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JANAÍNA GONÇALVES HASSELMANN

ANCESTRALIDADE E NATUREZA: UM ESTUDO DE CASO SOBRE OS SABERES


TRADICIONAIS DE COSMOVISÃO AFRICANA DO NZO NKISE NZAZI

JOINVILLE
2018
UNIVERSIDADE DA REGIÃO DE JOINVILLE – UNIVILLE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PATRIMÔNIO CULTURAL E SOCIEDADE

JANAÍNA GONÇALVES HASSELMANN

ANCESTRALIDADE E NATUREZA: UM ESTUDO DE CASO SOBRE OS SABERES


TRADICIONAIS DE COSMOVISÃO AFRICANA NO NZO NKISE NZAZI

Dissertação de mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Patrimônio
Cultural e Sociedade da Universidade da
Região de Joinville (Univille), como requisito
parcial para obtenção do título de mestre.
Orientadora: Professora Doutora Roberta
Barros Meira.
Co-orientadora: Professora Doutora Maria
Luiza Schwarz

JOINVILLE
2018
Catalogação na publicação pela Biblioteca Universitária da Univille

Hasselmann, Janaína Gonçalves

H249a Ancestralidade e natureza: um estudo de caso sobre os saberes


tradicionais de cosmovisão africana do Nzo Nkise Nzazi/ Janaína Gonçalves
Hasselmann; orientadora Dra. Roberta Barros Meira, coorientadora Dra. Maria Luiza
Schwarz. – Joinville: UNIVILLE, 2018. 152 f. : il. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade

– Universidade da Região de Joinville)

1. Candomblé – Araquari (SC). 2. Cosmologia. 3. Etnicismo. 4. Patrimônio


cultural. I. Meira, Roberta Barros (orient.). II. Schwarz, Maria Luiza (coorient.). II.
Título.

CDD 299.673

Elaborada por Christiane de Viveiros Cardozo – CRB-14/778


Ao filho de Nkosi, meu esposo, Rafael.
AGRADECIMENTOS (NZAMBI UA KUATESA)

Este é um momento muito especial, pois consiste em reconhecer a


participação de todos aqueles que se somaram à minha trajetória nesses dois anos
de caminhada.
Registro aqui, como memória indelével dessa fase da minha vida, meu
primeiro agradecimento: a Nzambi Apongô, criador de todas as criaturas que se
encontram no mundo físico e espiritual, Deus supremo que concebeu inquices,
espíritos protetores, pessoas, bichos, ventos e canais de comunicação, para que eu
não me sentisse sozinha no mundo. Acrescento que somente por meio de Deus
posso expressar minha gratidão aos que vêm a seguir.
A Nzazi Loango, o raio que vem de Angola, o patriarca, aquele que corta os
céus, brilhante e forte, representando o poder da justiça, rei da minha cabeça. Atribuo
a ele todos os significantes e significados da minha vida, posto que é um pai que
nunca abandona seus filhos. A mim, deu coragem e ponderamento, sublimando os
medos escondidos. Bela Nzazi!
Aos ancestrais que atravessaram a Kalunga e aos encantados desse lugar,
evocados a cada momento da minha pesquisa, reverenciados a cada conquista,
benditos nas circunstâncias difíceis. Muitos foram os referenciais consultados para a
realização deste trabalho. A despeito disso, peço licença para dizer que eles também
foram referências na construção desse investimento. Portanto, posso afirmar que
este foi um trabalho escrito por muitas mãos e muitas vozes.
A Nkosi, senhor de todos os caminhos, o guerreiro que luta por nós. Posso
confessar que a vontade de ingressar nesse mestrado não se deu dois anos atrás,
mas eu não me considerava capaz e, por isso, pedi ao grande general que me
concedesse a possibilidade, se fosse assim meu odu. Pembele Nkosi!
À minha pangira, que toma conta da cancela, sempre à frente das
encruzilhadas, de quem recebo os cochichos. Salve, minha velha! E ao meu caboclo
de pena, curandeiro dos grotões da mata, Oke oró! Dois agentes cósmicos em meu
caminhar terreno.
À preta velha Vó Maria Tereza, entidade que me acalentou num momento
muito difícil e valorizou meus esforços ao dizer que minha vitória era a “vitória de toda
uma gente”. À força de ungira Veludo, a quem pedi defesa e encontrei resposta
positiva. Ungira ê!
7

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Pessoal (Capes),


pois, sem a concessão da bolsa, não poderia ter investido na minha formação
acadêmica.
Ao Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade e a seu
corpo docente, especialmente às professoras doutoras Dione da Rocha Bandeira e
Mariluci Neis Carelli, em razão de reconhecerem e valorizarem a proposta de
pesquisa, contribuindo assim com experiência, mas também com afeto. A benção
aos mais velhos! Ao os escutarmos, tornamo-nos mais sábios.
À minha orientadora, doutora Roberta Barros Meira, que considero um moyo
na construção deste trabalho. Sou grata pela paciência, confiança e competência,
que me são inspiradoras. A ela, meu mais sincero “aueto”!
À coorientadora desta dissertação, doutora Maria Luiza Schwarz, suas
contribuições sensíveis e valorosas.
Aos meus colegas da Turma IX, a socialização de “vários saberes”, o
compartilhamento de ideias, contribuições e a rede de solidariedade formada para
momentos de angústias e conquistas comuns, especialmente aos colegas Grasiele,
Philipe e Joice.
À colega Marília Garcia Boldorini, o seu profissionalismo na revisão deste
trabalho e seu jeito sempre prestativo.
Aos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação da Universidade da Região
de Joinville (Univille), a atenção destinada aos acadêmicos, gentilezas aliadas à
competência, sempre apresentando soluções assertivas e agindo com paciência
perante as nossas dificuldades.
Aos meus pais, “ouro de mina”, sempre presentes em minha vida e que, nesse
trânsito agitado, não fizeram diferente.
Ao meu esposo, Rafael, companheiro sempre fiel, principal apoiador para a
execução deste trabalho.
À minha amiga e irmã, Simborucema, mulher forte, generosa e destemida, em
que encontrei carinho, preocupação e amizade verdadeira. Que o sopro de Matamba
lhe conceda bons ventos sempre! Kiua!
À Makota Minarangue. Agradeço o carinho que sempre destinou a mim, a
torcida para que tudo desse certo e os ensinamentos passados para que eu
soubesse me proteger! Makuiu N’Zambi.
8

Ao meu sobrinho Antônio (in memoriam), cuja partida deixou como herança a
força de vontade para a conquista de sonhos a serem realizados em nossa breve
passagem terrena.
E aos membros do Nzo Nkise Nzazi, especialmente a Tata Kelaue.

“Se o teu corpo se arrepiar


se sentires também o sangue ferver
se a cabeça viajar
e mesmo assim estiveres num grande astral
se ao pisar o solo
o teu coração disparar
se entrares em transe
sem ser da religião
se comeres fungi quisaca e mufete de cara-pau
se Luanda te encher de emoção
se o povo te impressionar demais
é porque são de lá os teus ancestrais
podes crer
no axé dos teus ancestrais.”
Semba dos Ancestrais, de Martinho da Vila e Mart’nália
RESUMO

No bojo dos debates promovidos pela linha de pesquisa Patrimônio Cultural e


Sustentabilidade, que compõe o Programa de Pós-Graduação em Patrimônio
Cultural e Sociedade, nossa dissertação visa analisar as relações estabelecidas
entre saberes tradicionais e natureza, considerando as práticas e os conhecimentos
de um candomblé de modalidade angola, o Nzo Nkise Nzazi, circunscrito no
município de Araquari (SC). A presente investigação propõe uma reflexão a despeito
de uma cosmovisão que incide nos saberes tradicionais e em como neles repercutem
as questões patrimoniais ligadas à ancestralidade e natureza, manifestadas
especialmente em algumas de suas ritualidades. Desse modo, apresentamos as
principais particularidades que envolvem a construção desses saberes, o status de
seus agentes, bem como a contextualização histórica do candomblé angola e seu
processo de apagamento no que se refere às demais manifestações da religiosidade
de matriz africana. Assim, podemos perceber marcadores de diferença, mas também
de similaridades com outros candomblés. Para tanto, elencamos os principais
autores que fundamentam nossa pesquisa: Prandi (1991), Lody (2012a; 2012b),
Ferretti (1998), Previtalli (2006) e Louzada (2011). Ademais, pretendemos discutir
quais são os bens valorativos para o candomblé angola e a relação de seu culto e
acervo mito-mágico com os espaços naturais que não se resumem à sede litúrgica.
Partimos de uma metodologia que se apoia na história oral, reportando-nos a Alberti
(2013) e Pollak (1989), como a principal base da coleta de dados e que abre um novo
campo de possibilidades para os temas, ainda com escassas pesquisas. Enfim, a
dissertação dialoga com concepções de memória e identidade religiosa que se
expressam nas singularidades desses saberes que são organicamente ligados à
sacralização dos espaços e da natureza.
Palavras-chave: candomblé angola; saberes tradicionais; natureza; patrimônio
cultural.
ABSTRACT

In the heart of the debates promoted by the line of research Cultural Heritage and
Sustainability that composes the PPG Master in Cultural Heritage and Society, our
dissertation aims to analyze the relations established between traditional knowledge
and nature, considering the practices and knowledge of a candomblé of Angolan
modality Nzo Nkise Nzazi, circumscribed in the municipality of Araquari - SC. The
present research proposes a reflection in spite of a worldview that focuses on
traditional knowledge and how they reflect the patrimonial issues related to ancestry
and nature, manifested especially in some of its ritualities. In this way, we present the
main peculiarities that involve the construction of these knowledge, the status of its
agents, as well as the historical contextualization of candomblé angola and its
process of erasure in front of the other manifestations of the religiosity of African
matrix. Thus, we can perceive markers of difference, but also of similarities with other
candomblés. In this way, we list the main authors who base our research Prandi
(1991), Lody (2012), Ferretti (1998), Previtalli (2006) and Louzada (2011). In addition,
we intend to discuss the value goods for the candomblé angola and the relation of its
cult and magic myth collection with the natural spaces that do not sum up the liturgical
seat. We start from a methodology that relies on Oral History as the main basis of data
collection and that opens a new field of possibilities for the subjects with still little
research. In the face of the methodology adopted, we report to Alberti (2013) and
Pollak (1989). Finally, the dissertation dialogues with conceptions of memory and
religious identity that are expressed in the singularities of these knowledges that are
organically linked to the sacralization of spaces and nature.
Keywords: candomblé angola; cosmovision, traditional knowledge; nature; narrative;
environment; cultural heritage.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................................... 13

1 “TURILA KOTA NDUNJE JA KOTA JAVULA”: SUJEITOS E SABERES NO NZO


NKISE NZAZI......................................................................................................................... 34

1.1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................35
1.2 “Ô NZAZI MANHANGOLÊ, MANHANGOLÁ!”: O NZO E SEUS SUJEITOS.....40
1.3 NA MINHA ALDEIA TEM CABOCLO GUERREIRO, TEM SEU REI DAS
ERVAS NO ANDARAÍ!: OS SABERES..........................................................................41
1.4 É FOLHA DE UNGIRA!.............................................................................................. 50
1.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................52
1.6 REFERÊNCIAS........................................................................................................... 54

2 NGUDIÁ N’ZAMBI: SABERES TRADICIONAIS E O CORTE DE ANIMAIS NO


CANDOMBLÉ ANGOLA......................................................................................................58

2.1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................58
2.2 ITABURANGA MATOU UM BICHO DE PENA, ELE NÃO MORA LONGE,
MORA DENTRO DA JUREMA........................................................................................ 64
2.3 TATA CAMBONDO SEGURA O ROMBO CONGO DE A BANDA GUDIÁ....... 66
2.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................79

3 A PRECE DA ÁFRICA NAS MATAS DE CÁ: A PUREZA VERSUS O PANTEÃO


MITOLÓGICO DO CANDOMBLÉ ANGOLA SOB A PERSPECTIVA DO NZO NKISE
NZAZI...................................................................................................................................... 82

3.1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................83
3.2 UMA CASA DE NOME E SOBRENOME................................................................ 87
3.3 INQUICES, CABOCLOS, UNGIRAS, BAIANOS, MARINHEIROS E PRETOS
VELHOS.............................................................................................................................. 92
3.4 O VENTO QUE BATE AQUI TAMBÉM BATE LÁ..................................................96
12

3.5 O PANTEÃO E A RELAÇÃO COM A NATUREZA: UM PATRIMÔNIO


AMEAÇADO........................................................................................................................98
3.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 104
3.7 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 107

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 110

REFERÊNCIAS................................................................................................................... 117

APÊNDICES.........................................................................................................................126

APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE):


ARILDO JOSÉ DA SILVA...............................................................................................127
APÊNDICE B – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE):
GERALDO SILVA............................................................................................................ 129
APÊNDICE C – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE):
MILVIA ARRUDA............................................................................................................. 131
APÊNDICE D – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE):
RAFAEL LUIZ HASSELMANN...................................................................................... 133
APÊNDICE E – PARECER CONSUBSTANCIADO DO COMITÊ DE ÉTICA....... 135
APÊNDICE F – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS SEMIESTRUTURADAS 1........ 141
APÊNDICE G – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS SEMIESTRUTURADAS 2........143

ANEXOS............................................................................................................................... 144

ANEXO A NORMAS DA REVISTA SANKOFA...........................................................145


ANEXO B NORMAS DA REVISTA AFRO-ÁSIA........................................................ 146
ANEXO C NORMAS DA REVISTA RELIGIÃO & SOCIEDADE.............................. 150
INTRODUÇÃO

Isso vem de África. É pra alimentar. Essa alimentação segue um ciclo:


tudo come, tudo é usado daquele bicho. Desde o couro, que é
colocado nos atabaques, que vai se comunicar. Desde o chão. Desde
nós, matéria. Desde que eu estou precisando que esse bicho pode
nos fornecer um tipo de vitamina que eu não acho na carne do boi pra
equilibrar meu físico. Tudo isso é pensado. A terra come. A mata
come. Os animais comem. É um ciclo (SILVA, 2017).

Localizado no município de Araquari, porção nordeste de Santa Catarina, há


um terreiro de candomblé de nação angola cujo panteão mitológico provém da
cosmologia dos povos bantos, que para o Brasil foram trazidos por meio do comércio
além-mar, no contexto da escravidão. Esse terreiro, dedicado ao inquice1 Nzazi2,
encontra-se sob a responsabilidade do senhor Arildo José da Silva, que responde por
conta da designação sacerdotal por Tata3 Kelaue4. No momento de nossa pesquisa,
o terreiro estava composto de 15 adeptos.
É a partir desse terreiro de candomblé angola, cuja origem se dá pela iniciação
de Miguel Arcanjo, em Salvador (Bahia), e cuja raiz corresponde aos Massanganga
de Cariolé5 (Salvador), em meados de 19106, que converge nossa pesquisa a
respeito de saberes tradicionais e da relação entre esses saberes – que se
constituem pela identidade e pela memória de um candomblé de nação angola – e a
natureza. Para efeito, lembramos a ausência de trabalhos, especialmente no Sul do
Brasil, sobre candomblés de nação angola, seus aportes culturais, seus princípios
civilizatórios e seus patrimônios. Assim, considerando a ausência de pesquisas,
concomitantemente lidamos com a escassez de fontes7, o que nos levou a adotar a

1
Na cultura banta, os N’kisi, segundo MacGaffey (1986, p. 80), eram “espíritos tutelares de vilas
associados a água, tempestades, grutas e grandes pedras”. Para a escrita desta dissertação,
utilizamos inquice, e não N’kisi, por entendermos estar em consonância com trabalhos acadêmicos já
desenvolvidos.
2
Inquice que corresponde à força do raio (BARCELLOS, 2011, p. 60).
3
Tata, na nação angola, corresponde a pai de santo (BARCELLOS, 2011, p. 113).
4
Kelaue refere-se ao nome ancestral individual concebido após a feitura de santo (SILVA, 2017).
5
Considerados como axé do pó. “O Pó a que se refere o título também chamado de Zorra era
preparado com raízes, folhas, e muitos ingredientes próprios para feitiço, a receita só era conhecida
pelos mais velhos, não ensinavam para ninguém, muitos babalorixás ficaram famosos por serem Bom
no Pó ou Bom de Pó” (RAIZ MASSANGANGA DE KARIOLÉ, 2008).
6
Data aproximada, fornecida por Tata Kelaue (SILVA, 2017).
7
Citamos alguns indicativos dessa ausência pelo trabalho de Previtalli (2006, p. 2): “Ao pesquisar
sobre candomblé, observei que a maior parte da literatura se referia diretamente ao candomblé queto
e em quase nada havia informações sobre o candomblé angola”. Já Prandi escreveu: “O candomblé
nagô pode contar além do prestígio, com muitas fontes escritas brasileiras, além de uma etnografia
produzida sobre o culto dos orixás na Nigéria e no Benin. Nada semelhante existe sobre candomblé
14

metodologia da história oral para produzir novas fontes e analisar esses saberes.
Da interação cultural dos africanos na condição de escravizados e seus
descendentes, surgiram matizes de religiões afro-brasileiras, entre elas, o candomblé,
o batuque, o tambor de mina, o xangô, a umbanda e o terecô. Na trama das
religiosidades de matriz africana, podemos dizer que o candomblé, que remonta a
sua formação à Bahia no século XIX, se apresenta como a religião do culto aos
ancestrais8, tendo em comum as diferentes nações9 que elaboram suas liturgias
próprias, porém todas derivando de uma ligação com o “tempo, a origem e
autoridade” (PRANDI, 2005, p. 19).
No candomblé10, independentemente das nações, é somente por intermédio
do tempo, o tempo de cada um e de suas obrigações religiosas, que o conhecimento
é transmitido pela oralidade. No tempo, tudo se repete; esse é o pilar da herança
africana que organiza a hierarquia, o saber e o poder. Tão logo, nenhum
conhecimento é outorgado antes do “tempo”.
A concepção de tempo também é circular. Nesse sentido, acredita-se na
repetição do acontecido. Esse tempo não se define por horas determinadas pelo
relógio, e sim por uma cadeia de atividades a desempenhar. É importante entender
que o tempo se define por um “realizar”, e não pelo cômputo das horas do relógio,
pois dessa concepção se propõem a lida na roça, o trato com os animais, o corte da
lenha, o recolhimento de ervas e plantas.
É desse modo que os saberes se organizam para mediar enfermidades,
estabelecer o equilíbrio e principalmente lidar com o meio ambiente. Aliás, os
saberes estão sempre ligados à natureza, visto que ela é fonte do sagrado e onde
este se manifesta. Podemos dizer que o espaço sagrado é um campo de forças e de
valores que edifica o homem religioso transportando-o para um meio distinto daquele
no qual transcorre sua existência. Essa percepção de si e do tempo encontra-se em
confronto com o tempo do capital e sua forma de alocação de recursos naturais, o

angola” (PRANDI, 1991, p. 20). Assim, os autores referem-se à ausência de trabalhos relativos ao
candomblé angola, na mesma medida em que existem os de nação queto/nagô.
8
“A ancestralidade é o que estrutura a visão de mundo presente nas religiões de matriz africana. Sem
o princípio de senioridade a organização social das comunidades de terreiro estaria esfacelada. Sem a
ancestralidade não haveria tradição” (OLIVEIRA, 2006, p. 118).
9
“O termo nação é sinônimo de raiz, ou seja, pertencer a uma nação é uma maneira de valorizar e
transmitir os fundamentos de sua ascendência, revivendo assim, as origens africanas (DANTAS, 1982,
p. 30).
10
Etimologicamente, a palavra candomblé parece ter se originado de um termo da nação banto,
candombe, traduzido como “dança, batuque” (BARROS, 2016, p. 30).
15

que tem levado as sociedades ao esgotamento desses recursos e/ou a catástrofes


provocadas pelo modo de produção capitalista (SILVA, 2010).
Conceitualmente, candomblé é o nome empregado à religião das divindades
do panteão mitológico africano, não se restringindo a orixás, mas a inquices, voduns
e ao panteão dos encantados (espíritos de caboclos, gentis, juremeiros,
catimbozeiros) reverenciados conforme as nações de candomblé, que, por sua vez,
são divididas em dois grandes grupos étnico-linguísticos: povos bantos e povos
nagôs, que deram origem a outros grupos minoritários (LOPES, 2011, p. 143).
Conversamos, portanto, com uma miríade de liturgias e ritos singulares. Entremeios,
tratamos nesta pesquisa de uma cosmovisão11 banta, na qual o candomblé angola –
locus da nossa pesquisa – se apresenta tributária.
A priori, acreditamos mister reconhecer alguns elementos em comum às
diferentes nações de candomblé e, a posteriori, redimensionar algumas
singularidades do candomblé angola. Entendemos, desse modo, num primeiro
momento, o diverso contingente de africanos trazidos para o Brasil no contexto da
escravidão e suas religiões iniciáticas12. Confluímos para uma visão de mundo
herdada das sociedades africanas que permeia a maioria das nações de candomblé
e nos dão mostras de como o sagrado está intimamente ligado ao tempo, à natureza
e aos saberes, passados de geração em geração, configurando uma raiz que
remonta à Bahia, local de origem de muitos sacerdotes iniciados (VERGER, 2002, p.
11), independentemente de suas respectivas nações: jeje, nagô, angola e fon.
Retomando a noção de tempo para a compreensão de um dos elementos
constituintes da identidade religiosa no candomblé:

Dá-se mais ênfase ao passado que ao futuro quando se trata da


concepção de tempo na cosmovisão africana. A referência mor é o
passado. É nele que residem as respostas para os mistérios do
tempo presente. É no passado que está toda sabedoria dos
ancestrais. Somente no passado o africano encontra sua identidade.
A idade de ouro dos africanos é diametralmente oposta à dos
ocidentais, uma vez que para os últimos os melhores tempos ainda

11
“Cosmovisão, além de significar uma visão ou concepção de mundo, expressa também uma atitude
frente ao mesmo. Portanto, não é uma mera abstração, já que a imagem que o homem forma do
mundo possui um fator de orientação e uma qualidade modeladora e transformadora da própria
conduta humana. Implícito em toda cosmovisão há um caminho de ação e realização” (CREMA, 1989,
p. 17).
12
Os membros de um candomblé são classificados, basicamente, em duas grandes categorias de
idade iniciática: muzenzas e ebomis. Os segundos possuem autoridade para a realização dos rituais
(BARROS, 2016, p. 54).
16

estão por vir (no futuro), enquanto para os africanos os melhores


tempos encontram-se muito vivos no passado. O passado como
referência primordial da concepção de tempo africana não dá
margem à imobilidade das sociedades deste continente. Muito pelo
contrário! A concepção de tempo africana é dinâmica e sujeita a
reformulações e mudanças. Vive-se no tempo atual. A tradição é
continuamente retomada e atualizada. A “voz” do passado é ouvida e
merece muita atenção, mas sempre na intenção de orientar e
organizar o presente. Vive-se o agora, o hoje. O futuro tem alguma
importância, é claro. Mas é o tempo atual a base do tempo vindouro.
Por sua vez o tempo presente tem sua base no passado, assento
comum de toda concepção de tempo africana (OLIVEIRA, 2006, p.
48-49).

Ratificamos a notoriedade do status tempo levando em conta que o tempo


está intrinsecamente relacionado ao status do conhecimento, sempre com seus
pilares no passado e, portanto, na sabedoria dos mais velhos, porque estes têm
“tempo”. Logo, leia-se neste trabalho tempo como correspondente à sabedoria. São
os mais velhos os iniciados dentro da religião, chegando à senioridade do santo, que,
por sua vez, é detentor de um profundo conhecimento da realidade social e da
natureza, visto que o candomblé é dependente de elementos recolhidos do meio
ambiente para existir.
São os velhos (sacerdotes e demais iniciados) que precisam conhecer sua
comunidade e zelar pelo seu bem-estar e que desempenham o preparo de ervas,
banhos, comidas etc. para o fortalecimento e o equilíbrio de todos (OLIVEIRA, 2006,
p. 69). Não existem cursos de formação, preleções ou vantagens imbuídas de um
capital social para aquele que se inicia no candomblé. O aprendizado não prevê
apostilas, livros nem receitas. Tudo se aprende com os mais velhos, estes, sim,
portadores de toda a sabedoria da casa e da raiz. Esse aprendizado faz-se pelo olhar,
pelo ouvir, pelo “vivido”, pelo acompanhamento das atividades realizadas, mas
principalmente mediante o tempo das iniciações e obrigações (BARROS, 2009, p. 82).
No caso do candomblé angola, é preciso estar conectado ao inquice para aprender
paulatinamente o conjunto de ritos e os saberes a eles associados. Tudo a seu
tempo.
Essa cosmovisão difere e muito da forma como se concebe o conhecimento
para sociedades forjadas pelo racionalismo científico e seus axiomas, em que
imperam certa universalidade e verdade do conhecimento científico, minorando a
diversidade dos saberes. Trazendo a lume alguns incômodos arguidos por Foucault
17

(2002) em seus ensaios sobre a validação de saberes científicos, deparamos com a


seguinte inquietação:

Que tipo de saber vocês querem desqualificar no momento em que


vocês dizem “é uma ciência”? Que sujeito falante, que sujeito de
experiência ou de saber vocês querem “memorizar” quando dizem:
“eu que formulo esse discurso, enuncio um discurso científico e sou
um cientista”? Qual vanguarda teórica política vocês querem
entronizar para separá-la de todas as numerosas, circulantes e
descontínuas formas de saber? (FOUCAULT, 2002, p. 172)

Para Foucault (2002), os saberes são envolvidos em materialidade e


acontecimentos e detentores de articulações políticas com as diferentes
configurações sociais. Assim, podemos asseverar que nenhum saber é neutro; todo
ele é, por essência, político, visto que toda a formação social tem seus regimes de
verdade em períodos históricos e contextos específicos. Foucault afirma que os
diversos saberes que se constituem na mesma sociedade demandam contendas,
pela disputa de uma legitimidade, num processo capitaneado pelo espaço científico,
postulante da verdade nos campos dos saberes.
É salutar reconhecer ainda que a busca pelo candomblé, por seus adeptos,
envolve outros acionamentos para além da apropriação de saberes, do equilíbrio
físico e espiritual e do encontro com a ancestralidade e o mundo mítico. Há quem
busque por conforto e solidariedade. Nesse comenos, independentemente das
motivações que fizeram os sujeitos conduzir-se a esses espaços religiosos, todos os
adeptos do candomblé cultuam inquices/orixás ou voduns considerados ancestrais
para que a força vital13, ou moio14 – palavra usada especialmente nos terreiros de
angola – entre em equilíbrio.
Esse equilíbrio é visto ora como individual, ora como coletivo, conforme
averiguamos na própria constituição das “roças de candomblé”, em que a religião é
praticada em comunidades camponesas, reforçando o vínculo comunitário e a
relação atávica com o meio ambiente. Alguns desses indícios, que serão mais bem
discutidos no decorrer deste trabalho, revelam a relação profunda que o candomblé
estabelece com a natureza e o meio ambiente. Importa considerar aqui que são
poucos os estudos no campo do patrimônio que ensejam valorizar os saberes dos
povos de santo.

13
Vida, energia vital (LOPES, 2005, p. 1).
14
Correspondente a axé na língua ioruba, significa força vital (LOPES, 2005, p. 1).
18

Assim, cabe-nos perguntar de que forma são reconhecidos os saberes que


permeiam o candomblé, pensando não apenas na natureza como condição para sua
existência enquanto prática religiosa e cultural, mas percebendo a vinculação dos
saberes à proteção do patrimônio ambiental. Chamamos atenção para a sacralização
da vida, tão presente nas religiões tributárias de uma cosmovisão africana e que
circunda as práticas cotidianas. Isto é, não suscitamos um debate sobre técnicas
para manipulação de saberes que envolvem ervas, favas, folhas, raízes, e sim
buscamos entender e valorizar a cosmologia desses saberes. A manifestação do
sagrado funda ontologicamente o mundo, e reside nessa sacralização da vida o
estabelecimento de diferenciação com os valores do mundo moderno, onde a
natureza é vista de forma utilitarista (ELIADE, 1992). É nessa perspectiva, de ligação
orgânica entre saberes e espaços sagrados (meio ambiente), que este trabalho se
propõe a discutir como acontece essa vinculação e quais significados são atribuídos
a ela.
Entre as problemáticas que se apresentam na seara dos discursos sobre meio
ambiente envolvendo a prática de oferendas, por exemplo, é possível citar duas
principais. A primeira e mais veiculada são os usos dos espaços, quase sempre
representados por garrafas de bebida, flores embaladas por materiais não
degradáveis etc. A outra alude à patente dificuldade de reconhecer que determinadas
práticas culturais e sociais não estão dissociadas de uma cosmologia nem de uma
religiosidade. Essa questão possui menor aderência no espaço científico. Esse
aspecto é pouco dimensionado nos trabalhos acadêmicos quando se trata de lidar
com saberes tradicionais, o que denota certa violência com a história de certos
grupos sociais e suas cosmologias, enfatizando tão somente as técnicas, e não o
processo cognitivo que lhes são particulares.
Além do mais, ao discutir saberes, natureza e patrimônio, resvalamos em
imbróglios conceituais15 e de gestão do patrimônio a despeito da dicotomia criada
entre patrimônio natural e patrimônio cultural. Mas, a priori, trazemos Foucault (2002)
ao analisar a hierarquização do conhecimento, elegendo o Estado como principal
agente nesse processo de anexação de saberes, de modo etapista:

15
“Apesar de permeadas por interpretações que, de certa forma, tendem a tratar essas duas
acepções como categorias antagônicas, as concepções de natureza adquiriram um sentido particular
no engendramento da sociedade humana. A acepção de natureza, ora rivalizando com a arte, ora
competindo com a técnica, tendeu a cristalizar-se na historiografia como pressuposto da negação das
conexões do homem com o estado natural” (PELEGRINI, 2006, p. 115).
19

Primeiro, a eliminação, a desqualificação daquilo que se poderia


chamar de pequenos saberes inúteis e irredutíveis, economicamente
dispendiosos; eliminação e desqualificação, portanto. Segundo,
normalização desses saberes entre si, que vai permitir ajustá-los uns
aos outros, fazê-los comunicar-se entre si, derrubar as barreiras do
segredo e das delimitações geográficas e técnicas, em resumo, tornar
intercambiáveis não só os saberes, mas também aqueles que os
detêm; normalização, pois, desses saberes dispersos. Terceira
operação: classificação hierárquica desses saberes que permite, de
certo modo, encaixá-los uns nos outros, desde os mais específicos e
mais materiais, que serão ao mesmo tempo os saberes subordinados,
até as formas mais gerais, até os saberes mais formais, que serão a
um só tempo as formas envolventes e diretrizes do saber. Portanto,
classificação hierárquica. E, enfim, a partir daí, possibilidade da
quarta operação, de uma centralização piramidal, que permite o
controle desses saberes, que assegura as seleções e permite
transmitir a um só tempo de baixo para cima os conteúdos desses
saberes, e de cima para baixo as direções de conjunto e as
organizações gerais que se quer fazer prevalecer (FOUCAULT, 2002,
p. 215-216).

Sobre as demandas singulares da mobilização de espaços e materiais que


constituem os saberes construtos em terreiros de candomblé, devemos ter em mente
que é da natureza que se contraem fontes materiais e imateriais para a produção
cultural, inclusive aquelas alusivas à restauração de bens artísticos e culturais já
consolidados. À guisa de informação, não nos referimos aqui sobre processos de
tombamento; estamos a refletir sobre a salvaguarda de espaços naturais, que
também podem ser declarados culturais, tanto para manifestações da cultura
afro-brasileira, também amparada por lei16, quanto para o bem-estar coletivo,
envolvendo outros agentes. Ainda sobre a feição de grupos étnicos e culturais com a
natureza, citamos:

A preservação do patrimônio natural propicia excelente exercício de


integração entre os elementos físicos e biológicos da natureza, os
sistemas que estabelecem entre si e com as ações humanas.
Fornece chaves para a proteção sinérgica de sítios e formações
naturais significativas, em conjunto e harmonia com comunidades de
plantas, animais e seres humanos, sobretudo com a cultura que cada
grupo estabelece em relação à natureza, aos significados míticos,
legendários, históricos, artísticos, simbólicos, afetivos e tantos outros
que podem ser conferidos pelo homem (DELPHIM, 2004, p. 169).

16
Referimo-nos à Lei n.º 12.288, de 20 de julho de 2010 (BRASIL, 2013).
20

Delphim (2004, p. 171) ainda confere aos povos ocupantes de territórios


conhecimentos fundamentais para a preservação de sítios detentores de referências
históricas da cultura negra, por exemplo, quando ele menciona os assentamentos de
quilombos, as rotas de escravidão e os cemitérios de escravos. Nessa perspectiva,
as religiões de matriz africana, especialmente o candomblé angola, de que tratamos
neste trabalho, podem ter potencial colaborador nas políticas de preservação de
espaços naturais, pois possuem o caráter de mobilizar a sustentabilidade, sobretudo
de espaços verdes, comuns ao entorno de terreiros com sua percepção de “sagrado”.
A cosmologia dessas religiões é a principal fonte de inspiração no que se
refere à preservação de espaços verdes, rios, riachos, montanhas etc., considerando
que esses espaços são de evocação da força ancestral. No caso do candomblé
angola, cada inquice é particular detentor de um campo natural, sendo este
imaculável.
Pensando no panteão mitológico banto e nos vários espaços de onde se
emana o moio, entendemos a complexidade de acesso aos lugares e a minoração
desses espaços, principalmente em razão da especulação imobiliária. A mata, de
maneira especial, é catalisadora de moio, a força vital, que movimenta as pessoas. É
da mata que se retiram folhas, raízes e sementes, para a elaboração de infusos, chás,
garrafadas, abrindo cura para doenças espirituais e doenças da carne.
O conhecimento desses sujeitos poderia dialogar com outras propostas de
preservação de espaços verdes, por exemplo, contribuindo com as metas de
agendas que visam ao desenvolvimento sustentável de localidades, como o caso da
Agenda 2117 (BARBIERI, 1997).
É salutar reconhecer a modesta nota que o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) dispõe sobre os saberes tradicionais ao explicar acerca de
livros tombos, do qual o presente trabalho se faz interlocutor:

Criado para receber os registros de bens imateriais que reúnem


conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das
comunidades. Os Saberes são conhecimentos tradicionais
associados a atividades desenvolvidas por atores sociais
reconhecidos como grandes conhecedores de técnicas, ofícios e
matérias-primas que identifiquem um grupo social ou uma localidade.
Geralmente estão associados à produção de objetos e/ou prestação

17
“A Agenda 21 pode ser definida como um instrumento de planejamento para a construção de
sociedades sustentáveis, em diferentes bases geográficas, que concilia métodos de proteção
ambiental, justiça social e eficiência econômica” (AGENDA 21 DA CULTURA, 2004).
21

de serviços que podem ter sentidos práticos ou rituais. Trata-se da


apreensão dos saberes e dos modos de fazer relacionados à cultura,
memória e identidade de grupos sociais (IPHAN, 2017).

Dessa feita, dialogamos com saberes tradicionais do candomblé, por meio da


participação de integrantes do terreiro Nzo Nkise Nzazi18, situado no município de
Araquari (SC), mediante a produção de novas fontes, sobretudo pela história oral.
Nas entrevistas com lideranças do nzo, podemos compreender como se organiza o
cotidiano desse terreiro, especialmente no que diz respeito aos saberes e a seu
processo de produção e organização.
É importante trazer a lume o entendimento de “tradicional” para esta pesquisa
quando este não alude necessariamente a uma ideia de origem, mas aos processos
político-organizativos, aos modos de se relacionar com o território e a natureza, numa
lógica de inadequação ao modelo hegemônico de desenvolvimento, isto é, como
conhecimento singular dotado de referências e identidade social de um grupo
(MARQUES, 2012, p. 5).
Entremeios, faz-se mister problematizar as condições de elaboração desta
pesquisa envolvendo um candomblé de nação angola, quando há o apagamento
histórico dessa modalidade. Essa realidade incidiu no levantamento de algumas
poucas obras bibliográficas e praticamente todas elas apontando para uma
historicidade do candomblé que revela o processo de subalternização de algumas
expressões da religiosidade afro. Inclui-se, nessa perspectiva, o candomblé angola,
principalmente em função da configuração de sua identidade religiosa, composta dos
povos bantos, de indígenas e de brancos pobres.
Para fins estatísticos, é possível dizer que entre os bantos trazidos ao Brasil
estavam os angolas, caçanges e bengalas, presentes na mão de obra escrava por
quase todo o litoral e ainda em regiões interioranas, especialmente Minas Gerais e
Goiás. Os bantos constituíam o grupo africano trazido em maior quantidade ao país,
visto que seu tráfico teve início em fins do século XVI, minorando na década de 90 do
século XVII, ocorrendo seu cessamento no século XIX (SWETT, 2007, p. 35). Assim,
o referendado grupo foi o que mais significativa influência exerceu na cultura
brasileira (LOPES, 2011, p. 9).
Embora, em cômputos numéricos, o grupo banto tenha correspondido à maior
quantidade em solo brasileiro, exercendo maior influência na composição da cultura

18
Segundo Tata Kelaue, Nzo Nkise Nzazi significa “a Casa da Força Raio” (SILVA, 2017).
22

brasileira, Lopes (2011) reclama de um preciosismo que subalternou o


reconhecimento da presença banta no Brasil, especialmente nos ritos religiosos que
mantiveram suas referências (litúrgicas, linguísticas e de cosmovisão):
O escravismo brasileiro foi eminentemente banto, como prova a
presença afro-originada principalmente na música, nas danças
dramáticas, na língua, na farmacologia, nas técnicas de trabalho e até
mesmo nas estratégias de resistência aqui desenvolvidas, como nos
casos exemplares de quilombos e irmandades católicas. Mas a
historiografia anterior à década de 1970, de um modo geral, procurou
negar essa hegemonia. E, a nosso juízo, o fez com um objetivo
definido: o de negar a importância à regra, à maioria, mitificando
positivamente, de certa forma, apenas a exceção. Daí o “negro tu”,
sempre submisso e imbecilizado, contraposto ao “malê” ou “mina”,
generalizadamente mostrado como rebelde, altivo e letrado. Essa
falácia chegou até nós. E repercutiu seriamente na tentativa de
reconstrução identitária da militância negra a partir da década de
1970 (LOPES, 2011, p. 9).

A problematização de que trata Lopes (2011) foi constantemente ativada nas


pesquisas produzidas por historiadores, sociólogos e antropólogos dessas duas
últimas décadas. Louzada (2011), em sua dissertação de mestrado, traz a lume a
tentativa de celebração nagô de africanidade, como projeto ideológico de intelectuais
e movimentos negros na tentativa de eleger uma África mítica como catalisadora de
identidade para esses grupos, inferindo traços negativos aos de influência banta. Tal
fenômeno, esclarece Previtalli (2006, p. 3), implica a “influência dos estudos de Nina
Rodrigues ao publicar Os Africanos no Brasil (1933), posteriormente nos estudos de
Arthur Ramos (1951) e mais tarde nas obras de Edson Carneiro (1991)”. Esses três
autores teriam se tornado uma caixa de ressonância para a produção artística,
intelectual, cultural e patrimonial até os dias correntes.

E assim, o esforço desenvolvido pelo pesquisador para diferenciar o


sincretismo religioso transcorrido nas regiões nordeste e sudeste
reforçaria as ideias de superioridade do modelo religioso jeje-nagô e
de “pureza” da nação Ketu baiana, já que a predominância da
tradição religiosa nagô no nordeste passaria a ser compreendida
como mais importante causa da preservação da religião africana no
nordeste. Por fim, essa perspectiva contribuía para a hierarquização
da tradição religiosa afro-brasileira sob o parâmetro de preservação
da africanidade (LOUZADA, 2011, p. 170).

Chamamos atento à questão patrimonial daquilo que é considerado “original”,


“puro”, visto que a reverberação dessas produções atinge por decorrência políticas
públicas culturais, entre elas o campo do patrimônio cuja primazia também acabou
23

por afamar os bens simbólicos de grupos celebrados como “exceção”. A propósito da


ausência e/ou por malograr algumas interpretações perante outras expressões da
religiosidade afro-brasileira e a historicidade dessas relações, elegemos como
captação de dados e sentidos desta dissertação o testemunho direto de atores
esquecidos, ou ainda pior, de status somenos pela sua dinâmica organizacional
denominada de impura, misturada, ignorante19.
Sobre a incidência do que se chama apagamento do candomblé angola nas
políticas culturais, podemos acionar o campo do patrimônio e seus processos de
tombamento. Ou melhor, ativar os discursos que sustentam tais processos. Ao tratar
do tombamento do “Roça do Ventura”, no artigo “Tombamento de terreiros protege
práticas culturais”, de Viana (2014), a então presidenta do IPHAN à época, Jurema
Machado (apud VIANA, 2014), justifica:

O terreiro tem uma particularidade: apresenta com clareza a


distribuição das funções rituais no terreno natural, coisa que os
terreiros urbanos perderam muito. Os terreiros em geral têm imenso
valor, mas foram sendo apertados pelas construções e perderam
espaço. O tombamento, além de proteger a integridade do imóvel,
garante que ele não seja invadido ou o espaço seja ocupado.

Essa declaração passa inocente aos olhos leigos, mas está permeada de
significados historicamente construídos. A constituição das chamadas roças de
candomblé, ou terreiros, segue uma política organizacional correspondente a sua
nação, conforme já mencionado anteriormente. Todavia, o candomblé angola tem
gozado de um status de inferioridade em relação aos demais, ou melhor
esclarecendo, ante a supremacia nagô. No artigo de Marins (2016), que faz um
balanço a despeito de políticas patrimoniais pós-década de 1980, conferimos o
seguinte vaticínio:

19
Falando sobre os cambindas e bantos, Gallet (1934, p. 58) escreve: “Considerados pelos outros,
inferiores, imitadores e ignorantes. Desconhecem até o próprio idioma, complicado e difícil, e o
misturam com termos portugueses. Adoram as pedras, os paralelepípedos e as lascas de pedra”.
Ainda acerca dos negros bantos, Rodrigues (1988, p. 216) afirma: “Decorrido meio século após a total
extinção do tráfico, o fetichismo africano constituído em culto apenas se reduz ao da mitologia
jeje-iorubana. Angolas, guruncis, minas, haussás, etc., que conservam suas divindades africanas, da
mesma sorte que os negros crioulos, mulatos e caboclos fetichistas, possuem todos, à moda dos
nagôs, terreiros e candomblés em que as suas divindades ou fetiches particulares recebem, ao lado
dos orixás iorubanos e dos santos católicos, um culto externo mais ou menos copiado das práticas
nagôs”.
24

Os tombamentos de terreiros, por exemplo, permanecem atávicos a


uma exclusiva opção pelo Nordeste, e também primordialmente pelos
cultos panteônicos originários da costa ocidental setentrional da
África. Após os pioneiros tombamentos do Terreiro da Casa Branca
(Ilê Axé Iyá Nassô Oká, 1986) e do Axé Opô Afonjá (2000), foram
tombados o Bate-Folha Manso Banduquenqué (2005), o Gantois (Ilê
Iyá Omim Axé Yiamasséo, 2005), o Terreiro do Alaketo (Ilê Maroiá
Láji, 2008), o Ilê Axé Oxumaré (2014), todos localizados em Salvador,
e ainda a Casa das Minas Jeje (2005), em São Luís, todos eles
vinculados ao candomblé de tradição jeje-nagô, com exceção do
Bate-Folha, declarado como candomblé angolano (Giumbelli, 2014:
455-456) (MARINS, 2016, p. 23).

A forma de culto dos candomblés angolas, de nação banto, revela algumas


singularidades, nesse caso, em deferência as suas próprias edificações que fogem
ao modelo “nagô”, o qual se tenta preservar por meio de processos de tombamento,
a começar pelos assentamentos20 de inquices que se situam no “tempo” e pela
presença de um nzo particular em referência ao caboclo21 de pena (espírito
indígena), este considerado um ponto de discórdia perante o que se convencionou
chamar de pureza nagô.
Podemos averiguar na narrativa de Machado (apud VIANA, 2014) e no
estabelecimento de políticas de salvaguarda uma alusão ao ideal de pureza. A
ideologia da pureza reificou a influência dos povos bantos dos quais se origina o
candomblé angola, ora ao considerar o povo banto inferior, ora ao contribuir para a
construção de uma identidade negra que passou a evocar, especialmente na década
de 1970, uma mãe África de reis e rainhas (culto aos orixás). Tal discurso acabou por
deslegitimar aqueles que não possuíam arquétipos associados à realeza, pois
construíram laços com ameríndios, se misturaram. O culto aos inquices do
candomblé angola também é notoriamente conhecido pelo culto ao caboclo,
singularidade que também colaborou com a representação de “impureza” e pouco

20
O assentamento, leia-se igba, em ioruba, é o receptáculo em que o homem venera suas divindades.
É o centro de toda a força. O igba faz parte dos costumes iorubanos, mas outras nações-irmãs
também o utilizam, como os bantos e os fons. Estes últimos, primordialmente, como já dito, fazem
seus assentamentos aos pés das árvores (BARROS, 2009, p. 101).
21
“O culto a caboclo nos candomblés é uma temática que, até hoje, se reveste de mistério e até
mesmo certo silenciamento por parte de seus integrantes. Na primeira metade do século XX, foi
considerado por Carneiro (1991, p. 62) como ‘um processo sincrético afro-ameríndio’ ou, no caso da
interpretação de Querino (1938, p. 117, grifo nosso), ‘uma variante do candomblé jeje-nagô que
incorporou elementos indígenas’, pensamentos que contribuíram para estabelecer uma dicotomia
entre os candomblés de tradição africana – a saber, os ‘impermeáveis’ candomblés jeje-nagôs – e os
candomblés de origem banto – Angola e Congo –, mais propensos às ‘influências externas’ do que os
primeiros” (MENDES, 2014, p. 122).
25

sofisticada em nossa literatura, visto sua fusão contaminada pelos “selvagens” da


América portuguesa (CARNEIRO, 1991, p. 133).
Soma-se aos juízos apriorísticos ligados à ausência de pesquisas sistemáticas
a respeito do candomblé angola e seu conjunto de bens patrimoniais o fato de os
povos bantos se relacionarem com indígenas e seus conhecimentos, bem como sua
aproximação com ritos católicos considerados “impuros” e de reminiscência
“colonizadora”. Tal rejeição se explica pelo caro e escorregadio caminho no qual vem
se tratando o sincretismo. Também menosprezado por alguns intelectuais e
militantes, o termo tornou-se um fardo, algo deletério para as comunidades de
terreiro. Não visto como encontros nem como ressignificações constituídas pela
diáspora, tal emprego se transformou em uma categoria de análise a ser
completamente rejeitada por uma ótica binária ao essencializar relações profícuas
unicamente pela ótica colonizadores × colonizados. Ou seja, o caráter passivo de
povos escravizados foi novamente ativado. Rejeitamos esse olhar sobre o
candomblé angola, pois entendemos que os povos bantos, tidos como ancestrais
mais próximos dessa modalidade de candomblé, eram constituídos por diversas
comunidades, e não eram presos a uma identidade racial (LOUZADA, 2011).

Assim, a designação “família banto” fora forjada por Beck como


alternativa de compreensão – menos específica e por este motivo,
mais viável naquele contexto – dos povos africanos centro-ocidentais.
Sendo a denominação bantos, todavia, não relativa a nenhuma língua
ou povo africano específico, se referindo a um “macrogrupo com
características culturais e lingüísticas semelhantes” (LOUZADA, 2011,
p. 46).

Em solo brasileiro é notável a relação de bantos e seus descendentes com


indígenas e brancos, fenômeno que repercutiu também nos candomblés e que, por
sua vez, é compreendido até hoje como simples incorporação passiva ao regime
escravista, sem atentar ao fato de que brancos pobres e marginalizados ajudaram a
construir essa identidade religiosa. Dessa rejeição ao encontro de diferentes grupos
sociais, pensando na trajetória do candomblé angola, aglutinando novos atores em
cada tempo histórico, deparamos com o malogrado conceito de sincretismo, que tem
sido utilizado como forma de indicação de misturas vulgares ou apropriações
indevidas, denotando, per se, ausência de originalidade e pureza.
26

Levamos em conta para efeito de nosso trabalho o sincretismo como traço


legítimo de todas as religiões e que sua negação também incide numa construção
ideológica para a reafirmação do estado de pureza. É mister citar os estudos de
Giroto (1999) sobre práticas religiosas no fenômeno de expansão dos povos bantos.
Esses grupos migrantes tinham como hábito identificar os espíritos primeiros da terra
que chegavam, sendo comum a procura pelos sacerdotes locais a fim de
compreender os métodos para abordar tais espíritos, uma particularidade que se
pode observar na formação dos candomblés de modalidade angola. Dessa maneira,
Ferreti (1998, p. 17) esclarece:

Embora alguns não admitam, todas as religiões são sincréticas, pois


representam o resultado de grandes sínteses integrando elementos
de várias procedências que formam um novo todo. No Brasil, quando
se fala em religiões afro-brasileiras pensa-se imediatamente em
sincretismo, como “aglomerado indigesto” de ritos e mitos, ou como
“bricolagem” no sentido de mosaico as vezes incoerente de
elementos de origens diversas” (Pollak-Eltz, 1996, p. 13). Costuma-se
atribuir também o termo sincretismo em nosso país, quase que
exclusivamente ao catolicismo popular e às religiões afro-brasileiras.
Mas o sincretismo está presente tanto na Umbanda e em outras
tradições religiosas africanas, quanto no Catolicismo primitivo ou
atual, popular ou erudito, como em qualquer religião. O sincretismo
pode ser visto como característica do fenômeno religioso. Isto não
implica em desmerecer nenhuma religião, mas em constatar que,
como os demais elementos de uma cultura, a religião constitui uma
síntese integradora englobando conteúdos de diversas origens. Tal
fato não diminui mas engrandece o domínio da religião, como ponto
de encontro e de convergência entre tradições distintas.

Esses discursos, amiúde, trouxeram impactos profundos para a consolidação


de uma religiosidade de matriz africana considerada legítima, aquela que cultua os
orixás22, ou seja, candomblés de nação quetu/nagôs23 que falam a língua ioruba.
Para muitos, candomblé é a religião dos orixás. É por essa historicidade que
divindades do panteão africano, como Exu, Ogum, Xangô, Oxóssi e Iansã, por
exemplo, são plenamente reconhecidas em nosso imaginário, para bem ou para mal,
enquanto o culto aos inquices Aluvaia, Nkose, Nzazi, Gongobila e Matamba, por sua

22
O orixá é, em princípio, um ancestral divinizado que em vida estabeleceu vínculos que lhe garantem
controle sobre certas forças da natureza. O poder asé do ancestral-orixá teria, após sua morte, a
faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenômeno de
possessão por ele provocada (VERGER, 2002, p. 18).
23
Além da linguagem comum, estariam ligados por uma origem em comum, na cidade de Ifé
(VERGER, 2002, p. 11).
27

vez, não encontra espaço em nossa linguagem e em representações sobre as


religiosidades de matriz africana.
A pregressa tentativa de eleger uma nagocracia24 ajudou a pavimentar
políticas de preservação cultural dos candomblés de origem nagô e daqueles que
falam a língua ioruba, repercutindo, conforme visto, nos processos de tombamento.
Porém esse prestígio calcado na ideia de pureza e imutabilidade mitigou a
possibilidade de ascensão de demandas que emergem de outras expressões
afro-religiosas, como o caso do candomblé angola e sua influência banta. Para o
candomblé angola, o culto aos seus inquices e o acionamento de saberes
tradicionais advêm do contato com vários espaços, inclusive urbanos, não se
restringindo ao terreiro, a suas edificações nem a seu entorno. Ainda sobre a
hegemonia nagô e suas implicações nas políticas públicas e afirmativas:

A reafricanização ou pelo menos a tentativa de reafricanização dos


cultos afro-brasileiros, pelas razões históricas e até mesmo políticas,
foi profundamente prejudicial ao conhecimento de outros povos
africanos, tais como os Bantos, que legaram ao Brasil muito da sua
concepção de vida, de hábitos e costumes, hoje plasmados na
totalidade do ethos brasileiro. A reafricanização pouco serviu aos
interesses dos candomblés Angola, Congo e Congo-angola, e tantos
outros grupos religiosos. Ao contrário, ficaram de alguma forma
estigmatizados, quase órfãos de uma matriz à qual pudessem
eventualmente recorrer. É como se a cultura religiosa africana se
limitasse exclusivamente à religião dos Orixás. Em síntese, a
reaproximação com a África tem sido pouco expressiva em relação ao
conhecimento dos países de língua portuguesa, ironia da história, os
menos estudados e muito pouco visitados por pesquisadores e
gente-de-santo (BRAGA, 1988, p. 88).

Retomando a fala de Lopes (2011), a exceção transformou-se em regra.


Resultante de fenômenos distintos, mas que por vezes se tocam, conforme
sensivelmente apresentado neste trabalho, o culto aos inquices no candomblé de
nação angola tem sido valorizado de certa forma há poucas décadas. Repetimos:
não existe uma pesquisa sistemática sobre candomblé angola, tampouco que
problematize seu patrimônio, e pelas narrativas orais averiguamos que está muito
remoto de aludir a edificações, como podemos analisar nas políticas de preservação

24
Prandi (1991, p. 101) utiliza nagocracia para demonstrar a popularidade alcançada pelo candomblé
nação ketu – também chamado de nagô – no Brasil, na década de 1970, quando do “jubileu de ouro de
iniciação de mãe Menininha do Gantois”, considerada a mais famosa yalorixá do Brasil de todos os
tempos.
28

do IPHAN (tombamentos). Esclarecemos que, ao referenciar o patrimônio neste


trabalho, nos reportamos a

práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas –


junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que
lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns
casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu
patrimônio cultural (PELEGRINI; FUNARI, 2009, p. 46).

Destarte nosso interesse pelo candomblé angola e sua concepção de bens


patrimoniais herdados de uma cosmovisão banto, que, por sua vez, alude ao “todo”,
tal qual é possível constatar nos testemunhos diretos, trataremos neste trabalho de
saberes de seus agentes que se conectam por meio do Nzo Nkise Nzazi.
Evidenciamos que, pela natureza hierárquica do candomblé na construção dos
saberes, nossos entrevistados são os mais “velhos”, visto que é desse modo que se
organizam a vida espiritual e a vida política no terreiro. Os mais velhos são
concebidos como aqueles que realizaram seus processos iniciáticos ou auferiram
seus cargos anteriormente à iniciação, caso especial de makotas25 e cambondos.26
Importa-nos reconhecer como os saberes dentro de um terreiro de candomblé
angola se vinculam com espaços que não estão necessariamente condicionados ao
espaço do terreiro. Assim, como pensar a maneira tal qual ocorre o acesso a esses
espaços como parte importante na expressão cotidiana do culto, marcado por
tensões e conflitos, especialmente no que diz respeito à entrega de oferendas votivas
em encruzilhadas, matas, cachoeiras etc. Principalmente, desperta-nos atenção a
compreensão da cosmologia desses saberes associados ao seu panteão mitológico
enquanto patrimônio dessas comunidades.
Nosso trabalho parte da valorização de saberes do campo patrimônio cultural,
forjada no seio da sociedade brasileira por agentes históricos específicos, a respeito
de vivências religiosas de matriz africana. Nações e etnias provenientes de diversos
pontos do continente africano traficadas pela costa atlântica e vindas ao Brasil no
contexto da escravidão trouxeram consigo visões de mundo que gradualmente foram
confrontadas com as relações societárias no novo continente. Pela observação de
seus traços culturais, receberam denominações mais generalizantes, como jejes,

25
Cargo de autoridade na casa atribuído às mulheres que não entram em transe (SILVA, 2017).
26
Cargo de autoridade na casa atribuído aos homens que não entram em transe (SILVA, 2017).
29

iorubas, angolas e nagôs27. Conforme problematizado anteriormente, essas


denominações ajudaram a configurar as nações de candomblé, e, por conseguinte,
instaurou-se em nosso conhecimento sobre religiosidade apenas uma forma de
expressão, conhecida como culto aos orixás.
É ante essa negligência histórica de outras práticas religiosas de matriz
africana que nosso projeto instituiu como norte de pesquisa um estudo de caso sobre
a relação entre ancestralidade e natureza expressa nos saberes tradicionais de
cosmovisão banto do qual o Nzo Nkise Nzazi se apresenta afluente. Justificamos
essa delimitação em razão de uma realidade de apagamento no tocante às outras
religiões de origem africana, sendo também objeto de estudo os motivos que levaram
o candomblé angola se encontrar à margem de políticas culturais e patrimoniais.
As nações de candomblé configuraram-se mediante a organização de antigos
terreiros na Bahia, fundados por sacerdotes africanos, denominados de angolas,
congos, jejes e nagôs, e iniciados em suas religiões tradicionais. Embora a nação
angola seja reconhecida como a mais antiga nação de candomblé, a maioria das
visões bibliográficas – conforme posto à vista neste trabalho – aponta para o
candomblé angola uma pretensa inferioridade em relação aos candomblés de outras
nações, em virtude especialmente da “mistura” que houve com indígenas e brancos.
Temos como foco de pesquisa as políticas culturais e patrimoniais que partem
do direito ao patrimônio presente nas comunidades de nação angola. Cabe-nos
lembrar que nas últimas décadas os espaços que evocam políticas públicas,
educacionais, patrimoniais e/ou de saúde pública, se tornaram mediadores de
discussões sobre searas como multiculturalismo, direitos culturais e políticas de
ações afirmativas, com escopo de reabilitação de grupos sociais discriminados. A
pertinência de tal expediente, no âmago das organizações culturais, refere-se à
premente necessidade de otimizar a articulação entre patrimônio, meio ambiente e
sociedade.
Acreditamos que nosso trabalho possa ensejar o avanço das discussões sobre
religiosidades ou cosmovisões de matriz africana. Além disso, busca-se analisar a
relação entre o patrimônio religioso da nação angola e o patrimônio ambiental. Nesse
sentido, o trabalho abrange os saberes populares que se constituem no candomblé,

27
As primeiras atribuições de caráter classificatório nos portos de embarque, após translado do
continente africano (PREVITALLI, 2006, p. 3).
30

que vão desde a coleta de folhas e raízes até a elaboração da cozinha sagrada e os
tradicionais cortes de bichos, especialmente por meio da história oral.
Sobre a questão do respeito que as religiões de matriz africana possuem em
relação à natureza, tornando-se profundamente reveladora de patrimônios não
oficiais salvaguardados por grupos específicos da sociedade, temos a fala do
entrevistado Zamenga, para o trabalho de Pinto (2008, p. 14):

A religião para um africano é antes de tudo vida, uma vida vivida no


cotidiano. A sua religião, ao menos a crença em um ser supremo,
nasce da visão de mundo e reúne leis e ligações que os vivos
estabelecem entre o passado, os mortos, o presente e o futuro. Mas
também leva em conta as interações que se operam perpetuamente
ou por intermitência. Essas são as explicações que os membros
duma sociedade dão ou tentam dar a todos os acontecimentos da
vida, são as ligações que os vivos estabelecem entre eles e os
elementos que os cercam. Esses elementos podem ser de natureza
visível e invisível. Logo, a concepção do mundo é feita da percepção
do meio ambiente conforme o que se acha diante do desconhecido ou
inacessível. De saída, cada indivíduo ou grupo de indivíduos, leva em
conta o seu ambiente geofísico e cultural, com sua percepção, em
consequência, sua visão de mundo. Assim, os povos respectivos da
savana, da floresta, das altas montanhas, das regiões vulcânicas, das
planícies, do litoral etc. têm cosmologia particulares.

A imanência do divino encontra-se intimamente ligada aos espaços sagrados,


cuja centralização no cosmos provém de significados e significações. Para as
culturas denominadas de autóctones e/ou arcaicas, esses significados são
pregressos à sua história enquanto grupo. Complementando a narrativa de Zamenga,
citamos Eliade (1991, p. 36):

Na geografia mítica, o sagrado é o espaço real por excelência, pois,


como se demonstrou recentemente, para o mundo arcaico, o mito é
real porque ele relata as manifestações da verdadeira realidade: o
sagrado. É num total espaço que tocamos diretamente o sagrado –
quer ser ele materializado em certos objetos (tchuringas,
representações da divindade, etc.) ou manifestados nos símbolos
hierocósmicos (Pilastra do Mundo, Árvore Cósmica, etc.). Nas
culturas que conhecem a concepção das três regiões cósmicas – Céu,
Terra, Inferno – o centro constitui o ponto de intersecção dessas
regiões.

Essa sincronicidade entre espaço sagrado e historicidade relatada pelo


registro bacongo e de Eliade (1991) reflete em linhas gerais o locus da cosmovisão
banta. Nesse caso, vários grupos étnicos compartilharam seu ethos religioso,
31

empregando novos contornos haja vista a necessidade de preservar a herança


ancestral no contexto de um sistema escravista.
Entendemos, no entanto, a dinâmica de ressignificação das religiões e que,
assim como as concepções contemporâneas de cultura revelam um amálgama de
referências – só possibilitando sua compreensão quando contextualizadas no seu
tempo –, os sistemas religiosos também se exercem em um espaço/tempo específico.
Reside aí a necessidade de descortinarmos a gênese dos fenômenos e de suas
especificidades, mas atentos à aglutinação de novos atores sociais e a seu acervo
patrimonial articulado ao mundo moderno.
A escolha desse tema envolve ainda outros aspectos remissivos à construção
dos saberes históricos e à produção de novas formas de pensar patrimônio cultural e
posicionar-se no atual cenário político, marcado por contendas embandeiradas pelas
frentes mais progressistas da sociedade. Dessa forma, não podemos deixar de
relevar nessa análise as motivações intimamente ligadas aos direitos humanos
culturais. Aliás, somam-se a essas novas demandas a falta de proteção jurídica de
patrimônios ameaçados diuturnamente por lobby político-religioso, as invasões a
terreiros e as agressões aos que professam essa fé. Em que pese o alerta de
Meneses (2012, p. 38):

Quando as culturas saem do museu e a diferença cultural (e não mais


apenas a diversidade cultural) passa a ser um dos componentes
ativos das tensões sociais, o encorajamento da diversidade cultural
se acompanha de mecanismos de contenção da diferença cultural.
Em outras palavras tem ocorrido, com os mesmos sujeitos, que a
diversidade cultural possa ser grandemente apreciada nos museus,
embora rejeitada na interação social.

Pensando no campo patrimonial e em sua dimensão política, cabe-nos refletir


sobre a formação do profissional da cultura, sua escuta sensível às desigualdades
instituídas e a autonomia auferida a ele para examinar com esmero a realidade da
qual é partícipe. Nessa perspectiva, elegemos o Nzo Nkise Nzazi nossa principal
fonte de pesquisa para localizarmos os elementos que constroem a identidade de
muitos afrodescendentes. O candomblé angola congraça laços de pertencimento por
intermédio de vieses linguísticos, musicais, religiosos e históricos, mas sobretudo na
relação entre ancestralidade e natureza em conformidade com a cosmovisão banta e
seu culto a inquices e encantados. Faz-se mister, todavia, ratificar nosso
32

compromisso com essa campanha capciosa de estereotipação da cultura que se


manifesta em todos os espaços sociais, das mídias de massa às concepções
vulgares de cultura, passando ainda pela educação. Conforme Geertz (2008, p. 10):

Compreender a cultura de um povo expõe sua normalidade sem


reduzir sua particularidade. (Quanto mais eu tento seguir os
marroquinos, mas lógicos e singulares eles me parecem). Isso os
torna acessíveis: colocá-los no quadro de suas próprias banalidades
dissolve sua opacidade.

Nosso estudo tem como norteamento a pesquisa qualitativa, envolvendo


fontes bibliográficas e a produção de novas fontes, por intermédio da história oral. As
entrevistas com lideranças sacerdotais do Nzo Nkise Nzazi são extremamente
importantes para a produção de conhecimento acerca de aspectos do candomblé
angola, relacionados a nossa perspectiva: os saberes tradicionais. Assim, nosso
trabalho encontra-se estruturado em três artigos28, além da introdução e das
considerações finais.
O primeiro artigo aborda os saberes tradicionais que se exercem no Nzo Nkise
Nzazi, pelas narrativas produzidas por suas lideranças, que estão intimamente
ligadas à produção e transmissão desses saberes. Lidamos com saberes particulares
do candomblé angola no trato com o meio ambiente, incluindo a flora, para
manipulação de seus trabalhos mágicos. Trabalhamos nesse caso com o manuseio
de plantas, ervas e raízes, em que os saberes incidem na integração entre oralidade
e transmissão de saberes que ocorrem por duas vias: geracional e mágica, por
intermédio da comunicação com as divindades cultuadas no Nzo Nkise Nzazi.
Destacam-se aqui os aspectos físicos e biológicos da natureza e a cultura
estabelecida entre o conjunto de organismos presentes nela e as ações humanas
que atribuem significados afetivos, míticos, históricos, entre outros, conferidos pelo
grupo.
O segundo artigo tem como proposta relacionar o abatimento de animais nos
rituais, enquanto saber tradicional, inserindo o valor cosmogônico da fauna para a
comunidade do Nzo Nkise Nzazi. Nesse sentido, associamos o direito à alimentação

28
Após o exame de qualificação, estruturamos nossos artigos com base em ajustamentos acordados
pela banca examinadora. Desse modo, o primeiro artigo foi desmembrado em dois, visto a
possibilidade de discutir com mais acuidade os saberes relativos aos cortes de animais. Um dos
artigos propostos, intitulado “Representações da Macaia: a relação entre deidades e paisagens do Nzo
Nkise Nzazi”, foi suprimido em razão da indisponibilidade de tempo dos membros do Nzo Nkise Nzazi
para realizar alguns desenhos que reproduzissem os saberes tradicionais ligados às ervas.
33

dos povos de matriz africana e os significados que envolvem o trato e o corte de


animais para o Nzo Nkise Nzazi. Buscamos apresentar os atores envolvidos, como
se realiza o procedimento, o seu destino e a sua principal finalidade, com base no
princípio de alimentação e comunicação com o divino.
A proposta do terceiro artigo é contribuir para os estudos sobre o panteão
mitológico do candomblé angola, de culto aos inquices e encantados. Por meio das
narrativas, situamos os nomes, a importância para a cosmovisão no nzo, e
estabelecemos um possível diálogo com os debates sobre bens patrimoniais. Nessa
perspectiva, o objetivo de análise abrange um candomblé que não se restringe
apenas àquele de culto aos orixás e consolidado pela construção de um discurso que
defende a nação queto/nagô como modelo original a ser seguido pelas demais
nações de candomblé.
1 “TURILA KOTA NDUNJE JA KOTA JAVULA”1: SUJEITOS E SABERES NO NZO
NKISE NZAZI23

Resumo:
Escrever a história dos saberes e das memórias que envolvem o candomblé angola é
condensar o patrimônio, reunindo o natural e o cultural em uma narrativa ímpar que
investe, acima de tudo, na transmissão e na recepção de conhecimentos produzidos
por uma experiência de séculos. Assim, o trabalho compõe-se principalmente da
análise de sentidos, que, por sua vez, são possíveis de acionamento por meio de
saberes tradicionais. Uma parte da discussão está centrada no reconhecimento dos
saberes como técnicas que envolvem processos de ensino-aprendizagem.
Igualmente, busca-se trazer para o centro da discussão a formação de uma
identidade. Nesse sentido, considera-se que os saberes são dotados de referências
culturais e se situam em uma cosmovisão. Procura-se trazer a lume um pouco dessa
pedagogia dos saberes tradicionais, constituintes da identidade religiosa do
candomblé angola, detalhando um estudo de caso realizado em uma comunidade de
terreiro, o Nzo Nkise Nzazi, situado no município de Araquari (SC). Mediante as
narrativas orais dos agentes que mobilizam determinados saberes para a
manutenção de seu sistema de crenças, tenta-se apontar uma reflexão a despeito
dos diferentes saberes e seus modos de percepção dos mundos físico e espiritual.
Palavras-chave: saberes; narrativas; candomblé angola; patrimônio.

Abstract:
Writing the history of the knowledges and memories that surround the candomblé
angola is to condense the patrimony, bringing alone the natural and the cultural in a
unique narrative that invests, above all, in the transmission and reception of
knowledge produced by an experience of centuries. Thus, the work is composed
mainly of the analysis of meanings, which, on its turn, are possible to trigger through
traditional knowledge. Part of the discussion is centered on the recognition of
knowledge as techniques that involve teaching-learning processes. The text also
seeks to bring to the center of the discussion the formation of an identity. In this sense,
it is considered that knowledge is endowed with cultural references and situated
within a worldview. It intends to highlight some of this pedagogy of traditional
knowledge, constituents of the religious identity of candomblé angola, detailing a case
study carried out in a community of the terreiro Nzo Nkise Nzazi, located in the
municipality of Araquari, Santa Catarina, Brazil. Finally, through the oral narratives of
the agents who mobilize certain knowledge to maintain their belief system, we look for
pointing out a reflection in spite of the different knowledges and their modes of
perception of the physical and spiritual worlds.
Keywords: knowledge; narratives; candomblé angola; patrimony.

1
O provérbio, em língua quimbundo, comumente falado nos candomblés de modalidade angola, tem
como correspondência em língua portuguesa: “Aconselha-te com o velho, o saber do velho é grande”.
Disponível em: <http://linguakimbundu.xpg.uol.com.br/ditpop.html>. Acesso em: 25 jul. 2017.
2
Em língua quimbundo, diz respeito ao sistema de crenças do candomblé angola. Seu significado
próximo ao português seria “Casa da Força Raio” (SILVA, 2017).
3
O artigo segue as normas da revista Sankofa, para a qual foi submetido à publicação em 05 de
janeiro de 2018.
35

1.1 INTRODUÇÃO

Em linhas gerais, o candomblé4, religião de culto aos ancestrais, é demarcado


por três nações originárias de distintos grupos africanos, dos quais derivam seus
repertórios religiosos. A nação nagô/queto tem sua gênese nos povos iorubás, da
Nigéria. A nação jeje é oriunda dos fon do Benin, e a nação congo/angola –
popularmente conhecida como angola – provém dos bantos da África Central
(PREVITALLI, 2006, p. 3). Desse modo, falamos de vários candomblés de diferentes
nações5 que se espalharam pelo Brasil. Assim, interessa, neste trabalho, avaliar os
saberes tradicionais que se exercem na cotidianidade de um candomblé de
modalidade angola por meio da participação do elenco de sacerdotes que integram o
Nzo Nkise Nzazi, terreiro este circunscrito na cidade de Araquari, Santa Catarina, há
15 anos, sob a autoridade religiosa de Arildo José Silva, cuja designação religiosa
responde por Tata Kelaue6.
Vale salientar que o caráter dessa escolha se deu pelo maior apagamento da
história ligada ao candomblé de modalidade angola no Brasil. Percebemos que no
universo mítico-mágico afrorreligioso tatas, inquices, nzazis não são capazes de
mobilizar nossas memórias tanto quanto babalorixás, orixás e xangôs nos são
acessíveis. Mesmo que não tenhamos a compreensão de seus significados, esses
últimos soam-nos mais habituais. Logo, falar de saberes tradicionais de um
candomblé de modalidade angola é um exercício que demanda tratar de
apagamentos e preconceitos, mesmo em sistemas religiosos configurados mediante
o processo de diáspora sofrido pelos africanos e seus descendentes.
Por certo tempo, convencionou-se denominar de candomblé o conjunto de
crenças alusivas ao culto de orixás7, no qual circunscreve o corpo doutrinário da
nação nagô (também referida como quetu ou alaketu). Essa razão, historicamente

4
Etimologicamente, a palavra candomblé parece ter se originado de um termo da nação bantu,
candombe, traduzido como “dança, batuque” (BARROS, 2013, p. 30).
5
“O termo nação é sinônimo de raiz, ou seja, pertencer a uma nação é uma maneira de valorizar e
transmitir os fundamentos de sua ascendência, revivendo assim, as origens africanas (DANTAS, 1998,
p. 30).
6
Tata de Nkise corresponde à autoridade máxima sacerdotal dentro de um terreiro de candomblé
angola. Kelaue diz respeito à digina (nome de iniciação ritual) recebida pelo senhor Arildo José da
Silva de quando de sua iniciação (SILVA, 2017).
7
“O orixá, seria em princípio, um ancestral divinizado, que em vida, estabelecera vínculos que lhe
garantiam um controle sobre certas forças da natureza [...]. O poder asé do ancestral-orixá teria, após
sua morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um
fenômeno de possessão por ele provocada” (VERGER, 2002, p. 18).
36

construída, é eivada de significados que dizem respeito a um suposto ideal de pureza


nas religiões de matriz africana, em que se buscavam elementos que declarassem
uma relação mais próxima com a África. Dessa maneira, os candomblés de verve
queto/nagô seriam detentores dessa proximidade “intocada”.
Essa característica despertou interesse de acadêmicos e também do conjunto
da sociedade. Prandi (2005), por exemplo, reconhece o status dos candomblés de
origem nação quetu nagô em relação às demais quando se refere a eles como de
prestígio, de muitas fontes escritas e de uma etnografia produzida sobre o culto dos
orixás da Nigéria e do Benin. Para o mencionado autor, além de o culto aos orixás
dispor de uma afamada produção etnográfica, ele gozaria de uma publicidade criada
em seu entorno, produzindo assim modelos legitimamente puros da religião para
aquelas de criação mais recente ou de origem da memória perdida8” (PRANDI, 1991,
grifo nosso).
Essa posição de subalternidade imposta ao candomblé angola, que parte da
sugestão para se adotar modelos mais “autênticos” perante a “memória perdida”, não
é fruto de estudos isolados, como no caso da obra de Reginaldo Prandi9. Edson
Carneiro, outro renomado autor, alega que “foi a mítica pobríssima dos negros
bantos10 que se fusionando com a mítica igualmente pobre do selvagem ameríndio,
que produziu os chamados candomblés de caboclo11 na Bahia” (CARNEIRO, 1991, p.

8
Refere-se a candomblés de caboclo e candomblé de nação angola.
9
Além de Prandi, recorremos aqui a uma breve historiografia sobre o tema, considerando os autores
mais influentes no que diz respeito a estudos acerca do culto dos orixás. Em comparação à estrutura
nagô de culto e aos negros bantos, Nina Rodrigues (1988, p. 216) assevera: “Decorrido meio século
após a total extinção do tráfico, o fetichismo africano constituído em culto apenas se reduz ao da
mitologia jeje-iorubana. Angolas, guruncis, minas, haussás, etc., que conservam suas divindades
africanas [...] em que as suas divindades ou fetiches particulares recebem, ao lado dos orixás
iorubanos e dos santos católicos, um culto externo mais ou menos copiado das práticas nagôs”. Arthur
Ramos também recorre ao mesmo entendimento a despeito dos negros bantos, no entanto escreveu
um capítulo de nome “Sobre as culturas bantu”, em sua obra intitulada Introdução à antropologia
brasileira (RAMOS, 1961). Edson Carneiro, por sua vez, refere-se aos candomblés angola no livro
Candomblés da Bahia: “Pode-se dizer que, na Bahia, os negros bantos esqueceram os seus próprios
orixás” (CARNEIRO, 1991, p. 134). E, quando escreve sobre a formação dos candomblés de caboclo,
diz: “Foi a mítica pobríssima dos negros bantos que, fusionando-se com a mítica igualmente pobre do
selvagem ameríndio, produziu os chamados candomblés de caboclo na Bahia” (CARNEIRO, 1991, p.
62).
10
Os bantos constituíram o grupo africano trazido em maior quantidade ao país, visto que seu tráfico
teve início em fins do século XVI, minorando na década de 90 do século XVII, tendo seu cessamento
no século XIX (SWETT, 2007, p. 35). Desse modo, o referendado grupo foi o que mais significativa
influência exerceu na cultura brasileira (SILVA, 2005, p. 28).
11
“Reduzir a figura do caboclo ao índio primordial seria falso. De fato, o termo genérico de caboclo
agrupa todas as figuras ancestrais que não são de origem negro africana. O caboclo é, ao mesmo
tempo, um ancestral genérico, representante da autoctonia, e um ancestral singular, particular para o
médium ao qual convive. [...] O caboclo ocupa um lugar especial na comunicação entre vivos, mortos e
seres do além” (TALL, 2012, p. 79-93).
37

62). Essa forma de conceber tanto os candomblés de caboclo12 quanto os


candomblés de modalidade angola, originária dos povos bantos e ameríndios, advém
de um pensamento inaugurado por Nina Rodrigues (1988). As duas modalidades de
candomblé eram concebidas por ele ora como inferior, ora como arremedo dos
nagôs:

Decorrido meio século após a total extinção do tráfico, o fetichismo


africano constituído em culto apenas se reduz ao da mitologia
jeje-iorubana. Angolas, guruncis, minas, haussás, etc., que
conservam suas divindades africanas, da mesma sorte que os negros
crioulos, mulatos e caboclos fetichistas, possuem todos, à moda dos
nagôs, terreiros e candomblés em que as suas divindades ou fetiches
particulares recebem, ao lado dos orixás iorubanos e dos santos
católicos, um culto externo mais ou menos copiado das práticas
nagôs (RODRIGUES, 1988, p. 216).

Outro intelectual expoente a respeito de religiosidades de matriz africana,


Arthur Ramos (1961, p. 361) escreveu, para além de correções sobre o trabalho de
Nina Rodrigues, que os candomblés de modalidade angola seriam “sobrevivências
religiosas e mágicas de origens bantu existiam deturpadas e transformadas” em
oposição à mitologia jeje-iorubaiana, esta considerada estruturada.
O desdobramento dessas visões seria a formação de um hiato que se
apresenta entre o “candomblé dos orixás” no tocante a outras expressões religiosas –
também tributárias dos povos africanos –, mas que trazem em seu bojo o culto aos
inquices13, cosmovisão particular dos bantos com sua singular forma de
reconfiguração de crenças em conjunto com os conhecimentos ameríndios. Esse
encontro entre povos bantos e ameríndios posteriormente veio forjar o universo
mito-mágico do candomblé angola, em que se estabeleceu o “demérito” da mistura
ante a suposta pureza nagô ou as alterações na tradição (HOFBAUER, 2011).
Dantas (1998) problematiza essa questão da mistura buscando como
pavimento a ideologia da pureza, que pressupõe a existência de um estado original,
uma espécie de gueto cultural intocado por elementos estranhos. Esse estado
original de pureza diz respeito à crença na existência de um acervo original de bens

12
Segundo Ramos (1951, p. 138), “há uma modalidade de sincretismo religioso que só agora vem
tomando grande incremento, o que prova que a sua aparição é relativamente recente. É o chamado
‘candomblé de caboclo’, na Bahia, ou ‘linha de caboclo’, no Rio de Janeiro”.
13
Uma prova disso é o fato de, no início da cristianização do Congo, os catequistas, buscando uma
analogia com a cosmogonia banto, terem nomeado as imagens dos santos de inquices. Estes eram
objetos mágicos, retirados da natureza, dotados de poderes místicos, usados pelos africanos em seus
rituais (PEREIRA, 2007, p. 174).
38

simbólicos, uma continuidade da tradição da África e da fidelidade ao continente,


requisitos para a “marca dos puros”. Essa pureza nos nagôs expressa-se no culto
exclusivo aos orixás, enquanto o candomblé angola conjuga inquices e caboclos14,
ou seja, contraiu “elementos estranhos”.
Apesar de os candomblés, de maneira geral, preservarem traços de povos
originários, podemos afirmar que essa África mítica é resultante do intercâmbio de
sujeitos escravizados de diferentes etnias. À vista disso, concordamos com Hall
(2003, p. 31), quando ele afirma: “Sabemos que o termo ‘África’ é, em todo caso, uma
construção moderna, que se refere a uma variedade de povos, tribos, culturas e
línguas cujo principal ponto de origem comum situa-se no tráfico de escravos”.
Acionamos o entendimento de Raul Lody (1995, p. 2) para “nação” quando nos
referimos a dimensões simbólicas que permeiam as identidades das religiosidades
de matriz africana, aqui dinamizadas e interpretadas em concentrações etnoculturais
chamadas nações. Dizemos com isso que a história dos povos africanos, igualmente,
se constrói nos candomblés. Embora seja difícil encontrarmos a origem de muitos
dos descendentes de africanos, há um local de fala que remete a uma realidade
compartilhada gerada pela escravidão africana.
Ora, o Nzo Nkise Nzazi traz em sua configuração uma cosmovisão tributária
da interação entre diferentes etnias africanas aglutinadas no grande grupo
étnico-linguístico, “os bantos”, e no encontro entre povos (ameríndios). No mais, o
estudo possibilita identificar a construção de saberes tradicionais que são na mesma
medida produto e processo de uma relação atávica entre natureza e ancestralidade15.
Consideramos salutar esclarecer que nosso trabalho com o Nzo Nkise Nzazi
teve como base principal para a coleta de dados a metodologia da história oral. Isso
se deu por duas razões. A primeira diz respeito ao desinteresse das fontes oficiais
pela experiência popular a partir de testemunhos provenientes de suas próprias
lideranças (ALBERTI, 2013); a segunda, em função de os terreiros terem se
organizado politicamente numa esfera hierárquica, até mesmo de produção,
manutenção e transmissão de saberes. Ademais, nossos principais agentes são suas
lideranças. Esses sujeitos são aqueles que possuem, por princípios religiosos, a

14
Suas características de autoctonia, ancestralidade, sabedoria ecológica e de grande teimosia fazem
deles um intermediário privilegiado nas relações humanas com as forças do além (TALL, 2012, p. 79).
15
“A ancestralidade é o que estrutura a visão de mundo presente nas religiões de matriz africana.
Sem o princípio de senioridade, as organizações sociais das comunidades de terreiro estariam
esfaceladas. Sem a ancestralidade não haveria tradição” (OLIVEIRA, 2006, p. 118).
39

autoridade de saber e de ensinar, pois são eles os responsáveis diretos pela


manipulação de ervas, banhos, chás, infusões, cortes de animais, entre outros.
Até então restrita à comunidade afetiva, as memórias de minorias geralmente
necessitam de frestas nas relações sociais e de uma atmosfera favorável para se
revelarem. Pollak (1989) denominou esse tipo de memória de subterrânea. Por causa
de um quadro inoportuno, em que os discursos vigentes são deletérios a
determinados grupos, as memórias são compartilhadas somente no interior de
grupos sociais, sejam eles a família, associações ou núcleos religiosos. Essas
memórias podem se expressar mediante novos horizontes de expectativas. Nesse
caso, entendemos que as memórias vinculadas às identidades dos grupos podem
trazer à tona conhecimentos e valorativas objetivando a salvaguarda e a preservação
de bens culturais. Para preservar, especialmente considerando o caso brasileiro e os
mecanismos do Estado16 em relação à preservação, é preciso conhecer os modos
de fazer, de criar, de viver as diferentes técnicas artísticas e tecnológicas dos grupos
sociais.
Partindo do princípio de que o Nzo Nkise Nzazi se vincula a uma nação,
conforme apontado neste trabalho, os depoimentos dos seus membros acionam
memórias que não são exclusivas ao nzo nem as suas individualidades. Muito pelo
contrário. Seus depoentes, ao falar de suas práticas, aludem à herança ancestral de
um candomblé que cultua inquices e encantados da natureza17, que possui um corpo
doutrinário comum a outros nzos, por forjar uma grande nação, aglutinadora de
vários grupos étnicos.
Esclarecemos ainda um fator preponderante acerca da construção deste
trabalho: a ausência de uma pesquisa sistemática a respeito do candomblé angola e
de seu culto a inquices, tal qual ocorre com o candomblé dos orixás (nação

16
O Decreto n.º 3.551, de 4 de agosto de 2000, instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial, criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) e consolidou o Inventário Nacional
de Referências Culturais (INCR), com base no novo conceito constitucional de patrimônio cultural
(BRASIL, 2000).
17
Em seus estudos sobre encantados da natureza em região pantaneira, Leite (2003) afirma: “Os
seres encantados fazem parte da vida, dos medos, dos episódios, da memória, das paisagens e da
cultura da região. O termo básico e recorrente que define toda a percepção e elaboração que se
movimenta no interior do imaginário da população pantaneira na relação com os mitos e os espaços é
o termo: encantado. Não há reinos no sentido tradicional do termo, ou no sentido em que se aplique
talvez a boa parte dos contos de fada: reis, rainhas, princesas, príncipes encantados. Há mundos
submersos, sobrenaturais que se misturam com o mundo natural, social e cultural. Ainda que os seres
e os espaços sejam encantados, o reino é o da natureza e o da cultura”.
40

queto/nagô), em que a variedade de fontes e análises é consolidada. Esse


estreitamento é ainda maior nas produções acadêmicas do Sul do Brasil.

1.2 “Ô NZAZI MANHANGOLÊ, MANHANGOLÁ!”18: O NZO E SEUS SUJEITOS

O fragmento do subtítulo compõe uma zuela19 para saudação do inquice


Nzazi, para o qual o zelador do Nzo Nkise Nzazi, Tata Kelaue, fora iniciado20. É o
inquice ao qual o sacerdote da casa foi preparado que denomina o terreiro de
candomblé. A adoção de nomes relativos às deidades patronais que respondem pela
vida espiritual de adeptos as suas casas é muito recorrente nas religiosidades de
matriz africana (BARROS, 2016, p. 43).
O Nzo Nkise Nzazi apresenta-se como um terreiro de candomblé de
modalidade angola e conta com 15 anos de atuação na comunidade de Araquari. No
seu corpo hierárquico, encontra-se o Tata Kelaue, zelador e liderança do nzo. Para
auxiliá-lo na administração dos afazeres espirituais e funcionais, exercem suas
respectivas funções tatas cambonos21, makotas22, muzenzas iniciados23 e muzenzas
iniciantes24. No processo de colhimento de entrevistas e conversas mais informais, o
nzo computava 15 integrantes. Destes, seis compõem o quadro de autoridades
sacerdotais.
Em nosso diálogo acerca da história do nzo, Tata Kelaue pontua:

Eu tenho uma raiz. Nós somos massanganga de Kariolé e nosso axé


raiz, mas nosso axé é axè Beiru. Isso lá na Bahia, que é Miguel
Arcanjo. Rufino do Beiru. Os mais conhecidos. Então, eu venho dessa
raiz. De massanganga de Kariolé, que antigamente se chamava
muxicongo, mas se perdeu muitos fundamentos. Desse muxicongo
saíram várias vertentes. Nós nos transformamos pelo primeiro da raiz,
do axé Beiru, que é o bairro propriamente dito de Salvador. Que era
do nego Beiru. Era um bairro todo. O primeiro foi nego Beiru, que era
dono e iniciou Miguel Arcanjo, que iniciou Rufino, que iniciou Meirinho
da Oxum, que é a minha raiz. São meus ancestrais dentro dessa raiz,
de onde venho. Como eu costumo dizer: Nós temos nome e

18
Fragmento da cantiga devotada a Nzazi, o inquice regente do Nzo Nkise Nzazi (ADOLFO, 2010, p.
100).
19
Espécie de cantiga votiva.
20
Processo de renascimento com seu inquice. É a primeira obrigação confirmada com o inquice.
21
Status de pai no candomblé, porém eles não recebem inquices nem entidades.
22
São as mães no candomblé. Não recebem inquices nem entidades.
23
Com feitura, obrigação.
24
Sem feitura, obrigação.
41

sobrenome. Então nós temos o primeiro da raiz até chegar meu pai,
até chegar a mim (SILVA, 2017).

Pela narrativa de Tata Kelaue, podemos observar que a história do nzo está
intimamente ligada à trajetória de outras pessoas eminentes. É uma relação com o
passado que aufere legitimidade à história de sua casa e a sua própria. Segundo
Prandi (2005, p. 32), esse passado remoto, de narrativa mítica, é coletivo e fala do
povo como um todo. Passado de geração a geração por meio da oralidade, é ele que
dá o sentido geral da vida. Notamos aqui a relação de continuidade, de evocação dos
mais velhos, considerados sujeitos notáveis, e os encargos ancestrais a eles
imbuídos. Aliás, a tônica dominante em todas as narrativas alude ao passado, não
marcadamente cronológico, ao que foi “deixado”, até “chegar” a Tata Kelaue. Sendo
assim, seguimos nossas entrevistas reconhecendo e respeitando que as noções de
história, tempo, autoridade e saber são diferentes para os grupos tributários da
cosmovisão africana.

1.3 NA MINHA ALDEIA TEM CABOCLO GUERREIRO, TEM SEU REI DAS ERVAS
NO ANDARAÍ!25: OS SABERES

A nossa Bíblia taí, a natureza. E tem que saber ler. Eu tenho que
saber o que ela está mostrando pra mim. Ali tem fundamento, tem o
que aconteceu desde o começo do mundo. O que fala quando vai se
dar uma tempestade, quando que vai acabar a água. Não precisa
alguém escrever. Se eu tirar isso aqui, então vai fazer mais calor. O
vento vai derrubar minha telha, porque aquilo não está me
defendendo, eu tirei. Então tudo é você saber ler. Não precisamos ter
uma Bíblia. Candomblé angola precisa ter conhecimento (SILVA,
2017).

Quando falamos em tradição nos sistemas religiosos de matriz africana,


referimo-nos a saberes herdados e transmitidos pela oralidade. A narrativa de Tata
Kelaue a respeito de como se organizam os saberes em um candomblé angola é
corolário a esse argumento. Essa tradição não se refere à herança da estrutura
físico-espacial das instituições nativas africanas, mas a valores e princípios
organizados mediante uma diáspora (OLIVEIRA, 2006, p. 85). Verifica-se em sua
narrativa, a priori sobre saberes, a demarcação da diferença, aspecto característico

25
Fragmento de zuela relativa aos saberes mágicos de caboclos, entidades que se apresentam em
avatares de índios e boiadeiros detentores de saberes sobretudo medicinais.
42

do princípio da identidade, que se constrói em relação à alteridade. É diante da


diferença do outro que a minha diferença aparece (OLIVEIRA, 2006, p. 85). “A nossa
Bíblia taí. [...] Não precisamos ter uma Bíblia” (SILVA, 2017).
Então, quando pensamos na perspectiva de herança, devemos considerar a
produção dessa cultura na história de um povo, cujo tratamento dispensado a sua
crença constantemente se desvalorizou em função de seus testemunhos, passados
de geração em geração, se pautarem na oralidade. Todo saber no candomblé é
transmitido pela oralidade; não existem cursos, preleções ou ensinamentos que não
se expressem por intermédio da palavra. Embora o senso comum acredite que a
oralidade esteja relacionada à ausência de escrita, é salutar compreender que a
oralidade faz parte de uma cosmovisão26. Segundo Hampaté Bâ (1980, p. 181),

Quando falamos de tradição em relação à história africana,


referimo-nos a tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a
história e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se
apoie nessa herança de conhecimentos de toda espécie,
pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo
ao longo dos séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na
memória da última geração de grandes depositários de quem se pode
dizer são a memória viva da África.

No Brasil, com a reconfiguração dos sistemas de crença dos povos africanos,


a oralidade ainda mantém seu status dentro dos terreiros. Embora pululem no
mercado literário desde dicionários de língua quimbundo e iorubá a obras que
ensinem a desenvolver trabalhos de abertura de caminhos e rituais de limpeza,
conhecidos por ebós27, os saberes são sempre vivenciados no conjunto e obedecem
ao tempo de cada um, que geralmente é o tempo das iniciações e suas obrigações
na religião.
Ainda sobre a narrativa de Tata Kelaue sobre os saberes e a demarcação da
diferença, podemos perceber a trajetória que perfaz a memória em seu constante
movimento de vaivém. Elementos do presente são sempre incorporados ao passado.
Nesse caso, o local de origem da memória parte de um mal-estar que acontece no

26
Cosmovisão, além de significar uma visão ou concepção de mundo, expressa também uma atitude
perante a ele. Portanto, não é uma mera abstração, já que a imagem que o homem forma do mundo
possui um fator de orientação e uma qualidade modeladora e transformadora da própria conduta
humana. Implícito em toda cosmovisão há um caminho de ação e realização (CREMA, 2015, p. 17).
27
“O sentido de fazer ebó tem uma grande amplitude, porque ele faz parte de rituais que permitem o
fortalecimento da vida espiritual, como também faz parte dos rituais que ajudam [a] afastar forças
negativas, que trazem instabilidade” (BARROS, 2016, p. 95).
43

presente28. Isto é, ao falar da organização dos saberes no espaço do nzo, Tata


Kelaue aciona um sinal distintivo de sua religião: “A nossa Bíblia taí, a natureza”
(SILVA, 2017).
O saber no candomblé angola, conforme relata Tata Kelaue, também é “lido”,
mediante ensinamentos que outros – os ancestrais – deixaram. Outro elemento
constituinte dos saberes no candomblé angola é o das relações entre todos os seres
vivos, num processo sistêmico e holístico da vida.
Compreendemos também por meio dessa narrativa e de todas as outras que
compuseram nosso trabalho que os saberes não se resumem à instrumentalização
de técnicas. É salutar reconhecer que esses saberes são edificados por
componentes históricos, geográficos, medicinais, culturais, mas, sobretudo,
espirituais e mágicos29. Para Tata Kelaue (2017),

Muitos vêm só pra tomar um banho. Só pra pegar uma energia. Vou
pra tal lugar, queria pegar uma energia. Tem coisas que você ensina.
Coisas simples você ensina. Outros elementos, não. Tem coisas que
você tem que manipular com sua energia. Que precisa pra uma outra
coisa, pro reequilíbrio dele mesmo. Tem banhos que eu tenho que
macerar, eu preciso falar, eu tenho que pegar essa coisa do inquice e
colocar minha energia. Eu tenho que escolher as ervas para que vai
servir pra essa pessoa. Tem folhas que eu não posso colocar pra todo
mundo. Tem folhas que são específicas pra um. E tem folhas que
podem se misturar pra todo mundo tomar banho. Porque, se eu der
uma folha pra uma pessoa, eu posso desequilibrar. Porque a pessoa
já está desequilibrada, e eu dou qualquer folha pra essa pessoa,
inclusive tóxica, eu desequilibro ela mais ainda, a energia dela. Mas
mesmo a tóxica pode ser usada. Isso é nós manipulando. Isso eu não
tenho como ensinar pra essa pessoa que vem. Só pra pessoa que se
inicia, pra ela saber cuidar do outro lá fora.

Trabalhar com saberes tradicionais numa perspectiva religiosa e cosmogônica


implica o entendimento de que muitos relatos são indicativos sobre suas práticas.
Nada é descritivo como em um relatório de dados. Cunha (2007), problematizando o

28
O episódio mais recente de reificação das religiões de matriz africana deu-se em resposta a uma
ação do Ministério Público Federal que solicitava a retirada de vídeos no canal YouTube por entender
que seus conteúdos feriam as práticas religiosas de matriz africana. À época (março de 2014), o juiz
Eugênio Rosa de Araújo, da 17.ª Vara Federal do Rio de Janeiro, afirmou em sentença que “ambas
manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto
base (corão, bíblia etc.) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado”.
Mais informações disponíveis em:
<https://allisoncosta.jusbrasil.com.br/artigos/188967916/violacao-a-liberdade-de-crenca-religiosa>.
Acesso em: 27 jul. 2017.
29
Para Hampaté Bâ (1980, p. 186), a palavra magia é tomada no mau sentido, enquanto na África
designa unicamente o controle das forças.
44

conhecimento tradicional, refere-se a vários regimes de saberes, com seus


processos particulares e protocolos. Por sua vez, os membros do Nzo Nkise Nzazi
reconhecem o que é qualificado como conhecimento em nossa sociedade e criam
para si uma teia protetora e autodefensiva (ALBERTI, 2013) em seus testemunhos,
de modo a não falar de fundamentos mágicos que circundam os saberes. Fala-se em
manipulação de energias, mas não de seus métodos.
No caso do Nzo Nkise Nzazi, há toda uma acuidade dos seus adeptos em não
compartilhar conhecimentos muito específicos, a fim de resguardar tanto seu
conhecimento quanto a lógica da manipulação de forças. Na fala de Tata Kelaue,
percebemos que seus conhecimentos sobre folhas e ervas repousam numa relação
que é orgânica a sua condição religiosa e mágica no candomblé. Por isso, sua
explicação incide na separação do que pode ser ensinado a terceiros e o que precisa
ser manipulado: “Há coisas que se ensina; outras, sua energia particular, conectada
a seu inquice” (SILVA, 2017). Estão conjugados nesses saberes os conhecimentos
prático, empírico, mas também o espiritual. Para Rocha (2009), essa percepção dos
mitos enquanto experiência no tempo vivido aproxima todas as esferas para além
das relações entre seres humanos, animais e vegetais, circunscrevendo-se assim os
espíritos e o sobrenatural de forma coerente e integrada.
De acordo com Eliade (1992), todo o cosmos pode ser a manifestação do
sagrado para povos pré-modernos. Pari passu, o homem moderno percebe a
dessacralização do ambiente. Ou seja, o mundo torna-se homogeneizado, com uma
finalidade utilitarista. Mediante a exposição de Rocha (2009), podemos perceber que
para os sujeitos que professam religiões de matriz africana toda a natureza pode ser
sacralizada e, por isso, manipulada pela ação de seu inquice, conforme a narrativa de
Tata Kelaue. Tudo pode ser uma manifestação do sagrado, pois ela saiu das mãos
das deidades.
Por essa ótica, fica patente a definição do sagrado para esses grupos sociais,
os quais mantêm na natureza sua religação com a criação por meio do contato com
elementos que servem de conexão entre o mundo visível e o mundo invisível. O
próprio corpo humano torna-se ponte entre os mundos, portanto um elemento
sagrado, quando o preparo de banhos, ervas e beberagem necessita da mão de Tata
Kelaue, este consagrado a um inquice, revelando saberes que se arvoram em
diferentes vieses, formando um todo.
45

Numa perspectiva histórica, esses saberes medicinais relacionam-se com a


rota do comércio escravo. Segundo Albuquerque (2002), certa variedade de plantas
utilizadas hoje nos rituais afro-brasileiros tem suas raízes intimamente ligadas aos
costumes tradicionais dos africanos e gradualmente foram assimiladas pelos
brasileiros. Para Verger (1995), no candomblé a coisa mais importante é a questão
das folhas, das plantas usadas no momento em que se faz a iniciação. A natureza
está sempre presente na cerimônia. Antes de se fazer a cerimônia, toma-se banho de
certas plantas para ter esse axé, essa força que está dentro das plantas. Embora se
tenha o registro da farmacopeia africana, poucos são os trabalhos, em língua
portuguesa, que trazem a lume a ligação entre propriedades terapêuticas e a
manipulação mágico-espiritual que as envolve.
Inserida no âmbito dos saberes tradicionais, está a confecção das oferendas
votivas, que também se apropriam de ervas, plantas, sementes e raízes. Sobre a
relação que o candomblé angola mantém com outros espaços além de seus muros,
mais especificamente no que tange aos espaços destinados às oferendas, Tata
Kelaue fez o seguinte relato:

A gente tem que se inserir no todo. A encruzilhada tá pra mim como o


mar está. Como a mata tá, como meu espaço tá, onde eu estou
pisando está. Esse elemental, esse inquice, ele está nas matas, está
na encruzilhada, está comigo, está aqui dentro, está aqui no meio da
nossa conversa. Eu preciso desses espaços. O espaço é como um
todo. Nós vivemos de um todo. [...] Eu não posso levar um material
que não se dissolva. E esse elemental vai nos cobrar. [...] A terra vai
comer, essa comida vai adubar a terra. Pássaros vão comer, bichos
rasteiros vão comer, o que vive na natureza vai comer e se apossar
daquele alimento. Tudo é uma troca na verdade. Eu estou dando pra
um elemental, estou indo buscar aquela força, mas estou dando pra
um todo, pra que árvore frutífera dê vida, dê alimentos aos pássaros.
Tudo é uma troca. Eu coloco o líquido ou no potinho de barro, ou no
cuité, mas nunca em coisa que não se dissolva. Tem folhas na mata
que você manipula. Até faço um copo natural, faço um buraco, coloco
as folhas e despejo o líquido, pra se misturar as energias. É esses
saberes que vêm lá de trás, quem tá fazendo errado aqui na frente ou
não aprendeu ou tá se desvirtuando, porque o capital, né? Porque
tem que comprar. Toda vez que eu vou na cachoeira, eu tenho que
deixar o ciclo da água correr, não posso impedir. Quando chego na
mata, eu peço licença antes pra entrar, seja Cabila, Mutakalambo,
Catendê, sejam os caboclos. Muitas vezes é uma folha só, não
precisa arrancar o pé. Porque tudo tem dono (SILVA, 2017).
46

Um dos conflitos expressivos no campo das regulações dos espaços,


sobretudo refratários às práticas ritualísticas dos adeptos de religiões de matriz
africana em geral, diz respeito ao uso e aos problemas causados ao meio ambiente.
Diferentemente de alguns sistemas religiosos, normalmente as religiões de matriz
africana possuem uma relação atávica com o meio ambiente; o culto extrapola seus
próprios muros ou espaços edificados. Lembramos que, no caso do candomblé
angola, tributário da cosmovisão banta, o sujeito, os elementos e os espaços
configuram um todo coerente e integrado (ROCHA, 2009).
Gerson Machado (2014), ao propor uma reflexão a despeito das trajetórias e
estratégias das religiões de matriz africana e sua relação com a cidade de Joinville,
Santa Catarina, também levanta essa problemática da sacralização de espaços
“extramuros” como a ampliação de local do culto, não restrito à sede litúrgica. Assim,
o autor trabalha com o conceito de “territórios descontínuos”30 de Rêgo (2006), para
a compreensão dos diversos rituais que excedem o represamento das práticas ao
espaço que sedia os ritos em Joinville.
Na narrativa de Tata Kelaue se observa a necessidade visceral de uso e
manipulação de vários espaços: encruzilhadas, mar, mata, o próprio nzo, sem a
hierarquização deles. Em sua fala, esses espaços e elementos constituem um todo.
Para Hampaté Bâ (1980), esse todo faz alusão à vasta unidade cósmica, em que
tudo se liga, tudo é solidário, tendo em vista que esses grupos tributários da
cosmovisão africana postulam uma visão religiosa do mundo sobre todas as coisas.
Não por acaso, mas de forma preconceituosa, Luciano Gallet31 (1934), folclorista,
referiu-se ao fetichismo dos negros bantos, que deram origem ao candomblé angola,
como “meros adoradores de pedras lascadas”.
Ao analisar o conteúdo da narrativa de Tata Kelaue, reportamo-nos ao
exemplo dado por Meneses (2012) sobre a anciã que, imersa em oração no interior
de uma catedral, é admoestada por um guia turístico dizendo que ela está
perturbando a visitação dos turistas. Notamos que certos sujeitos, muito embora
forjem sua identidade por intermédio do hábito, não são reconhecidos. Para o autor, o

30
São considerados territórios descontínuos do candomblé os ambientes rituais complementares,
aqueles pertencentes à área interna dos terreiros, podendo ser mata, rio, lago ou até mesmo o mar. Ao
serem vistos como evocativos do espaço físico, são entendidos como espaços úteis e reservados aos
rituais (RÊGO, 2006, p. 72).
31
Falando sobre os cambindas e bantos, Gallet (1934, p. 58) escreve: “Considerados pelos outros,
inferiores, imitadores e ignorantes. Desconhecem até o próprio idioma, complicado e difícil, e o
misturam com termos portugueses. Adoram as pedras, os paralelepípedos e as lascas de pedra”.
47

uso que a velhinha faz do bem cultural é qualificadamente existencial, por oposição
ao “uso cultural” dos turistas. Segundo o autor, ela poderia ser reconhecida como o
protótipo do habitante: no sentido de “habitar”, possuir, manter relações com alguma
coisa, apropriar-se, diferentemente dos visitantes, que não possuem ligação orgânica
com os lugares.
A fala de Tata Kelaue também ressalta não apenas o uso do lugar, mas a
ligação entre o espaço físico e o religioso, em que se trocam energias. Ou seja, não
se trata apenas de um lugar qualquer para depositar oferendas. Há todo um cuidado
com o ambiente que revela saberes no trato com os alimentos votivos, com os
animais que o consomem, com as árvores. Observa-se ainda que é dos próprios
espaços donde se extraem os recursos para a confecção dos artefatos que esses
atores conduzem a oferenda. Os copos confeccionados de coco (cuité) ou folhas
para recebimento de oferendas de consistência líquida dão indícios dessa relação
orgânica com o meio ambiente.
Outro depoimento selecionado para este trabalho foi o do Cambono32 Rafael
Hasselmann, suspenso por Matamba33. Sobre o procedimento e encaminhamento
das oferendas em espaços para além da sede do culto, Rafael relata:

Não se leva pra natureza nada artificial, pois é algo morto, não existe
troca de energia. E vou dar um exemplo que eu gosto muito, porque é
da cabocla Jupira, e eu gosto muito dos caboclos. A força desse
ancestral brasileiro me dá segurança que eu participo desse lugar. [...]
Então se deu início ao preparo dos alimentos que iriam compor a
oferenda para [a] cabocla. Foi assado o peixe na folha de bananeira,
foram lavadas as frutas, acompanhamos o Tata Kelaue, a muzenza,
que é o cavalo da cabocla Jupira, eu e o Tata pocó Geraldo. Fomos à
mata, pedimos licença, permissão pra entrar, e fomos ao pé de uma
árvore grande, na qual preparamos a mesa para arriar a oferenda.
Esse chão antes de arriar é feito a mesa, que são folhas de bananeira.
As frutas e o peixe foram postas em cima da mesa. [...] Nessa energia
quem veio receber foi a própria cabocla Jupira. [...] É uma força que
você sente a energia, você se sente bem, porque está toda a força da
natureza ali. Tudo aquilo, o verde, o balançar das folhas, aquela mesa
bonita, nossa energia também, a presença da Jupira. E sabemos que
ela não está sozinha, porque todos os caboclos estão ali. Essas
coisas ainda me arrepiam (HASSELMANN, 2017).

32
Braço direito do tata de inquice, ou Tata Kelaue.
33
Divindade correspondente aos ventos e às tempestades.
48

Embora haja uma abertura nas relações sociais para que certas memórias e
esclarecimentos venham à tona, é incontestável a necessidade dos sujeitos desse
trabalho de declarar já no início do nosso diálogo vivências ou singularidades que
demarquem diferenças. Na fala do Cambono Rafael reside a preocupação em afirmar
aquilo que se sabe ser o discurso hegemônico: o mal-uso dos espaços pelos
religiosos de matriz africana conforme representado nas grandes mídias, por
exemplo. Aqui também temos um indicativo de como os saberes se exercem perante
a eminência de uma entidade do nzo, a cabocla Jupira. A manifestação desse
encantado ocorre mediante a conexão entre oferendas, sujeitos e espaços.
Nessa narrativa, em termos práticos se tem uma pequena amostra de como os
trabalhos e as oferendas são importantes para evocar as entidades que integram um
sistema de crenças que faz sentido a uma comunidade.
A narrativa também traz a lume a importância dos caboclos que participam do
panteão do candomblé angola. Por determinado tempo, o culto ao caboclo foi
considerado por intelectuais como objeto de desprezo por representar a mistura entre
negros bantos e indígenas, diferentemente dos candomblés de origem jeje-nagô, que
conservavam uma pretensa pureza da África. “O culto a caboclo nos candomblés é
uma temática que, até hoje, se reveste de mistério e até mesmo certo silenciamento
por parte de seus integrantes” (CARNEIRO, 1991, p. 62). Na primeira metade do
século XX, foi considerado por Carneiro (1991, p. 62) como “um processo sincrético
afro-ameríndio”, ou, no caso da interpretação de Querino (1938, p. 1.170), “uma
variante do candomblé jeje-nagô que incorporou elementos indígenas”. Esses
pensamentos contribuíram para estabelecer uma dicotomia entre os candomblés de
tradição africana – a saber, os “impermeáveis” candomblés jeje-nagôs – e os
candomblés de origem bantu – Angola e Congo –, “mais propensos às ‘influências
externas’ do que os primeiros” (MENDES, 2014, p. 122).
A oferenda para o caboclo relatada pelo Cambono Rafael demonstra-se
excepcionalmente relevante para o cotidiano dessas comunidades que reconhecem
na experiência citada a construção de sua própria identidade. Assim, o conceito de
identidade para análise das narrativas tem como fundamentação teórica a reflexão de
Gomes (2005). Ela se refere a um modo de ser no mundo e com os outros. A autora
relaciona os fatores que incidem em sua construção que dizem respeito a referências
civilizatórias, práticas festivas e comportamentais, rituais e alimentação. Para o
49

Cambono Rafael, ritual, oferenda e troca de energias com os caboclos revelam um


pouco da sua identidade no grupo.
No candomblé angola, várias dimensões são envolvidas na construção de sua
identidade, incluindo a natureza. Até porque o sentido de natureza, nessa concepção,
não aparta o homem, nem mesmo “os que se foram” e que se tornaram encantados
da natureza, como o caso dos caboclos. Sobre essa concepção holística de natureza,
Pelizzoli (2013) chama a atenção para um antigo conceito de Anima Mundi para
explicar que a natureza, para certos povos, não se reduz a estados de alma; a
natureza seria nosso corpo também, cuja energia não é nossa, e sim resultante de
processos familiares/antepassados e de gerações futuras.
Reiteramos que os saberes no candomblé angola se constituem por
conhecimentos botânicos, alimentares, medicinais, históricos, culturais e espirituais.
A fala mencionada exemplifica como são conjugados todos os saberes, que não são
tomados de forma isolada. Para o candomblé angola, o olhar para o mundo
pressupõe um todo interligado que funciona em conjunto.
A cosmologia dessas religiões é a principal fonte de inspiração para a
preservação de rios, riachos, montanhas, entre outros espaços verdes, uma vez que
considera esses espaços como de evocação da força ancestral. No caso do
candomblé angola, do qual se trata esta pesquisa, cada inquice é particular detentor
de um campo natural, como já dito, sendo este imaculável.
Delphim (2010), ao propor um novo olhar sobre as paisagens, destaca o
conteúdo da Carta do Espírito dos Lugares, do Conselho Internacional de
Monumentos e Sítios (Icomos), que diz respeito ao reconhecimento “da importância
das dimensões intangíveis do patrimônio e o valor espiritual dos lugares” (DELPHIM,
2010, p. 32). Segundo ele, paisagens não são somente lugares, e sim fontes de
inspiração para “diferentes estados de espíritos” em que a preservação das
paisagens ocorre em função de práticas sociais e espirituais, assegurando assim a
conservação de aspectos físicos, naturais e visuais. Segundo o autor, “as pessoas
mais simples acreditam que certos lugares são habitados por criaturas fantásticas”
(DELPHIM, 2010, p. 31). Em vista disso, por exemplo, a carta da Icomos possui em
sua declaração um “conjunto de medidas tomadas por órgãos patrimoniais”
(DELPHIM, 2010, p. 31) que consideram para a preservação de lugares os valores
considerados intangíveis, como “memória, crença, conhecimento tradicional, formas
50

de ligação ao lugar e as comunidades locais guardiãs desses valores em consenso


com a Convenção do Patrimônio Mundial de 1972” (DELPHIM, 2010, p. 31).
Dessa forma, como na percepção de Delphim (2010) acerca de paisagens
dotadas de valores espirituais, não podemos deixar de dizer que na concepção banta
os lugares são de domínio dos inquices, que canalizam suas forças em matas, rios,
cachoeiras, estradas, ervas.

1.4 É FOLHA DE UNGIRA34!

O relato a seguir alude às formas de transmissão de saberes no candomblé


angola. Tata Kelaue esclarece-nos que alguns ensinamentos são repassados em sua
raiz, massanganga de Kariolé:

Vem passando a maneira de zuelar pro inquice. Isso vem de geração


pra geração. Os angoricis, que são as rezas, isso foi aprendido lá de
Miguel Arcanjo até passar pra mim. E muitas coisas desde o processo
iniciático é passado pelo meu inquice, meu caboclo. E claro que pode
ser diferente, mas o objetivo é igual. [...] Quer ver uma folha que é
manipulada sobre a terra e hoje a homeopatia está usando e tem uma
briga aí? A cannabis. Cannabis é uma folha de Ungira. Ungira já
passava o poder curativo pros nossos ancestrais. [...] É folha de
Ungira! Vem de África, vem do índio (SILVA, 2017).

Destarte, tomamos nota que o conhecimento nem sempre ocorre pela via da
linhagem35; há saberes cujo veículo está relacionado à ligação com o divino.
Consoante ao que vimos percebendo neste trabalho por meio das narrativas orais, os
saberes em um candomblé não são um apanhado de processos de
ensino-aprendizagem baseados na racionalidade técnica. Cunha (2007), ao refletir
sobre as diferenças entre conhecimento científico e conhecimento tradicional, versa
acerca do utilitarismo que o conhecimento científico imputa ao conhecimento
tradicional. Segundo a autora, a ciência moderna hegemônica usa conceitos, e a
ciência tradicional, percepções. É a lógica do conceito em contraste com a lógica das
qualidades sensíveis (CUNHA, 2007). A autora enfatiza que os protocolos dos
sistemas de conhecimento tradicional têm suas próprias regras de atribuição de

34
Nos candomblés de nação angola, segundo Tata Kelaue, folha de Ungira é o nome atribuído a
cannabis sativa. Ungira, segundo ele, é um encantado da natureza, senhor do caminho, das
encruzilhadas e do movimento.
35
Com as reconfigurações diaspóricas, a linhagem nos candomblés compõe-se pela família espiritual,
e não mais pelo familiar patrilinear ou matrilinear.
51

conhecimentos, que podem ou não ser coletivos, esotéricos ou exotéricos.


Independentemente dos axiomas científicos e das validades do conhecimento, é
importante reconhecer que tais saberes implicam as memórias e a formação da
identidade de um grupo social.
Quanto ao uso de ervas consideradas tóxicas ou não, Tata Kelaue explica que
há um processo de manipulação em que se evocam as forças ancestrais,
representadas em sua fala por Katendê36 e Nsumbu37, por serem os inquices
responsáveis pela transformação dessa energia. Ele frisa ainda que o uso da
cannabis não se dá pela recreação, mas pelo seu valor terapêutico.

E muito foi meu próprio caboclo, meu próprio Ungira, que explicou o
que fazer, para que se comunique com o divino, não para uso
recreativo. Na forma in natura de se fazer um chá, uma beberagem,
um banho. [...] Essa folha é-nos passado pelos nossos avós, mas
também pelos nossos encantados. A gente sabe a porção que tem
que dar, porque foi testado lá atrás. Nós sabemos usar e temos a
energia dos inquices e dos encantados. Você tem que manipular ela.
Vem de África, vem do indígena. [...] Essa força é Katendê! Esse
elemental chamado Katendê é pra ele que nós pedimos, auxiliado por
Nsumbu, pra fazer a cura. A gente sabe porque está dando, não
interfere nos remédios alopáticos (SILVA, 2017).

Por algum tempo o uso de substâncias tóxicas nos terreiros de candomblé foi
reduzido à indolência. Conforme Dória (1986, p. 5), em Alagoas, por exemplo, a
maconha era utilizada “nos sambas e batuques, que são danças aprendidas dos
pretos africanos”. Heitor Péres (1958, p. 68), ao localizar os sujeitos que fazem uso
da maconha, indica-nos finalidades ritualísticas, cosmogônicas e religiosas também.
Para o autor, os estados nordestinos contavam com uma “maior influência africana” e
predominavam “magia e misticismo” nos rituais. O “ambiente do vício” era composto
do “coro dos companheiros”, que entoavam os “cânticos negros” com “religiosidade”
(PÉRES, 1958, p. 68, grifo nosso). Em investigações históricas, buscando-se a
origem da maconha no Brasil, “aporta-se” em Angola, que, segundo Mott (1986, p.
124), era “terra de muita maconha”. Ainda de acordo com o autor, o hábito de
consumir maconha dava-se pelo pó torrado, marcando presença em casas de culto
afro-brasileiras. A planta no estado de pó provavelmente também ficou conhecida
como fumo de Angola posteriormente.

36
Inquice dono das folhas (LOPES, 2005, p. 243).
37
Inquice dono da cura e da doença (LOPES, 2005, p. 243).
52

Mais tarde, Verger (1995) elencou a Cannabis sativa L. como uma erva
partícipe dos cultos religiosos. Na língua iorubá respondia pelo nome de igbó, e seu
nome vulgar lista como maconha ou cânhamo-verdadeiro. Esse estudo apresenta
uma série de 400 receitas separadas por “objetivos” da maconha em cultos
afro-brasileiros: uso medicinal – analgésico, anestésico, cicatrizante, entre outros –,
alusivo à contração da gravidez e ao nascimento e relacionado às divindades, além
de orós38, para uso benéfico, maléfico ou de proteção contra mazelas. Para Verger
(1995, p. 419), “alguns estimulantes produzem uma energia poderosa, que por ser
exagerada altera o equilíbrio das pessoas e pode levar à loucura. Babalaôs e
curandeiros têm receitas para provocá-la e curá-la”.
É salutar reconhecer na fala de Tata Kelaue a importância da história oral
como forma de ouvir as histórias e memórias de grupos sociais excluídos ou
destituídos de seu conjunto de valores, até mesmo como ferramenta valiosa na
direção da negociação de identidades que lhes foram impostas. Se, por um longo
período da história dos africanos trazidos ao Brasil, a discussão em torno de seus
“aparentes” costumes se pautou pela indolência e vício, no tempo hodierno podemos
fazer uso de testemunhos direitos e entender os significados que são atribuídos a
práticas consideradas marginais. Para além dos significados, compreendemos que
essas narrativas podem se inserir entre os bens patrimoniais a serem preservados
pela comunidade e contar com a salvaguarda do Estado brasileiro.

1.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Exploramos aqui algumas dimensões que permeiam os saberes que se


exercem em um terreiro de candomblé angola. Buscamos compreender certas
particularidades desses saberes que compõem o conjunto de bens patrimoniais do
candomblé angola por meio das narrativas de seus agentes.
O candomblé angola, bem como a umbanda, o candomblé de caboclo, entre
outras manifestações religiosas, por se distanciar do padrão exemplar “nagô”, foi
considerado desinteressante como campo de estudo. No caso específico do
candomblé angola, além de a mística banta ter sido taxada como “pobríssima”, seu
corpo ritual foi percebido, nesses trabalhos, como “mais ou menos copiados da
prática nagô” (RODRIGUES, 1988, p. 216).
38
Trabalhos espirituais.
53

Por intermédio de uma visão de tradição que não comporta nem mesmo a
adaptação que os grupos étnicos tidos como “puros” também sofreram, verificamos o
desinteresse por esses grupos e, consequentemente, a falta de entendimento acerca
da dinâmica de seus patrimônios. Não podemos negar na construção desse
imaginário o protagonismo dos intelectuais afeitos aos africanismos, que
cristalizaram processos culturais mediados pela ideia de pureza. Essa ideia, por sua
vez, está arraigada na ideia de poder, visto que nesse sistema religioso classificar os
terreiros em puro e misturado é também uma forma de demarcar o espaço de cada
um, imputando, desse modo, legitimidade e hegemonia conforme uma classificação
hierárquica.
Ao trazer a lume determinadas narrativas de seus protagonistas, encontramos
elementos comuns a outras nações de candomblé. Concomitantemente, tivemos a
compreensão de algumas de suas particularidades, como a deferência à presença de
caboclos, seja na narrativa de Tata Kelaue, seja na narrativa de Tata Cambono
Rafael; ambas deixaram clara a importância que essa entidade possui na construção
do seu processo de pertença ao grupo.
Pelo que entendemos das narrativas, especialmente a do Tata Kelaue, seus
saberes não são restritos ao seu grupo afetivo. Muito embora exista um corpo
doutrinário cujo saber tem uma autoridade e respeite os processos iniciáticos no
interior da comunidade, muitos de seus saberes são compartilhados com membros
de outras comunidades que venham solicitar-lhe auxílio. O saber a despeito das
plantas e ervas medicinais, bem como seu manuseio, conforme seu relato, é
socializado em muitos casos com sujeitos não pertencentes à religião.
O nosso trabalho teve como objetivo trazer para o campo patrimonial as
especificidades dos saberes de um candomblé de modalidade angola, que no seu
conjunto formam o patrimônio de seus filiados. Esperamos contribuir com outros
estudos numa ruptura com a lógica denunciada por Giroto (1999), na qual
historiadores e antropólogos insistem em concentrar suas atividades intelectuais
exclusivamente quanto aos candomblés de tradição jeje-nagô39. A manipulação da
natureza, também reincidente nos relatos, faz referência a aspectos mito-mágicos
desse tipo de saber. Não pretendemos nesta investigação trabalhar as validações

39
Declara o autor: “Uma correção se faz necessária: os intelectuais continuam, com poucas exceções,
a produzir o desvio antropológico de privilegiar somente a contribuição jeje-nagô, influenciando
sacerdotes e adeptos” (GIROTO, 1999, p. 313).
54

dos conhecimentos científicos, mas sim redimensioná-los nos debates sobre os


patrimônios salvaguardados pelo Estado, ou somente pelas comunidades dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Entendemos a vulnerabilidade
em que se encontram alguns desses patrimônios, que são ricos em história, memória
e saberes, mas ao mesmo tempo resistem em meio a perseguições, intolerâncias,
ameaças de toda ordem, seja pelos indivíduos que compõem a sociedade, seja por
intermédio de canais do Estado. A cosmologia dessas religiões tem como principal
fonte de inspiração os espaços verdes, considerando-os espaços de evocação da
força ancestral. Cada inquice é particular detentor de um campo natural, sendo este
imaculável.
Para os adeptos dessas religiões, tudo é sagrado; não somente o templo físico,
de concreto ou madeira, mas tudo o que diz respeito à natureza. A mata,
especialmente, é catalizadora de moio, a força vital, que movimenta as pessoas. É da
mata que se retiram folhas, raízes e sementes, para a elaboração de infusos, chás,
garrafadas, abrindo cura para doenças espirituais e da carne.
Desse modo, acreditamos que os saberes tradicionais do candomblé angola
trazem elementos importantes para as discussões sobre a preservação de um
patrimônio ambiental não oficial fortemente sombreado, e seus atores constroem
uma rede de solidariedade e préstimos à sociedade envolvente, seja na socialização
de saberes, seja no entendimento da preservação do meio ambiente.

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2 NGUDIÁ N’ZAMBI: SABERES TRADICIONAIS E O CORTE DE ANIMAIS NO
CANDOMBLÉ ANGOLA1

Resumo:
É objeto deste artigo a realização de um estudo sobre os cortes de animais como
parte do circuito de oferendas do terreiro de candomblé angola Nzo Nkise Nzazi,
circunscrito no município de Araquari (SC). Mediante as narrativas orais de sujeitos
que compõem o corpo hierárquico do aludido terreiro, busca-se trazer à tona os
saberes tradicionais que envolvem a prática de corte dos animais, a qual atua como
mecanismo de comunicação entre os membros do referido terreiro e suas divindades.
Consideram-se os cortes de animais indissociáveis desse sistema de crença, com
base em uma visão integradora entre sujeitos, divindades, objetos e natureza,
reconhecendo no ritual um modo particular de conceber o mundo espiritual e as
necessidades biológicas e culturais de seus agentes.
Palavras-chave: candomblé angola; saberes tradicionais; corte de animais;
alimentação; natureza.

Abstract:
It is object of this article to conduct a study on the animals cutting as part of the circuit
of offerings of the candomblé angola terreiro Nzo Nkise Nzazi, circumscribed in the
municipality of Araquari, Santa Catarina, Brazil. Through the oral narratives of
subjects that make up the hierarchical body of the aforementioned terreiro, it is sought
to bring to the fore the traditional knowledge that involves the practice of cutting
animals, which act as a communication mechanism between the members of the said
terreiro and its deities. The animals cutting is considered inseparable from this belief
system, from an integrative view among subjects, deities, objects and nature,
recognizing in the ritual a particular way of conceiving the spiritual world and the
biological and cultural needs of its agents.
Keywords: candomblé angola; traditional knowledge; animals cutting; food; nature.

2.1 INTRODUÇÃO

Parte importante da cotidianidade de um terreiro de candomblé2 envolve a


confecção de oferendas,3 que requer práticas coletivas e são por vezes
encaminhadas em locais públicos, como praias, encruzilhadas e matas. Tais

1
O artigo segue as normas da revista Afro-Ásia, para a qual foi submetido à publicação em 06 de
janeiro de 2018.
2
Os candomblés surgiram nos antigos terreiros baianos, fundados por sacerdotes africanos – angolas,
congos, jêjes, nagôs – iniciados em suas religiões tradicionais, que ensinaram a norma dos ritos e o
corpo doutrinário para as comunidades que se formavam em torno da religiosidade que preservava
“certos traços da cultura, particularidades de dança, música, canto, organização de festas, que os
identificavam com a região de origem” (Ivete Miranda Previtalli, “Reflexões sobre hibridismo,
sincretismo e tradução no candomblé angola paulista”, Ponto & Vírgula, (2013), pp. 21-40).
3
As comidas são elaboradas, requintadas na forma, no ordenamento do preparo ou na simplicidade
aparente de um despojamento prescrito pelo mito, uma vez que atrás de cada oferenda alimentar está
o mito que a prescreve pelas práticas divinatórias (Vivaldo da Costa Lima, A anatomia do acarajé e
outros ensaios, Salvador: Corrupio, 2010, p. 149).
59

oferendas, que se encontram mediadas por saberes tradicionais e cujo preparo se


adquire por meio das cosmologias4 singulares de cada nação5 de candomblé,
possuem como aspecto importante na configuração identitária de sua comunidade o
hábito da alimentação. Mediante essa percepção, a expressão Ngudiá N’Zambi,6
que intitula o artigo, torna-se o centro da teia que reúne a cultura e a natureza
considerando o caráter cosmogônico do alimento nas oferendas votivas que
mobilizam o culto no candomblé angola. Para Lody,7

É preciso alimentar a natureza, os deuses, os antepassados, que


representam patronalmente os elementos ou são expressos nas
atividades de transformação do mundo. São guerreiros, caçadores,
ferreiros, reis, entre outros, que desejam a garantia da harmonia entre
hoje/vida e história/antepassado na temporalidade vigente dos
terreiros. Há uma espécie de boca geral, de grande boca do mundo,
simbolizada. Tudo e todos comem.

A variedade de oferendas votivas forja um aspecto sacralizante na dinâmica


relacional das comunidades de candomblé. São elas que fortalecem e integram, via
mediação do terreiro, laços de congraçamento identitário entre adeptos e seu
panteão mitológico. O repertório religioso das comunidades de candomblé,
especialmente daquelas tributárias da cosmovisão banto,8 problematizadas neste
trabalho, incide na comunhão entre homem e meio ambiente. Nessa tônica do todo
integrado e da sacralização se encontram objetos, temperos, plantas e animais.9

4
“Cosmovisão, além de significar uma visão ou concepção de mundo, expressa também uma atitude
frente ao mesmo. Portanto, não é uma mera abstração, já que a imagem que o homem forma do
mundo possui um fator de orientação e uma qualidade modeladora e transformadora da própria
conduta humana. Implícito em toda cosmovisão há um caminho de ação e realização” (Roberto Crema,
Introdução à visão holística, São Paulo: Summus, 2015, p. 17).
5
No Brasil, foram concebidas aquilo que conhecemos como nações de santo, isto é, o candomblé de
angola, o candomblé de Ketu, o Ewefon ou jeje, o Ijexá e algumas praticamente extintas, como o
xambá e o malê (Mario Cesar Barcellos, Jamberussu: as cantigas de Angola, Rio de Janeiro: Pallas,
2011, p. 17).
6
Segundo Tata Kelaue, “Ngudiá N’Zambi implica numa benção a Deus maior, Zambiapongô, por todo
alimento consagrado às divindades e aos homens. É a partilha de um alimento em comum, a
celebração da vida” (Arildo José Silva, Arildo José Silva: depoimento [18 abr. 2017], Entrevistadora:
Janaína G. Hasselmann, Araquari, 18 abr. 2017).
7
Raul Lody, Santo também come, Rio de Janeiro: Pallas, 2012, p. 30.
8
Os bantos constituíram o grupo africano trazido em maior quantidade ao país, visto que seu tráfico
teve início em fins do século XVI, minorando na década de 90 do século XVII, tendo seu cessamento
no século XIX (James H. Swett, Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português
(1441-1770), Lisboa: Edições 70, 2007, p. 35). Desse modo, o referendado grupo foi o que mais
significativa influência exerceu na cultura brasileira (Vagner Gonçalves da Silva, Candomblé e
umbanda, São Paulo: Selo Negro, 2005, p. 28).
9
Lody, Santo também come, p. 14.
60

Neste texto, trataremos dos saberes tradicionais que implicam o corte de


animais no terreiro de candomblé de nação angola10 Nzo Nkise Nzazi,11 situado no
município de Araquari, Santa Catarina. Para efeito deste trabalho, saberes
tradicionais são entendidos como um conjunto de saberes e saber-fazer, a respeito
dos mundos natural e sobrenatural, transmitidos oralmente de geração a geração.
Além disso, eles representam um processo de experimentação permanente na vida
dos seres humanos, fundamentados por ensaios e erros. Como afirmam Silva e Melo
Neto,12 esses saberes, acumulados na vida cotidiana, vieram a estabelecer-se como
sabedoria – um acervo de conhecimentos originários daquelas pessoas mais
observadoras das relações com a natureza.
Por meio de depoimentos recolhidos pela história oral, podemos entender que
mecanismos socializadores envolvem essa prática, a sua importância para a
comunidade de terreiro e que ações sustentáveis são acionadas mediante seus
saberes tradicionais. Nesse sentido, buscamos compreender com a história oral as
experiências e visões particulares de indivíduos que estabelecem relações com o
meio no qual vivem, entendendo assim suas ações.13 Isto é, a história oral
possibilita-nos verificar algumas configurações pela concepção de tempo vivido.
Desta feita, interessa-nos saber os sentidos e a importância que os cortes de animais
possuem para os adeptos do Nzo Nkise Nzazi.
É mister tornar claro que para a maioria das religiões de matriz africana, existe
uma concepção de integração entre três reinos: animal, vegetal e mineral. Todos eles
fazem parte da alimentação dos sujeitos e de suas divindades,14 via sacralização das
oferendas. Nessa concepção todo reino é constituído de força vital,15 denominado de
nguzo ou moio, pelos candomblés de nação angola. No caso de plantas e animais, os
dois passam por um ritual de sacralização ao liberar seu sangue, conhecido como

10
“Além dos candomblés iorubás, há os de origem banta, especialmente os candomblés congo e
angola, e aqueles de origem marcadamente fom, como jeje-mahim baiano e o jeje-daomeano do
tambor de mina jeje-maranhense. Foram os candomblés baianos das nações queto (iorubá) e angola
(banto) que mais se propagaram pelo Brasil, podendo ser encontrados em toda parte” (Reginaldo
Prandi, Segredos guardados: orixás na alma brasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.
21).
11
Em língua quimbundo, diz respeito ao sistema de crenças do candomblé angola. Seu significado
próximo ao português seria “Casa da força Raio”, segundo Tata Kelaue (Silva, depoimento).
12
Severino Felipe Silva e João Francisco de Melo Neto, “Saber popular e saber científico”, Temas em
Educação, v. 24 (2015), pp. 137-154, p. 139.
13
Verena Alberti, Manual de História Oral, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
14
As divindades cultuadas pelo candomblé angola respondem pelo nome de inquices, caboclos,
ungiras e pangiras, segundo Tata Kelaue (Silva, depoimento).
15
Vida, energia vital (Nei Lopes, Kitábu: o livro do saber e do espírito negro-africano, Rio de Janeiro:
Editora Senac Rio, 2005, p. 1).
61

Menga.16 O sangue, por sua vez, também traz nguzo e está presente em
praticamente todas as cerimônias e práticas que se exercem nos terreiros de
candomblé, se considerarmos que quando as folhas são maceradas elas estão
morrendo ao liberar o sumo, isto é, elas estão oferecendo o próprio sangue.17
Desse modo, ressaltamos a importância de trazer essas concepções ao
trabalho para compreender as dimensões e os sentidos atribuídos às oferendas
como um todo orgânico e integrado, e não como aspecto restritivo ao abatimento dos
animais. Conforme Geertz,18 esse todo orgânico é “um conjunto de símbolos
sagrados, tecido numa espécie de todo ordenado, é o que forma um sistema
religioso”. Partindo desse princípio, acreditamos que ao reconhecer a existência de
uma cosmovisão comum a todas as oferendas, que abarcam a manipulação da força
vital e também a alimentação dos próprios adeptos, podemos descortinar o vulto
exótico que cerca particularmente esse ritual.
Assim, buscamos pensar as singularidades do modo de vida, saberes e
fazeres que se exercem nos terreiros. Podemos dizer que o Estado já abriu caminho
para o reconhecimento das comunidades tradicionais, embora não invista, acima de
tudo, na proteção de suas práticas culturais. Exemplo disso é o Decreto n.º 6.040, de
7 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.19 Da apresentação do
documento, consta a seguinte assertiva:

A partir desta política, para as ações do Governo Federal, povos e


comunidades tradicionais passaram a ser definidos como os grupos
culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que
possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam
territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela
tradição.20

16
Segundo Tata Kelaue, menga é sangue, força vital (Silva, depoimento).
17
Manoel Roberto Ferreira Chagas, O sagrado ecológico: relação entre o homem e a natureza no
candomblé Jeje Savalú em Belém do Pará, Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião)–Centro
de Ciências Sociais e Educação, Universidade Estadual do Pará, Belém, 2014, p. 78.
18
Clifford Geertz, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 95.
19
Brasil, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Alimento: Direito Sagrado –
Pesquisa Socioeconômica e Cultural de Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiros, Brasília:
Gestão da Informação, 2011.
20
Brasil, Alimento, p. 15.
62

Nessa perspectiva, o conhecimento tradicional, bem como a organização


social dos terreiros (e territórios quilombolas), não é percebido apenas como culto
religioso, e sim como espaços de solidariedade, de tradições de sabedoria de vida. O
documento defende ainda a soberania alimentar dos terreiros, com base no cultivo de
plantas alimentícias e medicinais e no consumo sadio dos animais: “Tal qual já foi
nossa prática antes da explosão da criação de rebanhos e de aves em escala
industrial que praticamos hoje em dia, e de voltarmos a valorizar a variedade de
espécies e de tipos de animais, incentivando uma produção comunitária, ou não
monopolista, de criação e consumo”.21
Em contrapartida, o abatimento doméstico dos animais, especialmente nas
religiões de matriz africana, é assunto que tem gerado desconfianças e imbróglios. A
repercussão das ações judiciais e discussões no âmbito do direito fundamenta-se em
ações judiciais evidenciando os supostos maus-tratos a animais. Leite22 alerta para a
tônica dos estudos sobre religiões de matriz africana que não revelam práticas cruéis,
no entanto, para ele, a morte não pode ser descaracterizada como sacrifício. Ainda
segundo o autor, as razões que circundam os sacrifícios só fazem sentido para
determinados grupos sociais, e o compromisso constitucional não é com o conteúdo
da crença, mas com a liberdade para o seu exercício.
Selecionamos tal problematização especificamente para dinamizar a
complexidade no campo dos saberes e das identidades, dos entendimentos que se
constroem no conjunto da sociedade. Por sua vez, ao relacionarmos o
direcionamento realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome, observamos a assimilação de valorização dos modos de consumo e da
consequente proteção à fauna que se encontram nos terreiros, até mesmo em razão
dos saberes transmitidos por via geracional. Por outro lado, numa discussão a
despeito de liberdade de crença versus sacrifício de animais em cultos religiosos,
percebemos que não há exatamente uma chancela jurídica para essa prática
tradicional. Ao contrário, ela depende da interpretação do operante do direito, que se
reporta à noção ocidental de sacrifício.
Muito embora a palavra sacrifício não tenha sido acionada nas entrevistas com
os depoentes, cremos oportuno considerá-la no limiar deste trabalho para fins de

21
Brasil, Alimento, p. 37.
22
Fábio Carvalho Leite, “A liberdade de crença e o sacrifício de animais em cultos religiosos”, Veredas
do Direito, v. 10, n. 20 (2013), pp. 163-177.
63

problematização epistemológica. Sacrifício é um termo polissêmico, presente em


várias sociedades, com diferentes significados. Etimologicamente advém do latim
sacrificium, cuja alusão está em “tornar sagrado”, sinalizando dessa forma a
passagem do sacrificado a outra dimensão, pertencente à compreensão
cosmogônica. Para Girard,23 existe uma variedade de rituais em que o sacrifício
pode apresentar-se de maneiras opostas: ou como algo muito sagrado, do qual não
seria possível abster-se sem negligência grave, ou como uma espécie de crime.
Todavia, a concepção ocidental de matança24 tem predominado no tocante às
religiosidades de matriz africana. O conceito mais próximo encontrado para a
composição do trabalho em relação a sacrifício é o de Mauss e Hubert,25 que trazem
a ideia de consagração. Isto é, em todo sacrifício um objeto passa do domínio comum
ao domínio religioso.
Logo, é preciso compreender que no candomblé tudo é sagrado. Chagas26
refere-se aos elementos naturais ou não, como a pedra, a árvore, os atabaques, que
passam pelos fundamentos mito-mágicos e se tornam sagrados. Nessa perspectiva,
é possível apreender o processo de sacralização dos três reinos: mineral, vegetal e
animal, do imanente para o transcendente, daquilo que habita o profano e que passa
a ser reconhecido como sagrado depois de ser sacralizado. Esse é o processo que
averiguamos nas entrevistas feitas com sujeitos do Nzo Nkise Nzazi, que, por acaso,
também precisam passar por determinados preceitos para poderem realizar o corte
dos animais. Essa prática tem seus próprios sujeitos, pessoas com cargo dentro da
casa, geralmente consideradas de respeito e sabedoria para essa finalidade.
Desta feita, trazemos ao campo do debate elementos que dizem respeito não
somente às cosmogonias que regem um candomblé angola quanto ao corte dos
animais. Lembramos que essa tarefa não é das mais simples, haja vista a escassez
de trabalhos produzidos a respeito do candomblé de nação angola. Ademais, para
Santos,27 a reconstrução dos processos de formação de religiões de matriz africana
não proporciona um quadro cristalino. Segundo o autor, os poucos documentos e

23
René Girard, A violência e o sagrado, São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1990.
24
Conforme o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (Antônio Houaiss, Dicionário Houaiss da
língua portuguesa, Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 1.256), matança é o ato ou efeito de massacrar:
“1 massacre de muitas pessoas; morticídio, mortandade. 2 ato de abater gado para consumo”.
25
Marcel Mauss e Henri Hubert, Sobre o sacrifício, São Paulo: Cosac Naify, 2013. 188 p.
26
Chagas, O sagrado ecológico.
27
Cléver Sena dos Santos, Pombo, pato, galinha e bode: bichos em trânsito, Dissertação (Mestrado
em Antropologia)–Universidade Federal do Pará, Belém, 2014.
64

registros históricos produzidos foram encaminhados com o intuito de atuar de forma


repressiva contra os grupos, sem levar em conta suas próprias vivências.
Pensamos que uma abordagem acerca de saberes e conhecimento tradicional
mobiliza diferentes áreas do conhecimento e do interesse humano. Destacamos,
assim, o testemunho direto de seus próprios agentes religiosos que se dedicam ao
candomblé angola, aqui representados pelo Nzo Nkise Nzazi, lidando diretamente
com a confecção das oferendas e, no caso deste trabalho, com as especificidades do
corte dos animais.

2.2 ITABURANGA MATOU UM BICHO DE PENA, ELE NÃO MORA LONGE, MORA
DENTRO DA JUREMA28

O abate dos animais – uma das práticas mais controversas realizadas pelos
diferentes terreiros de candomblé – está fortemente associado aos saberes
tradicionais. Froehlic,29 ao estudar o abate doméstico de porcos por colonos em São
Paulo das Missões (RS), aufere ao trato e abate dos animais, aspectos relacionados
a saberes e práticas. Em sua dissertação de mestrado encontramos elementos que
podem dialogar com os cortes tradicionais em terreiros de candomblé. Essa
possibilidade dialógica consiste basicamente na identificação de papéis sociais, no
procedimento em si que requer técnicas específicas transmitidas de geração a
geração e também no entendimento que cada grupo social denota a sua dieta. Para
Froehlic,30 cada sistema cultural define, por intermédio das possibilidades ofertadas
pelo meio, os alimentos que farão parte de sua dieta. No entanto, segundo a autora,
as escolhas alimentares de um grupo em termos nutricionais podem não ser
culturalmente aceitas para a sociedade.
Poulain31 salienta que “matar um animal não é um ato banal, através dele o
homem interfere na ordem natural”. Desse modo, a prática de abatimento requer
práticas e saberes específicos. Woortmann e Woortmann,32 no estudo sobre o

28
Zuela (cantiga) cantada nas roças de candomblé relacionada à morte de bichos.
29
Graciela Froehlic, Do porco não sobra nem o grito: classificações e práticas, saberes e sabores no
abate doméstico de porcos, Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)–Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2012.
30
Froehlic, Do porco não sobra nem o grito: classificações e práticas, saberes e sabores no abate
doméstico de porcos.
31
Jean-Pierre Poulain. Sociologias da alimentação, Florianópolis: Editora da UFSC, 2006, p. 264.
32
Ellen Woortman e Klaas Woortmann, O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura
camponesa, Brasília: Editora da UnB, 1997, p. 11.
65

campesinato em Sergipe, sugeriram que o aprendizado do trabalho se dá no próprio


trabalho, e a transmissão do conhecimento envolve também valores e construções
de papéis. Para os autores, a prática da carneada requer também perícia, isto é, um
sujeito, denominado de “matador”, que chefie o posto e seja reconhecido pelos
demais membros como tal.
Para a elaboração de nossa pesquisa, a seleção do perfil dos entrevistados
ocorreu mediante suas atividades e posição hierárquica no Nzo Nkise Nzazi, que, no
processo de realização das entrevistas, contava com o número de 15 adeptos. Entre
eles, destacam-se as figuras de Tata33 Kelaue, o zelador do terreiro e autoridade
sacerdotal, dois makotas,34 três tatas cambonos,35 três muzenzas36 e demais filhos
iniciantes.
Os sujeitos que prestaram depoimentos são aqueles que exercem
determinadas responsabilidades relacionadas ao cotidiano do terreiro, que, por sua
vez, se organiza politicamente por hierarquias e cargos, estes vinculados a saberes
específicos. Esse recorte faz-se necessário em função da própria organização
político-social dos terreiros, que se fundamenta em noções de hierarquia, autoridade,
tempo e domínio de conhecimento. Segundo Prandi,37 essas noções de tempo,
saber, aprendizagem e autoridade são as bases do poder sacerdotal dentro do
candomblé e sua natureza iniciática, numa perspectiva a-histórica, em que saber e
tempo possuem outros significados.
Assim, o perfil dos entrevistados elenca alguns fatores associados a gênero e
desempenho de atividades específicas no Nzo Nkise Nzazi. Em relação ao corte de
animais, segundo Tata Kelaue, todos os cambonos realizam o processo de oferenda
de animais, que envolve desde a consulta ao oráculo ou pedido específico de alguma
entidade até a escolha, rezas, corte e preparo dos pratos, primeiramente oferecidos

33
“Tata e Tatetu provém do quibundo, significa nosso pai” (Marcelo Barros, O candomblé bem
explicado: nações Bantu, Iorubá e Fon, Rio de Janeiro: Pallas, 2016, p. 183). Kelaue corresponde a
digina (nome dado pelo inquice), que o zelador de santo recebeu em sua feitura (Silva, depoimento).
34
São consideradas as mães (sempre mulheres) no terreiro de angola, pessoas de confiança do
zelador e que nascem com a condição de não entrarem em transe, segundo Tata Kelaue (Silva,
depoimento).
35
Dizem respeito aos homens, também considerados “pais” nos candomblés de angola, pessoas de
confiança do zelador e que nascem com a condição de não entrarem em transe, conforme Tata
Kelaue (Silva, depoimento).
36
Pessoas iniciadas no santo, aquelas que entram em transe e se conectam com inquices e demais
encantados, de acordo com Tata Kelaue (Silva, depoimento).
37
Prandi, Segredos guardados, p. 21.
66

às divindades38 e aos encantados39 e posteriormente compartilhados com a


comunidade e por fim com espaços públicos (matas, encruzilhadas, rios, cachoeiras).
Nesse complexo modo de estrutura social dos terreiros de candomblé angola,
existe o cargo de tata pocó, que significa “homem da faca”, aquele que é
predestinado a desempenhar a atividade de sacralização dos animais. Consideramos
pertinente ressaltar que o termo sacralização, em vez de sacrifício, foi recorrente nas
entrevistas com os cambonos responsáveis pelo trato com os bichos.
Assim, muito embora outros cambonos possam fazer o abatimento, existe no
corpo hierárquico do terreiro um cambono organicamente ligado a essa função e
preparado para desempenhá-la, por meio da vivência diuturna no terreiro. Aliás, é
somente pela vivência que se aprendem os saberes e segredos em um terreiro de
candomblé, mesmo que a pessoa seja predestinada a cumprir certa função. A
experiência e o tempo vivido são a chave do conhecimento, que tudo se aprende
fazendo, vendo, participando.40

2.3 TATA CAMBONDO SEGURA O ROMBO CONGO DE A BANDA GUDIÁ41

O cumprimento do corte, especialmente, diz respeito ao cargo de tata pocó,


exercido pelo Cambono Geraldo. No momento da entrevista, Geraldo apresentou-se
como filho de Dandalunda42 e suspenso43 por Matamba,44 revelando assim outros
sinais distintivos da identidade do grupo. Em nosso diálogo, perguntei ao Cambono
Geraldo a necessidade para o terreiro de preparar oferendas com animais:

38
Às divindades cultuadas no candomblé angola, dá-se o nome de inquices, conforme a visão de
mundo banto (Lopes, Kitábu, p. 242).
39
Termo que designa caboclos, pangiras e ungiras, segundo Tata Kelaue (Silva, depoimento).
40
Prandi, Segredos guardados, p. 44.
41
O subtítulo do trabalho diz respeito ao enunciado que se faz para a realização do corte do bicho.
Segundo Tata Cambono Rafael, uma versão aproximada para essa expressão, que conjuga as
línguas quimbundo, quicongo e português, é: “Pai cambono, segura o bicho que a banda vem comer”
(Rafael L. Hasselmann, Rafael L. Hasselmann: depoimento [27 jan. 2017], Entrevistadora: Janaína G.
Hasselmann, São Francisco do Sul, 27 jan. 2017).
42
Uma das divindades cultuadas no candomblé angola. Segundo Lopes (Kitábu, p. 243), “a dona dos
rios é Dandalunda ou Quissimbe”.
43
O ato de suspender uma pessoa, cambono ou makota, diz respeito ao reconhecimento por parte do
caboclo chefe da casa ou dos inquices, segundo Tata Kelaue (Silva, depoimento).
44
Uma das divindades cultuadas no candomblé angola. Na definição de Lopes (Kitábu, p. 243), “a
senhora dos ventos e tempestades é Matamba”.
67

Basicamente as oferendas são um elemento de fortalecimento e de


busca de equilíbrio da relação entre as pessoas e as entidades. Em
nosso caso específico, somos candomblé de angola, de uma raiz
banto, falamos em sacralização e não sacrifício. [...] Na verdade é
tudo alimentação. Partes desse animal são destinadas à alimentação
de inquices, ungiras ou entidades pra quem você está fazendo a
oferenda e partes consumidas pela família. Você está completando o
ciclo, e os restos você oferece à natureza. Todas as partes dessa
oferenda são alimento em alguma medida. Quando a oferenda é um
animal de quatro pés, o couro é retirado. Há todo um processo de
cura e transformação, e ele vai no momento necessário ser utilizado
nos atabaques. [...] Porque o atabaque ou o som do atabaque
também é sua forma de comunicação com os nossos. Então os
atabaques também fazem essa interlocução entre as pessoas e os
inquices,45

Repousa no senso comum46 que os cortes em terreiros de candomblé são


realizados de forma bruta e violenta, e muitas denúncias47 são consubstanciadas
pelos maus-tratos. Esse é um assunto bastante controverso e espinhoso em relação
ao candomblé, pois muitas vezes em função do corte dos animais é imputada à
religião a pecha de primitiva e selvagem. Barros48 propõe que se investiguem as
maneiras que agrupamentos humanos se apropriam da diversidade biológica, tanto
na flora quanto na fauna, para realizações de práticas em contextos
mágico-religiosos, mitológicos e medicinais, sendo estes os pilares formadores do
acervo cultural e da identidade social dos grupos sociais. Para o autor, são muitas as
espécies da fauna e da flora brasileira que fazem parte da cultura ritual dos diferentes

45
Silva, depoimento.
46
Consideramos como senso comum, por exemplo, toda divulgação sobre “matança” no candomblé,
por meio de discursos midiáticos e religiosos de outros segmentos, como o neopentecostalismo, em
crescente expansão. Importante salientar a circulação do livro do Bispo Edir Macedo Orixás, caboclos
e guias: deuses ou demônios?, de 1998. Citamos uma passagem de seu livro: “No candomblé, Oxum,
Iemanjá, Ogum e outros demônios são verdadeiros deuses a quem o adepto oferece trabalhos de
sangue, para agradar quando alguma coisa não está indo bem ou quando deseja receber algo
especial. Na umbanda, os deuses são os orixás, considerados poderosos demais para serem
chamados a uma incorporação. Os adeptos preferem chamar os ‘espíritos desencarnados’ ou
‘espíritos menores’ (caboclos, pretos-velhos, crianças, etc.) para os representar, e a estes obedecem e
fazem os seus sacrifícios e obrigações” (Macedo, Orixás, caboclos e guias, pp. 8).
47
Resultado de denúncias por segmentos da sociedade civil: “A Lei 1.960/2016 fixa multa de R$ 1.504
a toda pessoa física que utilizar, mutilar ou sacrificar animais em locais fechados e abertos, com
finalidade ‘mística, iniciática, esotérica ou religiosa’. Toda pessoa jurídica é obrigada a pagar R$ 752
por animal e perde seu alvará de funcionamento”. Mais informações disponíveis em:
<https://www.conjur.com.br/2017-abr-26/tj-sp-lota-durante-julgamento-sacrificio-religioso-animal>.
Acesso em: 12 ago. 2017. A lei foi suspensa, porém algumas organizações não governamentais
(ONGs) em defesa do direito dos animais aceitam denúncias de animais utilizados em rituais,
sobretudo aqueles com derramamento de sangue, caso de religiões de matriz africana.
48
Flávio Bezerra Barros, Do Ver-o-Peso aos terreiros de candomblé: um estudo sobre as dimensões
humanas da biodiversidade em Belém do Pará, Projeto de Pesquisa, PROPESP/Universidade Federal
do Pará, Belém, 2013, p. 2.
68

povos. A fauna e a flora estão presentes em habitações, objetos domésticos, vestes,


cura de doenças e na alimentação cotidiana.
No caso dos candomblés angola, tributários da cosmovisão banto, conforme
assevera Tata Geraldo,49 trata-se da sacralização dos animais. Ele não fala em
sacrifício, tampouco em sua narrativa é possível perceber essa dimensão, porque,
segundo ele, “na verdade é tudo alimentação”.50 Destacamos nesse sentido a
sabedoria das roças de candomblé sobre a produção de seus próprios alimentos: a
vida comunitária e os ofícios tradicionais, além de portadores de identidade, trazem
em seu bojo o direito à alimentação. Em razão desse modo de produção e preparo de
alimentos, especialmente de origem animal, devemos atentar para a situação de
vulnerabilidade que se encontram os terreiros.
O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome realizou uma
pesquisa socioeconômica e cultural dos povos e de comunidades tradicionais de
terreiros.51 O relatório traça um panorama das dificuldades encontradas por esses
grupos que estão em um quadro de insegurança alimentar. Conforme o documento:
“Na visão do povo de santo, os produtos da grande indústria (e muito particularmente
os alimentos industrializados são objetos sem axé, que não podem ser oferecidos
aos orixás, ao ori ou aos eguns: sua energia está comprometida pela própria
natureza despersonalizada, profana e inclusive violenta que caracteriza a produção
massificada capitalista”.52
As religiões de matriz africana, independentemente de suas nações, estão no
elenco de territórios e grupos que se apresentam como portadores dessas
referências, até mesmo no que tange ao conhecimento tradicional de criação e corte
de animais. Para um dos autores do relatório, José Jorge Carvalho,53 o ideal sempre
foi que o candomblé tivesse sua roça completa:

49
Geraldo Silva, Geraldo Silva: depoimento [18 abr. 2017], Entrevistadora: Janaína G. Hasselmann,
Araquari, 18 abr. 2017.
50
Geraldo Silva, depoimento.
51
Esse relatório emerge no contexto de instituição de uma Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, via Decreto n.º 6.040, de 7 de fevereiro de 2007
(Brasil, Alimento).
52
Brasil, Alimento.
53
José Jorge Carvalho, A economia do axé: os terreiros de religião de matriz afro-brasileira como
fonte de segurança alimentar e rede de circuitos econômicos e comunitários, Brasília: Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2011.
69

São várias as autonomias que estão sendo retiradas neste momento,


simultaneamente, dos povos de terreiro, no que concerne à soberania
e à segurança alimentar. Primeiro porque, do ponto de vista fundiário,
quando contavam com um terreiro maior, em geral denominado de
roça, estava bem assegurada uma biodiversidade fundamental para a
vida religiosa e comunitária dos terreiros. Não somente diminuíram o
tamanho dos terreiros, mas diminuíram também os pequenos sítios
produtivos e as unidades extrativistas que supriam os terreiros de
animais, vegetais, e materiais variados, em geral de cunho
artesanal.54

Carvalho55 também atenta para o modo sustentável das roças de candomblé,


que, embora alijadas de seus direitos em relação ao território, buscam a reprodução
da vida no cultivo de plantas alimentícias e medicinais mais variadas e sem
agrotóxicos, sempre em pequena e média escalas, respeitando o meio ambiente em
que nascem e crescem. A criação de animais e suas referências no abate também
são valorizadas enquanto prática cultural perante a explosão da criação de rebanhos
e de aves em grande escala industrial. Segundo o autor, esse modo de organização
dos terreiros preserva a variedade de espécies e de tipos de animais em função da
escala de produção comunitária, ou não monopolista, de criação e consumo.
Importante ressalvar as considerações de Motta56 quando esclarece que a imolação
de animais é parte fundamental nos rituais do candomblé. Suas cerimônias
alimentares servem como meio de obtenção de fonte proteica para a comunidade
local, incluindo pessoas de baixa renda e com consumo deficitário de calorias e
proteínas.
Ainda no que diz respeito à segurança alimentar e aos programas
engendrados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, por
exemplo, chama-nos a atenção a situação de vulnerabilidade posta por Carvalho.57
O corte de animais resiste em meio a riscos de extinção, e tais práticas alimentares
tradicionais são sistematicamente denunciadas como forma de maus-tratos a animais.
As singularidades culturais das comunidades de terreiro, bem como seus hábitos
alimentares, são ameaçadas pela falta de entendimento da sociedade.
A sociedade, armada com a lógica da legislação alimentar urbana e com uma
visão de categorias no campo de conhecimento que opõe conhecimento científico e
54
Carvalho, A economia do axé, p. 38.
55
Carvalho, A economia do axé, p. 38.
56
Roberto Motta, Proteína, pensamento e dança: estratégia para novas investigações antropológicas
sobre o Xangô do Recife, Comunicação de Cultura e Economia – Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 1977.
57
Carvalho, A economia do axé.
70

conhecimento popular,58 ignora por vezes a cultura e a tecnologia que fervilham nos
saberes tradicionais. Não se deve também esquecer que o fortalecimento do que
poderíamos chamar aqui de homens da ciência a partir de meados do século XIX
serviu, igualmente, para legitimar o discurso dos grupos urbanos também em
ascensão. As novas falas englobaram termos como modernidade e progresso, que
não estavam desvinculados de um “dogma racial da desigualdade”.59 Essa
hegemonia, cujo suporte era dado pela ciência, implicou a existência de relações
desiguais que contribuíram para um processo de “silenciamento silencioso”60 de
parte da sociedade, que atingiu fortemente as religiões de matriz africana.
Fica evidente que os animais não devem ser alijados do entendimento que se
faz da subsistência religiosa, cultural e alimentar dos terreiros. O corte dos bichos,
conforme relato de Tata Geraldo, tem relação com o todo: inquices, entidades,
sujeitos, atabaques. Segundo Tata Geraldo, todas as partes do processo estão
intimamente ligadas:

Fazendo uma oferenda, você está exatamente devolvendo para


energia uma natureza que dela saiu, no sentido de reequilíbrio.
Obviamente quando você come, você também está alimentando o
divino, em última análise está absorvendo o moio desse processo.
Está integrando diretamente a natureza. Portanto todas as partes
dessa oferenda partem disso e são alimento, em alguma medida. O
couro dos animais, por exemplo, passa por um processo de cura e é
utilizado nos atabaques. O som do atabaque também é uma forma de
comunicação com os nossos. O couro então está colocado nesse
ponto de interlocução entre as pessoas que cultuam os inquices e os
inquices. Tudo come, inclusive o atabaque.61

Além de Tata Pocó Geraldo, legítimo “homem da faca”, conversamos com


Tata Kelaue e, além dele, com Cambono Rafael. Em sua apresentação, Cambono
Rafael elucidou que não era cambono confirmado, isto é, não teve sua confirmação,62
tal qual Tata Geraldo, embora já tenha auferido um cargo específico na casa. No
entanto esclareceu que acompanhou vários cortes no nzo, passando por vários

58
Ver: Gildo Magalhães dos Santos Filho, Ciência e ideologia: conflitos e alianças em torno da ideia
de progresso, Tese de livre docência, São Paulo: Universidade de São Paulo, 2004.
59
Lilia Schwarcz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
(1870-1930), São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 29.
60
A ideia esposada por Thomas Mathiesen parte da percepção de um processo que é “calado em vez
de barulhento, oculto em vez de aberto, despercebido em vez de perceptível, invisível em vez de visto”
(apud Zygmunt Bauman, Medo líquido, Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 13).
61
Geraldo Silva, depoimento.
62
Ritual iniciático particular aos cambonos, segundo Cambono Rafael (Hasselmann, depoimento).
71

processos. Assim, Cambono Rafael, filho de Nkose63 e suspenso por Matamba,


contou-nos sobre suas inferências a despeito dos cortes dos animais no Nzo Nkise
Nzazi:

O jeito de preparar o alimento começa desde a hora que se entra no


nzo e se despacha a rua. Se passa por um banho, mas, antes de tudo,
se passa por algum trabalho como o obi ou bori, lá atrás. Não é
qualquer um que pode fazer, geralmente um cambono confirmado e
principalmente o dono da faca, o tata pocó. [...] Sempre se compra o
bicho que já tem certa idade, já procriou várias vezes, viveu o
suficiente. Não pode ser prenha, nem ter dado filhotes recentemente.
Tem que ser velho, pra agradar os inquices e entidades. Também se
escolhe a cor, dependendo da entidade que for oferecer. Tamanho
das aspas do bicho. Entre outras coisas que não posso falar, pois são
fundamentos da religião.64

Na narrativa de Tata Rafael, há um rico detalhamento de como se organizam


os saberes da comunidade no processo de corte dos bichos, que acontece mediante
a passagem por ritualidades iniciáticas, como por exemplo o bori,65 autorizando as
atividades no nzo e salientando a autoridade do sujeito que pode realizar o corte,
passando pela escolha do animal. Os critérios alvitrados como tamanho, idade, cor e
estado físico do bicho são parte desses saberes que se organizam em um terreiro de
candomblé angola. Para Carvalho,66 essas clivagens incidem numa tradição cujo
conhecimento mantém o equilíbrio na natureza, com base em uma sabedoria que
deveria servir de modelo civilizatório para o país. Entre esses critérios de seleção
apontados tanto por Cambono Rafael67 quanto por Carvalho,68 encontramos outras
correspondências que trazem à tona, além da condição do animal, os procedimentos
propriamente ditos.

O bicho não pode ter nenhum machucado, nem [ter sido] criado
confinado, pois isso é maus-tratos pra nós. [...] Na hora do corte ele é
conduzido, nunca puxado nem empurrado. Vai ter que vir por conta
própria lado a lado de um homem da casa, senão não serve. [...] O
tata pocó vai averiguar a lâmina das facas, pois o animal não pode
sofrer durante o corte. O corte tem que ser rápido e preciso. [...]
Quanto mais preciso e rápido o corte, menos sofrimento pro animal.

63
Divindade cultuada no candomblé angola: “O ferreiro guerreiro é Nkose Mucumbi” (LOPES, 2005, p.
243).
64
Hasselmann, depoimento.
65
Atos iniciáticos e litúrgicos para fortalecimento do ori = cabeça.
66
Carvalho, A economia do axé.
67
Hasselmann, depoimento.
68
Carvalho, A economia do axé.
72

Embora não exista morte que não se sofra, né? [...] A carne é
preparada pra alimentar o nzo, o couro, no caso dos bichos de quatro
pés, passa por um processo de secagem e é usado para encourar os
atabaques da casa, pois afinal os atabaques também comem.69

A maneira como é feito o corte dos animais também revela um saber


tradicional, na medida em que seu ato litúrgico usa processos apreendidos que
inculcam uma lógica de aprendizado na qual o corte deve ser rápido. Há um cuidado
para que esse animal não sofra, tendo em vista que o tata pocó faz, a priori, a
avaliação do fio das lâminas. Nota-se que o ritual necessariamente se relaciona com
o preparo dos sujeitos chancelados a realizar a tarefa. A chancela, além de
considerar a organização dos cargos e das tarefas no terreiro, necessita de ritos
iniciáticos e cotidianos “desde a hora que entra no nzo e despacha a rua”.70
Percebe-se ainda que alguns fundamentos da religião são enunciados sutilmente
nesse elenco de critérios para a seleção do animal: “Na hora do corte ele é conduzido,
nunca puxado nem empurrado. Vai ter que vir por conta própria lado a lado de um
homem da casa, senão não serve”.71
Nessas narrativas é possível verificar que o corte dos bichos no Nzo Nkise
Nzazi cumpre um processo integrado entre meio ambiente – representado pela
função dos animais, das divindades e dos sujeitos – e os sujeitos. O ritual não se
esgota no corte; tudo e todos “comem”:

No dia do corte são feitos os pratos com os órgãos reais desses


animais que são arriados diante dos assentamentos, que podem ser
de inquices, ungiras e caboclos. As outras partes do bicho, a carne
propriamente dita é compartilhada com as pessoas, sejam elas do
nzo ou não, porque deve alimentar a fome de qualquer pessoa. Após
o tempo necessário de permanência dos órgãos reais dos
assentamentos, é suspenso essa comida – a gente chama de carrego,
pois, como tudo come, o carrego é destinado às matas, porque lá tem
os bichos que vão comer ou a natureza vai decompor. Ou rios, ou
mares, sempre em água corrente. Então se alimenta disso também os
bichos rasteiros, peixes, passarinhos. No candomblé angola, todos
comem.72

69
Hasselmann, depoimento.
70
Hasselmann, depoimento.
71
Hasselmann, depoimento.
72
Hasselmann, depoimento.
73

Questionado sobre o que são os órgãos reais dos animais, Cambono Rafael
responde: “É coisa nossa, fundamento, não precisa saber”.73 No decorrer da
entrevista, em alguns momentos Cambono Rafael preferiu que determinados trechos
de sua fala não fossem gravados, mesmo que a tônica das perguntas
correspondesse ao mesmo diálogo realizado com Tata Kelaue e Tata Geraldo.
A respeito dessa conduta, lembramos Alberti,74 quando nos alerta para a
escolha de entrevistados que estejam completamente dispostos a revelar sua
experiência num diálogo aberto, haja vista sua posição dentro do grupo. Todavia, os
temas de pesquisa possuem suas dinâmicas e particularidades. Ao problematizar os
“segredos” que envolvem as religiões de matriz africana, Silva75 propõe uma reflexão
sobre as relações hierárquicas existentes na comunidade religiosa articuladas em
função da relação do saber-poder. Ou seja, não se trata apenas de revelar
conhecimentos, que podem ter sido mencionados por outros sacerdotes, mas de
preservar o status que o sujeito possui no grupo.
Considerando as subjetividades dos sujeitos, sua forma de conversar e a
reincidência nos diálogos estabelecidos, a questão não consistia em nenhum
segredo ou fundamento religioso da casa, porém Cambono Rafael optou pelo
comportamento mais reservado.
O “carrego” citado na fala de Cambono Rafael faz alusão à lógica do grupo de
retorno à natureza: “Todas as partes dessa oferenda são alimento em alguma
medida”.76 Nessa perspectiva, Lody77 salienta que mares, matas, rios, encruzilhadas,
todos os espaços da natureza que sinalizam a marca de um orixá, de um vodum ou
de um inquice também comem.
O apelo à natureza nessas narrativas dinamiza as relações do Nzo Nkise
Nzazi, que, entre suas oferendas, pratica o corte dos animais como fonte de alimento.
O alimento derivado dos animais, que serve as divindades, os sujeitos, a “todos”,
inclusive os atabaques, bichos rasteiros e pássaros, nas palavras de Cambono
Rafael, diz respeito à relação que se constrói com a natureza.78 Tal cosmovisão

73
Hasselmann, depoimento.
74
Alberti, Manual de História Oral.
75
Vagner Gonçalves da Silva, “Segredos do escrever e o escrever dos segredos: reflexões sobre a
escrita etnográfica nas religiões afrobrasileiras”, in Vagner Gonçalves da Silva, Dos Yorùbá ao
candomblé kétu: origens, tradições e continuidade (São Paulo: Edusp, 2010).
76
Silva, depoimento.
77
Raul Lody, Galinha-d’angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira, Rio de Janeiro: Pallas,
2012.
78
Hasselmann, depoimento.
74

associa a natureza de modo muito íntimo com as divindades cultuadas no Nzo Nkise
Nzazi e com os sujeitos e, em certo ponto, todos esses elementos se confundem e se
misturam. Na perspectiva de Melo, essa integração é “o resultado da somatória de
todas as partes ou elementos que compõem a natureza. Tanto nos aspectos minerais,
vegetais e animais, como nos aspectos “visíveis” ou “invisíveis” transcendentais, que
de certa forma, permitem a existência não só do culto como do homem e sua
tradição”.79
Podemos dizer que sem os bichos, as matas, as folhas e as encruzilhadas não
existe candomblé angola, se pensarmos que o Nzo Nkise Nzazi se apresenta como
representante dessa nação. O circuito e o preparo de oferendas destinam-se à
natureza. Desta feita, o culto, a celebração de um inquice, de um caboclo tem como
potencializador ritualístico a natureza. Nela estão os bichos, os temperos, as ervas e
para ela se destina o “carrego”, numa visão cíclica de mundo.
Para Lody,80 o ato biológico de comer e oferecer comida no âmago das
religiosidades de matriz africana equivale a manter, preservar e reforçar as memórias
coletivas. Na lógica do autor, o costume de oferecer comidas rituais aos deuses
reforça a fé e as identidades, e os hábitos alimentares do terreiro estão
condicionados às “ações sagradas e também nutritivas para os homens”.81
A respeito dessas necessidades nutritivas conjugadas com os atos religiosos
do nzo, Tata Kelaue esclarece:

Eu vou sacralizar um animal para um inquice, mas tudo tem um


processo. Aquele animal, ele tem que estar numa condição boa, bem
tratado. Aquele animal vai servir pra matar a minha fome, a fome da
pessoa que vem na minha casa, a fome do meu filho de santo.
Quando eu vou dar um quatro pé, um rombo, um camborô, que é um
galo pro ungira, pro caboclo, é separado o sangue, que é uma energia
vital, menga pra nossa nação, ela é derramada nos assentamentos.
Mas a carne é comida. Porque esses bichos têm vitaminas que eu
não encontro na carne de boi. E o osso da carne vai pra terra comer.82

Para Tata Kelaue,83 a preferência por aves e especialmente cabritos na oferta


de alimentos para divindades e membros do terreiro diz respeito à necessidade de

79
Emerson Melo, “Dos terreiros de candomblé à natureza afro-religiosa”, Último Andar, (2007), pp.
27-36, p. 35.
80
Lody, Santo também come.
81
Lody, Santo também come, p. 31.
82
Silva, depoimento.
83
Silva, depoimento.
75

vitaminas que não se encontram nos animais comumente confinados e vendidos em


escala comercial. Aliás, o confinamento, segundo ele, seria uma afronta aos rituais. O
animal precisa ser criado solto, selecionado conforme os critérios das divindades que
compõem o panteão mitológico do candomblé angola e corresponder às
propriedades nutritivas necessárias às pessoas.
Conforme as narrativas dos depoentes, foi dito que, diferentemente das folhas,
das plantas e das raízes que são cultivadas no quintal do nzo ou recolhidas nos
espaços públicos, os bichos são comprados em pequenas propriedades. Temendo
represálias, os membros do terreiro preferem realizar a compra e evitar assim
especulações sobre os ritos da casa. Na entrevista com Cambono Rafael, ele
levantou a seguinte problemática:

O problema geral das casas de santo não está na criação dos bichos
propriamente dito, mas na atitude covarde dos órgãos responsáveis
no momento do corte. É ali que o bicho pega pra nós. Porque eles
sabem que o bicho dentro de uma casa de candomblé vai ser usado
pro ato. Muitas foram as casas que ficamos sabendo que teve polícia
e tudo na hora do transe das entidades. O bicho precisa ser morto pra
gente comer, mas, no nosso caso, as entidades vêm em terra. Soube
de casa em Joinville [Santa Catarina] que as pessoas no momento do
transe foram presas.84

Pelo testemunho de Cambono Rafael, é possível perceber que a criação e o


abatimento de pequenos animais para consumo particular não são de todo modo o
problema para religiões de matriz africana. O que incidiu, segundo ele, em
intervenções arbitrárias nas casas de santo foi o destino dado aos animais, que
passam pelo processo ritual antes de serem servidos às pessoas.85
Algumas são as adversidades encontradas pelos membros do nzo para a
manutenção de seu sistema de crenças. Tanto na fala de Tata Geraldo quanto no
testemunho de Cambono Rafael foram citadas as dificuldades para a realização da
compra, pois, segundo eles, as pessoas sabem a que se destinam os animais e
“cobram mais caro” que o valor tratado com outros compradores.86
Cria-se, então, uma dificuldade para a realização dos cortes que dependem
das condições materiais tanto de Tata Kelaue quanto dos filhos da casa. Além de
envolver valores monetários, reside aí o problema do transporte dos animais.

84
Hasselmann, depoimento.
85
Hasselmann, depoimento.
86
Hasselmann, depoimento; Silva, depoimento.
76

Appadurai87 alega que o valor não é resultado de uma objetividade, e sim de


interações humanas. Assim, os valores são constructos sociais, obedecendo mais a
crivos de ordem cultural que tão somente econômicos. Nessa rede de
comercialização de bens simbólicos, outras variantes operam. Santos88 sinaliza para
a dificuldade dos adeptos de religiões de matriz africana de realizar a compra de
animais. De acordo com o autor, os animais são negociados a valores mais altos que
o comum, fazendo com que os sujeitos não se identifiquem como membros desses
segmentos religiosos no momento da compra.
Mesmo assim a compra é realizada por meio das clivagens já enumeradas
neste trabalho, como forma de fazer valer os saberes apreendidos ao longo do tempo.
Ainda segundo Tata Kelaue, outros empecilhos se apresentam em alusão à relação
que o nzo estabelece com os animais, que não ocorrem apenas quanto à
alimentação, mas à própria cura de animais doentes: “Inclusive antes da Vigilância
Sanitária, nós tínhamos condições e sabedoria pra curar a bicheira de um animal e
não contaminar o rio. Ninguém veio nos perguntar”.89
Nessa declaração de Tata Kelaue a despeito das regulações dos órgãos da
Vigilância Sanitária, cumpre nos remeter a Lévi-Strauss,90 que, ao demonstrar a
validade dos conhecimentos tradicionais dos povos considerados “primitivos”,
defendeu a capacidade deles mediante a curiosidade que esses povos mantinham
com a natureza, cujo condicionamento não se dava unicamente por necessidades
práticas do cotidiano: “Quando cometemos o erro de crer que o selvagem é
exclusivamente governado por suas necessidades orgânicas ou econômicas, não
reparamos que ele nos dirige a mesma censura, e que, a seus olhos, seu próprio
desejo de saber parece melhor equilibrado que o nosso”.91
Pelo testemunho de Tata Kelaue e demais cambondos, nota-se que a
oferenda com animais não desassocia o que se propõe trocar com as divindades por
meio dos hábitos alimentares em um terreiro de candomblé: nas palavras de todos
eles, a energia. Há razões para que a oferta não seja confeccionada com animais
comercializados em grande escala:

87
Arjun Appadurai, “Introdução: mercadorias e as política de valor”, in Arjun Appadurai, Vida social
das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural (Niterói: EDUFF, 2008), p. 70.
88
Santos, Pombo, pato, galinha e bode.
89
Silva, depoimento.
90
Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, Campinas: Papirus, 1989.
91
Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, p. 17.
77

Esse animal você reza, você pede permissão para ele. Você trata ele
bem, ele come, é muito bem alimentado, lavado com ervas. É um
processo até o corte propriamente dito. Minha religião trata muito bem
esse animal e é só um, diferente[mente] dos outros, um atrás do outro,
no confinamento até ser comercializado. Num abatedouro, o frango
por exemplo é colocado numa máquina para ser depenado. Até
morrer, ele sofre. Esse bicho não serve pra nós, porque nós não o
cuidamos. O processo dos abatedouros ninguém vê. Ninguém toca
no capitalismo, né? Mas na gente, sim. Mas nós é diabolização,
ninguém quer saber. Ninguém quer saber também que não
oferecemos só animais, mas grãos, folhas, suco das ervas, temperos,
porque tudo é alimento.92

Logo, o corte dos animais, conforme os sentidos atribuídos pelos entrevistados,


reveste-se de uma tônica muito especial, considerando que a alimentação das
divindades, dos objetos (atabaques) e dos sujeitos, constitui um comportamento
simbólico, “revelando reincidentemente a cultura em que cada um está inserido”.93
Desse modo, faz-se salutar reconhecer que o corte dos animais e seu valor
litúrgico se associam eminentemente às contingências biológicas das pessoas. A
preservação das práticas tradicionais revela mais que um patrimônio cultural,
expresso em saberes, mas uma discussão que tangencia o direito à alimentação,
uma vez que os modos de vida dentro das roças de candomblé são portadores de
identidades e mantenedores de necessidades humanas básicas, como o caso dos
cortes dos animais, que são fonte de alimentação.
Faz-se salutar esclarecer que para os membros do Nzo Nkise Nzazi não existe
separação entre o mundo dos homens e o mundo das divindades e, mesmo que os
saberes práticos respondam às necessidades alimentares dos sujeitos, as divindades
estão presentes. Dito isso, para não incorrermos em desvios antropológicos de
negação dos aspectos mito-mágicos, Chakrabarty,94 por exemplo, denuncia a
arbitrariedade em se realizar análises de grupos sociais, escamoteando a existência
de seus seres encantados. Para o autor, negar tal existência seria equivalente a
negar suas próprias histórias.
Nesse caso há que se pensar, como propõe Santos,95 que uma política de
direitos humanos é basicamente uma política cultural. Sendo assim, faz-se preciso

92
Silva, depoimento.
93
Sidney Mintz, “Comida e antropologia: uma breve revisão”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.
16, n. 47 (2001), pp. 31-41, p. 32.
94
Dipesh Chakrabarty, “The time of history and the times of gods”, in I. Lowe e D. Lloud (orgs.), The
Politics of culture in the shadow of capital (Durham: Duke University Press, 1997), p. 35-60.
95
Boaventura de Sousa Santos, “Por uma concepção multicultural de direitos humanos”, Revista
Crítica de Ciências Sociais, n. 48 (1997), p. 13.
78

reconhecer os particularismos, as diferenças e suas fronteiras, e, como por vezes a


cultura, a religião e os direitos humanos são racionalizados por premissas universais,
eles não atendem às demandas de localidades, grupos e sistemas culturais.
Um dos grandes embates para os saberes tradicionais é a diferença existente
entre os “conhecimentos”. De acordo com Cunha,96 o conhecimento científico
afirma-se pela definição, como verdade absoluta, até que outro paradigma a supere.
Essa universalidade do conhecimento científico é diametralmente oposta dos
saberes tradicionais, que são diversificados, atendem às necessidades e explicações
particulares. No caso deste trabalho, o corte dos animais traz à tona questões
referentes à identidade de um grupo social: processos de organização social, de
aprendizagem, cosmovisão, experimentação e hibridismos linguísticos.97
Embora este trabalho tenha estabelecido como perspectiva os saberes
tradicionais que permeiam os cortes dos animais, asseveramos que a relação que o
Nzo Nkise Nzazi possui com eles não se restringe aos hábitos alimentares de
divindades e dos sujeitos. Essa relação encontra-se debatida no trabalho de Ingold98
quando o autor defende um modelo de continuum entre categorias humanas e não
humanas. Nessa perspectiva, o mundo não seria estruturado a partir de elementos
que comporiam domínios separados e hierarquizados, ou mesmo em sentidos
opostos entre natureza e cultura. Em nossa analogia com a assertiva do autor,
relacionamo-la a essa fala de Tata Kelaue:99

Eu num espaço urbano não escuto a natureza propriamente dita. Eu


não escuto o que o pássaro quer me contar. Muitas vezes você
recebe algumas energias ou respostas do próprio animal que aparece
na tua porta. O próprio pássaro que passa em cima da sua casa. Do
próprio bicho que você cria dentro do teu espaço. Então eu preciso de
um espaço desse. Você vai conseguindo ler a natureza em si. Uma
árvore, um vento, um bicho, tudo isso quer falar alguma coisa.

A necessidade de criar os bichos no quintal das roças de candomblé também


diz respeito aos poderes mito-mágicos desses animais, fenômeno anterior ao

96
Manuela Carneiro da Cunha, “Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico”,
Revista USP, n. 75 (2007), pp. 76-84.
97
A conjugação dos idiomas português, quicongo e quimbundo falado no Nzo Nkise Nzazi.
98
Tim Ingold, “Humanidade e animalidade”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 28 (1995),
pp. 39-53.
99
Silva, depoimento.
79

processo de corte: “Porque ela nos avisava dos negativos, de um filho doente que
precisa de cuidados, além de afastar os bichos rasteiros, porque tudo é equilíbrio”.100
Nota-se pelas narrativas que, além de os animais servirem de fonte proteica,
eles também são providos de animação. Conforme Carvalho,101 “todos os objetos
estão vivos e se comunicam com os seres humanos”. Como dito nas entrevistas, um
animal ou um objeto é dotado de capacidades sensoriais. Para Descola,102 plantas,
animais e objetos são “o resultado da transformação de substâncias naturais
desempenhando, ao final de sua elaboração, uma função cultural”. Essa colocação
pode ser verificada na comunicação com os bichos citada por Tata Kelaue,103 ou, no
caso dos atabaques, no contexto de interlocução com as divindades: portanto, todos
comem, inclusive o atabaque. Basicamente todas as expressões ritualísticas do Nzo
Nkise Nzazi dependem da alimentação e do corte de animais, seja para
estabelecimento de comunicação com divindades, seja por razões de saberes que
incidem nas necessidades biológicas das pessoas. Segundo Lody,104 essa é uma
característica da cosmologia afro-brasileira, cujo pensamento mítico mantém tudo
junto e intercomunicável, em contraposição ao pensamento científico, cuja
sistemática pressupõe separação, classificação e compartilhamento das coisas.
Conforme revelado nas narrativas dos membros do Nzo Nkise Nzazi, toda
criação compartilha do mesmo complexo dimensional, pois se encontra irmanada no
mundo mítico, embora cada coisa tenha se separado no pensamento científico.
Nessa dinâmica, os reinos mineral, vegetal e animal são conectados com os sujeitos.
Ou melhor, os homens, em alguma medida, fazem parte deles. Percebe-se que os
saberes tradicionais no corte de animais incidem numa contínua sacralização do
mundo, fundando uma unidade cósmica. São saberes que perpassam o ato do corte;
eles se revestem de fundamentos de cuidado com o corpo humano e com a
reposição juntamente com as matas e cachoeiras, para alimentar animais e assim
garantir a vida.
2.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

100
Silva, depoimento.
101
José Jorge Carvalho, As artes sagradas afro-brasileiras e a preservação da natureza, Brasília: UnB,
2005. (Série Antropologia, 381), p. 17.
102
Philippe Descola, “As duas naturezas de Lévi-Strauss”, Sociologia & Antropologia, v. 1, n. 2 (2011),
pp. 35-51, p. 44.
103
Silva, depoimento.
104
Lody, Galinha-d’angola.
80

Por meio da história oral, verificamos mediante testemunhos direitos de


membros integrantes do Nzo Nkise Nzazi a cosmologia que permeia o circuito das
oferendas. Tratamos aqui especialmente do corte de animais como um dos
fundamentos que integram inquices, entidades, sujeitos e objetos. O ritual de
abatimento desses animais incide em aportes identitários do grupo, em que o ciclo da
vida se manifesta na alimentação. O corte dos animais é processual, não se esgota
no ato em si, mas na distribuição dos alimentos entre várias partes: da divindade aos
objetos de toque ritualístico e finalizando-se no retorno para a natureza, como
podemos notar na etapa do “carrego”.
Compreendemos pelos relatos o caráter processual das atividades que se
exercem dentro e fora do terreiro e como todas as coisas estão interligadas. Há uma
concepção abrangente de saber, não se resumindo a técnicas ou a procedimentos,
perceptível nos diálogos análogos aos rituais por que os protagonistas
necessariamente precisam passar para realizar o corte. Esses rituais dizem respeito
à cosmovisão do grupo, ao sistema mito-mágico. Pensamos assim sobre a violência
cometida quando buscamos nos saberes tradicionais e na sabedoria popular a
validação do campo científico, no entanto concordamos com Sodré105 quando o
autor reconhece as tensões geradas entre conhecimento popular e saber científico,
afirmando que o conflito existente pode desaparecer quando se propõe uma
pesquisa que investiga saberes úteis ao conhecimento acadêmico.
Desse modo, é mister reconhecer o valor da história oral e o entendimento que
os membros do Nzo Nkise Nzazi têm sobre suas próprias práticas, muitas vezes
caracterizadas como diabólicas ou de maus-tratos aos animais. Foi possível por meio
de suas narrativas verificar até mesmo a visão desses agentes sobre o que são
maus-tratos de acordo com o seu sistema de crenças. Assim, o abatimento de
animais a fim de comercialização não corresponde às necessidades do terreiro, cuja
trajetória do bicho não possibilita a integração a priori de seu corte. Foram elencados
aqui alguns procedimentos ritualísticos que correspondem ao todo: o falar com o
bicho, a necessidade de entonar rezas, as lavagens, a criação solta, o encouramento
dos atabaques e o retorno de seus restos à natureza, para que animais criados soltos
possam se alimentar do tal “carrego”.

105
Eduardo Sodré, Entrevista concedida: Grupo de Pesquisa em Extensão Popular EXTELAR, 2014.
(mimeo.).
81

Em organizações sociais menos individualizadas e mais coletivizadas, como o


caso do candomblé angola, existem ajustamentos míticos, que compreendem à
cosmovisão desses grupos sociais. O saber do tata pocó implica noções de limites de
suas ações, como, por exemplo, os crivos na escolha do animal, que não pode estar
prenhe e precisa necessariamente ter “tempo” na terra, passando por suas fases
reprodutivas. Isso incide na colaboração para as condições de perpetuação da vida
dos animais.
Nesse sistema de crenças, é perceptível a noção que os membros do Nzo
Nkise Nzazi possuem sobre a natureza: uma visão integradora que elenca vários
elementos, contemplando uma cosmovisão em que os próprios seres humanos são
mais um dos elementos que compõem a natureza. Não existe desassociação entre
meio ambiente, objetos, sujeitos. O “todos comem”, recorrente nas entrevistas,
evidencia esse entendimento totalizante de suas práticas.
No tocante a toda a rede que envolve o corte dos bichos – os ritos, a ótica da
alimentação e sobretudo os saberes que o circunscrevem –, Canclini106 orienta-nos a
um ponto importante. Quando escutamos a voz excluída, a difusão do que foi
silenciado ou negligenciado, a exposição do diferente, mais do que alterar a ordem
vigente, podemos revelar algo sobre a ordem excludente. Essa perspectiva indica
para a necessidade de ouvir quem estava inaudível, de reconhecer significados em
memórias silenciadas, identificando nelas a contingência de uma reescrita da história
em que os sujeitos excluídos possam se posicionar. Assim, buscando conhecer
novos (ou velhos) saberes, trazemos contribuições para repensar os modelos
hegemônicos, como aqui descrito o abate doméstico de animais perante a produção
em escala industrial.

106
Néstor García Canclini, Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade, Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ, 2007.
3 A PRECE DA ÁFRICA NAS MATAS DE CÁ: A PUREZA VERSUS O PANTEÃO
MITOLÓGICO DO CANDOMBLÉ ANGOLA SOB A PERSPECTIVA DO NZO NKISE
NZAZI1

AFRICA’S PRAYER IN THE WOODS FROM HERE: THE PURITY VERSUS THE
MYTHOLOGICAL PANTHEON OF CANDOMBLE OF ANGOLA NATION FROM
THE PERSPECTIVE OF NZO NKISE NZAZI

Resumo:
O artigo visa contribuir para as pesquisas sobre candomblé angola trazendo uma
releitura do culto aos orixás2. O uso metodológico da história oral permite-nos
perceber no passado e presente os significados distintos que contestam uma
homogeneidade geralmente atribuída ao panteão mitológico das religiões de matriz
africana. Focalizaremos as divindades cultuadas no Nzo Nkise Nzazi, que tem sua
sede litúrgica situada no município de Araquari (SC). O nzo apresenta-se como um
terreiro de candomblé de modalidade angola cujo panteão mitológico é tributário da
cosmovisão banto, refletindo sinais distintivos de identidade perante as casas
jeje-nagô. Os objetivos também serão apontar a relação entre as divindades
cultuadas no candomblé angola e, com isso, dialogar com os debates do campo do
patrimônio ambiental.
Palavras-chave: panteão mitológico; candomblé angola; identidade; patrimônio.

Abstract:
The article aims to contribute to the research on candomblé angola presenting a
rereading of the worship of the orixás. The methodological use of oral history allows
us to perceive in the past and present the distinct meanings that challenge a
homogeneity often attributed to the mythological pantheon of the religions of African
matrix. We will focus on the deities worshiped in the Nzo Nkise Nzazi, which has its
liturgical headquarters in the municipality of Araquari (SC, Brazil). The nzo presents
itself as a candomblé terreiro of Angola modality, whose mythological pantheon would
be tributary of a Bantu worldview, reflecting distinctive signs of identity before the
jeje-nagô houses. Besides, the objectives will be to highlight the relationship between
the divinities worshiped in candomblé angola and, with this, to dialogue with the
debates from the environmental patrimony field.
Keywords: Banto mythological pantheon; candomblé angola; identity; patrimony.

1
O artigo segue as normas da revista Religião & Sociedade, para a qual foi submetido à publicação
em 18 de janeiro de 2018.
2
“O orixá, seria em princípio, um ancestral divinizado, que em vida, estabelecera vínculos que lhe
garantiam um controle sobre certas forças da natureza [...]. O poder asé do ancestral-orixá teria, após
sua morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um
fenômeno de possessão por ele provocada” (Verger 2002:18).
83

3.1 INTRODUÇÃO

Se inserirmos o candomblé de nação angola em uma mesma população


religiosa denominada de povo de santo3, é possível posicioná-lo enquanto realidade
decorrente de um processo de reelaboração de sistema de crenças originário dos
povos africanos trazidos ao Brasil no contexto da escravidão. Para compreender as
contingências atuais do candomblé angola, é salutar, antes de outras
problematizações, realizar um modesto contexto a respeito de seu status em relação
a outras nações de candomblé4. Desse modo, poderemos ainda entender os
tensionamentos existentes no campo das discussões sobre bens patrimoniais no que
diz respeito à preservação e cautela das manifestações de matriz afro-brasileira.
Segundo Previtalli (2006), as nações de candomblé, conforme compreendidas
no tempo presente, configuram-se com base na fundação de antigos terreiros
baianos. Esses terreiros teriam recebido como marcadores identitários os termos
angolas, congos, jejes e nagôs, diante da iniciação de seus sacerdotes, que seriam
descendentes desses povos. Mediante essas configurações identitárias,
formaram-se as diferentes nações de candomblé, cada qual transmitindo às
gerações seguintes a norma dos ritos, a língua e o corpo doutrinário de sua nação.
Convém esclarecer que o termo nação para os arranjos identitários dos
diferentes candomblés tem sua origem nas categorizações étnicas empregadas
pelos escravocratas no contexto da escravidão no Brasil, na tentativa de classificar
os africanos escravizados para fins comerciais. Sobre as tipologias utilizadas pelo
sistema escravista no que se refere aos africanos e descendentes, Parés
(2007:25-29) elucida que duas designações eram usadas nas clivagens dos escravos.
A primeira, chamada de étnica, aludia às identificações que os próprios africanos
realizavam sobre si e sobre os outros, sob aspectos relativos à territorialidade, mas
essa denominação foi perdendo espaço para a segunda designação, que dizia
respeito à ideia de grupos pertencentes a nações metaétnicas, isto é, concernente à
formação de identidades mediante as convivências entre africanos e crioulos,
levando em conta traços culturais correspondentes.

3
“O chamado povo de santo compartilha crenças, práticas, rituais e visões de mundo que incluem
concepções de vida e de morte” (Prandi 2005:22).
4
Etimologicamente, a palavra candomblé parece ter se originado de um termo da nação banto,
candombe, traduzido como “dança, batuque” (Barros 2016:30).
84

Esses novos arranjos sociais, em solo brasileiro, menos ligados a uma


procedência comum e mais imbricados a etnicidades relacionais, fizeram com que os
africanos se apropriassem das designações atribuídas pelo tráfico. Por meio do
diálogo, os africanos escravizados, de diferentes grupos reunidos, porém sob a
mesma denominação metaétnica, forjaram sua própria ideia de nação (Louzada
2011:48). Nesse sentido, Parés (2007:101) esclarece que, mesmo com o fim do
tráfico de escravos, na segunda metade do século XIX, as diferenciações entre
escravos, entendidas como nações, ganharam aderência entre africanos e seus
descendentes, na esfera familiar e no campo religioso.
Faz-se necessário compreender a gênese da construção da ideia de nação
que situa a identidade religiosa dos candomblés como um processo dinâmico de
hibridismo cultural. Pela diáspora, os africanos escravizados advindos de diferentes
lugares buscaram na integração de distintos grupos a construção de novas
comunidades e novas formas de pertencimento. Esses novos arranjos sociais,
representados pelas nações, marcam atualmente os sinais distintivos das casas de
candomblé. Prandi (2005:21) alega que, por intermédio dos candomblés baianos, as
nações queto (ioruba) e angola (banto) foram as que mais se propagaram pelo Brasil.
Assim, a nação queto constituiu uma espécie de modelo para as religiões dos orixás,
dando origem a um predomínio em comparação ao candomblé angola. Segundo o
autor, embora tenha adotado os orixás, divindades nagôs, o candomblé angola teria
desempenhado papel importante na formação da umbanda no início do século XX.
Ainda a respeito das nações, que ratificam a identidade dos diferentes
candomblés no Brasil, tanto Previtalli (2006) quanto Louzada (2011) denunciam a
subalternidade entre uma nação e outra existente no campo afrorreligioso. De acordo
com as autoras, o que pavimenta a ideia de nação nos estudos acerca do candomblé
no Brasil é o ideal de pureza das nações, criando assim desigualdades e
preconceitos dentro e fora do espaço afrorreligioso.
É mister reconhecer que os africanos transladaram seus sistemas culturais do
continente africano, todavia as misturas entre povos africanos precederam o tráfico
negreiro. Pois, como nos explica Silva (2005:29), bem anteriormente ao período de
deportação dos grupos africanos ao Brasil, estes já estabeleciam contato com as
várias nações africanas, bem como com os europeus. Em razão das alianças e/ou da
dominação dos reinos africanos, os cultos e as divindades africanas difundiam-se de
uma localidade para outra. Ademais, o colonialismo europeu, a partir do século XVIII,
85

dinamizou o contato religioso entre brancos e negros. Pela catequese, várias


tradições étnicas foram transformadas (Silva 2005:29). Assim, podemos
compreender que a reelaboração das religiões africanas em razão da diáspora5
resulta de sobrevivências de sentidos culturais que, por sua vez, sofreram
gradualmente processos de hibridização ainda na África.
Nessa perspectiva, podemos compreender que a ideologia da pureza
enquanto valor de autenticidade das nações de candomblé ganha contornos de
certificação de uma suposta África intocada. Essa ideia de pureza, por sua vez, está
intimamente ligada aos candomblés de verve queto/nagô, cujos representantes
eminentes operaram de modo sistêmico na depreciação das religiões consideradas
sincréticas, compreendidas como reificadas perante aquelas supostamente
mantenedoras da pureza mitológica e ritual da matriz africana (Louzada 2011:117). A
respeito das produções intelectuais e acadêmicas e do acionamento da nação
enquanto correspondente de pureza que circunda os candomblés de nação queto,
Parés (2007:103) afirma que a categoria nação é acionada de forma ideológica,
correspondendo aos interesses de legitimação social desejados pelos grupos. É um
alicerce importante para a manutenção de uma identidade coletiva, ao mesmo tempo
em que reproduz estratégias de competividade e solidariedade, operando no jogo de
disputas de memórias étnicas.
Subordinado à condição de imitadores e impuros, circunscreve-se nesse jogo
de disputas o candomblé de nação angola e influência banto. Ele vem a ser
representado nos estudos acadêmicos como a mais pobre nação de candomblé, por
ser sincrético e por misturar suas crenças a qualquer elemento religioso conhecido.
Ante essa subjugação, faz-se relevante salientar que, diferentemente dos
candomblés nação queto/nagô, não existe uma produção etnográfica nem
sistemática do candomblé angola, salvo algumas observações pejorativas em
contraste aos candomblés queto/nagô (Previtalli 2006:4).
Desse modo, nosso trabalho tem como objetivo compreender o sistema de
crenças que se exerce em um terreiro de candomblé angola específico, o Nzo Nkise
Nzazi, situado no município de Araquari (SC), que se apresenta como culto religioso

5
Conforme Santos (2008:182), “a diáspora ou a dispersão dos povos africanos pela Europa, Ásia e
América se produziu em escala massiva durante o período do tráfico de escravos entre os séculos XV
e XIX. Esse é um dos movimentos migratórios mais espetaculares da História moderna, sendo que os
cálculos da travessia forçada pelo Oceano Atlântico oscilam de dez a cinco milhões de pessoas que
teriam sido arrancadas da África e trazidas para as Américas. Sem dúvida, houve presença africana
em praticamente todo o mundo conhecido anterior ao início do tráfico internacional no século XVI”.
86

tributário da cosmovisão banta. Nesse sentido, mediante os testemunhos de seus


membros, daremos atenção a outras divindades, que respondem pelo nome de
inquices e caboclos. Por meio da história oral, buscaremos nas narrativas os
significados atribuídos a esse panteão mitológico pelos membros do Nzo Nkise Nzazi.
Concordamos com Alberti (2013:33) que, apesar de toda a narrativa ser de ordem
individual e particular ao depoente, ela constitui chave importante para entender a
história social de um grupo, de uma geração e de um país.
Ao trabalhar a metodologia da história oral com os membros do Nzo Nkise
Nzazi, pensamos em reverter o quadro de apagamento no qual se insere o
candomblé angola. Ao suscitar a voz de sujeitos excluídos e/ou marginalizados pelos
discursos vigentes, procuramos apreender os sentidos que seus atores sociais
atribuem a sua identidade religiosa. Logo, os estudos sobre memória servem-nos de
apoio para lidar com grupos sociais marginalizados. Pollak (1989), ao problematizar
as memórias marginalizadas de sobreviventes da repressão do Estado SS, como
homossexuais, prostitutas e ciganos, reconhece que, tão vítimas como os judeus,
esses sujeitos não tiveram sua voz na historiografia. Em meio a discursos que
veiculavam tão somente a condição judia nos campos de concentração,
escamoteando outros sujeitos, estes recorrem as suas comunidades afetivas.
Segundo Pollak (1989:5), o excesso de discursos oficiais restringe as lembranças
para o âmbito interno das redes familiares e de amizades, aguardando um momento
oportuno para a redistribuição das ideias políticas e ideológicas.
No caso do candomblé angola, lembramos o entendimento que os próprios
intelectuais construíram sobre a cosmovisão de origem banta que permeia essa
nação. Em oposição à estrutura religiosa queto/nagô, o candomblé angola seria um
mero imitador dos ritos e dos orixás dessa nação. Esse contraste do candomblé
angola com o corpo doutrinário da nação jeje/nagô tem seu início com os estudos do
médico-legista Rodrigues (1988). O autor alega que angolas, gurunsis, minas,
hauçás etc. conservam suas divindades africanas, como um tipo externo de culto
mais ou menos copiado dos nagôs.
Mais tarde, Carneiro (1991b:134) descreveu os candomblés congo e angola
como modalidades praticadas por negros de origem banta que esqueceram os seus
próprios orixás. Ao referir-se aos candomblés de caboclo, vaticina que foi a mítica
pobre dos negros bantos que, fusionando-se à mítica igualmente vulgar do selvagem
ameríndio, produziu os candomblés de caboclo na Bahia (Carneiro 1991a:62). Por
87

sua vez, Prandi (1991:245), ao citar algumas das entidades existentes nos
candomblés de caboclo e nação angola, explica que os caboclos de pena e os
boiadeiros cultuados em nações pouco ortodoxas são considerados entidades
inferiores para os candomblés.
Na esteira da produção acadêmica sobre religiões de matriz africana e na
sobreposição de umas em relação a outras, não podemos deixar de mencionar o
lugar de fala de outros intelectuais. Pessoas eminentes na sociedade que também
investiram seus esforços para a consolidação de um modelo a ser seguido pelos
demais. Segundo Louzada (2011:174), ao contextualizar o prestígio auferido ao
candomblé queto, essa nação cercou-se desde seus primórdios de sujeitos
proeminentes na sociedade. Ela cita Roger Bastide e Pierre Verger como uns desses
sujeitos afamados que, em razão de suas respectivas relações com os cultos
praticados no Ilê Axé Opô Afonja, idealizaram um modelo ritual autêntico. Isto é,
idealizaram o ritual queto como original e puro.
Nota-se com essas questões o processo de inferioridade concedido ao
candomblé de nação angola, utilizado apenas como objeto para sustentar as
idealizações de pureza e autenticidade auferidas aos modelos rituais da nação
queto/nagô. Em nossa perspectiva, o candomblé de nação angola e seus membros,
por intermédio de suas vivências religiosas, poderão nos oferecer novos olhares e
fontes.

3.2 UMA CASA DE NOME E SOBRENOME

Os terreiros de candomblé, roças ou casas, conforme são denominados, têm


sua dinâmica estrutural centralizada na figura de seu líder. Tal líder, reconhecido
como babalorixá ou ialorixá nos terreiros de verve queto/nagô, exerce toda a sua
autoridade sobre os membros do grupo e é investido de uma série de poderes e
saberes a respeito da história de sua casa, daqueles que o precederam e também
dos fundamentos mágicos para efeitos curativos (Lima 2011:80).
Portanto, por meio dos testemunhos dos membros do terreiro estudado neste
artigo, reportar-nos-emos aos tratamentos enunciados pelos seus depoentes e
comumente usados em seu cotidiano. Nesse caso, o líder espiritual, senhor José
88

Arildo da Silva, responde pela dijina6 de Tata Kelaue7. A estrutura hierárquica do


terreiro conta com outras autoridades, subordinadas a Tata Kelaue, entre eles,
cambonos8 e makotas9. Os makotas podem ser relacionados às hierarquias
auxiliares executivas (Lima 2011:103), numa correspondência aos ogãs10 e ekedis11
nos candomblés de nação queto, por desenvolverem o mesmo papel operacional,
espiritual e hierárquico. Para Tata Kelaue (Silva 2017), tanto makotas como
cambonos são pessoas que possuem maior conhecimento sobre os fundamentos
dos cultos, cuidados com muzenzas12 e trato com os inquices13.
Na configuração dos candomblés em geral, também se encontram os filhos de
santo, ou seja, aqueles que são preparados e posteriormente feitos para receber
seus santos e orixás (Lima 2011:80). No Nzo Nkise Nzazi essas pessoas, homens e
mulheres, são chamadas de muzenzas14. Elas são iniciadas para seus inquices e,
diferentemente dos ntangi15, galgam status mais elevado por conta dos
conhecimentos adquiridos em função do cumprimento de seus ritos iniciáticos. Assim,
concebendo a dinâmica política e espiritual do Nzo Nkise Nzazi, no qual os
conhecimentos sobre as divindades, a priori, são legitimados pelas posições dos
sujeitos, selecionamos nosso perfil de entrevistados com base em sua disposição
hierárquica.
Então, começamos com Tata Kelaue, sacerdote e líder espiritual no Nzo Nkise
Nzazi, contando-nos acerca de sua trajetória pessoal no candomblé angola:

6
“Nome religioso recebido por aquele que é iniciado no candomblé angola” (Previtalli 2006:11).
7
“O zelador de santo é chamado de tata, equivalente a pai. Kelaue é minha dijina dentro do
candomblé angola, dado pelo ancestral na minha feitura” (Silva 2017).
8
“É o que chamam de ogã nas casas de queto, mas aqui são cambonos, é hierarquia. São os homens
de confiança do zelador de santo, os olhos da casa, quem corre atrás das coisas, defende o terreiro e
os interesses do terreiro também” (Silva 2017).
9
“Makota é mãe também, faz parte da hierarquia. Elas cuidam das coisas dos inquices e encantados”
(Silva 2017).
10
“Lado masculino das hierarquias [...]. Nome genérico que se dá a uma série de pessoas investidas
de funções rituais” (Lima 2011:113).
11
“São mulheres bem informadas, conhecedoras muitas vezes dos fundamentos do culto, no próprio
nível das velhas êbomis” (Lima 2011:113).
12
“Diferente das makotas e cambonos, são pessoas que entram em transe, são preparadas para a
iniciação e após as obrigações podem se tornar tatas ou mametos” (Silva 2017).
13
Divindades cultuadas pelos povos bantos (Lopes 2011:143).
14
“Iaô-muzenza (filho de santo): chamado assim da feitura até obrigação de três anos” (Barcellos
2011:114).
15
“Abiã-ntangi (iniciante): pré-iniciado que só cumpriu parte dos rituais de iniciação” (Barcellos
2011:114).
89

Fui iniciado por Jurandir Siqueira, Tata Gontangue de Gongobila, do


Rio de Janeiro. Nós somos de massanganga. Eu venho dessa raiz.
Eu costumo dizer que a gente tem nome e sobrenome. Antigamente
chamava muxicongo, mas se perdeu pelo fundamento, nós nos
transformamos. Na Bahia tinha vários os que cultuavam angola,
queto; eles se conviviam. Eu fui iniciado ao inquice Nzazi, esse
elemental. Essa força que a gente faz parte, o raio, essa força (Silva
2017).

Algumas são as semelhanças entre as nações de candomblé, sobretudo as


relações estabelecidas com os mais velhos, como quando Tata Kelaue ao falar de si
primeiramente se reporta a Tata Gontangue. Sua trajetória individual está atrelada a
sua raiz, os massanganga. Falar de si é reverenciar uma origem, na qual se
consolidam também o pertencimento e a continuidade. Os particularismos
encontram-se mais visivelmente na língua pela qual cada nação evoca seus
ancestrais de origem e na forma de percepção de suas divindades.
No candomblé angola, o culto destina-se aos inquices, que, diferentemente
dos orixás, não são seres divinizados, mas elementais16 da natureza, em suas
palavras. Nessa narrativa podemos relacionar entre os inquices dois deles que
compõem o panteão do candomblé angola: Gongobila, o inquice que representa a
força da caça e da fartura17, e Nzazi, a força do raio e que responde à soberania18.
Tata Kelaue diz-nos que esses dois inquices são de extrema importância para
sua vida, visto que sua navalha é de Gongobila, e foi esse inquice, por intermédio de
seu zelador de santo, quem lhe iniciou para o inquice Nzazi. Com a sua consagração
a Nzazi, Tata Kelaue deu continuidade à nação angola plantando moio19 nas terras
de Santa Catarina (Silva 2017).

No candomblé de angola se cultua os inquices. Por exemplo,


Mutakalambo que não é Oxóssi, o orixá divinizado, mas nós
cultuamos a força da caça, que é Mutakalambo. São nossos
ancestrais que atravessaram o oceano e os ancestrais daqui também,
os boiadeiros. Os caboclos de pena, que são os donos da terra, eles
são nossos encantados. Em cada casa de angola você vai ver a
bandeira do Brasil. Eles já existiam aqui nessa terra, não era o negro,
nem o europeu. Esse é o respeito dos bantos que os inquices viram
neles. O povo banto foi o primeiro a ser trazido para cá, eles se
relacionaram com os indígenas, trocaram folhas. Então a gente cultua
os ancestrais de lá e daqui (Silva 2017).

16
Segundo Parés (2013), o elemental geralmente está relacionado aos espíritos da natureza.
17
Gongobila é o inquice caçador (Barcellos 2011:42-43).
18
Nzazi é o inquice do raio, imperador e soberano (Barcellos 2011:61-62).
19
Força vital, “o mesmo que axé dos candomblés de origem sudanesa” (Previtalli 2006:114).
90

O relato de Tata Kelaue diz respeito a nosso questionamento acerca do que de


fato se cultua no candomblé angola. Em sua narrativa percebemos algumas
distinções em relação à religião dos orixás. A primeira alude à errônea
correspondência que ele insinua haver entre orixás e inquices, pois em sua fala
“Mutakalambo não é Oxóssi” (Silva 2017). Sendo assim, embora os dois tenham
status de ancestral, Mutakalambo20 representa uma força que se encontra na mata,
o inquice, um elemental. Oxóssi consiste em um ser divinizado. Oxóssi no Brasil é
considerado o rei de Kêto (Verger 2002:113). Enquanto Oxóssi é reconhecido como o
rei da caça, Mutakalambo é, nas palavras de Tata Kelaue (Silva 2017), a força da
caça.
Num segundo momento, Tata Kelaue relaciona outros ancestrais, ditos como
encantados21: caboclos e boiadeiros, também cultuados no candomblé angola e que
trazem a lume o encontro entre culturas considerado restrito aos candomblés de
caboclo e candomblé angola. É salutar lembrar que, em função dessas divindades,
as duas modalidades de candomblé foram reconhecidas como muito sincréticas em
oposição à estrutura mítica e impermeável das nações queto/nagô. Concordamos
com Previtalli (2006:5) quando ela assegura que a produção etnográfica sobre o
candomblé privilegiou para seus estudos antigas casas de candomblé queto da Bahia,
preferidas em razão de preencherem os critérios necessários de pureza que as
tornavam melhores que as outras ditas mais miscigenadas e, portanto, impuras.
No mito narrado por Tata Kelaue, os inquices cultuados pelos povos bantos
para cá trazidos com o tráfico dos escravizados teriam encontrado no caboclo de
pena o verdadeiro dono da terra. Assim, o panteão mitológico do candomblé
configura-se na conjugação de ancestrais africanos e ancestrais mais próximos.
Tal referência faz parte do trabalho de Tall (2012), ao problematizar o papel do
caboclo no candomblé baiano. Segundo a autora, a chefia da terra seria uma
atribuição do autóctone, o primeiro ocupante do território. Para as sociedades
tradicionais africanas, esse ocupante seria o ancestral primordial e legítimo. Conta a
20
Encontramos uma referência a Mutakalambo nas cantigas votivas dedicadas ao inquice Kabila, rei
da caça (Barcellos 2011:38).
21
Em sua dissertação de mestrado Encantaria na umbanda, Martins (2011:30) alega: “Os encantados
ultrapassam a fronteira da lógica. Não apenas driblam a fronteira da morte, supostamente provando a
imortalidade do espírito, como especialmente refutam a separação entre a vida e a morte. Tanto
podem ser espíritos corpóreos, como viventes que incorporam como se fossem espíritos. Também
evidenciam pouco apreço pelas demarcações entre reinos naturais e a segregação entre formas de
vida. Podem ser peixes, árvores, pessoas e mesmo ‘pedrinhas’. Deste modo é justificável que a
generalidade da literatura a seu respeito se tenha detido na descrição particular de cada uso bem
contextual da noção de encantado”.
91

teórica que existe a lenda de que os africanos escravizados recuperaram seus


conhecimentos ecológicos em novo ambiente geográfico, pois os indígenas
colocaram à disposição dos negros suas folhas e seus saberes na manipulação.
Desse modo, os africanos teriam condições de cultuar suas divindades, visto que
estas dependiam de oferendas e conhecimentos da fauna e da flora para serem
evocadas.
No decorrer da conversa, Tata Kelaue alega que precisa reforçar um erro
sobre o que se diz a respeito ao culto no candomblé angola. Ele alega: “Veja bem,
não cultuamos a natureza. É energia que sai dela. O inquice, esse elemental” (Silva
2017).
Na cosmovisão banto, da qual o candomblé angola se apresenta tributário,
não é a natureza propriamente dita que consubstancia sua cosmologia. Para os
povos banto, no centro de todas as coisas está o sujeito e, excepcionalmente, aquele
que se tornou ancestral. Nessa perspectiva, a natureza é constituída de poderes,
porém o ancestral é aquele dotado de faculdades capazes de controlar e submeter
toda a força que da natureza se manifesta, como, por exemplo, as ventanias, a fúria
dos mares, o poder dos trovões. A natureza em si não é objeto de culto. Tratando-se
de similitudes, bantos e povos que falam a língua ioruba acreditam em seres
revestidos de inteligência e ligados à natureza (Giroto 1999:145).
No transcurso da entrevista, foram mencionadas as diferentes nações de
candomblé e suas possíveis diferenças e semelhanças, especialmente no culto aos
inquices. Perguntamos a Tata Kelaue por que ele se iniciou numa casa de angola,
considerando a predominância de terreiros de nação queto22 na região norte de
Santa Catarina.

Esses elementais mexiam comigo. De que parte da África que venho.


De repente eu nem sou banto; sou sudanês, da parte da Arábia. Mas
você tem que sentir. Eu me sinto banto, não importa se for sudanês.
Me identifiquei com os bantos, com angola. As pessoas têm que ter
essa identificação, seja jeje, queto, angola, umbanda. Por isso que eu
digo, uma religião diz muito pouco sobre o que é o candomblé (Silva
2017).

22
Um dos primeiros trabalhos realizados sobre identidades religiosas afro-brasileiras em Joinville (SC)
é de autoria de Gerson Machado (2014). O pesquisador, além de extensa pesquisa sobre memória e
identidade, faz um levantamento dos terreiros na região. Nesse trabalho, pode-se notar que a maioria
dos terreiros mapeados nessa região derivam da nação queto. Ver: Machado 2014.
92

Percebe-se nessa narrativa que o processo de identificação de Tata Kelaue


evoca sentimentos de pertença com o que se exerce no candomblé de modalidade
angola, tributária da cosmovisão banto. Sentir-se e identificar-se tem pertinência
atualizada.
Nesse sentido, a procedência territorial de antepassados escravizados não
ganha maiores contornos. A identificação, a nosso ver, ocorre muito mais em razão
do que é vivido no candomblé angola do que com uma representação estanque de
África. Dessa maneira, a identificação não ocorre por meio da diferença pulverizante.
Entendemos esse processo, conforme Hall (2003:60), como uma complexa teia de
similaridades e diferenças, recusando assim a divisão em oposições binárias e fixas.
É notório que os candomblés se organizam e se legitimam em torno das nações,
afiliando-se a uma África mítica, afirmando assim suas identidades. Esse fenômeno,
embora menos rígido para Tata Kelaue, também influenciou sua decisão no momento
de iniciar-se na religião. Todavia, para Hall (2003:36), “as culturas, é claro têm seus
‘locais’. Porém não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam”.

3.3 INQUICES, CABOCLOS, UNGIRAS, BAIANOS, MARINHEIROS E PRETOS


VELHOS

Entendemos que, assim como as concepções contemporâneas de cultura


revelam um amálgama de referências, só possibilitando sua compreensão quando
contextualizadas no seu tempo, os sistemas religiosos também se exercem em um
espaço/tempo específicos. Reportamo-nos, nesse caso, ao sentido atribuído no
tempo presente ao que vem a ser um inquice. Na fala de Tata Kelaue, consiste em
um “elemental da natureza” (Silva 2017). Desse modo, devemos ter em mente o
processo de transformação dos cultos às divindades trazidas pelos bantos, tanto na
dinâmica da escravidão quanto no tempo hodierno, em que os inquices, por exemplo,
possuem outros significados.
Na cultura banta, os N’kisi, segundo MacGaffey (1986:80), eram “espíritos
tutelares de vilas associados a água, tempestades, grutas e grandes pedras”. Explica
Previtalli (2012:11) que os N’kisi para os bantos constituíam espíritos titulares
relacionados à família consanguínea. No Brasil, esses espíritos perderam a força que
tinham na África, visto que o sujeito foi retirado de seu clã familiar e de sua terra. No
processo de recriação dos sistemas religiosos vigentes na África, os inquices, agora
93

considerados espíritos da natureza, tornaram-se salutares para a constituição das


famílias de santo, que seriam, em medida, um novo arranjo social e espiritual que
reconstituiria as famílias dissolvidas pela dinâmica escravista.
Tratando-se da reelaboração de um sistema de crenças que fundamenta o
candomblé angola, encontramos outras entidades espirituais ressignificadas e
incorporadas a seu panteão mitológico em solo brasileiro. Conforme Tata Kelaue
(Silva 2017):

O nosso ungira é o dono do caminho, do movimento, do mercado. É o


mensageiro entre nós e os inquices. Eles muitas vezes fazem a
intervenção entre a Aruanda e a terra, pro inquice. Ele é o primeiro.
Nossa própria boca é o ungira. Nossa sexualidade, o movimento de
interlaçar dos corpos. Não é sacanagem. É a fertilidade do homem e
da mulher. A natureza. Por isso são representados em outras nações
com o falo ereto, o que fez com que as pessoas o associassem ao
diabo.

Segundo Tata Kelaue (Silva 2017), o candomblé angola cultua, além de


inquices, caboclos e boiadeiros, os ungiras, que nas palavras dele também são
encantados da natureza e se manifestam em duas versões: no masculino e no
feminino. O princípio feminino recebe o nome de pangira. Mediadores entre os
indivíduos e inquices, os ungiras manifestam-se em seus cavalos23, e cada pessoa
pode carregar os dois princípios, que fazem o papel, em certa medida, de agentes
cósmicos. São eles que orientam, fornecem informações a respeito da vida das
pessoas, conversam com os consulentes, porque, de acordo com Tata Kelaue (Silva
2017), eles estão sempre à frente, na encruzilhada, são a sentinela das pessoas e
também a força do nzo.
Encantados em geral se diferenciam em status aos inquices, visto que os
primeiros se manifestam nos adeptos sem que eles tenham realizado a obrigação
denominada de Ukalakale’Nkisi, que corresponde à iniciação, à feitura de santo
(Barcellos 2011:114). Os rituais iniciáticos no candomblé angola dizem respeito ao
preparo da muzenza com seu inquice particular, no entanto os encantados são
importantes na vida cotidiana de seus adeptos. Tata Kelaue (Silva 2017) conta-nos
que foram seus encantados caboclo Sete Flechas, ungira Toco Preto e baiano Zé do
Coco que o direcionaram a seguir na vida de zelador de santo. Segundo ele, foi

23
Também conhecidos como “aparelhos”, são as pessoas que entram em transe (Silva 2017).
94

ungira Toco Preto, que, após atender a uma certa ginasta que veio a ser reconhecida
mundialmente, lhe deu condições de construir o Nzo Nkise Nzazi (Silva 2017).
No que se refere a esse mosaico de divindades e encantados, também
entrevistamos Milvia Arruda, makota da casa, que prefere ser chamada no nzo, onde
realizamos as entrevistas, de Luan Kaiá24 (Arruda 2017). Ela se apresenta como filha
de Dandalunda, a senhora das águas doces e salgadas, e Angorô, o inquice que traz
a chuva para a terra, fertilizando-a.
Para Luan Kaiá, caboclos, ungiras e inquices igualam-se, pois, “como os
inquices não falam com a gente, enviam os caboclos e outros encantados, que são
os olhos dos inquices” (Arruda 2017). Ela nos falou sobre sua iniciação, seus
sentimentos pelo nzo, suas atribuições na casa enquanto guardiã dos segredos que
não podem ser revelados aos filhos de santo e sobre as divindades cultuadas em
Angola. Em seu depoimento, ela nomeia alguns dos inquices, respondendo à nossa
pergunta acerca do assunto:

Aluvaiá, Nkosi, Roxi Mokumbe, Katendê, Gongobila, Mutakalambo,


Tempo, que é cultuado somente no candomblé angola. É o patrono
do candomblé angola. Então toda casa de angola tem uma bandeira
consagrada a Tempo. Kaviungo, Kassange, Mutakalambo, Gia,
Kaiala, Zumba, Matamba, Bamburucema, Vungi, que é um
desdobramento do inquice. Todo inquice tem um vungi, e este
também nos envia mensagens dos inquices. Lembá, Lembarenganga,
Lemba Di Lé, Nzazi. Esses são só alguns. E Deus, criador de tudo, é
Zambi Apongô (Arruda 2017).

Antes que pudesse entrar no assunto dos encantados, Luan Kaiá antecede:

Mas, além dos inquices, temos também os ungiras, pangiras, pretos


velhos, marinheiros, povo da estrada. Em algumas casas, pelo que
sei, também é cultuado ciganos. Eles são o caminho, o vento. Eles
vencem demandas, nos orientam, são como nossos pais e
conselheiros. São nossos encantados. Ah! Entre os inquices, também
tem Pambu Njila, que em outras nações é Exu. Todos são energia,
forças (Arruda 2017).

Pelas narrativas dos nossos protagonistas, podemos perceber que no panteão


mitológico do candomblé angola várias divindades transitam. Diferenciadas em
inquices e encantados e distintas em atribuições e comportamento, são elas que

24
Segundo Milvia Arruda (2017), Luan Kaiá é sua dijina, nome que recebeu após entrar no Lembaci,
para sua confirmação de makota.
95

forjam a identidade do Nzo Nkise Nzazi e nos revelam muito de seu teor sincrético.
Vê-se esse fenômeno na reconfiguração dos N’kisi banto enquanto pilar da família
estabelecida por laços de consanguinidade e que na dinâmica da escravidão foi
transformado em inquice, força da natureza, aglutinando pessoas de diferentes
grupos. Notamos, no contexto presente, a adoção de outras entidades espirituais que
só foram possíveis por um processo contínuo de encontros com outras culturas.
É mister deixar claro que nosso entendimento de sincretismo25 não alude à
simples troca vulgar de elementos que se contradizem. Ao contrário, reconhecemos
no sincretismo uma estratégia de sabedoria cuja proposição ocorre muito mais pelas
proximidades cosmogônicas ou mesmo entre grupos sociais desfavorecidos que por
uma simples aceitação subalterna do colonizado pelo colonizador. De tal forma que
esse encontro sobrevive resistindo frente o olhar inquisitório de alguns pesquisadores
que ainda tentam estabelecer limites de pureza e justificar o sincretismo como uma
necessidade do passado. Ora, pelas narrativas dos membros do nzo, ciganos,
marinheiros, pretos velhos, caboclos e ungiras são elementos construtivos de sua
identidade no tempo presente. Nas palavras de Ferretti (1998:184),

Alguns aceitam a existência, num passado distante, de um


proto-sincretismo original que teria funcionado no período de
consolidação das tradições religiosas, que depois de consolidadas, se
tornariam um todo refratário a novos sincretismos. Mas em
perspectiva histórico-antropológica mais ampla, de grande duração,
religião e cultura não são fenômenos estáticos, pois encontram-se
constantemente em mudanças e transformações. Se podemos
reconhecer a existência de um proto-sincretismo original na formação
de todas as religiões, porque o fenômeno não se continuaria no
presente? Devido apenas a uma pretensa incompatibilidade
institucional ou teórica entre religiões? A lógica dos intelectuais nem
sempre é plenamente observada nas práticas populares, que muitas
vezes atuam segundo outras lógicas.

A respeito desses elementos considerados estranhos a uma estrutura


tradicional africana e, portanto, vistos como desnecessários para alguns intelectuais,
Tata Kelaue conta-nos:

25
Para Ferretti (2007), sincretismo não é um termo com significados fixos, sendo necessário
localizá-lo historicamente e pesquisar seus sentidos. Contudo, em seu sentido etimológico, é possível
situá-lo na Antiguidade, quando correspondia à “junção de forças opostas face ao inimigo comum”
(Ferretti 2007:107). Segundo o autor, “em nossa sociedade o sincretismo é mais discutido,
principalmente em relação às religiões afro-brasileiras, consideradas religiões sincréticas por
excelência, por terem sido formadas no Brasil com a inclusão de elementos de procedências africanas,
ameríndias, católicas e outras” (Ferretti 2007:106).
96

Não posso tirar a entidade de ninguém. Em muitas casas a gente vê


isso, manda embora caboclo porque é casa de queto. Como eu vou
mandar embora a força de alguém? Aqui no nzo nós nunca tivemos
ciganos, não temos fundamento para isso, mas quem seria eu para
tirar o cigano de alguém se esse cigano pode ser o grande caminho
da pessoa? (Silva 2017).

Essa lógica da exclusão de entidades espirituais dos cultos africanos diz muito
mais respeito às classes mais intelectualizadas do que às pessoas que professam
sua fé. Remetemo-nos aos estudos de Louzada (2011:181) concernentes à
reafricanização dos terreiros na ditadura militar, em que o mito da pureza ganhou
novos contornos. Segundo a autora, nesse momento histórico, projetou-se uma
grande campanha por parte do regime com adesão da classe artística e intelectual no
afã de publicizar o novo projeto de turismo cultural do governo militar. O foco desse
projeto seria “atrair turistas negros norte-americanos de alto poder aquisitivo”
(Louzada 2011:181). Dessa forma, alvitraram-se mais projeções sobre o candomblé
dos orixás e os cultos ditos tradicionais, influenciando os terreiros a buscar por
referências que lhes chancelassem legitimidade. Esse fenômeno foi caracterizado
por Santos (2005:79) como um processo dessacralizante do candomblé, por
representá-lo em menor medida como religião e mais como manifestação cultural
atrativa.
Essa tentativa de reafricanização do candomblé na sanha de purificá-lo da
contribuição de indígenas e brancos constitui uma violência. Uma violência que se
expressa, conforme dito pelo Tata Kelaue (Silva 2017), na suposta possibilidade de
afastar as entidades de uma pessoa e da configuração religiosa de um grupo.
Percebemos essas tentativas de purificação mais como um desejo político de
projeção na sociedade que uma preocupação entre seus adeptos sem grandes
anseios políticos.

3.4 O VENTO QUE BATE AQUI TAMBÉM BATE LÁ

Vale ressalvar que, ao privilegiar como estudo de caso um terreiro específico,


estamos lidando com subjetividades e sentimentos de pertencimento de determinado
grupo. Tata Kelaue diz-nos que “as coisas podem mudar de casa para casa, pois
mesmo uma mesma nação vem de raízes e lugares diferentes” (Silva 2017). Sendo
assim, é salutar ter maior acuidade e não considerar todos os terreiros como iguais.
97

Mas, ao mesmo tempo, faz-se preciso reconhecer que os arranjos entre nações se
dão pela continuidade. É por meio da oralidade que se transmitem os saberes e
também a história de cada casa, pertencentes a uma mesma nação. “Somos
diferentes, mas também somos iguais, porque, como costumo dizer, o vento que bate
aqui também bate lá” (Silva 2017).
Então, podemos dizer, sobretudo em relação aos inquices, que estes são
cultuados em toda nação angola, pois os terreiros, “dinamizados e interpretados em
concentrações etnoculturais chamados Nações” (Lody 1995:2), tendem a preservar
aspectos de um núcleo cultural primário, isto é, aqueles legados pelo povo banto.
Desse modo, construímos, mediante as narrativas, especialmente por intermédio da
contribuição da makota Luan Kaiá, um quadro que compreende a titulação dos
inquices e algumas saudações. Considerando que os depoimentos não seguiram um
ordenamento acerca das saudações dos inquices, dispusemo-nos a seguir o
Jamberussu26.

Quadro 1 – Ordem dos Inquices e suas saudações


INQUICE SAUDAÇÃO
Pambu Njila Gira Mavambo Pabum Njila!
Nkosi, Roximocumbe Kiua Nkosi!
Kabila, Mutakalambo, Gongobila Ominekene!
Katendê Kisaba!
Angorô, Angoromeia Angorole!
Kafunge, Kaviungo, Nsumbo Nsumbu Ampolo!
Panzo, Kitembo, Tempo Nzara Tempo!
Kambaranguaji, Nzazi, Loango Aku Menekene Usoba Nzazi!
Tere-Kompenso Muanzae!
Matamba, Bamburucema Kiuá Matamba!
Dandalunda, Kisimbi Mametu Maza Mazenza!
Kaiala, Kaiá, Kaitumbá Pembele Kaiala!
Zumba, Gia Nzumbarandá!
Vunji Nvunji Pafundi!
Lembarenganga, Lemba Di Lé Epa Lembá!
Fonte: Arruda 2017

26
Jamberussu é quando se canta para todos os inquices, numa ordem determinada (Botão 2007:37).
98

3.5 O PANTEÃO E A RELAÇÃO COM A NATUREZA: UM PATRIMÔNIO


AMEAÇADO

Ao relembrar sua trajetória pessoal na condição de zelador de santo, Tata


Kelaue expõe alguns aspectos que aludem aos motivos de sua mudança da cidade
de Joinville para o município próximo, Araquari. Com base em seu relato, é possível
diagnosticar elementos que dizem respeito à identidade afrorreligiosa do grupo.
Segundo ele:

Eu atendia no Iririú, apenas consulta. Era um espaço urbano. Na


época eu não tinha filhos de santo, eles foram chegando para eu
cuidar. Então esse espaço urbano foi ficando pequeno para nós, eu
precisava de um lugar mais próximo da natureza. Não que o espaço
urbano não seja natureza, para nós também é. Só que quando os
filhos começam a chegar tem todo um preparo que é cotidiano e uma
necessidade maior de interagir com a mata, com a cachoeira, pros
trabalhos de iniciação, para feitura. Precisava de mais fundamento.
Por exemplo, lá não tinha passarinhos. E os bichos são importantes
também para a religião, pois eles nos avisam quando um filho não
está bem. Então eu procurei um lugar assim, com mata, que a gente
pudesse usar. E construí meu nzo aqui por conta da mata que eu
tinha garantia de ser preservada. Hoje parece que estão revertendo
isso aí (Silva 2017).

Da condição de atendente a consulentes, Tata Kelaue passou a acolher


pessoas que precisavam de preparo para iniciação. Mediante essa nova perspectiva,
recorreu a ambientes que oferecessem as condições necessárias conforme o
sistema configurativo dos candomblés em geral. A proximidade com matas,
cachoeiras, mangues, mares, rios e encruzilhadas é, em certa medida, basilar à
identidade desse grupo. Oliveira (2006:117) alega que essas várias facetas
compõem um mesmo organismo, também chamado de identidade.
Desse modo, estamos problematizando aqui uma identidade que se constrói
por intermédio da interação orgânica com bens naturais e que na fala de Tata Kelaue
tem garantia de acautelamento (Silva 2017). A escolha pelo local para
estabelecimento da sede ocorreu por conta de a região oferecer um espaço verde
preservado que entrasse em comunhão com a estrutura cosmogônica de suas
práticas. Podemos dizer então que, na concepção de Tata Kelaue, a ligação atávica
com a natureza é uma precondição para a construção da identidade religiosa do
grupo (Silva 2017). Não obstante, a preferência também teve como crivo um espaço
99

legalmente preservado, assegurando as práticas religiosas do candomblé de nação


angola ao qual se afiliou.
Ao relacionar identidade e patrimônio natural, Zanirato (2009:15) chama-nos a
atenção afirmando que essa implicação deriva de uma identificação da população
com os elementos a serem conservados, reconhecendo-se neles, tornando-os
representativos dela e para ela. Para Tata Kelaue, é na natureza que ele contrai
fontes materiais e espirituais para exercer as práticas ritualísticas que constroem a
identidade do grupo (Silva 2017). Essa mudança é perceptível quando ele relata sua
transição de atendente aos consulentes a líder religioso; a nova configuração exige
integração entre elementos físicos e biológicos da natureza, conjugando assim
homem, flora e fauna.
Há que se considerar que essa identificação com os bens naturais está
intimamente ligada aos detentores de poder que regem os elementos da natureza.
Ou seja, para o Nzo Nkise Nzazi, seus inquices e encantados. Por eles, a coesão e a
identidade do grupo são mantidas, assim como os saberes sobre folhas e
procedimentos curativos.
Cambono Rafael27, um dos auxiliares de Tata Kelaue, conta-nos um pouco
sobre seu processo de aprendizado no tocante às folhas de poder terapêutico,
associadas à regência dos inquices. Segundo ele, algumas dessas ervas e plantas
são colhidas na própria roça do nzo; outras, no espaço preservado em frente ao
terreiro:

Conheço nsansa, que é arruda, que é de Aluvaia e Kabila, é folha


para benzedura e banho. Tem kavula, que é couve, para sacudimento.
Nkazi-masika, que é conhecida como dama da noite, de zumba, para
encantamento. Malemba-Lembá, dormideira, serve para banho e
ajuda acalmando no sono. Jimbongo, essa é de assentamentos e
para enfeitar as comidas, oferendas. É de Nkose e Matamba.
Mungaiava, que é goiabeira, para chás, folha de Terekompenso. Tem
também magendi, de Aluvaiá, serve para banho e chás. Então essas
folhas e ervas são encontradas em tudo que é lugar, não só no
terreiro, e tem folha que tem no terreiro, mas é preciso buscar fora,
num lugar específico. Daí a entidade ou o inquice, através dos búzios,
avisa o Tata (Hasselmann 2017).

Como se pode perceber no testemunho do Cambono Rafael (Hasselmann


2017), os usos dos espaços em que se extraem elementos da flora para fins
27
Rafael conta-nos que não possui dijina, pois apesar de cambono ainda não fez sua confirmação,
que é a iniciação particular dos cambonos e dos makotas (Hasselmann 2017).
100

ritualísticos não se restringem ao território onde está estabelecida a sede litúrgica do


terreiro, tampouco à área de preservação que estava em conformidade com o critério
de Tata Kelaue para a construção do nzo. Mediados por intervenção espiritual dos
inquices, por intermédio da consulta oracular, os recursos naturais são extraídos de
vários lugares. Sobre essa complexidade interativa, Oliveira (2006:117) ressalta que
para o sujeito afrorreligioso não existe desagregação do conjunto, que é um todo
orgânico. Assim, considerando a complexidade desse sistema de crenças que se
relaciona com espaços múltiplos, reportar-nos-emos às relações firmadas com a área
verde preservada em frente ao nzo.

Eu escutei que o pai de santo faz Kabila na mata, mas não estava
aqui na época. Minha ligação com a mata é por causa dos trabalhos
realizados. Por exemplo, o caboclo pode pedir uma festa na mata.
Sete Flechas já pediu. É de lá que a gente retira folha de mamona,
folha de palmeira, de figueira, cana-do-brejo, tem a flor de Kisimbi
(agora não me veio nome), capega, folha de bananeira, folhas para
cobrir o chão em dia de festa, flores para enfeitar as festas. Sei que o
Tata retirava outros elementos pros fundamentos, mas isso é
conhecimento só dele, para fazer beberagem. Alguns insetos são
capturados pra fazer nosso axé, que está no pó. É na mata também
que a gente leva o carrego. Depende muito do fundamento
(Hasselmann 2017).

O espaço em questão, embora fora da sede do terreiro, é um dos ambientes


que possibilitam o exercício da crença em sua plenitude. É nele que se efetivam
rituais iniciáticos, como por exemplo a feitura de Kabila28, conforme a narrativa do
Cambono Rafael (Hasselmann 2017). É da mata que se recolhem folhas e plantas de
cunho mágico e estético para enfeite do nzo em dias de festa e também de onde se
retiram insetos para manuseio de uma particularidade do nzo: a fabricação do pó.
Cumpre esclarecer que Tata Kelaue em nossa conversa nos disse que seu “axé é do
pó”, o que caracteriza sua raiz: “Gente do Beiru do pó, os massanganga” (Silva 2017).
Logo, essa relação ocorre em muitas esferas para diferentes intencionalidades, até
mesmo para a organização de festas de encantados que habitam a mata, caso do
caboclo Sete Flechas. Isto é, na cosmovisão do nzo, “tudo está em tudo, tudo se
complementa, independente do contexto em que esses elementos se encontram”
(Oliveira 2006:117).

28
Inquice relacionado às matas e à caça (Barcellos 2011:38).
101

Esclarecemos que, no período da coleta de entrevistas, uma demanda


bastante deletéria para os membros do Nzo Nkise Nzazi aconteceu. Em junho de
2017, Tata Kelaue foi surpreendido com a presença de maquinários e trabalhadores
investindo no espaço que o fez estabelecer-se na região, pela garantia de
preservação. A mata em frente ao nzo estava recebendo os primeiros procedimentos
para a construção de um novo loteamento. Tal circunstância não é um dado isolado,
mas um fenômeno que acompanha o município de Araquari há alguns anos.
À guisa de informação, é salutar reconhecer o vertiginoso crescimento do
município de Araquari e a expansão de empreendimentos imobiliários que
caracterizam a região. O jornal A Notícia celebra tal fenômeno em artigo intitulado
“Araquari está entre as 25 cidades brasileiras que mais cresceram em 2013” (Maciel
2014). Segundo o periódico, o crescimento está vinculado ao “boom industrial com a
chegada de fábricas de grande porte nos últimos anos”, e “não há dúvidas que uma
coisa levou a outra” (Maciel 2014).
À época do ocorrido, entrevistamos novamente o Cambono Rafael, que tinha
mais detalhes sobre essa iniciativa e recorreu, igualmente, a outros membros do nzo
aos órgãos de fiscalização ambiental de Araquari, enviando assim suas denúncias.
Ele nos relata:

Eu fiz uma série de fotos sobre o que aconteceu. Tinha um grande


movimento de máquinas, caminhões e alguns homens. Eles estavam
aterrando uma parte para fazer uma entrada, aterrando inclusive o
córrego. Em alguns lugares vi que tinha piquete para zoneamento do
loteamento. Tinha muitas árvores caídas, porque o trator entrou e
soterrou o mato, acabou com algumas ervas. Tinha toca de bicho ali.
Com o barro, foi soterrado. Era uma área sem acesso para eles, e foi
feito o aterramento com as máquinas. E o interessante é que foi feito
no final da tarde, quando a fiscalização dos órgãos de Araquari não
estão funcionando (Hasselmann 2017).

Surpreendidos pelo que seria uma atitude ilegal, visto que a escolha pelo
estabelecimento do nzo teve como critério a aproximação com a mata e sua
preservação, os membros do nzo articularam-se por meio de denúncias para os
órgãos competentes. Ainda segundo o Cambono Rafael:

Então nós denunciamos o ocorrido aos órgãos competentes que


respondem às questões ambientais de Araquari. Outros falaram com
vereadores. E daí me disseram que realmente é uma área de
preservação e que imediatamente eles iriam até o local. Daí eles
102

vieram à tarde. A princípio foi embargado, e até então não foi mexido
mais. Não sei se vão fazer isso nessa gestão, porque são oposição
política, mas Araquari está toda loteada, é só prestar atenção nas
placas que anunciam a abertura de novos lotes. Temos medo. A
gente sabe que não dá para restaurar a natureza da forma como
usamos. Não quero desmerecer os terreiros que são perseguidos e
têm suas imagens destruídas, pois é uma violência, e muitas dessas
imagens receberam fundamento, mas tem objeto que se repõe, têm
coisas que não dá para comprar ou refazer (Hasselmann 2017).

A preocupação do Cambono Rafael e dos membros do nzo, evidenciada por


ele na entrevista (Hasselmann 2017), é passível de análise ao situar o município de
Araquari no quadro de cidades que vêm crescendo tão rapidamente. A segurança
quanto à mata preservada coloca em risco a relação que os membros estabeleceram
com o espaço. A Secretaria de Governo e Comunicação do município comemora o
crescimento da cidade em meio à crise brasileira, informando que as empresas locais
continuam ampliando seus negócios (Araquari 2017). Pela assessoria, é possível
tomar conhecimento de que atualmente o município conta com 15 loteamentos em
processo de instalação; dois deles são caracterizados como industriais e os outros 13
são de caráter misto, dividindo-se em comerciais e residenciais.
Embora os membros do nzo não utilizem esse léxico para falar dos bens
naturais que consideram valorativos para o grupo, esses bens são enunciados em
algumas narrativas. O entendimento que o Cambono Rafael tem sobre reposição e
restauro nos indica um sentimento de possível perda daquilo que confere valor para o
exercício da fé religiosa. Assim, utilizamos como possibilidade interpretativa de
patrimônio o conceito de Graeff e Salaini (2011:175):

Nós trabalhamos com a premissa de que os seres humanos se


relacionam com o mundo a partir de esquemas e sistemas simbólicos,
de maneira que toda distinção entre tangível e intangível, natural e
cultural e essencial e acidental costuma nos informar mais sobre o
grupo social que pensa e organiza o seu mundo a partir dessas
dicotomias do que sobre categorias de entendimento ou
classificatórias supostamente universais.
103

Desta feita, os membros do nzo compreendem que a área preservada e que


se encontra ameaçada pelo desenvolvimento urbano e mobiliário faz parte do
patrimônio do Nzo Nkise Nzazi e, muito embora o Nzo Nkise Nzazi tenha se
estabelecido em frente a uma área preservada, parece que o processo de
acautelamento sofreu uma reversão (Silva 2017). Não se sabem os mecanismos de
salvaguarda desse espaço. Segundo Cambono Rafael, existe uma disputa entre
pessoas importantes da cidade e a prefeitura, o que mantinha a tutela do terreno
(Hasselmann 2017).
Arruda (2006) traz-nos algumas reflexões acerca da forma de conceber a
natureza pelos mecanismos acauteladores do Estado brasileiro. Uma delas advém
de nosso passado público. Estamos ainda arraigados no entendimento de que a
natureza e a nossa biodiversidade confeririam soberania à nação. Logo, o patrimônio
natural, concebido por órgãos reguladores do Estado, estaria desenhado por um
enredo monumentalista de natureza e paisagem. Outra problemática para o autor
consiste na qualificação biodeterminista, na qual a ação antrópica sobre o meio
ambiente seria desprezada.
Lembramos ainda que a estratégia dos gestores públicos para resolver as
tensões geradas nesse âmbito tem levado os afrorreligiosos ao aprisionamento de
suas práticas ritualísticas. Elencamos nessa seara a criação de parques29 e espaços
exclusivos para depósito de oferendas, numa reificação à cosmologia das religiões
afro-brasileiras.
Questionado se essa seria uma alternativa viável aos membros do nzo,
Cambono Rafael pontua sua posição:

Eu sou contra, porque é algo artificial. A mata do local pode até ser
sido intocada, isso não faz diferença. O que importa é que
dependemos dos nossos inquices e encantados. São eles que
determinam o local onde ser feito a oferenda, o ebó, o sacudimento,
os processos de feitura. Inclusive os processos de cura também
variam de lugar para lugar. Há trabalhos realizados em encruzilhadas
específicas. Por exemplo, se for um trabalho para Zé Pilintra, a gente
vê se a encruza tem um espaço que remete à boemia, coisa assim.
Se for pra Nkose, procuramos uma linha férrea. Então usamos vários

29
“O deputado estadual Carlos Minc, ex-secretário do Ambiente, explica que o projeto do Espaço
Sagrado da Curva do S é fruto de oito anos de conversas com representantes das religiões
afro-brasileiras, que levaram à criação do Decálogo das Oferendas, texto voltado para a educação
ambiental e religiosa, tendo em vista o risco ambiental que oferendas podem causar, devido ao uso de
elementos como velas, carcaças de animais, garrafas de vidro e potes de barro. De acordo com ele, o
projeto foi paralisado por questões políticas” (Nitahara 2014).
104

lugares. Nzazi é pedreira. Zumba é lugares pantanosos. Não faz


sentido esses tais macumbódromos para gente (Hasselmann 2017).
Conforme narrado nos depoimentos, no Nzo Nkise Nzazi existe uma relação
dialética entre homem, flora, fauna, inquices e encantados. São todos esses
elementos que conferem unidade ao grupo, constituindo assim sua identidade
afrorreligiosa. “Somos angoleiros” (Silva 2017), repetiu várias vezes Tata Kelaue ao
referir-se ao panteão mitológico do candomblé angola. “Nós estamos inseridos num
todo” (Silva 2017). Desse modo, trazemos ao debate alguns elementos estruturantes
dessa identidade e os bens que são considerados valorativos para o grupo. Folhas,
ervas, insetos, bichos, mas especialmente seus inquices e encantados, fazem parte
do patrimônio do candomblé angola. Os espaços sociais apresentam-se ora como
mecanismos de interlocução entre inquices e encantados, ora como habitação de
seres espirituais que lhes oferecem instrumentos para que, manipulados
magicamente, se transformem em curativos.
É salutar advertir que, muito embora os membros do Nzo Nkise Nzazi façam
uso dos espaços naturais com base em sua cosmologia, entendemos a importância
da preservação das áreas verdes, que não são apenas portadoras da memória de um
grupo social, mas garantem o bem-estar de toda a comunidade em seu entorno.

3.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O panteão mitológico do candomblé angola, sob a perspectiva dos membros


do Nzo Nkise Nzazi, conjuga inquices e encantados. Os primeiros seriam a
ressignificação dos ancestrais cultuados pelos povos bantos e eram compreendidos
como espíritos patronais da família consanguínea. No Brasil, por meio de um
processo de reelaboração do sistema de crenças, esses espíritos são considerados
elementais da natureza e tornaram-se salutares para a construção de um novo
arranjo familiar, a família de santo. Pelas narrativas dos membros do Nzo Nkise Nzazi,
percebemos que esses inquices são edificadores da identidade religiosa do grupo.
Juntamente com os encantados, formam o que concebemos neste trabalho como o
panteão mitológico do candomblé angola.
Embora os inquices tenham um lugar mais privilegiado na concepção do grupo,
perceptível nos processos iniciáticos, nos quais seus filhos são preparados para eles,
os encantados transitam num espaço afetivo e cotidiano do grupo. São eles os olhos
105

dos inquices, conforme mencionado, ou que preparam a trajetória particular dos


membros, de acordo com as menções realizadas por Tata Kelaue. Em termos
afetivos e de enunciação nas narrativas, podemos averiguar a equiparação dos dois.
Para os membros do Nzo Nkise Nzazi, o candomblé angola é um espaço
religioso de culto a inquices, pretos velhos, ungiras, pangiras, boiadeiros, marinheiros,
ciganos (em outras casas) e caboclos. Este último corresponde, na ótica dos
membros, ao dono da terra e recebeu o status de inquice sob o mito de que os
inquices haviam lhe outorgado o título. Essa titulação derivaria da concepção banta
de reconhecimento dos líderes da terra e sabedores das condições geográficas dos
lugares, podendo assim dar continuidade ao próprio culto dos inquices. Pois, em
novo ambiente, os negros africanos teriam de reconhecer as hostilidades e
possibilidades dos lugares nos quais viriam a se estabelecer. Todavia, essas
concepções foram marcadas por discursos deletérios e denuncistas de certo
sincretismo, acionado de forma pejorativa e que causa incômodo aos ideários da
pureza.
O panteão mitológico do candomblé angola traz em seu bojo algumas
singularidades. Encontramos certos particularismos referente à língua que nomeia
inquices, folhas e rituais iniciáticos. Situamos diferença na concepção do ancestral,
em que para o candomblé queto o ancestral é um ser divinizado, e para candomblé
angola, um elemental, a força que permeia a caça, a guerra, o vento. Mas, acima de
tudo, encontramos semelhanças. Os candomblés em geral se alicerçam em valores
como tempo de iniciações, valorização de antepassados, organização de seus
quadros iniciáticos e se encontram todos eles, independentemente da nação,
evocadores da ancestralidade africana. Uns mais alinhados à ideia de pureza, outros
devotados a espíritos que surgem do encontro entre novos sujeitos sociais e seus
aportes ritualísticos.
Percebemos nessa caminhada que alguns discursos construídos em
diferentes tempos históricos se tornaram prejudiciais ao candomblé angola. Os ideais
de pureza enunciados sempre vêm na esteira de uma concepção de supremacia, fato
que fragiliza aquele que não possui dotes dignos de ser valorizados. Portanto, o
candomblé angola enfrenta sua invisibilidade, o que consequentemente ressona na
ausência de gestão de políticas públicas patrimoniais.
Relacionamos os significados atribuídos pelos membros do nzo à natureza,
concebida como um todo. Uma encruzilhada, uma linha férrea, um sinal de
106

manguezal, a mata preservada. Cada um desses espaços emana uma força diferente
e demanda uma prática religiosa peculiar, sempre mediada pelo divino, isto é,
inquices e encantados.
Incluímos no trabalho contingências que se apresentaram no decorrer da
pesquisa e que, por sua vez, oferecem ameaças ao culto no tempo presente. O
crescimento das cidades tem sufocado as práticas religiosas que se exercem no
cotidiano de muitos terreiros. No caso do município de Araquari, trouxemos dados
que justificam a preocupação dos membros do Nzo Nkise Nzazi. Nas notícias
elencadas, há grande projeção no tocante ao crescimento urbano e à expansão de
loteamentos. Não encontramos nenhuma referência à proteção de áreas verdes,
muito menos menção sobre o Nzo Nkise Nzazi, único terreiro de candomblé da
cidade. A nosso olhar, esse silêncio da gestão pública da cidade revela que seus
administradores não têm entendimento sobre o valioso patrimônio da cidade.
Referimo-nos desse modo ao analisar as narrativas de seus membros e perceber a
rica compreensão que estes possuem acerca da natureza, com sabedoria de
manuseio de folhas e plantas.
Estabelecemos mais uma semelhança que acossa as religiões de matriz
africana em geral: o descaso do poder público. No afã de responder aos anseios de
segmentos da sociedade, o poder público acaba por represar modos de percepção
do mundo físico e espiritual a espaços restritivos a cultos tradicionais, o que em
nossa pesquisa os membros do nzo alcunharam pejorativamente de
“macumbódromo”.
Acreditamos que a visão integradora dos membros do Nzo Nkise Nzazi a
respeito da natureza pode encaminhar ainda novos direcionamentos nas pesquisas
sobre identidade e patrimônio, sobretudo ouvindo a voz de excluídos. A história das
religiões de matriz africana no Brasil contém, como as linhas das mãos, a violência e
o apagamento das suas memórias, mas cada um dos seus segmentos traz escrito,
igualmente, práticas que exprimem a comunhão com a natureza, as resistências que
se repetiram como um encantamento e as matizes de sabedorias próprias e
compartilhadas. Aliás, revelando as muitas brechas ainda existentes, a história oral
pode nos fazer conhecer as vivências e as memórias de algo muito valioso.
107

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os africanos que atravessaram a Kalunga para servir de mão de obra no


contexto da dinâmica escravista brasileira trouxeram consigo mais que força de
trabalho. Transladaram com eles suas visões particulares de conceber o mundo e
lidar com as várias facetas da vida. Em solo brasileiro, tiveram de adaptar-se a novos
ambientes sociais e geográficos, que lhes apresentaram hostilidades, mas também
proporcionaram encontros e trocas. Dessas trocas, dimensionamos os arranjos
cosmogônicos. É na esteira desse dinâmico refazer-se e religar-se com o cosmos
que situamos o candomblé.
Para além das perseguições e problemáticas encontradas pelos diferentes
grupos sociais que se organizaram em nações de candomblé, compreendemos que o
candomblé de nação angola tem enfrentado suas dificuldades particulares. Tributário
de uma visão de mundo originária dos povos bantos, tal modalidade de candomblé se
situa num processo de marginalidade de seus valores em detrimento dos grupos que
falam a língua ioruba. Tais grupos aglutinados na nação queto/nagô foram e
continuam sendo referendados por intelectuais, artistas e pesquisadores como
legítimos descendentes de um estoque cultural africano concebido como puro.
A intensa produção acerca da religião dos orixás, que ressona em várias áreas
do conhecimento, é em certa medida uma prova inconteste desse predomínio
temático. Estudos acadêmicos, obras literárias, discursos e peças artísticas em geral
nos trazem indicativos da consolidação de um universo mágico em que transitam Exu,
Ogum, Oxóssi, Xangô, babalorixás, ilês. A prevalência da língua ioruba mostra-nos
essa primazia. Porém, por meio de imagens, línguas e representações, podemos
perceber também a construção de um discurso que apaga outras memórias e
práticas culturais e sociais.
Sendo tal prática escamoteada a essa ordem vigente, deparamo-nos com
outras manifestações religiosas que evocam uma identidade forjada pelos africanos,
mas em profundo contraste com a celebração nagô ou a “nagrocracia”, nominação
dada por Reginaldo Prandi (1991, p. 101). Esse contraste é derivativo de uma
maneira muito peculiar de distinção: o ideal de pureza eminentemente africana. Por
sua vez, o ideal de pureza emana ideologicamente uma postura supremática. Esse
fenômeno é observado quando se elege uma única matriz africana como portadora
de memória e identidade.
111

Nesse campo de disputas por engessamento de memórias, está o candomblé


angola. Os discursos elencados para representar essa nação deixam clara sua
posição reificante. Por ser considerado sincrético demais, numa concepção de que
seria resultado de trocas vulgares, o candomblé de nação angola resiste com o culto
de seus inquices, caboclos de pena, boiadeiros, marinheiros, pretos velhos, ungiras e
pangiras. Adentrando no universo mito-mágico do candomblé angola, no qual se
empenhou nossa pesquisa, pudemos apontar nesse panteão mitológico divindades
excluídas dos estudos que privilegiam a religião dos orixás.
Ao ouvir seus atores sociais, damo-nos conta de uma cosmologia que cultua
um todo integrado, que insere fauna, flora, homens, encantados e inquices. Não
poderia ser diferente. Os povos bantos, que dão origem ao candomblé de nação
angola e também a outras manifestações culturais, comunicavam-se de forma
solidária com o todo. Diz o mito que cerca a figura do caboclo, por exemplo, que os
inquices lhe concederam o mesmo título por acreditarem ser o chefe dessa terra
(TALL, 2012). Com tal sabedoria, ele poderia manipular as forças que regem as
manifestações da natureza. Em razão dos conhecimentos sobre fauna e flora, o
caboclo de pena teria condições de ensinar aos africanos novos saberes em
consonância com suas ritualidades. Por intermédio desse primeiro encontro, é
possível dizer que os angoleiros, assim chamados pelos candomblés dessa nação,
poderiam dar continuidade ao culto dos N’kisi banto. Sem o conhecimento das
condições geográficas e biológicas oferecidas pelo novo ambiente, os povos
africanos recém-chegados não teriam como estabelecer conexão com suas
divindades.
Essa característica do candomblé de nação angola incidiu em alguns juízos
apressados. O encontro com uma miríade de espíritos que eram marcantes nas
religiosidades dos povos indígenas em solo brasileiro conferiu a ele a alcunha de
pobre, de imitador e selvagem. Ante a estrutura religiosa queto/nagô, os angoleiros
foram rejeitados por suas práticas fetichistas, primitivas. Soma-se a isso o fato de o
candomblé de nação angola não gozar de um estudo etnográfico sobre seus ritos.
Esses estudos esmeraram-se em buscar numa África mítica a legitimidade dos reis
divinizados, isto é, os orixás. Olhou-se muito para essa África; rejeitou-se o legado
que os povos africanos construíram com outros sujeitos em solo brasileiro.
Ao elegermos um terreiro específico de candomblé de nação angola, o Nzo
Nkise Nzazi, numa perspectiva de estudo de caso, pudemos escutar seus
112

protagonistas e sua cosmovisão singular. Pelas narrativas de seus afiliados,


adentramos num universo mágico e dinâmico, universo em que a integração entre
inquices, encantados, matas, encruzilhadas, plantas, bichos e objetos refletem
memórias e forjam a identidade do grupo. Dessa identidade emanam muitos saberes,
e escolhemos alguns para relacionarmos com a agitação que envolve os debates
acerca do que vem a ser patrimônio. Os saberes, por sua vez, são reconhecidos
como práticas, fazeres e ofícios de um grupo social. São associados assim ao
cotidiano de algumas comunidades, concebidas como portadoras de memória.
Os saberes que se exercem no Nzo Nkise Nzazi envolvem um conjunto de
coisas que estabelecem relação entre si. Em todos eles, reside a marca da magia, do
feitiço, dos saberes que advêm da conexão com as divindades cultuadas. A
transmissão dos saberes por via geracional, mediante o tempo vivido pelos mais
velhos, é uma delas. Acionados pela oralidade, ensinamentos perpassam gerações,
ligam-se a antepassados mais próximos, aqueles que originam a raiz do nzo. Todavia,
essa transmissão de saberes que atravessam as gerações é marcada pela
interlocução com inquices e encantados. É deles que se emana o conhecimento para
a manipulação de plantas, transformando mesmo aquelas consideradas tóxicas em
terapêuticas. Mediados pelo seu panteão mitológico e veículos de comunicação
estabelecido entre eles, como, por exemplo, oráculos, atabaques e animais, os mais
velhos realizam as atividades do terreiro.
No tocante ao corte dos animais, consideramos importante ressaltar o valor
alimentar que ele possui para a comunidade. Nessa concepção, alimenta-se a boca
do mundo: do panteão aos sujeitos, atabaques, passando pelos bichos rasteiros e
pássaros. Todos comem, conforme foi mencionado tantas vezes em nossa pesquisa.
Eivado de significados no que se refere à manutenção do sistema de crenças e
envolto por projeções diabólicas e inquietações legais sobre o sacrifício desses
animais, esse é um tema caro para a comunidade. Então, faz-se fundamental passar
a considerar nos trabalhos produzidos por diversas áreas que a finalidade dos
sacrifícios é providenciar alimentação de valor proteico para as pessoas, sejam elas
membros do nzo, sejam em vulnerabilidade social que procuram o terreiro.
Essa discussão parece-nos salutar para que a sociedade tenha um
entendimento distinto daquele divulgado pela imprensa, ou órgãos mais desavisados
de proteção aos animais. Essa questão diz respeito à soberania alimentar dos povos
de tradição africana vinculada aos direitos humanos. Aliás, as várias narrativas sobre
113

os saberes tradicionais aludem à necessidade de preservação de espécies tanto da


fauna quanto da flora. É patente que os saberes tradicionais são constituídos por
uma concepção de uso consciente da natureza. Não se escolhe qualquer bicho; a
roça é comunitária, diferentemente do abatimento de animais em escala industrial.
A sabedoria tradicional, em geral, convalida-se em experiências empíricas que
se repetem ao longo de séculos e gerações de membros da comunidade. Nesse caso
específico, destacamos aqui a forma como se valoriza o tempo vivido do animal, solto,
velho e que responda às necessidades dos sujeitos de se beneficiarem dos valores
nutritivos de animais como cabritos, ou galos. Conforme elucidado nas narrativas, os
saberes transmitidos pelos mais velhos mostram que esses animais possuem
vitaminas não encontradas na carne bovina e importantes para a dieta alimentar de
sua comunidade.
Os resultados aqui alcançados tiveram como ponto de apoio a história oral,
que nos proporcionou conhecer os sentidos atribuídos pelos indivíduos as suas
práticas ritualísticas. Além disso, essas narrativas possibilitaram trazer um novo
horizonte de perspectiva perante a lógica do conhecimento convalidado pela
sociedade. Por meio dessa metodologia, penetramos numa teia complexa de
saberes e histórias, bem como preocupações dos membros no tempo presente. Na
trajetória desta pesquisa nos defrontamos com uma preocupação sensível dos
membros em relação aos usos dos espaços. O encaminhamento de oferendas
votivas forneceu-nos dados sobre o trato com a natureza. Os cuidados nos preparos
de artefatos para a condução das oferendas também demonstraram os sérios
problemas de algumas análises e discursos que defendem a ideia de que os sujeitos
afrorreligiosos são ignorantes. Não é demais lembrar que da própria natureza se
extraem recursos para reverenciá-la, mas, igualmente, se pode falar em um
conhecimento que abarca plantas medicinais, fabricação de cuités, copos
confeccionados com folhas da mata, plantas que servem de enfeite nas festas, entre
outros saberes e tecnologias. A cautela com os espaços insere-se numa lógica
mito-mágica e de sobrevivência e resistência da comunidade. A preservação do
patrimônio ambiental torna-se parte fundamental dessa religiosidade, embora se
percebam certa cautela e ataques nos discursos ambientalistas.
Esta pesquisa trouxe alguns convites para se repensar a feição que
determinados grupos estabelecem com a natureza. Para os membros do nzo, não se
aparta o homem da mata ou da cachoeira. Tampouco se desvia o curso de um rio,
114

porque seus elementais ali residem e engendram suas forças para reequilibrar os
homens com o mundo espiritual. É sentir a força da caça que se encontra na
natureza. Ali está a marca do inquice. Portanto, sem mecanismos que os próprios
membros encontraram para preservá-la, o sistema de crenças entra em risco.
No entanto é mister problematizar que medidas cautelares poderiam ser
efetivadas para a preservação de espaços considerados para o povo de santo e que
também garantem o bem-estar de uma comunidade. A área verde preservada na
frente do nzo recebe os cuidados de seus agentes e asseguram um ambiente menos
hostil para os moradores do bairro. Plantas e árvores ali existentes propiciam
purificação do ar, ventilação, abrigo para os animais, sombra.
Assim, o exponencial crescimento do município de Araquari nos últimos anos,
acompanhado da expansão de loteamentos, ameaça um bem valorativo que, na
concepção do nzo, faz parte de seu patrimônio. Não obstante, prejudica a qualidade
de vida das pessoas que residem próximo ao local. Desse modo, ajustamos nossa
pesquisa para dar conta de uma demanda que se apresentou no decorrer da nossa
trajetória, afinal a integração de um todo orgânico e indissociável permeia a
cosmologia de muitas das religiões de matriz africana.
Nesse caso, pudemos relacionar o ocorrido com o Nzo Nkise Nzazi com a
ingerência das gestões públicas. Na sanha por responder rapidamente aos anseios
que circundam a vida urbana, acabam por tentar reificar práticas tradicionais em
espaços exclusivos. Tal investida é concebida como violência pelos membros do Nzo
Nkise Nzazi, que defendem a integração ao todo, e não às partes cada vez menores
que caracterizam o patrimônio ambiental urbano. A preservação de bens naturais,
também tidos como culturais, não diz respeito ao congelamento de práticas em
desuso ou que estão em face de desaparecimento, no entanto as perdas tanto
ambientais como culturais fazem sobressair a importância de se efetivar medidas
cautelares que agreguem o reconhecimento identitário de grupos sociais no tempo
presente, no tempo vivido.
Pelos depoimentos dos atores sociais do Nzo Nkise Nzazi, problematizamos
suas particularidades, situadas na forma de conceber seu panteão mitológico,
marcado por discursos oficiais reificantes. Pensamos com esta pesquisa em enunciar,
por intermédio dos sujeitos da narração, seus valores e a afetividade que circunda
seus inquices e encantados. Propusemo-nos a conhecer e analisar os saberes que
se constituem no Nzo Nkise Nzazi inserindo-os no âmbito dos debates sobre
115

patrimônio. Mediante nossa proposta encontramos alguns embates, como por


exemplo a ausência de estudos e fontes acerca do culto aos inquices e encantados,
escondidos pela ótica da pureza africana. Todavia, sem que fosse nossa pretensão
fazer estudos comparativos, identificamos semelhanças com outras modalidades de
candomblé.
É possível dizer que noções como autoridade, tempo e sabedoria são
familiares a outras religiões de matriz africana. Evidenciamos, por meio dos
depoimentos, entraves que acossam o povo de santo em geral, como, por exemplo, a
intromissão das políticas públicas que tentam criar espaços restritivos ao culto. Mas,
acima de tudo, realizamos a tarefa de falar do que pouco se fala, de tentar reverter o
quadro de invisibilidade no qual se encontra o candomblé angola. Selecionamos
aqueles saberes tradicionais que são negligenciados enquanto conhecimento
profícuo por uma ótica racionalista de pensamento. Ao trazer à lume esses saberes,
dialogamos com conceitos que estão inseridos numa perspectiva de direitos culturais
e humanos.
Acreditamos que nosso trabalho possa trazer reflexões sobre a valorização
dos saberes do Nzo Nkise Nzazi enquanto potencial colaborativo nos debates
concernentes a patrimônio e seus mecanismos de preservação. Pensamos que essa
relação atávica com a natureza, na qual os sujeitos não apenas fazem uso dos
espaços naturais, mas se conectam com suas divindades, pode fazer florescer novas
perspectivas. Para os membros do nzo, a natureza é morada de ancestrais, porém
também fornecedora de matéria-prima, pois dela se extraem espécies vegetais e
animais para a confecção de artefatos e moio. Essa sinergia com a natureza pode
oferecer chaves para a proteção de sítios e espaços verdes.
Enfim, novos debates surgem no campo patrimonial, sobretudo no que diz
respeito à falsa dicotomia entre patrimônio natural e cultural, pois à natureza o
homem confere significados míticos, simbólicos, legendários e afetivos. A
preservação do patrimônio também incide na identificação que a população possui
sobre elementos, lugares, num processo de reconhecimento dos bens a serem
protegidos. Na trajetória desta pesquisa, alçamos saberes tradicionais que se
inserem no que se entende por patrimônio. Esses saberes mostraram-se transversais,
não permitindo uma fronteira entre patrimônio natural e patrimônio cultural. Portanto,
seria pertinente que as políticas patrimoniais investissem seus olhares para outros
grupos sociais que também se associam à natureza para garantir sua própria
116

existência. Afinal, os saberes, e nesse caso especificamente nos reportamos às


práticas ritualísticas do Nzo Nkise Nzazi, demonstram uma capacidade
surpreendente de reconhecimento, usos e proteção do patrimônio ambiental, ao
contrário de uma legislação ambiental que mais parece letra morta na sociedade em
que vivemos.
Por criar estratégias de sobrevivências e salvaguarda da sua cultura em uma
realidade que não deveria ter sido sequer pensada, muito menos existido durante
séculos, as memórias e os saberes do passado dos povos de origem africana que
permanecem no presente não devem se transformar em temas marginais para a
academia ou para as políticas patrimoniais. Como bem nos aclara José Eduardo
Agualusa (2012, p. 113), “esquecer é morrer [...]. Esquecer é uma rendição”.
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APÊNDICES

APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE):


ARILDO JOSÉ DA SILVA

APÊNDICE B – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE):


GERALDO SILVA

APÊNDICE C – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE):


MILVIA ARRUDA

APÊNDICE D – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE):


RAFAEL LUIZ HASSELMANN

APÊNDICE E – PARECER CONSUBSTANCIADO DO COMITÊ DE ÉTICA

APÊNDICE F – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS SEMIESTRUTURADAS

APÊNDICE G – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS SEMIESTRUTURADAS


APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE):
ARILDO JOSÉ DA SILVA
128
129

APÊNDICE B – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE):


GERALDO SILVA
130
131

APÊNDICE C – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE):


MILVIA ARRUDA
132
133

APÊNDICE D – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE):


RAFAEL LUIZ HASSELMANN
134
135

APÊNDICE E – PARECER CONSUBSTANCIADO DO COMITÊ DE ÉTICA


136
137
138
139
140
141

APÊNDICE F – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS SEMIESTRUTURADAS 1

Questões guia para entrevista semiestruturada

Informações pessoais

1- Nome
2 - Idade
3- Local de nascimento

Posição no Nzo Nkise Nzazi

4 - Qual seu cargo dentro do Inzo Inkise Nzazi e há quanto tempo o exerce?
5 - Quais as atribuições do seu cargo hoje dentro do Inzo Inkise Nzazi?

Historicidade do Inzo Inkise Nzazi

6 - O que é o Nzo Nkise Nzazi?


7 - Qual a história do Nzo Nkise Nzazi? Como a casa veio se consolidar na região de
Araquari?
8 - O que se cultua dentro dessa modalidade de candomblé? Como se cultua?

Hierarquia e produção de saberes:

9 - Quais outros membros do Inzo são auxiliares diretos nas atividades da casa?
10 - Os saberes dentro do candomblé são transmitidos de geração a geração. Qual
deles o senhor poderia nos citar?
11 - Para que pessoas da casa o sr já pode passar esses saberes?
12 - Como é o cotidiano da casa?
13- Que trabalhos são realizados para as pessoas? Por quais
necessidades?

Relação com a natureza


142

14- Qual a importância para o Inzo de espaços como encruzilhadas,matas,


cachoeiras?
15 -Quais outros espaços são evocados como parte importante do culto?
16 - Qual a relação entre inkises e natureza?
17 - Por que são realizadas oferendas?
18 - Qual é o processo de elaboração de uma oferenda?

Permanências e Rupturas

19 - Que mudanças ocorreram no candomblé que o senhor pratica do tempo de


seus avós até o senhor?
20 - Quais os problemas enfrentados atualmente?
21 - O que poderia mudar esse quadro caso haja problemas atuais?
143

APÊNDICE G – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS SEMIESTRUTURADAS 2

Questões guia para entrevista semiestruturada

Informações pessoais

1- Nome
2 - Idade
3- Local de nascimento

Posição no Nzo Nkise Nzazi

4 - Qual seu cargo dentro do Inzo Inkise Nzazi e há quanto tempo o exerce?
5 - Quais as atribuições do seu cargo hoje dentro do Inzo Inkise Nzazi?

Sobre a área verde preservada

6 - O que aconteceu recentemente com a área de preservação em frente ao Nzo?

7- Qual é a posição do Nzo caso a prefeitura ou outros orgãos competentes criem um


espaço próprio para oferendas, como vem ocorrendo com outras regiões?
ANEXOS

ANEXO A NORMAS DA REVISTA SANKOFA

ANEXO B NORMAS DA REVISTA AFRO-ÁSIA

ANEXO C NORMAS DA REVISTA RELIGIÃO & SOCIEDADE


145

ANEXO A NORMAS DA REVISTA SANKOFA

Diretrizes para Autores

Os textos enviados para publicação devem obedecer às seguintes normas:

Artigos: mínimo de quinze, máximo de 30 páginas, em Times New Roman, corpo 12,
entrelinha 1,5. Resenhas: mínimo de duas, máximo de seis páginas, em Times New
Roman, corpo 12, entrelinha 1,5.

Entrevistas: mínimo de duas, máximo de dez páginas, em Times New Roman, corpo
12, entrelinha 1,5.

Documentação: mínimo de dez, máximo de vinte páginas, em Times New Roman,


corpo 12, entrelinha 1,5.

As citações, notas de referência e indicações bibliográficas devem seguir as


normas atualizadas da ABNT.

Os artigos devem vir acompanhados com resumos e palavras-chave em português e


em língua estrangeira.

Todos os artigos devem vir acompanhados de bibliografia ou referências


bibliográficas.

Serão aceitos artigos em espanhol ou inglês acompanhados de resumo e


palavras-chave em português.

Os trabalhos são analisados por, pelo menos, dois membros do Conselho Consultivo,
que podem recusá-los, sugerir modificações ou aceitá-los tendo em vista: o
tratamento do tema, a originalidade deste ou de sua interpretação e a correção formal
da redação.

Os textos devem ser enviados em formato .doc ou rtf para o endereço eletrônico:
revistasankofa@gmail.com.

Juntamente com os mesmos, deverá ser encaminhado um resumo de até dez linhas
sobre a qualificação acadêmica e profissional do(s) autor(es).
146

ANEXO B NORMAS DA REVISTA AFRO-ÁSIA

Diretrizes para Autores

Artigos inéditos escritos em inglês, francês ou espanhol podem ser encaminhados


para avaliação na língua original, mas, se aprovados, deverão ser traduzidos para o
português por conta do autor. Em casos especiais, a Afro-Ásia poderá se
responsabilizar pela tradução do texto. Também em casos excepcionais, de acordo
com a relevância para os leitores brasileiros, serão aceitos para avaliação artigos já
publicados em língua estrangeira.

Os artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores. É permitida sua


reprodução, total ou parcial, desde que seja citada a fonte.

Afro-Ásia não detém direitos autorais dos artigos publicados, mas não permite sua
apresentação simultânea em outro periódico nacional. Reproduções posteriores são
obrigadas à citação da revista.

Aos autores que desejam enviar seus textos, solicitamos que sigam as seguintes
normas editoriais:

1. O texto não deve ultrapassar 35 páginasem formato A4, espaço entrelinhas de


1.5,em fonte Times NewRoman 12, e deve ser enviado em arquivo anexado via
e-mail, de preferênciaem formato Documento Word(*.doc),em Microsoft Word7.0 ou
posterior.

2. O artigo deve conter um resumo, em português e inglês, de aproximadamente dez


linhas e redigido em estilo impessoal. É necessário também indicar palavras-chave, 5
no máximo.

3. As citações de trechos de obras e documentos devem obedecer ao seguinte


critério: se forem menores que quatro linhas devem ser incorporadas ao texto entre
aspas. Se forem maiores devem vir destacadas do texto principal, com um recuo em
relação às margens laterais de 1cm e sem aspas no começo e no fim. Em ambos os
casos não se deve usar itálico. Todas as citações devem ser acompanhadas de suas
referências em notas conforme as normas descritas mais adiante.
147

4. As tabelas (ou quadros) devem ser formatadas com o estilo Tabela do Microsoft
Word. Todas as tabelas devem ter seus títulos incorporados, menção de sua(s)
fonte(s), e estar numeradas sequencialmente.

5. As fotos (ou figuras) devem ser digitalizadas, em preto e branco, com resolução
mínima de 300 dpi, em formato TIFF, e enviadas em arquivos separados numerados
sequencialmente. No texto deve estar indicado o local onde cada foto deve ser
inserida e sua respectiva legenda.

6. Os indicadores de nota de rodapé devem ser colocados depois dos pontos,


vírgulas, pontos e vírgulas ou dois pontos: Exemplo: Esta concorrência pela alma dos
colonizados gerou uma série de tensões:1 católicos e protestantes disputaram
palmo-a-palmo o terreno.2

7. As notas devem vir em rodapé, com todas as referências às fontes de praxe,


respeitando as seguintes regras:

a) Nas referências a fontes primárias indicar, com precisão, sua origem em


documentos escritos, orais, iconográficos e outros. Fontes devem indicar na ordem, o
documento e data em formato dd/mm/aaaa, a instituição, o fundo, número, maço e,
se for o caso, de folio (fl.) (este formato é válido para todas as indicações de datas).
Exemplo: Nota confidencial 42 do Governador Geral de Moçambique, Freire de
Andrade, ao Ministro da Marinha e Ultramar, 06/11/1909, Arquivo Histórico de
Moçambique (AHM), Secção A, Diversos Confidenciais, cx. 7, maço 7.fl. 108.
Citações seguintes: Nota confidencial 42 do Governador Geral de Moçambique,
Freire de Andrade, ao Ministro da Marinha e Ultramar, 06/11/1909, op. cit., fl. 110.

b) Citação de artigo em revista: Exemplo: Rita Amaral e Vagner Gonçalves da Silva,


"Cantar para subir - um estudo antropológico da música ritual no candomblé paulista",
Religião e Sociedade, v. 16, n. 1-2 (1992), pp. 160-84. Citações seguintes: Amaral e
Silva, "Cantar para subir", p. 165.

c) Citação de capítulo em livro coletivo: Exemplo: Yvan Debbasch, "Le Maniel:


Further Notes”, in Richard Price (org.), Maroon Societies (Garden City: Anchor Books,
1973), p. 145. Citações seguintes: Debbasch, "Le Maniel”, p. 144.

d) Citação de livro: Exemplo: Emilia Viotti da Costa, Crowns of Glory, Tears of Blood:
The Demerara Slave Rebellion of 1823, Nova York: Oxford University Press, 1994, p.
217. Citações seguintes: Costa, Crown of Glory, pp. 203-204.
148

e) Citação de tese ou dissertação: Exemplo: Lucilene Reginaldo, "Os Rosários dos


Angolas: irmandades negras, experiências escravas e identidades africanas na Bahia
setecentista” (Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2005), p. 177.
Citações seguintes: Reginaldo, "Os Rosários”, pp. 55-63.

f) Citação de site na Internet. Exemplo: Sarah Orne Jewett, "The Country of the
Pointed Firs”, <http://www.columbia.edu/acis/.bartleby/jewett>, acessado em data da
consulta. Citações seguintes: Jewett, "The Country”.

g) Nos títulos de obras em inglês, sejam artigos, capítulos, livros etc., as iniciais das
palavras (exceto artigos e preposições), devem vir em caixa alta. Ver exemplo (no
item d) acima

Os editores recomendam atualizar grafia de documentos

Não serão considerados textos remetidos fora desses padrões.

A aceitação de um artigo pela Afro-Ásia implica a aprovação do/a autor/a tanto para a
edição impressa como para versões digitais no site da revista ou em outros sites sem
fins lucrativos.

Não são aceitas resenhas para submissão. Apenas artigos.

O arquivo com o artigo a ser anexado na submissão não deve conter nenhum dado
pessoal que indique ou informe autoria. Inclusive nas propriedades do arquivo.

Condições para submissão


Como parte do processo de submissão, os autores são obrigados a verificar a
conformidade da submissão em relação a todos os itens listados a seguir. As
submissões que não estiverem de acordo com as normas serão devolvidas aos
autores.

A contribuição é original e inédita, e não está sendo avaliada para publicação por
outra revista; caso contrário, deve-se justificar em "Comentários ao editor".
149

O arquivo da submissão está em formato Microsoft Word, OpenOffice ou RTF.


URLs para as referências foram informadas quando possível.
O texto segue os padrões de estilo e requisitos bibliográficos descritos em Diretrizes
para Autores, na página Sobre a Revista.
Em caso de submissão a uma seção com avaliação pelos pares (ex.: artigos), as
instruções disponíveis em Assegurando a avaliação pelos pares cega foram
seguidas.
O arquivo com o artigo a ser anexado na submissão não deve conter nenhum dado
pessoal que indique ou informe autoria. Inclusive nas propriedades do arquivo.
Estou ciente que só são aceitos para submissão, artigos.
150

ANEXO C NORMAS DA REVISTA RELIGIÃO & SOCIEDADE

Diretrizes para Autores

O texto poderá ter no máximo 10 mil palavras, incluindo notas e bibliografia, que
devem vir no final do texto. As notas devem conter informações complementares e
substantivas, não podendo consistir apenas de referências bibliográficas. As normas
para referências bibliográficas estão expostas abaixo. A página de rosto deverá conter:
título do artigo, nome do(s) autor(es) e seu(s) endereço(s), resumo do texto (entre 80 e
120 palavras).

Os textos serão analisados primeiramente pelo comitê editorial da revista, visando


aferir padrões mínimos de qualidade acadêmica e adequação ao escopo da
publicação.

Em seguida, os textos serão encaminhados para dois pareceristas, com base nos
quais o comitê editorial tomará sua decisão, comunicando-a ao(s) autor(es).
Garante-se o anonimato de autores e pareceristas no processo de avaliação. Em caso
positivo o(s) autor(es) deve(m) enviar à Religião e Sociedade a versão final do texto
com as alterações que forem definidas pelo comitê editorial com base nos pareceres
anteriormente emitidos. Acompanhará a versão final: (a) um resumo em português e
em inglês (entre 80 e 120 palavras); (b) uma lista de até cinco palavras-chave, em
português e em inglês, que expressem os conceitos mais importantes do texto e
remetam a temas recorrentes nos estudos acadêmicos; (c) dados sobre o(s) autor(es)
(vínculo institucional, últimas publicações, endereço completo, e-mail); (d) uma versão
em inglês do título do artigo. Não serão admitidos acréscimos ou modificações depois
que os trabalhos forem entregues para composição.

Normas de apresentação da bibliografia

As referências bibliográficas devem ser localizadas no corpo do texto e das notas.


Seguem a forma (Autor Ano) ou (Autor Ano:Página), como no exemplo (Mauss
1960:32). Se houver mais de um título do mesmo autor no mesmo ano, eles serão
diferenciados por uma letra após a data, como no exemplo (Mauss 1960a; Mauss
1960b).

A bibliografia, ao final do texto, obedece às seguintes regras:

Livro: SOBRENOME do autor, prenome. (data), Título da Obra. Local de publicação:


editora, número da edição se não for a primeira.

WEBER, Max. (1965), The Sociology of Religion. Boston: Beacon Press, 2º ed.

Artigo: SOBRENOME do autor, prenome. (data), “Título do artigo”. Título do periódico,


número da edição: páginas.

LATOUR, Eliane. (1996), “Os tempos de poder”. Cadernos de Antropologia e Imagem,


nº 3: 35-52.
151

Coletânea: Sobrenome do autor, prenome. (data), “Título do capítulo”. In: iniciais do


nome seguidas do sobrenome do(s) organizador(es). Título da coletânea. local de
publicação: editora, nº da edição se não for a primeira.

BELLAH, Robert. (1979), “New Religious Consciousness and the Crisis in Modernity”.
In: P. Rabinow (ed.). Interpretative Social Science: a Reader.Berkeley: University of
California Press.

Teses acadêmicas: Sobrenome do autor, prenome. (data), Título da tese. Local: Grau
acadêmico a que se refere, instituição em que foi apresentada.

GUIMARÃES, Patrícia. (1997), Ritos do Reino de Deus: pentecostalismo e invenção


ritual. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UERJ.
152

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