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JOINVILLE
2018
UNIVERSIDADE DA REGIÃO DE JOINVILLE – UNIVILLE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PATRIMÔNIO CULTURAL E SOCIEDADE
JOINVILLE
2018
Catalogação na publicação pela Biblioteca Universitária da Univille
CDD 299.673
Ao meu sobrinho Antônio (in memoriam), cuja partida deixou como herança a
força de vontade para a conquista de sonhos a serem realizados em nossa breve
passagem terrena.
E aos membros do Nzo Nkise Nzazi, especialmente a Tata Kelaue.
In the heart of the debates promoted by the line of research Cultural Heritage and
Sustainability that composes the PPG Master in Cultural Heritage and Society, our
dissertation aims to analyze the relations established between traditional knowledge
and nature, considering the practices and knowledge of a candomblé of Angolan
modality Nzo Nkise Nzazi, circumscribed in the municipality of Araquari - SC. The
present research proposes a reflection in spite of a worldview that focuses on
traditional knowledge and how they reflect the patrimonial issues related to ancestry
and nature, manifested especially in some of its ritualities. In this way, we present the
main peculiarities that involve the construction of these knowledge, the status of its
agents, as well as the historical contextualization of candomblé angola and its
process of erasure in front of the other manifestations of the religiosity of African
matrix. Thus, we can perceive markers of difference, but also of similarities with other
candomblés. In this way, we list the main authors who base our research Prandi
(1991), Lody (2012), Ferretti (1998), Previtalli (2006) and Louzada (2011). In addition,
we intend to discuss the value goods for the candomblé angola and the relation of its
cult and magic myth collection with the natural spaces that do not sum up the liturgical
seat. We start from a methodology that relies on Oral History as the main basis of data
collection and that opens a new field of possibilities for the subjects with still little
research. In the face of the methodology adopted, we report to Alberti (2013) and
Pollak (1989). Finally, the dissertation dialogues with conceptions of memory and
religious identity that are expressed in the singularities of these knowledges that are
organically linked to the sacralization of spaces and nature.
Keywords: candomblé angola; cosmovision, traditional knowledge; nature; narrative;
environment; cultural heritage.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................... 13
1.1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................35
1.2 “Ô NZAZI MANHANGOLÊ, MANHANGOLÁ!”: O NZO E SEUS SUJEITOS.....40
1.3 NA MINHA ALDEIA TEM CABOCLO GUERREIRO, TEM SEU REI DAS
ERVAS NO ANDARAÍ!: OS SABERES..........................................................................41
1.4 É FOLHA DE UNGIRA!.............................................................................................. 50
1.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................52
1.6 REFERÊNCIAS........................................................................................................... 54
2.1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................58
2.2 ITABURANGA MATOU UM BICHO DE PENA, ELE NÃO MORA LONGE,
MORA DENTRO DA JUREMA........................................................................................ 64
2.3 TATA CAMBONDO SEGURA O ROMBO CONGO DE A BANDA GUDIÁ....... 66
2.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................79
3.1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................83
3.2 UMA CASA DE NOME E SOBRENOME................................................................ 87
3.3 INQUICES, CABOCLOS, UNGIRAS, BAIANOS, MARINHEIROS E PRETOS
VELHOS.............................................................................................................................. 92
3.4 O VENTO QUE BATE AQUI TAMBÉM BATE LÁ..................................................96
12
REFERÊNCIAS................................................................................................................... 117
APÊNDICES.........................................................................................................................126
ANEXOS............................................................................................................................... 144
1
Na cultura banta, os N’kisi, segundo MacGaffey (1986, p. 80), eram “espíritos tutelares de vilas
associados a água, tempestades, grutas e grandes pedras”. Para a escrita desta dissertação,
utilizamos inquice, e não N’kisi, por entendermos estar em consonância com trabalhos acadêmicos já
desenvolvidos.
2
Inquice que corresponde à força do raio (BARCELLOS, 2011, p. 60).
3
Tata, na nação angola, corresponde a pai de santo (BARCELLOS, 2011, p. 113).
4
Kelaue refere-se ao nome ancestral individual concebido após a feitura de santo (SILVA, 2017).
5
Considerados como axé do pó. “O Pó a que se refere o título também chamado de Zorra era
preparado com raízes, folhas, e muitos ingredientes próprios para feitiço, a receita só era conhecida
pelos mais velhos, não ensinavam para ninguém, muitos babalorixás ficaram famosos por serem Bom
no Pó ou Bom de Pó” (RAIZ MASSANGANGA DE KARIOLÉ, 2008).
6
Data aproximada, fornecida por Tata Kelaue (SILVA, 2017).
7
Citamos alguns indicativos dessa ausência pelo trabalho de Previtalli (2006, p. 2): “Ao pesquisar
sobre candomblé, observei que a maior parte da literatura se referia diretamente ao candomblé queto
e em quase nada havia informações sobre o candomblé angola”. Já Prandi escreveu: “O candomblé
nagô pode contar além do prestígio, com muitas fontes escritas brasileiras, além de uma etnografia
produzida sobre o culto dos orixás na Nigéria e no Benin. Nada semelhante existe sobre candomblé
14
metodologia da história oral para produzir novas fontes e analisar esses saberes.
Da interação cultural dos africanos na condição de escravizados e seus
descendentes, surgiram matizes de religiões afro-brasileiras, entre elas, o candomblé,
o batuque, o tambor de mina, o xangô, a umbanda e o terecô. Na trama das
religiosidades de matriz africana, podemos dizer que o candomblé, que remonta a
sua formação à Bahia no século XIX, se apresenta como a religião do culto aos
ancestrais8, tendo em comum as diferentes nações9 que elaboram suas liturgias
próprias, porém todas derivando de uma ligação com o “tempo, a origem e
autoridade” (PRANDI, 2005, p. 19).
No candomblé10, independentemente das nações, é somente por intermédio
do tempo, o tempo de cada um e de suas obrigações religiosas, que o conhecimento
é transmitido pela oralidade. No tempo, tudo se repete; esse é o pilar da herança
africana que organiza a hierarquia, o saber e o poder. Tão logo, nenhum
conhecimento é outorgado antes do “tempo”.
A concepção de tempo também é circular. Nesse sentido, acredita-se na
repetição do acontecido. Esse tempo não se define por horas determinadas pelo
relógio, e sim por uma cadeia de atividades a desempenhar. É importante entender
que o tempo se define por um “realizar”, e não pelo cômputo das horas do relógio,
pois dessa concepção se propõem a lida na roça, o trato com os animais, o corte da
lenha, o recolhimento de ervas e plantas.
É desse modo que os saberes se organizam para mediar enfermidades,
estabelecer o equilíbrio e principalmente lidar com o meio ambiente. Aliás, os
saberes estão sempre ligados à natureza, visto que ela é fonte do sagrado e onde
este se manifesta. Podemos dizer que o espaço sagrado é um campo de forças e de
valores que edifica o homem religioso transportando-o para um meio distinto daquele
no qual transcorre sua existência. Essa percepção de si e do tempo encontra-se em
confronto com o tempo do capital e sua forma de alocação de recursos naturais, o
angola” (PRANDI, 1991, p. 20). Assim, os autores referem-se à ausência de trabalhos relativos ao
candomblé angola, na mesma medida em que existem os de nação queto/nagô.
8
“A ancestralidade é o que estrutura a visão de mundo presente nas religiões de matriz africana. Sem
o princípio de senioridade a organização social das comunidades de terreiro estaria esfacelada. Sem a
ancestralidade não haveria tradição” (OLIVEIRA, 2006, p. 118).
9
“O termo nação é sinônimo de raiz, ou seja, pertencer a uma nação é uma maneira de valorizar e
transmitir os fundamentos de sua ascendência, revivendo assim, as origens africanas (DANTAS, 1982,
p. 30).
10
Etimologicamente, a palavra candomblé parece ter se originado de um termo da nação banto,
candombe, traduzido como “dança, batuque” (BARROS, 2016, p. 30).
15
11
“Cosmovisão, além de significar uma visão ou concepção de mundo, expressa também uma atitude
frente ao mesmo. Portanto, não é uma mera abstração, já que a imagem que o homem forma do
mundo possui um fator de orientação e uma qualidade modeladora e transformadora da própria
conduta humana. Implícito em toda cosmovisão há um caminho de ação e realização” (CREMA, 1989,
p. 17).
12
Os membros de um candomblé são classificados, basicamente, em duas grandes categorias de
idade iniciática: muzenzas e ebomis. Os segundos possuem autoridade para a realização dos rituais
(BARROS, 2016, p. 54).
16
13
Vida, energia vital (LOPES, 2005, p. 1).
14
Correspondente a axé na língua ioruba, significa força vital (LOPES, 2005, p. 1).
18
15
“Apesar de permeadas por interpretações que, de certa forma, tendem a tratar essas duas
acepções como categorias antagônicas, as concepções de natureza adquiriram um sentido particular
no engendramento da sociedade humana. A acepção de natureza, ora rivalizando com a arte, ora
competindo com a técnica, tendeu a cristalizar-se na historiografia como pressuposto da negação das
conexões do homem com o estado natural” (PELEGRINI, 2006, p. 115).
19
16
Referimo-nos à Lei n.º 12.288, de 20 de julho de 2010 (BRASIL, 2013).
20
17
“A Agenda 21 pode ser definida como um instrumento de planejamento para a construção de
sociedades sustentáveis, em diferentes bases geográficas, que concilia métodos de proteção
ambiental, justiça social e eficiência econômica” (AGENDA 21 DA CULTURA, 2004).
21
18
Segundo Tata Kelaue, Nzo Nkise Nzazi significa “a Casa da Força Raio” (SILVA, 2017).
22
Essa declaração passa inocente aos olhos leigos, mas está permeada de
significados historicamente construídos. A constituição das chamadas roças de
candomblé, ou terreiros, segue uma política organizacional correspondente a sua
nação, conforme já mencionado anteriormente. Todavia, o candomblé angola tem
gozado de um status de inferioridade em relação aos demais, ou melhor
esclarecendo, ante a supremacia nagô. No artigo de Marins (2016), que faz um
balanço a despeito de políticas patrimoniais pós-década de 1980, conferimos o
seguinte vaticínio:
19
Falando sobre os cambindas e bantos, Gallet (1934, p. 58) escreve: “Considerados pelos outros,
inferiores, imitadores e ignorantes. Desconhecem até o próprio idioma, complicado e difícil, e o
misturam com termos portugueses. Adoram as pedras, os paralelepípedos e as lascas de pedra”.
Ainda acerca dos negros bantos, Rodrigues (1988, p. 216) afirma: “Decorrido meio século após a total
extinção do tráfico, o fetichismo africano constituído em culto apenas se reduz ao da mitologia
jeje-iorubana. Angolas, guruncis, minas, haussás, etc., que conservam suas divindades africanas, da
mesma sorte que os negros crioulos, mulatos e caboclos fetichistas, possuem todos, à moda dos
nagôs, terreiros e candomblés em que as suas divindades ou fetiches particulares recebem, ao lado
dos orixás iorubanos e dos santos católicos, um culto externo mais ou menos copiado das práticas
nagôs”.
24
20
O assentamento, leia-se igba, em ioruba, é o receptáculo em que o homem venera suas divindades.
É o centro de toda a força. O igba faz parte dos costumes iorubanos, mas outras nações-irmãs
também o utilizam, como os bantos e os fons. Estes últimos, primordialmente, como já dito, fazem
seus assentamentos aos pés das árvores (BARROS, 2009, p. 101).
21
“O culto a caboclo nos candomblés é uma temática que, até hoje, se reveste de mistério e até
mesmo certo silenciamento por parte de seus integrantes. Na primeira metade do século XX, foi
considerado por Carneiro (1991, p. 62) como ‘um processo sincrético afro-ameríndio’ ou, no caso da
interpretação de Querino (1938, p. 117, grifo nosso), ‘uma variante do candomblé jeje-nagô que
incorporou elementos indígenas’, pensamentos que contribuíram para estabelecer uma dicotomia
entre os candomblés de tradição africana – a saber, os ‘impermeáveis’ candomblés jeje-nagôs – e os
candomblés de origem banto – Angola e Congo –, mais propensos às ‘influências externas’ do que os
primeiros” (MENDES, 2014, p. 122).
25
22
O orixá é, em princípio, um ancestral divinizado que em vida estabeleceu vínculos que lhe garantem
controle sobre certas forças da natureza. O poder asé do ancestral-orixá teria, após sua morte, a
faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenômeno de
possessão por ele provocada (VERGER, 2002, p. 18).
23
Além da linguagem comum, estariam ligados por uma origem em comum, na cidade de Ifé
(VERGER, 2002, p. 11).
27
24
Prandi (1991, p. 101) utiliza nagocracia para demonstrar a popularidade alcançada pelo candomblé
nação ketu – também chamado de nagô – no Brasil, na década de 1970, quando do “jubileu de ouro de
iniciação de mãe Menininha do Gantois”, considerada a mais famosa yalorixá do Brasil de todos os
tempos.
28
25
Cargo de autoridade na casa atribuído às mulheres que não entram em transe (SILVA, 2017).
26
Cargo de autoridade na casa atribuído aos homens que não entram em transe (SILVA, 2017).
29
27
As primeiras atribuições de caráter classificatório nos portos de embarque, após translado do
continente africano (PREVITALLI, 2006, p. 3).
30
que vão desde a coleta de folhas e raízes até a elaboração da cozinha sagrada e os
tradicionais cortes de bichos, especialmente por meio da história oral.
Sobre a questão do respeito que as religiões de matriz africana possuem em
relação à natureza, tornando-se profundamente reveladora de patrimônios não
oficiais salvaguardados por grupos específicos da sociedade, temos a fala do
entrevistado Zamenga, para o trabalho de Pinto (2008, p. 14):
28
Após o exame de qualificação, estruturamos nossos artigos com base em ajustamentos acordados
pela banca examinadora. Desse modo, o primeiro artigo foi desmembrado em dois, visto a
possibilidade de discutir com mais acuidade os saberes relativos aos cortes de animais. Um dos
artigos propostos, intitulado “Representações da Macaia: a relação entre deidades e paisagens do Nzo
Nkise Nzazi”, foi suprimido em razão da indisponibilidade de tempo dos membros do Nzo Nkise Nzazi
para realizar alguns desenhos que reproduzissem os saberes tradicionais ligados às ervas.
33
Resumo:
Escrever a história dos saberes e das memórias que envolvem o candomblé angola é
condensar o patrimônio, reunindo o natural e o cultural em uma narrativa ímpar que
investe, acima de tudo, na transmissão e na recepção de conhecimentos produzidos
por uma experiência de séculos. Assim, o trabalho compõe-se principalmente da
análise de sentidos, que, por sua vez, são possíveis de acionamento por meio de
saberes tradicionais. Uma parte da discussão está centrada no reconhecimento dos
saberes como técnicas que envolvem processos de ensino-aprendizagem.
Igualmente, busca-se trazer para o centro da discussão a formação de uma
identidade. Nesse sentido, considera-se que os saberes são dotados de referências
culturais e se situam em uma cosmovisão. Procura-se trazer a lume um pouco dessa
pedagogia dos saberes tradicionais, constituintes da identidade religiosa do
candomblé angola, detalhando um estudo de caso realizado em uma comunidade de
terreiro, o Nzo Nkise Nzazi, situado no município de Araquari (SC). Mediante as
narrativas orais dos agentes que mobilizam determinados saberes para a
manutenção de seu sistema de crenças, tenta-se apontar uma reflexão a despeito
dos diferentes saberes e seus modos de percepção dos mundos físico e espiritual.
Palavras-chave: saberes; narrativas; candomblé angola; patrimônio.
Abstract:
Writing the history of the knowledges and memories that surround the candomblé
angola is to condense the patrimony, bringing alone the natural and the cultural in a
unique narrative that invests, above all, in the transmission and reception of
knowledge produced by an experience of centuries. Thus, the work is composed
mainly of the analysis of meanings, which, on its turn, are possible to trigger through
traditional knowledge. Part of the discussion is centered on the recognition of
knowledge as techniques that involve teaching-learning processes. The text also
seeks to bring to the center of the discussion the formation of an identity. In this sense,
it is considered that knowledge is endowed with cultural references and situated
within a worldview. It intends to highlight some of this pedagogy of traditional
knowledge, constituents of the religious identity of candomblé angola, detailing a case
study carried out in a community of the terreiro Nzo Nkise Nzazi, located in the
municipality of Araquari, Santa Catarina, Brazil. Finally, through the oral narratives of
the agents who mobilize certain knowledge to maintain their belief system, we look for
pointing out a reflection in spite of the different knowledges and their modes of
perception of the physical and spiritual worlds.
Keywords: knowledge; narratives; candomblé angola; patrimony.
1
O provérbio, em língua quimbundo, comumente falado nos candomblés de modalidade angola, tem
como correspondência em língua portuguesa: “Aconselha-te com o velho, o saber do velho é grande”.
Disponível em: <http://linguakimbundu.xpg.uol.com.br/ditpop.html>. Acesso em: 25 jul. 2017.
2
Em língua quimbundo, diz respeito ao sistema de crenças do candomblé angola. Seu significado
próximo ao português seria “Casa da Força Raio” (SILVA, 2017).
3
O artigo segue as normas da revista Sankofa, para a qual foi submetido à publicação em 05 de
janeiro de 2018.
35
1.1 INTRODUÇÃO
4
Etimologicamente, a palavra candomblé parece ter se originado de um termo da nação bantu,
candombe, traduzido como “dança, batuque” (BARROS, 2013, p. 30).
5
“O termo nação é sinônimo de raiz, ou seja, pertencer a uma nação é uma maneira de valorizar e
transmitir os fundamentos de sua ascendência, revivendo assim, as origens africanas (DANTAS, 1998,
p. 30).
6
Tata de Nkise corresponde à autoridade máxima sacerdotal dentro de um terreiro de candomblé
angola. Kelaue diz respeito à digina (nome de iniciação ritual) recebida pelo senhor Arildo José da
Silva de quando de sua iniciação (SILVA, 2017).
7
“O orixá, seria em princípio, um ancestral divinizado, que em vida, estabelecera vínculos que lhe
garantiam um controle sobre certas forças da natureza [...]. O poder asé do ancestral-orixá teria, após
sua morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um
fenômeno de possessão por ele provocada” (VERGER, 2002, p. 18).
36
8
Refere-se a candomblés de caboclo e candomblé de nação angola.
9
Além de Prandi, recorremos aqui a uma breve historiografia sobre o tema, considerando os autores
mais influentes no que diz respeito a estudos acerca do culto dos orixás. Em comparação à estrutura
nagô de culto e aos negros bantos, Nina Rodrigues (1988, p. 216) assevera: “Decorrido meio século
após a total extinção do tráfico, o fetichismo africano constituído em culto apenas se reduz ao da
mitologia jeje-iorubana. Angolas, guruncis, minas, haussás, etc., que conservam suas divindades
africanas [...] em que as suas divindades ou fetiches particulares recebem, ao lado dos orixás
iorubanos e dos santos católicos, um culto externo mais ou menos copiado das práticas nagôs”. Arthur
Ramos também recorre ao mesmo entendimento a despeito dos negros bantos, no entanto escreveu
um capítulo de nome “Sobre as culturas bantu”, em sua obra intitulada Introdução à antropologia
brasileira (RAMOS, 1961). Edson Carneiro, por sua vez, refere-se aos candomblés angola no livro
Candomblés da Bahia: “Pode-se dizer que, na Bahia, os negros bantos esqueceram os seus próprios
orixás” (CARNEIRO, 1991, p. 134). E, quando escreve sobre a formação dos candomblés de caboclo,
diz: “Foi a mítica pobríssima dos negros bantos que, fusionando-se com a mítica igualmente pobre do
selvagem ameríndio, produziu os chamados candomblés de caboclo na Bahia” (CARNEIRO, 1991, p.
62).
10
Os bantos constituíram o grupo africano trazido em maior quantidade ao país, visto que seu tráfico
teve início em fins do século XVI, minorando na década de 90 do século XVII, tendo seu cessamento
no século XIX (SWETT, 2007, p. 35). Desse modo, o referendado grupo foi o que mais significativa
influência exerceu na cultura brasileira (SILVA, 2005, p. 28).
11
“Reduzir a figura do caboclo ao índio primordial seria falso. De fato, o termo genérico de caboclo
agrupa todas as figuras ancestrais que não são de origem negro africana. O caboclo é, ao mesmo
tempo, um ancestral genérico, representante da autoctonia, e um ancestral singular, particular para o
médium ao qual convive. [...] O caboclo ocupa um lugar especial na comunicação entre vivos, mortos e
seres do além” (TALL, 2012, p. 79-93).
37
12
Segundo Ramos (1951, p. 138), “há uma modalidade de sincretismo religioso que só agora vem
tomando grande incremento, o que prova que a sua aparição é relativamente recente. É o chamado
‘candomblé de caboclo’, na Bahia, ou ‘linha de caboclo’, no Rio de Janeiro”.
13
Uma prova disso é o fato de, no início da cristianização do Congo, os catequistas, buscando uma
analogia com a cosmogonia banto, terem nomeado as imagens dos santos de inquices. Estes eram
objetos mágicos, retirados da natureza, dotados de poderes místicos, usados pelos africanos em seus
rituais (PEREIRA, 2007, p. 174).
38
14
Suas características de autoctonia, ancestralidade, sabedoria ecológica e de grande teimosia fazem
deles um intermediário privilegiado nas relações humanas com as forças do além (TALL, 2012, p. 79).
15
“A ancestralidade é o que estrutura a visão de mundo presente nas religiões de matriz africana.
Sem o princípio de senioridade, as organizações sociais das comunidades de terreiro estariam
esfaceladas. Sem a ancestralidade não haveria tradição” (OLIVEIRA, 2006, p. 118).
39
16
O Decreto n.º 3.551, de 4 de agosto de 2000, instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial, criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) e consolidou o Inventário Nacional
de Referências Culturais (INCR), com base no novo conceito constitucional de patrimônio cultural
(BRASIL, 2000).
17
Em seus estudos sobre encantados da natureza em região pantaneira, Leite (2003) afirma: “Os
seres encantados fazem parte da vida, dos medos, dos episódios, da memória, das paisagens e da
cultura da região. O termo básico e recorrente que define toda a percepção e elaboração que se
movimenta no interior do imaginário da população pantaneira na relação com os mitos e os espaços é
o termo: encantado. Não há reinos no sentido tradicional do termo, ou no sentido em que se aplique
talvez a boa parte dos contos de fada: reis, rainhas, princesas, príncipes encantados. Há mundos
submersos, sobrenaturais que se misturam com o mundo natural, social e cultural. Ainda que os seres
e os espaços sejam encantados, o reino é o da natureza e o da cultura”.
40
18
Fragmento da cantiga devotada a Nzazi, o inquice regente do Nzo Nkise Nzazi (ADOLFO, 2010, p.
100).
19
Espécie de cantiga votiva.
20
Processo de renascimento com seu inquice. É a primeira obrigação confirmada com o inquice.
21
Status de pai no candomblé, porém eles não recebem inquices nem entidades.
22
São as mães no candomblé. Não recebem inquices nem entidades.
23
Com feitura, obrigação.
24
Sem feitura, obrigação.
41
sobrenome. Então nós temos o primeiro da raiz até chegar meu pai,
até chegar a mim (SILVA, 2017).
Pela narrativa de Tata Kelaue, podemos observar que a história do nzo está
intimamente ligada à trajetória de outras pessoas eminentes. É uma relação com o
passado que aufere legitimidade à história de sua casa e a sua própria. Segundo
Prandi (2005, p. 32), esse passado remoto, de narrativa mítica, é coletivo e fala do
povo como um todo. Passado de geração a geração por meio da oralidade, é ele que
dá o sentido geral da vida. Notamos aqui a relação de continuidade, de evocação dos
mais velhos, considerados sujeitos notáveis, e os encargos ancestrais a eles
imbuídos. Aliás, a tônica dominante em todas as narrativas alude ao passado, não
marcadamente cronológico, ao que foi “deixado”, até “chegar” a Tata Kelaue. Sendo
assim, seguimos nossas entrevistas reconhecendo e respeitando que as noções de
história, tempo, autoridade e saber são diferentes para os grupos tributários da
cosmovisão africana.
1.3 NA MINHA ALDEIA TEM CABOCLO GUERREIRO, TEM SEU REI DAS ERVAS
NO ANDARAÍ!25: OS SABERES
A nossa Bíblia taí, a natureza. E tem que saber ler. Eu tenho que
saber o que ela está mostrando pra mim. Ali tem fundamento, tem o
que aconteceu desde o começo do mundo. O que fala quando vai se
dar uma tempestade, quando que vai acabar a água. Não precisa
alguém escrever. Se eu tirar isso aqui, então vai fazer mais calor. O
vento vai derrubar minha telha, porque aquilo não está me
defendendo, eu tirei. Então tudo é você saber ler. Não precisamos ter
uma Bíblia. Candomblé angola precisa ter conhecimento (SILVA,
2017).
25
Fragmento de zuela relativa aos saberes mágicos de caboclos, entidades que se apresentam em
avatares de índios e boiadeiros detentores de saberes sobretudo medicinais.
42
26
Cosmovisão, além de significar uma visão ou concepção de mundo, expressa também uma atitude
perante a ele. Portanto, não é uma mera abstração, já que a imagem que o homem forma do mundo
possui um fator de orientação e uma qualidade modeladora e transformadora da própria conduta
humana. Implícito em toda cosmovisão há um caminho de ação e realização (CREMA, 2015, p. 17).
27
“O sentido de fazer ebó tem uma grande amplitude, porque ele faz parte de rituais que permitem o
fortalecimento da vida espiritual, como também faz parte dos rituais que ajudam [a] afastar forças
negativas, que trazem instabilidade” (BARROS, 2016, p. 95).
43
Muitos vêm só pra tomar um banho. Só pra pegar uma energia. Vou
pra tal lugar, queria pegar uma energia. Tem coisas que você ensina.
Coisas simples você ensina. Outros elementos, não. Tem coisas que
você tem que manipular com sua energia. Que precisa pra uma outra
coisa, pro reequilíbrio dele mesmo. Tem banhos que eu tenho que
macerar, eu preciso falar, eu tenho que pegar essa coisa do inquice e
colocar minha energia. Eu tenho que escolher as ervas para que vai
servir pra essa pessoa. Tem folhas que eu não posso colocar pra todo
mundo. Tem folhas que são específicas pra um. E tem folhas que
podem se misturar pra todo mundo tomar banho. Porque, se eu der
uma folha pra uma pessoa, eu posso desequilibrar. Porque a pessoa
já está desequilibrada, e eu dou qualquer folha pra essa pessoa,
inclusive tóxica, eu desequilibro ela mais ainda, a energia dela. Mas
mesmo a tóxica pode ser usada. Isso é nós manipulando. Isso eu não
tenho como ensinar pra essa pessoa que vem. Só pra pessoa que se
inicia, pra ela saber cuidar do outro lá fora.
28
O episódio mais recente de reificação das religiões de matriz africana deu-se em resposta a uma
ação do Ministério Público Federal que solicitava a retirada de vídeos no canal YouTube por entender
que seus conteúdos feriam as práticas religiosas de matriz africana. À época (março de 2014), o juiz
Eugênio Rosa de Araújo, da 17.ª Vara Federal do Rio de Janeiro, afirmou em sentença que “ambas
manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto
base (corão, bíblia etc.) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado”.
Mais informações disponíveis em:
<https://allisoncosta.jusbrasil.com.br/artigos/188967916/violacao-a-liberdade-de-crenca-religiosa>.
Acesso em: 27 jul. 2017.
29
Para Hampaté Bâ (1980, p. 186), a palavra magia é tomada no mau sentido, enquanto na África
designa unicamente o controle das forças.
44
30
São considerados territórios descontínuos do candomblé os ambientes rituais complementares,
aqueles pertencentes à área interna dos terreiros, podendo ser mata, rio, lago ou até mesmo o mar. Ao
serem vistos como evocativos do espaço físico, são entendidos como espaços úteis e reservados aos
rituais (RÊGO, 2006, p. 72).
31
Falando sobre os cambindas e bantos, Gallet (1934, p. 58) escreve: “Considerados pelos outros,
inferiores, imitadores e ignorantes. Desconhecem até o próprio idioma, complicado e difícil, e o
misturam com termos portugueses. Adoram as pedras, os paralelepípedos e as lascas de pedra”.
47
uso que a velhinha faz do bem cultural é qualificadamente existencial, por oposição
ao “uso cultural” dos turistas. Segundo o autor, ela poderia ser reconhecida como o
protótipo do habitante: no sentido de “habitar”, possuir, manter relações com alguma
coisa, apropriar-se, diferentemente dos visitantes, que não possuem ligação orgânica
com os lugares.
A fala de Tata Kelaue também ressalta não apenas o uso do lugar, mas a
ligação entre o espaço físico e o religioso, em que se trocam energias. Ou seja, não
se trata apenas de um lugar qualquer para depositar oferendas. Há todo um cuidado
com o ambiente que revela saberes no trato com os alimentos votivos, com os
animais que o consomem, com as árvores. Observa-se ainda que é dos próprios
espaços donde se extraem os recursos para a confecção dos artefatos que esses
atores conduzem a oferenda. Os copos confeccionados de coco (cuité) ou folhas
para recebimento de oferendas de consistência líquida dão indícios dessa relação
orgânica com o meio ambiente.
Outro depoimento selecionado para este trabalho foi o do Cambono32 Rafael
Hasselmann, suspenso por Matamba33. Sobre o procedimento e encaminhamento
das oferendas em espaços para além da sede do culto, Rafael relata:
Não se leva pra natureza nada artificial, pois é algo morto, não existe
troca de energia. E vou dar um exemplo que eu gosto muito, porque é
da cabocla Jupira, e eu gosto muito dos caboclos. A força desse
ancestral brasileiro me dá segurança que eu participo desse lugar. [...]
Então se deu início ao preparo dos alimentos que iriam compor a
oferenda para [a] cabocla. Foi assado o peixe na folha de bananeira,
foram lavadas as frutas, acompanhamos o Tata Kelaue, a muzenza,
que é o cavalo da cabocla Jupira, eu e o Tata pocó Geraldo. Fomos à
mata, pedimos licença, permissão pra entrar, e fomos ao pé de uma
árvore grande, na qual preparamos a mesa para arriar a oferenda.
Esse chão antes de arriar é feito a mesa, que são folhas de bananeira.
As frutas e o peixe foram postas em cima da mesa. [...] Nessa energia
quem veio receber foi a própria cabocla Jupira. [...] É uma força que
você sente a energia, você se sente bem, porque está toda a força da
natureza ali. Tudo aquilo, o verde, o balançar das folhas, aquela mesa
bonita, nossa energia também, a presença da Jupira. E sabemos que
ela não está sozinha, porque todos os caboclos estão ali. Essas
coisas ainda me arrepiam (HASSELMANN, 2017).
32
Braço direito do tata de inquice, ou Tata Kelaue.
33
Divindade correspondente aos ventos e às tempestades.
48
Embora haja uma abertura nas relações sociais para que certas memórias e
esclarecimentos venham à tona, é incontestável a necessidade dos sujeitos desse
trabalho de declarar já no início do nosso diálogo vivências ou singularidades que
demarquem diferenças. Na fala do Cambono Rafael reside a preocupação em afirmar
aquilo que se sabe ser o discurso hegemônico: o mal-uso dos espaços pelos
religiosos de matriz africana conforme representado nas grandes mídias, por
exemplo. Aqui também temos um indicativo de como os saberes se exercem perante
a eminência de uma entidade do nzo, a cabocla Jupira. A manifestação desse
encantado ocorre mediante a conexão entre oferendas, sujeitos e espaços.
Nessa narrativa, em termos práticos se tem uma pequena amostra de como os
trabalhos e as oferendas são importantes para evocar as entidades que integram um
sistema de crenças que faz sentido a uma comunidade.
A narrativa também traz a lume a importância dos caboclos que participam do
panteão do candomblé angola. Por determinado tempo, o culto ao caboclo foi
considerado por intelectuais como objeto de desprezo por representar a mistura entre
negros bantos e indígenas, diferentemente dos candomblés de origem jeje-nagô, que
conservavam uma pretensa pureza da África. “O culto a caboclo nos candomblés é
uma temática que, até hoje, se reveste de mistério e até mesmo certo silenciamento
por parte de seus integrantes” (CARNEIRO, 1991, p. 62). Na primeira metade do
século XX, foi considerado por Carneiro (1991, p. 62) como “um processo sincrético
afro-ameríndio”, ou, no caso da interpretação de Querino (1938, p. 1.170), “uma
variante do candomblé jeje-nagô que incorporou elementos indígenas”. Esses
pensamentos contribuíram para estabelecer uma dicotomia entre os candomblés de
tradição africana – a saber, os “impermeáveis” candomblés jeje-nagôs – e os
candomblés de origem bantu – Angola e Congo –, “mais propensos às ‘influências
externas’ do que os primeiros” (MENDES, 2014, p. 122).
A oferenda para o caboclo relatada pelo Cambono Rafael demonstra-se
excepcionalmente relevante para o cotidiano dessas comunidades que reconhecem
na experiência citada a construção de sua própria identidade. Assim, o conceito de
identidade para análise das narrativas tem como fundamentação teórica a reflexão de
Gomes (2005). Ela se refere a um modo de ser no mundo e com os outros. A autora
relaciona os fatores que incidem em sua construção que dizem respeito a referências
civilizatórias, práticas festivas e comportamentais, rituais e alimentação. Para o
49
Destarte, tomamos nota que o conhecimento nem sempre ocorre pela via da
linhagem35; há saberes cujo veículo está relacionado à ligação com o divino.
Consoante ao que vimos percebendo neste trabalho por meio das narrativas orais, os
saberes em um candomblé não são um apanhado de processos de
ensino-aprendizagem baseados na racionalidade técnica. Cunha (2007), ao refletir
sobre as diferenças entre conhecimento científico e conhecimento tradicional, versa
acerca do utilitarismo que o conhecimento científico imputa ao conhecimento
tradicional. Segundo a autora, a ciência moderna hegemônica usa conceitos, e a
ciência tradicional, percepções. É a lógica do conceito em contraste com a lógica das
qualidades sensíveis (CUNHA, 2007). A autora enfatiza que os protocolos dos
sistemas de conhecimento tradicional têm suas próprias regras de atribuição de
34
Nos candomblés de nação angola, segundo Tata Kelaue, folha de Ungira é o nome atribuído a
cannabis sativa. Ungira, segundo ele, é um encantado da natureza, senhor do caminho, das
encruzilhadas e do movimento.
35
Com as reconfigurações diaspóricas, a linhagem nos candomblés compõe-se pela família espiritual,
e não mais pelo familiar patrilinear ou matrilinear.
51
E muito foi meu próprio caboclo, meu próprio Ungira, que explicou o
que fazer, para que se comunique com o divino, não para uso
recreativo. Na forma in natura de se fazer um chá, uma beberagem,
um banho. [...] Essa folha é-nos passado pelos nossos avós, mas
também pelos nossos encantados. A gente sabe a porção que tem
que dar, porque foi testado lá atrás. Nós sabemos usar e temos a
energia dos inquices e dos encantados. Você tem que manipular ela.
Vem de África, vem do indígena. [...] Essa força é Katendê! Esse
elemental chamado Katendê é pra ele que nós pedimos, auxiliado por
Nsumbu, pra fazer a cura. A gente sabe porque está dando, não
interfere nos remédios alopáticos (SILVA, 2017).
Por algum tempo o uso de substâncias tóxicas nos terreiros de candomblé foi
reduzido à indolência. Conforme Dória (1986, p. 5), em Alagoas, por exemplo, a
maconha era utilizada “nos sambas e batuques, que são danças aprendidas dos
pretos africanos”. Heitor Péres (1958, p. 68), ao localizar os sujeitos que fazem uso
da maconha, indica-nos finalidades ritualísticas, cosmogônicas e religiosas também.
Para o autor, os estados nordestinos contavam com uma “maior influência africana” e
predominavam “magia e misticismo” nos rituais. O “ambiente do vício” era composto
do “coro dos companheiros”, que entoavam os “cânticos negros” com “religiosidade”
(PÉRES, 1958, p. 68, grifo nosso). Em investigações históricas, buscando-se a
origem da maconha no Brasil, “aporta-se” em Angola, que, segundo Mott (1986, p.
124), era “terra de muita maconha”. Ainda de acordo com o autor, o hábito de
consumir maconha dava-se pelo pó torrado, marcando presença em casas de culto
afro-brasileiras. A planta no estado de pó provavelmente também ficou conhecida
como fumo de Angola posteriormente.
36
Inquice dono das folhas (LOPES, 2005, p. 243).
37
Inquice dono da cura e da doença (LOPES, 2005, p. 243).
52
Mais tarde, Verger (1995) elencou a Cannabis sativa L. como uma erva
partícipe dos cultos religiosos. Na língua iorubá respondia pelo nome de igbó, e seu
nome vulgar lista como maconha ou cânhamo-verdadeiro. Esse estudo apresenta
uma série de 400 receitas separadas por “objetivos” da maconha em cultos
afro-brasileiros: uso medicinal – analgésico, anestésico, cicatrizante, entre outros –,
alusivo à contração da gravidez e ao nascimento e relacionado às divindades, além
de orós38, para uso benéfico, maléfico ou de proteção contra mazelas. Para Verger
(1995, p. 419), “alguns estimulantes produzem uma energia poderosa, que por ser
exagerada altera o equilíbrio das pessoas e pode levar à loucura. Babalaôs e
curandeiros têm receitas para provocá-la e curá-la”.
É salutar reconhecer na fala de Tata Kelaue a importância da história oral
como forma de ouvir as histórias e memórias de grupos sociais excluídos ou
destituídos de seu conjunto de valores, até mesmo como ferramenta valiosa na
direção da negociação de identidades que lhes foram impostas. Se, por um longo
período da história dos africanos trazidos ao Brasil, a discussão em torno de seus
“aparentes” costumes se pautou pela indolência e vício, no tempo hodierno podemos
fazer uso de testemunhos direitos e entender os significados que são atribuídos a
práticas consideradas marginais. Para além dos significados, compreendemos que
essas narrativas podem se inserir entre os bens patrimoniais a serem preservados
pela comunidade e contar com a salvaguarda do Estado brasileiro.
Por intermédio de uma visão de tradição que não comporta nem mesmo a
adaptação que os grupos étnicos tidos como “puros” também sofreram, verificamos o
desinteresse por esses grupos e, consequentemente, a falta de entendimento acerca
da dinâmica de seus patrimônios. Não podemos negar na construção desse
imaginário o protagonismo dos intelectuais afeitos aos africanismos, que
cristalizaram processos culturais mediados pela ideia de pureza. Essa ideia, por sua
vez, está arraigada na ideia de poder, visto que nesse sistema religioso classificar os
terreiros em puro e misturado é também uma forma de demarcar o espaço de cada
um, imputando, desse modo, legitimidade e hegemonia conforme uma classificação
hierárquica.
Ao trazer a lume determinadas narrativas de seus protagonistas, encontramos
elementos comuns a outras nações de candomblé. Concomitantemente, tivemos a
compreensão de algumas de suas particularidades, como a deferência à presença de
caboclos, seja na narrativa de Tata Kelaue, seja na narrativa de Tata Cambono
Rafael; ambas deixaram clara a importância que essa entidade possui na construção
do seu processo de pertença ao grupo.
Pelo que entendemos das narrativas, especialmente a do Tata Kelaue, seus
saberes não são restritos ao seu grupo afetivo. Muito embora exista um corpo
doutrinário cujo saber tem uma autoridade e respeite os processos iniciáticos no
interior da comunidade, muitos de seus saberes são compartilhados com membros
de outras comunidades que venham solicitar-lhe auxílio. O saber a despeito das
plantas e ervas medicinais, bem como seu manuseio, conforme seu relato, é
socializado em muitos casos com sujeitos não pertencentes à religião.
O nosso trabalho teve como objetivo trazer para o campo patrimonial as
especificidades dos saberes de um candomblé de modalidade angola, que no seu
conjunto formam o patrimônio de seus filiados. Esperamos contribuir com outros
estudos numa ruptura com a lógica denunciada por Giroto (1999), na qual
historiadores e antropólogos insistem em concentrar suas atividades intelectuais
exclusivamente quanto aos candomblés de tradição jeje-nagô39. A manipulação da
natureza, também reincidente nos relatos, faz referência a aspectos mito-mágicos
desse tipo de saber. Não pretendemos nesta investigação trabalhar as validações
39
Declara o autor: “Uma correção se faz necessária: os intelectuais continuam, com poucas exceções,
a produzir o desvio antropológico de privilegiar somente a contribuição jeje-nagô, influenciando
sacerdotes e adeptos” (GIROTO, 1999, p. 313).
54
1.6 REFERÊNCIAS
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congo-angola. Londrina: Eduel, 2010.
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2013.
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de Janeiro: Pallas, 2016.
55
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raciais no Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL. Educação Anti-racista:
caminhos abertos pela Lei federal n.º 10.639/03. Brasília: Ministério da
Educação/Secretaria de Educação Continuada e Alfabetização e Diversidade, 2005.
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HAMPATÉ BÂ, Hamadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph. História Geral da
África I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática/Unesco, 1980.
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MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. O campo do patrimônio cultural: uma revisão
de premissas. In: FÓRUM NACIONAL DO PATRIMÔNIO CULTURAL: SISTEMA
NACIONAL DE PATRIMÔNIO CULTURAL: DESAFIOS, ESTRATÉGIAS E
EXPERIÊNCIAS PARA UMA NOVA GESTÃO, 1., 2009, Ouro Preto. Anais... Brasília:
Iphan, 2012. 404 p. p. 25-39.
MOTT, Luiz. A maconha na história do Brasil. In: HENMAN, Anthony; PESSOA JR.,
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maconha. São Paulo: Ground, 1986.
PELIZZOLI, Marcelo Luiz. Ética e meio ambiente para uma sociedade sustentável.
Petrópolis: Vozes, 2013.
PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À flor da terra: o cemitério dos pretos
novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
SILVA, Arildo José. Arildo José Silva: depoimento [18 abr. 2017]. Entrevistadora:
Janaína G. Hasselmann. Araquari, 18 abr. 2017.
TALL, EK. O papel do caboclo no candomblé baiano. In: CARVALHO, Maria Rosário
de; CARVALHO, Ana Magda (Orgs.). Índios e caboclos: a história recontada.
Salvador: EDUFBA, 2012. p. 79-93.
VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé: o uso das plantas na sociedade ioruba. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
2 NGUDIÁ N’ZAMBI: SABERES TRADICIONAIS E O CORTE DE ANIMAIS NO
CANDOMBLÉ ANGOLA1
Resumo:
É objeto deste artigo a realização de um estudo sobre os cortes de animais como
parte do circuito de oferendas do terreiro de candomblé angola Nzo Nkise Nzazi,
circunscrito no município de Araquari (SC). Mediante as narrativas orais de sujeitos
que compõem o corpo hierárquico do aludido terreiro, busca-se trazer à tona os
saberes tradicionais que envolvem a prática de corte dos animais, a qual atua como
mecanismo de comunicação entre os membros do referido terreiro e suas divindades.
Consideram-se os cortes de animais indissociáveis desse sistema de crença, com
base em uma visão integradora entre sujeitos, divindades, objetos e natureza,
reconhecendo no ritual um modo particular de conceber o mundo espiritual e as
necessidades biológicas e culturais de seus agentes.
Palavras-chave: candomblé angola; saberes tradicionais; corte de animais;
alimentação; natureza.
Abstract:
It is object of this article to conduct a study on the animals cutting as part of the circuit
of offerings of the candomblé angola terreiro Nzo Nkise Nzazi, circumscribed in the
municipality of Araquari, Santa Catarina, Brazil. Through the oral narratives of
subjects that make up the hierarchical body of the aforementioned terreiro, it is sought
to bring to the fore the traditional knowledge that involves the practice of cutting
animals, which act as a communication mechanism between the members of the said
terreiro and its deities. The animals cutting is considered inseparable from this belief
system, from an integrative view among subjects, deities, objects and nature,
recognizing in the ritual a particular way of conceiving the spiritual world and the
biological and cultural needs of its agents.
Keywords: candomblé angola; traditional knowledge; animals cutting; food; nature.
2.1 INTRODUÇÃO
1
O artigo segue as normas da revista Afro-Ásia, para a qual foi submetido à publicação em 06 de
janeiro de 2018.
2
Os candomblés surgiram nos antigos terreiros baianos, fundados por sacerdotes africanos – angolas,
congos, jêjes, nagôs – iniciados em suas religiões tradicionais, que ensinaram a norma dos ritos e o
corpo doutrinário para as comunidades que se formavam em torno da religiosidade que preservava
“certos traços da cultura, particularidades de dança, música, canto, organização de festas, que os
identificavam com a região de origem” (Ivete Miranda Previtalli, “Reflexões sobre hibridismo,
sincretismo e tradução no candomblé angola paulista”, Ponto & Vírgula, (2013), pp. 21-40).
3
As comidas são elaboradas, requintadas na forma, no ordenamento do preparo ou na simplicidade
aparente de um despojamento prescrito pelo mito, uma vez que atrás de cada oferenda alimentar está
o mito que a prescreve pelas práticas divinatórias (Vivaldo da Costa Lima, A anatomia do acarajé e
outros ensaios, Salvador: Corrupio, 2010, p. 149).
59
4
“Cosmovisão, além de significar uma visão ou concepção de mundo, expressa também uma atitude
frente ao mesmo. Portanto, não é uma mera abstração, já que a imagem que o homem forma do
mundo possui um fator de orientação e uma qualidade modeladora e transformadora da própria
conduta humana. Implícito em toda cosmovisão há um caminho de ação e realização” (Roberto Crema,
Introdução à visão holística, São Paulo: Summus, 2015, p. 17).
5
No Brasil, foram concebidas aquilo que conhecemos como nações de santo, isto é, o candomblé de
angola, o candomblé de Ketu, o Ewefon ou jeje, o Ijexá e algumas praticamente extintas, como o
xambá e o malê (Mario Cesar Barcellos, Jamberussu: as cantigas de Angola, Rio de Janeiro: Pallas,
2011, p. 17).
6
Segundo Tata Kelaue, “Ngudiá N’Zambi implica numa benção a Deus maior, Zambiapongô, por todo
alimento consagrado às divindades e aos homens. É a partilha de um alimento em comum, a
celebração da vida” (Arildo José Silva, Arildo José Silva: depoimento [18 abr. 2017], Entrevistadora:
Janaína G. Hasselmann, Araquari, 18 abr. 2017).
7
Raul Lody, Santo também come, Rio de Janeiro: Pallas, 2012, p. 30.
8
Os bantos constituíram o grupo africano trazido em maior quantidade ao país, visto que seu tráfico
teve início em fins do século XVI, minorando na década de 90 do século XVII, tendo seu cessamento
no século XIX (James H. Swett, Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português
(1441-1770), Lisboa: Edições 70, 2007, p. 35). Desse modo, o referendado grupo foi o que mais
significativa influência exerceu na cultura brasileira (Vagner Gonçalves da Silva, Candomblé e
umbanda, São Paulo: Selo Negro, 2005, p. 28).
9
Lody, Santo também come, p. 14.
60
10
“Além dos candomblés iorubás, há os de origem banta, especialmente os candomblés congo e
angola, e aqueles de origem marcadamente fom, como jeje-mahim baiano e o jeje-daomeano do
tambor de mina jeje-maranhense. Foram os candomblés baianos das nações queto (iorubá) e angola
(banto) que mais se propagaram pelo Brasil, podendo ser encontrados em toda parte” (Reginaldo
Prandi, Segredos guardados: orixás na alma brasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.
21).
11
Em língua quimbundo, diz respeito ao sistema de crenças do candomblé angola. Seu significado
próximo ao português seria “Casa da força Raio”, segundo Tata Kelaue (Silva, depoimento).
12
Severino Felipe Silva e João Francisco de Melo Neto, “Saber popular e saber científico”, Temas em
Educação, v. 24 (2015), pp. 137-154, p. 139.
13
Verena Alberti, Manual de História Oral, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
14
As divindades cultuadas pelo candomblé angola respondem pelo nome de inquices, caboclos,
ungiras e pangiras, segundo Tata Kelaue (Silva, depoimento).
15
Vida, energia vital (Nei Lopes, Kitábu: o livro do saber e do espírito negro-africano, Rio de Janeiro:
Editora Senac Rio, 2005, p. 1).
61
Menga.16 O sangue, por sua vez, também traz nguzo e está presente em
praticamente todas as cerimônias e práticas que se exercem nos terreiros de
candomblé, se considerarmos que quando as folhas são maceradas elas estão
morrendo ao liberar o sumo, isto é, elas estão oferecendo o próprio sangue.17
Desse modo, ressaltamos a importância de trazer essas concepções ao
trabalho para compreender as dimensões e os sentidos atribuídos às oferendas
como um todo orgânico e integrado, e não como aspecto restritivo ao abatimento dos
animais. Conforme Geertz,18 esse todo orgânico é “um conjunto de símbolos
sagrados, tecido numa espécie de todo ordenado, é o que forma um sistema
religioso”. Partindo desse princípio, acreditamos que ao reconhecer a existência de
uma cosmovisão comum a todas as oferendas, que abarcam a manipulação da força
vital e também a alimentação dos próprios adeptos, podemos descortinar o vulto
exótico que cerca particularmente esse ritual.
Assim, buscamos pensar as singularidades do modo de vida, saberes e
fazeres que se exercem nos terreiros. Podemos dizer que o Estado já abriu caminho
para o reconhecimento das comunidades tradicionais, embora não invista, acima de
tudo, na proteção de suas práticas culturais. Exemplo disso é o Decreto n.º 6.040, de
7 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.19 Da apresentação do
documento, consta a seguinte assertiva:
16
Segundo Tata Kelaue, menga é sangue, força vital (Silva, depoimento).
17
Manoel Roberto Ferreira Chagas, O sagrado ecológico: relação entre o homem e a natureza no
candomblé Jeje Savalú em Belém do Pará, Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião)–Centro
de Ciências Sociais e Educação, Universidade Estadual do Pará, Belém, 2014, p. 78.
18
Clifford Geertz, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 95.
19
Brasil, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Alimento: Direito Sagrado –
Pesquisa Socioeconômica e Cultural de Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiros, Brasília:
Gestão da Informação, 2011.
20
Brasil, Alimento, p. 15.
62
21
Brasil, Alimento, p. 37.
22
Fábio Carvalho Leite, “A liberdade de crença e o sacrifício de animais em cultos religiosos”, Veredas
do Direito, v. 10, n. 20 (2013), pp. 163-177.
63
23
René Girard, A violência e o sagrado, São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1990.
24
Conforme o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (Antônio Houaiss, Dicionário Houaiss da
língua portuguesa, Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 1.256), matança é o ato ou efeito de massacrar:
“1 massacre de muitas pessoas; morticídio, mortandade. 2 ato de abater gado para consumo”.
25
Marcel Mauss e Henri Hubert, Sobre o sacrifício, São Paulo: Cosac Naify, 2013. 188 p.
26
Chagas, O sagrado ecológico.
27
Cléver Sena dos Santos, Pombo, pato, galinha e bode: bichos em trânsito, Dissertação (Mestrado
em Antropologia)–Universidade Federal do Pará, Belém, 2014.
64
2.2 ITABURANGA MATOU UM BICHO DE PENA, ELE NÃO MORA LONGE, MORA
DENTRO DA JUREMA28
O abate dos animais – uma das práticas mais controversas realizadas pelos
diferentes terreiros de candomblé – está fortemente associado aos saberes
tradicionais. Froehlic,29 ao estudar o abate doméstico de porcos por colonos em São
Paulo das Missões (RS), aufere ao trato e abate dos animais, aspectos relacionados
a saberes e práticas. Em sua dissertação de mestrado encontramos elementos que
podem dialogar com os cortes tradicionais em terreiros de candomblé. Essa
possibilidade dialógica consiste basicamente na identificação de papéis sociais, no
procedimento em si que requer técnicas específicas transmitidas de geração a
geração e também no entendimento que cada grupo social denota a sua dieta. Para
Froehlic,30 cada sistema cultural define, por intermédio das possibilidades ofertadas
pelo meio, os alimentos que farão parte de sua dieta. No entanto, segundo a autora,
as escolhas alimentares de um grupo em termos nutricionais podem não ser
culturalmente aceitas para a sociedade.
Poulain31 salienta que “matar um animal não é um ato banal, através dele o
homem interfere na ordem natural”. Desse modo, a prática de abatimento requer
práticas e saberes específicos. Woortmann e Woortmann,32 no estudo sobre o
28
Zuela (cantiga) cantada nas roças de candomblé relacionada à morte de bichos.
29
Graciela Froehlic, Do porco não sobra nem o grito: classificações e práticas, saberes e sabores no
abate doméstico de porcos, Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)–Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2012.
30
Froehlic, Do porco não sobra nem o grito: classificações e práticas, saberes e sabores no abate
doméstico de porcos.
31
Jean-Pierre Poulain. Sociologias da alimentação, Florianópolis: Editora da UFSC, 2006, p. 264.
32
Ellen Woortman e Klaas Woortmann, O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura
camponesa, Brasília: Editora da UnB, 1997, p. 11.
65
33
“Tata e Tatetu provém do quibundo, significa nosso pai” (Marcelo Barros, O candomblé bem
explicado: nações Bantu, Iorubá e Fon, Rio de Janeiro: Pallas, 2016, p. 183). Kelaue corresponde a
digina (nome dado pelo inquice), que o zelador de santo recebeu em sua feitura (Silva, depoimento).
34
São consideradas as mães (sempre mulheres) no terreiro de angola, pessoas de confiança do
zelador e que nascem com a condição de não entrarem em transe, segundo Tata Kelaue (Silva,
depoimento).
35
Dizem respeito aos homens, também considerados “pais” nos candomblés de angola, pessoas de
confiança do zelador e que nascem com a condição de não entrarem em transe, conforme Tata
Kelaue (Silva, depoimento).
36
Pessoas iniciadas no santo, aquelas que entram em transe e se conectam com inquices e demais
encantados, de acordo com Tata Kelaue (Silva, depoimento).
37
Prandi, Segredos guardados, p. 21.
66
38
Às divindades cultuadas no candomblé angola, dá-se o nome de inquices, conforme a visão de
mundo banto (Lopes, Kitábu, p. 242).
39
Termo que designa caboclos, pangiras e ungiras, segundo Tata Kelaue (Silva, depoimento).
40
Prandi, Segredos guardados, p. 44.
41
O subtítulo do trabalho diz respeito ao enunciado que se faz para a realização do corte do bicho.
Segundo Tata Cambono Rafael, uma versão aproximada para essa expressão, que conjuga as
línguas quimbundo, quicongo e português, é: “Pai cambono, segura o bicho que a banda vem comer”
(Rafael L. Hasselmann, Rafael L. Hasselmann: depoimento [27 jan. 2017], Entrevistadora: Janaína G.
Hasselmann, São Francisco do Sul, 27 jan. 2017).
42
Uma das divindades cultuadas no candomblé angola. Segundo Lopes (Kitábu, p. 243), “a dona dos
rios é Dandalunda ou Quissimbe”.
43
O ato de suspender uma pessoa, cambono ou makota, diz respeito ao reconhecimento por parte do
caboclo chefe da casa ou dos inquices, segundo Tata Kelaue (Silva, depoimento).
44
Uma das divindades cultuadas no candomblé angola. Na definição de Lopes (Kitábu, p. 243), “a
senhora dos ventos e tempestades é Matamba”.
67
45
Silva, depoimento.
46
Consideramos como senso comum, por exemplo, toda divulgação sobre “matança” no candomblé,
por meio de discursos midiáticos e religiosos de outros segmentos, como o neopentecostalismo, em
crescente expansão. Importante salientar a circulação do livro do Bispo Edir Macedo Orixás, caboclos
e guias: deuses ou demônios?, de 1998. Citamos uma passagem de seu livro: “No candomblé, Oxum,
Iemanjá, Ogum e outros demônios são verdadeiros deuses a quem o adepto oferece trabalhos de
sangue, para agradar quando alguma coisa não está indo bem ou quando deseja receber algo
especial. Na umbanda, os deuses são os orixás, considerados poderosos demais para serem
chamados a uma incorporação. Os adeptos preferem chamar os ‘espíritos desencarnados’ ou
‘espíritos menores’ (caboclos, pretos-velhos, crianças, etc.) para os representar, e a estes obedecem e
fazem os seus sacrifícios e obrigações” (Macedo, Orixás, caboclos e guias, pp. 8).
47
Resultado de denúncias por segmentos da sociedade civil: “A Lei 1.960/2016 fixa multa de R$ 1.504
a toda pessoa física que utilizar, mutilar ou sacrificar animais em locais fechados e abertos, com
finalidade ‘mística, iniciática, esotérica ou religiosa’. Toda pessoa jurídica é obrigada a pagar R$ 752
por animal e perde seu alvará de funcionamento”. Mais informações disponíveis em:
<https://www.conjur.com.br/2017-abr-26/tj-sp-lota-durante-julgamento-sacrificio-religioso-animal>.
Acesso em: 12 ago. 2017. A lei foi suspensa, porém algumas organizações não governamentais
(ONGs) em defesa do direito dos animais aceitam denúncias de animais utilizados em rituais,
sobretudo aqueles com derramamento de sangue, caso de religiões de matriz africana.
48
Flávio Bezerra Barros, Do Ver-o-Peso aos terreiros de candomblé: um estudo sobre as dimensões
humanas da biodiversidade em Belém do Pará, Projeto de Pesquisa, PROPESP/Universidade Federal
do Pará, Belém, 2013, p. 2.
68
49
Geraldo Silva, Geraldo Silva: depoimento [18 abr. 2017], Entrevistadora: Janaína G. Hasselmann,
Araquari, 18 abr. 2017.
50
Geraldo Silva, depoimento.
51
Esse relatório emerge no contexto de instituição de uma Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, via Decreto n.º 6.040, de 7 de fevereiro de 2007
(Brasil, Alimento).
52
Brasil, Alimento.
53
José Jorge Carvalho, A economia do axé: os terreiros de religião de matriz afro-brasileira como
fonte de segurança alimentar e rede de circuitos econômicos e comunitários, Brasília: Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2011.
69
conhecimento popular,58 ignora por vezes a cultura e a tecnologia que fervilham nos
saberes tradicionais. Não se deve também esquecer que o fortalecimento do que
poderíamos chamar aqui de homens da ciência a partir de meados do século XIX
serviu, igualmente, para legitimar o discurso dos grupos urbanos também em
ascensão. As novas falas englobaram termos como modernidade e progresso, que
não estavam desvinculados de um “dogma racial da desigualdade”.59 Essa
hegemonia, cujo suporte era dado pela ciência, implicou a existência de relações
desiguais que contribuíram para um processo de “silenciamento silencioso”60 de
parte da sociedade, que atingiu fortemente as religiões de matriz africana.
Fica evidente que os animais não devem ser alijados do entendimento que se
faz da subsistência religiosa, cultural e alimentar dos terreiros. O corte dos bichos,
conforme relato de Tata Geraldo, tem relação com o todo: inquices, entidades,
sujeitos, atabaques. Segundo Tata Geraldo, todas as partes do processo estão
intimamente ligadas:
58
Ver: Gildo Magalhães dos Santos Filho, Ciência e ideologia: conflitos e alianças em torno da ideia
de progresso, Tese de livre docência, São Paulo: Universidade de São Paulo, 2004.
59
Lilia Schwarcz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
(1870-1930), São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 29.
60
A ideia esposada por Thomas Mathiesen parte da percepção de um processo que é “calado em vez
de barulhento, oculto em vez de aberto, despercebido em vez de perceptível, invisível em vez de visto”
(apud Zygmunt Bauman, Medo líquido, Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 13).
61
Geraldo Silva, depoimento.
62
Ritual iniciático particular aos cambonos, segundo Cambono Rafael (Hasselmann, depoimento).
71
O bicho não pode ter nenhum machucado, nem [ter sido] criado
confinado, pois isso é maus-tratos pra nós. [...] Na hora do corte ele é
conduzido, nunca puxado nem empurrado. Vai ter que vir por conta
própria lado a lado de um homem da casa, senão não serve. [...] O
tata pocó vai averiguar a lâmina das facas, pois o animal não pode
sofrer durante o corte. O corte tem que ser rápido e preciso. [...]
Quanto mais preciso e rápido o corte, menos sofrimento pro animal.
63
Divindade cultuada no candomblé angola: “O ferreiro guerreiro é Nkose Mucumbi” (LOPES, 2005, p.
243).
64
Hasselmann, depoimento.
65
Atos iniciáticos e litúrgicos para fortalecimento do ori = cabeça.
66
Carvalho, A economia do axé.
67
Hasselmann, depoimento.
68
Carvalho, A economia do axé.
72
Embora não exista morte que não se sofra, né? [...] A carne é
preparada pra alimentar o nzo, o couro, no caso dos bichos de quatro
pés, passa por um processo de secagem e é usado para encourar os
atabaques da casa, pois afinal os atabaques também comem.69
69
Hasselmann, depoimento.
70
Hasselmann, depoimento.
71
Hasselmann, depoimento.
72
Hasselmann, depoimento.
73
Questionado sobre o que são os órgãos reais dos animais, Cambono Rafael
responde: “É coisa nossa, fundamento, não precisa saber”.73 No decorrer da
entrevista, em alguns momentos Cambono Rafael preferiu que determinados trechos
de sua fala não fossem gravados, mesmo que a tônica das perguntas
correspondesse ao mesmo diálogo realizado com Tata Kelaue e Tata Geraldo.
A respeito dessa conduta, lembramos Alberti,74 quando nos alerta para a
escolha de entrevistados que estejam completamente dispostos a revelar sua
experiência num diálogo aberto, haja vista sua posição dentro do grupo. Todavia, os
temas de pesquisa possuem suas dinâmicas e particularidades. Ao problematizar os
“segredos” que envolvem as religiões de matriz africana, Silva75 propõe uma reflexão
sobre as relações hierárquicas existentes na comunidade religiosa articuladas em
função da relação do saber-poder. Ou seja, não se trata apenas de revelar
conhecimentos, que podem ter sido mencionados por outros sacerdotes, mas de
preservar o status que o sujeito possui no grupo.
Considerando as subjetividades dos sujeitos, sua forma de conversar e a
reincidência nos diálogos estabelecidos, a questão não consistia em nenhum
segredo ou fundamento religioso da casa, porém Cambono Rafael optou pelo
comportamento mais reservado.
O “carrego” citado na fala de Cambono Rafael faz alusão à lógica do grupo de
retorno à natureza: “Todas as partes dessa oferenda são alimento em alguma
medida”.76 Nessa perspectiva, Lody77 salienta que mares, matas, rios, encruzilhadas,
todos os espaços da natureza que sinalizam a marca de um orixá, de um vodum ou
de um inquice também comem.
O apelo à natureza nessas narrativas dinamiza as relações do Nzo Nkise
Nzazi, que, entre suas oferendas, pratica o corte dos animais como fonte de alimento.
O alimento derivado dos animais, que serve as divindades, os sujeitos, a “todos”,
inclusive os atabaques, bichos rasteiros e pássaros, nas palavras de Cambono
Rafael, diz respeito à relação que se constrói com a natureza.78 Tal cosmovisão
73
Hasselmann, depoimento.
74
Alberti, Manual de História Oral.
75
Vagner Gonçalves da Silva, “Segredos do escrever e o escrever dos segredos: reflexões sobre a
escrita etnográfica nas religiões afrobrasileiras”, in Vagner Gonçalves da Silva, Dos Yorùbá ao
candomblé kétu: origens, tradições e continuidade (São Paulo: Edusp, 2010).
76
Silva, depoimento.
77
Raul Lody, Galinha-d’angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira, Rio de Janeiro: Pallas,
2012.
78
Hasselmann, depoimento.
74
associa a natureza de modo muito íntimo com as divindades cultuadas no Nzo Nkise
Nzazi e com os sujeitos e, em certo ponto, todos esses elementos se confundem e se
misturam. Na perspectiva de Melo, essa integração é “o resultado da somatória de
todas as partes ou elementos que compõem a natureza. Tanto nos aspectos minerais,
vegetais e animais, como nos aspectos “visíveis” ou “invisíveis” transcendentais, que
de certa forma, permitem a existência não só do culto como do homem e sua
tradição”.79
Podemos dizer que sem os bichos, as matas, as folhas e as encruzilhadas não
existe candomblé angola, se pensarmos que o Nzo Nkise Nzazi se apresenta como
representante dessa nação. O circuito e o preparo de oferendas destinam-se à
natureza. Desta feita, o culto, a celebração de um inquice, de um caboclo tem como
potencializador ritualístico a natureza. Nela estão os bichos, os temperos, as ervas e
para ela se destina o “carrego”, numa visão cíclica de mundo.
Para Lody,80 o ato biológico de comer e oferecer comida no âmago das
religiosidades de matriz africana equivale a manter, preservar e reforçar as memórias
coletivas. Na lógica do autor, o costume de oferecer comidas rituais aos deuses
reforça a fé e as identidades, e os hábitos alimentares do terreiro estão
condicionados às “ações sagradas e também nutritivas para os homens”.81
A respeito dessas necessidades nutritivas conjugadas com os atos religiosos
do nzo, Tata Kelaue esclarece:
79
Emerson Melo, “Dos terreiros de candomblé à natureza afro-religiosa”, Último Andar, (2007), pp.
27-36, p. 35.
80
Lody, Santo também come.
81
Lody, Santo também come, p. 31.
82
Silva, depoimento.
83
Silva, depoimento.
75
O problema geral das casas de santo não está na criação dos bichos
propriamente dito, mas na atitude covarde dos órgãos responsáveis
no momento do corte. É ali que o bicho pega pra nós. Porque eles
sabem que o bicho dentro de uma casa de candomblé vai ser usado
pro ato. Muitas foram as casas que ficamos sabendo que teve polícia
e tudo na hora do transe das entidades. O bicho precisa ser morto pra
gente comer, mas, no nosso caso, as entidades vêm em terra. Soube
de casa em Joinville [Santa Catarina] que as pessoas no momento do
transe foram presas.84
84
Hasselmann, depoimento.
85
Hasselmann, depoimento.
86
Hasselmann, depoimento; Silva, depoimento.
76
87
Arjun Appadurai, “Introdução: mercadorias e as política de valor”, in Arjun Appadurai, Vida social
das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural (Niterói: EDUFF, 2008), p. 70.
88
Santos, Pombo, pato, galinha e bode.
89
Silva, depoimento.
90
Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, Campinas: Papirus, 1989.
91
Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, p. 17.
77
Esse animal você reza, você pede permissão para ele. Você trata ele
bem, ele come, é muito bem alimentado, lavado com ervas. É um
processo até o corte propriamente dito. Minha religião trata muito bem
esse animal e é só um, diferente[mente] dos outros, um atrás do outro,
no confinamento até ser comercializado. Num abatedouro, o frango
por exemplo é colocado numa máquina para ser depenado. Até
morrer, ele sofre. Esse bicho não serve pra nós, porque nós não o
cuidamos. O processo dos abatedouros ninguém vê. Ninguém toca
no capitalismo, né? Mas na gente, sim. Mas nós é diabolização,
ninguém quer saber. Ninguém quer saber também que não
oferecemos só animais, mas grãos, folhas, suco das ervas, temperos,
porque tudo é alimento.92
92
Silva, depoimento.
93
Sidney Mintz, “Comida e antropologia: uma breve revisão”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.
16, n. 47 (2001), pp. 31-41, p. 32.
94
Dipesh Chakrabarty, “The time of history and the times of gods”, in I. Lowe e D. Lloud (orgs.), The
Politics of culture in the shadow of capital (Durham: Duke University Press, 1997), p. 35-60.
95
Boaventura de Sousa Santos, “Por uma concepção multicultural de direitos humanos”, Revista
Crítica de Ciências Sociais, n. 48 (1997), p. 13.
78
96
Manuela Carneiro da Cunha, “Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico”,
Revista USP, n. 75 (2007), pp. 76-84.
97
A conjugação dos idiomas português, quicongo e quimbundo falado no Nzo Nkise Nzazi.
98
Tim Ingold, “Humanidade e animalidade”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 28 (1995),
pp. 39-53.
99
Silva, depoimento.
79
processo de corte: “Porque ela nos avisava dos negativos, de um filho doente que
precisa de cuidados, além de afastar os bichos rasteiros, porque tudo é equilíbrio”.100
Nota-se pelas narrativas que, além de os animais servirem de fonte proteica,
eles também são providos de animação. Conforme Carvalho,101 “todos os objetos
estão vivos e se comunicam com os seres humanos”. Como dito nas entrevistas, um
animal ou um objeto é dotado de capacidades sensoriais. Para Descola,102 plantas,
animais e objetos são “o resultado da transformação de substâncias naturais
desempenhando, ao final de sua elaboração, uma função cultural”. Essa colocação
pode ser verificada na comunicação com os bichos citada por Tata Kelaue,103 ou, no
caso dos atabaques, no contexto de interlocução com as divindades: portanto, todos
comem, inclusive o atabaque. Basicamente todas as expressões ritualísticas do Nzo
Nkise Nzazi dependem da alimentação e do corte de animais, seja para
estabelecimento de comunicação com divindades, seja por razões de saberes que
incidem nas necessidades biológicas das pessoas. Segundo Lody,104 essa é uma
característica da cosmologia afro-brasileira, cujo pensamento mítico mantém tudo
junto e intercomunicável, em contraposição ao pensamento científico, cuja
sistemática pressupõe separação, classificação e compartilhamento das coisas.
Conforme revelado nas narrativas dos membros do Nzo Nkise Nzazi, toda
criação compartilha do mesmo complexo dimensional, pois se encontra irmanada no
mundo mítico, embora cada coisa tenha se separado no pensamento científico.
Nessa dinâmica, os reinos mineral, vegetal e animal são conectados com os sujeitos.
Ou melhor, os homens, em alguma medida, fazem parte deles. Percebe-se que os
saberes tradicionais no corte de animais incidem numa contínua sacralização do
mundo, fundando uma unidade cósmica. São saberes que perpassam o ato do corte;
eles se revestem de fundamentos de cuidado com o corpo humano e com a
reposição juntamente com as matas e cachoeiras, para alimentar animais e assim
garantir a vida.
2.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
100
Silva, depoimento.
101
José Jorge Carvalho, As artes sagradas afro-brasileiras e a preservação da natureza, Brasília: UnB,
2005. (Série Antropologia, 381), p. 17.
102
Philippe Descola, “As duas naturezas de Lévi-Strauss”, Sociologia & Antropologia, v. 1, n. 2 (2011),
pp. 35-51, p. 44.
103
Silva, depoimento.
104
Lody, Galinha-d’angola.
80
105
Eduardo Sodré, Entrevista concedida: Grupo de Pesquisa em Extensão Popular EXTELAR, 2014.
(mimeo.).
81
106
Néstor García Canclini, Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade, Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ, 2007.
3 A PRECE DA ÁFRICA NAS MATAS DE CÁ: A PUREZA VERSUS O PANTEÃO
MITOLÓGICO DO CANDOMBLÉ ANGOLA SOB A PERSPECTIVA DO NZO NKISE
NZAZI1
AFRICA’S PRAYER IN THE WOODS FROM HERE: THE PURITY VERSUS THE
MYTHOLOGICAL PANTHEON OF CANDOMBLE OF ANGOLA NATION FROM
THE PERSPECTIVE OF NZO NKISE NZAZI
Resumo:
O artigo visa contribuir para as pesquisas sobre candomblé angola trazendo uma
releitura do culto aos orixás2. O uso metodológico da história oral permite-nos
perceber no passado e presente os significados distintos que contestam uma
homogeneidade geralmente atribuída ao panteão mitológico das religiões de matriz
africana. Focalizaremos as divindades cultuadas no Nzo Nkise Nzazi, que tem sua
sede litúrgica situada no município de Araquari (SC). O nzo apresenta-se como um
terreiro de candomblé de modalidade angola cujo panteão mitológico é tributário da
cosmovisão banto, refletindo sinais distintivos de identidade perante as casas
jeje-nagô. Os objetivos também serão apontar a relação entre as divindades
cultuadas no candomblé angola e, com isso, dialogar com os debates do campo do
patrimônio ambiental.
Palavras-chave: panteão mitológico; candomblé angola; identidade; patrimônio.
Abstract:
The article aims to contribute to the research on candomblé angola presenting a
rereading of the worship of the orixás. The methodological use of oral history allows
us to perceive in the past and present the distinct meanings that challenge a
homogeneity often attributed to the mythological pantheon of the religions of African
matrix. We will focus on the deities worshiped in the Nzo Nkise Nzazi, which has its
liturgical headquarters in the municipality of Araquari (SC, Brazil). The nzo presents
itself as a candomblé terreiro of Angola modality, whose mythological pantheon would
be tributary of a Bantu worldview, reflecting distinctive signs of identity before the
jeje-nagô houses. Besides, the objectives will be to highlight the relationship between
the divinities worshiped in candomblé angola and, with this, to dialogue with the
debates from the environmental patrimony field.
Keywords: Banto mythological pantheon; candomblé angola; identity; patrimony.
1
O artigo segue as normas da revista Religião & Sociedade, para a qual foi submetido à publicação
em 18 de janeiro de 2018.
2
“O orixá, seria em princípio, um ancestral divinizado, que em vida, estabelecera vínculos que lhe
garantiam um controle sobre certas forças da natureza [...]. O poder asé do ancestral-orixá teria, após
sua morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um
fenômeno de possessão por ele provocada” (Verger 2002:18).
83
3.1 INTRODUÇÃO
3
“O chamado povo de santo compartilha crenças, práticas, rituais e visões de mundo que incluem
concepções de vida e de morte” (Prandi 2005:22).
4
Etimologicamente, a palavra candomblé parece ter se originado de um termo da nação banto,
candombe, traduzido como “dança, batuque” (Barros 2016:30).
84
5
Conforme Santos (2008:182), “a diáspora ou a dispersão dos povos africanos pela Europa, Ásia e
América se produziu em escala massiva durante o período do tráfico de escravos entre os séculos XV
e XIX. Esse é um dos movimentos migratórios mais espetaculares da História moderna, sendo que os
cálculos da travessia forçada pelo Oceano Atlântico oscilam de dez a cinco milhões de pessoas que
teriam sido arrancadas da África e trazidas para as Américas. Sem dúvida, houve presença africana
em praticamente todo o mundo conhecido anterior ao início do tráfico internacional no século XVI”.
86
sua vez, Prandi (1991:245), ao citar algumas das entidades existentes nos
candomblés de caboclo e nação angola, explica que os caboclos de pena e os
boiadeiros cultuados em nações pouco ortodoxas são considerados entidades
inferiores para os candomblés.
Na esteira da produção acadêmica sobre religiões de matriz africana e na
sobreposição de umas em relação a outras, não podemos deixar de mencionar o
lugar de fala de outros intelectuais. Pessoas eminentes na sociedade que também
investiram seus esforços para a consolidação de um modelo a ser seguido pelos
demais. Segundo Louzada (2011:174), ao contextualizar o prestígio auferido ao
candomblé queto, essa nação cercou-se desde seus primórdios de sujeitos
proeminentes na sociedade. Ela cita Roger Bastide e Pierre Verger como uns desses
sujeitos afamados que, em razão de suas respectivas relações com os cultos
praticados no Ilê Axé Opô Afonja, idealizaram um modelo ritual autêntico. Isto é,
idealizaram o ritual queto como original e puro.
Nota-se com essas questões o processo de inferioridade concedido ao
candomblé de nação angola, utilizado apenas como objeto para sustentar as
idealizações de pureza e autenticidade auferidas aos modelos rituais da nação
queto/nagô. Em nossa perspectiva, o candomblé de nação angola e seus membros,
por intermédio de suas vivências religiosas, poderão nos oferecer novos olhares e
fontes.
6
“Nome religioso recebido por aquele que é iniciado no candomblé angola” (Previtalli 2006:11).
7
“O zelador de santo é chamado de tata, equivalente a pai. Kelaue é minha dijina dentro do
candomblé angola, dado pelo ancestral na minha feitura” (Silva 2017).
8
“É o que chamam de ogã nas casas de queto, mas aqui são cambonos, é hierarquia. São os homens
de confiança do zelador de santo, os olhos da casa, quem corre atrás das coisas, defende o terreiro e
os interesses do terreiro também” (Silva 2017).
9
“Makota é mãe também, faz parte da hierarquia. Elas cuidam das coisas dos inquices e encantados”
(Silva 2017).
10
“Lado masculino das hierarquias [...]. Nome genérico que se dá a uma série de pessoas investidas
de funções rituais” (Lima 2011:113).
11
“São mulheres bem informadas, conhecedoras muitas vezes dos fundamentos do culto, no próprio
nível das velhas êbomis” (Lima 2011:113).
12
“Diferente das makotas e cambonos, são pessoas que entram em transe, são preparadas para a
iniciação e após as obrigações podem se tornar tatas ou mametos” (Silva 2017).
13
Divindades cultuadas pelos povos bantos (Lopes 2011:143).
14
“Iaô-muzenza (filho de santo): chamado assim da feitura até obrigação de três anos” (Barcellos
2011:114).
15
“Abiã-ntangi (iniciante): pré-iniciado que só cumpriu parte dos rituais de iniciação” (Barcellos
2011:114).
89
16
Segundo Parés (2013), o elemental geralmente está relacionado aos espíritos da natureza.
17
Gongobila é o inquice caçador (Barcellos 2011:42-43).
18
Nzazi é o inquice do raio, imperador e soberano (Barcellos 2011:61-62).
19
Força vital, “o mesmo que axé dos candomblés de origem sudanesa” (Previtalli 2006:114).
90
22
Um dos primeiros trabalhos realizados sobre identidades religiosas afro-brasileiras em Joinville (SC)
é de autoria de Gerson Machado (2014). O pesquisador, além de extensa pesquisa sobre memória e
identidade, faz um levantamento dos terreiros na região. Nesse trabalho, pode-se notar que a maioria
dos terreiros mapeados nessa região derivam da nação queto. Ver: Machado 2014.
92
23
Também conhecidos como “aparelhos”, são as pessoas que entram em transe (Silva 2017).
94
ungira Toco Preto, que, após atender a uma certa ginasta que veio a ser reconhecida
mundialmente, lhe deu condições de construir o Nzo Nkise Nzazi (Silva 2017).
No que se refere a esse mosaico de divindades e encantados, também
entrevistamos Milvia Arruda, makota da casa, que prefere ser chamada no nzo, onde
realizamos as entrevistas, de Luan Kaiá24 (Arruda 2017). Ela se apresenta como filha
de Dandalunda, a senhora das águas doces e salgadas, e Angorô, o inquice que traz
a chuva para a terra, fertilizando-a.
Para Luan Kaiá, caboclos, ungiras e inquices igualam-se, pois, “como os
inquices não falam com a gente, enviam os caboclos e outros encantados, que são
os olhos dos inquices” (Arruda 2017). Ela nos falou sobre sua iniciação, seus
sentimentos pelo nzo, suas atribuições na casa enquanto guardiã dos segredos que
não podem ser revelados aos filhos de santo e sobre as divindades cultuadas em
Angola. Em seu depoimento, ela nomeia alguns dos inquices, respondendo à nossa
pergunta acerca do assunto:
Antes que pudesse entrar no assunto dos encantados, Luan Kaiá antecede:
24
Segundo Milvia Arruda (2017), Luan Kaiá é sua dijina, nome que recebeu após entrar no Lembaci,
para sua confirmação de makota.
95
forjam a identidade do Nzo Nkise Nzazi e nos revelam muito de seu teor sincrético.
Vê-se esse fenômeno na reconfiguração dos N’kisi banto enquanto pilar da família
estabelecida por laços de consanguinidade e que na dinâmica da escravidão foi
transformado em inquice, força da natureza, aglutinando pessoas de diferentes
grupos. Notamos, no contexto presente, a adoção de outras entidades espirituais que
só foram possíveis por um processo contínuo de encontros com outras culturas.
É mister deixar claro que nosso entendimento de sincretismo25 não alude à
simples troca vulgar de elementos que se contradizem. Ao contrário, reconhecemos
no sincretismo uma estratégia de sabedoria cuja proposição ocorre muito mais pelas
proximidades cosmogônicas ou mesmo entre grupos sociais desfavorecidos que por
uma simples aceitação subalterna do colonizado pelo colonizador. De tal forma que
esse encontro sobrevive resistindo frente o olhar inquisitório de alguns pesquisadores
que ainda tentam estabelecer limites de pureza e justificar o sincretismo como uma
necessidade do passado. Ora, pelas narrativas dos membros do nzo, ciganos,
marinheiros, pretos velhos, caboclos e ungiras são elementos construtivos de sua
identidade no tempo presente. Nas palavras de Ferretti (1998:184),
25
Para Ferretti (2007), sincretismo não é um termo com significados fixos, sendo necessário
localizá-lo historicamente e pesquisar seus sentidos. Contudo, em seu sentido etimológico, é possível
situá-lo na Antiguidade, quando correspondia à “junção de forças opostas face ao inimigo comum”
(Ferretti 2007:107). Segundo o autor, “em nossa sociedade o sincretismo é mais discutido,
principalmente em relação às religiões afro-brasileiras, consideradas religiões sincréticas por
excelência, por terem sido formadas no Brasil com a inclusão de elementos de procedências africanas,
ameríndias, católicas e outras” (Ferretti 2007:106).
96
Essa lógica da exclusão de entidades espirituais dos cultos africanos diz muito
mais respeito às classes mais intelectualizadas do que às pessoas que professam
sua fé. Remetemo-nos aos estudos de Louzada (2011:181) concernentes à
reafricanização dos terreiros na ditadura militar, em que o mito da pureza ganhou
novos contornos. Segundo a autora, nesse momento histórico, projetou-se uma
grande campanha por parte do regime com adesão da classe artística e intelectual no
afã de publicizar o novo projeto de turismo cultural do governo militar. O foco desse
projeto seria “atrair turistas negros norte-americanos de alto poder aquisitivo”
(Louzada 2011:181). Dessa forma, alvitraram-se mais projeções sobre o candomblé
dos orixás e os cultos ditos tradicionais, influenciando os terreiros a buscar por
referências que lhes chancelassem legitimidade. Esse fenômeno foi caracterizado
por Santos (2005:79) como um processo dessacralizante do candomblé, por
representá-lo em menor medida como religião e mais como manifestação cultural
atrativa.
Essa tentativa de reafricanização do candomblé na sanha de purificá-lo da
contribuição de indígenas e brancos constitui uma violência. Uma violência que se
expressa, conforme dito pelo Tata Kelaue (Silva 2017), na suposta possibilidade de
afastar as entidades de uma pessoa e da configuração religiosa de um grupo.
Percebemos essas tentativas de purificação mais como um desejo político de
projeção na sociedade que uma preocupação entre seus adeptos sem grandes
anseios políticos.
Mas, ao mesmo tempo, faz-se preciso reconhecer que os arranjos entre nações se
dão pela continuidade. É por meio da oralidade que se transmitem os saberes e
também a história de cada casa, pertencentes a uma mesma nação. “Somos
diferentes, mas também somos iguais, porque, como costumo dizer, o vento que bate
aqui também bate lá” (Silva 2017).
Então, podemos dizer, sobretudo em relação aos inquices, que estes são
cultuados em toda nação angola, pois os terreiros, “dinamizados e interpretados em
concentrações etnoculturais chamados Nações” (Lody 1995:2), tendem a preservar
aspectos de um núcleo cultural primário, isto é, aqueles legados pelo povo banto.
Desse modo, construímos, mediante as narrativas, especialmente por intermédio da
contribuição da makota Luan Kaiá, um quadro que compreende a titulação dos
inquices e algumas saudações. Considerando que os depoimentos não seguiram um
ordenamento acerca das saudações dos inquices, dispusemo-nos a seguir o
Jamberussu26.
26
Jamberussu é quando se canta para todos os inquices, numa ordem determinada (Botão 2007:37).
98
Eu escutei que o pai de santo faz Kabila na mata, mas não estava
aqui na época. Minha ligação com a mata é por causa dos trabalhos
realizados. Por exemplo, o caboclo pode pedir uma festa na mata.
Sete Flechas já pediu. É de lá que a gente retira folha de mamona,
folha de palmeira, de figueira, cana-do-brejo, tem a flor de Kisimbi
(agora não me veio nome), capega, folha de bananeira, folhas para
cobrir o chão em dia de festa, flores para enfeitar as festas. Sei que o
Tata retirava outros elementos pros fundamentos, mas isso é
conhecimento só dele, para fazer beberagem. Alguns insetos são
capturados pra fazer nosso axé, que está no pó. É na mata também
que a gente leva o carrego. Depende muito do fundamento
(Hasselmann 2017).
28
Inquice relacionado às matas e à caça (Barcellos 2011:38).
101
Surpreendidos pelo que seria uma atitude ilegal, visto que a escolha pelo
estabelecimento do nzo teve como critério a aproximação com a mata e sua
preservação, os membros do nzo articularam-se por meio de denúncias para os
órgãos competentes. Ainda segundo o Cambono Rafael:
vieram à tarde. A princípio foi embargado, e até então não foi mexido
mais. Não sei se vão fazer isso nessa gestão, porque são oposição
política, mas Araquari está toda loteada, é só prestar atenção nas
placas que anunciam a abertura de novos lotes. Temos medo. A
gente sabe que não dá para restaurar a natureza da forma como
usamos. Não quero desmerecer os terreiros que são perseguidos e
têm suas imagens destruídas, pois é uma violência, e muitas dessas
imagens receberam fundamento, mas tem objeto que se repõe, têm
coisas que não dá para comprar ou refazer (Hasselmann 2017).
Eu sou contra, porque é algo artificial. A mata do local pode até ser
sido intocada, isso não faz diferença. O que importa é que
dependemos dos nossos inquices e encantados. São eles que
determinam o local onde ser feito a oferenda, o ebó, o sacudimento,
os processos de feitura. Inclusive os processos de cura também
variam de lugar para lugar. Há trabalhos realizados em encruzilhadas
específicas. Por exemplo, se for um trabalho para Zé Pilintra, a gente
vê se a encruza tem um espaço que remete à boemia, coisa assim.
Se for pra Nkose, procuramos uma linha férrea. Então usamos vários
29
“O deputado estadual Carlos Minc, ex-secretário do Ambiente, explica que o projeto do Espaço
Sagrado da Curva do S é fruto de oito anos de conversas com representantes das religiões
afro-brasileiras, que levaram à criação do Decálogo das Oferendas, texto voltado para a educação
ambiental e religiosa, tendo em vista o risco ambiental que oferendas podem causar, devido ao uso de
elementos como velas, carcaças de animais, garrafas de vidro e potes de barro. De acordo com ele, o
projeto foi paralisado por questões políticas” (Nitahara 2014).
104
manguezal, a mata preservada. Cada um desses espaços emana uma força diferente
e demanda uma prática religiosa peculiar, sempre mediada pelo divino, isto é,
inquices e encantados.
Incluímos no trabalho contingências que se apresentaram no decorrer da
pesquisa e que, por sua vez, oferecem ameaças ao culto no tempo presente. O
crescimento das cidades tem sufocado as práticas religiosas que se exercem no
cotidiano de muitos terreiros. No caso do município de Araquari, trouxemos dados
que justificam a preocupação dos membros do Nzo Nkise Nzazi. Nas notícias
elencadas, há grande projeção no tocante ao crescimento urbano e à expansão de
loteamentos. Não encontramos nenhuma referência à proteção de áreas verdes,
muito menos menção sobre o Nzo Nkise Nzazi, único terreiro de candomblé da
cidade. A nosso olhar, esse silêncio da gestão pública da cidade revela que seus
administradores não têm entendimento sobre o valioso patrimônio da cidade.
Referimo-nos desse modo ao analisar as narrativas de seus membros e perceber a
rica compreensão que estes possuem acerca da natureza, com sabedoria de
manuseio de folhas e plantas.
Estabelecemos mais uma semelhança que acossa as religiões de matriz
africana em geral: o descaso do poder público. No afã de responder aos anseios de
segmentos da sociedade, o poder público acaba por represar modos de percepção
do mundo físico e espiritual a espaços restritivos a cultos tradicionais, o que em
nossa pesquisa os membros do nzo alcunharam pejorativamente de
“macumbódromo”.
Acreditamos que a visão integradora dos membros do Nzo Nkise Nzazi a
respeito da natureza pode encaminhar ainda novos direcionamentos nas pesquisas
sobre identidade e patrimônio, sobretudo ouvindo a voz de excluídos. A história das
religiões de matriz africana no Brasil contém, como as linhas das mãos, a violência e
o apagamento das suas memórias, mas cada um dos seus segmentos traz escrito,
igualmente, práticas que exprimem a comunhão com a natureza, as resistências que
se repetiram como um encantamento e as matizes de sabedorias próprias e
compartilhadas. Aliás, revelando as muitas brechas ainda existentes, a história oral
pode nos fazer conhecer as vivências e as memórias de algo muito valioso.
107
3.7 REFERÊNCIAS
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ed.
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Rio de Janeiro: Pallas.
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lower Zaire. Chicago e Londres: University of Chicago Press.
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des-brasileiras-que-mais-cresceram-em-2013-4585910.html>. Acesso em: 20 ago.
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Editora da UFRGS, p. 181-194. (Série Diversidades).
SILVA, Arildo José. (2017), José Arildo Silva: depoimento [18 abr. 2017].
Entrevistadora: Janaína G. Hasselmann. Araquari.
VERGER, Pierre Fatumbi. (2002), Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo.
Salvador: Corruptio.
porque seus elementais ali residem e engendram suas forças para reequilibrar os
homens com o mundo espiritual. É sentir a força da caça que se encontra na
natureza. Ali está a marca do inquice. Portanto, sem mecanismos que os próprios
membros encontraram para preservá-la, o sistema de crenças entra em risco.
No entanto é mister problematizar que medidas cautelares poderiam ser
efetivadas para a preservação de espaços considerados para o povo de santo e que
também garantem o bem-estar de uma comunidade. A área verde preservada na
frente do nzo recebe os cuidados de seus agentes e asseguram um ambiente menos
hostil para os moradores do bairro. Plantas e árvores ali existentes propiciam
purificação do ar, ventilação, abrigo para os animais, sombra.
Assim, o exponencial crescimento do município de Araquari nos últimos anos,
acompanhado da expansão de loteamentos, ameaça um bem valorativo que, na
concepção do nzo, faz parte de seu patrimônio. Não obstante, prejudica a qualidade
de vida das pessoas que residem próximo ao local. Desse modo, ajustamos nossa
pesquisa para dar conta de uma demanda que se apresentou no decorrer da nossa
trajetória, afinal a integração de um todo orgânico e indissociável permeia a
cosmologia de muitas das religiões de matriz africana.
Nesse caso, pudemos relacionar o ocorrido com o Nzo Nkise Nzazi com a
ingerência das gestões públicas. Na sanha por responder rapidamente aos anseios
que circundam a vida urbana, acabam por tentar reificar práticas tradicionais em
espaços exclusivos. Tal investida é concebida como violência pelos membros do Nzo
Nkise Nzazi, que defendem a integração ao todo, e não às partes cada vez menores
que caracterizam o patrimônio ambiental urbano. A preservação de bens naturais,
também tidos como culturais, não diz respeito ao congelamento de práticas em
desuso ou que estão em face de desaparecimento, no entanto as perdas tanto
ambientais como culturais fazem sobressair a importância de se efetivar medidas
cautelares que agreguem o reconhecimento identitário de grupos sociais no tempo
presente, no tempo vivido.
Pelos depoimentos dos atores sociais do Nzo Nkise Nzazi, problematizamos
suas particularidades, situadas na forma de conceber seu panteão mitológico,
marcado por discursos oficiais reificantes. Pensamos com esta pesquisa em enunciar,
por intermédio dos sujeitos da narração, seus valores e a afetividade que circunda
seus inquices e encantados. Propusemo-nos a conhecer e analisar os saberes que
se constituem no Nzo Nkise Nzazi inserindo-os no âmbito dos debates sobre
115
ADOLFO, Sérgio Paulo. Nkissi Tata Dias Nguzu: estudos sobre o candomblé
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concedida a Janaína G. Hasselmann. Araquari, 18 abr. 2017.
SILVA, Geraldo. Geraldo Silva: depoimento [18 abr. 2017]. Entrevistadora: Janaína
G. Hasselmann, Araquari, 18 abr. 2017.
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científico. Temas em Educação, v. 24, p. 137-154, 2015.
VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé: o uso das plantas na sociedade ioruba. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
Informações pessoais
1- Nome
2 - Idade
3- Local de nascimento
4 - Qual seu cargo dentro do Inzo Inkise Nzazi e há quanto tempo o exerce?
5 - Quais as atribuições do seu cargo hoje dentro do Inzo Inkise Nzazi?
9 - Quais outros membros do Inzo são auxiliares diretos nas atividades da casa?
10 - Os saberes dentro do candomblé são transmitidos de geração a geração. Qual
deles o senhor poderia nos citar?
11 - Para que pessoas da casa o sr já pode passar esses saberes?
12 - Como é o cotidiano da casa?
13- Que trabalhos são realizados para as pessoas? Por quais
necessidades?
Permanências e Rupturas
Informações pessoais
1- Nome
2 - Idade
3- Local de nascimento
4 - Qual seu cargo dentro do Inzo Inkise Nzazi e há quanto tempo o exerce?
5 - Quais as atribuições do seu cargo hoje dentro do Inzo Inkise Nzazi?
Artigos: mínimo de quinze, máximo de 30 páginas, em Times New Roman, corpo 12,
entrelinha 1,5. Resenhas: mínimo de duas, máximo de seis páginas, em Times New
Roman, corpo 12, entrelinha 1,5.
Entrevistas: mínimo de duas, máximo de dez páginas, em Times New Roman, corpo
12, entrelinha 1,5.
Os trabalhos são analisados por, pelo menos, dois membros do Conselho Consultivo,
que podem recusá-los, sugerir modificações ou aceitá-los tendo em vista: o
tratamento do tema, a originalidade deste ou de sua interpretação e a correção formal
da redação.
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146
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fonte(s), e estar numeradas sequencialmente.
5. As fotos (ou figuras) devem ser digitalizadas, em preto e branco, com resolução
mínima de 300 dpi, em formato TIFF, e enviadas em arquivos separados numerados
sequencialmente. No texto deve estar indicado o local onde cada foto deve ser
inserida e sua respectiva legenda.
d) Citação de livro: Exemplo: Emilia Viotti da Costa, Crowns of Glory, Tears of Blood:
The Demerara Slave Rebellion of 1823, Nova York: Oxford University Press, 1994, p.
217. Citações seguintes: Costa, Crown of Glory, pp. 203-204.
148
f) Citação de site na Internet. Exemplo: Sarah Orne Jewett, "The Country of the
Pointed Firs”, <http://www.columbia.edu/acis/.bartleby/jewett>, acessado em data da
consulta. Citações seguintes: Jewett, "The Country”.
g) Nos títulos de obras em inglês, sejam artigos, capítulos, livros etc., as iniciais das
palavras (exceto artigos e preposições), devem vir em caixa alta. Ver exemplo (no
item d) acima
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149
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com as alterações que forem definidas pelo comitê editorial com base nos pareceres
anteriormente emitidos. Acompanhará a versão final: (a) um resumo em português e
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em inglês do título do artigo. Não serão admitidos acréscimos ou modificações depois
que os trabalhos forem entregues para composição.
WEBER, Max. (1965), The Sociology of Religion. Boston: Beacon Press, 2º ed.
BELLAH, Robert. (1979), “New Religious Consciousness and the Crisis in Modernity”.
In: P. Rabinow (ed.). Interpretative Social Science: a Reader.Berkeley: University of
California Press.
Teses acadêmicas: Sobrenome do autor, prenome. (data), Título da tese. Local: Grau
acadêmico a que se refere, instituição em que foi apresentada.