um Deus supremo criador
de todas as coisas. Em ambas as teogonias a divindade suprema ordena que seus
filhos cuidem de sua criação. A intenção religiosa está manifesta em suas mitologias
não na versão que um tem sobre o outro e é isso que precisa ser feito, se faz
necessário conhecer o outro a partir do olhar que seus eles têm sobre si ao invés de
presumir que uma autoridade de outra religião vai tratar com a devida qualidade a
religião do outro, principalmente se essa autoridade vê a religião do outro como
antagônica a sua.
Pergunta dez: “Na sua opinião conhecimento sobre os mitos iorubanos
ajuda a combater o preconceito contra as religiões de matriz africana? Por quê?
Respostas: “sim. Expandiu o olhar fazendo entender que não sei quase
nada de seu conteúdo.” (PR); “sim. Porque quando você conhece a história você
respeita mais. Força” (AL); “cada vez vou desconstruindo conceitos. O que nos
disseram sobre ser algo de mau... na verdade não é.” (DF); “sim, cada vivência amplia
nosso olhar para aquilo que vemos. As trocas feitas durante as aulas levam muitas
reflexões e aumentam nossa percepção de mundo.” (PA); “sim, o professor me fez
enxergar o quanto é linda essa religião” (SC); “sai da ignorância, hoje entendo a força
das religiões de matriz africana, do respeito que eles tem pela natureza, respeito e
amor pela natureza e pela vida, que se tem direito de manifestar sua religiosidade. O
quanto bonito são as histórias dos orixás.” (SP); “sim, porque quando conhecemos,
nos sentimos acolhidos e representados.” (MA); “sim, porque trazem um olhar
religioso que se distância da imagem demonizada propagada pelo cristianismo.” (PA).
É possível perceber que na maioria das falas existe um movimento do antes
e depois, fruto da ausência de conhecimentos profundos a respeito do tema. Na
pergunta número 8 a maioria diz conhecer sobre os mitos dos Orixás, mas não dizem
o que esse conhecimento provocou nelas, já durante as respostas da questão dez
podemos ver o destaque a dado a como existe uma ressignificação no olhar, não basta
só saber que existem, como algo distante, longe de nós, se faz necessário ver de fato,
observar com o devido cuidado e respeito que essa mitologia merece, assim
qualificamos o nosso olhar sobre o outro e sobre nós mesmos, tendo em vista que
desconstruímos o mal dos preconceitos que foram impostos pelo modelo de
socioeducacional e religioso predominante em nosso país.
Pergunta onze: você considera importante conhecer a mitologia de uma
cultura? O que a mitologia iorubana mostrou para você?
Respostas: “tudo a sensualidade das mulheres o poder que elas tem a força
de cada um deles a história e um mundo maravilhoso” (SC); “conhecer a história dos
mitos africanos, me despertou a conhecer e pesquisar sobre. Desmistifiquei a minha
mente colonizada, preciso estudar mais, e isso é retornar e respeitar minha
ancestralidade e entender meus antepassados. Ouvir a voz dos meus antepassados
que estava sufocada é isso que significa para mim em sobre os mitos africanos” (SP);
“sim, a importância de respeitar nossos ancestrais e de cuidar do meu ori.” (MA); “sim,
que somos preconceituosos com aquilo que não conhecemos.” (PA); “sem os mitos
só nos caberiam as informações cientificas, mas elas não são o suficiente nos
tornarmos pessoas melhores...” (PA); “que é uma riqueza sem fim. Todos deveriam
conhecer” (DF); “força. Resistência. Ancestralidade e beleza.” (AL); “o que mais
aprecio e me impressiona é a relação estreita e direta com a natureza fauna/flora e
humana.” (PR).
Os resultados aqui revelados causam profunda satisfação, a natureza dos
relatos, por se tratar de pessoas de confissão cristã, me revelam profundo diálogo dos
conteúdos ministrados com a realidade dos participantes. Sou levado a cada vez mais
na direção de levar meu trabalho a mais pessoas. Nunca foi minha intenção falar sobre
esse tema ao entrar no PPGCR, mas dentro do diálogo estabelecido com minha então
orientadora, à época, a professora Taissa Tavernad de Luca, fui direcionado a
desenvolver esse trabalho. Transcrever as respostas dos participantes me apresenta
de maneira qualitativa os resultados alcançados, essas falas eram para mim
comentários soltos, aleatórios, demonstração de afeto construídas pela relação criada
durante as oficinas, ver esses relatos sendo trazidos depois de um tempo longo de
distanciamento me ensina que a educação de fato pode ser um caminho, e que o
método da contação de histórias é uma linguagem lúdica capaz de acessar as
pessoas de forma intima e profunda.
Pergunta doze: “Na sua opinião os mitos os mitos iorubanos têm alguma
semelhança com as mitologias de outras culturas?” Respostas: “não sei responder
direito, mas acredito que os mitos de ambos buscam na natureza alguma
compreensão para a vida humana e o mundo.” (PR); “representações de força e entes
que se relacionam a sua época.” (AL); “eles se completam, devemos conhecer os
dois” (DF); “uma delas é que em ambas há divindades específicas para elementos da
natureza.” (PA); “sim, muitas como o mito da criação do homem” (MA); “não sei
responder” (SP); “em relação bem semelhante pois ambos falam do poder dos deuses
e da influência que eles têm” (SC).
Os arquétipos mitológicos precisam ser trabalhados com maior cuidado
para favorecer uma leitura mais proximal de referências mais conhecidas, mais
comum e naturalizadas no imaginário comum. Entendo que analogias mais profundas
entre as culturas proporcionam um entendimento maior e mais rico da cosmogonia
iorubana, acredito que pela dificuldade apresentada pela maioria em relacionar as
caracterizações do divino nas diferentes culturas é fruto de uma leitura não reflexiva,
pelo menos da maioria, das mitologias das outras culturas.
Pergunta treze: “Você acredita que os mitos dos Orixás devem ser
utilizados como recurso de ensino para combater o preconceito/ racismo nas escolas?
Se possível comente um pouco.” Das respostas: “muita coisa como aceitar realmente
quem nós somos, que nossa matriz é africana e não devemos nos envergonhar disso.”
(SC); “conhecer a história de um povo, tirar a invisibilidade de um povo, a religião de
matriz africana faz parte da cultura brasileira e expressar seus cultos é fazer viver a
voz de um povo, a vida a existência.” (SP); “faz toda a diferença principalmente para
passar para as crianças o quanto viemos de seres potentes políticos” (RS); “sim,
permite aos alunos como conhecer culturas diferentes e valorizar as mesmas como
parte de seu cotidiano” (MA); “sim!! Para desmistificar o olhar de inferioridade
destinado as religiões de matriz africana, valorizar nossa ancestralidade e garantir
respeito à diversidade religiosa, a fim de manter a paz.” (PA); “sem passado, sem
olhar para a ancestralidade é impossível entender o presente. Sem entender o
presente, não dá para chegar a lugar algum...” (PA); “Imensa. Propagar os mitos
africanos é cultura.” (DF); “reforçar que a história de cada povo é linda e merece muito
respeito.” (AL); “importantíssima contribuição para o combate à intolerância religiosa,
ao racismo e pela identificação pessoal que sinto de alguma forma, além do prazer de
conhecer as histórias incríveis dos orixás.” (PR).

Dentro da cosmopercepção africana, a ancestralidade é um dos elementos


mais constantes na cultura africana. Os estudos na área mostram que é um
fenômeno presente paraticamente em toda a África, antes da chegada dos
europeus e do processo de colonização. (FILIZOLA, 2020, p. 164)

Os mitos africanos revelam o que os autores aqui definem de


cosmopercepção, uma forma de demostrar que a comunidade africana percebesse o
mundo para além do sentido da visão, superando assim a terminologia limitada de
cosmovisão, considerada incapaz de traduzir a maneira de perceber e interagir com o
mundo nos moldes africanos, a partir do entendimento e conhecimento dos povos
tradicionais. Observamos nas falas apresentadas como respostas que a
ancestralidade é uma leitura necessária para o autorreconhecimento. Quando me
reconheço nos mitos africanos, reconheço a memória do meu povo, das minhas
origens e, portanto, dos meus ancestrais. A ancestralidade é uma concepção africana,
muito comum em diferentes comunidades ancestrais, uma versão diferenciada de
legado ocidental. Para o africano não somos apenas herdeiros, somos
ressignificações temporais de um passado que dentro de uma ordem cíclica se
reconstrói nas rodas do tempo, arquétipos atualizados de uma mítica ancestral que se
relê de acordo com as épocas.
Pergunta quatorze: “A oficina Universo das histórias africanas ajudou em
qual sentido você a observar as religiões de matriz africana e os conteúdos
vivenciados por elas observados através de seus mitos?”
Das respostas: “não determinantemente, pois eu tinha uma certa
familiaridade com os princípios, mas acrescentou e fortaleceu meus sentimentos com
a cultura afro.” (PR); “ganhei mais força e propriedade nos debates e repassei muito
do que aprendi. Combati pais evangélicos radicais.” (AL); “sim. Vou conhecendo
outras formas de conhecimentos” (DF); “sem dúvida que sim. O reconhecimento
sempre nos transforma, primeiro internamente, depois externamente e assim, o
mundo também se transforma aos nossos olhos.” (PA); “ajudou no sentido de
transformar minha perspectiva sobre a diversidade ancestral própria das religiões de
matriz africana.” (PA); “o ato de praticar a fé tem que ser praticado com liberdade e
respeito, tirar o direito de um povo de praticar sua fé, como foi feito e ainda é com as
religiões de matriz africana é uma maneira de exterminar um pouco sua cultura. Tirar
a pessoa da ignorância, fazendo conhecer as religiões de matriz africana, respeitar
todas as religiões e suas práticas e respeitar a vida e o direito de existir.” (SP); “sim,
bastante. A forma de aceitação comigo mesma, de não ter vergonha de mim e dessa
matriz religiosa que me representa.” (SC).
Como grupo de pessoas negras cristãs considero de extrema relevância o
reconhecer-se na abertura de espaço para o outro e durante esse processo
reconhecer a si mesmo, apesar da fé observada ser considerada pela tradição
ocidental, e possivelmente pela maioria das pessoas, como distante e conflitante com
a fé cristã. Os conhecimentos mantidos pelas religiões afro-brasileiras, repassados
durante a oficina, são o verdadeiro merecedor do processo de transformação no olhar
de cada pessoa que fez seu relato acima. Sou grato por também fazer parte desse
grupo de pessoas cristãs e negras que, apesar de tudo, através dos seus conteúdos
conseguiram se desvencilhar das amarras do colonialismo para dialogar com os
saberes iorubanos e assim reconhecer de maneira qualitativa sua ancestralidade
negra.
Pergunta quinze: “Você acredita que irá enfrentar resistência ou algum tipo
de preconceito ao utilizar os mitos africanos em sua prática profissional ou ambiente
doméstico? Como pretende lidar com isso?”.
Respostas: “muitas, bastante na verdade, até hoje” (SC); “sim, o
preconceito religioso mesmo sendo crime é muito forte e praticado por outras religiões,
como dizemos, as religiões querem dominar seus fiéis, não praticando o ato
ecumênico.” (SP); “quero me aprofundar para poder aplicar” (RS); “sim, devido nossa
formação cultural ter como base a cultura eurocêntrica” (MA); “sim, pretendo lidar com
isso através de indicação de leituras e propondo conhecer pessoas que adotam às
religiões de matriz africana para conduzir sua conexão com o divino, a fim de afastar
ideias preconceituosas.” (PA); “enfrentei, enfrento e enfrentarei.” (PA); “sempre, a
ideia cristã impõe que tudo seja coisa ruim. Que leva ao inferno. Um horror.” (DF);
“resistência eu não diria, mas desapreço e preconceito sim. Porém não aprendi o
suficiente ainda para poder aplicar.” (PR).
É comum ver entre os cristãos certa resiliência diante do tema e na
percepção da necessidade de sua aplicação para que outras pessoas possam
construir suas próprias leituras, as amarras do racismo religioso travam de certa
maneira a ação prática por parte de algumas pessoas, isso é razoável, tendo em vista
que não nos desconstruímos de uma hora para outra. A fala dos que já enfrentam e
entendem o poder da palavra contido nos mitos dos Orixás é a demonstração de que
muitos já aplicam e compreendem a necessidade de tratar conteúdos como esse para
transformação de outras pessoas, principalmente negras, que têm importância no
cenário total de brasileiros, como vimos nos relatos entre pessoas de tez branca que
revelaram profunda transformação e reconhecimento de sua ancestralidade africana.
3.4. PARTICIPANTES AUTODECLARADOS NEGROS/PARDOS/ NÃO
CRISTÃOS E OS MITOS IORUBANOS.

Nesse grupo irei observar como pessoas que se autodeclaram negras ou


pardas pertencentes a outros grupos religiosos não cristãos, ou que não confessem
uma fé, se relacionam com os conteúdos dos mitos iorubanos. A intenção é discorrer
sobre as leituras e interações consequentes da realização da oficina com esse
público. Foi possível perceber como pessoas brancas-cristãs se posicionam frente aos
conteúdos, seus dilemas para aplicação e enfrentamentos, a mudança existente entre
o grupo de pessoas brancas-não cristãs que tem uma postura mais aguerrida, mais
determina e consciente do desafio de aplicar esses conteúdos em sua realidade
prática.
Dentro da realidade de pessoas não cristãs temos a totalidade de 17
participantes, sendo que 6 pessoas declaram serem praticantes da Umbanda, 1
pessoa se declarou rastafari, 4 praticantes do Candomblé, 1 participante do culto
Omolocô e 5 pessoas declaram não paraticar uma fé, apesar de uma delas declarar
buscar se conectar com sua ancestralidade como forma de vivenciar sua religiosidade.
Na intenção de perceber como pessoas menos próximas do colonialismo
cristão, mas não isentas de sua influência, lidam com os conteúdos da mitologia
iorubana, quero salientar que a mitologia iorubana não está presente em todos os
cultos afro-religiosos, mas naqueles que tem orientação baseada nessa teogonia,
mais comum entre as religiões candomblecistas referentes aos grupos: Jeje, Keto ou
Nagô22, não impedindo que outros grupos a acessem, mas como base teológica, os
Orixás são cultuados principalmente por essas vertentes da religião (VERGER, 1997;
PARANDI, 2001; 2007). Entre os umbandistas os mitos podem ser algo muito distante,
pois a Umbanda é uma religião diferente do candomblé, muito mais sincretizada com
as tradições cristãs, indígenas e kardecistas. (S. PRISCO, 2012, p. 4). Atenho-me em
trazer à tona tais informações, para que não exista aqui a falsa ideia dos membros
pertencentes desse grupo que tem plena clareza a respeito do tema, e para que não
se julgue previamente como pessoas já plenamente esclarecidas e desalienadas da
versão colonial de sociedade. Mesmo não estando diretamente ligados a grupos

22 São vertentes, tipos de candomblé, divisões por origem de povos, referenciados na matriz cultural
ainda no continente africano.
cristãos o colonialismo tem suas extensões por toda nossa estrutura social. O
enfrentamento do racismo, dentro de uma vida de ataques sofridos pelo processo de
tentativa de demonização e preconceito sofrido pelos praticantes de religiões de
matriz africana, também pode gerar uma postura de distanciamento ao restante da
sociedade, principalmente dos cristãos, pois, essas pessoas, para se defender,
passam a atacar ou não querer se mostrar, presumindo que serão hostilizadas ao
revelarem sua confissão religiosa. Serão notados alguns exemplos desse afastamento
em algumas de praticantes de religiões africanas, entendo que esse distanciamento,
o não querer se mostrar, é uma busca na direção da autopreservação.

Os valores, com efeito, são irreversivelmente envenenados e infectados


quando se põem em contacto com o povo colonizado. Os costumes do
colonizado, as suas tradições, os seus mitos, principalmente os seus mitos,
são mesmo a marca dessa indigência, dessa deparavação constitucional. Por
isso, deve pôr-se no mesmo plano o D. D. T., que destrói os parasitas
transmissores de enfermidades, e a religião cristã, que extirpa de raiz as
heresias, os instintos, o mal. O retrocesso da febre amarela e os progressos
da evangelização fazem parte do mesmo balanço. Mas os comunicados
triunfantes das missões informam realmente acerca da importância dos
sintomas de alienação introduzidos no seio do povo colonizado. Falo da
religião cristã e ninguém tem direito a surpreender-se. A Igreja nas colónias
é uma igreja de brancos, uma igreja de estrangeiros. Não chama o homem
colonizado ao caminho de Deus, mas ao caminho do branco, do amo, do
opressor. E, como se sabe, nesta história são muitos os chamados e poucos
os eleitos. (FANON, 1965, p. 22)

A visão imposta pelo colonialismo sobre as religiões de matriz africana é


essa demonstrada por Fanon (ibidem), como se nelas não existissem valores, não
existisse moral. O colonialismo trata a tradição negra como uma heresia, uma versão
primitiva e depravada de existência. Muitos cristãos ainda a tratam como um mal a ser
extirpado, e entendem que o remédio para esse mal seria cristianizar a todos. A
questão levantada aqui, é que diante desse enfrentamento muitos praticantes de
religiões se tornam tão indiferentes, reagem com certa aversão ao cristianismo e ao
seu modo intolerante praticado por muitos de seus seguidores. A igreja, na pessoa de
alguns líderes e por uma vastidão alienada de seguidores, não se preocupa de fato
como valores sociais, morais, mas com a fé que praticam, se essa fé é negra ou
remete a tradição africana, passa a ser perseguida, hostilizada. Isso é o que o
martinicano descreve quando fala da relação do colono, do europeu e do colonizado.
O africano que, mesmo sofrendo diversas mazelas, abandonou as práticas religiosos
de seu povo e assumiu a religião branca, imposta pelo colono. Infelizmente, essa
lógica perniciosa ainda permanece em nossos dias de maneira atualizada, pois as
religiões de matriz africana ainda são alvo da imposição da fé cristã. É importante que
se diga que a imposição da fé cristã para o conjunto da sociedade é uma forma de
embranquecer, ocidentalizar toda uma sociedade, pois desmerece os valores e as
qualidades oriundas desses outros povos e visões.
Após descrever as características referentes as três primeiras perguntas,
observarei as perguntas e respostas a partir da questão quatro, como nos grupos
anteriores. Pergunta 4: “Qual o seu interesse ao participar da oficina Universo das
histórias africanas?”
Respostas: “Aprender mais sobre o tema” (SC); “Amor e interesse” (SC);
“O conteúdo e o professor” (AL); “Aprender sobre os meus orixás, ter subsídios para
contar mais sobre a África”(SP); “Interesse pessoal e conhecer melhor o tema” (RJ);
“Chamada de um amigo no grupo de pesquisa que participo” (RJ); “Convite recebido
da minha iya” (RJ); “O terreiro oferece essa atividade para crianças” (PR); “O tema, a
possibilidade de utilizar o conhecimento em sala de aula” (BA); “Dúvidas, vontade de
aprender” (SP); “Conhecimento” (SP); “Conhecer melhor a cultura dos orixás” (PA);
“Ampliar meus conhecimentos sobre o tema e buscar inseri-los na escola onde
trabalho” (PE); “Adquirir conhecimento sobre a cultura africana, de onde vem minha
identidade” (PE); “Melhorar técnicas de contação de histórias africanas” (PA).
Nessa questão ainda introdutória, percebo como intenção principal a busca
por uma formação continuada, tentativa de se localizar melhor, de maneira mais
conceitual a respeito do tema. É possível ver que existe um movimento interno entre
os praticantes das religiões negras que passam a se orientar convidando uns aos
outros para busca do aprendizado dentro da oficina. Já se vê nesse grupo a intenção
de utilizar os mitos como prática de atuação profissional, não só aprender, mas
favorecer o que se sabe para pôr em prática dentro da sua realidade.
Pergunta cinco: “Quais conhecimentos você tinha sobre a África?”
Respostas: “De oficinas e de disciplinas sobre continente ofertadas por
cursos, disciplinas durante a graduação” (PA); “As culturas africanas reúnem
conhecimentos, culturas, religiosidades dos vários países que compõem o continente
africano e que, sendo o berço da humanidade, influencia o modo de ver e viver das
pessoas que têm essa identidade” (PE); “Países, diversidade cultural, diversidade
religiosa, algumas fronteiras, conhecimento da existência de línguas
remanescentes”(PE); “Entendo como nossa ancestralidade”(PA); “Tudo o possível,
inclusive geografia”(SP), “Procuro aprender sobre ancestralidade” (SP)\;\ “Muito
Pouco” (BA); “Sou bem inteirado sobre as notícias e a história do continente” (PR);
“Começamos que a África é um continente e não um país como muitos acreditam.
Nesse sentido são povos individuais com culturas distintas. Vejo a cultura africana
como valorização do ser e não do ter” (DF); “Nada” (RJ); “Gostaria de saber mais”
(RJ); “Estou iniciando alguns estudos, mas preciso de muito mais para meu
autoconhecimento” (RJ); “Um continente riquíssimo e berço da humanidade, repleto
de reis e rainhas, responsável pelo desenvolvimento de incontáveis ciências” (SP);
“Meu maior conhecimento é religioso e pouco na área acadêmica” (AL); “Sei que
precisa ser muito mais debatida e mostrada nesse país extremamente
preconceituoso, aplico oficinas sobre o tema” (SC); “Sei bem pouco”(SC).
Considero importante destacar o fato de que o nível de informação nesse
grupo é mais denso e revela uma, potencial, formação, possivelmente orientada pela
necessidade constante de enfrentar oposições e precisar para tal qualificar seus
conhecimentos. Entre os negros e negras não cristãos a proximidade com os saberes
do antigo continente se dão por duas vias principais, o caminho da leitura e do
aprofundamento teórico e o caminho das vivências praticadas nos ambientes das suas
religiões, afinal, nesse grupo a maioria são praticantes de religiões afro, 11 no total.
Pergunta seis: “O que os Orixás representam para você?”
Respostas: “Meus guias de vida” (SC); “Meus guias, meu suporte” (SC);
“São os guias e mentores para o meu desenvolvimento pessoal, quanto a minha fé e
permanência na terra como diretriz de um bom viver”(AL); “Deuses repletos de
coragem e poder” (SP); “Divindades que movem o princípio de tudo” (RJ); “Orixás são
forças da natureza materializadas que ensinam aquelas e aqueles que trilham seus
caminhos no Ayiê e se desenvolverem a partir do Àse” (RJ); “Deuses” (RJ); “Xangô,
Nanã, Iansã, Oxum,..., seres que os olhos não veem mas estão o tempo todo a nos
guias através de conexões” (DF); “Dono do meu caminho” (PR); “Entidades
orientadoras” (BA); “A natureza” (SP); “Divindades africanas” (PA); “Divindades” (PE);
“Deuses das religiosidades africanas” (PE); “Ancestrais” (PA).
Existe nesse grupo uma referência proximal maior, eles tratam e
apresentam as divindades, em sua maioria, como sendo suas, como próximas,
demonstrando de forma mais expressiva uma reverência a essas divindades como
sendo seus ancestrais. Destaca-se o fato que esses deuses são representações de
arquétipos humanos (VERGER, 1971) relacionam-se diretamente com a
personalidade de cada indivíduo, essa leitura causa aproximação entre os que
passam a se enxergar nas características que descrevem a personalidade projeções
na natureza de cada Orixá. A ancestralidade que na África estava ligada a grupos
familiares, que tem nos Orixás um ancestral de prestígio, em terras brasileiras isso se
reflete na personalidade de cada pessoa, onde cada indivíduo terá uma divindade guia
revelando a relação espiritual desse indivíduo com o seu Orixá.
Pergunta sete: “O que você aprende ou aprendeu a respeito dos Orixás na
sua religião? Qual a sua opinião sobre?” Respostas: “Todos os saberes, formas de
pensar que a humanidade construiu no continente africano. Inclusive da capacidade
de se entender o que é diferente de nós” (PA); “O sincretismo torna a relação com o
catolicismo menos conturbada” (PE); “Que são demônios” (PE); “São divindades
africanas, cada qual com essência energética diferente” (PA); “Que são divindades”
(SP); “São regentes, símbolos da religiosidade” (BA); “Fundamentos e cultos” (PR);
“Fala com respeito e hierarquia. Excelente” (RJ); “Conversamos sobre estas forças e
aprendemos com seus itans os caminhos de fortalecimento da vida. O meu objetivo é
me tornar um ancestral” (RJ); “Estou começando, então estou incipiente, mas
fascinada. Eu era evangélica agora estou desconstruindo dogmas” (RJ); “Falam que
devem ser cultuados com respeito e dedicação. Considero bárbaro” (SP); “Temos
como base a vivência pela natureza e que alcança além \da terra” (AL); “Há
reconhecimento e respeito” (SC); “Entidades espirituais relacionadas a elementos da
natureza” (SC).
Nesse contexto consigo perceber melhor os que estão sendo introduzidos
no tema e aqueles que possuem uma vivência religiosa. Mesmo nesse grupo é
possível ver que ainda existem aqueles que estão tomando parte sobre o tema, estão
descobrindo a mitologia iorubana. Os mitos dos orixás, seus versos, os itans 23, são
partes da história ou a história desses deuses. Quando um participante se apropria
desses conteúdos ele vê um potencial grandioso de informações favoráveis a uma
construção de uma autoimagem positiva, por isso as adjetivações como “bárbaro” ou
“excelente”, chegando ao ponto de um dos participantes ter a autoestima tão elevada
que ele tem como pretensão tornar-se, ele mesmo, um ancestral. O fato é que todos

23 Mitos ou histórias que revelam a natureza ou características dos Orixás.


temos ancestrais, mas quando nos referimos ao conceito divino de ancestralidade,
pensamos naquele indivíduo que por seus altos feitos conseguiu eternizar sua
memória, tornando-se divino, como alguém capaz de influenciar do plano espiritual e
no plano material. Isso só é possível na versão negra de religiosidade, sonhar em ser
tão grandioso a ponto de ter como resultado dos seus feitos na terra um espaço no
plano divino ao lado dos demais deuses.
Pergunta oito: “Você conhecia os orixás iorubanos antes da oficina? O que
você entendia a respeito?”
Respostas: “Não conhecia” (SC); “Sim, mas não tão profundamente” (SC);
“Sim, mas não de\tenho grande saber, pois pouco debato e ouço falar” (AL); “Nunca
li, mas conheço” (RJ); “Alguns” (RJ); “Sim, já fiz a leitura” (DF); “Um pouco” (BA); “Sim,
alguns” (SP); “Tenho conhecimento básico sobre eles. Conhecimentos bem dispersos,
diga-se a verdade, visto que não os cultuo e acabo por esquecer suas características”
(PE); “Já conhecia, entendi que não eram deuses, mas também representavam
pessoas, as dinâmicas da natureza, a vida e a morte.” (PA).
É possível notar que mesmo entre os praticantes de religiões de matriz
africana não existem muitos conhecimentos a respeito do universo simbólico iorubano,
como já disse anteriormente, mesmo elas compondo o mesmo grupo religioso, como
classificação, são religiões distintas umas das outras, nesse grupo a maioria dos afro-
religiosos não são do candomblé, e mesmo que fossem candomblecistas isso garante
que sua cosmogonia fosse povoada pelo Orixás, denominação iorubana para suas
divindades. Mesmo nesse grupo, para a maioria, o panteão iorubano é ainda algo que
precisa de embasamento, como já disse em grupos anteriores, não conhecer de ouvir
falar, é preciso se aproximar para entender melhor, se permitir conhecer para
conseguir trabalhá-los com a merecida qualidade.
Pergunta nove: “No que se refere as religiões de matriz africana, quais
conhecimentos você possui a respeito?”
Respostas: “Como faço parte o suficiente para entender que a mesma não
é diferente de qualquer crença, possuindo seus próprios interditos, momentos
sagrados, espaços sagrados, nos quais nós não somos donos das coisas da natureza
(universos) e sim fazemos parte dela” (PA); “Apesar de pertencer a outra religião, a
minha ancestralidade sempre me permitiu olhar com respeito e interesse para esse
grupo” (PE); “Há divindades específicas, cultos diferenciados, incorporações
oferendas, danças rituais de passagem e de acento, hierarquias...” (PE); “Na cultura
evangélica eram demônios. Hoje são a própria essência da vida” (RJ); “Que eram
realezas” (SP); “Religião que descende de escravizados, povos que cultivaram seus
próprios deuses” (SC); “sou sacerdote” (PR); “um encontro” (SP); “já tinha o
entendimento por ser de umbanda.” (AL); “apenas curiosidade” (SP); “mais que
impressão, sempre certezas.” (SC).
Vejo como predominante nesse grupo a habilidade em contrapor posições
e transmitir conceitos em poucas palavras. Definições positivas e referenciadas numa
versão qualificada sobre o tema, realçam o posicionamento desse grupo. A
africanidade vista sem medos permite dar qualidade, profundidade ao descrevê-la.
Possibilita uma tradução menos ilustrativa, pois as imagens sobre o tema estão claras,
não embaçadas pela versão ocidentalizada depositada sobre essas religiões. Um
grupo de pessoas negras não cristãs e o de pessoas brancas não cristãs revelam
profunda conexão com os saberes presentes nas religiões de matriz africana.
Demonstram não só conhecer, mas, fazem parte dos conhecimentos oriundos dessas
religiões. A semelhança é compreensiva já que as religiões de matrizes africanas não
têm uma predominância étnica de pessoas negras. Dentro dos ambientes de terreiro
não existe essa distinção, todos são vistos e orientados do mesmo modo. Os mitos
traduzem essa conexão com a ancestralidade.
Pergunta dez: “Na sua opinião o conhecimento sobre os mitos iorubanos
ajuda a combater o preconceito contra as religiões de matriz africana? Por quê?”
Respostas: “Sim, porque o preconceito só é rompido com conhecimento e
respeito” (SC), “Mais apaixonado e certo que antes” (SC), “Meu bom olhar só aumenta
a cada novo entendimento de novas visões e esclarecimentos” (AL), “Sempre, são
meu cerne, minha herança, são meu tudo” (SP), “Sim, meu olhar a cada dia é de
encantamento” (RJ), “Sim, a oficina foi importante, esclarecedora. Ajuda a enriquecer
o conhecimento” (BA), “Sim, porque eles são lindos” (SP), “Sim, ajuda. Podemos
argumentar com propriedade e minimizar ideias equivocadas” (PE), “sim, inclusive
compus um pequeno livro com esse intuito. Só o conhecimento é capaz de
desmobilizar culturas de racismo religioso, ensinar na escola sobre outras formas de
se paraticar religião transforma a vida dos educandos, como das pessoas em geral na
sociedade” (PE).
Tais falas demonstram uma conectividade profunda interessante entre os
conteúdos e a forma como foram trabalhados durante a oficina com esse grupo, pois
existe uma troca revigorante entre minha proposta de trabalho e aqueles que buscam
encontrar o eco de suas ações em algo prático, conceitual e que mostre a
grandiosidade de suas vivências para além do núcleo comum ao qual a maioria
dessas pessoas estão habituadas. Não à toa, falas com “são meu cerne” ou do tipo
que diz ter produzido algo em consequência da sua participação, como um livro para
facilitar o entendimento dos seus alunos, são de uma riqueza incomensurável. A
oficina se apresenta então como capaz de auxiliar pessoas através do conhecimento
obtido sobre a mitologia iorubana e o universo simbólico e orientar no combate ao
racismo e ao preconceito.
Pergunta onze: “Você considera importante conhecer a mitologia de uma
cultura? O que a mitologia Iorubana mostrou para você?”
Respostas: “Mostrou que desde resolver problemas mais simples e difíceis
necessita de atenção, que memória é muito importante para construir um futuro, já
que sem ela esqueceríamos os conhecimentos básicos de sobrevivência” (PA), “Para
mim um lado mais terno, mais lúdico. Ajuda também muitas pessoas a tirarem essa
visão demonizada da religião” (PE), “Acho importante. A principal coisa mostrada para
mim foi a dissociação dos rituais como sendo práticas malignas, onde só se busca o
mal”(PE), “Muito aprendizado e exemplo” (SP), “Deveriam ter mais oficinas pois o
conteúdo é importante, mas o tempo é curto” (BA), “A cosmovisão, o entendimento de
mundo e sociedade” (PR), “Acho que são lindíssimos e nos ajudam no rompimento
com o pensamento hegemônico e supremacista” (RJ), “Conhecimentos que trazem
força, identidade e autoconhecimento” (RJ), “Encanta, embeleza, aproxima, traz vida
e legitima sentimentos e atitudes” (SP), “A cada dia aprendo mais, e essa oficina só
aumentou meu critério de busca, mais e mais” (AL), “Que não são mitos, são sonhos
de um povo, o primeiro e mais belo de todos” (SC).
A ludicidade pertinente a prática da contação de histórias associada a
beleza e a riqueza dos mitos iorubanos promovem um acesso profundo e revelador,
pois esse conjunto de práticas e informação favorecem o envolvimento do público,
crianças ou adultos, independentemente da idade; o ato de contar histórias possibilita
a construção de uma teia poderosa de diálogo e respeito com a mitologia presente no
candomblé Keto. O grupo de pessoas negras não cristãs assemelham-se a todos os
outros grupos anteriores, quando revela o caráter produtivo da utilização desses
conteúdos na educação de pessoas com o intuito de desqualificar o discurso que
demoniza essas divindades negras.
Pergunta doze: “Na sua opinião, os mitos iorubanos têm alguma
semelhança com as mitologias de outras culturas?”
Respostas: “Infinitamente pessoal e totalmente normal e aceitável” (SC), “A
mudança dos nomes” (AL), “Muito parecidos” (SP), “Os gregos roubaram muitas
coisas dos povos africanos. Mas os mitos gregos estão no Olimpo e os Orixás estão
comigo, lado a lado” (RJ), “Alguma coisa que não pode ser explicada, só sentida.
Talvez um sincretismo que não foi divulgado ao mundo” (RJ), “O ocidente valoriza a
mitologia Greco-Romana por ser branca e desqualifica a mitologia dos Orixás por
terem suas origens africanas. Os negros tentam fazer um sincretismo para de alguma
forma não serem totalmente distanciados dos seus orixás e ao mesmo tempo não
serem punidos por estarem praticando algo que é visto como heresia no ocidente”
(DF), “Todos são representativos, mais precisaria de um pouco mais de estudo
cronológico” (BA), “Não sei dizer” (SP), “Quase uma apropriação, um cópia branca de
alguns orixás” (SP), “A mitologia Greco-Romana é apenas uma imitação da mitologia
dos orixás” (PA), “Sim, na medida em que atribui aos orixás (deuses) poderes ou
características de entidades superiores” (PE), “Sim, já que a memória é o princípio
mais básico para armazenar conhecimento. Essas formas primárias são chamadas
de mitos. Que em outras sociedades com o tempo se transforma em saberes
praticáveis no dia a dia das pessoas” (PA).
“O contexto colonial, temos dito, caracteriza-se pela dicotomia que inflige
ao mundo. A descolonização unifica esse mundo, arrebatando-o de forma radical à
sua heterogeneidade, unificando-o sobre a base da nação ou da raça.” (FANON,
1965. P 24). O que parece distante pelo colonialismo, o que foi hierarquizado por ele,
perde seu sentido com a descolonização, o diferente se une, se respeita, dialoga. Não
quero partir do princípio da antiguidade ou de quem imita quem, como propõem
algumas respostas, não é essa a intenção da pergunta, mas, mostrar que todas as
mitologias, independentemente de sua origem, revelam uma visão de mundo que está
orientada pela autorreferência de quem a produz, cada uma representa uma versão
do humano. A união proposta por Fanon (1965; 2008) é que todas as pessoas possam
se ver de maneira igual, quando a memória do negro for respeitada e observada do
mesmo modo que a cultura branca. A hierarquização de saberes é o que nos torna
diferentes, o enxergar-se com respeito é que nos torna semelhantes, respeitando
nossas individualidades. Assim, Fanon (1965) traduz a noção de nação ou de raça,
enquanto não nos vermos como iguais seremos de fato pessoas de nações e raças
destintas, só depois de superarmos isso é que seremos capazes de destruir o racismo
e o preconceito.
Pergunta treze: “Você acha que os mitos do Orixás devem ser utilizados
como recurso de ensino para combater o preconceito/racismo nas escolas? Se
possível, comente um pouco.” Respostas: “Sim, principalmente porque vivíamos em
um país hegemonicamente negro e indígena até o século XIX. O que acontece é que
a intensa proposta racista de embranquecer o país faz a nossa memória negra e
indígena ser apagada. E para combater esse processo, que nós militantes chamamos
de epistemicídio, se faz necessário o reconhecimento da importância das histórias dos
Orixás; e como há muito tempo essa forma de contar mitos fizeram parte do meio de
preservar os saberes vindos do continente africano, saberes usados para as
tecnologias usadas na mão de obra durante os primeiros séculos, saberes que
envolviam tecnologia, saúde, política, religião e cultura” (PA), “sim, plena e total
importância, todos deveriam ter o mínimo nível de conhecimento, assim não teríamos
mais bobagens ditas, como o uso do termo macumba” (SP), “Acho importante.
Inclusive já usei a história de Omolu para exemplificar a maternidade por adoção”
(PE), “Pode sim. Apresentar a história dos Orixás mais famosos, seus mitos, seus
poderes, qual a relação deles com a história da nossa negritude etc. Conhecer é
sempre fundamental para extinguir os pré-conceitos.” (PE), “Sim, descobrir uma
construção histórica de pertencimento e ancestralidade” (PA), “Sim, para
desmistificar” (SP), “Muita importância, O conhecimento liberta e repassar isso faz om
que se quebrem alguns preconceitos” (BA), “Sim, a cultura negra tem grande
influência para a movimentação cultural brasileira” (DF), “Não, para a cultura brasileira
não posso impor o meu aprendizado” (RJ), “Sim, identidade” (RJ), “Sim, para continuar
levando nossos saberes a todos os lugares, para que todos possam ouvir, ver e
compreender” (AL), “Suma, plena e total importância, todos deveriam ter o mínimo
nível de conhecimento, assim não teríamos mais bobagens ditas, como Macumba”
(SC), “Sim, porque as crianças devem conhecer todas as religiões que existem no
país” (SC).
Nesse grupo de respostas tenho a impressão de que existem duas visões
estabelecidas, aquela que de tanto lutar contra algo se sente cansada, de ter que
enfrentar os mesmos racismos e preconceitos difundidos em nossa sociedade e
aquela que diz que cada um deve vivenciar seu mundo independentemente do outro.
Observo que é maior a versão tendente ao diálogo, todavia, considero importante pela
forma de análise qualitativa que me proponho, dar voz ao sentimento daqueles que
entendem ser interessante comunicar apenas o necessário. O medo foi uma arma
muito usada pelos escravizados como forma de proteger-se dos ataques dos
colonizadores, aqueles que o colonialismo costuma chamar de “senhores”. A
sociedade branca escravocrata, tinha medo da religiosidade dos africanos, pois
aprendeu que era um tipo de fetichismo primitivo que remetia ao mal, não à toa, os
negros ratificaram a visão dos brancos por vezes associando seus símbolos ao que
sabiam que ia causar medo e espanto entre eles, brancos. Afinal, a religiosidade negra
não possui compromisso com a forma de ver do colonizador, mas só com sua própria
forma de ver, e essa forma de ver não tinha nem santos, nem demônios, apenas a
ancestralidade como referência e a intenção de cada um em sua busca no plano
espiritual.
A atmosfera de mito e de magia, ao provocar-me medo, actua como uma
realidade indubitável. Ao aterrorizar-me, integra-me nas tradições, na história
da minha terra ou da minha tribo, mas ao mesmo tempo assegura-me um
estatuto, assinala-me num boletim de registo civil. O plano do segredo, nos
países subdesenvolvidos, é um plano colectivo que depende exclusivamente
da magia. Ao limitar-me dentro dessa rede inextricável, onde os actos se
repetem com uma permanência cristalina, o que se afirma é a perenidade de
um mundo meu, de um mundo nosso. Os zombis são mais aterrorizantes,
acreditamos, do que os colonos. E o problema não está, então, em pôr-se de
acordo com o mundo coberto de ferro do colonialismo, mas em pensá-lo três
vezes antes de urinar, cuspir ou sair de noite. (FANON, 1965, p. 29)

A mística no entorno da cultura africana deu força para os colonizados


subverterem até certo ponto a opressão colonial, todavia a imposição da ideia de mal
permaneceu mesmo após o direito ao culto se tornar algo garantido a todas as
confissões religiosas. O momento agora é dissociação dos universos simbólicos para
que cada grupo possa coexistir dentro de uma leitura não do outro, mas sua;
construída a partir de sua ótica própria, sem os medos e os dilemas impostos pelo
colonialismo.
Pergunta quatorze: A oficina “Universo das histórias africanas” ajudou você
em qual sentido a observar as religiões de matriz africana e os conteúdos vivenciados
por elas observados através de seus mitos?
Respostas: “Ajudou a levar conhecimento ao povo” (SC), “Sem presunção,
diria que ampliou bastante meu conhecimento sobre o tema, e acho fundamental
ampliar, desenvolver, exercitar, praticar e repassar conhecimento em prol da paz ”
(SC), “Nascemos sós, porém, vivemos pelo coletivo e o respeito deve ser a fonte da
nossa existência” (AL), “Desconstrução de dogmas e valores” (RJ), “Sim, a medida
em que em espiral, posso pensar o tempo, as forças que resistem e escapam em meu
corpo são suas performances” (RJ), “A maneira de ver a vida” (PR), “Muita
importância, o conhecimento liberta e repassar isso faz com que se quebrem alguns
preconceitos” (BA), “Somos um e somos um todo” (PA), “Fez-me entender melhor a
relação do sagrado e como a história de cada um colabora para sua existência e
resistência” (PE), “Ajudou a desmistificar a ideia de que as religiões africanas trazem
o mal e humanizam no sentido de trazer características comuns a nós” (PE), “Muito.
Me fez saber que Orixá não se esconde, mostra quem é, como é, se assume” (SP),
“Ajudou a aprofundar outras cosmovisões que já possuía, sem contar no
enriquecimento de dinâmicas de contação de histórias africanas, de diferentes povos
do mesmo continente africano” (PA).
Considero que os resultados são profundos e marcaram, mesmo os mais
dedicados à causa negra, à luta contra o racismo. Até estes, que já tinham contato
prévio com o tema, conseguiram ver na oficina resultados positivos. Declaro como
resultado dessa experiência um aprendizado profundo dentro das trocas
possibilitadas, pelos espaços da oficina que me levaram por direções ainda mais
profundas, no sentido de qualificar mais essa metodologia, de torná-la ainda mais
acessível e lúdica para que outros e outras possam construir com saberes a partir de
informações compartilhadas por essa proposta de trabalho. Considero tão importante
quanto introduzir pessoas nesse universo de discursões dar voz e vez aqueles que já
vivenciam a realidade afro no seu dia a dia, pois esses homens e mulheres, por vezes,
sentem-se sozinhos na luta contra a estrutura racista presente em nossa sociedade.
O labor precisa ter seus momentos de alento e quando vemos outros caminhando no
mesmo sentido acreditamos estar na direção certa e traduzimos como satisfatório
poder se reconhecer em outras lutas e trabalhos que caminham na mesma direção.
Pergunta quinze: Você acredita que irá enfrentar resistência ou algum tipo
de preconceito ao utilizar os mitos africanos em sua prática profissional ou ambiente
doméstico? Como pretende lidar com isso?
Respostas: “Com certeza, acredito. Lidar com isso sempre será a partir de
um discurso histórico, que introduza elementos de nossas vivencias que são
africanas. Este sendo elemento da cultura brasileira, de respeito as práticas religiosas
diferentes ou mesmo a demonstração óbvia que o país é cercado do igrejas que não
comungam das mesmas divindades. Fazendo sempre necessário lembrar que há
grupos que fazem parte de uma parcela enorme da população que usam dos saberes
de terreiro para a sua vida. Que vão desde cuidados psicológicos a financeiros.
Legitimar os saberes de Orixás é legitimara história desse país, o qual tem sido sua
base, divindades que sempre curaram e educaram os povos desde que aqui
chegaram, fossem elas quem fossem, tais ancestrais nunca viravam as costas as
pessoas, sempre atendendo a todos.” (PA), “Sim, mas sigo lutando. Não baixo o olhar.
Sei de quem sou filha e irei continuar.” (SP), “Algumas vezes e inevitável enfrentar o
preconceito” (PE), “Sim, enfrentarei. Dialogar sobre a lei 10.639/2003, sobre o
respeito, o conhecer para respeitar...Mas é difícil, queria saber lidar melhor com isso”
(PE), “Sim, preconceito já arraigado em forma de intolerância religiosa” (PA), “Nunca
parei para pensar nisso” (SP), “Sim, pela criação cristã” (SP), “Sim, o tempo todo”
(BA), “Essa explicação deve ser individual e particular, não uma exposição sem
contexto” (DF), “Não, o que a minha religião tem a ver com a minha profissão? Não
me impede de ser quem eu sou, nem a religião é a profissão” (RJ), “Sim, já enfrento
cotidianamente” (RJ), “Com certeza” (RJ), “Pelo fruto da ignorância e do preconceito
vivo isso todos os dias” (AL), “Totalmente sim” (SC), “Sim, acredito, demonstrando a
importância desses mitos na minha vida” (SC).
A resistência é uma constante dentre os muitos que estão nesse grupo, não
há tempo ou espaço para escolha, como vimos em outros grupos, entre eles é uma
forma de se mostrar de traduzir quem são, enquanto existem aqueles que acham se
devem ou não aceitar ou tolerar o outro, esse grupo em sua maioria, não escolhe o
enfrentamento, vive o enfrentamento pelo simples fato de existir, enquanto pessoas
negras e/ou por serem afro religiosos. As resistências estão não só no aplicar os
conteúdos pertinentes as histórias africanas, mas por serem praticantes das religiões
afro-centradas. Digo isso porque em outros grupos as pessoas podem escolher atuar
ou não dentro do universo africano em seus trabalhos para discutir questões relativas
ao racismos, nesse grupo o simples fato de existir da maioria gera o questionamento
sobre a existência dessas pessoas, sobre como o meio social na qual ela está inserida
irá se portar frente a quem ela é. Considero importante que cada pessoa que leia esse
trabalho entenda como é importante entender da profundidade do que estamos
falando para que possamos nos perceber como agentes sociais e perceber o outro
em quanto ser humano que só tem a intenção de existir de acordo com sua forma de
ver e interpretar o mundo.
Não se trata de falar apenas da fé de alguém, de um grupo de indivíduos,
trata-se de valorizar uma versão de ser humano que ontologicamente está
personificado nas narrativas mitológicas de origem africana. Os arquétipos são
negros, remontam a pessoa negra, mesmo como cristão devemos refletir a luz de uma
perspectiva humana e social da identidade negra, que desprezada e diminuída pelo
colonialismo europeu, precisa ser lida requalificando e humanizando sua perspectiva.
CONCLUSÃO

Se a construção de uma ponte não enriquece a consciência dos que nela


trabalham, vale mais que não He construa a ponte, que os cidadãos
continuem a atravessar o rio a nado ou em barcaças. A ponte não deve cair
de um paraquedas, não deve ser imposta por um deus ex machina no
panorama social, mas deve surgir, pelo contrário, dos músculos e do cérebro
dos cidadãos. (Fanon, 1965, p 106)

Durante o desenvolvimento deste trabalho surgiram muitas inquietações e


motivações, primeiro, por se tratar de uma etnobiografia, o que possibilitou dialogar
com minha história de vida, com a qual construí uma estrutura que acredito ter sido
capaz de orientar o leitor num caminho no qual conseguimos dialogar com momentos
da minha vida, promovendo uma reflexão entre a narrativa e os conceitos pertinente
etnografia segundo a proposta de Marco Antônio Gonçalves quando diz que: “Em
outras palavras, a etnobiografia implica uma dimensão metanarrativa da etnografia,
em que o lugar da agência da própria narrativa etnográfica torna-se objeto
etnográfico.” (GONÇALVES, 2012, p. 10). Acredito ter conseguindo traduzir
momentos relevantes da minha vida com o intuito de favorecer uma narrativa onde a
compreensão do movimento de construção sociorreligiosa evidencia o processo de
colonização a partir de princípios cristãos, oriundos de uma formação pentecostal, que
ao invés de simplesmente servir ao trato espiritual e auxílio metafísico na realidade de
um indivíduo, passa a representar um projeto de sociedade que para se afirmar
precisa desconstruir e traduzir a religiosidade de matriz africana de maneira pejorativa
e demonizada, caracterizando assim o que entendemos ser a definição de racismo
religioso.
Para os recortes utilizados na construção da narrativa nos valemos do
conceito de memória apresentado por Pollack (1989; 1992) quando, ao tratar das
nuances da memória, ele mostra como ela se estrutura e o quais as características a
ela pertinentes possibilitam uma narrativa baseada por ela, definindo assim a
autoimagem do indivíduo dentro da ideia de identidade que traduz, por revelar como
esse indivíduo que se descreve, se vê ou espera ser visto. A memória como referência
da identidade se produz a partir do recorte temporal em que as imagens do passado
são acessadas para definir as características do indivíduo que se observa após um
longo espaço de tempo, vejamos:
Se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno
construído social e individualmente, quando se trata da memória herdada,
podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita
entre a memória e o sentimento de identidade. Aqui o sentimento de
identidade está sendo tomado no seu sentido mais superficial, mas que nos
basta no momento, que é o sentido da imagem de si, para si e para os outros.
Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela
própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para
acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da
maneira como quer ser percebida pelos outros.” (POLLACK, 1992, p. 205)

Em meu trabalho utilizei tanto minhas memórias pessoais quanto aquelas


que foram a mim repassadas no núcleo social familiar. As memórias que são
anteriores ao meu nascimento foram repassadas pelos meus pais e compõem um
imaginário comum entre os membros da família e provavelmente se perpetuarão na
memória dos meus filhos, por serem contadas como projeções de nós mesmos. Uma
identidade familiar que mesmo não sendo vivenciada em sua plenitude é uma
referência familiar comum. A identidade social a partir dessas narrativas orientadas
pela memória foram capazes de dar sentido a proposta do trabalho ainda na intenção
de dialogar com o leitor e aproximá-lo dos conteúdos pretendidos por essa produção,
facilitando o entendimento do processo de formação familiar por mim vivenciado e que
me levava a ser um reprodutor de verdade hegemônicas, tidas como superiores, mas
que no final feriam minha própria identidade enquanto pessoa negra.
Por identidade, e como proposta sobre a mesma, refletimos sobre as
angústias que Fanon nos traz a respeito de como o colonialismo pode ser prejudicial
a autoimagem que a criança negra faz, quando orientado apenas pela lógica branca
de ver e interpretar o mundo. Quão distante se sente de referências positivas, quando
o imaginário social comum predominante remete a tudo que é bom ou positivo como
branco e tudo que é mal e negativo como sendo negro?, eis o principal dilema
abordado nesse trabalho, quando observamos as angústias apresentadas pelo
psicanalista martinicano, quando diz:

Nas Antilhas, o jovem negro que, na escola, não para de repetir “nossos pais,
os gauleses”, identifica-se com o explorador, com o civilizador, com o branco
que traz a verdade aos selvagens, uma verdade toda branca. Há
identificação, isto é, o jovem negro adota subjetivamente uma atitude de
branco. Ele recarrega o herói, que é branco, com toda a sua agressividade –
a qual, nessa idade, assemelha-se estreitamente a uma dádiva: uma dádiva
carregada de sadismo. Uma criança de oito anos que oferece alguma coisa,
mesmo a um adulto, não saberia tolerar uma recusa. Pouco a pouco se forma
e se cristaliza no jovem antilhano uma atitude, um hábito de pensar e
perceber, que são essencialmente brancos. (....)
Impor os mesmos “gênios maus” ao branco e ao negro constitui um grave
erro de educação. Quem concorda que o “gênio mau” é uma tentativa de
humanização do “isso” *, pode perceber nosso ponto de vista. Rigorosamente
falando, diríamos que as cantigas infantis merecem a mesma crítica. Fica
logo claro que queremos, nem mais nem menos, criar periódicos ilustrados
destinados especialmente aos negros, canções para crianças negras, até
mesmo livros de história, pelo menos até a conclusão dos estudos. Pois, até
prova em contrário, estimamos que, se há traumatismo, ele se situa neste
momento da vida. (FANON, 2008, p. 132)

As referências construídas dentro da ideia maniqueísta de sociedade,


instituída no mundo ocidental sob a ótica europeia, ilustra tudo que é mal, primitivo,
errado, escandaloso e demonizado como sendo negro, não só no Brasil, como
percebemos pela leitura feita por Fanon (ibidem), essa noção de mundo é
extremamente nociva para a comunidade negra, seja ela pertencente a qualquer país.
Como o recorte realizado neste trabalho está ligado diretamente a questão da religião,
busco mostrar como, a partir de uma ótica religiosa pentecostal, construímos
referências que, ao invés de nos proporcionar imagens qualitativas sobre nós
mesmos, reproduzem o racismo presente no discurso cristão, no qual todas as
referências ao mal estereotipam arquétipos negros, promovendo associações, tais
como: o diabo, o pecado, a maldição, a ideia de magia que por ser má é negra. São
muitos os momentos em que a nossa herança africana, ligada principalmente pela
referência fenotípica, é traduzida pela cultura ocidental de maneira desqualificada.
Proponho aqui trabalhar os mitos iorubanos como recurso para desenvolver
uma outra ótica sobre a identidade da pessoa negra, valorizando a mitologia dos
Orixás e refletindo do quanto o racismo, consequência do colonialismo europeu,
precisa ser reconhecido para que possa ser superado. Para que possamos aprender
sobre a mitologia preservada pelo candomblé Keto brasileiro, é preciso desmistificar
essa tradição religiosa, afastando a versão preconceituosa predominante em nossa
sociedade. Para concretizar tal esforço, usei como exemplo a realização oficinas onde
os mitos africanos eram utilizados como recurso na prática da contação de história,
apresento meus próprios momentos em que realizo esses momentos de contação,
envolvendo pessoas de todas as idades, como o ato de narrar as memórias negras
presentes nos mitos dos Orixás, descrevendo como tal prática requalifica a imagem
da pessoa negra no seio de nossa sociedade.
Como contador de histórias, me tornei um griô, alguém que aos moldes
brasileiros, retrata por meio de sua prática profissional, o universo simbólico negro
brasileiro e africano, construindo no imaginário social uma outra leitura de nossa
ancestralidade étnica, reconduzindo as pessoas a debates que, ao pensar a realidade
brasileira, acaba por confrontar o racismo religioso praticado em nossa sociedade. A
contação dessas histórias, são ofertadas como horizonte possível para transformação
do olhar depositado sobre as religiões de matriz africana, estendendo-se o
reconhecimento mais próximo e aprofundado de suas mitologias e práticas religiosas
por parte de indivíduos leigos, que na sua maioria encontram dificuldades em perceber
esses conteúdos e examiná-los de maneira adequada.
Apresento os mitos como maneira da população brasileira se conectar com
sua ancestralidade negra, com saberes menosprezados, tido como inferiores pela
visão de hegemonia e superioridade, característicos do pensamento ocidental cristão
pentecostal, evidenciado nos resultados das falas dos participantes da oficina
“Universo das histórias africanas” que responderam o formulário que foi analisado
durante todo o 3º capítulo desse trabalho.
Os resultados representados pelas falas dos participantes da oficina falam
por si só, mesmo assim pude relacioná-los com leituras da realidade prática e de forma
conceitual, por meio dos temas levantados em cada pergunta e respostas. A
apresentação das falas como demonstração prática dos resultados favoreceu o
entendimento da metodologia utilizada e proposta para construção de um olhar
respeitoso sobre os Orixás, dialogando com as diferenças e construindo uma ponte,
há muito necessária, entre a cosmovisão cristã e a cosmopercepção pertinente as
tradições africanas. Trago o conceito de cosmopercepção na intenção de favorecer o
entendimento sobre as práticas e vivencias relativas as religiões negras, para isso me
utilizo da conceituação utilizada por Monique Navarro Souza e Míriam Cristiane Alves,
quando nos trazem a seguinte discussão:

Nesse aspecto, torna-se importante ressaltar que as perspectivas culturais


sobre os modos de relacionalidades são denominadas de cosmovisões; em
grande parte esse termo emerge de certas leituras eurocêntricas. No entanto,
com Oyèrónké Oyewùmí (2017) tensionamos o termo “cosmovisão”, pois tal
denominação demonstra o sentido da visão como primordial na produção da
realidade. Ou seja, o mundo nessa perspectiva é percebido exclusivamente
pelo olhar, pelo ato de ver. Esse termo, portanto, exclui outros modos de
descrições culturais que consideram, na construção de significados, a relação
intrínseca da combinação de sentidos. Assim sendo, o termo
cosmopercepção (OYEWÙMI, 2017) diz mais sobre o conjunto dos sentidos
imbricados no ato da percepção e compreensão da realidade do que o
privilégio de um sobre os outros. (SOUSA; ALVES, 2020, p. 33)
Mesmo utilizando muitas vezes o termo cosmovisão durante meu trabalho,
considero importante trazer à tona a ideia de cosmopercepção desenvolvido pelas
autoras acima, por traduzir uma perspectiva construída a partir dos saberes
afrocentrados. Uma visão epistemológica que contrasta com o modelo tradicional
mantido pela academia nos moldes ocidentais, a leitura de mundo a partir dos povos
tradicionais promove uma outra maneira de interagir com o mundo e, portanto, com
as pessoas de formas diferentes a que estamos habituados, esse modelo ocidental
de produzir e reconhecer o conhecimento. Falar de cosmopercepção é dar maior
sentido aos conteúdos presentes na mitologia iorubana, apreendidos apenas se
mudarmos nossa leitura da realidade; sendo possíveis apenas se nos despirmos do
universalismo europeu e promovermos uma pedagogia capaz de tratar a realidade
com um todo orgânico, desenvolvido não para usufruto do homem, mas tendo o ser
humano como parte sua. A versão cíclica da realidade pertinente a cultura iorubana
não hierarquiza a vida em cadeias de superioridade e inferioridade, mas entende o
mundo como uma relação intrínseca e perene de interatividade.
A partir de uma outra proposta de decodificar e interagir com o mundo, a
noção de identidade aqui desenvolvida precisa ter claro o conceito de ancestralidade,
pois é a partir dessa memória ancestral que qualificamos nosso existir. Ancestralidade
tão falada pelos participantes e por mim, no decorrer dessas linhas, não está
diretamente referenciado em fatos sanguíneos ou étnicos, mas na compreensão e
entendimento do poder dos conhecimentos deixados por nossos antepassados
africanos, que perpetuados pela comunidade religiosas brasileiras, podem nos ensinar
a superar erros históricos, como foi a escravização de pessoas e consequentemente
a desumanização desses indivíduos e sua prole ao longo dos últimos séculos.
O movimento epistêmico de reconfiguração e ampliação dos sentidos para
entendermos a realidade é o ponto de partida para construirmos novas formas de
perceber a realidade, de perceber conteúdos afrocentrados. Como a própria mitologia
iorubana, devemos nos orientar para então nos relocalizar em nossas formas de
aprender, não mais baseadas apenas na visão europeia de ver e entender a realidade,
mas agora por meio saberes e metodologias afrocentradas, tendo em vista que esse
modelo nos proporciona maior abertura a outros universos simbólicos. Sobre a ideia
de afrocentricidade trazemos a seguinte proposta:
Um primeiro e básico postulado da afrocentricidade é a pluralidade. Ela não
se arroga, como fez o eurocentrismo, à condição de forma exclusiva de
pensar, imposta de forma obrigatória sobre todas as experiências e todos os
epistemes. Ao enfatizar a primazia do lugar, a teoria afrocêntrica admite e
exalta a possibilidade do diálogo entre conhecimentos construídos com base
em diversas perspectivas, em boa fé e com respeito mútuo, sem pretensão a
hegemonia. (NASCIMENTO, 2009, p. 30)

A pluralidade da afrocentricidade possibilita o diálogo, o respeito e múltiplas


formas de saberes produzidos pelo conjunto da sociedade, não tratando de forma
superior determinada perspectiva, contrariando assim a lógica ocidental acadêmica e
suas práticas de exclusão frente aos saberes construídos pelos povos tradicionais e
principalmente os saberes pertinentes a cultura africana.
Uma outra questão que gostaria de trazer à discussão, é o conceito de
afroteologia, que é muito rico quando nos propomos a ler uma cultura negra através
de sua mitologia, um conjunto de saberes que referenciam uma comunidade, uma
proposta de mundo pertinente a um povo e sua trajetória existencial. O ocidente
reservou e trabalho de interpretar a religião a um grupo religioso que a partir de sua
lógica própria tomou para si quase que de forma exclusiva a leitura da religião e seus
desdobramentos como sendo sua, vejamos o que diz a respeito Silveira (2020):

O senso comum costuma atribuir à teologia uma natureza exclusivamente


cristã, ignorando que todas as tradições religiosas possuem uma teologia
própria. O cristianismo transformou sua teologia em uma disciplina formal.
Outras tradições religiosas – como o judaísmo, o islamismo e o hinduísmo –,
que têm como revelação um livro sagrado, fizeram o mesmo. Essas teologias
são reconhecidas pelo ocidente eurocêntrico, mas as teologias das
espiritualidades cuja revelação está na tradição oral sequer são entendidas
como tal. No tocante a este ponto, o racismo e a afroteofobia (racismo
religioso) têm contribuído para a negação da existência de uma teologia das
tradições de matriz africana. (SILVEIRA, 2020, p. 44)

Faz-se necessário o reconhecimento de uma leitura de mundo a partir da


própria ótica de faz e vive as religiões de matrizes africanas, é preciso que eles
mesmos possam nos dizer como entendem e interagem com a realidade através dos
princípios por eles assumidos como verdade. O esforço desse trabalho é considerado
extremamente introdutório no que se refere ao reconhecimento dos saberes contidos
na mitologia iorubana, a muito a ser dito, sentido e observado. A necessidade de
mostrar a forma de interagir com o mundo a partir da lógica dos povos tradicionais,
mantida em sua mitologia, é extrema relevância para desconstruirmos a versão
hegemônica ocidental e assim descolonizar nossa sociedade da visão racista imposta
a sobre esses grupos religiosos. A intenção de tratar esse universo simbólico com a
qualidade merecida ainda precisa de muito espaço para se desenvolver, mas é um
início possível para a qualificação dessa discussão no seio de nossa sociedade e para
busca incessante de uma equidade social entre os praticantes de diferentes religiões,
independentemente da origem dessas religiões.
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