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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

WELLINGTON RAMOS DE CARVALHO

O SACRIFÍCIO:
UM ESTUDO ETNOGRÁFICO NO TERREIRO ILÊ ÀṢẸ OYÁ NIROLÊ IGBALÉ
(KWE ZANVIS AVESAN)

BELÉM
2021
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

WELLINGTON RAMOS DE CARVALHO

O SACRIFÍCIO:
UM ESTUDO ETNOGRÁFICO NO TERREIRO ILÊ ÀṢẸ OYÁ NIROLÊ IGBALÉ
(KWE ZANVIS AVESAN)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências da Religião da
Universidade do Estado do Pará, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em
Ciências da Religião.

Orientadora: Profa. Dra. Taissa Tavernard de


Luca.

BELÉM
2021
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
Biblioteca do CCSE/UEPA, Belém – PA
Carvalho, Wellington Ramos de

MARINA
O sacrifício: CORREA
um estudo GONÇALVES
etnográfico no terreiro Ilê Áse Oya Nirolê
Igbalé (Kwe Zanvis Avesan) / Wellington Ramos de Carvalho;
orientadora Taissa Tavernard de Luca. – 2021.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade do


Estado do Pará, Belém, 2021.

1. Candomblé (Religião) - Belém-Pa. 2. Ritual. 3. Sacrifício. I.


Luca, Taissa Tavernard de, orient. II. Título.

FfF CDD. 23 ED.299.6098115

Ficha catalográfica elaborada por Regina Ribeiro CRB-739


WELLINGTON RAMOS DE CARVALHO

O SACRIFÍCIO:
UM ESTUDO ETNOGRÁFICO NO TERREIRO ILÊ ÀṢẸ OYÁ NIROLÊ IGBALÉ
(KWE ZANVIS AVESAN)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências da Religião da
Universidade do Estado do Pará, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em
Ciências da Religião.

Dissertação aprovada em: _____/_____/_____ para obtenção do título de Mestre em Ciências


da Religião.

Banca Examinadora:

_________________________________________________________________
Profa. Dra Taissa Tavernard de Luca. – Presidente da Banca

_________________________________________________________________
Prof. Dr. Helio Figueiredo da Serra Netto

_________________________________________________________________
Prof. Postdoctor. Vagner Gonçalves da Silva PPGAS e PGEHA/USP

BELÉM
2021
Dedicado aos voduns, às mulheres e homens
africanos que outrora os trouxeram para Brasil
e aos religiosos que mantém vivo este culto
ancestre.
AGRADECIMENTOS

Somos a comunhão com o “outro”. Não somos sós, não estamos sós. Assim foi
contruída esta dissertação, com cooperação, carinho e com a força de pessoas que estiveram
junto a mim, comemorando os momentos mais felizes e apoiando nos momentos de dificuldade.
Família, amigos, irmãos de religião e de turma de mestrado (aliás, eu não poderia ter feito parte
de um grupo tão unido e solidário), todos foram importantíssimos no processo de realização da
pesquisa, seja com carinho ou com sabedoria, diálogos, abraços e sorrisos. Tentar dar nomes
sem correr o risco do ato falho de esquecer pessoas tão importantes não é tarefa fácil, mas
tentarei fazer aqui e iniciarei falando das mulheres, sempre presentes em minha vida e, não foi
diferente neste momento.
Agradeço primeiramente à Ana Lúcia, minha mãe “carnal”, carinhosa e forte,
mulher de tantas opiniões formadas, mas sempre aberta a receber e apreciar novas informações.
Incansavelmente participou deste processo ainda que nem sempre soubesse o quanto foi
importante sua simples presença, seu simples olhar (até mesmo os de reprovação para algumas
atitudes equivocadas minhas).
Minha Mãe de Santo, Rosalídia Tavares, Oyá Nirolê ou, simplesmente, Mãe Rosa,
sempre solícita em ajudar-me com informações importantes, seja através de entrevistas,
conversas informais, ensinamentos do cotidiano religioso ou cedendo-me livros sobre a
religião. Graças a ela esta dissertação foi possível, já que foi quem me acolheu primeiramente
como Filho e posteriormente como acadêmico em sua casa. Ela tem meus sinceros
reconhecimentos.
Minha esposa, Elisângela Carvalho, que sempre esteve por perto ajudando,
inclusive com informações sobre a religião quando minha memória falhava. Carinhosa,
sorridente, atenciosa, prestativa, alegrava-se com cada evolução da pesquisa, com cada boa
notícia que eu trazia, com cada aprovação. Também era quem dizia “você vai conseguir”
quando as coisas pareciam sem solução. A ela minha sincera gratidão.
À Edna Guedes, minha prima, também devo bons momentos deste percurso. A
alegria em pessoa, brincalhona, “pra cima”, a quem devo muitas gargalhadas ainda que minha
vontade fosse, por vezes, chorar. Também foi companheira, ainda que fisicamente distante,
apoiando minhas conquistas e, certamente entristecendo-se com algumas derrotas. Ela é boa
parte do que me trouxe até aqui e, por isso, agradeço.
Agradeço à Patrícia Perdigão, amiga, irmã de religião, sempre solidária, forte,
prestativa, uma verdadeira referência como pessoa, cientista e religiosa. Sempre pronta a dar
uma palavra de apoio e carinho, sempre disposta a ajudar no que fosse preciso. Dividimos, até
aqui, diversos momentos de alegria e frustrações na vida acadêmica, profissional e pessoal.
Apesar de membros da mesma casa de candomblé, passamos a ter um enorme vínculo de
amizade e de almas a partir do mestrado e que durará para sempre.
Minhas companheiras de pós-graduação Érica Negrão e Heloísa Helena, mulheres
fortes, amigas. Vivemos diversos momentos de alegria e de “aperto” (nossa viagem ao Rio de
Janeiro que o diga), distanciamentos forçados, porém sempre presentes em meu coração e
pensamento. Érica, pessoa que não combina seu nome e monotonia na mesma frase. Heloísa,
ou “Helozinha”, que apesar do apelido no diminutivo e da pouca idade (a caçula da turma),
mostra-se intelectual e espiritualmente grande. Não há como não agradecer a amizade e auxílio
destas duas mulheres.
Agradeço enorme e eternamente à minha orientadora, Dra Taissa Tavernard de
Luca, exemplo de força e sensibilidade, foi incansável no apoio à minha dissertação, sempre
com uma palavra de otimismo mesmo enquanto ainda não desempenhava esta função
acadêmica. Sempre ética, profissional, competente, muito mais que uma professora/orientadora,
é referência em meus estudos, inspiração para que eles chegassem até onde chegaram e amiga
para sempre. Foi quem me apoiou quando pensei em desistir tão próximo à conclusão da
dissertação, me motivou e me fez compreender o peso que a decisão de continuar firme teria
em minha vida.
Sinara Dias e Douglas Oliveira, amigos de longa data e irmãos de religião, que
também foram fundamentais, incentivando e ajudando desde os primeiros momentos na
caminhada até hoje. Aliás, há alguns anos, durante uma “festa de caboclo”, foram eles que me
alertaram para algumas questões técnicas e me auxiliaram na tessitura do projeto para que eu
pudesse ingressar no mestrado. Meus agradecimentos.
Meu irmão de iniciação e amigo para toda a vida, Felipe Martins. Apesar da
distância física que nos mantém afastados, sempre esteve presente, também incentivando desde
o princípio, para que eu entrasse no PPGCR. Certamente, eu não estaria onde estou sem a força
que ele sempre me deu. Sou eternamente grato por todo o carinho e ajuda que me deu até hoje.
Meus primos Thiago e Rodrigo Guedes que, para além dos laços sanguíneos, são
verdadeiros irmãos de vida e religião. Mesmo com a pouca idade, são sábios e comprometidos
com tudo o que fazem. A presença deles foi vital, principalmente pelo momento triste de
pandemia que passamos juntos, na mesma casa. Meus companheiros de risadas, conversas ao
som de músicas. Também foram importantes nas discussões sobre a compreensão da religião
que seguimos e estudamos. Muito obrigado por tudo.
Não me furto em agradecer aos também companheiros de pós-graduação Fábio
Oliveira, Cristian Sicsu e Wilson Batista, parceiros, amigos, suportes. Carinho, alegria e
companheirismo definem esses que estiveram presentes com sorrisos, abraços e conhecimentos
na jornada, muitas vezes, extenuante do mestrado.
Por fim, mas não menos importante, agradeço a Denilson Gursen (Ewasaji),
conhecido no candomblé de belém como Pai Dani, meu Pai Pequeno e fonte de carinho,
conhecimento intelectual e religioso. Suas lições foram, e serão, extremamente importantes para
minha vida.
Não é necessário repetir que o sacrifício é
fundamental no culto aos orixás – em todos os cultos
africanos –, que a estes santos se pede e agradece
“dando de comer”, como também não há a
necessidade de esclarecer o profano, empregando as
mesmas palavras de um olorixá, as de que
materialmente os santos “não comem. São espíritos e
somente absorvem o espírito do sangue”.
(CABRERA, 2004, p. 164)
RESUMO

A presente dissertação consiste no estudo etnográfico sobre os sacrifícios praticados no terreiro


de candomblé Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé, de tradição Jeje-Savalu, localizado, no bairro do Icuí
Guajará, área periférica do Município de Ananindeua, região metropolitana de Belém.
Tomando por base as ideias de mana e de sacrifício de Mauss (2003 e 2005), faço uma
descrição densa (Geertz, 1989) dos rituais sacrificiais realizados dentro deste terreiro e através
da ação sacrificial apresento a referida casa. Mostro a importância desta prática para dentro da
teologia do candomblé e, por fim, apresento o preconceito dirigido a essas práticas por membros
de algumas religiões cristãs, também sacrificiais. Utilizei entrevistas e observação in loco, além
de minhas memórias pessoais enquanto sacerdote responsável pelo sacrifício. Realizei um
levantamento das literaturas sobre sacrifícios no âmbito religioso de forma geral e específica
sobre o candomblé, comprovando, com isso, minha hipótese de que os rituais sacrificiais e o
próprio sacrifício, são o sustentáculo espiritual da casa estudada. Minha escolha dos indivíduos
a serem entrevistados, se deve ao fato do alto grau hierárquico, conhecimento prático dos rituais,
de tempo de iniciação na religião, bem como de sua importância no universo do candomblé
paraense.

Palavras-chave:Sacrifício, Sangue, Religião, Candomblé, Ritual.


ABSTRACT

The present dissertation consists of the ethnographic study of the sacrifices practiced in the Ilê
Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé candomblé terreiro, of Jeje-Savalu tradition, located in the neighborhood
of Icuí Guajará, a peripheral area of the Municipality of Ananindeua, metropolitan region of
Belém. Marcel Mauss' ideas of mana and sacrifice (2003 and 2005), I make a dense description
(Geertz, 1989) of the sacrificial rituals performed within this terreiro and, through the sacrificial
action, I present the present house. I show the importance of this practice within Candomblé
theology and, finally, I present the prejudice directed against these practices by members of
some Christian religions, which are also sacrificial. I used information and observation on the
spot, in addition to my personal memories as a priest responsible for the sacrifice. I conducted
a survey of literature on sacrifices in the religious sphere in general and specifically on
Candomblé, thus proving my hypothesis that sacrificial rituals and sacrifice itself are the
spiritual support of the studied house. My choice of interviewed members to participate is due
to their high hierarchical level, practical knowledge of rituals, time of initiation in religion, as
well as their importance in the universe of Candomblé in Pará.

Keywords: Sacrifice, Blood, Religion, Candomblé, Ritual.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1:Vista externa da sala de jogo ..................................................................................... 27


Figura 2: Vista interna da sala de jogo ..................................................................................... 27
Figura 3: O barracão, espaço de festa. ...................................................................................... 28
Figura 4: Casa de Exu/Elegbá. ................................................................................................. 29
Figura 5: “Barracão ornamentado para festa de candomblé”. .................................................. 34
Figura 6: A cozinha do terreiro................................................................................................. 60
Figura 7: Obé utilizado nos sacrifícios à Nanã. ........................................................................ 61
Figura 8: Estátuas da Cabocla Mariana e do Caboclo Rompe-Mato. ....................................... 66
Figura 9: Simulação do altar dos voduns.................................................................................. 69
Figura 10: Sacrifícios em ritual revolta Sociedade Protetora dos Animais. ............................. 89
Figura 11: STF equivocadamente considera constitucional o sacrifício de animais em rituais
religiosos................................................................................................................................... 90
Figura 12: 176 ONGs brasileiras assinam manifesto pelo fim do sacrifício em rituais. .......... 90
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13

CAPÍTULO 1 – O ILÊ ÀṢẸ OYÁ NIROLÊ IGBALÉ (KWE ZANVIS AVESAN) E SUAS
PERSPECTIVAS SACRIFICIAIS ....................................................................................... 23

1.1 O Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé (Kwe Zanvis Avesan): Ambiente Religioso que Abriga o
Sacrifício ................................................................................................................................... 24

1.2 Análise dos Elementos Sacrificiais no Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé .................................... 32

1.2.1 Os Sacrifícios Vegetais .............................................................................................. 34

1.2.2 Os Sacrifícios Minerais .............................................................................................. 42

1.2.3. Os Sacrifícios Animais ou “Bejerossun” ................................................................... 44

CAPÍTULO 2 – A DINÂMICA DOS RITUAIS SACRIFICIAIS NO ILÊ ÀṢẸ OYÁ


NIROLÊ IGBALÉ ................................................................................................................... 49

2.1. A Estrutura Geral da Ação Sacrificial e sua Dinâmica no Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé ...... 51

2.1.1 Os Cuidados com a Oferta, com o Ambiente e Demais Elementos do Sacrifício:


Preparação para os Ritos Sacrificiais no Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé ........................................ 51

2.2 O Sacrifício aos Voduns: Sangue e Força para as Entidades Candomblecistas ................ 54

2.3 Sacrifícios à Caboclos: Um à parte na Casa de Candomblé.............................................. 65

2.4 Os Sacrifícios de Fundação: a Estrutura e a Proteção Espiritual da Casa de Candomblé . 67

2.5 Ritos Iniciáticos: Pessoas e Objetos de Culto Segundo a Lógica Sacrificial .................... 70

CAPÍTULO 3 – O SACRIFÍCIO SOB PERSPECTIVA: RESSIGNIFICAÇÃO,


JUDICIALIZAÇÃO E POLITIZAÇÃO DO DEBATE SOBRE O SACRIFÍCIO.......... 74

3.1 Os Sacrifícios no Judaísmo e no Islamismo ...................................................................... 77

3.2 Os Cristianismos e os Sacrifícios ...................................................................................... 79

3.3 A Sociedade Civil, os Recursos Políticos-Judiciais e o Direito à Vida de Animais Não-


Humanos ................................................................................................................................... 86

3.4 Discutindo os as estratégias de “ataque”, “defesa” e o campo sócio-político brasileiro ... 92

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 100

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 103


ANEXO ..................................................................................................................................111
13

INTRODUÇÃO

Sacrifícios, sobretudo os de sangue, sempre foram exercícios usuais de muitas práticas


religiosas, em diversas culturas, em espaços e tempos diferentes. Nem a literatura sobre tal
prática, tampouco a forma de se buscar e identificar modelos nos quais se possa definir e
enquadrar as práticas sacrificiais e a cosmovisão sobre estas para cada comunidade, são tão
ancestrais quanto o ato de imolação:

Praticamente todas as religiões [...] praticam o sacrifício sangrento e a oferta de


alimentos, explícita ou simbolicamente. [...] As pessoas desconhecem ou não
percebem a realidade desses fatos de suas próprias religiões, horrorizando-se ante o
“primitivismo” da prática nagô (AFLALO, 1996, p. 98).

Em vista do senso comum, geralmente, compreendemos o sacrifício como todo ato de


abnegação e de privação de vontades e desejos, de doação forçada ou voluntária de algo que
nos faria certa falta em prol de um bem maior, seja o tempo dedicado à alguma atividade de
relevância no meio social, ou até mesmo de valores financeiros dedicados à caridade, sejam
como nos “ritos de passagem” da puberdade social ou, como Gennep (2013, p. 72)crê ser mais
conveniente chamar, nos “ritos de iniciação”. Nas tradições mais antigas, ou nas mais novas,
também é comum que se sacrifique animais, de forma consciente ou inconsciente de que essa
prática se trate mesmo de ato sacrificial.
Segundo Mauss e Hubert (2005), existem dois tipos de sacrifícios, sendo estes, os de
sacralização, em que o fluxo se desenvolve do elemento sacrificial ao sacrificante, isto é, aquele
que oferece o sacrifício, e os de dessacralização, no qual o sacrificante é purificado através da
imolação de um animal. Penso que, ainda hoje, estes modelos preconizados pelos autores, se
mantém vivos em diversas religiões, como no judaísmo e no islamismo, onde a alimentação
depende de um procedimento sacrificial (kosher1 e halal2, respectivamente) e nos templos
neopentecostais, onde sacrifica-se os “demônios” (geralmente entidades das religiões de matriz
africana), em prol eliminação do “pecado” no qual o indivíduo (sacrificante) se encontra,
constituindo-se como parte fundamental dos cultos, por vezes se constituindo enquanto
manutenção da tradição imposta por escrituras sagradas, em outras, como ferramenta

1
Também chamado Cacher, significa literalmente, em hebraico “apropriado”. Disponível em: <https://pt.chabad.
org/library/article_cdo/aid/3973769/jewish/O-que-Casher.htm>. Consultado em 11 nov. 2020.
2
“A palavra (halal) poderia ser traduzida como ‘autorizado, recomendável, saudável, ético ou não abusivo’. Os
muçulmanos de hoje entendem o termo como um estilo de vida”. Disponível em: <https://www.terra.com.br/
noticias/mundo/kosher-e-halal-como-os-animais-devem-ser-sacrificados-segundo-os-rituais-judeus-e-muculma
nos,1ff6f20091111d44ee0e277aa5709218sirvgtqn.html> Consultado em 11 nov. 2020.
14

proselitista.
Entretanto, é sobre um modelo em especial dentre estes, que pretendo debruçar minha
dissertação: os sacrifícios praticados no Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé (Kwe Zanvis Avesan3), um
terreiro de candomblé4 situado no Icuí-Guajará, bairro periférico de Ananindeua, área
metropolitana de Belém-Pa, no qual sou confirmado para o cargo de pejigan, isto é, o sacerdote
responsável principalmente pelos rituais sacrificiais, popularmente chamados no candomblé
como “mão de faca” pela sua atuação nos sacrifícios. Apesar da função de sacrificador nem
sempre se aplicar o termo pejigan em diferentes terreiros de candomblé (ainda que pertencentes
à nação Jeje) espalhados pelo país, a casa estudada atribui os atos sacrificiais e tudo o que cerca
a este cargo, sendo esta a nomenclatura utilizada pelo próprio campo estudado.
Para tal finalidade, tracei e delimitei como objetivo geral desta pesquisa, etnografar, a
partir do trabalho de campo, os rituais sacrificiais na casa acima citada, descrevendo como eles
são desenvolvidos, suas estruturas e dinâmicas, as principais personagens envolvidas nessa ação
ritual, bem como as mudanças e permanências ocorridas na prática sacrificial. Tomando por
base este objetivo principal, busquei através da observação participante e da comparação com
a literatura clássica, tecer uma análise, a partir do modelo candomblecista e de modelos
sacrificiais em outras religiões, bem como a investigação sobre os desdobramentos do ritual
sacrificial, como e em que tipos se dividem e a utilidade de cada um dentro da cosmovisão do
terreiro. Também, através da observação participante e de entrevistas, procurei catalogar a
relação entre os tipos de sacrifício de acordo com as especificidades dos casos (doença, mal a
que se destina, etc.) de quem demanda esse serviço.
Averiguei a hipótese de que os ritos sacrificiais de sangue, formam a base estruturante
do culto candomblecista e, em especial, do Ilê Àṣẹ Oya Nirolê Igbalé, apesar de haver diversos
tipos de sacrifícios praticados na referida casa. Segundo esta hipótese, o sacrifício de sangue é
a principal fonte de àṣẹ, isto é, da energia que movimenta e sustenta a casa e a vida de seus

3
E entre parênteses, em língua fon, significa Casa dos Filhos da Esteira de Iansã e faz referência aos movimentos
da casa em direção ao autorreconhecimento identitário e reconhecimento social como pertencente à nação Jeje,
em um processo que será relatado no curso desta dissertação. Entretanto, apesar de já constar no histórico
genealógico do templo, traçado por estudiosos pertencentes à essa mesma extensa família que remete à Bahia, o
novo nome ainda não é utilizado no cotidiano dos membros da casa, que preferem tratá-la pelo nome com o qual
nasceu: Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé. Utilizarei com mais frequência o nome mais antigo, popularizados entre seus
membros e entre o “povo de santo” de Belém do Pará.
4
O candomblé é religião de raiz africana que aqui toma moldes adaptados às necessidades religiosas dos
escravizados que foram sequestrados como mão de obra para o trabalho colonial. Reorganizado a partir da tradição
religiosa de várias nações de África, tem no país, uma de suas primeiras manifestações, desde o calundu colonial
ao primeiro templo no século XIX. É conhecido pelo culto aos ancestrais divinizados e às divindades que são as
próprias expressões da natureza como os rios, mares e oceanos, tempestades, matas etc., chamados – a depender
da “nação” – orixás, voduns ou nkisis.
15

afiliados. Reservados a um público especial, de cargos autorizados a participar deste ritual,


encontra abrigo em locais especiais, longe dos olhares “curiosos” dos não-iniciados, daqueles
a quem ainda não chegara o “tempo de conhecer” e dos que não têm uma relação mais íntima
com a religião (clientes) e, portanto, são executados com o máximo de discrição.
Além disso, apesar da visão nativa conceber o sacrifício como um ritual de tradição
imutável, com o passar do tempo e sob influência de certas mudanças ocorridas na própria
concepção identitária do grupo, pelo contato com membros de outras casas ou a entrada de
novos membros, ou pela necessidade de se manter a prática sacrificial diante das tentativas de
proibição desta, o modelo usado pela casa sofreu algumas mudanças quanto a sua estrutura,
locais e métodos.
Meu percurso até a escolha do tema e os objetivos e hipóteses aqui apresentados, passa
pelos anos de graduação na Universidade Estadual do Maranhão, onde cursei Licenciatura em
História e tive o contato mais profundo com os estudos sobre a cultura afro-brasileira,
interessando-me, em particular, sua religiosidade. A partir daí, fui a um primeiro evento em
uma casa de candomblé, onde o que ali acontecia me chamara muito a atenção.
Seguindo o interesse em conhecer um pouco mais daquilo que antes para mim era apenas
uma forma de “ludibriar através da fé”, tive a oportunidade de escrever um artigo para a
conclusão de uma disciplina da graduação, o qual denominei “Repressão estatal ou garantia
do bem-estar social: do Código Penal de 1890 ao século XXI”. Para tal, julguei ser necessário
vivenciar algumas experiências in loco para melhor compreender os reais significados de certas
cerimônias para os cultos afro-religiosos e o que poderia ser interpretado como motivos para
tal repressão. Desta forma, a academia me levou ao terreiro e por várias vezes fui convidado a
participar das festas como espectador.
Meu contato com o terreiro, até então, era meramente acadêmico, porém fui recebido
com o mesmo carinho que era dispensado aos demais “filhos da casa”. Timidamente, passei a
acompanhar algumas das cerimônias ali praticadas, iniciando pela festa de “Tambor de Mina”
para “Cabocla Mariana”, sempre no mês de novembro, à altura do dia 23. Em minha primeira
participação, fui recebido pela própria Cabocla, incorporada em seu “cavalo” 5, com um
caloroso abraço, um “seja bem-vindo” e uma pergunta: “poxa, por que você não veio mais cedo
ver a matança6?”. Desde então, passei a refletir sobre nunca ter causado estranheza o fato de
que animais pudessem morrer com finalidades costumeiras como alimentação, proteção, abrigo

5
Termo usado geralmente no Tambor de Mina e na Umbanda, para os(as) médiuns que incorporam com seus
caboclos.
6
Termo usado para o sacrifício, sobretudo no Tambor de Mina.
16

ou vestuário, desde que isso não implicasse em um processo desenfreado de destruição e


extinção e ao mesmo tempo, me causava certa ojeriza haver sacrifícios feitos em rituais
religiosos.
Entretanto, ao me aprofundar nesta religião e me deslocar cada vez mais internamente
no candomblé, passei a ter de forma mais nítida a visão de que cotidianamente praticarmos
sacrifícios, sejam eles de sangue para algumas das festas religiosas tradicionais em nossa
sociedade (o peixe, na sexta-feira Santa, o pato, no Círio de Nazaré ou o peru, no Natal para os
cristãos), ou até mesmo o tempo que dedicamos ao trabalho ou valores financeiros que pagamos
por conforto ou necessidades básicas e religiosas, ainda que muitas vezes façamos isso de
maneira irrefletida.
Este “deslocamento interno” do qual falei, passa a acontecer a partir do meu ingresso
definitivo como filho da casa e da minha escolha como pejigan, que só ocorreu após minha
primeira consulta ao jogo de búzios7, onde descobri que meu destino na religião era tornar-me
o sacrificador, cargo sacerdotal de vital importância para religiões que se utilizam de ritos
sacrificiais e para o qual fui posteriormente “suspenso”. Para Mauss e Hubert (2005):

É necessário um intermediário ou pelo menos um guia: o sacerdote. Mais


familiarizado com o mundo dos deuses, ao qual está em parte vinculado por uma
consagração prévia, ele pode abordá-lo mais de perto e com menos temor do que o
leigo, que possui máculas talvez desconhecidas. (MAUSS; HUBERT, 2005, p. 29).

Apenas a ele é permitido (salvo em casos extraordinários) esta prática ritualística, a


manipulação dos animais nos ambientes destinados à esta prática e a separação das partes destes
que irão compor o ibá8 após o sacrifício. O pejigan é o sacerdote que conduzirá todo o ato
sacrificial e, por vezes, é ele quem entoa os cânticos enquanto executa o ato. Ele é parte
fundamental dos rituais sacrificiais de sangue, pois, assim como Mauss e Hubert (2005),
preconizam sobre o sacrificador:

(...) ele é marcado por um selo divino: traz o nome, o título ou as vestes de seu deus;
é seu ministro, sua encarnação mesma, ou pelo menos o depositário de seu poder; é
agente visível da consagração no sacrifício. Enfim, está no limiar do mundo sagrado

7
O jogo de búzios é parte do sistema divinatório utilizado pelo candomblé. Segundo Eduardo Fonseca Júnior
(1995), “O Jogo de Búzios é o instrumento pelo qual podemos conhecer as energias que estão ligadas à origem de
cada um de nós” (FONSECA Jr., 1995, p. 106)
8
Segundo Ayrá (2019), “os ibás são um conjunto de objetos sacralizados, servindo como ponte entre os iniciados
e seu orixá. Existem regras para sua montagem que podem variar entre nas ações, orixás e qualidades.” (AYRÁ,
op. cit., p. 69) São as representações físicas dos Elegbás em seus altares. Compostos dos símbolos de cada Elegbá
individual, presos à vasos de barro através de argila, acompanhados sempre de uma quartinha (também de barro,
sendo esta, sem alça para vodum masculino e, com duas alças, para vodum feminino.
17

e do mundo profano e os representa simultaneamente: os dois se reúnem nele.


(MAUSS; HUBERT, 2005, p. 29).

Entretanto, o que ainda não conhecia era qual finalidade do “derramar sangue” em prol
de divindades que já possuíam poderes incalculáveis, como são vistos os voduns, pelos
religiosos do candomblé Jeje-Savalu9. Além disso, como e por que se organizava aquilo que
Mauss descreve como só sendo possível “se efetuado num meio religioso e por intermédio de
agentes essencialmente religiosos” (MAUSS; HUBERT, 2005). Como isso forneceria uma
visão de estabilização de mundo para aqueles que entregam suas vidas à religião? O que alguns
membros da casa pensavam sobre isso? Essas foram algumas das diversas indagações que
surgiram e várias delas ainda se fazem presentes, mesmo após esses pouco mais de dez anos
como praticante do candomblé e quase oito anos de confirmado no cargo responsável pelos
rituais sacrificiais.
A cada cerimônia em que eram praticados sacrifícios de sangue ou quaisquer outros,
mesmo que eu não pudesse participar diretamente de alguns deles, já que ainda era apenas um
ogan10 “suspenso”11, mais aumentava minha curiosidade sobre aquilo que seria minha função
específica na casa, tão logo fosse confirmado no cargo de pejigan. Toda a movimentação que
antecedia durante os “cortes”, como são popularmente chamados os sacrifícios de sangue pelos
praticantes do candomblé, me chamava atenção, desde o recebimento e contagem dos animais
que eram encomendados, até os cuidados com a limpeza destes, com água e o amancí (líquido
resultante da maceração de ervas em água), a caminhada até os locais onde serão sacrificados e
o próprio sacrifício, passou a ser menos difícil a partir de minha iniciação na religião, tanto pelo
acesso mais direto a tais rituais, quanto pela compreensão que passei a ter, o que permitiu
aprofundar-me mais nestes estudos.
Também se tornaram mais claros os motivos que faziam o ambiente externo aos

9
Apesar dos povos Jeje nunca haverem constituído realmente uma nação em África, no Brasil passaram a formar
grupos étnico-religiosos graças às estratégias identitárias. Este recurso tem-se mostrado cada vez mais frequente
há alguns anos, na busca por retorno à uma pretensa “pureza” de culto, o que legitimaria “nação” jeje ante as
demais “nações”, na corrida pelo “mercado religioso”. Quanto ao termo savalu, refere-se à subdivisão existente
no Brasil dentro da “nação jeje”, como os jeje-mahi, jeje-mina, jeje-modubi e jeje-aladano (BARROS, 2009).
10
Cargo exclusivamente masculino, dado a alguns membros da casa. Na nação Jeje, são classificados em dois
grupos, os Huntós, sacerdotes responsáveis pela parte musical, isto é, pela condução dos instrumentos responsáveis
pela invocação dos voduns nas festas, e os Pajigans, sacerdotes responsáveis pelos sacrifícios, também conhecidos
como “mãos de faca”.
11
Este é o título dado ao indivíduo indicado pelo próprio vodum para determinados cargos, a quem servirá
diretamente, durante uma cerimônia que não tem esta finalidade exclusiva, porém é onde acontece esta indicação.
O indivíduo é levado pela entidade a caminhar pelo salão (ou carregado por dois outros cargos, geralmente ogans)
e apresentado ao público que o recebe com aplausos e cânticos. A partir daí, ele muda seu status no meio religioso
e passa a ter um acesso mais amplo do que o que possuía quando “abiã”, porém, ainda restrito dentro da hierarquia
geral e das atividades sagradas.
18

terreiros, tão avessos quando o assunto é o sacrifício, sendo muito comum perceber olhares,
falas e comportamentos preconceituosos por parte de grupos sociais específicos como
neopentecostais e a sociedade protetora dos animais, o que passou a causar-me grande
inquietação e desejo de compreender mais profundamente os sentidos reais do sacrifício para a
religião e seus praticantes. Alguns grupos de outras matrizes religiosas afirmam haver um
caráter “maléfico” no rito sacrificial, bem como nas religiões que ainda se utilizam desse tipo
de ritual. Todavia, estas percepções partem da não compreensão e de informações truncadas
sobre os rituais de forma geral, no tempo e espaço, e dentro das religiões que os realizavam
habitualmente e aboliram a prática, das que ressignificaram com o passar do tempo e tornaram
esporádico o ato, ou das que ainda detêm o costume.
O sacrifício que sofre com perseguições de intolerantes é comumente associado às
religiões afro mas, historicamente, diversas matrizes fizeram, ou ainda fazem, uso mesmo em
seu sistema litúrgico, como é o caso do cristianismo em suas mais diversas ramificações, do
judaísmo, islamismo, entre outras. Falarei mais sobre esses modelos sacrificiais no terceiro
capítulo desta dissertação. Dentre os sistemas religiosos que ainda conservam essa prática
ritualística, o candomblé é, muito nitidamente, o que mais sofre no Brasil, com os julgamentos
construídos em torno do racismo religioso. Internamente constata-se a utilização de termos que
tendem a causar um olhar depreciativo, como “matança”.
Em se tratando dos fatores externos, destaco as pregações cristãs das religiões
pentecostais e neopentecostais que historicamente demonizam práticas rituais não-cristãs, por
exemplo. Trava-se, a partir daí, um embate que transborda o campo religioso e alcança as
esferas política e judicial, através das inúmeras tentativas de criminalizar tal exercício.
Todavia, as práticas sacrificiais são tão importantes para o candomblé contemporâneo
quanto o foram para os cultos judaicos, do qual “deriva” o cristianismo e, saber sobre o que
sustenta, justifica e perpetua tais práticas, é compreender, entre tantas coisas, como as percebem
os adeptos da religião de forma geral, em específico os da casa observada, o sacrificante ou, até
mesmo, aquele para o qual o sacrifício teria efeito direto. Desta forma, faz-se necessária a busca
pela compreensão sobre os tipos de sacrifício, sua classificação, sua tipificação e
hierarquização, sua utilização nos ritos dentro do terreiro e como tudo isso ganha forma e
importância na cosmovisão candomblecista e como se transforma o simples ato de “matar”
animais naquilo que se torna a base para costumes, tradições e mesmo para a vida de cada um
dos envolvidos.
O ritual sacrificial, bem como tudo o que se aprende em uma casa de candomblé, não é
lido, não se encontra em manuais impressos, e sim faz parte de uma pedagogia oral, transmitida
19

literalmente “de Pais para Filhos”, através da fala e das demonstrações que ocorrem
principalmente durante o período de preparação após a “confirmação”12 do cargo. Durantes este
tempo, se inicia o processo de observação aprofundada, já que, neste período, é interditada a
atuação do recém-confirmado na prática sacrificial, mas não sua presença nos locais do ato,
tampouco em auxiliar e testemunhar o que ocorre ali.
Por conta disso, durante o período, todas as cerimônias servem como estágio de
aprendizado a partir do olhar que deve estar extremamente atento para cada detalhe, cada
cantiga entoada, cada movimento e cada ato que se pratica durante o sacrifício e saber ouvir e
perguntar sempre que necessário. Após esta fase restrita a somente auxiliar e observar, passando
novamente por um tempo de recolhimento, ao pejigan é permitido desempenhar a função e
assumir de fato o cargo para o qual foi designado.
É importante destacar, também, uma das grandes dificuldades de quem, como eu, toma
por método de pesquisa a etnografia em uma religião tão envolta em “mistérios” que são
guardados e quase nunca revelados: o “segredo”, pois, o candomblé é uma religião que se
perpetua e resiste dentro de um modelo que não permite a todos o conhecimento mais profundo.
Por isso, o “tempo de conhecer” é fundamental. Trata-se de uma estrutura de segredos cujos
mestres são os mais velhos. Enquanto membro e sacerdote do culto, como pejigan, para mim,
este “tempo de conhecer” chegou através de minha confirmação ao cargo. Mas, como traduzir
isso em letras de forma clara, que informe ao leitor e, sem desrespeitar a estrutura do segredo e
sem causar choque à religião e seus deuses?

Os pesquisadores das religiões afro-brasileiras enfrentam dilemas específicos, além


das dificuldades gerais de transposição da experiência de campo para textos, pois, ao
observar rituais ou obter informações através de entrevistas, formais ou informais,
inevitavelmente esbarram em parcelas de um conhecimento considerado, em algum
nível secreto (DA SILVA, 2010, p. 273).

O antropólogo Silva13 (2010), traduz a inquietude com o problema do “segredo” e,


ainda, complementa sobre a abordagem feita pelo pesquisador das religiões afro-brasileiras e
eu reitero sobre a questão específica do sacrifício, tema desta dissertação, da seguinte forma:

A questão do segredo nas religiões afro-brasileiras faz, assim, com que o antropólogo
tenha que se posicionar de forma diferenciada diante dos registros obtidos durante o
trabalho de campo. Iconografias, fotos e filmes de ritos privados, dos assentamentos

12
Como é chamada a iniciação para aqueles que recebem um cargo.
13
Vagner Gonçalves da Silva é professor e pesquisador do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social (PPGAS) e do Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte
(PGEHA) da Universidade da Universidade de São Paulo.
20

das entidades ou de certos espaços do terreiro (quarto de Exu, de egum etc.) ou


transcrições de entrevistas e diálogos, não são apenas uma documentação primária útil
para a construção da interpretação da religião; a natureza destes registros e a forma
como as pessoas da religião se posicionam diante eles e de sua divulgação fazem parte
da própria representação etnográfica (SILVA, 2010, p. 274).

Para isso, é vital que, antes de se construir um texto que atenda às necessidades da
pesquisa e que ao mesmo tempo respeite o espaço do grupo-alvo desta, se faça uma etnografia
bem construída, bem elaborada e atenciosa. Neste sentido, Geertz (1989), aponta que:

Segundo a opinião dos livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer relações,


selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos,
manter um diário, e assim por diante. Mas não são essas coisas, as técnicas e os
processos determinados, que definem o empreendimento. O que o define é o tipo de
esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma “descrição densa”,
tomando emprestada uma noção de Gilbert Ryle (GEERTZ, 1989, p. 4).

A etnografia depende do espírito perscrutante do pesquisador, isto é, não é apenas


debruçar-se sobre informações frias, catálogos de anotações ou mera observação dos fatos que
lhe aparecem sob o olhar incauto, é a capacidade de perceber aquilo que está nas entrelinhas
dos olhares, dos gestos, das falas. Segundo Malinowski (1978), autor que embasa este método
em minha pesquisa:

[...] um trabalho etnográfico só terá valor científico irrefutável se nos permitir


distinguir claramente, de um lado, os resultados da observação direta e das declarações
e interpretações nativas e, de outro, as interferências do autor, baseadas em seu próprio
bom-senso e intuição psicológica (MALINOWSKI, 1978, p. 18).

Deste modo, é necessário um exame criterioso que permita ao leitor perceber os limites
existentes entre o que é informado pelo nativo e o que é refletido pelo pesquisador para que
haja de fato um rigor científico e idoneidade nos resultados da investigação. É este, um método
que requer proximidade e vivência junto ao ente estudado, de tal forma que o convívio contínuo
com o grupo, a participação em seu cotidiano, permita extrair o máximo de informações de
forma espontânea, a partir da menor interferência externa possível, já que o autor da pesquisa
deve integrar-se ao meio ao ponto de ser percebido sem muita estranheza.
No meu caso, há também um esforço maior que é tornar aquilo que hoje é tão “normal”
à minha condição de “nativo”, isto é, de praticante e sacerdote do culto candomblecista, naquilo
que possa incitar curiosidade suficiente para prosseguir na pesquisa tendo, portanto, que
conduzir a leitura do campo de maneira a “transformar o familiar em exótico” (DA MATA,
1978, p. 4), e que, segundo Oliveira (2012), só se obtém êxito no trabalho antropológico sobre
21

o grupo ao qual pertencemos:

Quando transformamos - por meio de recursos de método - o familiar em exótico,


conseguindo, com isso, estranhar suficientemente tudo aquilo que nos é próximo, de
maneira a poder alcançar uma distância mínima que nos habilite ao questionamento
típico do olhar etnográfico (OLIVEIRA, 2012, p. 124).

Seguindo o método etnográfico da observação participante, que propõe a imersão no


grupo que se pretende analisar, prática fundamental e indissociável no/do processo, já que é
necessário estar com o grupo, inserir-se no meio para, assim, garantir a confiança dos
informantes necessários à compreensão dos laços que os unem ao rito sacrificial, busquei
analisar de maneira minuciosa e cautelosa cada ritual, retirando das entrelinhas daquilo que não
foi dito com palavras nas entrevistas que também executei, toda a significação expressada em
cada gesto e olhar.
Sobre as entrevistas, executadas de forma semi-estruturadas, procurei focá-las na
sacerdotisa da casa (Oyá Nirolê, popularmente conhecida como Mãe Rosa) e em Denilson
Neivaldo Gursen (Ewasaji), pejigan que, embora não seja efetivamente um membro do terreiro
estudado, goza de grande prestígio e confiança na comunidade candomblecista, participando de
forma ativa em diversas oportunidades das cerimônias a convite da própria sacerdotisa. A
escolha destas duas personagens, deve-se ao fato do enorme domínio prático de suas funções e
de seu extenso percurso na religião, o que faz delas verdadeiros ícones do candomblé em Belém.
A partir daí, escrever passa a ser a parte complementar à observação e análise, secundária em
sua ordem, mas não menos importante que as primeiras, que dará o tom para o leitor, da narração
daquilo que é visto e ouvido no campo (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000).
Procurei entre estudos os clássicos acerca do sacrifício, obras que pudessem fornecer
uma visão mais ampla do tema estudado para melhorar minha compreensão sobre como aquilo
que eu vivenciava no cotidiano poderia ser analisado sob um viés científico. Foi, então, que tive
contato com diversas teorias como a de O Sacrifício (GIRARD, 2011), Sobre o sacrifício
(MAUSS; HUBERT, 2005) e O Sacrifício (GROTTANELLI, 2008), tendo a segunda maior
relevância na tessitura desta dissertação. Através do livro Sobre o sacrifício (MAUSS;
HUBERT, 2005), pude compreender a teoria das práticas sacrificiais como algo que movimenta
e interliga o sagrado ao profano por intermédio do que os autores chamam de “vítima” a qual é
posta em holocausto. O ritual sacrificial é descrito expondo cada uma de suas personagens
(sacrificante, sacrificador e vítima), favorecendo uma maior visualização daquilo que, mesmo
não sendo específico do modelo sacrificial candomblecista (já que o texto da obra trata sobre
22

as culturas hindu e judaica), é capaz de embasar de forma teórica e comparativa, aquilo que
vemos acontecer frequentemente na prática.
Também me serviu de base para compreender as ações sacrificiais, a obra Sociologia e
antropologia (MAUSS, 2003). Desta, extraí a ideia de dádiva, das trocas obrigatórias que, no
candomblé, acontecem pelo “contrato” firmado entre as divindades e seus filhos/devotos,
sempre em proporcionalidade entre o que é dado, recebido e retribuído, em forma de “aliança”
proporcionada pelo sangue sacrificial e pela estabilização que esta sacralização emana. Aliás,
através do ato sacrificial, não se dá apenas o sangue do animal ofertado ou das ervas maceradas,
mas também, a vontade, o tempo e o trabalho para que as divindades sejam agraciadas e honrem
os humanos com suas benesses.
Dito isto, parto para a apresentação do primeiro capítulo desta dissertação onde, o ponto
de partida é a casa de candomblé estudada, já que abriga as principais personagens, locais
sagrados e tradição do culto aos deuses africanos, tudo sendo analisado sob o prisma do
sacrifício. Deixo claro aqui que, também neste capítulo, tratarei da observação do próprio
sacrifício, seus usos práticos e seus sentidos para a casa.
No capítulo seguinte apontarei o sacrifício no candomblé praticado no terreiro estudado,
em pouco mais de duas décadas de sua existência, bem como suas mudanças e permanências,
as estruturas que o cercam, tipificações e locais de prática, a partir da análise etnográfica. No
terceiro e último capítulo desta dissertação, discutirei questões acerca do preconceito existente
contra a ação sacrificial praticada nas religiões de tradição africana, os principais grupos
criadores deste estigma, assim como sobre a argumentação no sentido de desconstruir a visão
pejorativa sobre os atos sacrificiais.
23

CAPÍTULO 1 – O ILÊ ÀṢẸ OYÁ NIROLÊ IGBALÉ (KWE ZANVIS AVESAN) E SUAS
PERSPECTIVAS SACRIFICIAIS

Inicio esta dissertação, tendo como primeiro capítulo a descrição da casa que me serviu
de base para este estudo, sua estrutura física, desde seu assentamento14 até a maneira com que
são classificados os sacrifícios e seus significados para a mesma. Conhecer o espaço físico é
importante, já que é nele que são praticados a maior parte dos rituais sacrificiais, assim como é
importante conhecer uma parte da trajetória religiosa de sua sacerdotisa para compreendermos
como e porque os ritos organizam-se de determinada forma e não de outra.
Toda casa de candomblé conta com uma estrutura familiar (pais e mães, irmãos e irmãs),
hierarquizada, que se faz desde a função de abiã15 até os cargos16 de gaiakú17 ou humbono18,
desenvolvendo uma relação de respeito e reverência entre todos os membros. Essa união na
estrutura, bem como a própria passagem pelos estágios hierárquicos, dependem, em grande
parte, dos rituais sacrificiais praticados durante os ebós19, borís20 e das mais diversas cerimônias
em que são utilizados, provendo equilíbrio espiritual, energético, além de alimentar fisicamente
os indivíduos no cotidiano e nas festas públicas ou restritas aos membros da casa. Da mesma
forma, a estrutura de hierarquia também define a própria relação com o sacrifício, já que alguns
interditos também se configurarão a partir da relação com o sacrificador.
Por esses motivos o sacrifício se faz extremamente importante. Como se diz em língua
iorubá – ainda largamente utilizada na casa devido ao hibridismo, natural no candomblé – “kosi
ejé kosi orixá”21, isto é, “sem sangue não há orixá”. Entenda-se nesta frase, não o sangue apenas

14
Neste caso, trata-se de como é chamado o processo religioso de fundação de uma casa de culto afro. Também
designa os locais onde encontram-se dispostos os objetos sacralizados que representam fisicamente as divindades.
15
Como são denominados aqueles que frequentam uma casa de candomblé como membros, porém ainda não são
iniciados. Não há um período estipulado para a mudança desta posição para uma mais elevada já que a iniciação
depende de vários fatores como a necessidade espiritual do indivíduo, sua disponibilidade de tempo, desejo em ser
iniciado ou vontade do vodum para o qual será iniciado(a), entre outros.
16
Os cargos, são títulos dentro das posições hierárquicas candomblecistas, com funções práticas no cotidiano do
terreiro.
17
Título sacerdotal feminino de posto mais elevado na tradição Jeje. Eleva-se a este cargo a pessoa que atinge
obrigação de vinte e um anos paga.
18
Equivalente masculino de Gaiakú.
19
São oferendas dadas aos voduns com as mais diversas finalidades dentre elas podem ser utilizados “para apaziguar
entidades, outros servem para afastar entidades e encaminhá-las aos seus devidos lugares (...) para pessoas que
sofrem de pragas, para quem tem trabalhos arriscados, como policiais, por exemplo (...) para amor, para saúde,
longevidade, crianças doentes, mulheres que querem engravidar, além da variedade de ebós para transtornos
psicológicos” (AYRÁ, 2019, p. 61).
20
Conforme Miriam Rabelo, “bori é o rito de dar de comer à cabeça ou ori, entidade sagrada no candomblé,
cultuada como lócus da divindade” (RABELO, 2013, p. 90).
21
O termo em iorubá faz referência à necessidade da utilização do sangue (ejé) nos ritos iniciáticos e em tantos
ritos no candomblé. Também é o título da dissertação de mestrado de Gama (2009), que busca analisar o
simbolismo do sangue nesta religião de matriz africana.
24

em seu sentido físico ou tão somente o sangue em si, mas no sentido mais geral, como o
resultante do sacrifício, como os demais órgãos vitais ofertados aos voduns, na força que
dinamiza, potencializa e regula as energias do templo e do mundo.

1.1 O Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé (Kwe Zanvis Avesan): Ambiente Religioso que Abriga o
Sacrifício

O Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé, desde 2003, está localizado no bairro Icuí-Guajará, zona
periférica (onde quase sempre são localizados os terreiros) de Ananindeua, área metropolitana
de Belém, mas teve sua primeira sede no bairro do Coqueiro, “em uma pequena casa padrão
Cohab” (PERDIGÃO, 2011, p. 44) e, antes mesmo de se mudar para o atual endereço, dividiu
terreno com o terreiro Ilê Àṣẹ Odé Sewe (ibid.), já no bairro onde hoje se encontra sediado. É
pertencente à “nação” Jeje-Savalu, do culto aos voduns derivado de tradição que segue uma
extensa árvore genealógica que nos remete à Bahia e tem como sacerdotisa, Oyá Nirolê
(Rosalídia Sutelo Tavares, conhecida como Mãe Rosa), que recebeu este nome devido à orixá
Oyá Igbalé, para a qual é iniciada e que também dá o nome original ao terreiro.
Antes de tudo, cabe esclarecer brevemente, entre outras coisas, a origem da palavra
vodum e de outros termos que foram e serão usados neste trabalho, bem como a ausência ao
culto de alguns destes voduns. O candomblé é religião que, tendo suas raízes no continente
africano, transportou através do Atlântico, tanto uma variedade de ritos quanto de línguas
faladas em África, até sua chegada ao continente americano, “reinventando” e adaptando
antigas tradições à realidade e às possibilidades para o culto das divindades africanas no Brasil.
Assim sendo, trazida para o Brasil, tal diversidade começa a tomar corpo, levando em
consideração seus modelos tradicionais de crenças, costumes e termos.
O culto se diversificou tanto em comparação ao que acontecia em África, quanto ao que
se configurou aqui, agregando novos elementos ao mesmo tempo em que outros iam ficando
para trás, como é o caso do culto a algumas entidades. Todavia, uma das formas de marcar as
diferenças herdadas de diversos povos e nações, fora a utilização das línguas matrizes de cada
uma dessas regiões. A língua passa a caracterizar um ponto-chave da identidade de cada grupo.
Chegamos, então, ao ponto em que o candomblé passa a ser conhecido pela sua divisão
em “nações”, destacando-se os Ketu, os Angola e os Jeje, e para cada um desses grupos, uma
língua matriz, onde respectivamente temos as línguas iorubá, banto e fòngbé (ou simplesmente
fon). Desta última deriva a tradição seguida pela casa que me serve de campo de pesquisa e, por
25

isso, uma parte das palavras que usarei aqui, como a palavra vodum, que é tomada como
equivalente Jeje dos orixás, divindades da nação Ketu, serão da língua Fon.
Entretanto, cabe também ressaltar que, por conta dos diversos contatos interculturais
entre as diferentes tradições, os cultos não assumem uma forma totalmente definida ou “pura”
– como pretendem alguns candomblecistas – e, seja na língua usada ou em sua prática
cerimonial, assume uma forma híbrida e sincrética desde o início, como anota Prandi (2011),
adotando diversas vezes, palavras e ritos pertencentes a outro grupo.

O candomblé desde sua origem foi capaz de criar mecanismos eficazes de


sobrevivência em meio hostil, no caso a sociedade brasileira católica. Mudou,
adaptou-se, sincretizou-se, se escondeu e se mostrou com dissimulação e disfarces
eficientes. Sobreviveu procurando não competir com a religião dominante, mas se
mostrando como uma espécie de conjunto ritual e doutrinário complementar
justificado culturalmente pela memória africana do Brasil. Sempre foi visto mais
como cultura do que como religião propriamente. Talvez como magia, sobretudo
como folclore (PRANDI, 2011, p. 21).

Então, para que não pareça uma questão de incoerência da minha parte e dada a
complexidade da busca destas informações, advirto que usarei alguns dos termos da mesma
forma que são utilizados na casa alvo da pesquisa, por vezes em iorubá, por vezes em fon.
Também tentarei ao máximo utilizar a grafia correta nestas línguas, já que isto também é alvo
de misturas ou do “aportuguesamento” das línguas africanas.
O termo Jeje tem seu primeiro registro no início do século XVIII, designando povos
trazidos da Costa da Mina para o Brasil. Segundo Parés:

[...] na verdade, o termo ‘jeje’ parece ter designado originariamente um grupo étnico
minoritário, provavelmente localizado na área da atual cidade de Porto Novo, e que,
aos poucos, devido ao tráfico, passou a incluir uma pluralidade de grupos étnicos
localmente diferenciados. Trata-se, portanto, de outra denominação metaétnica
(PARÉS, 2018, p. 30).

Esta pluralidade descrita por Parés (2018), se funda a partir não apenas de um ponto de
vista histórico, mas também sob a perspectiva dos mitos ligados aos voduns, que interferem
diretamente na construção do percurso destes povos. Partindo deste prisma, remeto à vinda de
uma escrava trazida do Daomé, e incumbida pelos voduns a criar os templos de Dan22, de

22
Vodum-serpente, tido como patrono da nação Jeje-Mahi. Segundo Parés, “Dan é um vodun com muitas
“qualidades” e acredita-se que, do mesmo modo que todo vodun possui o seu próprio Legba, muitos voduns, dentre
eles Azili e também os tohosu, possuem o seu próprio Dan.” (PARÉS, 2018, p. 177)
26

Heviossô23 e de Ajunsun-Sakpata24. Este último só fora realmente fundado por Gaiakú Satu,
também africana, anos depois na Bahia e ficou conhecido como Cacunda de Yayá25 (COSTA,
2017, p. 36).
Como dito anteriormente, pode-se notar a ausência do culto a alguns voduns e isto
também se justifica pelo percurso histórico e cultural percorrido pelo candomblé Jeje. Devido
aos contatos interculturais, à perda de muitas informações sobre as cerimônias e sobre os
próprios voduns ao longo do tempo e do processo de escravização africana no Brasil, hoje são
poucos os cultuados diante da grande quantidade de elementos deste panteão.
Retomando a descrição da casa, em sua estrutura física, muita coisa mudou desde seu
assentamento até os dias de hoje. Ao entrar pelo corredor principal (que nos dias de festa é
utilizado para abrigar parte dos espectadores), ultrapassando um largo portão, encontramos, à
esquerda, a sala de jogo (Figura 1 e 2) que, além de ser o local de consulta a Ifá através do jogo
de búzios, também abriga um pequeno altar antes dedicado somente à Cabocla Mariana, hoje
também a Seu Rompe-mato, ambas entidades do Tambor de Mina, cultuadas pela sacerdotisa
por sua origem nesta religião.
Em seguida um pequeno quarto de santo26 destinados aos assentamentos de pessoas
agregadas à casa que precisam, por algum motivo, de um abrigo transitório para seus ibás.
Seguindo ainda no mesmo corredor avarandado, ao lado do primeiro quarto de santo, pode-se
observar o quarto de Oxalá/Lissá, dedicado ao orixá/vodum funfun27 mais importante da casa e
onde apenas os ibás deste podem permanecer e onde só se pode entrar de vestes brancas,
seguido de um pequeno espaço aberto, onde geralmente se fazem ebós e do untó28.

23
Vodum da família dos voduns do trovão, além dos seus domínios naturais (raios e trovões, é conhecido também
como o vodum da justiça (MENEZES, 2012, p. 54). É cultuado no Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé como orixá Xangô,
apesar desta ser uma denominação “equivalente” em iorubá.
24
Ajunsun (Azansu ou Azonsu) e Sakpatá, geralmente cultuados como um só vodum, são, na verdade, dois voduns
com mesma atribuição (o domínio da terra e das doenças, sobretudo a varíola e doenças de pele) e vestimentas
semelhantes. Carregam, semelhantemente, as vestes feitas em palha da costa (fibra natural feita a partir da ráfia),
o brajá (colar feito de búzios amarrados) e o lagdbá (colar feito em chifre de búzios). Sua insígnia é o xaxará,
cetro ritual confeccionado com talo de dendezeiro, couro e búzios. (ibid., p. 52)
25
Terreiro de Ajunsun-Sakpatá, foi fundado sob o nome de Àṣẹ Kpó Eji, entretanto, ficou mais conhecido pelo
“apelido” Cacunda de Yayá, “considerado o templo matriz do Jeje Savalu” (COSTA, 2017, p. 36). A Origem do
“apelido” é incerta.
26
Também chamado de hundeme, é o local sagrado para as religiões de matriz africanas onde estão assentados os
ibás dos iniciados da casa. É também o espaço de recolhimento daqueles que estão em processo de obrigação além
de ser o local onde grande parte dos sacrifícios acontecem.
27
Em língua, africana significa “branco”.
28
Local destinado ao banho, o banheiro do terreiro.
27

Figura 1:Vista externa da sala de jogo

Fonte: Acervo pessoal, 2020.

Figura 2: Vista interna da sala de jogo

Fonte: Acervo pessoal, 2020.

Ao lado direito, do mesmo corredor em frente está situado o barracão29 (Figura 3), onde
ocorrem as festas públicas como as saídas, nas quais se apresentam os neófitos. Uma parte desse
ambiente, em dias de festa pública, é destinado aos convidados de elevado grau hierárquico,
ondem são dispostas as chamadas “cadeiras de autoridades”, enfileiradas lado a lado junto à

29
Nomenclatura dada ao local destinado às celebrações em que os voduns vêm para dançar e congregar com os
humanos. Espaço também destinado a alguns sacrifícios como a iniciação dos instrumentos musicais e onde
localizam-se o intoto e a cumeeira pontos fundamentais da estrutura espiritual do templo.
28

parede lateral direita, além das que são postas próximas ao assentamento de Ogum30 no canto
direito inferior do barracão. Os instrumentos utilizados para as celebrações, atabaques31 e gã32
também se encontram no barracão, geralmente cobertos, como “entidades adormecidas” até que
sejam despertadas para invocar os voduns a participarem das festas. Atrás do local destinado
aos atabaques, uma porta estreita dá acesso ao roncó33 onde a maior parte dos rituais de
iniciação são feitos e, por conseguinte, a maior parte dos sacrifícios também.

Figura 3: O barracão, espaço de festa.

Fonte: Acervo pessoal, 2020.

Ao final do corredor, existe uma porta de acesso à residência de Mãe Rosa e sua família
ao lado direito e uma área de serviço que serve à residência e o terreiro, seguida de um estreito
corredor que leva às cozinhas da residência e do templo, esta hoje, situada no quintal utilizado
para abrigar os animais que serão utilizados no sacrifício. Em frente à cozinha da casa de

30
Este é o nome em iorubá, ainda utilizado pela casa. Entretanto, em fon, o vodum recebe o nome me Gú, Gun ou,
por vezes, chamado de Togun (contração de “Ati’ Ogum”, referência a “filho de Ogum”).
31
Instrumentos percussivos utilizados, principalmente, nos rituais festivos. Como define Sampaio, os atabaques
“compõe uma tríade de instrumentos membranofones, possuindo apenas um lado, sendo coberto de couro onde
realiza-se a maior parte da percussão.” (SAMPAIO, 2020, p. 55).
32
Também chamado de agogô, é um “idiofone podendo conter de uma até quatro campânulas e junto aos atabaques
formam o conjunto orquestral das cerimônias nos terreiros de Candomblé.” (ibidem).
33
O roncó é o local que simbolicamente podemos chamar de útero do terreiro, já que ali ficam recolhidas as
pessoas para serem iniciadas, em um processo que se assemelha à uma gestação que pode durar de 16 à 21 dias,
de onde sairão novos filhos prontos para iniciarem sua caminhada religiosa e aprendizado.
29

santo34, está fundada a casa de casa de Exu/Elegbá35, onde são praticados os cortes36 destinados
a este orixá/vodum.
As mudanças físicas na estrutura do templo, ficam por conta de reformas onde, uma das
mais significativas e contraditórias, foi transferir a “casa de Exu/Elegbá” para os fundos do
terreiro (Figura 4). Contraditória já que este orixá/vodum costuma ser assentado à porta do
templo. A justificativa para isso é não haver um espaço disponível e adequado para a abrigar as
grandes obrigações37 e os ibás destinados ao vodum. Outras dessas mudanças foram
transformar dois antigos depósitos em locais destinados a abrigar assentamentos. O primeiro,
entre a sala de jogo e o quarto de Oxalá/Lissá e, o segundo, onde hoje encontra-se uma extensão
do roncó destinada aos assentamentos da sacerdotisa e de alguns pouquíssimos cargos.

Figura 4: Casa de Exu/Elegbá.

Fonte: Acervo pessoal, 2020.

É importante saber destas modificações pois, duas novas áreas sagradas passam a existir
onde antes não havia qualquer relação com espiritualidade. Também há algum tempo, as
cozinhas da casa de candomblé e da residência eram compartilhadas no mesmo ambiente,
porém, por conforto e privacidade, decidiu-se por remanejar a cozinha do templo para o quintal.
Também, ao se desvincularem as cozinhas, surge um novo espaço, restrito aos fazeres
religiosos.

34
Termo que também designa os templos de matriz africana, também conhecidos por roça, abassá, ilê, kwe,
terreiro.
35
Vodum mensageiro e protetor e, graças à essa segunda atribuição, geralmente tem seu espaço assentado à frente
do terreiro. Falarei mais minuciosamente sobre a entidade em capítulo ulterior.
36
Como também são denominados popularmente os sacrifícios.
37
Segundo Miriam Rabelo, “o termo é usado comumente em referência a rituais realizados após a feitura
(iniciação), mas em um sentido mais amplo fala de um modo próprio de construir e cuidar de vínculos ao longo
do tempo, que é característico do candomblé” (RABELO, 2020, p. 1).
30

Antes de ter seu próprio terreiro de candomblé, o percurso identitário religioso de Oyá
Nirolê também sofre transformações, já que fora primeiramente iniciada na Mina38,
posteriormente iniciada no candomblé por um ogan de tradição Ketu (o que é fruto até hoje de
calorosos questionamentos), para só então passar às mãos de um humbono, Babá Oiminerã (que
antes pertencia à nação Ketu mas migrou à nação Jeje-Savalu), da casa na qual fora iniciada e
onde também “pagara obrigação”39 de três anos, passando assim a ter o direito de assentar sua
própria casa.
Entretanto, desde sua iniciação no candomblé pelas mãos do ogan Banjo (pertencente à
“nação” Ketu), já havia elementos que sugeriam a influência dos modelos de fundamentos da
nação Jeje, como informa Perdigão (2011, p. 55) ‘Pai Omineran reconhece mãe Rosa como jeje
e relata que apesar de pai Banjo ter feito os fundamentos principais, os rituais do dia-a-dia (ebós,
idorozan, banhos etc) eram realizados por ele dentro da tradição de sua casa, no jeje.’
O terreiro, assim, nasce já na tradição Jeje, porém ainda com fortes influências Ketu. De
lá para cá, inicia-se ao redor da casa, um processo posterior de busca por esta identidade, que
parte da Bahia e chega até Belém através de Pai Carlinhos de Oxum.
Mesmo ainda mantendo uma parte de suas cerimônias dentro dos moldes da nação Ketu,
hoje os filhos do Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé já respondem pela identidade Jeje, e muitos outros
elementos já passam a demonstrar aspectos desta nova realidade, como a mudança gradativa do
termo “orixá” pelo “vodum” e de seus nomes por seus “correspondentes” em língua fon, da
mesma maneira que a nomenclatura do próprio nome do terreiro por “Kwe Zanvis Avesan”40.
Outro dado a se comentar é o perfil dos membros da casa, já que isso, por vezes, pode
alterar suas compreensões acerca do sacrifício, modelos e tipificações. Atualmente, existe um
pequeno grupo composto por indivíduos de fato iniciados neste terreiro, já que grande parte dos
que hoje frequentam, são iniciados em outros terreiros, mas ali passaram a pagar obrigações41,

38
Religião de matriz africana que chega a Belém em meados do século XIX, “trazida pelos escravos vindos do
Daomé (República Popular do Benim) para os Estados do Maranhão e Pará” (CAMPELO; LUCA, 2007, p. 4).
39
Pagar obrigação é o termo utilizado para o processo no qual um iniciado, para ascender espiritual e/ou
hierarquicamente, passa por rituais de purificação, onde ocorrem, além dos sacrifícios usuais, oferendas, limpezas
espirituais e renovação dos laços com seu vodum. Para tal, é necessária a condução destes rituais por um humbono.
Após sua “feitura” (palavra que designa a iniciação de ìyàwó, isto é, do indivíduo que incorpora um vodum) ou
confirmação (termo utilizado para iniciação dos cargos que não incorporam), rituais periódicos (1, 3, 7, 14 e 21
anos) e de manutenção do àṣẹ, são realizados para reafirmar e reforçar os laços entre os humanos e seus voduns.
Para Rabelo, “Obrigação é justamente o termo que fala da trajetória de crescimento dos filhos de santo no
candomblé.” (RABELO, 2020, p. 4)
40
Em língua fon: Casa dos Filhos da Esteira de Iansã.
41
Vários motivos podem levar membros de um terreiro migrarem para outro. Geralmente, o descontentamento de
algum(ns) dos Filhos com seus Pais e Mães de Santo, ou destes com seu(s) Filho(s) por conta de conflitos interno,
o fechamento temporário ou definitivo de uma casa por luto ou por “desativação”, são os casos mais comuns que
levam a esta migração.
31

motivados por dissidências em suas famílias originais ou pela impossibilidade de frequentá-las


em virtude da distância de suas residências ou fechamento temporário ou definitivo das mesmas.
O nível de escolaridade dos membros da casa é, no geral, de ensino fundamental e médio.
A sacerdotisa terminou o ensino médio e alguns filhos possuem graduação e pós-graduação ou
formação técnica. Alguns clientes que frequentam ou acessam os “serviços espirituais”
acompanham o mesmo perfil.
Algumas concepções sobre os sacrifícios praticados na casa, têm também sofrido
alterações, sobretudo na forma de execução das vítimas42, graças às mais diversas influências
sejam de pessoas externas àquele terreiro convidadas como sacrificadores a participar de
algumas cerimônias, seja pela visita de seus sacrificadores (quando haviam mais de um) à outras
casas ou até mesmo pela influência da mesma leva de informações novas sobre a tradição Jeje
e da busca por esta identidade. No primeiro caso, quando convidados, alguns sacrificadores
trazem por si próprios seus métodos e geralmente são permitidos a usar o que lhes é de costume.
Quanto aos pejigans da casa, ao serem convidados a sacrificar em outro templo, seja ele
da mesma nação ou de nação diferente, é comum que ao observar outros do mesmo cargo
executarem o sacrifício, acabem adotando certos modelos por acreditarem ser mais práticos ou
até visualmente “mais bonitos”. Isto pode acontecer desde a forma com que se segura o obé43,
à maneira que se verte o ohun44 sobre os ibás, aos menores detalhes como a forma de tocar o
pescoço do animal com o obé antes de sacrificá-lo (posteriormente escreverei uma nota sobre
isso) ou como separar as partes dos animais para depositá-las nos ibás.
Como já disse, a busca por traços tradicionais que legitimem a “identidade de nação”,
atua diretamente em todos os aspectos da casa, desde vestimentas, até os cânticos entoados nos
cultos e o sacrifício não se furtaria a isso. Este é um dos motivos que levam às mudanças no
modelo sacrificial, visto que é a imolação é um dos componentes mais importantes para o
candomblé e é necessário que as adaptações aos novos conhecimentos adquiridos sejam feitas
para que a adoração aos voduns se realize da melhor forma possível e isto não interfira na fluidez
da energia (àṣẹ) da casa e dos seus membros. A despeito disso, discorda Cabrera (2004),
ressaltando que:

42
Entenda-se a partir daqui por vítima, qualquer elemento dado em sacrifício, não em seu sentido jurídico, mas
em sentido religioso, como alvo preferencial destas cerimônia, tal qual fora classificado por Mauss e Hubert
(2005). O termo, quando utilizado fora do contexto do sacrifício candomblecista, remete-nos àquele que,
forçadamente, é levado ao sacrifício. Entretanto, dentro da concepção do candomblé, o animal votivo, é conduzido
e aceita seu destino como oferenda dada às entidades.
43
Faca ritual, utilizada para os sacrifícios de sangue. Também são denominados de obé fári e obé siré, a tesoura e
a navalha, respectivamente, utilizadas nas cerimônias de iniciação de um novo membro da casa.
44
Palavra de origem que significa literalmente “sangue” de quaisquer origens, seja animal, vegetal ou mineral.
32

Nada pode variar na técnica do sacrifício; ater-se à tradição e continuá-la fielmente


garante sua eficácia. Semelhante princípio deve ser aplicado a todos os ritos. Nem
esquecimento, nem inovações em matéria tão delicada! Um descuido, um erro, afetará
a iaô, prejudicará o sacerdote e todos quantos participem do che bo (CABRERA,
2004, p. 164).

Reitero que as modificações no que tange o sacrifício no Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé,
foram feitas na busca pelo “retorno às tradições” “esquecidas” ao longo de tanto tempo, desde
os primeiros praticantes do candomblé Jeje até nossos dias. Ainda, cabe lembrar que o
candomblé é uma religião em que os conhecimentos transmitidos são orais, em manuais ou
livros sagrados e, por este motivo, alguma coisa se perde no tempo.

1.2 Análise dos Elementos Sacrificiais no Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé

É fato que nem todo elemento utilizado nos rituais candomblecistas resulta no ohun
(sangue) propriamente dito, mas em energia vital ainda que imaterial, como no caso das frutas
e frutos que não são macerados, das “verduras” que vão para os ebós, dos obís45, os orógbós46.
Os vegetais, por exemplo, são parte importante e fundamental ao culto de matriz africana, tal
qual animais e minerais, pelos quais se têm muitos cuidados, já que possuem, para além de suas
características espirituais, componente curativos, como o que vemos utilizados também em
outras culturas. São banhos, “sacudimentos”, ebós, chás, alimentos, tudo ligado aos deuses
cultuados pelo candomblé e têm sua importância evidenciada por Barros e Napoleão, afirmando
que:

Tal importância dos vegetais no culto dos orixás, voduns e inquices implica
em cuidados especiais. As “folhas” ou “ervas”, como são chamadas as plantas
utilizadas no candomblé, devem ser coletadas através de um ritual complexo,
sem o que perdem sua razão, seu àṣẹ (poder). não devem ser cultivadas, mas
sim encontradas dispersas na natureza - aqui entendendo-se natureza como
“espaço-mato” localizados nos terreiros ou em áreas não cultivadas. Essa
valorização de espécies vegetais foi percebida por todos os estudiosos das
religiões negras, que são unânimes em afirmar a importância e o “segredo”
das ervas no âmbito desses diferentes contextos (BARROS, 2009, p. 19).

45
Obí ou noz-de-cola, semente de “uma árvore nativa da faixa equatorial africana” (RIBEIRO, 2017), a Cola
acuminata, é amplamente utilizado nas religiões de matriz africana e tido como sagrado no candomblé por
representar um meio de comunicação entre os homens e os deuses da mesma maneira que o jogo de búzios. São
mais comumente usados os obís vermelhos (obí pupá, geralmente utilizado para Elegbá) e os obís brancos (obí
funfun).
46
Orógbó ou orobô, é fruto africano bastante usado nos cultos afro-brasileiros como oferenda principalmente a
Xangô, utilizado da mesma forma que o obí a alobaça (cebola) e os búzios, isto é, como comunicação entre à esta
divindade. Também pode ser usado ralado, misturado às oferendas feitas a Xangô.
33

Entretanto, alguns destes elementos nem sempre são compreendidos como possíveis de
serem sacrificados, o que se percebe na concepção geral sobre plantas e minerais. Para
compreendermos as tipificações dos sacrifícios, devemos partir da compreensão de que tudo é
vivo e integrado dentro da cosmovisão candomblecista, daí a necessidade de se renovar esta
vida, mantê-la ou reforçar os laços com ela através das trocas de energias doadas de um
elemento ao outro. Sendo assim, o maior símbolo da vida e alvo preferencial desta troca é o
sangue que está contido desde as ervas aos minerais. Apesar disso, há diferenciações entre os
níveis de energia emanados pelos tipos de sangue, sendo o ohun animal, o mais forte dentre
estes níveis:

[...] na concepção do “povo de santo”, o sangue apresenta-se sob diferentes formas: o


sangue mineral, representado pela água, e o sangue vegetal, que consiste em um
triturado de folhas sagradas, o amansi. Todavia, é o sangue animal que expressa maior
poder e eficácia simbólica para o candomblé: o sangue que alimenta as divindades, os
filhos e filhas de santo, os objetos e espaços sagrados. O sangue que ela o
compromisso com os orixás e com a família de santo da qual se faz parte. O sangue
“das regras” que tem o poder de gerar os descendentes, mas que também desprende o
axé, traçando o caminho das mulheres no terreiro. O sangue que simboliza a morte e
o nascimento de um novo filho, o iaô, feito para servir como veículo dos habitantes
do Orun, em visita ao Aiê, o mundo dos homens (GAMA, 2009).

Esta tipificação vem ao encontro das teorias abordadas por Santos (2012), conhecida
como “teoria dos três sangues”, criticada por alguns autores, como Verger (1982), mas aceita
por outros, como Gama (2009), e alguns membros do candomblé. Beniste (2000), também trata
como sangue, os sumos das ervas. Há, sobre os dois primeiros autores, uma animosidade
constituída a partir das análises de Verger (1982), com base na primeira publicação de Santos
datada do ano de 1975. Segundo Verger (1982), “a autora foi procurar todos esses ‘sangues’,
mas certamente não foi nas tradições conhecidas dos Nagô (Iorubá)”. E continua:

Além disso, salvo quando cita o “sangue vermelho do reino animal” (o sangue dos
animais sacrificados) ela fala de seiva, de esperma, de secreções, de hálito, de metais,
de diversas bebidas, de carvão e de cinza, que parecem difíceis de classificar ainda
que simbolicamente, sob o nome de “sangue”.
Encontram-se algumas vezes três cores em certas histórias de Ifá, mas elas são
classificadas noutra ordem: branco, vermelho e preto, que evocam alternadamente a
cor do céu durante o dia, no crepúsculo e quando chega a noite (VERGER, 1982, p.
8).

Neste debate, Verger (1982), trata como errônea e mal interpretada a fundamentação
teórica de Santos sobre tal teoria, e credita a “confusão” às utilizações da autora aos estudos de
uma cultura diferente da que ela se propõe a analisar tomando de forma incorreta a tipologia
34

das cores apresentada por Turner (2005). Sobre isto, Verger escreve:

Várias páginas do livro de Victor Turner (Turner, 1967, p 68, 81), The forest of
symbols, citado na bibliografia livro da autora, são consagradas a essas três cores, mas
trata-se de um ritual ndembu que não tem nada a ver com o nagô (iorubá) (VERGER,
1982, p. 8).

Como resposta às críticas de Verger (1982), Santos (1982) escreve:

Eu diria que alguns etnólogos, entre os quais Verger, fascinados pela “beleza” e pelo
“exotismo” do “bom primitivo”, se limitam a fotografá-lo, descrevê-lo. São
compiladores de histórias, de ritos, de heróis. Parece que não acompanham o
andamento progressivo do acontecer contemporâneo. Parecem não compreender que
se está encerrando o ciclo das descrições, dos traços culturais, dos documentos
justapostos. Ainda não descobriram as subjacências, a relação do visível com o
invisível, do movimento com o gesto, do transcender do discurso manifesto dos mitos
e ações estruturadores de identidade. (SANTOS, 1982, p. 11)

Apesar da polêmica em torno da citada teoria, decidi adotá-la por perceber, a partir de
minhas observações de campo, grandes semelhanças com o que é descrito por Elbein (2012) e
através de literatura construída por outros intelectuais do candomblé aos quais recorri ao longo
de minha pesquisa.
Ao longo deste subcapítulo, elencarei os sacrifícios dos elementos vegetais, minerais e,
por fim animais, sempre partindo da teoria e da observação que fiz do campo à, como
contraponto, fala dos entrevistados sobre suas perspectivas acerca dos elementos sacrificiais e
demais componentes simbólicos deste do rito. Analisemos os casos.

1.2.1 Os Sacrifícios Vegetais

É bastante recorrente a utilização de vegetais nas mais diversas cerimônias


candomblecistas, que envolvem banhos, “espanações” e “sacudimentos” ou alimentação (para
a “cabeça”, o espírito e o corpo), não apenas em forma de folhas, como também seivas (o breu
branco); tubérculos como o inhame (pode ser utilizado cozido inteiro ou amassado em formato
de bolas), a batata e a cenoura; tuberosas como a mandioca e a beterraba; frutos como o obí, o
orógbó, quiabo, maxixe, abóbora, uva; frutas como a goiaba (da qual se usam inclusive os
35

galhos para a confecção de aguidaví47), a banana, a laranja etc.; o azeite doce e de dendê; o mel-
de-cana; a cachaça; o álcool; o wájí48 e o osún49. Todos os vegetais utilizados são oferendas e,
por assim serem, são elementoss sacrificiais.
Em vários momentos, desde as folhas que são espalhadas no chão do barracão em
“saudação a Ossaim” (Figura 5) durante as festas, nas limpezas espirituais para clientes até às
purificações durante o processo de iniciação de novos filhos da casa, passando pelos bate-
folhas50 (também chamados “sacudimentos”) as ervas são utilizadas largamente, em rituais que
se muitas vezes se assemelham aos sacrifícios de animais.

Figura 5: “Barracão ornamentado para festa de candomblé”.

Fonte: PERDIGÃO (2011)

47
São as “baquetas” com que se tocam os atabaques, confeccionadas principalmente a partir de galhos de goiabeira
por serem bastante resistentes. Geralmente utilizam-se duas (uma em cada mão) para tocar o atabaque de tom
médio (humpí) e o de tom mais agudo (lé ou lê), enquanto no atabaque de som mais grave (hum), utiliza-se apenas
uma.
48
Representativo da noite e da ancestralidade, é um pó de origem vegetal de coloração azul, que passa por um
processo de petrificação, é um dos elementos que contém o chamado ohun mineral. É utilizado nas obrigações de
iniciação dos filhos da casa. Diz-se proteger o orí (cabeça) contra os infortúnios de entidades negativas.
49
Assim como o wájí, de origem vegetal e transformado em pó, é utilizado nas cerimônias de iniciação com o
mesmo objetivo de proteção. Garante a proteção do iniciado, representa o amanhecer e o raiar de uma nova vida
(nascimento, renascimento).
50
Para o candomblé, a influência de energias, sejam elas positivas ou negativas, na vida dos seres humanos, é uma
realidade inconteste. Parte destas energias (negativas), provém se espíritos desencarnados, denominados eguns,
que passaram por diversos possíveis tipos de sofrimentos enquanto ainda estavam sob a forma humana no aiyê.
Os “Bate-folhas” (também chamados “sacudimentos”) seriam então, a forma de afastar estas de varrê-los para
longe dos viventes través do ato de bater ramos de diversas qualidades de planta, cada uma representante de um
vodum, em todos os compartimentos de um imóvel (residência, estabelecimento comercial, ou até mesmo do
próprio terreiro), principalmente de eguns.
36

As folhas (ewé51) segundo a procedência do elemento-domínio de cada entidade:

Os vegetais estão dispostos em quatro compartimento-base diretamente relacionados


aos quatro elementos; as ewé aféé ̣ f ̣ é ̣ - folhas de ar (vento); as ewé inọ́n – folhas de
fogo; as ewé omi – folhas de água; e as ewé ilé ̣ ou ewé igbó – folhas da terra ou da
floresta (DE BARROS, 1993 apud DE BARROS e NAPOLEÃO, 1999, p. 23).

A importância das folhas é citada em mitos iorubás associados a Ossaim, orixá iorubá
responsável pelo conhecimento das ervas, como os narrados por Prandi (2001)52, que catalogou
diversos destes mitos, dentre eles:

Ossaim recusa-se a cortar as ervas miraculosas


Ossaim era o nome de um escravo que foi vendido a Orunmilá. Um dia ele foi à
floresta e lá conheceu Aroni, que sabia tudo sobre plantas. Aroni, o gnomo de uma
perna só, ficou amigo de Ossaim e ensinou-lhe o segredo das ervas. Um dia, Orunmilá,
desejoso de fazer uma grande plantação, ordenou a Ossaim que roçasse o mato de suas
terras. Diante de uma planta que curava dores, Ossaim exclamava: “Esta não pode ser
cortada, é erva que cura as dores”. Diante de uma planta que curava hemorragias,
dizia: “Esta estanca o sangue, não deve ser cortada”. Em frente de uma planta que
curava febre, dizia: “Esta também não porque refresca o corpo”. E assim por diante.
Orunmilá que era um babalaô muito procurado por doentes, interessou-se pelo poder
curativo das plantas e ordenou que Ossaim ficasse junto dele nos momentos de
consulta, que o ajudasse a curar os enfermos com o uso das ervas miraculosas. E assim
Ossaim ajudava Orunmilá a receitar e acabou conhecido como o grande médico que
é (PRANDI, 2001, p. 152).

Os vegetais são cercados de cuidados, o que demonstra a preocupação com a ligação


com a natureza, com a terra, com o vodum, elementos tão ligados que pouco se pode fazer
distinção. Aliás, o candomblé é uma religião de culto à própria natureza. Os voduns não
representam ou são representados por ela, são ela própria!
Para Mauss e Hubert (2005), não apenas as oferendas animais, mas também as vegetais,
são consideradas sacrifícios, apesar de ser bem mais comum a primeira ser vista como tal:

Nessas condições, deve-se chamar “sacrifício” toda oblação, mesmo vegetal, em que
a oferenda, ou uma parte dela, é destruída, embora o costume pareça reservar o termo
apenas à designação dos sacrifícios sangrentos. É arbitrário restringir desse modo o
sentido da palavra. (MAUSS; HUBERT, 2005, p. 18).

Entretanto, percebi que no Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé, nem sempre há a mesma
concepção sobre as práticas sacrificiais. É interessante que, apesar de certos cuidados com

51
Em língua iorubá, ewé significa “folha”.
52
Minha opção pelos mitos catalogados por Prandi (2001) se dá pela análise do próprio campo, onde é corrente a
utilização do autor para relatar tal mitologia.
37

determinados elementos como vegetais usados nos sacrifícios, a compreensão de que estes
elementos são também efetivamente elementos sacrificiais é quase inexistente, sobretudo para
a sacerdotisa do templo estudado. Em entrevista, quando questionada sobre sua visão do tempo,
das ervas e dos minerais como sacrifícios, Oyá Nirolê responde:

Não... as ervas, eu eu eu eles, elas servem pra equilíbrio, né?! “Pá” limpeza do corpo,
“pá” equilíbrio do corpo e da mente da pessoa. Eu não acho que é um sacrifício, você
“num” sa /.../ “num” tá sacrificando... É mesmo que você chegar no no no
supermercado e comprar “um couve”, comprar uma batata, uma, um tomate “pá”
comer. É a mesma coisa. Assim a gente vai, compra a erva, é, macera, faz o banho e
dá “pá” fortalecimento daquela pessoa... energia negativa53 (informação verbal)54.

É interessante perceber o quão contraditória é esta fala, se a compararmos com o trecho


de outra fala posterior sobre os elementos usados em alguns ebós. Segundo ela, os vegetais
ofertados para tal finalidade são “verduras que vêm do chão, têm o contato com a terra que é
um alimento, que alimenta, que dá energia ‘pra’ nossa vida” (informação verbal)55. Ainda, sobre
a qualificação do extrato retirado das ervas enquanto sangue vegetal, Oyá Nirolê afirma que “o
líquido das ervas elas ‘são própia’ pra energizar é em termo de limpeza o nosso corpo, pra esfriar
o nosso corpo, tipo assim, limpar o nosso corpo ‘pá’ poder receber o fundamento do vodum”
(informação verbal)56.
Ora, se tudo para o candomblé tem sangue, é dotado de energia (àṣẹ), de vida, como não
perceber a utilização de cada elemento como sacrificial? Diferente da entrevistada, para Sena,
Santos e Barros, a visão sobre o sangue é outra:

Cabe informar que para o Candomblé, o sangue é o fator primordial de


troca de energias boas (axé), sendo que tudo é provido de sangue. Nessa
ótica, o sal pode ser encarado como sangue mineral, folhas maceradas
como sangue vegetal e assim sucessivamente (SENA; SANTOS;
BARROS, 2014, grifo nosso).

Para todo e qualquer ritual sacrificial e/ou cerimônias feitas no candomblé, são tomados
sempre os mesmos cuidados: Antes de tudo, deve-se observar a necessidade de estar com o
corpo (físico e espiritual) limpos, não se pode haver ingerido bebidas alcoólicas nem praticado

53
Um fato importante a se esclarecer sobre a resposta de Oyá Nirolê é que, ao utilizar o termo “energia negativa”,
a entrevistada não se refere à energia proveniente das ervas, mas sim a que supostamente “se apossou” do indivíduo
que, por este motivo, foi em busca dos serviços espirituais para livrar-se de tais energias.
54
Entrevista concedida por TAVARES, Rosalídia Sutelo. Entrevista I. [10. 2020]. Entrevistador: Wellington
Ramos de Carvalho. Ananindeua, 2020. 1 arquivo .m4a (14 min. 53 seg.).
55
Idem. Entrevista II [11. 2020] (5 min. 7 seg).
56
Ibidem.
38

sexo por pelo menos vinte e quatro horas antes do ritual. Veste-se roupas brancas (axós57),
descalçam-se os pés para que a energia da terra possa circular desta, passando pelo corpo do
indivíduo até chegar às ervas, usa-se os “fios-de-contas”58 de seu respectivo vodum.
Como praticado em algumas casas de candomblé – o que não é praticado no Ilê Àṣẹ Oyá
Nirolê Igbalé, provavelmente por falta de conhecimento ou displicência de quem recolhe as
ervas –, quando certos vegetais são extraídos em áreas de mata, deve-se deixar moedas e tabaco
em pagamento pelo que está sendo extraído dali. O responsável por aquele sacrifício, que pode
ser qualquer pessoa iniciada ou, em casos excepcionais, suspensa. As folhas passam por um
criterioso processo de seleção dentre as melhores, os melhores ramos, sem nenhum sinal de
apodrecimento, devem ser lavados cuidadosamente para que se retire qualquer impureza e
sujeira que possam conter. Conforme a utilização dos vegetais, classifico aqui os exemplos mais
frequentes:

a) Os banhos de ervas

São utilizados para equilibrar mente e espírito. Antes de iniciar a maceração, bate-se
paó59 e saúda-se o vodum com um tocando-se (com a mão direita ou com ambas as mãos) o
solo, a testa, o centro da cabeça (alguns tocam somente ou também acima da orelha) e, por fim,
na parte de trás desta60.
São entoados cânticos para conclamar Ossaim61 a permitir que aquele sacrifício seja
aceito e que deposite seu poder sobre o sacrifício. Não é tão comum na casa, porém algumas
pessoas costumam depositar uma vela ao lado de um copo contendo água e uma moeda em seu
interior, próximo à bacia em que se prepara o banho, em sinal de iluminação, purificação e
pagamento daquele sacrifício que está sendo feito. Não são utilizados instrumentos de corte ou
quaisquer outros recursos para macerar as ervas, apenas as mãos pois acredita-se que naquele
momento deva haver a troca de energias entre quem as macera, os elementos que estão sendo
sacrificados e a entidade que regula o ritual. As ervas são então maceradas, (geralmente) coadas

57
Vestes ritualísticas, comuns a todos os membros do candomblé. Os mais simples são também chamados de
“roupa de ração”.
58
Colares feitos de miçangas colorida que, por suas cores identificam o vodum do qual o membro da religião é
filho. Além do sentido de identificação da divindade (pai ou mãe) protetora do indivíduo, os fios-de-contas também
são utilizados com intuito de proteção contra toda energia negativa que se aproxime dele.
59
Em iorubá a palavra significa “bater palmas”, uma forma de despertar a atenção do orixá/vodum para que este
venha ao encontro daqueles que o estão invocando.
60
Esta é uma maneira de pedir a proteção, para que o vodum guarde o indivíduo cercando-o por todos os lados.
61
Ossaim é orixá iorubano das ervas. Graças ao hibridismo da casa, ainda se referencia este orixá em detrimento
do vodum Agué, cultuado pelos povos Jeje.
39

e misturadas em água limpa e fresca para que se enxague da cabeça aos pés. Para esta finalidade,
são utilizados o manjericão, estoraque, catinga-de-mulata, chama, beti-cheiroso e abre-
caminho ou, na falta destes, o manjericão apenas. Existe também um banho utilizado apenas
para a cabeça em rituais como o borí e a raspagem62 e para isto, macera-se exclusivamente
manjericão.

b) O agbô63

Apesar de também ser um banho de ervas, decidi deixá-lo como uma categoria especial,
dada a importância que se atribui ao agbô. O banho é indiscutivelmente tratado como o mais
forte de todos pelos candomblecistas e por Barros e Napoleão (1999), capaz de purificação física
e espiritual, além de ser um dos maiores fundamentos da casa já que está presente em todas as
obrigações desde a iniciação até as purificações espirituais. Segundo Beniste (2000) as folhas,
ou ewé:

São, verdadeiramente, o sangue vegetal utilizado nos ritos religiosos e na cura de


doenças. Kò sí ewé, kò sí òrìṣà – “sem folha não há òrìṣà”, revela exatamente a
importância de sua utilização em todos os momentos cerimoniais. A maceração das
folhas, denominado Àgbo. De acordo com a cor, textura, habitat, funções curativas,
elas são utilizadas para banhos, bebidas, recebendo denominações especiais. Algumas
delas encontram correspondência em solo brasileiro, pelos africanos aqui trazidos.
Outras foram transportadas e aclimatadas (BENISTE, 2000, p. 312).

São geralmente usadas todas as ervas comumente encontradas nos demais banhos
comuns, não maceradas, bem como algumas sementes e raízes e, em alguns casos, partes de
alguns animais sacrificados e uma pequena porção do seu sangue. Costumava-se dar de beber
deste líquido nas tradições mais antigas, chamando-o de “mingau de agbô” fato que hoje não
mais se pratica por questões de higiene, pois a infusão de folhas passa todos os dias da
obrigação apenas sendo acrescida de água e acaba fermentando por causa da decomposição dos
vegetais. Os mais antigos dizem que, por conta do odor forte que exala de alguns preparos do
agbô, os eguns mantém distância.

62
Ato que, para os candomblecistas, é símbolo de renascimento, de ligação do iniciado com sua divindade. Na
nação Jeje, apenas os ìyàwós tem a cabeça raspada.
63
O agbô, abô ou “banho de abô”, constitui-se em uma mistura de vegetais (folhas, sementes, raízes) inficionadas
em água
40

c) O bate-folhas (sacudimento)

Neste ritual são utilizadas folhas e ramos, seguros em dois feixes, um em cada mão,
espanando e batendo as paredes e o chão de cada compartimento de uma residência,
estabelecimento comercial ou até mesmo do terreiro, quando é necessário. Esta cerimônia serve,
segundo Oyá Nirolê, para “limpar, energizar um local que esteja negativo” e “pra que afaste as
energias negativas, algum egum64, alguns ‘espíritos zombeteiros’, algumas coisas que ‘estiver’
perturbando o local do trabalho” (informação verbal)65. Ainda segundo ela, geralmente são
utilizadas “a folha da mangueira, ‘murici-do-mato’, lacre, pergum, canarana, aroeira, pião roxo,
de espada de São Jorge e cipó d’alho” (informação verbal)66.

d) Os ebós

Outra utilização dos vegetais é em oferendas chamadas de ebós. Nestes podemos


encontrá-los na forma de grãos e cereais (feijão, milho cru, cozido ou em forma de pipoca,
arroz), na forma de bolinhos (inhame cozido, farinha suruí ou de carimã) ou cortados crus
(couve, beterraba, abóbora, quiabo, batata-doce e comum, cenoura etc.). Para cada ebó,
conforme a necessidade de quem será beneficiado por ele a partir do que pedem os voduns,
tipos diferentes de vegetais são utilizados, bem como, em alguns, bebidas alcoólicas que
também são de procedência vegetal.

e) A cama-de-folhas67

Também é outro exemplo da utilização dos vegetais nos cultos da casa, compreendida
por Oyá Nirolê da seguinte forma:

A cama-de-folha para o candomblé, ela representa a energia dos orixás, porque cada

64
Trata-se do espírito ancestral, “o é o antepassado, o morto masculino, importante para a família” (CAPUTO,
2011, p. 668). Na prática do Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé, são também denominados todos os “espíritos
desencarnados” de pessoas comuns que, ao morrerem, podem exercer alguma influência – geralmente negativa –
sobre os vivos e, por este motivo, merecem cuidado especial, na forma de ebós, para “despachá-los”, encaminhá-
los ao seu “descanso”.
65
Entrevista concedida por TAVARES, Rosalídia Sutelo. Entrevista II. [11. 2020]. Entrevistador: Wellington
Ramos de Carvalho. Ananindeua, 2020. 1 arquivo .m4a (5 min. 7 seg.)
66
Entrevista concedida por TAVARES, Rosalídia Sutelo. Entrevista II. [11. 2020]. Entrevistador: Wellington
Ramos de Carvalho. Ananindeua, 2020. 1 arquivo .m4a (5 min. 7 seg.).
67
Denominada sasányìn, pelos iorubá, é “o ritual em louvor a Ossaim, com a finalidade de despertar o poder
mágico dos vegetais.” (DE BARROS; NAPOLEÃO, 1999, p. 507)
41

folha tem é, tem tem um orixá. “Ele” tem um valor para o orixá. Então, “ele”
representa a energia dos orixás para que a gente deite naquela cama, entendeu, pra
nossa obrigação pra no /.../ pro nosso ritual. Ele é /.../ ela é muito importante porque
Ossanhe é um dos orixás principais das nossas obrigações, por causa das ervas, das
folhas (informação verbal)68.

A cerimônia, iniciada por cânticos e a “desfolhagem”, tem por objetivo conferir ainda
mais energia espiritual aquele que está recolhido para iniciação ou uma obrigação com “a
finalidade de fortalecer o ìyàwó e seu orixá, facilitarão o transe e a ligação harmônica entre os
dois” (DE BARROS; NAPOLEÃO, 1999, p. 33). Consiste em uma base de arroz e alpiste, um
amontoado de vegetais (folhas e ervas), correspondente aos voduns, sob duas enis69, tudo
coberto por um alá70, onde o “recolhido”71 irá deitar-se.
Não apenas pessoas, mas o ibá também repousa sobre a cama-de-folhas, esta com
vegetais exclusivos do vodum a ser homenageado naquele momento. As ervas virarão o leito em
que ficarão os ibás que se alimentarão da energia do ohun animal e, ao mesmo tempo, das
próprias ervas ali depositadas além de evitar que o sangue que escorre do sacrifício, em contato
direto com o solo, possa trazer um a negativa para a casa (CHAGAS, 2016, p. 86).

f) O Borí

Por fim, a alimentação é parte fundamental para o corpo e o espírito no candomblé e


esta é a função do sacrifício, nutrir humanos e divindades. No borí o destaque para o sacrifício
vegetal também é muito evidente, já que grande parte das comidas “dadas à cabeça” têm esta
origem. Além dos animais sacrificados, são dadas as comidas preferenciais dos voduns pedidas
por estes através do jogo de búzios. Grande parte delas são feitas com vegetais: àlubósa72; milho
branco e/ou vermelho cozidos, farinha e/ou amido milho; inhame cozido e/ou frito; arroz
cozido; “feijão fradinho” (“feijão-da-colônia”) cozido e/ou frito (acarajé); diversas qualidades
de frutas e frutos. O mel-de-cana também é usado para comidas destinadas ao vodum Agué.
Os sacrifícios, sobretudo os vegetais, não têm um período fixo para ocorrer e estão
ligados muito mais às necessidades de cada indivíduo da casa de maneira geral. Mauss e Hubert

68
Entrevista concedida por TAVARES, Rosalídia Sutelo. Entrevista II. [11. 2020]. Entrevistador: Wellington
Ramos de Carvalho. Ananindeua, 2020. 1 arquivo .m4a (5 min. 7 seg.).
69
Esteira em iorubá, confeccionada a partir de vários materiais como sisal e palha. Sagrada para o candomblé,
significa o retorno à ancestralidade e o nascimento em uma nova vida.
70
Palavra que designa lençol.
71
Termo utilizado para quem está recluso na casa para “pagar obrigação”.
72
A àlubósa ou alobaça como é comumente chamada é utilizada como tempero nas “comidas de santo” e como
método de adivinhação, diálogo com as divindades, da mesma forma que os búzios, obís e orógbó.
42

(2005), tratam esse tipo de prática como sacrifícios ocasionais (os samskâr, hindus). Não há,
neste modelo, uma data específica para ocorrer, é a demanda por estes “serviços espirituais” que
determinam sua execução.
Entretanto, em algumas cerimônias fixas em um calendário da casa, também são
praticados os sacrifícios herbais. É o caso do “corte para Exu” (como é chamado o sacrifício
anual para Elegbá, que ocorre sempre no primeiro domingo de janeiro). Neste caso, são
preparados banhos (sacrifício das ervas) de purificação dos membros que irão participar do
ritual e para os animais a serem sacrificados. Também no “ebó de fim de ano”, em agradecimento
a Oxalá (Lissá) pelas conquistas ao longo do ano que termina, são ofertados sacrifícios vegetais
na forma dos já referidos ebós.

1.2.2 Os Sacrifícios Minerais

Por se tratar de elementos considerados como não possuidores de vida, os minerais nem
sempre são vistos como elementos sacrificiais até mesmo para alguns candomblecistas.
Entretanto, as cerimônias resultam numa diversidade de qualificações de sangue como: o
“sangue vermelho” de origem mineral (e o amarelo como sua variação), que está contido no
cobre, no bronze, entre outros; o “sangue branco”, de mesma origem, que é proveniente de sais,
giz, chumbo, prata etc.; o “sangue preto”, também de proveniência mineral, do carvão, ferro,
assim por diante (SANTOS, 2012, p. 42-3). O fato é que, na concepção do “povo de santo”,
tudo é dotado de àṣẹ que, em outros termos, pode ser compreendido como força vital e por isso
são considerados sacrifícios. A água (GAMA, 2009), e o sal (SENA; SANTOS; BARROS,
2014, p. 215), que, segundo Oyá Nirolê, “representa a vida” (informação verbal)73 e tanto para
o candomblé quanto para cristianismo, é o “elemento ritual de purificação e, de forma simbólica
e premonitória, para indicar a pureza moral, a sabedoria espiritual” (DIAS, 2005, p. 345); o
efún74, são minerais que servem a este fim nas religiões de matriz africanas, garantidores de
proteção espiritual, harmonia, sabedoria, prosperidade.
Vital tanto para os seres humanos quanto para os voduns, o omi75 está presente em todos
os momentos do culto candomblecista, nada se faz sem a presença dela, pois é a mantenedora

73
Entrevista concedida por TAVARES, Rosalídia Sutelo. Entrevista II. [11. 2020]. Entrevistador: Wellington
Ramos de Carvalho. Ananindeua, 2020. 1 arquivo .m4a (5 min. 7 seg.).
74
Pó calcário encontrado na natureza, também chamado de tabatinga, é representante Lissá (Oxalá-Obatalá) e de
suas potências: paz, tranquilidade, equilíbrio e sabedoria.
75
Em iorubá significa água.
43

da vida humana, física e espiritual. Do banho diário comum, de água dormida ao tempo76, ao
banho de ervas, a água limpa, purifica, que nas palavras de Oyá Nirolê, “a água é vida, é
universo é a mãe natureza” (informação verbal)77. Ela é quem resfria e acalma a vida, protege,
abençoa e abraça cada ser humano. Mesmo nos rituais sacrificiais de sangue, a água é o primeiro
elemento a ser ofertado aos ibás.
É a água quem inicia qualquer ritual, ao embeber o obí que será consultado para saber
se as demais oferendas estão de acordo com a vontade dos deuses, ao ser aspergida sobre os
ibás, como sangue que é. Também é quem finaliza um sacrifício animal, também aspergida
sobre este. Ainda que Elegbá78 seja visto como “vodum quente”, por exemplo, um pouco de
água é posto em sua quartinha79 no sentido de que, caso não haja bebidas alcoólicas para ofertar-
lhe, ao menos a água lhe sirva para aplacar a sede. Nenhum vodum recusa totalmente a água!
Outro mineral utilizado como sacrifícios é o efún. Este elemento é considerado símbolo
de proteção para o iniciado, livrando-o das energias negativas e concedendo-lhe à vida, a partir
da iniciação, calma, sabedoria e paciência. Misturado à água, forma um líquido viscoso que é
passado em todo o corpo do iniciado, em círculos e linhas, da cabeça aos pés.
A própria composição dos ibás, quartinhas, oberós80, quatilhões81 e talhas82, são
exemplos de sacrifícios minerais. Unidos à água (como já disse, um importante mineral
extremamente usado nos rituais candomblecistas), o barro do qual são produzidos os recipientes
onde são depositados os mais diversos sacrifícios, a argila e o cimento que é depositado no
interior de alguns ibás, as terras que se juntam à argila para a confecção de um assentamento
de Elegbá, por serem elementos naturais, tornam-se sacrifícios nas mãos de oleiros e de
membros da religião que os preparam. Nem sempre os sacrifícios do qual se produzem os
objetos que serão utilizados nas cerimônias consagram os mesmos, por isso, muitas vezes
necessitam de outros sacrifícios para que passem da esfera profana à sagrada e, assim, possa
ganhar este status.

76
Termo dado a lugar descoberto, em contato direto com o espaço, com a natureza, sem teto e/ou, por vezes, em
paredes.
77
TAVARES, Rosalídia Sutelo. Op. Cit.
78
Na nação Jeje-Savalu, é o vodum mensageiro entre homens e divindades, protetor das entradas das casas e
conselheiro nas tomadas de decisões. Correspondente ao orixá Exu iorubá.
79
Pequeno recipiente de barro com formato assemelhado ao de um vaso de tamanho aproximado de 20 cm, que
compõe os ibás onde é depositada água que é trocada ou completada periodicamente ou na porta o terreiro, como
forma de “primeira limpeza” para os que estão chegando na casa. Pode ou não conter alças, dependendo do vodum
ao qual está destinada: se o vodum for masculino, a quartinha não contém alças, caso contrário, apresenta uma alça
ao lado oposto à outra.
80
Recipiente de barro que se assemelha a um prato ou bacia onde são depositados sacrifícios, comidas etc.
81
Recipiente de barro, semelhante a uma quartinha, medindo aproximadamente 45 cm, também é componente dos
ibás e segue a mesma configuração.
82
Recipiente de barro, a quartinha e o quartilhão, de mesma finalidade, apresentando três alças opostas entre si.
44

1.2.3. Os Sacrifícios Animais ou “Bejerossun”83

Estes são os sacrifícios mais evidentes seja na visão popular, seja na visão
candomblecista e, também, os mais polêmicos. Neste subcapítulo tratarei de falar apenas sobre
a evidência destes sacrifícios deixando as discussões sobre as polêmicas acerca deles para um
capítulo especial. Tratarei aqui sobre em que momentos são utilizados, quais as principais
finalidades e que animais votivos são mais comumente utilizadas nos rituais sacrificiais na casa
de maneira específica e no candomblé de maneira geral.
Os sacrifícios de sangue são praticados em diversos momentos do cotidiano do terreiro
e trata-se “de um ato religioso que só pode se efetuar num meio religioso e por intermédio de
agentes essencialmente religiosos” (MAUSS; HUBERT, 2005, p. 26). Seja em um calendário
fixo, anual, seja por ocasião de uma iniciação ou obrigação ou por necessidade de um cliente
ou filho da casa que procura o jogo de búzios para solucionar situações difíceis em sua vida e
que recebem do vodum o pedido para que oferte um animal em imolação, sempre há um
momento de necessidade deste tipo de cerimônia. O sangue resultante destes sacrifícios, em
qualquer de suas origens, é fundamental para alimentar as energias, para revitalizá-las e ordená-
las, porém, é o proveniente dos animais que tem maior força.
A fala de Ewasaji mostra com clareza a importância do sacrifício:

Para mim, nós aprendemos e cremos que o sacrifício dos animais são pra os voduns
são de uma grande importância porque é a ligação do vodum com ser humano
independendo da feitura, da iniciação. Seja um ìyàwó, seja qualquer uma outra
autoridade, no caso um ogan ou uma ekedji, por que o animal, a vida do animal está
no ohum que é o sangue e esse sangue é dado “po” vodum, pra ele poder nos dar
segurança e nos dá vitalidade espiritual. Esta é a ligação que existe do sacrifício dos
animais entre o vodum e o ser humano (informação verbal)84.

Iniciado no candomblé em 1992 no cargo de pejigan sob o orunkó85 Ewasaji, também


conhecido como Pai Dani, Denilson Neivaldo Guersen é muito requisitado nos cortes da casa
estudada mesmo não sendo membro dela, por sua intimidade com o Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé,
tem propriedade opinar sobre vários sentidos dos sacrifícios do candomblé ali praticado.
Recorri aos seus conhecimentos para elucidar algumas questões sobre o assunto abordado neste
subcapítulo.

83
É a palavra em língua fon que designa o sacrifício animal. (CHAGAS, 2016, p. 84).
84
Entrevista concedida por GURSEN, Denilson Neivaldo. Entrevista II. [10. 2020]. Entrevistador: Wellington
Ramos de Carvalho. Ananindeua, 2020. 1 arquivo .m4a (36 min. 53 seg.)
85
Nome que o iniciado recebe do vodum no dia de sua festa de apresentação. É pela abreviação desse nome que,
a partir dali, passa a ser conhecido entre os candomblecistas.
45

Sobre este vínculo entre o animal sacrificado, o vodum e os seres humanos relatado por
Ewasaji, Dias (2019), nos aponta que:

Da mesma forma que o animal utilizado no ritual se transforma em objeto


comunicante, o sangue derramado, enquanto essência da vida, assume o papel quer
de elemento comunicante, comunicando a intenção do ofertório, quer de elemento
transformador, instituindo a sacralidade dos objetos e transformando-os em “altar”, o
igbá do Òrìṣà. No entanto, como a energia é perecível e o contrato entre humanos e
deuses precisa ser renovado, é pelo sangue que a energia-axé é restaurada e que o
contrato é restabelecido, invocando a dádiva e a troca enquanto ciclo permanente de
relação (DIAS, 2019, p. 4).

Cabrera (2004), nos adverte sobre o sangue ofertado às entidades durante a ação
sacrificial, tanto aos diretamente ligados a eles, quanto aos que “assistem” o ritual, sobre as
energias e os laços criados entre divindades e humanos:

O sangue do sacrifício infunde novas forças ao recém-nascido no orixá, aumenta suas


energias e defesas naturais. Mediante o sacrifício comunga-se e estreita a união com
os orixás e os mesmos benefícios se estendem a todos os que, no igbodu, assistem à
matança, impregnando-se da essência sagrada e poderosa do sangue que é, conforme
definia para nós o omogún Maká, “vida da vida” (CABRERA, 2004, p. 164).

Os sacrifícios não servem apenas à finalidade de revitalizar as energias divinas através


do àṣẹ, sem as quais, dentro da visão candomblecista o mundo pararia, mas também para dar
segurança aos humanos, nutri-los com o mesmo àṣẹ. A alimentação também é parte importante
de comunhão social. O candomblé necessita do sacrifício por ser este um canal direto de
interação entre deuses e humanos através da troca das energias e, para tal, cada vodum tem seu
animal específico a ser ofertado.
Desta oferta, “moela, fígado, coração, pés, asas, cabeça e bem entendido, o sangue,
pertencem aos deuses” (BASTIDE, 1961, p. 21), além dos pulmões, úbere ou saco escrotal e
parte do intestino (dos animais de 4 patas). Dependendo dos anos de obrigação, algumas
costelas também fazem parte do conjunto ofertado aos voduns.
Para a iniciação de um membro, um elemento simbólico é utilizado para representar o
ori (a “cabeça”) do indivíduo. Uma pedra (otá86) é depositada dentro de seu ibá e, para que esta
seja consagrada e se torne realmente um elo entre o vodum e seu filho, é necessário que parte
do sangue do animal seja derramado sobre ele. Para o “assentamento” da casa, também são

86
Pedra que simboliza a cabeça do indivíduo. Acredita-se, no candomblé, que este elemento carrega o poder sobre
a vida do iniciado, sendo mantida longe dos olhos de quaisquer pessoas que não sejam seu dono ou altos cargos
hierárquico da casa.
46

necessários sacrifícios. Relata Oyá Nirolê que “a Terra ‘come’, o ‘Tempo’ come, todas as casas
dos orixás comem, dependendo do dono da casa, mas todos comem” (informação verbal)87.
Em dias de sacrifício, sobretudo estes, os sacrifícios animais, toda a casa se mobiliza em
torno do ritual. Uns depenam as aves, outros preparam como que em uma farofa, as partes dos
animais que, cozidas, serão depositadas à frente de seus ibás. Há, ainda, outros que depenam as
aves que serão preparadas para o almoço ou jantar que será oferecido aos presentes após o ritual
ou distribuído, sobretudo entre os mais carentes do grupo; acondicionam aquilo que irá compor
a “comida de festa”, no dia em que o iniciado for apresentado à comunidade ou que o “pagante”
da obrigação completar seu período de recolhimento. Prandi (2001), narra em um dos mitos, a
importância desta alimentação e dos sacrifícios feitos para que se chegasse à ela:

Orunmilá dá alimento à humanidade


No começo dos tempos, Olodumaré criou os homens e enviou Ogum para conduzi-los
à Terra, devendo Ogum ficar por eles responsável. Ogum, que ficou também sendo
chamado de Obá Jeguijegui, ou “Rei que Come Palito”, na língua antiga, seguiu seu
caminho sem fazer as oferendas devidas.Tempos depois, os humanos guiados por
Ogum morreram. Ogum dava-lhes para comer somente palitos de madeira. Olodumaré
então escolheu Orixalá, conhecido também pelo nome de Obá Jomijomi, ou “Rei que
Bebe Água”, na língua deles. Orixalá seguiu com os seres humanos para o mundo,
mas, como Ogum, não fez os sacrifícios prescritos pelos adivinhos. Tempos depois os
humanos estavam todos mortos. Orixalá os alimentava apenas com água. Orunmilá,
também chamado Obá Jeunjeum,ou “Rei que Come Alimentos”, na língua dos orixás,
ofereceu-se para levar os homens ao mundo e cuidar deles lá, com o que Olodunmaré
concordou plenamente. Previdentemente, Orunmilá consultou o babalaô, que mandou
oferecer sacrifícios antes de partir. Ele deveria preparar sementes de legumes e
tubérculos. O ebó foi feito. Do Orum, Orunmilá despejou essas ofertas na Terra.
Caindo no solo, as sementes germinaram, os tubérculos brotaram. As plantas
cresceram, dando folhas, frutos e sementes, e foi com essa abundância que Orunmilá
alimentou os homens. Os seres humanos reproduziram-se e se espalharam pela Terra
toda. Ogum e Orixalá, contudo, sentiram ciúme dos feitos de Orunmilá e resolveram
vingar- se, destruindo a sua obra. Orunmilá, preocupado com a inveja, consultou Ifá,
que recomendou que ele fizesse oferendas. Que oferecesse cachorros, inhame e bolo
de milho, além de cabras e muitos caramujos. Orunmilá preparou as oferendas e arriou
o ebó numa encruzilhada nas imediações da cidade de Ifé. Por ali os orixás
costumavam fazer uma parada sempre que vinham em visita à Terra. Tecidas as tramas
da desforra, simulando grande amizade, foram Ogum e Orixalá visitar Orunmilá e,
sua casa. Foram recebidos com grande e festivo banquete. Surpresos e satisfeitos com
a acolhida, os dois deram graças a Orunmilá e o declararam Dono do Mundo.
Desistindo de sua infundada vingança, Orunmilá, modestamente, não aceitou o título,
pois, segundo ele, os ere humanos eram devedores dele três. Depois de comer as
comidas de Orunmilá, esgaravatam os dentes com palitos de Ogum e bebem água de
Orixalá para enxaguar a boca. Ao amanhecer, a Terra alcançara a paz e a prosperidade
no reino de Orunmilá (PRANDI, 2001, p. 453-455).

De toda forma, o sacrifício se comprova, para além da comunhão entre homens e deuses,

87
Entrevista concedida por TAVARES, Rosalídia Sutelo. Entrevista I. [10. 2020]. Entrevistador: Wellington
Ramos de Carvalho. Ananindeua, 2020. 1 arquivo .m4a (14 min. 53 seg.)
47

objeto de sociabilidade e de aliança dentro do povo de santo. Torna-se festa em que cada um se
agrega ao todo, em espírito de família, de solidariedade. Neste sentido, Grottanelli (2008), cita
um como um dos tipos de sacrifício elencados por Brelich (1966), a comunhão, em que “a ação
sacrificial visa fortalecer a unidade do grupo que participa dela” (BRELICH, 1966 apud
GROTTANELLI, 2008, p. 15). Decerto, não é o motivo principal, mas um aos quais os
sacrifícios de sangue se destinam.
Grottanelli (2008) também exemplifica com uma tradição africana, a dos mofus de
Camarões Setentrional, sob o termo kuley, algo bem próximo do fazer sacrificial no Ilê Àṣẹ Oyá
Nirolê Igbalé, onde se juntam elementos semelhantes:

1) o espírito de um antepassado. 2) o altar consagrado a tal espírito, 3) o encantamento


mágico, 4) o sacrifício, associado, de modos que variam de acordo com os casos, à
destruição parcial da oferenda apresentada e às palavras do celebrante que dão sentido
ao gesto ritual. Sobre o altar dos mofus são dispostas partes da carne assada pelos
membros de um grupo clânico em um banquete comunitário (GROTTANELLI, 2008,
p. 19).

Tal qual o narrado por Grottanelli, a reunião que se faz ao redor do sacrifício na casa
estudada, tem como culto ancestrais divinizados, os voduns, dispostos simbolicamente nos
pepelês88, a energia que vivifica o ambiente, os cânticos dos sacerdotes que iniciam a
comunicação com as divindades, o próprio sacrifício e as partes dos animais que cabem aos às
entidades e à família ali reunida.
Antes de cada sacrifício, os membros da casa se preparam, entre preceitos e a logística
de aquisição de animais. Os preceitos devem ser seguidos antes e após cada cerimônia,
conforme aponta Pai Dani:

[...] nós temos que estar preservado, independente de nós sermos casados ou não, nós
temos que preservar a nossa matéria, pelo menos vinte e quatro horas antes de
fazermos o sacrifício. E após o sacrifício, de acordo com os animais que nós
chamamos, os animais de “quatro patas” que é um preceito, dos “animais de penas”
que é o outro preceito, e nós temos que cumprir sim, de três a sete dias após o
sacrifício. [...] Um animal de quatro patas, é, a gente cumpre um preceito de sete dias,
“pra” as pessoas que estão no ritual direto, quem corta e quem segura os animais. E
os animais de pena são 3 dias da mesma forma. [...] Relacionamento amoroso, no caso
de casal, não ter relação sexual, e em termos de bebida alcoólica ou qualquer um outro
tipo de orgia, no caso festas populares ou bares, esse tipo de preceito nós temos que
cumprir rigorosamente (informação verbal)89.

88
Trata-se do altar onde são dispostos e organizados os ibás que representam fisicamente os voduns/orixás
cultuados nas casas de candomblé.
89
Entrevista concedida por GURSEN, Denilson Neivaldo. Entrevista II. [10. 2020]. Entrevistador: Wellington
Ramos de Carvalho. Ananindeua, 2020. 1 arquivo .m4a (36 min. 53 seg.).
48

Ainda, segundo Gursen, existem preceitos alimentares, entretanto estes, apenas para a
pessoa em obrigação, não havendo interdito algum neste sentido aos sacrificadores (informação
verbal)90. Oyá Nirolê reforça esta ideia dizendo que:

[…] de “preferência, se for iniciado na casa, ele durma no chão [esteira], enquanto o
vodum dele está ‘comendo’, se não for iniciado, a gente libera, a pessoa vai embora e
fica só com as restrições [alimentares], se é galo, não pode comer ‘frango’, se é ca /.../
é é um bicho de ‘quatro pé’, não pode comer carne (informação verbal)91.

Todos estes preparativos e cuidados fazem parte do processo de sacralização que, como
visto, começa ainda antes do sacrifício propriamente dito. Animais, ervas, locais e pessoas,
unem-se em energia para que tudo possa acontecer segundo a vontade e a necessidade das
divindades e, assim, façam circular o àṣẹ de forma natural. Descreverei os processos dos rituais
sacrificiais no capítulo que segue.

90
Ibidem.
91
Entrevista concedida por TAVARES, Rosalídia Sutelo. Entrevista I. [10. 2020]. Entrevistador: Wellington
Ramos de Carvalho. Ananindeua, 2020. 1 arquivo .m4a (14 min. 53 seg.)
49

CAPÍTULO 2 – A DINÂMICA DOS RITUAIS SACRIFICIAIS NO ILÊ ÀṢẸ OYÁ


NIROLÊ IGBALÉ

Desde os primeiros momentos da casa, sua fundação ou “abertura”, até o seu fim ou
“fechamento”, passando pela iniciação de cada “filho de santo”, seja ìyàwó 92, ekedji93 ou
ogan94, ou qualquer outro posto que ocupe, até seus rituais fúnebres (sirrum95), os sacrifícios
têm espaço de extrema importância. Aliás, na concepção geral do candomblé, guardadas
algumas raríssimas exceções, não há vida se não houver a morte em forma de sacrifícios.
O sacrifício de sangue é praticado levando-se em conta não apenas as necessidades
sagradas das divindades, de outras entidades ou até mesmo de objetos tidos como sagrados de
“nascer” energizar-se, de alimentar-se com a energia vital, de imbuir-se de vida provinda do
sangue que emana de cada animal, mas também das necessidades humanas de conter seus
impulsos violentos, regular as tensões sociais e o ímpeto de vingança sem sofrer represálias
(GIRARD, 2011), bem como alimentar o corpo com o que resulta após o ato, como bem explica
Dias:

Nos terreiros [...], a comida ganha dimensão valorativa, sendo estendido o alimento
do corpo e também do espírito. Comer, nos terreiros, é estabelecer vínculos e
processos de comunicação entre homens, deuses, antepassados e natureza (DIAS,
2019, p. 2).

Cria-se um vínculo, uma comunhão entre humanos e deuses e um espaço de


sociabilidade entre humanos que estabelecem uma prática de integração pelo alimento e auxilia
na alimentação de membros do grupo de menores posses. Em alguns momentos, não são
incomuns casos em que o pouco alimento destes membros, depende em grande parte dos
animais sacrificados nas obrigações. Ao final do ritual, aquilo que não é dado aos voduns, é
devidamente preparado para os que participam da cerimônia ou, ainda cru, dividido e doado
aos mesmos.
Diferente de algumas tradições religiosas, sobretudo as de variação judaico-cristã ou

92
Título utilizado pelos recém-iniciados até cumprirem suas obrigações de sete anos.
93
Título feminino concedido àquelas que, por não incorporarem, dedicam-se aos cuidados com os ornamentos
rituais, a preparação para os dias de cerimônias e com os próprios voduns incorporados e seus médiuns antes e
após a incorporação.
94
Cargo masculino que se divide basicamente em dois outros cargos: os pejigans, sacerdotes dos sacrifícios e
zeladores dos altares; e os huntós, sacerdotes dos instrumentos percussivos sagrados, utilizados nas cerimônias de
candomblé.
95
O sirrum, também chamado de axexê, é o ritual fúnebre praticado pelo candomblé, através do qual, as ligações
religiosas entre o iniciado falecido (quando de sua iniciação) e o mundo dos vivos são desfeitas.
50

que sincretizaram em alto grau seus cultos e ritos, o candomblé tem por necessária a
manutenção do equilíbrio do mundo espiritual e do universo através do ato de se oferecer uma
vida animal sob o aspecto de troca equivalente, que é recíproco (MAUSS, 2003), transferível
de uma vida à outra, mesmo que esta segunda esteja manifestada apenas simbolicamente no
campo material. A energia proveniente do que é ofertado toma conta do ambiente e faz-se
alimento no campo metafísico. Assim, o ritual deixa de ser apenas símbolo para ser a coisa em
si, que mantém a coesão entre os dois mundos, o espiritual e o físico, proporcionando-lhes a
harmonia esperada:

A presença das entidades sobrenaturais, òriṣà e egún, só pode tornar-se possível pela
atividade ritual. As sacerdotisas, os altares, os objetos consagrados, todo o sistema
ritual parariam se, periodicamente, não houvesse transferência e redistribuição do àṣẹ
(SANTOS, 2012).

Esta energia propaga-se, irradia-se através do obé (faca ritual, utilizada para os
sacrifícios), que faz derramar o sangue, gerando uma onda tão intensa que faz os voduns
descerem à terra nos corpos de seus ìyàwós, para cortejar a tão importante cerimônia e
absorverem-na. Esse mana (MAUSS, 2003), se espalha por objetos, corpos, ambientes,
sacralizando tudo o que toca, purificando e fortificando tudo e todos. As mãos que maceram as
ervas que também são sacrificadas e vertem seu “sangue vegetal” sobre cabeças, corpos e
instrumentos sagrados, também fazem irradiar energia, sobretudo curativa, purificadora e
estabilizadora.
Sobre a atuação estabilizadora, sobretudo dos sacrifícios de sangue, parte-se
primeiramente da ideia de que o candomblé é a manifestação de uma totalidade que une
natureza, divindades e humanos em uma estrutura onde “o universo inteiro é concebido como
ser vivente no qual não há uma separação estrita entre humanos e natureza, indivíduo e
comunidade, comunidade e deuses” (ESCOBAR, 2005, p. 72). O povo de santo é uma
comunidade em que o bem-estar coletivo é o ponto de partida do culto. Isto faz com que não
apenas os deuses sejam “agradados com o Sacrifício, mas humanos recebam suas dádivas e
animais e vegetais sejam respeitados e cuidados desde sua criação e cultivo até o momento final
de suas vidas.
Desta forma, tudo e todos têm que estar em harmonia para que a energia flua
continuamente. Para isso, os sacrifícios são utilizados como ferramenta de ordem, honrando os
Deuses para que restituam a normalidade da Casa. Em vários momentos, como o “corte” para
Exu, que acontece todo início de ano com pedidos de que seja assegurado um bom ano aos
51

membros da casa – e à comunidade externa ao terreiro –, a estabilidade que se almeja necessita


que cada indivíduo ofereça em sacrifício, ao menos um animal “de dois pés”. Existem casos em
que, nesta oportunidade, também se oferte em agradecimento à alguma conquista tida no ano
anterior.

2.1.A Estrutura Geral da Ação Sacrificial e sua Dinâmica no Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé

O candomblé como um todo, conta com uma estrutura hierárquica, costumes, laço
interpessoais, relações políticas, cerimônias e rituais extremamente complexos que vêm sendo
estudado por um sem-número de pesquisadores e acadêmicos há algumas décadas. A proposta
desta dissertação vem ao encontro do interesse de tantos, em buscar compreender este sistema
religioso labiríntico que gera desdobramentos à cada análise minuciosa, à cada revisão literária,
porém com uma proposta focada nos rituais sacrificiais restritos à uma casa.
Tendo em vista isso, os subcapítulos a seguir buscam compreender a partir de uma
abordagem etnográfica, os sacrifícios de sangue e seus desdobramentos, a partir de uma
observação de estrutura geral, mas não generalizadora, como mostrarei nas exceções dentro
deste arranjo. Do tempo oferecido ao culto, aos métodos utilizados nos sacrifícios para cada
grupo de voduns, a base se conserva ainda que haja variações nos métodos e nos
comportamentos que cercam os rituais sacrificiais no Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé.
Apesar de haver, como dito anteriormente, uma ordem rígida a seguir nesta estrutura,
por vezes, encontrei aspectos muito específicos no método sacrificial para cada vodum ou outra
entidade, seja nos horários em que são praticados, seja nas ferramentas utilizadas para a prática,
ou no comportamento dos indivíduos em cada um dos rituais que envolvem imolação. Os
cuidados com tudo aquilo que é oferecido à uma entidade também faz parte do existe de mais
geral antes, durante e após as cerimônias quanto ao tempo dedicado, os tratos com os animais
e vegetais e os demais elementos (facas, “temperos” e lugares).

2.1.1 Os Cuidados com a Oferta, com o Ambiente e Demais Elementos do Sacrifício:


Preparação para os Ritos Sacrificiais no Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé

Sejam animais, vegetais, ou mesmo o tempo que será oferecido no culto aos voduns,
tudo carece cuidado e respeito, de uma seleção criteriosa (para animais e plantas) ou com o
52

desprendimento a compromissos externos – no caso do tempo –, preocupações, aborrecimentos


etc. É evidente que, enquanto humanos, algo de negativo por vezes permanece nas mentes dos
indivíduos, sejam alguns sentimentos de piedade pelas vítimas, sejam atribulações cotidianas
que afligem cada um. Porém, os esforços para que isso seja deixado de lado pelo período em
que se reúnem os adeptos, são a máxima de quem faz parte da religião.
Assim sendo, iniciando pelo tempo dedicado ao culto – um sacrifício especial em que
não há destruição completa ou parcial da vítima, mas a abnegação sobre ela –, tem-se a
necessidade do despojo e o cuidado de não marcar compromisso algum para aquele período.
Os horários devem ser respeitados já que, para cada grupo de voduns, um horário específico é
necessário: ao voduns funfun96, as primeiras ou últimas horas do dia, já aos demais voduns, as
demais horas. As cerimônias podem levar de alguns minutos (um ebó, por exemplo) até horas
à fio (como o dia do fári97). Os momentos dos cultos são, em geral, vistos como sagrados e não
devem ser conspurcados por desejos, preocupações e/ou inquietações externas.
Como já disse anteriormente, independentemente da finalidade sacrificial, sempre serão
utilizadas as ervas que passam por um rigoroso processo de escolha, no qual serão separadas as
melhores folhas, os melhores galhos. Algumas são plantadas no próprio terreiro,
cuidadosamente tratadas e colhidas, já que fazem parte dos domínios sagrados dos voduns,
sobretudo de Agué/Ossaim. O candomblé está envolto pela concepção de que a natureza como
um todo, plantas, bichos, minerais e o próprio homem, são partes fundamentais dos domínios
dos voduns e, por isso, necessitam de cuidados especiais, carinho e respeito.
Os animais utilizados nos atos sacrificiais, são bem cuidados até o momento das
cerimônias. Não podem passar por privação de alimentos e/ou de água – exceto algumas horas
antes do ritual, para que não esteja com estômago cheio e aceite as folhas que são oferecidas,
como simbolismo da sua aceitação em ser sacrificado –, nem por calor ou frio. Não podem
pegar chuva, não podem apresentar defeitos físicos, ferimentos nem tampouco – para as fêmeas
– é admitida a prenhez. Quando da prenhez percebida antes do sacrifício, o animal é
imediatamente substituído por outro que não esteja prenhe. Entretanto, há vezes em que isto

96
Funfun significa “branco”. Os voduns que assim são identificados, tomam esta características pelas vestes
brancas que utilizam, o que remete também à “temperatura” que dominam ou emanam, à exemplo de Avedijá,
Avimajhé, Azirí Togbosse, Bafamo Deká, Lissá, Nãn Bayn e Oulissá. São chamados também, em alguns casos, de
voduns frios.
97
Rito de raspagem da cabeça do iniciado. Cerimônia mais importante do ciclo que trará à comunidade de terreiro
um novo membro, agora, “nascido para o santo”. Durante a cerimônia, dentre vários processos, o sacrifício animal
está presente e faz-se extremamente necessário pois, reforça o vínculo do iniciado com seu vodum, através da
energia vital carregada pelo animal (dado em sacrifício) aos elementos sagrados dispostos à sua frente. Este vínculo
será carregado até o fim da vida do indivíduo, passando por vários processos periódicos de “reenergização” e
evolução hierárquica e/ou espiritual.
53

passe despercebido aos olhos do sacrificador que, ao identificar apenas após o ato, executa um
procedimento ritual que deve ser feito para “despachar o feto”98.
O esmero com que são escolhidos e tratados os animais votivos aos sacrifícios pode ser
explicado a partir do que Mauss (2003), chama de circuito da dádiva. Trata-se de uma espécie
de contrato que move as relações em sociedade. É a obrigatoriedade em dar, receber e retribuir.
No caso estudado nesta dissertação, esse contrato é estabelecido entre homens e deuses e segue
a regra de que a coisa dada deve ser proporcional a coisa recebida. Neste sentido dar o melhor
significa receber o melhor em graças e outros benefícios materiais e espirituais.
Pouco antes do ritual, cada animal é lavado com água pura e, depois, com ervas
maceradas em água, finalizando o processo de purificação da vítima com a defumação feita
com uma mistura de ervas secas, sementes, alguns minerais, cascas de árvores, entre outras
coisas, que são previamente trituradas (algumas são torradas) e depois queimadas em um
pequeno fogareiro feito de lata, preso à uma alça de arame, um incensório comparado à um
turíbulo, chamado popularmente de “defumador”. São, então, enfeitados com laçarotes nos
chifres e no dorso (no caso dos animais de “quatro pés”), dispostos em esteiras estiradas
próximo ao local do sacrifício (os animais de “dois pés”).
Em geral, os animais costumam ficar amarrados pelos pés (no caso dos animais de “dois
pés”) para evitar que eles fujam ou se sujem novamente. São dispostos em esteiras (chamadas
ení), pois concebe-se que a limpeza feita previamente já é o início do processo de sacralização.
O mesmo é feito quando o animal sacrificado é um ajapá99, por exemplo. Os animais de “quatro
pés” como bodes e cabras, após sua limpeza, são “enfeitados” com laços de tecidos, nos chifres
e no dorso e amarrados próximo ao barracão, em local limpo e abrigado de intempéries. Devem
ser conduzidos ao local cerimonial evitando ao máximo o estresse, não são chicoteados ou
forçados com puxões bruscos durante o caminho.
Também é necessário que haja cuidado com os locais onde serão feitas as cerimônias e
materiais que serão utilizados durante e após o sacrifício. Quanto a estes locais, estes devem
estar limpos e defumados para receber o ritual. A limpeza se faz, geralmente com água e banhos
(líquidos feitos a partir da maceração de “ervas cheirosas, como o manjericão). O mesmo se faz

98
O termo “despachar”, se refere ao ato de enviar oferendas e suas energias ao orum, aos voduns e, neste caso
específico, do feto retirado do ventre do animal sacrificado, é necessário que este seja ofertado como um pedido
de desculpas por haver sido sacrificado desnecessariamente junto com sua mãe, já que cada vida tem igual
importância na cosmovisão do candomblé e desperdiçá-la à revelia, sem justificativa de necessidade é um mal
passível de penalidades vindas dos voduns. Este ritual acontece sempre longe dos olhos da maioria e seus detalhes
não são revelados a quem dele não tenha permissão de participar.
99
Nome dado ao jabuti.
54

com os obés (faca ritual) utilizadas para os “cortes”. Elementos que irão ser usados durante e
após os sacrifícios como parte do ritual, devem ser preparados e deixados próximos ao local da
imolação. O prato com os obís e acaçás100, o iyó101 (para Lissá não é colocado este elemento),
o oyin102, o epô funfun103 ou epô pupá104 (este último, principalmente no caso dos Elegbás e
nunca para Lissá e algumas qualidades105 de voduns), o ọtí106 (com exceção para Lissá que não
recebe bebida alcoólica), omi e as azemês107, todos dispostos na ordem em que serão utilizados
após o sacrifício.

2.2 O Sacrifício aos Voduns: Sangue e Força para as Entidades Candomblecistas

Como já havia dito, os voduns são os “equivalentes” Jeje dos orixás Ketu. A eles são
prestadas homenagens em forma de oferendas de todos os tipos, entretanto, os sacrifícios de
sangue, são os que apresentam maior expressão dentro do candomblé. Tais entidades, são
cultuadas como deuses para os religiosos da nação Jeje, por este status, são responsáveis por
reger todos os aspectos da vida de cada indivíduo que, em sua honra, em agradecimento ou
pedido, oferecem-lhes sacrifícios. Como já dito, estes sacrifícios são de importância singular e,
por conta disso, nada pode dar errado, tudo precisa ser feito cuidadosamente para que não
melindre os deuses ali invocados.
É exigência de cada vodum, que seus animais e ervas sejam criteriosamente escolhidos,
dentro de seus padrões. Para cada um são escolhidos em cor, espécie, sexo e animal diferente.
De acordo com Berkenbrock (1989):

Três critérios são levados em consideração na escolha do animal: o sexo, a cor e a


espécie. O sexo deve ser o mesmo do Orixá. A cor deve corresponder à cor atribuída

100
Massa de milho branca moída, cozida em água, envolvida em pequenas porções e envolta em folha de bananeira.
101
Sal.
102
Mel.
103
Azeite de oliva.
104
Azeite de dendê.
105
Cada itan conta uma passagem da existência de um vodum/orixá e, por conta disso, lhe confere características
específicas. Exemplo disso é Ibualama, tido como uma qualidade de Oxóssi que passou a viver com Oxum, com
quem teve Logun Edé como filho. Para compreendermos melhor, de forma mais simples, cabe o exemplo do que
acontece no cristianismo católico. Maria, mãe de Jesus é a mesma em todas as histórias contadas durante a
passagem de seu filho na terra ou durante suas aparições no mundo contemporâneo, entretanto, para cada aparição
em um lugar diferente ou para cada passagem em sua história, recebe um título como, por exemplo, N. Sra de
Fátima, por sua aparição na cidade de Fátima, em Portugal (início do século XX), ou N. Sra da Imaculada
Conceição, pela concepção de Jesus sem a mácula do pecado original.
106
Bebidas alcoólicas.
107
Velas.
55

ao Orixá. Por isso, todos os animais oferecidos a Oxalá108 são obrigatoriamente


brancos. A espécie consiste numa classificação em três categorias: ‘bichos de quatro
pés’, ‘bichos de dois pés’ e uma terceira que inclui peixes cobras e insetos
(BERKENBROCK 1989, p. 63 apud CAPONE, 2019, p. 205).

Esta importância e cuidados criam suas bases nos itans109, onde os próprios deuses
necessitam oferecer sacrifícios para que suas empreitadas possam dar certo, como no caso de
Iemanjá que, ao oferecer animal errado, não obteve total êxito em seu desejo:

Iemanjá oferece o sacrifício errado a Oxum


Iemanjá se enamorou de Ogum, mas Ogum a ignorava totalmente. Iemanjá não se
conformou com tal desprezo e procurou o socorro de Oxum, que lhe pediu que
ofertasse uma cabrita. Iemanjá preparou o sacrifício, mas, não tendo a cabra, ofereceu
a Oxum uma ovelha. Oxum veio com um prato de mel dançado suas danças de amor,
e logo pôs Ogum no leito de Iemanjá. Ogum e Iemanjá tiveram seus amores, mas logo
Ogum a abandonou, sem firmar nenhum compromisso. Iemanjá foi procurar Oxum
de novo, mas desta vez Oxum lhe recusou ajuda. Oxum não gostara nada nem do sabor
nem do aroma da ovelha (PRANDI, 2001, p. 394).

Todos os elementos recebem seus devidos cuidados, tomados conforme o subcapítulo


anterior: o local e os animais limpos e defumados, os obés amolados e, assim como os
“temperos”, arrumados próximo aos ibás que receberão o sacrifício.
Como é de praxe iniciar os conjuntos de cerimônias, denominadas obrigações ou mesmo
o início de um “novo ano” nas casas de candomblé com oferendas para Elegbá, iniciarei falando
sobre o Sacrifício oferecidos a ele. Vodum responsável pela virilidade masculina sendo, muitas
vezes, representado por uma figura com um grande pênis, ou portando em uma das mãos um
ogó110. Também a ele, foi dada as características de mensageiro entre o òrum e o àiyé (a morada
das divindades e a dos humanos, respectivamente) e de guardião, sem o consentimento do qual,
nada funciona, nada se faz. Prandi (2001), traz um dos itans que contam motivo pelo qual se
alimenta primeiramente os Elegbá (por ele denominado Exu pela narrativa se tratar de sua
versão iorubana):

Exu come tudo e ganha o privilégio de comer primeiro

108
Oxalá ou Lissá para os Jeje, é o único orixá/vodum que exige animal de sexo diferente ao seu. A Ele são
oferecidas fêmeas apenas, assim como suas vestes também são femininas.
109
Conhecidos como Itans, os mitos africanos regem os fundamentos de cada ato praticado no candomblé. Esses
mitos explicam, através da vida de cada vodum que posturas os humanos devem tomar ou evitar para que assim
possam gozar de boa vida, solucionar problemas, compreender situações cotidianas etc.
110
Cetro, cajado ou bengala em formato fálico, isto é, com forma de pênis, adornado de cabaças e búzio. É símbolo
da energia sexual atribuída a Elegbá. Segundo o Dicionário Michaelis, “teria o poder de transportá-lo a distâncias
ilimitadas e de atrair objetos situados a distâncias igualmente incomensuráveis.” (OGÓ. In: Michaelis Dicionário
Brasileiro da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2021. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/
busca?id=5BV1E>. Acesso em: 28/04/2021.
56

Exu era o filho caçula de Iemanjá e Orumilá, irmão de Ogum, Xangô e Oxóssi. Exu
comia de tudo e sua fome era incontrolável. Comeu todos os animais da aldeia em que
vivia. Comeu os de quatro pés, comeu os de pena. Comeu os cereais, as frutas, os
inhames, as pimentas. Bebeu toda a cerveja, toda a aguardente, todo o vinho. Ingeriu
todo o azeite de dendê todos os obis. Quanto mais comia, mais fome Exu sentia.
Primeiro comeu tudo o que mais gostava, depois começou a devorar as árvores, os
pastos, e já começava a engolir o mar. Furioso, Orumilá compreendeu que Exu não
pararia e acabaria por comer até mesmo o Céu. Orumilá pediu a Ogum que detivesse
seu irmão a todo custo. Para preservar a Terra e os seres humanos e os próprios orixás,
Ogum teve que matar seu próprio irmão. A morte, no entanto, não aplacou a fome de
Exu. Mesmo depois de morto, podia-se sentir sua presença devoradora, sua fome sem
tamanho. Os pastos, os mares, os poucos animais que restavam, todas as colheitas, até
os peixes iam sendo consumidos. Os homens não tinham mais o que comer e todos os
habitantes da aldeia adoeceram e de fome, um a um, foram morrendo. Um sacerdote
da aldeia consultou o oráculo de Ifá e alertou Orumilá quanto ao maior dos riscos:
Exu, mesmo em espírito, estava pedindo sua atenção. Era preciso aplacar a fome de
Exu. Exu queria comer. Orumilá obedeceu ao oráculo e ordenou: “Doravante, para
que Exu não provoque mais catástrofes, sempre que fizerem oferendas aos orixás
deverão em primeiro lugar servir comida a ele”. Para haver paz e tranquilidade entre
os homens, é preciso dar de comer a Exu, em primeiro lugar (PRANDI, 2001, p. 45-
46).

Preferencialmente, a este vodum, são oferecidos animais de cores mais escuras, pretos
ou avermelhados, bodes e galos, machos e, quando são dados os dois tipos de animais,
geralmente são calçados, isto é, animais ofertados em grupos onde, para cada pata de um animal
de “quatro pés”, um bode por exemplo, é sacrificado também um galo ou uma galinha. Também,
a estes, pode ser acrescido um pato, uma galinha d’angola e um pombo, estes, no entanto, não
são sacrificados aos Elegbá. O sexo do animal ofertado, varia quando se trata de Lebara, o
princípio feminino de Elegbá, a quem se sacrificam animais fêmeas.
Antes de iniciar a imolação, o sacrifício de um elemento vegetal é feito diante do ibá já
cuidadosamente preparado e depositado sobre uma cama-de-folhas destinada aos Elegbas (são
usadas algumas das chamadas “folhas quentes”, como urtiga e jurubeba). Oyá Nirolê, a
sacerdotisa dirigente do ritual, deposita sobre um prato branco, um obí (nóz-de-cola) vermelho
ou uma àlubósa (alobaça, cebola), cortando-o(a) em quatro partes, enquanto recita uma oração.
Este ritual é uma consulta ao vodum para saber se este aceita as oferendas que serão feitas a
partir daquele momento e se tudo está de acordo com a vontade da entidade.
O animal de “quatro pés”, quando há sacrifício deste, é levado já enfeitado com laços e
uma pequena corda de sisal, atraído por um ramo de aroeira, erguido à porta da casa de Elegba
e levado para o interior do ambiente onde, mais tarde, será imobilizado apenas com as mãos
pelo sacrificador e seus auxiliares. De pé do lado de fora do local onde serão praticados os
sacrifícios, de olhos abertos direcionados ao alto, o sacrificante recebe uma limpeza inicial com
57

os galos (ou galinhas), sendo passados em seu corpo como que “espanando”111 aquilo que traz
malefícios ao corpo físico e espiritual. Enquanto isso, é entoado um cântico de pedido para que
esses males sejam retirados dos caminhos de quem recebe a limpeza.
Após esta limpeza, o sacrificante e um casal escolhido e intitulados Pai e Mãe
Pequenos112 – caso seja uma cerimônia de obrigação –, acompanham e/ou levam o sacrificante
para participar da cerimônia e que permanece do lado de fora do ambiente que, por pelo menos
um ano ainda, lhe será interditado se este for um cargo e não um ìyàwó. Sobre estes interditos,
Santos (2012), descreve algo que se passa com certos autores que se predispõem a escrever
sobre religiões de matriz africanas, principalmente das cerimônias que envolvem sacrifícios,
mas que, na prática de uma casa de candomblé, funciona também para alguns de seus membros:

Há uma proibição para certa categoria de indivíduos. De fato, pouquíssimas pessoas


têm acesso a essas cerimônias. [...] a aquisição de conhecimentos é uma experiência
progressiva, iniciática, possibilitada pela absorção e pelo desenvolvimento de
qualidades e de poderes. O acesso a determinados ritos está em relação direta com o
grau de iniciação e, consequentemente, com a capacidade física e espiritual do
indivíduo de assistir e participar de uma experiência durante a qual são liberados e
estão presentes forças e poderes dificilmente manejáveis. [...] Se se entende o
profundo significado do sacrifício, compreende-se facilmente a precaução de manter
a cerimônia privada, que provém da estrutura própria da religião Nàgó e não tem
nenhuma relação com qualquer mal-estar moral, nem com barbarismo ou com
nenhuma outra projeção de outro sistema cultural (SANTOS, 2012, p. 19-20).

Retomando à liturgia sacrificial, os galos (ou galinhas) são deitados ao chão em frente
ao assentamento e oferecidos ao seu destino pelas palavras proferidas pela dirigente da
cerimônia e, só após isso, os cânticos voltam a ser entoados para que se inicie a segunda parte
do sacrifício. A casa de Elegba é pequena e, não havendo mais a necessidade de muitos
auxiliares, apenas dois pejigans são necessários e permanecem no ambiente, acompanhados de
uma ou duas ekedjis, e da Mãe de Santo responsável pela condução da celebração.
Em meio a cânticos e pedidos de “prosperidade”, “vida melhor”, “caminhos abertos”,
“proteção no cotidiano”, que são acompanhados pelos demais participantes (abiãs, ìyàwós e
cargos) que permanecem de pé, do lado de fora do recinto, o pejigan e seus “auxiliares”113, em
um número suficiente para conter o animal (cerca de dois ou três no caso de animais de “quatro

111
A “espanação” é o termo popular, utilizado para o ato de limpar ritualisticamente as influências ocasionadas
por energias negativas como as que ocorrem através da atuação dos eguns.
112
Função que se assemelha aos “padrinhos” no catolicismo, auxiliam na “criação” do ìyàwó e em sua caminhada
em sua vida religiosa.
113
Os auxiliares, geralmente, são outros pejigans da casa ou convidados e, em havendo necessidade por ausência
destes, ogans huntós ou até mesmo ekedjis, podem assumir este papel, porém isto é uma exceção.
58

pés”), tomam em seus braços o abukó114, e o seguram para que este não se debata nem grite115.
Com um pequeno ramo de aroeira preso à boca, o mesmo utilizado para atrair o animal até o
local do sacrifício, a vítima é deitada sobre o colo dos auxiliares aguardando o momento certo
de ser sacrificada.
O sacrificador executa, então, uma série de reverências116 tocando a fronte no chão, a
iniciar pelos ibás, depois à dirigente da cerimônia, seguido do pedido de “bênção” à ela, às
pessoas que possuem cargos de destaque no terreiro (desde os iniciados e confirmados mais
antigos aos mais novos), pede licença ao vodum a quem se destina o sacrifício, toma em mãos
a faca sacrificial (obé) e, em um gesto que remete à bênção e reverência, à toca três vezes no
local a ser cortado ou, pelo mesmo número de vezes, traça cruzes 117 tocando com a lâmina no
local do corte para só então desfechar um corte vertical, de cima a baixo no pescoço da vítima.
O ato de tocar com a faca o pescoço do animal antes de sacrificá-lo, para Gursen, trata-
se mesmo de mais uma reverência ao vodum, desta vez, pelo uso do obé naquele momento
(informação verbal)118. A partir de um corte vertical feito no pescoço do animal, o ohun
(sangue) escorre pela faca até atingir o ibá, até que seja o momento de separar a cabeça do
corpo, enquanto os cânticos e pedidos seguem em alta voz, animados pela esperança de que
serão atendidos.
Após sacrificar o abukó (bode), chegando a vez dos animais de “dois pés”, novamente,
toma-se a vítima, segura por um dos auxiliares que lhe prende os pés e as asas como uma das
mãos, enquanto segura o pescoço com a outra para facilitar o corte. O pejigan (sacrificador)
toma a faca novamente em suas mãos e, com ela, retira algumas penas do local a ser cortado
depositando-as sobre as folhas que servem de cama ao assentamento e, em seguida, executa
novamente os gestos de tocar a lâmina no pescoço do animal (este gesto é feito apenas no

114
Bode, em língua africana.
115
O grito ou qualquer vocalização de um animal, seja ele de “dois ou quatro pés” não é interpretado como sinal
de mal presságio, mas sim, de incômodo ou sofrimento do animal. Como já dito anteriormente, compreende-se
que a vítima não deva ser submetida à tortura desnecessária ou demasiado e, portanto, a vocalização emitida por
esta, revelaria algum estresse desnecessário ou, como aponta Pai Dani o animal estaria “reclamando de alguma
coisa” (informação verbal extraída de entrevista concedida por Denilson Gursen, 2020).
116
Estas reverências são prestadas aos voduns por intermédio dos ibás e das pessoas (seus filhos diretos) que ali
os representam. Através destes elementos, canais entre os voduns e os seres humanos, as bênçãos são concedidas,
obedecendo uma lógica bilateral, onde aquele que as pede, também as intermedia junto ao seu vodum.
117
Os gestos em cruz são, provavelmente, uma alusão à influência cristã à qual foi submetida a religiosidade de
tradição africana, já que nem todos os sacrificadores do candomblé executam este gesto, da mesma forma que
alguns símbolos e até visões de mundo foram ressignificadas, dada a ação cristã no processo sincrético seja ainda
em África, seja aqui no Brasil. Em vários momentos essas cruzes aparecem diversos rituais do candomblé como
no ato de traçar riscos com efum no corpo de quem passou por algum ritual de limpeza, para garantir a proteção
por todos os lados do corpo do indivíduo, ou em outros inúmeros momentos.
118
Entrevista concedida por GURSEN, Denilson Neivaldo. Entrevista II. [10. 2020]. Entrevistador: Wellington
Ramos de Carvalho. Ananindeua, 2020. 1 arquivo .m4a (36 min. 53 seg.).
59

primeiro animal).
Novamente, a lâmina passa em um só movimento vertical para baixo, deixando jorrar o
sangue sobre o ibá. Em sua vez, todos os animais vão sendo sacrificados da mesma forma e o
ritual segue com cantigas que reverenciam este momento de sacralização. Ao fim dos
sacrifícios, as vítimas têm seus corpos apresentados e oferecidos novamente ao vodum. Todos
os animais, um a um, em sua vez têm seus membros e cabeça separados do corpo e, apenas uma
parte deles (a cabeça do bode e parte das aves) ficará ali sobre as ferragens119. Ainda do lado
de dentro, os cuidados pós-sacrifício permanecem sendo executados pelo pejigan e seus
auxiliares.
Os cânticos são constantes na cerimônia, sendo um para cada elemento. O ibá é
“temperado”, ou seja, depositado sobre ele o iyó (sal), o oyin (mel), o epô funfun (azeite de
oliva) ou epô pupá (azeite de dendê), o ọtí (bebidas alcoólicas) e um pouco de omi (água)
apenas, já que para os Elegba a água é um elemento de certa restrição, por ser considerada
“fria”, contrariando a energia do vodum.
Das aves, parte das penas, preferencialmente do dorso120, são retiradas e espalhadas
sobre o assentamento para “escondê-lo” e enfeitá-lo, protegendo, de forma simbólica, o
sacrificante dos males espirituais e físicos para, só então, todos os restos dos animais serem
levantados e tocados três vezes na porta de saída, onde se passa um pouco do sangue em uma
pequena área desta porta e se gruda algumas penas, e levados para fora, onde serão tirados os
inxés121 que serão levados à cozinha do terreiro (Figura 6) e cozidos para, mais tarde, serem
depositados junto ao ibá, em vasilhas de barros denominadas oberós.
Aos demais voduns, o ritual sacrificial diferencia-se em alguns momentos em sua
dinâmica, o que envolve locais, ferramentas, horários, entre outros elementos. O local escolhido

119
São representações físicas de alguns voduns/orixás como Elegba/Exu, Gun/Ogum, por exemplo.
120
São usadas estritamente as penas do dorso dos animais por serem estas, as mais limpas. O que pude notar
durante minhas observações, é que existem duas funções para esta parte do ritual, sendo uma prática e uma
simbólica. A função prática é a de manter cobertas as oferendas, livre de detritos e poeira que possam vir a cair
sobre o que está ali depositado, ou de tentar proteger do contato direto com alguns insetos ou demais animais;
simbolicamente, estas penas também seriam uma forma de esconder o sacrificante e todos aqueles que participaram
da cerimônia, dos males espirituais e físicos que possam vir a acometê-los. Esta dimensão simbólica pode ser
percebida enquanto os animais estão sendo depenados, quando, nas palavras do sacrificador, se pode ouvir
geralmente em voz alta, frases como “estamos cobrindo esta oferenda, para que seu(sua) filho(a) seja coberto de
todo o mal, escondido de armas de fogo e de armas brancas”.
121
Também chamadas de àṣẹ, são os órgãos internos e algumas partes dos animais que são cozidas em dendê (no
caso dos voduns com os quais se tempera suas comidas com este tipo de azeite, geralmente os ditos “voduns
quentes”), posteriormente envoltos em farinha fina e posteriormente organizados em recipientes de barro,
remontando simbolicamente as aves sacrificadas. O mesmo é feito com os órgãos internos do abukó (bode). O véu
que encobre o intestino do animal é depositado sobre os fios de sisal da corda que fora desfiada pelo restante dos
participantes da cerimônia que ficaram do lado de fora da Casa dos Elegba durante o sacrifício e que agora cobrem
o orí depositado sobre o assentamento.
60

como apropriado ao sacrifício, então, pode ser um dos quartos de santo (roncó) ou mesmo ao
ar livre. O sacrifício vegetal feito para confirmar a aceitação sobre aquilo que será feito, que
antes era apenas constituído de obí vermelho ou àlubósa, agora pode ser também obí branco ou
um orógbó (orobô) dependendo do vodum para o qual é destinado o sacrifício.

Figura 6: A cozinha do terreiro.

Fonte: Acervo pessoal, 2020

Normalmente, o obé utilizado para o sacrifício é de metal, entretanto, há ao menos um


caso em que o material é excluído de toda a cerimônia devido à recusa deste vodum/orixá em
aceitá-lo. São os sacrifícios feitos à Nanã que, por conta de sua intriga com Ogum, dispensa
qualquer utilização de metais:

Nanã proíbe instrumentos de metal no seu culto


A rivalidade entre Nanã Burucu e Ogum data de tempos. Ogum, o ferreiro guerreiro,
era o proprietário de todos os metais. Eram de Ogum os instrumentos de ferro e aço.
Por isso era tão considerado entre os orixás, pois dele todas as outras divindades
dependiam. Sem a licença de Ogum não havia sacrifício; sem sacrifício não havia
orixá. Ogum é o Oluobé, o Senhor da Faca. Todos os orixás o reverenciavam. Mesmo
antes de comer pediam licença a ele pelo uso da faca, o obé com que se abatiam e se
preparava a comida sacrificial. Contrariada com essa precedência dada a Ogum, Nanã
disse que não precisava de Ogum para nada, pois se julgava mais importante do que
ele. “Quero ver como vais comer, sem faca para matar os animais”, disse Ogum. Ela
aceitou o desafio e nunca mais usou a faca. Foi sua decisão que, no futuro, nenhum
de seus seguidores se utilizaria de objetos de metal para qualquer cerimônia em seu
louvor. Que os sacrifícios feitos a ela fossem feitos sem a faca, sem precisar da licença
de Ogum (PRANDI, 2001, p. 200-201).

Como alternativa ao metal, são utilizados obés de madeira, bambu (Figura 7) ou até
mesmo de cerâmica. Também à Nanã, há uma maneira especial de preparar o animal antes do
sacrifício. Pouco antes de acontecer o corte, um pouco de água é depositada no chão e mexida
61

com a mão, simulando a fabricação de lama, elemento ligado à vodum. O animal é passado
sobre esta água para só então ser sacrificado.

Figura 7: Obé utilizado nos sacrifícios à Nanã.

Fonte: Acervo pessoal, 2020

Ainda em caso de obrigação, porém para outros voduns, noto duas diferenças: a cama-
de-folhas, na qual são dispostos os ibás, e a condução do animal até o local do sacrifício. Para
a cama-de-folhas, de voduns diferentes dos Elegbas, são utilizadas folhas como aroeira, folha
de mangueira, lacre, akoko, folha de murici. Com exceção de Nanã, para quem não se permite
folha de mangueira, por estar relacionada a Ogum e de Lissá/Oxalá, onde apenas se utilizam
manjericão e folha de algodão (consideradas “folhas frias”), para todos os demais voduns de
hundeme122 são mantidos os vegetais citados anteriormente.
Quanto ao bode, este é conduzido à porta de entrada da casa, por uma corda levemente
amarrada ao seu pescoço, que é aberta, erguido pelos chifres e oferecido aos a quem de direito.
O mesmo gesto é executado novamente, levando-o ao centro do barracão, em um local
específico onde encontram-se dois dos mais importantes “fundamentos” da casa, o intoto123 e a
cumeeira124. Ali, após repetir-se o ato de carregar o animal e oferecê-lo, este é posto sobre o
intoto, onde todos os que estão ali presentes, ajoelham-se – cada um em sua vez, por ordem
hierárquica, a iniciar pela sacerdotisa dirigente do culto, finalizando pelos ìyàwós –, saúdam o

122
Os chamados voduns de hundeme, são os que têm suas representações físicas (ibás) abrigadas em um
compartimento onde apenas os iniciados têm a permissão de entrar, o hundeme. Mais adiante trarei uma nota
explicativa sobre este ambiente.
123
Este assentamento recebe o nome do inkisi dos povos bantu (pertencentes aos antigos reinos de Angola,
Kakongo, Lunda e Congo, entre outros) ligado à terra – elemento que é ele próprio, parte da entidade –, às doenças
e ao reino dos mortos, sincretizado como orixá Omolu, dos Ketu, ou com o vodum Sakpata, dos Jeje. É a proteção
da casa e de todos que a frequentam, contra os males do corpo. Assim como todos os espaços importantes de maior
importância do terreiro, seu fundamento também requer sacrifícios que são feitos quando da “abertura” da casa, o
que torna estes locais ambientes sagrados. Devido ao entrelaçamento cultural que marca historicamente os povos
africanos traficados para o Brasil, é comum encontrarmos diversos nomes e/ou termos de troncos linguísticos
pertencentes à outras nações diferentes daquela que rege a tradição de uma casa de candomblé.
124
Também faz parte dos principais “fundamentos” da casa. Em cada casa pertence a um vodum/orixá determinado
pelo jogo de búzios. Não é de costume revelar a qual entidade pertence a cumeeira de uma casa, já que ali está a
principal estrutura espiritual do local e protege seus “segredos”.
62

animal tocando-lhe a fronte com a sua e depois com as pontas dos dedos e fazendo pedidos
mentalmente de proteção individual e para aquele(a) que está recolhido, para que a obrigação
corra de forma harmoniosa e que traga efeitos benéficos a todos e todas que dela participam.
O animal é conduzido pela corda até a entrada do hundeme125, e mais uma vez erguido
e oferecido até que seja levado ao interior do ambiente destinado ao sacrifício. Os abiãs e
ìyàwós que participam do ritual, deitam-se em esteiras e aguardam o momento em que serão
executados os cortes, momento este em que ocorrerá o transe mediúnico com seus respectivos
voduns (obviamente, apenas para os ìyàwós, pois estes possuem mediunidade para tal transe).
Percebe-se que, no momento do sacrifício, estreitam-se os laços entre cada indivíduo
que ali se encontra e o vodum ao qual está sendo ofertado, independente se é ou não o seu
“guardião” através da incorporação (transe mediúnico). Neste ponto do sacrifício está uma das
diversas diferenças no que tange à imolação a diferentes voduns que encontrei em minhas
observações de campo. Nos sacrifícios aos voduns de hundeme, o transe é permitido e
estimulado, geralmente deixando os voduns por certo período e posteriormente invocando o
seus respectivo Beijafé Mahim126.
Existem casos em que os sacrifícios são praticados às entidades denominadas eguns, em
forma de ebó. Nestes casos, a necessidade de se praticar tal ritual justifica-se pela possível
interferência que possam causar na vida de uma pessoa, malefícios à saúde, à prosperidade, aos
relacionamentos etc. Mauss (2003), justifica a necessidade desta troca através das oferendas,
referendando outro teórico, Van Ossenbruggen (1894), explicando que:

As oferendas aos homens e aos deuses têm também por objetivo obter a paz com uns
e outros. Afastam-se assim os maus espíritos e, de maneira mais geral, as más
influências, mesmo não personalizadas: pois uma maldição de homem permite que
espíritos ciumentos penetrem em nós e nos matem, que influências más atuem, e as
faltas contra os homens tornam o culpado fraco diante dos espíritos e das coisas
sinistras (MAUSS, 2003, p. 207).

125
Conhecido como “quarto de Santo”, este é o local onde estão abrigados os ibás da maioria dos voduns da casa,
em especial, aqueles pertencentes à Mãe de Santo e dos cargos do voduns da casa, com exceção dos ibás de Lissá,
que ficam em um quarto diferente por serem mais “melindrosos” e de Elegba, pela energia mais quente e pelos
elementos usados em seu ibá que não são permitidos a outros voduns. É o mesmo local onde quase todas as pessoas
ficam recolhidas para as obrigações (iniciações, borís, obís, entre outras). Este espaço é reconhecidamente o
“útero” do terreiro onde, segundo Milena Xibile Batista, o indivíduo passa processo de “gestação para o nascimento
e recebimento de um novo nome, ‘orunkó’, passando a fazer parte de fato da religião” (BATISTA, 2014, p. 151).
126
São as entidades infantis da nação Jeje. Encontram certa equivalência nos erês do Ketu e como são
popularmente conhecidos no senso comum. Para o candomblé, estas divindades são individuais, “nascendo” e
“morrendo” com o médium em quem incorpora, jamais tornando a incorporar em qualquer outra pessoa. Além de
trazer a alegria infantil para a casa, tem a função comunicadora e pedagógica, isto é, transporta as mensagens
mandadas pelos voduns aos humanos, já que, no início da caminhada de um noviço, até seus desenvolvimento e
“pagamento” de obrigação de sete anos, o vodum ainda não as verbaliza, tendo assim que comunicar-se através da
entidade infantil, que também aprende e ensina ao vodum coisas como o “pé de dança” (movimentos coreografados
encenados durante o rum, a dança ritual de apresentação do vodum).
63

Usa-se, então, do sacrifício para “apaziguar”, ou mesmo afastar estas entidades do


convívio humano. Dá-se o sacrifício em troca, não apenas à entidade causadora dos malefícios,
mas também àquela que teria o poder de conduzi-la (o vodum) à outro plano existencial, ao
descanso, para que esta não mais aflija aquele que procura a resolução para tal mal. Nos
sacrifícios em ebós de egum, em alguns casos, a sacerdotisa ao presidir o ritual, pode ser
acometida de incorporação. Segundo Oyá Nirolê informa, estes casos são raros, entretanto,
passíveis de acontecer. Em casos mais raros ainda, o(a) cliente em quem está sendo feito o ebó
e, por conseguinte, o sacrifício, pode incorporar também:

Agora, muitas vezes, como eu já passe /.../ já aconteceu de eu tá fazendo ebó e a cliente
se incorporar, entendeu? Se incorporar aí fica terrível para a gente po /.../ prosseguir
o ebó, entendeu, e e e a pessoa tá ali com aquele egum em cima, e o egum tá em cima
porque que ele tá sabendo que tá afastando, entendeu? Aí é difícil. Mas é muito difícil
o o a a incorporação. Só nesses casos assim que acontece. E ás vezes a pessoa tá muito
perturbado né, espírito, egum, falange de espírito, eles apa(...)aproximam para que a
pessoa não tenha condições de ficar limpo. Ele sabe que o candomblé expulsa mesmo!
(Informação verbal)127.

Entretanto, quando se trata dos sacrifícios destinados aos Elegbas e Lebaras estes
transes não são permitidos, pois, para Oyá Nirolê, deve-se à tradição seguida pela casa128. Há
também outro ritual sacrificial, no qual a incorporação não se faz presente, o ritual do borí, onde
a divindade reverenciada é única e particular de cada indivíduo, o Orí129. Segundo a sacerdotisa,
não há incorporação durante esta cerimônia “porque, no borí, quem come é a cabeça”
(informação verbal)130, o Orí é quem recebe as oferendas e, por este motivo, nenhuma outra
entidade pode tomar a consciência do médium.
Sobre a postura daqueles que acompanham o ritual sacrificial aos Elegbas e Lebaras do
lado de fora do local destinado à imolação, não é incomum ver, dentre os participantes, algum
deslocamento do ritual em si. Por vezes, alguns riem e conversam sobre assuntos totalmente
desconectados do ritual. Isto, aparentemente, deve-se ao fato da não compreensão do real
sentido do momento e de quanta importância tal ato representa. Com isso, noto que nem todos
percebem o sacrifício no sentido de mantenedor da ordem e da estabilidade, ainda que seja
oferecido à uma entidade tão controversa quanto os Elegbas e as Lebaras, já que este não se faz

127
Entrevista concedida por TAVARES, Rosalídia Sutelo. Entrevista III. [mai. 2021]. Entrevistador: Wellington
Ramos de Carvalho. Ananindeua, 2021. 1 arquivo .mp3 (37 min. 42 seg.).
128
Ibidem.
129
Termo iorubá, utilizado pelo candomblé, que nomeia uma divindade considerada individual, responsável pela
conduta de cada pessoa. Também pode designar tanto a cabeça física, exterior (orí odè), quanto a cabeça interior
ou espiritual (orí inú), responsável por guardar o destino do indivíduo (inú).
130
TAVARES, Rosalídia Sutelo, op. cit.
64

apenas por mero presente despretensioso, nem tampouco de simples agradecimento por alguma
“graça” alcançada.
Há a troca real de energias entre os que participam, os que sacrificam, a vítima e o vodum
ali reverenciado. Talvez este “desvio” de conduta, que em nada se assemelha ao que ocorre em
um “corte” para Lissá, por exemplo, deva-se também ao fato da forma com que se compreende
o vodum Elegba. Por este ser ligado ao movimento, à alegria e ter características extremamente
humanizadas como a sexualidade, alguns comportamentos são mais toleráveis. Isso não
significa também que quaisquer posturas são aceitas, que o ritual seja uma bagunça
generalizada, mas que, simplesmente, uma postura mais suavizada é tolerável, dadas as
características arquetípicas do vodum.
É costume dividir os Elegbas dos demais voduns e, aqui, percebo que isto muito se deve
ao processo de sincretismo que incorporou uma consciência cristianizada às das religiões de
matriz africana. Muito embora Elegba seja tão vodum quanto quaisquer outros, é fácil notar a
diferenciação que se faz quando, nas falas dos próprios praticantes do candomblé na casa,
utilizam termos como “para Elegba e para os voduns”, aceitando que, apesar de ser uma
divindade, esta não se qualifica como as outras.
Há também a ideia de que a energia que este vodum transporta seja pesada, com certa
carga de negatividade, por assim dizer, o que se deve à demonização pela qual esta entidade
passou no processo de identificação cristã dos elementos das religiões de matriz africana. Por
ter atribuída guarda da virilidade, em muitos lugares (inclusive em África) ter sua representação
através de símbolos fálicos, bem como da utilização de elementos como as bebidas alcoólicas
mais fortes, não é costume vincular a permanência de seus objetos simbólicos aos dos outros
voduns, sobretudo os chamados voduns funfun. Desta forma, o culto, os sacrifícios aos ou
voduns de hundeme, são praticados em espaços diferentes, em quartos separados ou até mesmo
no próprio barracão (espaço destinado aos xirês131, isto é, às festas onde dançam os voduns).
Outra diferença na prática sacrificial diz respeito aos ebós. Primeiramente, os locais em
que se praticam estes ebós, são fora dos quartos de santo, em ambiente aberto (em lugares que
podem ser, inclusive fora da própria casa), onde se enfileiram em ordem todos os elementos
que serão utilizados. Os animais mais frequentes são galos e galinhas, que podem ou não ter
sua cabeça separada do corpo ao final do ritual. Neste caso, nenhuma parte é aproveitada para
alimentação ou cozida, mas sim, oferecidos integralmente à entidade a qual está direcionada o

131
Dança ritual coreografada realizada durante os cultos de candomblé. Também faz referência ao conjunto de
músicas entoadas aos voduns no culto candomblecista.
65

ebó. Entoam-se cânticos e o animal é “espanado” no corpo da pessoa que receberá as benesses
e, logo após, tem suas patas, asas e pescoço seguros por alguém que auxiliará o pejigan no
desfecho que culmina no corte vertical no pescoço da vítima sacrificial.
O corpo é depositado em um oberó (vasilha de barro) com as patas para o fundo e, tendo
ou não a cabeça separada deste corpo, esta é posta sob uma de suas asas. Prossegue-se então
com a “limpeza”, passando-se cada elemento do ritual no corpo do “cliente” e depositando
sobre o corpo do animal. Tudo será “despachado” em um local aberto, de mata, ou em lugares
estratégicos como ruas movimentadas, estradas ou encruzilhadas.
Percebi ao menos uma mudança no que tange os sacrifícios aos voduns de hundeme, a
maneira em como se procedia o sacrifício à Ewá. Como era de costume, os animais sacrificados
eram em pares (com exceção de animal de “quatro pés”), entretanto, um de cada vez, seguindo
a ordem imposta pela tradição. Todavia, o que vi durante uma obrigação ocorrida há alguns
anos, os animais de “dois pés” ofertados em dobro, passaram a ser seguros pelos pejigans e
sacrificados simultaneamente, através de um só corte que fazia-lhes verter o sangue sobre os
ibás. Tal alteração é explicada pela constante busca por uma identidade mais “pura” e
reconhecimento dentro do campo religiosos candomblecista, movimento este, já citado no
capítulo anterior.

2.3 Sacrifícios à Caboclos: Um à parte na Casa de Candomblé

Em algumas casas de candomblé no Pará é comum que haja no mesmo ambiente


religioso, o culto em homenagem às entidades pertencentes ao Tambor de Mina, “religião
originalmente instituída no Maranhão, mas que chegou ao Pará em meados do século XIX”
(CAMPELO; LUCA, 2007), que possui uma teologia bastante diferente da candomblecista.
É muito recorrente que Pais e Mães de Santo, hoje sacerdotes e sacerdotisas de
candomblé, terem iniciado sua caminhada religiosa naquela religião e, por isso, acabam por
manter em seus terreiros, ainda que eventualmente, algumas manifestações dos seus cultos de
origem. Tendo em vista esta costumeira realidade, antes do início das chamadas festas de
caboclos132, são feitos sacrifícios à estas entidades, para presenteá-las. No caso específico do
Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé, as cerimônias feitas à Cabocla Mariana iniciam bem cedo com a

132
Festas destinadas às entidades denominadas “caboclos”, cultuadas pela Mina religião. Tais entidades, em seu
panteão, apresentam origens bastante diversas como indígenas e até elementos da nobreza portuguesa, e não apenas
uma linhagem africana, como no candomblé tradicional, onde cultuam-se voduns, nkisis ou orixás.
66

imolação de alguns animais como uma pavoa133 (se for pedido pela entidade e possível de
adquirir) e galinhas (quantas forem pedidas pela entidade), findando com uma grande festa onde
várias entidades como esta vêm para saudá-la.
Logo pelas primeiras horas da manhã, começam a chegar os primeiros membros da casa
que auxiliam no processo de preparação do terreiro para o evento. Alguns arrumam o local onde
é realizado o ritual sacrificial, que divide o mesmo ambiente onde são feitas as consultas ao
jogo de búzios, a chamada sala de jogo (Figura 1 e 2). Ali, são depositadas, primeiramente,
frutas e bebidas, aos pés da imagem que representa a Cabocla Mariana (Figura 8). Um grande
alguidar é posto junto às oferendas. Este servirá para recolher parte do sangue do(s) animal(ais)
que serão sacrificados. A faca utilizada para o sacrifício, geralmente é a mesma que se usa nos
cortes para os voduns da casa e, tal qual nas imolações feitas a eles, deve ser preparado, amolado
e permanece aguardando o momento da cerimônia.
No momento em que tudo já foi preparado, Mãe Rosa, a sacerdotisa da casa, senta-se
em um pequeno banco colocado diante da imagem da cabocla e inicia cânticos que auxiliarão
no processo de incorporação com a entidade. Ao redor, algumas poucas pessoas formam um
coro que entoa a repetição desses cânticos e darão continuidade a eles quando for necessário,
enquanto outros ainda, permanecem do lado de fora da sala devido ao reduzido espaço. A
sacerdotisa, após algum tempo, incorpora com a entidade e recebe sobre a cabeça, o amansi134,
enquanto aguarda o início do sacrifício.
Figura 8: Estátuas da Cabocla Mariana e do Caboclo Rompe-Mato.

Fonte: Acervo pessoal, 2020.

133
Este animal só passou a ser ofertado após a sacerdotisa haver completado 21 anos feita no Tambor de Mina.
134
Banho produzido a partir da maceração de várias ervas que fica em processo de maturação de um dia para o
outro. Ele tem por objetivo fortificar a cabeça do médium.
67

O sacrificador então, toma em suas mãos a faca ritual e, auxiliado por um membro da
casa (geralmente outro sacrificador), inicia o corte, primeiramente pela pavoa (se houver) e,
posteriormente, pelas galinhas, deixando derramar dentro do alguidar o sangue que escorre do
animal. Parte deste sangue também é derramado na imagem, como forma de revitalizar as
energias atribuídas à ela, e outra parte, em pequena quantidade, é passada em algumas partes
do corpo da sacerdotisa já em transe (fronte, pescoço, braço e pés). Após isso, costuma-se fazer
uma bebida ritualística chamada “sangria do caboclo”, fundamento do Tambor de Mina o qual
não é permitida a reprodução de seus componentes nesta pesquisa.
Ao final do sacrifício, são retirados os inxés que serão cozidos e mais tarde depositados
aos pés da imagem, junto às frutas e à uma moranga grande, cozida, cheia de milho amarelo
(também cozido) e enfeitada com tabaco de corda e algumas folhas. O que resta das galinhas
sacrificadas, são preparados para fazer parte das comidas que serão servidas na festa que é o
clímax da cerimônia.
Mais uma vez percebemos aqui a relevância dos sacrifícios de sangue no Ilê Àṣẹ Oyá
Nirolê Igbalé. Ainda que este não seja um ritual direcionado ao culto candomblecista
tradicionalmente praticado na casa, mantem-se a necessidade de conservação e manutenção do
bem-estar espiritual da casa e de seus membros, das trocas de energia, através dos rituais
sacrificiais de sangue, como vemos nesta cerimônia de Tambor de Mina praticada naquele
espaço religioso.

2.4 Os Sacrifícios de Fundação: a Estrutura e a Proteção Espiritual da Casa de


Candomblé

Toda edificação necessita de uma estrutura sólida para que não seja facilmente
derrubada pelas intempéries do tempo. Da mesma forma, uma casa de candomblé, em seu
sentido religioso, necessita de base energética, que permita que esta não sofra interferências
espirituais negativas, e isto é feito nas cerimônias de assentamento da casa. Como todos os
rituais principiam por Elegba, o guardião, a fundação de uma casa de candomblé também segue
esta mesma lógica, entretanto, não é feito ali sacrifício algum (de animais)135, apenas

135
Como dito anteriormente, não há, na visão de Mãe Rosa, a perspectiva de que os vegetais ou minerais ofertados,
sejam em forma de folhas, defumação, banho de ervas, ou quaisquer outras formas em que sejam utilizados, sejam
também elementos sacrificiais. Assim sendo, ainda que sejam utilizados alguns destes elementos nos chamados
“fundamentos fortes”, não serão considerados pela sacerdotisa como sacrifícios, daí então, dizer que “lá não existe
sacrifício”. (informação verbal extraída de entrevista concedida por Rosalídia Tavares, 2021)
68

“fundamentos fortes”, segundo Oyá Nirolê (informação verbal136). Após isto, é a vez do
assentamento de Ogum, a quem são sacrificados, geralmente, três galos de penas avermelhadas:

O Ogum da porta você “senta” já com ferro, porque quem come não é o fundamento
do Ogum, quem come é ferro, porque a proteção está no ferro. Então você “senta” o
ferro entendeu? É feito todo o fundamento, aí você dá três galos, geralmente são três
galos que a gente dá para “sentar” para casa. (informação verbal)137

Os próximos fundamentos a serem assentados são o intoto, e cumeeira. Estes dois


sacrifícios são feitos um após o outro, como pouquíssimo espaço de tempo entre um e outro
iniciando pelo intoto. No chão, é aberta uma cavidade onde serão depositados os elementos
utilizados como fundamentos de assentamento – os quais não pude publicar nesta pesquisa por
questões éticas – e ali mesmo é feito o sacrifício de um galo e uma galinha-d’angola, deixando
escorre o sangue sobre tudo que ali foi posto.
Não há um ibá sobre o qual se sacrifica, aliás, o próprio buraco serve de ibá e, a terra,
elemento integrante do próprio vodum ali cultuado (ver nota sobre o intoto) é quem absorverá
não apenas a materialidade do sangue, mas a energia que dele emana e faz o papel de catalisador
das energias que, juntas, irão conferir a aura de proteção ao ambiente. Terminada a imolação,
tudo é temperado e coberto com areia e tampado com uma pedra de mármore.
Segue-se a este ato, o sacrifício para a cumeeira. Uma cabaça138 grande é preparada,
onde irão ser depositados os fundamentos (que também não me foram revelados pela
sacerdotisa) através de uma pequena incisão quadrada que posteriormente é fechada com o
mesmo pedaço que foi cortado. A cabaça, juntamente com os cartilhões e duas quartinhas, são
dispostas sobre uma cama de folhas e aguardarão o momento de receberem o sacrifício de um
galo, seguindo o mesmo processo que é feito aos voduns, já que ali também será abrigada a
energia protetora de uma destas entidades.
Após o ritual são temperados e “enfeitados” como em todos os rituais em que ocorrem
imolação. Tanto o assentamento do intoto quanto da cumeeira, são rituais dos quais todos os
membros da casa, abiãs, ìyàwós – que permanecem deitados de bruços, sobre suas esteiras, sem
fazer contato visual com o que está acontecendo – e cargos, podem participar. Para a cumeeira,
periodicamente são sacrificados animais sempre que há obrigação de ano (catorze, vinte e um
e nas obrigações de “manutenção”) da sacerdotisa.

136
Ibidem.
137
Ibidem.
138
A cabaça, objeto de origem vegetal, representante da ancestralidade, para os cultos afro-brasileiros.
69

Chega a vez dos principais quartos de Santo, isto é, de Oyá, a “dona da casa”, e
Oxalá/Lissá, o orixá/vodun da criação, para o candomblé. Estes dois rituais de assentamentos,
com todos seus fundamentos, contam com a presença apenas da sacerdotisa e demais cargos da
casa, sem a participação de abiãs e yawos, e são de extrema importância, pois eles asseguram
a ligação entre o orixá/vodum da sacerdotisa (Oyá/Vodum-Jó), o orixá/vodum responsável pela
vida humana (Oxalá/Lissá) e os filhos da casa.
Em seus respectivos ambientes, são erguidos altares em níveis, como uma pequena
escada em alvenaria (Figura 9), com uma cavidade que vai do centro do nível mais alto até o
solo, onde são depositados os fundamentos.
No altar destinado à Oyá, após depositar todos os fundamentos, o pejigan e seu auxiliar
tomam nas mãos primeiramente uma galinha-d’angola e a sacrifica sempre buscando que não
haja sofrimento para o animal, derramando-lhe o sangue sobre os fundamentos. Da mesma
forma faz com uma pomba. Depois, já no quarto destinado a Oxalá/Lissá, seguindo o mesmo
rito, sacrifica uma pomba branca. Nos dois assentamentos, as penas do dorso dos animais são
então retiradas e depositadas sobre tudo o que foi posto na cavidade na mesma ordem em que
foram sacrificados. Os orifícios dos altares são então fechados e assim encerram-se os rituais
de assentamento da casa, não havendo mais a necessidade de se sacrificar periodicamente como
é feito com a cumeeira e os ibás dos iniciados.

Figura 9: Simulação do altar dos voduns.

Fonte: O próprio autor, 2020


70

2.5 Ritos Iniciáticos: Pessoas e Objetos de Culto Segundo a Lógica Sacrificial

Tudo ganha vida ou vida nova a partir de sua imersão na vida religiosa do candomblé.
Pessoas nascem para seus voduns através dos rituais iniciáticos, objetos e lugares de culto
tornam-se vivos em energia espiritual, apesar de permanecerem inanimados. Todas os
elementos ganham uma nova forma de experimentar a existência no aiyê, uma existência
ressignificada, novas utilizações, com novos nomes e significados, atribuídos pelo contato com
as entidades divinas, apenas possíveis após passarem por rituais de sacrifício.
O ohum derramado sobre cada objeto, lhe confere uma aura sagrada, diferenciada dos
demais objetos de uso comum. Um “fio-de-contas”, que poderia ser utilizado normalmente
como um colar, um simples adorno, passa agora por uma transformação que o impede de ser
utilizado em ocasiões profanas; uma faca ou tesoura, já não pode mais ser tocado por mãos não-
religiosas ou “impuras”; um tambor, não pode mais ser utilizado para tocar por quem tem o
dom da incorporação, sob pena de fazer “virar no santo”139 quem o toca. Aliás, este instrumento
também passa a ter o poder de fazer incorporar quem tem mediunidade para isso.
Uma sineta de metal, o adjá, só poderá ser entoada por quem lhe é de direito. Pessoas
tendem a assumir comportamentos diferentes, passar por tempos de recolhimento e interdição
alimentar, utilizam roupas e cores sagradas em dias especiais – como é o caso das vestes branca
às sextas-feiras, em honra a Lissá -, passam a utilizar uma linguagem incomum, estranha até,
aos ouvidos dos leigos. Em resumo, tudo passa a ter outro sentido, a partir dos sacrifícios feitos
e oferecidos aos deuses, tudo ganha um significado ancestral, divinizado, transcendente. Dentro
desta perspectiva, os subcapítulos que se seguem, tratarão dos momentos de iniciação das partes
integrantes do culto candomblecista no Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé.
Iniciarei pela feitura de pessoas, também conhecido como ritual de iniciação ou
confirmação. Trata-se de um processo que dura dezesseis dias para cargos como ekedjis e ogans
e vinte e um dias para ìyàwós, entre ebós, rezas, toques de tambores e sacrifícios. Muito embora
todos os componentes destes rituais sejam integralmente importantes, é a partir dos sacrifícios
que ganham dimensão transformadora, visto que é o ohum ou ejé – termo em iorubá mais
comumente utilizado na casa – quem nutre a vida que circula no terreiro e, como já dito no
início desta dissertação, “kosi ejé kosi orixá” (“sem sangue não há orixá”).
Podemos comparar tais cerimônias ao processo de gestação embrionária e fetal, já que,

139
Termo utilizado para a incorporação com vodum, em que o indivíduo é tomado pela energia da divindade e
assume comportamento delas.
71

quando de sua permanência naquele ambiente, o abiã é preparado para sua vida religiosa e, ao
sair do quarto de santo, este neófito adquire nova vida ao nascer para seu vodum e passa a
congregar em uma nova unidade familiar. Também é nutrido de energia vital, o sangue, tal qual
um feto, porém não por via oral ou por qualquer forma de ingestão desta substância, mas através
dos vários sacrifícios feitos às entidades que o protegem, conforme Oliveira (2012), descreve a
partir de entrevista feita por ele à Mãe Yatylyssá:

‘Uma vida está sendo ofertada para uma nova vida ser iniciada’. O ejé (sangue) dos
animais votivos banha a cabeça do Iaô, mediante rezas cantadas e o toque do adjá
espécie de sineta utilizada em vários rituais pela mãe-de-santo). É o momento do axé,
o fluido vital que liga a vida que se vai à vida que está se iniciando (OLIVEIRA, 2012,
p. 40).

No período de recolhimento, o indivíduo passa por diversos rituais onde, em diversos


deles, está presente o sacrifício animal, desde o “corte” para Elegba até o dia de seu fári, onde
estará definitivamente conectado ao vodum. As cerimônias em que ocorrem este tipo de
oblação, seguem os mesmos ritos já descritos anteriormente, com a limpeza e os cuidados com
os animais, o percurso feito por estes para saudar a casa e suas autoridades e, por fim, a
ornamentação dos ibás, a preparação dos inxés e entrega aos voduns.
Durante a cerimônia de iniciação e todas as outras obrigações a que são submetidos os
iniciados, há a preparação do otá, uma pedra considerada sagrada, geralmente de aparência
polida (desde que assim seja naturalmente), que pode vir de um rio, pedreira, ou qualquer
ambiente natural com conexão com o vodum. Esta pedra é o principal alvo do ohum, já que está
sendo consagrada para manter a ligação entre a entidade protetora e seu protegido (filho).
Quando é iniciado troca seu “fio-de-contas simples” (yian140), por outro (delegum141)
composto por diversos fios unidos e fechados por um cabo142. Estes “colares” conferem
proteção espiritual ao iniciado contra influência de energias negativas e, para tal, também são
incluídos nos rituais sacrificiais, onde “comem”143 junto aos ibás e todos os outros objetos que

140
Fio-de-contas de apenas uma “perna”. Ao abiã, isto é, aquele que ainda não foi iniciado no candomblé, apenas
é permitido o uso de dois, feito em miçangas branco-leitosas que representa Lissá, outro com a cor correspondente
ao seu vodum.
141
Ao passar pelo processo iniciático, é permitido que o yiawô use geralmente três deleguns – fios-de-contas de
dezesseis “pernas” –, referentes a Lissá, ao seu vodum principal (o eledá) e ao seu vodum secundário (o juntó), que
o irão acompanhar até a obrigação de sete anos. No caso dos cargos, além do uso do delegum, é permitido também
o uso de hungebê (ou rungeve), feitos em seguis (um tipo de conta), miçangas ou corais.
142
Espécie de miçanga grande em formato tubular, feitas em vidro.
143
Comer é o termo utilizado para o ato de receber o ohum durante os rituais sacrificiais, quando o objeto é
“energizado” com a força do vodum e torna-se uma proteção fundamental aos iniciados.
72

participarão da cerimônia. A estes, também se junta o mòcán144, talvez o maior símbolo


carregado pelo ìyàwó, que deve conservá-lo até o fim de sua vida mesmo após não precisar
mais usá-lo. Sendo então, um símbolo e um elemento de tão grande importância, os fios-de-
contas (sejam de uma ou de mais “pernas”) e o mòcán, necessitam da sacralização através da
força vital do sangue sacrificial. Estes objetos, que deixam de sê-los apenas, tornam-se vivos
através do sacrifício, para que possam cumprir sua função não apenas de identificar e classificar
hierarquicamente os indivíduos mas também de protegê-los em sua caminhada espiritual.
Os obés e aguidavís (em par) são ferramentas utilizadas pelos ogans em suas atribuições
de sacrificar e tocar os instrumentos percussivos durante as obrigações. Apenas a estes cargos
é dado o direito de portá-los. Como são ferramentas sagradas, acompanharão o cargo por toda
sua vida, entretanto, apenas o obé que foi iniciado junto com seu respectivo pejigan, será
utilizado constantemente, já que o aguidaví que esteve presente e “comeu” durante o ritual de
iniciação de um huntó, geralmente só será utilizado por ele em sua cerimônia de apresentação
à sua comunidade religiosa, sendo, a partir daí, guardado junto ao seu ibá.
O obé, é constantemente utilizado sempre que o pejigan sacrifica um animal. É comum
um sacrificador possuir vários obés, pois nem sempre as energias de alguns voduns podem se
misturar ou é permitida o uso do material do qual é feito, na cerimônia (ver o caso de Nanã).
Como citei, estas duas ferramentas também passam pelo processo de iniciação com seus donos,
alimentando-se da energia do ohum que será derramado sobre eles.
Os atabaques e o gã, bem como os aguidavís que serão utilizados para os “toques”, são
os instrumentos percussivos que dão literalmente o tom às cerimônias de candomblé. Para
Sampaio (2020), em sua pesquisa feita sobre os reflexos dos atabaques na cosmovisão de um
terreiro denominado Ilé Ásé Iya Ogunté, estes instrumentos (os atabaques juntamente com o
gã) são a própria “orquestra ritual” do terreiro. Os sons emitidos por eles, tem função de embalar
as danças rituais e convocar os voduns a reunirem-se com os humanos nos dias festivos.
Para que haja essa conexão entre deuses, instrumentos e humanos, é necessário que os
dois últimos componentes deste triângulo, passem pelo processo de sacralização apenas
possibilitado pelo sacrifício de sangue, através do ritual iniciático que permitirá a ligação
necessária da qual necessitam. Os instrumentos são, então, dispostos lado a lado, deitados sobre
uma cama-de-folhas onde receberão o sangue proveniente do sacrifício de um galo e ali
permanecerão durante vinte e quatro horas, até que sejam novamente postos de pé e tocados

144
Feito em palha-da-costa, isto é, fibra de ráfia, trançado como uma corda, adornado com búzios e fechado em
forma de “vassourinha”, constitui um símbolo do ìyàwó. Confere a proteção contra energias negativas, sobretudo
de eguns.
73

pelos huntós da casa. Todos os instrumentos são novamente “alimentados” à cada obrigação
paga pela sacerdotisa da casa.
Por fim, os múltiplos elementos que são entregues dentro da àkérègbè145, ao final da
obrigação de odu igê146, durante a cerimônia denominada “Cuia de Àṣẹ” – sagrando-se,
conforme o destino traçado por seus voduns, sacerdote sacerdotisa (ou sacerdote) e recebe a
autorização para abrir sua própria casa –, são, além de símbolos da autoridade desta “Mãe” ou
deste “Pai de Santo”, suas ferramentas dentro do culto candomblecista.
O jogo de búzios, responsável pela consulta sobre questões do cotidiano, necessidades
dos filhos de santo e de clientes e andamento ou tomadas de decisão da casa, e o adjá147, com
o qual se conduz o vodum que tem o poder de chamar o vodum a reunir-se aos humanos durante
as cerimônias ou conduzi-los pelo barracão durante as festas, foram sacralizados no mesmo
momento em que se sacrificaram os animais para a já referida obrigação de sete anos e este
laço passou a ser constantemente mantido através do sangue de um Eiyelé148, no intervalo entre
as obrigações de catorze e vinte e um anos e em todas as outras obrigações de “manutenção”
da casa.
Mais uma vez se pode perceber que, apesar de uma enorme diversidade de sacrifícios
praticados nesta casa, cada um com sua importância e razão de existir, os sacrifícios de sangue
se mantém com importância ímpar para os vínculos criados entre pessoas, objetos e divindades,
de tal forma que, apenas ao final da vida de cada indivíduo, estes laços são temporariamente
desfeitos para ser possivelmente retomados em uma nova vida, um retorno em tempos
vindouros, porém esta é uma análise da qual não tratarei nesta pesquisa.

145
Cuia confeccionada a partir de uma cabaça cortada horizontalmente a qual também dá o nome da cerimônia.
146
Como é chamada a obrigação de “sete anos”, através da qual, a/o ìyàwó torna-se sacerdotisa (ou sacerdote).
147
O adjá é o instrumento percursivo, geralmente composto de duas ou três campânulas, entoados por sacerdotes
e sacerdotisas do candomblé, responsável pela condução do vodum/orixá pelo barracão durante as cerimônias.
148
Pombo doméstico.
74

CAPÍTULO 3 – O SACRIFÍCIO SOB PERSPECTIVA: RESSIGNIFICAÇÃO,


JUDICIALIZAÇÃO E POLITIZAÇÃO DO DEBATE SOBRE O SACRIFÍCIO

No primeiro capítulo desta dissertação esbocei uma descrição da casa denominada Ilê
Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé, bem como dos elementos sacrificiais utilizados por ela (vegetais,
minerais e animais). O segundo capítulo traz a etnografia dos rituais sacrificiais, as principais
diferenças entre os sacrifícios ofertados às entidades diversas e como estes rituais se apresentam
nos processos iniciáticos de cada elemento (pessoas, objetos do culto candomblecista e
instrumentos). Finalizo esta pesquiza com outra característica que tem fomentado diversas
discussões seja nas comunidades tradicionais de terreiro, seja no meio acadêmico, jurídico e
até: a intolerância das práticas sacrificiais mantidas até hoje pelo candomblé.
A leitura de alguns autores, entre eles, Bourdieu (2007), Girard (2011), Mauss e Hubert
(2005), com visões mais gerais sobre o sacrifício, nos permitem construir um olhar mais amplo
do assunto, fazendo-nos perceber certa similaridade entre as práticas sacrificiais ao redor do
mundo, em culturas, tempos e espaços diferentes. Outro autor que contribui muito para a
construção deste capítulo é Silva (2005 e 2007), a partir de seu olhar esclarecedor quanto às
transformações ocorridas no campo (neo)pentecostal no cenário religioso brasileiro. Sobre o
crescente número de ataques às religiões de matriz africana, Silva (2007), destaca como sendo
resultado de vários fatores, entre eles os quais podemos destacar:

[...] a disputa por adeptos de uma mesma origem socioeconômica, o tipo de cruzada
proselitista adotada pelas igrejas neopentecostais – com grandes investimentos nos
meios de comunicação de massa e coneqüente crescimento dessas denominações, que
arregimentam um número cada vez maior de “soldados de Jesus” – e, do ponto de
vista do sistema simbólico, o papel que as entidades afro-brasileiras e suas práticas
desempenham na estrutura ritual dessas igrejas como afirmação de uma cosmologia
maniqueísta. (SILVA, 2007, p. 9-10)

Macedo (2012), serve de base para a visão nativa neopentecostal acerca do sacrifício,
desempenhando também, uma nova forma de ver este aspecto dos cultos tradicionais, mas que
sofre ressignificações quanto as suas personagens (sacrificador, sacrificante e vítima do
sacrifício) e elementos.
O sacrifício é comumente associado às religiões afro. No entanto, historicamente,
diversas matrizes fizeram ou ainda fazem uso mesmo em seu sistema litúrgico, como é o caso
do cristianismo em suas mais diversas ramificações, do judaísmo, islamismo, entre outras.
Falarei um pouco mais sobre esses modelos sacrificiais no capítulo.
No Brasil, a partir da chegada das religiões pentecostais, movimento vindo dos Estado
75

Unidos, no início do século XX, constrói um novo campo, forjado no conflito pautado na
pretensa superioridade cultural, na competição por espaços religiosos e econômicos,
transformando as estruturas dos cultos tanto do “opressor” quanto do “oprimido”, onde estes
travam uma verdadeira “Guerra Santa”, de um lado baseada nas (re)leituras das tradições
bíblicas e, de outro, na oralidade sagrada dos povos tradicionais de matriz africana no Brasil.
Incontáveis modificações se processam, não apenas no cenário cristão, mas no meio
religioso brasileiro como um todo, mas é a partir do sacrifício que foco estes estudos, pois, no
contexto analisado, antes eram práticas nitidamente candomblecista, hoje, apropriada,
remodelada e ressignificada por grupos religiosos neopentecostais pertencentes a diversas
igrejas como como a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), a Igreja Fonte da Vida de
Adoração, a Igreja Internacional da Graça de Deus, o Ministério Nova Jerusalém, a Igreja
Renascer em Cristo, a Igreja Batista Nacional, o Ministério Internacional da Restauração, a
Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra, a Igreja Mundial do Poder de Deus e a Igreja
Nacional do Senhor Jesus Cristo, acabam ganhando status de espetáculo e encenação midiática,
nos templos e programas exibidos diariamente em canais de TV associados à essas Igrejas.
É fato que essas adaptações muito se devem ao racismo religioso e não apenas ao
“preconceito” ou à intolerância (ideias diferentes, mas não antagônicas), que tenta de todas as
formas excluir as práticas não-cristãs, e o processo de captação de fiéis, desde os que não se
identificavam com religião alguma, até egressos das próprias religiões de matriz africanas.
Estruturado no seio da sociedade brasileira, difunde mascaradamente a perseguição à
afrodescendência em forma de “purificação” cultural, civil e religiosa, tendo em vista a criação
de um Estado laico que, no entanto, sirva aos propósitos cristãos da branquitude, como já se
fazia desde os tempos coloniais mas teve que se adaptar às novas Constituições religiosamente
democráticas. Vejamos os dois gráficos a seguir:

Gráfico 1: Cor dos agressores Gráfico 2: Cor das vítimas

Fonte: RIVIR, 2018. Fonte: RIVIR, 2018.


76

Temos acima, uma amostra do que vemos todos os dias em nosso meio social. Os dados
foram emitidos pelo Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil (RIVIR) de
2018, e fazem referência sobre os anos de 2015 a 2016. Neles podemos perceber, dentro do
quesito “cor”, quem são os maiores agressores e os maiores agredidos dentro das relações
religiosas, ficando assim compreendidos no Gráfico 1, 53% dos agressores pertencem à cor
branca, 34% pertencem à cor parda, 12% à cor preta e 1% à etnia indígena. Sobre os percentuais
das vítimas, o Gráfico 2 aponta que 37% das vítimas pertencem à cor branca, 47% pertencem à
cor parda, 17% à cor preta e 2% à etnia indígena. Cabe ressaltar que pretos e pardos, segundo
o Movimento Negro, figuram em uma só classificação étnica, os negros.
A primeira utilização do termo racismo religioso está associada a Claudiene dos Santos
Lima, em seu Trabalho de Conclusão de Curso em Pedagogia, pela Universidade Estadual da
Paraíba. Em suas palavras:

O racismo pode ser definido como crenças na existência de raças superiores e


inferiores. Dessa forma é passada a ideia de que por questões de pele e outros traços
físicos, um grupo humano é considerado superior ao outro. Ao direcionar os
argumentos racistas para as religiões, tem-se o racismo religioso, através do qual se
discrimina uma religião (LIMA, 2012, p. 9).

É notório que os grupos religiosos, sobretudo neopentecostais, servem ao propósito de


branqueamento étnico-cultural, em nome do racismo estrutural, função antes delegada à Igreja
católica, quando esta ligava-se constitucionalmente ao Estado e geria e desempenhava o papel
de “reguladora” da “ordem social” e dos “bons costumes”. Da mesma forma, é visível a
influência deste sistema religioso no meio social e político de nosso país, sendo reforçado e
reforçando os discursos de “proteção ao direito a vida animal” e as tentativas de criminalizar as
práticas afro-religiosas.
Entretanto, há um outro viés, adotado a partir das transformações no seio das próprias
igrejas pentecostais, que se refere à disputa por mercado religioso. A busca de fiéis, o
proselitismo, tendem a acirrar as perseguições às práticas mantidas pelos Povos Tradicionais
de Matriz Africana, sobretudo ao sacrifício (ou “abate tradicional não violento”). Esta busca
pelo mercado da fé, acaba por criar o antagonismo, opondo, de um lado, os que detêm a
“legitimidade” da “religião superior” através do domínio estrutural, contra os que ainda ocupam
espaço de fragilidade nessa estrutura sendo postos como “primitivos” e “inferiores”, tal qual
sugere Bourdieu (2007):

A oposição entre os detentores do monopólio da gestão do sagrado e os leigos,


77

objetivamente definidos como profanos, no duplo sentido de ignorantes da religião e


de estranhos ao sagrado e ao corpo de administradores do sagrado, constitui a base do
princípio da oposição entre o sagrado e o profano e, paralelamente, entre a
manipulação legítima (religião) e a manipulação profana e profanadora (magia ou
feitiçaria) do sagrado, quer se trate de uma profanação objetiva (ou seja, a magia ou
a feitiçaria como religião dominada), quer se trate da profanação intencional (a magia
como anti-religião ou religião invertida). [...] Desta maneira, costuma-se designar em
geral como magia tanto uma religião inferior e antiga, logo primitiva, quanto uma
religião inferior e contemporânea, logo profana (aqui, equivalente de vulgar) e
profanadora. Assim, a aparição de uma ideologia religiosa tem por efeito relegar os
antigos mitos ao estado de magia ou de feitiçaria (BOURDIEU, 2007, p. 43-44).

Neste capítulo veremos algumas das características do sacrifício no conceito judaico,


muçulmano e para o “novo pentecostalismo” em comparação ao candomblé, bem como as
estratégias de combate e de defesa à essas práticas.

3.1 Os Sacrifícios no Judaísmo e no Islamismo

Antes de iniciar este subcapítulo, devo salientar que minha intenção aqui, não é um
estudo aprofundado sobre os sacrifícios no judaísmo e no islamismo e todas as suas minúcias e
desdobramentos, mas apenas apresentar duas práticas sacrificiais ainda em uso por sistemas
religiosos e com isso fomentar a discussão sobre os motivos que levam aos ataques
preconceituosos às religiões de matriz africana. Tanto o judaísmo como o islamismo, para além
da antiguidade, mantém seus sacrifícios, são os chamados kosher (para os judeus) e halal (para
os muçulmanos). Ditados pela Torá e pelo Alcorão, livros sagrados para ambas as religiões,
consistem em cuidados extremos no abate dos animais que serão utilizados para alimentação,
não devendo estes estarem inconscientes ou insensibilizados, nem sofrerem qualquer desgaste
físico ou sofrimentos impostos. Esta dieta alimentar é um dos pontos centrais na formação
daquele que pretende tornar-se um judeu ortodoxo (TOPEL, 2003, p. 206).
Apesar de não ser mais uma “religião sacrificial”, para os judeus, uma série de regras
são impostas desde a criação destes animais, até seu abate que, ligados aos conceitos religiosos
do Halachá149, denotando a característica sacrificial para a esta prática. Os alimentos são
classificados em três grupos: as carnes, os laticínios e os alimentos neutro ou parve (WAINER,
2017). Ao primeiro grupo pertencem carneiros, cabritos, vaca (entre os animais de quatro patas)
e galinhas, pombos, perus (entre as aves). Entre os laticínios, os derivados de leite, ou que o
contém (ibden). Os parve são considerados alimentos neutros (a palavra tem esse significado),

149
Em hebraico significa “caminho”.
78

isto é, não pertencem a nenhum dos dois primeiros grupos, como ovos, frutas, determinados
tipos de peixes (apenas os de nadadeiras e escamas), mel, entre outros.
Nenhum animal a ser sacrificado deve ter “defeitos” ou doenças (claro, desde que sejam
identificáveis facilmente), como nos sacrifícios do candomblé, além da proibição do consumo
do sangue das vítimas. Ainda outros elementos nos mostram como inequívoca a prática ritual
religiosa do sacrifício, como o shochet, a faca utilizada apenas para o ato, a chalaf, o corte
preciso que é feito na garganta do animal para que este não sinta dor qualquer ou à sinta
minimamente e a personagem do sacrificador especializado e autorizado para tal finalidade,
escolhido entre os rabinos150. Mas há, além do kosher na cultura judaica, o Kaparot, sacrifício
de um frango no dia que antecede o Yom Kipur, ou “Dia do Perdão”, uma maneira de dirimir
os pecados cometidos durante o ano judaico que se encerra.
Como já foi dito, o islã também pratica o sacrifício animal para utilização alimentar,
chamado halal. O nome de deus é pronunciado ao iniciar o processo pelo sacrificador que
também é de origem muçulmana. A vítima precisa estar voltada com sua face em direção à
Meca151, a faca ao ser amolada não pode ser vista pelos animais a serem sacrificados e nem,
tampouco, estes devem ver outros animais ser sacrificados. Tudo tem que ser feito de forma
que não cause sofrimento animal, desde sua manipulação ao corte preciso feito em seu pescoço.
Além disso, é interditado o uso de alguns animais, como porcos, carnívoros e carniceiros.
Outro sacrifício praticado pelos islamitas é o do carneiro no Eid Al-Adha, ou “Festa do
Sacrifício”, onde rememora-se o pedido feito por Deus a Abraão para que sacrificasse o próprio
filho Ismael (para a tradição judaico-cristã fora Isaac):

Os muçulmanos atribuem à matança do carneiro uma forma de acionar experiências


do passado (reais ou não) na religiosidade do presente. Retomar o mito de Abraão é
fortalecer o sentido religioso do sacrifício coletivo da comunidade. [...] Os
muçulmanos quando se referem a sua prática dizem que estão aprendendo a cada dia,
a cada ano. Para eles, o aprendizado, e daí o sacrifício, é uma preparação que se renova
e se aprimora. O muçulmano percebe a ação amorosa de Deus quando este pede para
sacrificar o carneiro e não o filho. O carneiro é elemento energizador da estrutura do
ritual islâmico, provocando mudanças no fiel, fazendo que ele perceba que necessita
ser melhor a cada dia; é recordar cotidianamente o sacrifício de Abraão (FERREIRA,
2007, p. 770-771).

Estas tradições, propagam-se através do tempo e conservam alguns rituais sacrificiais


até nossos dias. Apesar de encontrarem certa resistência social, mas, quando se trata de Brasil,
não costumam aparecer críticas tão fervorosas quanto às feitas ao candomblé. Tratarei mais

150
Sacerdote judaico.
151
Cidade sagrada para os muçulmanos.
79

sobre os ataques e judicializações quanto ao sacrifício em um subcapítulo posterior.

3.2 Os Cristianismos e os Sacrifícios

O cristianismo, apesar de uma certa padronização no que tange ao Deus e as escrituras


sagradas (ainda que esta não seja necessariamente composta da mesma quantidade de livros),
segue uma lógica diante do sacrifício, a de não mais utilizar o sangue – a menos que seja apenas
simbólico – em sua liturgia. Entretanto, percebemos que, de forma velada ou mais ligada às
tradições cristãs populares, ainda se percebem traços de utilização animal em festas religiosas.
Nos almoços ligados às tradições religiosas, como o famoso “Dia de Ação de Graças”,
nos Estado Unidos, o popular “almoço do Círio de Nossa Senhora de Nazaré”, no Pará, ou no
Natal, em grande parte do mundo, os sacrifícios parecem, de alguma forma, ligados ao
cristianismo. Entretanto, oficialmente, esta matriz religiosa renuncia, a partir da paixão de
cristo152, quaisquer sacrifícios animais humanos e/ou não-humanos, voltado a seu Deus. Como
vemos na fala de Mauleon (2015), sobretudo no contexto dos sacrifícios humanos, já que a base
para a proibição à prática sacrificial está no próprio sacrifício do Cristo, “o sacrifício
definitivo”:

Em sua expressão mais estrita, tendo presente a referência universal dos direitos
humanos, temos que dizer que a prática do sacrifício é prática de barbárie. De todo
modo, segue sendo uma realidade. De forma explícita, quando se mata em nome de
Deus, para agradar-lhe e obter seu favor e a salvação. Num contexto de secularização,
situamo-nos nessa mesma dinâmica perversa quando matamos em nome da pátria ou
de outro referente humano sacralizado. (MAULEON, 2015, p. 43).

Há muito se deixou de praticá-los (os sacrifícios animais) efetivamente no cristianismo,


porém, encontramos na bíblia, mais especificamente no antigo testamento (utilizado pelos
cristãos em diversas situações para justificar certas posturas e dogmas), as antigas referências
do que agradava a Deus e o que o desagradava no ritual, já que o sacrifício animal fora permitido
após a expulsão do primeiro casal do paraíso “por rebeldia e desobediência” (MACEDO, 2012,
p. 13), e, por tal atitude humana, “Deus institui o sacrifício animal como sendo o único meio de
substituir o pecador e, assim, permiti-lo entrar em Sua presença” (ibid., p. 14). Assim,

152
Trata-se da prisão e dos suplícios sofridos por Jesus até sua crucificação
80

encontramos no Antigo Testamento, no chamado pentateuco153 o recurso aos sacrifícios


cruentos, de onde podemos citar como exemplos:

a) No livro de Gênesis:

O sacrifício das primícias, ofertado por Abel: “4 E Abel também trouxe dos primogênitos
das suas ovelhas, e da sua gordura; e atentou o SENHOR para Abel e para sua oferta.” (BÍBLIA,
Gn 4.4)
O sacrifício de sangue ofertado por Noé: “20 E edificou Noé um altar ao SENHOR; e
tomou de todo animal limpo e de toda ave limpa, e ofereceu em holocausto sobre o altar.”
(BÍBLIA, Gn 8.20)
O sacrifício de sangue oferecido por Abraão em troca de seu filho Isaac: “13 Então
levantou Abraão os seus olhos e olhou; e eis um carneiro detrás dele, travado pelos seus chifres
num mato; e foi Abraão, e tomou o carneiro, e o ofereceu-o em holocausto, em lugar de seu
filho.” (BÍBLIA, Gn 22.13)

b) No livro de Êxodo:

Sobre a indicação dada por Deus para que Moisés construísse um altar e ali sacrificasse
em Seu nome: “24 Um altar de terra me farás, e sobre ele sacrificarás os teus holocaustos, e as
tuas ofertas pacíficas, as tuas ovelhas, e as tuas vacas; em todo lugar, onde eu fizer celebrar a
memória do meu nome, virei a ti e te abençoarei.” (BÍBLIA, Êx 20.24).

c) No livro de Levítico:

Sobre o sacrifício e sobre os cuidados que o cerca, seus interditos e permissões ao


consumo:
Depois falou o SENHOR a Moisés, dizendo: “Dize a Arão e a seus filhos que se
apartem das coisas santas dos filhos de Israel, que a mim me sacrificam, para que não
profanem o meu santo nome. Eu sou o SENHOR. Dize-lhes: Todo homem, que entre
vossas gerações, de toda a vossa descendência, se chegar às coisas santas que os filhos
de Israel santificam ao SENHOR, tendo sobre si a sua imundícia, aquela alma será
extirpada de diante da minha face. Eu sou o SENHOR. Ninguém da descendência de
Arão, que for leproso, ou fluxo, comerá das coisas santas, até que seja limpo; como
também o que tocar alguma coisa imunda de cadáver, ou aquele de que sair sêmen da

153
Primeiros cinco livros bíblicos, correspondente respectivamente a: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronômio.
81

cópula, Ou qualquer que tocar a algum réptil pelo qual se fez imundo, ou algum
homem, pelo qual se fez imundo, segundo toda a sua imundícia; O homem que o tocar
será imundo até à tarde, e não comerá das coisas santas, mas banhará a sua carne em
água. E havendo-se o sol já posto, então será limpo, e depois comerá das coisas santas,
porque este é o seu pão. O corpo morto e dilacerado não comerá, para que não se
contamine com ele. Eu sou o SENHOR. Guardarão, pois, o meu mandamento, para que
por isso não levem pecado, e morram nele, havendo-o profanado. Eu sou o SENHOR
que os santifico. Também nenhum estranho comerá das coisas santas; nem o hóspede,
nem o diarista comerá das coisas santas. Mas quando o sacerdote comprar alguma
pessoa com o seu dinheiro, aquela comerá delas, e os nascidos na sua casa, estes
comerão do seu pão. E, quando a filha do sacerdote se casar com homem estranho, ela
não comerá das coisas santas. Mas quando a filha do sacerdote for viúva ou repudiada,
e não tiver filho, e se houver tornado à casa de seu pai, como na sua mocidade, do pão
de seu pai comerá; mas nenhum estranho comerá dele. E quando alguém por erro
comer a coisa santa, sobre ela acrescentará uma quinta parte, e dará ao sacerdote com
a coisa santa. Assim não profanarão as coisas santas dos filhos de Israel, que oferecem
ao SENHOR, Nem os farão levar a inquietude da culpa, comendo as suas coisas
santas; pois eu sou o SENHOR que as santifico.” (BÍBLIA, Lv 22.1-16).

Sobre os tipos de animais dados em sacrifício e sua integridade física:

Falou mais o SENHOR a Moisés, dizendo: “Fala a Arão e a seus filhos e a todos os
filhos de Israel, e dize-lhes: Qualquer que da casa de Israel, ou dos estrangeiros em
Israel, oferecer a sua oferta, quer dos seus votos, quer das suas ofertas voluntárias que
oferecem ao SENHOR por holocausto, Segundo a sua vontade, oferecerá um macho
sem defeito, ou um dos bois, ou um dos cordeiros, ou das cabras. Nenhuma coisa em
que haja defeito oferecereis porque aceita em vosso favor. E quando alguém oferecer
sacrifício pacífico ao SENHOR, separando dos bois, ou das ovelhas um voto, ou oferta
voluntária, sem defeito será, para que seja aceito; nenhum defeito haverá nele. O cego,
ou quebrado, ou aleijado, o verrugoso, ou sarnoso, ou cheio de impigens, estes não
oferecereis ao SENHOR, e deles não poreis oferta queimada ao SENHOR sobre o
altar. Porém boi, ou gado miúdo comprido ou curto de membros, poderás oferecer por
oferta voluntária, mas por voto não será aceito. O machucado, ou moído, ou cortado,
não oferecerás ao SENHOR; não fareis isto na vossa terra. Também da mão do
estrangeiro nenhum alimento oferecereis ao vosso Deus, de todas estas coisas, pois a
sua corrupção está nelas; defeito nelas há; não serão aceitas em vosso favor”. Falou
mais o SENHOR a Moisés, dizendo: “Quando nascer o boi, ou cordeiro, ou cabra, sete
dias estará debaixo sua mãe; depois, desde o oitavo dia em diante, será aceito por
oferta queimada ao SENHOR. Também boi ou gado miúdo, a ele e a seu filho, não
degolareis no mesmo dia. E quando oferecerdes sacrifícios de louvores ao SENHOR,
ofereceis da vossa vontade. No mesmo dia se comerá; dele nada deixareis ficar até
pela manhã. Eu sou o SENHOR. Por isso guardeis os meus mandamentos, e os
cumprireis. Eu sou o SENHOR. E não profanareis o meu santo nome, para que eu seja
santificado no meio dos filhos de Israel. Eu sou o SENHOR que vos santifico; Que
vos tirei da terra do Egito para ser o vosso Deus. Eu sou o SENHOR.” (BÍBLIA, Lv
22.17-33).

d) No livro de Números:

Os sacrifícios do dia das trombetas:

Então por holocausto, em cheiro suave ao SENHOR, oferecereis um novilho, um


carneiro e sete cordeiros de um ano, sem defeito. [...] E um bode para expiação do
pecado, para fazer expiação por vós.Além do holocausto do mês, e a sua oferta de
82

alimentos, e o holocausto contínuo, e a sua oferta de alimentos, com as suas libações,


segundo o seu estatuto, em cheiro suave, oferta queimada ao SENHOR. (BÍBLIA, Nm
29.2,5-6)

Os sacrifícios do dia da expiação:

Então por holocausto, em cheiro suave ao SENHOR, oferecereis um novilho, um


carneiro e sete cordeiros de um ano; eles serão sem defeito. [...] Um bode para
expiação do pecado, além da expiação do pecado pelas propiciações, e do holocausto
contínuo, e da sua oferta de alimentos com as suas libações. (BÍBLIA, Nm 29.8,11)

Os sacrifícios para festa de tabernáculo:

E, por holocausto em oferta queimada, de cheiro suave ao SENHOR, oferecereis treze


novilhos, doze carneiros e catorze cordeiros de um ano; todos eles sem defeito; [...] E
um bode para expiação do pecado, além do holocausto contínuo, e a sua oferta de
alimentos com a sua libação; Depois, no segundo dia doze novilhos, dois carneiros e
catorze cordeiros de um ano, sem defeito; [...] E um bode para expiação do pecado,
além do holocausto contínuo, da sua oferta de alimentos e das suas libações. E, no
terceiro dia, onze novilhos, dois carneiros e catorze cordeiros de um ano, sem defeito;
[...] 22 E, um bode para expiação do pecado, e do holocausto contínuo, e da sua oferta
de alimentos e da sua libação; [...] E, por holocausto em oferta queimada, de cheiro
suave ao SENHOR, oferecereis um novilho, um carneiro e sete cordeiros de um ano,
sem defeito; [...] E, um bode para expiação do pecado, e do holocausto contínuo, e da
sua oferta de alimentos e da sua libação. (BÍBLIA, Nm 29.13, 16-17, 19-20, 22, 35,
38)

e) No livro de Deuteronômio:

Os sacrifícios ofertados à Páscoa do Senhor: “2 Então sacrificarás a páscoa ao


SENHOR teu Deus, das ovelhas e das vacas, no lugar que o SENHOR escolher para ali fazer
habitar seu nome.” (BÍBLIA, Dt 16.2).
No catolicismo, o sacrifício do Cristo se repete diariamente nas missas. Rememora-se
sempre o momento em que Jesus anuncia sua morte, durante a “última ceia” (Mt 26: 26-30)154.
A hóstia, que significa “vítima de sacrifício a divindades”155, é o pão que se transubstancia na

154
“26 E, quando comiam, Jesus tomou o pão, e abençoando-o, o partiu, e o deu aos seus discípulos, e disse: Tomai,
comei, isto é o meu corpo.
27 E tomando o cálice, e dando graça, deu-lho dizendo: bebei dele todos;
28 Porque isto é o meu sangue, o sangue do novo testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos
pecados.
29 E digo-vos que, desde agora, não beberei deste fruto da vide, até aquele dia em que o beba novo convosco no
reino de meu Pai.
30 E, tendo cantado o hino, saíram para o Monte das Oliveiras.” (BÍBLIA, Mt. 26:26-30)
155
HÓSTIA (hós.ti.a) sf, 1- REL. Lâmina circular de massa de trigo sem fermento que o sacerdote consagra e oferece
aos fiéis durante a comunhão na ocasião da missa; 2- REL, ANT Vítima de sacrifício às divindades; 3- pasta
83

carne do próprio Deus encarnado homem, tal qual o vinho em sangue e são consumidos em um
ato de antropofagia simbólica, baseados nas palavras do Cristo: “Na verdade, na verdade vos
digo que, se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis
vida em vós mesmos.” (Jo 6:53). O sacrifício dado pela causa dos homens, a partir dali, não
retornará mais a ser feito e nem será mais permitido que seja realizado outro sacrifício sangrento
em nome de Deus.
Por ocasião da Sexta-feira Santa, para os católicos, este sacrifício é novamente lembrado e
participam dele através da “Adoração ao Senhor Morto”. Ali, enquanto o fiel se prostra diante
do esquife onde está a imagem inerte do Cristo, este se “solidariza” com a dor e com a própria
morte de seu Deus. O fiel assume as dores e chagas, de forma inconsciente mimetizando-as,
assumindo para si em forma de penitência, afinal, foi pelos pecados, pelo desejo de poder dos
homens (desejo mimético) e pela negação de sua autoridade, que Jesus foi sacrificado, morreu
e, por isso, o ser humano deve assumir estas dores para purificar-se sem que seja necessário
outro sacrifício como aquele.
Para Girard (2011), esta é a característica do “desejo mimético”, um meio de apaziguar
as tensões geradas pelos conflitos sociais. Desta forma, quando sacrificamos a vítima, à ela
imputamos a obrigação de carregar consigo nossos desejos miméticos, isto é, a vontade de ter
aquilo que o “outro” possui. Através do Sacrifício, a violência é transferida para um “bode
expiatório”, assim, “a crise foi provocada pelo caráter mimético do desejo e, ao mesmo tempo,
a crise foi resolvida pelo caráter mimético do desejo” (ROCHA, 2011). O objeto de desejo neste
caso, está ligado à luta pelo mercado religioso. Como não se pode destruir por completo o
inimigo, sacrifica-se alguns de seus símbolos e outros são sacrificados.
Entretanto, para não cairmos em um erro crasso, é fundamental explicar que este desejo
não é algo racional, pensado, refletido como uma inveja qualquer. É o desejo que nos vêm
espontaneamente. Girard (2011) cita esta “imitação” no Evangelho, quando Pedro se vê cercado
da multidão que pede pela crucificação de Jesus:

O maior exemplo é o repúdio de Pedro: assim que ele mergulha numa multidão hostil
a Jesus, Pedro não pode deixar de imitar sua hostilidade. Ao psicologizarmos o
repúdio, atribuindo-o ao “temperamento influenciável” do apóstolo, tentamos provar
(inconscientemente) que, no lugar de Pedro, não teríamos repudiado Jesus. Esse
esforço, precisamos notar, é do próprio Pedro antes do seu repúdio. Ele se mostra
preocupado demais sobre a opinião que se tem dele para não adotar cegamente a

delgada feita de trigo sem fermento para envolver certos medicamentos e/ou alimento. ETIMOLOGIA: lat hostĭa.
(HÓSTIA. In: MICHAELIS, Dicionário da Língua Portuguesa. Editora Melhoramentos Ltda, 2020). Disponível
em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/h%C3%B3stia/>. Acesso em 12
nov. 2020.
84

atitude “politicamente correta em meio à qual ele tem a infelicidade de se encontrar.


(GIRARD, 2011, p. 98)

No Brasil, o campo religioso cristão entre o início do século XX e o presente assim


como sua relação com os cultos afro-brasileiros, vem se diversificado, principalmente quanto
ao aspecto fundamental específico desta pesquisa, que fora traduzido em combate proselitista a
partir da afirmação do modelo neopentecostal, o sacrifício. O pentecostalismo e a
ressignificação de elementos externos às suas práticas, chegam ao Brasil, oriundos de
movimentos surgidos nos EUA os quais têm atribuída sua gênese, à um templo sediado em Los
Angeles:

No interior daquele templo se reuniam evangélicos, na sua maioria, negros, para


longas noites de oração, que buscavam a santificação ocasionada pelo Espírito Santo.
Em uma dessas reuniões William Joseph Seymour, líder da Igreja, falou em línguas
estranhas. O acontecimento chamou a atenção da imprensa local, pois foi interpretado
como invasão da cultura africana na vivência dos Estados Unidos. (TAVARES, 2018,
p. 78)

As mudanças no modo de arregimentar fiéis e convertê-los, apelando para seus anseios


básicos tanto nas questões sócio-econômicas (aceitação social e prosperidade), quanto na ideia
central da religiosidade cristã, a salvação, acabam desencadeando um novo modelo de atuação,
pautado em fenômenos como a possessão156, o transe157 e a glossolalia158.
A ressignificação dos atos sacrificiais e o combate à essas práticas tão constantes entre
diversas religiões veterotestamentárias – como o próprio judaísmo ao qual voltam os olhos hoje
algumas igrejas neopentecostais, a exemplo da IURD –, adaptam-se às novas concepções
religiosas ou às reformulações das formas antigas de dar, receber e retribuir ou do sacrifício
como dádiva (MAUSS, 2003). William Seymour já havia feito algumas adaptações nos cultos
estadunidenses, quando introduziu o elemento afro-americano dos spirituals159 em suas

156
Segundo Heraldo Maués, o estado de possessão “é pois, o termo que expressa a crença das pessoas relativa a
determinados sintomas manifestados por alguém que acredita e/ou de quem se diz ter tido o corpo invadido ou
tomado por alguma entidade espiritual ou de alguma outra natureza que permita esta forma de intrusão” (MAUÉS,
2003, p. 18). Para a visão nativa neopentecostal de Edir Macedo, “é o estado em que uma pessoa é possuída por
espíritos imundos. [...] há espíritos que se dizem deuses, como orixás, e há aqueles que se dizem desencarnados.”
(MACEDO, 2010, p. 75).
157
Na concepção de Renata de Lima Silva, “por transe entende-se um estado de consciência alterado, ou, no âmbito
das religiões afro-brasileiras, o momento em que uma entidade (orixá, nkise, vodun, egun, caboclo, preto velho,
pomba gira etc.) incorpora, isto e, manifesta-se por meio do corpo do médium.” (SILVA, 2010, p. 98)
158
Dom de falar em “línguas estranhas”.
159
Também conhecido como negro spiritual, estilo musical surgido nos Estados Unidos, que denunciava os
sofrimentos do povo negro. “São cantos que expressam os sofrimentos causados pela violência do deslocamento,
do trabalho forçado, das injustiças e da submissão, perpassados por uma mística religiosa.” (HELENO, 2015, p.
78)
85

reuniões (TAVARES, 2018, p. 81), aproximando ainda mais a cultura negra dos anseios por
redenção social e salvação do espírito para este povo.
Se antes eram vidas humanas ceifadas para que seu sangue fosse vertido em nome dos
deuses e deusas, ou mesmo animais serviam a este mesmo fim, hoje o homem se dá em
sacrifício sem que haja a necessidade de mutilação, entregando seu corpo para que sirva como
a “pedra sacrificial” onde os “demônios” serão executados.
Aquele holocausto que outrora fora de sangue “humano” (Jesus) e, ao mesmo tempo do
próprio Deus, passa a ser visto pelos cristãos como definitivo dentro deste modelo e
posteriormente modificado para que não mais haja a utilização do sangue e que a violência seja
omitida, sendo, de alguma forma, garantido que os seres humanos mantenham o pacto através
de algum outro tipo de sacrifício. Além disso, dada a “batalha espiritual” travada contra as
religiões de matriz africana, o sacrifício passa a ser também a morte do demônio, para que os
humanos retomem a ligação com Deus pois, conforme Silva (2005, p. 157), “se o Cristo morreu
em nome desse fluxo, agora se trata de sacrificar o ‘anticristo’, ou o demônio/exu, para garantir
a continuidade do fluxo”.
Essa relação entre o Deus, a vítima e o sacrificante, ou objeto sagrado pelo qual se
sacrifica, deve ser muito íntima, para que a partir dessa ligação, estes últimos, alcancem o
caráter sagrado. Segundo Mauss e Hubert:

O fim do rito é aumentar a religiosidade do sacrificante. Para isso é preciso associá-lo


à vítima o mais intimamente possível, poie é graças à força que a consagração nela
acumulou, que o sacrificante adquire o caráter desejado. Podemos dizer que nesse
caso, o caráter cuja comunicação é a finalidade mesma do sacrifício, vai da vítima ao
sacrificante (ou ao objeto). (MAUSS; HUBERT, 2005, p. 57)

No caso neopentecostal, isso se verifica pela relação entre o Pastor (sacrificador), fiel
(sacrificante) e do “demônio” a ser sacrificado (vítima) tendo como finalidade de garantir, ao
segundo, status de santidade, de purificação. Muito frequentemente vemos em programas de
TV ou em vídeos que “viralizam” pelas redes sociais na internet, as manifestações de certas
entidades principalmente as de Umbanda, nos altares/palcos de igrejas neopentecostais,
observadas via “telecultos” por milhares de pessoas ou in loco por outras centenas delas,
sendo inquiridas (as entidades) sobre seus nomes, os “poderes” que afirmam ter e que dizem
afetar na vida dos seus “cavalos”.
Ali se inicia o processo de luta espiritual em que, o pastor, imbuído de autoridade e
servindo como elo entre Deus e o mundo humano, desempenha o papel de sacrificador, busca
a eliminação do espírito tido por ele como maligno para que o fluxo seja retomado. O sacrifício
86

está posto desta forma, de modo que não necessite mais uma gota de sangue derramada, pois isto
foi feito anteriormente através do Cristo e jamais retornará a ser feito.
No modelo neopentecostal de sacrifício, não se trata apenas da salvação da vida de um
indivíduo, por mais individualista que pareça por conta da incorporação, da suposta influência
do poder sobrenatural da entidade na vida do seu incorporador, se trata sim, da possibilidade de
que, pela fé, aquele ato tenha efeito sobre todos os que assistem a cerimônia ou que sobre ela
ouvem falar, da mesma forma que outrora aconteceu através do sacrifício do “Cordeiro”.
Macedo (2012), exemplifica a partir do Antigo Testamento, esta forma de simbolizar o grupo a
partir do indivíduo e chama isso de símbolos “pessoais”:

No primitivo pensamento israelita, a família era a unidade fundamental e não o


indivíduo. A vida dos indivíduos compunha a vida do grupo; a vida do grupo se
estendia por todos os seus indivíduos componentes. Esse conceito psicológico ajuda
a explicar como uma pessoa podia simbolizar um grupo de pessoas ou até mesmo a
presença de Deus. Por exemplo, em 2 Samuel 18.3, o Rei Davi valia por dez mil
homens, isto é, ele simbolizava dez mil homens. (MACEDO, 2012, p. 17)

Assim, o sacrifício ao modelo neopentecostal se mantém dentro proposto por Cristo e a


salvação em grande escala, atingindo através de uma vítima (neste caso os Exús e Pombogiras
o demonizados) ao mesmo tempo que o remodela, utilizando para isso, as imagens de entidades
do candomblé e, através deste exemplo, vistos por uma multidão, possa salvar seu povo.

3.3 A Sociedade Civil, os Recursos Políticos-Judiciais e o Direito à Vida de Animais Não-


Humanos

No primeiro capítulo desta dissertação esbocei uma descrição A luta social pela
preservação da vida e os direitos de animais não-humanos remonta à Europa do século XIX, às
primeiras leis neste sentido e à criação da Sociedade Brasileira Protetora dos Animais, em
1907, desaguando – na história mais recente do país – na busca por atrair para a esfera jurídica
a discussão sobre os limites que devem ou não ter as religiões.
Motivações nitidamente religiosas vinculadas aos movimentos neopentecotais, agregam
força à movimentação da sociedade civil, na tentativa de coibir, não apenas os abusos praticados
nos abates de animais para o consumo cotidiano, mas a própria prática do sacrifício religioso e
da alimentação não-violenta exercida nos terreiros de candomblé. Observa-se que isto não é
apenas uma questão de contingente, de estatística sobre números de fiéis praticantes desta ou
87

daquela religião, mas também, uma questão de cunho histórico, de intolerância religiosa, de
racismo religioso, sobre os cultos afro, pois os ataques são muito nitidamente direcionados, já
que outras religiões estabelecidas no Brasil também praticam este tipo de abate, como o
judaísmo e o islamismo, por exemplo (os sacrifícios kosher e halal). São as religiões de matriz
africana que ainda conservam os ritos sacrificiais, os grandes alvos dos discursos inflamados
em “defesa dos animais não-humanos”.
Isto se mostra factual, não apenas quanto às práticas sacrificiais, alvo desta pesquisa,
mas, para além delas, a todos os elementos dos cultos afro, através da institucionalização do
racismo religioso, desde a inserção dos africanos no Brasil – ou na captura dos mesmo ainda
em África –, do poder exercido pela Igreja durante o período colonial e imperial, ou do Código
Penal republicano (Código Penal de 1890, art. 157, § 1.º e § 2.º160) até os dias de hoje.
A sociedade acaba por sofrer de uma visão deturpada e descontextualizada sobre os
sacrifícios e todas as religiões de matriz africana, muito graças ao histórico colonialista que
busca apagar as memórias dos povos africanos e descendentes destes, como tática de
embranquecimento social, cultural e religioso. A busca pela “pureza cristã” e social europeia, da
qual também temos raízes (porém, não as únicas raízes), lançam sobre a sociedade brasileira,
um véu de apatia, falta de interesse e negação até mesmo em conhecer as origens, necessidades
e práticas tradicionais contidas na comunidade afro-religiosa.
Na esteira das tentativas de criminalizar as práticas ritualísticas candomblecistas, entre
elas o sacrifício, dá-se início aos processos de judicialização, nas letras de Luís Roberto
Barroso:

Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou


moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como
intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento
das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. Essa
expansão da jurisdição e do discurso jurídico constitui uma mudança drástica no modo
de se pensar e de se praticar o direito no mundo romano-germânico. (BARROSO,
2012, p. 5).
Assim, passa-se a discutir as questões sociais, políticas e morais em um meio judicial,

160
“Praticar o espiritismo, a magia, e seus sortilégios, usar talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de
ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade
pública: Penas – de prisão cellular por um a seis meses e multa de 100$ a 500$.
§ 1.º Si por influência, ou em consequência de qualquer destes meios, resultar ao paciente privação, ou alteração
temporária ou permanente, das faculdades psychicas:
Penas - Penas – de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$.
§ 2.º Em igual pena, e mais na de privação do exercício da profissão por tempo igual ao da condenação, incorrerá
o médico que directamente praticar qualquer dos actos acima referidos, ou assumir responsabilidade deles.” (In:
Código penal da República dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/
handle/id/496205>. Acesso em: 04 mai. 2020).
88

para tentar garantir a força das proibições para além das manifestações de repúdio cotidianas,
das demonstrações de intolerância interpessoais. São inúmeros casos desse tipo de manobra,
como o que se desencadeou no Rio Grande do Sul, a partir da promulgação de seu Código
Estadual de Proteção aos Animais (Lei 11.915/2003), proposto pelo Deputado Estadual Manoel
Maria dos Santos que, sem abrir parêntese algum, dava margem à criminalização dos sacrifícios
praticados nos cultos de matriz africana:

Art. 2º - É vedado:
I - ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de
experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições
inaceitáveis de existência;
II - manter animais em local completamente desprovido de asseio ou que lhes
impeçam a movimentação, o descanso ou os privem de ar e luminosidade;
III - obrigar animais a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem sua força;
IV - não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para
consumo;
V - exercer a venda ambulante de animais para menores desacompanhados por
responsável legal;
VI - enclausurar animais com outros que os molestem ou aterrorizem;
VII - sacrificar animais com venenos ou outros métodos não preconizados pela
Organização Mundial da Saúde - OMS -, nos programas de profilaxia da raiva. (RIO
GRANDE DO SUL, 2003).

O caso teve fortes desdobramentos após a votação e implementação do projeto de lei


(12.131/2004161) proposto pelo Deputado Estadual Edson Pontilho que visava a garantia do
direito à prática sacrificial das religiões de matriz africanas gaúchas. Além da referida lei, foi
estabelecido o decreto o Decreto no 43.252162. Entretanto, o Procurador-Geral de Justiça Roberto
Bandeira Pereira, decide propor inconstitucionalidade da nova lei e, ainda tendo perdido esta
ação, envia a proposta para análise do Supremo Tribunal de Justiça através de um RE (Recurso
Extraordinário), sendo declarada constitucional a lei 12.131/2004 por este Tribunal apenas em
2019.
Tais tentativas de criminalização, baseiam-se na falta de conhecimento prático, das
manifestações afro-religiosas e de sua cosmovisão que está, em si, assentada no respeito à
natureza, ao bom uso dos recursos naturais e ao respeito aos animais, pois estes garantem grande

161
Art. 1º - Fica acrescentado parágrafo único ao Art. 2º da Lei nº 11.915, de 21 de maio de 2003, que institui o
Código Estadual de Proteção aos Animais, no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, com a seguinte redação:
Art. 2º [...]
Parágrafo único - Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz
africana. (RIO GRANDE DO SUL, 2004).
162
Decreto que estabelece, no artigo 3º: Art. 3º [...] Para o exercício de cultos religiosos cuja liturgia provém de
religiões de matriz africana, somente poderão ser utilizados animais destinados à alimentação humana, sem a
utilização de recursos de crueldade para a sua morte. (RIO GRANDE DO SUL, 2004).
89

parte da manutenção da vida espiritual e física de seus membros e do próprio universo. Como
já foi exaustivamente comentado nesta dissertação, os animais, vítimas dos sacrifícios carecem
de grandes cuidados, não devem ser submetidos a stress, maus-tratos, privações de alimentos,
ar ou água, bem como devem ser abrigados de sol, chuva e quaisquer outras intempéries. A
pretensão de uma superioridade religiosa, funda a hegemonia das religiões cristãs e possibilita
a expansão163 destas no Brasil em detrimento de outras que são historicamente marginalizadas,
acaba por se refletir nas práticas vitais como a do sacrifício.
As Sociedades Protetoras dos Animais têm se manifestado contrárias às decisões legais
tomadas em defesa da liberdade das práticas sacrificiais afro-religiosas, justificando-as como
desnecessárias em comparação a cultos como os da Umbanda, onde nunca (ou quase nunca)
são utilizadas imolações em suas cerimônias (Figura10, 11 e 12). Cabe lembrar aqui, que a
Umbanda é uma religião brasileira que sofreu grande influência cristã, quer em suas práticas,
quer em sua filosofia, ou na utilização de símbolos ou na própria visão que tem sobre algumas
entidades do panteão africano.

Figura 10: Sacrifícios em ritual revolta Sociedade Protetora dos Animais.

Fonte: Pint screen retirado de consulta ao site.164

163
Segundo o censo do IBGE-2010, o número de evangélicos pentecostais e neopentecostais, entre os anos de 2000
e 2010, cresceu de 10,4% para 13,4%, ao passo que autodeclarados umbandistas e candomblecistas praticamente
desapareceram. Entretanto, esses dados são subestimados quanto o contingente das religiões de matriz africanas.
É fato que a taxa de “convertidos” às religiões evangélicas, sobretudo neopentecostais, é grande, todavia, aqueles
que não se autodeclaram umbandistas e/ou candomblecistas por motivo de receio das represálias de intolerância
também ainda é grande.
164
Figura extraída em consulta ao site “BEM PARANÁ”. Disponível em: <https://www.bemparana.com.br/
noticia/sacrificios-em-ritual-revolta-sociedade-protetora-dos-animais.X7QaaMhKhEY>. Acesso em: 10 set.
2020.
90

Figura 11: STF equivocadamente considera constitucional o sacrifício de animais em rituais


religiosos.

Fonte: Pint screen retirado de consulta ao site.165

Figura 12: 176 ONGs brasileiras assinam manifesto pelo fim do sacrifício em rituais.

Fonte: Pint screen retirado de consulta ao site.166

165
Figura extraída em consulta ao site “ecoagência”. Disponível em: <http://www.ecoagencia.
com.br/?open=noticias&id=VZISXRIVONVTVFjeTxmVaNGbKV%20VVB1TP >. Acesso em: 10 set. 2020.
166
Figura extraída em consulta ao site “SPA Curitiba”. Disponível em: <https://spacuritiba.org.br/stf-
equivocadamente-considera-constitucional-o-sacrificio-de-animais-em-rituais-religiosos>. Acesso em: 10 set.
2020.
91

Renato Ortiz nos mostra com clareza o novo formato em que se modelam os cultos
africanos, eliminando as práticas sacrificiais:

Conserva-se o altar do santo protetor mas elimina-se o fetiche preparado com o sangue
dos sacrifícios, que se encontra no pegi. Substitui-se ainda o fetiche do deus pela
imagem católica que lhe corresponde. [...] As práticas dos candomblés são portanto
transformadas e simplificadas. [...] é sobretudo no campo da magia que o sincretismo
se processa mais acentuadamente. A magia, segundo suas leis de acumulação,
experimenta todos os produtos que estão ao seu alcance. Os procedimento mágicos
orientais e europeus começam então a se integrar às práticas afro-brasileiras na medida
em que podem implicar um aumento da eficácia: talismãs europeus, estrelas de Davi,
insígnias cabalísticas, livros de astrologia, são elementos que naturalmente passam a
fazer parte do nosso acervo cultural mágico. (ORTIZ, 1947, pp. 38-9).

Como visto, para a mobilização social e de organizações não governamentais (ONG’s),


o recurso ao apoio político tem sido extremamente utilizado para a busca da coibição das
práticas sacrificiais afro-religiosas e do culto desta mesma matriz como um todo. A crescente
participação de uma “bancada evangélica” nas esferas de poder político e a pouca
representatividade de afro-religiosos no mesmo campo, seja em escala municipal, estadual ou
federal, tem garantido maior força que pressiona “para baixo” o avanço nos direitos à
preservação e manutenção das tradições das UTT’s.
Ainda sobre o campo político, a elevação ao cargo máximo do poder político brasileiro
de alguém com características religiosas cristãs muito fortes, que milita por esta pertença e que
dá graves demonstrações de intolerância como, por exemplo suas indicações de ministros
“terrivelmente evangélicos”, ou suas declarações acerca da laicidade do Estado e da “tradição”
cristã. A mesma postura se observa em alguns de seus cargos de confiança, como o da ministra
em se afirmar “terrivelmente cristã” ou que “É o momento de a igreja ocupar a nação”167.
Estas são afirmações preocupantes pois denotam certo grau de “fundamentalismo
religioso”, algo que costumamos atribuir à outras nações, mas que parecemos ter incorporado
aos nossos costumes. Parece haver muito claramente, a tentativa de padronizar, a partir da esfera
política, os costumes, hábitos, crenças e ideias morais sobre o manto de uma só cultura
religiosa. As declarações preconceituosas inflamadas vindas de alguém que goza de
notoriedade pública, aliadas ao já preexistente racismo religioso, criaram um clima de maior
tensão e abre precedentes para que isso seja cada vez mais forte.

167
Entrevista concedida pela Ministra de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, à
Deutsche Welle, empresa de direito público alemã que mantém um canal no Brasil. Disponível em:
<https://www.dw.com/pt-br/%C3%A9-o-momento-de-a-igreja-ocupar-a-na%C3%A7%C3%A3o-diz-damares- alves/a-
52559550>. Acesso em: 19 out. 2020.
92

3.4 Discutindo os as estratégias de “ataque”, “defesa” e o campo sócio-político brasileiro

No histórico mais recente das igrejas pentecostais está a chave para esta discussão.
Desde a chegada do pentecostalismo no Brasil, em 1910168, o combate às práticas,
manifestações e elementos dos cultos afro-brasileiros foi parte da extremamente relevante do
“sistema teológico doutrinário” (SILVA, 2005), dessa vertente do cristianismo de matriz
protestante. Porém, isso toma corpo em momento posterior, na década de 1970 e anos seguintes,
com o processo de adesão ressignificada aos elementos afro-religiosos, aliado à
espetacularização e midiatização desse fenômeno, ao mesmo tempo em que se estrutura um
combate massivo à estas religiões.
Exemplo disso, é exploração televisiva do transe acompanhado da glossolalia,
praticados nas novas igrejas pentecostais, onde o “Espírito Santo” toma parte da consciência do
membro da congregação e lhe faz falar em “línguas estranhas” e fazer “predições” e
“revelações”, bem como das incorporações de Exus, Pombogiras e toda a sorte de entidades
dos cultos afro a serem combatidos e “exorcizados” ou, em outros termos, “sacrificados” nos
corpos e nas vidas dos fiéis, sob o título de “demônios” que lhes fora imputados pela tradição
cristã.
Estas práticas passam a ser ressignificadas através da mudança no perfil do culto
pentecostal, o que lhe atribui o prefixo neo, onde “pretendeu-se expressar algumas ênfases que
as igrejas identificadas nessa fase assumiram em relação ao campo do qual, em geral, faziam
parte” (SILVA, 2005), tendo por prioridade a midiatização e espetacularização (como dito
anteriormente) dos fenômenos místicos que passam a ser adotados por tais templos cristãos em
função do proselitismo. Estas experiências que dispõem de grande proximidade às afro-
religiões, vão para além da glossolalia, dos transes, e acabam por legitimar biblicamente
também o sacrifício, já que este tem papel fundamental na própria construção do imaginário
cristão, pois, através dele, estabeleceu-se o pacto de redenção entre o Deus e os humanos, pelo
derramamento do sangue do “Cordeiro de Deus”169, Jesus, segundo Silva (2005), “sacrifício

168
A data faz referência à primeira fase da atuação desta vertente religiosa no Brasil, marcada pela fundação da
Congregação Cristã, em Belém do Pará. Posteriormente, o pentecostalismo estende-se à São Paulo, através da
criação da Assembleia de Deus, primeiramente sob o nome de Missão de Fé Apostólica.
169
João Batista, primo e responsável pelo batismo e anúncio de Jesus como aquele que viria para remir os pecados
cometidos pela humanidade, no Novo Testamento, diz: “29 No dia seguinte João viu a Jesus, que vinha para ele,
e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1:29). Esta frase não claramente justifica o
sacrifício, mas introduz a ideia de quem será o alvo dele. Entretanto, em outros livros, como em Hebreus, por
exemplo, é evidenciado como o próprio Jesus se anuncia como aquele que veio em holocausto segundo as
93

máximo para que o homem que nele cresse pudesse redimir seus pecados, reunindo o que fora
separado e reconquistando o direito ao paraíso”.
Não apenas a violência de sacrificar elementos simbólicos da religiosidade de matriz
africana como é refeito com suas entidades sob o título de “demônios”, observa-se, ainda, que
algumas igrejas assumem postura de “guerra”, como é o caso dos “Gladiadores do Altar”, grupo
fundado no seio da IURD, em 2015, por jovens da chamada “Força Jovem Universal”. Segundo
o site de notícias UOL170, a Igreja Universal do Reino de Deus publicou em sua página oficial
que estes jovens estariam dispostos a “abrir mão das suas vidas para que outras vidas sejam
ajudadas”.
Em resposta à uma publicação feita pelo então deputado federal Jean Wyllys em uma
de suas mídias sociais, que sugeria em mesma postagem risco a membros de outras religiões e
possível proximidade com métodos fascistas ou com o radicalismo islâmico, a IURD171
responde:

1. Gladiadores do Altar é um projeto da Igreja Universal do Reino de Deus de


orientação e formação de jovens vocacionados para a propagação da Fé Cristã, que
funciona desde janeiro de 2015.
2. A disciplina que o projeto Gladiadores oferece aos seus membros é apenas aquela
espiritual.
3. Seus membros são voluntários da Força Jovem Universal, programa social que
conta com milhões de jovens em todo o Brasil e em outros países e que desenvolve
atividades culturais, sociais e esportivas para auxiliar no resgate e amparo de
populações de rua, viciados, jovens carentes e em conflito com lei.
4. A Força Jovem também promove campanhas de doação de sangue, de alimentos,
roupas e livros para comunidades carentes e para clínicas de recuperação.
5. Realiza ações de conscientização e cidadania – como o incentivo ao jovem que
obtenha o título de eleitor.
6. Oferece cursos profissionalizantes gratuitos a pessoas carentes e as encaminha ao
mercado de trabalho.
7. Apoia socorristas em situações de emergência e tragédias, com a entrega de água,
alimentos e outros materiais necessários.
Buscar uma motivação violenta ou condenável em jovens uniformizados que
marcham e cantam unidos em igrejas é tão absurdo quanto enxergar orientação
fascista em instituições como o “Exército da Salvação” e o Movimento Escoteiro,
ambas organizações mundiais com origem cristã e que, como a Universal, também
utilizam a analogia militar de forma positiva e pacífica. (UNIVERSAL.ORG, 2015)

Apesar do esclarecimento e do aparente repúdio às comparações e às possíveis

profecias: “5 Por isso entrando no mundo diz: Sacrifício e oferta não quiseste, mas corpo me preparaste; 6
Holocaustos e oblações pelo pecado não te agradaram. 7 Então disse: Eis que venho (No princípio do livro está
escrito de mim), para fazer, ó Deus, a tua vontade.” (Hb10:5-7)
170
“Em culto da Universal no CE, jovens ‘gladiadores’ se dizem ‘prontos para a batalha’”. Matéria veiculada no
dia 03 mar. 2015. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2015/03/03/em-
culto-da-universal-jovens-gladiadores-se-dizem-prontos-para-a-batalha.htm>. Acesso em: 04 mai. 2020.
171
“Universal reponde ataque de deputado federal”. Disponível em: <https://www.universal.org/noticias/post/uni
versal-responde-ataque-de-deputado-federal/>. Acesso em: 04 mai. 2020.
94

conotações violentas atribuídas ao projeto, é fato que tais identificações com grupos
reconhecidamente de “defesa armada” como o exército e a própria nomenclatura dada ao grupo,
que remete à uma classe de escravos da antiguidade romana, que eram obrigados à luta armada
em defesa de suas próprias vidas enquanto serviam de diversão para o grande público que os
assistiam nas arenas, podem motivar manifestações de ataques físicos, agressões de pessoas e
profanações de templos como os que já acontecem, por puro fanatismo ou extremismo religioso
de parte de alguns membros ou de pessoas da comunidade que os cerca.
Outro grupo, que teria seu surgimento atribuído à crescente onda dos movimentos
neopentecostais, só que dessa vez nas prisões e centros de detenções, é o de criminosos
chamados “traficantes evangélicos”, que afirmam agir “em nome de Deus” e destroem templos
de cultos afro-religiosos, perseguem, ameaçam e expulsam praticantes destas religiões. Este
avanço da violência contra religiões de matriz africana ao longo dos anos, é perceptível nos
gráficos abaixo:

Gráfico 3: Religião dos agressores Gráfico 4: Religião das vítimas

Fonte: RIVIR, 2018. Fonte: RIVIR, 2018.

Os gráficos acima nos apontam um breve panorama acerca dos agressores e das vítimas
no jogo do racismo religioso/intolerância. Observamos que, entre 2011 e 2015, anos apontados
pelos gráficos os níveis de ataques sofrido por afro-religiosos é desproporcional aos níveis de
agressões cometidas por estes e que os maiores agressores declarados são pertencentes às
matrizes evangélicas. É fato que o número de agredidos e agressores dos quais não se tem
informação acerca de suas religiões é assustadoramente grande, entretanto, a partir do cenário
que costumeiramente vemos, podemos deduzir sua origem.
Segundo o Gráfico 3, no que tange às religiões das vítimas, temos, declaradamente, 27%
95

de matriz africana enquanto, 16% de evangélicos, 12% de diversas religiões (judeus, islâmicos,
e outras religiões), 2% ateus e 35% sem informação sobre a religião que professa. O Gráfico 4
nos mostra quem são os agressores, sendo estes, 1% de matriz africana, 17% de evangélicos,
6% de diversas religiões (judeus, católicos, Testemunhas de Jeová e outras religiões), 1% ateus
e 73% sem informação sobre a religião que professa.
Parece algo genérico, deslocado da temática do sacrifício, porém, quando são impedidas
(as afro-religiões) de praticar seus cultos, também estão inclusas todas as suas práticas, entre
elas, a da imolação de animais e toda a essência que estas cerimônias trazem para a cosmovisão
candomblecista. Aliás, quaisquer ataques às religiões afro-brasileiras, põe em xeque também a
prática sacrificial.
No âmbito religioso, não apenas as igrejas neopentecostais, mas também o catolicismo
expressa sua face preconceituosa, como no caso que ganhou notoriedade sobretudo nas mídias
digitais, protagonizado pelo Pe. Fábio de Melo, onde, segundo vídeo veiculado em matéria
publicada por site, “Padre Fábio de melo ironiza ‘macumba’ em cerimônia religiosa” (G1,
2018). Após o ocorrido e a exposição do caso, o referido padre emitiu nota ao mesmo site
pedindo desculpas pela ofensa. Este caso ridiculariza não apenas a religião, mas também o
próprio sacrifício, representado pela “galinha preta” citada por Fábio de Melo durante o sermão.
Além físicos e ideológicos, os ataques migram para uma esfera judicial – como fora
demonstrado do subcapítulo anterior – na tentativa de criminalizar a prática sacrificial,
entretanto, sempre mantendo os interesses de um determinado grupo em reprimir os símbolos
afro-religiosos, dentre ele o próprio ato sacrificial. Mas porque falar sobre aspectos jurídicos
quando a discussão é sobre as “estratégias de ataques” cristãs aos cultos de matriz africana?
Ora, uma parte dos legisladores envolvidos nesta manifestação contrária às práticas sacrificiais
são de origem neopentecostal ou de outras origens do cristianismo de matriz protestante (e, em
alguns casos, católicos), como vemos explicitado por Tadvald (2007), sobre a manifestação de
lideranças afro-religiosas gaúchas acerca da Lei 11.915/2003 (op. cit.):

As lideranças afro-religiosas perceberam que o Código poderia facilmente ser


interpretado no sentido de prejudicar seriamente seus rituais de imolação e, portanto,
decidiram se mobilizar contra a referida lei, capitaneadas especialmente pela
Comissão/Congregação em Defesa das Religiões Afro-Brasileiras, a CDRAB, criada
em novembro de 2002. Sua mobilização teve uma outra importante motivação: o autor
da lei havia sido o deputado estadual Manoel Maria dos Santos (PTB/ RS), pastor da
Igreja do Evangelho Quadrangular. (TADVALD, 2007, p. 133)

Aqui vemos explicitada a estratégia religiosa adotada pelo novo pentecostalismo que é
a de estreitar laços como o poder político e judiciário, a fim de estruturar com bases mais sólidas
96

(legais), o projeto de demonização das afro-religiões e de conversão de mais fiéis ao


cristianismo.
Como contrapartida aos ataques – os mais recentes, em esfera judicial, com as tentativas
de criminalizar os sacrifícios ou de “milícias gospel” –, no âmbito social, algumas casas de
candomblé investem em abrir as portas de suas UTT’s172 para atividades comunitárias, não
como forma de arregimentação de fiéis, mas na tentativa de esclarecer, à comunidade ao seu
redor, sobre os preconceitos que estão impregnados no senso comum, também devido às
pregações cristãs contra os cultos afro-religiosos, bem como a necessidade da manutenção das
cerimônias sacrificiais para o culto candomblecista, o cuidado que se tem com a vítima, já que
esta não pode sofrer nenhum tipo de estresse demasiado, pois será ela quem fará a ligação entre
o orum e o aiyê, isto é, o mundo físico e o metafísico:

Pode-se afirmar que a essência do sacrifício dos animais pelos negros africanos reside
na crença de que ao oferecer o sangue de um animal da natureza para os deuses e
entidades espirituais conseguiriam o apoio das forças ocultas que resultassem em
proteção ou então minimização do sofrimento vivenciado. Ainda hoje os rituais das
religiões de matriz africana concentram-se na minimização dos sofrimentos, ainda que
os motivos não sejam os mesmos dos negros escravizados. No entanto, há uma
tradição milenar e valores históricos que estão inclusive sob proteção constitucional
ainda que de forma genérica por não especificar quais expressões exatamente estariam
asseguradas da proteção. (HANKE, 2020, p. 145)

Ao mesmo tempo em que busca visibilidade em certos aspectos, mantém o ato sacrificial
em si, cada vez mais oculto dos olhos curiosos e depreciativos, buscando não o fazer mais em
espaços públicos. Os horários e locais são modificados e adaptados por conta da repressão
popular, para não chocar ainda mais do que costuma por conta de todo o estigma já existente.
As ruas e encruzilhadas ainda são palco de oferendas com animais, porém, estes passam a ser
sacrificados nos terreiros e levados ao local onde serão depositados. Quando feitos no próprio
local da oferenda, são as horas mais soturnas, evitando olhares curiosos (negativamente
curiosos), falas agressivas ou, até mesmo, agressões físicas.
Também dos pontos de vistas social e jurídico, as manifestações se dão a partir das
marchas contra a intolerância religiosa, que congregam várias religiões de matriz africanas e,
por vezes, contam com a participação de sacerdotes de outras denominações religiosas; criação
de comissões fóruns permanentes, como o Fórum Paraense de Povos Tradicionais de Matriz
Africana (FOPAFRO), o Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos
Tradicionais e Matriz Africana (FOSANPOTMA), a Comissão de Direito e Liberdade Religiosa

172
Unidades Territoriais Tradicionais (de Matriz Africana).
97

ligada à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), entre outras dezenas, que buscam auxílio
junto à órgãos públicos e apoio político, para que o direito à prática do sacrifício seja garantido
e considerado inviolável, sobretudo pautados nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal 173
brasileira, em texto promulgado no ano de 1988, a saber:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso
às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-
brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os
diferentes segmentos étnicos nacionais.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação
governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela
necessitem.
§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores
culturais.
§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.
§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências
históricas dos antigos quilombos. (BRASIL, 1988, grifo nosso)

Diante do atual cenário de pandemia que atingiu o mundo em ano de 2020/21, um recurso
bastante utilizado para discutir assuntos como este, são as mídias sociais. A UMESP, por
exemplo, abriu espaços de discussões através da “XXIV Semana de Estudos de Religião”, onde
parte deste capítulo foi apresentada em um Grupo de Trabalho (GT) denominado “Práxis
Religiosa e Dimensão Pública”. Assim também o fez o FOSANPOTMA, no “I Webinário:
Tradição alimenta, não violenta”, voltado exclusivamente para este tema, buscando
conscientizar a sociedade acerca das práticas do abate ritual não violento e sua importância para
as tradições afro-religiosas e suas implicações sociais. Outro recurso é a catalogação e
mapeamento dos terreiros em níveis municipal, estadual e nacional, para melhor monitorar e

173
Textos retirados do site oficial do Senado brasileiro. Disponíveis em: <https://www.senado.leg.br/atividade/
const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_215_.asp> e <https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/
CON1988_05.10.1988/art_216_.asp>. Acesso em: 18 out. 2020.
98

auxiliar, sobretudo, em questões judiciais.


De um lado, a tradicionalidade do sacrifício de sangue e de outros modelos de sacrifício
no candomblé, necessários à manutenção de toda sua cosmovisão e das energias que movem o
mundo, a morte que move a vida ou que encaminha o espírito a uma nova condição de
integração. De outro lado, o “sacrifício definitivo” de Cristo, o último a utilizar sangue, que
redime o ser humano de seus pecados e, após as remodelações, a morte dos Exús e Pombogiras
(considerados demônios para os cristãos), que usa o homem como pedra sacrificial e o discurso
do pastor como faca afiada para eliminar o “mal” da vida do indivíduo e, pela fé e pelo exemplo,
salvar todo povo.
É interessante perceber que, apesar de todos estes casos aqui apresentados, no Ilê Àṣẹ
Oyá Nirolê Igbalé, casa alvo da pesquisa desta dissertação, a ideia de intolerância contra os
sacrifícios é algo que parece distante dos olhos de Mãe Rosa. Em entrevista, quando perguntada
se já havia sido atingida por comentários maldosos sobre os sacrifícios ou mesmo de
intolerância de uma forma geral, a sacerdotisa afirma que nunca sofreu nenhuma agressão. Isto
não significa, no entanto, que não tenha havido caso algum que possamos classificar como
intolerância, mas que talvez haja uma percepção distorcida sobre o assunto. Todavia, eu,
enquanto sacrificador, percebo vários olhares e ouço inúmeros comentários nas ruas, em
conversas com pessoas de fora da religião que demonstram o profundo desconhecimento e
estigma quanto tais rituais.
É comum (ainda que não devesse ser), durante estas conversas informais ou até mesmo
em comentários não dirigidos a mim, o desconforto ao tocar no assunto dos sacrifícios
praticados pelas religiões de matriz africanas, tanto quanto é desconfortável para mim, notar
que há um profundo desconhecimento sobre esta práticas em outras religiões e que, por este
motivo, os ataques direcionam-se apenas à chamada “macumba”.
Dentro da percepção das mudanças no campo religioso brasileiro, nos novos modelos
do cristianismo (neo)pentescostal, nas atuais formas de combate religioso aos cultos de matriz
africana, tomando como base algumas das suas mais importantes práticas, transformando-as em
ferramenta proselitista e de dominação terminam na acentuação do choque cultural-religioso
que é a relação conflituosa, criando ações de “ataque e defesa”, onde, o cristianismo
neopentecostal engendra seus artifícios para conquistar fiéis e reduzir o alcance popular das
religiões de matriz africana, ampliando seu próprio alcance, enquanto estas últimas buscam,
como recursos, tornar cada vez mais privados os ritos sacrificiais, buscando atrair o mínimo
possível os olhares pejorativos para suas cerimônias, ao passo que tentam desmistifica-los
através do discurso enquanto amealham amparo legal para a manutenção de suas práticas.
99

Assim, as estruturas que permanecem, necessitam se readaptar aos tempos e aos novos
interesses religiosos, políticos e sociais para se manterem vivas e atuantes em seus propósitos
de fé, salvação ou integração, no jogo de interesses religiosos, políticos e econômicos.
100

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os rituais sacrificiais para o candomblé, longe do que possam imaginar aqueles que não
fazem parte do culto e cheios de conceitos pré-concebidos, são parte fundamental e
indissociável da prática religiosa estabelecida no Brasil pelos escravizados trazidos da África e
perpetuados por seus descendentes até a contemporaneidade. Também é tema de discussões
acaloradas e, muitas vezes, sem conhecimento de causa sendo vistos como rituais nefastos,
malignos e/ou violentos.
Tendo em vista isto, dediquei-me a estudar tais rituais, sob a ótica de uma casa específica
denominada Ilê Àṣẹ Oyá Nirolê Igbalé como é a realidade de tantas casas de candomblé país à
fora. A partir de minha experiência como sacerdote responsável pelos sacrifícios, busquei
compreender mais profundamente através da observação etnográfica os significados destes,
como se constituíam, que cuidados eram tomados, como cada ato sacralizava cada elemento
nele contito e se unia ao sagrado, tornando os laços entre humanos e divindades cada vez mais
estreitos.
O percurso feito para que esta pesquisa se desenvolvesse e chegasse à sua finalização
foi extenso, tortuoso, cheio de atropelos, dado o momento trágico pelo qual o país passava ao
longo de um ano e meio do curso de Mestrado em Ciências da Religião (2020/2021). Em maio
de 2020, data em que era previsto o início das entrevistas, o Pará já encontrava-se em alerta
máximo quanto a pandemia de COVID-19 que já assolava grande parte do mundo, sendo
tomadas, com isso, medidas de distanciamento social, inclusive Lokdown174. A aproximação à
algumas pessoas que poderiam servir de informantes se tornou cada vez mais restrita e os rituais
sacrificiais mais escassos dado o perigo da pandemia. Estas dificuldades causaram
desmotivação em inúmeros momentos. No entanto, prossegui na busca de resultados que
pudessem proporcionar a execução do trabalho acessando sobretudo os conhecimentos
adquiridos por mim ao longo de minha vida religiosa e as redes de relações amealhadas nesse
percurso.
As entrevistas com Mãe Rosa, sacerdotisa da casa, e Pai Dani, pejigan que, apesar de
não fazer parte deste terreiro, desempenha papel fundamental, seja na pedagogia do sacrifício,
seja atuação nestes rituais em vários momentos, foram extremamente valiosas e serviram não
apenas para o enriquecimento desta dissertação, mas também para meu crescimento enquanto
cargo de sacrificador. Pude perceber que existem, em grande parte, conhecimentos práticos que

174
Expressão em língua inglesa que, em tradução literal, significa “confinamento” ou “fechamento total”.
101

muitas vezes não se ligam às teorias, aliás, o candomblé é uma religião de vivência e toda sua
ciência está contida na sabedoria repassada dos mais velhos aos mais novos, sem a grande
necessidade de manuais. Aprendi que mais profundo conhecimento está no sentir.
Minha intenção primeira era de desenvolver um estudo que culminasse na atuação do
sacrificador (pejugan) sem, contudo, tê-lo como alvo principal ou que fosse esta personagem,
a grande “estrela” da pesquisa. Entretanto, por alguns motivos de ordem pessoal e acadêmica,
abandonei esta proposta e segui fazendo uma abordagem mais focada no sacrifício em si. A
partir disso, tudo foi ganhando outra forma, os caminhos foram me levando à informações mais
profundas dentro daquilo sobre o qual me propus escrever como alternativa às minhas primeiras
intenções. Passei a delimitar as abordagens pautadas nos elementos que compunham cada ritual
e cheguei cada vez mais próximo da principal hipótese levantada em meu projeto, a de que os
sacrifícios de sangue representam o sustentáculo do culto candomblecista na casa analisada.
Aprofundei-me também em elementos que não são tão comumente vistos como vítimas
sacrificiais, tais quais as ervas utilizadas nos banhos, nos minerais e no tempo dedicado às
obrigações. Para isso, precisei além de leituras mais específicas e certo grau de delicadeza para
compreender o que nem sempre é notado com tanta evidência. Este conhecimento também me
serviu para a vida religiosa, impulsionado ainda mais minha conecção com o sagrado.
Por fim, ampliar meus conhecimentos acerca das questões do preconceito que tanto pesa
sobre as religiões de matriz africana e, por conseguinte, sobre o sacrifício. Os estigmas trazidos
por concepções religiosas deturpadas, baseadas na falta de conhecimento e no racismo
estrutural que se desenvolve sobre o aspecto de racismo religioso, passaram a ser mais claros.
As manifestações destas negações aos cultos de matriz africana e a todos seus rituais, por hora
se mascaram como “direito à vida animal” ou como combate às “práticas demoníacas” enquanto
se levanta a bandeira dos “bons costumes” e de uma pretensa “tradicionalidade religiosa
brasileira”.
Um desdobramento possível deste tema diz respeito às análises sobre o simbolismo dos
animais utilizados nos rituais sacrificiais e a relação destes com a mitologia dos voduns/orixás.
Além disso, seria interssante aprofundar a análise sobre a formação do pejigan sacrificador que,
por questões da extensão e do tempo para aprofundamento foi preterida nesta dissertação.
Dentro deste desdobramento, há possibilidades de estudar o ritual iniciático do cargo e o repasse
dos conhecimentos necessários para desempenhar tal função.
Em suma, distante de dar como esgotado o tema do sacrifício nas religiões de matriz
africana, busco ter contribuído para novos olhares, novas análises que venham a preencher as
lacunas deixadas por esta humilde pesquisa, levando à novas prováveis indagações sobre o
102

assunto e despertando ainda mais o interesse na comunidade acadêmica e fora dela, tanto na
sociedade comum, quanto no “povo de santo” ao qual pertenço.
103

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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